A impermanência do processo: poeira, caminhos - ppgartes
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A impermanência do processo: poeira, caminhos - ppgartes
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes Cristiana Nogueira A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos Rio de Janeiro 2009 P ágina |1 Cristiana Nogueira A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, área de concentração em Arte e Cultura Contemporânea Orientadora: Prof.ª Dr. Leila Maria Danziger Rio de Janeiro 2009 P ágina |2 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEHB N778 Nogueira, Cristiana. A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos / Cristiana Nogueira. – 2009. 110 f. : il. Orientadora: Leila Maria Danziger Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Artes. 1. Arte Contemporânea – Séc. XX – Teses. 2. Poeira na arte – Teses. 3. Melancolia na arte – Teses. 4. Memória na arte – Teses. 5. Arte conceitual – Teses. 6. Arte e fotografia – Teses. I. Danziger, Leila Maria Brasil. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III. Título. CDU 7.036 Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação __________________________ Assinatura __________________ Data P ágina |3 Cristiana Nogueira A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, área de concentração em Arte e Cultura Contemporânea Aprovado em: Banca Examinadora: Prof.ª Dr.ª Leila Maria Brasil Danziger Instituto de Artes da UERJ (Orientadora) Prof. Dr. Roberto Corrêa dos Santos Instituto de Artes da UERJ Prof. Dr. Cezar Tadeu Bartholomeu EBA-UFRJ Rio de Janeiro 2009 P ágina |4 Para Hílio (In memoriam) P ágina |5 AGRADECIMENTOS A minha mãe por sempre acreditar Ao Breno pelas madrugadas de risadas em meio aos inúmeros livros A minha avó por me acolher nos momentos difíceis Ao Rogério por ser ele mesmo Ao Claudio Castro pelo apoio constante A todos os meus amigos que entenderam o sumiço necessário Ao Roberto Corrêa pelas observações poéticas em minha qualificação Ao Cezar Bartholomeu pela grande inspiração Ao Roberto Conduru por acompanhar minha longa caminhada sempre com questões pertinentes A Malu Fatorelli pelas importantes contribuições ao meu trabalho A Ricardo Basbaum pelas conversas sempre enriquecedoras A todos os integrantes do Programa de Pós-Graduação de Artes da UERJ pelas diversas formas de ajuda E a minha querida orientadora, encorajamento e direcionamento em especial, pela paciência, P ágina |6 RESUMO GOMES, Cristiana Nogueira Menezes. A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos. 2009. 110 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Essa dissertação levanta um conjunto de questões relacionadas à reflexão do processo artístico. Focando em conceitos como poeira, melancolia, flânerie e memória, foi desenvolvido um diálogo entre Walter Benjamin, W.G. Sebald, Georges Perec, Susan Sontag, Georges Bataille e Giorgio Agamben e, também, foram pesquisados os trabalhos de Marcel Duchamp, Joseph Cornell e Robert Smithson. O texto é dividido em três momentos nos quais as principais questões são expandidas em fragmentos que consistem em proposições inseridas na arte contemporânea. Junto com o texto é apresentada uma série de imagens que pertencem ao conjunto de fotos que serão expostas durante a defesa. Palavras chave: Contemporânea. Poeira. Melancolia. Flânerie. Memória. Arte P ágina |7 ABSTRACT This dissertation raises a set of questions related to the reflection of the artistic process. Focusing on concepts like dust, melancholy, flânerie and memory, it was developed a dialogue among Walter Benjamin, W.G. Sebald, Georges Perec, Susan Sontag, Georges Bataille and Giorgio Agamben and also, the works from Marcel Duchamp, Joseph Cornell and Robert Smithson were researched. The text is divided in three moments, which the principal questions are expanded in fragments that consist in propositions inserted in the contemporary art. Along with the text is showed a series of images that belong to a set of photos that will be exposed during the presentation. Keywords: Dust. Melancholy. Flânerie. Memory. Contemporary Art. P ágina |8 LISTA DE IMAGENS Jeff Wall - A Sudden Gust of Wind (after Hokusai), 1993 p 9 Sherrie Levine - After Walker Evans, 1981 p. 9 Sophie Calle - Exquisite Pain (Day 12), 2000 p.11 Christian Boltanski - Sans-Souci, 1991 p.11 Marcel Duchamp – Boîte Verte, 1934; Élevage de Poussière,1920 p.12 Joseph Cornell – Spent Meteor: Night of Feb. 10, 1843 (for E.A.Poe.), 1943 p.12 Robert Smithson – A Non-site (Franklin, New Jersey), 1968 p.12 Água, 1998-2001; Stressbugs, 2006; Onde estou?, 2007; Qual o peso do mundo, 2007 p.13 Cartas, 2007; Monumentos Urbanos 2005-2008, Onde estou?, 20072009 p.14 Onde estou?, 2007-2009 p.16 Marcel Duchamp - Élevage de Poussière, 1920 p.17 Marcel Duchamp – Boîte –en- valise, 1934-1931 p.18 Joseph Cornell – Spent Meteor: Night of Feb. 10, 1843 (for E.A.Poe.), 1943 p.19 Passage de l'Opéra, Paris p.20 Diorama. Paris Exposition, 1889 p.20 Imagem do verbete ‘Dust’ do Dicionário Crítico p.21 Marcel Duchamp – Boîte Verte, 1934 p.24 Fac-símile anotações sobre ‘Onde estou? p.26 Fac-símile anotações sobre ‘Onde estou? p.27 Onde estou?, 2007-2009 p.29 Joseph Cornell- L'Egypte de Mlle Cleo de Merode, cours élémentaire p.34 d'histoire naturelle,1940 Eugen Atget - Avenue des Gobelins, 1927 p.34 Programa de Referência Visual do Rio de Janeiro, 2001 p.35 Maxime Du Camp- Tebe, 1849-1851 p.36 Onde estou?, 2007-2009 p.42 p.43 Robert Smithson - Monuments of Passaic, 1967 Lara Almarcegui-Guia de terrenos baldios de S.P.- uma seleção dos lugares vazios mais interessantes da cidade,2006 p.46 Robert Smithson - A Non-site (Franklin, New Jersey), 1968 p.47 Ajudantes, 2008 p.58 Sem título p.60 Gordon Matta-Clark – Conical Intersect, (Paris) 1975 p.63 Gordon Matta-Clark - Fake States, (New York), 1974 p.65 Fac-símile anotações sobre ‘Onde estou? p.67 Onde estou?, 2007-2009 p.68 Onde estou?, 2007-2009 p.69 Cartas, 2007 p.70 Robert Walser, Microgramme p.73 P ágina |9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 9 1. POEIRA 1.1.Dust Breeding 1.2.Melancolia 1.3.Sísifo 17 20 30 2. CAMINHOS 2.1.Flâneur 2.2.Entropia 34 40 3. OBJETOS 3.1.Memória 3.2.Coleções 3.3.Pedras 3.4.Ajudantes 52 58 61 70 CONCLUSÃO BIBLIOGRAFIA ANEXOS 76 77 81 P á g i n a | 10 INTRODUÇÃO Em meu projeto inicial, apresentado por ocasião de meu ingresso no PPGARTES, pretendia explorar questões relativas ao Pós-Modernismo1 a partir da análise de artistas como Sherrie Levine e Jeff Wall. De início era coerente com meus propósitos, já que, ingenuamente, achei poder dar conta da conceitualização deste período selecionado e também de minha produção. É claro que a escolha inicial de artistas deveu-se a aspectos presentes em seus trabalhos que seriam também pertinentes a minha produção até então. A principal questão abordada por estes artistas era a apropriação e citação, que de fato me interessam ainda, mas que tiveram um novo direcionamento nos últimos dois anos. Percebo agora que a memória é um conceito muito presente em meu trabalho, assim como a escrita. Se nos trabalhos anteriores a apropriação se dava de forma mais ‘literal’, agora há algo mais sutil, pois ela se dá em outro contexto. Penso meu trabalho muito mais próximo de uma narrativa do que como uma análise conceitual envolvendo críticas de autoria e percepção do espectador, tal como o trabalho de Sherrie Levine. Assim, Jeff Wall seria mais interessante para minha pesquisa ao recriar espaços da modernidade na contemporaneidade, criando um espaço narrativo através de suas fotografias gigantes. Porém, vejo que a idéia de estudar tais artistas já se integra às minhas investigações, que caminham para a percepção dos restos, das ruínas. Busco pensar a apropriação não como algo retirado de sua autoria, mas sim como algo retirado de seu contexto inicial. Por mais similar que isto seja, não quero 1 Partindo de conceitos tais como: pluralismo, ‘entropia estética’ de Arthur Danto, caos desordenado, perda de referente, ‘neovanguarda’ de Peter Bürger e ‘dimensão de simultaneidade‘, de Hans Ulrich Gumbrecht, pretendia analisar o Pós-Modernismo. P á g i n a | 11 reproduzir uma obra tal Jeff Wall, ao trazer para a contemporaneidade o Manet ou um gravurista japonês. Ou mesmo não quero causar no espectador um choque de valores ao refotografar um 'clássico' da fotografia. Apropriome de restos da cidade que ninguém quer ou percebe. Aproprio-me de restos de meu corpo que já perderam sua utilidade. E ainda de objetos que perderam seu valor simbólico. Ao realizar este gesto, procuro atribuir outro significado a este objeto, outra significação simbólica. É neste momento que fatos biográficos entram em jogo, pois para aqueles objetos fazerem novamente sentido no mundo, eles precisam fazer sentido para mim. Assim como minha pesquisa artística mudou, a reflexão teórica também caminhou para algo distante da análise do Pós-Modernismo como um período a ser estudado. Este estudo ampliou-se, quer dizer, afastou-se do vínculo inicial com a história e a crítica de arte que meu projeto inicial apresentava. Acredito que, em grande parte, o motivo do projeto, inicialmente, aproximar-se muito mais da linha de história e crítica do que propriamente da linha de processos, relaciona-se ao fato de toda a minha graduação ter sido muito mais voltada para a História da Arte do que para a prática artística, desenvolvida de modo paralelo e autônomo. Se antes o Pós-Modernismo era importante para se entender a produção dos artistas supracitados, agora vejo que isto não representa um fator primordial em minha pesquisa. No lugar de pensadores voltados para a conceituação deste período, busco autores que dialoguem com conceitos mais próximos de minha produção. Vejo como muito mais pertinentes autores que tenham o colecionismo, a memória ou mesmo a melancolia como assunto, do que qualquer outro que eu tenha escolhido como fonte, baseado na temática anterior. No entanto, não percebo uma mudança tão radical em minha P á g i n a | 12 produção quanto percebo na conceituação de meu trabalho. Isso talvez ocorra por conta não de minha mudança de interesse nos trabalhos dos artistas, mas sim de uma nova abordagem deles. A partir desta mudança, vejo o pensamento de Walter Benjamin muito mais próximo de meu trabalho. A construção do livro ‘Passagens’, em que o autor se apropria de variados textos, de diversos meios, assim como a sempre presente questão da construção de coleções que incluem os restos gerados pela rápida urbanização, aproxima-se muito de trabalhos onde procuro selecionar restos e vestígios, sejam eles urbanos, corporais ou culturais. Outro autor que considero importante é Georges Bataille. Ao partir de elementos presentes em sua obra, como por exemplo, transgressões e interditos, penso que certas atitudes de prática artística estejam relacionadas a atitudes que fogem ao que seria socialmente aceito. Considero o ensaio de ‘Noção de Despesa’ e seu ‘Dicionário Crítico’ como particularmente importantes, na medida em que utilizo as ruínas, os restos, como elementos de meu trabalho. Em relação aos artistas, vejo que atualmente despertam meu interesse artistas que trabalhem a memória, seja ela uma memória pessoal ou mesmo inventada. Em meus trabalhos, a memória sempre esteve presente de alguma forma. Seja ela como apenas um indício fotográfico2, ou mesmo de forma mais explícita, em que há uma relação com a minha memória pessoal ou coletiva. De início, o trabalho de Sophie Calle interessou-me por ela buscar criar uma narrativa própria a partir de sua observação. A observação do mundo ao redor é o que me aproxima muito de sua investigação artística. 2 Essa maneira de perceber Neste caso, não quero entrar em toda uma discussão acerca do que seria índice (ou que não seria ) dentro da fotografia. O índice seria mesmo algo físico, da materialidade do registro, ou melhor, da suposta presença do objeto fotografado. P á g i n a | 13 pequenos detalhes, de buscar situações fora do comum e retratá-las de modo a criar uma narrativa de mundo e, ao mesmo tempo, criar uma memória que nem sempre existiu, faz com que eu busque novas maneiras de pensar esta questão. Outro artista sobre o qual busquei mais referências foi Christian Boltanski. Sua maneira de criar espaços a partir de trabalhos fotográficos, com imagens que também recontam uma memória fictícia, é algo que me interessa, já que minha ligação com a fotografia é muito anterior a qualquer perspectiva de uma prática artística. Apesar de não terem sido incluídos na presente dissertação, estes artistas foram fundamentais para a minha pesquisa e o desenvolvimento de meu trabalho poético. Dentro de minha dissertação, três artistas foram escolhidos e pesquisados: Marcel Duchamp, Joseph Cornell e Robert Smithson. Duchamp foi abordado a partir de dois trabalhos: ‘Élevage de Poussière’ e ‘Boîte verte’; já que ambos desenvolvem duas questões presentes em minha produção que são a poeira e a memória. Joseph Cornell, apresenta questões pertinentes à melancolia, principalmente em seu trabalho ‘Spent Meteor: Night of Feb. 10, 1843 (for E.A.Poe)’. Em relação a Robert Smithson, seus escritos sobre a entropia e a analogia, entre o Site e o Non-site, foram particularmente importantes no desenvolvimento de minha conceituação sobre a prática artística. O fato de me sentir muito mais próxima às questões relativas à bidimensionalidade, enfrentar a plenitude do espaço e partir para experimentações tridimensionais, é algo bem mais complexo do que parecia. E foi justamente no mestrado que senti necessidade de dar um passo além da fotografia, que sempre me acompanhou. Não penso em abandoná-la, mas sim em P á g i n a | 14 explorar novos caminhos em que seja possível trabalhá-la de maneiras diferentes. O objeto surge como mais um elemento em meus trabalhos. Ir além da fotografia, ultrapassar o que era confortável e relativamente conhecido. Buscar desafios para minhas idéias, desafios espaciais, em outra dimensão desconhecida. Vejo uma tentativa incipiente disto em dois trabalhos: em ‘Água’, de início um exercício de aula da graduação, que resolvi como uma instalação com três projetores simultâneos no mesmo espaço, que alternavam imagens relativas ao título, juntamente com um som ambiente produzido por mim. O segundo trabalho foi ‘Stressbugs’, em que as imagens eram expostas em backlights na parede. Creio que foram momentos distintos, mas em que já havia uma necessidade de se pensar algo além da construção da imagem. No mestrado, os primeiros exercícios foram quase todos voltados para a ‘construção’ de um objeto. Seja na mala com a carta de ‘Onde estou?’ ou na vitrola com o disco infantil em ‘Qual é o peso do mundo?’, a imagem está na tridimensionalidade do próprio objeto e não mais na foto. Resolver isso no espaço tornou-se um problema novo para minha produção que até então se pautava muito na imagem. Até mesmo em outro exercício que a imagem era o resultado final (Cartas), a produção da mesma deu-se a partir de uma ‘ação no mundo’, ela surgiu do recolhimento de restos de papéis encontrados no chão durante uma caminhada. Ora, deixei de ser o fotógrafo moderno que sai de casa com sua câmera em busca da ‘imagem perfeita’, do instante decisivo, e passei a buscar objetos, restos que seriam utilizados numa imagem criada, ficcional, pertencente a uma narrativa inventada (como todas são aliás). Acredito que até minha maneira de pensar a fotografia tenha mudado, já que antes de fotografar as P á g i n a | 15 ruínas (Onde estou?) e as frases que busco pela cidade (Monumentos Urbanos), passo várias vezes pelo local, vejo várias vezes, com diferentes luzes aquele lugar, antes de fazer o tão esperado ‘click’. Toda a minha vida eu pensei em comprar câmeras portáteis para carregar sempre na bolsa, em busca deste instante que não podia ser perdido. Vejo hoje, que tenho não só uma câmera portátil, seja ela a do celular, a digital ou qualquer outra que esteja ali presente, mas que isso não faz nenhuma diferença no meu trabalho. Ele não está de forma alguma associado a este conceito moderno da caça ao instante, do momento que não pode ser perdido. Pelo contrário, as coisas precisam ser absorvidas, eu preciso de um tempo para conviver com aquela idéia, com aquela mudança de percepção da paisagem. Ao perceber que aquilo existe, que aquilo sempre (ou nunca) esteve presente em meu caminho, eu preciso digerir, interagir, para só então ‘registrá-lo’. Mas isso não será um mero registro. Isso será toda uma vivência, um processo entre que o que está ali e eu. Essa é a observação do mundo no meu ritmo. Propus que minha pesquisa seja composta por ensaios diversos, baseados em influências teóricas, observação de outros artistas, que estão divididos em três capítulos. O primeiro capítulo tem como tema principal a poeira e todos os aspectos relevantes presentes em minha produção. No segundo capítulo, trabalho os caminhos que proporcionaram a realização das fotografias e, no terceiro capítulo a importância dos objetos colecionáveis e a relação com a minha coleção de imagens desses locais. Para pensar minha produção, busquei referências teóricas nas obras de Walter Benjamin, Georges Bataille, Rosalind Krauss, Susan Sontag, Giorgio Agamben, além de trazer para o texto autores e artistas que foram importantes para pensar e visualizar meu processo, como Robert Smithson, Marcel Duchamp, W.G. Sebald, Georges Perec, Edgar Allan P á g i n a | 16 Poe e Italo Calvino. No decorrer do texto falo sobre minha ação artística, intercalando minha experiência, vivência, com questões conceituais pertinentes a este processo. Junto com o texto são apresentadas imagens de trabalhos citados de outros artistas e outras do trabalho chamado ‘Onde estou?’, no qual me baseei para a escrita da dissertação. As imagens fazem parte de um grupo de várias fotografias, divididas em pequenas séries, na qual uma foi apresentada no dia da qualificação do mestrado e outras duas serão apresentadas, juntamente com esta, no dia da defesa da dissertação. P á g i n a | 17 P á g i n a | 18 1. POEIRA 1.1 Dust Breeding A fotografia feita por Man Ray do trabalho “Grande Vidro” de Duchamp - (Dust Breeding) - aproxima-se muito do tipo de memória que procuro em meus trabalhos. Sobre esta fotografia, Rosalind Krauss diz que a poeira acumulada é “uma espécie de indício físico da passagem do tempo”. 3 Tratamos aqui não só deste indício direto do tempo (poeira) como também podemos analisar a questão da fotografia em si como o próprio índice4. (A fotografia seria o próprio índice da passagem do tempo, já que há uma ligação física entre a imagem e seu referente).5 Essa poeira é o que denuncia a passagem de tempo e, também, coloca ‘materialmente’ o trabalho na própria história. O que faz esta poeira acumulada despertar o interesse é justamente a questão sensível deste tempo passado. Além do acúmulo dos indícios, há a materialidade do desenho formado, uma paisagem aérea, tão melancólica quanto a própria poeira. Ambos denunciam a qualidade de abandono de que trata a fotografia. A idéia da utilização da poeira como elemento principal deste trabalho de Man Ray e Duchamp é um dos aspectos que desperta interesse para esta fotografia. Ao fazer uso da poeira, Duchamp se apodera de várias pretensas (ou não) referências, tanto no campo da arte quanto no da filosofia, o que segundo Arturo Schwarz, pode 3 KRAUSS, Rosalind. The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. Cambridge: MIT Press, 1986. Pág. 202-203. 4 Segundo Dubois, “(…) a fotografia pertence a toda uma categoria de ‘signos’ (sensu lato) chamados pelo filósofo e semiótico americano Charles Peirce de ‘índice’ por oposição a ‘ícone’ e a ‘símbolo’.” - DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 2003. Pág.61. Em relação ao Duchamp, o próprio Dubois diz que a obra dele é essencialmente indicial, quer dizer, pertencente à lógica do índice.(páginas 254 e 256). 5 “A foto é literalmente uma emanação do referente.” - BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Nova. Fronteira, 1984. Pág. 121 P á g i n a | 19 ser mais um de seus ‘jogos’. Podemos dizer que isto se relaciona bem com a questão da passagem de tempo. Marcel Jean, no livro ‘The complete works of Marcel Duchamp’ nos lembra: Nas anotações de Leonardo da Vinci, podemos encontrar a mesma idéia humorada de utilização da queda da poeira como medida do tempo; o procedimento de Duchamp é quase idêntico ao que Leonardo formula a seguir: ‘O vidro deve ser envernizado ou raspado em seu interior, de modo que a poeira que caia do funil possa se fixar ao vidro; e o lugar onde ela atinge vai permanecer marcado; e isso significa que você verá e será capaz de com certeza discernir a exata altura onde a poeira se fixou, porque ela vai permanecer presa lá.’ Podemos finalmente notar que a queda da poeira é um importante tema no pensamento Zen-Budista Chinês: o que não surpreende, em vista do objetivo final do Budismo, de domínio sobre o tempo. Mas Duchamp parece ter aperfeiçoado as disciplinas chinesas, de alguma maneira mística, introduzindo sua própria ironia afirmativa: ele não varre a poeira fora do ‘Mirror of the mind’, e nem elimina isso com a idéia de vazio – ele a aumenta.6 Duchamp apresenta uma convivência peculiar com a poeira. Além de estar presente neste trabalho (segundo o próprio Duchamp, esta foto foi feita a partir de restos que se acumularam durante alguns meses sobre o Grande Vidro), ela parecia ser um elemento de contato diário. Ela habita seus estúdios de uma forma que impressiona não só Georgia O’Keefe como também Jeanne Reynal, como pode ser visto no trecho a seguir: “Depois que Georgia O’Keeffe visitou o estúdio de Duchamp em NY em 1918, ela relatou que ‘O quarto parecia que nunca tinha sido varrido... e a poeira por todo o lugar era tão espessa que era difícil de acreditar.’ Duchamp eventualmente 6 SCHWARZ, Arturo. The complete works of Marcel Duchamp. London: Thames and Hudson, 1997. Pág. 130-131. P á g i n a | 20 usou verniz para capturar uma parte da poeira do estúdio na representação das ‘peneiras’ quando o Grande Vidro estava deitado. Condições similares persistiram no seu estúdio em NY na rua 14, como recordado por Jeanne Reynal no final dos anos 40: ‘A poeira se depositou no chão em uma camada grossa de duas polegadas com um caminho estreito a partir da porta da frente e outro seguindo para o banheiro 7...”. Essa poeira indicial vai permear também as obras de Joseph Cornell, que apresenta grande ligação com Duchamp. Além de terem desenvolvido uma relação de amizade, Cornell foi um dos que ajudou Duchamp na construção de réplicas da Boîte-en-valise. Cornell desenvolveu uma série de caixas temáticas, que, assim como as caixas desenvolvidas por Duchamp, foram chamadas de museus-portáteis. A aproximação dos dois artistas pode ser também feita através de aspectos melancólicos que ambos os trabalhos carregam. Se Joseph Cornell faz uma homenagem a Edgar Allan Poe8 em um de seus trabalhos, Duchamp encarnará o próprio ‘Homem da Multidão’, quando se muda para NY e cria a figura do ‘celibatário9’; ele deixa a Paris que se torna obsoleta e sai 7 PHILADELPHIA MUSEUM OF ART AND MENIL COLLECTION. Joseph Cornell/Marcel Duchamp ... in Resonance. Houston/New York: Distributed Art Publishers, 1998. Pág. 250-251. 8 “Poeira é outro material implausível para o artista, ainda que ambos os artistas ficassem intrigados pelas partículas da existência cotidiana.(...)Cornell freqüentemente falava de maneira encantadora da tarefa mundana de limpar restos no chão do seu porão. Ele tinha tanta ligação com a poeira que chegou a adicionar um pouco dela na caixa chamada ‘Mouse Material’. Ele citou um precedente artístico: ‘Refletindo sobre Morandi – a poeira cobria suas amadas garrafas usadas, utensílios de metal etc., o acordo feito com sua mãe permitia que ela só limpasse metade do quarto!’. Na mesma edição da View de janeiro de 1943 que publicou pela primeira vez o Cristal Cage, Cornell incluiu um quadro fotográfico dedicado ao Edgar Allan Poe, intitulado Spent Meteor: Night of Feb. 10, 1843 (for E.A.Poe) que combinava três símbolos recorrentes para evocar o tema de Vanitas: um livro objeto recoberto de poeira e vidro quebrado. Enquanto tomado por verdadeiro, o acúmulo de poeira realmente marca um aspecto profundo do temperamento de ambos os artistas, quer dizer, uma elevada consciência dos processos naturais. A fotografia de Harry Roseman tirada na garagem de Cornell captura isto de maneira essencial – a imagem da bailarina do século XIX Fanny Cerrito em uma caixa deteriorada é envolvida por restos, sujeira e folhas secas. Para Duchamp e Cornell, poeira era uma companhia agradável.” – PHILADELPHIA MUSEUM OF ART AND MENIL COLLECTION,1998.Op.cit. Pág. 250-251. 9 “Nova York era uma cidade moderna e Duchamp, um indivíduo da metrópole. (...) Só na grande P á g i n a | 21 em busca de algo que o instigue: é o próprio flâneur entediado, que viaja e vai atrás de novidades. O diálogo com pensadores da modernidade se faz presente de maneira direta, com citações ou mesmo com a criação de uma identidade tão forte quanto os seus trabalhos que, segundo Calvin Tomkins10, consegue separar bem as figuras do ‘homem que sofre’ do ‘artista que cria’ e com isso alternar entre personagens, tal como o dândi (de um terno só) ou o caçador/flâneur que atuava na sociedade para criar uma nova maneira de se fazer e divulgar a arte. 1.2. Melancolia A poeira estaria presente como algo análogo ao tédio, como afirma Benjamin na frase que relaciona a pelúcia como depósito de poeira, no capítulo ‘Tédio, Eterno Retorno’ de seu livro ‘Passagens’.11 O local do acúmulo, juntamente com a sensação de uma perspectiva sufocada e poeirenta do panorama12 ou mesmo a poeira que se acumula nas passagens e suja os vestidos das mulheres quando chove. Essa poeira que sufoca o passado, que se perde em meio a uma modernidade que se faz presente. A poeira que alerta para um local que não faz mais sentido, anacrônico frente a cidade, lançado a sorte, ao inesperado do acaso, pode existir o ‘celibatário’, projeto existencial e intelectual que Duchamp traçou para si e, quem sabe, para o homem moderno. (...) De situações fortuitas e aleatórias Duchamp tira mais valia. Daí o flâneur ser o grande caçador de acasos da sociedade de consumo nascente; o consumidor das vitrinas onde os objetos são como a passante de Baudelaire que, à distância, perversamente, se oferece à fantasia e à imaginação. À sua maneira, O Grande Vidro é também uma vitrina.” - TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. São Paulo. Cosac & Naify, 2005.pág. 9 10 TOMKINS, Op.cit., 2005.pág. 7-8. 11 BENJAMIN, Walter. Passagens. Ed. org. por Willi Bolle. Belo Horizonte / São Paulo: Ed. UFMG / Imprensa Oficial SP, 2006. Pág. 143. 12 Além dessas construções terem o aspecto melancólico por ficarem expostas ao ‘tempo’ e com isso, apresentarem o indício da poeira, elas serviam como uma forma de reviver cidades destruídas, paisagens que haviam sumido, trazendo com isso a questão das ‘ruínas românticas’, que tanto encantou os pensadores da modernidade, em um paradoxo inerente aos seus textos. Segundo Sonia Hilf Schulz, em seu livro ‘Estéticas Urbanas’, “(...) os panoramas registravam cenários de cidades desaparecidas e possibilitavam, assim, a análise das mutações no ambiente construído (...).” Benjamin diz que as “passagens são casas ou corredores que não têm o lado exterior – como o sonho.” Os panoramas vão geralmente se localizar na entrada ou na saída de uma passagem, o que seria quase como um sonho dentro do outro. P á g i n a | 22 uma cidade que insiste em mostrar sua modernidade. Esta poeira que se acumula, que revela o tempo passado/perdido, é a mesma de que fala Bataille em seu Dicionário Crítico13, de uma maneira bem singular ao referirse à poeira e às teias de aranha que estariam supostamente acumuladas na Bela Adormecida depois de seu sono profundo e que se dissipariam ao menor movimento de seus cachos. Temos aqui não só o aspecto temporal como também o melancólico. Não é à toa que Bataille vai trazer uma personagem do imaginário infantil (que nunca envelhece, apenas vive feliz para sempre) com camadas de poeira para retratar a passagem do tempo e a melancolia14. A idéia desta passagem do tempo no conto de fadas inexiste. O tempo passa mas nada se modifica. Todos permanecem congelados em um espaço-tempo em que não há envelhecimento nem provas físicas de que houve alguma modificação. A figura dos personagens traz também a questão da melancolia porque estão distantes, fazem parte de uma época que já passou, seja ela a infância (momento em que ouvimos tais histórias) ou mesmo a época em que são ambientadas (Idade Média). Adorno, em seu livro ‘Minima Moralia’, coloca que o conto da Branca de Neve, através de sua ambientação, caracterização dos personagens ou a própria história e seu conteúdo moral é um dos que ‘exprime melhor do que nenhum outro a melancolia.’ Melancolia esta que percebemos na grande 13 BATAILLE, Georges, “Dust” in Bataille et al., Encyclopedia Acephalica. London: Atlas Press, 1995. Pág.42-43. 14 Segundo o Dicionário de Psicanálise, de modo simplificado, a melancolia é um “termo derivado do grego melas (negro) e kholé (bile), utilizado em filosofia, literatura, medicina, psiquiatria e psicanálise para designar uma forma de loucura caracterizada pelo humor sombrio, isto é, por uma tristeza profunda, um estado depressivo capaz de conduzir ao suicídio, e por manifestações de medo e desânimo que adquirem ou não o aspecto de um delírio. (...) a teoria hipocrática dos quatro humores, que durante séculos, permitiu descrever, de maneira mais ou menos idêntica, os sintomas clínicos dessa doença: ânimo entristecido, sentimento de um abismo infinito, extinção do desejo e da fala, impressão de hebetude, seguida de exaltação, além de atração irresistível pela morte, pelas ruínas, pela nostalgia e pelo luto.” PLON, Michel; ROUDINESCO, Elizabeth. Dicionário de Psicanálise. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 1998. Pág. 505-506. P á g i n a | 23 maioria dos contos de fadas que ouvimos na infância15. No filme Samsara16, de Pan Nalin, temos uma idéia semelhante, mas de forma inversa. O filme conta a história de um monge tibetano e sua dúvida entre seguir a vida no monastério ou experimentar viver como um homem comum, pois apenas conheceu a vida dentro dele. O que aproxima este filme dos contos de fada é justamente o fato de que aqui temos a passagem de tempo muito bem representada. O monge; depois de três anos, três meses, três semanas e três dias; é tirado da caverna onde estava fazendo um retiro espiritual. Se a Bela Adormecida acorda sem que nada houvesse mudado, o monge está com seus cabelos, sua barba e unhas muito além do comprimento normal. Além disso, seu corpo não agüenta o esforço, pois não exercita sua musculatura há muito tempo. Mas o que importa mesmo é o fato de estar coberto de pó, pois, como se não bastasse os indícios corporais de que o tempo passou, temos o melhor indício para isso: a poeira que cobre tudo que é abandonado ou deixado de lado; que alimenta este estado ‘vegetativo’. Numa direção oposta, Italo Calvino vai entender a melancolia como algo associado à leveza, em seu livro ‘Seis propostas para o novo milênio’. Ele conceitua, em determinado momento, a melancolia como (...) um véu de ínfimas partículas de humores e sensações, uma poeira de átomos como tudo aquilo que constitui a última substância da multiplicidade das coisas17. Novamente temos a poeira permeando a melancolia, porém esta poeira é mais fina, brilha e não pesa tanto quanto a poeira de Bataille. Ele ainda diz que “a 15 ADORNO, T.W. Mínima Moralia. Lisboa: Ed.70, 2001. Pág. 122-123. Samsara – Dir. Pan Nalin (Alemanha/India) (2001). 17 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Pág.32 -33. 16 P á g i n a | 24 melancolia é a tristeza que se tornou leve (...) [é] a gravidade sem peso18.” Ela é a poeira que está na canção ‘Stardust19’, é ‘a busca da leveza como reação ao peso do viver20.” A melancolia é vista com esperança, como um estado possível de sofrer transformação. Neste mesmo verbete, ‘Dust21’, Bataille associa a poeira também com ambientes que trariam lembranças assombradas, espaços decadentes, abandonados (velhos quartos e sótãos), em que a poeira estaria ali presente para ‘alimentar’ tais aspectos. A poeira é algo que não deveria estar nestes lugares, que não queremos ver, que aspiramos, limpamos freneticamente para não termos o indício de passagem de tempo. Ela é quase invisível, mas também se faz presente e essa presença é indesejada. Buscamos sempre retomar o aspecto ‘novo‘, o viço de tudo que limpamos para não termos que conviver com a melancolia que a poeira traz. Na história ‘Max Aurach’, do livro ‘Emigrantes’ de W.G. Sebald, temos um exemplo de narrativa que expõe a melancolia na própria forma de construir a narrativa. Além do texto fazer uma descrição minuciosa do ateliê do artista, ela é arrastada, lenta, com longos parágrafos e frases que nunca chegam ao final. São várias imagens que o escritor cria, que formam uma única rede, com pequenas referências do cotidiano melancólico do artista, pequenos detalhes que compõem o cenário perfeito para o artista ‘saturnino’, como pode ser visto no trecho a seguir: Entrando no ateliê leva um bom tempo até os olhos se acostumarem à estranha luz reinante, (...) A escuridão acumulada nos 18 Idem. Pág.32. Stardust - 1927 - Hoagy Carmichael 20 CALVINO, 2001. Op.Cit. Pág. 39. 21 BATAILLE, Georges, “Dust” in Bataille et al., Encyclopedia Acephalica. London: Atlas Press, 1995. Pág.42-43. 19 P á g i n a | 25 cantos, o reboco de cal inchado com manchas de sal, e a pintura descascando nas paredes, as prateleiras cobertas de livros e montes de jornais, as caixas, (...) Aurach instalou seu cavalete, na claridade cinzenta que entra pela janela do norte, coberta por décadas de poeira. (...) o chão está coberto por uma massa de vários centímetros de altura já endurecida, com uma crosta, misturada com pó de carvão, (...) Certa vez Aurach disse em tom casual que sempre considerara muito importante que nada mudasse em seu local de trabalho, que tudo ficasse do jeito que ele organizara, assim como estava agora, e nada se acrescentasse além do lixo que caía enquanto ele pintava nem da poeira que baixava incessantemente e que, como lentamente aprendeu, era mais ou menos a coisa que mais amava no mundo. A poeira, disse ele, lhe era muito mais próxima do que a luz, o ar e a água. Nada lhe era tão insuportável quanto uma casa em que se limpava o pó, e em nenhum lugar sentia-se melhor do que ali onde as coisas podiam ficar imperturbadas e abafadas22 (...). Esta poeira que Aurach tanto venera é uma poeira que, ao mesmo tempo dá vida ao ateliê e que denuncia o seu estado de abandono melancólico. Por mais que ele viva e sinta que o tempo passa ao trabalhar, é na poeira que a passagem de tempo está mais bem representada. Por isso não se pode limpar o cômodo, por isso a poeira tem de cair lentamente, acumular todo dia, formar camadas tal como a tinta que se mistura ao piso. É como se ele fosse um prisioneiro deste indício de tempo, destes pequenos resquícios de sua vida. Quando Bataille afirma que a poeira é uma espécie de alimento para estes locais, de alguma forma deixados de lado, (incluindo as coisas que são depositadas/abandonadas nestes espaços para depois serem revisitadas), temos o mesmo movimento melancólico, 22 SEBALD, W. G. Os emigrantes. Rio de Janeiro: Record, 2002. Pág.160-161 P á g i n a | 26 pois a fotografia do ‘Grande Vidro’ fará parte de uma espécie de memorabilia23 habitante de uma caixa (Caixa Verde) e que deverá ser ‘lida’ junto com a obra do ‘Grande Vidro’. A ‘Caixa Verde’ será o depositário de todas as ‘lembranças’ sobre ele (Grande Vidro), tudo o que importa, mas que não pode estar junto da própria obra. São os indícios que contribuíram para a formação do próprio trabalho. Esta idéia da limpeza do ateliê, dessa poeira que se acumula, da ‘Élevage de Poussière’ relaciona-se com questões presentes no item ‘Dust Breeding’, em que Cornell e Duchamp ‘representam’ na vida real a composição deste personagem descrito por Sebald. Tanto Duchamp quanto Cornell apresentam uma relação análoga com a poeira, como vimos anteriormente. Seus ateliês ficavam cobertos de pó e chegaram a utilizá-la como material de trabalho. A presença do impalpável e do sensível em um mesmo lugar. Pó Dust Poussière Ao buscar estes locais abandonados pela cidade, pensei que agiria em um movimento de recuperação, de valorização de um 23 “Quase duas décadas depois da primeira iniciativa desse tipo, quando havia reproduzido dezesseis notas e um desenho, Duchamp decide reproduzir em fac-símile todas as suas notas, esboços, desenhos e algumas pinturas sobre ‘O grande vidro’ realizadas entre 1912 e 1920, e reuni-las sem nenhuma ordem em uma caixa que, em setembro desse ano, edita sob o título La Mariée mise à nu par sés Célibataires, même (A Noiva despida por seus celibatários, mesmo) também conhecida como Caixa Verde, devido à cor do material aveludado com que a caixa era forrada. Para Duchamp, a caixa devia ‘(...) acompanhar o Vidro e ser consultada quando se olha o Vidro, já que, pelo menos para mim, não deve ser ‘olhado’ no sentido estético da palavra. Deve-se consultar o livro e olhá-los juntos. A conjunção de ambas as coisas remove completamente o sentido retiniano que não me agrada.’” – FILIPOVIC, Elena (org.) et.al. Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra ‘de arte’. Buenos Aires: Fund. Proa; São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, MAM-SP, 2008. Pág.58. P á g i n a | 27 ambiente que não apresentava valor real. Ao apontar minha câmera para eles eu os trazia para a realidade, para a cidade, como se eu os contextualizasse novamente. Este trabalho começou quando eu passei a perceber, nos meus caminhos diários, alguns desvios, locais que faziam meu olhar ter um estranhamento. Quer dizer, eles me tiravam de uma espécie de transe, de um olhar que vagava sobre uma superfície contínua. Os terrenos eram uma interrupção no ritmo contínuo, um buraco que tropeçamos na calçada quando andamos sem prestar muita atenção e que nos faz olhar para trás para ver o que realmente ocorreu. Mas no caso dos terrenos a sensação de choque era maior pois eu não tinha como voltar. Esses caminhos cotidianos eram feitos de carro e ao passar por uma localidade que apresentasse essa peculiaridade, já era tarde demais quando me dava conta do que havia ocorrido. A única maneira de preservar este momento era anotar em um pequeno bloco que carrego na bolsa, para poder observar com mais calma quando fosse passar novamente. De fato, poderia voltar já com a câmera para registrar logo a existência deste espaço fugidio, já que eles costumam desaparecer rapidamente, mas isso nunca ocorria. Costumava voltar e observar este local inúmeras vezes até achar que era necessário fazer a fotografia. Na maioria das vezes, só tomava a decisão quando sentia que o local estava novamente se transformando, quando havia uma ocupação por moradores de rua ou quando uma empresa começava a limpar o terreno para uma nova construção. Precisamente este era o momento perfeito, o momento em que a entropia era percebida, a mudança de estado era visível. Acredito que esta não-ação em relação à fotografia era uma atitude de resistência, um modo de achar que aquela situação poderia permanecer por mais tempo. Observava constantemente, numa ilusão de que aquilo era minimamente duradouro. Mas, ao menor movimento inerente à cidade (seja de crescimento ou destruição) se fazia necessário guardar esse pequeno instante. Seria a paráfrase do ‘instante decisivo’ de Henri Cartier-Bresson. Se ele P á g i n a | 28 estava sempre pronto, com sua câmera à mão para poder fazer a melhor foto, eu quase perco este momento ideal por preferir observar e acreditar que ele vá durar para sempre sem a minha interferência. Esses lugares em relação à cidade representam o indício de sua entropia, o local em que isso pode ser percebido de maneira mais clara, mas que ao mesmo tempo, nem sempre é notado. São espaços de transição e, justamente por isso, não são apreendidos por todos que passam perto deles. Ao fotografá-los, crio um duplo indício (duplo índice). Eles simbolizariam a poeira do ambiente urbano, o que não pode ser contido, o que extravasa. Quando são fixados em forma de imagem, tornam-se o indício de sua existência. A fotografia, o trabalho, transforma-se na afirmação desta poeira. Duplamente, ela faz com que a poeira nunca deixe de existir, pelo contrário, a poeira encontra ali sua maneira de eternizar-se. Segundo Elio Grazioli, em seu livro ‘Polvere nell’arte’, assim como os objetos, os lugares a natureza e o homem se transformam, se ‘consomem’, todos tendemos ao desaparecimento, onde a poeira é o índice deste mundo moderno que morre a cada dia, aquele local tem apenas na fotografia a chance de ultrapassar o presente e chegar ao futuro24. A poeira seria como um símbolo de morte e vida, de transformação entre um lugar que não é mais o que era e que pode ser uma nova coisa a qualquer momento. O local da entropia per se, onde não há volta para aquele resquício de construção e o que virá nunca será igual àquilo que se foi. Poeira como a passagem entre o antigo e o novo, como metáfora25 da eterna transformação ‘você é pó, e ao pó voltará.26’ A busca por esses lugares ocorre de maneira 24 GRAZIOLI, Elio. La polvere nell’arte. Milano: Bruno Mandatori, 2004. Pág. 44. “A metáfora da poeira é evidentemente antiqüíssima já que Deus na Bíblia a utiliza para criar o corpo do primeiro homem. Subitamente é ligada à origem, à matéria e ao tempo.” – GRAZIOLI, 2004. Op.cit. Pág. 1. 26 SBCI . Bíblia Sagrada - edição pastoral. São Paulo: Paulus, 2000, 40º reimpressão. Pág. 17 – Gênesis 3,19 25 P á g i n a | 29 semelhante a flânerie parisiense. Análogo porque a apreensão da cidade também está relacionada com a observação tediosa que leva a uma descoberta. O ‘belo’ que desperta do habitual. Porém, não tenho o mesmo tempo do flâneur. Tento criar este tempo quando retorno ao local. Entretanto, a experiência sempre ocorre através de um filtro. Ela não é direta como a do flâneur que vaga pelas ruas sem rumo atrás de um momento que o desperte do tédio. Estou sempre atrás de uma janela, seja ela a do carro ou da câmera. O meu caminho é sempre tedioso, é o caminho da casa para o trabalho ou derrubados, mas que deixaram impressos nas paredes, que cercam o terreno ao qual pertenceram, a sua poeira, o seu índice de que um dia ali estiveram com toda a sua força construtiva. Os restos frágeis tentam reproduzir o que havia ali. Ao mesmo tempo, percebe-se o vazio, a sensação de não-existência, de alguma coisa que tenta resistir, mas não consegue. Ao refazer esse caminho, a repetição das fotos traz de volta as inúmeras observações que foram feitas do terreno antes da apreensão das imagens. Uma monotonia e, de alguma maneira, uma tentativa de armazenar, reter a memória fugaz do local. P á g i n a | 30 P á g i n a | 31 1.3. Sísifo Segundo Yve-Alain Bois, no verbete ‘Zone’27 do livro ’Formless’, a poeira tem um duplo índice, já que na escala urbana, os locais em que ela aparece28, representam a poeira na escala residencial. Se em casa temos aqueles objetos velhos empoeirados que queremos não ver (e por isso eles acabam em locais que também são abandonados), nesta escala urbana, os locais inóspitos representam o asco da poeira residencial. São locais que não desejamos ver e, se pudéssemos, evitaríamos sua existência. Além disso, estes espaços seriam o lixo, a perda inevitável da produção, resultado de uma ‘overproduction’, segundo Bataille29. Ao mesmo tempo, podemos dizer que em sua teoria econômica, Bataille trata da ‘despesa improdutiva30’. Este conceito abre possibilidade para pensarmos estes espaços vazios sob outro aspecto. Ao trabalhar o princípio de perda como algo importante para a sociedade, Bataille chega a relacioná-lo com a arte, as jóias, os jogos e a religião e o que significa sua importância para os homens31. Podemos aproximar isto do fato de que estes espaços ‘desperdiçados’, de alguma maneira, são necessários para o equilíbrio da cidade, pois os gastos visivelmente empregados e perdidos nestas construções fazem com que percebamos melhor tudo que está a sua volta. Eles são os espaços ‘inúteis’, indefinidos, em que quanto maior o desperdício maior sentido eles fazem para o equilíbrio urbano. Eles carregam um valor agregado simbólico que faz com que olhemos para eles com certo receio de que aquilo 27 BOIS, Yve Alain; KRAUSS, Rosalind E. Formless: A User's Guide. New York: Zone Books, 2000. Pág. 224-231. 28 Terrenos baldios, estacionamentos fora de uso, prédios abandonados etc. 29 Conceito que Bataille trabalha em seu livro ‘A noção de despesa’. 30 BATAILLE, Georges. A Parte Maldita (precedida de "A Noção de Despesa"). Rio de Janeiro: Imago, 1975. Pág. 29. 31 A importância de gastar uma quantia grande ao comprar uma jóia; a importância da arte para uma sociedade, já que ela é inútil por princípio; a questão da competição esportiva etc. P á g i n a | 32 tome uma proporção maior do que já têm, tal como a poeira que pode se acumular indefinidamente se deixarmos de limpar. Essa poeira que se acumula nas casas à revelia de tantos esforços também poderia ser relacionada com estes espaços vazios, abandonados, que estão em constante movimento de reaproveitamento pela cidade (quando estão adormecidos em sua poeira) ou ficarem por um tempo sem utilização adequada (quando perdem sua função anterior). Os locais passam sempre pela ‘limpeza’ para serem renovados, modificados e deixarem de ser o ‘local sagrado urbano32’ para virarem um local ’produtivo’. Ou passam por todo um processo de degradação para virarem um não-lugar. Nesse movimento entre produtivo ou sagrado, estes espaços proporcionam alterações significativas na paisagem urbana. Segundo Marc Augé, (...) por ‘não-lugar’ designamos duas realidades complementares, porém, distintas: espaços constituídos em relação a certos fins (transportes, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços33. Podemos aproximar esta idéia sobre o não-lugar de Marc Augé com as heterotopias de Foucault, que ele conceitua em seu texto ‘Outros Espaços34’. Na verdade, o próprio Augé chega a fazer isso em seu livro quando classifica o não-lugar como o contrário da utopia.35 Para Foucault, existem dois posicionamentos: as utopias e as heterotopias. A primeira é um posicionamento 32 Sagrado no sentido que Bataille emprega em relação às despesas improdutivas, em que a religião, principalmente ao realizar cultos, estaria associada. 33 AUGÉ, Marc. Não- lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas: Papirus, 1994. Pág. 87 34 FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: MOTTA, Manoel Barros (org.). Michel Foucault. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. (Ditos & Escritos. v. III) pág. 411-422. 35 AUGÉ, 1994. Op. Cit.Pág. 102. P á g i n a | 33 sem lugar real. A segunda é uma espécie de utopia concreta, com posicionamentos reais. São locais opostos, tal como a conceituação de Augé. Já para Miwon Kwon, em seu artigo ‘O lugar errado36’, diz que estes locais, que podem ser chamados de ‘não-lugares’ e heterotopias, são relacionados com uma sensação de inadequação, de estar em trânsito. Em todos os casos há um ponto em comum. Esses são locais em que a disjunção está presente. Em que habitamos um ‘entre’, uma fresta, um espaço provisório, de passagem. É um espaço que na maior parte das vezes não é percebido como tal e, por isso, quando ele chega a ser percebido, sentimos esta sensação de ‘lugar errado’. Apesar dessas conceituações se referirem sempre a locais que representam lugares de passagem, podemos perceber como isso pode ser aplicado aos locais tratados neste trabalho. Estes terrenos ou construções imprecisas não deixam de apresentar características similares aos locais que são apresentados pelos autores (hotéis, aeroportos, barcos, ônibus, jardins, cemitérios).37 Ao vermos os terrenos/construções a partir de uma escala urbana, percebemos que estes locais são os espaços em que a cidade vive de fato. Se isso representa uma espécie de posicionamento, é justamente o de poder trabalhar o caos, de ser entrópica. Isto seria, ainda segundo Yve-Alain Bois, o trabalho eterno de Sísifo ou mesmo o mito de Hidra de Lerna e suas cabeças que sempre nascem novamente. A cidade sempre trabalha por modificar este espaço urbano em ações entrópicas já que estão sempre em um moto-contínuo. Ora, 36 KWON, Miwon. O lugar errado. Trad. Jorge Menna Barreto. Art Journal. Spring 2000. Pág. 33. Não deixa de ser interessante notar que Benjamin, em sua obra ‘Passagens’ caracterizou estes lugares como “moradas de sonho do coletivo: passagens, jardins de inverno, panoramas, fábricas, museus de cera, cassinos, estações ferroviárias.” - BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1987. Pág. 449. 37 P á g i n a | 34 a poeira que estava lá no ‘Grande Vidro’ era um sinal de abandono, de algo que fora deixado de lado por algum tempo. A reconstrução é eterna e, assim como Sísifo, sempre estaremos impossibilitados de perceber nossa ação como um todo, presos que estamos nesse moto-perpétuo. P á g i n a | 35 2. CAMINHOS 2.1. Flâneur Esses indícios ou/e espaços que comportam estes indícios (tratados no capítulo anterior) irão interessar os artistas de maneira geral, a partir das Vanguardas, e mais precisamente, como escreve Susan Sontag, a partir da estética do Surrealismo. Em seu ensaio sobre a melancolia e a fotografia denominado ‘Objetos de melancolia’, Sontag afirma: De fato, a fotografia - a exemplo do próprio gosto surrealista preponderante revelou um apego inveterado ao lixo, a coisas repugnantes, dejetos, superfícies esfoladas, bugigangas estranhas, kitsch.38 E mais adiante, complementa: (...) foram o Breton e os outros surrealistas que inventaram a loja de mercadorias de segunda mão como um templo do gosto de vanguarda e alçaram a visita aos brechós à condição de um tipo de peregrinação estética.39 É perceptível que este movimento de procura dos restos de uma sociedade ainda se faz presente na contemporaneidade. Se dentro deste universo citado por Sontag (as fotografias de vitrines de Atget, as caixas de Joseph Cornell ou outros artistas que utilizaram este procedimento) temos uma peregrinação pelos centros ou pelas periferias da cidade para se conseguir o material adequado, atualmente não deixa de apresentar tanta disparidade. Assim como ela diz em seu ensaio sobre este flâneur de Baudelaire e Benjamin, que olha o mundo de forma diferente, ao caminhar pela feira de antiguidades da 38 39 SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Pág. 93. SONTAG, 2004. Op.cit. Pág. 93. P á g i n a | 36 Praça XV, ou mesmo pelos inúmeros sebos e brechós do centro da cidade, sinto-me o próprio flâneur tupiniquim, o próprio João do Rio em seus passeios e descobertas pelo centro do Rio de Janeiro. Ora, não é lá que se localiza o que há de mais exótico na cidade? Não é lá que os personagens de uma suposta classe que perdeu seu status vendem suas pequenas preciosidades para quem quiser ouvir uma boa história? Encontra-se de tudo, desde raridades kitsch até um lixo tecnológico produzido recentemente, tais como controles remotos velhos, teclados usados e sem função. Nestes lugares têm-se sempre a sensação de que poderemos encontrar alguma raridade a preço de banana ou mesmo um objeto estranho, desprovido de toda função, mas que possui algo que desperta interesse visualmente. A caça deixou de ser pelo instante decisivo e passou a ser pelo objeto perfeito. Esse personagem andarilho, que busca um “je ne sais quoi” tal como o “Homem da Multidão”40, está sempre em busca de algo, em busca dele mesmo, de ser invisível e visível ao mesmo tempo. Se na Modernidade a procura era por alguma coisa que ainda mantivesse resquícios de um mundo que se perdia (daí a melancolia); tal como as passagens eram para Benjamin ou o próprio flâneur que buscava sempre algo relacionado ao transitório (moderno) e ao eterno (passado); atualmente temos esta pesquisa não só a partir destes resquícios, mas também por qualquer coisa que surpreenda, que nos tire do lugar-comum, através desse olhar pelo exótico. O exótico que se relaciona com o outro, que nos faz ver, através do outro, nós mesmos. Esse olhar que é voltado para o passado seria muito similar ao olhar que temos quando observamos o que está distante. De certa forma, 40 POE, Edgar Allan. Ficção Completa, Poesias & Ensaios. Trad. de Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. Pág. 392-400. P á g i n a | 37 quando nos distanciamos temporalmente, estamos também distantes espacialmente e, por isso, podemos entender este olhar para o passado como o olhar para os povos ‘primitivos’, como um interesse que faz ressaltar nossas qualidades e nossos defeitos, já que esse outro é criação nossa, ele só existe para nós. A apropriação do passado, do outro, não deixa de ser uma afirmação do eu, já que vemos neste passado algo que faz parte de nós. Em seu livro ‘Polvere nell’arte’, Elio Grazioli faz uma analogia entre a poeira e o exótico representado pelas fotografias do século XIX de grandes expedições e viagens arqueológicas ao redor do mundo41. Ele comenta que a mesma poeira que não suportamos em nossas casas e que nos faz limpar freneticamente o ambiente, é a mesma poeira que nos faz perceber essas fotografias como exóticas pois nelas a poeira executa um papel quase pitoresco, que nos distancia e permite entender aquele local como inatingível, tal como a questão da poeira nos contos de fada já comentada no capítulo da poeira. Ao mesmo tempo, essa poeira coloca essas fotos em outro patamar do passado, um passado que desloca nosso olhar para este exotismo, o mesmo exotismo que habita os objetos nas feiras de antiguidades ou os locais inóspitos buscados pelo flâneur. Este flâneur vai vivenciar a cidade, experimentar cada canto, beco, lugares desacolhedores, tais como os lugares habitados pela poeira comentada anteriormente. Lugares que mantêm o cheiro de mofo, mas que estão no presente pelo fato de existirem (afinal somos contemporâneos). Ele se deixa embriagar por aquela atmosfera, deixa-se contaminar por esta poeira e depois sai incólume do lugar, tal como o ‘Homem da Multidão‘. O 41 GRAZIOLI, 2004. Op. Cit. Pág 45. P á g i n a | 38 devaneio é temporário, está presente apenas no momento de se percorrer a cidade em busca deste belo moderno baudelairiano. Benjamin diz que O homem que lê, que pensa, que espera, que se dedica à flânerie, pertence, do mesmo modo que o fumador de ópio, o sonhador e o ébrio, à galeria dos iluminados42. Ele é o homem que se deixa levar pelas sensações, que apura os canais de comunicação para poder sentir melhor o que a cidade pode dar a ele. Ele aprecia cada instante que os seus sentidos proporcionam. Georges Perec também vai se descrever como um flâneur que além de se deixar vagar, gosta de fazer jogos, criar situações para andar pela cidade de Paris, como uma maneira de perceber essa cidade de várias formas, entretendo-se com o que ele já viu, já reconhece. Ele conta que Eu adoro andar por Paris. Às vezes numa tarde inteira, sem nenhum objetivo, não casualmente, ou aleatoriamente, mas tentando deixar-me levar. Às vezes tomando o primeiro ônibus que para (você não pode mais pegar ônibus quando eles estão em movimento). Ou então preparando um cuidadoso e sistemático itinerário. Se eu tivesse tempo, eu gostaria de criar e resolver problemas análogos ao da ponte de Königsberg ou, por exemplo, encontrar um caminho que cruzasse Paris de um lado ao outro utilizando somente ruas começando com a letra C43. O flâneur tornou-se um personagem de fácil vestimenta, que ainda produz bons resultados em suas buscas. Sai sem rumo pela cidade, para experienciar, entrega-se ao devaneio e volta como qualquer outro homem, sem rótulos, sem distinção aparente. Benjamin afirma: 42 BENJAMIN, Walter. “O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia”. In ‘Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura’. São Paulo: Brasiliense, 1985. Pág. 33 43 PEREC, George. Species of Space and Other Pieces. London & New York: Penguin Books, 1997. Pág. 63. P á g i n a | 39 A figura do flâneur prenuncia a do detetive. O flâneur devia procurar uma legitimação social para seu comportamento. Convinha-lhe perfeitamente ver sua indolência apresentada como aparência, por detrás da qual se esconde de fato a firme atenção de um observador seguindo implacavelmente o criminoso que de nada suspeita.44. Essa figura do detetive que procura, no detalhe, nas minúcias, as pistas para a solução do crime, deriva, de acordo com a citação de Benjamin, deste homem que busca na multidão qualquer coisa destacável, algo que o diferencie do resto e, que é ao mesmo tempo, o olhar para o banal, para o que está ao seu lado, o prosaico. É interessante perceber que Poe, vai ser o escritor que se ‘especializa’ em contos fantásticos, policiais e de terror. O detalhe será o ponto principal em sua obra. Em outro capítulo, citado anteriormente, Benjamin aborda o “Tédio e o Eterno Retorno”. A idéia deste eterno retorno estaria associada a uma noção de mistura, uma fantasmagoria do passado presente no moderno, em que, de alguma forma, sempre buscamos algo do passado ‘extinto’ e dialogamos com o presente45. Sem este movimento, não há presente. Essa revisitação do passado, num movimento de espiral, em que o retorno não seria em um mesmo ponto, mas sim em um ponto paralelo, é o que faz o flâneur em sua busca pela cidade-labirinto. Ele retorna aos elementos do passado, experimenta esta história e transforma esta experiência em algo interessante. Na verdade, para que ele apreenda alguma coisa, é necessário também outro tempo, outro ritmo. A multidão tem a velocidade da modernidade. 44 BENJAMIN, 2006. Op. cit. Pág. 485. “O eterno retorno é uma tentativa de unir os dois princípios antinômicos da felicidade: ou seja, o da eternidade e o do ‘mais uma vez ainda’. A idéia do eterno retorno faz surgir por encanto, da miséria do tempo, a idéia especulativa (ou a fantasmagoria) da felicidade.” - BENJAMIN, Walter, Obras escolhidas. Vol. 3. São Paulo: Brasiliense, 1987. Pág. 174. 45 P á g i n a | 40 Ele vai ser a velocidade do tédio, da melancolia. Ao mesmo tempo, esse eterno retorno também pode ser visto como o tédio que proporciona o extraordinário. Apesar de C. Guys46 afirmar que o homem que sente tédio no meio da multidão é um tolo, será justamente através do tédio, (o tédio que também proporciona o olhar para o banal, cotidiano etc.), que o extraordinário surgirá. Exatamente por nos encontrarmos no meio de um círculo vicioso do banal (nada desperta a atenção, pois tudo é prosaico) é que será possível a curiosidade ser despertada, já que, será através deste ‘olhar tedioso’ que o novo surgirá. Ao estarmos tão anestesiados com o banal, qualquer coisa de diferente que surja nos despertará a atenção. Em seu ensaio “Sob o Signo de Saturno”, Susan Sontag destaca que o olhar de Benjamin é o olhar do melancólico: aquele que nada vê, que não enxerga quase nada à sua frente.47 O olhar precisa ser apontado48 para algo não visto, algo novo; é através do espanto pelo óbvio que esta curiosidade surge, um olhar quase infantil que se surpreende com o que está bem à sua frente, mas ainda não foi percebido. Georges Perec diz que isso só pode ocorrer na cidade, pois é nela que a surpresa existe. Segundo ele Eu sou um homem da cidade; nasci, cresci e vivi em cidades. Meus hábitos, ritmos e meu vocabulário são os hábitos, ritmos, e vocabulário de um homem urbano. A cidade pertence a mim. Estou em casa lá: asfalto, concreto, trilhos, a rede de ruas, o entediante 46 BAUDELAIRE, Charles. (org. Teixeira Coelho). A Modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.pág. 171. 47 “E desta obstinação deriva, ‘acima de tudo, um olhar contemplativo que parece não enxergar um terço do que vê.” - SONTAG, Susan. Sob o Signo de Saturno. Porto Alegre: LP&M, 1986. - pág. 89 48 Assim como a câmera é apontada para os momentos decisivos, o olhar sem o dispositivo também fará este papel. Agamben faz uma observação sobre este vagar sem rumo atrás de imagens no conto ‘O dia do juízo’ no qual diz que “(...) Dondero, que, assim como Robert Capa, sempre se manteve fiel ao jornalismo ativo e muitas vezes praticou o que se poderia denominar a flânerie (ou ‘andar a deriva’) fotográfica: passeia-se sem meta e se fotografa tudo o que aparece.” - AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. Pág. 27. P á g i n a | 41 cinza das fachadas que se estendem além da visão, essas são as coisas que podem me surpreender ou me chocar, mas de um mesmo modo que eu posso ser surpreendido ou chocado pela, por exemplo, extrema dificuldade que temos quando queremos olhar atrás do nosso pescoço ou a injustificável existência dos seios da face (frontal ou maxilar). No interior, nada me choca; eu posso ser convencional e dizer que tudo me surpreende; na realidade tudo me deixa mais ou menos indiferente.49 Não deixa de ser um eterno retorno ao tédio da multidão. Esse olhar para a multidão traduz-se como o olhar para sua época, mas que de maneira nenhuma está desvinculado do passado, “(...) a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas50.” Este olhar ‘moderno’ percebe o transitório e o eterno simultaneamente. 2.2. Entropia A busca pelos locais inóspitos da cidade ocorre sem percebermos. Ao caminhar pela cidade, estamos sempre vagando, sem distinguir direito as coisas, já que o hiperestímulo é constante. Sons, cheiros, outdoors, letreiros, pessoas, tudo ao mesmo tempo concorrendo por sua atenção. Olhamos a esmo, tentamos entender a informação, mas tudo também parece pasteurizado, parecido. Olhamos mas não apreendemos nada. Só saímos deste torpor quando algo sai do comum, quando percebemos alguma coisa que não pertence àquele lugar, momento. Aí surge o terreno baldio, a construção abandonada, o vazio. A cidade absorve as construções de diversas 49 50 PEREC, 1997. Op.cit. Pág. 69. CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Pág. 16. P á g i n a | 42 formas, inclusive as deixando tornarem-se ruínas ou não. É interessante pensar isso, principalmente a partir de uma frase do Argan em que ele vê a ‘(...) cidade como espaço visual’51. A cidade passa a ser a tela para qualquer manifestação visual. Logo adiante ele complementa: Cada um de nós, em seus itinerários urbanos diários, deixa trabalhar a memória e a imaginação: anota as mínimas mudanças, a nova pintura de uma fachada, o novo letreiro de uma loja; curioso com as mudanças em andamento, olhará pelas frestas de um tapume para ver o que estão fazendo do outro lado; imagina e, portanto, de certa forma projeta, que aquele velho casebre será substituído por um edifício decente, que aquela rua demasiado estreita será alargada, que o trânsito será mais disciplinado ou até mesmo proibido naquele determinado ponto da cidade; lembra-se de como era aquela rua quando, menino, a percorria para ir à escola ou quando, mais tarde, por ela passeava com a namorada; ou o famoso incêndio, o crime de que falaram todos os jornais, etc. (...) Como o espaço da pintura de Pollock, o espaço da cidade interior tem um ritmo de fundo constante, mas é infinitamente variado, muda de figura e de tom do dia para a noite, da manhã para a tarde – o espaço da rua que percorremos de manhã para ir trabalhar é diferente do espaço da mesma rua percorrida à tarde.52 51 ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Pág.228. 52 Idem. Pág. 232 e 233. P á g i n a | 43 P á g i n a | 44 Se para Argan temos um movimento curioso que se aproxima do olhar do detetive benjaminiano ao buscar essa relação corporal com a cidade, para Nelson Brissac, essa não-percepção ocorre a partir do momento em que não há um deslocamento físico do espectador em relação ao que é percebido. Ele diz que: O pitoresco pressupõe um caminhante, alguém que constrói sua percepção a partir do movimento, não do olhar. O espaço não é apreendido oticamente, mas de modo físico. Em vez do dispositivo ótico, uma visão peripatética.53 Em outro momento, ele diz que: A metrópole é o paradigma da saturação. Contemplá-la leva à cegueira. Um olhar que não pode mais ver, colado contra o muro, deslocando-se pela sua superfície, submerso em seus despojos. Visão sem olhar, tátil, ocupada com os materiais, debatendo-se com o peso e a inércia das coisas. Olhos que não vêem. 54 Na verdade, nem sempre estamos aptos a enxergar estes locais. Pelo contrário, eles nos percebem primeiro. Verdadeiramente, na maioria das vezes, a cidade absorve estes locais muito antes do que eles sejam percebidos. Assim como muitas vezes ‘perdemos’ o prédio que sempre víamos em certo lugar e só notamos muito tempo depois, quando ele já está em ruínas. O terreno baldio desaparece para a cidade, numa espécie de mimetismo, de uma não distinção entre figura e fundo. Em uma parte do texto ‘Um passeio pelos monumentos de Passaic’, Robert Smithson cita uma experiência com areia para explicar o que é entropia e provar a ‘irreversibilidade da eternidade’. O exemplo é simples mas significativo. Ao pegarmos uma caixa de areia 53 54 PEIXOTO, Nelson Brissac . Paisagens Urbanas. São Paulo: Ed. SENAC, 1996. P. 179. PEIXOTO, 1996. Op.cit. Pág. 175. P á g i n a | 45 em que metade tem areia branca e a outra metade areia preta e misturarmos no sentido horário, teremos uma caixa com areia cinza. Porém, se fizermos o movimento reverso, girando no sentido anti-horário, a areia não volta para o início, quando era separada entre branco e preto. Na verdade, haverá um aumento da mistura, ela ficará ainda mais cinza55. Quer dizer, ao relacionarmos isso com a questão urbana, veremos que um terreno abandonado não volta ao que era antes depois de reformado; um edifício restaurado não será o mesmo de antes; uma construção que ocupe este terreno nunca será como que o ocupou da primeira vez. É um processo sem volta. Neste mesmo texto o artista faz um passeio pelas ruínas da cidade de Passaic. Ao passear pela cidade munido de sua câmera, (que o controla), Smithson faz uma análise do que seriam certos ‘monumentos’ estabelecidos por ele como tal. Ele categoriza como monumentos certos locais da cidade que não têm nenhum apelo visual, a não ser pelo fato de que poderiam ter sido alguma coisa que nunca chegaram a ser. São monumentos que trazem a carga da destruição. Segundo ele Esse panorama zero parecia conter as ruínas às avessas, isto é, todas as novas edificações que eventualmente ainda seriam construídas. Trata-se do oposto da ‘ruína romântica’ porque as edificações não desmoronaram em ruínas depois de serem construídas, mas se erguem em ruínas antes mesmo de serem construídas56. Essa antinomia que o artista propõe ao enxergar uma não-ruína, um local cheio de futuros locais, aproxima-se um pouco da idéia de que os locais que fotografo estão em constante movimento. Quer dizer, ao olhar para o terreno em 55 SMITHSON, Robert. Um passeio pelos monumentos de Passaic, in: O nó gordio - jornal de metafísica, literatura e artes, ano 1, n.1, dezembro de 2001. Pág. 47 56 SMITHSON, 2001. Op.cit. Pág. 46 P á g i n a | 46 ruínas, vemos uma futura construção e ao vermos uma construção no início de sua degradação, imaginamos um futuro terreno vazio. A idéia de que ali sempre haverá uma mudança, atualiza a ruína, pois não a deixa ficar romantizada. É como se esses lugares tivessem um potencial a ser ainda explorado, quase como um ‘futuro abandonado.57’ Um pouco depois no texto, ele diz que o centro de Passaic poderia servir para uma galeria, pois ele era um ‘típico abismo ou um vácuo comum58’. Se em Smithson o vagar por Passaic é um tipo de vagar afirmativo, onde ele fotografa aqueles monumentos, investiga locais sem significação, locais que não chegam a ser ruínas; os lugares pelos quais os personagens de Sebald passam estão muito mais associados com uma ruína romantizada das cidades arruinadas do pós-guerra. Smithson busca uma não-ruína por não querer um fetichismo, enquanto Sebald tenta recriar uma atmosfera melancólica e culposa. Essa atração pelo local degradado, decomposto, existe na narrativa de Sebald através dos passeios que seus personagens fazem sempre no início de seus livros carregados de uma atmosfera de desencanto, como observado nesta passagem: (...) e outra coisa é num entardecer sombrio passar pelas filas de casas com fachadas arruinadas e grotescos jardinzinhos da frente e, quando finalmente se chega ao centro da cidade, não encontrar nada senão salões de jogo ou bingo, betting shops, videolocadoras, bares de cujas entradas escuras sai um cheiro de cerveja azeda, lojinhas de artigos baratos e duvidosas pousadas59 (...) Sebald descreve o local com uma riqueza de 57 Idem. Pág. 46 Idem. Pág. 47 59 SEBALD, Winfried Georg. Os anéis de Saturno. Rio de Janeiro: Record, 2002. Pág. 51. 58 P á g i n a | 47 detalhes, de maneira desprezível, em que chegamos a sentir como esses lugares são repulsivos mas ao mesmo tempo temos uma atração visceral por estarmos próximos de algum modo deles (seja em nossa vivência urbana, seja através da leitura desses textos). No trabalho ‘Guia de terrenos baldios de São Paulo- uma seleção dos lugares vazios mais interessantes da cidade’, de Lara Almarcegui apresentado na 27ª Bienal de São Paulo, a principal questão é este local da cidade que não é exatamente um local; uma presença que não é uma presença. É chamar a atenção para estes espaços que ocupam a cidade. Segundo ela, O principal interesse dos terrenos baldios é que eles estão entre os poucos lugares da cidade que não estão ligados à realização de um projeto, ainda que tenham proprietário e sua existência esteja relacionada a planos de urbanismo do futuro ou do passado que, por diversas razões, estão parados. Os terrenos baldios são lugares em que quase tudo é possível, porque neles não há nada, são lugares de possibilidades em que o cidadão pode se sentir livre. (...) Outros terrenos baldios estão relacionados a situações conflituosas em algum momento, e seus restos ficam como resíduos arqueológicos de um fracasso. (...) Como os terrenos costumam carecer de manutenção, neles se podem observar processos naturais de decadência, mistura e entropia que se escondem no resto da cidade60. Estes locais, na verdade, são locais de transição, em que a entropia nunca deixa que fiquem como estão, sempre faz com que eles se transformem em seu oposto. Ao se transformarem em seu oposto, em alguma coisa que se completa, estes locais apresentam um equilíbrio provisório, uma troca de posições constante, uma tentativa de dar ordem ao caos que a entropia promove. Essa maneira de 60 ‘Guia de terrenos baldios de São Paulo- uma seleção dos lugares vazios mais interessantes da cidade’, de Lara Almarcegui apresentado na 27ª Bienal de São Paulo - 2006 P á g i n a | 48 ver a natureza buscar um equilíbrio no caos estabelece relação com o que Smithson diz ao definir o que seria o Site e o Non-Site. Ao criar estes trabalhos, ele, grosso modo, cria um vínculo entre o mundo e o espaço expositivo, como pode ser visto no trecho a seguir: O alcance da convergência entre Site e Non-site consiste no curso do acaso, um duplo caminho feito de signos, fotografias, e mapas que pertencem a ambos os lados da dialética. Ambos os lados estão presentes e ausentes ao mesmo tempo. A terra ou solo do Site está na arte (Non-site) ao invés da arte localizada no solo. O Non-site é um contêiner dentro de outro contêiner – a sala. O terreno ou pátio externo é ainda outro contêiner. Coisas bidimensionais e tridimensionais trocam de lugar entre si para alcançar a convergência. Grande escala torna-se pequena. Pequena escala torna-se grande. Um ponto no mapa expande-se para o tamanho de uma porção de terra. Uma porção de terra contrai-se em um ponto. É o Site uma reflexão do Non-site (espelho) ou é de outro jeito? As regras desta rede de signos são descobertas assim que você caminha por trilhos incertos tanto mental quanto fisicamente61. Podemos também fazer uma relação entre as ruínas que são encontradas, vistas pela cidade e os objetos com que nos deparamos nas andanças pela feira de antigüidades. Se os terrenos, com seus restos, suas construções inacabadas são as ‘ruínas’ da cidade, pode-se dizer que os objetos nessas feiras são o que restaram das vidas das pessoas, seus resquícios, que de alguma maneira, precisam sofrer uma mudança, deixar de pertencer. Assim como os prisioneiros que se apegam aos poucos e pequenos objetos que lhes são permitidos durante sua pena, esses objetos funcionam como o último laço entre lembrar e esquecer. Eles representam uma mudança necessária, por 61 SMITHSON, Robert. The Collected Writings. Berkeley: University of California Press, 1996. Pág. 153. P á g i n a | 49 isso estão sendo vendidos, doados, desfeitos. Sonia Schulz faz um paralelo entre memória e cidade que estabelece analogia entre o esquecimento e o vagar pela cidade, no qual o fato de andarmos pelos mesmos lugares estaria relacionado com a construção complexa de ambas (cidade e memória). Ela diz que A memória e a cidade são territórios labirínticos, traçados como uma rede infinita de percursos e nós, com centros e periferias mutáveis, referentes e limites fluidos, dimensões e posições instáveis. As múltiplas orientações levam à desorientação, à exploração sem mapa ou, mais precisamente, sem pontos fixos. (...) O deslocamento acelerado no tempo moderno também converteu a cidade em lugar de amnésia, da dissolução da lembrança, em esquecimento. Os movimentos na cidade e na memória da cidade constituem um persistente deslocamento para nenhum lugar específico, induzindo à perpétua redescoberta de fragmentos urbanos. A perda parcial da memória condena o nômade urbano a revisitar os mesmos espaços, a rever as mesmas paisagens, a reencontrar um passado dissimulado de presente. O antigo aparece como novo exatamente porque os registros das imagens são, muitas vezes, apagados62. O fato de sempre voltarmos aos mesmos lugares sem que nos lembremos pode ser analisado junto com o fato de olharmos para a cidade e não percebermos direito o que nos cerca, como foi colocado por Brissac anteriormente neste texto. A memória não consegue registrar devidamente pelo excesso de estímulo e ignora certos aspectos que poderiam servir de referência. Assim, ao passarmos pelo terreno que está degradado, não conseguimos perceber que ali era a casa de chá que costumávamos ir. Somente depois de construído um posto de gasolina é que lembramos que ali era o local que tomávamos chá com nossa avó na tarde de 62 SCHULZ, Sonia Hilf . Estéticas urbanas: da pólis grega à metrópole contemporânea. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2007. Pág. 156-157. P á g i n a | 50 sábado. Necessitamos de muitas idas e vindas para que nossa memória consiga apreender as várias etapas de degradação e modificação impostas pela cidade. A cidade é redundante : repete-se para fixar alguma imagem na mente. (...) A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir63. Podemos pensar que além desse flâneur que vaga pela cidade a observar os espaços, temos também uma série de personagens que habitam estes locais degradados e que, de alguma maneira, também contam com a companhia de seus ‘ajudantes’. Esses personagens vivem à margem, assim como esses locais que queremos que desapareçam da cidade, eles não são notados, viram parte dessa paisagem sinestésica como a qual já estamos acostumados. Nelson Brissac, em seu livro ‘Cenário em Ruínas’ ressalta que Um homem vaga por entre prédios abandonados, vasculhando os montes de móveis e objetos quebrados, examinando cada coisa que se encontra em meio aos detritos. É lá que espera encontrar a imagem de si mesmo e de seu lugar. Tudo que possa explicar o que ocorreu, como ele foi acabar ali. Objetos e paisagens, retirados do passado, ele transforma em símbolos de sua vida e de sua condição atual. É um melancólico. (...) Ele é um colecionador64. Esses personagens também vagam erroneamente como o flâneur, passam despercebidos, têm um olhar treinado, quer dizer, não deixam de apresentar as mesmas características do flâneur, mas não apresentam as mesmas condições. Eles não são cidadãos do mundo, não passam de um local para o outro com facilidade. Eles pertencem a estes locais degradados. Eles fazem parte da 63 64 CALVINO, 1998. Op.cit. Pág. 25. BRISSAC, Nelson. Cenários em ruínas. São Paulo: Brasiliense, 1987. Pág. 168. P á g i n a | 51 entropia urbana. Quando os espaços se modificam, eles mudam de lugar para buscar um novo lugar para ‘habitar’. Eles vagueiam sempre na mesma condição. No subitem ‘Sísifo’, vimos a questão das áreas chamadas ‘Zone’, do livro Formless, em que certos espaços da cidade podem ser analisados metaforicamente como a poeira que assombra a nossa casa. Esses espaços são justamente estes terrenos baldios, antigas fábricas desativadas, estacionamentos abandonados, subaproveitados, que são deixados de lado pela sociedade, que preferem ser esquecidos. Esses lugares são os lugares que a cidade ‘busca, sem parar, combater a proliferação entrópica, ao mesmo tempo em que a engendra65.’ Ou, como Georges Perec assinala em seu livro ‘Species of Spaces and Other Pieces’, podem ser locais que incomodam e que precisam ser eliminados: Os prédios se posicionavam um do lado do outro. Eles formam uma linha reta. Espera-se que eles formem uma linha, e isso se torna um defeito e é uma séria falha quando não o fazem. Eles então são ditos como ‘sujeitos ao alinhamento’, significando que podem ser demolidos ou assim como reconstruídos numa linha reta com os outros66. Este movimento é necessário para a sobrevivência da cidade67. É da mesma ordem da reflexão 65 PEIXOTO, 1996. Op.cit. Pág.403. PEREC, 1997. Op.cit. Pág..46. 67 Italo Calvino fará uma leitura poética desta necessidade de sobrevivência da cidade no seguinte trecho do seu livro ‘Cidades Invisíveis’: “(...) quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula; as escamas de seu passado se solidificam numa couraça impossível de se tirar; renovando-se todos os dias, a cidade conserva-se integralmente em sua única forma definitiva: a do lixo de ontem que se junta ao lixo de anteontem e todos os dias e anos e lustros. (...) Quanto mais cresce em altura, maior é a ameaça de desmoronamento: basta que um vasilhame, um pneu velho, um garrafão de vinho se precipitem do lado de Leônia e uma avalanche de sapatos desemparelhados, calendários de anos decorridos e flores secas afundam a cidade no passado que em vão tentava repelir, misturado com o das cidades limítrofes, finalmente eliminada – um cataclismo irá aplainar a sórdida cadeia montanhosa, cancelar qualquer vestígio da metrópole sempre vestida de novo. Já nas cidades vizinhas, estão prontos os rolos compressores para aplainar o solo, estender-se novo território, alargar-se, afastar os novos depósitos de lixo.” - CALVINO, 1998. Op.cit. Pág. 110-111. 66 P á g i n a | 52 do qual Smithson fala: o Site reflete o Non-site e vice-versa. É imprescindível que eles existam para que a cidade exista. Não há cidade moderna sem a ruína. Não há ruína fora da cidade. P á g i n a | 53 3. OBJETOS 3.1. Memória Em um artigo publicado recentemente no site do jornal ‘Folha de São Paulo’68 foi noticiado que cientistas isolaram uma proteína para inibir lembranças evocadas pelo cérebro humano. Esta notícia apresenta certa semelhança com o argumento do filme “Brilho de uma mente sem lembranças’”, de Michel Gondry, no qual a personagem principal utiliza-se de um tratamento para apagar a lembrança de um relacionamento amoroso, para apagar a memória do trauma. A personagem age estranhamente e não fica claro para o espectador o motivo. No decorrer do filme, descobre-se que a personagem buscou os serviços de uma empresa especializada em apagar fatos desagradáveis da memória. A princípio, este procedimento seria uma maneira radical para fazer com que a lembrança de um acidente, de uma morte de um familiar ou mesmo de uma agressão fosse apagada. Porém, com a facilidade deste método, ele se torna banalizado. O que ocorre durante o filme é que por qualquer motivo, as pessoas passam a apagar brigas com ex-namorados, morte de animais de estimação ou uma demissão do emprego, como forma de não vivenciar a perda. Ao voltarmos para a história da personagem principal, depois de uma série de acontecimentos, percebemos que o ex-namorado descobre que foi apagado da memória de sua namorada e resolve fazer o mesmo em relação a ela. Esse procedimento ocorria durante o sono, quando funcionários da empresa faziam uma espécie de eletroencefalograma 68 computadorizado http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u397438.shtml na pessoa P á g i n a | 54 inconsciente. No transcorrer de seu processo de apagamento, ele fica semiconsciente69 e descobre que não quer mais que a recordação de sua ex-namorada seja apagada, empreendendo uma jornada em seu cérebro em associação com a personificação da lembrança de sua exnamorada, para que qualquer reminiscência dela permaneça em sua memória. Numa das cenas mais belas do filme, ela pede para ser inserida em uma recordação que seja só dele, que tenha ocorrido antes deles se conhecerem, como por exemplo, em sua infância, pois assim os funcionários contratados não teriam como localizá-la nem apagá-la. Isto pode ser explicado melhor através da descrição de como o procedimento de apagamento era realizado. Em outro momento significativo do filme, o médico diz para o personagem que ele precisa trazer para a clínica objetos que estejam relacionados com a namorada, que remetam a qualquer lembrança. Isto tem uma lógica simples: a partir daqueles objetos, sensações de prazer e desprazer associadas aos momentos em que eles viveram juntos, serão apagadas da memória. Ele terá de se desfazer desses objetos para que não tenha nenhum contato com eles, já que este contato poderia provocar uma lembrança do tempo em que passaram juntos, revertendo todo o processo. Aqui podemos fazer uma associação com o conceito de memória involuntária70 de Proust. A partir do 69 A sensação exibida no filme é semelhante a que temos quando percebemos, durante o sonho, que estamos sonhando e tentamos acordar. 70 A memória involuntária estaria de alguma forma desvinculada do consciente. Segundo Harald Weinrich, em seu livro ‘Lete - arte e crítica do esquecimento’, a memória involuntária é “uma forma de memória que se esquiva de ser dirigida pela razão e pela vontade, fugindo habilmente ao controle de ambas. Essa memória não tenta mais evocar lembranças através de um esforço da vontade, e também desiste de assegurá-las contra o esquecimento com toda a sorte de artifícios mais ou menos hábeis. A memória involuntária antes de mais nada se dá tempo.” - WEINRICH, Harold. Lete/ Arte e Crítica do Esquecimento. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2001. Pág. 208. Esta memória pode vir a qualquer hora/momento, não depende deste esforço de lembrança, portanto é, teoricamente, passiva e está relacionada com eventos/objetos que despertam essa memória espontânea, poética, P á g i n a | 55 momento em que o personagem toca ou olha para certos objetos, a lembrança é naturalmente evocada e a mesma sensação do passado é rememorada, trazendo o prazer ou o desprazer. Claro que a memória involuntária de Proust, exemplificada inúmeras vezes em sua obra ‘Em busca do tempo perdido’, está muito mais relacionada com lembranças perdidas da infância do que lembranças recentes e são provocadas por sensações vindas através da experiência que inicia a rememoração da vivência e não por imagens. Mas, de alguma maneira, os objetos que são usados e descartados pelo personagem do filme apresentam uma similaridade com o processo experimentado pelos personagens de Proust. Podemos entender melhor esta questão através da diferenciação que Susan Sontag faz do conceito da memória involuntária e a questão da fotografia para Proust quando ela diz que Toda vez que Proust menciona fotos, o faz de modo depreciativo: como sinônimo de uma relação superficial com o passado, exclusiva e excessivamente visual, e meramente voluntária, cujo resultado é insignificante quando comparado com as profundas descobertas a ser feitas ao reagir às sugestões oriundas de todos os sentidos – a técnica que ele chamou de ‘memória involuntária’. (...) Mas a razão para tal não está na incapacidade de uma foto de evocar memórias (ela é capaz disso, dependendo antes dos predicados do espectador do que da foto), mas sim naquilo que Proust esclarece acerca de suas próprias exigências no que se refere à recordação imaginativa, ou seja, que ela não se mostre apenas ampla e acurada mas dê a textura e a essência das coisas. E ao considerar as fotos apenas na medida em que podia usá-las, como um instrumento da memória, Proust como que entende de forma errada o que são fotos: não tanto um instrumento da memória como uma invenção dela, ou mesmo um substituto71. agradável. 71 SONTAG, 2004. Op. cit. Pág.180 e 181. P á g i n a | 56 A memória involuntária de Proust não pode ser controlada72, nem evocada, pois surge ‘naturalmente’ através da experiência. No entanto, essa experiência raramente era visual. Proust irá privilegiar os outros sentidos, e portanto, a fotografia (imagem) passa a ter uma importância menor, pois é ‘essencialmente’ visual. Assim, relacionar esta memória com o que ocorre no filme pode parecer uma leviandade, já que os acontecimentos dos personagens são extremamente recentes, não estão sob camadas de esquecimento; estão perfeitamente acessíveis. Podemos alegar que a experiência de tempo, de narrativa, de vivência é diferente para justificar tal analogia. Até mesmo a apreensão da imagem fotográfica como suposta substituta da memória se modificou em relação à sociedade atual. O conceito elaborado por Proust é perfeitamente oportuno se levarmos em consideração tais hipóteses. Quando o personagem sofre o processo de apagamento, a máquina que está em sua cabeça é ligada a um computador que revira as partes menos acessíveis de seu cérebro para buscar pequenos resquícios de memória. Podemos entender isso como um esforço em descobrir, desvelar essas inúmeras camadas da vivência. Mesmo quando levamos em consideração os objetos utilizados para relembrar as ações dos personagens, já que isso é um processo ‘controlado’ (por ser provocado por outrem), podemos aceitar que isso seria uma espécie de aceleração da memória involuntária. Ao tocar os objetos, toda a lembrança surge; ao sentir o perfume, lembra-se de uma situação prazerosa ao lado da pessoa amada. 72 “Pois, ao contrário dos objetivos imediatos a que a memória voluntária tem de obedecer, a memória involuntária, que se serve dos sentidos inferiores, é uma memória a longo prazo, que abrange o tempo de vida da pessoa. Anos e décadas podem estar entre a percepção sensorial inicial e a vivência lembrada efetuada. (...) Em outras palavras, a memória involuntária passa por baixo de um esquecimento longo e profundo.” – WEINRICH, 2001. Op.cit. Pág. 211. P á g i n a | 57 Outro aspecto é que este processo também pode ser relacionado com o processo da flânerie, em que, ao caminhar pela cidade, o flâneur é despertado por inúmeras lembranças trazidas por cheiros, texturas, disposição de paisagens etc.73. Como afirma Benjamin, em “Princípio da flânerie em Proust”: Então, fora de todas essas preocupações literárias e sem estabelecer nenhum vínculo com elas, de repente, um telhado, o reflexo de sol sobre uma pedra, o cheiro de um caminho, me faziam parar por um prazer especial que me davam e também porque pareciam esconder, para além daquilo que eu via, alguma coisa que me convidavam a vir apanhar e que, apesar de todos os meus esforços, eu não chegava a descobrir.74 Essa suposta obrigação de eliminarmos da memória certos eventos, de não vivermos mais este ’luto’, a necessidade de estarmos aparentemente sempre felizes é algo que o senso comum admite como verdade e que podemos perceber em frases de efeito do tipo “O povo brasileiro sofre, mas se diverte”; “O brasileiro vive alegre” e que poderíamos, com algumas exceções, estender para a sociedade global. Se no Romantismo talvez fosse ‘moda’ contemplarmos a melancolia, (o artista era aquele que quase ’dependia’ da melancolia para criar), agora temos uma espécie de cobrança maior para não demonstrarmos certas fraquezas. Um sintoma que pode ser visto nas páginas dos principais semanários com a criação de uma lista de livros de auto-ajuda mais vendidos, paralela a lista oficial de livros de literatura de ficção e não ficção; ou mesmo com a procura por medicamentos para o controle imediato de qualquer 73 Uma das primeiras cenas do filme é justamente a que mostra o personagem principal desistindo de ir ao trabalho para pegar um trem na direção oposta , sem saber exatamente porque, e vivenciar um novo encontro com sua ex-namorada na mesma praia onde eles se conheceram e, ao mesmo tempo sem se reconhecerem, pois já haviam passado pelo apagamento de memória. 74 BENJAMIN, 1987. Op.cit. Pág. 191. P á g i n a | 58 sensação desagradável. Se no luto temos um processo de elaboração saudável da perda, na melancolia isso não ocorre tão simplesmente. A perda difusa estaria associada a esta melancolia, o que nos faz entender, em parte, porque ela seria o motor para alguns artistas. Na verdade, de forma bem simplificada, enquanto no luto temos o objeto perdido bem delineado, na melancolia, este objeto inexiste, ele se interioriza, voltando-se para o próprio ego, numa espécie de narcisismo. A melancolia pode ser entendida como uma forma de resistência, tanto ao progresso quanto ao tempo linear e, por isso, uma tentativa de se caminhar num tempo diferente do restante da sociedade, tal como os caminhantes que passeavam pelas passagens parisienses e suas tartarugas,75 afinal, o ritmo da resistência era o ritmo imposto pela tartaruga. Uma forma de resistir ao progresso. Numa sociedade em que a maioria das coisas é descartável, a memória passa a ser algo do mesmo gênero. O que acontece com os colecionadores de memória então? Creio que eles se tornarão os detentores de lembranças alheias (já o são, na verdade), mas com grandes possibilidades de comercializarem as ‘melhores lembranças’ para pessoas sem lembranças de tanto apagarem sua memória. O colecionismo, neste sentido, está diretamente associado ao movimento do melancólico em ‘retardar’ o tempo. Ao recolher estes resquícios da sociedade, o colecionador de memórias (sejam elas próprias ou alheias) tenta correr em direção oposta ao senso comum, que busca apagar todo e qualquer indício para não vivenciar a história. Nada mais melancólico do que uma coleção de fotografias. Nelas, 75 “O pedestre sabia ostentar em certas condições sua ociosidade provocativamente. Por algum tempo, em torno de 1840, foi de bom-tom levar tartarugas a passear pelas galerias. De bom grado, o flâneur deixava que elas prescrevessem o ritmo de caminhar.” - BENJAMIN, 1987. Op. cit. Pág. 122. P á g i n a | 59 temos a lembrança física do esquecido. (...) a fotografia exige que nos recordemos; as fotos são testemunhas de todos esses nomes perdidos, semelhantes ao livro da vida que o novo anjo apocalíptico – o anjo da fotografia – tem entre as mãos no final dos dias, ou seja, todos os dias. 76 Não há nada pior para alguém que queira apagar a memória ou a lembrança de nossa finda existência do que a fotografia. Ou como enuncia Sontag “A fotografia é o inventário da mortalidade.”77 3.2. Coleções Ao pensar a questão da memória, um fator importante de ser abordado é o do arquivo. O arquivo é o grande instrumento para o ‘desmemoriado’. É através dele que a memória é revivida, seja este arquivo formal ou informal, ele será de suma importância. Podemos pensar o arquivo não só como o local de armazenamento de informações, mas também como o local em que o colecionismo irá aflorar. Através desse recolhimento de resquícios materiais e sensoriais da cidade, o flâneur poderá utilizar-se de um local onde organizar tantas descobertas. O arquivo funcionará como uma caixa em que as lembranças serão guardadas, tal como a ‘Caixa Verde’ de Duchamp, em que todas as experimentações informações, do todos ‘Grande os resquícios Vidro’ e encontram-se organizadas. As caixas que muitos artistas surrealistas elaboraram são pequenos espaços não só de experiências vivenciadas, mas também de lugares que nunca foram 76 77 AGAMBEN, 2007. Op.cit. Pág.30. SONTAG, 2004. Op.cit. Pág. 85. P á g i n a | 60 visitados (como exemplo, as caixas de Joseph Cornell). Ao recriar um ambiente quase ideal, com objetos, escritos ou qualquer outra coisa que sirva para rememorar algo, esses artistas tentam anteriormente saturnino.78 reter com Essas o tempo Benjamin coleções assim e e seu caixas como vimos temperamento agirão como verdadeiras cápsulas do tempo, ou se quisermos, como ajudantes, tal como escreve Agamben: O ajudante é a figura daquilo que se perde, ou melhor, da relação com o perdido. (…) O que o perdido exige não é ser lembrado ou satisfeito, mas continuar presente em nós como esquecido, como perdido e, unicamente por isso, como inesquecível. 79 Eles são coisas que guardamos apenas para saber que estão guardadas. Porque de alguma maneira, aquilo nos transmite alguma segurança, apenas por estar ali. O colecionismo traz um pouco este aspecto porque, muitas vezes, perdemos a noção do que temos, mas sabemos que ali está algo que nos dá uma sensação transitória de saciedade. Transitória porque, não demora muito, partimos para nosso próximo objeto de desejo. Um aspecto digno de atenção levantado por Alberto Manguel em seu livro ‘Biblioteca à noite’ é o fato da coleção, no caso de livros, não necessariamente ter que ser utilizado em sua totalidade. Na verdade, em quase todos os tipos de coleção, nos perdemos em meio aos inúmeros objetos. Ele relata que Os visitantes costumam perguntar se li todos os meus livros; minha resposta costumeira é que com certeza abri cada um deles. O fato é que uma biblioteca, seja qual for seu tamanho, não precisa ser lida por inteiro para ser útil; todo leitor tira proveito de um sábio equilíbrio entre conhecimento e ignorância, lembrança e 78 79 SONTAG, 1986. Op.cit. Pág. 88-91 AGAMBEN, 2007.Op.cit. Pág. 35. P á g i n a | 61 esquecimento. 80 Esses objetos-ajudantes carregam a melancolia porque contamos com eles para reter o tempo e também para seguir em frente. Eles são a poeira que se acumula e nos dá a noção de tempo, da mesma forma que nos permite perceber o novo, ao nos desvencilharmos deles. Em outro trecho, Alberto Manguel diz que é possível descobrir novidades em nossa coleção, justamente por nos esquecermos do que temos: Minha biblioteca é constituída, meio a meio por livros que lembro e por livros que esqueci. (...) Os livros esquecidos de minha biblioteca levam uma existência tácita e discreta. Mesmo assim, sua própria qualidade de livros esquecidos às vezes me permite redescobrir uma história ou um poema como se fossem perfeitamente novos. 81 Geralmente o colecionador estabelece ordens para sua coleção. Essa ordem tediosa, melancólica, é da mesma ordem desse olhar para o banal que faz o flâneur descobrir o extraordinário. Por esse motivo, o colecionador consegue descobrir o novo e partir para um novo objeto de desejo. Benjamin, em ‘Desempacotando minha biblioteca’82, aborda esse mesmo hábito do colecionismo. Afirma que o colecionador está entre o caos e a organização e que a compra é sempre o momento mais interessante para o colecionador, pois ele tem a chance de fazer renascer um livro, principalmente se este livro já carregar uma história anterior (um antigo dono, por exemplo). A coleção está diretamente relacionada à lembrança. O que temos aqui é justamente uma ode ao colecionador e de como são os processos para obter essa coleção. Ele descreve o procedimento para reconhecer um bom item para sua 80 MANGUEL, Alberto. A Biblioteca à Noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Pág. 210 MANGUEL, 2006. Op.cit. Pág. 209 a 212 82 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1987. - pág. 227-235. 81 P á g i n a | 62 coleção e como essa coleção deverá ser mantida, entre outras coisas. Esse processo de se apegar aos objetos, em que Benjamin baseia toda sua obra, está diretamente relacionada ao fato do melancólico estabelecer sua relação com o mundo através dos objetos e não com as pessoas. Portanto, a história feita através dos objetos, através da fidelidade estabelecida com o acúmulo de coisas, através de fragmentos e das ruínas, em que há uma totalidade em cada fragmento vai ser a história representativa destes personagens da modernidade e que permanecem presentes, de alguma forma, como conceitos operacionais em meus trabalhos. A busca por objetos perdidos pela cidade, que fazem parte de uma memória urbana ou alheia; a busca por espaços degradados e absorvidos pela cidade; espaços-tempo que não são percebidos, que permanecem ‘congelados’, à espera do olhar; o renascimento de livros ou imagens através de uma coleção; operariam como meus ajudantes ao fazer com que o processo abranja o novo e o eterno. 3.3. Pedras Em um conto de Virginia Woolf chamado ‘Objetos 83 sólidos’ , temos a história de um personagem que se encanta por um objeto achado na praia (pedaço de vidro) e esta descoberta faz com que ele empenhe sua vida em uma busca incessante por outros objetos semelhantes a este. Seu percurso passa a ser a busca de objetos com certas características que só ele ‘entende’ e que lhe dão um prazer 83 WOOLF, Virginia. Contos completos. São Paulo : Cosac Naify, 2005. P á g i n a | 63 que dispensa qualquer outra necessidade. Na verdade, ele abandona todos os outros setores de sua vida para dirigir toda a atenção nesta busca, que se torna cada vez mais difícil. Esses objetos não são encontrados em qualquer lugar. São objetos especiais, que dependem de alguns acasos para que surjam: pedaços de garrafas de vidro que não apresentam mais nenhuma parte pontiaguda; um pedaço de cerâmica quebrada perfeitamente em formato de estrela; um pedaço de ferro com uma origem extraterrestre, além de tantos outros similares. Esses objetos são encontrados por acaso, em seus passeios, que, de ocasionais, tornam-se uma obsessão. É importante notar que uma ação que começou como um mero acidente, mero acaso (a descoberta na praia), passa a ser um objetivo, uma necessidade vital. Esses passeios assemelham-se aos passeios do flâneur pela cidade, só que em vez de observar a multidão, o olhar deste personagem volta-se para objetos informes, achados pela cidade. Isto, de certa forma, relaciona-se diretamente à questão do detalhe, no romance policial, que foi visto nos capítulos anteriores, em que o olhar deste personagem vai percorrer locais para discernir entre objetos próprios para seu propósito e outros nem tanto. Ou mesmo, com o olhar para o prosaico, já que estes objetos são ’banais’ mas despertam o extraordinário no personagem (apenas ele vê sentido neles). P á g i n a | 64 Na verdade, este personagem encarna uma série de características do flâneur já que ele também passa a ser um, pois nada mais interessa, apenas sua busca, seu vagar pela cidade para ‘descobrir’ novos objets trouvés84. De início esses objetos tinham a função de peso de papel, porém, posteriormente, isso deixa de acontecer; o que realmente importa passa a ser o prazer da descoberta do novo. Um novo pedaço de qualquer coisa que não é exatamente novo. Um novo pedaço de mais uma coisa que se parece com a anterior e com a que segue. Ao comentar a obra de Marcel Duchamp, Octavio Paz faz uma analogia interessante entre o ato de se apropriar de objetos comuns e a cultura oriental. Este movimento de se recolher cacos, pedras pode ser relacionado com o que diz o autor no seguinte trecho: Uma pedra é igual a outra pedra e um saca-rolhas é igual a outro saca-rolhas. A semelhança entre as pedras é natural e involuntária; entre os objetos manufaturados é artificial e deliberada. A identidade do sacarolhas é uma conseqüência de seu significado: são objetos produzidos para extrair rolhas; a identidade entre as pedras carece, em si mesma, de significado. Tal é, pelo menos, a atitude moderna diante da natureza. Não foi sempre assim. Roger Callois assinala que alguns artistas chineses escolhiam pedras que lhes pareciam fascinantes e as convertiam em obras de arte pelo único fato de gravar ou pintar seu nome nelas. Os japoneses também colecionam pedras e, mais ascéticos, preferem que não sejam demasiado belas, estranhas ou insólitas: verdadeiras pedras arredondadas. Buscar pedras 84 “Objeto encontrado por um artista e exposto como obra de arte, após sofrer pouca ou nenhuma alteração. Pode tratar-se de um objeto natural, como um pedregulho, uma concha ou um ramo de árvore, ou um objeto artificial, como uma cerâmica ou antigas peças de ferro ou de máquinas. A essência da concepção de objet trouvé está em que o artista reconhece no achado um ‘objeto estético’, o qual submete à apreciação de outros como o faria com uma obra de arte. (...).” – CHILVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Pág. 383. No conto, o personagem coloca seus achados em cima da lareira, como se eles fosse objetos que deixam as pessoas orgulhosas a ponto de exibirem na sala: porta-retratos, troféus, vasos valiosos, castiçais etc. Para ele, esses cacos são realmente motivo de orgulho, transformam sua vida numa eterna busca pelo objeto perfeito, tal um colecionar atrás de sua obra de arte mais valiosa. P á g i n a | 65 diferentes ou iguais não são atos distintos: ambos afirmam que a natureza é criadora. Escolher uma pedra entre mil equivale a dar-lhe nome85. Estes objetos carregam certa melancolia, pois estão entranhados de um passado desconhecido que os moldou, ao mesmo tempo em que passam a ser novidade quando assumem nova função com a descoberta do personagem. Quer dizer, eles são forjados por um passado e, quando redescobertos, assumem caráter de novidade. Eles são os restos, a ruína de que faziam parte anteriormente, ao mesmo tempo em que são ressignificados pelo personagem. É o belo moderno de Baudelaire, em que moderno e antiguidade caminham juntos. Outro aspecto presente neste conto está relacionado com o local onde o personagem procura seus objetos. Como são objetos que apresentam características particulares (precisam ser pedaços de algo, cacos que foram abandonados, precisam apresentar a forma ‘perfeita’) eles não são encontrados em qualquer lugar. Fazse necessário, além de um olhar treinado (do detetive/flâneur), o conhecimento sobre onde buscá-los. Este conhecimento está em conexão direta com a experiência, a vivência, pois somente através dela o personagem percebe que apenas em locais que ninguém enxerga (terrenos baldios, nesgas rente à linha férrea, casas demolidas) ele poderia encontrar espécimes excelentes para sua coleção86. Ora, de alguma forma, esses lugares não passam 85 PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Pág. 26 e 27 86 O fato de ele iniciar esta coleção de objetos (tão estranhos) também está associado ao comportamento melancólico, de se apegar a objetos que dêem um significado para a vida da pessoa, o que não deixa de ser o caso deste personagem, já que abdica de todo o resto de suas atividades para se dedicar exclusivamente à busca destes objetos que passam a ser seu objetivo. P á g i n a | 66 de não-lugares, espaços negativos87. Eles são lugares que não apresentam função, não podem ser alcançados, que são deixados de lado e praticamente inexistem para a cidade. É um espaço que está sempre entre alguma construção. Se olharmos as intervenções que Gordon MattaClark fez em casas abandonadas e que seriam demolidas podemos entender a analogia com os espaços que o personagem busca seus objetos. Na 27ª Bienal de São Paulo foram exibidos vídeos em que apareciam estes espaços escavados em prédios na cidade de NY. Esses espaços são ausência, vazios em meio à construção; é uma anarquitetura.88 Quando pensamos no trabalho ‘Fake States’ em que os espaços entre os edifícios e que não pertencem a ninguém são vendidos, temos também uma questão afirmativa, pois se o que faz um lugar ser lugar é a propriedade, aqueles espaços de 25 cm entre edifícios não são lugares. Os locais onde o personagem procura seus objetos não são locais, já que as frestas entre linhas do trem, terrenos abandonados, casas demolidas, bueiros, são lugares que não existem, são os espaços negativos da cidade: o bueiro é o espaço negativo da calçada, as frestas são da linha e os terrenos e casas abandonadas são das casas construídas. São espaços que não são percebidos normalmente, onde deixamos a poeira acumular89, abandonados, como percebemos neste seguinte trecho do conto: Habituou-se ele também a andar de olhos no chão, especialmente nas adjacências dos terrenos baldios onde são jogados fora os refugos das casas. Tais objetos ocorriam lá com freqüência - jogados fora, de nenhuma utilidade 87 Cito esta expressão como influência direta do trabalho ‘Fake States’, de Gordon Matta-Clark em que ele compra espaços que, geralmente, não são acessíveis de terrenos ocupados por construções. 88 WISNIK, Guilherme. O ‘informe’ a partir de Matta-Clark e Rem Koolhaas. Manuscrito. 89 Questão discutida anteriormente no capítulo 1. P á g i n a | 67 para ninguém, disformes, descartados.90 Em outro trecho do conto há uma descrição em que fica muito claro como esses lugares são inacessíveis, já que para sua empreitada o personagem carrega uma sacola e uma vara em que ele poderia adaptar um pequeno gancho. Na medida em que sua procura continuava, sua exigência aumentava. Os lugares passam a ser mais difíceis, as descobertas mais escassas, mas, ao mesmo tempo, são mais prazerosas. É uma necessidade de retenção, de deter o tempo, de contê-lo para não ter que lidar com ele. Assim como o personagem de Kafka no conto ‘Ante(s) (d)a lei‘91, que espera eternamente para entrar na lei onde há sempre um guardião. A imagem que surge durante o conto de vários salões que se sucedem, com inúmeros guardiões, é a imagem da imobilidade e da incapacidade de penetrarmos na intrincada rede que é tecida na estrutura burocrática. De alguma forma, é quase uma tentativa de continuar no mesmo regime da melancolia, não fazer parte do presente e nem tentar atualizar o passado. No entanto, o personagem do conto de V.Woolf torna-se um pária. Seu comportamento se modifica, ele passa a não ter prazer nas suas outras atividades, torna-se taciturno, neurastênico. Seu trabalho deixa de fazer sentido, seus amigos não conseguem mais conviver com ele e suas atividades sociais são reduzidas porque ele não consegue mais interagir com as pessoas por não ver mais graça na vida. Sua vida passa a ser apenas sua busca insana por outros pedaços de cerâmica, pedras ou qualquer outro resto que ele encontre. De algum modo, os ambientes que ele freqüenta para encontrar os objetos e as maneiras que desenvolve para capturá-los fazem mais sentido do qualquer 90 WOOLF, Virginia. Contos completos. São Paulo : Cosac Naify, 2005. - pág. 138 KAFKA, Franz. Nas galerias. Org. Flávio R. Kothe. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. Pág. 9192. 91 P á g i n a | 68 outra coisa. Ele é contaminado pela melancolia presente nestes lugares, nestes objetos. Tal como o homem da multidão, ele desaparece como indivíduo e torna-se mais um ser invisível para os outros. Uma tentativa de viver a vida dos outros. A vida dos objetos. A busca por locais escuros, cinzas. Um desinteresse manso.92 Quando busco os locais que fotografo, quer dizer, quando os encontro, sempre imagino o que havia sido construído ali. Que tipo de casa, que tipo de empresa, como teria sido a cor das paredes, como era a movimentação pela manhã com a chegada dos funcionários. Parte desta minha investigação ocorre quando volto aos lugares inúmeras vezes para observar. Paro e vejo como é tudo ao seu redor, como as pessoas se relacionam com o que agora é um terreno vazio. Porém, não pesquiso de fato as informações. Elas não me interessam. Prefiro imaginar e criar situações somente para minha satisfação. No entanto, nada é mais prazeroso que a primeira visão do lugar. Ela é tão rápida, tão efêmera, que traz perturbação. Às vezes acho que sonhei com o local, que foi um lampejo criado por meu cérebro. É quase um momento de cegueira. A partir do momento que volto ao local, a história que crio passa a ser objeto de interesse maior. Freqüento o terreno e vejo que a cada dia cresce mais mato, cai mais um pedaço do emboço ou surge mais um morador para habitá-lo. Vivo a existência daquela localidade, que nunca me pertenceu tanto quanto agora. Na verdade, ele só pertence a partir do momento que percebo a sutil mudança de estado. Quando ele deixa de ser aquele resíduo urbano e passa a ser uma perspectiva do novo, ele passa a pertencer a mim. A captura através da fotografia, das inúmeras 92 LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Pág. 172. P á g i n a | 69 P á g i n a | 70 P á g i n a | 71 imagens que faço para que nada se perca, faz com que ele deixe de existir como o conheci. Passo a colecioná-lo em uma tentativa de preservação daquele momento. Coleciono imagens de locais que não existem mais, que por um instante, só eu percebia. Locais que pertenciam apenas à cidade e que passaram a ser parte de minha vida. Depois disso, eles deixam de interessar, passam a ser apenas mais um lugar que nem os outros tantos que existem na cidade. Integram a ‘fachada contínua’ imperceptível dos locais que passamos. Ao expor as fotografias ‘repetidas’ desses locais de maneira contínua, recrio esta ‘fachada contínua’ mas com a diferença que esta não é a paisagem em que perdemos a consciência em nosso transe diário. As fotografias não são a paisagem que olhamos pela janela do ônibus e que nos fazem adormecer temporariamente. As imagens são, ao contrário, o que nos desperta, o que faz ter aquele momento de estranhamento, de não saber o que realmente aconteceu. As fotografias permitem a contemplação do transitório diversas vezes. Imprimem a poeira em nós. 3.4 . Ajudantes O texto ‘Os Ajudantes’ de Giorgio Agamben aborda personagens que surgem em narrativas que ele classifica como ‘ajudantes’. Estes seriam indivíduos que atravessariam não só as narrativas, como também nossas vidas, travestidos sob diversos nomes. São pessoas que passam despercebidas, mas que têm um papel importante em nossas histórias, apesar de apresentarem comportamento contraditório. Segundo o autor, [os ajudantes] (…) são observadores atentos, ‘ágeis’, ‘soltos’; têm olhos cintilantes e, contrastando com seus modos pueris, rostos que parecem de adultos, ‘de estudantes, quase’, e P á g i n a | 72 barbas longas e abundantes. (…) sempre absortos em imaginações e projetos para os quais parecem dispor de todas as qualidades, não conseguem, porém, concluir nada, e ficam geralmente sem o que fazer. (…) São os personagens que o narrador esquece no final da história, quando os protagonistas vivem felizes e contentes até o final de seus dias (…)93. Agamben destaca que objetos também podem fazer este papel dos ajudantes. Acredito que, como grande parte dos artistas, pertenço à categoria de ‘acumuladores’. Guardo desde objetos inúteis, quebrados ou que não apresentam mais nenhuma utilidade, até panfletos distribuídos nas ruas (ou mesmo papéis jogados nas ruas que acabaram por se transformar em um trabalho)94. Estas ‘criaturas’ me cercam e fazem acreditar que de alguma forma consigo reter ou mesmo deter a vida ou o tempo. Estes objetos têm aparentemente esta capacidade, tal como diz Agamben: “O ajudante é a figura daquilo que se perde, ou melhor, da relação com o perdido.”95 Mesmo que esta perda seja alheia (a busca de objetos que nunca pertenceram a mim, por exemplo) ele, o ajudante, se faz presente e indispensável para a manutenção de uma ‘normalidade‘.96 Por conta deste ‘poder’, a conservação aparentemente desmedida destes objetos se faz plenamente 93 AGAMBEN, 2007. Op.cit. Pág. 31-32. No trecho seguinte fica muito claro o que significam estes objetos quando assumem o papel de ajudantes para Agamben:“Também entre as coisas aparecem ajudantes. Todos conservamos certos objetos inúteis, metade lembrança e metade talismã, de que nos envergonhamos um pouco, mas aos quais não gostaríamos de renunciar por nada neste mundo. Trata-se às vezes de um velho brinquedo que sobreviveu aos estragos infantis, de uma caixinha de estudante que guarda um cheiro perdido ou de uma camiseta apertada que conservamos, sem motivo, na gaveta das camisas ‘de homem’.” AGAMBEN, 2007. Op.cit. Pág.33. 95 Idem. Pág.35. 96 Assim como em algum transtorno psíquico, em que certos rituais são repetidos, ao obter-se estes ‘ajudantes alheios’, busca-se manter a relação com algo perdido mas que não foi jamais presentificado. Portanto, poderia ser caracterizado como uma tentativa de se criar um controle sobre algo que é aparentemente artificial apenas pelo fato de não pertencer à vida pregressa de quem buscou este ajudante. É, de fato, a invenção de uma narrativa. 94 P á g i n a | 73 justificável. Ao ler que “O que o perdido exige não é ser lembrado ou satisfeito, mas continuar presente em nós como esquecido, como perdido e, unicamente por isso, como inesquecível.”97, relembrei a questão da fotografia e do vídeo substituírem o evento98. Há uma tendência de o senso comum acreditar que, atualmente, as pessoas substituem a experiência de se estar em algum lugar pela ação de se retratar ou filmar. Os eventos importantes de nossa vida passaram a ser fotografados sem que o vivenciemos realmente99. O vídeo ou a fotografia são mais importantes no momento do que o evento em si. Quer dizer, ao nos preocuparmos em registrar aquele momento, acabamos por nunca vivenciarmos, já que não poderemos tê-lo de volta ao vermos a foto ou o vídeo.100 Segundo Adorno (…)no fim das contas, é como nas fotografias avidamente tiradas durante a viagem, em que pela paisagem se dispersam, como desperdícios, os que dela nada viram, e como recordação recolhem o que, sem memória, se despenhou no nada.101 Assim, a fotografia ou o vídeo nos faria lembrar fisicamente do esquecido. Fisicamente não só por causa da questão material do meio (mesmo sendo digital há uma relação material nem que seja pela necessidade de 97 AGAMBEN, 2007. Op.cit. Pág.35. “Uma foto é tanto uma pseudopresença quanto uma prova de ausência.” – SONTAG, 2004. Op.cit. Pág. 26 99 Susan Sontag esclarece este movimento de fotografar o presente no seguinte trecho de seu livro ‘Sobre a fotografia’: “Fotos são um meio de aprisionar a realidade, entendida como recalcitrante, inacessível; de fazê-la parar. Ou ampliam a realidade, tida por encurtada, esvaziada, perecível, remota. Não se pode possuir a realidade, mas pode-se possuir imagens (e ser possuído por elas) (...) Mas os resultados dessa prática de acesso instantâneo são outro modo de criar distância. Possuir o mundo na forma de imagens é, precisamente, reexperimentar a irrealidade e o caráter distante do real. (...) as fotos tiradas hoje transformam o que é presente numa imagem mental, como o passado. As câmeras estabelecem uma relação inferencial com o presente (a realidade é conhecida por seus vestígios), proporcionam uma visão imediatamente retroativa da experiência.” – Idem. Pág.180 e 183. 100 Também podemos lembrar que a questão da visão do momento através de um anteparo (câmera) é uma maneira de não vivenciar, porém, não entraremos nesta discussão. 101 ADORNO, 2001. Op.cit. Pág. 112. 98 P á g i n a | 74 equipamentos para ver o resultado), mas também pela questão indicial inerente ao processo; e nisso residiria a materialidade deste ‘objeto-ajudante’. Ao pensar todos estes pontos, do que fica esquecido, perdido em nossa memória, ocorre a associação com a guenizá, pois como foi exposto anteriormente, este é o local da retenção, da memória. Segundo o livro ‘A historical atlas of the jewish people’, editado por Eli Barnavi, (…) o significado da palavra guenizá é esconder. Esta seria um local designado para depositar bíblias danificadas, livros de orações amassados e objetos ritualísticos que não podem ser mais utilizados. De acordo com a lei Judaica, objetos que contêm o nome de Deus não podem ser destruídos e devem ser preservados mesmo que não tenham mais utilidade. (…) quando fica cheia, a guenizá tem que ser transferida para ser enterrada em um cemitério.102 É interessante pensar que o ajudante seria algo que permanece guardado, perdido no limbo da memória, tal como as escrituras que não podem ser destruídas pelo homem e aguardam sua própria desintegração, num processo de entropia. Nesse processo de entropia, sempre é aproveitado algo, algo que retorna. Assim, o ajudante viria como algo que reatualiza o passado, pois participa sempre do ciclo do eterno retorno. A questão da miniaturização é outro fator a ser levantado. Ao ser utilizado como um pequeno talismã (estes pequenos objetos que nos acompanham) cria-se uma poética de preciosidade, de fragmentos que se aproximam muito do trabalho de Robert Walser. Sua escrita diminuta criava a necessidade de um aproximar-se para poder ler. É interessante perceber que mesmo o significado de miniatura 102 BARNAVI, Eli, ed. A Historical Atlas of the Jewish People. New York: Schocken Books, 1992. Pág. 90. P á g i n a | 75 carrega indícios presentes na concepção do trabalho. Segundo Houaiss103, a miniatura é: 1 Rubrica: desenho, pintura. pintura ou desenho muito delicado, caprichado, em tamanho pequeno, feito em pergaminho ou outra superfície, ger. com mínio ou algumas outras cores fortes 2 Rubrica: desenho, pintura. letra inicial de capítulos dos manuscritos antigos, bastante ornamentada, inicialmente traçada em vermelho, com mínio, e posteriormente com preto, azul etc. Obs.: cf. rubrica ('letra inicial') 3 Rubrica: desenho, pintura. Estatística: pouco usado. m.q. iluminura ('desenho, grafismo') 4 Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: artes plásticas. objeto artístico de pequenas dimensões, delicado e minucioso Ex.: neste museu, há um tesouro em m. antigas, gregas e egípcias.” Dando continuidade, Susan Sontag aponta que miniaturizar é ocultar (…) significa tornar inútil. Pois o que foi reduzido de forma tão grotesca, de certa forma, é libertado de qualquer sentido - a pequenez é sua característica mais notável. É, ao mesmo tempo, um todo (ou seja, completo) e um fragmento (tão pequenino, na escala errada). Torna-se objeto de contemplação desinteressada ou de devaneio.104 Esses pequenos objetos são tão reduzidos, ocultos, mas diferente do que diz Susan Sontag, eles não deixam de fazer sentido, mas passam a pertencer ao comportamento contraditório, dialético no qual o ajudante está envolvido. Passa a ser apenas um objeto de devaneio porque vaga pelo limbo em que as imagens estão inseridas, no local em 103 HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, verbete "Miniatura". 104 SONTAG, 1986. Op.cit. Pág. 96. P á g i n a | 76 que as coisas não são acessíveis diretamente, mas apenas através “[dos] ‘enviados’ do inimigo”105. Eles são os intermediários necessários. É a pequena caixa sagrada, onde referências são guardadas e não podem ser destruídas. Referências que assombram. 105 AGAMBEN, 2007. Op.cit.Pág.31. P á g i n a | 77 [At the club Silencio] No hay banda. There´s no orchestra. Il n´y a pas de orchestra. It´s all recorded. No hay banda! It´s all in the tape. There is no band. i l l u s i o n … 106 106 Cidade dos Sonhos – Dir. David Lynch (EUA) (2001). It is all an P á g i n a | 78 BIBLIOGRAFIA ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Lisboa: Edições 70, 2001. AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007 ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995. AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a sobremodernidade. 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Há certos segredos que não consentem ser ditos. Homens morrem à noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores fantasmais, olhando-os devotamente nos olhos; morrem com o desespero no coração e um aperto na garganta, ante a horripilância de mistérios que não consentem ser revelados. De quando em quando, ai, a consciência do homem assume uma carga tão densa de horror que dela só se redime na sepultura. E, destarte, a essência de todo crime permanece irrevelada. Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do Café D. .. em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. O simples respirar era-me um prazer, e eu derivava inclusive inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição. Sentia um calmo mas inquisitivo interesse por tudo. Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, divertira-me durante a maior parte da tarde: ora espiando os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas. Essa era uma das artérias principais da cidade e regurgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou, e, quando as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta. Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação similar, e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior. P á g i n a | 90 De início, minha observação assumiu um aspecto abstrato e generalizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica. Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompunham-se e continuavam, apressados, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço, interrompiam subitamente o resmungo, mas redobravam a gesticulação e esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam detido passassem adiante. Se alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão. Nada mais havia de distintivo sobre essas duas classes além do que já observei. Seus trajes pertenciam àquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, nobres, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas _ os eupátridas e os lugares-comuns da sociedade _, homens ociosos e homens atarefados com assuntos particulares, que dirigiam negócios de sua própria responsabilidade. Não excitaram muito minha atenção. A tribo dos funcionários era das mais ostensivas, e nela discerni duas notáveis subdivisões. Havia, em primeiro lugar, os pequenos funcionários de firmas transitórias, jovens cavalheiros de roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem emplastado e lábios arrogantes. Posta de lado certa elegância de porte, a que, à falta de melhor termo, pode-se dar o nome de "escrivanismo", a aparência deles parecia-me exato fac-símile do que, há doze ou dezoito meses, fora considerada a perfeição do bon ton. Usavam os atavios desprezados pelas classes altas - e isso, P á g i n a | 91 acredito, define-os perfeitamente. A subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitáveis era inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas, confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha direita afastada, devido ao hábito de ali prenderem a caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para pôr ou tirar o chapéu e que traziam relógios com curtas correntes de ouro maciço, de modelo antigo. A deles era a afetação da respeitabilidade, se é que existe, verdadeiramente, afetação tão respeitável. Havia muitos indivíduos de aparência ousada, característica da raça dos batedores de carteiras, que infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita curiosidade e achava difícil imaginar que pudessem ser tomados por cavalheiros pelos cavalheiros propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas, assim como o ar de excessiva franqueza que exibiam, era quanto bastava para denunciá-los de imediato. Os jogadores - e não foram poucos os que pude discernir - eram ainda mais facilmente identificáveis. Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de veludo, o lenço fantasia ao pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do mais desatinado e trapaceiro dos rufiões às vestes escrupulosamente desadornada dos clérigos, incapazes de provocar a mais leve das suspeitas. Não obstante, denunciava-os certa tez escura e viscosa, a opacidade dos olhos, assim como o palor e a compressão dos lábios. Havia, ademais, dois outros traços característicos que me possibilitavam identificá-los: a voz estudadamente humilde e a incomum extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes, em companhia desses velhacos, observei outra espécie de homens, algo diferentes nos hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante. Podiam ser definidos como cavalheiros que viviam à custa da própria finura. Ao que parecia, dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público: de um lado, os almofadinhas; de outro, os militares. Os traços distintivos do primeiro grupo eram o cabelo anelado e o sorriso aliciante; o segundo grupo caracterizava-se pelo P á g i n a | 92 semblante carrancudo e pela casaca de alamares. Descendo na escala do que se chama distinção, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias. Encontrei judeus mascates, com olhos de falcão cintilando num semblante onde tudo o mais era abjeta humildade; atrevidos mendigos profissionais hostilizando mendicantes de melhor aparência, a quem somente o desespero levara a recorrer à caridade noturna; débeis e cadavéricos inválidos, sobre os quais a morte já estendera sua garra, e que se esgueiravam pela multidão, olhando, implorantes, as faces dos que passavam, como se em busca de alguma consolação ocasional, de alguma esperança perdida; mocinhas modestas voltando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais chorosas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contato direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda idade: a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano, feita de mármore de Paros, mas cheia de imundícies em seu interior; a repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de jóias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igualar·se, no vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e indescritíveis; uns, esfarrapados, cambaleando inarticulados, de rosto contundido e olhos vidrados; outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, de lábios grossos e sensuais, e face apopleticamente rubicunda; outros, ainda, trajando roupas que, em tempos passados, haviam sido elegantes e que, mesmo agora, mantinham escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo firme, mas cujo semblante se mostrava medonhamente pálido, cujos olhos estavam congestionados e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por entre a multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além desses todos, carregadores de anúncios, moços de frete, varredores, tocadores de realejo, domadores de macacos ensinados, cantores de rua, ambulantes, artesãos esfarrapados e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies _ tudo isso cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo nos discordantemente os ouvidos e provocando-nos uma sensação dolorida nos olhos. P á g i n a | 93 Conforme a noite avançava, progredia meu interesse pela cena. Não apenas o caráter geral da multidão se alterava materialmente (seus aspectos mais gentis desapareciam com a retirada da porção mais ordeira da turba, e seus aspectos mais grosseiros emergiam com maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus antros todas as espécies de infâmias, mas a luz dos lampiões a gás, débil de início, na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascendência, pondo nas coisas um brilho trêmulo e vistoso. Tudo era negro mas esplêndido - como aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano. Os fantásticos efeitos de luz levaram-me ao exame das faces individuais, e, embora a rapidez com que o mundo iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar mais que uma olhadela furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstante, que, no meu peculiar estado de espírito, eu podia ler freqüentemente, mesmo no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos. Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembro-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzsch, e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do Demônio. Enquanto eu tentava, durante breve minuto em que durou esse primeiro exame, analisar o significado que ele sugeria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no meu espírito, as idéias de vasto poder mental, de cautela, de indigência, de avareza, de frieza, de malícia, de ardor sanguinário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo terror, de intenso e supremo desespero. Senti-me singularmente exaltado, surpreso, fascinado. "Que extraordinária história", disse a mim mesmo, "não estará escrita naquele peito!" Veio-me então imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a turba em direção ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao P á g i n a | 94 cabo de algumas pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-me dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção. Tinha agora uma boa oportunidade para examinar-lhe a figura. Era de pequena estatura, muito esguio de corpo e, aparentemente, muito débil. Suas roupas eram, de modo geral, sujas e esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasionalmente, sob algum foco de luz, eu podia perceber que o linho que trajava, malgrado a sujeira, era de fina textura, e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de segunda mão, que ele trazia abotoada de cima a baixo, de um diamante e de uma adaga. Essas observações aguçaram minha curiosidade, e decidi-me a acompanhar o estranho até onde quer que ele fosse. Era já noite fechada, e uma neblina úmida e espessa, que logo se agravou em chuva pesada, amortalhava a cidade. Essa mudança de clima teve um estranho efeito sobre a multidão, que logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A agitação, os encontrões e o zunzum decuplicaram. De minha parte, não dei muita atenção à chuva; uma velha febre latente em meu organismo fazia com que eu a recebesse com um prazer algo temerário. Amarrando um lenço à boca, continuei a andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu caminho, com dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava grudado aos seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça para trás, não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma travessa que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento. Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com maior hesitação, dir-se-ia. Atravessou e tornou a atravessar a rua, repetidas vezes, sem propósito aparente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada, e ele caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes havia gradualmente decrescido, tornando-se o que é ordinariamente visto, à noite, na Broadway, nas proximidades do Park, tão grande é a diferença entre a população de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um desvio de rota levounos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas P á g i n a | 95 maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe sobre o peito, enquanto seus olhos se moviam, inquietos, sob o cenho franzido, em todas as direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre a multidão com firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver que, tendo completado o circuito da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes; quase que deu comigo, certa vez em que se voltou com um movimento brusco. Nesse exercício gastou mais uma hora, ao fim da qual encontramos menos interrupções, por parte dos transeuntes, que da primeira vez. A chuva continuava a cair, intensa; o ar tornou-se frio; os passantes se retiravam para suas casas. Com um gesto de impaciência, o estranho ingressou num beco relativamente deserto. Caminhou apressadamente, durante cerca de um quarto de milha, com uma disposição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; grande foi a minha dificuldade em acompanhá-lo. Alguns minutos de caminhada levaram-nos a uma grande e ruidosa feira, cujas localidades pareciam bastante familiares ao estranho, e ali ele retomou suas maneiras primitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem propósito definido, por entre a horda de compradores e vendedores. Durante a hora e meia, aproximadamente, que passamos nesse local, foi-me mister muita cautela para seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava galochas e podia movimentar-me em absoluto silêncio. Em nenhum momento ele percebeu que eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de artigo algum nem dizia qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos com um olhar desolado, despido de qualquer expressão. Eu estava profundamente intrigado com o seu modo de agir e firmemente decidido a não me separar dele antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu respeito. Um relógio bateu onze sonoras badaladas, e a feira começou a despovoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um esbarrão no velho, e, no mesmo instante, vi um estremecimento percorrer-lhe o corpo. Ele saiu apressadamente para a rua e olhou ansioso à sua volta, por um momento; encaminhou-se depois, com incrível rapidez, através de vielas, umas cheias de gente, outras despovoadas, para a grande avenida da qual partira, a avenida onde P á g i n a | 96 ficava situado o Hotel D... Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Estava ainda brilhantemente iluminada, mas a chuva caía pesadamente e havia poucas pessoas à vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos pela antes populosa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção do rio. Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por fim diante de um dos teatros principais da cidade. Este estava prestes a fechar, e os espectadores saíam pelas portas escancaradas. Vi o velho arfar, como se por falta de ar, e mergulhar na multidão, mas julguei perceber que a intensa agonia do seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o peito novamente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o caminho tomado pela maioria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia compreender a inconstância de suas ações. Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando, e sua antiga inquietude e vacilação voltaram a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco freqüentada. O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápidas passadas um itinerário que nos levou aos limites da cidade, para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então atravessado. Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais desesperado dos crimes. A débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e arruinados, dispostos em tantas e tão caprichosas direções, que mal se percebia um arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavimento jaziam espalhadas, arrancadas de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim, deparamos com grandes bandos de classes mais desprezadas da população londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como uma lâmpada bruxuleante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente; ao dobrarmos uma esquina, um clarão de luz feriu-nos os olhos e detivemo-nos diante de um dos enormes templos urbanos de Intemperança: um dos palácios do demônio P á g i n a | 97 Álcool. O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de alegria, o velho forçou a passagem e, uma vez dentro do salão, retomou suas maneiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a turba. Não fazia, porém, muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna resolvera fechá-la por aquela noite. Era algo mais intenso que desespero o sentimento que pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia, retomou o caminho de volta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não abandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses. Enquanto caminhávamos, o sol nasceu, e quando alcançamos novamente a mais populosa feira da cidade, a rua do Hotel D... , esta apresentava uma aparência de alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E ali, entre a confusão que crescia a cada momento, persisti na perseguição ao estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante o dia todo, não abandonou o turbilhão da avenida. Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci·me mortalmente e, detendo·me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se. "Este velho", disse comigo, por fim, "é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que "es lässt sich nich lesen".