A juventude americana e francesa no cinema dos - PPGHC
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A juventude americana e francesa no cinema dos - PPGHC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CARLOS VINICIUS SILVA DOS SANTOS A JUVENTUDE AMERICANA E FRANCESA NO CINEMA DOS ANOS 1950: um estudo comparado RIO DE JANEIRO 2014 Carlos Vinicius Silva dos Santos A JUVENTUDE AMERICANA E FRANCESA NO CINEMA DOS ANOS 1950: um estudo comparado Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. : Wagner Pinheiro Pereira Rio de Janeiro 2014 Carlos Vinicius Silva dos Santos A JUVENTUDE AMERICANA E FRANCESA NO CINEMA DOS ANOS 1950: um estudo comparado Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História Comparada. Aprovada em: ______________________________________________ ____________________________________________________ Orientador: Professor Doutor Wagner Pinheiro Pereira Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) ____________________________________________________ Professor Doutor Francisco Carlos Teixeira da Silva Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) ____________________________________________________ Professor Doutor Ricardo Figueiredo de Castro Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) RESUMO SANTOS, Carlos Vinicius Silva dos. A Juventude Americana e Francesa no Cinema dos Anos 1950: um estudo comparado. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. A presente dissertação realiza um estudo sobre a consolidação da cultura jovem nas sociedades dos Estados Unidos da América (EUA) e da França na década de 1950, bem como da representação da juventude através da produção cinematográfica selecionada destes países, em consonância às transformações socioculturais observadas naquelas sociedades. Examina-se a maneira pela qual a indústria cinematográfica destes países formulou um determinado tipo de representação da juventude em contato com as novas demandas culturais derivadas desta parcela populacional. Procura-se observar, neste movimento, a relação da indústria cinematográfica com as tensões não apenas socioculturais, mas, secundariamente, político-econômicas nos Estados Unidos e na França. Neste objetivo, privilegiam-se as produções cinematográficas “Sementes da violência” (Blackboard jungle, dir.: Richard Brooks – 1955), “Juventude transviada” (Rebel Without a Cause, dir.: Nicholas Ray – 1955), “Como agarrar um milionário” (How to get a milionnaire, dir.: Jean Negulesco – 1953), referentes ao contexto americano, e “Os incompreendidos” (Les quatre cents coups, dir.: François Truffaut – 1959), “Acossado” (À bout de souffle, dir.: Jean-Luc Godard – 1960) e “E Deus criou a mulher” (Et Dieu créa... la femme, dir.: Roger Vadim – 1956), concernentes à conjuntura francesa. Palavras-chave: Juventude, Cinema, Estados Unidos da América, França, Década de 1950. ABSTRACT SANTOS, Carlos Vinicius Silva dos. A Juventude Americana e Francesa no Cinema dos Anos 1950: um estudo comparado. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. This work examines the consolidation of youth culture in the societies of United States of America and France in the decade of 1950, while studies the characterization of youth in the cinematographic production of those countries, searching the cultural questions of adolescence. In addition, the parameters utilized by cinematographic industry to construct a specific kind of juvenile portrayal are also analyzed. Therefore, the relations between cinematographic business, socio-cultural tensions as well politic-economics questions are considered. Thus, are selected the titles Blackboard jungle (dir.: Richard Brooks – 1955), Rebel Without a Cause (dir.: Nicholas Ray – 1955), How to get a milionnaire (dir.: Jean Negulesco – 1953), produced in the United States, and Les quatre cents coups (dir.: François Truffaut – 1959), À bout de souffle (dir.: Jean-Luc Godard – 1960) and Et Dieu créa... la femme (dir.: Roger Vadim – 1956), produced in France. Key words: Youth, Cinema, United States of America, France, 50‟s. AUTORIZAÇÃO CARLOS VINICIUS SILVA DOS SANTOS, DRE nº 112011628, AUTORIZO o Instituto de História da UFRJ a divulgar total ou parcialmente a presente dissertação através de meios eletrônicos e em consonância com a orientação geral do SiBI. Rio de Janeiro,___/___/____. _______________________________ Carlos Vinicius Silva dos Santos SUMÁRIO INTRODUÇÃO ______________________________________________07 1 AS JUVENTUDES AMERICANA E FRANCESA NAS INDÚSTRIAS DO CINEMA ___________________________________________________27 1.1 A JUVENTUDE DE “SEMENTES DA VIOLÊNCIA” _______________34 1.2 “OS INCOMPREENDIDOS” E A ADOLESCÊNCIA EM TRUFFAUT __46 1.3 OS JOVENS DE “SEMENTES DA VIOLÊNCIA” E DE “OS INCOMPREENDIDOS” _____________________________________58 2 AS SOCIEDADES FRENTE À CULTURA JOVEM _______________63 2.1 NICHOLAS RAY E A MITOLOGIA DA REPRESENTAÇÃO JUVENIL NO CINEMA ________________________________________________70 2.2 GODARD: LIBERDADE E CRIMINALIDADE JUVENIL ____________86 2.3 OS ARQUÉTIPOS JUVENIS DE “JUVENTUDE TRANSVIADA” E DE “ACOSSADO” ___________________________________________100 3 A REPRESENTAÇÃO JUVENIL FEMININA: DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, CONSUMO E LIBERDADE ____________________107 3.1 “COMO AGARRAR UM MILIONÁRIO”: A BUSCA PELO CONSUMO NOS EUA ______________________________________________113 3.2 “E DEUS CRIOU A MULHER”: A LIBERALIZAÇÃO FEMININA NA FRANÇA _______________________________________________125 3.3 CONSUMO E LIBERDADE: A FEMINILIDADE DOS ANOS 1950 ___137 CONCLUSÃO ______________________________________________143 FONTES CINEMATOGRÁFICAS ______________________________154 REFERÊNCIAS ____________________________________________154 7 INTRODUÇÃO A presente dissertação de mestrado desenvolve um estudo relativo à formação e à consolidação da juventude enquanto ator social ativo, relevante na atmosfera de transformações ocorridas ao longo da década de 1950, observando-se através das representações cinematográficas realizadas sobre esta parcela da população. O processo de cristalização da juventude, que passa a ser percebida como um grupo coeso dentro do corpo social, portador de demandas próprias, com a formulação de um código cultural específico o qual afirma o distanciamento em relação ao restante da sociedade, sucede-se tendo como contexto o notável desenvolvimento econômico observado nos anos seguintes ao fim da Segunda Guerra Mundial. Neste período, a nova conjuntura econômica do pós-guerra incide sobre distintas nações do globo, tendo consequências heterogêneas de acordo com as especificidades político-econômicas e socioculturais existentes. De qualquer forma, considera-se a presença ativa do jovem principalmente em relação aos aspectos sociais e culturais, sendo o cenário de desenvolvimento econômico o pano de fundo no qual ocorre o citado processo, não buscando pensar a ascensão da juventude pelo viés econômico, propriamente. Diante desta questão, examina-se a representação cinematográfica da juventude gestada nos Estados Unidos da América (EUA) e na França, em um enfoque comparativo destes dois países, observando-se as aproximações, divergências e influências perceptíveis em ambos os casos. A escolha destes dois países enquanto objetos de análise deve-se às expressivas similaridades com que se pode perceber a emersão da cultura jovem naquela década, nestas realidades nacionais. Além disso, privilegia-se a juventude por se considerar ter sido este agrupamento social aquele que melhor ilustra as profundas transformações do período. Tanto nos Estados Unidos, quanto na França, a sociedade vê-se surpreendida pela constatação da rápida afirmação de uma cultura jovem, com contornos próprios e características específicas, realizando questionamentos e abalando os padrões morais e comportamentais em vigor. Em ambos os países, igualmente, a juventude será tipificada pela sua dissonância em relação ao corpo social, sendo especialmente acionados os elementos da rebeldia, da delinquência e da sexualidade na retórica social em reação à repentina afirmação da cultura juvenil. Paralelamente, a eleição do cinema como meio de acesso às 8 transformações sociais concernentes à juventude é devedora da singularidade com que este produto midiático absorveu as demandas desta parcela social naquele momento histórico e, além disso, à sua potencialidade enquanto fonte histórica, uma vez que determinada película invariavelmente veicula vestígios de seu tempo e lugar de produção. O interesse acadêmico pelas transformações socioculturais do período aqui abordado, em especial pela consolidação da juventude enquanto portadora de uma cultura autônoma dentro do corpo social, bem como a intenção de se trabalhar com um corpus documental integrado por produções cinematográficas, surgiu do contato travado com o referido período histórico e, de mesma forma, com fontes audiovisuais, ao longo de disciplinas e laboratórios cursados no Instituto de História (IH), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 1. A utilização de fontes de notável peculiaridade possibilita a realização de uma abordagem diferenciada sobre um período temporal o qual já foi historiograficamente considerado, permitindo a observação de novos matizes. A pesquisa sobre a qual se baseia esta dissertação fundamenta-se em duas hipóteses: primeiramente, considera-se que a cultura jovem que se solidifica na década de 1950 é absorvida pela indústria midiática do período em um processo de midiatização das demandas da juventude, sendo formulado um arquétipo juvenil que termina por ser integrado àquela cultura que motivou sua construção; em segundo lugar, ponderam-se as prováveis influências entre os dois contextos nacionais em exame, percebendo-se a presença das representações midiáticas de juventude produzidas em um país no horizonte cultural do outro. Desta forma, serão observados os anos do “turbilhão cultural” que viria a caracterizar a década como The Fifties, lembrada através de dois vieses opostos: por um lado, a década dos “Anos Dourados”, período de consumo acessível, harmonia familiar e comunitária; por outro, um período de incertezas, marcado pela angústia psicológica gerada através da busca por status social, bem como pela constante ameaça da aniquilação nuclear. Assim, privilegiando-se especificamente a faixa etária juvenil, o exame realizado busca colaborar com o conhecimento histórico existente sobre o período, no sentido de esclarecer como as novas demandas 1 Cito os cursos “Cinema, Televisão e Música: História e Linguagem (1895-1945)” e “História da América – III”, bem como os laboratórios “História e Audiovisual: cinema e política nas Américas e na Europa (1895-1945)” e “História e Música nas Américas e na Europa: indústria cultural, cultura midiática de massa e sociedade do espetáculo (1833-1975)”, ministrados pelo Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira. 9 socioculturais foram absorvidas, em confluência ao cenário de modificações da década. No contexto americano, se o comunismo constitui uma ameaça presente tanto externamente quanto internamente, possibilitando a fundamentação de um nacionalismo exacerbado, o desenvolvimento econômico que se processa permite um aumento de padrão de consumo impensável, ao menos, desde 1929, o qual parece afastar o elemento político do cotidiano do cidadão comum. Preocupado com a desejada elevação de seu status social, este relega ao segundo plano as questões referentes à coletividade nacional, voltando-se à busca individual do mais novo sonho de consumo. Dessa forma, a geração que havia atravessado as incertezas das duas décadas anteriores, marcadas pela carestia da crise econômica e, posteriormente, pela participação da nação em um conflito de proporções mundiais, busca no conforto da sociedade de consumo que se insinua a segurança que almejara. Logo, os tradicionais elementos do American Way of Life, como a família e a religiosidade, interagiriam com a nova cultura jovem, da geração que cresce tendo como universo a propagandeada e desejada vida nos subúrbios. Entretanto, neste contexto de aparente harmonia, subterraneamente desenvolvem-se elementos que parecem salientar a gestação de um cenário de mal-estar social. A homogeneização e o conformismo, alicerçados pelo materialismo inerente à sociedade de consumo que se concretizava, começam a ser apontados como ingredientes corruptores das qualidades tradicionais do ethos americano. Surgem, então, trabalhos sociológicos críticos às modificações socioculturais observadas, como as obras, The Lonely Crowd (1950), de David Riesman; White Collar (1951) e The Power Elite (1956), de C. Wright Mills; e The Organization Man (1956), de William H. Whyte. Nestas obras, a obsessão pelos bens materiais, o conformismo, a homogeneização, bem como a incessante busca de ascensão social enquanto objeto de autopromoção, são contundentemente criticados. Do outro lado do Atlântico a França, economicamente fragilizada, vê-se na desconfortável posição de dependência financeira dos Estados Unidos para alavancar seus planos de recuperação e equilibrar suas contas. O apoio, que viria maciçamente através do Plano Marshall, é percebido pelos franceses como um veículo para a imposição de produtos culturais sobre os valores tradicionalmente vigentes na sociedade francesa. Desta forma, a retórica antiamericana é alimentada em determinados círculos políticos e meios intelectuais durante a década de 1950, 10 em oposição ao que seria a configuração da imposição do modo de vida americano ao povo francês2. Segundo Robert Gildea, no bojo de todas as exigências políticas e econômicas feitas para a materialização do auxílio, Os americanos também requeriam que todas as barreiras às suas exportações e investimentos fossem removidas, assim a França foi inundada não apenas por produtos americanos, mas igualmente por propaganda vendendo o modo de vida americano. „A França se tornará uma colônia americana?‟ questionou um livro em 1948, expondo a ameaça dos filmes de gangster e westerns americanos, das revistas em quadrinhos infantis como Pato Donald, Tarzan, e Zorro, e revistas controladas por trusts americanos, notadamente Reader’s Digest, denominada Sélection na 3 França. Entretanto, similarmente ao ocorrido na sociedade norte-americana, distante dos debates político-ideológicos, o cidadão comum na França do pós-guerra identifica no aumento da oferta de bens de consumo a possibilidade de superação da carestia dos anos anteriores. Assim, a constante exibição do elevado padrão de vida alegadamente vigente nos Estados Unidos do período, onde proliferava o conforto da modernidade eletrodoméstica, gera o desejo por absorção de elementos culturais daquela nação por parcela substancial da população francesa. Ao longo dos anos 1950, a recuperação econômica realizada, com o lento, porém constante aumento do padrão de consumo francês concretiza o processo de „americanização‟, alterando definitivamente algumas das tradicionais bases culturais que haviam por muito tempo caracterizado o ser francês.4 Abordando o uso publicitário do cinema hollywoodiano neste processo de „americanização‟ na Europa do pós-guerra, afirma Kristin Ross: As salas de cinema da Europa estavam recheadas com um ilustrativo catálogo dos divertimentos e recompensas do capitalismo americano; todos os momentos da vida doméstica nos Estados Unidos, seus objetos e bugigangas e o estilo de vida que eles ajudavam a produzir, foram demonstrados como ordinários – ou seja, os alicerces ou armadilhas para convencer, narrativas realistas. Porém, objetos ordinários ou comuns tornavam-se assertivos quando eles apareciam nas telas de cinema 5 europeias. 2 Politicamente, os comunistas constituíam-se como os opositores mais expressivos, enquanto que, na intelectualidade, cabia aos pensadores ligados ao existencialismo similar posição, havendo considerável proximidade ideológica entre estes dois grupos. 3 GILDEA, Robert. France Since 1945. New York: Oxford University Press, 2002. p. 11. (Todas as traduções presentes nesta dissertação foram realizadas pelo autor.) 4 Ainda segundo Gildea, entre os anos de 1950 e 1970, o desemprego, na França, foi reduzido a uma vestigial taxa de 1-2% da população economicamente ativa. GILDEA, Robert. France Since 1945. New York: Oxford University Press, 2002. p. 101. 5 ROSS, Kristin. Fast Cars, Clean Bodies – Decolonization and The Reordering of French Culture. Massachusetts: The Massachusetts Institute of Technology Press, 1996. p. 38. 11 Desta maneira, dá-se na França, nos anos 1950, um processo de modernização o qual, em relação à recuperação econômica e sob os auspícios do propagandeado estilo de vida americano, busca a elevação do padrão de consumo tendo como modelo o distante e desejado American Way of Life. Assim sendo, o consumo figura como o contraponto às privações dos tempos de guerra. A análise realizada fundamenta-se na metodologia de História Comparada considerando as aproximações existentes entre os processos de consolidação de uma cultura juvenil nos Estados Unidos e na França, no período estudado. Segundo Marc Bloch, em um dos textos basilares da formação de uma metodologia comparada em História, “Por uma História comparada das sociedades europeias”6, no domínio dos historiadores, comparar é escolher, em um ou vários meios sociais diferentes, dois ou vários fenômenos que parecem, à primeira vista, apresentar certas analogias entre si, descrever as curvas da sua evolução, encontrar as semelhanças e as 7 diferenças e, na medida do possível, explicar umas e outras. Nesta abordagem, estudam-se casos contíguos tratando-se de sociedades contemporâneas e espacialmente próximas8, fato que, ainda segundo Bloch, implica realizarem-se considerações acerca das prováveis influências ocorridas entre ambos. A possibilidade de se abordar tais influências apenas colabora para o enriquecimento da análise proposta, permitindo um esforço explicativo do contexto, ultrapassando a mera descrição dos fatos. Referindo-se à comparação de sociedades contíguas, afirma José D‟Assunção Barros: A vantagem de comparar sociedades contíguas está precisamente em abrir a percepção do historiador para as influências mútuas, o que também o coloca em posição favorável para questionar falsas causas locais e esclarecer, por iluminação recíproca, as verdadeiras causas, interrelações 9 ou motivações internas de um fenômeno e as causas ou fatores externos. Como dito acima, os casos considerados denotam interesse pela concomitância com que desenvolveram processos similares de afirmação de uma cultura juvenil. Estes processos, observados internamente, explicitam suas relações 6 BLOCH, Marc. “Para uma História Comparada das Sociedades Europeias”. In: História e Historiadores. Lisboa: Teorema, 1998. 7 Ibid, pp. 120-121. 8 Apesar de Estados Unidos e França não possuírem territórios limítrofes, dividindo fronteiras, existindo o Oceano Atlântico entre as principais porções territoriais destas duas nações, considero-as espacialmente próximas diante das tecnologias de transporte e de informação existentes na década de 1950 que possibilitavam o rápido intercâmbio, não se configurando o citado oceano uma barreira que viesse a dificultar a troca comercial, ideológica ou cultural entre os citados países. 9 BARROS, José D’Assunção. “História Comparada: um novo modo de ver e fazer a História”. Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, V. 1, N. 1, 2007, pp. 1-30. 12 com os singulares contextos políticos atravessados por cada uma das respectivas nações no período: se, nos Estados Unidos, se observa uma radicalização do conservadorismo ancorado na constante presença do argumento anticomunista na retórica política cotidiana, a democracia francesa evidencia sua fragilidade na instabilidade política da 4ª República, bem como pela delicada situação econômica do país. Externamente, entretanto, ambos os casos inserem-se na conjuntura ideológica mundial caracterizada pela Guerra Fria, atores relevantes integrantes do mesmo bloco político-ideológico, proximidade esta em parte responsável pela influência mútua perceptível. Assim, para a melhor compreensão dos mesmos, a análise não pode permitir o favorecimento de um dos âmbitos, seja este o interno ou o externo, mas objetivamente buscar o equilíbrio na consideração destas realidades, em confluência com o citado por Barros. Harmonizando-se ao exposto por M. Bloch e J. Barros, Henri Sée, em seu tradicional texto de 1923, “Remarques sur l‟application de la méthode comparative a l‟histoire économique et sociale”10, escrito em defesa da utilização do método comparativo em História, afirma as possibilidades de se comparar no espaço e no tempo como as duas formas viáveis de comparação, sendo a primeira a mais segura e a mais precisa. Para Sée: Podemos, em uma determinada época, comparar o estado político, econômico e social das diversas regiões do mundo. Podemos ainda comparar as instituições de duas épocas diferentes. O primeiro 11 procedimento é certamente o mais seguro e o mais preciso. Percebe-se, e apesar de o termo „influência‟ não figurar destacadamente no texto do autor, que as alegadas maior segurança e precisão da comparação no espaço, frente à comparação no tempo, devem-se ao acréscimo obtido na probabilidade de se observarem conjuntamente fenômenos análogos, ocorridos em um mesmo período, ou em períodos bastante próximos, em distintas regiões. Desta maneira, ao propor a escolha de dois casos nacionais contemporâneos, a utilização do método comparado permitirá a consideração aproximada das características percebidas em cada caso particular, possibilitando o 10 SÉE, Henri. “Remarques sur l’application de la méthod comparative à l’Histoire”. Revue de Sinthese Historique. Tomo XXXVI, 1923. Apesar de, como salientado pelo próprio título do texto, Henri Sée considerar a aplicabilidade do uso do método comparado especialmente nos âmbitos econômico e social, suas assertivas são igualmente pertinentes para outros campos do fazer historiográfico. Seu texto, não obstante ter sido escrito no início do século XX, continua a se constituir enquanto uma referência importante no desenvolvimento metodológico da História Comparada. 11 Ibid, p.38. 13 esclarecimento de um processo tendo em mente observações realizadas sobre o outro, dinamismo este que irá colaborar para o esforço de explicação que deve consistir um dos objetivos de qualquer trabalho historiográfico.12 Sendo um exame no qual é levado em consideração um restrito número de casos, dois apenas, constitui-se uma pesquisa qualitativa, variável-orientada, se considerarmos o exposto por Serkan Gül13. Este autor explicita duas possibilidades diversas de comparação, a saber, a caso-orientada, quantitativa e concernente a abordagens transnacionais, e a variável-orientada, qualitativa e referente a abordagens históricas. Citando Charles Ragin, Gül salienta a importância do equilíbrio entre estas duas abordagens para a consecução de uma boa pesquisa comparada: “Uma boa ciência social comparativa equilibra a ênfase em casos com a ênfase em variáveis”.14 Entretanto, pelos motivos acima já expostos, o objeto da pesquisa em pauta será mais bem atendido considerando-se apenas os dois casos selecionados. Assim, o exame privilegiará a abordagem variável-orientada, sem prejuízo para a satisfatória visualização dos problemas levantados. Por se tratar de uma comparação detida sobre dois casos, as singularidades de cada um destes tornam-se o principal ponto de atenção do exame. Não se buscam grandes generalizações ou comprovação de hipóteses ou modelos teóricos pela observação de determinadas constantes, mas sim acercar intensivamente as duas unidades espaciais selecionadas, colaborando para o entendimento de ambos os contextos sem correr o risco de desenvolver generalizações que o estudo causal poderia vir a provocar. Por outro lado, a ocorrência de um descritivismo vazio de ambos os casos, além do perigo de se encontrar as causas de um fenômeno naquilo que lhe é posterior, devem ser prudentemente evitados. Anteriormente, foi salientada a importância da consideração das prováveis interinfluências culturais nos Estados Unidos e na França nos anos 1950, atentando para as peculiaridades de cada contexto nacional e, de mesmo modo, para as proximidades existentes entre ambas as nações no campo político internacional. A 12 Segundo Julio Aróstegui: “Um livro de história tem de descrever -relatar- e tem de explicar -argumentar-. Um livro de história é, em último caso, um discurso submetido à lógica da comunicação, discurso que é descritivo e argumentativo. A “argumentação” é o que diferencia tal discurso do relato.” ARÓSTEGUI, Julio. A Pesquisa Histórica – teoria e método. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2006, p.485. 13 GÜL, Serkan. “Method and Practice in Comparative History”. Karadeniz Arastirmalari, v. 26, 2010, pp. 143158. 14 RAGIN, Charles C. “Introduction: the problem of balancing discourse on cases and variables in comparative social sciences”. Issues and Alternatives in Comparative Social Research. Leiden: E. J. Brill, 1991. Apud: GÜL, Serkan. “Method and Practice in Comparative History”. Karadeniz Arastirmalari, v. 26, 2010. 14 questão da ocorrência de interinfluências, que vem a relativizar a consideração dos casos como realidades distintas, tomadas individualmente em uma postura analítica rígida, dialoga com as discussões referentes aos limites inerentes à metodologia de História Comparada e com as possíveis vantagens da adoção de certos elementos da metodologia de História Cruzada (Histoire Croisée). Jürgen Kocka, no artigo “Comparison and Beyond”15, apresenta alguns argumentos relacionados à utilização conjunta das abordagens de História Comparada e de Historia Cruzada. Segundo o autor, as abordagens transnacionais em história, em seus diversos enfoques (História Global, História Mundial, comparações internacionais e interculturais) oferecem notada atenção às interinfluências, em especial quando os trabalhos são voltados a dimensões culturais. Para Kocka: De acordo com este ponto de vista, se está muito menos interessado nas similaridades e diferenças entre, digamos, a Europa e o Mundo Árabe, do que nos processos de influência mútua, nas percepções recíprocas ou assimétricas, nos processos cruzados de se constituírem uns aos outros. De certa forma, a história de ambos os lados é vista como uma 16 ao invés de ser considerada como duas unidades de comparação. No trecho destacado, parecem claras as incongruências existentes entre as metodologias de História Comparada e História Cruzada, especificamente a maneira de cada uma destas se referir ao tratamento dos casos em consideração: enquanto a História Comparada tende a vê-los em esferas individuais de análise, a História Cruzada privilegia as possíveis influências recíprocas, conexões que permitiriam o acesso aprofundado às variáveis presentes. Entretanto, segundo o mesmo autor, estas aparentes contradições não inviabilizam a utilização acordada destas metodologias no fazer historiográfico. Afirma Kocka: (...) [historiadores comparativistas] podem e devem incorporar elementos da abordagem das “Histórias Cruzadas” no esquema comparativo de sua pesquisa. Certamente, o ato de comparação pressupõe a separação analítica dos casos a serem comparados. Entretanto, isto não significa ignorar ou negligenciar as inter-relações entre estes casos (se e na extensão de que estas existam). Ao invés disto, tais inter-relações devem se tornar parte do esquema comparativo através de sua análise como fatores que levaram a similaridades ou diferenças, convergências ou divergências 17 entre os casos que se compara. Em confluência às asserções de Jürgen Kocka, Michael Werner e Bénédicte Zimmermann, no artigo “Beyond comparison: Histoire Croisée and the challenge of 15 KOCKA, Jürgen. “Comparison and Beyond”. History and Theory, v.12, n.1, 2003. Ibid, p. 42. 17 Ibid, p.44. 16 15 reflexivity”18, assim informam sobre a História Cruzada e a diferença desta para com o método comparado: Histoire Croisée acaba com a perspectiva unidimensional que simplifica e homogeneíza em favor de uma abordagem multidimensional que admite a pluralidade e as complexas configurações que resultam disso. De acordo, entidades e objetos de pesquisa não são meramente considerados em relação um ao outro, mas também através um do outro, em termos de relacionamentos, interações e circulação. O princípio dinâmico e ativo da intersecção é fundamental em contraste ao conceito 19 estático da abordagem comparativa que tende a imobilizar os objetos. Assim, tendo em vista as especificidades do objeto da pesquisa, considero procedentes as afirmações de Kocka, Werner e Zimmermann naquilo que tange à observância dos possíveis processos de interinfluência ocorridos entre as duas unidades de comparação destacadas. Devido ao recorte temporal compreendido para os dois casos ser o mesmo, à proximidade espacial e, ainda, à convergência político-ideológica das nações consideradas no contexto internacional do período, a utilização de elementos metodológicos oriundos da História Cruzada, combinados com a análise alicerçada na metodologia própria da História Comparada, colabora para o entendimento das formas através das quais ocorreu, nos Estados Unidos e na França, a absorção das tensões culturais da juventude, que se fizeram presentes na década de 1950. Como inicialmente apontado, a análise aqui realizada privilegia uma parcela específica dentro das sociedades americana e francesa do período citado, voltandose à faixa etária juvenil. Assim procedeu-se por considerar haver sido neste grupo populacional que se desenvolveram as maiores transformações sociais e culturais dos anos posteriores ao segundo conflito mundial, notadamente a partir dos primeiros anos da década de 1950. Erik Erikson talvez seja o estudioso que mais diligentemente refletiu sobre a posição social de destaque vivida pela juventude a partir do fim da 2ª Guerra Mundial. Em seu trabalho Infância e Sociedade, lançado em 1950, e em outros textos posteriores20, Erikson fundamentou sua teoria do desenvolvimento humano 18 WERNER, Michael; ZIMMERMANN, Bénédicte. “Beyond comparison: Histoire Croisée and the challenge of reflexivity”. History and Theory, n.45, fevereiro 2006. pp.30-50. 19 Ibid, p.38. 20 Cito os escritos: “Ego Development and Historical Change”(1946); “Growth and Crises of the ‘Healthy’ Personality” (1950); “On the Sense of Inner Identity” (1951); Wholeness and Totality” (1954); “The Syndrome of Identity Confunsion” (1955); “Ego Identity and Psychosocial Moratorium” (1956); “The Problem of Ego Identity” (1956); “Youth: Fidelity and Diversity” (1962); “The Concept of Identity in Race Relations” (1966) e “Identity, Youth and Crisis” (1968). 16 baseada na noção de oito fases ou idades de desenvolvimento ao longo das quais o indivíduo teria de, num processo contínuo, estruturar sua identidade em relação ao seu eu interior, àqueles que o cercam em seu círculo imediato e, a partir da adolescência, em relação às tensões oriundas de seu meio social ampliado. Infância e Sociedade consiste no primeiro trabalho onde a palavra “identidade” é pensada como a busca individual pela compreensão da singularidade pessoal do ser, sendo a adolescência o estágio crucial de construção da identidade. Para Erikson: (...) em termos psicológicos, a formação da identidade emprega um processo de reflexão e observação simultâneas, um processo que ocorre em todos os níveis do funcionamento mental, pelo qual o indivíduo se julga a si próprio à luz daquilo que percebe ser a maneira como os outros o julgam, em comparação com eles próprios e com uma tipologia que é significativa para eles; enquanto que ele julga a maneira como eles o julgam, à luz do modo como se percebe a si próprio em comparação com os demais e com os tipos que se tornaram importante para ele. Este processo é, felizmente (e necessariamente), em sua maior parte, inconsciente – exceto quando as condições internas e as circunstâncias externas se combinam para agravar uma dolorosa ou eufórica “consciência de 21 identidade”. Segundo Erikson, que cruza sua reflexão dos anseios psicológicos do indivíduo com a sociedade e o contexto histórico que o cerca, os progressos tecnológicos colaboraram por ampliar o intervalo de tempo compreendido entre o ingresso da criança na vida escolar e o acesso final do jovem ao trabalho especializado. Desta forma, a adolescência se configurou como uma espécie de modo de vida entre a infância e a idade adulta, o que propiciou o surgimento de uma subcultura adolescente22 dentro da cultura geral da sociedade. Apesar de o autor centrar sua observação na sociedade americana do pós-guerra, percebe a pertinência da aplicação de suas ponderações para as demais sociedades contemporâneas, ao menos no ocidente, onde se observava um similar processo de desenvolvimento tecnológico. Assim, aquilo que deveria ser uma inicial ou transitória fase de formação de identidade, pode se constituir como uma formação final da identidade do indivíduo. Entretanto, para Erikson “a identidade nunca é „estabelecida‟ como uma „realização‟ na forma de uma armadura da personalidade 21 ERIKSON. Erik H. Identidade: Juventude e Crise. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972. p. 21. 22 Erikson utiliza-se constantemente do termo “subcultura” para se referir ao conjunto de valores e comportamentos juvenis, reservando o termo “cultura” às manifestações de toda uma determinada sociedade. No texto deste autor, a cultura jovem figura, portanto, como um recorte dentro de uma realidade cultural maior, da qual faz parte, apesar de se diferenciar desta. 17 ou de qualquer coisa estática e imutável”, sendo o período da adolescência o momento de crise normativa. O que diferenciava o jovem da década de 1950 das gerações anteriores era o fato de que os primeiros haviam adquirido consciência de viver uma crise de identidade, segundo Erikson, através da popularização dos próprios avanços da ciência psicanalítica. A originalidade da consciência do jovem em viver uma crise implicava uma nova forma de experimentação juvenil, onde assumia uma postura ativa: o jovem já não parece mais “sofrer” a crise de identidade, mas fazê-la acontecer. De tal modo, a subcultura adolescente configura-se como a demonstração ruidosamente declarada de não conformidade com o modelo parental. Os mais variados detalhes comportamentais da juventude, ao menos da parcela juvenil que rompe com os padrões estabelecidos figuram, portanto, como a afirmação do inconformismo com o modelo paterno e a assimilação identitária e por fidelidade à fraternidade com o grupo etário. Desrespeito à autoridade tradicional, dos pais ou do Estado; formas singulares de vestimenta; maneirismos; consumo de bens culturais específicos; comportamento social, amoroso e sexual divergente dos modelos estabelecidos como aceitáveis ou saudáveis; tendência mais ou menos acentuada ao crime e a distintas formas de delinquência são elementos que configuram o comportamento adolescente como visto e debatido na década de 195023. A forma como a sociedade absorve, gesta e caracteriza a cultura juvenil nos anos 1950 baseia-se, para Erikson, numa perspectiva negativa que acaba por afirmar os papéis experimentalmente erigidos pelos jovens. Enquanto os meios de comunicação de massa representam os adolescentes, segundo ele, como seres de outro planeta, assumindo a posição de mediadores entre as gerações, a afirmação legal e jurídica da delinquência juvenil pode reiterar um traço de identidade que se consolida nos anos da segunda década de vida do indivíduo, tendo reflexos desastrosos. De qualquer forma, a recusa a se enquadrar nos moldes estabelecidos dialoga estreitamente, para este estudioso, com o contexto político-econômico do 23 Saliento, como o próprio Erik Erikson o fez em seus textos, ser errônea, redutora e ingênua qualquer simplificação dos jovens a modelos estereotipados de conduta. Entretanto, apesar de haverem jovens perfeitamente adequados aos modelos sociais aceitos no período, estes não figuram com frequência nas representações juvenis do momento, tampouco nas discussões referentes à juventude, cabendo destaque aos jovens que divergiam de tais modelos. Assim considerado, estes últimos configuram-se enquanto os protagonistas das análises realizadas na presente dissertação. 18 período, onde se observa um vertiginoso desenvolvimento tecnológico, sendo o rebelde, devido ao seu inconformismo, salutar para o enriquecimento humano, assegurando a evolução psicossocial. Em um trabalho muito mais recente, publicado há poucos anos, Jon Savage em, A Criação da Juventude: como o conceito de teenage revolucionou o século XX24, nos apresenta uma abordagem que vai de fins do século XIX ao ano de 1945, na qual procura demonstrar como, ao longo deste período, grupos e movimentos juvenis apresentaram a noção de adolescente, especialmente na Inglaterra, na Alemanha e nos Estados Unidos. A partir daí, o adolescente começaria a ser percebido enquanto indivíduo portador de demandas específicas. É na década de 1940, no imediato pós-guerra, nos Estados Unidos que, para este autor, o conceito teen é cunhado através de uma acepção eminentemente publicitária. Segundo Savage, (...) no início dos anos 40, os adolescentes americanos tinham conseguido criar um mundo muito distinto tanto dos adultos quanto das crianças. (...) Já definidos como um ideal e um mercado, os adolescentes tinham começado a afirmar publicamente sua independência, uma 25 conquista que havia apanhado governo e indústria de surpresa. Savage nos informa que a origem do termo teenage residia na flexão de “ten”, o décimo algarismo na língua inglesa que, pelo Concise Oxford Dictionary, era “acrescentado aos numerais de três a nove para formar os nomes daqueles de 13 a 19” (thirteen, fourteen, fifteen, sixteen, seventeen, eighteen, nineteen)”, sendo seventeen considerada “a idade apoteótica da adolescência: suficiente para a autodeterminação, mas ainda não uma faixa adulta.” Refletindo sobre a consecução do termo, afirma o autor: Dar nome a alguma coisa às vezes ajuda a lhe conferir existência: adotado tanto pelos profissionais do marketing para jovens como pelos próprios jovens, o nome teenage era claro, simples e dizia o que significava. Tratava-se da Era – o período distinto social, cultural e economicamente – 26 dos teen. Segundo William Manchester e Leerom Medovoi27, a palavra teenager teve sua primeira aparição em um artigo de autoria de Elliot E. Cohen, publicado no início de janeiro de 1945, na New York Times Magazine. O artigo, intitulado “A Teen-Age 24 SAVAGE, Jon. A Criação da Juventude: como o conceito de teenage revolucionou o século XX. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 25 Ibid, p. 484. 26 Ibid, p. 485 27 Cf. MEDOVOI, Leerom. Rebels – Youth and the Cold War Origins of Identity. Durham, London: Duke University Press, 2005. 19 Bill of Rights”, pretendia esclarecer os fundamentos que configuravam os direitos básicos dos adolescentes, devendo ser cuidadosamente observados pelos pais. Segundo Jon Savage, os dez tópicos sobre os quais se estruturava a Carta evocavam deliberadamente a Constituição Americana: I. O direito de deixar a infância ser esquecida. II. O direito de se “manifestar” a respeito de sua própria vida. III. O direito de cometer erros e descobrir por si mesmo. IV. O direito de ter regras explicadas. Não impostas. V. O direito de se divertir e ter companheiros. VI. O direito de questionar ideias. VII. O direito de estar na idade romântica. VIII. O direito de ter chances e oportunidades justas. IX. O direito de lutar pela sua própria filosofia de vida. X. O direito de ter ajuda profissional sempre que necessário. Os jovens haviam sido, portanto, inseridos ao sistema de vida americano. Apesar de não haver qualquer relação identitária baseada em classe, etnia ou religião, a coesão de grupo era assegurada pelo reconhecimento de se pertencer a uma mesma faixa etária. Desta forma, e ainda segundo Savage, eles “pareciam sintetizar os ideais democráticos da América”. E, da mesma maneira que a guerra havia prenunciado a libertação de grupos antes socialmente alijados (mulheres trabalhadoras, negros e americanos de origem latina), os adolescentes passam a se reconhecer como parte integrante deste movimento emancipatório. Conclui Savage: Os Aliados venceram a guerra exatamente no momento em que o mais recente produto da América estava saindo da linha de produção. Definida durante 1944 e 1945, a teenage fora pesquisada e desenvolvida por uns bons cinquenta anos, o período que marcou a ascensão da América ao poder global. A divulgação pós-guerra de valores americanos teria como ponta de lança a ideia do teenager. Este novo tipo era a combinação psíquica perfeita para a época: vivendo no agora, buscando o prazer, faminto por produtos, personificador da nova sociedade global onde a inclusão social seria concedida pelo poder de compra. O futuro seria 28 teenage. Savage se furta, no entanto, a dar prosseguimento ao seu exame a partir do fim do conflito mundial. Assim sendo, a década de concretização da cultura jovem, os anos 1950, não figura em seu texto. De qualquer forma, ele brevemente cita o 28 SAVAGE, Jon. A Criação da Juventude: como o conceito de teenage revolucionou o século XX. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p. 498. 20 desenrolar da cultura jovem na geopolítica que se instauraria naquela década: arrasada pelo conflito, a Europa submete-se às exigências impostas pelos EUA em troca do necessário apoio financeiro corporificado pelo Plano Marshall. Atrelada à ajuda financeira, percebe-se a entrada massiva da influência cultural da nação americana através dos bens de consumo e culturais vendidos como constituintes do American Way of Life. Como parte integrante deste modo de vida, os adolescentes figuravam como um exemplo de não conformismo, autonomia e liberdade aos seus congêneres europeus que, dentre as ruínas da guerra e as privações, buscariam compreender sua identidade, individualidade e juventude. Deste modo, considero que nos EUA da década de 1950 já se encontra consolidado o conceito de adolescência enquanto aglutinador de um determinado conjunto de costumes e valores, reunião de elementos culturais característicos de uma faixa etária delimitada entre o fim da infância e o início da vida adulta independente29. Suas singularidades seriam absorvidas pela cultura midiática de massas, em um processo de mercantilização que buscava se adaptar aos novos questionamentos surgidos na sociedade americana dos anos 1950. No caso francês, a eclosão da cultura jovem nesta década se dá através do surgimento tanto de um público juvenil, ansioso por consumir produtos culturais que dialogassem com suas idiossincrasias, quanto de produções artísticas, notadamente no campo cinematográfico e fonográfico, materializadas por jovens realizadores os quais, em contato direto com a cultura jovem emanada do outro lado do Atlântico, procuram dar vazão às tensões provenientes desta parcela populacional. Avaliando esta peculiaridade, da absorção da cultura jovem pela indústria cultural a partir desta época, busco viabilizar o presente trabalho recorrendo ao exame de fontes cinematográficas representativas dos anos 1950. Assim, privilegio certos títulos integrantes da produção hollywoodiana e francesa, por dialogarem estreitamente com os diferentes matizes sociais, culturais, ideológicos, econômicos e políticos das nações nas quais tais filmes foram realizados. O cinema, após haver atravessado décadas de desprezo por parte de estudiosos das mais distintas áreas, apontado como entretenimento barato, de pouco, quando não nenhum valor artístico ou cultural, começaria a ser integrado ao conjunto de fontes históricas caras ao trabalho do historiador durante a década de 29 O surgimento nos Estados Unidos da revista Seventeen, em setembro de 1944, publicação voltada especialmente ao público jovem, serve igualmente de indício do processo de cristalização do conceito de teen. 21 1960, por influência da corrente historiográfica francesa da Nova História. Esta mudança de status deveu-se, em especial, às iniciativas do historiador Marc Ferro. No cerne de seu pensamento, desenvolvido numa série de artigos e livros dos quais “O Filme: uma contra-análise da sociedade?”30 e Cinema e História31 ocupam posição de destaque, Ferro defende que o cinema, enquanto fonte histórica, ofereceria vantagens de utilização sobre as outras espécies de documentos já consolidados, em especial os textuais, por não se acomodar tão facilmente às censuras sociais as quais os documentos estão comumente submetidos. Diante da complexidade de sua linguagem, o cinema escaparia às tensões dos diversos segmentos da sociedade, veiculando elementos que nem os grupos de poder constituídos, nem aqueles envolvidos na produção apreenderiam. Desta forma, Ferro nos apresenta a potencialidade do cinema em empreender uma contraanálise da sociedade, operando a análise historiográfica a partir de dicotomias como “aparente - latente” ou “visível - não visível”. Segundo o autor: A Câmera revela o funcionamento real daquela [sociedade], diz mais sobre cada um do que queria mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira as máscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus “lapsus”. (…) A ideia de que um gesto poderia ser uma frase, esse olhar, um longo discurso, é totalmente insuportável: significaria que a imagem, as imagens (…) constituem a matéria de uma outra história que 32 não a História, uma contra-análise da sociedade. Para Ferro, apesar das intenções e posicionamentos dos realizadores, a realidade acaba por transparecer nas obras cinematográficas. O comprometimento com o “real”, evidenciado no trecho acima, demonstra o alto grau de importância dedicado à “veracidade” e à “autenticidade” da fonte na proposta do autor. Assim, seu modelo de análise busca estratégias que assegurariam a autenticidade do filme enquanto registro histórico, logo, enquanto fonte. As assertivas de Ferro, apesar do mérito de abordarem o uso propriamente metodológico das fontes fílmicas, foram submetidas a críticas posteriores. Para Eduardo Morettin, no artigo “O Cinema Como Fonte Histórica na Obra de Marc Ferro”33, as dicotomias analíticas salientadas pelo historiador francês desconsiderariam o caráter polissêmico da imagem, com o demérito de ignorar sua 30 FERRO, M. “O Filme: uma contra-análise da sociedade?”. In: LE GOFF, J.; NORA, P. História: Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. 31 Idem. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 32 FERRO, M. “O Filme: uma contra-análise da sociedade?”. In: LE GOFF, J.; NORA, P. História: Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 202. 33 MORETTIN, E. “O Cinema Como Fonte Histórica na Obra de Marc Ferro”. In: CAPELATO, Maria Helena et alii. História e Cinema – Dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007. 22 própria estrutura interna. Na argumentação de Ferro, o conhecimento histórico de um determinado período faz-se crucial para a análise de um filme. Assim, os questionamentos que dirigem a análise não partem de elementos intrínsecos à fonte, mas do estado geral do saber sobre o período histórico de produção daquela película. Esta questão leva Morettin a concluir que a posição de Ferro sustenta a ideia de complementaridade entre os diversos tipos de fonte, com o perigo de “uma visão teleológica do processo histórico [amarrar] a leitura de filmes produzidos em determinada época a um fato que lhes é posterior”.34 Diante destas considerações, Morettin afirma: (…) para que possamos recuperar o significado de uma obra cinematográfica, as questões que presidem o seu exame devem emergir de sua própria análise. (…) trata-se de desvendar os projetos ideológicos com os quais a obra dialoga e necessariamente trava contato, sem perder de 35 vista a sua singularidade dentro do seu contexto. Aproximando-se das críticas apresentadas por Morettin, Marcos Napolitano, em “Fontes Audiovisuais: A História Depois do Papel”36, defende que as questões referentes à autenticidade e à objetividade, basilares na posição de Ferro, não possuem qualquer importância, uma vez que as manipulações não seriam de modo algum evitáveis. Partindo de outra perspectiva, sugere que a análise deve fundar-se na questão: “o que um filme diz e como o diz?”. Citando Pierre Sorlin, e as considerações deste para uma análise sócio-histórica do filme, Napolitano explicita que a abordagem deve se perguntar: (...) como o filme representa (…) as hierarquias e lugares na sociedade representada? Quais os tipos de conflitos sociais descritos no roteiro? Quais as maneiras como aparecem a organização social, as 37 hierarquias e instituições sociais. Assim, salienta que o filme não deve ser analisado enquanto “espelho” da realidade, nem como “veículo neutro das ideias do diretor”, e sim enquanto encenação de uma sociedade, através de elementos distintos, nem sempre político ou ideologicamente determinado. 34 MORETTIN, E. “O Cinema Como Fonte Histórica na Obra de Marc Ferro”. In: CAPELATO, Maria Helena et alii. História e Cinema – Dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007. p. 59. 35 Ibid, p. 63. 36 NAPOLITANO, M. “Fontes Audiovisuais: A História Depois do Papel”. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. pp.235-289. 37 Ibid, p. 246. 23 Por seu turno, Michèle Lagny, no artigo “O Cinema como Fonte de História”38, realiza algumas observações quanto à utilização do cinema no trabalho do historiador, tecendo reflexões referentes às aproximações entre a linguagem cinematográfica e a escrita historiográfica. Para Lagny, apesar de o cinema ser pensado enquanto um produto comercializável e, em geral, não almejar o estatuto de documento histórico, assume esta função uma vez que conserva vestígios do tempo e do lugar no qual cada produção é realizada. Afastando-se da concepção de Ferro, a autora afirma que as imagens cinematográficas evidenciam muito mais sobre a percepção que se tem da realidade do que sobre a realidade propriamente dita. Assim, a utilização de fontes fílmicas seria notadamente profícua no que se refere às reflexões concernentes à noção de representação. Igualmente, o cinema possibilitaria a análise privilegiada do imaginário social, bem como da noção de identidade cultural. Em paralelo, considerando o caráter de produto cultural de massa das fontes utilizadas, é impositiva a apreciação de certos trabalhos já clássicos empreendidos por integrantes da chamada Escola de Frankfurt. Apesar de produzidos em fins dos anos de 1930, início da década de 1940, “A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica”39, de Walter Benjamin, e “A Indústria Cultural: o Iluminismo como Mistificação de Massa”40, de Max Horkheimer e Theodor Adorno, problematizam de forma particular questões referentes à formação de uma cultura midiática de massa e ao consumo social de tais produtos, dialogando com a estrutura de produção cinematográfica. Enquanto Benjamin mostra-se contrário à interpretação das massas como passivamente submetidas às estratégias de cooptação da ideologia capitalista dominante, Horkheimer e Adorno implementam uma análise notadamente pessimista, marcada pela certeza da vitimização inconsciente do homem comum diante de um maquinário cultural que lhe impede o exercício de qualquer participação ativa de interpretação de sua realidade social. As reflexões realizadas 38 LAGNY, Michèle. “O Cinema como Fonte de História”. In: NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSON, Kristian. Cinematógrafo: um olhar sobre a História. Salvador, São Paulo: EDUFBA/Editora UNESP, 2009. 39 BENJAMIN, Walter. “A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica”. In: LIMA, L. C. (org.) Teoria da Cultura de Massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. 40 HORKHEIMER, Max.; ADORNO, Theodor. “A Indústria Cultural: o Iluminismo como Mistificação de Massa”. In: LIMA, L. C. (org.) Teoria da Cultura de Massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. 24 por estes autores dialogam com o contexto de mercantilização das demandas culturais operada no período analisado. Por fim, porém de substancial importância para a pesquisa proposta, saliento a observação levantada por Wagner Pereira alusiva ao trabalho de análise comparativa de fontes cinematográficas em contextos nacionais distintos. Segundo o autor, “(...) uma mesma imagem ou ideia, que circula e é veiculada em vários países, apresenta significado específico quando reproduzida em contexto histórico distinto.”41 O diálogo desta afirmação com o objeto da presente dissertação evidencia-se através da similaridade dos elementos acionados nas obras cinematográficas dos dois contextos em estima, notando-se as singularidades de cada realidade nacional. Desta forma, considerando-se as asserções teóricas oferecidas por Marcos Napolitano, Eduardo Morettin, Pierre Sorlin, Michèle Lagny e Wagner Pereira, além dos textos clássicos acima citados, o presente trabalho implementa a análise de obras cinematográficas selecionadas tendo como horizonte a inserção destas no contexto sociocultural do período de produção, nas sociedades americana e francesa. Busca-se, através deste movimento, esclarecer alguns aspectos referentes à representação midiática da cultura jovem dos primeiros anos da década de 1950. De tal modo, no primeiro capítulo, apresenta-se uma reflexão sobre as maneiras através das quais o negócio da produção cinematográfica de Estados Unidos e França voltou-se à juventude enquanto tema. Para tanto, é traçado um breve panorama das indústrias do cinema no pós-Segunda Guerra, buscando evidenciar questões de ordem econômica, política e sociocultural que levaram os produtores e estúdios de ambas as nações a elegerem os jovens como protagonistas de seus enredos. Deste modo, examinam-se as obras “Sementes da Violência” (Blackboard jungle, dir.: Richard Brooks – 1955) e “Os incompreendidos” (Les quatre cents coups, dir.: François Truffaut – 1959) como películas significativas da produção destes países observando-se o diálogo entre estas obras e o contexto social no qual foram produzidas. No segundo capítulo, realizam-se considerações referentes à tomada de consciência do processo de afirmação da cultura jovem por parte das sociedades dos países em apreço, pretendendo-se sublinhar as ações governamentais 41 PEREIRA. Wagner Pinheiro. O Poder das Imagens: cinema e política nos governos de Adolf Hitler e de Franklin D. Roosevelt (1933 – 1945). São Paulo: Alameda, 2012. p. 33. 25 inclinadas ao problema da delinquência juvenil, bem como os esforços de identificação e caracterização da juventude da geração dos anos 1950. Neste sentido, elegem-se para análise os títulos “Juventude transviada” (Rebel without a cause, dir.: Nicholas Ray – 1955) e “Acossado” (À bout de souffle, dir.: Jean-Luc Godard – 1960) buscando, ainda, esclarecer a absorção das demandas juvenis então em ascensão pela indústria do cinema. No terceiro e último capítulo, problematiza-se a representação juvenil feminina, especificamente. Apesar da juventude do período tomar forma nas telas, especialmente, através de personagens masculinos, a figura feminina mereceu destaque, sendo caracterizada sobre elementos arquetípicos sensivelmente distintos daqueles merecidos por seus congêneres do sexo masculino. Dito isto, privilegiamse as películas “Como agarrar um milionário” (How to get a milionnaire, dir.: Jean Negulesco – 1953) e “E Deus criou a mulher” (Et Dieu créa... la femme, dir.: Roger Vadim – 1956). Pretende-se, na observação destas obras, salientar a caracterização da jovem mulher através da sexualidade e do consumo, relacionando-se esta forma de representação com a atmosfera de liberalização feminina que começava a fazerse presente na referida década. É importante salientar que, no presente trabalho, os termos “jovem”, “juventude” e “adolescente” são utilizados, na maioria das vezes, como sinônimos, não implicando qualquer diferenciação semântica entre os mesmos. Não se intenta, igualmente, uma conceitualização destes termos própria ao presente texto, empregando-os conforme as acepções correntes do idioma português. Entretanto, “jovem” possibilitará, em algumas passagens, uma significação mais ampliada, atendendo a indivíduos ou personagens fora do estrito recorte etário da adolescência, apesar de ainda próximos a esta faixa de idade. Apesar de as produções cinematográficas privilegiadas pertencerem a escolas de cinema reconhecidas tanto pelos estudiosos da área quanto pelos apreciadores da sétima arte, o leitor deve estar atento ao fato de que este trabalho não se trata de um ensaio sobre a história do cinema e, portanto, não será realizada uma análise detida e aprofundada nem do Cinema Clássico hollywoodiano, tampouco do movimento da Nouvelle Vague. Todavia, algumas observações pontuais sobre as indústrias do cinema, bem como referentes às características das citadas escolas estão presentes ao longo do texto, quando se configuraram enquanto informações significativas para determinadas análises e reflexões 26 concernentes às películas e suas aproximações aos contextos de produção e do fazer cinematográfico. Finalmente, e apesar da contínua diligência para se evitar qualquer espécie de desequilíbrio entre as duas unidades de comparação, existia o risco de ocorrer uma pequena diferenciação na profundidade com a qual era realizada a abordagem das conjunturas americana e francesa, em primeiro lugar, devido à própria natureza das fontes, uma vez que o movimento do cinema jovem francês mereceu, ao longo das décadas, destaque consideravelmente maior por parte das publicações especializadas e, em segundo lugar, ao debate social suscitado no período, mais rico e com substanciais desdobramentos nos Estados Unidos, se comparado à França. De qualquer forma, o trabalho de pesquisa e de escrita buscou minimizar os desequilíbrios suscitados, optando-se, no formato final do texto, por uma estruturação dos capítulos que permitiu igual destaque para ambos os casos nacionais, com o exame de duas obras cinematográficas, uma de cada país, por capítulo, precedidos e seguidos de análises comparativas dos contextos de produção e das representações formuladas nas respectivas obras. Portanto, voltando-se o texto à análise de filmes representativos dos anos de 1950, produzidos nos Estados Unidos e na França, oferece-se ao leitor um meio de adentrar no processo de consolidação da juventude, no contexto duplamente angustiante de ser jovem e de viver diante dos perigos, reais e imaginários, dos primeiros anos da Guerra Fria. Ruidosa e veloz, a cultura jovem fez-se notar por sua propensão à midiatização e, desta forma, nada mais adequado que abordá-la através do cinema, meio que tão prontamente a absorveu e a gestou, construindo algumas das mais duráveis representações da juventude. 27 1 AS JUVENTUDES AMERICANA E FRANCESA NAS INDÚSTRIAS DO CINEMA Os anos de 1950 são costumeiramente caracterizados, dentre outros fatores, como a década na qual a cultura jovem conquista seu espaço. A partir daquele momento, um grupo social demarcado por um elemento biológico, o pertencimento a uma faixa etária, consolida-se como uma realidade não apenas sociocultural, porém igualmente, econômica. Fundamentado, principalmente, no fato de seus membros gozarem dos anos de adolescência, esse considerável grupo transcende, ao menos parcialmente, questões usualmente presentes nas clivagens de outros recortes sociais, estabelecidos através das distinções de classe, de raça, de religiosidade, apenas para citar alguns aspectos. Cristalizando-se primeiramente nos Estados Unidos, o teen caracteriza, assim, um conjunto de padrões comportamentais compartilhados por jovens de variadas origens étnicas, de distintas classes sociais, porém relacionados pela forma de interação e consumo de uma cultura juvenil em ascensão, que não tardaria a se fazer presente em outras nações do globo. Essa sensacional constituição da juventude como uma parcela independente dentro do corpo social, ciosa de demandas específicas, não se faz sem consequências. Portadora de um novo código de conduta baseado na liberdade de ação do indivíduo, a cultura jovem é combatida pelos setores sociais mais conservadores. Tendo-se em vista as duas sociedades examinadas, ambas percebem a consolidação da cultura jovem na década em questão. Enquanto que nos Estados Unidos o elemento jovem desponta já em meados da década de 1940, aumentando gradualmente sua presença no cotidiano nacional, até eclodir em meados da década seguinte, na França, a compreensão de que a parcela juvenil da população alcançara um nível jamais visto de questionamento e inquietação ocorre em meados dos anos de 1950. Estas duas sociedades começam, então, a refletir sobre as maneiras através das quais os jovens estavam ingressando ativamente no cotidiano dos respectivos contextos nacionais. Caracterizada pela ansiedade, a cultura juvenil é tida como libertária, hedonista, fútil, distante das preocupações políticas nacionais, permissiva quanto aos padrões comportamentais, em especial naquilo que concerne à sexualidade e desmanteladora dos arquétipos sociais vigentes. Logo, na continuidade desta perspectiva de observação, a cultura jovem passa a ser caracterizada, principalmente, pela rebeldia despropositada, a realização de atos 28 violentos numa postura de gratuita oposição aos valores tradicionais destas sociedades. Neste contexto, a delinquência juvenil figura como um problema social preocupante, tanto para americanos, quanto para franceses, constituindo-se como um aspecto integrante do imaginário referente aos jovens dos anos 1950. Se nos Estados Unidos, a recorrência de episódios relativos à formação de grupos de jovens para a prática de atos de violência leva o Senado, em 1954, a constituir um subcomitê para avaliar a situação, na França o surgimento, nos anos de 1958 e 1959, de grupos juvenis denominados les blousons noirs (os blusões negros) que, armados de correntes de bicicletas, atacavam pedestres e turistas, ocasionando a prisão de dezenas de jovens, faz com que o jornal Le Monde qualifique o verão de 1959 como “o verão dos blousons noirs”.42 Diante destes acontecimentos e da atmosfera de materialização de uma cultura representativa da juventude através da qual o peso deste contingente torna-se presente, a delinquência juvenil assume um notável potencial midiático. Será, desta maneira, no viés da violência que a indústria cinematográfica absorverá as demandas socioculturais dos teens, grupo etário para o qual o cinema de Estados Unidos e França voltaram suas atenções, por motivos bastante específicos. Em meados da década de 1940, Hollywood havia se tornado o berço de um dos mais importantes nichos industriais dos Estados Unidos. Referindo-se a este momento, Leonard Quart e Albert Auster afirmam: Os oito maiores estúdios [estavam] produzindo 99 por cento de todos os filmes apresentados na América do Norte e quase 60 por cento dos filmes exibidos na Europa. Além disso, havia quase 90 milhões de ingressos vendidos a cada semana nos EUA. De fato, a indústria cinematográfica era a sexta mais importante indústria nos Estados Unidos 43 em 1945. No entanto, contrariando este quadro de prosperidade empresarial, os anos finais da década de 1940 trariam o primeiro forte elemento detonador da crise que anos mais tarde decretaria o fim do outrora rentável sistema de estúdios hollywoodiano. Em 1947, a Suprema Corte dos Estados Unidos considerou ilegal a prática longamente instituída de os estúdios controlarem os diversos estágios da 42 Les Jeunes en France, de 1950 à 2000. Un bilan des évolutions. INJEP, 2001. Apud: BAECQUE, Antoine de. La Nouvelle Vague: portrait d’une jeunesse. Paris: Flammarion, 2009. Trata-se de uma seleção de artigos editados no jornal Le Monde, entre os anos de 1950 e 2000, referentes à juventude. 43 QUART, L.; AUSTER, A.. “Hollywood Dreaming: Postwar American Film”. In: Josephine G. Hendin (ed.). A Concise Companion to Postwar American Literature and Culture. Oxford: Blackwell, 2004, p.151. 29 produção cinematográfica, além da distribuição e exibição dos filmes. De acordo com os juristas norte-americanos, a prática configurava reserva de mercado em benefício dos grandes estúdios, os quais foram intimados a abrirem mão da propriedade de suas cadeias de salas de exibição, bem como de parte da distribuição.44 Quando, em 1954, o prazo concedido pela ação antitruste chegou ao fim, a medida judicial representou uma sensível queda nos lucros obtidos por estes estúdios. Além deste duro golpe, a esta altura, outras questões colocavam igualmente em risco a posição privilegiada da qual até então o cinema desfrutara no negócio do entretenimento nos Estados Unidos. Se por um lado, a indústria da Califórnia acabou por enfrentar os obstáculos políticos erguidos pela histeria anticomunista, a qual representou sérias limitações às possibilidades de produção teve, por outro lado, de lidar com o surgimento da forte concorrência televisiva que, conjuntamente à proliferação dos bairros suburbanos, portanto distantes dos centros onde se localizavam as salas de exibição, foi responsável pelo sensível esvaziamento destas, o que tornava necessário que medidas de renovação fossem tomadas como forma de reduzir o impacto negativo desta conjuntura sobre a empresa cinematográfica. Desta maneira, os estúdios de Hollywood absorvem as demandas em formação na sociedade, operando transformações temáticas e de gênero em suas produções das quais o surgimento do gênero teen possui posição de destaque. Segundo Christopher Gair, tratando dos elementos que levaram os estúdios a produzirem filmes de temática juvenil: 45 Como resultado dos interrogatórios do HUAC em fins dos anos 1940, os quais haviam aumentado a desconfiança pública e institucional 44 Produzindo os filmes, os estúdios também controlavam a distribuição das películas, bem como possuíam a propriedade de grandes redes de salas de exibição. Após 1947, além de os estúdios terem de se desfazer da propriedade das salas, foram impedidos de participar do nascente negócio televisivo. Estas ações não apenas significaram grandes perdas de rentabilidade antes assegurada, mas igualmente o impedimento de entrar em uma nova e potencial possibilidade de lucros. 45 HUAC (House Un-American Activities Committee), em português, Comitê para Atividades Anti-Americanas. Criado em fins da década de 1930, este comitê ligado ao Congresso americano era responsável por instituir investigações e julgamentos sobre indivíduos cujos atos poderiam ser considerados contrários ao bem dos Estados Unidos. Seria neste comitê que, nos anos iniciais da década de 1950, o senador Joseph McCarthy fundamentaria sua cruzada anticomunista, denominada pelas ações de seu integrante mais ativo, McCarthysmo. Dentre outros atos, o comitê investigou a vida privada de inúmeros profissionais do meio cinematográfico da Califórnia, colaborando para a formação de uma atmosfera de tensão naquela indústria, através da instituição de uma “lista negra” a qual provocou o afastamento de profissionais de variadas áreas (atores, diretores, roteiristas, técnicos) acusados de simpatizarem com a ideologia comunista, além de influir no próprio negócio da produção de filmes, erigindo barreiras políticas sobre os temas passíveis de serem abordados pelos enredos. Para análises detalhadas sobre a atmosfera existente na indústria do cinema de Hollywood nos anos finais da década de 1940 e os iniciais da década seguinte, ver: ROSS, Steven J. Movies and 30 sobre Hollywood, havia um nervosismo geral nos estúdios sobre o quê poderia ser produzido, reforçado pela sensação de que a maioria dos espectadores apoiava as políticas repressivas da Guerra Fria. Além disso, estas companhias estavam estabelecidas há décadas e eram mais receptivas a roteiros que operassem dentro dos parâmetros das fórmulas de sucesso e baixo-orçamento que aqueles que parecessem mais radicais. Estranhamente, esta combinação fez com que os filmes sobre delinquência juvenil fossem atrativos aos grandes estúdios, especialmente se os enredos pudessem ser facilmente construídos sobre variações não apenas do Western, mas igualmente sobre a história de amor heterossexual padrão e uma versão atualizada da narrativa sobre o inimigo público gangster dos anos 30 e 40, agora transpostas para representar jovens fora de controle aterrorizando comunidades urbanas. Ademais, delinquência juvenil foi altamente tópica. O início dos anos 1950 presenciou uma quasehisteria sobre o „problema‟ dos adolescentes sem regras: em 1954, houve um Subcomitê para Delinquência Juvenil do Senado, e o educador e jornalista Benjamin Fine publicou seu influente estudo, 1,000,000 Delinquents. Para alguns críticos, isto não é o suficiente para explicar a virada aos filmes adolescentes: Peter Biskind sugeriu que „considerando que 1954 foi o ano no qual Dulles anunciou a política da retaliação massiva, o ano no qual três porto-riquenhos nacionalistas abriram fogo na Casa dos Representantes, ferindo cinco congressistas, o ano no qual Ike (Eisenhower) considerou (e decidiu contra) atacar Ho Chi Minh para retirar os franceses de Dien Bien Phu, e o ano no qual a Suprema Corte decidiu que escolas segregadas eram separadas mas não-iguais‟, a obsessão dos estúdios com a delinquência juvenil é „peculiar, para dizer o mínimo‟. Para Biskind, o interesse reflete a primeira onda de retrocesso conservador contra o que William Whyte chamou de „filiarquia‟... uma cultura jovem 46 autônoma, não delinquência per se. É, portanto, nesta atmosfera de inquietação social que se insere a produção de “Sementes da violência”. Diante da autoconscientização dos adolescentes como uma comunidade coesa com interesses comuns, a sociedade americana responde através de uma postura conservadora que busca neutralizar e controlar o desenvolvimento da cultura jovem na nação. Esta questão será mais bem explicitada a seguir, no exame pormenorizado da obra. O caso da indústria cinematográfica francesa e sua relação com a cultura jovem estabelece-se por vias muito distintas de sua congênere americana. Primeiramente, o cinema francês não enfrentava problemas de ordem financeira até o início da década de 1960. Se nos Estados Unidos a entrada do aparelho televisivo nos lares representou um fator de concorrência que causou a redução do público consumidor de filmes, com a queda do número de ingressos vendidos, consequência da diminuição dos frequentadores das salas de exibição, na França, a American Society. Padstow: Blackwell Publishing, 2002 (em especial o capítulo 7). Sobre a conjuntura politicoideológica do anticomunismo, ver: WHITFIELD, Stephen J. The Culture of the Cold War. London: The Johns Hopkins University Press, 1991. Quanto às ações do HUAC, conferir: PEIXOTO, Fernando. Hollywood: episódios da histeria anticomunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 46 GAIR, Christopher. The American Counterculture. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007. p. 102. 31 televisão tardaria a se consolidar enquanto objeto de entretenimento e veículo da cultura de massa habitualmente encontrado nas residências. Desta forma, o cinema figura como um dos grandes meios de divertimento da população urbana neste país, ao longo dos anos 1950, existindo um assíduo público espectador de filmes nas principais cidades francesas. Além disso, a posição de destaque deste produto confirma-se na variedade de edições periódicas dedicadas exclusivamente a apresentar e, por vezes, criticar o conjunto de filmes em cartaz47. Não obstante, a existência de um grande número de cineclubes voltados à atividade de exibir e debater películas das mais variadas escolas cinematográficas e dos mais diversos períodos de produção, colabora para a formação de um distinto público consumidor de cinema.48 Em segundo lugar, e talvez de maior importância, o negócio do cinema na França enfrentará profundas transformações na ordem do fazer cinematográfico com a eclosão do movimento consagrado pela denominação Nouvelle Vague. Eminentemente jovem, tanto em suas temáticas quanto na idade de seus principais expoentes, este movimento cinematográfico iria trazer a juventude definitivamente para o cinema a partir dos anos finais da década. De qualquer modo, financeiramente saudável, o negócio do cinema na França do início da década de 1950 é calcado em obras custosas, configurando-se grandes produções de estúdio. Estas películas são realizadas por diretores de talento reconhecido pelo grande público e, alguns deles, pela crítica, baseados em enredos convencionais, em grande parte adaptações de clássicos da literatura francesa, contando com a presença de astros e estrelas consagrados desde a década de 1930. Este tipo de fazer cinematográfico é virulentamente combatido por um restrito grupo de jovens críticos baseados, sobretudo, na revista Cahiers du Cinéma. Oriundos dos cineclubes, é neste grupo de críticos que se constitui, alguns 47 Em fins da década de 1940 e início da década seguinte surgem alguns produtos editorias comprometidos em pensar seriamente o cinema sendo, algumas destas revistas: L’Écran français, Cinémonde, La Revue du cinema, Cahiers du cinema e Positif. 48 A atmosfera cultural da Liberação impulsiona o desenvolvimento de uma atividade cinéfila, pois passados os anos do último conflito bélico mundial, estavam à disposição filmes que haviam sido censurados nos idos da República de Vichy. Além destes, películas da chamada “Era de Ouro” de Hollywood tornavam-se novamente acessíveis a um público ávido em consumir estes produtos. Segundo o historiador dos Cahiers du cinema, Antoine de Baecque, tratando do cenário dos cineclubes parisienses: “Ao fim dos anos quarenta, não se perdia jamais, por exemplo, as “terças-feiras do Studio Parnasse”, colocando em disputa os cinéfilos nos debates eruditos muito engajados. Na quinta-feira, eram as sessões do Ciné-Club do Quartier latin animadas por Éric Rohmer, rua Danton, que não se perdiam. Existiam, ainda, as noites de gala organizadas pelo Objectif 49, o cineclube da nova crítica onde atuavam André Bazin, Roger Leenhardt e Alexandre Astruc, as três penas mais estimadas do momento.” BAECQUE, Antoine de. La Nouvelle Vague: portrait d’une jeunesse. Paris: Flammarion, 2009. p. 27. 32 anos mais tarde, os principais nomes da Nouvelle Vague: François Truffaut, JeanLuc Godard, Claude Chabrol, Jacques Rivette e Eric Rohmer. Caracterizando este grupo de jovens cineastas, integrantes do movimento, informa Michel Marie: “Um dos primeiros critérios de filiação ao movimento é, aliás, a experiência em crítica. Esses jovens cineastas são cinéfilos, conhecem a história do cinema, adquiriram uma cultura cinematográfica e uma determinada concepção da direção, fundadas em escolhas estéticas, 49 opções morais, gostos e, mais ainda, em violentas aversões.” Em entrevista à revista Arts, na edição de abril de 1959, Truffaut esclarece as diferenças básicas entre as técnicas de captura das imagens e de direção utilizadas pelo dito “cinema de qualidade” francês, do qual ele era um dos críticos mais ativos, e as produções dos novos diretores: Lá onde um diretor experiente realiza quinze tomadas, nós não realizamos mais que duas ou três. Isso estimula os atores que devem se jogar na água. Nossas imagens não têm a perfeição glacial habitual dos filmes franceses e o público foi tocado pelo aspecto espontâneo de nossas 50 realizações. Tudo isso confere aos filmes uma verdade nova. A definitiva inserção da juventude no cinema proporcionada pela Nouvelle Vague é considerada sobre duas perspectivas: por um lado, buscando a renovação do negócio da produção cinematográfica na França, este movimento foi impulsionado por jovens que não haviam alcançado os 30 anos de idade, predominantemente homens, com a notável exceção de Agnés Vardas. As temáticas pretendiam exibir outra faceta da sociedade francesa que aquela apresentada pelo “cinema de qualidade” abordando, assim, as idiossincrasias inerentes às parcelas sociais mais jovens, focalizando a ansiedade de rapazes e moças que buscavam a adequação social enquanto reconheciam a falência dos valores de seus pais, bem como da sociedade erigida sobre estes mesmos valores; desta forma, e por outro lado, firma-se um diálogo intenso entre estas produções de jovens realizadores e o público juvenil, que se identificava com a atmosfera das obras, umbilicalmente ligadas ao ambiente cultural francês da virada das décadas 1950-1960. A Nouvelle Vague constitui-se, portanto, enquanto um movimento erigido por jovens, para os jovens, em contato direto com a cultura juvenil do período. Sobre a necessidade da consideração da juventude pela indústria fílmica na França e, principalmente, quanto à urgência da real, da direta participação do jovem 49 MARIE, Michel. A Nouvelle Vague e Godard. Trad. Eloisa A. Ribeiro, Juliana Araújo. Campinas, São Paulo: Papirus, 2011. p. 29. 50 Revista Arts, 23 abril 1959. Apud: BAECQUE, Antoine de. La Nouvelle Vague: portrait d’une jeunesse. Paris: Flammarion, 2009. p. 82. 33 na produção cinematográfica daquele país imprimindo-lhe, assim, novo fôlego, novos contornos, um rejuvenescimento de tom, de temática e de aspecto, já apontava o altamente renomado e respeitado cineasta Jean Renoir, ainda na década de 1930. Segundo ele: Que os diretores conheçam as aspirações de seu público jovem, seria preciso. Não acredito que isso se adquira em conferências. Para isso é preciso que os próprios produtores andem em meios jovens, de jovens de verdade, aqueles que trabalham, estudam, esperam o futuro. Melhor ainda, era preciso que eles mesmos fossem jovens. Aqui se coloca o problema do acesso dos jovens a uma profissão na qual é difícil entrar. Os “Produtores” têm homens já testados, cuja “dedicação” eles conhecem e fazem questão 51 deles por isso. Eles têm medo de jovens. Ainda neste texto, Renoir tece considerações sobre a relação juventude/cinema/sociedade as quais se aproximam curiosamente de pontos que animariam alguns dos movimentos cinematográficos há surgir nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, dentre eles, o movimento do cinema francês. A partir de suas palavras: Assim como todas as artes, o cinema deve trazer para a juventude uma única coisa: uma ajuda para o conhecimento do homem, do homem e da natureza. Porque acho que toda cultura deve tender para esses conhecimentos. E, consequentemente, o cinema deve ser um revelador de temperamentos humanos, de personagens, quer dizer que ele tem de ser antes de tudo verdadeiro, unicamente verdadeiro (sem romanesco, se possível). E se ele for simplesmente verdadeiro, está desempenhando um papel benfazejo. Apenas, isso é uma coisa muito difícil, porque as grandes sociedades não gostam da verdade. A verdade inteiramente nua é considerada um artigo revolucionário. O que a juventude pode trazer para o cinema? Em primeiro lugar, o sucesso dos filmes. Se os autores de filmes devem procurar não mentir para a juventude, é preciso que em troca a juventude apóie os filmes que não mentem e boicote os que mentem. Depois, a juventude pode trazer a 52 renovação de nosso material artístico. Diante deste posicionamento, exposto mais de 20 anos antes da eclosão da Nouvelle Vague, é de se supor que Renoir tenha recebido as surpreendentes transformações impostas por este movimento jovem no cinema, no fim da década de 1950, com notada estupefação. Assim sendo, no que se refere tanto a indústria cinematográfica hollywoodiana, quanto ao negócio do cinema na França da década de 1950, percebe-se a materialização do jovem enquanto objeto singular. Pelos motivos anteriormente apontados, a produção de ambas as nações volta-se à reflexão do 51 Les Cahiers de la Jeunesse. Nº02. 15 set. 1937. In: RENOIR, Jean. O Passado Vivo. Trad.: Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p. 42. 52 Ibid, p. 42. 34 espaço ocupado por esta parcela social, oferecendo luz especialmente às tensões presentes entre as demandas da juventude e a sociedade que a cerca, da qual ela faz parte integrante. A seguir, examinam-se duas produções cinematográficas do período, uma americana, “Sementes da violência” (Blackboard jungle, dir.: Richard Brooks – 1955), outra francesa, “Os incompreendidos” (Les quatre cents coups, dir.: François Truffaut – 1959), para posteriormente analisar, em comparação, a representação juvenil operada nestas películas e o contato com o contexto sociocultural no qual as obras foram respectivamente realizadas. 1.1 A JUVENTUDE DE “SEMENTES DA VIOLÊNCIA” A trama de “Sementes da violência” se passa no subúrbio da cidade de Nova York. O enredo conta a história de Richard Dadier (Glenn Ford), um novo professor da escola secundária North Manual Trade High School, onde lecionará aulas de inglês. Nesta instituição, o professor Dadier tem de lidar com o cotidiano de violência, delinquência juvenil, gangues e a desilusão de jovens socialmente e etnicamente marginalizados. Negando-se a abrir mão de seus ideais, Dadier sofre as consequências dos embates com os alunos problemáticos da escola, em especial, Artie West (Vic Morrow), líder de uma gangue de arruaceiros. Ao longo da película, Dadier lida com ameaças, a indiferença de seus colegas e diretor, e a frágil gravidez de sua esposa, colocada em risco devido às cartas anônimas enviadas a ela, falsamente acusando seu marido de infidelidade. Será apenas perseverando em seus esforços que Dadier conseguirá alcançar a confiança de seus alunos, sendo bem sucedido em seus objetivos educacionais. Configurando-se como uma produção partícipe da estética cinematográfica do cinema clássico hollywoodiano, a película em questão fundamenta-se no conhecido formato, compartilhando algumas de suas características: ao momento inicial de relativa harmonia, seguem-se situações de conflito as quais serão ultrapassadas pelo protagonista, graças a sua firmeza de caráter e determinação. A linearidade, a coerência e a homogeneidade da narrativa nunca são desconsideradas pelas técnicas cinematográficas utilizadas, existindo uma relação bem definida de causa e efeito estabelecida entre as passagens do enredo. Por fim, o espectador é guiado pela narrativa a elucidar os impasses propostos pela própria 35 Cartaz de “Sementes da violência”. [sem título]. <Disponível em: http://www.imdb.com>. Acesso em: 09 dez. 2013. história, sendo a harmonia inicial restabelecida pelas ações da personagem protagonista, sobre a qual se assenta todo o enredo, ou ao menos parte considerável dele. Richard Brooks, que assina tanto a direção, quanto a roteirização de “Sementes da violência”, foi um profícuo diretor, roteirista e produtor na indústria do cinema da Califórnia, tendo desenvolvido suas atividades especialmente entre as décadas de 1940 e 1960. Oriundo da imprensa e do rádio, Brooks roteirizou filmes como “Gata em teto de zinco quente” (Cat in a hot tin roof – 1958), “Os profissionais” (The profissionals – 1966) e “A sangue frio” (In cold blood – 1967). Não era, entretanto, de talento largamente reconhecido quando da produção da película aqui analisada, tendo alcançado este reconhecimento nas décadas seguintes. Apesar de se voltar para a questão da inserção do jovem na sociedade americana, a produção de Brooks não consiste em um filme adolescente53, sendo 53 Entenda-se “filme adolescente” aquele que possui o enredo voltado para a audiência juvenil, abordando questões concernentes a esta parcela da população. O gênero dos filmes adolescentes, ou mais comumente 36 mais correto avaliá-lo enquanto uma obra de temática social, voltada para parcelas mais amplas da audiência. Mais especificamente, é da delinquência juvenil nas escolas que o filme busca tratar, configurando-se em uma produção de marcado teor social, abordando o jovem, porém não se voltando privilegiadamente a ele como potencial público consumidor do filme. Logo na abertura, um preâmbulo apresenta ao espectador a motivação principal de produção da película. O texto, exibido em caracteres brancos sobre um fundo preto, sem narração, estabelece a realidade diegética54 do filme. Lê-se no texto: “We, in the United States, are fortunate to have a school system that is a tribute to our communities and to our faith in American youth. Today we are concerned with juvenile delinquency -its causes- and its effects. We are especially concerned when this delinquency boils over into our schools. The scenes and incidents depicted here are fictional. However, we believe that public awareness is a first step toward a remedy for any problem. It is in 55 this spirit and with this faith that Blackboard jungle was produced.” (Nos Estados Unidos somos afortunados por termos um sistema escolar que é um tributo às nossas comunidades e à nossa fé na juventude americana. Hoje, nos preocupa a delinquência juvenil, suas causas e seus efeitos. Preocupa-nos especialmente quando esta delinquência chega às escolas. As cenas e incidentes aqui mostrados são fictícios. Entretanto, acreditamos que a conscientização pública é o primeiro passo para remediar qualquer problema. Foi com este espírito e com esta fé que realizamos “Sementes da violência”). Desta forma, a produção da película fundamenta-se no debate relativo à delinquência juvenil, exaustivamente abordado no período. Além disso, os produtores e o estúdio responsável pela realização do filme, a Metro Goldwyn Mayer (MGM), ficavam isentos de algumas das críticas que poderiam surgir do fato de uma designados teenpics (teenpictures), é compreendido como as produções realizadas para os jovens, buscando dialogar com suas idiossincrasias, como forma de obter considerável sucesso comercial. Podemos elencar como os principais filmes adolescentes do período “O selvagem” (The Wild One, dir.: Laslo Benedek – 1953) e “Juventude transviada” (Rebel without a cause, dir.: Nicholas Ray – 1955), que contavam com estrelas jovens em meteórica ascensão sendo, respectivamente, Marlon Brando e James Dean. Além destes, muitos outros títulos foram partícipes do gênero adolescente, especialmente um considerável conjunto de produções de baixo orçamento, denominadas filmes “B”. Entretanto, saliento que o forte teor contestatório e de crítica social dos filmes voltados à temática juvenil na década posterior, os anos 60, não se encontra presente nas obras da década de 1950, sendo estas mais superficiais e ingênuas em suas abordagens. 54 Em caráter de esclarecimento do uso do termo “diegético” em análise fílmica, segundo Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété: “O termo “diegese”, próximo, mas não sinônimo de história (pois de um alcance mais amplo), designa a história e seus circuitos, a história e o universo fictício que pressupõe (ou “pós-supõe”), em todo caso, que lhe é associado (a Paris de Richelieu faz parte da diegese de Cyrano de Bergerac) (...) No filme, a contrapartida da diegese é, com certeza, tudo o que se refere à expressão, o que é próprio do meio: um conjunto de imagens específicas, de palavras (faladas ou escritas), de ruídos, de música – a materialidade do filme.”Cf. VANOYE, F; GOLIOT-LÉTÉ. A. Ensaio Sobre a Análise Fílmica. Trad. Marina Appenzeller. Campinas, São Paulo: Papirus, 2012. p. 38. 55 Texto veiculado no preâmbulo de “Sementes da violência”, entre 0h00min.10 seg. e 0h00min.41seg., sendo os dez segundos anteriores reservados apenas à exibição do conhecido símbolo da MGM, o leão rugindo. Desta maneira, a mensagem disposta no texto constitui-se como a primeira informação transmitida ao espectador. 37 produção cinematográfica abordar uma questão de grande polêmica no momento, na sociedade americana, uma vez que o debate a respeito da veiculação midiática da violência de grupos jovens oscilava entre a perspectiva positiva em se abordar a questão, oferecendo luz ao assunto, e a negativa, do perigo de se apresentar um comportamento juvenil desviante a um grupo social tido como facilmente influenciável. Fica igualmente estabelecido, desde os primeiros instantes da projeção, o posicionamento conservador no qual se insere a produção. Elementos como nação, comunidade, fé e opinião pública são diretamente implicados no texto. Com estas palavras, a produção de “Sementes da violência” colocava-se em comunhão com a sociedade americana, em busca da solução para uma problemática que se apresentava dentro do seio desta mesma sociedade. Segundo a mensagem veiculada no texto, são os americanos unidos que resolvem seus próprios impasses. Assim, a primeira pessoa do plural sobre a qual se fundamenta o texto não deixa margem a dúvidas: não se trata de um filme para os jovens, mas sobre eles. Todavia, o filme obteve grande impacto sobre a audiência jovem, fato que surpreendeu os produtores da película. Apesar da postura conservadora através da qual a questão da delinquência juvenil era tratada, parece que os jovens da década de 1950 apenas apreenderam a ação e o fundo musical veiculados no filme. Para esta parcela dos espectadores, “Sementes da violência” era um filme que abordava a realidade juvenil e, assim sendo, estabelecia com eles um diálogo intenso. Segundo James Gilbert: Assistindo a uma pré-estréia do filme, o produtor Brooks ficou surpreso, e obviamente maravilhado, quando os jovens da platéia começaram a dançar rock and roll nas fileiras. Isso ocorreu repetidamente 56 em apresentações depois que o filme estreou. Coadunando com os receios da veiculação midiática da violência juvenil, foram referidos alguns episódios de agressividade relativos à película. Em muitas das salas de cinema onde estava sendo exibida a obra, atos de vandalismo foram denunciados. Além disso, ocorreram relatos de gangues juvenis que eram formadas e atuavam violentamente com base nas atitudes observadas no filme, que chegou a ser classificado como restrito à audiência adulta em algumas cidades americanas. A película de Brooks parecia glorificar a violência adolescente, segundo os setores 56 GILBERT, J. A Cycle of Outrage: America’s Reaction to the Juvenile Delinquent in the 1950s. New York: Oxford University Press, 1986. pp. 184-185. 38 mais conservadores da sociedade. De qualquer forma, diante do considerável retorno financeiro que a produção estava rendendo ao estúdio, dificilmente esta seria retirada de cartaz devido à controversa recepção ocorrida. O citado texto de abertura é acompanhado pelos acordes iniciais da música tema do filme, “Rock Around the Clock”57, um dos primeiros sucessos do gênero rock and roll, de forte apelo juvenil no período. A produção de Brooks foi a primeira a veicular uma peça musical deste gênero que, em meados dos anos 1950, estava tanto ganhando grande espaço junto ao público juvenil e, desta forma, no mercado fonográfico, quanto sofrendo forte oposição de parcelas substanciais da sociedade americana. Com claras raízes na música negra, originando-se sobretudo do blues, mas contando com elementos também da música country, o rock era apontado como perversor dos valores morais americanos, incitando a violência e o comportamento sexualmente promíscuo. Era, assim, diretamente relacionado ao comportamento dos jovens supostamente envolvidos em atos de delinquência, sendo considerado, portanto, uma má influência cultural pelos contingentes mais tradicionais da sociedade americana. A sequência seguinte à do preâmbulo, ainda com o acompanhamento de “Rock Around the Clock” na banda sonora, agora plenamente executada pela banda de “Bill Haley and his Comets”, realiza uma ambientação do bairro onde se situa a North Manual Trade High School, bem como da própria escola. Coberta pelos trilhos elevados do metrô, a rua que dá localização à escola apresenta-se obscurecida, sem oferecer a fácil visualização do céu, o que transmite uma sensação claustrofóbica, de redução da liberdade. Talvez pela pouca incidência de luz solar, não há no ambiente qualquer espécie de vegetação, sendo a paisagem dominada exclusivamente pelo concreto e pelas colunas de aço que sustentam os trilhos do metrô, dispostos alguns metros acima do nível da rua. O mesmo ambiente estéril caracteriza o pátio de entrada da Manual High School. Espremida entre dois outros prédios, a escola conta apenas com este pequeno pátio de entrada como área de recreação dos alunos. Tratando-se de uma escola masculina, vemos os estudantes dançando em pares, uns com os outros, a citada música. Essa continuidade da banda sonora, que se inicia no surgimento do texto, atravessa a apresentação dos 57 O grupo musical “Bill Haley and His Comets” alcançou a fama durante a primeira fase de desenvolvimento do gênero musical rock’n’roll, sendo “Rock Around the Clock” o primeiro dos seus sucessos e, talvez, o mais duradouro. 39 Fotograma de “Sementes da Violência”. Professor Dadier observa os arredores da North Manual Trade High School enquanto os estudantes divertem-se dançando no pátio de entrada da escola ao som de “Rock Around The Clock”. créditos, todos dispostos sobre um quadro negro tipicamente escolar, e adentra a cena de caracterização da escola, seus estudantes e arredores, consolida a inserção diegética da narrativa ao contexto de delinquência juvenil apresentado no texto exibido. Assinala-se, ainda, no primeiro contato do professor com seus futuros alunos, o tipo de rapazes com os quais ele deverá lidar, através da relação de proximidade destes com a música. Segundo Leerom Medovoi58, o uso semântico do rock na abertura da película tem como objetivo aproximar o espectador, em especial o espectador jovem, dos estudantes, distanciando-o do professor. Por ser uma música de origem reconhecidamente negra e popular, a cena criaria uma empatia do espectador com os jovens de variadas origens étnicas da escola. A trilha sonora da película é igualmente utilizada para demarcar uma distinção geracional entre os estudantes e seus professores. Além de “Rock Around the Clock”, de “Bill Haley and His Comets”, “Sementes da violência” contava com as composições “Invention for Guitar and Trumpet”, executada por Stan Kenton e sua orquestra e “The Jazz Me Blues”, executada pelo grupo “Bix Beiderbecke and His Gang”. Estas músicas consistem em composições jazzísticas, gênero musical bastante apreciado pelos jovens antes do surgimento do rock e, desta maneira, 58 MEDOVOI, Leerom. Rebels – Youth and the Cold War Origins of Identity. Durham, London: Duke University Press, 2005. 40 apreciado pela geração anterior a dos estudantes da Manual High, exatamente aquela de parte dos seus professores. De qualquer forma, apesar de tanto o jazz quanto o rock and roll serem gêneros musicais de bases culturais negras, Bill Haley, Stan Kenton e Bix Beiderbecke são todos músicos brancos, o que relativiza a questão racial que poderia ser explorada. A feroz oposição dos alunos à música apreciada pela geração anterior fica patente na atitude aniquiladora destes quando destroem a estimada coleção de discos de jazz do jovem e sonhador professor Josh Edwards, que buscava apresentar a música aos alunos como forma de exemplificação do pensamento matemático. Arrasado, o professor se afasta da escola, pedindo demissão. Evidenciando uma ruptura entre as gerações, neste filme praticamente inexistem alusões à instituição familiar, excetuando-se uma rápida fala de Gregory Miller, personagem de Sidney Poitier, informando à Dadier que sua família não se importa com o andamento de seus estudos. Ou seja, no único momento em que a família é citada, o é de forma negativa. Esta ausência do meio familiar torna-se bastante significativa, pois é relacionada à inconsequência dos estudantes, muito pouco preocupados com o futuro. Em outras palavras, diante da dupla ausência das instituições familiar e estatal, estes jovens não percebem consideráveis perspectivas de vida.59 Tratando-se de uma escola secundária de ensino técnico, em Manual High o corpo discente é composto exclusivamente por indivíduos do sexo masculino, o que transforma o ambiente escolar desta instituição em um meio de marcante homossociabilidade. Ainda na abertura, a forma acintosa através da qual alguns dos estudantes interagem com uma jovem na calçada, que atraiu seus olhares, evidencia a predominância de um determinado código de conduta masculina, notadamente reprovável e bem distante do código moral vigente na sociedade americana do período. A tomada prepara o espectador para uma das cenas seguintes, na qual uma nova professora será assediada por numerosos alunos, quando de sua apresentação no auditório, sofrendo uma posterior tentativa de estupro na biblioteca. Esta cena é utilizada, igualmente, como oportunidade de se explorar a heterogeneidade étnica dos rapazes. Se no auditório são alunos negros 59 Opostamente, em outro sucesso de temática adolescente produzido no mesmo ano de 1955, “Juventude transviada”, a falência da instituição familiar é diretamente relacionada à delinquência juvenil, sendo um dos elementos mais explorados no roteiro desta produção, como será examinado no capítulo a seguir. 41 Fotograma de “Sementes da violência”. Visão dos alunos enquanto a professora Miss Hammond sobe ao palco do auditório. Os jovens estudantes não deixam de assobiar e aplaudir sua presença. que observam atentamente as pernas da professora, quando esta sobe os degraus do palco, será um aluno branco e, dentro dos marcos do filme, de provável origem irlandesa, que tentará abusar sexualmente dela. Na cena do auditório, a técnica de realização da tomada busca a valorização da tensão sexual presente, com a captura da imagem das pernas da professora sendo realizada em contra-plongée e em plano de detalhe, com a montagem apresentando primeiramente as faces dos alunos observando-as e, em seguida, o plano aproximado fotografando exclusivamente aquela parte do corpo feminino. Em sua classe, o professor Dadier relaciona-se mais proximamente com dois dos alunos, Artie West (Vic Morrow) e Gregory Miller (Sidney Poitier). Pela perspectiva de Dadier, Miller é o único aluno que possui posição de destaque em relação ao restante do grupo, podendo rivalizar com West na capacidade de atuar sobre os colegas. Desta maneira, Dadier intenta conseguir o apoio de Miller na tentativa de neutralizar West quanto à influência negativa que este representa para os integrantes de sua classe. Assim, ao longo da projeção desenvolve-se uma relação triangular entre Dadier, West e Miller, com os dois primeiros disputando o apoio do último.60 60 Medovoi desenvolve uma análise que considera a relação entre West, Dadier e Miller, como tendo significado de fundo homossexual, não ocorrendo, obviamente, qualquer aproximação afetiva entre as 42 Fotograma de “Sementes da violência”. Ao ouvir os gritos da profª Hammond, Dadier quebra o vidro da porta da biblioteca para salvá-la da tentativa de estupro cometida por um dos alunos da escola. Enquanto Artie West, branco de origem irlandesa, constitui-se como o líder dos delinquentes, Gregory Miller, rapaz negro, mantém-se em posição de calculado distanciamento dos acontecimentos. Apesar de não participar ativamente das atividades da gangue, não rivaliza diretamente com eles. Os objetivos de Miller são claros: concluir o ensino médio e continuar empregado na oficina mecânica onde já trabalha. Considerando que “Sementes da violência” foi lançado apenas dez meses após a 1ª decisão da Suprema Corte sobre o caso Brown, que versava quanto a (de)segregação das escolas nos Estados Unidos, afirmando que as escolas segregadas eram separadas porém não iguais, a escolha de uma personagem negra, oposta ao vilão branco, insere-se neste debate. Igualmente, a identificação suprarracial entre um estudante negro e um professor branco, através da comunhão de objetivos desenvolvida entre Miller e Dadier no desenrolar da narrativa, explicitam a possibilidade de cooperação entre quaisquer cidadãos americanos, independentemente de suas origens raciais. Apesar de o grupo de estudantes ser formado por jovens de variadas origens étnicas, a delinquência juvenil não é imputada a uma etnia específica. Não existe, no enredo de “Sementes da violência”, um grupo de jovens no qual o elemento de coesão sejam as raízes étnicas, sendo a gangue de jovens arruaceiros personagens. Para maiores detalhes, Cf. MEDOVOI, Leerom. Rebels – Youth and the Cold War Origins of Identity. Durham, London: Duke University Press, 2005. 43 composta por indivíduos etnicamente heterogêneos, com os estudantes brancos sendo tão violentos quanto os demais. Assim, a película realiza a junção da delinquência juvenil e da (de)segregação em um único problema social. Segundo a perspectiva do enredo, a integração racial implicará o fim dos valores americanos a não ser que os padrões brancos prevaleçam. Neste sentido, cabe a Dadier levar os estudantes de sua classe a assimilarem os ideais comportamentais e ideológicos da América branca, única forma de assegurar a real integração social e de impedir o estabelecimento da desordem e da anarquia que os valores das minorias raciais presentes na classe multirracial parecem representar. Contudo, a harmonia da turma não se dá sem conflitos, já que os esforços de Dadier não impedem o surgimento de determinados atritos calcados na origem familiar entre os alunos da classe, em momentos pontuais. Desta forma, em algumas passagens da narrativa, evidencia-se a tensão racial presente em sala de aula, apesar da relativa tolerância existente entre os diversos grupos étnicos. Quando as animosidades irrompem, as ofensas baseiam-se nas questões de raça com, por exemplo, o estudante de origem irlandesa ofendendo o de origem latina que, ao retrucar, é repreendido pelo de origem italiana. Mesmo Dadier não está a salvo de, em um momento de tensão, recorrer agressivamente aos elementos raciais. Quando o professor, após ser acusado injustamente de racismo, discute com Miller acreditando erroneamente ter sido este o acusador, termina por chamá-lo de “negro”, o que causa profunda consternação ao aluno. A técnica de enquadramento e a mise en scène utilizadas na cena são bastante significativas da relação de poder existente, ainda que fragilizada. Ocorrendo a discussão em uma escada, Miller inicia a descida pela mesma primeiro, o que o coloca em posição inferior à Dadier, disposto alguns degraus acima. Mirando seu olhar para baixo, Dadier fica em atitude de comando, enquanto que Miller se encontra subjugado. A fala racista de Dadier subverte a situação, com Miller prevalecendo ao final da cena, diante do professor decepcionado com sua própria atitude, sentindo-se impotente. Frustrado com os estudantes e desestimulado pelo cinismo e apatia dos outros professores, Dadier busca auxílio com um de seus antigos mestres, professor Kraal, agora diretor de uma organizada e bem-sucedida escola secundária. Apesar de receber o convite deste para trabalhar em sua escola, Dadier recusa, afirmando ser seu dever estar com os alunos da Manual High. Sua determinação em atingir positivamente o corpo de estudantes da escola onde trabalha está baseada, ao 44 Fotograma de “Sementes da violência”. Diante da falsa acusação de racismo, professor Dadier discute agressivamente com Miller nas escadas do corredor da North Manual. Se a acusação inicial era falsa, a cena termina com uma real demonstração de racismo por parte do professor. longo de toda a projeção, nos valores nacionais americanos. Veterano da Segunda Guerra Mundial, Dadier sente que fora convocado mais uma vez ao sacrifício devendo buscar alcançar os mais nobres objetivos, para o bem da nação. Assim, em todas as passagens nas quais a personagem fraqueja, é incentivada por aqueles que a cercam, sua esposa, seus amigos, a perseverar na busca de seus objetivos, sempre na chave do patriotismo e da ação individual bem-intencionada. A força de um único indivíduo será capaz, segundo o enredo de “Sementes da violência”, de corrigir as mazelas de uma escola, apontando o caminho da recuperação de todo o sistema educacional e, ainda, convencer seus desacreditados companheiros de profissão de que, com real comprometimento e vontade, é possível alcançar o bem social através da educação. A escola de Kraal, entretanto, constitui-se como um meio exclusivamente branco e de classe-média. Seus alunos correspondem ao oposto daquilo que são os alunos da Manual High, sendo ordeiros, comprometidos e patrióticos. Uma vez que a escola de Kraal serve como modelo para as intenções educacionais de Dadier, implicitamente o enredo advoga, como salientado acima, pela defesa dos padrões brancos sobre a população multirracial que começa a ser integrada ao desegregação. sistema educacional americano, através das políticas de 45 Fotogramas de “Sementes da violência”. Acima, a North Manual Trade High School; abaixo, a escola dirigida por professor Kraal, antigo mestre de Dadier. As características pessoais acionadas na trajetória de sucesso de Dadier dialogam com o contexto geopolítico da Guerra Fria. A determinação, a busca pelo bem social, os valores patrióticos e nacionais, a ação individual. Em um momento no qual os Estados Unidos consideram-se os representantes da liberdade em um mundo que oscila entre a liberdade democrática e o pretenso autoritarismo socialista, Dadier veicula a imagem paternalista que a nação americana avoca a si mesma no contexto internacional. Além disso, sendo branco e estando à frente de uma classe etnicamente heterogênea, Dadier figura como um exemplo de conduta, numa conjuntura de movimentos pela independência das colônias européias na Ásia e na África, quando os Estados Unidos são visualizados como a primeira colônia a atingir sua independência devendo, portanto, estarem presentes no horizonte de expectativas destas jovens nações independentes. Segundo Medovoi, a autoridade benévola de Dadier deve prevalecer sobre a classe multirracial, como a autoridade dos Estados Unidos pode prevalecer num momento de descolonização multirracial global.61 Opondo-se à figura de Dadier, Artie West não é, nem pretende ser, patriótico. Segundo sua visão, buscar o bem da nação implica ser engajado em uma guerra estrangeira qualquer, lutando por um país que oferece muito pouco a ele, um 61 MEDOVOI, Leerom. Rebels – Youth and the Cold War Origins of Identity. Durham, London: Duke University Press, 2005. 46 Fotograma de “Sementes da violência”. Belazi é golpeado pelo mastro da bandeira dos Estados Unidos. indivíduo marginalizado étnica e socialmente. Como esclarece ao professor, sua conduta reprovável consiste em uma forma de evitar uma futura convocação para este dever de duvidoso valor moral. Não obstante quando, na cena final, Dadier vêse em perigo sendo encurralado em sala de aula por West, armado com uma faca, e Belazi, principal companheiro deste, a situação tem seu desenrolar com o primeiro sendo contido por Dadier enquanto o segundo é derrubado pelo mastro da bandeira dos Estados Unidos, usada como lança por um dos outros alunos. A mesma bandeira acaba nas mãos de Dadier, que finalmente consegue o apoio de todo o restante da classe, expurgando Belazi e West como as duas maçãs podres que precisam ser descartadas como meio necessário para o amadurecimento do grupo, de agora em diante ordeiro, pacífico, comprometido com o futuro, bem como assimilado aos valores da América branca. 1.2 “OS INCOMPREENDIDOS” E A ADOLESCÊNCIA EM TRUFFAUT “Os incompreendidos” (Les quatre cents coups, dir.: François Truffaut – 1959) se desenrola em Paris, mais especificamente no bairro de Pigalle e na rua des Martyrs. A película apresenta a vida de Antoine Doinel, um jovem adolescente por volta dos quatorze ou quinze anos de idade. Doinel é filho único de um lar 47 Cartaz de “Os incompreendidos”. [sem título]. <Disponível em: http://www.frenesicultural.compflertecinematografico.com>. Acesso em: 09 dez. 2013. conturbado. Na verdade, o homem que ele se habituou a chamar de pai não é seu progenitor, fato que lembra constantemente durante as frequentes discussões que trava com a mãe de Doinel, tendo o rapaz como testemunha. De meios modestos, a família mora em um velho e minúsculo apartamento, no qual se contam pouquíssimos luxos. Doinel é um jovem inquieto, com problemas na escola, cuja rigidez estéril do ambiente escolar ele demonstra não compreender. Em seus embates com o professor e seus pais, veicula a ansiedade daquele que busca o lugar que lhe cabe, já que não se sente verdadeiramente incluído na sociedade, nem parte integrante em seu próprio lar, onde é desprezado pela mãe, que nele reconhece seu erro do passado. Como produção cinematográfica pertencente ao conjunto dos primeiros filmes da Nouvelle Vague, a obra de Truffaut divide com o movimento algumas de suas características, consistindo em uma película de baixo orçamento, filmada fora dos estúdios, com atores desconhecidos do grande público, quando não amadores, abordando de maneira realística questões pouco convencionais no cinema francês, 48 como as relações familiares fragmentadas e os problemas da juventude. O enredo é em boa medida autobiográfico, tendo sido em parte baseado na adolescência do próprio diretor, de origem humilde e que, como seu protagonista, foi interno de uma instituição correcional juvenil62. Tendo sido um dos filmes escolhidos pelo Ministério da Cultura francês para representar a nação no Festival de Cannes de 1959, “Os incompreendidos” tornouse a constatação pública e o reconhecimento institucional da transformação que havia acometido o cinema francês. Segundo Jean-Luc Godard: “Pela primeira vez, um filme jovem é oficialmente designado pelos poderes públicos para mostrar ao mundo inteiro a verdadeira face do cinema francês.” 63 O fascínio de François Truffaut pela infância e adolescência esteve presente em alguns de seus filmes, desde o curta “Os Pivetes” (Les mistons), de meados dos anos 1950. Em artigo intitulado “Reflexões sobre as crianças e o cinema”, ele tece considerações a respeito da produção de filmes sobre este universo. Segundo ele, a adolescência é (...) a idade crítica por excelência, a idade dos primeiros conflitos entre a moral absoluta e a moral relativa dos adultos, entre a pureza do coração e a impureza da vida, é, enfim, do ponto de vista de qualquer 64 artista, a idade mais interessante a ser iluminada. Para o diretor, existem alguns filmes “com jovens”, porém poucos “sobre os jovens”. Desta forma, compreende-se como intenção de Truffaut construir em seus filmes uma representação da juventude empenhada na sincera abordagem da existência do jovem, seus anseios, dúvidas, demandas, necessidades, resumindo, o contato nem sempre harmônico deste com a realidade que o cerca, sua família, imediatamente, e a sociedade, de maneira alargada. O interesse de Truffaut em abordar a questão dos atos de delinquência perpetrados pelos jovens origina-se de sua própria experiência pessoal. Segundo ele, narrando o momento no qual foi internado no reformatório: “Era pouco depois da guerra, havia um recrudescimento da delinquência juvenil, as prisões infantis 62 Truffaut passou sua infância no bairro Pigalle, durante a guerra. Aos quinze anos, foi internado no Centro de Menores Delinquentes de Villejuif, detido por vagabundagem. Cf. “Quem é Antoine Doinel?” e “1979, o ano da infância assassinada.” TRUFFAUT, François. O Prazer dos Olhos: textos sobre cinema. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. 63 BAECQUE, Antoine de. La Nouvelle Vague: portrait d’une jeunesse. Paris: Flammarion, 2009. p. 63. 64 “Enfants”, Le Courrier de l’Unesco, número especial, 5 de fevereiro de 1975. Apud. TRUFFAUT, François. O Prazer dos Olhos: textos sobre cinema. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p. 37. 49 estavam cheias”.65 Além disso, no período de produção de “Os incompreendidos”, a sociedade francesa alarmava-se com o aumento da violência juvenil, tanto de ordem política, uma vez que os atentados da OAS eram promovidos pelos membros mais jovens da organização clandestina66, quanto de ordem social, com a ampliação da delinquência juvenil exemplificada no caso dos blousons noirs, anteriormente citado. Segundo de Baecque, o papel do cinema na propagação desta mitologia da juventude, fundamentada na rebeldia e na violência, é essencial: Primeiramente, porque se imputa a ele, em parte, a responsabilidade da aparição do fenômeno: os filmes, notadamente os americanos [“O selvagem”, com Brando, “Juventude transviada”, com James Dean] tinham proposto os modelos de violência que os jovens da França se apressaram a imitar. Além disso, o cinema francês havia “mitificado” o mau rapaz conferindo-lhe aura e prestígio: Alain Delon em “Gângsters de casaca”, Johnny Halliday em “D‟où viens-tu Johnny?”, ou os protagonistas de “Basta ser bonita”, “Asfalto”, “Terrain vague”, “Cent briques et des tuiles”, “Les Coeurs verts”, “La Rage au poing”... Tratava-se de um verdadeiro gênero no início dos anos sessenta, modo que testemunha os 67 fantasmas que os agrupamentos de jovens engendram. Fotografado em preto-e-branco, o filme explora uma espécie de iluminação próxima às produções do cinéma noir, própria das películas do gênero gangster hollywoodiano. Desta maneira, assume-se uma atmosfera taciturna, com cenas filmadas à noite e cenários minimalistas, por vezes com a presença apenas do ator que executa a cena. Mesmo nas captações de imagens diurnas, a iluminação é contida, sendo rodadas durante o frio e nebuloso inverno de Paris. Assim, o sol jamais é visto em plenitude no cotidiano de Doinel. Essa economia de iluminação estabelece uma relação semântica com o enredo, uma vez que a vida da personagem protagonista é igualmente obscura, tanto quanto seus dias e noites. Imerso em uma realidade angustiante, nos primeiros anos de sua juventude, Doinel parece não ver a luz do dia. A cena de abertura, durante a qual desfilam os créditos, é bastante expressiva do clima no qual adentramos a vida de Antoine Doinel. Nesta, uma câmera provavelmente afixada em um automóvel enquadra o símbolo máximo da 65 “Quem é Antoine Doinel?”. O Prazer dos Olhos: textos sobre cinema. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p. 25. 66 A OAS (Organisation de l’Armée Secrète), Organização do Exército Secreto, consistia em um grupo clandestino de extrema direita. No contexto da Guerra da Argélia, este grupo se opunha à independência daquela colônia francesa, localizada no norte da África. Defendiam a noção de “Argélia-Francesa” que, não reconhecendo o status de colônia, propunha a Argélia como parte integrante da França, apesar de subjugada a esta. Dentro de suas práticas a OAS recorria aos atentados à bomba, tanto em território argelino, quanto francês. Cf. GILDEA, Robert. France Since 1945. Oxford: Oxford University Press, 2002. 67 BAECQUE, Antoine de. La Nouvelle Vague: portrait d’une jeunesse. Paris: Flammarion, 2009. p. 37. 50 Fotograma de “Os incompreendidos”. Na cena de abertura da película, na qual são veiculados os créditos iniciais, vê-se o sol, que timidamente aparece ao lado da Torre Eiffel. cidade, a Torre Eiffel, por entre os prédios dos bairros que circundam o monumento. No trajeto, o espectador tem acesso desde a grandes monumentos de arquitetura neoclássica, até a antigos armazéns industriais, sempre em companhia da Torre, registrada em contraste a um céu nublado. Voltada para cima, a câmera não capta a rua, de forma que não constam pedestres nem automóveis em movimento nas tomadas em questão. Desta maneira, é como se a cidade estivesse vazia, colaborando para a ambientação fria e ascética construída, que é completada pelas árvores desfolhadas presentes nas ruas próximas àquele símbolo arquitetônico. A única vez em que o sol torna-se visível em toda a projeção ocorre nesta cena, quando este é brevemente entrevisto, encoberto por espessas nuvens, ao lado da Torre. A música-tema, composta por Jean Constantin, acompanha toda a sequência. De andamento lento, a composição é executada por uma orquestra, sendo bastante melodiosa, com destaque para as notas agudas produzidas pelo piano, que lhe conferem significativo grau de ingenuidade. Este é o tema de Doinel, apresentado durante seus momentos de maior introspecção, ao longo da película. Na obra, os espectadores chegam ao cotidiano de Antoine através de dois vieses: sua vida escolar e sua relação familiar. A instituição escolar da qual ele faz parte do corpo discente, exclusivamente masculina, é marcada pela obsolescência das técnicas didáticas empregadas, que não são capazes de atingir os estudantes. Apesar da indisciplina, a escola não conta com sérios problemas comportamentais. Entretanto, os alunos não vêem utilidade prática nos conhecimentos que devem ali 51 absorver. Os docentes, por seu turno, não acreditam no potencial dos alunos, chegando um dos professores de Doinel a exclamar: “-Pobre França! Que futuro!”, em alusão ao baixo rendimento e comprometimento dos rapazes. Assim, mesmo quando Doinel se esforça para atender aos padrões exigidos pelo sistema de ensino do qual faz parte, acaba sendo repreendido e penalizado, fato que o torna pouco crédulo em relação àquilo que a escola pode trazer-lhe de positivo. Em casa, o jovem rapaz conta com inúmeras responsabilidades, já que tanto o pai quanto a mãe trabalham fora. Depois de chegar da escola, é responsável pela organização do pequeno apartamento devendo, ainda, realizar as compras. Apesar disso, Doinel não reconhece uma real unidade familiar em sua casa, já que os pais vivem em uma rotina de discussões. Ao longo dos diálogos travados pelo casal, o rapaz percebe que ocupa uma incômoda posição diante deles. O homem não é verdadeiramente seu pai, tendo assumido-o quando conhecera sua mãe. Esta, por sua vez, costuma ser bastante hostil com o filho, pretendendo enviá-lo à colônia de férias para assim dele poder se afastar por algumas semanas. Como Doinel irá confessar em uma determinada cena no final da narrativa, sua mãe não o desejara e intentara realizar um aborto, evitado por sua avó materna. Desta maneira, apesar de contar com um seio familiar, Antoine Doinel sente-se órfão, alijado emocionalmente de seus pais, apesar do convívio diário. Significativo do deslocamento sentido por Antoine é o fato de ele não contar com um quarto de dormir, sendo sua cama improvisada junto à porta de entrada / saída do apartamento, de forma a impedir a completa abertura da mesma. Expressivamente, e literalmente, Antoine está no caminho, interferindo na liberdade de seus pais. As cenas desenroladas dentro do apartamento da família são rodadas desconsiderando-se alguns dos parâmetros dos códigos tradicionais da linguagem cinematográfica. Ao invés de fazer uso corrente do campo / contra-campo para captar os diálogos entre as personagens, a câmera frequentemente assume uma posição fixa dentro do mesmo cômodo no qual se encontram os atores, fotografando-os de maneira integral, todos na mesma tomada. Com esta técnica, evidencia-se a pouca distância física entre os atores, enquanto executam a cena. Devido a ausência de espaço, Doinel locomove-se por entre o casal enquanto estes conversam, não existindo nenhum grau de privacidade. Desta maneira, os pequenos ambientes da residência tornam-se ainda mais constritores, chegando a ocasionar 52 Fotograma de “Os incompreendidos”. Chegando tarde a casa por ter alegadamente trabalhado até tarde, a Sra. Doinel precisa se esforçar para adentrar o apartamento pois, devido à cama de Antoine, o caminho encontra-se parcialmente bloqueado, fato que sublinha materialmente não haver espaço para o rapaz. ao espectador a sensação de claustrofobia. A iluminação utilizada nas sequências do interior do apartamento é, por sua vez, pouco elaborada, dando a impressão de se tratar, apenas, da iluminação convencional do próprio lugar. Pouco iluminado, o ambiente torna-se ainda menos convidativo. Sentindo-se excluído tanto na escola quanto em casa, Doinel recorre a companhia de um amigo de classe para preencher seus dias. É este quem o ensina alguns dos truques para matar aula e obter pequenas vantagens. Em sua companhia, Doinel trafega descompromissadamente pela cidade, observando o cotidiano da mesma, o que o faz almejar apreciar uma vida diferente da que leva, saindo da escola e obtendo algum meio de sustento. Em uma dessas incursões, Antoine entra em um brinquedo de parque de diversões que consiste em um amplo cilindro dentro do qual as pessoas giram em grande velocidade, o que permite a retirada do piso sem que as pessoas caiam, pressionadas contra a parede pela força centrífuga gerada. O movimento giratório do brinquedo faz com que o jovem sinta vertigem, enquanto luta para conseguir se virar dentro do cilindro. Doinel sente, naquela estrutura, a mesma ausência de referência que experimenta em sua vida. Quando se vira de ponta-cabeça dentro do cilindro, atinge peculiar sintonia com seu mundo pessoal, que para ele está, igualmente, de ponta-cabeça. Os passeios, apesar de divertidos e de se constituírem, para Antoine, no momento de fuga de sua 53 Fotograma de “Os incompreendidos”. Doinel gira dentro do brinquedo de parque de diversões. Em sua face percebe-se, na cena, o esforço por tentar se virar e a ausência de referência. realidade coerciva, levam-no à descoberta do incômodo fato de sua mãe ter um amante, ao surpreendê-la beijando um desconhecido na rua. Quando à noite, seu pai chega a casa e lhe diz que serão eles os responsáveis pelo jantar, o rapaz equivocadamente pensa que sua mãe partiu. Apesar de não ser filho do homem que lhe sustenta, é com a mãe que Doinel tem menor proximidade. Sabendo que não foi desejado, percebe na forma hostil pela qual é tratado por ela que não é bem-vindo, chegando a ouvi-la dizer para seu marido que devem enviá-lo a um internato, caso queiram ter paz. Desta maneira, quando precisa inventar uma desculpa por ter faltado à aula, diz ao professor que sua mãe morreu. Agindo assim, assassina figurativamente a mãe, como forma de compensar a falta de afeto materno que sente. Segundo Truffaut: “Antoine Doinel avança na vida como um órfão e procura famílias substitutas. Infelizmente, quando as encontra, tende a fugir, pois permanece um escapista. Doinel não se opõe abertamente à sociedade, e nesse aspecto não é um revolucionário, seguindo seu caminho à margem da sociedade, desconfiando dela e buscando ser aceito por aqueles a quem ama e admira, pois sua boa vontade é total. Antoine Doinel não é o que se chama de um personagem exemplar, tem charme e abusa dele, mente 68 muito, pede mais amor do que ele próprio tem a oferecer (...)” Além dos passeios, a cultura constitui-se enquanto uma das formas de fuga do jovem. Leitor eventual de Balzac, Doinel é frequentador assíduo das salas de 68 “Quem é Antoine Doinel?”. O Prazer dos Olhos: textos sobre cinema. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p. 30. 54 Fotograma de “Os incompreendidos”. Os rapazes furtam uma fotografia da entrada de uma sala de exibição. A arte cinematográfica constitui-se, para Antoine e seu amigo, como o principal refúgio diante de suas angústias juvenis. cinema, assistindo filmes de variados gêneros. Numa das cenas em que está em uma sala de exibição, furta com seu amigo a fotografia de uma atriz 69, o que demonstra a relação passional dos dois com o cinema. Na única cena em que a família Doinel aproveita momentos felizes, de descontração, os três saem à noite para ir ao cinema, o filme escolhido, “Paris nous appartient”70 (Paris nos pertence), tem um título significativo da relação fugaz do trio com a cidade. Além da família de Doinel, apenas a família de seu amigo é representada em toda a película. De classe média alta, a residência na qual mora este rapaz opõe-se ao minúsculo apartamento de Doinel pela opulência da construção, um palacete de dimensões generosas, porém envelhecido. Os laços relacionais travados, entretanto, não diferem tanto daqueles de Doinel e seus familiares. Enquanto o pai, e chefe da família, encontra-se constantemente ausente, a mãe tem problemas com o álcool, o que faz com que o amigo de Doinel conte com um grau de liberdade bastante incomum para um adolescente daquela faixa etária. Como consequência, o rapaz 69 Trata-se de um fotograma de “Monika”, dirigido por Ingmar Bergman, em 1952. No fotograma em questão, vê-se Harriett Andersson de olhos fechados, sob o sol, ombros nus, de pé em uma praia. A imagem é considerada a matriz da Nouvelle Vague, pela exibição do corpo, da juventude, da provocação. Note-se que se trata de um corpo feminino, o que é bastante significativo da posição destacada que a feminilidade ocupa em boa parte da produção cinematográfica identificada como pertencente a este movimento ou mesmo em títulos partícipes de suas características estéticas principais e da ordem do enredo. 70 Um filme homônimo seria lançado em 1961, sob direção de Jacques Rivette e produção de François Truffaut e Claude Chabrol. 55 desenvolveu um apurado tato de adaptação às necessidades que se impõem, sendo as soluções utilizadas nem sempre legais ou moralmente aceitáveis. Será na casa deste amigo que Antoine se abrigará, após ser injustamente suspenso na escola. Neste episódio, ele decide não voltar pra casa, pois caso o faça teme ser enviado à Escola Militar, como o pai havia ameaçado fazer. Os pais de seu anfitrião provavelmente não iriam perceber e, quando o pai nota a presença de outro garoto, não tece questionamentos. Truffaut realiza de forma decadente a representação da camada tradicional da burguesia francesa, simbolizando esta situação tanto pela desestruturação familiar, quanto pelo estado desorganizado e sombrio da residência, com cômodos entulhados de objetos exóticos e paredes por pintar. Juntos, os rapazes planejam roubar uma máquina de escrever do escritório onde trabalha o pai de Doinel para empenhá-la e conseguir algum dinheiro. Fracassando neste intento, o rapaz será pego no momento em que tenta devolver a máquina ao lugar de onde a tinha retirado. Sendo denunciado pelo zelador ao seu pai, Doinel é levado por este à delegacia, o que dá início a sua trajetória como jovem delinquente, aos olhos do Estado. Acreditando ser a melhor forma de corrigir o rapaz, seu pai aceita o conselho do delegado, que lhe indica uma instituição correcional onde, segundo ele, são organizados e Doinel poderá aprender um ofício. As sequências seguintes são baseadas na experiência do próprio diretor. Nas palavras de Truffaut: “Eu conhecia muito bem o que mostrei no filme: a delegacia com as putas, o camburão, a “gaiola”, a identificação judiciária, a prisão; não quero me estender sobre o assunto, mas posso dizer que o que conheci era 71 mais duro que o que mostrei no filme.” A película torna-se ainda mais obscura, em consonância ao trágico destino de Doinel. Sendo transladado da delegacia para a prisão em um camburão dotado de grades na porta traseira, o jovem se despede da cidade observando-a à noite, com as inúmeras luzes dos letreiros por entre as barras. A baixa iluminação permite a visualização apenas de parte do rosto de Doinel, que chora discretamente. A cena na qual o rapaz nos é apresentado em sua cela é realizada em posição descendente, ângulo de filmagem que permite à câmera subjugar a personagem, 71 “Quem é Antoine Doinel?”. O Prazer dos Olhos: textos sobre cinema. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p. 25. 56 Fotograma de “Os incompreendidos”. Antoine em sua cela, detido, antes de ser enviado à instituição correcional. colocando-a fisicamente sob controle. Doinel é visto deitado na cama, sozinho no restrito espaço, no escuro, no frio, no silêncio, na solidão. A trilha sonora utilizada busca sensibilizar o espectador quanto à situação do jovem que, de rapaz problemático, angustiado, foi transformado em criminoso por um sistema judicial inadequado para lidar com a juventude. Na instituição correcional, Doinel terá seus últimos laços familiares rompidos. Sendo visitado por sua mãe, que informara ao juiz responsável pelo caso que não o queria em casa novamente se ele não mudasse de comportamento, é acusado por esta de ter contado um segredo seu ao marido, provavelmente referente ao seu caso extraconjugal. A mãe, indignada, conta com satisfação que seu pai não quer mais vê-lo e que ele será mandado para um centro de trabalhos. A cena, rodada na técnica de montagem de campo / contra-campo, se constitui com Doinel sendo fotografado tendo atrás de si um fundo escuro. Vestindo um casaco igualmente escuro, apenas a face do rapaz é visível, oferecendo-se todo o enquadramento para a expressividade de seu rosto enquanto recebe as desanimadoras notícias da mãe, que consolida seu esperado afastamento dele. Na sequência final e, certamente, a mais emblemática da película, Doinel foge da instituição na qual se encontra e corre incessantemente até alcançar o mar. Seguindo uma estrada interiorana, acompanha campos secos, com árvores desfolhadas pelo inverno. Durante a projeção, ele havia anunciado o desejo de ver o litoral, que desconhecia, e talvez servir à marinha. Numa praia fria e deserta, sob o 57 Fotograma de “Os incompreendidos”. Na cena final, Doinel olha fixamente em direção à câmera, ao espectador. céu nublado que insistentemente acompanhou o protagonista, Doinel tem seu primeiro contato com o mar, para ele a representação maior da liberdade. Observando-o brevemente, molha timidamente os pés na água gélida, então se volta para a câmera e a encara fixamente. Seu olhar angustiado, que havia fitado rapidamente o horizonte, demonstra que Doinel não chegou ao final de sua busca. Ao longo de todo o desenvolvimento da trama, Truffaut havia privado seu protagonista da liberdade. Se na escola, o rapaz deveria se submeter a um ambiente castrador, diante de professores e técnicas de ensino ultrapassadas e pouco funcionais, no apartamento em que vivia lidava tanto com o distanciamento de seus familiares, quanto com um espaço exíguo, sem contar sequer com um lugar apropriado para dormir. Quando o diretor oferece espaço e, desta forma, liberdade à personagem, coloca-a diante do horizonte aberto propiciado pelo mar. Entretanto, ao mesmo tempo em que o mar pode representar à Doinel a liberdade por ele ansiada, igualmente configura-se como uma barreira intransponível. Chegando ao fim da linha, Doinel não sabe aonde ir. No filme de François Truffaut, Antoine Doinel constitui-se enquanto um personagem duplo. Se, numa primeira instância, ele é a figura “autobiografada” do diretor, possuindo os traços morais e de personalidade que Truffaut acreditava ter tido durante aquela fase de sua vida, partilhando com ele detalhes como a origem humilde, a residência em Pigalle, a passagem pelo reformatório e a paixão pelo cinema, pontualmente reafirmada na projeção, numa segunda instância, mais 58 profunda, Doinel representa toda a juventude francesa, através de sua falta de referência social, de seu constante sentimento de angústia e da busca por um objetivo que não lhe é claro. Na última tomada, Doinel olha diretamente para a câmera, que fecha em primeiríssimo plano sobre seu rosto, uma alegoria do olhar da juventude em direção à sociedade. 1.3 OS JOVENS DE “SEMENTES DA VIOLÊNCIA” E DE “OS INCOMPREENDIDOS” As obras privilegiadas no presente capítulo, “Sementes da violência” (Blackboard jungle, dir.: Richard Brooks – 1955) e “Os incompreendidos” (Les quatre cents coups, dir.: François Truffaut – 1959), comungam de uma mesma temática: a juventude e seus problemas sociais. Entretanto, apesar da proximidade de tema que fundamenta a confecção dos enredos, cada obra possui especificidades que as tornam bastante divergentes em muitos aspectos. Considerando-se o teor historiográfico do presente trabalho, estas dessemelhanças revestem-se de singular importância, uma vez que permitem a historicização das películas, desvelando o contato das mesmas com seus respectivos contextos de produção. Paralelamente, o pertencimento de cada uma das produções a escolas cinematográficas distintas, cada qual com seu conjunto próprio de técnicas, fazeres, modos de produção, códigos, igualmente constituem-se como influências que estão presentes nos modos de realização de ambos os filmes. Iniciando um exame comparativo a partir dos títulos originais das obras, percebe-se a relação destes com a linha principal de desenvolvimento dos enredos. Blackboard jungle ou, em tradução livre, “selva do quadro-negro”, intitula a trama na qual a rebeldia juvenil é centrada na instituição escolar, sendo esta a única instância que poderá reverter a situação dos jovens em perigo, possibilitando a recuperação dos mesmos; Les quatre cents coups, por sua vez, é uma sentença idiomática da língua francesa que seria semanticamente próxima de “pintar o sete”, do idioma português. Relacionando-se às atividades inconsequentes praticadas por diversão pelas crianças, o uso do termo insere-se na trama do filme de Truffaut demonstrando a gradual evolução das travessuras de seu protagonista, Antoine Doinel, até a transfiguração deste em criminoso, sendo internado em um centro para 59 delinquentes juvenis. Explicita-se, com este título, residir em cada ação de Doinel alguma medida de ingenuidade, de inocência. Considerando-se os contextos de produção cinematográfica de cada uma das películas, “Sementes da violência” realiza uma representação da rebeldia jovem notadamente mais conservadora que a construída em “Os incompreendidos”. Como uma produção hollywoodiana da década de 1950, o filme de Brooks se insere no conservadorismo político daqueles anos, marcado pela retórica anticomunista que colocava em suspeição tanto a indústria do cinema, como seus profissionais. Além disso, deveria se submeter ao Código Hays72, como forma de obter a licença de exibição. Dito isso, não deixa de ser surpreendente a veiculação de cenas que conduzem atos de violência como a tentativa de estupro de uma professora, ou o esfaqueamento de outro professor, sendo ambas as ofensas perpetradas por alunos73. Não obstante, em absoluta observância aos códigos do cinema clássico, a película tem um desfecho conservador, com os alunos mais violentos e, portanto, irrecuperáveis, sendo punidos e afastados do convívio do grupo que, purgado de seus mais nefastos integrantes, será moldado aos aceitáveis padrões morais da sociedade americana, padrões estes responsáveis pela proeminência desta nação no mundo. Os impasses são resolvidos com o típico final feliz, sem que seja oferecida qualquer margem de reflexão à audiência. Importante salientar que a trama elege como herói o professor, não um dos alunos. Em se tratando de uma produção que pretende abordar uma questão eminentemente juvenil, esta escolha 72 Tendo-se em vista o tradicional conservadorismo moral da sociedade norte-americana, o cinema não tardou a se tornar alvo de grupos que intentavam assegurar aquilo que consideravam como o padrão moralista ideal a ser apresentado na tela grande. Diante das investidas de diversas organizações, tanto religiosas, quanto governamentais de distintos níveis, a indústria cinematográfica cria um código de autocensura como forma de evitar os empecilhos causados pela atuação das mesmas. O PCA (Production Code Administration) representou um consenso firmado entre estúdios e produtores no qual um conjunto de regras básicas referentes ao que poderia e ao que não poderia ser veiculado na tela de cinema procurava normatizar moralmente a produção. Personificado na figura de Will Hays, a ponto de o código de produção ficar conhecido como “Código Hays”, e atuando com notável colaboração da organização moralista católica denominada Legião da Decência, a autocensura atuou de fins da década de 1920 até a década de 1960, momento no qual as novas demandas sociais tornaram o código inaplicável. De qualquer forma, entre as décadas de 1930 e 1950, configurou-se enquanto importante instrumento de defesa da indústria cinematográfica aos perigos da censura externa. Cf. LEV, Peter. “Censorship and Self-Regulation”. In: LEV, Peter. The Fifties – Transforming the Screen (1950-1959). New York: Charles Scribner's Sons & Thomson Corporation, 2003. 73 Significativamente, os mais sérios atos de violência realizados pelos alunos em “Sementes da violência” são perpetrados contra os professores e, assim, contra a própria instituição escolar. A escola, que no enredo é apontada como o instrumento social que tem o potencial tanto de destruir, se mal administrada, contando em seu quadro com professores desacreditados, quanto de moldar a juventude, gerando o cidadão ideal, produtivo e ciente de sua função patriótica na manutenção do bem da nação, materializa-se como o alvo por excelência dos jovens marginalizados. Neste caso, a escola figura como a representante do Estado que, no caso destes estudantes, é negligente. 60 do enredo coaduna-se com o lugar de fala do qual a narrativa é enunciada ao espectador. Desta maneira, o relacionamento firmado entre Dadier e seus alunos representa a relação que se deseja firmar entre a sociedade e seus jovens, apoiada principalmente no comando e na obediência, devendo o comportamento juvenil ser passivamente moldado aos padrões culturais, éticos e morais emanados da sociedade, em perfeita confluência àquilo que distingue o tão propagandeado ethos americano, pretensamente responsável pela singular trajetória daquela nação. Como a especificidade americana deve prevalecer, resta aos heterogêneos estudantes se adequarem aos moldes da América branca, fiel depositária dos mais elevados valores daquela sociedade em um mundo no qual a balança de poderes encontra-se desestabilizada, com as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, disputando áreas de influência ao redor do globo. Assim, percebe-se que a representação de juventude operada na película americana atende a alguns clichês e arquétipos do jovem inquieto, rebelde, em dissonância às instituições nas quais deveria harmoniosamente se integrar. Nesta obra, o comportamento dos rapazes é, em geral, superficialmente exposto, sem que seja realizado um aprofundamento psicológico das razões pessoais e sociais envolvidas na delinquência, com a marginalização étnica e social sendo apenas pontuada. Fato que não ocorre na produção francesa na qual o espectador é convidado a dividir com Doinel suas carências, inseguranças, medos, acompanhando o rapaz na difícil tarefa de compreender a realidade hostil que o cerca em casa, na escola, na sociedade. “Os incompreendidos” consiste em uma das primeiras obras da Nouvelle Vague. Fora do mainstream, era a proposta deste movimento de jovens diretores, do qual Truffaut era um dos principais idealizadores, forçar a renovação da produção cinematográfica francesa, com novos temas, novos roteiros, novos atores, em suma, uma nova forma de fazer cinema. Desta maneira, nada mais potencialmente promissor do que abordar a juventude de maneira realista, buscando apresentar na tela, com considerável dose de honestidade, seus dilemas internos e sua relação conflituosa com os pais, a escola, a sociedade da qual faz parte, porém na qual não se sente abrangida. Duas são as instituições sociais consideradas pelas películas em questão: a escola e a família. Apesar de a trama de “Sementes da violência” ser construída voltada ao ambiente escolar, com a quase completa ausência de referências à 61 família, a fala de Miller informando ao professor Dadier que seus familiares não se importam com seus estudos é bastante significativa da importância do seio familiar na saudável educação do adolescente. A escola, no entanto, é apresentada como o mecanismo capaz de regenerar a precária juventude americana dos anos 1950, por meio da providencial determinação salvadora de um professor. A abordagem realizada em “Os incompreendidos”, contudo, segue um viés bem diferente: tanto a escola quanto a família estão presentes no cotidiano de Doinel, no entanto, nenhuma destas duas instâncias parece apta a lidar com as idiossincrasias do jovem. Apesar de constante, a escola é obsoleta e estéril, não havendo qualquer aproximação aos interesses dos jovens; quanto às famílias representadas na película, estas não estão verdadeiramente presentes nas vidas dos rapazes, negligenciando-os afetivamente. Desta forma, apesar de haverem laços familiares, estes não são suficientemente firmes, sendo esta a causa principal do desvio dos adolescentes. Assim sendo, enquanto que em “Sementes da violência” a escola figura como a possibilidade de recuperação do jovem delinquente, em “Os incompreendidos” não há qualquer esperança. Sem apoio escolar ou familiar, Doinel está sozinho. Talvez por isso busque refúgio em atividades artísticas, na leitura de renomados literatos, como Balzac e, especialmente, no cinema, que assiste compulsivamente. O mundo interior de Doinel é espetacularmente rico, ele, porém, não o confessa a ninguém. Suas incursões pela cidade são representativas de sua incessante busca por um caminho próprio, algo com o qual pudesse se identificar. Pela perspectiva do rapaz, a cidade comprova a possibilidade de liberação do ambiente coercitivo representado tanto pela escola, quanto pela família. Transitando despretensiosamente pelas ruas de Paris, Doinel experiencia uma atmosfera muito distante daquela de seu cotidiano, tendo contato com pessoas, situações e sensações que compensam a falta de horizontes que caracteriza seu cotidiano. Por isso não poderia ser mais dolorosa sua partida à noite, no camburão. Pela janela, Doinel entrevê a intensa vida noturna da cidade, sendo as luzes dos letreiros a iluminar sua face. Privado de sua cidade, Antoine Doinel perde suas expectativas. Quanto aos jovens de “Sementes da Violência”, estes são representados quase que exclusivamente relacionados à vida escolar e, mesmo quando alguns deles buscam desenvolver atividades extras, terminam por desempenhá-las na escola, apresentando um número musical na festa de Natal da instituição. Segundo este 62 enredo, para a juventude americana, a educação escolar consiste no único meio de digna inserção social, cabendo aos jovens uma restrita margem de autonomia. Finalmente, dentro ou fora da instituição escolar e, portanto, integrados ou não às instituições que representam a presença e o controle do Estado em seus cotidianos, os jovens contam com uma dose muito limitada de liberdade. Àqueles que ousarem buscar a ampliação de sua liberdade, vivendo verdadeiramente livres, restará a oposição da sociedade e sua exclusão do meio social. 63 2 AS SOCIEDADES FRENTE À CULTURA JOVEM Como abordado no capítulo anterior, a ascensão da juventude enquanto grupo social coeso, apesar de heterogêneo, e portador de demandas próprias, representou a consolidação de uma cultura jovem que surpreendeu as sociedades aqui analisadas nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial. A declaração social da juventude forçou o reconhecimento da importância desta parcela populacional como atores relevantes na conjuntura daquelas nações. A afirmação de uma cultura jovem ativa explicitava não apenas a seriedade desta transformação no campo sociocultural, mas representava a cristalização econômica de um novo agrupamento mercadológico, de um potencial nicho de consumo. Paralelamente, na conjuntura da política externa do período, a peculiar maneira pela qual o conjunto de hábitos, maneirismos e comportamentos dos adolescentes ultrapassava as fronteiras nacionais, fez com que a cultura jovem fosse logo percebida enquanto potencialmente propagandística, coadunando-se aos interesses de determinados Estados. Ao longo dos anos 1950 ocorrem, nos Estados Unidos, algumas intervenções governamentais que comprovam o reconhecimento legal e social do jovem. Quanto a isso, informa-nos Luisa Passerini: Em 1950, o processo [de consolidação] estava completo e a adolescência adquirira um estatuto legal e social, a ser disciplinado, regulamentado, protegido. Prova desse reconhecimento e sanção: uma série de intervenções governamentais, destacando-se a criação, em 1951, da Youth Correction Division (tendo como base o Federal Youth Corrections Act) para tratar e reabilitar os transgressores com idade inferior aos 22 anos; em 1953 (SIC), surge o Subcomitê sobre a Delinquência Juvenil do Senado e, em 1954, a seção para a delinquência juvenil no âmbito do Children‟s Bureau do governo federal; a constituição, em 1961, obra do presidente Kennedy, do Committee on Youth Employment; e a promoção, por parte das agências governamentais, de múltiplas iniciativas para o estudo e discussão do problema dos jovens, como o grande seminário sobre crianças e jovens organizado pela Casa Branca, em 1960, com a participação de 7600 delegados, sendo que 1200 tinham de dezesseis a vinte e um anos. Esses atos governamentais refletem um modo de perceber os jovens como indivíduos perigosos para a sociedade e para si próprios e, ao mesmo tempo, necessitando de proteção e de ajuda particulares; era inevitável que acabassem por solicitar comportamentos que valorizassem tal concepção ou pelo menos que tornassem muito difícil pensar e definir os 74 fenômenos com que se ocupavam de modos alternativos. Kett observou que a mentalidade que criou o delinquente como tipo se parece com aquela que criou o tipo do adolescente: primeiro, certos traços físicos e/ou mentais 74 Refere-se à: KETT. J. F. Rites of Passage. Adolescence in America 1790 to the present. New York: Basic Books, 1977. pp. 252 e ss. 64 são definidos como próprios do tipo e em seguida a definição é usada para 75 explicar o comportamento dos jovens. Ainda segundo esta autora, entre 1950 e 1964 teve lugar um acentuado debate sobre as questões concernentes à juventude na sociedade americana, no qual o elemento da delinquência juvenil gozava de posição de destaque. Essa confluência social em torno dos jovens talvez se explique, dentre outros fatores, pelo fato de que os adolescentes da década de 1950 diferenciavam-se de seus congêneres das gerações anteriores pelo elevado padrão de consumo e pela autoconsciência: “Tratava-se da primeira geração de adolescentes americanos privilegiados, mas sobretudo da primeira geração que apresentava uma coesão tão acentuada, um auto-reconhecimento enquanto comunidade 76 especial com interesses comuns.” Relacionados ao meio urbano, a high school constituía-se, na representação corrente, como o ambiente distintivo da sociabilidade adolescente, com os laços firmados na escola sendo transpostos para outros lugares de reunião social, os bailes, os clubes, as lanchonetes jovens. Assim, a interação entre as gerações, que tradicionalmente havia sido a fonte da troca de conhecimentos, era substituída pela interação dentro de uma mesma faixa etária, já que os jovens passavam a maior parte do tempo na companhia de outros jovens. Desta maneira, a visibilidade desta parcela social, bem como dos temas a ela referentes, apresentou-se, no período considerado, de maneira singularmente intensa. Em relação aos parâmetros sociais estabelecidos o jovem torna-se, portanto, “o outro”, significativo de uma alteridade que, para Passerini, transformava-o em símbolo tanto dos subprivilegiados quanto dos excessivamente privilegiados, ou seja, sendo identificado com aqueles que se encontravam fora da norma, do mediano, fosse positivamente ou negativamente. Essa simbologia será absorvida e gestada pelo cinema. Já segundo Edgar Friedenberg, a posição “paralela” dos jovens permitiu que estes assumissem os lugares ocupados anteriormente por outras figuras sociais e políticas que representavam grupos submetidos a algum grau de distanciamento do corpo social, citando como exemplo, os comunistas. Em 75 PASSERINI, Luisa. “A juventude, metáfora da mudança social. Dois debates sobre os jovens: a Itália fascista e os Estados Unidos da década de 1950”. In: LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude. (Orgs.). História dos Jovens: A Época Contemporânea. Trad. Paulo Neves, Nilson Moulin, Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia da Letras, 1996. p. 353. 76 Ibid, p. 354. 65 The Vanishing Adolescent77, o autor considera que estaria havendo um desaparecimento desta faixa etária, comprimida entre a infância e a precocidade com a qual o adolescente era inserido à vida adulta, tornando-se muito cedo consumidor, amante, membro de comitês, ao passo que o período de formação se prolongava, com o aumento do número de anos de educação escolar e profissional. O debate sobre os jovens, e as muitas consequências de sua tomada de autonomia para a sociedade, usualmente variava entre, primeiramente, a consideração de que o problema do distanciamento instituído entre a atmosfera juvenil e a da sociedade como um todo se devia à crise dos valores tradicionais e familiares, bem como aos métodos modernos de educação escolar, tidos como permissivos em excesso e, em segundo lugar, a preocupação de observar atentamente os padrões comportamentais dos jovens, compreendendo suas interações para assim prevenir a delinquência e os demais atos tidos como desviantes, controlando as divergências dos adolescentes. As críticas deste primeiro posicionamento revestiam-se de uma retórica notadamente mais conservadora, salientando uma hipotética erosão dos valores tradicionais da sociedade americana pela pressão da subcultura jovem. Exemplar deste discurso, o livro Teen-age Tyranny, de Grace e Fred Hechinger, expõe o receio existente no período de que a cultura adolescente em ascensão representaria grande perigo ao desenvolvimento da sociedade americana. Segundo os autores: A sociedade americana corre o risco de tornar-se uma sociedade adolescente com critérios adolescentes e objetivos imaturos na cultura e na 78 informação (...) um crescimento para baixo em vez de para o alto. A segunda postura existente no debate é representada, por sua vez, pelas inúmeras políticas governamentais realizadas ao longo da década de 1950 e posterior, já citadas, que pretendiam abordar o dilema conformando-o às instituições estatais, de forma a neutralizá-lo. De qualquer forma, devido ao caráter espetacular sobre o qual a cultura jovem vinha lançando seus alicerces, o conceito de delinquência sofreu um alargamento de significado em contato com o conceito de adolescência: qualquer utilização de linguajar ou maneirismos próprios de grupos 77 FRIEDENBERG, Edgar Z. The Vanishing Adolescent. Boston: Beacon Press, 1959. HECHINGER, Grace; HECHINGER, Fred. Teen-age Tyranny. Nova York: William Morrow & Co., 1962. Apud PASSERINI, Luisa. “A juventude, metáfora da mudança social. Dois debates sobre os jovens: a Itália fascista e os Estados Unidos da década de 1950”. In: LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude. (Orgs.). História dos Jovens: A Época Contemporânea. Trad. Paulo Neves, Nilson Moulin, Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia da Letras, 1996. p. 357. 78 66 específicos de jovens era considerado sinal exterior de uma perigosa tendência à criminalidade. Citando Passerini: Nos documentos do Subcomitê do Senado sobre a delinquência juvenil lia-se que “o gângster de amanhã é o tipo à Elvis Presley de hoje”. A subcultura adolescente que era considerada agressiva incluía o rock and roll, o uso de carros cujo motor fora envenenado e a carroceria modificada de modo a personalizá-la, o corte de cabelo à Presley ou os cabelos longos, a roupa retomando estilos afro-americanos, as gangues. A definição de gangue era excessivamente elástica e associava verdadeiros bandos de vândalos que se dedicavam a violências e furtos com grupos mais 79 parecidos a clubes e associações. Neste contexto, em confluência ao considerado na conjuntura da delinquência juvenil na França, anteriormente citada, atribuía-se aos meios de comunicação de massa parte proeminente da responsabilidade pelo acréscimo dos atos de delinquência juvenil. Dentre os produtos desta indústria de massa, os quadrinhos, a música e, sobretudo, o cinema, eram apontados enquanto propagadores de uma conduta juvenil muito distante dos códigos comportamentais desejados, materializando a rebeldia que passava a distinguir o adolescente do restante do corpo social. Marlon Brando e James Dean, no cinema, Elvis Presley na música e, posteriormente, igualmente no cinema, materializavam o protótipo do jovem rebelde rapidamente assimilado tanto nos Estados Unidos, quanto na França. Cabe ressaltar que este processo de assimilação não se constituía enquanto novidade, relacionando-se ao sistema de estrelato conhecido como Star System, instituído ainda na década de 1920, o qual se transfiguraria enquanto importante pilar de sustentação da indústria cinematográfica hollywoodiana. Através deste sistema, que representava muito além de uma simples estratégia publicitária de divulgação das películas, um seleto grupo de atores e atrizes passava a integrar o cast de um determinado estúdio, vinculados a este pela via de contratos de longo termo. Filiados ao estúdio, operava-se a construção de astros e estrelas na figura destes atores, que passavam a representar os principais papéis nas produções realizadas. Logo, os astros tornavam-se maiores que as próprias películas, ocorrendo uma espécie de simbiose entre seus personagens80 e sua pessoa 79 PASSERINI, Luisa. “A juventude, metáfora da mudança social. Dois debates sobre os jovens: a Itália fascista e os Estados Unidos da década de 1950”. In: LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude. (Orgs.). História dos Jovens: A Época Contemporânea. Trad. Paulo Neves, Nilson Moulin, Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia da Letras, 1996. p. 361. 80 Fazia parte deste sistema um determinado ator ou atriz representar personagens que caracterizassem uma “persona” algo fechada, implicando a manutenção de certo conjunto de características básicas. Em outras 67 individual, tanto na vida pública quanto na vida privada. Desta forma, os filmes ganhavam considerável poder de manipulação psicológica sobre a audiência, acionando um processo de projeção-identificação dos espectadores em relação às personagens, bem como aos atores, publicamente apresentados enquanto representantes de uma vida onde a abundância, o conforto, a beleza e a felicidade constituíam-se enquanto bens gratuitamente acessíveis. Edgar Morin assim inicia sua obra As Estrelas: mito e sedução no cinema: O cinematógrafo foi concebido para estudar o movimento: tornouse o maior espetáculo do mundo moderno. A câmara de filmar parecia destinada a decalcar o real: começou a fabricar sonhos. A tela parecia dever apresentar ao ser humano um espelho: ela ofereceu ao século XX 81 semideuses, as estrelas do cinema. Apesar de já ter sofrido alterações substanciais, principalmente quanto às estratégias utilizadas pelos estúdios para assegurar o controle sobre os atores, o processo psicológico de projeção-identificação erigido pelo Star System continuava em execução na década de 1950. Explica-se, assim, a escolha de jovens astros em ascensão, como Dean e Brando, para a interpretação de personagens em conflito declarado com seus pais e com a sociedade.82 A presença das produções cinematográficas realizadas pelos grandes estúdios californianos no cotidiano cultural da França deve-se, em grande medida, a dois fatores principais: por um lado, como salientado anteriormente, o fim da Segunda Guerra Mundial permitiu o acesso do público francês a um volumoso conjunto de produções hollywoodianas que haviam tido suas redes de distribuição prejudicadas, quando não interrompidas, durante o conflito; por outro lado, a indústria de Hollywood percebeu no mercado externo uma valiosa possibilidade de receitas, no contexto de crise enfrentado no mercado americano a partir da promulgação da Lei Antitruste, em 1948, dos entraves representados pela ácida retórica anticomunista, do surgimento da concorrência da televisão, bem como da palavras, uma atriz que usualmente vivia mulheres sedutoras e perigosas ou um ator que costumeiramente dava vida a personagens honestos e moralmente fortes diante das adversidades. 81 MORIN, Edgar. As Estrelas: mito e sedução no cinema. Trad.: Luciano Trigo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. X. 82 Mesmo quando estes atores davam vida a personagens em enredos que não se enquadravam ao gênero do filme adolescente, suas interpretações mantinham-se no viés da representação de jovens angustiados, em ruptura com a realidade da qual faziam parte. Neste sentido, podem-se citar, no caso de Brando, “Uma Rua Chamada Pecado” (A Streetcar Named Desire, dir.: Elia Kazan – 1951) e “Sindicato de Ladrões” (On the Waterfront, dir. Elia Kazan – 1954), e no caso de Dean, “Vidas Amargas” (East of Eden, dir.: Elia Kazan – 1955). A recorrência do nome de Elia Kazan como diretor das películas citadas não é coincidência, tendo sido este um dos diretores que mais frequentemente exploraram as dúvidas e anseios morais de personagens jovens, em enredos notadamente dramáticos, durante a década de 1950. 68 rápida constituição dos subúrbios que, afastando as famílias dos centros urbanos, colaboravam para uma sensível redução do público frequentador das salas de exibição. Desta forma, em confluência aos acordos de ajuda econômica firmados dentro da política do Plano Marshall, a indústria cinematográfica americana barganha a inserção de sua produção em alguns dos mercados nacionais europeus, dentre eles, o francês. Além disso, era de grande interesse do governo dos Estados Unidos a entrada de filmes americanos nos países da Europa ocidental, como ferramenta propagandística do American Way of Life, na conjuntura da Guerra Fria de disputas por territórios de influência. Examinando a busca dos grandes estúdios hollywoodianos por mercados na Europa do pós-guerra, Thomas Guback nos informa que este esforço se inicia antes mesmo de terminado o conflito. Segundo o autor: Antes mesmo do fim da Guerra, planos foram traçados para recapturar os mercados estrangeiros para a mídia americana. Conforme as tropas aliadas liberaram a Europa, os filmes americanos seguiram no caminho, com exibições organizadas pelo Escritório de Assuntos Psicológicos de Guerra. O Escritório de Informação de Guerra esteve responsável pela distribuição dos filmes americanos na França, Bélgica, Países Baixos e Itália, até as companhias americanas poderem reabrir seus 83 escritórios. Referindo-se ao caso francês, especificamente, Guback cita o Acordo Cinematográfico Franco-Americano, assinado em 1948, o qual, dentre outras determinações, permitiu que 121 filmes americanos entrassem na França anualmente, ao passo que todo o restante dos países produtores do mundo tinha que disputar e dividir entre si um total de apenas sessenta e cinco permissões de importação. Esta óbvia diferença refletia a grande posição de barganha da MPEA [Associação para Exportação de Filmes] e do Departamento de Estado, assim como os efeitos da ajuda do Plano Marshall sobre os negócios de muitos países. O acordo de 1948, apesar de vantajoso, substituiu um acordo de maio de 1946 o qual não determinava limites para a importação de filmes 84 americanos, nem obstáculos para a prática de dumping de velhos filmes. Desta maneira, as salas de exibição francesas da década de 1950 veiculavam boa parte da produção cinematográfica americana, apesar dos esforços do governo, ao longo da década, para fomentar a produção cinematográfica nacional que, por sua vez, recuperada dos anos de guerra, contava com um bem estruturado sistema de produção, bem como com sua fatia de mercado. De qualquer forma, 83 GUBACK. Thomas H. “Hollywood’s International Market”. In: BALIO, Tino. (org.). The American Film Industry. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1976. p. 395. 84 Ibid, p. 397. 69 torna-se claro que o arquétipo de rebeldia juvenil moldado nos filmes adolescentes americanos fazia parte do imaginário da juventude francesa de fins dos anos 1950. Entretanto, o modo através do qual a sociedade desta nação europeia lida com a ascensão da juventude diverge dos desdobramentos ocorridos nos Estados Unidos. A partir de meados da década, diante da auto-afirmação juvenil, começa a ocorrer uma série de pesquisas fomentadas por distintos órgãos de imprensa que buscavam determinar as linhas gerais do comportamento desta nova juventude. Segundo Antoine de Baecque: A tomada de consciência da existência de uma identidade própria a juventude é a ocasião de uma série de enquetes, numerosas, detalhadas, aprofundadas, ao ponto que podemos falar de um verdadeiro gênero possuindo seus especialistas: jornalistas, universitários ou escritores, até os cineastas mesmos. Entre 1957 e 1960, jornais, revistas, livros, os acolhem em abundância. O movimento é lançado em março de 1955 pela revista La Nef, que publica um número especial intitulado “Juventude, quem é você?”. Então, em cinco anos, aproximadamente uma trintena de enquetes nacionais se sucedem. Encontramos igualmente trabalhos mais especializados, tratando de um comportamento preciso: a vida sexual dos jovens, sua crença em Deus, seus “sonhos”, seus gostos culturais, seu 85 civismo, e sobretudo seus comportamentos associados aos delinquentes. Particularmente ativo neste período, o sociólogo Edgar Morin realiza um considerável conjunto de pesquisas e estudos voltados à compreensão do espírito desta juventude.86 Em suas análises, ele desenvolve a noção de “modelo cinematográfico” que permitia ao adolescente se reconhecer e se afirmar. Para o autor, a identificação com astros e estrelas como James Dean e Brigite Bardot “é uma maneira, para uma juventude abandonada a ela mesma, de se agrupar e se inicializar, de „encontrar sozinhos as chaves do mundo adulto‟”.87 Segundo Morin, a juventude francesa da segunda metade da década de 1950 é marcada pelo tédio, tristeza, melancolia, sendo a geração que veio depois da batalha (pela França durante a guerra), mas contemporânea da ansiedade causada pela possibilidade do aniquilamento nuclear. Diante deste sentimento de tédio e frustração, os jovens respondem através do exílio neles mesmos ou em sua faixa etária, um ceticismo generalizado, niilista. Será em uma das dezenas de enquetes realizadas que, em 1957, o termo Nouvelle Vague surge. Assim, antes de denominar um movimento cinematográfico, 85 BAECQUE, Antoine de. La Nouvelle Vague: portrait d’une jeunesse. Paris: Flammarion, 2009. p. 40. Alguns destes trabalhos são: O Cinema ou o Homem Imaginário (1956), Estrelas: mito e sedução no cinema (1957), O Espírito do Tempo: ensaio sobre a cultura de massa (1962), e o filme documentário “Crônicas de um verão” (1961). 87 Op. cit., p. 40. 86 70 estas palavras referiam-se à juventude francesa que se fazia ouvir. Propondo um questionário aos leitores situados entre os dezoito e os trinta anos de idade, a revista L’Express88 publica, ao longo de três meses, testemunhos de jovens com a finalidade de conhecer a nova geração de franceses. Desta forma: A expressão “nouvelle vague” foi forjada para designar o vazio que representa a geração do futuro para os adultos de 1957, para tentar elucidar o perfil coletivo de uma juventude ainda enigmática e conferir-lhe um caráter atrativo: caso não queira ser submergido, o velho mundo deve se adaptar, 89 se abrir, se fazer mais jovem. A seguir, tendo-se em mente as considerações acima elaboradas, examinam-se as produções “Juventude transviada” (Rebel without a cause, dir.: Nicholas Ray – 1955) e “Acossado” (À bout de souffle, dir.: Jean-Luc Godard – 1960) objetivando elucidar os elementos sobre os quais se assentaram as representações juvenis operadas nas obras selecionadas, bem como o contato das mesmas com o contexto de absorção da cultura jovem nas conjunturas sociais de Estados Unidos e França. 2.1 NICHOLAS RAY E A MITOLOGIA DA REPRESENTAÇÃO JUVENIL NO CINEMA Ambientado nas proximidades da cidade de São Francisco, Califórnia, “Juventude transviada” narra um dia na vida de Jim Stark, representado pelo ator James Dean. Jovem instável, Jim acaba de se mudar para uma nova vizinhança, por decisão de sua família, após haver se envolvido em problemas com outro garoto, na cidade onde morava. Na verdade, a raiz de seus dilemas encontra-se dentro de sua própria casa, de seu núcleo familiar. Jim não consegue concordar com a inversão de papéis que vê, diariamente, em seu lar, onde sua mãe assume posição de domínio sobre seu pai que, na visão do rapaz, não possui firmeza de caráter para fazer frente aos inaceitáveis ditames da esposa. Apesar da intenção de se adequar à nova realidade social onde está sendo inserido, Jim não tarda a entrar em conflito com o grupo de arruaceiros da escola em que está ingressando, grupo do qual faz parte sua nova vizinha, Judy (Natalie Wood). Desafiado por Buzz (Jim Backus), líder do 88 Edição semanal politicamente orientada à direita, produzida segundo os moldes editoriais das revistas americanas Time e Newsweek. 89 BAECQUE, Antoine de. La Nouvelle Vague: portrait d’une jeunesse. Paris: Flammarion, 2009, p. 47. 71 Cartaz de “Juventude transviada”. [sem título]. http://www.hollywoodteenmovies.com>. Acesso em: 09 dez. 2013. <Disponível em: grupo e namorado de Judy, Jim toma parte em uma corrida clandestina que acaba pondo fim à vida daquele. Tentando levar o caso à polícia, é perseguido pelos outros integrantes do bando da escola, o que levará à morte de seu fragilizado amigo, John (Sal Mineo), que se autodenomina Platão. Devido a esta fatalidade, Jim se reconcilia com sua família, revendo seu temperamento explosivo. A inserção desta produção cinematográfica no cenário cultural juvenil do período seria notável, devendo-se seu sucesso a uma confluência de fatores. Primeiramente, a produção de Nicholas Ray já contava com as mais recentes e espetaculares inovações tecnológicas do período, sendo exibido em cores e no formato de tela widescreen. Um segundo motivo para o alto nível de aceitação da película se deve ao fato de seu roteiro ter como cenário uma localidade residencial suburbana, com as personagens principais sendo ainda estudantes do high school90, detalhes estes que aproximavam bastante a obra de seu público consumidor alvo, 90 No sistema educacional dos Estados Unidos, o high school equivale ao atual ensino médio do sistema educacional brasileiro. No entanto, se o primeiro consiste em quatro anos letivos, o segundo é composto por apenas três. Desta forma, os estudantes usualmente cursam o high school entre seus 14 e 17 anos de idade. 72 os jovens de classe média de regiões urbanas. Outro aspecto que pode ajudar a explicar o sucesso alcançado pela película consiste na prematura morte de seu astro principal, James Dean, morto em um desastre automobilístico dias antes do lançamento do filme, acontecimento que, possivelmente, foi indiretamente responsável pela ampla divulgação obtida pela produção e por parte substancial dos ingressos vendidos. A performance realizada por James Dean em “Juventude transviada” lhe conferiria a posição de primeiro astro adolescente no momento em que o star system passava por transformações e no qual surgia um novo tipo de herói cinematográfico em Hollywood. Este se distancia do clássico modelo das décadas anteriores, de notável cavalheirismo e idoneidade moral incorruptível, mesmo diante das adversidades mais atrozes, seguro e suficientemente forte para seguir o caminho eticamente correto merecendo, no final, a admiração da heroína. Agora, o herói parece seguir uma ética própria, apenas em parte congruente com o papel social dele esperado. Os dilemas pessoais por ele enfrentados exteriorizam-se em sua falta de habilidade em lidar com o meio social, meio este que se caracteriza como a origem mesma de seus impasses psicológicos. Segundo Edgar Morin, refletindo sobre a conjuntura de surgimento deste herói: O star system morreu, mas a estrela de cinema continua. A estrela mergulha na problemática e se exalta na mitologia. Sua vida já não é mais solução, mas uma busca ardente, já não é mais satisfação, mas a sede. Ela nasce às vezes do filme problemático, de onde é projetada para o céu da mitologia; ou então, quando nasce na superprodução, procura introduzir-se no cinema problemático. São os filmes que conseguem tomar emprestado ao segundo cinema seu caráter problemático, conservando do primeiro a natureza espetacular-mitológica, aliás, que são os privilegiados, nos quais surgem as estrelas atuais. As estrelas, portanto, já não são modelos culturais, guias ideais, mas simplesmente imagens exaltadas, símbolos de 91 uma vida errante e de uma busca real. Dean seria, assim, a “encarnação adolescente (...) da difícil busca do sentido e da verdade da vida, da comunicação de uma relação autêntica com outra pessoa”. 92No caso de James Dean, ao afirmar que as novas estrelas já não seriam modelos culturais, Morin parece aludir aos padrões sociais predominantes, uma vez que é exatamente por distanciar-se dos parâmetros culturais tradicionais, que o astro adolescente relaciona-se tão intimamente com a cultura jovem, esta fundamentada no distanciamento em relação aos padrões comportamentais usuais. 91 MORIN, Edgar. As Estrelas: mito e sedução no cinema. Trad.: Luciano Trigo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 132. 92 Ibid, p. 133. 73 O interesse de Nicholas Ray, diretor da película, pelo tema da juventude remonta à sua atividade na década de 1930, quando membro da trupe Theater of Action, de Nova York. Neste período, atuou na peça intitulada The young go first cujo enredo criticava a estrutura paramilitar do Youth Conservation Corp, dentro da política do New Deal, dramatizando a exploração de jovens com objetivos militares. Quando começa a trabalhar em Hollywood, em fins da década de 1940, dirige o filme “O crime não compensa” (Knock on any door - 1949), no qual um jovem de origem italiana é julgado por assassinato. De clara conotação política, o argumento do advogado de defesa, vivido por Humphrey Bogart, pede que se considere a origem pobre do acusado como um dos motivos de sua delinquência. Logo após o lançamento do filme, o Comitê de Atividades Anti-Americanas (HUAC) inicia sua campanha contra os profissionais de esquerda ligados à produção cinematográfica e Ray posteriormente afirmaria que foi deixado de fora da chamada lista negra graças à intervenção de Howard Hughes, então proprietário da RKO Studios. Seu filme posterior, Johnny Guitar (1954), é apontado como uma alusão às ações do Senador Joseph McCarthy à frente do Comitê. Em “Juventude transviada” (1955), entretanto, o diretor despe-se de seu viés político na abordagem da juventude. Ainda assim, a rebeldia juvenil representada neste último título preserva o caráter de resistência contra uma ordem social repressiva, apesar de despolitizada.93 Em entrevista aos Cahiers du Cinéma94, Nicholas Ray é questionado quanto a um elemento sempre presente em seus filmes e que, em parte, explica a proximidade alcançada por estes com relação à audiência. Discorrendo sobre a existência do mal em cada ser humano, Ray afirma que (…) nenhum ser humano, homem ou mulher, é completamente bom ou completamente mal. A coisa essencial em cada retrato da vida, seja ele ficção baseada na realidade, ou realismo estrito, é que o espectador procura por sensações diante das quais ele ou ela, sob as mesmas circunstâncias, agiria exatamente da mesma forma, sendo isso certo ou errado; as fraquezas da personagem devem ser humanas, porque se elas forem, o espectador pode reconhecer-se nelas, então, quando a 93 EISENSCHITZ. Bernard. Nicholas Ray: American Journey. London: Faber and Faber, 1993. Apud: MEDOVOI, Leerom. Rebels – Youth and the Cold War Origins of Identity. Durham, London: Duke University Press, 2005. 94 Enaltecido pelo jovem grupo de críticos desta revista, Ray é por eles incluído no seleto grupo de “diretores autorais”, capazes de não apenas fazer cinema, mas produzir obras de arte com um conjunto de características que demarcariam sua autoria. Segundo Jean-Luc Godard, numa sentença impositiva: “Cinema é Nicholas Ray”. Jean-Luc Godard: 'Beyond the Stars'('Au dela des etoiles', Cahiers du Cinema79, Janeiro 1958) In: HILLIER, Jim. Cahiers du Cinéma – The 1950’s : Neo-realism, Hollywood, New Wave. Cambrigde, Massachusetts: Harvard University Press, 1985. p. 118. 74 personagem age como um herói eles se sentem capazes de fazer a mesma 95 coisa e assim se identificam com ele. Assim, abordando os dilemas juvenis, o diretor habilmente oferece a seus personagens as dúvidas e anseios presentes na própria juventude, humanizando-os, o que permite a identificação umbilical desta parcela populacional, ou ao menos de parte dela, com a película, que se torna veículo de suas tensões emocionais. O enredo de “Juventude transviada” desenrola-se no seio de uma comunidade suburbana, formada por famílias de classe média, de razoável poder aquisitivo. Esta ambientação mostra-se crucial para a crítica à sociedade de consumo colocada em prática ao longo da realização. A rebeldia representada pela personagem de Dean, e exteriorizada em seu comportamento inconsequente, é apenas superficialmente sem causa, apesar do que pode transparecer observandose o título original, Rebel without a cause. Na verdade, Jim Stark possui perfeita noção da fonte de suas angústias: uma família composta por uma mãe autoritária e um pai submisso os quais, em caráter de compensação, atendem prontamente aquelas que acreditam serem as necessidades de consumo de seu filho inquieto. Desta forma, não apenas a sociedade de consumo tornava-se o alvo da crítica implementada pelo enredo, mas, igualmente, a tradicional instituição da família nuclear americana. Em consonância ao peso que a crítica à família assume nesta obra, James Dean salienta a importância do uso da técnica, do método na atuação, como forma de veicular a crítica às instituições sociais. Segundo suas palavras: “A consideração do Método (atuação) e da profundidade psicológica possibilitaram uma forma de criticar os principais elementos do consenso do pós-guerra, particularmente a família.”96 Neste sentido, as críticas publicadas quando do lançamento do filme oscilavam entre o reconhecimento da qualidade técnica dos atores e da direção, e um posicionamento politicamente conservador, atentando para os riscos da representação da delinquência juvenil no cinema. Assim, um artigo publicado na revista Cue demonstra-se simpático com relação à produção: “Juventude transviada” é um absorvente, incômodo drama sobre este tema. Ele trás uma dura e assustadora sentença nesta tensa estória de 95 Charles Bitsch. Interview with Nicholas Ray (L‘Entretien avec Nicholas Ray', Cahiers du Cinema 89, Novembro 1958 (extracts)). In: HILLIER, Jim. Cahiers Du Cinéma – The 1950’s : Neo-realism, Hollywood, New Wave. Cambrigde, Massachusetts: Harvard University Press, 1985. p. 120. 96 MAY, Lary. The Big Tomorrow: Hollywood and the Politics of the American Way. Chicago: University of Chicago Press, 2000. 75 três jovens confusos em uma “boa” comunidade que são pegos, junto com seus colegas de escola, em uma série de atos socialmente perturbadores para os quais ninguém parece ter uma explicação pronta, ou uma solução fácil. (...) O drama, vívido, rodado quase que em estilo documental, pode ser considerado como uma peça de teatro, inteligente na escrita e na 97 direção, e soberbo na alta qualidade de suas performances. Enquanto que, no artigo assinado por Bosley Crowther, editado no New York Times de 30 de outubro de 1955, lê-se: Existe uma grande questão neste filme que reflete as atitudes de certos adolescentes, particularmente em sua ameaçadora ostentação e sua mania por violência sem sentido. Mas a insistência com a qual o roteirista e diretor demonstram simpatia para com os jovens à custa de seus pais e outros que representam autoridade (...) leva à influência desta película sobre jovens reais com questionáveis distúrbios emocionais. Há um truque nesta pretensão de “entendimento” que pode enganar gravemente. Nós certamente não queremos argumentar pela proibição destes filmes, mas continuamos a insistir que produtores sejam mais cuidadosos e responsáveis pelo que dizem. Parafraseando um velho axioma, pequenos 98 egos possuem grandes olhos. O teor destes artigos, apesar da diferença de retórica e de posicionamento político dos autores, demonstra como “Juventude transviada” inseria-se no debate concernente à delinquência juvenil. O filme, além de ser considerado um produto de entretenimento, da indústria cinematográfica, é problematizado através de seu possível impacto na sociedade, considerando o contato direto do enredo com a atmosfera cultural juvenil do período, na qual se destacavam as questões relativas à rebeldia e, além disso, às tensões emocionais e às disfunções familiares de parte desta juventude. A cena inicial da produção é bastante significativa das carências sentimentais e familiares sofridas por Jim. Nesta a câmera, localizada no chão, fotografa a personagem de Dean que, bêbado, se aproxima de um pequeno macaco de brinquedo que se encontrava abandonado na rua. Paternalmente cuidando do objeto, Jim o coloca para dormir, cobrindo-o com uma folha de papel e deitando-se ao seu lado, em posição fetal, enquanto os créditos iniciais são exibidos. Os dois são embalados pela melodia jazzística de um trombone. Esta cena serve de abertura para a seguinte, desenrolada na delegacia, onde as três personagens principais se encontram pela primeira vez. 97 Revista Cue, 29 de outubro de 1955. Cf. ROSS, Steven J. Movies and American Society. Padstow: Blackwell Publishing, 2002. pp. 244-245. 98 CROWTHER, Bosley. Jornal New York Times, 30 de outubro de 1955. Cf. ROSS, Steven J. Movies and American Society. Padstow: Blackwell Publishing, 2002. pp. 245-247. 76 Fotograma de “Juventude transviada”. Na cena de abertura Jim, embriagado, cuida paternalmente de um macaco de brinquedo, deitando-se na rua. Além da personagem protagonista, as outras duas principais personagens coadjuvantes possuem, igualmente, problemas com suas famílias. Judy é uma jovem que percebe que seu pai já não lhe oferece o afeto e o carinho que sempre ofereceu pelo simples fato de ter completado 16 anos de idade. Por sofrer com o distanciamento paterno, por razões morais, e por não conseguir ultrapassá-lo, expressa sua decepção através de atos de rebeldia que possam chocá-lo. Platão, por sua vez, constitui-se no caso mais problemático dos três jovens. Filho de um casamento desfeito é criado por uma empregada, uma vez que não conhecera o pai e a mãe mantém-se constantemente ausente em viagens. Desta forma, Platão transforma-se em um jovem depressivo e atormentado, ansiosamente em busca de atenção e afeto. Este quadro emocional o leva a realizar atos irracionais sobre os quais não sabe encontrar motivos, o último deles resultando em sua própria morte. Assim sendo, a forma como a instituição familiar é apresentada na película compromete o modelo de família nuclear culturalmente aceito no período, na sociedade norte-americana. Em “Juventude transviada” não existe sequer um exemplo de relação familiar saudável. As três personagens apresentadas possuem sérias disfunções comportamentais devido aos problemas relacionais existentes entre estes jovens e seus pais, sendo a rebeldia de Jim e Judy uma maneira de reagir à hostilidade que percebem em casa. Desta maneira, uma das bases do 77 American Way of Life e, igualmente, da sociedade de consumo então em consolidação, a família nuclear, é apontada enquanto hipócrita por esta produção cinematográfica. Tanto que Platão, rapaz que sequer conhece um real seio familiar, constrói para si uma família ideal na qual Jim e Judy figuram como seus pais, oferecendo-lhe o afeto e a atenção que ele almejava. Esta família harmônica, porque imaginada por Platão, tem significativamente como lar uma mansão abandonada numa colina. A espaçosa construção, que claramente chegou a ser um imóvel luxuoso, não passa de ruínas naquele momento, afinando-se ao que parece ser a instituição familiar se tomarmos a perspectiva dos três jovens. Neste cenário, Jim, Judy e Platão travam um diálogo bastante significativo quanto ao papel ocupado pelas crianças na família americana contemporânea. Por diversão, Jim e Judy interpretam um casal de compradores interessados no imóvel, com Platão vivendo o papel de corretor imobiliário. Respondendo a uma pergunta de Judy sobre a existência de aposentos para as crianças, afirma o rapaz: Platão: “- Realmente não as incentivamos. São tão barulhentas e encrenqueiras. Não concorda?” Judy: “- Sim, sim. E tão irritantes quando choram. Não sei o que fazer quando choram. Você sabe, querido?” Jim: “- Afogá-las como filhotes de cachorros.” Platão: “- O quarto das crianças fica longe do resto da casa. Se tiver filhos, vai achar esta uma solução maravilhosa. Vão poder aprontar e você nem vai reparar. De fato, se os trancar, nem vai precisar vê-los de novo.” Jim: “- Muito menos conversar com eles.” Judy: “- Conversar com eles?” Jim: “- Ninguém conversa com crianças.” 99 Judy: “- Não, apenas as vendem.” O curioso diálogo conclui-se em discretos risos. Apesar de construírem a conversa, a noção do abandono parental é traumática para os três jovens, porém especialmente para Platão. Quando, na sequência, este acorda de um cochilo e pensa ter sido abandonado pelos seus pais fictícios, da mesma forma como o foi por seus pais verdadeiros, desencadeia-se uma crise que terminará na morte do jovem, assustado, abrigado no observatório, no escuro, à noite. A película de Nicholas Ray tem como elemento principal o conflito edípico de Jim, especialmente a decepção sentida por este diante da fraqueza moral de seu pai. Aos olhos de Jim, Sr. Frank Stark não possui firmeza suficiente para assumir a posição esperada de um chefe de família, sendo subjugado por sua esposa em sua própria casa, fato que impossibilita Jim de se identificar com ele. De acordo com a 99 O referido diálogo inicia-se em 1h 19 min. 58 segs. e termina em 1h 20 min. 38 segs. 78 reclamação feita pelo rapaz ao oficial Ray, representante na delegacia do Juizado de Menores, seu pai é um covarde, na linguagem corrente dos jovens, um chicken, incapaz de se autoafirmar. Por este motivo, Jim não pode aceitar receber a citada alcunha de ninguém, pois isso o identificaria com seu pai. Quando acontece, Jim é levado a participar irracionalmente de atos gratuitos de rebeldia, como a briga de facas com Buzz, da qual ele aceita participar apenas para provar que não é um chicken, ou quando toma parte na chickie run100 rumo ao precipício, que terminará na morte de Buzz, pelo mesmo pretexto. A denominação mesma da corrida implica a prova de coragem, sendo um chicken aquele que pular primeiro do carro em movimento. A falta de atitude do Sr. Stark implica em um processo de afeminização ao qual a personagem é submetida ao longo da projeção. Esta submissão afeminada do “homem da casa” dialoga com a questão da domesticação masculina em debate no período. Na atmosfera da vida suburbana, os papeis familiares de homens e mulheres começam a sofrer alterações, com a redução da autoridade patriarcal e a elevação da mulher nas decisões concernentes à família, passando a existir um diálogo constante entre os cônjuges em nome de uma maior harmonia familiar. Em direta sintonia com a atmosfera política da Guerra Fria, essa nova estrutura de organização da família é apontada por setores liberais como positiva, pois diferenciaria a família americana das autoritárias famílias fascista e comunista, bem como coadunaria com os princípios democráticos inerentes aos valores americanos. Opostamente, segundo os setores sociais conservadores, o afrouxamento causado na educação dos filhos teria como perigosa consequência o enfraquecimento moral da futura geração de americanos, já que as distinções tradicionalmente existentes entre os papéis masculino e feminino seriam abrandadas, ficando os rapazes criados em famílias desta espécie sem um apropriado modelo masculino no qual pudessem se espelhar. No caso de Jim Stark, sua recusa em aceitar a posição subalterna do pai materializa-se em seus atos de rebeldia. Na cena mais representativa do lapso de fibra moral de Frank Stark, Jim encontra o pai abaixado, recolhendo uma bandeja com comida que havia caído ao chão. Registrada em baixa iluminação, o que confere uma atmosfera obscura, 100 Corrida clandestina na qual dois carros correm em direção a um precipício, vencendo aquele que lançar o veículo primeiramente no abismo, saltando do automóvel em movimento nos últimos instantes. 79 Fotograma de “Juventude transviada”. Sr. Stark recolhe a comida que deixou cair. De joelhos e vestindo um avental sobre o terno, sua postura distancia-se do modelo comportamental masculino da época. Além disso, as peças de madeira que sustentam o corrimão da escada podem ser interpretadas como uma alusão a grades, referindo-se à privação de liberdade. condizente com a gravidade da situação, percebe-se que o homem veste um avental florido, símbolo do trabalho doméstico e que, se supõe, representaria o universo residencial feminino. Assim se desenrola o diálogo: Jim: “- O que houve? Derrubou? Deixou cair?” Sr. Stark: “- Sim. Vou limpar antes que ela veja.” Jim: “- Deixe-a ver.” Sr. Stark: “- O quê?” Jim: “- Deixe-a ver. O que pode acontecer? Ela é... Papai? Levante-se. 101 Não... Quero dizer, você não deveria...” No diálogo acima, questionado pelo filho, Sr. Stark diz ser melhor recolher a sujeira antes que a esposa a veja, sendo para ela que ele levava a comida. Surpreso e decepcionado com a preocupação do pai em não contrariar a esposa, Jim o exorta a mudar de atitude, a que o homem parece não compreender. O distanciamento desta personagem do universo masculino, bem como sua passiva inserção no meio doméstico, se completa pelo fato de não haver qualquer alusão à sua vida profissional. Desta forma, Frank Stark vê-se privado do tradicional papel social masculino, de trabalhador, provedor do sustento da família e, ainda, parte ativa do corpo social da nação, indivíduo participante da marcha de desenvolvimento do país. Além disso, o Sr. Stark não dirige, sendo o carro da família considerado como 101 O referido diálogo se desenvolve entre os 40 min. 35 segs. e os 41 min. 25 segs. 80 pertencente ao filho. Longe de se constituir em detalhe de menor importância, sendo morador de um subúrbio e não possuindo, nem dirigindo um automóvel, Frank Stark encontra-se alijado do modelo de chefe de família corrente nos Estados Unidos da década de 1950, momento no qual a posse e usufruto de um automóvel tinham forte carga de status e prestígio, sendo este objeto, além de sua inerente função como meio de transporte, símbolo de poder e virilidade. O distanciamento existente entre seus pais e Jim torna-se patente no momento em que este procura contar a eles seu envolvimento no incidente da chickie run, informando-lhes de suas intenções em procurar a polícia. Confuso e atemorizado, o rapaz busca fazer o que julga correto, sendo repreendido pelos pais. Diante do conflito entre sua moral absoluta e a moral relativa do mundo adulto, cristalizada na oposição de seus pais quanto à sua ida à delegacia, Jim se surpreende negativamente. Interpelando eticamente o Sr. Stark, exige que este tome uma atitude apoiando-o, o que não acontece. Assemelhando-se a cena entre Sr. Dadier e Miller em “Sementes da violência”, anteriormente analisada, a cena do embate entre Jim e seu pai, rodada na escada localizada na sala de estar da família Stark, permite que o jovem coloque-se em posição fisicamente superior ao seu pai durante toda a discussão. Captada em longos planos, vê-se toda a carga de angústia a qual está submetido o rapaz, com a câmera realizando movimentos circulares que denotam a ausência de referencia sentida por Jim naquele momento. No cenário, a televisão ligada, porém sem sinal de transmissão, exibindo apenas o desfilar de confusas e velozes barras em tons de cinza, igualmente configura o estado psicológico desordenado do protagonista. Sem poder contar com a compreensão e o apoio dos pais, Jim acaba por agredir fisicamente Frank Stark, como último recurso para torná-lo moralmente forte. Apesar de não agredir a mãe, chuta violentamente um grande retrato seu, antes de sair bruscamente de casa, ato que assume intenso significado simbólico. Sentindo-se desconectado em sua realidade familiar, Jim também não consegue firmar laços relacionais dentro de seu grupo social imediato. Na cena de sua chegada à nova escola, torna-se patente seu deslocamento dos códigos seguidos por todos os outros jovens. Nesta, exibida logo no início da projeção, fica claro o não-pertencimento tanto de Jim, quanto de Platão, ao ambiente escolar, local privilegiado da sociabilidade juvenil. Enquanto Platão colide com sua lambreta no pé do mastro no exato momento de hasteamento da bandeira, quando todos os 81 Fotograma de “Juventude transviada”. Decepcionado por não ter recebido o apoio do pai diante de sua decisão em ir à delegacia informar sobre sua participação na chickie run, Jim o agride. estudantes voltam-se para observá-la, Jim pisa no emblema da escola, localizado junto à porta de entrada. Este fato gera a irritação de um veterano que o repreende, Jim se desculpando por ser calouro e desconhecer os códigos de conduta próprios da instituição. Uma vez dentro do prédio, o protagonista não consegue se sentir à vontade, sendo vacilante em seus passos, chegando a entrar por engano no banheiro feminino. Desta forma, a aproximação de Jim com os outros estudantes se dá na chave da rebeldia quando este toma parte nas disputas com o líder da gangue. Esta aproximação ocorre na sequência da cena transcorrida no interior do observatório astronômico da cidade. Nesta, os estudantes assistem a uma dramatização audiovisual daquilo que teria sido o “Big Bang”, a explosão cósmica que, em hipótese, teria criado o universo. Após o espetáculo de flashes e sons, o velho astrônomo afirma que, diante da vastidão do universo, os problemas humanos tornam-se insignificantes. A apresentação do “Big Bang”, bem como a subestimação dos problemas do homem, representam uma alusão à paranoia nuclear existente na sociedade norte-americana naquele momento, quando a URSS já havia desenvolvido a tecnologia de ogivas nucleares e de mísseis balísticos de longo alcance, tornando um ataque aos Estados Unidos, em teoria, possível. Assim, diante da perspectiva da aniquilação nuclear, a rebeldia fortuita das personagens pode ser 82 Fotograma de “Juventude transviada”. Judy paralisada enquanto os carros passam ao seu lado em alta velocidade, na chickie run. O desenlace da corrida levaria à morte de Buzz. interpretada por um viés alienizante, já que o comportamento incoerente dos jovens ancora-se na completa falta de comprometimento com o futuro. Se a rebeldia masculina se fundamenta em atos de violência irracional, a rebeldia feminina se desenvolve por outro viés, na obra de Nicholas Ray. A principal personagem feminina, Judy, encontra-se perfeitamente inserida no grupo de delinquentes juvenis da escola na qual estuda. É ela a namorada do líder do grupo e será ela, em parte, a responsável por Jim aceitar participar da chickie run que irá resultar na morte de Buzz, já que é a ela, especialmente, que Jim quer provar sua masculinidade. Como forma de reação à ausência de afeto paterno que passou a sentir, Judy assume fora de casa um comportamento moralmente reprovável, baseado na rebeldia da gangue da qual faz parte mas, principalmente, na forma como procura expressar sua sexualidade. Apesar de ser namorada de Buzz, Judy não deixa de assumir uma conduta sedutora diante de Jim, sempre que entra em contato com ele, ainda que na presença do próprio Buzz. Oportunamente, Judy faz perguntas a Platão sobre Jim, buscando satisfazer sua curiosidade quanto ao novo rapaz. Em “Juventude transviada”, a rebeldia feminina consiste em um elemento presente e tão explorado quanto a rebeldia masculina, sendo a personagem de Judy o ponto de desenvolvimento do ser rebelde em âmbito feminino. No entanto, afastando-se da rebeldia masculina, caracterizada especialmente através da 83 violência gratuita e despropositada, com o único fim alegado de prova da masculinidade, a rebeldia feminina expressada por Judy exerce-se quase que exclusivamente através de sua sexualidade. Opera-se, assim, a construção direta da relação entre rebeldia feminina e promiscuidade sexual. Como se poderia prever, em observância aos padrões morais em vigor na sociedade dos Estados Unidos quando da produção desta película, no ano de 1955, o filme não veicula qualquer alusão direta ao comportamento, tampouco aos atos sexuais de suas personagens.102 No entanto, a tendência de Judy a um comportamento sexualmente menos conservador é claramente apresentada, tornando-se um dos principais traços característicos da personagem. Seu caráter emocionalmente volúvel torna-se ainda mais evidente nas cenas seguintes ao acidente que vitima fatalmente seu namorado. Era de se esperar que a jovem moça apresentasse forte pesar pela morte de alguém tão próximo a ela. Entretanto, decorrido o curto espaço temporal de poucas horas, Judy já se encontra nos braços de Jim, confessando amá-lo. Não existe, igualmente, qualquer espécie de preocupação de sua parte quanto às consequências do acidente. Uma vez ocorrido o fato, ela simplesmente abandona o local do desastre, não cogitando chamar as autoridades competentes, tampouco expressando qualquer sinal de forte desequilíbrio emocional causado pela morte repentina e estúpida de Buzz. Se considerarmos os padrões morais da sociedade norte-americana de meados da década de 1950, a prontidão com que Judy esquece o namorado morto e transfere seu afeto a Jim demonstra-se, obviamente, reprovável. Judy assume dois comportamentos contraditórios: um quando se encontra acompanhada de seus amigos arruaceiros, demonstrando-se pouco preocupada com a observância de regras morais, ativamente participante dos atos de rebeldia praticados pelo grupo, instigando o comportamento perigoso praticado pelos rapazes; outro quando sozinha ou na companhia unicamente de Jim, momento no qual se expressa docemente, refletindo sobre os problemas que enfrenta em seu relacionamento distante com seu pai. Desta maneira, a rebeldia feminina é configurada de forma mais complexa que a masculina, nesta produção. Apesar de arredia às convenções sociais, aparentando tender a um comportamento emocional 102 Entretanto, existe uma alusão indireta quando, após Judy perguntar a Jim quantos quartos deveria existir na mansão abandonada onde estavam, Jim a convida para explorá-los. Diante da aceitação de Judy, a narrativa procede a um corte, apenas voltando ao casal momentos depois, para encontrá-los abraçados, deitados, com Judy confessando amá-lo. 84 e sexual pouco submetido às normas tradicionais, Judy continua a desejar o ideal feminino. Em essência, e apesar de suas faltas comportamentais, Judy continua a ser gentil e sincera, buscando se comprometer em um relacionamento amoroso com Jim. Desta forma, se no caso de Jim, bastaria que seu pai assumisse a posição que o rapaz considera socialmente correta, diante da intransigência de sua mãe, para se alcançar a solução de seus desvios comportamentais, Judy, por sua vez, apenas depende do carinho paternal para assumir o papel social esperado de uma jovem de sua idade e classe. Diante da negativa paterna, será nos braços de Jim que Judy encontrará o afeto masculino que almeja. “Juventude transviada” pretendeu se aproximar dos dilemas psicológicos representativos da juventude do período. Nesta produção, os atos de rebeldia praticados pelos jovens são apresentados em íntima relação aos seus impasses familiares e relacionais e, secundariamente, como consequência do contexto sociocultural no qual se encontram. Se as três personagens principais (Jim, Judy e Platão) não conseguem compreender os fundamentos da sociedade na qual estão inseridas, suas incertezas pessoais também não são, igualmente, compreendidas por aqueles que os cercam, seus familiares. Assim, ancorado em uma perspectiva notadamente conservadora, a única forma de reconciliação apresentada pelo roteiro consiste na final adequação de todos aos padrões vigentes da família nuclear e da sociedade de classe-média dos Estados Unidos do período. A história narrada em “Juventude transviada” desenrola-se no período de pouco mais de 24 horas. Neste curto espaço de tempo, Jim conhece Judy e Platão, envolve-se em problemas com a gangue de desordeiros do colégio da qual Judy faz parte, participa da corrida de automóveis que acaba na morte de Buzz e, por fim, presencia a morte de Platão, a qual, apesar de seus esforços, não consegue evitar. Desta forma, a rebeldia juvenil contra a sociedade estabelecida não se configura enquanto uma possibilidade viável, uma vez que gera duas mortes desnecessárias em apenas um dia. A morte de Buzz a bordo de um automóvel roubado é, por sua vez, bastante significativa, já que o carro consistia em um dos maiores símbolos de liberdade e da cultura jovem do período.103 103 DIGGINS, John Patrick. The Proud Decades: America in War and in Peace. New York: W. W. Norton & Company, 1989. 85 Fotograma de “Juventude transviada”. Transtornado, Jim fecha cuidadosamente sua jaqueta vermelha, com a qual havia vestido Platão, depois da morte do amigo. Paralelamente, a jaqueta vermelha104 utilizada em boa parte da projeção pela personagem de James Dean assume a função de símbolo da rebeldia e, de mesma forma, da inviabilidade da manutenção deste caminho. Jim veste a referida jaqueta quando se prepara para ir ao penhasco no qual fora marcada a corrida clandestina, que na película figura enquanto o exemplo máximo de rebeldia sem propósito, já que põe fim a vida de um dos rapazes. A partir daí, Jim não retira esta vestimenta até a penúltima cena, quando mais uma vez oferece seu casaco ao ver Platão com frio, tendo sido a primeira no momento em que estes se conheceram na delegacia. Após a lamentável morte de Platão, causada por um engano policial, Jim fecha a jaqueta, pensando poder mantê-lo aquecido. A retirada da jaqueta simboliza, para Jim, o abandono do comportamento desregrado mantido por ele até então. Ao se despir do casaco, Jim despe-se, de mesma forma, da rebeldia que lhe caracterizava, harmonizando-se com sua família, agora que seu pai finalmente assumiu a posição moralmente firme que Jim esperava. No caso de Platão, a instabilidade emocional que o caracteriza torna impossível sua assimilação à sociedade dentro dos parâmetros de normalidade emanados desta. Além disso, ao vestir o símbolo da rebeldia juvenil involuntariamente o jovem aceita seu fatídico destino. Quanto à Judy, esta é apresentada na cena final aos pais de Jim, fato que 104 Christopher Gair salienta a importância da cor vermelha na cultura norte-americana, especialmente na literatura. Cf. GAIR, Christopher. The American Counterculture. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007. 86 simboliza a materialização de seu relacionamento com o rapaz e, igualmente, sua aproximação ao padrão comportamental esperado. Entretanto, apesar do desenlace aparentemente conservador do filme, na tomada final, quando todas as viaturas policiais deixam o observatório, local em que Platão encontrou seu trágico fim, estas o fazem em fila e deslocando-se lentamente, o que lembra a tradição do cortejo funeral de automóveis, relativamente comum nos Estados Unidos. O dia ainda está amanhecendo, o que confere a cena uma iluminação suave. Estranhamente, um homem formalmente trajado chega ao observatório aparentando certo grau de surpresa com tamanha movimentação no início da manhã. Alheio aos tristes acontecimentos passados a pouco, o homem segue seu caminho, numa discreta citação à indiferença da sociedade americana ao drama adolescente. 2.2 GODARD: LIBERDADE E CRIMINALIDADE JUVENIL “Acossado” (À bout de souffle, dir.: Jean-Luc Godard – 1960) narra a trajetória de Michel Poiccard, interpretado pelo ator Jean-Paul Belmondo, um jovem criminoso de pequenos golpes que, após roubar um carro com placa da embaixada dos Estados Unidos para ir à Paris encontrar Patricia Franchini (Jean Seberg), uma americana por quem está apaixonado, é perseguido pela polícia, acabando por ferir mortalmente um motociclista policial. A partir deste evento, a vida de Poiccard resume-se em tentar convencer Patricia a acompanhá-lo em sua fuga para a Itália, esperando ter acesso a uma soma de dinheiro escuso que lhe é devida. Tendo os investigadores em seu encalço, Poiccard enreda-se cada vez mais profundamente na trama que terminará em sua morte, através de um disparo da polícia em suas costas, depois de ter seu paradeiro denunciado pela própria Patricia. Assim como François Truffaut, Jean-Luc Godard fazia parte do principal grupo de críticos de cinema atuantes na revista Cahiers du Cinéma na década de 1950 e início da seguinte. Da mesma forma que aquele, Godard tem em sua trajetória a assiduidade nos cineclubes de Paris, costume que, segundo ele, se constituiu nas bases de seu saber cinematográfico. Em entrevista de dezembro de 1962 aos Cahiers, a qual se tornaria célebre devido às reflexões sobre o movimento, bem como sobre as origens teóricas partilhadas pelos seus principais realizadores, 87 Cartaz de “Acossado”. [sem título]. <Disponível em: http://www.toutlecine.comimagesfilm.com>. Acesso em: 09 dez. 2013. Godard é perguntado quanto à importância da crítica na formação de seu arcabouço teórico. Afirma o crítico e diretor: Todos nós nos Cahiers nos considerávamos como futuros diretores. Frequentar os cineclubes e a Cinemateca já era uma forma de pensar cinema e pensar sobre o cinema. Escrever já era uma forma de fazer filmes, pois a diferença entre escrever e dirigir é quantitativa, não qualitativa. O único a ser cem-por-cento crítico foi Andre Bazin. Os outros – Sadoul, Balazs ou Pasinetti – são historiadores ou sociólogos, não críticos. (...) As pessoas dizem que nós fizemos uso da crítica. Não. Nós estávamos pensando cinema e, em um determinado momento, nós sentimos a necessidade de 105 estender este pensamento. Em sua perspectiva, criticar filmes e dirigi-los não se constitui enquanto duas funções em separado, na prática. Criticando-os, estes jovens escritores desenvolveram um acentuado poder de observação e avaliação deste tipo de arte, o que os qualificou para as futuras aventuras no campo da direção. Em sentido 105 Jean-Luc Godard: 'From Critic to Film-Maker': Godard in interview (‘Entretien', Cahiers du Cinema 138, Dezembro 1962). In: HILLIER, Jim. Cahiers du Cinéma – 1960-1968: New Wave, New Cinema, Reevaluating Hollywood. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1986. p. 59. 88 oposto, a atividade de diretor colocava-os em contato direto com a realidade material da produção, consolidando suas aptidões críticas. A posição privilegiada de freqüentador constante das sessões organizadas pelos cineclubes levou-o a consolidar um vasto conhecimento da história do cinema que foi de central importância para a forma de pensar e produzir filmes por ele desenvolvida. Segundo Godard: 106 Éramos os primeiros diretores a saber que Griffith existe. Mesmo Carne, Delluc e Rene Clair, quando eles fizeram seus primeiros filmes, não possuíam real arcabouço crítico e histórico. Até Renoir tinha 107 muito pouco; mas então, claro, ele tinha gênio. Antes de “Acossado”, e já desempenhando a função de crítico de cinema, Godard realiza suas primeiras experiências cinematográficas na produção de curtasmetragens e como roteirista/dialogista. Em 1954, produz seu primeiro curta “Operação concreto” (Opération béton), bastante impessoal e bem pouco artístico, tratando da construção da barragem de Grande-Dixence, onde trabalhava. De qualquer forma, vende a produção para a empresa responsável pela obra e se mantém por dois anos com esse dinheiro. Os curtas-metragens seguintes já apontam o potencial que será plenamente desenvolvido em “Acossado”, seu primeiro longa-metragem. Em Tous les garçon s’appellent Patrick (1957), o protagonista tem muito da verborragia que caracterizará Michel Poiccard; já em Charlotte et son Jules a conflituosa relação amorosa dos protagonistas, com a indiferença feminina, será refletida na interação de Michel e Patricia, em “Acossado”, constituindo-se este curta de 20 minutos em um esboço da cena central do longametragem, desenrolada no quarto de hotel onde Patricia mora. Além da atividade como diretor, atua em filmes de Éric Rohmer e Jacques Rivette, trabalha como montador para o produtor Pierre Braunberger e para a editora Arthaud, e como dialogista sobre roteiros de Molinaro. Será como dialogista que Godard conhecerá Georges de Beauregard, que lhe oferece os diálogos de Pêcheur d’Islande e que, mais tarde, produzirá “Acossado”. 106 David Llewelyn Wark Griffith, diretor de cinema americano, é considerado como o criador da narrativa clássica, uma linguagem cinematográfica peculiarmente próxima da literatura romântica praticada ao longo do século XIX. Esta proximidade fundamentava-se, especialmente, no uso de uma estrutura narrativa linear, na qual uma história com início, meio e fim claramente delimitados era apresentada ao público. Podemos apontar a obra Birth of a Nation, de Griffith, como a primeira película a exemplificar esta então nascente maneira de se fazer cinema. 107 Op. Cit., p. 60. 89 Quanto ao significado pessoal que filmar as primeiras películas representou ao grupo dos Cahiers, Godard nos informa serem filmes de amantes de cinema, movidos pelo sentimento de nostalgia por um cinema que não existia mais: “Quando nós estávamos finalmente capacitados para fazer filmes, não podíamos mais fazer o tipo de filmes os quais tinham nos feito querer fazer filmes” 108 Desta forma, a produção de Godard será marcada, desde o início, por uma profusão de citações pictóricas, literárias e, notadamente, cinematográficas. Sobre esta questão, que evidencia a cinefilia característica destes novos diretores: Nossos primeiros filmes foram todos films de cinéphile – o trabalho de entusiastas do cinema. Alguém pode fazer uso do que já tinha visto no cinema para fazer referências deliberadas. Isso foi verdade particularmente para mim. Eu pensava em termos de atitudes puramente cinematográficas. Para algumas tomadas, eu me referia a cenas que eu me lembrava de Preminger, Cukor, etc. E a personagem interpretada por Jean Seberg [em „Acossado‟] era uma continuação de seu papel em Bonjour tristesse. Eu poderia ter pegado a última tomada do filme de Preminger e começado dissolvendo para um título, „Três Anos Depois‟. Este é bastante o mesmo tipo de coisa que meu gosto por citações, o qual eu ainda mantenho. Por 109 que nós deveríamos ser reprovados por isso? Já em seu lançamento, “Acossado” obtêm substancial sucesso de bilheteria. Isso ocorreu, segundo Michel Marie110, devido ao fato de o filme de Godard ter contado com uma extensa e diversificada campanha publicitária, especialmente se observarmos se tratar de uma produção de baixo orçamento para os padrões franceses de 1959. Se a crítica ficou dividida entre enaltecer ou execrar a obra, o público teve acesso a fotos, cartazes e, antes mesmo do lançamento do filme, a um disco e a um romance inspirado no roteiro da produção. Apesar da relação direta entre os Cahiers du Cinéma e o diretor da película, que era articulista da mesma, é interessante o que Luc Moullet escreve no artigo publicado nesta revista, em abril de 1960, e portanto, poucas semanas após “Acossado” entrar em cartaz: Os quatro meses que correram entre a primeira sneak e a primeira sessão pública de Acossado, em 16 de março de 1960, permitiram ao filme de Jean-Luc Godard adquirir uma notoriedade jamais esperada, acredito eu, por qualquer filme antes do lançamento. As razões para esta notoriedade são o prêmio Jean Vigo, o lançamento de um disco, de um romance muito distanciadamente adaptado e infielmente inspirado no filme e, sobretudo, à 108 Jean-Luc Godard: 'From Critic to Film-Maker': Godard in interview (‘Entretien', Cahiers du Cinema 138, Dezembro 1962). In: HILLIER, Jim. Cahiers du Cinéma – 1960-1968: New Wave, New Cinema, Reevaluating Hollywood. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1986. p. 63. 109 Ibid, p. 61. 110 MARIE, Michel. A Nouvelle Vague e Godard. Trad. Eloisa A. Ribeiro, Juliana Araújo. Campinas, São Paulo: Papirus, 2011. p. 238. 90 imprensa, que dá mostras de uma paixão igual, tanto quanto inédita, nos 111 panegíricos e na destruição. A reação da imprensa tão intensa quanto oposta em seus posicionamentos a respeito do filme pode ser explicada pelas inovações trazidas pela película de Godard no campo da estética. Segundo o cineasta: Na realidade, esta foi minha estréia. Eu disse para mim mesmo: nós já tivemos Bresson, nós acabamos de ter Hiroshima [mon amour], um certo tipo de cinema está decaindo, talvez acabando, então vamos adicionar o toque final, vamos mostrar que qualquer coisa é permitida. O que eu queria era pegar uma história convencional e refazer, mas de maneira diferente, tudo o que o cinema tinha feito. Eu ainda queria dar a sensação de que as técnicas do fazer-cinema tinham acabado de ser descobertas e experimentadas pela primeira vez. A abertura em íris mostrava que podíamos retornar às fontes do cinema; o encadeamento aparecia, apenas uma vez, como se tivesse acabado de ser inventado (...)Existe uma história 112 113 de Decoin indo ver seu editor em Billancourt e dizendo: „Acabo de ver 114 À bout de souffle; daqui por diante, a continuidade está abolida.‟ A profusão do uso de inovações técnicas ou, por vezes, as novas formas de utilização de técnicas já consagradas do fazer cinematográfico, levam o primeiro longa-metragem de Godard a ser considerado o manifesto estético da Nouvelle Vague. No entanto, a ousadia em se abolir parâmetros arraigados da linguagem cinematográfica consegue, igualmente, apaixonados detratores. Em artigo publicado na revista Positif, em junho de 1962, lê-se: Para salvar um filme imostrável (Acossado), Godard o cortou ao acaso, contando com as faculdades de estupefação de uma crítica que não o decepcionou no lançamento de uma moda, a do filme mal feito. Esbanjador de película, autor de frases imbecis e abjetas sobre a tortura e a delação, ele próprio jornalista, Godard representa a regressão mais difícil do 115 cinema francês rumo ao analfabetismo intelectual e ao blefe plástico. De qualquer forma, na memória dos espectadores e historiadores do cinema, “Acossado” acabará por suplantar o sucesso alcançado pelo primeiro filme de Truffaut, “Os incompreendidos”, responsável por lançar internacionalmente o movimento, tendo sido premiado no ano anterior em Cannes. Para Michel Marie116, muito além de ser o ponto-final do cinema de certa época, “Acossado” consiste no 111 Luc Moullet: 'Jean-Luc Godard' ('Jean-Luc Godard', Cahiers du Cinema 106, Abril 1960). ). In: HILLIER, Jim. Cahiers du Cinéma – 1960-1968: New Wave, New Cinema, Reevaluating Hollywood. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1986. p. 35. 112 O diretor veterano Henri Decoin. 113 Billancourt, estúdios do cinema francês, nos arredores de Paris. 114 Jean-Luc Godard: 'From Critic to Film-Maker': Godard in interview (‘Entretien', Cahiers du Cinema 138, Dezembro 1962). In: HILLIER, Jim. Cahiers du Cinéma – 1960-1968: New Wave, New Cinema, Reevaluating Hollywood. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1986. p. 61. 115 Robert Benayoun, Positif, n.46, junho de 1962, p. 27. Apud: MARIE, Michel. A Nouvelle Vague e Godard. Trad. Eloisa A. Ribeiro, Juliana Araújo. Campinas, São Paulo: Papirus, 2011. 116 Opus cit. 91 ponto de partida do cinema moderno da década de 1960. Godard se utiliza do sucesso comercial alcançado pelos filmes de François Truffaut (“Os incompreendidos”) e Claude Chabrol (Hiroshima mon amour) como forma de conseguir financiamento para o seu projeto. Tendo consciência de que estes mantiveram a mise en scène convencional, decide arriscar. A história do cinema confirmará o acerto da aventura. Partindo para a análise interna da obra, “Acossado” inicia-se com um prólogo que apresenta ao espectador os traços principais da personagem protagonista, Michel Poiccard. Neste prólogo, Michel rouba um veículo no porto de Marselha com a intenção de ir à Paris resgatar uma soma de dinheiro que lhe é devida e convencer Patricia, a jovem por quem está apaixonado, a fugir com ele para a Itália. Na estrada, é perseguido por policiais motociclistas, acabando por ferir mortalmente um deles. Subitamente transformado em assassino, a situação de Poiccard se complica. A pressa com que realiza seus movimentos chega a beirar o desespero, evidenciando sua ansiedade em chegar à Paris e encontrar Patricia. Logo no automóvel, esclarecesse-se a verborragia típica do jovem homem, a principal marca de sua personalidade, chegando este a falar compulsivamente apesar de estar sozinho no carro. Devidamente trajado, de terno e chapéu, portando entre os dedos o cigarro que fuma compulsivamente por todo o enredo, já em seu primeiro take imita o gesto que o relaciona aos personagens noir vividos pelo ator Humphrey Bogart, tocando levemente o lábio com a ponta do polegar. Sua fala inicial, “- Se tem que ser, tem que ser”, demonstra o compromisso de Poiccard com seu destino. Nesta sequência, Godard já demonstra sua intenção de subverter as normas da montagem cinematográfica tradicional. Realizando uma série de saltos, com a supressão de alguns fotogramas das tomadas da estrada, ele pretende dar a impressão de aceleração dos acontecimentos ao público. De mesma forma, quando da perseguição policial, são realizados falsos raccords como, por exemplo, a inversão da continuidade da perseguição com o automóvel de Poiccard seguindo em uma direção e os motociclistas na direção oposta, o que provoca uma momentânea confusão no espectador. Uma vez tendo atirado contra o policial, Poiccard foge a pé, correndo pelo campo com o corte sendo realizado em fade-out, numa clara alusão ao cinema das décadas anteriores. Toda a sequência se fundamenta em uma série de curtas ou curtíssimas tomadas, o que confere a aceleração esperada. 92 Fotogramas de “Acossado”. Na cena da perseguição policial, logo no início da projeção, Godard subverte os códigos tradicionais da linguagem cinematográfica, montando perseguido e perseguidores em sentidos opostos. Por outro lado, a cena na qual a protagonista feminina surge pela primeira vez obedece a uma forma de construção absolutamente oposta da descrita acima. Realizada em plano-sequência, a cena tem duração de 2 minutos e 49 segundos. Nesta vê-se Patricia caminhando na Champs-Élysées, vestindo calças escuras e uma clara camiseta esporte na qual se lê New York Herald Tribune, nome do jornal que vende e para o qual pretende escrever um artigo. Encontrando a jovem, Poiccard caminha a seu lado convidando-a a partir com ele para o país vizinho. A utilização do plano-sequência confere a cena um ritmo lento de desenvolvimento, condizente com a conversa íntima de duas pessoas que já foram amantes. Patricia mostra-se evasiva ao convite e aos pedidos de Poiccard, que parece impaciente e ansioso por ter novamente acesso à jovem por quem está apaixonado. Esta, americana e estudante da Sorbonne, ainda depende do auxílio financeiro dos pais, 93 apesar de aspirar por sua independência. Trajando roupas simples e usando cabelo curto, a personagem despe-se dos usuais símbolos visuais de feminilidade. Desta forma, capta a atenção de Poiccard através de sua personalidade, de sua essência. Bastante jovem, alegando ter apenas 20 anos de idade, Patricia anseia sua liberdade acima de tudo. Em ambas as cenas a trilha sonora baseia-se em composições jazzísticas de Martial Solal, sendo o tema de Poiccard de andamento rápido e uso ostensivo da percussão, piano e metais, enquanto ao tema de Patricia cabe um desenvolvimento mais melodioso, próximo aos repertórios das big bands americanas. A presença deste gênero musical na obra colabora para o seu feitio moderno, uma vez que não era comum no cinema francês do período, com destaque para o tema do protagonista, bem próximo ao bebop117 dos quintetos de jazz, típico do pós-guerra e da década de 1950. Os temas de Solal, de tal modo, acompanham o desenrolar do enredo com grande proximidade, sendo acionados em várias das passagens da história. Assim, possuem importância semântica, chegando a acompanhar algumas das falas das personagens. Cabe salientar que “Acossado” contou com uma banda sonora póssincronizada, ou seja, gravada depois da captação das imagens que foram, por sua vez, obtidas sem a utilização de som. Essa técnica permitiu que o diretor compusesse toda a banda sonora do filme, as músicas, as falas, os inúmeros ruídos do ambiente que são ouvidos durante a projeção. Desta maneira, coadunando com o fato de que a película fora realizada fora dos estúdios, existe em “Acossado” um rico arsenal de barulhos urbanos, condizentes com a vida agitada da capital francesa: motores e freios de automóveis, buzinas, sirenes, programas de rádio, vozes. Para Michel Marie, a banda sonora concede muito espaço ao ambiente social, político e midiático, mergulhando nele os seus personagens (...) mas também permite ao cineasta desenvolver seu tecido de citações, iluminando a relação amorosa 118 de seus dois personagens com ecos poéticos de outra profundidade. Apesar de o enredo parecer, em um primeiro momento, um suspense policial sem grandes pretensões temáticas, a forma como Godard aborda a relação 117 O bebop consiste em uma forma de jazz mais acelerado, criado no pós-Segunda Guerra, principalmente pelo saxofonista Charlie Parker. De origem afro-americana, contou com considerável inserção na cultura jovem antes do advento do rock and roll. A denominação be-bop refere-se à marcação sincopada deste tipo de jazz. 118 MARIE, Michel. A Nouvelle Vague e Godard. Trad. Eloisa A. Ribeiro, Juliana Araújo. Campinas, São Paulo: Papirus, 2011. p. 187. 94 amorosa de seus protagonistas dialoga com o contexto de mudanças culturais existente na França daquele período. Enquanto Poiccard, um golpista que acaba de cometer um homicídio, mostra-se emocionalmente fragilizado diante da mulher que ama, Patricia é uma jovem que busca sua independência e vive sua vida afetiva com notável desenvoltura. Essa inversão de papéis torna-se dissonante das tradicionais representações de pares amorosos no cinema. Além disso, o fato de Poiccard admitir estar apaixonado diverge da conduta esperada de uma personagem como esta. Criminoso confesso, admirador de velozes automóveis e fã incondicional de Bogart, Poiccard sempre teve muitas amantes. Os sentimentos que nutre por Patricia se tornarão sua perdição, como seu destino final irá comprovar. Quanto à Patricia, é jovem e americana, já que a liberdade feminina parece não poder ser integralmente representada por uma mulher francesa, neste enredo. Vivendo só em um país estrangeiro, do qual ainda demonstra certa dificuldade em apreender o idioma, não tem como amante apenas Poiccard, estando grávida e planejando realizar um aborto. Sua negativa em se entregar afetivamente ao protagonista devese ao seu receio de perda de liberdade. Diante desta caracterização da personagem feminina, torna-se bastante ilustrativa a primeira tomada do filme na qual Poiccard lê uma edição do jornal France Flirt onde consta na capa a sensual gravura de uma jovem pin-up, com ares de ninfeta. A gravura apresenta grande proximidade com os traços físicos da protagonista, além disso, segura uma boneca, enquanto Patricia manuseia um urso de pelúcia na cama, em uma das cenas da película. O olhar provocador e nada ingênuo da figura no jornal permite ao espectador atento entrever a personalidade da mulher que Poiccard procura. Sua fala, “- Além de tudo, sou burro!”, justifica a insistência em desejar Patricia. Deste modo, os protagonistas de Godard são concebidos sobre dúvidas e na maneira insegura pela qual tomam suas decisões, sendo seus passos vacilantes. Em artigo anteriormente citado, Luc Moullet nos informa, quanto ao processo de construção das personagens, que “Godard nunca usa uma linha particularmente precisa na forma como desenha suas personagens; ao invés disso, ele segue – conscientemente – uma série de direções contraditórias.”119 É assim que se compreende quando, em uma de suas falas, Poiccard afirma sempre agir diferente 119 Luc Moullet: 'Jean-Luc Godard' ('Jean-Luc Godard', Cahiers du Cinema 106, Abril 1960). ). In: HILLIER, Jim. Cahiers du Cinéma – 1960-1968: New Wave, New Cinema, Reevaluating Hollywood. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1986. p. 41. 95 Fotograma de “Acossado”. Michel Poiccard observa o cartaz de um filme estrelado por Humphrey Bogart no qual se lê: “mais dura será a queda”. Alusão ao destino da personagem. da forma como ele diz dever agir, ou quando Patricia alega não saber se é livre por ser infeliz ou se é infeliz por ser livre. O trágico desenlace do romance é ainda mais significativo da falta de confiança de Patricia e Poiccard em seus próprios atos, uma vez que é por amá-lo que Patricia o denuncia à polícia, forma de provar a ela mesma que não o ama; e é para convencer Patricia a fugir com ele, vencendo a disputa, que Poiccard se demora em Paris, ignorando os visíveis riscos que essa atitude lhe traria. Este comportamento mórbido do protagonista, e seu provável futuro, tornamse explícitos em diversas cenas ao longo da projeção: quando Poiccard testemunha um atropelamento, benzendo-se em seguida; quando observa atentamente o cartaz de um dos filmes de Bogart, na entrada de uma sala de exibição, e o título francês informa Plus dure sera la chute (mais dura será a queda); num outro cartaz cinematográfico no qual se lê “vivre dangereusement jusqu‟au but!” (viva perigosamente até o fim!); ou na citação de Lênin, na capa de um livro, “Nous sommes des morts en permission” (Somos os mortos em permissão). Suas 96 compulsivas compras de edições do jornal France Soir, finalmente, evidenciam seus receios quanto ao seu futuro, adquirindo o jornal para ler o horóscopo. Criminoso procurado, homicida, e tendo aceitado jogar o jogo da perseguição, sua morte era moralmente e logicamente esperada. À personagem de Jean-Paul Belmondo, cabe morrer em uma das ruas de Paris. “Acossado” consiste, para além das desventuras de Poiccard e de seu destino fatídico, num retrato do cotidiano parisiense do final da década aqui abordada. Através dos passos deste criminoso bon vivant, podemos observar os deslocamentos das pessoas na capital da nação francesa, adentramos nas salas de cinema da Champs-Élysées, frequentamos os bares e cafés na noite parisiense. A opção de se filmar em tomadas externas, isto é, fora dos estúdios, possibilita este contato mais intenso da trama com a cidade que lhe abriga, o que transparece na projeção. Assim, os jovens protagonistas interagem com os modos e hábitos de uma parcela da juventude de Paris da qual eram parte integrante os principais realizadores envolvidos na empreitada cinematográfica. Desta forma, proliferam na obra de Godard citações que se relacionam com o cotidiano do país, porém, com mais exatidão, à parcela intelectualizada dos jovens parisienses, da qual ele e o bando dos Cahiers faziam parte. Nada mais coerente, portanto, do que Michel e Patricia se ocultarem da polícia em uma sala de cinema; ou as observações pouco gentis à atividade no meio cinematográfico que Godard aloca nas falas de suas personagens, chegando a comparar indiretamente o trabalho realizado por Poiccard, na Cineccità italiana, ao proxenetismo; ou, ainda, frisar na fala de uma das jovens amantes de Poiccard que esta deixou de trabalhar no negócio do cinema porque “era um circo”. Finalmente quando, na ChampsÉlysées, uma adolescente lhe exibe um número dos Cahiers du Cinéma, justamente a revista que foi o embrião do movimento do qual “Acossado” alicerçava suas bases, acompanhado da pergunta “-Tem algo contra a juventude?”, Poiccard retruca: “-Sim! Prefiro as pessoas velhas”, para a surpresa da jovem vendedora. Além destas variadas referências, a estrutura idiomática utilizada por Michel Poiccard aproxima-o da conjuntura cultural da nação francesa. Recheados de gírias e termos pejorativos, os diálogos do protagonista ligam-se diretamente à vivacidade do idioma falado nas ruas, nos bares, no cotidiano. A cada expressão, Godard evidencia a natural desenvoltura de Poiccard, denunciando a artificialidade da linguagem corrente nas produções francesas de então. Assim, o golpista falastrão 97 Fotograma de “Acossado”. A jovem apresenta um exemplar dos Cahiers du Cinéma à Poiccard. Referência de Godard à revista que se constituiu como o seio da Nouvelle Vague. não se configura como uma personagem cinematográfica, mas sim como um tipo social das ruas de Paris, perfeitamente identificável. Neste sentido, do contato entre a obra de Godard e o contexto social e cultural da juventude do período, duas cenas tornam-se bastante significativas. A primeira delas localiza-se no meio da projeção, tendo a notável duração de quase um terço de toda a produção, durando 24 minutos, enquanto o filme conta com 1 hora e 26 minutos de duração total. Captada no restrito quarto de hotel onde mora Patricia, a cena consiste no diálogo de aproximação amorosa entre os protagonistas. Nesta longa cena as personagens refletem sobre suas idiossincrasias, seus desejos e anseios. Realizada em planos-sequências, a câmera teve de se adaptar a ausência de espaço do pequeno cômodo, enquadrando os atores desconsiderando o tradicional uso do campo/contra-campo. Assim, ambos os interlocutores são captados na mesma tomada, por vezes a câmera permitindo que um deles se retire do campo, mantendo o diálogo com aquele que ainda se faz presente na lente. Na interação entre Patricia e Michel surgem questões referentes à juventude, à beleza, 98 à morte, à maternidade, ao matrimônio, ao amor, ao sexo, à liberdade, à segurança financeira. Todos estes elementos faziam parte do horizonte de preocupações da juventude francesa auscultada pelas dezenas de enquetes realizadas entre 1955 e 1960. Assim, enquanto Michel pergunta à Patricia se ela pensa na morte, afirmando ele pensar o tempo todo, Patrícia diz não saber em que pensa, apesar de querer poder saber. Dentre os diversos assuntos levantados, o principal consiste na relação amorosa entre o casal e a liberalidade com que Patricia leva sua vida íntima. Poiccard demonstra ciúmes com a presença de outros homens na vida da jovem pela qual tem interesse, reprovando a conduta dela. Quando ela confessa estar grávida e informa a Michel que o filho é dele, este a repreende, afirmando que ela deveria ter tomado cautela para que o mesmo não tivesse acontecido. Apesar de, no final da cena, Michel ser bem-sucedido no intento de novamente se relacionar sexualmente com Patricia, não consegue firmar um laço emocional com ela. Assim, ele continua a estar apaixonado por uma mulher que lhe é indiferente. A segunda cena expressiva do contexto da juventude francesa dos fins da década de 1950 desenrola-se logo em seguida a cena do quarto e consiste na entrevista do escritor Parvulesco, na qual Patricia trabalha como repórter e sobre a qual deverá redigir um artigo. Rodada em um aeroporto, nas proximidades da área de manobra das aeronaves e, portanto, lugar improvável para uma entrevista, as perguntas dos repórteres se sobrepõem, sendo o encontro conduzido de maneira anárquica. Os questionamentos giram, especialmente, sobre a emancipação da mulher francesa, seu distanciamento da mulher americana, bem como sobre as consequências sociais das novas formas de conduta feminina na sociedade francesa do fim da década de 1950. Tímida em sua postura como repórter, Patricia corporifica esta nova jovem mulher que consiste no objeto de debate da entrevista. Sexista e apaixonado, Poiccard não parece o homem adequado para lidar com esta jovem mulher, uma vez que a relação que almeja firmar com ela envolve certa dose de domínio por parte dele e submissão por parte dela, postura perfeitamente condizente com a misoginia que o protagonista exibe em diversas passagens da película, roubando dinheiro das amantes, proferindo ofensas às mulheres, chegando a levantar suas saias na rua. De qualquer forma, Patricia se deixa envolver ao ponto de começar uma relação afetiva com ele, o que evidencia a delicada situação na qual se encontra. Desta maneira, na sequência final, precisa decidir se acompanharia Poiccard rumo à Itália, o que significaria a perda de sua 99 Fotograma de “Acossado”. No take final, Patricia não demonstra arrependimento por ter indiretamente causado a morte de Michel. liberdade, ou se deixaria que ele partisse, permanecendo em Paris. Opta, pois, por denunciá-lo à polícia como prova cabal de seu distanciamento de Michel. Na cena, realizada em plano-sequência, dentro do apartamento da namorada de um amigo de Poiccard, onde eles haviam passado a noite, este afirma: “-Falei sempre de mim e você de si. Você deveria ter falado de mim e eu de você.” Assim, o protagonista finalmente percebe que não conseguiu alcançar o afeto da mulher desejada, decidindo esperar pela polícia. Cansado e decepcionado, encontra seu fim diante do revólver do investigador que havia estado em seu encalço. Quanto à Patricia, apesar de surpresa com o desenrolar fatal de sua denúncia, não chega a demonstrar sentimento de culpa, olhando enigmaticamente em direção à câmera e repetindo o gesto de Bogart, típico de Poiccard, no take final. 100 2.3 OS ARQUÉTIPOS JUVENIS DE “JUVENTUDE TRANSVIADA” E DE “ACOSSADO” Analisando comparativamente as duas obras cinematográficas elencadas, é preciso considerar, além das implicações decorrentes das distinções entre os dois contextos espaciais de produção, o fato de existir um lapso temporal de cerca de cinco anos entre “Juventude transviada” e “Acossado”. Esta diferença entre os anos de produção das obras é significativa não apenas por se tratar de um momento histórico em que a cultura jovem ganhava rapidamente novos contornos mas, igualmente, por permitir a circulação da primeira película, que já se tornara mundialmente conhecida no ano de produção de “Acossado”.120 Desta forma, seria plausível se suspeitar que a representação cinematográfica da juventude americana operada em “Juventude transviada” estivesse presente no horizonte daqueles envolvidos na produção francesa. Estas suspeitas são firmemente comprovadas diante da profunda e declarada admiração nutrida pelos críticos dos Cahiers du Cinéma pelo diretor daquela película, o americano Nicholas Ray, estando dentre este grupo de admiradores, Jean-Luc Godard, diretor de “Acossado”. Importante salientar que, apesar deste filme ter sido lançado no início do ano de 1960, foi considerada sua análise pertinente para o recorte temporal proposto, os anos 1950, devido a sua evidente relação com a atmosfera cultural dos anos finais da mesma década. Ambas as obras apresentam, guardadas as devidas especificidades como, por exemplo, a pequena diferença de faixa etária entre os protagonistas dos dois filmes121, personagens jovens os quais veiculam comportamentos e condutas divergentes dos padrões morais aceitos nas sociedades onde foram produzidas. Por conseguinte, alguns elementos narrativos são utilizados para possibilitar a exploração comportamental dos mesmos. Questões como a rebeldia ligada ao consumo e a sexualidade praticada em moldes mais liberais são bases fundamentais nestas representações. Como dito anteriormente, “Juventude transviada” veicula a crítica à sociedade de consumo então em consolidação mas, especialmente, à erosão das 120 Em respeito a Nicholas Ray, o grupo dos Cahiers incluía-o no seleto grupo de diretores autorais, por eles considerados como realizadores que imprimiam um traço pessoal, e por isso autoral, em seus filmes. 121 Enquanto em “Juventude transviada” as personagens possuem em torno de 17 ou 18 anos, em “Acossado” Patrícia tem 20 anos, enquanto Michel está na faixa dos 25 anos de idade. 101 relações familiares nos Estados Unidos do período. Na obra, não apenas a sociedade de consumo tornava-se o alvo da crítica implementada pelo enredo, mas, outrossim, a tradicional instituição da família nuclear norte-americana, sendo que uma das cenas iniciais da película torna explícita a questão do consumo na compensação para os problemas familiares. Nesta, Jim encontra-se detido na delegacia por ter sido encontrado caído na rua em estado de embriaguez. Quando seus pais e sua avó chegam ao posto policial para buscá-lo, seu pai questiona qual o motivo dele agir assim se lhe compra tudo o que quer: “- I buy you everything you want.” (“- Eu lhe compro tudo o que você quer.”), ao que Jim ironicamente responde: “- You buy me many things.” (“- Você me compra muitas coisas.”). Ao longo da cena, sua mãe sistematicamente opõe-se a tudo o que é dito pelo seu pai, este pedindo para que ela ao menos espere até chegarem a casa, submissão que provoca o protesto de Jim. Neste sentido, a produção de Nicholas Ray insere-se na problematização das consequências sociais do exponencial desenvolvimento econômico observado nos Estados Unidos do pós-guerra, frequentemente apresentado por um prisma positivo, prova da superioridade e da força do sistema de produção capitalista sobre os processos econômicos das nações socialistas, dentro da dicotomia ideológica do período. Afastando-se do discurso laudatório quanto à especificidade americana, na película de Ray a rebeldia sem sentido praticada pelos jovens configura-se como um grito de alerta, um sintoma suficientemente claro de que as rápidas transformações pelas quais a sociedade americana vinha passando poderiam ter desdobramentos negativos para aquela geração que, apesar de viver na afluência, e talvez em parte por isso, crescia na ausência de objetivos concretos para a vida. Entretanto, diante do conservadorismo reinante naquela sociedade, bem como das muitas restrições impostas pelo próprio sistema de produção cinematográfica dos grandes estúdios hollywoodianos, “Juventude transviada” não realiza uma crítica de singular profundidade, tendo um desfecho adequado aos códigos morais em vigor. Diferentemente da produção americana, que ainda se encontrava amarrada aos rígidos códigos sociais e de censura da sociedade dos Estados Unidos, Godard pôde contar com uma maior liberdade para a consecução de “Acossado” 122. É 122 Não devemos, entretanto, sobrevalorizar um possível liberalismo da sociedade francesa, como atestam a discrição com que são encenadas as breves e raras cenas de afeto entre Patricia e Michel, bem como a censura estatal à qual foi submetido o filme de Godard para a obtenção da licença de exibição. Finalmente, note-se que 102 possível, deste modo, que suas personagens não apresentem quaisquer relações familiares. Se Michel é um golpista que se torna homicida, vivendo ora em uma determinada cidade, ora em outra, Patricia é uma jovem americana que vive sozinha em Paris, trabalhando como vendedora do jornal New York Herald Tribune e buscando tornar-se sua articulista, ainda contando com o sustento dos pais sob o pretexto de estudar na Universidade de Sorbonne. A nacionalidade americana de Patricia é, por sua vez, expressiva. Na sociedade francesa será uma americana que irá representar toda a modernidade comportamental de uma jovem mulher. Além disso, a protagonista ainda guarda muito de sua cultura, demonstrando um baixo grau de assimilação cultural, como prova seu apenas relativo controle do idioma francês. Amante de carros, principalmente dos modelos americanos, e atento observador dos gestos do ator hollywoodiano Humphrey Bogart, os quais tenta imitar, Michel Poiccard apaixona-se justamente por esta mulher. Ato afetivo que foge ao arquétipo de sua personagem. Observando-se com mais atenção as personagens principais de ambas as películas percebem-se similaridades nas linhas gerais sobre as quais se assentam suas personalidades. Os protagonistas masculinos das obras cinematográficas tratadas, Jim Stark e Michel Poiccard, distanciam-se do estereótipo do herói de cinema em utilização nas décadas anteriores, tanto nos Estados Unidos, quanto na França. Sendo caracterizados pela divergência frente aos padrões comportamentais aceitos, são psicologicamente fragilizados, apesar de apresentarem grande determinação e coragem em seus atos. Tratando especificamente dos papéis interpretados por James Dean, Steven Ross afirma que estas personagens (...) eram sensíveis, sensuais, e geralmente jovens angustiados buscando descobrir e definir suas identidades. No processo eles levantaram dúvidas sobre os valores e comportamento que dominavam a cultura e a sociedade americanas, e indiretamente expressaram algumas das 123 tendências da insatisfação que existiu durante a década. Assim, sua personagem em “Juventude transviada” representa toda a insegurança e tormento pessoal pretensamente enfrentados por parte significativa da juventude americana nos anos 1950, num doloroso contato com a hostil atmosfera social daquela nação, como se explicita no desenvolvimento da trama. “Acossado” foi, apesar de não veicular qualquer cena de nudez ou de licenciosidade, classificado como inapropriado para menores de 18 anos. Essa classificação deveu-se, provavelmente, à temática abordada mais que ao teor das cenas filmadas. 123 ROSS, Steven. Movies and American Society. Padstow: Blackwell Publishing, 2002. p.231. 103 No caso de Michel Poiccard, trata-se de um golpista que ocasionalmente mata um policial. Não se rebelando contra a sociedade, que julga estar em ordem, é, entretanto, uma figura abjeta, periférico ao corpo social, marginal. Em ensaio contrário à Nouvelle Vague, escrito ainda no momento de ascensão do movimento, assim é descrito a protagonista de “Acossado”: Ora, ele agradou. Por quê? Em primeiro lugar, porque os palermas acharam um herói na medida de seus miseráveis devaneios: caindo sempre nos golpes dos furões, eles reconheceram aquele que nunca serão, o furão, e imagino que os comerciantes sentiram um frisson de inveja ao vê-lo roubar carros com tanta desenvoltura. Mas também porque Belmondo é a imagem de certa apatia, bem desse tempo. Patife, descontraído, 124 provocador, ele é inquieto, perseguido e conformista. Sendo a imagem da apatia daquele tempo, apesar de não se configurar numa representação de um possível jovem francês, como no caso de Jim Stark, constituindo-se como um adolescente americano usual, apesar de rebelde, Poiccard dialoga com a conjuntura cultural francesa, dando vazão às demandas mais essenciais daquela juventude. Se, apesar do comportamento impulsivo e perigoso, Jim acaba por se adequar ao seu esperado papel como jovem de classe média, reconciliando-se com seus pais e construindo um relacionamento afetivo com Judy, Michel Poiccard vai às ultimas consequências de sua conduta autodestrutiva. Criminoso procurado, o herói de Godard constitui-se pela heterogeneidade. Sempre devidamente trajado, compra diversas edições do jornal “France Soir”, pois gosta de ler o horóscopo. O chapéu e o cigarro, que fuma descontroladamente, chegando a acender o próximo antes que aquele que acabara de fumar pudesse se apagar, compõem sua aparência, sendo sua presunçosa elegância sublinhada pelo tema musical jazzístico que o acompanha ao longo da projeção. Sabendo escolher bons automóveis para furtar, tem como sonho de consumo ir viver na Itália com Patricia, através do dinheiro que lhe é devido por um comparsa. Não perde a oportunidade de realizar um galanteio para, no momento seguinte, proferir uma ofensa, sendo suas tentativas de aproximação de Patricia marcadas pela intercalação de gentilezas e injúrias. Sexista, profere comentários irônicos sobre as mulheres ao volante, da mesma forma que acha válido levantar descaradamente as saias das jovens nas ruas de Paris. Ignorando os riscos e determinado a convencer Patricia à fugir para a Itália em sua companhia, 124 BORDE, Raymond; BUACHE, Freddy; CURTELIN, Jean. Nouvelle Vague. Lyon : Serdoc, 1962. Apud : MARIE, Michel. A Nouvelle Vague e Godard. Trad. Eloisa A. Ribeiro, Juliana Araújo. Campinas, São Paulo: Papirus, 2011. pp. 95-6. 104 negligencia a aproximação da polícia, cada vez mais perto. Assim, a técnica pouco convencional de montagem utilizada em “Acossado”, marcada por rupturas, falsos raccords e saltos, e que propiciou críticas e aplausos quando do lançamento deste título, parece condizer com este caráter volátil da personalidade de Poiccard, indivíduo angustiado pela possibilidade de prisão, movimentando-se incessantemente pela cidade, enredando-se na trama que, num ritmo de desenvolvimento acelerado propiciado pela montagem, leva-o à morte através de sua amada. Opondo-se aos declarados sentimentos de Poiccard, Patricia, por seu turno, não afirma amá-lo, resistindo às suas investidas, apesar de acabar por ceder e ir à cama em sua companhia. O casal protagonista de “Acossado” veicula, desta forma, um determinado grau de inversão nos papéis amorosos. A despeito da excessiva masculinidade que Poiccard possa exibir através de seus atos, é ele a metade fragilizada da relação. Patricia mantêm-se segura de si, não se prendendo a convenções morais, confessando estar grávida e planejando realizar um aborto. De tal modo, e ainda que não apresente nada da rebeldia gratuita de Judy, em “Juventude transviada”, sua forma de comportamento vai bem além dos limites observados pela personagem feminina hollywoodiana, a despeito da discrição e recato com que a aspirante a jornalista procura se apresentar. No mesmo ensaio acima citado, afirma-se sobre Patricia Franchini: Dar e reter não vale, dizia o direito antigo. Aqui se dá e se retém, o que é feito por precaução. Mostra-se uma mulher que não é uma mulher, mas uma espécie de rapaz de cabeça raspada. Belmondo provoca uma antimulher, o que tira muito das audácias sexuais às quais o filme pretendia. 125 Ainda aí Godard trapaceou. Distanciando-se de Patricia, Judy vivencia sua sexualidade de maneira bem mais explícita, uma vez que é através dela que a adolescente exterioriza toda a angústia que sente em relação à falta de afeto paterno. A posição privilegiada da qual goza dentro da hierarquia da gangue de arruaceiros estudantis, como namorada do líder do grupo, coloca-a na erotizada disposição de símbolo feminino do bando de delinquentes. Ademais, sua sensualidade aparente reafirma a heterossexualidade do protagonista, colocada em risco diante de seu frágil e sexualmente ambíguo amigo John (Platão). Desta maneira, a feminilidade da 125 BORDE, Raymond; BUACHE, Freddy; CURTELIN, Jean. Nouvelle Vague. Lyon : Serdoc, 1962. Apud : MARIE, Michel. A Nouvelle Vague e Godard. Trad. Eloisa A. Ribeiro, Juliana Araújo. Campinas, São Paulo: Papirus, 2011. p. 96. 105 protagonista reveste-se de substancial importância na manutenção dos padrões comportamentais básicos de Jim Stark, já que será através do tradicional romance heterossexual que ambas as personagens se adequarão aos ditames morais emanados da sociedade americana. Em “Acossado”, entretanto, as implicações ao conservadorismo da sociedade francesa limitam-se à ausência de cenas nas quais sejam diretamente veiculados atos explícitos de troca de afeto físico entre as personagens.126 A temática, por seu lado, mostra-se nada conservadora, apresentando uma relação afetiva/sexual pouco convencional entre um criminoso em fuga e uma jovem estrangeira liberalizada que acaba por denunciá-lo à polícia, como intuito de provar a si mesma que não o ama. Quando, como consequência de sua denúncia, seu amante ocasional morre diante de si, Patricia demonstra muito pouco pesar ou remorso. Michel havia contado com a sorte demorando-se em Paris. Quando a sorte o abandona, morre em uma das ruas da cidade, no fim do fôlego. As obras aqui elencadas veiculam personagens jovens em dissonância com os padrões comportamentais propagados, no período, nas sociedades nas quais as respectivas películas foram produzidas. Observados os limites de encenação impostos pelos códigos de censura e mesmo pelos sistemas de produção vigentes, as películas trazem à tela personagens em ruptura com seus laços familiares, expressando sua sexualidade de forma notadamente livre para os costumes do momento, por vezes cometendo crimes e apresentando pouca consideração às prováveis consequências de seus atos. Aos olhos do público, estas personagens tornam-se muito pouco convencionais se comparados aos modelos tradicionais dos cinemas americano e francês, sendo as personagens masculinas confusas e psicologicamente frágeis, enquanto suas congêneres femininas buscam desconsiderar as convenções sociais e culturais que constrangeriam sua margem de ação. Caso consideremos o grau de liberdade com que tais filmes abordaram a questão do jovem, levantando alguns dos dilemas existentes diante das novas demandas culturais evidenciadas, fica aparente que a produção de Nicholas Ray possui um caráter mais conservador em sua trama, coadunando com os parâmetros 126 A longa cena rodada no quarto de hotel de Patricia, apesar de demonstrar que os amantes se relacionaram sexualmente, é rodada bastante pudicamente, sendo o ato sexual mascarado pelos lençóis sob os quais se encontram as personagens, bem como pelos saltos de montagem. 106 sociais em vigor nos Estados Unidos, bem como aos limites ainda restritos emanados de Hollywood. Entretanto, não deve ser negligenciado o fato de que o longa-metragem de Godard constituiu-se, por sua vez, uma realização à margem do sistema de produção existente na França, nos fins da década. Como dito anteriormente, “Acossado” estava fora da forma convencional de produção da indústria francesa do cinema. Longa-metragem inaugural de Godard, um dos objetivos da obra consistia em forçar a renovação da produção cinematográfica francesa, utilizando-se de temas próximos ao contexto cultural da época, depurando as produções de sua carga técnica, alterando, assim, o tradicional fazer cinematográfico. O sucesso de bilheteria alcançado afirmaria o potencial mercadológico e, além disso, a vivacidade cultural de se incluir na atmosfera jovem do momento. 107 3 A REPRESENTAÇÃO JUVENIL FEMININA: DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, CONSUMO E LIBERDADE Nos capítulos anteriores, a representação cinematográfica da juventude foi abordada enfatizando-se obras nas quais a questão da rebeldia e da delinquência juvenil figuraram como os elementos básicos de caracterização desta parcela populacional. Guardadas as singularidades de cada uma das produções acima privilegiadas, em suas representações veicularam-se jovens ora em flagrante ruptura com suas famílias, distantes do seio familiar, ora dissonantes em relação ao meio social do qual fazem parte, observando um código comportamental diverso daquele erigido no conjunto de normas sociais. Esse arquétipo juvenil ancorou-se, preferencialmente, na formação de um ethos jovem masculino, no qual a delinquência e a criminalidade, formuladas através de atos despropositados de violência, assumiam posição de destaque, sendo relacionadas à fragilidade psicológica das personagens. À representação juvenil feminina, quando presente, coube a centralização do perfil sobre os fundamentos da sexualidade, vivida de maneira pouco convencional, se observados os parâmetros de conduta habitualmente aceitos na década em estudo, nas sociedades apreciadas. Todavia, conjuntamente ao mote da sexualidade, os anos 1950 assentem a imagem feminina ao consumo então em vertiginosa elevação, cristalizando uma íntima ligação entre a mulher e a prática do consumo que se constituía à esteira do desenvolvimento econômico observado. Salienta-se, assim, a relação entre cultura de consumo e os processos econômicos ocorridos nos Estados Unidos e na França no pós-Segunda Guerra. Contrariando as expectativas correntes, os Estados Unidos não enfrentam uma crise econômica no período posterior ao fim da Segunda Guerra (1939-1945), como havia acontecido nos primeiros anos seguintes ao conflito mundial de 19141918. Economicamente, o final do conflito significava, por um lado, o fim ou, ao menos, a drástica redução da demanda governamental por equipamentos relacionados ao esforço de guerra e, por outro, o retorno em massa de um considerável contingente de combatentes, os quais haviam desempenhado suas obrigações patrióticas representando a nação nos fronts abertos ao longo do conflito. Assim, tudo levava a crer que o país enfrentaria uma redução de sua atividade produtiva ao mesmo tempo em que se daria um considerável aumento na 108 taxa de desemprego127, sendo ambos os elementos fatores colaterais ao processo de desmonte da economia de guerra e reconversão à economia de tempos de paz128. No entanto, a escalada das animosidades entre Estados Unidos e União Soviética, apesar da relativa redução dos gastos bélicos de ambos os Estados, provocou a manutenção de grandes contingentes em serviço militar, assim como conservou, especialmente nos EUA, a demanda pelos mais diversos equipamentos úteis às ações militares, mantendo boa parte do parque industrial em funcionamento. Paralelamente, nos Estados Unidos, o paulatino retorno dos combatentes à nação foi acompanhado de linhas de crédito voltadas aos veteranos, além de diversas outras ações econômicas, que permitiram o desenvolvimento acelerado do mercado de consumo civil, dinamizando a produção, reduzindo o risco de desemprego e criando os alicerces econômicos que permitiram o estabelecimento, na década seguinte, daquilo que o sociólogo francês Jean Baudrillard denominou de sociedade de consumo129. Segundo Howard Temperley e Malcolm Bradbury: Embora os gastos federais fossem reduzidos em quase 60 por cento, descendo de 98 bilhões de dólares em 1945 para 39 bilhões em 1947, a queda real do Produto Nacional Bruto foi de menos de 10 por cento e nos três anos seguintes esta queda foi compensada pelo crescimento do setor doméstico. O desemprego elevou-se brevemente de seu índice mais baixo de todos os tempos, 1,2 por cento em 1944, para 3,9 por cento em 1946, mas caiu para 3,4 por cento em 1948. Por volta da virada para os anos 1950, as perspectivas eram de que a sociedade americana estava evoluindo para uma nova espécie de sociedade de massa baseada numa 130 abundância mais ou menos geral. O futuro da nação francesa, por outro lado, mostrava-se sensivelmente mais obscuro se comparado aos prognósticos realizados sobre os Estados Unidos. Apesar de ser, como a nação americana, um dos países vitoriosos no conflito mundial que se exaurira em 1945, a França entrevia inúmeros obstáculos no caminho de sua recuperação. Tendo sido ocupada pelas forças alemãs desde a derrota e o consequente armistício de 1940, num processo que, iniciado pelo norte, acabou, pouco a pouco, por assegurar o controle germânico sobre virtualmente todo 127 Segundo W. Leuchtenburg, ao final do conflito havia 10 milhões de trabalhadores empregados nas indústrias de guerra, bem como 12 milhões de homens licenciados das Forças Armadas. Cf. LEUCHTENBURG, William E. O Século Inacabado: a América desde 1900. Vol. II. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. 128 Para uma análise econômica sobre os primeiros anos do pós-guerra, confira POLLARD. Robert A. Economic Security and the Origins of the Cold War, 1945-1950. New York: Columbia University Press, 1985. 129 BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 2008. 130 BRADBURY, Malcolm; TEMPERLEY, Howard. Introdução aos Estudos Americanos. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1981. p. 314. 109 o território metropolitano francês131, esta nação sai do conflito economicamente destruída, politicamente desorganizada e socialmente fragilizada por fantasmas morais que assombravam a outrora sólida identidade francesa. Para além da reorganização de suas bases sociais, políticas e econômicas, era necessária a verdadeira ressurreição da França. Havia, portanto, um claro sentimento de ansiedade no contexto francês do imediato pós-guerra. Segundo o historiador William I. Hitchcock, Esta foi uma reação comum entre os homens e mulheres franceses aos eventos daquele agosto [1944]: o momento da vitória foi sublime, porém breve. A França pôde comemorar sua Liberação apenas brevemente antes de começar um doloroso processo de reconstrução de uma nação traumatizada não apenas pela guerra e pela ocupação alemã, mas por uma década de amargo combate partidário. Colocar-se no caminho 132 da recuperação (...) não seria fácil. Os dois principais problemas a ser enfrentados pelos franceses seriam a reorganização política, uma vez que havia um consenso quanto à inadequabilidade de se retomar o regime vigente no momento anterior à ocupação, a 3ª República; e a reorganização econômica, com a retomada da produção, formação de uma nova infraestrutura, diante do quase completo arrasamento da existente, e formação de novas reservas, tendo sido o tesouro nacional dilapidado ao longo do conflito através do confisco por parte do governo alemão. Economicamente, a tarefa que se apresentava ao povo francês era árdua. Os anos de ocupação desorganizaram a economia em variadas instâncias. Com boa parte de sua infraestrutura arruinada, os níveis de produção franceses eram baixos ao fim do conflito e, devido à falta de capital para se investir na reconstrução de suas bases econômicas, o processo de recuperação seria lento, exigindo demasiados esforços de uma população que já suportara anos de privações e racionamentos durante a guerra. Seria imprescindível para a França, assim como para outras nações europeias, o apoio financeiro externo. Passadas algumas tentativas de planejamento econômico notadamente conservadoras, as quais não conseguiram obter nem o consenso político, tampouco 131 Refiro-me à virtualidade do controle alemão sobre o território francês considerando que, em 1º lugar, o Governo de Vichy constituiu, entre 1940 e 1942, um governo francês, ainda que contasse com restrita autonomia diante do regime nacional-socialista; em 2º lugar, a Córsega esteve, oficialmente, sob controle italiano, tendo sido recuperada posteriormente. Paralelamente, as variadas colônias francesas na África, Ásia e América não chegaram a estar sob domínio das forças hitleristas, ao longo do conflito. 132 HITCHCOCK. William, I. France Restored – Cold War diplomacy and the quest for leadership in Europe, 19441954. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1998. p.12. 110 o apoio da população133, um plano que visava a modernização do aparato produtivo do país é apresentado como a única via de recuperação econômica executável. O Plano Monnet, assim denominado devido ao seu principal mentor, Jean Monnet, esboça as linhas gerais do processo de recuperação econômica colocado em curso no fim da década de 1940 e ao longo de toda a década de 1950. Segundo Robert Gildea134, Monnet percebia que a ajuda americana era crucial para a recuperação das finanças francesas, sobretudo devido à limitação dos fundos e da capacidade de financiamento governamental no curto prazo. As ações de Monnet, portanto, pretendiam a recuperação francesa através do desenvolvimento da produção. Desta forma, o Plano possibilitou a criação de uma atmosfera de expansão econômica.135 Entretanto, a referida expansão dar-se-ia através do investimento no setor de bens de capital, não pelo desenvolvimento do consumo. Assim, enquanto que nos Estados Unidos a rápida e bem-sucedida reconversão da economia foi possível pelo estabelecimento de um vigoroso mercado de consumo civil, o governo francês optou pelos investimentos na indústria como caminho para a recuperação econômica, ao invés de adotar medidas que incentivassem o consumo. A consequência, segundo Hitchcock136, foi uma elevada tendência inflacionária, causada pela manutenção do auto custo dos bens de consumo, devido à escassez dos mesmos. Aos franceses, ficava a impressão de que boa parte das privações dos tempos de guerra ainda perduraria pelos próximos anos. Entretanto, a derrubada de diversas barreiras alfandegárias como exigências de acesso ao capital oriundo do Plano Marshall acabou por possibilitar a entrada maciça de bens de consumo americanos no mercado interno francês, nos anos 1950. Desta maneira, a década testemunharia o gradual estabelecimento do consumo em larga-escala na sociedade francesa, com a aproximação dos padrões americanos de consumo. Sobre esta profunda transformação no cotidiano financeiro da nação, da privação à relativa abundância de bens de consumo, afirma Kristin Ross: Buscando descrever a frenética virada ao consumo de largaescala na sociedade francesa do pós-guerra, uma metáfora biológica 133 Refiro-me às experiências de Pierre Mendès France e René Pleven. GILDEA, Robert. France Since 1945. New York: Oxford University Press, 2002. 135 Op. Cit. 136 HITCHCOCK. William, I. France Restored – Cold War diplomacy and the quest for leadership in Europe, 19441954. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1998. 134 111 prevalece: a faminta, carente França da Ocupação poderia agora ser saciada; a França estivera faminta e agora poderia comer o suficiente; o organismo esfomeado, necessitado de todo alimento, poderia se satisfazer 137 em uma nova abundância e prosperidade. Os novos hábitos de consumo que se materializavam dialogavam com transformações estruturais da sociedade francesa, que se urbanizava, num processo de modernização diretamente vinculado à produção industrial. Além disso, as parcelas jovens da população buscavam meios mais vantajosos de vida, apoiados na maior oferta de possibilidades, o que representou uma ruptura geracional no que concerne à educação e à formação profissional. Em contato com o modo de vida propagandeado através dos mass media, sobretudo do cinema e de revistas como L’Express, a aquisição de eletrodomésticos, produtos de higiene e beleza, bem como alimentos industrializados, afirmam, para o indivíduo, o distanciamento dos tempos difíceis dos anos de guerra, da mesma forma que a proliferação de tais objetos de consumo significa para a sociedade a definitiva inclusão da França na modernidade. Nesta conjuntura, o papel social da mulher passa por modificações relativas à maior liberdade de ação, nas maneiras possíveis de viver sua individualidade, agora sob menor coerção cultural, tendo reflexos em suas possibilidades de inserção profissional. Assim, Mulheres emergiram como mais que suprimento fabril. Elas apareceram numerosamente nas profissões, como doutoras, advogadas, cientistas, magistradas e banqueiras. Elas alcançaram o pico do serviço público no Conselho de Estado e na Controladoria de Finanças; em 1954, mulheres acionistas puderam comercializar na Bolsa, e jornalistas como 138 Françoise Giroud da L’Express tinham muita influência. Nos Estados Unidos, a utilização da mão-de-obra feminina durante o esforço de guerra permitiu o alargamento de expectativas desta parcela da população e, apesar da pressão social para o retorno aos lares após o fim do conflito e consequente desmobilização, a relativa liberdade alcançada teria reflexos na década de 1950, com a maior participação feminina no mercado de trabalho e no consumo.139 Paralelamente, a multiplicação dos subúrbios e do modo de vida que passaram a constituir, colocavam a mulher na posição de consumidora preferencial, 137 ROSS, Kristin. Fast Cars, Clean Bodies – Decolonization and The Reordering of French Culture. Massachusetts: Massachusetts Institute of Technology Press, 1996. pp. 71-72. 138 MOYNAHAN, Brian. The French Century. Paris: Flammarion, 2007. p. 341. 139 DIGGINS, John Patrick. The Proud Decades: America in War and in Peace. New York: W. W. Norton & Company, 1989. 112 sendo os nascentes shoppings centres projetados para se adequarem às suas necessidades.140 Os desenvolvimentos econômicos brevemente descritos acima ocasionariam a relativa elevação do padrão de vida nas nações consideradas, especialmente nos Estados Unidos, com a consolidação do consumo civil como a mola mestra da economia na década de 1950, sendo incentivado pelos governos. Neste sentido, afirma o presidente americano Dwight D. Eisenhower: Numa sociedade livre, o governo encoraja mais o crescimento econômico quando estimula o esforço dos indivíduos e dos grupos privados. O dinheiro só será gasto utilmente pelo Estado se também o tiver sido pelo 141 contribuinte, uma vez liberto do peso dos impostos. Em A Sociedade de Consumo, trabalho originalmente editado na década de 1960, Baudrillard tece um elaborado exame do fenômeno do consumo que se instaura com proeminência a partir dos anos 1950, teorizando sobre a posição deste como o elemento basilar das sociedades ocidentais do pós-guerra. Assim se inicia a obra: À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objetos, dos serviços, dos bens materiais, originando como que uma categoria de mutação fundamental na ecologia da espécie humana. Para falar com propriedade, os homens da opulência não se encontram rodeados, como 142 sempre acontecera, por outros homens, mas mais por objetos. Suas análises sobre o consumo, as relações desta instância econômica com o meio social, cultural e de produção, além dos desdobramentos psicológicos presentes em sua obra, interessam primordialmente ao presente texto quanto à eleição da mulher como principal objeto publicitário na sociedade de consumo. Segundo o autor, a imagem da mulher constitui-se como o signo sobre o qual se assenta com maior firmeza todo o conjunto de estratégias voltadas à incitação ao consumo. Desta maneira, a mulher é vendida ao público, feminino e masculino, como objeto de desejo, ao mesmo tempo em que sua imagem serve de veículo para a apresentação dos mais variados produtos. Constrói-se, desta maneira, um arquétipo de mulher a ser obstinadamente perseguido como modelo para o sucesso. A beleza tornou-se para a mulher imperativo absoluto e religioso. Ser bela deixou de ser efeito da natureza e suplemento das qualidades 140 Sobre a relação entre as estratégias comerciais empregadas nos shopping centres e a eleição da mulher enquanto consumidora primordial, ver COHEN, Lizabeth. A Consumers’ Republic – The Politics of Mass Consumption in Postwar America. New York: Vintage, 2003. 141 BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 98. 142 Ibid, p. 13. (Grifo do autor). 113 morais. Constitui a qualidade fundamental e imperativa de todas as que 143 cuidam do rosto e da linha como sua alma. Desta forma, (...) o menor dos objetos, ao ser investido de modo implícito no modelo do corpo/objeto da mulher, também se torna feitiço. Daí a impregnação generalizada de todo o domínio do “consumo” pelo erotismo. Não se trata de uma moda no sentido superficial do termo, mas da lógica 144 autêntica e rigorosa da moda. É neste contexto de aumento da participação feminina em variados âmbitos das sociedades dos Estados Unidos e da França na década de 1950, especialmente a posição singular gozada por esta parcela populacional dentro da sociedade de consumo, em que as produções cinematográficas realizam as representações femininas que passaram a povoar o imaginário cultural das décadas seguintes. Se aos jovens do sexo masculino coube a aproximação com a rebeldia como forma de exteriorização de angústias profundas, os constructos cinematográficos das jovens mulheres do período não se alicerçavam apenas neste elemento, relacionando-se com o alargamento do campo de ação das mulheres e com as consequências socioculturais desta transformação comportamental, no seio de sociedades ainda marcadas pelo conservadorismo. Assim sendo, segue-se à análise das produções “Como agarrar um milionário” (How to marry a millionaire, dir.: Jean Negulesco – 1953) e “E Deus criou a mulher” (Et Dieu créa... la femme, dir.: Roger Vadim – 1956) objetivando o exame das caracterizações femininas nas respectivas obras. 3.1 “COMO AGARRAR UM MILIONÁRIO”: A BUSCA PELO CONSUMO NOS EUA “Como agarrar um milionário” (How to marry a millionaire) é uma comédia romântica lançada no ano de 1953. A trama se desenrola na cidade de Nova York onde três modelos fotográficos se reúnem para executar um plano audacioso que tem como objetivo conhecer homens singularmente ricos com os quais consigam realizar matrimônio. Este inusitado trio é formado por jovens mulheres das quais a Sra. Schatze Page, interpretada pela atriz Lauren Bacall, ocupa a posição de mentora do plano e líder das demais. Apesar de ainda jovem, Page conta com poucos anos a mais que suas companheiras, aparentando maior sensatez e 143 144 BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 174. Ibid, p. 177. 114 Cartaz de “Como agarrar um milionário”. <Disponível em: http://www.imdb.com>. Acesso em: 09 dez. 2013. pautando seus atos em notável segurança. Embora já tenha sido casada, se desiludiu com o matrimônio, pois tendo se casado por amor com um frentista pobre, este se mostrou um vigarista, parando de trabalhar após o casamento e aplicandolhe um golpe, o que a levou à separação. Page faz questão de ser chamada pelo pronome de tratamento “senhora”, como forma de demonstrar maior respeitabilidade. Sua amiga, Pola Debevoise, vivida por Marilyn Monroe, é claramente ingênua e atrapalhada. Sua determinação em não utilizar os óculos que lhe são tão necessários, para não interferir em sua imagem, apenas colabora para seus frequentes equívocos. Pola não faz quaisquer restrições aos possíveis pretendentes, ignorando ausência de beleza ou refinamento, desde que seja o homem absurdamente rico. É esta quem convida a terceira integrante do grupo, “Loco” Dempsey, protagonizada por Betty Grable, uma simpática modelo de Nova Jersey que não possui a postura esperada por Page para as integrantes do grupo. “Loco”, ou “louca” em português, é assim denominada pelas outras colegas de profissão devido ao seu comportamento impulsivo, realizando atos sem a devida reflexão, além de sua propensão a se meter em confusões e mal-entendidos. “Loco” não sabe escolher os homens com os quais interage, desconsiderando as diretrizes 115 do plano traçado por Sra. Page e trazendo ao apartamento alugado pelo trio senhores que conhece em suas caminhadas pela cidade. Quando consegue um interessado rico, não se importa com o fato deste ser casado, o que inviabilizaria a consecução do objetivo final do plano de Page, ou seja, firmar sério compromisso com vistas ao matrimônio. Esta insólita reunião feminina irá enfrentar maiores problemas na realização do plano do que suas integrantes imaginavam, se envolvendo em inúmeras peripécias ao longo do enredo, sem conseguir a atenção de nenhum abastado realmente interessado em firmar compromisso com alguma delas. Assim, em meio aos muitos enganos, as meninas acabam por se engajar em relacionamentos de sincero fundo afetivo com homens aparentemente excluídos do mundo dos grandes negócios e, portanto, absolutamente fora do padrão básico por elas esperado. Apesar de se tratar de uma comédia romântica leve, gênero de produção notadamente familiar, “Como agarrar um milionário” não pode ser apresentado como exemplo significativo do conjunto cinematográfico realizado por seu diretor, Jean Negulesco. Este, um profissional profícuo e de variadas facetas, deve ser percebido através de sua formação e do caminho pouco usual que o levaram ao mundo do cinema hollywoodiano. Negulesco era romeno, nascido no ano de 1900. Com a idade de 12 anos sai de casa e migra para Paris, com a intenção de se tornar um pintor profissional. Para pagar seus estudos, lava pratos. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, participa do conflito trabalhando em um hospital de campo no front ocidental. Retornando à Paris no pós-guerra, intensifica seus estudos, vendendo alguns quadros e iniciando-se na função de cenarista teatral. Em 1927, migra para Nova York em busca de maior público para suas pinturas, acabando por cruzar o país rumo à Califórnia. Esta viagem dura alguns anos, tendo sido paga por retratos pintados por Negulesco ao longo do caminho. Em 1932, ingressa no negócio do cinema, sendo contratado pelos Estúdios Paramount em funções secundárias. Tendo financiado e dirigido um projeto pessoal experimental, consegue a atenção dos executivos do estúdio que o contratam como diretor de segunda unidade de direção. Nesta posição, executaria diversas funções, dentre elas, diretor associado, cenarista e roteirista. Em 1940, aproxima-se dos Estúdios Warner Bros., tornando-se contratado desta companhia até 1948. Neste período, além de dirigir curtas e musicais, Negulesco afirma-se enquanto diretor de dramas e filmes policiais do gênero film noir, o que lhe confere sucesso de público e 116 crítica. Entretanto, atravessaria uma tortuosa trajetória até se firmar na direção, tendo sido substituído pelo diretor John Huston em filmagens já em andamento, por mais de uma vez.145 Envolvido em projetos audaciosos que tratavam de temas controversos, é demitido pela Warner após abordar a temática do estupro e da vingança assassina de uma surda-muda, no filme Johnny Belinda. Este, porém, é sucesso de público, tendo sua protagonista sido agraciada com o Oscar de Melhor Atriz. Após a demissão, Negulesco torna-se diretor nos Estúdios Twentieth Century Fox, até 1958, executando dramas de guerra e film noir. Já diretor estabelecido na indústria californiana, reinventa-se como realizador, produzindo filmes de apelo notadamente comercial, voltados ao entretenimento, sendo o primeiro destes “Como agarrar um milionário”. Filme de grande orçamento, é um dos primeiros a serem captados em CinemaScope, então revolucionária tecnologia Widescreen dos Estúdios Fox, contando com a estrela em ascensão Marilyn Monroe no elenco. Negulesco migraria para a Espanha na década seguinte, dedicando-se à atividade de pintor.146 No filme em questão, apesar da personagem a cargo da atriz Lauren Bacall aparentemente assumir a posição de protagonista do enredo, Pola Debevoise, personagem de Monroe, usufrui de bastante espaço no desenrolar da trama. Mesmo não contando com a exclusividade da feminilidade na película, fica claro que cabe a esta última personagem o apelo sexual da obra. Retomando a discussão de Edgard Morin, em As Estrelas – Mito e Sedução no Cinema, no que se refere aos novos astros e estrelas surgidos na década de 1950, período no qual o antigo star system sofria um processo de desintegração e reorganização sobre bases modernas, Marilyn Monroe é eleita o símbolo da nova feminilidade. Segundo Morin, Monroe ocupa, no campo feminino, posição similar à vivida por James Dean, no âmbito da adolescência: (...) James Dean e Marilyn Monroe, estrelas-arquétipos do período anterior, são também estrelas-matrizes do período atual: James Dean, primeiro herói da adolescência, e Marilyn Monroe, heroína da nova feminilidade. Este último ponto não parece evidente, mas vamos refletir. Em nossa sociedade, na qual o homem pretende realizar-se no êxito, a mulher, desde Madame Bovary até Marilyn Monroe, procura realizar-se na vida. A vida, isto é, o amor, a relação com outra pessoa é, em nossa sociedade, muito mais importante para a mulher que para o homem. Aliás, enquanto nenhuma estrela masculina se suicidou (a não ser por causa de fracassos 145 Foi Jean Negulesco quem realizou, por dois meses, as filmagens de The maltese falcon, um dos mais aclamados títulos do film noir, antes de ser preterido a John Huston. 146 www.imdb.com. Acesso em: 09.12.2013. 117 na carreira), foi em pleno sucesso social – mas em pleno fracasso no viver – 147 que Marilyn Monroe se suicidou. Fotograma de “Como agarrar um milionário”. A representação feminina na personagem de Marilyn Monroe. Cabe salientar que o livro de Morin no qual esta reflexão é realizada foi originalmente lançado no ano de 1972 e, portanto, deve muito de sua retórica ao contexto cultural do período, além de evidenciar certa desatualização caso sejam considerados alguns dos aspectos que viriam a integrar os mass media nas décadas seguintes, quanto à relação dos atores com seu trabalho, com o público, e a maneira como este viria a consumir as estrelas cinematográficas. De qualquer forma, sua avaliação quanto à representação da nova feminilidade na pessoa de Marilyn Monroe, nos anos 1950, foi apenas confirmada ao longo dos anos. Em “Como agarrar um milionário” a atriz empresta seu corpo a uma personagem ingênua e pura, atrapalhada e divertida, porém que percebe em um casamento com um homem de grande fortuna a certeza de alcance da felicidade. Desta maneira, Pola distancia-se do modelo feminino tradicional, materializado na ideia de mulher romântica e financeiramente desinteressada, disposta a encarar as agruras da vida ao lado do homem que escolhesse como marido. Ainda assim, como será desenvolvido a seguir, as personagens desta película irão oscilar, com o passar da trama, entre os modelos tradicional e moderno de feminilidade, alterando suas perspectivas referentes ao valor do casamento e do lugar onde encontrar a felicidade. 147 MORIN, Edgar. As Estrelas: mito e sedução no cinema. Trad.: Luciano Trigo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 133. 118 A questão da busca da felicidade fundamenta todo o enredo da película de Negulesco. Nesta, Page, Pola e “Loco” pretendem assegurar um marido rico como forma de conseguir alcançar este almejado estado de espírito que, no entender delas, pode se materializar através do livre consumo de bens e do usufruto de uma vida descompromissada, ocupada com festas de gala na alta classe e viagens exóticas. Desta maneira, “Como agarrar um milionário” inicia-se propondo a relação direta entre a sociedade de consumo e a felicidade. Em A Sociedade de Consumo, Baudrillard assim fundamenta o diálogo entre o consumo e a felicidade: Todo o discurso sobre as necessidades assenta numa antropologia ingênua: a da propensão natural para a felicidade. Inscrita em caracteres de fogo por detrás da menor publicidade para as Canárias ou para os sais de banho, a felicidade constitui a referência absoluta da sociedade de consumo, revelando-se como o equivalente autêntico da 148 salvação. Para o autor, enquanto “equivalente autêntico da salvação”, a felicidade assume, na sociedade de consumo, um status de sacralidade análogo à vida após a morte no paraíso cristão ou ao mito da igualdade nas sociedades mágicas tradicionais. Tornando-se o elemento assegurador da igualdade, a felicidade, ainda segundo Baudrillard, harmoniza toda a tensão com a qual este mito passou a ser envolvido a partir das revoluções do século XIX. Sendo nas sociedades modernas a real igualdade inalcançável, opera-se o mito igualitário através de uma felicidade mensurável pelo bem-estar disponível nos objetos e signos do conforto. A “Revolução do Bem-Estar” é a herdeira, a testamenteira da Revolução Burguesa ou simplesmente de toda a revolução que erige em princípio a igualdade dos homens sem a poder (ou sem a conseguir) realizar a fundo. O princípio democrático acha-se então transferido de uma igualdade real, das capacidades, responsabilidades e possibilidades sociais, da felicidade (no sentido pleno da palavra) para a igualdade diante do objeto e outros signos evidentes do êxito social e da felicidade. É a democracia “do standing”, a democracia da TV, do automóvel e da instalação estereofônica, democracia aparentemente concreta, mas também inteiramente formal, correspondendo para lá das contradições e desigualdades sociais à democracia formal inscrita na Constituição. Servindo uma à outra de mútuo álibi, ambas se conjugam numa ideologia democrática global, que mascara 149 a democracia ausente e a igualdade impossível de achar. Cabe ter em mente que nos Estados Unidos de 1953, ano de produção da obra cinematográfica em questão, encontra-se em consolidação a sociedade de consumo de massa que viria a se adequar ao modelo de consumo com maior propriedade. Diante do contexto geopolítico da Guerra Fria, a ampliação do 148 149 BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 49. Ibid, p. 50. 119 consumo figura como a representação do caráter democrático da nação americana, democracia esta pretensamente presente nos alicerces do ethos nacional. Além disso, a abundância propagada como mais ou menos geral naquela sociedade conforma-se, como já afirmado anteriormente, como o lugar de contraponto às privações e racionamentos do mundo socialista. Não obstante, a noção de busca individual da felicidade exibe toda a sua importância na identidade americana ao ser encontrada no próprio texto da Constituição daquela nação,150 como um direito inalienável de todo indivíduo, sendo um de seus ideais basilares. Buscando a felicidade através do livre e irrestrito consumo, as três jovens do enredo de “Como agarrar um milionário” não fazem nada além de expressar os parâmetros de busca da felicidade em prática na sociedade de afluência do pósguerra, em curso nos Estados Unidos. Essa relação consumo – felicidade será, entretanto, relativizada conforme as personagens engajam-se em relacionamentos afetivos durante a projeção. A película de Negulesco tem sua trama situada na cidade de Nova York, miticamente considerada o lugar onde indivíduos das mais variadas origens confluem em sua procura por oportunidades. Significativamente, foi através desta cidade cosmopolita que o referido diretor havia adentrado em solo americano, décadas antes. Pretendendo fazer com que a audiência identificasse com clareza a cidade na qual a história se desenrola, muitas imagens icônicas de Nova York são apresentadas logo na sequência de abertura: o Rockefeller Center, o Central Park, o prédio das Nações Unidas e a ponte do Brooklyn. Durante a projeção não deixam de estarem presentes, igualmente, o Empire State Building, bem como as inúmeras luzes da Times Square, iluminando a noite nova-iorquina. No filme, Nova York figura como uma cidade limpa e organizada, ocupada por arranha-céus sendo as poucas cenas externas, rodadas em suas ruas, marcadas pelas calçadas com poucos pedestres os quais parecem se distrair alegremente nas avenidas e praças. Apesar de reconhecidamente cosmopolita, Nova York surge como um lugar de etnia eminentemente branca, não havendo a presença de pessoas de outras etnias nem no elenco, tampouco no grupo de figurantes. Este distanciamento da realidade heterogênea da população residente nos Estados Unidos evidencia-se em uma passagem talvez xenófoba do enredo. Nesta, quando a filha do homem rico e snob 150 Cf. http://www.house.gov/house/Constitution.html. Acesso em: 10/12/2013. 120 Fotogramas de “Como agarrar um milionário”. Ainda na sequência de abertura, o enredo é situado em uma Nova York afluente. do qual “Loco” recebe galanteios foge e se casa com um dançarino de sobrenome „Martinez‟ e, portanto, de origem latina, o pai se enfurece, deserdando-a e alcunhando o rapaz, para ele, um gigolô. Neste sentido, a Nova York de “Como agarrar um milionário” diverge enormemente da cidade homônima que abriga, em sua periferia, a North Manual Trade High School, de “Sementes da violência”, filme produzido apenas dois anos depois. Essa flagrante distinção nas representações cinematográficas pode ser interpretada como indício da velocidade das transformações sociais e culturais pelas quais passava a sociedade americana no período em questão. Se em 1953 produzse a representação afluente de Nova York como o cenário perfeito para o desenrolar das inúmeras situações cômicas que compõem o cotidiano das personagens, em 1955, a apresentação de questões de profundidade social e cultural situadas na periferia deste mesmo centro urbano encontram apoio no contexto do momento, nos debates concernentes à delinquência juvenil, bem como à segregação racial nas escolas americanas. 121 Condizendo com a cidade que será representada no enredo, caracterizada pela alta classe e pela abundância, a produção dirigida por Negulesco inicia-se com um prólogo no qual uma grande orquestra executa, por cerca de seis minutos, a composição “Street scene”, de Alfred Newman, com orquestração similar da famosa peça de George Gershwin, “Rhapsody in Blue”, na qual nota-se a proximidade com o universo jazzístico que, por sua vez, assinalava a atmosfera noturna da cidade de Nova York, no período. A apresentação dos créditos que se segue é realizada tendo como fundo imagético distintos cortes de seda, de variadas cores, adornados com jóias de prata e pedras brancas tendo, por fim, a sequência acima citada, na qual pontos turísticos da cidade são veiculados, acompanhados de uma canção que celebra Nova York. Desta maneira, sublinha-se o tom afluente do ambiente no qual o enredo se estabelece: o lugar onde a riqueza se congrega. Opostamente, não há virtualmente nada além de Nova York, sendo as outras cidades citadas na película acompanhadas de algum comentário ou indicação negativa. O único lugar que se faz visível além da cidade ícone da costa leste são as montanhas do interior do estado do Maine, no qual a neve, que se acumula aos metros de altura, simboliza o isolamento, o vazio e o tédio sentido por “Loco” quando lá chega. “Como agarrar um milionário” desenrola-se ancorado, especialmente, nas ações das três heroínas. Refinada, porém, sem boas condições financeiras, Sra. Page traça o plano que será executado por ela e por suas duas companheiras. Estas jovens encarnam um estereótipo bastante moderno de mulher, se considerados os padrões da sociedade americana da década. Bonitas, vivem sozinhas na cidade mais cultural do país, trabalhando como modelos. Excetuandose Page, que é divorciada, Pola e “Loco” nunca foram casadas. De qualquer forma, seu interesse no matrimônio é estritamente oportunista, sendo a instituição desconsiderada pelo restrito grupo. Por sinal, a película não conta com qualquer representação da felicidade conjugal, não havendo casais no enredo e sendo infelizes os citados. Desta maneira, o homem de negócios que se interessa por “Loco” é casado e, apesar de alegar amar a esposa, reclama insistentemente de seu dia-a-dia familiar, não se furtando a iniciar um caso extraconjugal com aquela jovem. Buscando assegurar o sucesso da empreitada, estas jovens mulheres vivem “de aparência”, com o fito de assim serem aceitas na alta classe onde trafegam os pretendentes que procuram. Desta maneira, Page aluga um luxuoso e bem localizado apartamento o qual servirá de comprovação do alegado refinamento e 122 Fotograma de “Como agarrar um milionário”. Sr. Page aluga um luxuoso apartamento para a consecução de seu plano. elevada posição social das três. Da mesma forma, quando sem dinheiro para o taxi, dirigem-se a uma concessionária de automóveis e requerem que lhe apresentem um dos novos modelos, utilizando-o para se deslocarem na cidade gratuitamente (e com estilo, já que exigem os modelos mais luxuosos). São, portanto, os bens de consumo responsáveis por caracterizar a abundância da qual pretendem ter o privilégio de desfrutar. A conversa firmada entre elas logo após se estabelecerem no apartamento é bastante expressiva do objetivo que as anima. No diálogo: Page: “- Lembre-se de que o homem que conhece na sessão de frios não é tão atraente como o da loja de casacos de pele. (...) - A maioria usa mais a cabeça para escolher um cavalo que um marido. Deve usar a cabeça, não o coração.” “Loco”: “- Por toda a minha vida, desde que era uma garotinha, tenho tido este mesmo sonho, me casar com um multimilionário.” Pola: “- Sabe com quem queria me casar? Rockefeller.” “Loco”: “- Qual deles?” Pola: “- Tanto faz.” “Loco”: “- Toparia me casar com um Vanderbilt.” Pola: “- Ou o Sr. Cadillac.” Page: “- Não existe. Já verifiquei.” Pola: “- Existe o Sr. Texaco?” Page: “- Não.” (...) “Loco”: “- Isso é que é vida.” 151 Pola: “- Quem vive de outro jeito é louco.” Assim, coadunando com a perspectiva de vida que move a busca destas jovens mulheres pelo matrimônio -para elas um promissor investimento, se cuidadosamente calculado-, suas noites são povoadas por sonhos caracterizados 151 A referida conversa se inicia aos 13 min. 36 segs. e termina aos 16 min. 41 segs. 123 pela riqueza e pelo consumo. Page, sofisticada e melhor conhecedora das fontes de grande lucro da nação no período, entrevê grandes rebanhos de gado, inúmeros poços petrolíferos e a possibilidade de comprar todos os modelos expostos na joalheria de sua predileção; Pola, mais imaginativa e fantasiosa, sonha com um avião dourado que ruma a um país não claramente determinado do Oriente Médio onde, em uma suntuosa tenda, um marajá a recebe e lhe presenteia com um baú de ouro repleto de jóias; “Loco”, por fim, preocupa-se com necessidades mais imediatas e consome um apetitoso sanduíche de carne assada com cebolas, acompanhado de cerveja, em seu sonho. Anteriormente afirmou-se que Page, Pola e “Loco” oscilam entre os modelos tradicional e moderno de mulher, vindo a mudar, ao longo da narrativa, seus posicionamentos referentes ao valor do matrimônio. Inicialmente, no enredo de “Como agarrar um milionário”, as personagens buscam realizar matrimônios que venham a assegurar-lhes o elevado padrão de vida esperado. Com este objetivo conhecem homens ricos, porém que não lhes satisfazem em quaisquer outros parâmetros além de suas respectivas posses. Neste sentido, Pola se envolve com um suspeito homem que exibe constantemente cifras de uma riqueza que posteriormente se suspeitará não possuir; “Loco” aceita viajar com um empresário casado que se mostra sexista e irritante; enquanto que Page, a mais bem sucedida na busca por um pretendente afluente, conhece J. D. Hanley, um viúvo rico e criador de gado, sofisticado e discreto que, entretanto, hesita em firmar um relacionamento sério com a protagonista pelo simples fato de ser consideravelmente mais velho que esta. Paralelamente, as jovens conhecem homens simples pelos quais começam a desenvolver sincero interesse, não por uma possível riqueza pessoal, mas pelas qualidades das personalidades dos mesmos. Se Pola acidentalmente conhece o dono do apartamento por elas alugado e que, apesar de relativamente rico é procurado pelo fisco; “Loco” acaba por se apaixonar por um guarda-florestal do Maine, que a distrai enquanto seu afluente acompanhante se recupera de uma gripe; com Page apaixonando-se por Tom Brookman, homem de grande riqueza, mas que ela acredita ser pobre devido à falta de refinamento. No fim da trama, depois das inúmeras confusões de “Loco” e Pola, e das dúvidas de Page, as jovens optam por atender suas necessidades afetivas diante dos sentimentos surgidos por estes homens, em detrimento do plano tão diligentemente acordado. 124 Fotograma de “Como agarrar um milionário”. Inicialmente movidas pela busca em direção ao consumo, Page, Pola e “Loco” terminam comendo em uma lanchonete, engajadas em relacionamentos afetivos. Desta maneira, o enredo da película de Negulesco direciona as três mulheres da narrativa no sentido de relacionamentos marcados pelo engajamento afetivo de cada um dos participantes, assumindo um desfecho notadamente conservador no qual, apesar das atribulações, realizam-se casamentos por amor. Assim, em “Como agarrar um milionário” não há espaço para o casamento por interesse na busca da felicidade; não há, igualmente, espaço para a vida de solteiro, uma vez que as personagens iniciam a narrativa desiludidas com a instituição do matrimônio, porém encontram nesta o caminho para a satisfação pessoal. O desenvolvimento da história do estado de solteiras das personagens para o status de casadas, bem como da busca da felicidade no consumo para a obtenção desta mesma felicidade no matrimônio alicerçado no relacionamento amoroso, dialoga com a conjuntura social do pós-guerra. Segundo Diggins152, após o fim do conflito mundial, com o retorno dos combatentes, a taxa de casamentos mais do que duplicou, fato que colaborou para o baby boom ocorrido, assim como para o assombroso desenvolvimento dos bairros suburbanos planejados, locais de moradia acessível para os veteranos através dos programas de financiamento de moradia voltados especialmente para esta parcela da população. Seriam os jovens casais suburbanos os responsáveis pela elevação do consumo do mercado civil que, por sua vez, ajudaria no fortalecimento da economia americana e resultaria na 152 DIGGINS, John Patrick. The Proud Decades: America in War and in Peace. New York: W. W. Norton & Company, 1989. 125 consolidação da sociedade de consumo. Por conseguinte, apesar de não haver, na produção cinematográfica de Negulesco, nenhuma alusão à vida suburbana, é o modo de vida marital, voltado à constituição da família que se estabelece como o núcleo social do modo de vida americano, a prevalecer. 3.2 “E DEUS CRIOU A MULHER”: A LIBERALIZAÇÃO FEMININA NA FRANÇA “E Deus criou a mulher” (Et Dieu créa... la femme) é uma produção francesa dirigida por Roger Vadim no ano de 1956. A trama se desenvolve ao redor de Juliette Hardy, jovem órfã que, recebida na casa de um casal de senhores nos arredores de Saint-Tropez, ganha notoriedade na pequena cidade por sua beleza e comportamento pouco usual. Juliette, interpretada pela atriz Brigitte Bardot, desconsidera as tradicionais amarras sociais e desfruta de sua vida com naturalidade, obedecendo a seus desejos pessoais. Sensual, busca vivenciar sua liberdade desconsiderando as opiniões negativas que são nutridas ao seu respeito pelos habitantes locais. Desta forma, é apaixonada por Antoine Tardieu, enquanto incentiva os interesses de Eric Carradine, rico empresário do lugarejo. Seu comportamento, entretanto, leva a senhora que lhe oferece abrigo a entrar em contato com o orfanato no qual a jovem cresceu pedindo a sua reinternação, por motivos morais. Diante deste fato, Carradine intenta encontrar um casamento arranjado para Juliette como maneira de impedir que esta, ainda menor de idade, seja reenviada ao orfanato. É Michel Tardieu, irmão mais jovem de Antoine, quem se disponibiliza a assumir o papel de seu marido, para a surpresa dos moradores de Saint-Tropez. Com a compra do pequeno estaleiro familiar dos Tardieu por Sr. Carradine, Antoine, que trabalhava em Toulon, volta a se estabelecer na cidade de forma a colocar em perigo a harmonia do casamento de seu irmão. Apesar de não querer magoar Michel, a natureza sexualizada de Juliette a impele em direção a Antoine. Desta maneira, ela acabará por trair seu marido envolvendo-se com seu cunhado. Transtornado, Michel deve lidar com a humilhação e com a reprovação de sua família, enquanto tenta encontrar uma forma de manter o relacionamento com Juliette, jovem mulher que, apesar de tudo, ainda ama. 126 Cartaz de “E Deus criou a mulher”. [sem título]. <Disponível em: http://www.newwavefilm.com>. Acesso em: 09 dez. 2013. A película em questão foi a primeira produção a ser dirigida por Vadim. Nascido em Paris, no ano de 1928, Roger Vadim era descendente de uma família de aristocratas russo-ucranianos que haviam migrado para a França juntamente com os Russos Brancos, no contexto da Revolução de 1917, naquele país. Uma vez na França, seu pai torna-se diplomata, o que faz com que Vadim passe sua infância na Turquia e no Egito. Sendo sua mãe uma atriz francesa, Roger Vadim tem o privilégio de ser criado em um ambiente intelectualmente estimulante, sublinhado pela atmosfera altamente cultural do círculo social de seus pais. Após o divórcio destes, Vadim retorna a Paris pretendendo seguir a carreira de ator e escritor, e termina por se tornar aprendiz do diretor Marc Allégret, trabalhando com este como diretorassistente e escritor. Além disso, é jornalista da revista Paris Match. Assim, seu conhecimento da técnica cinematográfica no período em que dirigiu “E Deus criou a mulher” origina-se dos anos passados ao lado de Allégret. Seu relacionamento com Brigitte Bardot, com quem foi casado, tem igual importância para a consecução do projeto. Tendo conhecido Bardot na idade de, ainda, 14 anos, Vadim ocupa a posição de iniciador da jovem, que era modelo fotográfico, na carreira 127 cinematográfica, tendo o relacionamento contado com forte oposição dos pais da adolescente. O primeiro filme de Vadim torna-se a produção que alçou Brigitte Bardot, então com 22 anos de idade, à posição de estrela internacional. Entretanto, com o subsequente divórcio do casal, Vadim não se beneficiaria do sucesso alcançado pela ex-esposa, ao menos não tanto quanto esta.153 “E Deus criou a mulher” apontou algumas das principais linhas mestras que viriam a caracterizar o posterior movimento da Nouvelle Vague, que eclodiria alguns anos mais tarde. Entretanto, no momento de seu lançamento, a história altamente sensualizada de uma jovem que desconsidera os códigos morais em vigor destoa do tom da produção cinematográfica então em execução, da mesma forma que provoca o debate na sociedade quanto à representação da juventude operada e sua real confluência com os jovens franceses do período. Além disso, estabelece novos parâmetros de produção, bastante diversos das grandes realizações francesas da década. Segundo Antoine de Baecque: Trata-se quase de um filme amador, a primeira realização de um jovem homem de vinte e oito anos, Roger Vadim, financiado por um produtor audacioso e aventureiro, Raoul Lévy. No momento em que a França cinematográfica pratica ainda o elogio ao trabalho bem-feito, onde se premia a “qualidade”, com seus cenários conhecidos, seus atores confirmados, seus cineastas experientes, suas obrigações de estúdio, esse filme rodado em poucas semanas, fora de estúdio, com atores jovens e 154 pouco conhecidos, apresenta-se como um fenômeno marginal. Desta forma, a película de Vadim dialoga com as críticas publicadas nos Cahiers du Cinéma desde o início da década, quanto à necessidade de se reavivar a produção de cinema francesa através de novas temáticas, novos atores e técnicas, impondo um contraponto à consolidada indústria cinematográfica da nação, apontada como realizadora de produções aceticamente artificiais, distantes das demandas culturais da sociedade francesa do período. Cabe salientar, entretanto, que Roger Vadim não fazia parte do time de críticos da citada revista e, da mesma forma, que “E Deus criou a mulher” não representa uma revolução no âmbito técnico do fazer cinematográfico, sem propor qualquer verdadeira ruptura com os códigos tradicionais do cinema clássico como, por exemplo, seria feito três anos depois por “Acossado”. Não obstante, o título de Vadim propõe o tema da liberdade feminina de maneira singularmente provocadora, principalmente por se tratar de uma questão 153 Cf. OSCHERWITZ, Dayna; HIGGINS MaryEllen. Historical Dictionary of French Cinema. Lanham, Maryland; Toronto; Plymouth, UK: The Scarecrow Press, 2007. 154 BAECQUE, Antoine de. La Nouvelle Vague: portrait d’une jeunesse. Paris: Flammarion, 2009. p. 19. 128 controversa naquela sociedade. Neste sentido, traça-se um paralelo com algumas das posteriores obras do movimento do jovem cinema daquele país, que igualmente exploraram esta mesma temática. Quanto à questão da relação de “E Deus criou a mulher” com algumas das produções que mereceriam o rótulo de Nouvelle Vague, importa especificar que o conjunto de obras reconhecidas como pertencentes a este movimento não são, de maneira alguma, homogêneas, nem quanto aos temas abordados, tampouco quanto às técnicas utilizadas, no campo da montagem, da iluminação, da fotografia ou das locações. Assim sendo, examinando-se a tipologia criada por François Truffaut que, além de um dos principais diretores jovens do período foi, igualmente, um dos mais notórios teorizadores das transformações da indústria cinematográfica francesa nos anos 1950, a película de Vadim aproxima-se da “tendência Sagan”, na qual se percebe o compromisso em se tratar com honestidade assuntos voltados aos relacionamentos amorosos e às questões sexuais, usualmente sendo as personagens brilhantes e cínicas. São, segundo Truffaut, exemplos desta tendência, Les Cousins, L’Eau à la bouche, La Récréation, Les mauvais coups, La proie pour l’ombre, Les grandes personnes, La more-saison des amours, La fille aux yeux d’or, Ce soir ou jamais, dentre outros. De qualquer forma, Truffaut reconhecia que esta “taxionomia estilística” era “excessivamente arbitrária” e que “havia os bons filmes e os outros em cada tendência”.155 Em entrevista oferecida à Louis Marcorelles, na qual trata dos filmes partícipes desta tendência lançados a partir de fins dos anos 1950, afirma Truffaut: Infelizmente, o aspecto linear desses filmes atravessou um gênero literário que irrita muito a crítica e um público excluso atualmente, um gênero que podemos apelidar de saganismo: carro esporte, garrafa de scotch, amores rápidos, etc. A leveza proposital desses filmes passa – às vezes erroneamente, às vezes com razão – por frivolidade. Lá onde a confusão se instala, portanto, é que as qualidades desse novo cinema – a 155 BAECQUE, Antoine de. La Nouvelle Vague: portrait d’une jeunesse. Paris: Flammarion, 2009. p. 87. As outras duas tendências determinadas por Truffaut são: a “tendência Queneau”, na qual os diretores buscavam a veracidade do vocabulário, dos gestos, das atitudes, colocando olhares inesperados e cômicos entre as personagens, alternando comédia e tragédia, misturando os gêneros, por exemplo, Zazie dans Le métro, Un couple, Les bonnes femmes, Tirez sur Le pianiste, Lola, Une femme est une femme, Adieu philippine; e a “tendência do cinema das Éditions de Minuit”, sendo estes filmes mais militantes, inspirados no Novo Romance, bem como nos documentos e testemunhos políticos, sendo exemplares La pointe courte, Hiroshima mon amour, Cléo de 5 à 7, Lettre de Sibérie, Moderato Cantabile, Une si longue absence, L’année derniére à Marienbad. 129 graça, a leveza, o pudor, a elegância, a rapidez – caminham no mesmo 156 sentido que seus defeitos – a frivolidade, a inconsciência, a ingenuidade. Dialogando com a avaliação que faz dos filmes partícipes da “tendência Sagan”, em crítica específica à “E Deus criou a mulher”, nos Cahiers, Truffaut censura a escolha do tema, de pouca profundidade, bem como a seleção dos atores, excetuando-se o veterano Curd Jurgens. Quanto à Bardot, estrela da produção, julga negativamente.157 No que concerne à representação de feminilidade operada no filme em análise, o próprio Roger Vadim se definia como “um etnólogo da jovem mulher de 1956”. Em suas palavras: A jovem mulher de hoje, eu a conheço muito bem. Eu a tinha entrevisto e, então, a exprimido. Eu a fiz viver e falar no papel. Como um etnólogo, eu pesquisei o espécime tipo. Ele existia, em efeito. Eu o encontrei em um dia de verão na capa de uma revista. Era a jovem mulher de hoje. Ela tinha quinze anos e meio, um rosto no qual a sensualidade se casava com a doçura. Ela se chamava Brigitte Bardot. Ela fazia dança e ia à escola. Ela havia recebido a melhor educação do mundo, mas 158 blasfemava. No comentário de Vadim fica evidenciado o esforço planejado para instituir Brigitte Bardot como o símbolo midiático da feminilidade francesa da década de 1950. Modelo fotográfico, a jovem figurava com frequência em campanhas publicitárias dos hebdomadários franceses já antes de sua eclosão como estrela cinematográfica, tendo sido boa parte de sua exposição pública arquitetada por Vadim. Assim, quando este escreve a personagem Juliette, o faz sob medida para ser encarnada diante das câmeras por sua jovem esposa. Desta forma, o sucesso de bilheteria atingido por “E Deus criou a mulher” não se deveu a qualquer inovação na ordem do enredo, tampouco do fazer cinematográfico, uma vez que a película manteve-se notoriamente obediente aos principais padrões cinematográficos observados pelos realizadores do período, mas a descoberta de uma nova feminilidade, apresentada em Juliette, porém materializada na pessoa de Bardot. Esta representação de mulher não apenas se coloca de encontro ao cinema então produzido naquela nação, mas sinaliza profundas transformações culturais em curso na sociedade francesa, além de 156 France Observateur, 19 de outubro de 1961. Cf. MARIE, Michel. A Nouvelle Vague e Godard. Trad. Eloisa A. Ribeiro, Juliana Araújo. Campinas, São Paulo: Papirus, 2011. p. 87. 157 BARDOT, Brigitte. Iniciais B B : memórias. Trad. Carlos Wagner dos Santos; M. Celeste Marcondes; Renata Cordeiro. São Paulo: Scipione, 1997. 158 BAECQUE, Antoine de. La Nouvelle Vague: portrait d’une jeunesse. Paris: Flammarion, 2009. pp. 19-20. 130 conseguir a empatia dos jovens espectadores, que identificam na personagem traços basilares da juventude da qual fazem parte. Em dezembro de 1956 – o filme já é um verdadeiro sucesso -, Brigitte Bardot é uma jovem mulher de vinte e dois anos fazendo erupção em um mundo de velhos. É essa erupção que choca, porque ela é brusca, radical. A sociedade francesa não esperava por isso, e seu cinema estava longe de ser favorável à juventude. Tratava-se mesmo de um cinema antijovem (...). Foi preciso, então, que se detonasse a bomba Bardot, em dezembro de 1956, para que enfim, nas telas, evoluísse um corpo realmente contemporâneo dos jovens espectadores que o observavam. É isso que fascina e provoca o sucesso, o compreenderam os adultos, 159 indignados, mas atraídos por esse fenômeno. “E Deus criou a mulher” teve como locação a pequena cidade de SaintTropez, à época uma tradicional vila de pescadores, com seu porto. O desenvolvimento da narrativa em uma localidade litorânea tem grande importância para a ambientação do tipo de feminilidade explorado pela obra. Junto ao mar, em um lugar quente e ensolarado, Juliette pode, com maior propriedade, exibir toda a sua sensualidade, envolta em uma atmosfera convidativa, com bares e festas noturnas, por um lado, e com singular aproximação com a natureza, por outro. Assim, a personagem ocupa seu cotidiano com festas e passeios pela cidade e arredores, dando pouca relevância ao trabalho que executa como atendente da livraria local. Livre, veste-se o mais despojadamente possível, por vezes possibilitando que se entreveja além daquilo que deveria ser exibido de seu corpo. Essa hiperexposição, entretanto, não se fundamenta necessariamente em objetivos sexuais, mas naquilo que é identificado pela própria personagem como a sua natureza, um comportamento pessoal sobre o qual ela não possui controle, não podendo evitá-lo. Logo na abertura da obra, esclarece-se a sensualidade e a desconsideração com relação aos padrões morais usuais que se tornam as características principais da personalidade de Juliette. Em seguida à apresentação dos créditos iniciais, que são exibidos sobre um simples fundo verde-escuro, sem nenhuma imagem que se relacione diretamente ao filme, com o acompanhamento musical de uma lenta e melodiosa composição em estilo caribenho, com proeminência do trompete, surge a primeira cena da produção e, significativamente, da protagonista do enredo. Nesta, fotografa-se o nu lateral de Brigitte Bardot, enquanto sua personagem toma banho de sol diante das roupas que secam no varal, conversando de forma desenvolta com 159 BAECQUE, Antoine de. La Nouvelle Vague: portrait d’une jeunesse. Paris: Flammarion, 2009, p. 20. 131 Fotograma de “E Deus criou a mulher”. Logo na primeira cena apresenta-se a sensualidade incomum da protagonista. Sr. Carradine, empresário que a admira. O tema musical que havia, momentos antes, acompanhado a apresentação dos créditos assume, assim, motivação na construção da atmosfera sexual da cena. Expressivamente, é este o único nu da atriz em toda a película. Entretanto, sendo projetado logo em sua primeira cena, e apesar de relativamente pouco revelador, induz o espectador a formular um determinado posicionamento quanto à postura da personagem de forma a observála sempre a partir desta primeira impressão. Juliette não se furta a dizer à Carradine, nesta aparição inicial: “- Sou uma mina de ouro.” Evidencia-se, assim, para o espectador, que sua sensualidade é consciente, estando ela disposta a jogar com a admiração masculina que suscita. O motivo, ou desculpa, que havia levado Sr. Carradine a fazer a visita devese à promessa feita por este de presenteá-la com um automóvel. Portando um carro esporte de brinquedo, Carradine incita o sonho de consumo da jovem. No entanto, apesar do que possa aparentar a princípio, Juliette não é movida em direção ao bem material pelo simples impulso ao consumo. Prova disso dá-se em outra cena na qual, no veleiro de Carradine, quando um rico empresário lhe apresenta suas poses, Juliette o rejeita, desprezando os ganhos monetários que uma eventual aproximação com aquele senhor poderia significar. O consumo, para a jovem órfã, é válido apenas como caminho para a liberdade, que ela valoriza acima de tudo. Desta maneira, a obtenção de um automóvel para uso próprio possibilitaria a concretização 132 de sua liberdade. Assim, quando questionada por Carradine se é feliz, afirma ter tudo o que ama “o mar, o sol, a areia quente, a música e comida”. Sua busca pessoal pela felicidade não incide, portanto, no consumo de bens, mas na obtenção de um estado de espírito específico, que ela pode alcançar enquanto puder desfrutar livremente de Saint-Tropez. Para Juliette, os bens de consumo são, de tal modo, acessórios, não se configurando em seu objetivo de vida. Dialogando com a conjuntura de recuperação econômica francesa no período de produção da película, a personagem de Carradine busca diversificar e expandir seus negócios através da construção de um cassino para o qual precisa adquirir as terras do pequeno estaleiro da família Tardieu. Como Antoine recusa-se a vendê-las, Carradine propõe-lhe participação em seu estaleiro, maior e mais rentável. Pra os Tardieu o negócio significa a melhoria do padrão de vida, o que leva Michel a dizer à Juliette “- Estamos ricos! Posso lhe comprar o que você quiser”. No entanto, como esclarecido anteriormente, não é o consumo que a move, porém sua liberdade. Quanto a este ponto salienta-se, em distintas passagens da trama, que Juliette é dona de seu próprio destino como, por exemplo, quando afirma a Antoine que fará o que quiser, diante de seu convite para acompanhá-lo à Toulon, ou quando nos informa Carradine que ela é “muito corajosa para fazer o que quer, quando quer.” Juliette vive visceralmente, não se submetendo às amarras sociais ou culturais, sem dar ouvidos aos comentários feitos sobre ela no lugar onde vive. Desta forma, é caracterizada como um ser selvagem, arredio, que não pode ser controlado por ninguém, precisando ser domado. Essa representação da liberalidade sexual feminina enquanto um impulso de animalização torna-se evidente, no caso de Juliette, através de dois elementos da constituição da personagem: primeiramente, a jovem coloca-se descalça sempre que possível, mantendo uma ligação física direta com a terra, com a natureza; em segundo lugar, é próxima dos animais, possuindo inúmeros bichos de estimação, que vivem em seu quarto, sobre sua cama, com os quais conversa como se fossem seus verdadeiros confidentes. De tal modo, na França dos anos de 1950, à mulher que vive à margem do código moral-sexual prevalecente cabe uma posição tão próxima às forças naturais que a dissociam da pretensa real civilização culturalmente representada por aquela nação, lugar privilegiado das mulheres integradas aos códigos de conduta tradicionais. 133 Fotograma de “E Deus criou a mulher”. Os elementos característicos básicos de Juliette: próxima à natureza, despojada, comportamento sensualizado. Aprofundando um pouco mais esta linha de reflexão, Juliette pode ser identificada, através de seu comportamento e de seus gostos, com a França colonial e negra. Apesar da pele branca que exibe, mesmo vivendo em uma cidade litorânea e ensolarada, sol do qual usufrui com frequência, dos olhos claros e dos cabelos aloirados, o comportamento sexual da jovem, bastante libidinoso, dialoga com os estereótipos usualmente erigidos na caracterização dos povos não-brancos das colônias francesas. Além disso, Juliette nutre uma predileção particular pela música caribenha, que se regojiza em dançar nas festas noturnas, música esta de raízes culturais reconhecidamente negras. Estas relações semânticas existentes na constituição do íntimo da personagem se dão no momento em que a França se engaja em sanguinárias e vergonhosas guerras coloniais, sendo a principal e psicologicamente mais devastadora, a Guerra da Argélia. Desta maneira, a ruptura que Juliette evidencia na sociedade francesa vai além da liberalização feminina e da formação de uma juventude pautada em novos padrões comportamentais, dialogando com transformações culturais e mesmo políticas de maior vulto, ainda que o enredo não explore com singular comprometimento estas questões. Quanto à forma libertária com que vive sua vida amorosa e sexual, principal temática de apoio da narrativa, merece a reprovação de todos os habitantes da cidade. Enquanto a senhora responsável por sua guarda a considera, segundo suas próprias palavras, uma “biscateira”, os homens a reconhecem como uma “mulher 134 Fotograma de “E Deus criou a mulher”. A cena do casamento entre Juliette e Michel na qual a igreja encontra-se tomada pela escuridão. fácil”, ao alcance de todos. Também seus amigos a desvalorizam, desacreditando da possibilidade que ela venha a seriamente firmar compromisso quando resolve se casar com Michel. Neste sentido, mesmo Juliette não acredita em sua capacidade de se adequar aos parâmetros sociais eleitos como aceitáveis. Quando Michel propõe-lhe casamento, por amá-la, e como forma de impedir que ela volte ao orfanato, a jovem diz que não será um boa esposa porque gosta muito de se divertir e afirma: “- Não sei. É sempre como se fosse morrer amanhã. Algo dentro de mim me empurra a fazer coisas idiotas.” Tendo Michel questionado do que ela tinha medo, responde diretamente: “- De mim”. A sequência do casamento entre Juliette e Michel torna-se a mais representativa da ruptura existente entre o padrão comportamental da protagonista e os costumes ativos na sociedade francesa do período, com a desconsideração da tradição subvertendo o desenvolvimento usual do casamento católico, enquanto permite ao espectador suspeitar da possibilidade de sucesso da união. A cena do casamento inicia-se com Michel e Juliette conversando, esta já trajando seu vestido de noiva, fato que, pelos costumes, pode trazer má sorte ao casal. Em seguida, os dois entram de braços dados na igreja, ao invés do noivo esperar pela jovem no 135 Fotograma de “E Deus criou a mulher”. Casamento consumado durante o almoço de bodas. altar. Ao abrirem-se as portas do templo, o recinto está tomado por uma completa escuridão, que só é vencida com dificuldade pela luz exterior, conforme Michel e Juliette caminham em direção ao padre, o que faz com que a atmosfera da cerimônia não seja apaziguadora como esperado. Por fim, quando o clérigo faz a aguardada pergunta à noiva, esta se demora a responder, olhando diretamente para Antoine, irmão do noivo e a quem ama, que se encontra de pé ao seu lado, no altar. Passada a cerimônia, a família e alguns poucos parentes do noivo, uma vez que a noiva não conta com convidado algum, se dirigem à casa para um almoço de bodas, em comemoração ao matrimônio selado. Surpreendentemente, é durante a reunião que o casal consuma sua união, em seu quarto. A família, constrangida, nada pode dizer quando, protegendo sua nudez com um leve roupão, Juliette desce as escadas e prepara um prato para ela e seu novo marido, levando o que quer da mesa, deixando os convidados sem boa parte da refeição. A divergência comportamental da jovem com relação aos padrões vigentes torna-se mais uma vez patente através da falta de habilidade das três principais personagens masculinas em lidar com ela. Eric Carradine é já um homem maduro que se vê constrangido pelos sentimentos de desejo e adoração que nutre pela jovem. Por ser experiente, sabe que uma mulher da espécie de Juliette pode lhe causar a ruína, entretanto, não consegue evitar a necessidade de tê-la por perto, procurando um meio de impedir que ela volte ao orfanato. Antoine é o filho mais 136 velho da família Tardieu e o homem por quem Juliette está apaixonada. Se, inicialmente, objetiva ter a companhia da jovem por apenas uma noite, não irá conseguir evitar desejá-la após ela ter se tornado sua cunhada. Michel, por sua vez, ama sinceramente Juliette, sentimento que é reprovado por todos e que torna clara sua fraqueza emocional diante dela. Propõe-lhe casamento, contrariando os conselhos da família e do próprio padre, que tenta demovê-lo. Frágil, é submisso ao irmão mais velho, a quem cabe todas as decisões referentes ao negócio da família, não conseguindo se colocar realmente contra ele nem mesmo quando descobre da traição deste com Juliette. No enredo de “E Deus criou a mulher” não há, portanto, homem capaz de controlar o comportamento licencioso da protagonista que, na verdade, constitui-se como a fonte de seu charme, bem como seu meio de persuasão mais eficiente. Na cena final, após trair seu marido quem, apesar de tudo, ama, Juliette sai desnorteada pela pequena cidade, entrando em um bar tido como inadequado para uma mulher casada. Lá, entrega-se ao frenesi da música caribenha produzida pelos instrumentos do grupo que ensaia no subsolo, a qual dança compulsivamente. Quando Michel chega ao lugar para buscá-la, Juliette o ignora, transformando os rápidos movimentos que faz ao ritmo da dança numa obsessão. Os cortes são acelerados de forma a demonstrar o estado emocional de Michel que, armado e confuso, dispara, atingindo Carradine sem gravidade, que o desarma. Diante do som do disparo, o grupo interrompe o número musical, colocando fim ao surto de Juliette, que leva bofetadas de seu marido. Através da agressão física, Michel tem a impressão de retomar o controle sobre sua mulher que, aparentando satisfação com sua atitude agressiva, sorri discretamente. Submissa, Juliette volta à casa da família Tardieu em companhia de Michel restaurando, desta forma, o casamento. No entanto, sua licenciosidade foi apenas momentaneamente abrandada, uma vez que, devido a sua própria natureza, a jovem não se adequará aos padrões morais esperados de uma mulher de seu estado civil. Juliette Hardy abala, portanto, os alicerces culturais da França do pós-guerra uma vez que sua conduta afasta-se perigosamente dos preceitos concernentes à família, ao amor, à sexualidade, à fidelidade, à reputação. Se considerarmos a observação feita por Vadim, de que Brigitte Bardot representava o modelo da jovem mulher de então, institui-se, com Juliette, uma incontornável ruptura dos costumes na sociedade francesa da segunda metade da década de 1950. Caberia a esta 137 Fotograma de “E Deus criou a mulher”. Transtornado pela traição e subsequente exibição da esposa, Michel atira, sendo desarmado por Sr. Carradine. nação, em rápido processo de modernização, porém de raízes culturais ainda notadamente rurais, lidar com o aparecimento de uma geração que, através de suas demandas e questionamentos, subvertia suas bases identitárias. Seria preciso, principalmente, se adequar a afirmação da nova feminilidade a qual, se passível de ser combatida pelos setores mais conservadores, não poderia, entretanto, ser ignorada. 3.3 CONSUMO E LIBERDADE: A FEMINILIDADE DOS ANOS 1950 No presente capítulo privilegiaram-se as produções cinematográficas “Como agarrar um milionário” (How to get a milionnaire, dir.: Jean Negulesco – 1953) e “E Deus criou a mulher” (Et Dieu créa... la femme, dir.: Roger Vadim – 1956) como exemplos da representação feminina realizada nos cinemas hollywoodiano e francês na década de 1950. Nestas obras, as personagens principais são mulheres jovens que procuram vivenciar suas experiências cotidianas diante do código comportamental erigido nas respectivas sociedades, ora adequando-se aos padrões, ora distanciando-se fortemente dos mesmos. Apesar de tratar-se de obras de gêneros bastante distintos, a primeira sendo uma comédia romântica, enquanto que 138 a segunda constitui-se em um drama de raízes familiar/comportamental, ambos os títulos permitem a abordagem do papel exercido pela mulher na atmosfera cultural e social de Estados Unidos e França na década seguinte ao último conflito mundial. Se “Como agarrar um milionário” constituiu-se uma grande produção, envolvendo vultosas somas de dinheiro em suas diversas fases de preparação, sendo uma realização de Jean Negulesco, à época diretor já consolidado na indústria cinematográfica da Califórnia, “E Deus criou a mulher” pode ser considerada uma realização à margem do mercado profissional, arquitetada fora do negócio do cinema vigente na França, com seus reconhecidos diretores, produtores e financiadores, portanto, uma aventura paralela ao meio de produção fílmica daquele país, de Roger Vadim, um diretor iniciante. De qualquer forma, ambos os filmes contam com os mais recentes avanços das técnicas de exibição, tendo sido captados em películas sensíveis a cores e em formato de tela widescreen, o que colaborava para a diferenciação mercadológica destas obras, além de permitir o incremento da gama de possibilidades tecnológicas disponíveis ao diretor durante a execução do roteiro. Neste sentido, explica-se o motivo da cena de abertura orquestral de “Como agarrar um milionário”, forma de exibição da potencialidade do novo formato de tela, enquanto que, do mesmo modo usufrui-se, em “E Deus criou a mulher”, das diversas tomadas panorâmicas de Saint-Tropez, maneira de sublinhar a sensação de liberdade tão diligentemente guardada pela protagonista. Ainda neste título, Roger Vadim habilmente explora a largura extra do filme para, em determinadas cenas, enquadrar dois ambientes simultaneamente. Em cores e em tela larga, os enredos são esteticamente melhor explorados, no caso dos filmes em questão. Tanto na produção americana, quanto em sua congênere francesa, percebese a presença de duas jovens atrizes em ascensão, que se tornariam ícones da nova feminilidade dos anos 1950: Marilyn Monroe, em “Como agarrar um milionário”, e Brigitte Bardot, em “E Deus criou a mulher”. O grau de participação das duas atrizes nas obras citadas, entretanto, varia notavelmente, com a personagem de Monroe não veiculando questões culturais de maior profundidade, nem tendo posição de destaque na película, enquanto que no caso de Bardot, sua personagem ocupa o lugar de eixo central da trama, que se desenvolve ao seu redor, com proeminentes implicações socioculturais, dialogando com o clima de transformação de costumes da ainda tradicional sociedade francesa. De qualquer forma, ambos os 139 filmes tornaram-se obras representativas da década, obtendo o reconhecimento do público, quando não da crítica. Significativamente, “E Deus criou a mulher” não alcançou boa acolhida quando de seu lançamento em seu país de origem, chegando o contrato de exclusividade de exibição nas salas de cinema da Champs-Elysées a ser suspenso na metade do tempo previsto. Todavia, o filme de Vadim conseguiu grandes bilheterias do outro lado do Atlântico, nas salas de exibição americanas, fato responsável pelos lucros da empreitada, bem como pela projeção internacional de sua protagonista.160 Para a sociedade dos Estados Unidos, a sensualidade com que uma jovem mulher francesa se movia na tela grande não suscitava as tensões culturais que poderiam ser percebidas com certo desconforto pelo público francês, por implicar um ataque direto a alguns dos alicerces morais mais caros desta sociedade. Além disso, depois de travados acalorados debates judiciais, os filmes europeus foram considerados isentos da ação dos códigos de censura aos quais as produções americanas deveriam ser submetidas. Desta forma, a alta dose de erotismo existente em “E Deus criou a mulher” constituía-se como um material ausente nas películas realizadas nos Estados Unidos, o que colaborou para a notoriedade obtida pelo filme naquele país. No caso de “Como agarrar um milionário”, a aparente superficialidade tanto do tema, quanto da perspectiva de abordagem da posição social da mulher utilizada na obra, devem-se ao conservadorismo da indústria cinematográfica, restringida pelas ainda atuantes amarras institucionais representadas pelo código de autocensura, bem como pela demanda igualmente conservadora do público espectador que, se suficientemente aberto para assegurar considerável bilheteria a determinadas películas européias, não se mostrava interessado em produções que explorassem as camadas mais profundas da psicologia feminina. Segundo Leonard Quart e Albert Auster: Indicativo do conservadorismo básico do gosto e valores populares são os filmes que lidam com a consciência e a identidade da mulher. Durante a década [de 1950] não apenas houve menos filmes sobre a independência feminina que nos anos trinta ou quarenta, como houve poucos filmes lidando com a mulher, de qualquer forma. (...) Em um papel menor (em All about Eve), Marilyn Monroe, o sex symbol dos anos cinquenta, interpreta outra de suas loiras burras, uma 160 BARDOT, Brigitte. Iniciais B B : memórias. Trad. Carlos Wagner dos Santos; M. Celeste Marcondes; Renata Cordeiro. São Paulo: Scipione, 1997. 140 mulher-objeto, a qual a sexualidade é não-ameaçadora, não-desonesta, e infantil. No fim da década, em filmes como a frenética farsa sexual de Billy Wilder, Some like it hot (1959), ela adicionou vulnerabilidade à sua persona vitimizada. (...) Monroe era mais uma fantasia masculina que uma mulher 161 com a qual outras mulheres poderiam se identificar. Desta forma, a produção de Jean Negulesco aqui em relevo não veicula uma consciente problematização das americana da 1950, década de modificações observáveis estabelecendo-se a na película feminilidade como um entretenimento familiar, leve, desprovido de profundidade reflexiva, uma obra eminentemente comercial, voltada ao grande público. À personagem vivida por Marilyn Monroe, em especial, cabe tão somente a representação da ingenuidade de uma jovem mulher, sem qualquer implicação direta aos códigos culturais em vigor. Assim, apesar da inicial autonomia das personagens de Page, Pola e “Loco”, o desenlace da trama reaproxima-as dos padrões comportamentais existentes, sendo, portanto, conservador. As cidades nas quais se desenrolam os enredos das duas obras relacionamse intimamente com o tom assumido pelas narrativas. Em “Como agarrar um milionário”, Nova York figura como a cidade ideal para aqueles que anseiam o estilo de vida incessantemente buscado pelas protagonistas. Cosmopolita, a metrópole serve de espaço de sociabilização para a alta classe dos Estados Unidos, de forma que se multiplicam os ambientes de abundância e consumo, exatamente aqueles pretendidos pelas jovens modelos. Entretanto, exatamente por figurar como lugar de confluência da riqueza da nação, Nova York não possui identidade própria, sendo composta pelos distintos traços culturais daqueles que são atraídos por sua promessa de afluência. Nesta cidade, Page, Pola e “Loco” buscam a felicidade pessoal animadas pelas promessas de consumo, acreditando residir na obtenção de bens o sentimento de felicidade. Vivendo de aparência, em um apartamento luxuoso, porém alugado, trafegando em automóveis caros, porém emprestados, assim parecem ser os bens de consumo que as classificam dentro da hierarquia social, independentemente de suas origens individuais, suas ocupações profissionais ou heranças culturais. Desta forma, as jovens do filme de Negulesco não possuem passado e vivem um presente falso, como estratégia para atingirem o futuro que entrevêem através do sonho do consumo irrestrito. Deste destino insípido apenas o relacionamento amoroso poderá redimi-las. Envolvendo-se afetivamente 161 QUART, Leonard; AUSTER, Albert. “From American film and society since 1945”. In: ROSS, Steven J. Movies and American Society. Padstow: Blackwell Publishing, 2002. p.229. 141 com parceiros que nutrem por elas sentimentos sinceros, as três mulheres acabam por transferir o acesso à felicidade que identificavam no consumo à instituição do matrimônio a qual, inicialmente, execravam. Apesar do glamour do mundo da alta classe, será na vida marital que encontram o desejado sentimento. A Juliette de “E Deus criou a mulher”, por sua vez, exibe uma ligação umbilical com a pequena cidade de Saint-Tropez. Tradicional vila de pescadores, o lugarejo conta com poucos habitantes e é circundado por extensas áreas vazias, as quais possibilitam o contato íntimo da protagonista com a natureza, contato este que se configura como um dos traços marcantes de sua personalidade. Jovem e órfã, não possui laços familiares que a pudessem constranger, podendo neste ambiente vivenciar com naturalidade sua liberdade, sem observar os ditames dos padrões comportamentais que costumam balizar a vida em sociedade. Indômita, Juliette aproxima-se dos animais, seus verdadeiros amigos, enquanto mantém-se ligada fisicamente à terra, ao sol, à praia, ao mar. Quando ameaçada pela possibilidade de ser retirada desta atmosfera, da qual é parte integrante, aceita o matrimônio como única maneira viável de ali se manter, apesar de considerar que, devido a sua natureza, não é mulher para se dedicar ao casamento. Não obstante, Juliette só é completa em Saint-Tropez. Sua liberdade é determinada pela forma descomprometida através da qual procura vivenciar sua sexualidade. Sabendo-se jovem e bela, não vê problemas em usufruir da companhia masculina, tampouco em exibir livremente sua nudez, uma vez que entende não se adequar ao conjunto de comportamentos que, combinados, constituem a postura social esperada de uma jovem mulher. A origem de sua atitude reside no fato de que Juliette anseia pela liberdade da maneira mais ampla possível, a seu ver única forma de obter a felicidade, o que implica seu repúdio às mais cristalizadas amarras morais. Assim, os consolidados conceitos de fidelidade, comprometimento, virgindade, matrimônio, ascetismo, família nada podem significar a ela, pois implicariam a inaceitável perda de sua liberdade e, por conseguinte, da felicidade. Deste modo, considerando-se as produções cinematográficas analisadas, a caracterização da feminilidade da década de 1950 volta-se à busca da felicidade como elemento norteador das jovens mulheres. Se por um lado, em “Como agarrar um milionário”, é primeiramente o consumo e, posteriormente, o matrimônio, que pode assegurar este sentimento, cabe à liberdade, em “E Deus criou a mulher”, o 142 papel de meio propiciador da felicidade. As mulheres continuam, entretanto, nestas películas, alijadas do mundo masculino, sem que sejam verdadeiramente integradas político e profissionalmente à sociedade. Paralelamente, considerando-se a relação existente entre as sociedades americana e francesa e as representações femininas operadas, percebe-se a afirmação da mulher enquanto objeto da sociedade de consumo, questão singularmente exemplificada pela confusão estabelecida entre as pessoas de Marilyn Monroe, Brigitte Bardot, e as personagens que interpretaram. Diante do conservadorismo vigente em ambas as sociedades, a emancipação feminina que se iniciava na década acaba sendo midiaticamente absorvida e gestada de maneira a minimizar o impacto das transformações em curso. Nas palavras de Baudrillard: As mulheres, os jovens, o corpo – cuja emergência após milênios de servidão e de esquecimento constitui a virtualidade mais revolucionária e, por consequência, o risco mais fundamental seja para que ordem estabelecida for – vêem-se integrados e recuperados como “mito de 162 emancipação”. Portanto, apesar de o tema do consumo não merecer notável espaço no enredo da realização de Vadim, como esteve presente no filme de Negulesco, esta instância torna-se visível pela exposição das estrelas dos filmes enquanto objetos midiáticos de consumo. As representações de mulher constituídas nas películas pelas personagens de Monroe e de Bardot colaboram, assim, por inserir a nova feminilidade dos anos de 1950 no conjunto de bens consumíveis, por homens e mulheres, ao lado dos automóveis, eletrodomésticos e demais produtos mercadológicos do período. Para além das questões abordadas nos enredos, portanto, também se firma externamente o diálogo entre as obras e o contexto cultural das sociedades americana e francesa na década. 162 BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 182. 143 CONCLUSÃO A presente dissertação teve como objetivo abordar a representação cinematográfica da juventude, construída em produções selecionadas de Estados Unidos e França, realizadas durante a década de 1950. Em sentido amplo, intentouse examinar a atmosfera de transformações socioculturais que tomaram forma nestas duas realidades nacionais no período mencionado optando-se, assim, pela faixa etária juvenil por considerar ser este o grupo social que tem maiores capacidades de exemplificar a conjuntura de transformações analisada. Quanto à tipologia do corpus documental privilegiado, as produções cinematográficas, levouse em conta a potencialidade desta espécie de fonte em possibilitar o acesso do pesquisador às representações da sociedade na qual determinada obra fílmica é produzida, o mesmo sendo válido para o período no qual a respectiva obra é realizada. Não obstante, como se evidenciou ao longo do desenvolvimento da argumentação, o conjunto de películas estudadas ocuparam não simplesmente o lugar de documento para a pesquisa que se constituía porém, igualmente, o papel de objeto, sendo consideradas na relação existente com seus contextos de produção, nos âmbitos econômico e político, mas principalmente, enquanto produtos culturais, artísticos das sociedades em apreço. Além disso, fontes de origem jornalística, como artigos de periódicos, entrevistas, e mesmo testemunhos dos diretores dos filmes, nas quais são tratadas as variadas intenções e os diversos elementos envolvidos nas produções eleitas para exame, foram sublinhadas buscando o enriquecimento da análise proposta, trazendo para o texto perspectivas externas aos filmes que davam acesso à conjuntura na qual estas produções foram pensadas, realizadas e demonstravam as maneiras pelas quais tais obras foram recebidas pelo público, nos Estados Unidos e na França. Tendo-se em mente o necessário equilíbrio entre as fontes que compuseram o corpus documental fílmico, de forma a garantir o tratamento igualitário dos dois casos selecionados, determinou-se, durante a seleção das fontes, que as mesmas seriam divididas em igual número cabendo, para cada caso, três películas a serem apreciadas. Assim sendo, foram escolhidas as obras “Sementes da violência” (Blackboard jungle, dir.: Richard Brooks – 1955), “Juventude transviada” (Rebel without a cause, dir.: Nicholas Ray – 1955) e “Como agarrar um milionário” (How to 144 get a milionnaire, dir.: Jean Negulesco – 1953), para o cenário dos Estados Unidos, enquanto que, naquilo que concerne à França, optou-se por “Os incompreendidos” (Les quatre cents coups, dir.: François Truffaut – 1959), “Acossado” (À bout de souffle, dir.: Jean-Luc Godard – 1960) e “E Deus criou a mulher” (Et Dieu créa... la femme, dir.: Roger Vadim – 1956). Estes títulos mereceram destaque devido ao sucesso que alcançaram quando de seu lançamento, e mesmo posteriormente, transformando-se em produções cinematográficas icônicas da década de 1950, usualmente lembradas pelos cinéfilos e pelos trabalhos voltados à história do cinema. Além disso, e configurando-se uma questão de notável importância, sendo considerada a natureza historiográfica da presente dissertação, os filmes elegidos possuem um claro e distinto diálogo com temas em voga nas sociedades de Estados Unidos e França, no período. Veiculando personagens jovens, as películas examinadas traziam à tela grande pontos nevrálgicos dos debates em andamento naquelas sociedades quanto ao surgimento da juventude enquanto ator social significativo, autônomo em suas demandas e características, guardadas as especificidades de cada uma das produções. Sendo, em sua maioria, composto por enredos dramáticos, excetuando-se “Como agarrar um milionário”, que se constitui como uma comédia romântica, o conjunto de filmes tratado aborda a juventude salientando os dilemas e impasses, as idiossincrasias próprias desta parcela populacional que se fazia singularmente presente na geração do pós-Segunda Guerra Mundial. Diferenciando-se das gerações anteriores, os jovens da década de 1950 alcançam uma particular autonomia, alicerçada em uma postura de consciente diferenciação do restante do corpo social em ambas as sociedades examinadas. Sabendo-se em um estágio especial de suas vidas, apesar de passageiro, os jovens percebem no pertencimento a uma determinada faixa etária um elemento de coesão que acaba por se materializar em forte elo de identificação, consolidando a juventude enquanto grupo social coerente no qual a faixa etária estabelecia-se como elemento suficiente para assegurar a legitimidade individual. Perceber-se, e ser percebido, enquanto jovem implicava a participação em uma série de caracterizações, de ordem interna, psíquica e pessoal, por um lado, mas também de ordem externa, nos costumes, vestimentas, maneirismos, gostos, bem como no consumo de uma cultura que se afirma eminentemente juvenil, por outro. 145 Autodeterminada pelo pertencimento àquela faixa etária, a coesão social da juventude desconsidera, ao menos parcialmente, outros elementos de identificação grupal tradicionalmente utilizados como, em caráter de exemplo, a raça, a religião, a classe social. Assim, evidenciava-se na juventude a aderência aos valores democráticos integrados às retóricas nacionais de Estados Unidos e França, desde a muito tempo e, em consonância ao clima instituído pela geopolítica da Guerra Fria, fortemente e constantemente reafirmados ao longo da década de 1950. Democrática, a cultura jovem não tarda a se internacionalizar, desconsiderando barreiras culturais, étnicas ou fronteiras políticas. Deste modo, a juventude que eclode nos anos de 1950 cristaliza-se como um novo ator social que ativamente busca a inserção na sua realidade social imediata, não podendo ser ignorado pelo restante do conjunto social. Diante deste panorama, as sociedades americana e francesa viram-se na difícil tarefa de absorver as demandas desta parcela da população de maneira a suavizar o impacto de tamanha transformação na ordem cultural estabelecida. Observando-se a metodologia comparativa sobre a qual se assenta a análise aqui implementada, os capítulos estruturaram-se através de linhas temáticas as quais foram exploradas por meio do detido exame de duas das fontes pertencentes ao corpus documental, cada um, sendo os documentos provenientes de cada realidade nacional em estima. Desta maneira, o texto afiança a permanente consideração de ambos os contextos culturais estudados, dos Estados Unidos e da França, permitindo o exame conjunto do processo de consolidação da cultura jovem em ambos os casos de forma a existir uma iluminação recíproca das reflexões realizadas sobre aquelas sociedades. Assim sendo, coube a cada capítulo empreender o exame da juventude sob uma perspectiva específica, ainda que não deixem de ocorrer certos pontos de contato entre os capítulos produzidos. De tal modo, o primeiro capítulo considerou para análise os títulos “Sementes da violência” e “Os incompreendidos” buscando salientar as características principais da representação juvenil pautada na delinquência e na relação da escola com o comportamento desviante da juventude. Neste capítulo, foi abordado o processo de consolidação da cultura jovem, que ocorre nos Estados Unidos no final da década de 1940 e, na França, em meados da década seguinte. Fundamentada sobre a noção de ampliação da liberdade de ação do indivíduo, a cultura juvenil passa a ser caracterizada por um conjunto de propriedades que 146 pretendiam materializar um constructo fechado do indivíduo jovem arquetípico. Dentro deste conjunto de propriedades, a juventude figura enquanto fútil, hedonista, libertária, permissiva quanto às suas condutas morais, em especial naquilo que concerne à sexualidade, despolitizada e eminentemente contrária aos padrões sociais tradicionais. Diante destas caracterizações torna-se evidente a ideia de ruptura da nascente cultura jovem em consideração aos valores tradicionalmente aceitos e reconhecidos como adequados pelas sociedades dos países examinados. Se permissiva, fútil, hedonista e libertária, a cultura da juventude da década de 1950 torna-se improdutiva, de pouco valor, voltada ao prazer e à busca de satisfações imediatas. Despolitizados, os jovens não apresentariam quaisquer preocupações referentes ao futuro da nação, o que implicava ignorar o papel de cidadão ativo na consecução do desenvolvimento do país, comprometidos com os mais nobres valores nacionais, assumindo a posição patriótica que deveria ser intimamente desejada por cada indivíduo. Esta última questão, se presente no debate francês sobre a juventude, possui significação muito mais aprofundada no contexto americano, tanto pela presença do patriotismo na retórica nacional, historicamente, quanto pela especificidade política do período, quando os Estados Unidos travavam uma ruidosa batalha ideológica contra o comunismo, personificado na União Soviética. Considerando os perigos que a ideologia comunista representava nos discursos acalentados pelos governos americanos no pós-Segunda Guerra, esperava-se que aos jovens coubesse a ação de defensores primordiais dos valores americanos, posição esta que a cultura juvenil parecia negar. Não-conformista, a juventude do período é caracterizada, principalmente, pela rebeldia, pela gratuita oposição aos valores morais e nacionais e pela delinquência. Este último elemento será responsável pela midiatização da cultura vista como pertencente a esta parcela da população. Como trabalhado no capítulo, a indústria cinematográfica de Estados Unidos e França absorvem a cultura da juventude por motivos e através de formas bastante distintas. Enquanto o cinema da Califórnia enfrenta um quadro de crise a partir de fins da década de 1940 devido, dentre outros fatores, à ação antitruste movida contra os estúdios pela Suprema Corte americana, às barreiras políticas erigidas pela forte e amarga retórica anticomunista, que limitava as possibilidades temáticas dos roteiros de Hollywood e pela inesperada concorrência da televisão, que se 147 populariza rapidamente, o que leva a buscarem inovações dos temas abordados pelas tramas, bem como no âmbito das técnicas de captação e exibição de imagens, o negócio cinematográfico da França assiste à entrada da juventude como pressão externa que, adentrando pelas margens, acaba por tomar de assalto toda o consolidada indústria do cinema nos anos finais da década de 1950. Esta indústria, apesar de rentável, encontrava-se distanciada das novas demandas culturais presentes naquela sociedade, recebendo críticas de setores intelectualizados que terminam por propor uma nova estética ao cinema francês. Apesar de breve, o movimento do cinema jovem eternizado no termo Nouvelle Vague consegue lançar alicerces que permanecerão vigentes mesmo depois de passada a “onda”. Estes alicerces consolidariam a intensidade da cultura juvenil daquele momento histórico. Como citado anteriormente, tratava-se de um movimento erigido por jovens, para os jovens, em contato direto com a cultura juvenil, e adiciono, em oposição aos padrões sociais/morais/culturais vigentes no velho cinema francês. “Sementes da violência” e “Os incompreendidos” veiculam as tensões entre o jovem, sua realidade imediata (a família, a escola) e a sociedade. Entretanto, apesar da proximidade temática, a primeira produção, americana, assume uma postura notadamente mais conservadora que a segunda, francesa. O maior conservadorismo dos títulos produzidos nos Estados Unidos, o que se verificou enquanto uma constante nas análises realizadas, pode ser explicado pelo contexto político notadamente conservador daquela nação, no período. Além disso, o fato de as obras terem de ser submetidas a um código de autocensura, o Código Hays, constituído pelos próprios estúdios como instrumento de proteção frente às censuras externas, igualmente influencia no viés conservador das narrativas. Por outro lado, a relativa liberdade de abordagem perceptível nos títulos franceses elencados devese, em boa medida, ao fato de se tratarem de filmes produzidos fora do grande circuito de produção do cinema daquele país e, portanto, gozarem de maior liberdade na consecução. Entretanto, apesar de terem sido produzidas, estas películas também precisaram ser submetidas à censura, no caso estatal, visando obter a licença de exibição. Nesta oportunidade, estes filmes tiveram determinadas partes interditadas e apenas foram liberados para audiências a partir de uma determinada faixa etária. É importante, pois, não se considerar a sociedade francesa da década de 1950 notadamente liberal apenas devido às abordagens temáticas 148 menos conservadoras dos títulos cinematográficos examinados, o que significaria incorrer em imperdoável erro de avaliação do contexto histórico. No filme dirigido por Richard Brooks, a postura conservadora sobre a qual se assenta o enredo, desde o prólogo inicial, evidencia a tentativa de se controlar e neutralizar o desenvolvimento da cultura jovem, coadunando-se com forças presentes na sociedade americana. Diretamente relacionada à delinquência juvenil nas escolas, as demandas culturais da juventude representam, segundo aquela trama, um perigo real para a ordem e para os valores da nação, sem que sejam problematizadas as possíveis razões pessoais e sociais da rebeldia dos jovens estudantes. Em “Sementes da violência”, o claro viés maniqueísta do enredo imputa todo o mal a uns poucos estudantes impossíveis de se recuperar, enquanto o bem cabe ao professor que, guiado pelos nobres valores americanos do patriotismo, do trabalho, da diligência e da dedicação, será capaz de restaurar a harmonia nos demais jovens, que se tornarão comprometidos com os valores citados, sendo a escola um instrumento salvacionista responsável pela única forma digna de inserção social daqueles rapazes, oriundos das camadas de origem imigrante presentes na base da pirâmide social americana. Em “Os incompreendidos”, opostamente, Truffaut tece uma abordagem realista e honesta da juventude, ensaiando uma análise profunda da psicologia de um jovem adolescente incapaz de encontrar o lugar que lhe cabe na sociedade. Nesta obra, o espectador é testemunha constante das angústias que cercam Antoine Doinel. Acompanhando o protagonista na sua vida íntima, familiar, no seu áspero cotidiano escolar, nas suas caminhadas pela cidade de Paris, o que se vê é a falta de expectativas de um jovem que busca incessantemente sua liberdade, diante de uma realidade coercitiva da qual parece não poder escapar. O desenlace da película, com Doinel encarcerado em uma inadequada instituição para delinquentes juvenis, fugindo em direção à praia aonde, chegando ao fim do caminho, continua a ansiar por encontrar seu destino, é representativo da juventude francesa do final dos anos de 1950 que, não tendo participado dos significativos eventos da história recente daquela nação, não se sente totalmente integrada àquela sociedade e aos valores emanados dela. No segundo capítulo foram examinados os títulos “Juventude transviada” e “Acossado”, sendo consideradas as representações operadas nestas obras pautadas, essencialmente, na propensão juvenil à violência e a um comportamento 149 sexual notadamente liberalizado. A relação da eleição destas características, como as bases do constructo juvenil realizado nestes filmes, com o contexto de debates sobre a juventude em desenvolvimento nas sociedades elencadas mereceu, igualmente, detida observação. Nestes debates evidenciaram-se as distintas reações das sociedades de Estados Unidos e França frente às tensões propiciadas pelo surgimento da juventude como parcela ativa no interior do corpo social, realizando questionamentos, portando demandas culturais próprias, sinalizando exigências que iam de encontro aos parâmetros em execução naquele momento, especialmente nos âmbitos social e cultural. Destarte, se a veloz e surpreendente elevação do jovem provocou, nos Estados Unidos, uma série de políticas de Estado singularmente voltadas a esta parcela populacional, ao longo da década de 1950 e início da década seguinte, as quais pretendiam acarretar a reflexão sobre os jovens de forma a compreendê-los e controlá-los, levou, do mesmo modo, à afirmação de uma postura conservadora emanada de parcelas tradicionais da sociedade americana. Segundo as críticas surgidas, a consolidação de uma cultura jovem devia-se à crise, à erosão dos valores mais caros ao ethos americano e, dito isto, os fundamentos sobre os quais se baseavam a especificidade americana, responsáveis pelo caminho de sucesso trilhado por aquela nação desde a sua independência, encontrar-se-iam ameaçados por um novo e suspeito conjunto de valores, que provavelmente ocasionariam a degenerescência daquele povo. Naquilo que se refere ao caso francês, a sociedade, acometida pela ofensiva cultural da juventude, busca compreendê-la e assimilá-la, o que se traduz no surgimento de um numeroso conjunto de pesquisas jornalísticas, sociológicas e antropológicas que objetivavam delimitar as características básicas daquela geração de jovens, tentando esclarecer as maneiras pelas quais estavam ocorrendo as interações sociais internas a este grupo etário, por um lado, e em relação ao restante do corpo social, por outro. Paralelamente, a tempestiva aparição da juventude era percebida nas publicações periódicas, na publicidade das revistas, na música, na literatura e, principalmente, no cinema. Os valores comportamentais que os guiavam marcam a especificidade da transformação cultural em curso. A França rejuvenescera. Nesta atmosfera, a influência da cultura de massa no vertiginoso desenrolar da cultura jovem é apontada tanto nos Estados Unidos, quanto na França. O 150 processo funciona como se houvesse uma auto-alimentação que o impulsionaria: primeiramente, a juventude afirma sua autonomia, tornando-se elemento presente na cultura de massa; em um segundo momento, diante de sua inserção na cultura de massa, os jovens são influenciados pela representação da juventude fabricada pelos meios midiáticos, adaptando seus códigos comportamentais àquelas representações que, inicialmente, foram cunhadas observando-se a autonomia afirmada por esta mesma juventude, que ascendia culturalmente; posteriormente, a indústria da mídia, em constante observação do desenrolar do processo, realiza alterações em suas representações, baseada nas mudanças percebidas. Portanto, o diálogo firmado entre realidade e representação, neste ambiente, acaba por acelerar e intensificar a definitiva afirmação da cultura juvenil. “Juventude transviada” traz a juventude suburbana do High School de classe média para as telas. A escola, que também se encontra presente no enredo de “Sementes da violência” e de “Os incompreendidos”, figura como o lugar por excelência da sociabilidade adolescente pois, firmando laços no ambiente escolar, os jovens alcançam os clubes, as lanchonetes e outros locais por eles eleitos como lugar de interação social. A sociabilidade juvenil, demarcada pelo pertencimento a mesma faixa etária, leva ao contato e à troca de experiências dentro de uma mesma geração, uma vez que a tradicional aproximação entre as gerações começa a ser desconsiderada. Além da escola, a divisão hierárquica presente nos locais de trabalho acaba por colaborar pela interação entre os jovens, já que estes terminam por desempenhar funções profissionais dentro de estágios similares daquela hierarquia. Distanciando-se, enquanto grupo coeso e claramente delimitado, do restante das camadas da sociedade, os jovens assumem um papel marcado pela alteridade. Considerando-se e sendo considerado como “o outro”, a não-integração da juventude à sociedade da qual, para todos os efeitos, faz parte, leva a uma sensação de não-pertencimento, com a juventude sendo classificada como representante de elementos que mantêm certa marginalidade com relação à sociedade, ideológica ou culturalmente. Deste modo, a relação entre a cultura jovem e a cultura negra na década de 1950, descortinada especialmente na música com o surgimento do rock and roll, pode ser compreendida através desta identificação de não-pertencimento. 151 Em ambos os títulos tratados no capítulo as personagens principais, masculinas e femininas, demonstram algumas características em comum. Enquanto que Jim Stark e Michel Poiccard são jovens homens corajosos e decididos em seus atos, apresentam-se emocionalmente fragilizados de forma a divergirem do arquétipo masculino tradicionalmente construído no cinema. Se Jim mostra-se angustiado frente à submissão de seu pai diante de sua mãe autoritária, Michel assume uma posição de dependência perante a mulher pela qual está apaixonado. As jovens Judy e Patricia, por outro lado, experienciam sua sexualidade através da desconsideração dos códigos morais em vigor, especialmente a última, que vive livremente em Paris, sozinha. A liberalização feminina constituiu-se, por sinal, como o elemento norteador do terceiro e último capítulo, onde foram abordadas as obras “Como agarrar um milionário” e “E Deus criou a mulher”, intentando-se examinar as representações femininas produzidas nestes títulos em observância às tensões sociais do período no que se referia à controversa questão da posição da mulher nas sociedades em apreço. Nas películas dirigidas por Negulesco e Vadim as representações de mulher construídas são ancoradas, respectivamente, sobre o consumo e sobre a sexualidade libertária. Tratando-se o primeiro filme de uma comédia romântica, o segundo de um drama, as produções interagem com a conjuntura de desenvolvimento econômico da década em questão, quando a feminilidade tornar-se-ia elemento publicitário na sociedade de consumo que se consolidava. Desta maneira, as jovens estrelas presentes nos casts destas narrativas, Marilyn Monroe e Brigitte Bardot, são projetadas como os modelos da nova feminilidade americana e francesa do período, livres, autônomas, independentes e em franca desconsideração aos antigos padrões morais ainda em atuação naquelas sociedades. Nos papéis interpretados pelas citadas atrizes nas películas em questão, Monroe vive uma ingênua e atrapalhada modelo fotográfico que, conjuntamente com suas amigas Page e “Loco”, buscam no matrimônio com homens ricos assegurar a felicidade através do consumo, enquanto que Bardot dá vida a uma jovem órfã que, em contato com a natureza litorânea de Saint-Tropez, exerce sua sexualidade com excessiva liberdade, desconsiderando a conduta moral existente e provocando a oposição dos moradores locais. Se “Como agarrar um milionário” não realiza uma abordagem aprofundada da inserção da mulher na sociedade americana, “E Deus 152 criou a mulher” problematiza a nova feminilidade francesa, polemizando sobre um tema socialmente sensível através da forte erotização presente no enredo. Esta distinção do viés de abordagem sobre o tema da feminilidade existente entre as obras selecionadas deve-se, em certa medida, ao conservadorismo do sistema de produção cinematográfica dos Estados Unidos, pouco propenso ao tratamento de temáticas com implicação sociocultural, no momento de produção do filme de Negulesco, no ano de 1953, por um lado, bem como ao desinteresse do público em enredos voltados à exploração da psicologia feminina, por outro, o que justifica a leveza da trama. Opostamente, a liberdade com que o tema da mulher foi considerado na produção francesa pode ser explicada pelo fato de se tratar de uma realização fora do grande negócio do cinema naquele país, o que possibilitou à Vadim maior margem de manobra, tanto na consecução do roteiro, quanto durante o período de direção dos atores e captação das cenas. Entretanto, o limitado acolhimento do público francês parece denotar a recusa à representação feminina operada, enquanto que “Como agarrar um milionário” acaba por se manter distante das mudanças culturais em curso no que se refere à participação da mulher na sociedade americana. Existe em ambas as tramas um elemento pertencente aos roteiros responsável por aproximar todas as jovens mulheres integrantes das narrativas: a busca pela felicidade. Pola, Page e “Loco” apenas aceitam os casamentos de conveniência que figuram como o objetivo do plano que partilham por acreditarem residir no consumo a felicidade que almejam e que, aparentemente, nunca sentiram. Consoante à postura conservadora da finalização da película, as moças acabam por encontrar no amor, e no casamento animado pelo sentimento sincero, a felicidade que buscavam. Juliette, por seu turno, é feliz desde que possa vivenciar sua liberdade da maneira mais plena possível, mesmo que isso implique a desconsideração dos parâmetros comportamentais básicos constituintes do código moral em vigor. Ainda que casada, conceitos como fidelidade, reputação, família, honra, intrínsecos àquele estado civil, não podem ser por ela apreciados, pois funcionariam como limitadores de sua liberdade e, por conseguinte, de sua felicidade. Desta maneira, apesar de modernas e partícipes do surgimento de uma nova feminilidade, as jovens mulheres dos anos de 1950 continuam a buscar a felicidade nos relacionamentos que podem firmar ou vivenciar, sejam estes duradouros ou não. A realização pessoal destas jovens não passa, em momento 153 algum da trama, pela tentativa em se assumir uma posição ativa dentro da sociedade, no âmbito da efetivação profissional ou do engrandecimento intelectual. Nas duas produções, e apesar da liberdade presente na representação de feminilidade veiculada em “E Deus criou a mulher”, não há uma verdadeira integração social das mulheres, cabendo-lhes o matrimônio na obra americana, ou a constante execração social, na obra francesa. O exame das produções cinematográficas privilegiadas nestas páginas permitiu a abordagem de alguns aspectos da representação de juventude realizada nos anos de 1950. Nestas, os elementos da rebeldia, da delinquência juvenil, da sexualidade e da angústia perante uma realidade coercitiva configuraram-se como os aspectos basilares na formulação de um constructo que acabou por se cristalizar e por ultrapassar o período histórico no qual foi constituído, atravessando as décadas seguintes e chegando à atualidade. A análise das obras igualmente permitiu a observação detalhada dos contextos de transformações culturais presentes em Estados Unidos e França quando da produção destes títulos, possibilitando entrever as tensões envolvidas na relação conflituosa entre aquelas sociedades e a cultura jovem que eclodira. Ainda assim, é preciso ter em mente que o campo das mudanças culturais no recorte proposto é notadamente mais rico, caso sejam extravasados os limites concernentes à juventude. Finalmente, deve-se salientar que existiram, no período estudado, outros elementos envolvidos na formulação do arquétipo de juventude, bem como outras produções cinematográficas que apresentaram personagens jovens pautados através de modelos comportamentais distintos. De qualquer forma, as obras analisadas exemplificam as representações que mais correntemente foram operadas, e igualmente, o arquétipo jovem que povoou o imaginário daquela década, o momento de consolidação da juventude. 154 FONTES CINEMATOGRÁFICAS À bout de souffle (Acossado). Direção: Jean-Luc Godard. Produção: Georges de Beauregard. França: Les Films Impéria; Les Production Georges de Beauregard; Société Nouvelle de Cinématographie (SNC), 1960. Blackboard jungle (Sementes da violência). Direção: Richard Brooks. Produção: Pandro S. Berman. Estados Unidos da América: MGM; Warner Bros. Pictures, 1955. Et Dieu créa... la femme (E Deus criou a mulher). Direção: Roger Vadim. Produção: Raoul Lévy. França: IENA; U.C.I.L.; Cocinor, 1956. How to marry a millionaire (Como agarrar um milionário). Direção: Jean Negulesco. Produção: Nunnally Johnson. Estados Unidos da América: Twentieth Century-Fox, 1953. Les quatre cents coups (Os incompreendidos). Direção: François Truffaut. 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