cinema e história: o caso do cinema bélico soviético do pós

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cinema e história: o caso do cinema bélico soviético do pós
CINEMA E HISTÓRIA: O CASO DO CINEMA BÉLICO SOVIÉTICO
DO PÓS-GUERRA
Gelise Cristine Ponce Martins
Moisés Wagner Franciscon
Resumo: A primeira parte deste trabalho apresenta as contribuições do cinema para a
História; que consistem na representação de fatos longínquos, não observáveis por outro meio
a não ser o da reconstrução e encenação, e no fornecimento de dados importantes sobre a
sociedade em que o filme está inserido. E tece considerações teórico-metodológicas que
embasam a utilização do filme como fonte histórica. Na segunda parte evidencia-se que, o
cinema soviético sobre a Segunda Guerra, produzido no pós-guerra, não se distinguiu
fundamentalmente do cinema ocidental pelo uso da propaganda ou da busca pela construção
da memória coletiva. Portanto, a concepção de totalitarismo não é passível de ser aplicada
realisticamente ao quadro cultural do qual o cinema participava, ou à sociedade no qual o
mesmo estava inserido. A teoria do totalitarismo não só é incapaz de explicar
satisfatoriamente e, como desdobramento, prever ou permitir a análise dos desenvolvimentos
contínuos do mundo político e social dos países socialistas, como também sequer pode
explicar a produção fílmica existente nos mesmos. Certamente fatores políticos ligados ao
projeto do grupo dominante no Kremlin apresentaram impactos no cinema que abordava a
história e a atuação da URSS na Segunda Guerra, mas este não se limita a essas influências –
com a exceção, talvez, do período de Stalin.
Palavras-chave: História, Cinema, URSS
CINEMA E HISTÓRIA: O CASO DO CINEMA BÉLICO SOVIÉTICO
DO PÓS-GUERRA
Gelise Cristine Ponce Martins
Moisés Wagner Franciscon
O cinema como fonte para a História: breves concepções teórico-metodológicas
A introdução que se segue, tem por objetivo elucidar as contribuições do cinema para
a História. Estas que vão desde a representação de fatos históricos longínquos, não
observáveis por outro meio a não ser o da reconstrução e encenação; até o fornecimento
dedados importantes sobre a sociedade em que o filme está inserido, ou seja, contexto de sua
produção, a história do presente. Após uma breve rememoração do modo como cinema foi
visto pela historiografia em diferentes momentos, apresentam-se as considerações teóricometodológicas que embasam a utilização do filme como fonte histórica. Entre as diversas
formas de expressão artística, o cinema tem sido considerado por diversos estudiosos, nos
vários campos do conhecimento, como a Arte do mundo contemporâneo. Neste sentido, o
cinema pode ser visto como uma fonte primordial e inesgotável para o trabalho historiográfico
de modo geral (BARROS, 2011).
O “Cinematógrapho”, como era chamado, foi uma experiência artística que captava
imagens reais em movimento, dando uma grande impressão de que o que se passava na tela
era a própria realidade. O potencial de produzir a impressão de realidade foi a base do grande
sucesso do cinema, e também o que o transformou num importante instrumento a ser usado
pela burguesia, na criação de um universo cultural que expressará o seu triunfo e que ela
imporá às sociedades, num processo de dominação cultural, ideológico e estético
(NAVARRETE, 2008). O mesmo pode ser dito do cinema soviético, a serviço de um grupo
mais restrito no cume do poder ou, posteriormente, da liderança coletiva e do poder
oligárquico da burocracia e da nomemklatura.
Essa impressão de realidade que foi sendo intensificada, à medida que novos recursos
técnicos se tornaram disponíveis, remonta às origens do cinema. Navarrete (2008) divide a
apropriação do cinema como fonte histórica em duas fases. Na primeira, que se estendeu até
meados do século XX, o cinema foi tido, como uma espécie de reflexo transparente da
realidade, sendo que os historiadores ainda não utilizavam frequentemente tal material. Já na
segunda fase, iniciada nos anos 1960, graças às reflexões dos Annales, o cinema foi
definitivamente incorporado ao fazer historiográfico e passou a ser visto como uma
construção, uma representação do real. Até meados do século, o cinema não fazia parte do
universo do historiador. O historiador está particularmente preocupado com as formas de
“falsificação” do cinema. (...) toda a crítica externa e interna que a metodologia da história
impõe ao manuscrito impõe igualmente ao filme. Todos podem igualmente ser falsos, todos
podem ser “montados”, todos podem conter verdades e inverdades (RODRIGUES, 1982, 174176). Durante a década de 60, denotou-se um maior interesse na realização de estudos que se
dedicassem à temática da produção cinematográfica. Nos anos 70, o cinema já influenciava
decisivamente nas maneiras como as pessoas percebiam e estruturavam o mundo. Um
material importante como esse, que conquistava cada vez mais espaço e se disseminava pelas
sociedades, não podia deixar de despertar o interesse dos historiadores da época, que já
incluíam as crenças e o imaginário como objetos da História. Deste modo, a partir da escola
dos Annales, o fazer historiográfico sofreu um profundo enriquecimento e diversificação,
através de uma grande variedade de fontes, dentre as quais, o cinema (NAVARRETE, 2008).
O cinema foi elevado à categoria de novo objeto e incorporado ao fazer histórico dentro dos
domínios da História Nova. Um dos grandes responsáveis por essa incorporação foi o
historiador francês Marc Ferro (MORETTIN, 2003). Em seu livro Cinema e História (1992),
Ferro demonstra a utilização do cinema por membros da elite a fim de manter sua posição, da
mesma forma que os diferentes governos valem-se desse instrumento com o intuito de
veicular suas ideias. Desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a
intervir na história com filmes de ficção ou documentários, que, desde a sua origem, sob a
aparência da representação, doutrinam e glorificam (FERREIRA, 2009).
Segundo Ferreira, o cinema apresenta-se na visão de Ferro, como um possível
instrumento de legitimação de uma determinada cultura e sociedade, cujos valores podem ser
transmitidos e reforçados através da utilização de elementos históricos. Assim, o teor histórico
presente no filme, muitas vezes, tem por função a ativação de uma memória coletiva
pertinente a um fato do passado de certa coletividade, mas que se vincula ao presente. De
acordo com Morettin (2003), Ferro considera o cinema um testemunho singular de seu tempo,
pois está fora do controle de qualquer instância de produção, principalmente o Estado. Mesmo
a censura não consegue dominá-lo. O filme possui uma tensão que lhe é própria, trazendo à
tona elementos que viabilizam uma análise da sociedade diversa da proposta pelos seus
segmentos, tanto o poder constituído quanto a oposição. Neste sentido, o filme atinge as
estruturas da sociedade e, ao mesmo tempo, age como um “contra-poder”, por ser autônomo
em relação aos diversos poderes desta sociedade. Para Ferro, o documento fílmico produzido
pelo Estado ou por outras instituições difere do documento escrito que possui a mesma
origem. O primeiro traz sem querer uma informação que vai contra as intenções daquele que
filma, ou da firma que mandou filmar, porque a realidade que se quer representar não chega a
esconder uma realidade independente da vontade do operador (MORETTIN, 2003).
Morettin (2003) não acredita que a análise das relações entre cinema e história possa
ser elucidada a partir das dicotomias “aparente”–“latente”, “visível”–“nãovisível” e
“história”–“contra-história”. A ideia proposta por Ferro de que o cinema não é uma expressão
direta dos projetos ideológicos que lhe dão suporte deve ser ressaltada: um filme apresenta, de
fato, tensões próprias. Porém, estas não devem ser pensadas nos termos de sua inclusão ou no
campo da “história” ou de sua “contra-história”, tal como faces opostas de uma mesma
moeda, que define um único sentido da obra. Por outro lado, afirmar a possibilidade de
recuperar o “não visível” através do “visível” é contraditório, já que essa análise vê a obra
cinematográfica como portadora de dois níveis de significado independentes, perdendo de
vista o caráter polissêmico da imagem.
Ao contrário, Morettin (2003) afirma que, um filme pode abrigar leituras opostas
acerca de certo fato. A percepção desse movimento deriva do conhecimento específico do
meio, o que permite encontrar os pontos de adesão ou de rejeição existentes entre o projeto
ideológico-estético de um determinado grupo social e a sua formatação em imagem. Apesar
de chamar para si um projeto tão ambicioso, dado que se propõe a dar conta de várias
cinematografias e prolongar a validade de seu método para a imagem audiovisual, Morettin
(2003) entende que, Ferro não produziu um trabalho de maior profundidade, que
demonstrasse plenamente a eficácia de sua análise, já que grande parte de sua produção é
constituída por artigos ou coletâneas. Ferro estaria em condições de realizar tal trabalho desde
os inícios dos anos 70, se escolhesse por objeto o cinema soviético, devido a sua produção
escrita sobre a história da Revolução Russa e da ex-URSS.
Por exemplo, a partir do estudo de diversas obras cinematográficas da Rússia de 1917,
Ferro percebeu algumas vantagens da fonte fílmica sobre os documentos escritos. Em
primeiro lugar, traz aspectos não revelados pelas fontes escritas, como nível de
desenvolvimento econômico dos diferentes países, comportamento de grupos e indivíduos,
costumes, etc. Em linha com a importância dada à questão do imaginário, seria mais apto a
revelar o inconsciente coletivo que as transações financeiras ou diplomáticas, mostrando as
mutações psicossociais e biológicas (MORETTIN, 2003). Parece óbvio o enorme potencial do
cinema de se constituir em um dos maiores suporte da memória histórica coletiva das
sociedades contemporâneas (OLIVEIRA, 2008). O cinema pode ser exatamente o primeiro
contato dos indivíduos com temáticas históricas, capaz de despertar o interesse pela História
(FERREIRA, 2009). Ferro afirma que, todos os filmes são objetos de análise. A
desconsideração da produção cinematográfica ficcional, parte do pressuposto de que por
integrar o imaginário ela não teria valor enquanto conhecimento, não exprimiria o real, mas
sua representação. Se o imaginário constitui um dos motores da atividade humana, o cinema,
sobretudo a ficção, abre uma via real na direção de zonas psico-sócio-históricas jamais
atingidas pela análise dos documentos. Esse tipo de produção leva uma vantagem em relação
ao documentário. Devido à sua maior divulgação e circulação, é possível identificar com
maior clareza o diálogo entre filme e sociedade por meio da crítica e da recepção do público
(MORETTIN, 2003). Tomar o cinema como fonte para a história implica numa série de
considerações de ordem teórica e metodológica, cujo alcance e complexidade são maiores do
que aquelas usualmente aplicadas à análise de outros tipos de fontes. No caso do filme de
ficção histórica, o ponto de partida deve ser a formulação da sua relação com a época tanto
em que é realizado quanto aquela que retrata. A época em que o filme é realizado tem
implicações de diversas ordens, as quais devem ser adequadamente descritas e
problematizadas, relativas às questões da sua realização (OLIVEIRA, 2008).
O cinema tem uma linguagem própria e deve responder a interesses específicos
relacionados em grande medida ao mercado. O historiador deve estar atento não apenas à
história narrada, mas às conexões que essa pode ter com eventos atuais. O estudo do cinema
exige que o pesquisador esteja consciente do contexto no qual está sendo produzido o filme,
os sujeitos que estão envolvidos na confecção dessa obra, sejam eles o diretor, os roteiristas,
os atores, as agências financiadoras, o estúdio no qual está sendo realizada a película, e, por
conseguinte, deve conhecer as principais premissas relativas à história do presente
(FERREIRA, 2009). Ferro também confirma que, as películas de reconstituição histórica são
importantes pelo que dizem a respeito do seu presente, do momento em que foram feitas e não
propriamente pela representação do passado em si. É no presente que se situa o verdadeiro
real histórico destes filmes, e não na representação do passado (MORETTIN, 2003). Em
suma, a partir de uma fonte fílmica e da análise dos discursos e práticas cinematográficas
relacionados aos diversos contextos contemporâneos, os historiadores podem apreender de
uma nova perspectiva a própria história do século XX e da contemporaneidade (BARROS,
2011).
Logo, qualquer obra cinematográfica – seja um documentário ou uma pura ficção – é
sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios significativos da sociedade que a
produziu. É neste sentido, que as obras cinematográficas devem ser tratadas como fontes
históricas significativas para o estudo das sociedades que as produzem (BARROS, 2011).
Para tanto, é necessário analisar aspectos do momento de produção do filme, a conjuntura
histórica, social e política, a fim de compreender quais aspectos da situação do presente estão
representados. É necessária uma crítica documental mais apurada, o abandono da concepção
de transparência do documento que, embasava muitos cineastas e teóricos do cinema da
primeira metade do século, ao acreditarem que refletisse de maneira imediata e simples a
realidade. O cinema deve ser visto como uma construção do real, que o altera por intermédio
de uma articulação entre a imagem, a palavra, o som e o movimento, num dado contexto
histórico (NAVARRETE, 2008). Já a época que é retratada no filme, também guarda estreita
relação com o contexto no qual o filme é realizado. Os eventos, personagens e temas se
relacionam a uma história muito mais antiga, originada da cultura, dos valores, utopias e
tragédias vividas por cada povo em particular. Aquilo que é mostrado nos filmes não só tem
que fazer sentido para a audiência dos cinemas, como também atender a determinados anseios
sociais e necessidades psicológicas da coletividade no interior da qual foi realizado, sob pena
de vir a se constituir num fracasso comercial. Trata-se de considerações que são válidas tanto
para os filmes de ficção quanto para os documentários (OLIVEIRA, 2008).
Logo, para além da história contada no filme, deve-se levar em conta também as
referências que o mesmo faz – ou deixa de fazer – ao contexto histórico mais amplo ao qual
ele se refere. A linguagem cinematográfica tem uma enorme capacidade de resumir e
sintetizar amplos períodos da história em apenas umas poucas cenas. O desafio que é
colocado ao historiador é tentar perceber quais elementos da conjuntura histórica são
contemplados – ou esquecidos - com que intensidade e frequência, e de que forma a história
do filme é por eles influenciada ou não (OLIVEIRA, 2008). Uma metodologia adequada à
análise fílmica necessita ser complexa. Deve tanto examinar o discurso falado e a estruturação
que se manifesta externamente sob a forma de roteiro e enredo, como analisar os outros tipos
de discursos que integram a linguagem cinematográfica: a visualidade, a música, o cenário, a
iluminação, a cultura material implícita, a ação cênica. Sem contar as mensagens subliminares
que podem estar escondidas em cada um destes níveis e tipos discursivos, ou na própria
mensagem falada e passível de ser traduzida em componentes escritos (BARROS, 2011).
A história registra diversos exemplos de críticas a poderes e sistemas políticos que
conseguiram atravessar sistemas de censura bastante rigorosos pelo simples fato de os
censores burocráticos serem desprovidos de uma cultura visual adequada para decifrar a
ideologia de uma obra sem se ater meramente à análise superficial dos componentes escritos
de um filme (roteiro e diálogos). É este nível superficial de análise que precisa ser
ultrapassado pelo estudioso do cinema, através de uma metodologia multidisciplinar e
pluridiscursiva (BARROS, 2011). Ferro (1992) destaca a importância da análise das imagens
como ponto de partida. Não se deve buscar nelas somente ilustração, confirmação ou
desmentido do outro saber, que é o da tradição escrita. E sim, considerar as imagens como
tais, apelando para outros saberes para melhor compreendê-las. Portanto, uma dimensão
fundamental dentro do feixe discursivo que integra a linguagem cinematográfica é o discurso
imagético. O filme é elaborado a partir de vários substratos integrados. E é preciso aplicar as
diversas metodologias possíveis a cada um desses substratos – seja o das imagens (que podem
ser imagens sonorizadas ou não), o da trilha sonora, o do cenário, o da linguagem da ação
gestual e cênica, sem contar o substrato mais evidente do discurso falado que transparece
pelos diálogos e pela estruturação lógica que dá forma ao roteiro. Trata-se, então, de analisar
densa e integradamente a narrativa, o cenário, a escritura (BARROS, 2011).
O filme é produzido para alguém, para um determinado público e está classificado de
acordo com um determinado gênero. Dessa forma, é interessante também verificar de que
maneira os elementos históricos são apresentados nos diferentes gêneros de filme, procurando
avaliar os possíveis motivos para a opção por essa forma narrativa2 (FERREIRA, 2009).
Segundo Ferro, os gêneros cinematográficos existem e devem ser entendidos enquanto tais,
sem que estas diferenças se tornem um impedimento para o trabalho do historiador. Desta
forma, dada a amplitude do material usado, a obra cinematográfica, independente do gênero,
captará imagens, consideradas reais, sobre algum aspecto da sociedade (imaginário, economia
etc.). Na verdade, para a análise social e cultural, eles são igualmente objetos documentários.
É suficiente aprender a lê-los (MORETTIN, 2003). Tornou-se consensual nos estudos
históricos sobre o cinema, o pressuposto de que os filmes devem ser entendidos como um
discurso cinematográfico. As imagens ali retratadas foram construídas sempre de modo
parcial, direcionadas e interpretativas dos eventos e épocas que descrevem. Isso não quer
dizer que o sentido do filme seja unívoco, que sua mensagem ou interpretação seja percebida
da mesma forma por toda audiência. Todo filme, por mais engajado ou afiliado politicamente
que seja, pode abrigar leituras divergentes a respeito de um determinado acontecimento
(OLIVEIRA, 2008). Ao se utilizar o filme como objeto de estudo, é essencial salientar o fato
de que este é uma produção coletiva, que envolve expectativas, desejos, concepções de
mundo de um grande número de agentes, entre diretores, produtores, atores, responsáveis pelo
estúdio, bem como financiadores (FERREIRA, 2009). Nestes termos, os filmes de ficção
histórica reproduzem e/ou reforçam um tipo de saber sobre a História que já foi cristalizado
na cultura e na memória coletiva. Embora possa conter aspectos originais, no intuito de se
viabilizar comercialmente, a ficção histórica tem que ter significado para a sua audiência. No
intuito de entender o processo social de produção de significados que sejam eficazes tanto do
ponto de vista comercial quanto cultural, deve-se atentar para a relação que envolve
historiadores, críticos, cineastas e público em torno do produto cinematográfico (OLIVEIRA,
2008).
O cinema bélico soviético do pós-guerra
O cinema soviético com pretensões históricas era mais distinto do cinema ocidental
quanto aos seus mecanismos de produção material do que dos seus objetivos e discursos
típicos para com o público. Sua busca pela constituição da memória da sociedade e o reforço
da história oficial e tradicional estão igualmente impregnados de propaganda, que, se não
ligada diretamente ao Estado, ainda serve como legitimadora do sistema político e social, ou
das reformas que se pretende impor a este. O cinema de superproduções, com o objetivo de
ser um monumento à reminiscência, à comemoração de datas nacionais e um incentivo ao
patriotismo ideal, também esta presente em ambos, como também algumas formas discursivas
e da linguagem cinematográfica. Se o herói coletivo é importante, heróis individualizados
(com preocupações coletivas – o que também não é raro no cinema ocidental) também têm
uma presença marcante. Se existe a alteração da história para se adequar ao quadro esboçado
pelo filme, ou a simples invenção mistificadora, ambos segundo interesses políticos e
geoestratégicos (como a política de amizade com os países do Leste, que pretendia reforçar
seus laços históricos e ocultar as crises na região) claros, esta não deixa de estar presente na
produção ocidental também. Mais característica ainda era a necessidade durante a Guerra Fria
da inculcação da ameaçadora imagem do inimigo externo e da necessidade de coesão popular
em torno da liderança como forma de se assegurar contra esse oponente hostil. Se o tema do
agressor nazista está presente em toda a produção fílmica sobre a Segunda Guerra na URSS, o
tema da invasão inimiga e da ocupação comunista permanente nos EUA tem dois picos dentro
do mesmo período: os anos 50 e os anos 80, com filmes como Red Dawn (Amanhecer
Violento), de John Milius, de 1984, e a minissérie Amerika, de 1987. Para ambos, retratar o
passado significava tentar explicar o presente e legitimar as posições de grupos poderosos, ou
ao menos pensar o passado com as perspectivas do presente, como os conflitos da época de
Alexander Nevsky, de 1938, que foram transferidos de maneira quase didática por Eisenstein
para explicar ao público a complicada situação soviética contemporânea, pressionada entre
duas frentes, a Leste e a Oeste.
Até onde existia uma indústria cultural soviética, como sua congênere ocidental? Nos
países comunistas esse ramo tinha leis próprias e uma lógica de funcionamento em muitos
sentidos contrária à do ocidente. Não era movida fundamentalmente pelo lucro, a carreira dos
quadros internos seguia uma linha diferente, não era um negócio eminentemente privado ou
voltado para o atendimento dos anseios de consumo do momento. Mas os resultados finais de
massificação cultural eram bem parecidos. Ao mesmo tempo havia uma característica que
ligava profundamente o funcionamento de ambas: o caráter de propaganda do sistema, de
presença e intervenção estatal, de celebração, em doses muito variadas, entretanto. Ela
cumpria os objetivos de lavagem cerebral coletiva da população, como assinalam os adeptos
da análise pelo totalitarismo? Pesquisas sérias, mesmo seguindo esse modelo explicativo,
teriam que manter um espaço para as dúvidas sobre esse alcance.
Porém, se empregarmos pesquisas mais circunspectas como as de Moshe Lewin
(1988), mesmo o caráter totalitário do regime pode ser fortemente contestado, inclusive nos
tempos de Stalin, por mais que alguns aspectos de fato batessem com a proposta do conceito
de totalitarismo. Noções mais moderadas como a de propaganda política dentro de um regime
autoritário estariam mais próximas à realidade e explicariam muito melhor certas liberdades
artísticas dentro do cinema estatal. Deve-se lembrar que antes de uma imposição completa do
Estado e uma absorção por parte dos diretores das diretrizes emanadas de cima, existiram
pequenas tensões e confrontações, como a desobediência de Eisenstein em produzir um
cinema unicamente didático para as massas, o que lhe valeu a censura na continuação de Ivan,
o Terrível.
Enquanto o cinema ocidental é mergulhado em diferentes tipos de propaganda que
acabam por reforçar as posições do sistema, como o anúncio de um refrigerante ou de um
automóvel, à consagrada propaganda patriótica ou moral-religiosa – apesar de alguns autores,
como Peter Kenez, não verem qualquer relação do Estado com o cinema, sendo a propaganda
nele embutida apenas uma exigência do consumo das audiências (LAWTON, 1992, 147).
O campo da atuação da propaganda soviética era mais restrito e unidirecional. Estava
mais fortemente vinculado às preocupações momentâneas do Estado e à defesa de seus
interesses do que a qualquer outra coisa. Se existem algumas características que aproximam o
sistema de propaganda cinematográfica soviética, ao menos na época de Stalin, ao sistema de
propaganda nazista, até mesmo a inspiração tomada por este último, o estilo mudava, a
agressividade e sutileza tinham dosagens bem diferentes. A consequência, ao contrário do que
muitos imaginam, é que os maiores públicos não eram os dos filmes encomendados pelo
regime e mais carregados de carga ideológica, nem o cinema arte, mas a fuga e a diversão
promovidas por comédias, ou também musicais e dança durante a Era de Stalin. A vontade
popular acabava encontrando outras áreas onde podia realizar ao menos parcialmente seus
próprios gostos ou moldáveis aos seus próprios interesses.
Nesse sentido, pode-se até afirmar que a sociedade americana era mais manipulável
através do cinema do que a sociedade soviética, ao menos a partir da estagnação sentida na
Era Brejnev. As redes sociais na URSS tiveram um amplo desenvolvimento subterrâneo nos
anos 70, que viria a aflorar enquanto uma inédita e oficialmente reconhecida opinião pública
na segunda metade dos anos 80. Tais redes permitiam a rápida disseminação de informação
(mesmo quando bloqueada pelos veículos oficiais) e sua filtragem pelos indivíduos
componentes da rede e por figuras de maior destaque em cada célula de discussões. Esse
espírito crítico independente no ambiente de descrédito e descomprometimento da população
com o regime gerou conotações de repulsa ou indiferença muito forte para com as versões
oficializadas pelo governo de todo tipo de informação. Amplas parcelas da população
assistiam a um filme histórico com a disposição de que tudo ali não passava de fantasia e
propaganda. A reação da sociedade americana ao seu próprio cinema era bem diferente (como
pode ser verificado com a comparação dos sucessos de Rambo nos EUA com o de seu
homônimo soviético, Odinochnoye Plavanie).
A economia estatal, administrativa, burocrática e planejada implicava amplos
desdobramentos da produção cinematográfica soviética. Boa parte dos filmes eram
encomendas governamentais. O cinema monumental era inteiramente fruto dos pedidos feitos
pelo ministério do Cinema. A “batalha pela produção” também se manifestava no setor.
Assim uma importante produção que pretendia memorar e comemorar os feitos alcançados na
Grande Guerra Patriótica recebia o desvio de recursos técnicos, humanos e materiais de outros
setores, como forma dos objetivos serem atingidos. Desta forma, os grandes compositores
soviéticos do século XX, Prokofiev, Shostakovich, Kachaturiam, criavam as trilhas sonoras
dos principais filmes, às vezes baseados em sua própria produção erudita, como a presença da
Sétima Sinfonia ou Leningrado de Shostakovich em Padeniye Berlina (Queda de Berlim), ou
de canções e influências populares como Rouxinóis de Kachaturiam, em Stalingradskaya i
Bitva (Batalha de Stalingrado). Tanques Panzer V originais, capturados na guerra, foram
retirados dos museus para as filmagens de Osvobozhdenie (Liberação).
O cinema soviético do pós-guerra que tratava da Segunda Guerra Mundial poderia ser
divido em quatro fases distintas. Cada fase estava intimamente ligada com a liderança política
do país no momento. A primeira fase vai de 1945 a 1953. É a época de Stalin onde o cinema
está a serviço da imagem do líder e o poder do Estado sobre a produção cinematográfica é
sentido de forma mais intenso. A fase seguinte, de desgelo, sob a condução de Kruschev,
presenciou a abordagem dos esforços do partido e do povo para a vitória, onde nomes e
indivíduos reais perdem a importância, em que a liberdade artística e o espaço para a crítica
eram dilatados e mesmo a produção oficial recebia influência da “nova onda” estética
(LAWTON, 1992). A terceira fase, de 1964 a 1982, sob Brejnev, foi de um progressivo e
relativamente tênue (principalmente se comparado com a época stalinista) retorno ao culto à
personalidade e ao papel de heróis e personagens reconhecidos pela história oficial. A quarta
fase, sob Gorbachev ou imediatamente anterior a este, foi de um ritmo explosivo de revisão
histórica do papel do país na guerra em meio a uma enroxada de revelações com a abertura
dos arquivos.
De 1945 a 1953 houve um crescente culto à Stalin, não só no cinema e na propaganda
como também no retorno parcial ao sistema de terror dos anos 30. Se em Stalingradskaya i
Bitva (1948), de Vladimir Petrov, Stalin compunha a estratégia da campanha, mas raramente a
tática de batalha, cabendo esta a seus generais, em Padeniye Berlina (1951) de Mikheil
Chiaureli, mesmo sua onipresença e onisciência do campo de guerra e da atuação de cada
soldado é lembrada pelo general Chuikov. Se a atuação de Zhukov como chefe da Stakva, o
Estado Maior, é apagada no primeiro, no segundo Stalin, ao telefone em Moscou, precisa
demovê-lo, na linha de frente, do erro de crer nas táticas diversionistas nazistas, que
pretendiam retardar seu avanço sobre Berlim. Se Chuikov, Rokossovsky e outros generais
tiveram um papel destacado no primeiro, não são mais do que figurantes no segundo. O centro
do poder, por mais distante que estivesse dos locais onde um processo se desenvolvia, possuía
uma percepção mais aguda do que as pessoas diretamente envolvidas. A remoção do marechal
para um posto secundário por bonapartismo é justificada e a glória da vitória cabe quase
inteiramente à Stalin. Quase, pois os generais ao menos fazem cumprir as ordens emanadas do
Kremlin e não deixam de existir outros heróis, na personificação do novo homem soviético,
operário, stakanovista, militante e temente a Stalin (e que, no cinema não deixa de guardar
algumas características do antigo camponês russo, como o apego à aldeia) ou a atuação de
soldados reais, que tiveram seus nomes conservados, como o sargento Pavlov ou o major
Uvarov. A superioridade do regime é endossada pela sua humanidade, como na promessa
redigida por Stalin de fornecimento de alimentação e abrigo adequados aos inimigos cercados
em Stalingrado, ou nos seus lamentos sobre a necessidade do sacrifício de vidas para que o
país seja salvo.
Na era Kruschev a liderança individual foi trocada pela atuação do povo e do partido.
Nessa etapa ocorreu a primeira revisão histórica da atuação do país na guerra, ao tom da
política de auto-crítica formulada e imposta pelo novo secretário-geral como forma de
controlar a burocracia e manter a defensiva contra o agrupamento stalinista “anti-partido”,
com quem concorre pelo poder. Ao contrário do que se afirma em Padeniye Berlina, Moscou
foi bombardeada. Em Ballada o soldati (Balada do soldado) de Grigori Chukhrai, de 1959,
são retratados casos de corrupção e suborno. Em Letyat juravli (Quando voam as cegonhas),
de Mikhail Kalatozov, de 1957, o filho de um burocrata usa sua rede de contatos para fugir da
convocação e se interiorizar na Sibéria com levas de fugitivos. Não há nomes e casos reais,
mas sim dramas coletivos. A privação no front militar, a penúria no front doméstico, a perda
da família e da infância na guerra em Ivanovo Detstvo (A infância de Ivan), de 1962, a
situação dos prisioneiros de guerra em Sudba Cheloveka (O destino de um homem), de Sergei
Bondarchuk, de 1959, heroicizados, mas que sob Stalin eram tidos como covardes.
Sob Brejnev ocorreu um gradual fechamento da liberdade artística, de informação, e o
processo da construção da imagem do novo líder. Os cineastas que desejassem obter a verba
governamental precisavam aderir à situação. Assim, na série de cinco filmes Osvobozhdenie,
de Yuri Ozerov, produzida entre 1967 e 1971, pode-se perceber essa lenta modificação do
ambiente cinematográfico. A figura de Stalin é tratada de forma mais amena com o passar do
tempo, juntamente com sua reabilitação política parcial, mas nunca completada pelo judiciário
soviético, e de um papel contraditório durante toda a série. Se nos primeiros filmes ele
aparece em certos momentos em conflito latente com Zhukov e um empecilho para a
condução profissional do teatro de guerra, e a recusa de trocar seu filho Yakov feito cativo
durante a invasão nazista por território possa ter um tom ao mesmo tempo de despendimento e
de crueldade, nos últimos filmes Stalin acelera o fim da guerra com a imposição do ataque à
Berlim e a não concretização de um ataque pela retaguarda das tropas nazistas encantoadas na
Pomerânia. Procura-se um equilíbrio entre a história diplomática e dos encontros das
lideranças dos países aliados, a dos generais e das táticas de guerra e a de uma fictícia divisão
da 1ª Frente Ucraína, a história dos soldados e dos oficiais comuns – um leque bem mais
variado do que se fazia no Ocidente, como o contemporâneo O mais longo dos dias. É
marcante a reabilitação de Zhukov, após a queda de Kruschev, a ponto de o diretor poder se
declarar abertamente um fã do marechal que viveu no ostracismo sob Stalin e a maior parte do
governo de Kruschev1. O papel protagonista do Partido Comunista, confirmado na
Constituição de 1977, é reforçado pela chamada de seus membros dentro do batalhão para
missões suicidas.
Na série de quatro filmes produzidos para a televisão estatal Soldaty Svobody
(Soldados da Liberdade), de 1977, e também dirigida por Ozerov, se dá a retomada do culto à
personalidade, que em um regime não-socialista talvez não recebesse modelos tão sistêmicos,
mas sim como algo natural da vida política. Brejnev, que serviu como comissário político
num front secundário da Segunda Guerra e que desperta dúvidas entre os pesquisadores da
veracidade dos episódios em que entrou em ação efetiva (VOLKOGONOV, 2008), é retratado
como importante líder militar (o que servia de reforço para as suposições de que Zhukov teria
pedido a ele conselhos), como também o são vários líderes de países socialistas aliados à
URSS que atuaram de alguma forma no conflito. Pode-se perguntar quanto o cinema ou a
propaganda personalista de Brejnev (como as quatro medalhas de Herói da União Soviética
penduradas em sua lapela, a mais alta condecoração soviética) contribuíram para uma
reestalinização da sociedade soviética. Os registros do anedotário popular (anekdot) sobre o
secretário-geral não são muito abonadores.
Um tema tabu para o cinema soviético acostumado a retratar as grandes vitórias, se dá
com Oni srazhalis za rodinu (Eles lutaram por seu país), de Sergei Bondarchuk, de 1975,
1
Zhukov, Kruschev e boa parte do partido se uniram contra a tentativa de Béria e de sua KGB se entronizarem
no poder como sucessores de Stalin. Béria foi preso e executado. Porém, poucos anos depois, Zhukov levou a
desestalinização longe demais, ao falar de crimes cometidos por gente de fora da corte de Stalin. Isso atingia o
próprio Kruschev, envolvido com a coletivização na Ucrânia nos anos 30. Koniev, que era um desafeto de
Zhukov desde o momento em que Stalin pôs os dois generais em competição pelo prêmio da captura de Berlim,
ficou com sua cadeira, enquanto Zhukov teve de abandonar a vida pública.
ambientado no ano de 1942, das grandes retiradas no Front Sul até às margens do Volga.
Exércitos sem equipamentos, dotados apenas de coragem contra um inimigo muito bem
aparelhado, não conseguem melhores resultados do que o atraso do avanço nazista – por mais
que as baixas infringidas aos alemães sejam irreais. O filme termina com o início da batalha
de Stalingrado e a redenção destes mesmos soldados. A atuação feminina no front também é
lembrada com A zori zdes tikhie (Auroras nascem tranquilas), do diretor Stanislav Rostotsky,
de 1972. O esforço coletivo volta à pauta com Goryachiy Sneg (Neve Ardente), de Gavriil
Egiazarov, de 1974 ou o meio drama meio documentário com cenas reais Torpedonostsy
(Bombardeiros infernais) de Semyon Aranovich, de 1983.
1985 foi um ano diferente para o cinema bélico soviético. Em Idi i Smotri (Vá e veja),
Elem Klimov usou um tom de um pacifismo destoante da tradicional versão soviética e
mostra partisans agindo na fronteira da legalidade. Para as comemorações dos 40 anos do fim
da Grande Guerra Patriótica o Estado encomendou novamente para Ozerov, o filme Bitva za
Moskvu (Batalha de Moscou), que pretende retratar os primeiros meses da guerra. Caso tenha
chegado aos cinemas concomitantemente à ascensão de Gorbachev ao poder, foi produzido
antes, ainda sob Andropov e Chernenko. Ele exprime o descontentamento da intelligentsia
soviética com a política de austeridade e a situação de estagnação econômica prolongada
através da crítica à história e uma subentendida reivindicação da abertura dos arquivos e de
uma revisão da história do país. É mais um capítulo da efervescência dos grupos médios
compostos por artistas, cineastas e cientistas sociais, políticos e econômicos, que já se
manifestava abertamente em congressos e revistas nos últimos anos. O Tratado de NãoAgressão Ribbentrop-Molotov é mencionado. Stalin passa claramente para o papel de vilão,
um tirano não muito diferente de Hitler, fraco em momentos decisivos, como sua reclusão
durante o ataque ou doença durante os momentos decisivos em Leningrado. Que mantém
generais incompetentes e se desfaz daqueles que ao menos haviam ganho experiência na
condução da luta. Que elabora metas inalcançáveis, como contra-atacar quando as forças
seriam suficientes apenas para resistir. O sistema é repressivo e induz ao suicídio dos oficiais
caídos em desgraça, como o general Pavlov (que foi de fato fuzilado). O centralismo é
tremendamente moroso e ineficiente. Quando as ordens chegam a situação já mudou
completamente. Os recursos necessários para a luta não são liberados a tempo pela burocracia,
ou atrasam os produtos essenciais, como o combustível para os tanques que precisam adentrar
no campo de batalha. O desconhecimento da realidade longínqua das fronteiras (e a limitação
intelectual de Stalin e da cúpula da inteligência) impede que as informações coletadas por
grupos de espiões sobre o ataque iminente recebam crédito. O abismo entre a linguagem e os
fatos fica patente com os relatórios que chegam a Moscou, que mais desinformam que
fornecem dados para a condução da campanha, que trazem o que o centro deseja ouvir e não o
que realmente se passa.
Zhukov se torna o herói que salva outros generais dos tribunais de guerra (como o
futuramente desafeto Koniev) ou da deposição (como Timoshenko) ou que marcha pelas ruas
da recém retomada Viazma, ou que ainda previra nos jogos de guerra meses antes o
comportamento da ofensiva alemã. Stalin ainda mantém a imagem contraditória ao sacrificar
a vida de todo um exército em Kiev ao se negar a ordenar a recomendação técnica de Zhukov
de se retirar para posições mais defensáveis e abandonar Kiev aos alemães, mas ao mesmo
tempo afirmar que, mesmo que as tropas fossem cercadas e destruídas, ainda assim esse
sacrifício forneceria tempo necessário para o país reorganizar sua defesa e salvar o ponto
nevrálgico da nação, Moscou. Isso não deixa de ser uma emanação do chauvinismo e do
nacionalismo russo que cresciam no cinema soviético desde os tempos de Brejnev
(LAWTON, 1992). Ozerov tentaria corrigir isso com seu filme seguinte, Stalingrado, de
1990, em que mostra as diferentes nacionalidades da URSS lutando juntamente, como nas
cenas da “Casa de Pavlov”. Foi o último grande filme sobre a Segunda Guerra feito na URSS.
Para manter seu estilo de superprodução, num momento em que a economia soviética ruía sob
o peso do desmonte do sistema de planificação centralizada, Ozerov teve que buscar
financiamento externo, em Hollywood, que impôs o uso de atores americanos em papéischave, como o do general Chuikov. A produção teve que se adaptar a “la nueva
comercialización de tipo occidental proclamada por el cine de la perestroika y la influencia
del mercado” (JAMESON, 1992, 113). O franco-atirador, baseado em Vassili Zaitsev, era um
desertor quase fuzilado pela NKVD no cumprimento dos decretos de Stalin. O velho capitão
da balsa de transporte de tropas no Volga se lamentava de ser difícil tirar forças para suportar
certas situações depois que Deus foi abolido. O filme tem cenas de nudez coletiva. Um
interessante coquetel do que o cinema produzia nos tempos da Perestroika.
A revisão história avançou profundamente. Stalin é mais megalomaníaco e cruel que
Hitler. Kruschev foi o responsável pela derrota na Segunda Batalha de Karkov, que significou
a exposição da desguarnecida Stalingrado ao avanço inimigo, ao não ordenar a retirada
recomendada por Zhukov. Os privilégios das pessoas com ligações dentro do aparato são
evidenciados, como na remoção do filho de Krushev por avião para Moscou para se tratar. O
mito ainda se confunde com a realidade histórica, ao aparecer o filho de Kruschev como
responsável por um homicídio durante uma brincadeira com um revolver carregado, e não
Vassili Stalin. O sistema cruel e líderes desumanos constituem uma teia de ódios e rivalidade
destrutiva. Stalin sente inveja de Zhukov e o rebaixa. Kruschev desenvolve animosidade
suficiente contra Stalin que vêm a revelar seus crimes. Zhukov, seu aliado de primeira hora, é
confinado ao esquecimento logo em seguida. Béria, chefe da NKVD, uma figura inexistente
nos demais filmes, faz sua aparição no círculo mais íntimo a Stalin. O pedido de troca de
Yakov por Von Paulus é negado por Stalin não por patriotismo ou abnegação, mas por
abominar o próprio filho – ao mesmo tempo em que o narrador comenta as três décadas que a
URSS ficou sob o controle deste homem.
Agora o centralismo e o planejamento não eram culpáveis apenas pela má condução
da segurança do Estado, provocando desorganização, confusão e ineficiência, mas também
pela escassez de produtos para a população civil. As recrutas em Stalingrado pedem
permissão para usar seus sapatos civis invés dos coturnos militares, pois os que foram
entregues eram masculinos. Ao abandonarem seus postos na artilharia, deixam para trás
também seus sapatos civis. Mesmo estes não se ajustavam, pela baixa qualidade na produção
e a inexistência de relações de livre mercado. O consumidor era tiranizado pelo produtor,
obrigado a usar o que lhe caísse em mãos e não do que precisava de fato.
O movimento da sociedade contra o feminismo de tipo socialista, que tornava iguais
homens e mulheres até na linha de frente, e que em muitos setores possuía até o desejo do
retorno da mulher à vida doméstica (coisa que transparece até em alguns discursos de
Gorbachev por uma conduta mais feminina e familiar) também é explicito no filme. Do caos
das recrutas tomando banho à morte fácil nos postos de artilharia, ou a incapacidade para
enfrentar o inimigo após vê-lo pela lente ótica do rifle de franco-atirador ao sentimentalismo
com resultados fatais. Da mesma forma que Ozerov participou da construção dos mitos em
torno de Brejnev, ele também abraçou o ideário da Perestroika e da nova liderança no
Kremlin.
As relações entre os aliados e da URSS com os países libertados por ela na Europa
Oriental e Central mudaram menos com o tempo. Em formas gerais, o tory Churchill é um
aliado traiçoeiro, que permitiu que empresários ingleses fornecessem tungstênico para o
exército alemão (Padeniye Berlina) ou que pretendia abrir a segunda frente nos Balcãs, como
forma de cercear a libertação dos povos eslavos – por mãos soviéticas (Stalingradskaya i
Bitva). Ele era o principal empecilho para as relações com o mais equilibrado Roosevelt, de
fato interessado na contenção do fascismo pela União Soviética, mas sem uma atuação muito
mais concreta do que essa. Os aliados ocidentais teriam permitido a fuga de nazistas
criminosos de guerra para suas áreas de controle, e essa não era uma acusação presente apenas
nos filmes da época de Stalin (Vstrecha na Elbe ou Encontro no Elba, de Grigori Aleksandrov
e Aleksei Utkin, 1949). Os esforços militares dos aliados ocidentais são comparados com o
dos soviéticos e, segundo alguns autores, são minimizados. Os filmes ressaltam que a segunda
frente, prevista para ser aberta em 1942, só veio de fato em 1944. Durante todo esse tempo,
abrir a segunda frente era o Exército Vermelho abrir os enlatados de carne de porco enviadas
pelos contratos de Lend-Lease pelos Estados Unidos (Osvobozhdenie). Mesmo em 1985,
ressaltam que a ajuda americana só veio depois que a própria União Soviética se mostrou
capaz de sobreviver sozinha à invasão alemã. O pedido de Stalin, por ajuda, logo em seguida
à invasão em junho, foi condicionado a estabilização do fronte, que só se deu em novembro
(Bitva za Moskvu). Um julgamento mais razoável da produção cinematográfica pós-Stalin não
encontraria grandes diferenças na produção americana, mesmo esta não sendo considerada
uma fábrica ou centro difusor de mitologias.
Uma representação menos consistente, entretanto, dá-se nas relações da URSS com os
territórios libertados. No caso polonês não há qualquer menção ao governo exilado de
Sikorsky em Londres e do levante de Varsóvia em 1944. Apenas o Exército Popular Polonês,
de cunho socialista, é mencionado e tem atuação destacada (Osvobozhdenie). Mas dever-se-ia
levar em conta que mesmo a produção historiográfica ocidental comete o erro contrário,
engrandecendo a atuação dos partidários de Sikorsky e apagando da história a existência dos
combatentes simpatizantes ou subordinados aos grupos socialistas. O pan-eslavismo se dá
desde as conversas e as aproximações linguísticas entre oficiais soviéticos e poloneses ou
soldados russos e a população búlgara (Geroite na Shipka ou Heróis de Shipka, de 1955). A
onda de estupros e saques no avanço sobre a Alemanha recebeu outra versão em
Osvobozhdenie, com as cenas de flerte entre o tanquista soviético e a filha da família alemã
que o recebe em casa e o convida para tomar café. Ou ainda a brava jornada de soldados
soviéticos para levar uma mulher alemã grávida a um hospital, em Mir vkhodyashchemu (Paz
a quem entra, de Aleksandr Alove e Vladimir Naumov, de 1961). Mas não é algo
essencialmente diferente do que o ocidente produziu mesmo recentemente, como as relações
consentidas entre soldados americanos e alemãs em Band of Brothers, porém bem mais
realistas em Julgamento em Nuremberg, de 1961, com as cenas sugeridas de prostituição em
troca de alimento no cenário da Alemanha devastada do pós-guerra.
A progressiva desideologização da sociedade soviética e das amarras que ligavam os
cineastas da intelligentsia aos ditames da liderança política jogou por terra qualquer
adaptabilidade honesta do conceito de totalitarismo criado no Ocidente e imposto à análise do
regime. Não se deve descartar, porém, que várias de suas características eram aplicáveis à
realidade durante o governo de Stalin. Mas, mesmo nesse período, o conceito não se aplica
inteiramente. Não tanto pelos objetivos do Estado, mas pelos resultados concretos alcançados
diante da população. Novos heróis nacionais foram criados ainda nos anos 30 com o auxílio
do cinema, como a glorificação da resistência até a morte de Chapaev, ou antigos heróis
czaristas foram resgatados no pós-guerra, como os marechais Kutuzov e Suvorov, ou o
almirante Ushakov, retratados em filmes entre 1945 e 1953, além de novos serem
entronizados no panteão da história oficial, como forma de ressuscitar antigas tradições,
simbologias e hierarquias extintas nas forças armadas com a Revolução de Outubro. Com a
desestalinização parte dessa memória oficial foi destruída, revista ou desacreditada também
no cinema, que, na época, apresentou poucos filmes que se pode considerar como
monumentos à recordação da guerra. O conservadorismo crescente, inclusive um
renascimento do nacionalismo russo, produziu uma nova inflexão na percepção do cinema
sobre a atuação do país na Grande Guerra Patriótica, movimento que teve um final abrupto
com a Perestroika e a Glasnost, seu novo formato de produção e os temas que geravam
inquietação na sociedade no momento da abertura dos arquivos secretos. Para o povo
soviético, a principal memória da guerra não deixou de ser retratada no cinema e na história
oficiais: os enormes sacrifícios e sofrimentos passados pela população – apesar de
tremendamente mais idealizados.
REFERÊNCIAS
Fontes:
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Chiaureli, Mikheil. Padeniye Berlina (151 minutos) Mosfilm: 1950.
Chukhrai, Grigori. Ballada o soldati (88 minutos) Mosfilm: 1959.
Egiazarov, Gavriil. Goryachiy Sneg (105 minutos) Mosfilm: 1974.
Kalatozov, Mikhail. Letyat juravli (97 minutos) Mosfilm: 1957.
Klimov, Elem. Idi i Smotri (136 minutos) Mosfilm: 1985.
Kott, Alexander. Brestskaya krepost (138 minutos) Belarusfilm: 2010.
Ozerov, Yuri. Bitva za Moskvu (358 minutos) Mosfilm: 1985.
___ ___ Osvobozhdenie. (470 minutos) Mosfilm: 1969.
___ ___ Stalingrad (196 minutos) Mosfilm: 1989.
___ ___ Soldaty svobody (599 minutos) Mosfilm: 1977.
Petrov, Vladimir. Stalingradskaya bitva i (198 minutos) Mosfilm: 1948.
Rostotsky, Stanislav. A zori zdes tikhie (188 minutos) Gorky Film Studios: 1972.
Tarkovsky, Andrei. Ivanovo Detstvo (95 minutos) Mosfilm: 1963.
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