UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – CDS "O DESCOMPASSO E O PIROSCÓPIO: Uma análise dos conflitos socioambientais do projeto da Usina Hidrelétrica Belo Monte" Ivan Dutra Faria Orientador: Prof. Dr. Paulo Gonçalves Egler Tese de Doutorado Brasília-DF: Novembro/ 2004 ii UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL "O Descompasso e O Piroscópio: Uma análise dos conflitos socioambientais do projeto da Usina Hidrelétrica Belo Monte" Ivan Dutra Faria Tese de Doutorado submetida ao Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Grau de Doutor em Desenvolvimento Sustentável, área de concentração em Política e Gestão Ambiental. Aprovado por: _____________________________________ Paulo César Gonçalves Egler, PhD. (Orientador) _____________________________________ Doris A. Villamizar Sayago, DSc. (Examinador Interno) ____________________________________ José Augusto Leitão Drummond, DSc. (Examinador Interno) ____________________________________ Alessandra Magrini, DSc. (Examinador Externo) ____________________________________ Brasilmar Ferreira Nunes, DSc. (Examinador Externo) iii FARIA, IVAN DUTRA. "O Descompasso e O Piroscópio: Uma análise dos conflitos socioambientais do projeto da Usina Hidrelétrica Belo Monte", 390p, 297 mm, (UnB-CDS, Doutorado, Política e Gestão Ambiental, 2004). Tese de Doutorado – Universidade de Brasília. Centro de Desenvolvimento Sustentável. 1. Conflitos 2. Setor Elétrico e Meio Ambiente 3.Amazônia 4. Usina Hidrelétrica Belo Monte I. UnB-CDS II. Título (série) É concedida à Universidade de Brasília permissão para reproduzir cópias desta tese e emprestar ou vender tais cópias somente para propósitos acadêmicos e científicos. O autor reserva outros direitos de publicação e nenhuma parte desta tese de doutorado pode ser reproduzida sem a autorização por escrito do autor. ______________________________ Ivan Dutra Faria iv DEDICATÓRIA Este é o resultado de um trabalho coletivo. Nunca estive só. À minha esposa, Muriel, e aos meus filhos, Evaristo, Flávia e Maria Vitória, que nunca me deixaram sofrer sozinho, nessa desgastante caminhada, dedico, carinhosamente, esta tese. Ao meu pai, João, à minha mãe, Ilma e à minha irmã, Fátima, com quem sempre poderei contar, mesmo não estando mais a minha mãe entre nós, nessa vida. Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Gonçalves Egler, pela maneira solidária, competente e digna com que se portou, dando uma dimensão exata à palavra orientação. Ao meu amigo Edmundo Antônio Taveira Pereira, com quem tive a honra de começar a trajetória que deu origem a esta tese e a quem serei eternamente grato pelas incontáveis demonstrações de amizade verdadeira. v AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, que é a quem se deve agradecer nessa hora, pela saúde e pela proteção contra os obstáculos surgidos ao longo do caminho. vi RESUMO Este trabalho investiga os conflitos socioambientais de projetos hidrelétricos na Amazônia. Para tanto, foram utilizados como marcos referenciais os modelos de Georg Simmel e de Kai N.Lee para análise de conflitos e para a busca de uma Aprendizagem Social, respectivamente. O foco principal da pesquisa é colocado sobre o projeto da usina hidrelétrica Belo Monte, no rio Xingu, sudoeste do estado do Pará. O local do barramento previsto se situa próximo às cidades de Altamira e Vitória do Xingu, onde se deram os eventos que compuseram a cena na qual os atores mais relevantes relacionados com o projeto atuaram. Os conflitos socioambientais do setor elétrico na Amazônia são investigados por meio da análise da atuação da Eletronorte na região, em especial em relação ao projeto de Belo Monte. Essa análise privilegia os aspectos de comunicação com a sociedade, de democratização da informação, de negociação dos empreendimentos e da mediação dos conflitos. vii ABSTRACT This work investigates the social and environmental conflicts of hydroelectric projects in Amazon. Therefore, the models of Georg Simmel and Kai N.Lee were used as reference to the conflict analyses, as well as to the search for a Social Learning, respectively. The research’s main focus is on the project of Belo Monte Hydroelectric Power Plant, in Xingu river, southeast of the State of Pará. The foreseen locality of the dam lies next to cities of Altamira and Vitoria do Xingu, where the events that composed the scene took place, in which the most relevant actors related to the project performed. The electric sector’s social and environmental conflicts in Amazon are analyzed through the analyses on Eletronorte’s performance in the region, specially regarding the project of Belo Monte. This analyses gives privilege to the aspects of communication with the society, democratization of information, negotiation on the projects and the mediation of conflicts. viii SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................1 CAPÍTULO 1: TRAÇANDO RUMOS......................................................................13 1.1 Introdução....................................................................................................................13 1.2 Visão de mundo...........................................................................................................15 1.3 A escolha Metodológica..............................................................................................26 1.3.1 Metodologia da pesquisa.............................................................................26 1.3.2 Modelos adotados na pesquisa....................................................................34 1.4 Apresentação dos métodos adotados na pesquisa.......................................................55 1.5 Conclusão....................................................................................................................64 CAPÍTULO 2: A VALIDAÇÃO DA INFORMAÇÃO.........................................66 2.1. Introdução..................................................................................................................66 2.2 Informação e escolha..................................................................................................67 2.3 Informação e controle.................................................................................................71 2.3.1 Informação sobre a sociedade ou para a sociedade?..................................71 2.4 A informação e a legislação ambiental.......................................................................77 2.5. Informação e descontrole..........................................................................................86 2.5.1 O caso Chernobyl......................................................................................86 2.5.2 O césio de Goiânia e o reator de Angra dos Reis......................................88 ix 2.5.3 Mídia e Internet ........................................................................................90 2.5.4 Na Academia: o caso Sokal.......................................................................95 2.6 Conclusão ...............................................................................................................107 CAPÍTULO 3: AMAZÔNIA, AMAZÔNIAS!................................................108 3.1 Introdução...............................................................................................................108 3.2 Uma visão particular das questões amazônicas......................................................111 3.3. Visões das Amazônias...........................................................................................125 3.3.1 Buscando exemplo de visões territoriais................................................125 3.3.2 Buscando exemplos de visões de usos florestais...................................134 3.3.3 Buscando exemplos de visões conspiratórias........................................148 3.3.4 Buscando exemplos de visões de Estado...............................................162 3.3.5 Buscando exemplos de visões estratégicas............................................182 3.4 Conclusão...............................................................................................................203 CAPÍTULO 4: SETOR ELÉTRICO, MEIO AMBIENTE E AMAZÔNIA, EM UMA INTERSEÇÃO CONFLITADA....................................................................205 4.1. Introdução...........................................................................................................205 4.2 Os conflitos do setor elétrico...............................................................................206 4.3 Os conflitos no setor ambiental............................................................................233 4.4 Os conflitos na Eletronorte..................................................................................254 4.4.1 Distinguindo os conflitos.....................................................................254 4.4.2 Os conflitos de Tucuruí.......................................................................262 4.4.3 Os conflitos em Balbina, Samuel e Manso.........................................272 x 4.5 Conclusão............................................................................................................279 CAPÍTULO 5: DESCOMPASSO E PIROSCÓPIO (UMA HISTÓRIA DE CONFLITOS EMERGE EM BELO MONTE)...281 5.1 Introdução.........................................................................................................281 5.2 O CHE Belo Monte e a região de Altamira......................................................283 5.3 O descompasso.................................................................................................316 5.4 O Piroscópio ....................................................................................................329 5.5 Conclusão.........................................................................................................365 CONCLUSÃO......................................................................................................365 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANEXOS xi LISTA DE QUADROS, FIGURAS E TABELAS Quadro 3.1: Anexo B do Protocolo de Quioto (p.135) Figura 3.1: Mapa não-validado da Amazônia (p.151) Figura 3.2: Mapa não-validado do Brasil (p.151) Box 4.1: Anedota sobre o Ibama (p.243) Quadro 4.1: Áreas protegidas associadas à UHE Balbina (p.275) Figura 5.1: Localização do Projeto Belo Monte (p.286) Figura 5.2: Imagem de satélite da Volta Grande do Xingu (p.287) Quadro 5.1 Dados principais do CHE Belo Monte (p.293) Tabela 5.2: Pesquisa de opinião sobre o projeto do CHE Belo Monte (p.359) xii LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS Aciapa: Associação Comercial, Industrial, Agrícola e Pastoril de Altamira. Aneel: Agência Nacional de Energia Elétrica Arpa: Áreas protegidas da Amazônia BID: Banco Interamericano de Desenvolvimento – Bird: Banco Mundial CCMA: Comitê Consultivo de Meio Ambiente da Eletrobrás Cesp: Companhia Energética de São Paulo S.A. Cemig: Centrais Elétricas de Minas Gerais S.A. CEEE: Companhia Estadual de Energia Elétrica S.A. Cepel: Centro de Pesquisas de Energia Elétrica Chesf: Centrais Hidrelétricas do São do São Francisco S.A. CMB: Comissão Mundial de Grandes Barragens CNEC: Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores Comase: Comitê Coordenador das Atividades de Meio Ambiente do Setor Elétrico CNPE: Conselho Nacional de Política Energética Conama: Conselho Nacional de Meio Ambiente Dnaee: Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica EIA: Estudo de Impacto Ambiental Eletrobrás: Centrais Elétricas Brasileiras S.A. Eletronorte: Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. Eletrosul: Centrais Elétricas do Sul do Brasil S.A. Furnas: Centrais Elétricas de Furnas S.A. GCPS: Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas Elétricos GCOI: Grupo Coordenador para Operação Interligada GTA: Grupo de Trabalho da Amazônia Ibama: Instituto. Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis Incra: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária Inpe: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais LP: Licença Provisória xiii LI: Licença de Instalação LO: Licença de Operação MAB: Movimento dos Atingidos por Barragens MCH: Micro Central Hidrelétrica MDTX: Movimento de Defesa da Transamazônica e Xingu MMA: Ministério do Meio Ambiente MME: Ministério de Minas e Energias MPF: Ministério Público Federal MST: Movimento dos Sem Terras ONG: Organização não-governamental ONS: Operador Nacional do Sistema PAS: Programa Amazônia Sustentável PCH: Pequena Central Hidrelétrica PDMA: Plano Diretor de Meio Ambiente da Eletrobrás PNMA: Política Nacional de Meio Ambiente PPA: Plano Plurianual Rima: Relatório de Impacto Ambiental Sectam: Secretaria Estadual de Ciência,Tecnologia e Meio Ambiente do Estado do Pará Sema: Secretaria Especial de Meio Ambiente Sisnama: Sistema Nacional de Meio Ambiente UFPa: Universidade Federal do Pará UHE: Usina Hidrelétrica UTE: Usina Termelétrica WCD: World Commission of Dams 1 INTRODUÇÃO O debate em torno da construção de usinas hidrelétricas na Região Amazônica tem-se estabelecido, ao longo das últimas décadas, de maneira intensa e abrangente. Um conjunto numeroso de variáveis e de atores sociais – que se inserem na polêmica criada – reveste a questão central de um grau de complexidade crescente. Projetos dessa magnitude provocam, invariavelmente, posicionamentos radicais, opiniões exacerbadas, tensões e choque de interesses. Os conflitos, portanto, estarão necessariamente presentes em cada uma das etapas do processo de implantação de uma usina, mesmo que em diferentes magnitudes. As experiências anteriores de intervenções na realidade amazônica permitem antever aqueles conflitos que provavelmente emergirão. Os estudos sobre a compreensão das dinâmicas social e econômica regionais, por sua vez, possibilitam confirmar algumas daquelas previsões e considerar outras, a partir da identificação adequada dos atores, sejam estes locais ou externos. Entretanto, no inconsciente coletivo da maioria dos atores envolvidos, existe a convicção de que os conflitos serão resolvidos, necessariamente, a favor do empreendedor, desconsiderando as soluções que contemplem positivamente o maior número possível de atores com a maior amplitude possível para os seus interesses. Trata-se de um fatalismo que só se justifica, se é que isto é razoável, quando se atribui à possível construção de uma hidrelétrica na Amazônia um conjunto de características de um mal que deve ser evitado e, neste caso, a natureza do conflito não permite o diálogo, reduzindo-se a um improdutivo choque de convicções. 2 A história do setor elétrico no Brasil evidencia contrastes entre os benefícios advindos dos projetos hidrelétricos e os custos sociais e ambientais de sua implantação. Em geral, o território de ocorrência dos benefícios não tem sido o mesmo daquele onde incidem os custos. Em especial na Amazônia, as hidrelétricas geram controvérsias - em escala planetária – quanto à idéia de um desenvolvimento sustentado para a região, pois os interesses e anseios das populações favorecidas pelos benefícios não são os mesmos das populações impactadas pelos custos. Assim, criou-se um processo gradual de resistência aos aproveitamentos estudados pela Eletrobrás1. Enquanto isso, a cultura do setor impulsionou suas ações no sentido da criação de enclaves que atuaram como um catalisador para a oposição, sempre crescente, aos novos empreendimentos. O contraste criado pelas condições sócio-econômicas dos habitantes da região contrapostas àquelas oferecidas aos funcionários das usinas gerou um quadro de reação, centrado na discussão dos verdadeiros benefícios criados e os seus reais destinatários. Em outro front, os embates de natureza ambiental se multiplicaram. As pressões exercidas por parte de organismos financiadores internacionais, como o Banco Mundial, resultaram, no final da década de 1980, em modificações significativas em ambos os grupos antagônicos. De um lado, os defensores da causa ambiental, tanto conservacionistas quanto preservacionistas, encontraram recursos humanos e materiais para sua cruzada. De outra parte, empresas do setor elétrico, sendo companhias estatais profundamente dependentes de capital externo, foram obrigadas, sob pena de não terem acesso aos recursos necessários aos seus projetos, a montar, em ritmo acelerado, departamentos, divisões e assessorias voltados para a gestão, para o planejamento e para o monitoramento ambiental. 1 Empresa estatal criada em 1961 com a função de ser a holding das empresas do Setor Elétrico Brasileiro 3 Eis um quadro de análise extremamente instigante. Surgem recursos imprescindíveis para a elaboração de estudos ambientais que são destinados tanto a um lado quanto a outro do conflito. As estatais contratam um conjunto significativo de técnicos e pesquisadores oriundos de universidades e institutos de pesquisa por meio de uma exceção, criada no Governo José Sarney (1985 a 1990), à proibição de contratação de pessoal sem concurso para o setor público. Essa exceção é imposta como condição para o vultuoso empréstimo ao Setor Elétrico feito pelo Banco Mundial em 1987. Por outro lado, a Secretaria Especial de Meio Ambiente - Sema, a Superintendência de Desenvolvimento da Borracha - Sudhevea, a Superintendência de Desenvolvimento da Pesca – Sudepe - e o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal - IBDF são fundidos, a toque de caixa, em um único órgão ambiental da União, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama2. Esse órgão recebe, a partir de então uma demanda crescente por fiscalização e licenciamento ambiental, uma demanda para a qual não tinha – e até hoje não tem – estrutura, seja em termos quantitativos do pessoal qualificado, seja em termos de recursos materiais. Tendo como palco a Amazônia, tem início um rico processo de discussão em torno do desenvolvimento sustentável da região que, no entanto, apresenta dois pecados originais: o açodamento dos atores envolvidos, provocado pelo grande número de projetos a serem estudados nos inventários hidrelétricos da Eletrobrás e a falta de sistematização do conhecimento (e até mesmo a sua inexistência) de intervenções relacionadas à construção de hidrelétricas em florestas tropicais úmidas. Retornando à época do início do projeto da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, em 1973, é significativo perceber que neste momento só existia no Estado do Pará a usina de CuruáUna, construída pelas Centrais Elétricas do Pará – Celpa, em local próximo a Santarém. Este é um empreendimento de pequeno porte, sobre o qual a comunidade científica ainda 2 A criação do Ibama foi uma das ações que integravam um conjunto de medidas lançadas pelo Governo do Presidente José Sarney em 1989 e que recebeu o rótulo de Projeto Nossa Natureza. 4 não havia se debruçado para obter um diagnóstico que permitisse obter informações para novos projetos. Nesse contexto, uma empresa estatal, a Eletronorte, começa o processo de consolidação de sua área de atuação a partir do início operação de Tucuruí, em um quadro político-institucional construído e controlado por um regime de exceção. Predomina, à época, a mentalidade tecnocrática e o modelo supostamente exportador que sempre caracterizou a economia brasileira, dando ao projeto características de fornecedor de carga para as indústrias eletrointensivas a serem instaladas no Pará e no Maranhão. A dimensão sócio-ambiental do empreendimento é então relegada a um plano secundário e a correlação de forças no cenário político-institucional brasileiro é mais do que suficiente para anular qualquer reação à implantação do projeto com suas características originais. Mais ainda, a legislação ambiental brasileira ainda se encontrava dispersa, sendo que o processo de licenciamento ambiental não estava ainda devidamente estruturado. Tucuruí entrou em operação no ano de 1984, apenas três anos após da Lei 6938/813 ser aprovada no Congresso Nacional. Na outra trincheira, um movimento ambientalista ainda desarticulado e voluntarista cinge-se a denúncias esparsas e localizadas que pouco ou nada repercutiam em um cenário de apoio popular à idéia de “Brasil Grande”, com projetos como o da Rodovia Transamazônica e da expansão da fronteira agrícola. A preocupação com o futuro da Amazônia passa a ser tema prioritário para o embate entre setores nacionalistas brasileiros e uma das facções que compunham a sustentação do regime militar, denominada pelos seus adversários como "entreguista". Com isso, a Eletronorte e, em especial, um megaprojeto como o de Tucuruí, passam a simbolizar para 3 A Lei 6.938 foi aprovada em agosto de 1981, definindo o que se convencionou chamar de a Política Nacional do Meio Ambiente. 5 muitos o avanço da ditadura sobre a floresta amazônica, esta agora vista como ícone da resistência nacionalista. O cenário internacional, por sua vez, se apresenta com a incorporação de uma retórica materializada na Conferência de Estocolmo (1972) e dos avanços da legislação ambiental nos países centrais como o National Environmental Policy Act (NEPA), nos Estados Unidos. São estabelecidos indicadores e diretrizes ambientais, adequados a ecossistemas característicos de países do Hemisfério Norte. E esses são os únicos elementos disponíveis para embasar os recém-surgidos e combativos ambientalistas brasileiros. Instituições de pesquisa do porte do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa e o Museu Paraense Emílio Goeldi são chamadas a intervir na avaliação dos possíveis impactos ambientais de Tucuruí, agora já em fase de operação. A Eletronorte, por sua vez, passa a firmar convênios e contratar consultorias com a finalidade de atender à legislação ambiental, nascente a partir da citada Lei 6938/81 que, apesar de elaborada em tempos de exceção – no que diz respeito às liberdades democráticas e aos direitos do cidadão – incorpora significativos avanços no trato das questões ambientais. Influenciada positivamente por textos legais de países da Europa e América do Norte, a lei estabelece um processo de licenciamento ambiental que, para empreendimentos em operação como a UHE Tucuruí, determina procedimentos diferenciados daqueles previstos para novos projetos. Ainda assim, a usina sofre pesadas críticas e é objeto de previsões extremamente pessimistas quanto ao seu futuro, sobretudo no que se refere aos impactos ambientais associados. Algumas questões naturalmente surgem a partir desse ponto e foram consideradas para esta pesquisa: Após tantos anos de operação, confirmam-se as previsões feitas à época? É possível confirmá-las ou desmenti-las com os dados existentes?Hidrelétricas na Amazônia são um mal necessário ou, por princípio, um mal a ser evitado a qualquer preço? 6 Uma estatal do setor elétrico deve ser o agente de desenvolvimento principal da região amazônica ou esse papel cabe hoje à iniciativa privada? Um modelo de privatização do setor contribuiria para a correção das distorções ou para o seu agravamento? A Eletronorte tem desempenhado, ao longo das últimas décadas, um papel relevante na consolidação de pólos de desenvolvimento regionais, percebido pela extensa relação de pleitos dirigidos à empresa, muitos dos quais relacionados com temas marcadamente distintos daqueles de sua área de atuação? Trata-se de um conjunto de questões de grande relevância para a construção de um projeto nacional para o Brasil, na medida em que a interseção dos temas energia, meio ambiente e Amazônia se configura como um instigante desafio para o conceito de desenvolvimento sustentável. Cada uma delas mereceria uma tese para se obter uma resposta convincente. No entanto, no contexto deste trabalho, algumas das causas dos diversos conflitos associados a tal interseção devem ser buscadas em um contexto ainda mais amplo, no qual o direito à informação – historicamente prejudicado em países periféricos como o Brasil – é um componente de grande relevância. Há que se considerar não apenas a ausência de informações, mas também e principalmente a inoculação de falsas informações. No meio do fogo cerrado da Guerra Fria, fomos induzidos a acreditar em conspirações que nunca existiram, e impedidos de enxergar outras, reais e, muitas vezes, mais nocivas à segurança mundial. Isso nos leva a uma questão passível de descrição quase matemática: se na gestão ambiental a sociedade deve decidir então a sociedade tem que saber sobre o que vai decidir; então necessita de informações consistentes e claras sobre o que decidirá; então as informações devem ser provenientes de estudos consistentes; e então transmitidas em linguagem compreensível para a sociedade. 7 Portanto, falar em participação da sociedade na gestão e no planejamento ambiental só é possível se considerarmos modelos que contemplem formas de legitimidade, transparência e eficácia para o processo. Assim, a legitimidade das representações, a transparência das informações e a eficácia da gestão – e do planejamento – ambiental constituem um conjunto de três variáveis de grande importância para a conceituação e delimitação de um problema de pesquisa relacionado com intervenções em grandes ecossistemas. Desse modo, este trabalho se volta para análise da atuação do setor elétrico na Amazônia, dando ênfase aos mecanismos de interação com a sociedade, aos processos de negociação dos empreendimentos, às características dos conflitos criados e à sua mediação. Por isso mesmo, tornou-se necessário eleger um projeto que reunisse elementos significativos para a construção de um problema de pesquisa que trouxesse à luz as questões associadas a esses aspectos enfatizados. O projeto da usina hidrelétrica Belo Monte se mostra como portador de um conjunto de características exemplares para uma investigação dirigida a essa discussão. Mais adiante, serão descritas essas características. Neste ponto, é importante ressaltar que este trabalho procura analisar as causas e conseqüências daquele conflito, em uma busca da compreensão dos impasses surgidos ao longo do processo. Atualmente, estimula-se a participação da sociedade nos processos de tomada de decisão – uma verdadeira poção mágica para muitos. Instrumentos para essa participação já existem na legislação ambiental, tais como as audiências públicas e os relatórios de impacto ambiental. Todavia, a questão da transmissão de informações para o adequado funcionamento desses instrumentos permanece sem solução, provocando impasses e conflitos cujas causas se localizam, freqüentemente, em mecanismos ineficazes e ineficientes de comunicação social. Tal fato se torna especialmente relevante quando se analisa a interseção do setor elétrico com a Amazônia. 8 Uma investigação sobre as possíveis causas para os avanços e recuos no desenvolvimento sustentável da Amazônia certamente incorporará a análise da atuação do setor elétrico na região, diante da magnitude dos projetos e do grau de repercussão na opinião pública mundial. As usinas hidrelétricas Tucuruí, já em operação, e Belo Monte, ainda que como apenas um projeto, não são apenas grandes barragens. São, antes de tudo, dois magníficos objetos à espera de uma análise comparativa que contemple a eficácia das negociações ao longo dos respectivos conflitos ambientais. Nessa análise, é imprescindível ouvir o maior conjunto possível de atores, em prudente distanciamento, no sentido de incorporar à pesquisa diversas visões de mundo e, sobretudo, buscar atitudes propositivas e viáveis. Entretanto, uma questão se impõe como componente essencial da investigação: Como foi estabelecida e implementada a estratégia de comunicação do setor elétrico com a sociedade, no sentido de viabilizar a construção dessas usinas? Aprofundar-se nessa questão é procurar respostas para perguntas ainda mais abrangentes: • Existiu, em qualquer momento, uma verdadeira participação da sociedade no processo decisório? • Um projeto nacional foi utilizado para sustentar os argumentos pró e contra os empreendimentos? • Em que medida os embates políticos e ideológicos turvaram a ótica dos atores envolvidos, a ponto de relegar a um segundo plano a busca pela compreensão do ainda indefinido conceito de desenvolvimento sustentável para a região? • A negociação dos conflitos foi reduzida a meras barganhas com atores e instituições, em uma limitada ótica econômico-financeira? As usinas Tucuruí e Belo Monte guardam entre si muitas semelhanças e diferenças. As semelhanças residem, por exemplo, no fato de ambas serem projetos de grandes 9 dimensões desenvolvidos pela Eletronorte como parte integrante do planejamento do setor que, no Brasil, mais se destacou, nas últimas décadas, na atividade de pensar estrategicamente, em uma visão de longo prazo. Esses projetos também se assemelham em termos de repercussão nos meios acadêmicos, de comunicação e das organizações não-governamentais. Guardam também muitas semelhanças nos aspectos socioeconômicos que dão origem a efeitos ou impactos derivados do deslocamento de grandes massas de trabalhadores e da relocação de populações afetadas. As diferenças, porém, são bastante expressivas. Tucuruí é uma usina em operação, concebida e construída em um período no qual a legislação ambiental se encontrava dispersa e inconclusa. Desse modo, muitos erros cometidos são explicáveis – em muitos casos, justificáveis – pelo estágio inicial da questão ambiental no Brasil, principalmente no que diz respeito à construção de usinas hidrelétricas em regiões de florestas tropicais úmidas. Belo Monte é, ainda, um projeto, polêmico e concebido na década de 1980 sob uma orientação distinta da atual. Outra diferença marcante diz respeito ao processo de "venda" de cada usina, tanto no contexto interno do setor quanto nos contextos local, regional, nacional e internacional. Tucuruí não encontrou obstáculos de grande monta na opinião pública nem grupos organizados de oposição, a não ser depois da construção. O setor elétrico pôde então levar à frente projeto e obra, de modo que parcerias com instituições científicas e acadêmicas só foram estabelecidas regularmente na fase de enchimento do reservatório. Belo Monte, por sua vez, já encontrou oposição significativa na época em que se denominava Kararaô, inclusive de cunho internacional. Nessa época, o reservatório previsto era cerca de três vezes maior que o dimensionado no atual projeto, alagando uma área muito maior e interferindo substancialmente com a cidade de Altamira, tendo ainda outra barragem a montante, Babaquara, como pré-condição para a regularização de vazão do rio Xingu. 10 Essas semelhanças e diferenças determinaram uma escolha para esta investigação em que Belo Monte surge como foco da pesquisa e Tucuruí como contraponto utilizado de forma intermitente para acentuar os erros e acertos, bem como as convergências e distorções surgidas durante o processo de negociação do projeto de Belo Monte. Um outro aspecto que nos levou a direcionar o trabalho para Belo Monte foi o surgimento, no âmbito do setor elétrico e já no final da década de 1980, do conceito de inserção regional de empreendimentos do setor elétrico. Este conceito se constituiu, embora que restrito até agora ao nível teórico do planejamento setorial, como uma alternativa à concepção de enclaves, característica dos empreendimentos hidrelétricos desenvolvidos pela Eletrobrás. Analisar o conflito gerado pelo projeto Belo Monte é também empreender uma discussão a respeito da distância entre teoria e prática nos processos de tomada de decisão que envolvem o bioma amazônico e o setor elétrico, pois a inserção regional é preconizada pelos técnicos daquele setor como um notável instrumento de interação com a sociedade, facilitando o diálogo entre os atores sociais e as instituições, em uma visão de articulação e sinergia. Belo Monte também era uma escolha natural pelas características do analista. Embora tendo trabalhado em projetos associados às usinas de Tucuruí, Samuel, Manso, Cachoeira Porteira e Balbina – todas na Amazônia Legal – foi no projeto de Belo Monte que a atuação do investigador se deu de forma mais intensa e especialmente associada à análise do conflito criado na região de Altamira e Vitória do Xingu. A possibilidade de exercer a dupla condição de observador e participante foi definitiva para a escolha de Belo Monte como campo da investigação empreendida, especialmente quanto aos processos de comunicação com a sociedade. Mais precisamente, como será possível observar mais adiante, a pesquisa foi conduzida na condição de um participante do processo, uma vez que o desempenho profissional na região do conflito fez com que o trabalho se desenvolvesse em paralelo com o curso de doutorado – cujo processo seletivo implicou na definição prévia de um projeto de pesquisa com os objetivos que aqui estão sendo descritos. 11 Finalmente, pode-se dizer que o estudo centrado no projeto de Belo Monte é um desafio que não se materializa apenas na percepção de novos e futuros conflitos, mas também em admitir que estudo do passado e de sua comparação com o presente seria a melhor contribuição para se resolver o futuro, este entendido como a tentativa de ser obter uma forma de intervenção que, viável para o empreendedor, seja a mais conveniente para os atores atingidos direta ou indiretamente pelo empreendimento e, acima de tudo, concebida como parte de um conjunto integrado de projetos e programas que visem a um desenvolvimento da região – assentado em formas de negociação legítima com o conjunto de atores envolvidos – e, mais ainda, no qual estejam definidas de modo inequívoco as formas de coordenação e as instâncias hierárquicas correspondentes. No que se refere ao trabalho desenvolvido, ele foi dividido em cinco capítulos e uma conclusão. O Capítulo 1 apresenta a visão de mundo do investigador, a metodologia adotada na condução da pesquisa, um modelo relativo a conflitos e outro relativo a como gerenciar grandes intervenções em ecossistemas e/ou biomas, a exemplo da construção de hidrelétricas e, por fim, os métodos utilizados para a coleta e a análise dos dados. O Capítulo 2 analisa a questão da informação entendida como conjunto de dados de natureza científica, técnica, política e histórica. Dois aspectos principais acerca da informação são considerados: a origem dos dados que a compõem e a interpretação dada a esses dados pelos diversos atores do processo com o qual a informação considerada está relacionada. Mas, a maior importância é dada à questão dos mecanismos de validação de informações. O Capítulo 3 discute algumas das possíveis "Amazônias" que surgem como conseqüência da extrema diversidade da região e analisa a repercussão nos meios de comunicação dos conflitos na Amazônia – em especial na mídia impressa e na Internet. São privilegiados os aspectos da difusão de informações. 12 O Capítulo 4 apresenta uma análise descritiva dos principais conflitos do setor elétrico brasileiro na Amazônia, envolvendo, além dos aspectos do setor como um todo, as “Amazônias” do capítulo anterior e as especificidades da Eletronorte, uma empresa que sintetiza todos os elementos do conflito investigado. O Capitulo 5 discute o conflito associado ao projeto do Complexo Hidrelétrico Belo Monte, buscando uma síntese dos problemas apontados nos capítulos anteriores. Contudo, é importante ressaltar que esse conflito é discutido ao longo de toda a tese, não sendo o Capítulo 5 “aquele onde se chega à questão central do trabalho”, uma vez que as suas características são abordadas de forma gradativa nos capítulos anteriores. A Conclusão está estruturada de modo a se constituir em um fechamento do trabalho, ao qual foram adicionadas informações obtidas na fase final da elaboração, como é o caso daquelas relativas aos resultados das eleições municipais de 2004, na região de influência de Belo Monte. Com isso, essa conclusão não se configura como uma relação de associação direta e linear com as questões formuladas na pesquisa, procurando ir além dessa formatação. Finalmente, cabe ressaltar que foram relacionadas apenas as referências bibliográficas efetivamente utilizadas na elaboração da tese, mesmo que, eventualmente, não tenham dado origem a citações no texto. 13 CAPÍTULO 1: TRAÇANDO RUMOS 1.1 INTRODUÇÃO A escolha do tipo de investigação desenvolvida pelo presente trabalho incorporou significativamente observações feitas durante a experiência profissional do investigador, junto aos primeiros processos de licenciamento ambiental de hidrelétricas no Brasil. A proximidade com o tema desta pesquisa aconteceu de forma marcante e em um cenário de incertezas e inseguranças quanto à aplicabilidade de normas ambientais recémestabelecidas no Brasil, especialmente aquelas relacionadas com a elaboração de Estudos de Impactos Ambientais – EIAs e seus respectivos Relatórios de Impactos no Meio Ambiente - RIMAs. Assim, a tão necessária paixão do pesquisador pelo seu tema de pesquisa surge, nesse caso, a partir de experiências profissionais – e pessoais – muito intensas relacionadas com a arena onde se desenvolve o conflito que aqui será analisado. Esse fato pode se constituir tanto como uma vantagem significativa dada a situação de o pesquisador ser mais do que um possível observador participante, quanto como um risco de interferências "contaminadas" de subjetividade excessiva na análise empreendida. Portanto, torna-se necessário, inicialmente, estabelecer a visão de mundo do autor, pois esta determinou a forma de abordagem, a metodologia, os modelos e, sobremodo, os métodos utilizados na pesquisa. Vencida esta discussão, o passo seguinte do capítulo foi a consideração sobre a metodologia adotada no desenvolvimento da pesquisa. Neste sentido, como é sabido, o resultado do trabalho de elaboração de uma tese é profundamente dependente da relação estabelecida entre orientando e orientador. 14 Essa relação é, constantemente, menos valorizada na prática do que deveria, seja por características pessoais de orientador e orientando, seja pela própria natureza do trabalho de pesquisa acadêmica que, para muitos, deve procurar um distanciamento entre os dois atores principais desse processo de elaboração, em benefício de uma suposta “ciência neutra”. Pelas razões que serão aqui expostas, a visão de mundo que determinou a escolha do problema e de sua abordagem implicou uma identificação significativa com as escolhas feitas pelo orientador desta tese em seus trabalhos acadêmicos. Por isso mesmo, a opção metodológica adotada foi, naturalmente, fortemente influenciada pelos caminhos seguidos pelo orientador em suas análises a respeito do processo de Avaliação Ambiental Estratégica – tema este que guarda estreita relação com o desenvolvimento desta pesquisa. Assim, os aspectos ontológicos e epistemológicos que dão forma à metodologia utilizada fazem com que esta, no contexto deste trabalho, procure expressar – e também guiar – a forma com que o pesquisador descreve e explica seu objeto de pesquisa. Essa forma foi determinada a partir de uma premissa de que valores sempre medeiam o questionamento, impregnando todas as camadas da ciência. Mais ainda, os indivíduos são considerados como construtores da realidade, mas os diferentes contextos institucionais, de várias formas, são, aqui, vistos como elementos facilitadores ou complicadores de suas ações. Desse modo, na tomada de decisão metodológica, foram evitadas as abordagens humanista e estruturalista, no sentido de maximizar as virtudes da síntese pregada por Sztompka (apud Egler, 1998), para quem o clima intelectual de hoje parece favorecer esforços sintéticos no nível das grandes teorias da mais alta generalidade. 15 Afinal, se, como em Sztompka, a busca pela síntese dos muitos posicionamentos está claramente no ar, certamente essa busca se justifica nas análises das questões ambientais. Tendo discutido os aspectos que foram relevantes para a escolha da metodologia e também os aspectos que a caracterizam, o capítulo apresenta a seguir dois modelos que foram adotados na pesquisa como instrumental para a análise de conflitos e para a análise da integração entre ciência e política, tendo como objeto para esta integração o meio ambiente. Concluído o desenvolvimento dos itens anteriores, a tarefa final do capítulo é a apresentação dos procedimentos adotados para coletar e analisar os dados obtidos ao longo do trabalho. No entanto, um detalhamento maior se faz necessário, tanto no sentido de uma contextualização adequada, quanto na introdução da dimensão temporal. Tal dimensão é, no caso desta pesquisa, bastante relevante, na medida em que a coleta e a análise dos dados se deu em um contexto de intensos debates sobre a reformulação do modelo a ser adotado pelo setor elétrico brasileiro nos próximos anos, bem como em um período que abrangeu a campanha presidencial de 2002 e os primeiros 18 meses do Governo Luís Inácio Lula da Silva. 1.2 VISÃO DE MUNDO O jornalista Luís Edgar de Andrade (2002) nos conta, em artigo publicado no Jornal do Brasil, que o lendário e também jornalista Pompeu de Souza, ao concluir um estágio nos Estados Unidos, introduziu no velho Diário Carioca um bem-intencionado manual de estilo. Dentre suas recomendações estava a de reduzir o emprego de artigos ao estritamente necessário quando da elaboração das manchetes do jornal. A sugestão daquele experiente jornalista, ícone de toda uma geração de profissionais da imprensa, assumiu caráter de dogma com o passar dos tempos. Andrade nos ensina, com seu texto leve e conciso, que, apesar de consagrada, a supressão do artigo nas manchetes 16 em língua inglesa significa economizar quatro espaços – o que, obviamente, não ocorre nas línguas neolatinas. Títulos curtos podem ser obtidos sem a supressão do O, do El dos espanhóis, do Le dos franceses, do Il dos italianos. No entanto, suprimindo artigos por inércia, o uso de tal expediente chegou ao jornalismo do rádio e à televisão, a ponto de outro jornalista referencial no Brasil, Armando Nogueira, se insurgir contra a prática. No Manual de Telejornalismo da Rede Globo, de 1985, Nogueira, segundo Andrade, determinava o uso obrigatório do artigo, apontando enfaticamente uma herança oriunda dos jornais em língua inglesa que, via jornalismo radiofônico, chegou à televisão. Concluía, então, definitivo: “Notícia de televisão é linguagem falada, é conversa. E, na conversa, ninguém fala em linguagem telegráfica, suprimindo artigos". Andrade – que inicia seu texto lembrando de uma provocação feita por jornalistas portugueses quanto a esse “estilo brasileiro” – termina o seu alerta com uma intrigante afirmação: “O problema talvez esteja numa deformação profissional: nós, jornalistas, hoje em dia, já não escrevemos para os leitores, escrevemos sem querer em jornalês (sic) para os outros jornalistas". Introduzir a descrição de uma visão de mundo do pesquisador com tal episódio é, certamente, um tanto inusitado. Afinal, trata-se aqui de uma pesquisa destinada a discutir, entre outros aspectos, a eficácia e a legitimidade das atuais formas brasileiras de participação da sociedade na gestão ambiental, a negociação “social” de usinas hidrelétricas na Amazônia e os conflitos associados aos grandes projetos no Brasil. No entanto, talvez seja possível encontrar algum sentido em comparar processos que têm sua origem em outras terras, que não sofreram uma revisão crítica consistente por parte da maioria dos atores envolvidos, que padecem de males provenientes da utilização de linguagens estranhas ao público definido como “alvo”, e, principalmente, que passam ao largo da sociedade real. 17 Lembremo-nos que a essa sociedade foram dedicadas incontáveis linhas, pregando a sua participação nos processos de tomada de decisão. Portanto, uma boa comparação com o episódio descrito pode ser feita com a situação em que se introduziram os EIAs e RIMAs no cenário ambiental brasileiro, pois estes são uma "importação" feita – com os melhores propósitos, diga-se – à época do estabelecimento das bases conceituais que resultaram para atual legislação brasileira. A aplicação desses instrumentos, contudo, com o passar dos anos, foi relegada a um papel burocrático e fragmentado, desassociado dos instrumentos de planejamento, tanto estatais quanto privados. Assim acontecendo, oxalá seja possível perguntar, como fez Andrade em seu artigo, quem tem medo do medo de discutir o estágio atual da participação da sociedade na gestão ambiental? Não será possível que, em algum lugar do passado, o discurso da participação tenha se transformado em uma unanimidade acrítica? Muito pior, essa participação pode estar sendo reduzida, na prática, a um processo gerador de conflitos cujas raízes não são encontradas no projeto que demanda uma tomada de decisão? Uma outra razão para se utilizar introdutoriamente o texto de Andrade é baseada na profunda admiração do autor deste trabalho pelo grande Machado de Assis. Essa admiração trouxe a um texto acadêmico o desejo de que fosse estabelecida uma cumplicidade com o leitor, evidente em Machado, por exemplo, nas páginas iniciais das Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde o brilhante escritor, mesmo em dúvida se deveria ser considerado um autor-defunto ou um defunto-autor, estabelece na primeira página de sua obra uma premissa por demais insólita para os padrões da época. 18 Nem por segundo, aqui se imagina atingir a perfeição do texto do “admirável mulato”. O que, modestamente, se deseja é buscar a elaboração de um texto que obedeça aos padrões da Academia, mas cuja construção seja feita com a utilização de recursos estilísticos próprios do jornalismo e da literatura. Nesse sentido, o texto de Andrade tem a função de prevenir o leitor quanto a escolhas, digamos, estilísticas, que foram feitas ao longo deste trabalho. Essas escolhas tanto se explicam pelo próprio objeto da pesquisa e da abordagem escolhida, como pela visão de mundo do investigador, cuja origem na área das comumente denominadas Ciências Exatas, mais especificamente na Química, não impediu um constante “namoro” com as Humanidades, resultando na busca de uma síntese que se revelou de grande utilidade no trabalho que aqui se buscou empreender. Um grande obstáculo, talvez seja melhor dizer um grande risco, reside na resistência das elites intelectuais para fazer concessões na linguagem empregada em seus trabalhos científicos e acadêmicos, mesmo nas oportunidades em que estes cumprem a missão – ou deveriam cumprir – de repassar à sociedade conhecimentos que poderão se transformar em instrumentos valiosos para a melhor compreensão de seu cotidiano futuro. Na origem dessa resistência se encontram setores que defendem a tradição histórica da Academia, cultivando um distanciamento em relação aos demais setores da sociedade no intuito de preservar sua independência e a sua cultura característica. Essa tendência para a clausura dos campi e dos ambientes de pesquisa pode levar os membros dessas comunidades a “torres de marfim”, situadas a quilômetros de distância dos “mortais”, justificando-se essa postura pela necessidade do uso de um discurso específico de cada disciplina, para compreensão recíproca entre os membros das respectivas comunidades 19 No entanto, imagine-se uma disciplina cujo conteúdo faz com que se considere natural o uso de uma linguagem que não pode descer do “Olimpo”, por sua própria natureza. Por exemplo, a Física. Werner Heisenberg, Prêmio Nobel de Física em 1932, autor do famoso Princípio da Incerteza, discute a suposta inaplicabilidade da linguagem cotidiana ao pensamento científico: Uma das características mais importantes do desenvolvimento e análise da física moderna é a experiência a demonstrar que os conceitos da linguagem quotidiana, mesmo imprecisamente definidos como eles são, parecem exibir uma estabilidade maior na expansão do conhecimento que os termos precisos que a linguagem científica ostenta, decorrência de uma idealização a partir de grupos limitados de fenômenos. Isso, por si só, não é motivo para surpresa, pois os conceitos da linguagem natural são cunhados pela associação direta com a realidade: eles representam a Realidade. É bem verdade que eles não são bem definidos e podem, também, passar por transformações no correr dos séculos, da mesma forma que ocorre com o conceito de realidade; eles, todavia, jamais perderam a ligação direta com a Realidade que espelhavam. (...) Sempre que procuramos passar do conhecido ao desconhecido (que nutrimos a esperança de entender) poderemos ser obrigados, ao mesmo tempo, a atribuir um novo sentido à palavra ‘entender’. Sabemos que todo entendimento deve, em última conseqüência, basear-se na linguagem comum, pois é somente através dela que estaremos seguros de tocar a Realidade. (Heisenberg, 1987) Quando um dos maiores físicos da História assim se pronuncia, é legítimo especular se é realmente inadequado e desaconselhável ousar na linguagem empregada nos trabalhos acadêmicos. Mais ainda, quando se está empreendendo uma pesquisa que envolve processos que – apesar de, infelizmente, não possuírem um suficiente conjunto de critérios definidos para sua implementação – visam à participação da sociedade em tomadas de decisão. Nesse ponto, torna-se importante estabelecer que serão consideradas distinções entre as tipologias representadas pelo discurso técnico ou científico e pelo discurso jornalístico, 20 em virtude de a análise que aqui se desenvolve ter a informação (e suas formas de transmissão) como núcleo. Leibruder (2000) distingue os dois discursos enfatizando que o cientista, a fim de divulgar sua pesquisa no interior da comunidade científica, o fará através da elaboração de um artigo ou paper, constituído de um relato sobre o experimento desenvolvido, a ser publicado num periódico ou revista especializada. Esse relato deve ser organizado, por sua vez, sobre uma estrutura rígida, segundo a qual, primeiramente, o pesquisador deverá descrever os materiais utilizados no experimento, passando, em seguida, para os objetivos e procedimentos empregados, sendo que resultados, conclusões e propostas ocupam a última seção do artigo. A autora considera que, como a circulação deste discurso é circunscrita ao próprio meio científico, produzido por e para especialistas, a elaboração do paper fundamentar-se-á nas convenções lingüísticas próprias ao jargão científico. E isto face a que o emprego de uma linguagem objetiva, concisa e formal, própria da modalidade escrita da língua, constitui o pressuposto básico referente à feitura de um artigo científico. Para Leibruder: A utilização de tais mecanismos, na medida em que afasta o eu do discurso científico, camuflando quaisquer índices de subjetividade nele existentes, objetiva, em última instância, atribuir-lhe um caráter de neutralidade. Enquanto que: O discurso jornalístico, enquanto um discurso de transmissão de informação, caracteriza-se, num primeiro momento, pela objetividade, clareza e concisão da linguagem. Dentro desta modalidade discursiva, é o fato que ocupa a posição central, cabendo ao jornalista apenas noticiá-lo. Neste sentido, poderíamos mesmo comparar o discurso jornalístico ao científico, na medida em que ambos procuram camuflar a presença do autor, emprestando voz às próprias coisas.(Leibruder, 2000) Definitivamente, essa não foi a escolha feita para o trabalho que aqui se inicia. A visão de mundo nele embutida não contempla neutralidade e expõe constantemente o autor, 21 pois se considera aqui que a objetividade, a clareza e a concisão da linguagem não impedem que se empreenda, com êxito, um trabalho científico não colidente com a tradição acadêmica. Lembremo-nos de Foucault, para quem: Em toda sociedade, a produção do discurso é, ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.(Foucault, 1998) Para exemplificar o controle do discurso acadêmico, podemos recorrer a Galbraith , com seu humor canadense, temperado pela folclórica ironia inglesa: Na vida acadêmica de nossos dias, os estudiosos devem sua distinção – antigamente, deviam sua promoção – ao juízo que deles fazem seus colegas. Nesse sentido, então, as conversas em que se incluem os auto-elogios constituem verdadeira manifestação artística. Em Harvard, aquele que tiver feito críticas tímidas sobre um trabalho sem importância escrito sobre um estudioso de menor importância ainda, mas integrante da Associação de Línguas Modernas, voltará ao clube dos professores para contar, en passant , que devastou um scholar realmente importante da Antioquia. Um testemunho incoerente prestado em uma comissão à qual só compareceu o presidente da subcomissão pode, ao ser relatado posteriormente por um economista, transformar-se em um polêmico triunfo de proporções históricas. (Galbraith, 1981) É necessário, portanto, estabelecer previamente que estas reflexões estejam sendo feitas por um analista disposto a correr os riscos da ousadia na forma e no estilo e que se posiciona como totalmente favorável a uma gestão ambiental que incorpore a voz dos atores que efetivamente estejam sendo afetados por quaisquer tipos de empreendimentos – ou que estejam na iminência de sê-lo. Desse modo, todo o trabalho é impregnado, ora de forma perceptível, ora subjetivamente, de uma preocupação com as informações e com a linguagem utilizada para transmiti-las, bem como dos mecanismos que as validam. Nesse sentido, torna-se inevitável que a forma utilizada para desenvolver o conteúdo da pesquisa revele uma opção prévia por 22 um aprimoramento constante da comunicação entre interlocutores, com rebatimentos na construção do próprio texto da pesquisa. Por outro lado, a postura crítica diante de inverdades difundidas pelos meios de comunicação, por exemplo, não podem ser guardadas no mesmo embornal onde repousam idéias saudosistas ainda existentes no setor elétrico brasileiro – de tempos tais em que se decidia a localização de barragens em simples sobrevôos de helicóptero. Considera-se, por outro lado, uma das características mais assustadoras do atual estágio das discussões acerca da sustentabilidade do desenvolvimento o fato de se poder observar um intenso, indiscriminado e largamente disseminado uso de expressões associadas à adjetivação do desenvolvimento na mídia, entre os membros da classe política, nos círculos empresarias, nos exames vestibulares e, muito pior, nos meios acadêmicos. Seria um procedimento aceitável se esses diversos conjuntos de atores tivessem algum consenso em torno dos conceitos repetidos sistematicamente nos mais diversos eventos e publicações, por exemplo. Não parece estar ocorrendo tal fato, pois o conceito de desenvolvimento sustentável, por exemplo, sendo adotado de forma praticamente unânime pelos representantes dos mais diversos matizes ideológicos, no Brasil, adquire um valor positivo não contestável. Em outras palavras, ninguém é capaz de dar uma entrevista, por exemplo, se declarando contra o estabelecimento de um desenvolvimento sustentável para a sua região. Para realçar a estranheza de tal situação, podemos verificar que existem setores da sociedade que são a favor da pena de morte, da separação de um determinado estado do restante da Federação, do aborto, da eutanásia, da legalização do jogo, das drogas etc. Ora, todos estes são temas polêmicos que rendem, muitas vezes, a perda de votos em eleições ou uma alta dose de rejeição por parte da sociedade, tanto manifestada em comícios quanto nas seções de cartas à redação de jornais e revistas, por exemplo. Mas, tais oposições não impedem que aqueles que defendem essas idéias se exponham em embates de grande repercussão. 23 Desenvolvimento sustentável, ao contrário, é uma unanimidade surgida não se sabe onde nem quando, mas que, em um trocadilho irresistível, se sustenta como um dogma. Uma história curiosa é contada por militares há tempos. Ao assumir o comando de um quartel, um coronel indagou de seu oficial imediato o porquê da existência, na relação dos postos de sentinela, de um soldado permanentemente colocado à frente de um banco de praça, na entrada principal. O major não soube responder e chamou o capitão. Este também não sabia e chamou o tenente que, ignorando o fato, chamou o sargento. Novamente, perplexidade. O cabo foi convocado e, como também não tinha a resposta, sugeriu que fossem todos falar com o soldado mais antigo do quartel. Foram todos e lá chegando obtiveram a resposta ansiosamente aguardada. O soldado explicou que, há muitos anos, aquele banco fora pintado e uma sentinela foi providenciada para evitar que alguém, inadvertidamente, sentasse sobre a tinta fresca – e desde então nunca mais o posto ficou sem vigilância. Da mesma forma, desenvolvimento sustentável, participação, democratização da informação, entre outros, são termos que se transformaram, na sociedade, em uma espécie de "grife" da moda, sem que houvesse uma busca consistente da origem e do significado de tais conceitos, mesmo em certos setores acadêmicos. Ninguém senta no banco do quartel, mas ninguém sabe o porquê. De forma semelhante, em algum momento da história do ambientalismo brasileiro – e, também, em boa parte das análises feitas na Academia – ficou estabelecido que hidrelétricas na Amazônia são, a priori, empreendimentos que devem ser combatidos. Essas decisões tiveram claras componentes ideológicas e políticas, muitas vezes de natureza circunstancial. 24 Também em algum momento da história do setor elétrico brasileiro ficou estabelecido que o aproveitamento das quedas existentes nos rios amazônicos, principalmente aqueles situados na margem direita do Amazonas, era inquestionável. E isto tanto pela necessidade do suprimento das demandas inevitáveis que o desenvolvimento econômico nacional criaria, quanto por uma visão nacionalista segundo a qual a opção à não-integração da região ao restante do país seria a "entrega" dos recursos naturais aos interesses estrangeiros, ao capital internacional. Nesses casos, fixou-se a sentinela junto ao banco, como no folclore das casernas. Ou, se preferirmos, abandonou-se o uso de artigos nas manchetes de jornais, como nos disse Andrade. A visão de mundo que norteia esta pesquisa não contempla uma adesão incondicional a qualquer condenação prévia a um procedimento científico ou tecnológico. Principalmente se essa condenação for baseada em informações não-validadas por um mecanismo confiável. Aqui também se considera que o grau de confiabilidade dos mecanismos de validação das informações pode ser questionado a partir da presença de importantes fatores associados às escolhas de natureza ideológica, filosófica, política ou mesmo cultural. A atitude mais recomendada, nesse caso, é se valer do respaldo fornecido por aqueles acadêmicos e/ou intelectuais que são vistos como referências nas respectivas áreas do conhecimento. Todavia, quando se empreende um trabalho de natureza acadêmica, uma exagerada admiração pelas obras dos grandes pensadores e pelos pontos de vista daqueles que dominam os saberes relacionados à pesquisa que se quer empreender se origina, em boa parte dos casos, na convicção de que, por nossas limitações, nada poderemos fazer para dar continuidade ou complemento ao estabelecido com tanta competência. 25 A devoção excessiva aos supostos ícones de determinado campo, ou campos, do saber tem suas raízes tanto nos sentimentos de justiça e reconhecimento quanto na tão necessária humildade do investigador. Em demasia, contudo, corre-se o risco de tolher iniciativa e estímulo para a construção de uma investigação original. Para o desenvolvimento desta pesquisa, foram utilizados alguns referenciais provenientes de uma visão de mundo que procura se sustentar em um ponto de equilíbrio entre a ousadia e o respeito a saberes legitimamente construídos. Desse modo, o acadêmico e o lavrador, o ambientalista radical e o engenheiro cartesiano, o ativista político e o empresário, bem como todas as dicotomias possíveis, fazem parte de um campo de investigação em que não há verdades pré-fixadas, nem censura prévia falsamente justificada por convicções ideológicas. A busca pela síntese justifica deixar de "enriquecer" a pesquisa com profusão de gráficos, tabelas e citações. A heterodoxia nas comparações ou analogias se destina a uma originalidade que não é um fim em si mesma, muito antes se destina a diminuir o hermetismo do texto e a buscar uma leveza que não seja confundida com superficialidade. Finalmente é importante frisar que, no desenvolvimento deste trabalho, foi lembrado o professor Roberto Bartholo que, em suas aulas do curso de doutorado do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB, costumava se referir, irônica e pejorativamente, ao que denominou de "fisiculturismo intelectual", ou seja, uma excessiva demonstração de erudição na introdução dos trabalhos acadêmicos, especialmente nas teses das chamadas ciências humanas. Aos olhos do eminente professor, trata-se de um pré-requisito dispensável, na maioria dos casos, para a apresentação dos fundamentos que orientarão o autor. Em concordância com tal percepção, esta apresentação da visão de mundo do pesquisador tenta ser parte integrante de um conjunto integrado de idéias e descobertas e não um mero conjunto de citações ou de opiniões pessoais. Ou seja: uma alternativa ao “fisiculturismo cultural” apontado por Bartholo. 26 Considera-se aqui a defesa de textos menos áridos em trabalhos dessa natureza como uma forma de diminuir a distância entre as áreas distintas do conhecimento e entre a Academia e os setores não-acadêmicos – entre outras razões. Essa visão está em sintonia fina com os objetivos do presente trabalho, principalmente porque este envolve conhecimento e linguagem, informação e poder, participação e reverência. Pode–se dizer que a visão de mundo que influencia decisivamente a escolha do problema a ser investigado e da abordagem utilizada na investigação se sustenta na admissão prévia de que, enquanto não for possível solucionar um problema, sugerir novos modos de enxergá-lo pode ser uma contribuição importante para a busca da solução. 1.3 A ESCOLHA METODOLÓGICA E DISCUSSÃO DE DOIS MODELOS UTILIZADOS NA PESQUISA 1.3.1. Metodologia da Pesquisa Inicialmente, é importante destacar que a discussão sobre e a escolha da metodologia desta pesquisa foi fortemente influenciada pelos trabalhos de Egler (1998), Singleton Jr., Straits e Straits (1988), Guba (1990) e Silverman (1995) e, quando necessário, as referências foram enfatizadas no texto. Nesse contexto, é possível iniciar essa discussão com Morin (2000), para quem o conhecimento científico, conquanto poderoso meio de detecção de erros, é controlado por paradigmas que podem desenvolver ilusões. Com isso, nenhuma teoria científica está imune para sempre contra o erro e, portanto, o conhecimento científico é insuficiente para lidar com problemas epistemológicos, filosóficos e éticos. A lógica de qualquer sistema de idéias é resistir à mudança ou à informação que não lhe convém. 27 Kuhn (2001) argumenta: Mas a experiência dos sentidos é fixa e neutra? Serão as teorias simples interpretações humanas de determinados dados? A perspectiva epistemológica que mais freqüentemente guiou a filosofia ocidental durante três séculos impõe um "sim!" imediato e inequívoco. Na ausência de uma alternativa já desdobrada, considero impossível abandonar inteiramente essa perspectiva. Todavia ela já não funciona efetivamente e as tentativas para fazê-la funcionar por meio da introdução de uma linguagem de observação neutra parecem-me agora sem esperança. (Kuhn, 2001) Kuhn considera que talvez ainda se chegue a elaborar uma linguagem de observação pura, mas: Três séculos após Descartes, nossa esperança que isso ocorra ainda depende exclusivamente de uma teoria da percepção e do espírito. Por sua vez, a experimentação psicológica moderna está fazendo com que proliferem rapidamente fenômenos que essa teoria tem grande dificuldade em tratar. (Kuhn, 2001) Assim, para o autor, tanto no sentido metafórico como no sentido literal do termo "visão", a interpretação começa onde a percepção termina. Os dois processos não são o mesmo e o que a percepção deixa para a interpretação completar depende drasticamente da natureza e da extensão da formação e da experiência prévias. (Kuhn, 2001) Kuhn considera que a superioridade de uma teoria sobre outra não pode ser demonstrada por meio de uma discussão e sim por meio da persuasão. Num debate sobre a escolha de teorias não cabe recorrer a boas razões; a teoria deve ser escolhida por razões que são, em última instância, pessoais e subjetivas; alguma espécie de apercepção mística é responsável pela decisão a que se chega. (Kuhn, 2001) Devemos considerar a escolha de uma teoria a partir de premissas e regras de inferência inicialmente estabelecidas? Há que se considerar como uma vantagem o fato de que, em havendo conflito de conclusões por parte dos analistas, sempre será possível refazer o caminho, guiado por regras iniciais. Mas, novamente em Kuhn: 28 Não existem algoritmos neutros para a escolha de uma teoria. Nenhum procedimento sistemático de decisão, mesmo quando aplicado adequadamente, deve necessariamente conduzir cada membro de um grupo a uma mesma decisão. (...) Dois homens que percebem a mesma situação de maneira diversa e que, não obstante isso, utilizam o mesmo vocabulário para discuti-Ia, devem estar empregando as palavras de modo diferente. Eles falam a partir daquilo que chamei de pontos de vista incomensuráveis. Se não podem nem se comunicar como poderão persuadir um ao outro? (Kuhn, 2001) Assim, a prática da ciência pode ser vista como dependente da habilidade, adquirida por meio de exemplares, para agrupar objetos e situações em conjuntos semelhantes, primitivos no sentido de que o agrupamento é efetuado sem que se defina um referencial para essa semelhança. Como conseqüência, Kuhn considera que problemas surgirão, inicialmente na comunicação, mas que, não sendo meramente lingüísticos, não podem ser resolvidos simplesmente através da estipulação das definições dos termos problemáticos. Restaria, portanto, aos interlocutores que não se compreendem mutuamente a alternativa de reconhecerem-se uns aos outros como membros de diferentes comunidades de linguagem e, a partir daí, tornarem-se usuários de mecanismos de tradução, instrumento potente de persuasão e conversão. Considerando que persuadir alguém é convencê-lo de que nosso ponto de vista é superior e por isso deve suplantar o seu, Kuhn considera que, ocasionalmente, chega-se a esse resultado sem recorrer a nada semelhante a uma tradução. E, na ausência desta, muitas explicações e enunciados de problemas endossados pelos membros de um grupo científico serão opacos para os membros de outro grupo. Esse é um aspecto determinante para a apresentação da escolha metodológica do presente trabalho, na medida em que não é sua intenção discutir qualquer metodologia social e/ou política, devido a, basicamente, dois motivos. O primeiro deles é que o objetivo principal deste trabalho é discutir as possibilidades e restrições aos processos de negociação empreendidos pelo setor elétrico na Amazônia, 29 sob uma ótica da importância dos processos de comunicação com a sociedade que foram ou são utilizados – e não desenvolver uma metodologia para analisar as circunstâncias sociais e políticas desses processos. É importante ressaltar que isso não significa isentar o trabalho do necessário rigor metodológico, mas também que a metodologia não é um fim em si mesma. O segundo motivo é que essa discussão, apesar de importante e pertinente, pertence àqueles que têm habilidades e vocação para construir modelos e abordagens para descrever e explicar os eventos sociais que ocorrem ao seu redor. Enfatize-se que o desenvolvimento e uso de paradigmas para descrever e explicar o mundo social e político, atualmente, se encontra em uma dimensão maior do que a que possui o nosso campo de análises, sendo extensivo e disponível para ser apropriado por aqueles que somente buscam descrever e explicar um evento social e/ou político específico – caso deste trabalho. Nele, portanto, deve-se considerar previamente a adoção de uma metodologia que, de acordo com o modo com que o autor enxerga a realidade, é a melhor para descrever e explicar os eventos sociais e políticos, em uma escolha que é, basicamente, um caso de afinidade, onde a metodologia escolhida se encaixa com a forma que o analista descreve e explica o mundo. O primeiro aspecto metodológico a ser considerado é enfatizar o seu significado, para que seja definida uma abordagem geral para estudar um tópico de pesquisa. Ou seja, é o estabelecimento de como o analista irá estudar um fenômeno qualquer. A metodologia, sobretudo no contexto das ciências sociais e políticas, é relacionada com a forma com que o pesquisador descreve e também explica os eventos políticos e sociais. Tendo em conta a natureza do mundo social e político e do “ser social” em particular e a natureza da explicação adequada – e válida – de um evento, efeito ou processo político como sendo componentes ontológicas e epistemológicas que descrevem os aspectos 30 complexos que marcaram e também diferenciam as abordagens metodológicas distintas, presentes no campo das ciências sociais, quatro paradigmas empregados em investigação social emergem: positivismo; pós-positivismo; teoria crítica; e construtivismo. Considerados como os principais paradigmas de investigação utilizados para guiar as pesquisas sociais e políticas, distinguem-se ao considerarem a natureza da “realidade”, a relação conhecimento/ conhecedor e a forma como o conhecimento deveria ser descoberto. No positivismo, realidade é algo que existe e é dirigida por leis de causa e efeito que nós podemos conhecer e utilizar em investigação que pode ser livre de valor, sendo que nossa hipótese pode ser empiricamente testada. No pós-positivismo, realidade também é algo que existe, mas não pode ser completamente entendida ou explicada, por existir uma multiplicidade de causas e efeitos. Desse modo, objetividade é um ideal, mas requer uma comunidade crítica, principalmente em relação ao experimentalismo. Enfatiza abordagens, teoria e descoberta qualitativas. Na teoria crítica, a realidade, embora exista, não pode ser completamente entendida ou explicada. Há uma multiplicidade de causas e efeitos e os valores fazem mediação da investigação. Deve ser eliminada a falsa percepção, participa-se e facilita-se a transformação. No construtivismo, a realidade existe como construções mentais e é relativa àqueles que as possuem, sendo conhecimento e conhecedor parte da mesma entidade subjetiva, na qual as descobertas são resultado da interação. Identifica, compara e descreve várias construções que existem (hermenêutica e dialética). A opção por um desses paradigmas para esta pesquisa deve ser feita de modo a permitir que se avance sobre o problema sem abandonar o uso de argumentos consistentes nem, tampouco, a possibilidade de eventuais erros serem corrigidos por meio da experiência. Assim procedendo, pretendeu-se distinguir a opinião racional de preconceito, 31 uma vez que aquela é conseqüência do fato de se levar em conta o conjunto de posicionamentos, de críticas e de discussões que consideram diferentes visões, evitando-se os falsos conceitos destinados a julgar os atores considerados pelo grupo a que pertencem, levando, inevitavelmente, a discriminações. Para a definição da metodologia, a contribuição de Popper, em seu conjunto, foi considerada, tendo como referência a sua visão de que quando não admitimos ser possível chegar a um consenso através de argumentos, só resta o convencimento pela autoridade. Como conseqüência, a falta de discussão crítica seria substituída por decisões autoritárias, soluções arbitrárias e dogmáticas para se decidir uma disputa, o que poderia levar, inclusive, a práticas violentas. Reagindo-se a uma falsa neutralidade, exibe-se a responsabilidade quanto uma investigação cuja decisão final será sempre um ato de valor e que pode ser esclarecida pelo pensamento, por meio da análise das conseqüências e por posições de determinada decisão. Como a maioria dos problemas estudados pelos cientistas surge a partir de um conjunto de teorias científicas que funciona como um conhecimento de base, a formulação e a resolução de problemas naturalmente é remetida para quem tem um bom conhecimento das teorias científicas de sua área. Na teoria crítica, é enfatizado o papel da ciência na transformação da sociedade, ao mesmo tempo em que existe o envolvimento do cientista nesse processo de transformação como objeto de debate. A diferença fundamental entre a teoria crítica e as demais abordagens metodológicas se situa na motivação política dos pesquisadores e nas questões que envolvem, por exemplo, desigualdade e dominação. Como a questão central desta pesquisa está intimamente ligada tanto à transmissão quanto à validação de informações, como já foi enfatizado, esse envolvimento e a militância política devem ser explicitados inicialmente como atitudes distintas. Pois, se a abordagem crítica é essencialmente aquela que busca investigar os grupos e instituições, de modo a relacionar as ações humanas com a cultura e as estruturas sociais e políticas, bem 32 como tentar entender de que forma as redes de poder são produzidas, mediadas e transformadas, é preciso "descontaminar" as análises e as discussões desenvolvidas na pesquisa de sectarismos e preconceitos. Considerando-se que os processos sociais não podem ser investigados de forma isolada, como instância neutra, acima dos conflitos ideológicos da sociedade, a sua ligação com as desigualdades culturais, econômicas e políticas existentes na sociedade não pode servir de pretexto para abandonar-se o procedimento científico. Coexistem atualmente diferentes linhas filosóficas acerca da natureza do método cientifico e em relação aos critérios para avaliação das teorias cientificas. A pesquisa nas ciências sociais se caracteriza por uma multiplicidade de abordagens que incluem pressupostos, metodologias e estilos diversos e, assim, a escolha metodológica não é independente dos conceitos e bases teóricas, envolvidos na pesquisa tanto de modo explícito quanto de modo implícito. Nas obras de Popper, os valores puramente científicos e os valores extracientíficos são objetos de uma tarefa que cabe ao cientista crítico. Demarcando claramente quais os valores que se situam em um e em outro campo, o cientista evita que aspectos extracientíficos se confundam com questões de Verdade. Nesse contexto, pode-se dizer aqui que as dificuldades metodológicas são maiores quando são enfrentados problemas de pesquisa de cunho fortemente interdisciplinar, como as questões ambientais. A teoria tradicional, em um sentido cartesiano, em vigor nas chamadas ciências especializadas, se aplica, de modo confiável, para compor o que se poderia chamar de "linhas da matriz ambiental", ou seja, a Biologia, a Química, a Engenharia, entre outras, podem ser utilizadas de modo a que os sistemas das disciplinas disponham os conhecimentos de tal forma que, sob controle, sejam aplicáveis ao maior número possível de situações, de modo tal que a gênese social dos problemas em que a ciência é empregada e as razões para sua aplicação, sejam consideradas exteriores. 33 Evidentemente, a matriz ambiental deve ser completada por "colunas" que incorporem, como objeto, os homens como produtores de todas as suas formas históricas de vida. As situações efetivas, nas quais a ciência se baseia, não dependem apenas da Natureza, mas também do poder do homem sobre ela e, portanto, não podem ser entendidas como uma coisa dada, cujo único problema estaria na mera constatação e previsão segundo as leis da probabilidade. Essas ponderações já existiam, mesmo que não dirigidas diretamente às questões ambientais, na década de 1930, na Escola de Frankfurt, particularmente em Horkheimer, quando eram lançadas as bases da teoria crítica, contraposta às outras metodologias. Constitui-se, então, um processo de confronto com o ideal de conhecimento de uma explicação unívoca, simplificada ao máximo e matematicamente elegante. O objeto, ou seja, a sociedade, não sendo unívoca nem simples, tampouco se sujeita de modo neutro ao arbítrio do sistema de categorias da lógica discursiva. Levando em consideração, como já foi dito, os aspectos da ontologia e epistemologia que dão forma à metodologia, a descrição e a explicação que estão associadas à visão de mundo do analista se acham mais bem situadas no paradigma da teoria crítica, sem que tal fato se constitua como uma adesão incondicional, seja por causa das divergências existentes no conjunto de pensadores desse corpo teórico, seja pelo fato de os denominados "saberes ambientais" ainda não constituírem um conjunto integrado e definido. Thompson (1995) também agrega razões para que tenhamos cautela com a adoção da visão social e política inerente ao projeto inicial da teoria crítica: Vivendo no final do século XX, nós temos a vantagem de poder ver os fatos acontecidos: alguns dos ideais e aspirações que deram vida ao seu trabalho foram manchados por realidades históricas sérias e, algumas vezes, sórdidas. Falando de maneira mais geral, podemos duvidar se o marco referencial teórico dentro do qual eles tentaram sua análise das sociedades modernas era adequado para a tarefa.(Thompson, 1995) 34 Thompson admite que se possa suspeitar que a ênfase no capitalismo industrial como a característica constitutiva essencial das sociedades modernas fora um exagero que levou ao obscurecimento do significado de outros processos de desenvolvimento e de outras causas que originam a dominação e desigualdade. Também admite que se duvide que os riscos ligados à socialização dos meios de produção e à conseqüente burocratização das organizações sociais e políticas tenham sido totalmente reconhecidos e apreciados. Podemos perguntar-nos se eles deram suficiente atenção às formas institucionais através das quais os indivíduos poderiam expressar, da melhor forma, seus desejos e necessidades e pelas quais poderiam proteger-se do uso excessivo do poder do estado. Podemos manifestar dúvidas sobre a idéia, tomada de Max Weber e concretizada numa visão totalizante de história, de que as sociedades modernas foram presas de um processo de racionalização que permeia, sempre mais, cada aspecto da vida social, tornando os indivíduos, cada vez mais, dependentes de uma totalidade reificada e administrada que ameaça esmagá-los. .(Thompson, 1995) Mesmo com dúvidas e reservas que poderiam ser razões suficientes para que se abandonasse muita coisa do projeto original da teoria crítica, Thompson considera que não estamos obrigados a abandonar a tarefa na qual os primeiros teóricos críticos estavam interessados, isto é: A tarefa de analisar as trajetórias de desenvolvimento específicas das sociedades modernas, de refletir sobre as limitações dessas sociedades e sobre as oportunidades possíveis de seu desenvolvimento. Esta tarefa conserva sua importância hoje, mesmo se o referencial dentro do qual ela for pesquisada tenha de ser, fundamentalmente, reformulado.(Thompson, 1995) 1.3.2. Modelos Utilizados na Pesquisa Tendo identificado o principal paradigma empregado na pesquisa, o próximo ponto a ser considerado nesta descrição do modelo teórico-metodológico para a presente pesquisa é a identificação de uma abordagem, dentro do domínio da teoria crítica, que melhor se relaciona com a visão de mundo do analista. 35 Assim sendo, como encontrar explicação para um determinado conflito? Como uma conseqüência de intenções e ações dos atores imediatos envolvidos? Nos termos de lógica ou estrutura das mais amplas relações das quais os referidos atores fazem parte? No âmbito da presente pesquisa, a abordagem metodológica mais adequada implica acreditar que os eventos sociais e políticos serão descritos e explicados como resultantes não somente das ações empreendidas pelos diferenciados atores sociais (como indivíduos ou membros de coletividades concretas – grupos, associações, comunidades, etc.), mas também devido a uma segunda realidade social, “feita de conjuntos sociais abstratos de um tipo super-individual, representando uma realidade social sui generis (sociedades, culturas, civilizações, formações sócio-econômicas, sistemas sociais, etc.)”. Egler, apud Sztompka, 19934. Encontramos uma contribuição decisiva para a escolha da melhor abordagem em Thompson (op. cit.), para quem a “midiacão” da cultura é uma característica constitutiva fundamental das sociedades modernas. Assim, sendo uma característica pela qual, entre outras, as sociedades em que vivemos hoje são "modernas", a “midiação” da cultura é um processo que caminhou de mãos dadas com duas outras tendências constitutivas. A primeira é o desenvolvimento do capitalismo industrial em conjunto com as tentativas correspondentes de desenvolver formas de organização industrial não-capitalistas (ou socialistas de estado). A segunda é o surgimento do estado moderno e a conseqüente emergência de movimentos políticos de massa com o objetivo de exercer influência sobre as instituições políticas, junto com a crescente participação nessas instituições. O autor considera que, juntos, esses processos de desenvolvimento moldaram, e continuam a moldar, as principais instituições das sociedades modernas, bem como configuraram as sociedades modernas como entidades relativamente independentes e, ao mesmo tempo, incorporaram essas sociedades num sistema social global. 4 As citações e referências do trabalho de Egler foram feitas a partir do original em língua inglesa, com tradução deste autor. 36 Assim, se vivemos num mundo cada vez mais interligado economicamente e que apresenta características comuns em termos de organizações e movimentos políticos e, ainda, que é cada vez mais perpassado pelos produtos e instituições das indústrias da mídia, isso se deve ao fato de que nossas sociedades foram moldadas por um conjunto de processos que são constitutivos do mundo moderno. Buscamos em Thompson a ideologia integrada em um referencial teórico que focalize a natureza das formas simbólicas, as características dos contextos sociais, a organização e a reprodução do poder e da dominação. Desse modo o fenômeno da ideologia adquire um novo horizonte e complexidade quando se torna parte da circulação amplificada das formas simbólicas ocasionada pela “midiação” da cultura moderna. Com isso, a análise de conflitos relacionados a grandes projetos nos pareceu mais atraente sob uma abordagem que considerasse a importância crescente da dominação no mundo moderno e que, como queriam os criadores da teoria crítica, realçasse o fato de os indivíduos serem agentes auto-reflexivos que podem aprofundar a compreensão de si mesmos e de outros e que podem, a partir desta compreensão, agir para mudar as condições de suas vidas, como em Thompson – que nos diz: Nas circunstancias presentes das sociedades modernas diversidade e diferença estão, geralmente, inseridas nas relações sociais que estão estruturadas em maneiras sistematicamente assimétricas. Não podemos nos cegar pelo espetáculo da diversidade a tal ponto que sejamos incapazes de ver as desigualdades estruturadas da vida social. A análise crítica da ideologia retém seu valor como parte de uma preocupação mais abrangente com a natureza da dominação no mundo moderno, com os modos de sua reprodução e as possibilidades de sua transformação. Isto não significa que o conjunto de problemas ligados à análise da ideologia e da dominação sejam os únicos dignos de preocupação da teoria crítica hoje – não há necessidade de adotar-se um enfoque tão restritivo. Mas sugerir que nós podemos, agora, deixar estes problemas para trás, tratá-los como um resíduo do pensamento do século XIX que não tem mais vez no mundo moderno (ou "pós-moderno") seria, decididamente, prematuro.(Thompson, 1995) Entretanto, a pretensão de investigar um conflito sócio-ambiental significa realizar um trabalho sobre um dos temas mais antigos da história da Humanidade, em que diversos 37 campos do conhecimento, desde o ensino de estratégias militares ao estudo da Psicologia, se voltaram para a interpretação das diversas formas de conflitos, sejam elas sanguinárias e violentas ou dissimuladas e predominantemente verbais. Devemos distinguir, para podermos justificar a abordagem metodológica desta pesquisa, uma questão ambiental de um conflito ambiental. Podemos descrever a existência de uma questão ambiental de vários modos. Uma questão, ou um problema, de natureza burocrática, de licenciamentos ambientais, da mitigação ou da compensação de efeitos ou impactos, da formação e capacitação de agentes de fiscalização para poder cumprir normas legais e assim por diante. Com isso, não estaremos necessariamente associando a questão ao conjunto das teorias de conflito. Mas, a noção de conflito não pode ser confundida com um simples problema. Ou seja, se queremos investigar um conflito, se este é o nosso problema de pesquisa, necessitamos de uma base teórica específica para que seja definido um conflito, bem como a sua tipologia, para podermos apresentar as variáveis sujeitas à análise. Lipset (1985) considera duas linhas de pensamento que seriam classificadas como de conflito e de consenso e que se distinguiriam pelo matiz ideológico. A primeira teria como base um conjunto de autores de formação predominantemente marxista, como o próprio Marx, Althusser e Gramsci e a segunda os funcionalistas e teóricos das teorias de sistemas como Durkheim e Parsons, por exemplo. A diferença fundamental entre esses dois grupos, para Lipset, pode ser percebida pelo fato de o marxismo, ao evidenciar o conflito de classe e as contradições estruturais como motores de mudança, pode ser entendido como diametralmente oposto ao funcionalismo, com suas premissas, supostamente conservadoras, de que tudo o que existe é necessário e de que os laços interdependentes entre instituições e práticas significam que as conseqüências sociais da mudança social planejada são imprevisíveis e muitas vezes desastrosas. 38 Na visão funcionalista, os conflitos podem ser vistos como tensões normativas que ocorrem no nascedouro da sociedade moderna. Normas devem ser destruídas para que novas normas possam se implementar e, assim, possibilitar o surgimento da estrutura social moderna, onde tanto normas formadoras de mercado quanto normas constitutivas do indivíduo e do poder impessoal marcam o nascimento do capitalismo, do individualismo e dos novos costumes. O conflito, nessa visão, é entendido como confronto de interesses entre grupos sociais, no qual modernidade representa uma maior complexidade social, com o nascimento de novos grupos fundamentais. As classes sociais detentoras do capital e as da força de trabalho se enfrentam nos campos econômico, político e social, numa forma de conflito caracterizada por interesses divergentes quanto à apropriação das riquezas produzidas, quanto ao reconhecimento social e também quanto à detenção de poder. (Nascimento, 2001). Na noção funcionalista, os conflitos também são resultantes da ausência de normas que ofereçam objetivos claros aos indivíduos e, assim, os atores não têm interesses definidos nem existe a colisão de antigas e novas normas, mas os comportamentos sociais sem objetivos definidos e destituídos de significado perceptível constituem reações de indivíduos ou grupos sociais que não se identificam com as novas normas e estruturas em construção, cuja reação é um protesto desorganizado contra o que não se compreende. Essa visão se ajusta ao pensamento no qual a recusa a normas e valores constitui o comportamento desviante. Essa noção de conflito envolve disfunção, perturbação, desequilíbrio e perda de harmonia, resultando sempre de um mau funcionamento do sistema, que gera problemas para a sociedade moderna. Enquanto a visão marxista impõe que a fonte dos conflitos seja buscada nas relações socioeconômicas, em um permanente processo de colisão e de conseqüente mudança do sistema capitalista, a visão funcionalista associa os conflitos à natureza humana, mantendo o ideal de uma resolução por meio da mudança nas relações humanas. 39 Em Marx, o conflito é a tensão entre a base das estruturas sociais e o seu topo, entre a infra e a superestrutura. Entre economia e política, ou melhor, entre as formas de produção e as formas de organização social e política, as primeiras são as determinantes do processo social, a base da sociedade e, assim, um conflito central organiza e condiciona a manifestação de todos os outros conflitos: o conflito entre capital e trabalho. Sem conciliação, a solução é a destruição de um dos termos da tensão. A luta de classes, desse modo, funcionaria como um motor da história da humanidade, responsável pelas transformações sociais e pelo progresso, pelo menos nos termos do embate ideológico que caracteriza o final do século XIX e em Hegel o conflito entre capitalistas (tese) e o proletariado (antítese) redundará numa situação em que as classes sociais não mais existirão (síntese). Para Simmel (1983), os conflitos são formas de interação social; constituintes das relações sociais da sociedade moderna. O conflito é necessário para resolver dualismos divergentes, almejando algum tipo de unidade, mesmo que signifique a aniquilação de uma das partes conflitantes. Os conflitos, portanto, são meios pelos quais os atores sociais dirimem suas divergências, interesses antagônicos ou pontos de vista conflitantes, possibilitando que a sociedade alcance uma certa unidade. Os conflitos são fatores de coesão social e não de distúrbio. Os elementos que os caracterizam, regendo sua evolução e intensidade, são: natureza, atores sociais, campo específico, objeto em disputa, lógica ou dinâmica de evolução, mediadores e tipologia. Os atores podem ser definidos como indivíduos, grupos ou organizações de identidade própria, reconhecidos por outros, com capacidade de modificar seu ambiente de atuação que se posicionam visando à promoção, ao apoio, à neutralidade, à oposição ou ao veto. 40 Esse conjunto de definições nos remete a uma das causas mais comuns de conflitos: as formas de comunicação entre os diversos atores envolvidos, em especial a linguagem utilizada nos processos de interação entre as partes. Kuhn (op. cit.) alerta que: Os que participam de uma interrupção da comunicação não podem dizer: "utilizei a palavra 'elemento' (ou 'mistura', ou 'planeta', ou 'movimento livre') na forma estabelecida pelos seguintes critérios". Não podem recorrer a uma linguagem neutra, utilizada por todos da mesma maneira e adequada para o enunciado de suas teorias ou mesmo das conseqüências empíricas dessas teorias. Parte das diferenças é anterior à utilização das linguagens, mas, não obstante, reflete-se nelas. (Kuhn, 2001) Tomando o pensamento do autor de forma analógica, uma vez que sua advertência se dava, nesse texto, em um contexto da discussão de teorias científicas, podemos considerar suas palavras aplicáveis à descrição de conflitos inerentes a culturas distintas, como os que são encontrados nos processos de negociação de empreendimentos de grande porte, em que componentes políticos e ideológicos das "teorias" sustentadas pelas partes conflitantes, embora anteriores às linguagens utilizadas, nelas são refletidos. Por tudo isso, uma teoria de processo político pode não ser suficiente para abordar o conjunto de elementos presentes em conflitos e, tampouco, uma única disciplina do conhecimento será suficiente para que se possa analisá-los. Muitas teorias procuram investigar as características humanas individuais como causadoras de influências significativas em um processo de negociação de conflitos. Não é difícil admitir que as características individuais dos negociadores, manifestadas tanto por características psicológicas quanto pela sua trajetória de vida, sejam determinantes para uma razoável explicação dos métodos, estratégias e táticas que utilizam. Os estudos da psicologia social, fundamentais para o entendimento do ambiente de conflito, freqüentemente se deparam com falhas nos processos de comunicação entre atores partes com diferentes formações e informações. 41 As teorias de conflitos denominadas como formais podem fornecer fundamentos para a simulação de jogos de guerra, em que conflitos internacionais serão investigados por meio da utilização de conceitos como o de jogos de soma zero ou de jogos de soma positiva, aquele em conflitos nos quais um ganha e outro perde, este a conflitos nos quais ambas as partes encontram uma solução de soma positiva. Novamente, a informação terá uma importância definitiva, em qualquer caso. Se as partes envolvidas em um conflito são capazes de se comportar de forma racional, buscando a sua “resolução”, é necessário um conjunto confiável de informações que permitam considerar várias soluções possíveis. Contudo, percepções distintas dos vários aspectos de um conflito podem gerar, no lugar da resolução, um agravamento ou mesmo um impasse. Assim sendo, a possível resolução de um conflito implica, necessariamente, o estabelecimento de formas de comunicação para a criação de uma dinâmica esclarecedora de equívocos e reparadora de fraturas no diálogo, para que a cooperação entre as partes favoreça um processo de tomada de decisão de soma positiva. No tipo de conflito analisado nesta pesquisa encontra-se uma discussão clássica da antropologia: difusão cultural e incorporação de unidades socioculturais e políticas a um sistema mais amplo. Ribeiro (2000) nos lembra que desde que a humanidade conheceu o comércio de longa distância, essa relação entre local e supra-local permanece. Porém, tratase, nos dias de hoje, evidentemente de uma situação em graus nunca conhecidos anteriormente: De fato, em certos níveis há uma possibilidade de mobilização de informação que é transnacional e não facilmente controlada pelo Estado. Estão, além das redes de computadores e os fax, os telefones, os rádios, as televisões, a CNN, cadeias globais. Vivemos, então, em um mundo que está diminuindo por conta da existência desse processo de compressão do espaço-tempo. A compressão do espaço-tempo aumenta dramaticamente a carga de informações que temos de consumir e monitorar no cotidiano. O que Simmel via como um bombardeio de informações sobre o homem urbano do começo do século hoje pode parecer-nos pueril. 42 Há uma profusão, uma exuberância de informações que o habitante da sociedade de massas do presente tem de processar. Nos cenários da antropologia das "sociedades complexas", é necessário encarar essa questão com urgência. (Ribeiro, 2000) Por tudo o que foi descrito, as questões relacionadas aos processos de transmissão de informações e, em última análise, de comunicação com a sociedade com vistas à negociação dos empreendimentos do setor elétrico na Amazônia formam um conjunto merecedor de respostas consistentes para que seja possível descrever os conflitos associados aos grandes projetos hidrelétricos. Tendo discutido os conceitos que serão adotados nesta pesquisa para a análise dos conflitos que caracterizam o processo de tomada de decisão sobre a construção de usinas hidrelétricas na Amazônia, avança-se agora para uma das principais questões iniciais desta tese que se refere à possibilidade de se aprender com a experiência, em contraposição ao imobilismo gerado por uma visão excessivamente teórica dos projetos que provocam impactos significativos no ambiente, onde a maioria dos embates se dá no campo político e ideológico. Como a pesquisa empreendida se dirige a um objeto onde se entrelaçam fortemente a ciência e a democracia, buscou-se sustentação para uma premissa deste trabalho no documento “Processos de Interação do Setor Elétrico Brasileiro com a Sociedade” (Eletrobrás: 1994) que recomenda debates e reflexões, em um processo contínuo e interativo, estabelecendo instâncias e fóruns adequados a cada momento específico dos empreendimentos, e visando à maturidade e ao equilíbrio na procura de soluções aceitáveis para a sociedade. Como a introdução destas variáveis no planejamento da expansão do sistema elétrico fornece novos condicionantes para a tomada de decisão e para a participação de outros segmentos da sociedade, cabe ao setor gerar soluções alternativas, apontando para as diversas questões técnicas pertinentes, a fim de permitir que a sociedade opine nos momentos de tomada de decisão. As decisões passam, assim, a ter um caráter político, facilitando desta forma a articulação necessária à sua efetivação. 43 Como não se trata de "vender" empreendimentos, mas, sim, de viabilizar sua discussão e negociação, por meio da troca de informações detalhadas e objetivas entre as partes interessadas, fez-se necessária a obtenção de uma referência a experiências bem sucedidas, tanto no campo teórico quanto, principalmente, na prática, de uma metodologia de intervenção em uma bacia hidrográfica para que se empreendesse uma discussão no campo do possível. Recorreu-se, por isso, ao trabalho do físico Kai N. Lee, cujas idéias a respeito da integração entre ciência e política, tendo como objeto para esta integração o meio ambiente, resultou em um livro, denominado "Compass and Gyroscope: integrating science and politcs for the environment", que, no contexto desta investigação, se coloca como contraponto ao estado atual da interseção entre Meio Ambiente, Setor Elétrico e Amazônia – central nesta pesquisa. Kai N. Lee nos apresenta uma metáfora baseada nos termos "Compass and Gyroscope". A tradução pura e simples para o português da palavra compass levaria a duas interpretações possíveis: uma bússola e um compasso musical. A metáfora de Lee se refere à bússola. O compasso musical tem, na língua portuguesa, um homógrafo representado pelo instrumento utilizado para tomar medidas e traçar círculos. Na língua inglesa, essa acepção seria traduzida para (pair of) compasses. Entretanto, a metáfora de Lee não perde o seu impacto quando se adota uma tradução livre, na acepção de compasso como um instrumento para tomar medidas, uma vez que era assim utilizado pelos antigos navegadores, ao apontar rumos sobre as cartas náuticas. Lee (1993) inicia seu livro lembrando Cristóvão Colombo que, cinco séculos atrás, veio para um novo mundo, buscando uma terra rica, levemente povoada por gente sem força para resistir a doenças européias e a seu poder de fogo. Ao contrário da Europa que Colombo deixou e da Ásia que estava procurando, a América era uma fronteira aberta. Havia tesouros a serem explorados, terras a serem 44 “limpas” e plantadas, selvagens a serem convertidos ou submetidos – recursos a serem ganhos por qualquer um que tivesse força para se “firmar e trabalhar”. O Velho Mundo era assentado e ordenado, fadado a um domínio de possibilidades finitas. A América, por algum tempo, fez o globo inteiro parecer sem limites – desafiando os colonizadores com uma caminhada errante dentro de um mundo selvagem,. Pode-se dizer que a Amazônia, ainda hoje, se assemelha ao "mundo selvagem" de Colombo, tanto nas suas imensas potencialidades quanto à sua complexidade. Mais adiante, será possível fazer uma comparação entre a mentalidade dos conquistadores do Novo Mundo e os elementos motivadores dos engenheiros e técnicos do setor elétrico brasileiro quando da expansão em direção à Amazônia. O mundo, para o autor, é uma implausível ilha azul e quente sob um céu escuro e frio. No mundo real, ninguém pode "light out to get away from 'sivilizin'", como Huckleberry Finn o fez. Para Lee, essa mensagem é tão superficial como um pôster e tão profunda quanto a industrialização. E é isso que nos aproxima do período de Colombo. Não obstante a tecnologia, economia de mercado, governo e a perseverança do indivíduo, as forças humanas não têm mostrado alguma evidência conclusiva de que há vida inteligente na Terra. A tecnologia trouxe melhor vida para muitos, Lee espera que esse progresso continue, mas afirma que esperança não é um negócio tão bom quanto um plano. Transações de mercado não levam automaticamente a resultados ambientais sadios. Não há governo mundial para disciplinar os erros do mercado e a conduta de EstadosNação induzem muitos a questionar se um governo é mais um problema do que uma solução. Ninguém, mesmo que visionário, mesmo que poderoso, pode viver e exercer poder por tempo bastante para guiar a economia do mundo de onde atualmente se encontra para um curso estável de longa duração. A liderança inteligente do planeta é improvável de ser encontrada no nível do indivíduo ou das espécies. 45 O autor considera que certamente não deve existir uma trilha da vitalidade instável do presente para uma relação sustentável de longo prazo entre a humanidade e o mundo natural. Certamente, uma das mensagens do século vinte para a posteridade será que a nossa ciência e tecnologia persistentemente ultrapassam a nossa habilidade de governar nossa expansível capacidade para mudar o mundo e nós mesmos. Se há uma trilha melhor, ela deve ser encontrada ou construída por instituições humanas, entidades organizadas que podem atuar além do alcance dos indivíduos. A história das instituições oferece esperança para a gestão e para o planejamento – inteligentes – dos problemas de escala global, de longa duração, com os quais devemos nos confrontar e conviver. Mesmo que as causas dos problemas ambientais, como o agravamento do Efeito Estufa, pudessem ser facilmente compreendidos, sua cura seria difícil quando – como freqüentemente é o caso – nós nos tornamos comprometidos, de forma profunda e complexa, com as atividades que causam esses problemas. Citando Harvey Brooks, Lee nos lembra que o próprio fato de nossas mais avançadas sociedades serem pluralísticas nos objetivos e democráticas na governança, geraria contradições ambientais de industrialização virtualmente insolúveis. Para tornarem-se abertas, sociedades pluralísticas à frente do alcance disciplinado de um único objetivo – mesmo um tão básico quanto a sobrevivência ambiental – requereriam recursos sociais e duração que poderiam estar além de nossa capacidade. Brooks salientou esta necessidade de Aprendizagem Social de longo prazo: o desenvolvimento da capacidade de conviver com as ameaças incertas ao bem-estar, que envolvem a sociedade industrial e a habilidade de sustentar as curas necessárias por tempo bastante para fazer a diferença. Aqui entra um grande achado de Lee: pensar sobre ciência e democracia como um compasso – na verdade, como já foi dito, uma bússola – e um giroscópio5. 5 Segundo o Dicionário Houaiss, um dispositivo cujo eixo de rotação mantém sempre a mesma direção na ausência de forças que o perturbem, seja qual for a direção do veículo que o conduz, e que é composto de um 46 A ciência ligada ao propósito humano é um compasso, uma forma de traçar direções quando se navega além dos mapas. A democracia, com sua estabilidade contenciosa, é um giroscópio, ou seja, um instrumento capaz de prover uma forma de manter nossa capacidade para navegar em mares turbulentos. Compasso e giroscópio não asseguram uma passagem segura por meio de águas violentas e não mapeadas, mas o viajante prudente usa todos os instrumentos disponíveis, beneficiando-se das virtudes individuais daqueles. Atualmente, os humanos não sabem alcançar uma economia ambientalmente sustentável. Lee considera que, se nós devemos aprender, deveremos precisar de duas formas complementares de educação. Primeiramente, devemos aprender muito melhor a relação entre os humanos e a natureza. A estratégia proposta por ele é a gestão adaptativa, por meio do qual os usos econômicos da natureza são tratados como experimentos para, assim, podermos aprender eficientemente com a experiência. Encontramos neste ponto de vista um aspecto extremamente relevante para esta tese. A usina hidrelétrica Balbina é considerada, desde quando ainda era apenas um projeto, como um exemplo de como não se deve construir um empreendimento na Amazônia. No entanto, esta pesquisa constatou que os estudos realizados pelos cientistas naquela realidade alterada pelas obras da usina foram pontuais, descontinuados e, até mesmo, condenados por parte da Academia, tendo havido, inclusive, uma manifestação surpreendente de um membro do primeiro escalão do Governo Collor, oriundo dos meios acadêmicos, propondo que as comportas da barragem fossem abertas, permitindo que o rio Uatumã voltasse correr livremente, desconsiderando todo o montante de recursos despendidos e, principalmente, a oportunidade de se estudar a realidade local e de se aprender com os eventuais erros cometidos. disco rígido ou um volante que gira em grande velocidade ao redor de um eixo de revolução e é suspenso de modo a ter liberdade de movimentos. 47 Como declarou um dos entrevistados desta pesquisa, "Balbina não se justifica, mas se explica". Seguindo esse tipo de raciocínio, poderíamos tratá-la como um experimento e aprender com ele. A segunda forma de educação proposta por Lee é de que precisamos apreender muito mais sabiamente a relação entre as pessoas. Um nome para este processo de aprendizagem é política; outro é conflito. Precisamos de instituições que possam sustentar a civilização agora e no futuro. Construí-las requer conflito, pois os interesses fundamentais da sociedade industrial estão sob desafio. Mas o conflito deve ser limitado porque, se não demarcado, destruirá as fundações materiais daqueles interesses, deixando todos na pobreza. O conflito delimitado é a política. Mais uma vez, a convergência com a linha adotada nesta pesquisa é explícita, na medida em que esta se alinha com a visão, digamos, otimista, de Georg Simmel para os conflitos sociais e políticos. Lee propõe que essa combinação de gestão adaptativa e mudança política seja o que denomina uma Aprendizagem Social. A Aprendizagem Social explora o nicho humano e o mundo natural tão rapidamente quanto o conhecimento pode ser obtido em termos tais que possam ser governáveis, embora nem sempre ordenadamente. Isso expande nossa ciência de efeitos pelas escalas de espaço, tempo e função. A ação humana afeta o mundo natural sob formas que não sentimos, esperamos ou controlamos. Aprender a fazer todas as três localiza-se no centro de uma economia sustentável. A gestão adaptativa de Lee é uma abordagem para a política de recursos naturais que incorpora um imperativo simples: políticas são experimentos; aprenda com eles. Para viver, nós usamos os recursos do mundo, mas não entendemos a natureza o suficiente para saber como viver harmoniosamente dentro dos limites ambientais. a gestão adaptativa considera essa incerteza seriamente, tratando as intervenções humanas em sistemas naturais como provas experimentais. 48 Um dos entrevistados, ex-diretor da Eletronorte, relatou um episódio que, além de divertido, traz uma ilustração significativa do açodamento inicial nos estudos relacionados com as alterações ambientais provocadas pelas usinas hidrelétricas amazônicas. Contou ele que, ao se encontrar em visita técnica à Balbina, foi abordado por uma jovem antropóloga, entusiasmada com a descoberta de uma garrafa que, segundo ela, se tratava de um achado arqueológico muito antigo e importante. Tomado de curiosidade ele examinou a garrafa e, para seu espanto, ao virá-la de cabeça para baixo, encontrou a inscrição: steinhager. O relator dessa história quis, com seu relato, enfatizar as condições em que se realizaram os convênios com instituições científicas feitos pela Eletronorte – em um cenário de pressa para compensar os sucessivos atrasos sofridos pelo projeto de Balbina e de tentativas de serem criadas parcerias com os meios científicos e acadêmicos com vistas a estudar os impactos ambientais da usina. Por isso mesmo, Lee enfatiza que os praticantes de uma gestão adaptativa devem tomar um cuidado especial com a informação. Primeiro, eles devem ser explícitos com o que esperam, de forma que possam elaborar métodos e aparatos para fazer mensurações. Segundo, eles devem coletar e analisar as informações de forma que as expectativas possam ser comparadas com o que ocorre na verdade. Finalmente, eles transformam a comparação em aprendizagem – eles corrigem erros, melhoram seus entendimentos imperfeitos e mudam ações e planos. Ligando ciência e propósito humano, a gestão adaptativa serve como um compasso para usarmos na busca de um futuro sustentável. Um caso exemplar para o setor elétrico é também um bom exemplo para as teses de Lee. Trata-se do salvamento de animais no período de enchimento do reservatório das usinas hidrelétricas. Durante um bom período, acreditou-se que seria necessária elaboração de programas de salvamento de fauna em empreendimentos hidrelétricos visando à minimização das perdas de indivíduos da região e por meio da relocação dos exemplares salvos em áreas previamente selecionadas. 49 Os recursos financeiros, o pessoal empregado e a logística utilizada em operações dessa natureza foram imensos. As usinas de Itaipu, Tucuruí, Balbina e Samuel, entre outras, foram palco desse tipo de salvamento cuja intenção era manifestada até mesmo na escolha do nome do projeto: Operação Curupira, em Tucuruí e Operação Muiraquitã, em Balbina, são exemplos. O aprendizado obtido nessas operações forneceu elementos suficientes para se concluir que a eficácia desse procedimento era quase nula – ao menos, no sentido inicialmente proposto – uma vez que os animais salvos e relocados rompiam o equilíbrio da região de relocação ao disputar território com os habitantes primitivos e, eventualmente, causar cruzamentos genéticos indesejáveis. A partir desse aprendizado, o salvamento de fauna em reservatórios foi reorientado no sentido de enviar os exemplares resgatados para instituições científicas, como o Instituto Butantã, e para os jardins zoológicos. Para distinguir a gestão adaptativa do julgamento e erro pelos quais os humanos agora aprendem, Lee exemplifica com o que acontece quando uma trilha na floresta tropical é aberta. Cortando e removendo árvores testam-se as crenças sobre erosão do solo, sobre que plantas cresceram em clareiras, sobre a poluição das correntes que drenam o solo e outros aspectos de resposta daquele ecossistema para o impacto. Se aquelas crenças são corretas, clareiras podem ser obtidas sem prejuízo permanente para a capacidade do ecossistema para apoiar a vida e o conhecimento é validado. Resultados não previstos, no entanto, geralmente trazem somente perdas, pois as pessoas são raramente preparadas para inferir lições que são claras e capazes de serem checadas contra experiência de outros. A gestão adaptativa, contudo, faz mensurações de forma que a ação significa conhecimento – mesmo quando o que ocorre é diferente do que foi previsto. Propriamente empregado, esta abordagem experimental produz conhecimento confiável da experiência ao invés da acumulação lenta e aleatória advinda de um erro não examinado. 50 A gestão adaptativa planeja para resultados não antecipados por meio de coleta de informação. Geralmente, quanto maior a surpresa, mais valiosa é a informação obtida. Mas os custos da informação geralmente parecem muito altos para aqueles que não prevêem tais surpresas. Nesse ponto, é preciso ressaltar, mais uma vez, a oportunidade de se utilizar o trabalho de Lee nesta pesquisa. Todo um capítulo aqui será dedicado à informação, para fornecer bases à discussão que se empreende nesta investigação. Já que os conflitos que fazem parte da política ambiental provavelmente aumentarão e são necessários para detectar erro e forçar correções e que, segundo Lee, os conflitos não controlados destroem a cooperação de longo prazo – essencial para a sustentabilidade, um grau aceitável de conflito controlado somente é possível em uma sociedade aberta o suficiente para que se tenha uma cooperação política. Essa é uma das principais razões pelas quais foi priorizada a discussão sobre a informação e a participação da sociedade nesta tese. Seu desenvolvimento revelou que a cooperação entre as partes em conflito está muito longe de ser feita em bases razoáveis, principalmente por conta do controle da informação – e das falhas nos processos de comunicação – e da radicalização política que faz com que a palavra negociação seja entendida como sinônimo de negociata, o que se configura como uma grave distorção, destruidora das formas de participação cooperativa entre conflitantes. A competição política é um processo desordenado e a existência de maior ou menor competição aberta em sistemas políticos é, paradoxalmente, o que valida neles o conflito. A competição política pode persistir somente onde há regras, tanto não escritas como escritas, onde um comprometimento compartilhado remete os temas realmente importantes ao debate contínuo. Lee enfatiza que, em tiranias, os perdedores não são somente derrotados, mas excluídos de decisões futuras feitas por vencedores que necessitam 51 respeito, não limites. Como um giroscópio, a competição é o elemento que pode estabilizar o processo. As pessoas procuram liberdade individual (e a competição política que ela adota) como direito humano fundamental e universal. Para Lee, se suas aspirações são preenchidas em todo lugar, a capacidade de limitar o conflito para corrigir erros pode tornar-se, inesperadamente, a salvação de nossa espécie. Com um giroscópio profundo dentro de um navio, apontando um real curso porque é independente das correntes de ventos, o conflito limitado por restrição legítima pode ainda prover uma direção para todos. Sua proposta é no sentido de que a gestão adaptativa e o conflito limitado são essenciais para que a Aprendizagem Social ocorra. a gestão adaptativa – o compasso – é uma aplicação idealística da ciência para a política que pode produzir conhecimento confiável de erros inevitáveis. O conflito controlado – o giroscópio – é uma aplicação pragmática de políticas que protegem o processo adaptável por meio do disciplinamento da discórdia de um erro inevitável. Juntos, eles podem usufruir a aprendizagem de longas décadas necessária para mover, de uma condição corrente de insustentabilidade, em direção a uma ordem social durável. Alinhada com as idéias de Lee, os aspectos conclusivos desta pesquisa apontam para Aprendizagem Social como mais urgente e necessária em um grande bioma, como o amazônico. Sendo territórios com escalas tais que fazem com que esses biomas sejam divididos entre duas ou mais jurisdições de governo, grandes ecossistemas apresentam alguns dos mais difíceis problemas da ciência e política ambiental – e ninguém ignora esse fato. Sendo complexo e essencial para o bem estar de grandes populações, o bioma amazônico é freqüente e seriamente prejudicado por profundas rivalidades entre várias jurisdições, correntes políticas e pela ausência de um projeto nacional para o Brasil que defina o verdadeiro papel que a Amazônia deve representar para o país – e esses fatos também são do conhecimento de todos. 52 No sentido de uma Aprendizagem Social, a Amazônia apresenta grandes oportunidades para que desafios da ciência, dos planejamentos setoriais, da gestão ambiental e das políticas públicas sejam enfrentados. Entretanto, é possível argumentar que todo esse desafio resiste a abordagens simples. Mas, a Aprendizagem Social implica tolerar algum grau de simplificação, pois sem ele pode não haver a aprendizagem e transferência de conhecimento entre os envolvidos nessas questões e mais do que perseguir clareza conceitual, nós devemos estudar como instituições humanas lidam com a interdependência criada quando fronteiras humanas cortam continuidades ecológicas. No caso da Amazônia, o pragmatismo é uma virtude primordial, pois devemos aprender o que podemos fazer, reconhecendo nossos limites – e, principalmente os limites daquele grande bioma. O grande ecossistema é socialmente construído e construções sociais podem ser difíceis de alterar. Fronteiras entre competidores de um recurso natural têm freqüentemente produzido impasses ao invés de resolver problemas. Mas uma abordagem adaptativa, como a proposta por Lee pode evitar uma paralisação completa, como a que ocorre atualmente nas questões envolvendo hidrelétricas na Amazônia. O dinamismo social da aprendizagem pode eliminar o impasse socialmente construído e a flexibilidade subversiva da Aprendizagem Social possui maiores implicações para as políticas públicas, incluindo a ambiental, da região, na medida em que lá existem arenas de interdependência. O reconhecimento da interdependência é um imperativo. As abordagens que antecipam o reconhecimento de interdependência são duráveis e permanentes. Muitos problemas sociais e ecológicos tornam-se aparentes somente em organizações de complexidades e dimensões tais que permitam essa percepção. Ainda, grandes ecossistemas são também laboratórios de invenção institucional. Com disse Lee, das crônicas frações de ecossistemas regrados por interesses humanos divergentes surge grande parte de nossa pequena quantia de idéias para controle do planeta, o maior ecossistema, aquele menos provável de ter um único governo. 53 Amazônia, Amazônias. Um capítulo inteiro desta pesquisa foi dedicado a discutir esse grande e multifacetado bioma, sob o prisma das diferentes visões que sobre ele se aplicam. As diferentes regiões que o compõem são, cada uma, grandes laboratórios altamente imperfeitos. Nenhuma delas é perfeitamente combinada com qualquer outra e aquilo que funciona bem em uma delas, pode não ser passível de replicação em outra. Contudo, o fato de que o conhecimento pode ser incompleto não é uma razão para depreciar o que nós podemos extrair destes laboratórios. Desenvolvimento sustentável é – ou deveria ser – um tema muito mais polêmico em países como o Brasil do que em países industrializados. Em primeiro lugar, por causa da urgente necessidade de progresso e, em segundo lugar, por conta da contínua luta por justiça social. As nações como o Brasil, em geral, perderam mais do que ganharam com a globalização da economia mundial. As pressões de débitos internacionais e ruptura de economias nacionais, regionais e locais deixaram pouco espaço para os objetivos ambientais de longo prazo, além de uma compreensível má vontade com as recomendações dos países mais ricos para que abram mão de um tipo de desenvolvimento semelhante ao que aqueles países utilizaram. O processo de investigação deste trabalho, todavia, se deu sobre uma "cama" de simpatia para com o conceito de desenvolvimento sustentável. Todos parecem aderir incondicionalmente à idéia. Se, como dizia o grande dramaturgo Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra, então, como desconfiou o Hamlet de Shakespeare, há algo de podre no reino da Dinamarca – ou da Amazônia. Quando as organizações internacionais clamam por um tipo de desenvolvimento que vá ao encontro das necessidades do presente sem comprometer a capacidade de gerações futuras para ir ao encontro com suas próprias necessidades, precisamos evitar que tudo isso se transforme em meros enfrentadas. slogans oportunistas. Para isso, algumas questões devem ser 54 Como o mundo deverá alcançar a sustentabilidade e como reconheceríamos que nós o fizemos? Lee oferece uma resposta parcial, a Aprendizagem Social. Tal aprendizagem é de longa duração e é árduo o teste sobre se uma política é de fato direcionada para a sustentabilidade. Mas um processo não é um resultado, nem tampouco a existência de um processo é igual à vontade de usá-lo. A sustentabilidade tornou-se complexa e problemática quando as ações locais passaram a ter conseqüências globais, e vice e versa. Séculos afora desde a descoberta européia do Novo Mundo, viram os mercados desenvolverem-se em escala planetária. Pode haver uso sustentável em terras que são ligadas por mercados para compradores e fornecedores distantes? Nesta investigação confirmamos uma premissa de que somente uma colaboração permanente entre uma ciência idealística e uma política pragmática permite alcançar metas de sustentabilidade. O idealismo da ciência rigorosa oferece a melhor rota conhecida para o conhecimento confiável, a bússola – ou o compasso – de Lee. Políticas pragmáticas de meio ambiente têm sido bem sucedidas em nações industriais avançadas e o pragmatismo é necessário em um mundo de nações que se atrapalham mutuamente na busca de uma governabilidade planetária. Compõem, essas políticas, o giroscópio sugerido por aquele cientista. Como o compasso e giroscópio, as duas partes da Aprendizagem Social são complementares, cada um compensando a fraqueza do outro, o todo ficando mais forte como conseqüência. Ou, em uma tradução livre das palavras de Lee: Hoje, nós não sabemos se é possível alcançar sustentabilidade, nem como fazê-la. O ambientalista em mim duvida que o crescimento do tipo buscado por sociedades ricas pode beneficiar o planeta como um todo. O cientista em mim acredita que a sustentabilidade envolve quebra-cabeças práticos que não podem ser ignorados pelo zelo missionário de advogados ambientais ou pelo otimismo tecnológico daqueles que buscam o crescimento. A tensão entre a verdade científica e o desafio de uma sociedade justa reside no coração do desenvolvimento sustentável. É uma tensão que nós enfrentamos por meio da Aprendizagem Social. 55 A complexidade conceitual e a tenacidade das pessoas fazem a busca pelo desenvolvimento sustentável difícil. Que as pessoas tenham crenças, não é o problema: sem crenças e valores, haveria pouca razão para ajudar a raça a perdurar. Ainda, a habilidade de instituições humanas de aprender é frágil. Nós precisamos de prudência, inventividade e persistência. Dar condições para que um navio de longo curso siga viagem a partir destes materiais indefinidos e refratários permanece uma tarefa para a qual entendimento não é o suficiente. Eu saliento, apenas, que é necessário. (Lee, 1993) 1.4 APRESENTAÇÃO DOS MÉTODOS ADOTADOS NA PESQUISA A opção metodológica por uma pesquisa de natureza qualitativa implica, neste caso, não trabalhar com um único problema nem, tampouco, com uma hipótese definida a priori. Como explica Thiollent (1985), a preocupação em quantificar resultados empíricos pode significar prejuízos para a busca de compreensão e de interação entre pesquisadores e membros das situações investigadas. Uma completa separação entre o pesquisador e seu objeto de estudo, com vistas a uma objetividade tal que os fatos e dados se apresentariam como uma realidade evidente e incontestável, não poderia ser almejada por este trabalho, tanto pelas características demasiadamente complexas do objeto – melhor seria dizer objetos – quanto pela trajetória pessoal e profissional do pesquisador. Assim, buscou-se empreender uma investigação que possuísse um ambiente natural como fonte direta de dados, mesmo que sem prejuízo para a utilização de outras fontes, onde o pesquisador atuasse como principal instrumento da pesquisa, na qual os dados coletados são predominantemente descritivos. A preocupação com o processo suplantou, em muito, a preocupação com o produto, sendo dada uma atenção especial à procura de focos em que fossem percebidas as perspectivas dos participantes do processo analisado. 56 Mesmo assim, não foi adotada uma abordagem totalmente identificada pelo contexto de uma pesquisa-ação, muito utilizada nos anos 1980, segundo a qual deve haver uma intervenção direta no problema estudado e cujo objetivo consiste em resolver as questões relacionadas com a situação observada. No entanto, alguns pressupostos desse tipo de pesquisa foram utilizados. Uma explícita interação entre o pesquisador e os atores entrevistados foi proposta no sentido de diminuir eventuais desconfianças quanto uma possível parcialidade do analista. Trata-se de uma forma modificada do pressuposto da pesquisa-ação, na medida em que foi estabelecida, para os entrevistados, uma posição de neutralidade quanto aos excessos políticos e ideológicos que marcaram – e marcam – o conflito analisado. Em outras palavras, procurou-se eliminar o risco de ativismo ou proselitismo na pesquisa, por meio da tentativa do aumento do conhecimento do pesquisador a respeito da situação social dos atores envolvidos e de suas formas de percepção da “realidade”. Considerou-se, para a escolha dos métodos a serem utilizados, o fato de ser praticamente impossível compreender o comportamento dos atores em um conflito, sem entender o quadro referencial dentro do qual os indivíduos interpretam seus pensamentos, sentimentos e ações. Nessa escolha, a natureza dos problemas existentes na arena de conflito determina os métodos de pesquisa. Decidido o objeto de pesquisa, foi necessário incorporar o papel de observador para poder buscar, de forma mais sistemática, os dados necessários ao desenvolvimento da análise. Para tornar-se um instrumento válido e confiável de investigação científica, a observação precisa apresentar um razoável grau de controle e sistematização. As observações realizadas pelo autor deste trabalho ao longo de anos de contato com o conflito em questão – ou com conflitos de semelhante natureza e magnitude – eram em número razoável, mas o “que” e o “como” observar poderiam vir a ser questionados pelo risco de, eventualmente, apresentarem um indesejável grau de subjetividade. 57 Para disciplinar tal subjetividade, a experiência anterior e as observações registradas ao longo de alguns anos de proximidade com o objeto da pesquisa foram utilizadas para nortear a utilização de entrevistas. Considerou-se, sobretudo, que entrevistas totalmente estruturadas não seriam tão eficientes para a coleta de informações junto aos atores envolvidos, por serem estas limitantes em relação à vastidão que o tema possui. Com isso, entrevistas semi-estruturadas foram aplicadas e resultaram em aproximadamente trinta horas de depoimentos gravados com os mais diversos atores direta ou indiretamente envolvidos no conflito de Belo Monte6. Como diretamente envolvidos podemos citar políticos e empresários da região formada por Altamira e os respectivos municípios circunvizinhos, engenheiros e técnicos da Eletronorte, representantes dos movimentos sociais da região, representantes da Igreja Católica, das universidades, do Ibama etc. Como indiretamente envolvidos, considerou-se um conjunto diversificado que incluiu desde jornalistas a professores de universidades fora da região – mas com presença marcante em pesquisas sobre energia e meio ambiente – passando por técnicos da Eletrobrás que, de certo modo, não podem ser considerados como envolvidos diretamente no conflito, uma vez que a sociedade não parece perceber claramente a função e o papel daquela empresa, concentrando sua visão nas ações da Eletronorte na região. Em paralelo, um processo constante de delimitação progressiva do foco foi empreendido, partindo-se de uma visão mais ampla para procedimentos mais concentrados e produtivos. Nesse sentido foram utilizadas técnicas para testar idéias junto aos atores envolvidos que consistiram basicamente no uso de comentários, observações e especulações ao longo da coleta, com exceção dos períodos em que ocorria a gravação de entrevistas. Nesses momentos, uma atitude respeitosa em relação ao entrevistado foi adotada, independentemente de seu grau de instrução e de seu posicionamento diante da questão – o que não impediu intervenções pontuais do entrevistador, necessárias para 6 A escolha dos atores que foram entrevistados seguiu dois procedimentos. Inicialmente foram identificados aqueles atores que pela experiência do autor deste trabalho têm papel relevante na questão do Complexo Belo Monte. Neste sentido foram,identificados representantes da Eletronorte, de organizações da sociedade civil organizada e do legislativo municipal, dentre outros. O segundo procedimento se vincula ao primeiro e foi o de consultar aqueles atores inicialmente identificados se eles sugeriam outros atores relevantes a serem entrevistados. Com esse procedimento se definiu um segundo conjunto de atores que também foram entrevistados no contexto desta pesquisa. 58 maiores esclarecimentos ou para alterar o tipo de depoimento que, naturalmente, às vezes se tornava excessivamente pessoal. Para todos os entrevistados, antes da gravação, foi informado que poderiam optar pela interrupção do processo a qualquer momento, objetivando evitar o registro de determinados trechos do depoimento, bem como ser possível a não-citação do entrevistado, desde que comunicado antes da entrega da tese à banca examinadora. Também foram esclarecidas, a priori, as condições de ex-técnico e de ex-consultor da Eletronorte, condições essas que não provocaram o alinhamento incondicional com qualquer uma das ações desenvolvidas por aquela empresa, mas que explicavam uma familiarização com o problema, uma memória de acontecimentos significativos na região estudada e um relacionamento pessoal, anterior à pesquisa, com alguns dos atores envolvidos. É importante enfatizar que o escopo deste trabalho envolve atores, eventos, regras, normas, significados, processos e contextos e esses podem ser analisados com o uso de diferentes abordagens metodológicas e, como conseqüência, diferentes métodos. A abordagem metodológica desta pesquisa requer uma análise de dados que leve em conta os atores, as “regras do jogo”, os significados, o contexto e o tempo. Considerando estes aspectos, o principal método utilizado nesta pesquisa teve características qualitativas, combinando a abordagem de observação participante, o desenvolvimento de um estudo de caso e o uso de entrevistas relevantes. Isso nos remete à construção de uma descrição analítica e, em alguns casos, uma explanação, de um processo social: o conflito em torno de um mega-projeto no Bioma Amazônico. Uma descrição analítica significa algo muito maior do que uma descrição jornalística, sendo basicamente uma investigação empírica, em que são aplicados um ou mais conceitos como um guia e, por outro lado, algumas questões sugerem discussão quando se 59 desenvolve um questionamento, adotando a abordagem de observação participante. Por exemplo, quanto à forma adotada para descrever o fenômeno sob análise. Para esta pesquisa, a descrição de qualquer fenômeno pode ter diferentes e nãocontraditórias descrições, sendo importante reconhecer que a verdade não é um conceito absoluto, e que é moldada por valores de quem está decidindo sobre esta verdade. Egler (op. cit) argumenta que: Relativamente ao conceito de ‘‘verdade’’, prefiro tomar emprestada a assunção feita por Hammersley (1992), que discute a ‘‘validade’’ como um sinônimo de ‘‘verdade’’. Para ele, nós nunca podemos saber com certeza se uma descrição é verdadeira, uma vez que não temos qualquer acesso confiável à realidade, já que a realidade será diferente, dependendo de quem está descrevendo-a. Dada tal situação, como iremos julgar a validade das afirmações feitas ao descrever e explicar uma realidade? A resposta reside na adequação das evidências oferecidas em apoio às afirmações. No entanto, (...) qualquer que seja a evidência oferecida para uma afirmação, sua validade pode sempre ser desafiada; e este processo de dar mais evidência, que será desafiada novamente, pode ter continuidade sem fim. Assim, surge a pergunta de quando parar; decidir quando a evidência dada é suficiente. Um aspecto importante para a solução desse tipo de questionamento diz respeito à abordagem da observação participante e à relevância das suas descobertas. Assim, o julgamento de relevância está diretamente ligado aos valores que norteiam esse julgamento. Como nenhum julgamento é ‘livre’ de valores, para justificar a relevância de suas descobertas, o pesquisador deve discutir assunções que acredita estar além da dúvida razoável. As entrevistas não foram estruturadas e, muito menos, conduzidas com o objetivo de descobrir “uma verdade”. Na realidade, algumas vezes seria impossível reconhecer, durante ou após entrevista, que o entrevistado havia “dito a verdade”. 60 Assim, seguindo a linha sugerida por Whyte (apud Egler, op.cit.) foi adotada uma conduta coerente com a tradição interacionista, que contém uma forma de olhar para as considerações do entrevistado que vai além de classificá-las como “verdadeiras” ou “falsas”. Ao lidar com a subjetividade, o entrevistador não deve tentar descobrir a verdadeira atitude ou sentimento do informante e, sim, reconhecer que os homens podem e realmente têm sentimentos conflitantes em qualquer tempo, além de sentimentos variáveis de acordo com as situações que se encontram. Com essa asserção, Whyte enfatizou que não é sempre necessário levar em conta as considerações dos entrevistados como se fossem pronunciamentos científicos e os sujeitassem a uma possível refutação. É importante ter em mente as ‘causas’ das considerações dos entrevistados. As estratégias desse tipo de pesquisa podem ser usadas para propósitos exploratórios, descritivos ou explanatórios (causais). O Estudo de Caso, por exemplo, é geralmente indicado nos casos em o tipo de questão de pesquisa é da forma “como” e “por quê” e quando o controle do investigador sobre os eventos é muito reduzido. O foco temporal, nesses casos, está em fenômenos contemporâneos dentro de um contexto do que se poderia chamar de “vida real”. Assim, um estudo de caso explanatório ou causal pode ser complementado por um estudo de caso descritivo, considerando-se, principalmente, o desejo de se analisar um fenômeno social complexo. Uma eventual presença da falta de rigor e da influência do investigador é citada por críticos dessa escolha. Contudo, há maneiras de evidenciar a validade e a confiabilidade do estudo, sem a uma apresentação do resultado do trabalho por meio de uma tediosa e detalhada narrativa. Interessa a esta pesquisa, de modo significativo, uma característica essencial do estudo de caso, ou seja, a tendência comum de todos os tipos de estudo de caso que 61 evidenciam uma tentativa de esclarecer por que foi tomada uma decisão (ou um conjunto de decisões), bem como determinar o modo pelo qual foram implementadas e quais os resultados alcançados. Ao permitir a investigação de um fenômeno contemporâneo, dentro de seu contexto real – cujas fronteiras entre o fenômeno e o contexto não são claramente evidentes – o estudo de caso se apresenta como um tipo de pesquisa empírica em que múltiplas fontes de evidências são utilizadas. Permite, dessa forma, explicar ligações causais em intervenções ou situações da vida real que são complexas demais para tratamento por meio de simples estratégias experimentais ou de levantamento de dados. Além disso, esta pesquisa pretende descrever um contexto de “realidade” no qual uma intervenção, teoricamente, ocorrerá, mas que, na prática, já está ocorrendo. O projeto da usina hidrelétrica Belo Monte tem gerado, desde a década de 1980, fatos que evidenciam intervenções na região analisada e este trabalho ambiciona avaliar uma intervenção em curso e sugerir modificações no processo e, desse modo, explorar aquelas situações nas quais a intervenção não tem clareza quanto ao conjunto de resultados obtidos ou previstos. No entanto, a generalização de caráter analítico que o estudo de caso para a usina de Belo Monte propicia não deve ser confundida com uma generalização derivada de estatísticas, pois esse não é um elemento amostral. O imprescindível treinamento do investigador para empreender um estudo de caso assegura habilidades para extrair do caso estudado informações relevantes por meio de procedimentos fundamentados na sua percepção e na sua capacidade analítica, de modo que seja possível formular boas questões e de interpretar adequadamente as respectivas respostas. No estudo de caso, a um bom ouvinte não são permitidos preconceitos. A adaptação e a flexibilidade desejadas na pesquisa não podem comprometer o rigor. Um possível conhecimento profundo sobre os temas estudados não deve prejudicar a coleta e a análise 62 de informações, com evidências convergentes e inferências – principalmente se essas tarefas ocorrerem ao mesmo tempo. Como os dados desta pesquisa foram coletados sob condições de ambiente não controlado, ou seja, em um contexto real, plano de coleta de dados e informações foi adaptado à disponibilidade dos entrevistados, fazendo com que o entrevistador se introduzisse no mundo do objeto, e não o contrário, como ocorre com estratégias de pesquisa em ambiente controlado. Para evitar que o comportamento do pesquisador pudesse sofrer restrições não foram utilizados instrumentos rígidos – como questionários com questões de múltipla escolha – privilegiando-se o acesso a atores significativos do conflito em curso, sem, contudo, tentar bloquear a ocorrência de eventos inesperados. A pesquisa documental foi utilizada para corroborar evidências de outras fontes e/ou acrescentar informações e, tendo em mente que nem sempre os documentos retratam a realidade, procurou-se extrair das situações as razões pelas quais os documentos foram criados e obter indicações de outros elementos. Um caso digno de nota foi a implantação de uma grande maquete do complexo hidrelétrico Belo Monte no cais da cidade de Altamira, permitindo a visitação de aproximadamente vinte mil pessoas, em um intervalo de tempo relativamente curto. No local, foram distribuídos impressos para os visitantes que procuravam informar a população a respeito das características do projeto, utilizando a linguagem mais simples possível. Em paralelo, foram fornecidos folhetos destinados a eventuais perguntas escritas dos interessados em maiores informações, com o título “O que você deseja saber sobre Belo Monte?”. Um conjunto de, aproximadamente, quatrocentos desses folhetos foi analisado nesta pesquisa, com vistas à obtenção de uma percepção das dúvidas, questionamentos, protestos 63 e apoios manifestados pelos habitantes de Altamira, seus vizinhos e eventuais visitantes ao projeto do complexo hidrelétrico. Cabe ressaltar que o responsável por esta pesquisa foi, também, o autor do impresso informativo fornecido no estande da maquete, uma vez que, à época, atuava como consultor da Eletronorte para a interseção das áreas de Meio Ambiente e Comunicação Social, a convite do então presidente da empresa. Esse esclarecimento é relevante para enfatizar a proximidade do investigador com a situação investigada e para acentuar que o formulário de perguntas foi elaborado por outros profissionais da empresa – um fato que, por um lado, não contou com a aprovação deste, então, consultor, mas que resultou, sob a ótica da elaboração desta pesquisa, em um ganho. Esse ganho se materializa na espontaneidade das perguntas – e de outros tipos de manifestações – dos visitantes da maquete, em um conjunto de dados significativos para a compreensão da relação da população com o projeto, complementando, sobremaneira, como outra fonte de evidências as entrevistas. Como é sabido, o uso de múltiplas fontes de evidência permite o desenvolvimento da pesquisa em várias frentes, ou seja, permite investigar vários aspectos em relação ao mesmo fenômeno, fazendo com que as conclusões e descobertas fiquem mais convincentes e aperfeiçoadas, na medida em que estas derivam de um conjunto de corroborações. Nesta pesquisa, procurou-se construir uma cadeia de evidências para levar o leitor a acompanhar o desenvolvimento do estudo desde as questões iniciais até as conclusões finais. A análise das evidências foi concebida para ser imparcial, extraindo-se conclusões analíticas e apresentando interpretações e descrições alternativas. Há duas maneiras de se formatar a estratégia geral dessa abordagem: basear-se em um referencial teórico ou desenvolver uma descrição o mais original e criativa possível do caso. 64 É certo que a forma mais comum para se analisar as evidências de um caso é basearse em proposições teóricas, uma vez que as proposições modelam, de certo modo, o plano de coleta de dados e fornecem a orientação teórica que direciona a análise do estudo. Todavia, não interessava a esta pesquisa, ao menos em seu início, focalizar a atenção sobre certos dados e a ignorar outros, e, assim, a escolha recaiu sobre a estratégia de descrição, em uma busca de relações causais entre variáveis e eventos observados e registrados no campo. Partiu-se do princípio de que a descrição, em uma pesquisa qualitativa, se equivale à mensuração em uma avaliação quantitativa. E, também, de que um bom relato se inicia antes mesmo da coleta de dados e de decisões, envolvendo a forma da redação do trabalho, tomadas nas fases anteriores para que seja aumentada a qualidade da descrição e, também, de que o trabalho não necessita ser apresentado do modo tradicional, ou seja, contendo introdução, objeto de pesquisa, objetivo, hipóteses, revisão da bibliografia, metodologia, análise dos resultados e conclusões. Não havendo um formato único, estilo e forma do texto dependem da criatividade e ousadia do autor que, nesta pesquisa, não implica abrir mão de demarcar fronteiras, isto é, a distinção entre o fenômeno estudado e seu contexto, aqui buscada por meio da utilização de argumentos lógicos e da apresentação de evidências, exaustivamente coletadas, de modo que as diferentes visões sobre o conflito analisado pudessem servir de orientação para discussões sobre aceitação ou rejeição de perspectivas alternativas. 1.5 CONCLUSÃO Nesse ponto, não há porque se concluir um capítulo dessa natureza – introdutória e teórico-metodológica. Mas, em uma conclusão com o sentido de um fechamento de um contexto obrigatório para um “apresentar de armas” teóricas e metodológicas, cabe recordar algumas palavras de Kaplan (1969) a respeito da conduta na pesquisa, especialmente quanto à autonomia do pesquisador, significativas no contexto do presente trabalho. O filósofo ressaltava que: 65 As várias ciências, tomadas em conjunto, não se comparam a colônias, submetidas ao governo da lógica, da metodologia, da filosofia da ciência, ou de qualquer outra disciplina, mas a territórios que são – e, por direito, devem ser – livres e independentes. (...) Referir-me-ei a essa declaração de independência científica denominando-a princípio da autonomia da pesquisa. O princípio assevera que a busca da verdade é feita sem prestar contas a nada e a ninguém que não esteja envolvido nessa busca. (...) O domínio da verdade não tem sub-regiões de fronteiras fixas. No mundo das idéias não há barreiras para o comércio ou o trânsito. (Kaplan, 1969) Mais ainda, ao ser concluído este capítulo, faz-se necessária uma transição para o que vem a seguir. Além dos modelos já estabelecidos para esta pesquisa – a gestão adaptativa de Lee e os conflitos, segundo Simmel – um terceiro aspecto, relativo à informação, complementa o conjunto teórico-metodológico escolhido. A apresentação dos modelos associados à transmissão, ao controle, ao acesso e à validação de informações está aqui constituindo um capítulo específico, o próximo, tanto pela abrangência do tema – central nesta tese – quanto pela necessidade de se contextualizar a questão, privilegiando a mídia impressa, a Internet e a Academia, pela importância que estes meios apresentam como referência para os atores relevantes dos conflitos abordados. 66 CAPÍTULO 2: A VALIDAÇÃO DA INFORMAÇÃO 2.1. INTRODUÇÃO Uma pesquisa que pretende analisar processos de tomada de decisão em qualquer campo de atividade deve delimitar o problema de tal modo que tenha como um dos eixos principais o conceito de informação. Afinal, tomar decisões sem informações adequadas e precisas é o caminho mais curto para o erro. No entanto, quando as questões a serem enfrentadas em uma pesquisa se relacionam diretamente com aspectos tão complexos quanto modelos de desenvolvimento para a Amazônia, conflitos ambientais (ou, talvez melhor, sócio-ambientais) associados a grandes projetos e com o papel desempenhado pelas instituições governamentais e nãogovernamentais nesses conflitos, corre-se o risco de um forte desvio de trajetória da pesquisa. Isso porque componentes de natureza política e ideológica emergem – quase que inevitavelmente. Nesta pesquisa, os três aspectos citados acima estão presentes – em distintos graus de profundidade – pelas próprias características do problema escolhido. Desse modo, o capítulo que aqui se inicia é, possivelmente, aquele que apresenta o mais elevado risco de rompimento com os rigores que um trabalho acadêmico exige. A começar pelas perigosas derivações representadas por “teorias da conspiração” ou “panfletarismos políticoideológicos”. Contudo, algumas questões relevantes associadas à informação – e, principalmente, à sua democratização – precisam ser enfrentadas se quisermos investigar a atuação do setor elétrico no bioma amazônico. Tais questões estão fundamentalmente ligadas ao uso da informação – aqui entendida como conjunto de dados de natureza científica, técnica, política e histórica. Precisamos então nos deter em dois aspectos principais acerca da 67 informação: a origem dos dados que a compõem e a interpretação dada a esses dados pelos diversos atores do processo com o qual a informação considerada está relacionada Para tanto, optamos aqui por discutir um conjunto de situações não tão diretamente relacionadas com o problema da pesquisa, mas que podem servir para o estabelecimento de comparações com ocorrências relevantes associadas ao uso da informação nos conflitos ambientais presentes nos processos de negociação das grandes obras do setor elétrico na Amazônia. Assim, é possível que – no presente capítulo, principalmente – alguns dos aspectos abordados possam parecer, em princípio, demasiadamente distantes do tema da pesquisa. Enfatize-se, no entanto, que essa distância é aparente e, para evidenciar esse ponto, serão feitas algumas intervenções ao longo do texto, no sentido de estabelecer relações coerentes com os capítulos posteriores. 2.2. INFORMAÇÃO E ESCOLHA Os dicionários, em geral, apontam para uma relação muito estreita entre informação e conhecimento, bem como informação e dados. Nas últimas décadas do século passado, principalmente, o vocábulo adquiriu uma importância e uma abrangência bem maiores. Como é sabido, a vertiginosa expansão da informática no planeta quase que transforma completamente o significado original da informação, subordinando-a bits e bites. Ao procurarmos estabelecer com que definição ficaremos para que seja desenvolvido este capítulo – e, de resto, toda a pesquisa – optamos pelo trabalho de McGarry (1999), que enumerou algumas definições de informação, dentre as quais consideramos mais relevantes as seguintes: a. Informação é o termo que designa o conteúdo daquilo que permutamos com o mundo exterior ao ajustarmo-nos a ele, 68 e que faz com que nosso ajustamento seja nele percebido. Viver de fato é viver com informação.(Wiener) b. Informação é algo de que necessitamos quando nos deparamos com uma escolha. Qualquer que seja o seu conteúdo a quantidade de informação necessária depende da complexidade da escolha.(Miller) c. Recebemos informação quando o que conhecemos se modifica. Informação é aquilo que logicamente justifica alteração ou reforço de uma representação ou estado de coisas.(Shannon) d. Informação refere-se não tanto ao que você diz, mas ao que poderia dizer. Ou seja, informação é a medida da liberdade de escolha quando se seleciona uma mensagem.(McKay) Mc Garry (op. cit.) considera que a informação é o oposto da incerteza, sendo a medida da imprevisibilidade de uma mensagem e da quantidade de incerteza que reduziu. Essa incerteza, portanto, envolve algo essencial à condição humana. Tentamos reduzi-Ia sempre que possível e assim como rejeitamos as tensões por ela causadas, apreciamos a ordem e, como confirma a psicologia, o cérebro imporá ordem onde ela não existe. Realmente, os teóricos da informação têm um aliado improvável em Santo Agostinho, que acreditava (de modo muito enfático) que o mal estava na ausência de ordem e que o principal objetivo do diabo era criar desordem. Na teoria da informação a entropia é considerada uma medida da desordem. O que é pior, a entropia é um princípio universal que permeia todos os sistemas, desde escrivaninhas desarrumadas até o próprio universo. (Mc Garr;y, 1999:5) Mais interessante ainda se torna a visão de McGarry quando notamos que a palavra entropia, apesar de se referir a uma função termodinâmica de estado cuja variação é determinada pelo cálculo integral, é usualmente utilizada por um sem-número de pessoas – com pouco ou nenhum conhecimento físico-químico – como sinônimo de desordem. E o que é pior, associando à palavra um valor negativo totalmente inexistente na Física ou na Química. 69 É bem possível que o diabo de Santo Agostinho esteja em plena atividade nos dias de hoje, a julgar pelo uso indiscriminado de conceitos da Ciência com significados totalmente diversos do original, muitas vezes para fins pouco ou nada científicos – como veremos adiante, ainda neste capítulo. Voltando ao conjunto de definições apresentado por McGarry, dele se infere que o conceito de informação deve estar associado a uma escolha. Em nosso cotidiano, por exemplo, necessitamos de informação em todas as escolhas que fazemos – da programação de cinema ao ônibus que tomaremos, da carreira profissional que abraçaremos à união conjugal na qual investiremos nossos sonhos, das compras no supermercado à opção por ter ou não filhos. Muitas de nossas escolhas estão relacionadas a potenciais impactos em nossas vidas. Certamente que pais bem informados terão melhores condições de se adaptar a um novo cotidiano que inclua um bebê, pois, malgrado todo o envolvimento afetivo e existencial inerente ao exercício da paternidade e maternidade, um equilíbrio será rompido. Assim, pais e mães que não tragam em seu íntimo – mesmo que inconscientemente – a informação relativa ao Princípio de Le Chatelier7, princípio esse sobre o qual nos deteremos mais detalhadamente em outro momento, terão óbvias dificuldades de adaptação a uma nova realidade – e suas escolhas cotidianas talvez não sejam as mais acertadas. Nesse contexto, imagine-se uma pesquisa que pretendesse investigar questões como: “Como os pais fazem suas escolhas – época do ano, faixa etária, tipo de parto, tempo de casados etc – ao determinarem que terão um filho?”; “Qual a intensidade e a magnitude das modificações no cotidiano de um casal que gerou uma criança?”; “Qual é o conjunto de características dos casais que sofrem menores alterações em seu cotidiano após o 7 Le Chatelier(1850 - 1936): Químico e físico francês,nascido em Paris.Estudou no Collège Rollin, na École Polytechnique e professor da Escola de Minas, em Paris. Foi professor de Química geral no Collège de France de 1898 até 1925. Em 1884 Le Chatelier enunciou a Lei do Equilíbrio Móvel, também conhecida como Princípio de Le Chatelier , que é aplicado quando agentes externos interferem numa situação de equilíbrio. De acordo com esse princípio, se submetermos um equilíbrio químico a uma alteração externa, o equilíbrio desloca-se no sentido de contrariar essa alteração, de forma a que um novo estado de equilíbrio seja atingido. A ampliação do conceito para as questões ambientais permite perceber a forma com que a natureza reage, às ações antrópicas sobre os seus equilíbrios.Essa reação é sempre no sentido de minimizar as agressões e não de reagir contra elas. 70 nascimento de uma criança?”. Tal projeto estaria fadado a incluir entre seus passos metodológicos a questão do grau de informação dos respectivos atores. De modo análogo, a maioria das questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável e à tomada de decisão no planejamento e na gestão ambiental estão diretamente relacionadas com escolhas, efeitos e impactos. Conseqüentemente, a informação é – ou deveria ser – um elemento prioritário para a participação no processo decisório, especialmente entre as camadas menos favorecidas da sociedade. Considerando-se os objetivos desta pesquisa, é natural que muitas perguntas emirjam dessas considerações. Destaquemos duas delas: 1. O conjunto de informações que circula por todos os meios de comunicação e pelos mecanismos institucionais – estejam eles direta ou indiretamente associados às questões ambientais e de sustentabilidade, em nível global – se mostra adequado para o correto embasamento da sociedade brasileira com vistas à participação nos processos decisórios intrinsecamente relacionados a tais questões? 2. Considerando a Amazônia como uma área preferencial para a discussão da aplicabilidade do conceito de desenvolvimento sustentável, existem mecanismos eficientes de transmissão de informações confiáveis com vistas a uma eficaz avaliação ambiental estratégica e que traduza as aspirações das comunidades locais quanto aos possíveis cenários para a região? Para buscar as respostas a essas questões, o referencial teórico aqui se constitui em um tratamento do conceito de informação em sintonia com a proposta de Thompson (1995), ou seja, como estamos interessados na maneira como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação, devemos examinar como o sentido mobilizado pelas formas simbólicas mediadas pela mídia é entendido e avaliado pelas pessoas que, no seu cotidiano, recebem essas mensagens dos meios e incorporam-nas em suas vidas. 71 Procuraremos ampliar essa abordagem, incluindo a universidade e a Internet na mediação, pois, pelas características do problema da pesquisa, esses dois outros modos de mediação assumem uma importância tão relevante quanto o papel exercido pela mídia propriamente dita. Em Thompson (op.cit.) também é possível encontrar uma das bases conceituais desta pesquisa: não procurar um critério geral que possa resolver todas as disputas, como em um passe de mágica. Em vez disso, Thompson propõe um enfoque em que desmontemos os problemas e que tentemos definir algumas das condições, mesmo que provisoriamente, onde interpretações e pontos de vista conflitivos podem ser comparados e debatidos e onde diferentes tipos de evidências e argumentos possam ser aduzidos e, assim, as desavenças possam, talvez, ser resolvidas. Nesse caso, podemos rejeitar a busca da certeza sem abandonar a tentativa de elucidar as condições sob as quais podemos fazer juízos razoáveis sobre a plausibilidade ou a implausibilidade de uma interpretação, ou sobre a legitimidade ou não de uma instituição. Thompson considera que essas condições não podem determinar nossos juízos e esses juízos não podem ser infalíveis, mas que, na esfera da investigação sócio-histórica, onde estamos procurando compreender um objeto-domínio já compreendido pelos sujeitos que constituem esse domínio, a prática de um juízo razoável pode ser um ganho particularmente valioso. Desse modo, esta pesquisa parte de um “juízo razoável” de que a informação deve ser considerada, principalmente, a partir das formas utilizadas para transmiti-la e, assim, os referenciais teóricos de todo o trabalho estarão voltados para os componentes políticos e ideológicos dos processos de transmissão das informações nos conflitos considerados. O estudo desses componentes pode trazer à luz um expressivo conjunto de casos onde o controle – e também o descontrole – dos processos de transmissão de informações gera situações que podem ir da farsa à tragédia, em amplos setores da atividade humana. 72 No caso específico dos conflitos do setor elétrico na Amazônia, essas situações ocorreram em expressivo número e com grande relevância. Por último, é importante destacar que este capítulo foi fortemente influenciado pelos trabalhos de Aguiar (1998), Bronowsky (1997), Childe (1975), Chomsky (1998 e 1999), McGarry (1999), Milaré (1998), Piernes (1990) e Ribeiro (2000). Dois trabalhos deste autor, Faria (2000 e 2001), que discutem a questão da informação ambiental no Brasil, também se constituíram como referência importante na elaboração desta parte da tese. 2.3 INFORMAÇÃO E CONTROLE 2.3.1 Informação sobre a sociedade ou para a sociedade? Inicialmente, delimitemos nosso interesse. Aqui, o controle da informação que nos interessa se relaciona a como transformar essa informação em um instrumento de tomada de decisão para um desenvolvimento sustentável, que, em princípio deriva de um processo político transparente e participativo. O controle da informação é, portanto, aquele que promove ou prejudica tais processos. Admitindo-se a informação como uma construção social, essa se torna profundamente dependente dos atores responsáveis por sua produção, sistematização e disseminação. Assim, tão importante como definir o universo de informações necessárias para a tomada de decisões, é identificar os atores-chave do controle dos processos de produção, sistematização e disseminação. É sabido que as sociedades dos países periféricos, em geral, têm sido alijadas nos momentos das grandes decisões dos organismos multilaterais. Meros espectadores dos processos de tomada de decisão e, muitas vezes, induzidos a acreditar em conspirações que nunca existiram e impedidos de enxergar outras, reais e bem mais nocivas à soberania nacional, os atores sociais desses países freqüentemente exercem papéis secundários até mesmo nos grandes conflitos ambientais em sua própria região. 73 Paradoxalmente, existe, por parte de alguns segmentos, a busca para articular o Estado, o setor produtivo nacional e a sociedade civil, visando a um desenvolvimento socialmente justo, bem como economicamente viável e ambientalmente sustentável. Nesse contexto, a Amazônia tem um lugar preferencial e os conflitos que ocorrem na região repercutem com grande impacto na mídia nacional e internacional. Em contraponto ao Estado centralizador, uma visão sustentável de desenvolvimento impõe mecanismos de articulações sociais, em que a sociedade civil fornece o conjunto principal dos atores sociais. A qualidade de vida da sociedade – e dos indivíduos que a constituem – representam os objetivos finais, sendo o Estado e as empresas instrumentos para que essa meta seja alcançada. A participação de uma sociedade bem informada é, nesse modelo, determinante para que tanto o Estado como as empresas desempenhem adequadamente as suas funções. O grau de informação da sociedade atual, entretanto, vem se constituindo como o epicentro de um debate crescente, tanto nos meios acadêmicos quanto fora da Academia, na medida em que um volume gigantesco de informações, nunca antes visto na história da Humanidade, entra em nossas casas pelos jornais, canais de televisão convencionais, tevê a cabo, revistas semanais e Internet. Ao mesmo tempo, um caleidoscópio superficial, feito de informações educativas e comerciais, forma uma mistura de legítimas e boas intenções com manipulações, exibicionismos e interesses hegemônicos, de tal modo que, muitas vezes, se torna impossível distinguir mito e verdade, ciência e ideologia, controle e democratização de informações. A questão de natureza ideológica surge naturalmente a partir do controle das informações com a finalidade da dominação. Nada de novo há nesse processo. Na história da dominação dos povos sempre houve, por parte do dominador, o controle da informação. Na América Latina, por exemplo, desde há muito, se encontra o cerne de uma disputa que, por envolver um choque evidente de culturas entre colonizadores e colonizados, entre 74 o racional e o mágico, entre a expansão militar e a resistência mítica, fornecem interessantes elementos de análise para uma investigação sobre os modelos de desenvolvimento para a Amazônia. Conforme aponta Piernes (1990: 9): O Império Asteca, que mobilizou uma das máquinas bélicas mais competentes da História, foi derrotado por um aventureiro espanhol, de cabelos louros, chamado Hernan Cortés, que desembarcou no continente com algumas dúzias de homens com armaduras e uns poucos cavalos. Cortés, no entanto, tinha em suas mãos a principal arma na paz e na guerra: a informação. Foi assim que Cortés nunca desmentiu a versão de que era o deus esperado pelos astecas.Tampouco explicou que seus cavalos eram simples animais e que seus mosquetes lançavam bolas de ferro e não trovões. Smith (1990) descreve a expedição de Gonzalo Pizarro, irmão mais novo do conquistador dos incas, à qual se juntou o lendário Francisco de Orellana que, em 1541, saiu de Quito para avançar sobre a mesma floresta tropical que desperta, ainda hoje, a cobiça internacional. Nessa descrição, o historiador ressalta que o fato de que havia terras a leste para a Espanha conquistar era a única certeza que tinham os conquistadores. A riqueza e as especiarias não eram certezas absolutas. Entretanto, os boatos falavam muito de ‘El Dorado’, um rei que periodicamente era coberto com ouro em pó, para depois se banhar da cobertura em um lago sagrado, onde seus ancestrais cumpriam o mesmo rito havia muitas gerações. Para os espanhóis, acredita Smith, a idéia de um lago com fundo de ouro deve ter sido mais encantadora que as histórias do Peru e de suas especiarias. Tantos séculos depois, o avanço sobre a Amazônia ainda se dá a partir de um controle maior ou menor das informações. Contudo, os “novos espanhóis” não se baseiam mais em lendas sobre reis cobertos de ouro. O controle da informação se dá em uma nova escala, incomparavelmente mais eficiente e que adquire contornos muito menos definidos. Assim, nesta pesquisa procuramos investigar alguns mecanismos de controle da informação que, como já foi dito, mesmo que não associados diretamente ao seu objeto, 75 podem fornecer elementos de comparação para os aspectos que serão abordados nos capítulos posteriores. No cerne deste trabalho está a polêmica sobre o desenvolvimento sustentável na Amazônia. Portanto, não se pode evitar a constatação de que, ao se defrontarem com o debate sobre um grande empreendimento na região, as comunidades locais recebem uma avalanche de informações que vão da pertinência científica ao delírio absoluto. Piernes (1990:11) afirma que: Uma família sem teto e sem comida é, na visão do humano, infinitamente algo mais dramático que uma família sem informação. Um político que baseie sua plataforma no lema "informação para todos" perde a eleição. Um político que prometa "pão para todos" ganha eleição. É a conseqüência do escuro túnel por onde os povos transitam por falta, escamoteio e distorção da informação ao longo da história. Este mesmo povo, informado corretamente, por que lhe faltam o pão, a saúde, a escola e a habitação, saberia como plantar corretamente, como limpar a água que bebe, como construir uma casa mais econômica.Identificaria aqueles (e também como e quando) que lhe furtam o que lhe pertence pelas leis dos homens ou pelo direito divino.Deixaria de haver um exército de homens cegos. Há que se considerar, portanto, um sentido principal para o fluxo de informações, ou seja, a produção da informação como um processo predominantemente de baixo para cima ou de cima para baixo. No primeiro caso, em outras palavras, a prevalência de um processo no qual organizamos informação para nortear as ações de governo ou para definir os investimentos de uma empresa, mantendo a sociedade civil como fonte de informações. Predomina, nesse caso, a visão da sociedade civil como objeto do processo decisório – a visão da sociedade como um conjunto de clientes que precisam ser identificados e classificados para que o controle dessas informações possa gerar um controle mais eficaz da sociedade. No segundo caso, o entendimento de que é a sociedade civil que deve ser adequadamente informada, para que os processos decisórios se tornem legítimos, sendo o Estado o ator central do processo de sustentação de uma sociedade informada e efetivamente participante. 76 A participação da sociedade civil nos processos decisórios, decantada em verso e prosa nos dias atuais, deve ser previamente percebida como uma escolha entre dois processos de controle da informação que dificilmente poderão convergir para uma resultante sinérgica, na medida em que se excluem no dilema inicial: a sociedade civil como objeto-cliente ou como sujeito-participante? A primeira escolha remete a participação para uma visão de mercado, na qual os centros decisórios do processo determinam, a partir das informações coletadas junto à sociedade-cliente, quais os programas e projetos que são mais indicados para que o desenvolvimento sustentável seja atingido. É importante ressaltar que, ao longo deste trabalho, procuramos demonstrar que o discurso do desenvolvimento sustentável foi apropriado pelas mais diversas correntes de pensamento, de um modo tão amplo que se torna quase impossível identificar algum adversário da sustentabilidade do desenvolvimento, em especial quando se está tratando da Amazônia. Portanto, embora se possa constatar uma grande quantidade de interpretações distintas a respeito do conceito de desenvolvimento sustentável, para os partidários da primeira escolha esse tipo de desenvolvimento é definido por centros decisórios que imaginam poder definir com precisão os cenários possíveis de sustentabilidade para o futuro de uma região – sempre, nesse caso, a partir de informações oriundas de um conjunto de atores-clientes. A segunda escolha, embora plena de componentes pró-ativos e democráticos, tangencia continuamente a fina linha divisória que distingue a participação do “participismo”. Por um lado, as organizações da sociedade civil se constituem como produtoras, disseminadoras e usuárias dos sistemas de informação, em um papel fundamental na geração de conjuntos de informações organizadas sobre problemas específicos de 77 comunidades delimitadas. Por outro lado, podem tanto perder a visão de um todo do qual a comunidade que representam é apenas parte, quanto se transformar em instrumentos de projetos de grupos de interesse não comprometidos com as idéias de soberania e de visões de futuro concebidas a partir de um projeto nacional. Em ambos os casos descritos acima, as informações são produzidas em grandes quantidades por instituições especializadas, governamentais ou não, sempre com a perspectiva do controle por parte da instituição. Ou seja, em uma ótica pela qual são elas que determinam o que a sociedade precisa saber para exercer uma participação política informada. Essa é a premissa da qual partimos e cuja validade pretendemos demonstrar quando analisarmos a atuação tanto do setor elétrico brasileiro quanto dos seus eventuais oponentes em relação a projetos hidrelétricos na Amazônia. 2.4 A INFORMAÇÃO E A LEGISLAÇÃO AMBIENTAL Examinemos alguns aspectos da legislação ambiental brasileira que nos remetem a uma discussão sobre o controle da informação – no caso, a informação ambiental como instrumento para a participação da sociedade nos momentos previstos legalmente para a sua participação. A lei n° 6938, de 31 de agosto de 1981, trouxe significativos avanços na condução dos processos de resolução das questões ambientais surgidas até a década de 1970. Influenciada pelas legislações ambientais da Europa e dos Estados Unidos, essa lei estabelece um processo de licenciamento ambiental ordenado, de maneira a permitir que a participação popular seja etapa determinante na decisão da implantação ou não dos empreendimentos - sejam eles públicos ou privados. Essa lei também instituiu o Sistema Nacional de Informações sobre o Meio Ambiente - Sinima em seu art. 9º. Um dos instrumentos necessários à implementação da Política Nacional do Meio Ambiente, o Sinima tem como objetivo sistematizar as informações necessárias para apoiar o processo de tomada de decisão na área ambiental em todos os níveis. 78 Para os órgãos federais de meio ambiente, a informação deve ser um instrumento para a detecção de problemas, para a busca de alternativas para sua solução, para a avaliação e monitoramento das medidas adotadas. Com isso, o controle social é exercido na medida em que a sociedade tenha acesso a esse conjunto de dados e informações. O Sinima reuniu bases de dados bibliográficos e de legislação ambiental, sendo estruturada uma rede de unidades de informação, a Renima - Rede Nacional de Informação sobre o Meio Ambiente. Desta rede participam os órgãos estaduais de meio ambiente e instituições relacionadas com a temática ambiental. A Lei nº 6.938/81 foi regulamentada pelo Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, que, alterado pelo Decreto nº 3.942, de 27 de setembro de 2001, art. 11, inciso II, estabelece como competência da Secretaria Executiva do Ministério do Meio Ambiente - MMA, na qualidade de órgão central do Sisnama - Sistema Nacional do Meio Ambiente: "coordenar, por meio do Sistema Nacional de Informações sobre o Meio Ambiente - Sinima, o intercâmbio de informações entre os órgãos integrantes do Sisnama." Em seu artigo 4º,V, a lei 6938/81 enfatiza que a Política Nacional do Meio Ambiente visará "à difusão de tecnologias de manejo do meio ambiente e à formação de uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico." No artigo 6º,II, a lei determina que o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) seja o órgão consultivo e deliberativo do Sistema Nacional do Meio Ambiente Sisnama. Assim, entre outras finalidades, ao Conama compete propor ao Conselho de Governo, as diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e deliberar sobre normas e padrões ambientais. 79 O Conama se estrutura sob a forma de um colegiado, onde diversos setores do governo e da sociedade civil - direta ou indiretamente ligados às questões ambientais participam. Quando se considera que as reuniões do plenário são públicas, há aqui um mecanismo de conotação, em princípio, democrática. O Conama - no âmbito de sua competência - relaciona no texto da resolução 001 de 23.01.86, as definições, responsabilidades, critérios básicos e diretrizes gerais para o uso e a implementação da Avaliação de Impacto Ambiental como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente. Em seu Artigo 2º, a resolução condiciona o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente à elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto ambiental - Rima. Mais adiante, no parágrafo único do Artigo 9º, a resolução Conama 001 impõe que: O Rima deve ser apresentado de forma objetiva e adequada à sua compreensão. As informações devem ser traduzidas em linguagem acessível, ilustradas por mapas, cartas, quadros, gráficos e demais técnicas de comunicação visual, de modo que se possam entender as vantagens e desvantagens do projeto, bem como todas as conseqüências ambientais de sua implantação. Enquanto o EIA é um documento de natureza e linguagem técnica – em alguns casos, científica – para que os especialistas em cada uma das áreas do saber ambiental possam ter acesso às alternativas tecnológicas e de localização do projeto, aos limites da área geográfica a ser afetada, aos planos e programas governamentais relativos à referida área e - principalmente - à identificação e avaliação dos impactos ambientais gerados na implantação e operação do projeto, o Rima - refletindo as conclusões do EIA – deve ser um documento acessível ao público. Mais importante ainda, o Rima é a peça central do processo de participação da sociedade, que culmina em uma audiência pública na qual o cidadão comum tem o direito de se manifestar contra ou a favor do empreendimento. 80 Os objetivos do EIA são definidos pela legislação e contemplam a prevenção do dano ambiental, a transparência administrativa, a consulta aos interessados e a motivação da decisão ambiental. O EIA se justifica pela valorização das características preventivas do Direito Ambiental, pela liberação pública das informações sobre o projeto (respeitado o sigilo industrial) e pela efetiva participação e fiscalização da atividade administrativa por parte da comunidade. Justifica-se também pela necessidade de fundamentação da decisão, por parte da Administração, quando opta por uma das alternativas sugeridas pelo EIA que não seja, por critérios ambientais, a mais adequada, ou quando deixa de exigir a elaboração do documento ao não reconhecer possibilidade de “significativa degradação”, nos termos do art. 225 da Constituição Federal. Os procedimentos dos Estudos de Impacto Ambiental exigem que, além da transparência, exista a participação, pois, em caso de decisão ambiental arbitrária, o interesse público não será atendido, mesmo que absolutamente transparente. (Milaré, 1998) O EIA obedece a diretrizes previstas em lei que se não cumpridas, podem provocar sua invalidação. Desse modo, requisitos mínimos são exigidos para disciplinar o conteúdo do documento e, além disso, instruções adicionais podem ser fornecidas pelo órgão ambiental competente por meio de Termos de Referência, a partir das características do empreendimento e do ecossistema no qual se insere. Com isso, o EIA não prioriza a comunicação com públicos não-especializados, tratando-se de um instrumento de natureza predominantemente formal e técnica. Segundo Benjamim (1987), o Rima, em especial, deve destacar como fundamentais os princípios da publicidade e da participação pública e se aplica ao direito que tem o cidadão, organizado ou não, de intervir – porque parte interessada – no procedimento de tomada de decisão ambiental. 81 As distinções entre EIA e Rima, podem ser percebidas facilmente. O estudo é uma peça com dados científicos, jurídicos, de campo, de laboratório, enquanto o Rima deve refletir as conclusões desse estudo, conforme prescreve o art.9º, Parágrafo único, da Resolução nº 001/86 – Conama. Há duas oportunidades para se ter acesso aos estudos e relatórios: na fase de comentários e na audiência pública, conforme prescreve a citada Resolução do Conama, devendo os técnicos desenvolver um trabalho acessível, pedagógico, claro e inteligível para o público, conforme prescrição do art.9º, Parágrafo único, da Resolução nº 001/86-Conama. Além disso, o público tem acesso ao Rima, posteriormente a essas duas oportunidades, nos centros de documentação ou bibliotecas do IBAMA (art. 11, Resolução nº 001/86-Conama), como aponta Aguiar (1998). Não há dúvidas que adjetivos como acessível, pedagógico, claro e inteligível foram utilizados para diferenciar o Rima do EIA, tendo a linguagem e apresentação do documento como indicadores da distinção entre o estudo e o relatório. Não obedecer a essas determinações legais é fazer uma escolha ideológica ou estratégica. Ideológica, quando se quer o controle da informação para que ela possa pertencer a determinados grupos que dela se aproveitam para finalidades relacionadas com determinados embates que se dão no campo das convicções e não do da negociação. Estratégica, quando se deseja omitir informações da sociedade para evitar atrasos ou mesmo a inviabilização de determinados projetos. Em ambos os casos fica prejudicada a importante função de democratizar a informação para aqueles que devem receber a mensagem, por direito. Desse modo, só devemos ratificar a linguagem ininteligível dos Rimas atuais se quisermos ignorar a dimensão participativa do planejamento e da gestão ambiental, e marginalizar, como conseqüência lógica, a sociedade nos processos de tomada de decisão. Se, ao contrário, consideramos a filosofia que transparece no texto legal, não podemos conceber o conteúdo de um Rima como amontoados de termos técnicos que chegam a 82 centenas de páginas, em um curioso caso de desinformação a partir do excesso de informações – em um discurso incompreensível. A Constituição de 5 de outubro de 1988, em seu artigo 225, parágrafo 1o, inciso IV estabelece como incumbência do poder público exigir estudo prévio de impacto ambiental – a que se dará publicidade – para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente. Os legisladores enfatizaram a necessidade de a população tomar conhecimento dos resultados dos estudos associados a empreendimentos potencialmente degradantes ao meio ambiente. Também possível inferir das determinações constitucionais que devem ser fornecidas as informações necessárias a todo o conjunto da sociedade brasileira, em especial às comunidades afetadas, para que sejam corretamente mensurados os efeitos potencialmente positivos ou negativos provocados por uma obra ou atividade sobre o ambiente. A Lei n° 10.650,de 16 de abril de 2003, dispõe sobre o acesso público aos dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sisnama e, segundo seu Art. 2°: Os órgãos e entidades da Administração Pública, direta, indireta e fundacional, integrantes do Sisnama, ficam obrigados a permitir o acesso público aos documentos, expedientes e processos administrativos que tratem de matéria ambiental e a fornecer todas as informações ambientais que estejam sob sua guarda, em meio escrito, visual, sonoro ou eletrônico, especialmente as relativas a: I - qualidade do meio ambiente; II - políticas, planos e programas potencialmente causadores de impacto ambiental; III - resultados de monitoramento e auditoria nos sistemas de controle de poluição e de atividades potencialmente poluidoras, bem como de planos e ações de recuperação de áreas degradadas; IV - acidentes, situações de risco ou de emergência ambientais; V - emissões de efluentes líquidos e gasosos, e produção de resíduos sólidos; VI - substâncias tóxicas e perigosas; VII - diversidade biológica; VIII - organismos geneticamente modificados. 83 Em seu parágrafo 1°, o citado artigo impõe que: Qualquer indivíduo, independentemente da comprovação de interesse específico, terá acesso às informações de que trata esta Lei, mediante requerimento escrito, no qual assumirá a obrigação de não utilizar as informações colhidas para fins comerciais, sob as penas da lei civil, penal, de direito autoral e de propriedade industrial, assim como de citar as fontes, caso, por qualquer meio, venha a divulgar os aludidos dados. No parágrafo 2° "é assegurado o sigilo comercial, industrial, financeiro ou qualquer outro sigilo protegido por lei, bem como o relativo às comunicações internas dos órgãos e entidades governamentais." No Artigo 3°, a lei nº 10.650/03 especifica: Para o atendimento do disposto nesta Lei, as autoridades públicas poderão exigir a prestação periódica de qualquer tipo de informação por parte das entidades privadas, mediante sistema específico a ser implementado por todos os órgãos do Sisnama, sobre os impactos ambientais potenciais e efetivos de suas atividades, independentemente da existência ou necessidade de instauração de qualquer processo administrativo. No Artigo 4° fica estabelecido que: Deverão ser publicados em Diário Oficial e ficar disponíveis, no respectivo órgão, em local de fácil acesso ao público, listagens e relações contendo os dados referentes aos seguintes assuntos: I - pedidos de licenciamento, sua renovação e a respectiva concessão; II - pedidos e licenças para supressão de vegetação; III - autos de infrações e respectivas penalidades impostas pelos órgãos ambientais; IV - lavratura de termos de compromisso de ajustamento de conduta; V - reincidências em infrações ambientais; VI - recursos interpostos em processo administrativo ambiental e respectivas decisões; VII - registro de apresentação de estudos de impacto ambiental e sua aprovação ou rejeição. O Artigo 8° determina que "os órgãos ambientais competentes integrantes do Sisnama deverão elaborar e divulgar relatórios anuais relativos à qualidade do ar e da água e, na forma da regulamentação, outros elementos ambientais". 84 Por fim o Artigo 9° esclarece que: As informações de que trata esta Lei serão prestadas mediante o recolhimento de valor correspondente ao ressarcimento dos recursos despendidos para o seu fornecimento, observadas as normas e tabelas específicas, fixadas pelo órgão competente em nível federal, estadual ou municipal. Enfatize-se que mesmo o caput da Lei deixando claro que esta trata do acesso público aos dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sisnama., é também claro que não se está tratando de nada além de um processo burocrático de consulta pública, sem compromisso real com a democratização da informação por meio da decodificação da linguagem técnica, científica ou legal. Ainda assim, o uso de expressões como “forma objetiva”, “adequada à sua compreensão”, “linguagem acessível” e “que se possam entender as vantagens e desvantagens do projeto” no texto da lei 6938/81 não é suficiente para garantir o uso de técnicas de comunicação que permitam a participação da sociedade no processo de licenciamento ambiental. Quando, por exemplo, a legislação determina o uso de técnicas de comunicação visual para que a sociedade possa avaliar as conseqüências ambientais do projeto, não podemos estar certos de que tais técnicas levarão em conta a realidade cultural local, pois a falta de critérios que definam o processo permite a burla – intencional ou não. É importante citar que alguns dos aspectos relacionados com o controle da informação descritos até aqui foram explorados em nossa dissertação do curso de Mestrado em Planejamento e Gestão Ambiental8. 8 Dissertação de Mestrado intitulada “O paradoxo’ EIA/Rima ': a democratização da informação ambiental nos processos de tomada de decisão no planejamento ambiental no Brasil”, apresentada e aprovada, em dezembro de 2000, para obtenção do título de Mestre em Planejamento e Gestão Ambiental, à Comissão Examinadora da Universidade Católica de Brasília, sob a orientação do Professor Doutor Mário Lisbôa Theodoro. 85 Nosso ponto de partida para a pesquisa apontava para um controle da informação exercido pelos empreendedores e responsáveis pelos projetos analisados, como forma de evitar pressões de grupos contrários aos seus objetivos. No entanto, à medida que o trabalho se desenvolvia, ficava evidente a contribuição para as distorções apresentadas por parte de outros atores, tais como órgãos licenciadores ambientais e a Universidade. No caso dos primeiros, uma aceitação tácita tanto dos Rimas herméticos e prolixos, quanto das graves deturpações dos processos de audiências públicas. No caso dos meios acadêmicos, além da omissão que legitima o distorcido processo de participação, as evidências apontavam para um outro tipo de controle da informação, característico do meio acadêmico, de uma certa forma associado aos indicadores de qualidade típicos do meio. Em outras palavras, a Academia, mostrando grande dificuldade em modificar a linguagem utilizada em seus processos de comunicação com a sociedade, deixa passar a oportunidade de influenciar positivamente no licenciamento ambiental dos empreendimentos, estimulando e demandando a democratização da informação. O controle da informação, nesse caso, se dá pelas formas de diálogo exercidas – quase que exclusivamente entre si – por especialistas de cada uma das áreas de conhecimento que constituem o trabalho de elaboração de EIAs e Rimas. Nesse ponto, é preciso ressaltar que a discussão sobre a informação na cultura acadêmica é importante para esta pesquisa porque um grande número de acadêmicos se envolveu, direta ou indiretamente, nos conflitos ambientais associados aos projetos de Tucuruí e Belo Monte. Como se poderá ver a seguir, o controle da informação pode produzir tantas distorções quanto o seu descontrole e que, novamente, a Academia não estará protegida pelos seus mecanismos característicos do descontrole do processo. 86 2.5. INFORMAÇÃO E DESCONTROLE 2.5.1 O caso Chernobyl As autoridades da região de Chernobyl não tinham – ao menos, publicamente – a menor dúvida quanto à segurança da usina que se tornou um símbolo na questão dos perigos da opção pela energia nuclear nas matrizes energéticas nacionais, em 1986. Os responsáveis pela sua segurança consideravam menos seguro dirigir um automóvel. As chances de fusão do núcleo eram estimadas na base de uma para cada dez mil anos. A usina número 4 de Chernobyl era uma instalação para uso pacífico da tecnologia nuclear na qual uma possível fissão descontrolada, no núcleo do reator, poderia gerar uma catástrofe de incalculáveis proporções. Com isso, em caso de um acidente nuclear em uma usina desse tipo, a população precisa estar consciente dos riscos e preparada para obedecer a um minucioso e preciso plano de emergência. Nessa usina, havia duzentas toneladas de urânio capazes de sofrer fissão nuclear, um processo que libera gigantescas quantidades de energia e que, em uma usina nuclear, demanda a circulação ininterrupta de água. Esse bombeamento contínuo impede o superaquecimento e a conseqüente fusão das partes metálicas. Como as reações nucleares não liberam apenas energia térmica, se o núcleo de um reator apresenta alguma falha, ninguém dele poderá se aproximar sem a devida proteção contra as emissões radioativas de lá emanadas. Segundo Hawkes et al (1986), o diretor do Instituto de Energia Nuclear de Kurchatov, Lev Feoktiskov, um respeitado centro de estudos nucleares da antiga URRS, declarou, antes do lamentável evento em que ocorreu uma fuga de radiação do reator, que considerava impossível um acidente como o que ocorreu e que usinas nucleares não representavam qualquer risco para a população. 87 No entanto, os habitantes do lugar continuavam inseguros quanto à proximidade da usina. Os boatos se multiplicavam. Os legumes, verduras e frutas cultivados nas redondezas não encontravam compradores. Os jornais da região chegavam a questionar os “especialistas” quanto ao que verdadeiramente ocorria no interior da usina. Clamavam por informações objetivas e claras. O controle da informação, exercido pelas autoridades locais e pelos responsáveis pela usina criava o seu contraponto: o descontrole da informação, um processo que se estenderia por muitos milhares de quilômetros adiante. Na Grã-Bretanha, por exemplo, embora soubesse do desastre de Chernobyl há uma semana, o governo continuava confuso e mal-preparado, apresentando dados divergentes, por exemplo, entre o Ministério da Agricultura e o Departamento Escocês, responsável pela região onde quase a metade do valor máximo de emissões radioativas, admitido pela Agência Internacional de Energia Atômica, era encontrado no leite. Essa revelação levou o presidente do Partido Nacional Escocês a acusar o governo de manter sigilo ao estilo do Kremlin e um habitual defensor do governo, a acusá-lo de estar “completamente despreparado” para enfrentar a passagem da nuvem. Por outro lado, os parlamentares trabalhistas tentaram, sem resultado, convocar um debate de emergência, na Câmara dos Comuns, sobre o fluxo «inadequado» de informações à população. O chefe do Conselho Nacional de Proteção Radiológica (NRPB) anunciou que os cálculos de sua instituição mostravam que haveria “algumas dezenas” de morte por câncer, no Reino Unido, nos próximos 50 anos, em conseqüência da nuvem de Chernobyl. A confusão e o alarme do público só vieram a aumentar quando se descobriu que os números tranqüilizadores do governo inglês contrastavam com os índices independentes obtidos pelo NRPB indicando níveis muito maiores na Escócia, na Irlanda do Norte e na região de Cumbria. O Ministério da Agricultura e o Conselho Nacional de Águas encaminhavam as consultas para o Departamento do Meio Ambiente que, por sua vez, as repassava para os departamentos de Saúde e Energia. 88 Os números de telefones destinados à comunicação de emergências ficavam permanentemente ocupados e a essa altura, grande parte da população britânica estava em estado de alarme. A perspectiva da presença de um matador invisível em toda a extensão do país, ironicamente durante um feriado bancário, época em que as atividades ao ar livre aumentam tradicionalmente, começou a provocar algumas reações peculiares. Por exemplo, a caríssima es cola preparatória de Dulwich College, na região de Kent, exigiu que o fornecimento local de leite viesse exclusivamente de vacas alimentadas em locais fechados com rações “sem elementos nucleares”! (Hawkes et al, 1986: 118-119) Quando chegou à Grã-Bretanha, a nuvem de Chernobyl já estava diluída, mas com a reação oficial do governo, não adequada, os ânimos da população estavam inflamados. Grupos de ecologistas como os Amigos da Terra e Greenpeace tiveram seus telefones congestionados e chegaram a ter que tranqüilizar a população em nome do governo – que foi acusado por especialistas de basear seus planos na aposta de que não haveria um grande acidente nuclear. 2.5.2 O césio de Goiânia e o reator de Angra dos Reis No Brasil, como em todo o mundo, o acidente nuclear de Chernobyl provocou uma série de debates a respeito da segurança de instalações nucleares. Esses debates se intensificaram no país a partir da tragédia ocorrida em Goiânia, em 1987, onde o isótopo 137 do Césio mostrou que o perigo não necessita de uma explosão como aviso. Nesses debates, ficaram evidenciadas as deficiências do planejamento para situações emergenciais, como no caso das instalações nucleares de Angra dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro. Ali, segundo Souza Júnior e Pinguelli Rosa (1998), em junho de 1989 um acidente no sistema de sirenes instalado para melhorar a difusão do sinal de emergência causou tumulto e desencadeou ações violentas na localidade do Frade, onde o sinal foi emitido por aproximadamente quinze minutos sem interrupção. 89 A administração municipal foi pressionada pelo público a dar explicações que não podia dar, pois o planejamento estava em sua fase inicial, e não existia o conjunto básico de informações locais para sua elaboração de forma consistente, tendo como agravante o fato de a metodologia adotada, marcadamente exógena, não ser adequada à realidade sócioespacial do município. Segundo os autores, as tentativas de equacionamento dos problemas das medidas protetoras sob uma perspectiva puramente quantitativa estavam fadadas ao fracasso, por conta do elevado grau de desorganização do contexto social. A deterioração das infra-estruturas urbanas básicas, o precário sistema de saúde e a carência geral de investimentos sociais impediriam a absorção social do plano – uma situação agravada por ocorrências na usina que ganharam grande dimensão na imprensa pela própria demora, por parte dos responsáveis, em dar informações qualificadas para a população local e o público em geral. No caso, não só a comunicação com a população se tornou difícil, como também a falta de credibilidade social nas informações fornecidas praticamente inviabilizou a vertente metodológica adotada, embora seja evidente que a metodologia que deverá embasar a estratégia de difusão de informações emergenciais, necessárias à orientação da população em caso de acidente – não apenas de natureza nuclear – deve contemplar credibilidade de quem fala e a compreensão de quem ouve. Embora as emissões radioativas não sejam percebidas diretamente pelos sentidos humanos, os meios de comunicação contribuem enormemente para a desinformação a respeito do tema, na medida em que dão asas a fantasias que estimulam tanto atitudes de alto risco quanto outras preconceituosas relacionadas com substâncias radioativas e seus efeitos. 90 Assim é que, em setembro de 1987, quando uma cápsula selada de césio 137 foi encontrada por dois habitantes de Goiânia e aberta em um ferro-velho, um episódio de repercussões internacionais estava se iniciando. Mais do que isso, uma extensa cadeia de preconceitos gerou forte discriminação para tudo o que se relacionava com a cidade, de maneira tal que os produtos agrícolas da região e o turismo foram severamente atingidos. E isso em detrimento da área afetada ter sido de apenas alguns quarteirões e a quantidade total de material radioativo em nenhuma circunstância justificar temores tão irracionais e atitudes tão preconceituosas. Um caso típico e grave de descontrole da informação. 2.5.3 Mídia e Internet Nos diferentes setores no Brasil, é gerado um grande volume de informações. Ademais, além do Estado, das empresas e da sociedade civil, três atores, a mídia, a rede mundial de computadores e a Academia, exercem um papel fundamental na questão da informação. Podemos discutir a questão do controle e do descontrole da informação em cada um deles por distintas abordagens. Neste trabalho estamos particularmente interessados em analisar os efeitos gerados a partir do descontrole de uma informação, visando à investigação, nos próximos capítulos, de ocorrências semelhantes no estudo de caso que empreendemos – sempre com o foco nos processos de tomada de decisão no planejamento e na gestão ambiental, no Brasil. A mídia no Brasil se estrutura de tal forma que a influência dos grandes grupos é no sentido de estimular a formação de megarredes de comunicação, que destinam uma discreta função para a programação de caráter regional ou local, programação essa que poderia desempenhar um papel importante ao dinamizar iniciativas locais de gestão participativa. 91 Quando se estima que mais de 90% dos domicílios brasileiros possuem aparelhos de rádio e tevê, pode-se imaginar o poder desta rede de comunicação para informar correta e adequadamente, com vistas à tomada de decisão, por parte da sociedade, em questões centrais para o desenvolvimento de um projeto nacional de longo prazo. No entanto, as informações veiculadas pela mídia não se descolam de um contexto de centralização e concentração dos meios de comunicação, no qual as mudanças de mentalidades, de hábitos, de padrões, de estilos de comportamento, bem como dos usos e costumes é resultado de vínculos políticos, culturais e sociais – que atravessam sociedades nacionais diversas. As mudanças também afetam os planos e programas dos governos, influenciando o funcionamento das estruturas sociais e institucionais vigentes. Em relação às grandes questões nacionais, a televisão brasileira produz informações compactas, dispersas em uma programação de caráter predominantemente nacional e internacional. Programas que discutem questões ambientais, por exemplo, são apresentados como uma sucessão de imagens rápidas, sem análises profundas e com uma linguagem marcada pela influência da classe média da região sudeste do país. Um grande perigo que se apresenta constantemente é a velocidade com que as informações são veiculadas, trazendo um grande risco associado: a disseminação de informações não confirmadas por um controle de conteúdo específico. A grande questão que atravessa a s discussões sobre a mídia e sobre a Internet é como validar uma informação, sem, contudo exercer formas de censura sobre esta mesma informação? A cada dia que passa, torna-se cada vez mais difícil distinguir a informação validada daquela que emerge sem qualquer controle de conteúdo, muitas vezes legitimada apenas pelos seus aspectos mais superficiais – como o uso de palavras-chave para determinado tipo de público receptor. 92 Vejamos um exemplo curioso: um “gerador de textos pós-modernos” pode ser acessado pela Internet9. Andrew Bulhak desenvolveu um programa que constrói textos a partir de frases e conceitos filosóficos supostamente provenientes de acadêmicos, intelectuais e artistas. Cada frase – destituída ou não de qualquer sentido – é reunida a outras de mesmo quilate, formando conjuntos absurdos. O mais incrível é que alguns textos, se apresentados a um leitor com o “aval” de algum nome respeitado nos círculos intelectuais e acadêmicos, poderiam ser levados a sério com alguma facilidade – dependendo, é claro, do grau de respeito do leitor pelo “avalista”. Para utilizar o gerador de Bulhak não é necessário muito trabalho. Ao acessar o endereço correspondente, surge na tela do computador um texto que, a cada atualização da página, será modificado, trazendo citações e notas de rodapé relativas a "autores" de obras inexistentes10. Mas, qual a importância desse tipo de brincadeira para a discussão a respeito da transmissão de informações no mundo atual? Infelizmente, a importância é cada vez mais significativa, à medida que se avança no tema e que se encontram inúmeros exemplos nos quais a brincadeira assume graus insuspeitos de legitimação em processos de transmissão de informações que – ao menos em nível teórico – possuem mecanismos eficazes de validação. Uma situação ao mesmo tempo hilariante e merecedora de preocupação foi protagonizada por uma revista com grande influência na opinião pública brasileira. A 9 www.elsewhere.org/cgi-bin/postmodern, acesso em 26.02.2004. 10 No acesso acima citado o programa gerou um texto intitulado "Semiotic theory, neostructuralist deconceptualism and Marxism", assinado por um suposto Jean-Jean A. Werther do Departmento de Inglês da Universidade de Stanford, com Derrida, Lacan e Fellini "avalizando" o "paper"! 93 revista “Veja” publicou uma resenha de livro que acabou criando um caso clássico de "trapalhada jornalística”11. O livro em questão, "A Vida Sexual de Immanuel Kant"12, é assinado por JeanBaptiste Botul, um heterônimo do jornalista francês Frédéric Pagès, criado como uma ironia destinada a satirizar a notória e histórica reverência que o meio acadêmico tem por determinados “gurus do momento”. Ressalte-se que Pagès já era reincidente à época. O jornalista havia escrito, com intenções semelhantes, outra provocação: "Descartes e a Maconha"13, incluído em uma relação de livros sérios sobre a droga na revista "Isto é" 14: Três livros sobre maconha foram lançados recentemente no País. O mais inusitado deles é Descartes e a maconha (editora Pazulin), escrito pelo filósofo francês Frédéric Pagès, que realizou uma pesquisa sobre o que fez o famoso filósofo francês durante os 21 anos em que morou nos Países Baixos, no século XVII. Na Holanda, Pagès visitou a casa de Descartes, hoje um museu, garimpou as correspondências do filósofo e estudou sua história. Tudo isso para sugerir que boa parte do brilhante pensamento cartesiano, inclusive sua consagrada obra "O discurso do método", foi burilada sob o efeito inspirador do haxixe. Ou seja, como milhares de franceses fazem hoje em dia, Descartes foi para a Holanda fumar maconha. No "caso Botul", o livro conta particularidades do comportamento do filósofo russo, nascido na cidade de Königsberg, atual Kaliningrado, na Rússia, a partir de "conferências" de Botul na cidade imaginária de Nova Königsberg, colônia alemã situada no Paraguai, cidade que cultuaria, até hoje, a memória de Kant, adotando, inclusive, hábitos cotidianos do filósofo. 11 Conforme a revista "Época", Edição n°156, de 14/05/2001. 12 Publicado pela Editora Unesp. 13 Publicado pela Editora Pazulin. 14 Nº 1562 – 8 de setembro de 1999. 94 "Veja", publicando uma resenha séria do livro de Botul, entre outras coisas, associa a atividade sexual do filósofo com o conteúdo da "Crítica da Razão Pura". É possível que nem Pagés esperasse tanto, pois mesmo Botul sendo apresentado, entre outras "credenciais", como ordenança particular de André Malraux em 1938 e mandatário do governo francês que encontra Villa e Zapata em 1917, ainda assim a revista reveste de seriedade crédula a sua resenha. A piada nos remete a questões bem mais sérias. Na Internet, por exemplo, um número incalculável de boatos – ou "hoaxes" – tem circulado com uma freqüência impressionante pela rede, ao lado de supostos textos publicados por autores famosos como Neruda, Garcia Márquez e Borges, por exemplo. O jornal "O Estado de São Paulo" publicou, em sua edição de 13 de abril de 2002, a notícia da existência de um texto atribuído ao chileno Pablo Neruda (1904-1973) circulando na Internet, intitulado "Quem Morre?". O texto é totalmente falso, segundo a Fundação Neruda, instituição que cuida da obra do escritor. De acordo com o jornal, na opinião do tradutor e escritor Eric Nepomuceno "Qualquer cristão que tenha lido Neruda uma única vez na vida saberá que ele jamais, sob hipótese alguma, seria desumano a ponto de cometer semelhante barbaridade!" Segundo Sereza, o autor da matéria, em 2000, García Márquez convocou a imprensa para negar a autoria de "Marionete", também disseminado via Internet, dizendo que "O que pode me matar não é o câncer, mas a vergonha de que alguém acredite que eu tenha escrito uma coisa tão cafona". Na mesma matéria, Nepomuceno afirma que "O pior é que qualquer um que tenha lido pelo menos um livro e meia dúzia de entrevistas de García Márquez deveria ter a obrigação de identificar a fraude - no entanto, muita gente qualificada deixou-se levar pela baboseira". 95 2.5.4 Na Academia: o caso Sokal Alan Sokal, professor de física na Universidade de Nova York, publicou um artigo na “Social Text”, construído a partir de um amontoado de citações sobre física e matemática, sem nenhum sentido, mas, “infelizmente autênticas” segundo o físico15. As citações, da autoria de proeminentes intelectuais franceses e norte-americanos, tinham como objetivo explicar, em termos não técnicos, o absurdo das citações ou, em muitos casos, a simples ausência de sentido destas. O autor pretendia, além disso, discutir as circunstâncias que fizeram com que esses discursos alcançassem tal legitimação e tivessem, até então, continuado ocultos. A Social Text, considerada pela intelectualidade de esquerda e da filosofia pósmoderna umas das revistas mais conceituadas dos EUA e um espaço privilegiado, após a análise do seu corpo editorial, resolveu publicar o texto cujo título era “Transgressing the Boundaries: Toward a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity”, isto é, “Transgredindo (ou transpondo) Fronteiras: Em direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica”. No entanto, para surpresa dos editores e, de resto de todo o mundo acadêmico, tudo não passava de uma grande farsa, um embuste intelectual. A intenção de Sokal era mostrar que intelectuais famosos, como Lacan, Kristeva, Irigaray, Baudrillard e Deleuze, dentre 15 Sobre a polêmica que será descrita, ver: Disputatio 2 (Maio 1997); Disputatio 6 (Maio 1999); Revista de Antropologia, Universidade de São Paulo, vol. 41, no. 1 (1998); Folha de São Paulo, 15 setembro de 1996; Folha de São Paulo, 22 setembro de 1996; Folha de São Paulo, 9 de novembro de 1997. 96 outros, abusaram repetidamente da terminologia e de conceitos científicos, tanto usando idéias científicas totalmente fora do seu contexto, sem para tal fornecerem a mínima justificação, quanto “lançando o jargão científico à cara dos leitores não cientistas”, “sem considerarem a sua relevância ou mesmo o seu sentido”. A farsa foi revelada com a publicação do artigo “A Physicist Experiments with Cultural Studies” (Um Físico Faz Experiências com os Estudos Culturais), na edição de maio/junho de 1996 da revista “Língua Franca”. Nesse artigo Sokal esclareceu que fizera propositadamente uma paródia, sem pé nem cabeça, de um certo tipo de linguagem “pósmoderna” e “relativista”, detalhando as incoerências existentes no artigo da Social Text e explicando suas razões para se dar ao trabalho de evidenciar os usos indiscriminados de “nonsense” por alguns intelectuais das ciências humanas. A revelação agitou os meios universitários dos EUA, e a polêmica chegou à grande imprensa americana e européia – “The New York Times”, “Le Nouvel Observateur” e “Liberation”, por exemplo – e até mesmo no Brasil o assunto rendeu debates na Academia e pelos jornais. Na França, em especial, um dos mais intensos debates intelectuais dos últimos anos teve lugar, envolvendo grande parte da “intelligentsia” francesa. Uma das reações mais comuns, por parte dos defensores dos autores parodiados, foi a de que o embuste não provava nada acerca do pós-modernismo em geral. Apenas, para eles, a revista e seus editores tinham sido pouco cuidadosos na seleção dos textos. A repercussão do episódio fez com que Sokal decidisse dar continuidade ao debate. Convidando outro físico, Jean Bricmont, a escrever com ele o livro “Imposturas Intelectuais”, Sokal se valeu de trechos de obras de Lacan, Kristeva, Latour, Baudrillard e Deleuze, dentre outros, para tentar demonstrar abusos na utilização de conceitos e termos provenientes das ciências físico-matemáticas. No livro, Bricmont e Sokal criticam os autores por utilizarem terminologia científica sem conhecerem o seu real significado e por importarem noções das ciências exatas para as 97 ciências humanas sem a preocupação com uma justificação empírica ou conceitual. E mais, por exibirem uma erudição superficial ao se valerem de palavras complicadas em contextos em que essas palavras não têm qualquer pertinência, cuja finalidade é provavelmente a de impressionar e intimidar o leitor que não tem conhecimentos científicos. De algum modo, o livro é uma tentativa de contestar a reputação que esses textos têm de que parecem incompreensíveis porque são profundos e que, na verdade, muitas vezes eles talvez sejam difíceis porque não dizem realmente nada. Ou seja, Sokal e Bricmont tentam provar que esses autores não dominam as teorias científicas nem os resultados matemáticos a que se referem, numa tentativa de obter das ciências resultados filosóficos e políticos que estas não fornecem. Na entrevista ao jornal “Folha de São Paulo” de 9 de novembro de 1997, Sokal assim se manifestou: Eu me considero de esquerda porque me oponho à distribuição de renda atual. Constatei que certas tendências da esquerda acadêmica norteamericana adotaram o relativismo, ou seja, a idéia de que o conhecimento mais ou menos objetivo do mundo natural e social não pode existir, de que todo conhecimento é subjetivo. Até as ciências naturais não passariam de mitos. Opus-me a isso, pois acho que tais opiniões estão baseadas em erros e são politicamente suicidas. Nossa tarefa, se quisermos progredir, é elaborar uma análise da sociedade atual baseada no rigor, nos fatos, em uma análise convincente. Há certos ensinamentos resultantes da leitura sistemática dos autores que criticamos. É preciso saber do que a gente está falando. Se alguém quer falar das ciências exatas, deve se informar seriamente. Tudo que é obscuro não é necessariamente profundo. É fundamental distinguir entre os discursos que são de difícil acesso por causa do assunto tratado e aqueles cuja banalidade fica escondida pela falta de clareza deliberada dos propósitos. A ciência não é um “texto”. As ciências exatas não são um reservatório de metáforas prontas para serem utilizadas pelas ciências humanas, que têm seus próprios métodos e não precisam seguir as mudanças na física ou biologia. Abramo (1996)16, a respeito do livro de Sokal e Bricmont, afirma: 16 Folha de São Paulo, 15 setembro 1996 “O telhado de vidro do relativismo", artigo de Cláudio Weber Abramo 98 “Fluxo”, “ênfase dialética”, “não-linearidade”, “teoria do caos”, “indeterminismo quântico”, “metacruzamento”, “emancipação cognitiva”, “metacrítica” compõem um léxico decerto familiar. Também é familiar a justaposição desse léxico numa sintaxe, digamos, fluxional: a uma frase se sucede outra, e outra, e outra, dando lugar a um “texto”, objeto e fim da novel área dos “estudos culturais”. Lógica, fundamentos, encadeamentos inteligíveis, pertinência, nem pensar. No caso em questão, o “texto” afirma, entre outras barbaridades, que a realidade física não existe e que um terreno de investigação que lida com o micromundo (a teoria quântica de campos) estaria não só fruindo inspiração dos escritos de Derrida como propiciando suporte às especulações de Lacan e, ainda, fornecendo suporte a uma “física libertária” com “profundas” implicações para a cultura e a prática política! Afirma que os fundamentos da matemática são “capitalistas, patriarcalistas e militaristas”! Ora, pois, se dirá, apresentar o “texto” acima como paradigma do que se publica na área dos “estudos culturais” é um exagero de má-fé. Nenhuma publicação respeitável poderia considerar seriamente a aceitação de tamanhas absurdidades em suas páginas. No citado texto, publicado na revista Social Text, Sokal explica: Há alguns anos, venho me preocupando com um declínio aparente nos critérios de rigor intelectual vigorantes em determinados rincões das humanidades acadêmicas norte-americanas. (...) Para testar esses critérios, decidi fazer um experimento modesto (embora admitidamente incontrolado): será que uma revista de primeira linha na área dos ‘estudos culturais’ _cujo coletivo editorial inclui luminares como Fredric Jameson e Andrew Ross_ publicaria um artigo abundantemente preenchido com absurdidades, caso (a) soasse bem e (b) alimentasse os preconceitos ideológicos de seus editores? Infelizmente, a resposta é afirmativa. Por que o experimento de Sokal funcionou? Esta é a pergunta que Abramo (op. cit.) faz. Para respondê-la cita um “Pós-escrito” enviado pelo físico à Social Text após a eclosão do escândalo: Uma mistura de verdades, meias-verdades, um-quarto-de-verdades, falsidades, inferências inválidas e sentenças sintaticamente corretas, mas carentes de qualquer sentido. (...) Também empreguei outras estratégias consagradas (embora às vezes inadvertidamente) no gênero: apelos à autoridade em lugar da lógica; especulações apresentadas como ciência estabelecida; analogias forçadas e mesmo absurdas; uma retórica que soa correta, mas cujo significado é ambíguo; e confusões entre os significados técnico e corriqueiro das palavras. 99 Ainda segundo Abramo (op. cit.)17: Sokal informa via e-mail que “o escândalo parece estar tendo algum efeito em nosso pequeno mundo acadêmico especialmente nas humanidades e nas ciências sociais, que afinal constituíam o alvo do experimento. Já se programaram inúmeros debates para o início do ano acadêmico, neste mês (fui convidado para mais de dez, em universidades de todo o país). O escândalo deu origem a uma discussão em que começam a ser ouvidos outra vez os velhos argumentos racionalistas contra o pós-modernismo. Enfim, suspeito que um certo tipo de prosa ininteligível e recheada de jargão tenha recebido um golpe mortal, pois os comitês universitários de promoção acadêmica estarão muito menos intimidados do que já foram por ‘teorias’ aparentemente profundas, mas incompreensíveis”. Receia-se que o otimismo de Sokal quanto à academia norteamericana não possa ser transferido para paragens remotas como o Brasil, em que a vida intelectual morreu por suicídio. É muito provável que continuemos a nos deparar com “textos” eivados de uma mixórdia de indefinidas categorias filosóficas misturadas a mal digeridas menções à teoria da relatividade geral, ao indeterminismo quântico, à teoria do caos, ao teorema de Gõdel, tudo servindo de suporte a especulações de modo geral ininteligíveis e, quando inteligíveis, gritantemente implausíveis, a respeito da psique, da função da forma na arte e de todo e qualquer assunto que dê na telha de seus perpetradores. Como a polêmica gerada pelos trabalhos de Sokal e Bricmont se insere nesta pesquisa? Certamente que não seria razoável avançar – menos ainda, se envolver – em tal polêmica, ainda em curso e da qual participaram, ou participam, nomes academicamente significativos em trincheiras opostas. O que nos interessa sublinhar é a existência da própria controvérsia, calcada em acusações de desconhecimento dos conceitos utilizados nos textos e em uma politização exacerbada do debate, haja vista a resposta dada por Derrida18: 17Alguns endereços eletrônicos, listados por Abramo, para acompanhar a polêmica: http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/index.html (página de Sokal na New York University) http://www.nyu.edu/pubs/socialtext (página da "Social Text") http://weber.u.washington. edu/~jwalsh/sokal/ (referências sobre o caso, compiladas por Jason Walsh, da Universidade de Washington) 100 Tais debates têm uma história complexa: bibliotecas de trabalhos epistemológicos! Antes de opor os “eruditos” aos outros, eles dividem o próprio campo científico. E o do pensamento filosófico. Embora por vezes me divirta, levo a sério os sintomas de uma campanha, ou mesmo de uma caça, em que os cavaleiros mal treinados certas vezes têm dificuldades de identificar a presa. E, antes de tudo, o próprio terreno. Ou a tréplica de Sokal e Bricmont19: Uma vez que Jacques Derrida consagra a maior parte de seu artigo a defender-se contra um ataque que, de nossa parte, inexiste, talvez valha a pena esclarecer a relação (tênue) que existe entre ele e nosso livro. Uma antiga observação de Derrida a propósito da relatividade de Einstein é, de fato, citada na paródia de Sokal. Ora, o objetivo dessa paródia era, entre outros, zombar do tipo de discurso, muito freqüente no pós-modernismo norte-americano, que consiste em citar as obras de “mestres” como se substituíssem o argumento racional. Como os textos de Derrida e de Lacan, assim como os enunciados mais subjetivistas de Bohr e de Heisenberg sobre a interpretação da mecânica quântica, fazem parte das referências preferidas dessa microcultura, eles são um Cavalo de Tróia ideal para penetrar em sua cidadela. Mas nosso livro, ao contrário da paródia, possui um alvo rigidamente limitado: o abuso sistemático de conceitos e de termos provenientes das ciências físico-matemáticas. Jacques Derrida não entra nessa categoria. (...) Ele tem razão, portanto, de se queixar quando a mídia, ao resenhar nosso livro, acrescenta às vezes a sua foto; mas a crítica deve ser dirigida aos jornalistas, e não a nós, que fomos os mais claros possíveis. Sokal, além de ser um físico, criou tamanha polêmica a partir de um livro escrito por um matemático e por um biólogo (Gross and Levitt, 1994). A paródia – ao mesmo tempo, um experimento não científico e um embuste – teve motivações intelectuais e políticas. Essas motivações são muito relevantes para a discussão que se pretende estabelecer nesta pesquisa, pois o debate sobre hidrelétricas na Amazônia vem se constituindo como 18Jacques Derrida. Artigo para o jornal francês “Le Monde”, republicado pela “Folha de São Paulo”, em 19 de abril de 1998, com o título “Descomposturas intelectuais”. 19Alan Sokal e Jean Bricmont. Artigo para o jornal francês “Le Monde”, republicado pela “Folha de São Paulo" , em 19 de abril de 1998, com o título “Uma crítica sem fundamento”. 101 um espaço privilegiado para a questão ambiental, na medida em que permite que se possa trazer à luz informações que, convenientemente traduzidas para uma linguagem adequada, permitam que os diversos atores sociais possam ter participação ativa nos processos de tomada de decisão. Assim, é significativa a constatação de “brechas” no controle acadêmico e intelectual da informação científica como revela o “Caso Sokal”, porque, como veremos, a maioria dos embates travados ao longo das últimas décadas sobre o desenvolvimento da Amazônia, ao envolverem componentes ambientais, trouxeram a política, a ciência e a ideologia à arena onde se desenrolam. Em contexto de tamanha complexidade, nos parece adequado traçar um paralelo entre o episódio protagonizado por Sokal e o debate generalizado que hoje se dá acerca do “desenvolvimento sustentável” da Amazônia. Afinal, se, nos dias de hoje, parece impossível encontrar quem se manifeste contra o “desenvolvimento sustentável”, de qualquer região do planeta que não seja – ou venha a ser – uma área destinada à conservação ambiental, por outro lado é também muito difícil encontrar uma definição clara e precisa para esse tipo de desenvolvimento entre aqueles que, mesmo não sendo formuladores teóricos, são usuários freqüentes dessa quase mítica denominação. Para Sokal e Bricmont , o “pós-modernismo” é chamado de: Uma corrente intelectual caracterizada pela rejeição mais ou menos explícita da tradição racionalista do Iluminismo, por discursos teóricos desconectados de qualquer teste empírico, e por um relativismo cognitivo e cultural que encara a ciência como nada mais que uma “narração”, um “mito” ou uma construção social entre muitas outras. (Sokal e Bricmont, 2001: 17) Para o “desenvolvimento sustentável” não se encontram adversários tão claramente posicionados. O conceito, desse modo, encontra adeptos nas mais diversas correntes de pensamento e, por isso mesmo, mascara o debate tão necessário para embasar a tomada de posição dos diversos atores sociais nos conflitos inerentes às também diversas aspirações com relação ao desenvolvimento. 102 Não é raro encontrar um pesquisador que faz uma pilha de tudo que encontra e se vê perdido ao tentar impor uma forma com sentido à amorfa massa de dados que acumulou. Não menos meritório é o outro extremo, na pessoa do teórico de gabinete que despreza pôr à prova sua teoria diante da realidade empírica. Mais tarde talvez venha a encontrar uma linda teoria destruída por um fato feio. No mínimo podemos dizer que trazemos um pouco de nós ao nosso encontro com a realidade. (McGarry, 1999: 58-59) Especialmente na Amazônia, a distinção entre fatos e mitos deve ser prioritária para a construção de um conjunto de informações destinadas a embasar a tomada de decisão em processos que envolvem componentes ambientais. Sokal, em entrevista à Revista de Antropologia da Universidade de São Paulo20, discute a palavra “conhecimento”, dando a ela o significado de “crença verdadeira justificada”. “Justificada”, querendo dizer que há boas razões para crer que é verdadeira e não uma casualidade. Conhecimento é diferente de crença, pois a proposição deve ser verdadeira e devem existir boas razões para se crer que é verdadeira. Assim, segundo Sokal, para o que chamou de "um relativista extremo" as palavras “verdade” e “justificada” não têm sentido objetivo e confundir crença com crença verdadeira justificada, sem que seja apresentado qualquer raciocínio, é um truque lingüístico, equivalendo a aplicar a palavra “conhecimento” a algo que na realidade não é mais que crença. Um fato, na visão desse físico teórico, é algo que se passa no mundo, fora de nós e outra coisa é o que sabemos do fato ou o que cremos a respeito do fato. Os fatos, pelo menos os naturais, não são construídos socialmente, mas sim, nossas crenças a propósito desses fatos é que são construídas socialmente. Assim como todas as crenças são construções sociais, todas as teorias científicas também o são. No entanto, as teorias científicas não são meras construções sociais. São construções sociais das quais se pode dizer se são verdadeiras ou falsas, objetivamente. 20 Volume 41, Número 1, 1998. 103 Viola (2002:20) discute uma questão central para esta pesquisa: Consideremos, por exemplo, os movimentos de questionamento das barragens que os ambientalistas têm apoiado sistematicamente. Eu penso que, de um modo geral, esses movimentos têm sido predominantemente negativos no Brasil, nos últimos 20 anos. A energia elétrica a partir de barragem de rios tem sido uma das formas mais baratas e mais eficientes de produzir energia no País. Eu não quero dizer que todas as barragens já construídas foram as melhores possíveis, em termos técnicos e sociais. Existem elementos nessas barragens que poderiam ser melhorados. Mas o que vemos é o ambientalismo apoiando maciçamente a resistência à construção de barragens. Isso representou uma contribuição negativa para a qualidade de vida. A questão pode ser posta sob a lente da informação. Vejamos, por exemplo, o que diz um livro didático adotado há décadas para o ensino da Geografia no Ensino Médio brasileiro21, a respeito da construção e operação da usina hidrelétrica Tucuruí, no rio Tocantins, Estado do Pará (p. 316): O fechamento das comportas de sua barragem formou um imenso lago de 2430 km², cobrindo a floresta, que entrou em processo de putrefação. Nesse processo é consumido o oxigênio da água e ocorre a produção de gás sulfídrico, que, sendo tóxico, prejudica os peixes e outros organismos vivos, e, com seu poder de corrosão, tem exigido a substituição periódica das turbinas da usina. Em um único e pequeno parágrafo, são cometidos dois erros de grande significado. Em primeiro lugar, as madeiras submersas no lago de Tucuruí estão em tão bom estado de conservação que tem atraído diversos grupos interessados em sua retirada desde 1988 – portanto, dez anos antes da citada edição do referido livro ser lançada. Mesmo que atenuada a importância do equívoco pelo fato de as previsões feitas antes do enchimento do reservatório realmente se referirem à possibilidade de tais impactos ocorrerem, não se justifica que um conceituado autor didático faça tal tipo de afirmação depois de mais de uma década transcorrida desde a constatação do fato físico-químico do excelente estado de conservação das árvores submersas. 21 O livro se intitula “Panorama Geográfico do Brasil: contradições, impasses e desafios socioespaciais”, de autoria do professor Melhem Adas. A edição é de 1998, Editora Moderna, São Paulo. 104 No entanto, somente uma desinformação completa a respeito do funcionamento de uma hidrelétrica – e dos custos associados – pode levar o autor a afirmar que turbinas gigantescas como as de Tucuruí possam ser substituídas periodicamente. Mais adiante (p. 317) o autor faz uma sinistra previsão: Ela (a usina) foi construída a cerca de 270 km da foz do Tocantins (...) onde já se nota a diminuição da vazão do rio em virtude da construção da barragem. Com isso, as águas do oceano deverão penetrar mais fundo no Vale do Tocantins, provocando a salinização de suas águas, comprometendo o abastecimento de água potável para a cidade de Belém e degradando os ecossistemas. As previsões a que se refere o autor, diga-se de passagem, foram amplamente divulgadas pela mídia à época da construção e do início da fase de operação da usina – obtendo ampla repercussão na mídia internacional – com óbvias implicações junto à opinião pública e com conseqüências diretas sobre as políticas dos organismos internacionais para a Amazônia. Como atenuante, pode-se dizer que o autor estava apenas repercutindo o que havia sido previsto por cientistas de instituições de renome, na década de 1980. Como agravante o fato de que tais previsões foram amplamente desmentidas pelos estudos realizados durante as últimas duas décadas. Ainda na página 317, encontram-se referências “às quase 76 hidrelétricas” projetadas, em fase de construção ou em operação na Amazônia, à iminente “morte do rio Uatumã”, onde se construiu a hidrelétrica de Balbina, estado do Amazonas e às “grandes vítimas” desta usina, os “índios Waimiri-Atroari". Vê-se, então, que o autor desconhece o significado de um inventário hidrelétrico ao se referir a um estranho número de “quase” 76 hidrelétricas – seja lá o que tal expressão signifique. Mesmo porque, até hoje, as usinas hidrelétricas em operação ou em fase de projeto executivo na Amazônia não chegam a uma dezena. Vê-se, também, um desconhecimento da condição hidrológica do rio Uatumã e das condições atuais da nação Waimiri. O Programa Waimiri-Atroari, desenvolvido pela Eletronorte em parceria com 105 outras instituições, apresenta números muito positivos quanto à qualidade de vida da população relocada. O Programa Waimiri Atroari foi criado em 1988 com o objetivo de compensar os impactos da implantação da Usina Hidrelétrica Balbina, próxima a Manaus. Esses impactos, de natureza sócioambiental, incidiriam sobre a Terra Indígena e o Povo Waimiri Atroari e seriam, principalmente, a inundação de 30.000 hectares e a relocação de duas aldeias na área do reservatório, com possíveis reflexos nas áreas de uso de outras aldeias. Antes da criação do programa, a Eletronorte reconheceu a legitimidade da ocupação dos Waimiri Atroari na área a ser inundada a necessidade da compensação financeira pelos impactos que seriam gerados. Desse modo, o programa nascia com um compromisso inicial de 25 anos, durante os quais as metas a serem alcançadas estariam definidas no desenvolvimento de ações integradas nas áreas de saúde, educação, proteção ambiental e apoio à produção. Os objetivos do programa seriam a garantia aos índios do usufruto exclusivo da terra indígena demarcada e da melhoria das condições gerais de vida, segundo a própria visão dos Waimiri Atroari. Isto incluiria a ampliação da compreensão da Comunidade Indígena acerca da realidade brasileira, para que as suas relações econômicas e culturais com a sociedade que os envolve se desenvolvessem em harmonia e equilíbrio. Em dezembro de 2001, a população era de 912 indivíduos e com um crescimento de 5,98% ao ano. A produção em grandes roças e o estoque de animais para alimentação trouxeram a total independência alimentar. As práticas culturais foram resgatadas revivendo a dignidade indígena. Cerca de 40% da população foi alfabetizada e o restante está em processo de alfabetização. Foram construídas e equipadas 17 escolas, com 28 professores indígenas. Nos últimos 10 anos não houve ocorrência de qualquer doença contra a qual pudesse ser prevenção por vacina, pois toda população foi vacinada. 106 Um controle informatizado da saúde foi implantado, permitindo que as doenças respiratórias, a malária e outras doenças comuns da região – doenças endêmicas – fossem controladas. A terra está demarcada, homologada e sem qualquer invasor. A situação fundiária está totalmente regularizada, com uma fiscalização sistemática dos seus limites, inclusive sobre as estradas que cortam a região.22 Não seria oportuno perguntar quantos estudantes de Ensino Médio, que se tornaram universitários e depois profissionais formadores de opinião, incorporaram à sua visão da Amazônia tais equívocos e, com eles, moldaram uma visão de oposição intransigente à opção hidrelétrica na matriz energética brasileira? Em 1994, o professor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Amazonas, Sérgio Figueiredo, publicou um artigo na imprensa de Manaus23, em que enumera uma série de previsões feitas por parte da comunidade científica a respeito dos impactos ambientais da hidrelétrica Balbina. Ex-presidente do órgão licenciador ambiental do Estado do Amazonas, o mencionado professor cita prognósticos que davam ao rio Uatumã pouco tempo de vida, nos quais as turbinas seriam danificadas pela poluição do lago, que a cidade de Manaus seria atingida por um odor proveniente dessa poluição, tornando o ar irrespirável, a ponto de ter provocado, à época, a formação de estoques de máscaras contra gases por parte de algumas empresas da capital amazonense. Apesar de não poder ser citada como modelo de um empreendimento ambientalmente correto, a usina Balbina continua operando e desmentindo muitas das previsões feitas. Contudo, isso não impede de se repetirem críticas com base em fatos não comprovados, ou, até mesmo, desmentidos, sobre hidrelétricas na Amazônia. 22 Fonte: Programa Waimiri-Atroari; Eletronorte 23 Artigo publicado em 27. 04. 94, no caderno 3, páginas 1 e 3, do jornal Amazonas em Tempo, intitulado “Revisitando Balbina: à espera de uma morte anunciada". 107 2.6 CONCLUSÃO As questões propostas por esta pesquisa se relacionam diretamente os modelos de desenvolvimento para a Amazônia, com conflitos socioambientais associados a grandes projetos e com o papel desempenhado pelas instituições governamentais e nãogovernamentais nesses conflitos. A maioria das questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável e à tomada de decisão ambiental está diretamente ligada a escolhas calcadas na existência de efeitos e impactos sobre o ambiente considerado. A informação democratizada é imprescindível para a participação no processo decisório, especialmente entre as camadas menos favorecidas da sociedade. A democratização das informações passa, necessariamente, pela sua validação. Desse modo, discutir informação em seus mais amplos aspectos é também incluir os riscos de validações inconsistentes e/ou ilegítimas. Esses riscos existem, infelizmente, também na cultura acadêmica e, por isso, é importante para esta pesquisa analisar os exemplos dados, uma vez que um grande número de acadêmicos se envolveu, direta ou indiretamente, nos conflitos ambientais associados aos projetos de Tucuruí e Belo Monte. Como se poderá ver nos capítulos a seguir, o controle da informação pode produzir tantas distorções quanto o seu descontrole e que, novamente, a mídia, a Internet e a Academia não estarão protegidas do descontrole do processo pelos seus respectivos mecanismos de validação de informações. 108 CAPÍTULO 3: AMAZÔNIA, AMAZÔNIAS! 3.1 INTRODUÇÃO Neste capítulo, faz-se necessário demarcar um território que transponha as questões geográficas ou políticas. Interpretar a realidade amazônica é uma tarefa cujos pré-requisitos determinam que definamos a qual realidade e a qual Amazônia estamos nos referindo. A diversidade ecológica e cultural da região nos obriga a uma definição prévia de um eixo referencial que é fixado, inevitavelmente, pela visão de mundo do analista. É possível penetrar na Amazônia munido de um instrumental cartesiano ou iluminista. Também é igualmente possível deixar-se guiar por um cajado mágico e atravessar rios e florestas, movido pelos símbolos e mitos amazônicos. Há também a possibilidade de se tentar uma aproximação pela via do chamado desenvolvimento sustentável, um conceito cuja precisão (ou falta de) pretendemos discutir – ao seu tempo. Entretanto, é impossível nos esquivarmos dos componentes ideológicos da abordagem das questões sócio-ambientais na Amazônia. Sobretudo quando se discutem intervenções humanas associadas a um modelo econômico que continuamente se reinventa – e que, no entanto, mantém clara subordinação a uma ordem mundial sobre a qual as nações que compõem ou margeiam o bioma amazônico pouca influência têm. Em um contexto dessa natureza sempre haverá o risco de interpretações muito diferenciadas sobre a Amazônia. Uma imagem de satélite pode nos fornecer informações sobre o desmatamento e as queimadas em uma região. O estudo antropológico de populações tradicionais, por exemplo, pode trazer conhecimentos de grande valia para a percepção de externalidades a um determinado processo de desenvolvimento regional. Contudo, a interpretação desses dados será sempre conduzida sob um filtro de natureza ideológica, principalmente no atual estágio do debate mundial sobre aquele grande bioma. 109 Por tudo isso, este capítulo se inicia com uma tentativa de fazer com que se torne clara para o leitor uma visão autoral e particular sobre a Região Amazônica, construída não apenas a partir da leitura das obras da referência bibliográfica sobre o tema, mas, principalmente, com base na própria experiência profissional – predominantemente exercida em conflitos do setor elétrico na Amazônia Legal. A seguir será feita uma discussão sobre algumas das possíveis "Amazônias" que, descritíveis a partir de vários referenciais, surgem como conseqüência da extrema diversidade da região. Esta parte do texto possui forte influência dos trabalhos de Faulhaber e Toledo (2001), Carvalho e Smeraldi (2003), Carvalho, Moutinho e Nepstad (2001), Gomes e Vergolino (1997), Ianni (1979), Mattos (1980), Pasquis et al. (2003), Procópio (1992), Rodrigues (2004) e Smith (1990). A opção pela simples descrição da região tornaria o trabalho redundante – na medida em que a revisão bibliográfica revelou que essa tarefa já foi realizada por muitos autores – com incomparável competência. Desse modo, foi feita uma escolha – de elevado risco para os padrões acadêmicos usuais – em que são introduzidas no texto algumas referências e discussões que, aparentemente, não estão associadas ao tema central da pesquisa. O risco se materializa na tarefa de provar a conexão entre os temas. Essa conexão, como sinalizado no capítulo anterior, está na informação. Especificamente nos processos de transmissão e validação desta. Por isso, aqui também se pretende analisar a repercussão nos meios de comunicação dos conflitos na Amazônia – em especial na mídia impressa e na Internet. Para tanto, serão privilegiados os aspectos já discutidos anteriormente a respeito da informação, levando em conta, em especial, a capacidade transformadora, no pior sentido da expressão, que a difusão de informações imprecisas, equivocadas – ou mesmo deliberadamente deturpadas – apresenta. 110 Certamente que o assunto, por si só, apresenta tanta relevância que justificaria um esforço específico a respeito do material obtido na prospecção inicial. No entanto, não sendo este o tema principal do trabalho, a análise dos aspectos mencionados estará distribuída ao longo do presente capítulo, bem como dos demais, como investigação auxiliar do problema de pesquisa. Como especificado anteriormente, em um foco mais fechado, esta pesquisa é dirigida para uma análise das intervenções do setor elétrico brasileiro na Amazônia, uma história que remonta a muitas décadas e que atravessa conjunturas políticas nacionais extremamente diversas. O fio central da investigação recomenda que seja enfatizada a evolução das estratégias utilizadas pelo setor na negociação dos empreendimentos com a sociedade, aqui entendida não apenas como local ou regional, mas, pelas próprias características da região, também nacional e internacional – nesse caso, especialmente os atores relacionados com os movimentos ambientalistas e com os organismos multilaterais de financiamento. Para tanto, nesse ponto do trabalho, a multiplicidade de visões acerca das questões amazônicas contribui significativamente para despir o analista de idéias e conceitos préconcebidos – no mau sentido da expressão. 3.2 UMA VISÃO PARTICULAR DAS QUESTÕES AMAZÔNICAS Francisco de Orellana chegou ao Oceano Atlântico depois de ter sido o primeiro europeu a descer o Amazonas e ter seu nome dado àquele que é o maior rio do mundo, antes que a poderosa lenda das mulheres guerreiras sobrepujasse o mito do conquistador caolho de Espanha, eternizando-se nas águas do filho dos Andes e pai da Amazônia. Orellana nasceu onze anos após Pedro Álvares Cabral ter deixado na Bahia uma cruz de madeira, dois condenados portugueses e a semente da “tentativa de se implantar a cultura européia em um extenso território, dotado de condições naturais, senão adversas, 111 largamente estranhas à sua tradição milenar”, como afirma Sérgio Buarque de Holanda (1995). O português de Belmonte e o espanhol de Trujillo não tinham – e nem poderiam ter – a menor noção das suas descobertas. Enquanto o lusitano se via às voltas com as correntes marinhas e as calmarias, o tenente-general de Gonzalo Pizarro – sobrinho de Vicente, conquistador do Peru – enfrentava um rio que se alargava assustadoramente, enquanto suas tropas minguavam mortas pela fome, pela febre e pelos índios. Em agosto de 1542, sobrevivendo ao Amazonas, Orellana avistou o Atlântico. O conquistador espanhol lutou contra as águas de um fabuloso rio que corre até hoje para o mar de maneira pouco diferente da que corria há quase cinco séculos. Orellana e seus compatriotas que o sucederam – especialmente Lope de Aguirre – abriram caminho para a ocupação da Amazônia em meio a traições, assassinatos, massacres, rebeliões e doenças tropicais. Entretanto, a forma de derrota mais dolorosamente irônica para os primeiros conquistadores era a morte por inanição. Os espanhóis se queixaram repetida e sistematicamente da necessidade da busca desesperada por alimentos e das conseqüências letais da ingestão de determinadas plantas em suas primeiras aventuras, quase sempre iniciadas em Nova Granada. Qualquer estudante brasileiro do Ensino Fundamental, hoje em dia, ficaria perplexo com tais relatos. Como morrer de fome na Amazônia, paraíso da biodiversidade mundial? Eis aí a primeira das armas de magnífico poder de destruição que a Amazônia lançou sobre seus invasores: a derrota do adversário por meio da sua ignorância. Como Richilieu conspirando nas antecâmaras de Paris, a floresta urdia nas sombras das margens sua vingança contra seus invasores. A febre, os animais peçonhentos e os índios se revezavam nos contra-ataques. Mas, acima de tudo, a ignorância dos europeus sobre o "Paraíso do Diabo" ,como queria o aventureiro Walter Ernest Hardenburg, era a principal causa de suas desgraças na Amazônia (Smith, 1990). 112 É perigoso imaginar que a Região Amazônica possa ficar imune a tentativas de invasão muito mais significativas das que levaram a cabo os antigos conquistadores, agora em um cenário mundial muito mais complexo e imprevisível. No entanto, talvez nenhuma outra região do mundo tenha resistido tanto e de forma tão determinada a seus invasores. O historiador Anthony Smith (1990), baseando-se nos relatos de Frei Carvajal, representante do clero na expedição de Orellana, afirma que, mesmo admitindo a hipótese de que as partes desabitadas da floresta tivessem poucos recursos, até para a sobrevivência dos índios, estes devem ter ficado muito admirados com a dificuldade dos espanhóis para sobreviver com produtos da terra. É significativo para Smith que os peixes não fizessem parte da dieta diária dos espanhóis, sendo considerados como uma espécie de penitência, destinados ao consumo das sextas-feiras, como manda a Igreja. O frei, conta Smith, escreveu sobre a esperança de se encontrar, em determinados lugares, “alguma espécie de alimento ou peixe”. Enquanto o frei pontificava em sua heterodoxa classificação nutricional, os comandados de Orellana – e, também, os de Gonzalo Pizarro, de quem Orellana se desligou para procurar comida, rio Amazonas abaixo – comiam os cavalos e os cachorros da expedição antes de avançar sobre as próprias botas. Entre 1500 e 1840 – segundo alguns historiadores, entre 1499 e 1840, considerando, assim, os espanhóis como os primeiros a pisar em solo brasileiro – a ocupação do território amazônico se deu com os portugueses impondo um sentido militar às suas ações. Cerca de quarenta fortalezas foram construídas na região entre o início do século dezessete e o final do século dezoito. Mesmo considerando que se trata de um período de aproximadamente duzentos anos, foi, sem dúvida, um esforço notável dos portugueses que, desse modo, bloquearam o acesso de outras potências da época, seja por mar ou pelo interior. Contudo, novamente, e por muito tempo, a floresta era o terrível inimigo a ser vencido. O estabelecimento de missões religiosas e a implantação de colônias agrícolas também foram utilizados por Portugal como instrumentos de ocupação territorial. Todavia, 113 outra poderosa arma amazônica contra seus conquistadores foi acionada pelos deuses da floresta: a baixa fertilidade de seus solos. Combinada com a ignorância de técnicas adequadas de manejo e, de modo contínuo, com a ocorrência de endemias tropicais, tais armas derrotaram os portugueses de uma tal forma que nenhuma dessas colônias permaneceu até o século dezenove. A colonização da Amazônia foi intensificada com a chegada de centenas de milhares de migrantes durante o Ciclo da Borracha, entre 1840 e 1910. Segundo Smith (op.cit), Cristóvão Colombo talvez tenha sido o primeiro europeu a tomar conhecimento da borracha, observando o leite branco escorrer das seringueiras feridas e os índios brincando com a cao o´chu, “árvore que chora”, origem da caoutchouc dos franceses. No entanto, o pouco interesse dos espanhóis e portugueses pela borracha fez com que a exploração dessa riqueza fosse intentada por povos de outras terras. Cerca de dois séculos após a viagem de Orellana, Charles Marie de La Condamine, francês, soldado, acadêmico, aventureiro e amigo de Voltaire, tornou-se o primeiro a levar o látex da seringueira para a Europa, encantado com sua capacidade de conservar secos os objetos que revestia e com sua surpreendente elasticidade. Ingleses e americanos, como Charles Goodyear, se dedicaram com afinco à borracha até que Wickham, em 1873, alegando ser um naturalista transportando espécimes botânicos para os jardins reais ingleses, rouba inapelavelmente as sementes da Hevea brasiliensis, para o bem da Grã-Bretanha. Em 1876, milhares de mudas já tinham descido o Tamisa e desembarcado no Ceilão, onde tiveram vida longa, para infelicidade da então próspera Manaus. E aí, como se diz popularmente: o resto é História. Contudo, como é sabido, não há verdades definitivas na História, mas se estas existissem não seriam encontradas facilmente na imensidão amazônica. Nem a História 114 nem qualquer outra disciplina isoladamente são suficientes para sustentar uma investigação que contemple os processos atualmente em curso na região e os conflitos por eles gerados. Para se empreender um processo de discussão consistente a respeito das possíveis intervenções humanas na Amazônia é fundamental a compreensão da interdisciplinaridade necessária para levar a termo um desafio dessa magnitude. Afinal, quem seria leviano o suficiente para propor a História, a Biologia, a Geografia ou a Sociologia como instrumental único – ou mesmo predominante – para tal tarefa? A Ecologia, por exemplo, seria capaz de levar a cabo a tarefa, de modo neutro e científico? Para Enzensberger (1976:17), por exemplo, “A neutralidade social que pretende para si a argumentação ecológica, quando recorre a estratégias de comprovação científica, é uma ficção". Quando Hobsbawm (1979: 37 e 38) descreve o Século XVII como aquele em cujo começo as bruxas eram queimadas e em cujo final os governos do iluminismo já tinham abolido abominações como a tortura judicial e a escravidão, se refere, principalmente, à “apaixonada crença no progresso que professava o típico pensador do iluminismo”, refletida nos “aumentos visíveis no conhecimento e na técnica, na riqueza, no bem-estar e na civilização que poderia ver em toda a sua volta e que, com certa justiça, atribuía ao avanço crescente de suas idéias". Não parece muito diferente a um observador atento a visão globalizada e hegemônica da economia mundial no início deste século. Evidentemente, conhecimento, técnica, riqueza, bem-estar e civilização, para o presidente dos Estados Unidos, por exemplo, não são conceitos que necessitem atravessar o rio Grande. Ou, se o fizerem, devem chegar à margem latina depois de lavados pelo American way of life, não importando quantas torres gêmeas tenham caído. 115 Quando Enzensberger (1976:61) afirma, na década de 1970, que a política imperialista dos países mais desenvolvidos ambiciona jogar a população dos países industrializados contra o Terceiro Mundo “cuja política será apresentada como uma ameaça direta contra seu nível de vida, sua sobrevivência, até obter sua aprovação para perpetrar operações militares” parece estar se referindo à conferência que se realizou na África do Sul em 2002, a chamada "Rio + 10", descartando os eufemismos tão caros aos representantes das economias centrais. É sabido que os ecossistemas são sistemas produtivos, que permitem sua utilização na produção de bens e serviços e exercem funções de grande valor para a melhoria da qualidade de vida, mesmo nas megalópoles. Toda essa importância não é mensurada pela maioria das escolas do pensamento econômico, o que se configura como um grande obstáculo para as teses do desenvolvimento sustentável. Assim, a resistência ao Protocolo de Kioto, simbolizada por George W. Bush, mesmo após os atentados de 11 de setembro de 2001, deixa transparecer a permanência das palavras de Sachs (1993), para quem o mercado é incapaz de incorporar todos os fatores que contribuem para o bem-estar ou para o sofrimento humano. Esse mercado obriga a população a consumir produtos dos quais não necessita, manipulando as informações relativas aos seus efeitos reais sobre a saúde e sobre o meio ambiente. Geram-se custos sociais invisíveis sob a ótica tradicional e se aumenta o nível de investimento necessário ao desenvolvimento. Polanyi (1988:185) sustenta que: A revolta contra o imperialismo foi principalmente uma tentativa dos povos exóticos de alcançar o status político necessário para protegêlos das distorções sociais causadas pelas políticas comerciais européias. A proteção de que o homem branco podia assegurar-se (...) estava fora do alcance do homem de cor enquanto lhe faltasse o pré-requisito – o governo político. 116 Com pequenas adaptações, tais palavras são aterradoras na sua atualidade. Na conferência de Johannesburgo, o cadáver no armário é africano, negro, pobre e analfabeto. Os atentados de 11 de setembro de 2001 também podem ser percebidos como um confronto entre o capitalismo e a parcela excluída do mercado global. A conferência na África do Sul é marcada pelo confronto entre a riqueza poluída e a poluição da pobreza. A Amazônia, ícone central de tantos debates nas últimas décadas pode ser vista como o vértice para o qual fluem os cursos de pensamento a partir de Bush/Bin Laden, Johannesburgo e Orellana. Os episódios ligados à exploração da borracha não configuram, por certo, mais uma vitória da Amazônia contra seus invasores. Muito mais grave, demonstram como uma atividade contra a qual a floresta não reage – ao menos quando empreendida em uma visão de sustentabilidade – foi extirpada por invasores para que florescesse em terras sob seu domínio. De imediato, o atual debate sobre a exploração da biodiversidade amazônica vem à tona, em uma associação lógica e carregada de presságios funestos. De uma ou outra maneira, a Amazônia vem derrotando seus invasores, ao longo do tempo. Henry Ford – a quem não se atribuíam derrotas anteriores – viu-se obrigado a abandonar Fordlândia e Belterra, símbolos de mais uma intervenção desastrada na região. A ferrovia Madeira-Mamoré, uma tentativa multirracial de vencer o “inimigo amazônico”, agora entrincheirado em Rondônia, foi o túmulo de chineses, alemães, antilhanos, espanhóis, ingleses, entre outros aventureiros à caça da fortuna fácil ou da excitação da guerra contra o “inferno verde”. O Projeto Jari confirmou, com suas florestas homogêneas de gmelinas,a persistência dos combatentes da selva, pragas e doenças que parecem avisar ao invasor que, na força e na virulência de sua intervenção, não percebe a Amazônia como a terra das mulheres indomáveis que Carvajal descreveu e que, lenda ou não, confirma a cada ano a sua resistência, seja na Transamazônica, seja em Serra Pelada. As combatentes do mundo helênico parecem renascer a cada ataque. 117 Infelizmente, a capacidade amazônica de resistência não parece ser suficiente para deter os novos conquistadores. Agora as batalhas não são travadas em seu próprio terreno. Não há mais dúvidas quanto à capacidade de destruição da floresta pelo modelo de fronteiras agrícolas, implantado na década de 1970. Em seu lugar, o cerrado passou à condição de alvo preferencial, mais acessível e vulnerável às penetrações. Contudo, os invasores agora se dedicam a uma guerra muito mais perigosa porque fora do alcance dos guerrilheiros naturais, os defensores invisíveis da floresta. Os novos combates ainda não são percebidos pela maioria da opinião pública nacional, às voltas com o desemprego e a violência urbana ou fugindo de seus infortúnios no escapismo televisivo. A nova guerra pela Amazônia já começou no seio da Academia, nos organismos de inteligência, em setores restritos dos meios de comunicação e nas conferências internacionais. Internacionalização é a palavra que, antes impronunciável, agora começa a ser repetida em freqüência crescente mundo afora. Em paralelo, um também crescente desprezo pelo papel do Estado. Leis (1999) considera especialmente relevantes três aspectos para se pensar a governabilidade global dos desafios ambientais: a perda crescente de soberania dos Estados-Nação; a multiplicação de atores não-estatais; e a disseminação de novas tecnologias de comunicação. Para Leis, a governabilidade global atual não contempla a concepção tradicional, na qual atores governamentais gerariam políticas nacionais e internacionais com alto grau de integração e ordem. Um instigante desafio seria o estudo comparativo entre determinadas correntes do pensamento ambiental e do chamado pensamento neoliberal. Uma investigação que determinasse as convergências – mesmo que não intencionais – entre aqueles que remetem a questão ambiental para um contexto planetário e a globalização pregada pelos neoliberais. Enquanto aqueles se orientam por uma concepção holística, imprescindível ao correto entendimento das modificações por que passa o planeta, estes incensam o plenipotenciário "deus Mercado" e suas práticas que desconhecem as fronteiras nacionais. 118 A quem interessa internacionalizar a questão ambiental? É o nacionalismo um inimigo do combatente ambiental? Defender a nacionalização da Amazônia é um retrocesso político-ideológico? Eis aí um conjunto de questões que merecem serenidade e urgência. Posto que se a chuva ácida provocada pela queima do carvão chinês não é um problema para ser enfrentado apenas pelo governo de Pequim, também é certo que a extinção dos projetos nacionais, a perda da soberania e o desmonte do Estado podem levar a invasões culturais que, no limite, podem transformar o bom combate dos ambientalistas em veículo para deformações do caráter nacional e limitações da soberania. Nessa guerra, as armas pioneiras no front são a informação, a informação e a informação. Já se tornou um lugar-comum repetir que "a primeira vítima de uma guerra é a verdade". Em setembro de 2000, em Nova York, durante o "State of The World Forum", Cristovam Buarque, instado a se posicionar quanto à internacionalização da Amazônia como “um humanista" e não como "brasileiro”, respondeu ao seu interlocutor que, como brasileiro, sua posição era contrária à internacionalização da Amazônia, independentemente dos erros que tenham sido cometidos pelos nossos governos ao longo da história24. Como humanista, o professor Buarque respondeu que poderia imaginar a internacionalização da Amazônia, desde que acompanhada – ou até mesmo precedida – pela internacionalização das reservas de petróleo, dos grandes museus do mundo, da cidade-sede da ONU, dos arsenais nucleares e de outros patrimônios da Humanidade – ou que deveriam sê-lo. Na resposta do professor está a percepção da nacionalidade como contraponto a uma visão que, embalada pelo papel de presente humanista e humanitário, é carregada de colonialismo cultural e da mesma visão que fez os produtores da série de televisão “Os 24 Um artigo do professor Cristovam Buarque, disponível no sítio http://www.almacarioca.com.br/cro38.htm e acessado em 20.07.2004, relata o episódio. O artigo se intitula "A Internacionalização do Mundo" e pode ser visto, também, como um outro exemplo da questão da disseminação de informações pela Internet. 119 Simpsons” dedicarem um episódio a um mítico Rio de Janeiro, onde animais selvagens transitavam pelas avenidas da metrópole. A disseminação de novas tecnologias de comunicação a que se refere Leis (op. cit.) espalha estereótipos mundo afora e, se contribui para a formação de uma consciência planetária mundial, legitima o ato do “bwana” americano que instiga o brasileiro Buarque a abrir mão de sua nacionalidade terceiro-mundista – e, portanto, "suspeita" para opinar sobre as grandes questões mundiais – para como, humanista – em outras palavras, "homem do mundo civilizado" – convergir para as legiões que nos consideram incapazes até mesmo de evitar a afluência das feras silvestres a Copacabana – imagine-se então preservar a Amazônia. Embora pareça existir um consenso quanto ao papel do Estado na regulação e no controle ambiental, tal convergência esbarra inapelavelmente no questionamento do que é Estado, ou o que deve ser no século XXI. O Estado de Bush, para quem “ou se está conosco ele ou se está contra nós”? O Estado transnacional representado por um conjunto de atores não-governamentais para quem as intervenções na Amazônia devem contemplar, como prérequisito, uma bula papal favorável, o nihil obstat do movimento ambientalista internacional? O Estado-Mercado que legitima as práticas que conduzem ao que Bursztyn (1995) chamou de “realidade intervencionista e protecionista” na qual “a busca do desenvolvimento se traduz em estratégias nacionais autocentradas, onde o egoísmo de cada país não dispensa manobras que propugnam um liberalismo ‘dos outros’, mas nunca ‘para os outros'’? No inconsciente coletivo do planeta – inclusive dos brasileiros – a Região Amazônica é um território a ser conquistado. Exploradores e aventureiros em direção a ela se lançaram desde o século XVI, em uma sucessão de investidas mal-sucedidas. A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, o Projeto Jarí, os projetos de Henry Ford e a Rodovia Transamazônica são apenas alguns exemplos de intervenções que estiveram associadas a enormes problemas, cuja magnitude sempre foi proporcional às dimensões amazônicas. 120 Para Castro (1980) a conquista de qualquer tipo de terra pela colonização é sempre o resultado de uma luta lenta e tenaz. Uma luta entre o homem e os obstáculos do meio geográfico. Longe de ser um vazio demográfico ou cultural, a Amazônia possui um conjunto de realidades culturais complexas, conjunto esse que, se ignorado, torna as possíveis intervenções externas nada mais do que invasões condenadas ao fracasso. O desenvolvimento da região, para que seja entendido como sustentável, implica um aprendizado acerca da complexidade de seu mundo. Por muito tempo, a Amazônia, percebida primeiramente como um único ecossistema e, depois, como simplesmente divisível em regiões de terra firme e de várzea, foi arena principal para embates entre a força criadora do elemento humano e as resistências dos fatores naturais. (Castro, op. cit). A região, conjunto de variados tipos de várzea e muitos tipos de terra firme apresenta oportunidades e limites para a exploração humana, com características próprias para seu uso racional e socialmente justo. Para tanto, têm as populações nativas um papel preponderante na escolha das formas de modificação do ambiente natural, escolha que se baseia na adaptação às pressões ambientais características de cada área. Estejamos nós falando do vale amazônico, da bacia do rio Amazonas e seus afluentes ou da Amazônia Legal – incorporando as áreas do Planalto Central – ou de qualquer outra forma de se definir a Amazônia, a discussão do desenvolvimento da região não é simplesmente ecológica, mas, acima de tudo, deve incorporar outras variáveis, de natureza ideológica, política e social. A Floresta Amazônica – de clima quente, úmido e muito regular durante todo o ano – recebe em média muito mais energia solar do que as demais zonas da Terra, exportando o excesso para o Hemisfério Norte. Assim, sua importância é inegável para o ambiente global, podendo mesmo ter uma grande influência sobre o clima de outros países. Para 121 Castro, água e floresta têm um pacto de natureza ecológica, para se apoderarem de todos os domínios da região. Portanto, seria inevitável que, em algum momento, a utilização dessa magnífica quantidade de água fosse considerada entre as alternativas de geração de energia elétrica, pois, como bem ensina a Física Clássica, a geração hidrelétrica é função de duas variáveis principais: a queda e a vazão. Na margem direita do Amazonas, os rios que contribuem com suas águas para a formidável vazão de cerca de 176 mil metros cúbicos por segundo apresentam quedas significativas em pontos específicos de seus cursos. O Tocantins, o Xingu e o Tapajós são o escoadouro natural e veloz das águas que se somam a partir do Planalto Central. No caso do rio Xingu, em especial, uma queda de cerca de 90 metros ocorre em poucos quilômetros, próximo à cidade de Altamira, onde sua vazão atinge números que impressionam. No Tocantins opera a Usina Hidrelétrica Tucuruí, desde novembro de 1984, com um lago de cerca 2400 quilômetros quadrados. Alvo de polêmicas – em nível nacional e internacional – a usina se transformou em um símbolo de conflitos ambientais, principalmente por ser a primeira grande hidrelétrica construída na região. Nas extremidades do conflito, grupos ambientalistas radicais e o corpo técnico do setor elétrico. Aqui não se repetia o combate da floresta com seus invasores. Tratava-se de um conflito que se mostrou – e se mostra – com predominância no campo das convicções e não no campo dos interesses. Em determinados momentos históricos a luta parecia – parece, ainda – ser destinada ao impasse. Castro (op. cit.) nos diz que “Na paisagem virgem, o homem é sempre um intruso que só se pode manter pela força”. Tal afirmação permite, pelo menos, duas interpretações: a de que o ser humano, necessariamente, deve destruir o inimigo natural para dominá-lo ou 122 de que o Homem não pode se iludir quanto aos impactos que causa à Natureza em suas intervenções e partir do reconhecimento desse fato para poder conquistar novas fronteiras. O próprio cientista nos dá a resposta ao afirmar que: “Para vencer a força desadorada da natureza em formação, para abrir algumas brechas nesses cerrados batalhões de árvores inexpugnáveis, seria necessária uma sábia estratégia do elemento humano. Seria preciso, antes de tudo, que ele concentrasse as suas forças. Que se agrupasse em zonas limitadas e desencadeasse nesses pontos a luta contra a floresta.” (Castro, 1980: 103) Citando Viana Moog, Castro nos alerta que “Numa região em que a natureza se concentrou para resistir, o homem se dispersou para agredi-la". Na história do setor elétrico na Amazônia a concentração de forças em determinados empreendimentos significou, inicialmente, a implantação da cultura de enclaves, sendo estes vistos pela população nativa como ilhas de conforto e privilégios. As vilas residenciais das obras possuíam padrões urbanísticos e equipamentos sociais desproporcionais à realidade local. No inconsciente coletivo dos construtores das usinas ainda persistia a emblemática “luta contra a floresta”, justificada pela necessidade de criar a infra-estrutura necessária aos projetos de desenvolvimento regional e nacional. Na outra trincheira, a maioria dos ambientalistas, movidos pelo ideal de deter qualquer avanço sobre a Amazônia. Paralelamente, a legislação ambiental brasileira evoluía, passando a uma fase de controle do Estado – teoricamente – mais ordenado, sistematizado a partir da Lei 6938, de 1981. A exigência dos Estudos de Impacto Ambiental – EIA e dos Relatórios de Impacto Ambiental – RIMA para a concessão das respectivas licenças previstas em lei exigiu das empresas do setor elétrico uma rápida adaptação à nova realidade. Em 1987, um vultuoso empréstimo do Banco Mundial ao setor elétrico foi condicionado à formação de equipes multidisciplinares para enfrentar as questões ambientais e fornecer as respostas exigidas pelos processos de licenciamento. Agora, além 123 da floresta e seus perigos, era necessário “enfrentar” as etapas impostas pelos órgãos licenciadores ambientais. Assim era o pensamento predominante no setor. As questões ambientais não seriam nada mais do que empecilhos burocráticos a serem vencidos. Em tal contexto, a legitimação dos empreendimentos perante a sociedade chegou a um impasse. O setor elétrico, único entre os setores da economia brasileira a possuir um modelo de planejamento em longo prazo passou a ser alvo de contestações por parte de grupos organizados que, catalisados pelos erros cometidos especialmente nos processos de relocação de populações atingidas pela construção de barragens, investiram contra a opção hidrelétrica, malgrado a matriz energética nacional ser composta por mais de 72% dessa opção na geração de energia elétrica (MME, 2003 a). Novamente, no centro dos conflitos, a Amazônia. Os movimentos ambientalistas comemoraram a paralisação do setor na região, valorizando a pressão exercida e subestimando a componente principal da interrupção dos estudos e projetos: a falta de recursos para o setor a partir da década de 1990. Congelou-se uma discussão de importância capital para a sustentabilidade do desenvolvimento, adiaram-se os investimentos, não foi definida a função regulatória do Estado e permaneceu no papel o novo conceito adotado pelo setor elétrico, a Inserção Regional dos empreendimentos – visão setorial que no final dos anos 1990 se pretendia implantar no projeto do Complexo Hidrelétrico Belo Monte, no rio Xingu. Para Bursztyn (2001) “ao mau Estado não deve se opor o não Estado, mas o bom Estado, sob risco de se perder a capacidade reguladora, fato que provoca tragédia coletiva”. Em um raciocínio semelhante pode-se argumentar que a um empreendimento ruim não se deve opor o não-empreendimento e sim o bom empreendimento. Quando bandeiras eram levantadas contra os erros cometidos em projetos como o da Usina Hidrelétrica Balbina, no rio Uatumã, próximo a Manaus, o contraponto utilizado era o uso de fontes alternativas de energia – solar, eólica etc – soluções que devem complementar a matriz energética brasileira, mas que, consideradas as dimensões do país, 124 não podem se constituir como solução para as necessidades energéticas nacionais de curto e médio prazo. Assim, o contraponto do enclave é o empreendimento inserido em um plano de desenvolvimento sustentável, o contraponto da dispersão é a concentração de forças em planejamentos de longo prazo, embasados por uma avaliação estratégica que privilegie os componentes ambientais. Contudo, esse "mundo ideal" parece estar muito longe da realidade, na medida em que os conflitos atualmente em curso na região se desenvolvem com uma perturbadora ausência de lógica, em um emaranhado de visões sustentadas por uma falta de conhecimento científico e de articulações consistentes e eficazes entre os diversos setores envolvidos. Se, de um lado, o "conquistador" , o "pioneiro", o "desbravador", são inapelavelmente associados à devastação da Amazônia, de outro, o "preservacionista", o "conservacionista", o "idealista" passam a ser rotulados como refratários ao desenvolvimento regional. A visão "in medio virtus" em que a solução dos conflitos surgiria a partir da sustentabilidade e da participação da sociedade vem se mantendo embasada em uma produção desenfreada de trabalhos teóricos, em ações de instituições desarticuladas, na falta de um projeto nacional que inscreva a Amazônia em um contexto de decisões estratégicas tomadas por conjuntos de representantes com um grau mínimo de representatividade. Nesse contexto, o conhecimento precário e a informação desordenada provocam um agravamento do problema, prejudicando irreversivelmente a tomada de decisão e tornando cada conflito um cipoal de palpites que se reproduz continuamente, catalisado pela desarticulação do Estado, pelo despreparo técnico das instituições e pela desinformação do cidadão. 125 Assim, analisar a atuação do setor elétrico brasileiro na Amazônia, como forma de investigação dos conflitos sócio-ambientais na região, é contrapor todos esses elementos em um único experimento, representativo como poucos, dadas as suas dimensões econômicas, sociais, políticas e ambientais. Resolver os conflitos criados pelos projetos hidrelétricos na Amazônia não é resolver os problemas da região. Mas, compreender esses conflitos é um bom começo para a busca de soluções permanentes. Nesta visão pessoal da Amazônia está um dos eixos do presente trabalho. 3.3. VISÕES DAS AMAZÔNIAS 3.3.1 Buscando exemplo de visões territoriais A Amazônia impõe ao Estado uma definição de seu papel em um Projeto Nacional? Sim, grafemo-lo com letras maiúsculas, porque para que seja possível identificar as configurações institucionais, a natureza das relações e a dinâmica do tipo de sociedade que construímos até o momento e, a partir desse conhecimento, construir uma análise prospectiva para o processo em que fiquem explicitados os papéis das instituições. Contudo, a identificação desses arranjos institucionais na Amazônia implica, necessariamente, em considerar as suas diversidades ambientais, sociais e culturais, pois a região é um típico caso em que a soma das partes é maior do que o todo. A região está longe de ser uniforme e homogênea, caracterizável por meio de referenciais clássicos. Na verdade, trata-se de um conjunto de várias regiões que possuem características próprias. Essas regiões, ao se somarem, formam um conjunto que se revela bem mais complexo que a simples adição revelaria, haja vista a intrincada rede de relações estabelecidas entre as partes. As suas potencialidades e necessidades específicas percorrem 126 uma escala de comunidades e municípios, estados e sub-regiões, bem como a questão das fronteiras internacionais. A intensa diversidade de formações ambientais, realmente bastante diferenciadas, se constitui como uma grande dificuldade para o aproveitamento das riquezas naturais e a grande desinformação, tanto em nível nacional quanto internacional, explica, em parte, o fracasso das políticas implementadas na região, até o momento. Uma realidade exótica, até mesmo para os brasileiros de outras regiões, a Amazônia é vista como um problema de difícil entendimento e cujo conhecimento das variáveis associadas ainda é fragmentado e insuficiente. Para Pasquis et al (2003) são muitas as razões para as visões diferenciadas entre os principais grupos de atores relacionados com a problemática amazônica. A falta de clareza sobre o que se fala está entre as principais. Até mesmo o próprio conceito de Amazônia não é muito claro. Amazônia como floresta densa e úmida, ou também o Jalapão, no Tocantins e as chapadas cobertas de soja no Mato Grosso, pois essas regiões, pelo menos fazem parte do que oficialmente se chama Amazônia Legal. Um mundo de situações bem diversas, com um grau de heterogeneidade que contribui para essa a confusão, a Amazônia não é uma só. A extensão territorial, a mistura étnica, a posição privilegiada nos debates na mídia e na Academia, as confrontações políticas, a globalização e a evolução das políticas públicas, entre outros, são fatores responsáveis por um conjunto de percepções bastante diferenciadas dos atores sociais da região. Em Pasquis et al (2003) podemos ver que cada grupo de atores, de forma voluntária ou sem objetivo específico, vê a Amazônia sob um ângulo, um enfoque que reflete seus interesses ou a sua vivência amazônica. Essa é uma situação que é, às vezes, agravada pela 127 mídia e que explica em grande parte a manutenção dos famosos mitos que ilustram a região. Se, para alguns é um inferno, enquanto para outros é o paraíso, a enorme lacuna que existe em termos de conhecimento da região permite que grupos bem ou mal intencionados difundam esses mitos, os quais podem se tornar medos. Assim, a imensidão da região contribui para que essas visões diferenciadas possam ser comparadas ou confrontadas e Pasquis et al (2003) identificam mundos paralelos que convivem nessa região, nas suas Amazônias. Além da indefinição do conceito amazônico e da sua dimensão e heterogeneidade, o que por si só já justifica falar de Amazônias, a falta de diálogo entre os diferentes mundos amazônicos perpetua esses retratos diferenciados. Assim Pasquis et al. (2003) perguntam como imaginar decisões coerentes ou políticas públicas articuladas sem que esses mundos se falem. Apontam que esse é justamente o desafio das autoridades que têm responsabilidade sobre o futuro da região e sobre seu desenvolvimento equilibrado e eqüitativo em longo prazo. Com freqüência, mesmo que de forma intermitente, a solução para os problemas da Amazônia é concebida por meio da redivisão territorial. Podemos avaliar algumas dessas idéias – e alguns dos conflitos gerados por elas como uma forma de percepção do espaço amazônico no imaginário dos atores políticos da realidade nacional.. Segundo Mattos (1980), a organização de seu espaço político e administrativo sugere uma área super dimensionada, para a qual Portugal, no fim do período colonial, adotava uma divisão em 10 circunscrições político-territoriais entre capitanias gerais e secundárias, subordinadas ao poder central e com um caráter de relativa autonomia. A soberania, a ação política e a defesa militar portuguesa na região eram, então garantidas pelas capitanias de Gurupá, Cametá, Maranhão, Grão-Pará, Tapuiara, Tapera, Cabo Norte, São José do Rio Negro, Mato Grosso e Goiás. 128 A Administração Pombalina formulou a estratégia para a ocupação da Amazônia e, com a Independência, as províncias foram reduzidas a quatro: Pará, Maranhão, Mato Grosso e Goiás, sendo que as três últimas correspondiam a apenas parte do território amazônico. As comarcas em que se subdividiam essas províncias imperiais apresentavam grandes extensões territoriais reduziam-se apenas a um poder local inexpressivo sem nenhuma capacidade operacional sobre as áreas de sua jurisdição. Em 1849, Varnhagen propôs uma nova territorial para o Império que dividiria a Amazônia em oito províncias. A administração imperial, contudo, promoveu uma única modificação na estrutura territorial implantada pela Constituição de 1824, criando em 1850 a Província do Amazonas, antiga Capitania de São José do Rio Negro, com sede em Manaus, desmembrando-se seu território da Província do Pará. No início da República, muitos projetos para reordenação do espaço amazônico foram apresentados, todos interessados em evitar as grandes áreas despovoadas e criando novas unidades administrativas. Entretanto, a Assembléia Nacional Constituinte de 1890, que produziu a Constituição Republicana de 1891, consolidou a divisão territorial imperial, apenas alterando a denominação de províncias para Estados. O período da República Velha não trouxe alterações significativas para o vazio amazônico, permanecendo a região nas mãos de administrações de caráter municipal em número reduzido. As teses de rearticulação do espaço amazônico voltaram a ter algum destaque na década de 1930, no Estado Novo. Já em 1904, numa conseqüência do Tratado de Petrópolis, de 1903, o governo federal havia criado o Território Federal do Acre, contrariando, de um lado, os interesses do Estado do Amazonas, que desejava a incorporação da região adquirida à Bolívia e, de outro lado, as reivindicações de Plácido de Castro e seus partidários que pretendiam que fosse criado ali um novo Estado. 129 O governo da União passou a implantar Territórios Federais, como já faziam os Estados Unidos e a Argentina, tentando levar a ação governamental a regiões afastadas e despovoadas. A Constituição de 1937, no Estado Novo, no artigo 6º, baseando-se no princípio da segurança nacional estipula que "a União poderá criar, no interesse da defesa nacional, com partes desmembradas dos Estados, territórios federais, cuja administração será regulada em lei especial". Em 1943 foram criados cinco Territórios Federais em regiões de fronteira25 e o Congresso Nacional criou, na Carta de 1946, o Território da Amazônia Legal, utilizando um critério misto – político, fisiográfico e geográfico – e a região passou a ser favorecida pelos benefícios fiscais estipulados pelo texto constitucional que estipulava 3% da renda federal ao seu desenvolvimento. Ainda em Mattos (op.cit.), podemos observar que, em relação ao problema territorial, o governo federal, em 1943, saindo de uma inércia republicana de mais de meio século interrompida, apenas, pela criação do Território do Acre, permite que o debate envolvendo novos estudos de re-divisão territorial venha a ser retomado. Os projetos, em geral, baseiam a sua proposta de divisão territorial no critério da integridade das bacias hidrográficas. Destacam-se os projetos Teixeira Freitas (1948), Teixeira Guerra (1960), Siqueira Campos (1974) e Samuel Benchimol (1966 e 1977). Ao aproximar o restante do país da Amazônia, a inauguração de Brasília, no Planalto Central, fez brotar novamente a discussão da reorganização do espaço político brasileiro, e, em conseqüência, a geopolítica amazônica mereceu maior atenção – principalmente com o golpe militar de 1964. 25 Guaporé (atualmente, Estado de Rondônia), Rio Branco (atualmente, Estado de Roraima), Amapá, Ponta Porã e Iguaçu. 130 A Constituição de 1967 manteve a representação parlamentar dos Territórios e atribuiu ao Poder Legislativo autoridade para aprovar a incorporação ou o desmembramento de áreas de Estados ou Territórios, condicionando a criação de Estados e Territórios à edição de Lei Complementar. Em 1974, quando através da Lei Complementar nº 20, manteve a abertura para a reorganização territorial ao permitir que a criação de Territórios Federais pelo desmembramento de parte do Estado já existente, no interesse da segurança nacional ou quando a União haja de nela executar planos de desenvolvimento econômico ou social, com recursos superiores, pelo menos, a um terço do orçamento da capital do Estado atingido pela medida. Permitia, ainda, que fosse utilizada a alternativa de desmembramento de outro Território Federal. A Lei Complementar nº 31, de 1977, criou o Estado do Mato Grosso do Sul, desmembrando-o do Estado de Mato Grosso. Na mesma época, vários projetos visando à criação de novos territórios na Amazônia foram apresentados, com a justificativa de dinamizar o espaço amazônico, aprimorando a estrutura política e administrativa da região. O Projeto do então Deputado Federal Siqueira Campos, aprovado pela Comissão da Amazônia, daquela casa, defendia a criação de doze novos Territórios Federais amazônicos: Trombetas, Rio Negro, Juruá, Purus, Madeira, Tapajós, Xingu, Tocantins, Gurupi, Aripuanã, Arinos e Araguaia, além de outras modificações de limites físicos em outras regiões do país. Mattos (op.cit) assinala que Benchimol defendia a idéia de se considerar a existência de um eixo-mediatriz da calha central, via natural de penetração no vale amazônico, em que a grande bacia amazônica estaria subdividida em oito estados e 14 territórios. Em um salto grande no tempo, mais precisamente em abril de 2004, encontra-se uma Frente Parlamentar do Congresso Nacional defendendo a re-divisão da Amazônia, por meio da criação de cinco novos Estados e três territórios federais na região. 131 Na Comissão da Amazônia, Integração Nacional e Desenvolvimento Regional da Câmara dos Deputados discutia-se, então, projetos apresentados pelos parlamentares nos quais se prevê a criação dos estados de Carajás, Xingu e Tapajós, no Pará; do Araguaia, em Mato Grosso; e do Solimões, no Amazonas, além dos territórios de Juruá, Madeira e Uirapuru, todos no Amazonas. Ou seja, afetando três dos maiores estados brasileiros: Pará, Amazonas e Mato Grosso. Os argumentos de um grande potencial inexplorado na região, da pobreza de seus habitantes e do "engessamento do desenvolvimento da Amazônia" voltam novamente ao centro das discussões. O contraponto à questão ambiental é o perigo do espaço aberto para o narcotráfico e o contrabando, por falta da presença oficial. A Comissão também pretendia ver criada a nova Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e a obtenção de um consenso, para fazer deslanchar o Plano Plurianual – PPA. Os problemas de fronteira existentes entre o Pará e Mato Grosso e entre o Acre e o Amazonas, bem como as grandes distâncias são utilizados como argumento para a ausência do Estado em muitas comunidades, em exemplos como a cidade de Cruzeiro do Sul, no Acre, que embora esteja a dois quilômetros da cidade de Goiará, no Amazonas, "dista" de Manaus 40 dias de barco, a real medida de distância na Amazônia. O caso do conflito entre Pará e Mato Grosso é uma briga por um território de quase dois milhões e meio de hectares, ainda em curso em 2004 no Supremo Tribunal Federal (STF). Ao contrário dos conflitos tradicionais da Amazônia, não se trata de adversários como índios e garimpeiros ou colonos e latifundiários. Nesse caso, os dois estados se digladiam por numa área rica em minério de ferro e com pequenas alterações antrópicas, onde está sendo discutido um possível erro de demarcação em um trecho considerado como paraense e que o Mato Grosso reivindica. 132 Iniciada em 1900, a disputa de terras tem seu marco temporal quando os dois estados assinaram a primeira convenção de limites geográficos e, segundo esta, a divisa estaria representada por uma linha traçada a partir do Salto das Sete Quedas, no rio Teles Pires e que se estenderia até a margem esquerda do rio Araguaia. Nessa convenção, ficou definido como limites a margem esquerda do rio Araguaia - no extremo esquerdo da Ilha do Bananal - e o Salto das Sete Quedas, no rio Teles Pires. Um estudo feito por Henri Coudreau, em 1922, em uma viagem a campo para a demarcação de limites entre os estados, resultou em um referencial supostamente equivocado para a divisa e gerou uma disputa judicial por uma fatia do território paraense que se prolonga do Teles Pires até a divisa com o estado do Tocantins. Para Coudreau, o ponto divisor entre os dois Estados era o Salto das Sete Quedas e não a Cachoeira de Sete Quedas e, assim, as terras que Mato Grosso reivindica ficariam dentro do Pará, conforme consta do mapa oficial de 1922. Os documentos existentes no Serviço de Cartografia do Exército e na sede do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Rio de Janeiro, são utilizados pelos que dão razão ao Pará na disputa pelos 2. 400.000 hectares, mas ponto nevrálgico do litígio entre os dois Estados é a localização da Cachoeira de Sete Quedas, feita por Coudreau, que no final do século XIX percorreu a região dos rios Tapajós e Teles Pires. As divergências entre os dois Estados começaram já em 1922, a partir da elaboração da 1ª Coleção Internacional de Cartas, em que os técnicos do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro trocaram o nome Salto das Sete Quedas por Cachoeira das Sete Quedas, alterando os limites da fronteira em 2,4 milhões de hectares para dentro do território matogrossense em relação à convenção firmada. O marechal Cândido Rondon contestou o trabalho de Coudreau, em 1952, ou seja, 30 anos após o publicado pelo Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, antecessor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. 133 O Mato Grosso alega prejuízos econômicos, sofridos principalmente pelos pecuaristas que, como habitantes do Pará, não podem exportar carne para os países europeus. Isso porque a região não é considerada livre da febre aftosa e, apesar de muitos fazendeiros possuírem títulos de propriedade expedidos pelo Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat), os bancos não concedem financiamentos, não os considerando como residentes e proprietários em Mato Grosso. Adicione-se o fato de que a área é a única do Brasil livre da sigatoka negra, uma praga devastadora para os bananais e já se tem elementos para justificar a disputa. Outro elemento do conflito é a maior província mineral em atividade no mundo, Carajás, explorada no Pará pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Parte das áreas exploradas está na área em litígio, que corresponde a cerca de 5% da área do Pará e na qual habitam aproximadamente 100 mil pessoas em 12 municípios, dentre os quais se destaca Santana do Araguaia com 42 mil habitantes, de acordo com o Censo 2000 do IBGE. Mais uma vez, no centro do conflito está a questão da informação – a polêmica questão dos limites a partir do rio Teles Pires – e a desarticulação dos mecanismos estatais, haja vista o fato de que o conflito se dá em uma área onde se discutem projetos de hidrovias, hidrelétricas, expansão da fronteira agrícola, expansão da exploração mineral, exportação na pecuária, reservas indígenas etc. Para Pasquis et al (op. cit), a divisão ou estratificação do espaço amazônico provavelmente preocupa políticos e pesquisadores com a mesma intensidade que o tema da integração. Tem sido bastante comum o surgimento de novos zoneamentos para a região ou propostas de criação de novos territórios ou estados e até de redefinição de limites interestaduais, de modo que grandes regiões já não são espaços pertinentes para o planejamento e só o IBGE parece ainda usar essa divisão para fins estatísticos. Assim, para esses autores, o futuro da região depende, em grande parte, dos atuais debates sobre a re-divisão territorial, que divide os políticos em dois grandes grupos. Os políticos do sul do país argumentam sobre a modesta população da região e o gasto 134 adicional que a União teria que assumir com novas administrações. Os "divisionistas" do Norte, acreditam que a grande dimensão da região distancia a administração dos seus administrados. A proposta dos eixos nacionais de integração e desenvolvimento do MPO/MPOG representa uma nova regionalização do país, assim como as mesorregiões do MIN. Independentemente da proposta, ainda não se sabe se essas novas áreas de planejamento consideram o mercado interno ou se constituem apenas em corredores de investimento para o escoamento da produção do Centro-Oeste. (Pasquis et al, 2003) Todas essas tentativas buscam soluções para um problema que apresenta características diferentes em mentes diferentes. Em outras palavras, as diferentes visões da Amazônia, as "Amazônias" de cada um, colidem entre si por serem criações individuais ou coletivas – e não um objeto bem definido. Desse modo, não é difícil constatar que os conflitos sócio-ambientais na região estejam significativamente conduzidos por discursos distintos sobre um espaço de análise não-coincidente. É evidente que uma visão positivista do objeto seria totalmente inaplicável na definição do melhor conjunto de intervenções para a Amazônia. Contudo, a introdução de componentes científicos no debate deveria ser estimulada, com o objetivo de evitar que meras opiniões ou pesquisas inconclusas ganhassem ares de verdades incontestáveis. 3.3.2 Buscando exemplos de visões de usos florestais Um dos casos emblemáticos que a Amazônia fornece está ligado à função desempenhada por suas florestas, principalmente no que se refere às modificações climáticas do planeta e a um possível aproveitamento dos serviços ambientais por elas prestados. Quando vista como a maior floresta do mundo, por exemplo, a Amazônia é uma região que se estende por vários países da América do Sul e sobre parte significativa da 135 superfície continental da Terra, aproximadamente. Estima-se que essa mesma floresta seja responsável pela retirada diária de uma quantidade significativa de dióxido de carbono da atmosfera. Durante muito tempo se acreditou que a Amazônia não perdesse nem ganhasse carbono significativamente durante os processos de fotossíntese e respiração, mas o monitoramento das trocas de carbono na Amazônia tem sugerido que a floresta absorve um percentual expressivo de gás carbônico. Confirmada essa função transformadora da floresta, a possibilidade de contribuir para atenuar a exacerbação do "Efeito Estufa" se torna significativa26. Assim, sob uma ótica de prestação de serviços ambientais, a Floresta Amazônica pode ultrapassar suas funções simbólicas evidentes, como aquelas tão decantadas ao longo de séculos por poetas, aventureiros, historiadores e ambientalistas. Em dezembro de 1997, no Japão, foi consumada a adesão dos países signatários do Protocolo de Quioto. Para os países desenvolvidos e para aqueles em fase de transição para uma economia de mercado, listados pela convenção, o protocolo estabeleceu um compromisso de redução de emissões totais dos gases geradores do efeito estufa em, pelo menos, 5% dos níveis existentes em 1990. O protocolo definiu também que essa redução ou limitação – que, obviamente, assume valores diferentes para cada país – deverá ser cumprida entre os anos de 2008 e 2012, ou seja, o chamado Primeiro Período de Cumprimento do Protocolo de Quioto. Observemos o quadro a seguir: 26 Os números citados no item 3.2 deste capítulo foram obtidos nos sítios http://lba.inpa.gov.br/lba/ e http://www.mct.gov.br/clima/quioto/Default.htm, com diversos acessos entre março e julho de 2004. 136 Quadro 3.1: Anexo B do Protocolo de Quioto Parte Compromisso de redução ou limitação quantificada de emissões (porcentagem do ano base ou período) Alemanha Austrália Áustria Bélgica Bulgária* Canadá Com.Européia Croácia* Dinamarca Eslováquia* Eslovênia* Espanha EUA Estônia* Federação Russa* Finlândia França Grécia Hungria* Irlanda Islândia Itália Japão Letônia* Liechtenstein Lituânia* Luxemburgo Mônaco Noruega Nova Zelândia Países Baixos Polônia* Portugal Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte República Tcheca* Romênia* Suécia Suíça Ucrânia* 92 108 92 92 92 94 92 95 92 92 92 92 93 92 100 92 92 92 94 92 110 92 94 92 92 92 92 92 101 100 92 94 92 92 92 92 92 92 100 * Países em processo de transição para uma economia de mercado. 137 Foram estabelecidos três mecanismos para auxiliar os países do Anexo I do Protocolo a atingirem suas metas nacionais de redução ou limitação de emissões a custos mais baixos: um sistema de comércio de emissões, que permita que um país compre de outro cotas de reduções realizadas; uma possibilidade de implementação conjunta, em outras palavras, a possibilidade de os países realizarem juntos projetos de redução de emissões; e o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que permite que os países do Anexo 1 se beneficiem das reduções de emissões realizadas em países em desenvolvimento , ou seja, países sem compromissos de redução de emissão definidos para o primeiro período de cumprimento do Protocolo. Oitenta e quatro países assinaram o Protocolo de Quioto, mas para que este pudesse entrar efetivamente em vigor, deveria ser ratificado por pelo menos 55 dos países signatários, aí incluídos um conjunto de países do Anexo 1 responsáveis por, no mínimo, 55% das emissões mundiais totais de dióxido de carbono em 1990. A importância do Protocolo de Quioto parece não estar apenas em seu impacto direto sobre os níveis de gases responsáveis pelo agravamento do Efeito Estufa, mas principalmente no papel de instrumento indutor de uma ação global coordenada no sentido da obtenção de soluções para os problemas das mudanças climáticas. Na 6º Conferência das Partes da Convenção sobre Mudanças Climáticas, realizada em Haia, Holanda, em novembro de 2000, os 185 países participantes tentaram resolver as pendências do protocolo. Nesta reunião os Estados Unidos apresentaram uma proposta que compreendia duas ações. A primeira, de que os países industrializados compensassem suas emissões gasosas associadas ao agravamento do Efeito Estufa com as suas próprias florestas, mediante investimentos em projetos de conservação e melhorias ambientais. A segunda com a criação de um Fundo de Desenvolvimento Limpo, fundo este que prevê a utilização de fontes alternativas de energia nos países em desenvolvimento. A proposta foi rejeitada pelos países em desenvolvimento e pelos integrantes da União Européia. 138 Não são poucos os que apóiam as intenções dos Estados Unidos de investir na preservação da Amazônia, exaltando sua função absorvedora de dióxido de carbono no processo de fotossíntese, em troca da possibilidade de continuarem com suas expressivas emissões que, segundo o Protocolo de Quioto, deverão ser reduzidas em cerca de 5,2%. Também não são poucos os que se postam em uma atitude de oposição ao possível monitoramento por parte dos investidores, alegando que isso levaria a uma perda de soberania do país, além do fato de que tais medidas são, na verdade, uma fuga do problema central, ou seja, a redução das emissões consideradas responsáveis pelo agravamento do Efeito Estufa. É possível admitir que a temperatura da Terra teria aumentado 1º C ao longo do século vinte e que, no mesmo período, a concentração de dióxido de carbono teria praticamente dobrado. Este gás está presente na atmosfera em uma porcentagem em volume menor do que 0,04 % e modificações dessa magnitude certamente trariam conseqüências significativas. No entanto, enquanto na mídia surgem previsões segundo as quais o planeta terá sua temperatura média anual aumentada , fazendo com que o nível dos oceanos suba de forma a afetar vastas extensões territoriais, outras, menos difundidas pelos meios de comunicação, consideram que o aquecimento global é apenas uma hipótese, não havendo prova de que esteja associado às atividades humanas. Essa discussão tem estado presente em diversos congressos e convenções sobre mudanças climáticas mundiais. Segundo esta outra visão da questão, pelo fato de as estações climatológicas estarem situadas em grandes metrópoles, os dados obtidos evidenciam aumento de temperatura por conta de um acelerado processo de urbanização. E mais, que o acréscimo de dióxido de carbono atmosférico pode ser oriundo de um processo natural resultante do aquecimento dos oceanos, conseqüência por sua vez de uma atividade vulcânica muito fraca na primeira metade do século passado, fato que teria determinado o aumento da transparência da atmosfera terrestre. As intervenções antrópicas podem alterar as trocas gasosas e energéticas entre a floresta amazônica e a atmosfera, com possíveis conseqüências climáticas e ambientais em 139 escala regional e global. A floresta presta um serviço ambiental ao realizar essas trocas e o desmatamento, alterando a concentração natural de gases atmosféricos, pode acelerar as mudanças climáticas. Nesse sentido, as florestas tropicais úmidas que não sofreram ação recente do homem, poderiam apresentar uma significativa absorção de dióxido de carbono em toneladas por hectare. Por outro lado, em áreas modificadas pelo desmatamento e em florestas de transição, como em Mato Grosso, esperar-se-ia um equilíbrio no balanço de carbono da atmosfera, com maior absorção no período chuvoso e maior perda durante a seca. Os dados do LBA/ Inpe, contudo, alertam que essas previsões ainda poderiam sofrer alterações diante do fato de que variações no relevo da região analisada são capazes de gerar alguns erros de medições, por conta das correntes de convecção, das variações de densidade e dos períodos (manhã, tarde e noite) considerados, tornando necessário um conjunto de medições por mais alguns anos, talvez décadas, para que se possam obter explicações para a alta taxa de absorção de carbono pela Amazônia. É interessante notar que durante muitos anos afirmou-se que a floresta tropical úmida na Amazônia se encontrava em equilíbrio, absorvendo e liberando a mesma quantidade de CO2. No entanto, os resultados de medições feitas durante décadas estão evidenciando que a floresta é capaz de fixar anualmente mais de uma tonelada de carbono por hectare, ou seja, 1,2 t de carbono/ano27 e, assim, para uma área estimada de 250 milhões de hectares, a Floresta Amazônica poderia absorver até 300 milhões de toneladas de carbono por ano. Para efeitos comparativos, note-se que o Brasil emite, em média, 65 milhões de toneladas do dióxido de carbono a cada ano por meio da queima de combustíveis fósseis. Podemos considerar a hipótese de que Floresta Amazônica seja considerada uma reserva do planeta contra o aquecimento global. Mas, uma outra hipótese é de que algumas 27 Dados do LBA / Inpe. 140 regiões da Amazônia podem estar, na verdade, lançando na atmosfera - mais do que absorvendo - o dióxido de carbono. Uma pesquisa (Saleska et al., in Science 2003 302: 1554-1557) mediu por três anos a saída e a entrada de gás carbônico na Floresta Nacional do Tapajós, ao sul de Santarém, no Pará. As medições anteriormente feitas com os mesmos métodos em regiões próximas a Manaus e no estado de Rondônia haviam sugerido que gás carbônico seria retirado em uma proporção de cerca de uma a cinco toneladas por hectare por ano. Os dados obtidos em Santarém revelaram uma liberação pela floresta de cerca de 1,3 tonelada por hectare de dióxido de carbono para a atmosfera, anualmente. Assim, em relação à absorção ou emissão de gás carbônico, a variabilidade é muito maior do que se esperava. As pesquisas anteriores sempre sinalizaram para a certeza de que a absorção máxima de carbono acontecia na época das chuvas, quando as plantas crescem mais e, portanto, usam mais CO2 para produzir a chamada biomassa. A pesquisa em questão, no entanto, revelou que, ao menos na região analisada, tal fato ocorre na seca, sendo que a floresta perderia biomassa na estação chuvosa. Para os pesquisadores citados acima, muitos outros dados são necessários para estimar como toda a floresta se relaciona com o ciclo de carbono. O aumento das emissões gasosas devido às queimadas, associado à inadequação da maior parte do solo amazônico à exploração pela agricultura ou pela pecuária faz com que a preservação da Amazônia possa ser considerada como uma fonte recursos financeiros para o Brasil. É possível que os países desenvolvidos, ao reduzirem as emissões de gás carbônico a índices inferiores aos de 1990, paguem aos que detêm florestas para não desmatá-las. No entanto, como comprovar que um determinado projeto gerou benefícios quanto à quantidade de gás carbônico liberada para a atmosfera? 141 É possível supor que esses mecanismos não solucionariam o problema da emissão de dióxido de carbono pelos países desenvolvidos e envolveriam questões delicadas como a da soberania nacional e a da internacionalização da Amazônia. Outra questão polêmica em relação à Floresta Amazônica é a sua biodiversidade. Considerado o país mais rico em biodiversidade do mundo, seu território abriga outra floresta de grande diversidade biológica: a Mata Atlântica e, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa)28, cerca 50% de todas as espécies do planeta estão na região amazônica. Cerca de 50 mil espécies de plantas, mais de 3000 espécies de peixes, algumas centenas de mamíferos, 10 milhões de insetos diferentes e aproximadamente 50 mil espécies vegetais estão na Amazônia. Contudo, menos de 10% dessa biodiversidade é conhecida e aproximadamente 80% da floresta permanece inalterada, sendo pouco seguro fazer estimativas baseadas apenas nas áreas em que se realizam pesquisas. Algumas espécies podem vir a ser consideradas extintas ou ameaçadas de extinção e, após pesquisas em novos locais, descobrir-se que a espécie não corre o risco anunciado. Outro tipo de análise ainda a ser realizada pela ciência é a da variedade de substâncias químicas presentes na Floresta Amazônica, algumas delas utilizadas há séculos pelas populações tradicionais da região, especialmente por meio do uso das plantas. Conta-se, ainda, com uma grande diversidade de compostos químicos sintetizados em outros tipos de organismos vivos, como animais, fungos e bactérias, uma variedade química que é matériaprima para produtos na agricultura, na indústria farmacêutica e de cosméticos. No entanto, é possível que um percentual muito pequeno desses compostos – que tanto podem ser usados diretamente como matéria-prima para a indústria, quanto fornecerem informações fundamentais para a síntese de moléculas artificiais – seja conhecido por falta de investimentos em pesquisa. Também é possível que cada extrato vegetal pode conter centenas de componentes e substâncias orgânicas diferentes e as 28 www.inpa.gov.br, diversos acessos 142 dificuldades inerentes a esse tipo de pesquisa podem fazer com que muitos compostos desapareçam antes mesmo que sejam descobertos. A riqueza armazenada na biodiversidade amazônica é alvo de um novo ataque invasor, a biopirataria, termo especialmente utilizado para designar o contrabando para grandes laboratórios internacionais. As convenções internacionais em vigor, a respeito da biodiversidade no planeta, determinam que este é um patrimônio do país em que se encontra, o que não impede a presença ilegal de pesquisadores estrangeiros na Amazônia, em expedições ditas científicas. Embora o país não tenha bastantes cientistas para levar a cabo um trabalho de tal magnitude e um percentual muito pouco significativo dos recursos para pesquisa estejam na Região Norte, não há fortes incentivos para a formação de recursos humanos locais. As populações tradicionais, responsáveis pela descoberta de muitas substâncias, via de regra, não recebem compensações financeiras pela descoberta. (Egler, 2001) Atualmente, existe uma reprodução constante e repetitiva do valor da biodiversidade amazônica e do valor inestimável de sua função como "sorvedouro de carbono" que ecoa pela mídia com a força de uma idéia comprovada. No entanto, conforme visto, faltam informações definitivas para embasar afirmações seguras acerca do papel da Floresta Amazônica relativamente ao balanço de carbono ou aquecimento global. Também não são, ainda, seguras as estimativas sobre a perda de biodiversidade, na medida em que sua quantificação ainda não foi realizada. Isso não impede que continuem de pé algumas visões que associam a necessidade de preservação da Amazônia como sendo um "bem planetário", tanto como reserva a ser utilizada no processo de recuperação do planeta, quanto como reserva de material genético a ser explorado cientificamente. A exploração madeireira vem sendo responsabilizada, nos meios de comunicação, como principal responsável pela perda dessas reservas, juntamente com o avanço da 143 fronteira agrícola – especialmente por meio da cultura da soja. No entanto, o emaranhado burocrático em que caminha a aprovação de planos de manejo e a falta de uma fiscalização eficiente funcionam como estímulo para empresas que exploram madeira de forma ilegal ou irregular na Amazônia. O Tribunal de Contas da União (TCU)29, por meio de um relatório de uma auditoria realizada de outubro a dezembro de 2003, responsabiliza os órgãos licenciadores ambientais pelas falhas na execução de planos de manejo. Chega ao ponto de inferir um certo estímulo ao desmatamento e à exploração ilegal de madeiras, por parte dos órgãos ambientais, na medida em que o excesso de burocracia para aprovação dos planos de manejo e a falta de fiscalização desestimulam as empresas a investir no manejo florestal sustentável. Assim, segundo o TCU, os empreendedores que desejam a legalidade terminam por capitular diante da burocracia e da lentidão na análise dos projetos. Como, pela lei, os planos de manejo devem ser analisados em, no máximo, 60 dias e essa determinação legal não vem sendo cumprida pelo Ibama, os atrasos nos processos de licenciamento funcionam como estímulo à ilegalidade. Assim se expressa o referido acórdão com relação a esse assunto: Outro problema existente com os Planos de Manejo é o tempo que o Ibama, ou órgão conveniado, leva para aprová-los. A Instrução Normativa-MMA nº 04, de 4 de março de 2002, que estabelece os instrumentos legais e procedimentos relativos às atividades de Manejo Florestal Sustentável, em seu art. 58, define o prazo para aprovação do Plano de Manejo. De acordo com esse artigo, uma vez protocolizado o pedido, o prazo será de dez dias para análise documental e solicitação de complementação de documentos ao interessado, e mais cinqüenta dias para deliberação sobre o Plano apresentado, totalizando um período de 60 dias. O inciso 2º do mesmo artigo estabelece que o descumprimento do prazo estabelecido implica em sua liberação tácita, permitindo ao interessado iniciar sua execução do Plano, informando ao Ibama ou órgão conveniado a data de início da exploração florestal. Mas essa determinação legal não vem sendo cumprida pelo Ibama. 29 Acórdão 424/2004 – Plenário; Relator : Ministro Humberto Guimarães Souto. 144 Grande parte dos empresários madeireiros entrevistados na auditoria reclamaram dessa situação. Foi constatado que a empresa Mil Madeireira levou mais de 8 meses para aprovar o seu Plano de Manejo. Constatando que os empresários madeireiros podem levar muitos meses para ter o plano de manejo aprovado pelo Ibama e que o custo da madeira ilegal é mais baixo para os madeireiros, pois não inclui os gastos com os planos de manejo, entre outros – os auditores do TCU associam a exploração madeireira e de subprodutos da madeira a um superávit comercial de US$ 2,5 bilhões na balança comercial de janeiro a setembro de 2002. Uma das causas da situação descrita é o fato de a obtenção de autorização para desmatamento ser muito mais simples do que a obtenção da aprovação do plano de manejo. Isso se deve à excessiva burocracia no processo de aprovação de PMF e liberação de ATPF; descumprimento dos prazos de aprovação estabelecidos (...) e à falta de padronização dos critérios de avaliação técnica dos planos. Os fatos apresentados são fatores endógenos ao processo de manejo que limitam a disseminação dessa prática em toda Amazônia. (...) Planos de manejo não estão sendo aplicados, adequadamente, na Amazônia de forma a garantir a sustentabilidade da exploração florestal. O desmatamento e a exploração ilegal de madeira ainda predominam, ao mesmo tempo em que o controle exercido pelo governo não tem garantido que os planos de manejo aprovados são realmente sustentáveis. Na verdade, o desmatamento e a exploração ilegal de madeira são, de certa forma, estimulados pelos órgãos ambientais, à medida que o excesso de burocracia para aprovação dos planos de manejo e a falta de fiscalização desincentivam as empresas a investir no manejo florestal sustentável. Nesse sentido, a principal proposta da equipe para reverter esse quadro é recomendar ao Ibama a adoção de medidas que reduzam a burocracia envolvida no processo de aprovação de planos de manejo, bem como maior tempestividade de sua atuação, com vistas a incentivar a legalidade da atividade madeireira na região.30 Com relação à importância da extração de madeira no desflorestamento, embora haja um lapso de tempo – de até 10 anos - entre a extração de madeira e o desflorestamento, mesmo assumindo-se que a extração de madeira ocorre no mesmo ano em que a área é desflorestada e relacionando-se com os dados de biomassa extraída publicados pelo IBGE 30 PMF: Plano de Manejo Florestal. ATPF: Autorização de Transporte de Produto Florestal. 145 em 2002, Rodrigues (2004) assinala que a análise das relações entre os dados disponíveis de extração vegetal (madeira, lenha e carvão) e desflorestamento revelam que as relações são fracas. Desse modo, a maioria da madeira extraída viria de áreas de desbaste seletivo e a extração de madeira, portanto, teria um impacto ambiental em termos de degradação florestal mas não em relação ao desflorestamento Assim, em verdade, o Estado e as suas instituições ainda desempenham um papel relevante no desflorestamento, tanto participando ativamente no desenvolvimento econômico regional, quanto passivamente por conta da fragilidade das instituições em fazer respeitar a legislação ambiental e fundiária. A participação (indireta) do estado no desflorestamento se revela de diversas formas, destacando-se: os gastos de pessoal e consumo, que aumentam a renda regional e a demanda de alimentos; os investimentos próprios e financiamentos concedidos ao setor privado na formação bruta de capital fixo, que aumentam a capacidade produtiva a longo prazo, incluindo financiamento para investimento de novas áreas de produção agropecuária; a ausência de uma política fundiária que, na falta de uma política clara de transferência de terras para o domínio privado perde grandes extensões de terras devolutas para a grilagem; as desapropriações de terras para reforma agrária, que não consideram o deslocamento dos antigos agentes para novas áreas de fronteiras; a não utilização do ITR como um mecanismo regulador do mercado de terras e de política de reforma agrária; as políticas setoriais e macroeconômicas que transformam a terra em ativo alternativo a outros ativos líquidos e estimulam a apropriação de terras com fins especulativos. (Rodrigues, 2004: 32) A fragilidade do Estado contribui também para o desflorestamento, pela incapacidade de suas instituições em fazer valer as leis na região, de modo que as terras se tornam devolutas e as florestas vulneráveis aos agentes individuais, como grileiros, especuladores, pecuaristas, madeireiros etc. Enquanto a extração de madeira revelou ter pouca influência nas taxas de desflorestamento anual, mesmo considerando um impacto indireto dessa atividade, em razão das estradas abertas em áreas de florestas para a extração da madeira, por meio das quais as áreas de florestas em terras devolutas tornam se vulneráveis à apropriação e ao desflorestamento, Rodrigues (op. cit) enfatiza que, no caso da soja, a combinação das 146 condições sócio-econômicas com fatores como políticas públicas e fragilidade institucional teriam um impacto indireto significativo na Floresta Amazônica. A variável tecnológica tornou a soja competitiva no mercado internacional, o que faz com que o país produza não apenas para atender ao mercado interno, mas principalmente ao mercado externo. (...) A promessa de um mercado globalizado para os próximos anos e décadas, com a economia mundial apresentando tendências de crescimento, com barreiras tarifárias e não tarifárias reduzidas, associado à competitividade da soja brasileira, tornam imensas as possibilidades de expansão da soja na Amazônia nos próximos anos, embora haja grandes extensões de terras ociosas no Centro-Sul do país. Esta distorção decorre, principalmente, das falhas de políticas de governo na cobrança de ITR (imposto territorial rural), que de tão baixos estimulam a especulação, a concentração e a ociosidade das terras (os preços médios das terras brasileiras são relativamente altos em comparação à outros países). Estas condições de concentração, alta demanda e preço alto das terras têm reflexo sobre a Amazônia, uma vez que a pressão da demanda se desloca na direção de terras disponíveis e de preços mais acessíveis. Estas condições associadas à política de "fechar os olhos" para as infrações ambientais, acabam direcionando a cultura para a Amazônia. Embora as tendências de expansão não apontem para as áreas de florestas, a expansão teria influência indireta no desflorestamento por causa do deslocamento das atividades menos competitivas que a soja para as áreas de fronteira agrícola. (Rodrigues, 2004: 36) Rodrigues (op. cit.) observa um comportamento dualista do Estado e de suas instituições: Na área ambiental, enquanto discute-se Agenda Positiva para Amazônia, Agenda XXI, Gestão Compartilhada, Transversalidade etc (embora importantes por incorporarem conceitos de desenvolvimento sustentável), por outro lado as instituições fecham os olhos para as infrações ambientais na região (i.e. desflorestamentos não autorizados). Na área fundiária, o mesmo se repete. Enquanto o INCRA lança o Livro Branco da Grilagem, sobre as ações do governo na recuperação de milhões de hectares de terras devolutas na Amazônia, por outro trabalha como uma verdadeira indústria de transferência de terras devolutas para o domínio privado, cadastrando e/ou titulando terras devolutas que foram privatizadas irregularmente. Leis e tecnologias adequadas para administrar, fiscalizar e controlar os bens públicos e privados existem, mas falta vontade política e tudo 147 funciona precariamente. Poder-se-ia atribuir parte deste "não funcionamento" a conflitos de competência (entre governos federal, estadual e municipal), mas que, em princípio, já estariam sendo resolvidos através da política de gestão compartilhada. Existiria também a questão da "competição regulatória" entre os municípios, mas a verdadeira razão para a inércia do estado ainda permanece uma incógnita. (Rodrigues, 2004: 46) Nesta pesquisa, não apontamos para “uma verdadeira razão para a inércia do Estado”. Isso porque, na maioria das vezes, o problema não é de inércia e, sim, de ações contraditórias, desarticuladas e, principalmente, com desperdícios significativos de recursos financeiros em estudos e ações fragmentadas que, com exasperadora freqüência, caminha no sentido de encontrar “mocinhos e bandidos” para os problemas da região. O próprio trabalho de Rodrigues (op. cit.) dá uma boa perspectiva de que não é a inércia e sim a ação do Estado que contribui para esse estado caótico atual das políticas públicas para a Amazônia: A maioria das medidas são natimortas. O governo age na contramão da solução dos verdadeiros problemas quando lança (ou aceita passivamente) uma cortina de fumaça sobre as causas reais do desflorestamento quando, por exemplo, identifica como causas principais do desflorestamento variáveis simples que, na realidade, não passam de fatores secundários, tais como a extração de madeira, estradas e pequenos agricultores. (Rodrigues, 2004: 85) O debate sobre a ação do governo em relação às florestas ao longo do seminário “Por um Programa Nacional de Florestas Social e Participativo”, realizado em junho de 200331 apontou para uma insatisfatória participação da sociedade civil. O Plano Nacional de Florestas - PNF, instrumento de implementação da política florestal brasileira criado em 2000 no governo Fernando Henrique Cardoso tinha como missão promover o desenvolvimento sustentável do setor florestal, maximizando os 31 Documento com conclusões e recomendações do Seminário “Por um Programa Nacional de Florestas Social e Participativo” . Belém, junho de 2003 148 benefícios sociais e econômicos e minimizando os potenciais danos ecológicos provocados sobre os ecossistemas da região. Pesquisadores, autoridades governamentais, organizações não-governamentais, movimentos sociais de base e especialistas presentes no seminário consideraram que um amplo debate com a sociedade civil sobre o PNF, mesmo após a mudança de governo, em 2003, ainda não havia sido realizado e reivindicaram um espaço para participação efetiva das populações rurais "que ocupam aproximadamente um terço das florestas amazônicas e totalizam seis milhões de pessoas, incluindo agricultores familiares, populações tradicionais e povos indígenas". Assim, segundo os participantes, um melhor conhecimento e entendimento sobre o PNF levaria a melhorias na definição das suas metas e prioridades, permitindo a inclusão das demandas genuínas das populações rurais, o que asseguraria o sucesso na implementação do programa na Amazônia. As reivindicações contêm críticas à estratégia de comunicação com as partes interessadas nas ações do PNF, sendo que, para a criação e implementação de mecanismos efetivos de participação social no programa, essa estratégia de comunicação deveria ser efetiva e confiável. Mais uma vez, surge a questão das formas de comunicação com a sociedade como empecilho para a implantação de planos, programas e projetos governamentais. 3.3.3 Buscando exemplos de visões conspiratórias Um dos aspectos relacionados aos conflitos provocados pelos grandes projetos na Amazônia está ligado à ocupação da região como forma de evitar que a pressão internacional contra as alterações ambientais em curso não se converta em quebra da soberania nacional. 149 No quadro permanente de polarizações extremadas e de deficiências no tratamento e na validação de informações, seria natural que surgissem teorias, segundo as quais a Amazônia estaria prestes a ser considerada como um território internacionalizado. Para esta pesquisa, como dito anteriormente, a atuação do setor elétrico na região amazônica se confunde, em muitos momentos, com o lema "integrar para não entregar", tão ao gosto de pensadores e ideólogos voltados para uma visão nacionalista de intervenções na região. Aqui não serão discutidos os componentes ideológicos associados a tais visões e, sim, a vulnerabilidade que o espaço de discussão da soberania nacional –na qual a Amazônia tem posição preferencial – apresenta para a circulação intensiva de informações que, inventando ou deformando fatos, estimula versões que ganham moto próprio e freqüentam salões privilegiados, como a Academia. Uma dessas versões circulou pela Internet, sendo contestada e ressurgindo periodicamente. Em 23 de maio de 2000, o jornal O Estado São Paulo publicou uma nota intitulada "Enquanto é tempo" em que dava curso a uma informação de que nas escolas dos Estados Unidos estaria sendo ensinada a geografia que utilizava um mapa do Brasil em que a Amazônia brasileira é denominada "Área de Preservação Internacional". Sob o nome de República Federativa do Brasil, estariam apenas 50% do território brasileiro. Evidentemente, o patriotismo falou alto e a notícia foi replicada pela rede mundial de computadores e, embora nos dias 12 e 14 de junho e em 6 de outubro de 2000, o jornal tenha publicado desmentidos e esclarecimentos sobre a informação de origem nãoidentificada, o boato continuou circulando entre os usuários da rede ainda em 2003. A mensagem se referia a "Uma brasileira que mora em Austin...", cujo nome e endereço não são revelados. Não são discriminadas as escolas ou os estados americanos nos quais o referido livro-texto é adotado. 150 Em menos de uma semana, a redação do portal Estadao.com.br recebeu mais de cem mensagens eletrônicas com perguntas sobre os supostos mapas do Brasil e sobre o fato de que os norte-americanos estariam preparando terreno para uma guerra pela posse de parte do território brasileiro. Mesmo sendo negada, tanto pelo Itamaraty quanto pela embaixada norte-americana no Brasil, a informação sobre a existência desses mapas gerou uma "reação em cadeia descontrolada" de mensagens eletrônicas , chegando a ser divulgado na seção de cartas do jornal Ciência Hoje Eletrônico (CHE), da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)32. A mensagem eletrônica em questão e os respectivos mapas, reproduzidos a seguir, trazem evidentes apelos ao patriotismo dos brasileiros: Enquanto é tempo. Uma brasileira que mora em Austin, nos Estados Unidos, conta um caso que deveria interessar diretamente ao Itamaraty, ao nosso embaixador em Washington, Rubens Barbosa, e ao próprio presidente FHC. É de ficar de cabelos em pé porque é colocando idéias na cabeça de crianças que começam as guerras, 30 anos depois... Vamos lá. Conta ela que em muitas escolas médias e primárias americanas o mapa do Brasil no Atlas aparece dividido ao meio. Na parte debaixo está escrito Brasil. No que seria a região amazônica e Pantanal lê-se "área de preservação internacional". Em algumas destas escolas, professoras pregam o apoio dos alunos a uma intervenção, e, se preciso, guerra, "para tirar a Amazônia dos destruidores da natureza", ou seja, nós brasileiros. Não é de estarrecer? Os brasileiros são, realmente, destruidores contumazes e incorrigíveis da natureza. Os responsáveis por isso deveriam ter as mãos cortadas, como fazem com os ladrões no Oriente. Mas daí a sermos invadidos nos nossos assuntos internos e, um dia, quem sabe, em nosso próprio território, já é demais. Não é suficiente, para os americanos, terem nos tomado os dois lados de um quarteirão inteiro na Rua Padre João Manoel, onde ninguém pode estacionar porque é área de segurança do consulado? Agora tomaram também a área da Bela Cintra em frente da Câmara do Comércio. Próximo passo, Amazônia!!! Breque neles, embaixador Barbosa, chanceler Lampreia, presidente FHC! 32 Informações obtidas em; http://www.quatrocantos.com/lendas/27_amazonia.htm, acessado em 16.04.2004. http://www.estadao.com.br/agestado/nacional/2000/out/06/258.htm, acessado em 16.04.2004. http://www.infoguerra.com.br/infonews/viewnews.cgi?newsid971496000,19416,/, acessado em 16.04.2004. 151 Figuras 3.1 e 3.2: Os mapas do boato sobre a internacionalização da Amazônia. Fonte: http://www.quatrocantos.com/lendas/27_amazonia.htm (que, por sua vez cita como fonte: http://brasil.iwarp.com/). Diversos acessos, sendo o último em 19.04.2004 152 No sítio http://www.estadao.com.br/agestado/nacional/2000/out/06/258.htm, Carlos Orsi Martinho, relata que a pesquisadora Michelle Zwede, do Brazil Center da Universidade do Texas, em Austin tomou conhecimento do assunto e enviou uma mensagem aos responsáveis pelo sítio http://brasil.iwarp.com/, pedindo provas mais concretas, tais como: Em que escolas estariam os tais mapas? Quais os brasileiros que testemunharam o fenômeno? A pesquisadora não recebeu resposta e, pior, poucos dias depois o boato voltou a circular pela rede, avalizado pela assinatura da professora da Universidade do Texas. A versão chega a César Giobbi, colunista social do jornal O Estado de São Paulo, sendo então publicada na coluna deste jornalista e, a partir de então, uma reprodução da página da Internet que continha a versão virtual da nota de Giobbi, no Estadao.com.br, passou a ser anexada a mensagens que continham a falsa denúncia. O jornal "Estadão", a SBPC e a Drª Michelle Zwede tornaram-se instrumentos de validação da informação para a farsa. Orsi Martinho relata: Entre maio e junho, tanto o embaixador brasileiro nos EUA, Rubens Barbosa, quanto o embaixador dos EUA no Brasil, Anthony S. Harrington, desmentem os boatos. O próprio Estado publica, em junho, exaustiva reportagem da correspondente Leda Beck sobre o assunto. Os desmentidos, somados à absoluta falta de provas a respeito das alegações (mesmo o site http://brasil.iwarp.com/ reconhece o fato e tira sua denúncia do ar), parecem abater a onda de e-mails, fenômeno constatado pela redução no volume de mensagens recebido pelo portal Estadao.com.br. Giordani Rodrigues33 afirma: Toda essa confusão tem pelo menos o mérito de levar a algumas conclusões relacionadas a e-mails contendo falsas notícias: 33 No sítio com o endereço http://www.infoguerra.com.br/infonews/viewnews.cgi?newsid971496000,19416,/ , acessado em 16.04.2004. 153 Uma vez disseminada, uma mentira pode permanecer no ar por anos a fio, voltando muitas vezes com nova roupagem. Sempre haverá crédulos para dar sustentação à mentira e espalhá-la ainda mais.Mesmo órgãos de imprensa conceituados podem ser induzidos em erro e, diga-se, isto não é tão raro de acontecer. Um boato pode ser muito perigoso, causando grandes prejuízos a pessoas, empresas ou mesmo países inteiros. Este boato específico sobre a Amazônia envolveu negativamente o nome de uma pesquisadora e de instituições idôneas, gerou mal-estar nas embaixadas brasileira e americana e mobilização entre militares. Após um tempo de "hibernação", a "corrente" ressurgiu em uma nova versão que fazia referência a um suposto livro escrito por um certo David Norman intitulado "An Introduction to Geography / SOUTH AMERICA", segundo o qual a Amazônia agora se chamaria FINRAF34. Os responsáveis pelo sítio www.quatrocantos.com pesquisaram nas livrarias Amazon.com e Barnes & Noble e não encontraram tal livro. Pesquisando o autor David Norman receberam 40 resultados, em um conjunto de títulos cuja maioria tratava de dinossauros, pré-história, ressonância magnética, química e pássaros – e não de geografia. Desse modo, constatam: Pois é. A mensagem fala de um "...livro didático ... amplamente difundido nas escolas públicas americanas para a Junior High School." Mesmo assim, apesar de "amplamente difundido", nem a Amazon nem a Barnes & Noble o vende. Livrarias chinfrins, essas livrarias. E continuam: Que tal dar uma lida na página do suposto livro e ver como escreve o autor dela, dessa página? Já fizeram isso pra gente no artigo NOVA MENSAGEM FORJADA CIRCULANDO PELA INTERNET. Carlos Alberto Teixeira, o autor desse comentário, destaca 17 erros, alguns grosseiros, cometidos por quem escreveu o livro, ou melhor, por quem escreveu a página 76. Veja um deles. O autor da página 76 escreveu "3.000 square miles" com ponto. Todo mundo sabe que os americanos usam vírgula para separar as casas de milhares. Quer dizer, todo mundo sabe, menos o autor e a editora do livro. Como é possível um autor de tantos livros sobre dinossauros escrever com tantos deslizes? O autor dos livros sobre dinossauros é outra 34 Former Internacional Reserve of Amazon Forest. 154 pessoa? Então, como uma editora séria publicaria um livro tão mal redigido e com tantos erros de inglês? Tem mais. Sugiro uma olhada na diagramação do livro, no projeto gráfico dessa página. A página contida na mensagem tem o número 76. Setenta e seis é um número par e, portanto, corresponde ao verso, ou seja a página que fica do lado esquerdo quando se abre um livro. (A menos que o livro seja escrito para quem lê de trás pra frente.) Há dois pontos a considerar. Primeiro, a numeração da página. A grande maioria das editoras usa uma das seguintes alternativas para numerar as páginas: a) põe o número no centro das páginas pares e no centro das páginas ímpares; b) põe os números ímpares no lado direito da página ímpar e os números pares no lado esquerdo da página par. Dei uma olhada em vários livros e não encontrei um só que invertesse as coisas. Segundo (...) a margem esquerda, aquela que fica voltada para fora do livro, é muito maior que a direita. A margem esquerda é, pelo menos, três vezes maior que a margem direita. Isso não é comum, a menos que se use essa margem para indicar o nome do capítulo ou o conteúdo dele. Como se vê, a pessoa que forjou a página não domina o idioma inglês e não possui nenhuma familiaridade com livros nem com a sua diagramação. Nota-se, então, uso incorreto da língua inglesa, diagramação exótica, imprecisão na indicação da fonte que poderia comprovar a veracidade da história – como, por exemplo, a não identificação do pretenso autor do livro – e outras características que denunciam uma prática cada dia mais comum na Internet. Ainda mais que possui características de recorrência, pois em maio de 2002, circulou uma nova versão, dessa vez com o nome de um senador, conferindo credibilidade à mensagem, mesmo com o nome do senador grafado de forma incorreta: "Maquito" em lugar de Maguito Vilela, senador pelo PMDB de Goiás. Os sítios mencionados – que revelam a fraude – também divulgam uma tradução do texto do suposto livro em que a "introdução à Geografia" faz menção a uma extensão de terra ao norte da América do Sul, mais de 3.000 milhas quadradas que constituiriam a primeira reserva internacional da Floresta Amazônica, sob responsabilidade dos Estados Unidos e das Nações Unidas. Seria chamada Prinfa (Primeira Reserva Internacional da Floresta Amazônica), cuja fundação seria devida ao fato de a Amazônia estar localizada na América do Sul, uma das regiões mais pobres do mundo e cercada por países irresponsáveis,cruéis e autoritários. 155 Fazendo parte de um conjunto de oito países diferentes e estranhos, que, em sua maioria, seriam reinos da violência, do tráfego de drogas, da ignorância, e de um povo sem inteligência e primitivo, a criação da Prinfa teria sido apoiada por todas as nações do G-23, sendo realmente uma missão especial para "nosso país" – os EUA – e um presente para o mundo todo, já que a posse destas terras tão valiosas nas mãos de povos e países tão primitivos condenariam os pulmões do mundo ao desaparecimento e à total destruição em poucos anos. Reconhecendo que a área tem a maior biodiversidade do planeta, com uma grande quantidade de espécimes de todos os tipos de animais e vegetais e que o valor desta área é incalculável, o texto afirma que o planeta pode estar certo de que os Estados Unidos não permitirão que esses países Latino Americanos explorem e destruam esta verdadeira propriedade de toda a humanidade. Ou seja, o Prinfa é como um parque internacional, com severas regras para exploração. Mais uma vez, está aqui colocada a questão da validação da informação – e, mais uma vez, uma ocorrência envolvendo a Amazônia. Uma possível argumentação quanto à disseminação de tais informações poderia ser desenvolvida pela via do desconhecimento do assunto por parte daqueles que a propagaram. Em outras palavras, poder-se-ia argumentar que apenas usuários comuns da rede mundial de computadores, como militares nacionalistas aposentados, estudantes desinformados e donas-de-casa assustadas. Na realidade estas foram expressões comuns ouvidas em eventos posteriores à descoberta da fraude em questão. Contudo, a divulgação da "internacionalização da Amazônia" entre profissionais e acadêmicos bem informados – ao menos, tomando como referência o padrão médio brasileiro – foi muito intensa, tanto pelas redes quanto em seminários e congressos com interface com o tema. Um exemplo significativo desse fato se deu em 2003 – três anos, portanto, o início da "corrente". Nessa época, em um grupo de discussão da Internet formado por candidatos aprovados em concurso para o cargo de consultor do Senado 156 Federal35, concurso este de notório grau de dificuldade e disputado por candidatos de elevado grau de informação, circulou novamente a informação, ainda com o mesmo suposto livro de Geografia como centro dos debates. Outro exemplo de circulação de falsas informações entre usuários da rede mundial pode ser encontrado na mensagem reproduzida a seguir, recebida por milhares de usuários com as mais variadas qualificações, dentre elas uma significativa parcela constituída por membros da comunidade acadêmica e que pode ser encontrada tanto nos sítios citados anteriormente quanto nas caixas de mensagens de muitos membros da Academia: CAPES - docs e periódicos disponíveis no sites Leiam e divulguem, é interessante e muito útil para professores, pesquisadores e alunos de pós-graduação no Brasil. A CAPES tem artigos de praticamente todas as áreas de estudo com acesso GRATUITO e será desativado por falta de acesso . Como alguns sabem, o MEC está pensando em fechar o portal de periódicos da CAPES. De fato, o que eles dizem é que o custo é alto e pouca gente usa. Particularmente, acredito que seja pouco usado porque é pouco divulgado. Para os muitos que não conhecem, o portal, fornece acesso a milhares de periódicos científicos de praticamente todas as áreas de estudo ( vários nacionais e internacionais de ciências humanas, ciências sociais aplicadas, etc). Para se ter uma idéia, sem o portal você teria que pagar algo como uns 20 dólares POR ARTIGO. Proponho, portanto, que divulguemos mais o portal, que é uma fonte riquíssima de conhecimento científico, e que faria muita falta. Temos sim que defender a manutenção do mesmo, mas paralelamente divulgar, de forma a garantir melhor retorno a este investimento público em pesquisa. O endereço do portal é : http://periodicos.capes.gov.br/ (Fonte: ttp://www.quatrocantos.com/lendas/163_portal_capes.htm, acessado em 17.04.2004) Em 19 de fevereiro de 2003, dirigentes da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes/MEC) apresentaram ao então ministro da Educação, 35 http://br.groups.yahoo.com/group/concursosenado, acessado em 19.04.2004 157 Cristovam Buarque, um portal eletrônico que atende a 97 instituições brasileiras públicas e privadas de ensino superior e que foi criado para atender ao meio acadêmico e científico, sendo o segundo maior do mundo no gênero, superado apenas pelo Califórnia Digital Library. Com o objetivo de facilitar a pesquisa, as consultas são feitas por área de conhecimento e de acordo com a Capes36, sete milhões de pesquisadores consultaram o sítio no ano de 2002. Na ocasião, Cristovam Buarque defendeu a ampliação do número de acessos do portal para que um maior número de pesquisadores possa receber instantaneamente a produção mundial de cerca de um milhão de profissionais. O sistema permite aos usuários acesso a 3,5 mil periódicos nacionais e estrangeiros, três meses antes de eles chegarem às bibliotecas. A Universidade de Brasília (UnB) oferece o serviço em todos os seus terminais de computadores, com acesso remoto também para pesquisa em casa. É certo que, segundo o MEC, para manter o sistema funcionando são necessários R$ 65 milhões anuais, valor que pode não estar disponível para o portal, em conseqüência de eventuais cortes no orçamento feitos pelo Executivo. Contendo 1.200 títulos de periódicos e 9 bases de dados referenciais, em 2003 o Portal de Periódicos da CAPES registrou 7.4 milhões de textos baixados e 6.5 milhões de acessos a bases referenciais – 40 mil acessos diários. O sítio http://www.periodicos.capes.gov.br/, acessado em 19.04.2004 registra que: Em três anos de existência, o Portal é uma ferramenta consolidada, de valor inestimável para a comunidade científica brasileira. São 8.029 títulos disponíveis, além de 75 bases referenciais acessadas por 129 instituições, entre institutos de pesquisa, instituições de ensino superior e empresas como a Embrapa. Destacam-se entre as bases referenciais os acessos às bases que disponibilizam informações completas sobre patentes, cobrindo o período 1945 - 2003. O acesso é livre e gratuito, restrito aos usuários autorizados, em terminais ligados à Internet por meio das instituições participantes. Alunos, professores e pesquisadores de instituições não participantes 36 http://www.mec.gov.br/acs/asp/noticias/noticiasId.asp?Id=4255, acessado em 19.04.2004. 158 podem acessar as informações e obter documentos disponíveis no Portal, na biblioteca da instituição participante mais próxima. Devido ao sucesso que o Portal de Periódicos da CAPES vem alcançando, um grande número de instituições de ensino público e privado, centros de pesquisa, hospitais e outros organismos públicos de diversos ministérios tem manifestado interesse em integrar o grupo que acessa esse serviço. A CAPES está empenhada em buscar soluções para essa crescente demanda, que requer considerável aporte de recursos, dado o elevado custo individual para a abertura de cada novo acesso institucional. Nesse sentido, está identificando formas de parcerias que possibilitem a ampliação dos atuais contratos, não existindo ameaça de descontinuidade na prestação desse serviço. Repetindo a informação da Capes: "não existindo ameaça de descontinuidade na prestação desse serviço". Então como explicar que uma "corrente de alerta" circule entre pessoas bem informadas e de elevado grau de instrução afirmando que "como alguns sabem, o MEC está pensando em fechar o portal de periódicos da CAPES. De fato, o que eles dizem é que o custo é alto e pouca gente usa" ? Do mesmo modo, como explicar que profissionais altamente qualificados dos mais diversos setores dêem curso a um boato capaz de provocar desmentidos dos governos do Brasil e dos Estados Unidos, envolvendo uma iminente internacionalização da Amazônia? Do ponto de vista desta pesquisa, tais questões se equivalem às polêmicas que envolvem a biodiversidade, a biopirataria, a função de "sorvedouro" de carbono e a importância para o controle do aquecimento global da Floresta Amazônica. Sim, porque, de modo análogo, muitas afirmações são feitas e disseminadas, em processo acelerado de difusão de resultados parciais e de projeção de cenários, como se fossem profecias. No foco mais fechado deste trabalho está a construção de hidrelétricas na Amazônia e – mesmo sob o risco do abuso da repetição – estaremos enfatizando que muitas visões dos atores envolvidos em conflitos associados a tais projetos podem estar contaminadas por distorções provocadas por processos análogos aos aqui descritos. 159 Afinal, enquanto a idéia de que esse imenso “vazio demográfico” que forma a Amazônia, especialmente a área florestada, seria cobiçado por nações mais poderosas, interessadas em impedir o desenvolvimento do país, a exploração sustentável de seus recursos naturais e a efetivação de um projeto nacional predomina no inconsciente coletivo de parte significativa dos formadores de opinião. Por outro lado, em contraste, outras visões são também relevantes e determinantes nos processos de tomada de decisão. Em Pasquis et al, 2003 encontramos que entre o “inferno verde” e “el dorado”, a concepção histórica da Amazônia transitou inúmeras vezes de uma região refratária ao desenvolvimento de uma civilização avançada até mitos como “paraíso da humanidade”. Encontramos nos autores, ainda, que essas concepções sustentam, ainda hoje, grande parte dos debates sobre ocupação, uso e exploração da região e, assim, o conhecimento ainda incipiente das dinâmicas regionais e a reduzida difusão dos avanços científicos e tecnológicos, não permitem desfazer os preconceitos sobre a homogeneidade da Amazônia, nem desvendar sua diversidade e complexidade. Enquanto cientistas buscam meios de comprovar o funcionamento biofísico da floresta, a concepção antiga ainda permanece enraizada na crença popular. Desse modo, novas fórmulas de uso da natureza ainda não são conhecidas pela população local, provocando questionamentos acerca dos mecanismos políticos de conservação e reforçando a crença de que homem não está sendo considerado na Amazônia. Mas, para explorar as – ainda não totalmente conhecidas – riquezas da Floresta Amazônica, promovendo avanços sociais e econômicos e evitando efeitos nefastos sobre o bioma amazônico e sem rebatimentos negativos para os ecossistemas em nível global, as possíveis soluções, surgidas nas últimas décadas, apontam sempre para um conceito – ainda não totalmente claro para todos os envolvidos – de desenvolvimento sustentável . 160 Pasquis et al, 2003 (op. cit.) assinalam que o caminho tecnológico para o uso dessa natureza também dá origem a novas ilusões. O mito do aproveitamento da biodiversidade pela biotecnologia coexiste com a redução do seu potencial com o desenvolvimento de novas técnicas. Segundo esses pesquisadores, também existem algumas falácias sobre a questão da degradação do ambiente amazônico. Nesse contexto, ainda que a grande maioria dos entrevistados no trabalho por eles desenvolvido concorde sobre a gravidade da situação, existe uma minoria que considera que os argumentos ecológicos não passam de novos mitos. Para essa minoria não se poderia falar em “perda de biodiversidade”, uma vez que sua quantificação ainda é uma incógnita. Da mesma forma, Pasquis et al assinalam afirmações de que faltam dados concretos para uma afirmação acerca do papel da Amazônia nas questões relativas ao seqüestro de carbono ou aquecimento global. Não parece concordar com os pesquisadores o exame vestibular para a Universidade Federal de Goiás (UFG)37, pois a prova de 2001 dá destaque ao seguinte texto, adaptado do jornal Folha de S. Paulo. 25 junho de 2000. Mais! p. 27: Há mais carbono entrando do que saindo da floresta amazônica, apontam as medições nas torres do LBA, com saldo de até 5 toneladas por hectare por ano, um valor considerável . Essas medidas são feitas nas torres, 20 metros acima do dossel (copa das árvores). Um aparelho que registra o fluxo vertical de ar, em ambas as direções, tem no interior um sensor de CO2. O gás carbônico que flui para cima, em geral de noite, provém das plantas, durante o processo de respiração. De dia, o fluxo se inverte, com CO2 sendo extraído da atmosfera pela fotossíntese. Em outras palavras, a floresta amazônica está “crescendo”, no sentido de que sua biomassa está aumentando. Com 4 milhões de quilômetros quadrados, ou 400 milhões de hectares, poderia – numa conta grosseira – sumir com 800 milhões de toneladas de carbono por ano. Na pior das hipóteses, o equivalente a algo na faixa de 5% a 13% das emissões mundiais de gases-estufa. 37 Disponível em http://www.vestibular.ufg.br/ps2001/etapa1/dia2/quimica12.pdf, acessado em 22.04.2004 161 Ou, em outra questão do mesmo exame38: Questão 08 Em matéria publicada na revista Carta Capital, em 2 ago. 2000, o jornalista Carlos Leonam informava seus leitores sobre a divulgação, pela Internet, do interesse dos EUA em transformar o Pantanal e a Amazônia em “área de controle internacional”. Atentando para o vocabulário, veja abaixo a manchete e a submanchete desse texto e, em seguida, responda às questões. Olho grande sobre nós Amazônia e Pantanal na mira dos gringos a) Nas frases acima, quais são as expressões cujo sentido está relacionado às palavras “interesse” e “cobiça”? b) Conforme o uso cotidiano dessas expressões, o que é possível inferir acerca da opinião do autor sobre o assunto do texto? Como se pode observar, a história do tal livro volta a surgir, dessa vez em um exame vestibular de uma universidade federal, sem qualquer referência ao incrível boato que circulou na Internet. Nesse ponto, para enfatizar a propriedade da inclusão de tais fatos nesta pesquisa, torna-se conveniente voltar à discussão feita no capítulo anterior (p. 8), em que afirmamos: O grau de informação da sociedade atual, entretanto, vem se constituindo como o epicentro de um debate crescente, tanto nos meios acadêmicos quanto fora da Academia, na medida em que um volume gigantesco de informações, nunca antes visto na história da Humanidade, entra em nossas casas pelos jornais, canais de televisão convencionais, tevê a cabo, revistas semanais e Internet, ao mesmo tempo em que um caleidoscópio superficial, feito de informações educativas e comerciais, forma uma mistura de legítimas e boas intenções com manipulações, exibicionismos e interesses hegemônicos, de tal modo que, muitas vezes, se torna impossível distinguir mito e verdade, ciência e ideologia, controle e democratização de informações. Vale lembrar, ainda, a avaria na credibilidade de um livro didático que foi causada pela desinformação do autor a respeito do funcionamento de uma hidrelétrica e dos custos associados à substituição periódica de turbinas gigantescas como as da usina hidrelétrica 38 Disponível em http://www.vestibular.ufg.br/ps2001/etapa2/dia1/lportuguesa21.pdf, acessado em 22.04.2004 162 Tucuruí, também abordada no capítulo anterior, como exemplo relevante do potencial de intervenção da informação não validada nos conflitos sócio-ambientais. 3.3.4 Buscando exemplos de visões de Estado A revisão bibliográfica para esta pesquisa sugere uma síntese como a que vai ser feita neste item do Capítulo 3. A Amazônia parece estar condenada a movimentos cíclicos ou aleatórios que determinam intervenções em maior ou menor escala A partir de 1844, trabalhadores nordestinos, principalmente do Ceará, foram ocupar áreas da Amazônia, na primeira grande migração para a região. A grande seca de 1877, no Nordeste, gerou outro movimento em direção aos seringais. Contudo, em 1876, o contrabando de sementes de seringueira – a Hevea brasiliensis – pelo inglês Henry Wickham fez com que fossem estabelecidas plantações de borracha no sudeste asiático, que superariam a produção brasileira. O boom da borracha, que havia sido responsável pela introdução da Amazônia no âmbito internacional, sofreu uma queda brusca a partir dos primeiros anos do século vinte. A região passou por um período de relativa estagnação econômica semelhante aos outros ciclos da história econômica brasileira, como do ouro e do café. Quando a economia amazônica entrou em declínio, uma parte significativa da população ficou ociosa. Intensificou-se uma migração em direção às cidades, foram criadas novas povoações e, em geral, predominou uma vida de subsistência com poucos vínculos ao mercado formal. No período da Segunda Guerra Mundial, o látex brasileiro tornou-se essencial para as forças aliadas, em conseqüência do controle japonês sobre as seringueiras asiáticas. Mais uma vez, a região Norte recebeu um grande fluxo de migrantes oriundos do Nordeste. Assim, na década de 1940, a Amazônia viveu um discreto renascimento econômico. 163 Outra grande atividade que mantém uma rotina de idas e vindas na região é o garimpo. Carvalho e Smeraldi (2003) analisam essa atividade da qual deriva grande parte da produção nacional de ouro e pedras preciosas. O garimpo se constitui como uma força de ocupação da região, contribuindo para a geração de divisas e representado uma alternativa de sobrevivência para um grande contingente de migrantes nordestinos. As tensões sociais do Nordeste brasileiro, inúmeras vezes flagelado pela seca, foram atenuadas pela garimpagem. Absorvendo grandes contingentes da mão-de-obra excluída do mercado formal de trabalho, a partir do encerramento das obras de infra-estrutura de grandes projetos instalados na Amazônia, o garimpo gerou bilhões de dólares em divisas para o país. Contudo, a riqueza produzida nos garimpos gerou um grande número de significativos impactos sócio-ambientais. Os fluxos migratórios provocaram uma ocupação desordenada do espaço amazônico, na abertura de fronteiras descontroladas e no declínio econômico posterior ao abandono das regiões de garimpo. As favelas, a violência, a prostituição, o tráfico de drogas, as doenças, a poluição, entre outras, são mazelas deixadas nas estradas e periferias das cidades próximas. Quando do início da colonização garimpeira, o anúncio da descoberta de ouro era acompanhado de expedições e entradas, ampliando os limites do território brasileiro e, assim, a ocupação do espaço amazônico foi uma das principais conseqüências da atividade. Segundo Carvalho e Smeraldi (2003), em 1958 e em um dos afluentes do rio Tapajós, surgiu o primeiro grande garimpo amazônico, atraindo garimpeiros de muitas regiões e a denominada província aurífera do Tapajós. No período do regime militar, cresceu na Amazônia a participação do capital estrangeiro em atividades de exploração mineral, incentivada oficialmente a descoberta de ocorrências significativas como Carajás e a decretação do novo Código de Mineração, com investimentos estrangeiros e de grandes empresas mineradoras nacionais, dando início ao ciclo do ouro na região. 164 Quando a garimpagem já existia em quase todos os estados da Amazônia Legal, no final da década de 1970, o preço do ouro subiu fortemente no mercado internacional. O esgotamento dos aluviões superficiais mais significativos impôs a necessidade de inovações tecnológicas da garimpagem. As balsas são introduzidas na região do Tapajós, permitindo a exploração pelos garimpeiros de aluviões mais profundos e os efeitos negativos sobre o meio ambiente se fazem sentir, em um curto prazo, nos demais garimpos da Amazônia. Serra Pelada, descoberta em 1980, provoca um segundo ciclo do ouro na região, atingindo uma produção recorde de toneladas de ouro, sendo que, até 1988, produz cerca de 40 toneladas de ouro e dá trabalho a aproximadamente 80 mil homens. No início da década de 1990, o Brasil se apresenta como sexto produtor mundial de ouro. Carvalho e Smeraldi (2003) assinalam que, em janeiro desse ano, o governador do Pará Simão Jatene declarava ao jornal paraense O Liberal que considerava Serra Pelada um problema que vem se arrastando há décadas, sem solução definitiva e sem proposta estratégica que responda aos interesses da sociedade e dos garimpeiros de forma permanente. Segundo esses autores, os sonhos de fortuna da década de 1980 deixaram em Serra Pelada um rastro de miséria, doença, poluição e violência. Com o fim das dragas que retiravam a água do lençol freático, a cava de onde se extraía o ouro se transformou num poço de mais de 90 metros de profundidade, cheio de água contaminada por mercúrio. Programas criados pelo Governo Federal, estimulam a garimpagem na região amazônica, atraindo milhares de pessoas para a atividade e a produção nacional de ouro atinge a marca de 60 toneladas em 1988, em que cerca de 40% é proveniente de garimpos amazônicos, em marcas próximas a um bilhão de dólares, ou seja, aproximadamente 9% do PIB regional. 165 A informação novamente passa a ter papel relevante na questão, na medida em que o Governo Federal passa a controlar o garimpo de Serra Pelada, por meio do Serviço Nacional de Informações – o extinto SNI, atualmente Agência Brasileira de Informações (ABIN). Em 1984, uma área de 100 hectares de Serra Pelada, então pertencentes à Companhia Vale do Rio Doce, foi cedida aos garimpeiros. Em 1992, a área de Serra Pelada foi devolvida àquela companhia. Em 2002, a posse da área é devolvida aos garimpeiros por decreto legislativo aprovado pelo Senado Federal, sendo que, durante esse período, as disputas entre garimpeiros e a CVRD praticamente paralisaram as atividades na mina. As leis minerais e a atuação de entidades ambientalistas provocaram grandes conflitos durante o período e – associadas ao esgotamento de algumas reservas importantes – fizeram a produção garimpeira diminuir fortemente, aumentando a participação relativa da produção industrial. Os graves conflitos fundiários envolvendo garimpeiros, mineradores, proprietários rurais e índios, pela intensificação da garimpagem na Amazônia tem provocado principalmente a invasão de terras indígenas e de áreas pertencentes a empresas de mineração legalmente constituídas. Na maioria dos casos a solução desses conflitos não passa pela Justiça. Nesse tipo de visão do Estado para a Amazônia, o garimpo é ora tolerado, ora proibido, ora estimulado e assim por diante. A atividade, a partir da mecanização dos garimpos na década de 1970 e com o uso de balsas e dragas, causa impactos de grande magnitude aos rios da região, como a contaminação dos rios e da atmosfera por mercúrio, metal pesado causador de graves distúrbios do sistema nervoso humano. Procópio (1992) assinala que a destruição física do homem nos garimpos é um holocausto, em que é diariamente agredido pela esperança da riqueza que se coloca ao alcance de suas mãos, sendo essa agressão contra a integridade da pessoa humana tão ou 166 mais chocante quanto a agressão ambiental. Nesse contexto, as explosões de dinamite, as britadeiras, os moinhos trituradores e as bombas d´água que atiram os rejeitos das lavras nos córregos e rios, prejudicam a vida do homem e das águas. Não são apenas problemas de ordem ambiental ou problemas de ordem tecnológica nas minas, onde cada jazida tem sua especificidade, que merecem ser denunciados. O que é extremamente sério e não tem sido suficientemente questionado, nesses casos, é a apropriação do trabalho. Em muitos deles, o garimpeiro sequer vende sua força de trabalho, ao contrário, ele chega a ser alugado, passando a não ser senhor nem mesmo do próprio destino. Ao acreditar que num determinado veio encontrará mais ouro, o garimpeiro joga tudo para ali poder trabalhar encontrar a pepita com a qual sonha se transformar num novo bamburrado, isto é, garimpeiro enriquecido. O setor mineral é um dos mais vulneráveis à persistência de uma economia dependente, na medida em que a sua exploração possui uma intensidade variável e determinada por fatores exógenos. Sua permanência na região de exploração está totalmente condicionada à maximização do lucro obtido a partir de reservas de recursos naturais não-renováveis. A produção nacional de ouro, por exemplo, embora crescente ao longo das décadas de 1980 e 1990, não transformou o ouro em promotor de desenvolvimento social e econômico para o Brasil, diante do contrabando, da falta de controle da produção e da ausência de uma fiscalização efetiva, não superando as receitas advindas de produtos industrializados e mesmo produtos agrícolas, como suco de laranja, açúcar, cacau, soja e café. Ainda assim, o ciclo do ouro parece teimar em fazer parte de nossa economia periférica, testando permanentemente os limites para a exaustão física das jazidas, atraindo migrantes dos mais diversos pontos do país, inicialmente destinados a áreas de novas fronteiras agrícolas e que, a partir da queda da produtividade e do abandono do Estado, se encontraram em meio a uma grave e duradoura crise regional que praticamente inviabilizou 167 toda uma política de colonização baseada em monoculturas nas áreas da nova fronteira agrícola. O colono desassistido e desiludido passa a buscar, como os primeiros espanhóis, a fortuna do Eldorado em dragas, balsas, mergulhos e bateias, seduzido pela riqueza que se esvai na primeira mercearia controlada pelos atravessadores. Em poucos dias tem mais dinheiro do que trabalhando um mês na lavoura, em poucas horas as prostitutas e o armazém dão outro destino ao resultado do seu trabalho. Carvalho e Smeraldi (2003) afirmam que faltam hoje instrumentos ambientais, sociais e econômicos para monitorar e controlar os fenômenos acima descritos, assim como para implementar ações preventivas e mitigatórias dos efeitos colaterais das novas frentes. Segundo os autores, a questão não estaria sequer na pauta do Poder Público, que mais uma vez precisará correr atrás das dinâmicas sociais e dar prioridade a medidas tipicamente“emergenciais”, de eficácia duvidosa. Além disso, faltaria totalmente disponibilidade orçamentária para ações relevantes e que ações eficazes devem levar em consideração a complexidade da questão e requerem portanto um alto grau de cooperação inter-institucional. Em abril de 2004, contudo, a legalização de garimpo não era consenso entre ministérios do Governo Lula. Desde o início de 2003, o governo realizou longos debates sobre a regulamentação da exploração de minérios em terras indígenas. Quando um grande conflito entre os cintas-largas e garimpeiros de Rondônia estava prestes a atingir o seu ápice, o Ministério da Justiça defendia a idéia de que o Estado assumisse o controle da extração de minérios nas reservas indígenas, por meio da utilização de mecanismos de compra e distribuição operados pela Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil. O projeto do Ministério da Justiça também previa cotas de usufruto, como royalties, em favor dos índios e medidas compensatórias para garimpeiros, municípios e Estados onde estão as reservas, além dos impostos incidentes. 168 O Brasil tem garantido uma quase total isenção de imposto para o ouro. Isso acontece não apenas no caso específico em que o art. 153 da Constituição prevê imunidade tributária, mas também para efeito de produção e comercialização. A alíquota de ICMS sobre ouro é de apenas 1%, um valor considerado meramente simbólico. (Carvalho e Smeraldi, op. cit.) Como os recursos naturais do subsolo brasileiro, incluindo minérios, são patrimônio da União e só podem ser explorados mediante concessão pública, o consenso entre os representantes do Estado é imprescindível, mas as posições discordantes do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM) levavam o problema a extensas reuniões e numerosos debates, enquanto o conflito explodia em Rondônia. Na chamada era do Milagre Econômico Brasileiro, nos anos 1970, os grandes projetos na Amazônia sugeriam uma nova atitude para a região. No período, o governo federal implementou o Projeto de Integração Nacional (PIN), em que oferecia "terras sem homens para homens sem terra". Uma malha rodoviária foi criada e novos projetos agrícolas para assentar colonos de outras regiões do país foram concebidos. O governo militar pretendia ocupar a Amazônia para garantir a soberania sobre o território nacional e para relocar habitantes de outras regiões potencialmente conflituosas – ou seja, do sul, sudeste, centro-oeste e, como sempre, nordestinos. A origem étnica de cada um desses grupos determinou diferentes modelos de adaptação ao novo ambiente. O Estado, por sua vez e por meio do Incra, conferiu status distintos a esses grupos. Os migrantes da região sul, por exemplo, com ascendência européia predominante e próxima, foram considerados como verdadeiros colonos, modelos de trabalhadores com altos índices de rendimento e produção. Os grandes projetos expuseram parte da Amazônia a grandes fluxos migratórios, sendo que projetos de um determinado setor costumam abrir caminho para outros, como a atividade madeireira que serve de cabeça-de-ponte para projetos agropecuários, em ciclos 169 de conflitos rurais em que a violência surge tanto entre pequenos agricultores sem terra e grandes proprietários, quanto entre os próprios latifundiários. Não é preciso sequer que o projeto seja materializado para que os conflitos tenham lugar. A recondução do projeto da usina hidrelétrica de Belo Monte a um contexto de especulações na mídia local e nacional, a partir de 1999, provocou um significativo movimento migratório para o município de Anapu, no Pará, onde a proximidade física com a futura barragem, produziu, como veremos mais adiante, conflitos de graves proporções na região. A questão da migração, em um contexto globalizado, gera empregos e outros benefícios econômicos ao mesmo tempo em que cria excedentes no mercado de trabalho e mera perspectiva de instalação de grandes obras de infra-estrutura é suficiente para gerar fenômenos de abertura de novas fronteiras. Como a presença e atuação do Estado é insignificante nas regiões em que os elementos comuns são a ocupação da terra e a grilagem, os fenômenos de ocupação desordenada geram, também, um intenso processo de desmatamento, agravados pelo fato de que o capital estrangeiro se valeu, durante décadas, do instituto dos incentivos fiscais, da falta de leis e normas ambientais e de maiores ou menores graus de democracia no país para viabilizar os seus investimentos no território amazônico. Medidas criadas para proteger os ecossistemas amazônicos e controlar o avanço desse capital podem, no entanto, impedir as pesquisas e parcerias institucionais muitas vezes imprescindíveis à compreensão da Amazônia, fazendo com que o conhecimento científico essencial para a formulação de políticas públicas seja insuficiente para um desafio de tais proporções. Esse desafio é encarado pelo Estado, em sucessivos períodos da história política brasileira, como estimulante para a elaboração de também sucessivos planos e programas 170 que muitas vezes se contradizem e se anulam, fazendo com que recursos de toda ordem sejam consumidos – com resultados pouco expressivos. O projeto Avança Brasil, por exemplo, contemplou projetos de pavimentação de rodovias, de construção de hidrelétricas, de termelétricas, e de gasodutos, entre outros, em conjunto com a tentativa de preservar a biodiversidade e garantir o manejo sustentável de recursos florestais. O projeto contém planos e programas para o estímulo à produção familiar no Baixo Xingu e na Transamazônica, com pretensão de melhorar as condições de 4 mil famílias assentadas às margens da rodovia, contendo o avanço sobre as florestas da região, além da criação de escolas rurais, nas quais seria privilegiado o manejo florestal adequado. Nas pesquisas de campo desta investigação na região, contudo, as entrevistas evidenciaram que os movimentos sociais identificam o Avança Brasil como vetor de aceleração da destruição da floresta, ao trazer para a região projetos que precipitariam a migração urbana e o êxodo rural. No capítulo seguinte, aprofundaremos essa discussão no contexto do conflito relacionado ao projeto da usina hidrelétrica Belo Monte. O Avança Brasil também encontra restrições nos meios científico e acadêmico, pois com o projeto, a malha viária na Amazônia deve praticamente dobrar fazendo com que as previsões de devastação da Amazônia brasileira para os próximos anos sejam alarmantes. Carvalho, Moutinho e Nepstad (2001) avaliaram o desmatamento ao longo de rodovias amazônicas já asfaltadas como a Belém-Brasília (BR-010), Cuiabá – Porto Velho (BR-364) e PA-150, concluindo que 75% do desmatamento ocorre na faixa de 50 quilômetros para cada lado das rodovias, ao longo das quais a ocupação acarreta queimadas e exploração de madeira, tornando a floresta mais vulnerável ao fogo. 171 Dados como esses podem dar a dimensão aos impactos ambientais das obras em estradas previstas pelo Avança Brasil, em que, em poucas décadas, seriam desmatadas grandes áreas na região. O debate sobre as questões ambientais e sobre desenvolvimento sustentável fez parte da campanha dos candidatos em 2002. O Instituto Socioambiental – ISA 39 realizou uma pesquisa, enviando no mês de setembro de 2002, aos candidatos à Presidência da República cinco perguntas cujas respostas disponibiliza em seu sítio na Internet. Seguem-se abaixo reproduções resumidas – cujos grifos são nossos – e com um pedido de desculpas pelo tamanho da citação que, pelas suas características, recomendam uma leitura completa e seqüencial do trecho selecionado. ISA - Como a meta de crescimento econômico e geração de empregos de seu programa de governo se compatibiliza com a sustentabilidade ambiental? Lula - Quero deixar claro que nós não vemos as questões social e ambiental somente como um problema, mas como um caminho de desenvolvimento para o nosso país. Digo isso porque a busca de um desenvolvimento ecologicamente sustentável, socialmente justo e economicamente viável para o Brasil vai resultar na melhoria da qualidade de vida de todos os brasileiros. (...).A grande prova da importância que nosso programa dá ao ambiente é a decisão de integrar a variável ambiental no processo de planejamento para evitar equívocos, como os do projeto Avança Brasil ou do programa emergencial de centrais termoelétricas. Ao não levar em conta, na fase planejamento, o nível de consciência ambiental e os avanços da legislação, o governo perde tempo e dinheiro. O projeto Avança Brasil transforma-se num Atrasa Brasil. José Serra - Não tem desenvolvimento sustentável sem geração de emprego e renda. No meu programa se fala em valorizar os recursos naturais do Brasil - únicos no mundo - para gerar emprego, renda e uma vida saudável, tanto para a atual quanto para as futuras gerações.(...) Vamos implantar nos parques e Unidades de Conservação do País o ecoturismo controlado, gerando assim os recursos para sua efetiva defesa e manutenção, além de mais de 200 mil empregos diretos e indiretos(...)Vamos fortalecer os sistemas de cobrança por uso de recursos não-renováveis, poluição, geração de resíduos e desmatamento, diminuindo por outro lado os tributos sobre contratação de trabalhadores: dessa forma vamos estimular o emprego e ao mesmo tempo a defesa do meio-ambiente(...)Vamos tornar os bancos e as seguradoras verdadeiros fiscais dos projetos de desenvolvimento que eles financiam, por meio da 39 http://www.socioambiental.org/esp/eleicoes/index.asp, acesso em 25.05.04 172 co-responsabilização das instituições financeiras no risco e dano ambiental(...)Vamos reduzir significativamente o desmatamento e as queimadas na Amazônia, promovendo, por meio da ADA, o manejo sustentável das florestas, assim como intensificando e verticalizando a agricultura e pecuária, de maneira a aumentar sua produtividade em lugar de sua expansão, e providenciando assistência técnica para a agricultura familiar. ISA - Existem avaliações das políticas ambientais que questionam a adequação da estrutura institucional existente. Como o senhor pensa o arranjo institucional para a área ambiental? Lula - No nosso governo, o Ministério do Meio Ambiente vai recuperar a função central da aplicação das políticas ambientais, assumindo seu papel de coordenação estratégica e dialogando permanentemente com os demais ministérios. (...) O Ibama será fortalecido. Para tanto, sua estrutura precisa ser reformulada e suas atribuições redefinidas. José Serra - Um importante objetivo é reduzir a burocracia e os tempos de respostas da administração ambiental às solicitações do cidadão, cuja lentidão gera muita reclamação. ISA – O Programa Avança Brasil, que reúne as obras de infraestrutura do Plano Plurianual (PPA) tem sido muito questionado pelos impactos ambientais previstos e, na maioria das vezes, não mitigáveis. No caso da Amazônia, foi contratada uma avaliação ambiental estratégica que deverá ensejar uma análise dos projetos. Além dos impactos diretos, essas obras foram planejadas com base em um modelo de desenvolvimento que prioriza as atividades agropecuárias, muitas vezes incompatível e insustentável na região. Como o senhor pretende tratar o Avança Brasil? Lula – O candidato falou sobre o Avança Brasil na resposta que deu à primeira pergunta. José Serra - As atividades agropecuárias são muito importantes para o País e o desenvolvimento local, inclusive na Amazônia. Mas seria errado considerar elas como único eixo do desenvolvimento rural. Como disse, na Amazônia vamos ter uma diversidade de atividades, como manejo florestal sustentável (com certificação independente), ecoturismo, uso sustentável do patrimônio genético, serviços etc. No caso das atividades agropecuária, o objetivo é a intensificação e aumento da produtividade. Quanto ao PPA, no meu programa está escrito em claras letras que vamos cuidar "da inserção da variável ambiental desde a primeira fase do planejamento" e não depois. ISA - A crise energética brasileira evidenciou uma deficiência da nossa matriz de energia. Por outro lado, as propostas existentes para incrementar a produção de energia são, no geral, social e 173 ambientalmente impactantes. Quais são as alternativas para suprir o déficit projetado de energia sem gerar mais impactos socioambientais? Lula - A questão energética e de toda a infra-estrutura tem que ser entendida como parte de um programa de governo, que é quando se define o que é prioridade e o que não é. Para o nosso programa, a infra-estrutura tem uma importância central, até porque o atual governo deixou a situação chegar a um ponto crítico. Isso aconteceu exatamente porque o compromisso era outro, a preocupação central era a área financeira. Nós, ao contrário, estamos preocupados em crescer, em retomar com urgência nossa capacidade de produção.Então, vamos restabelecer o planejamento estratégico que existia no setor energético, mas foi abandonado com essa tentativa desastrada de implantar um modelo de mercado para a energia, no nosso país — sem planejamento e com a privatização das empresas feita às pressas e sem transparência. Nossa proposta é fazer um planejamento inteligente, integrando hidrelétricas, petróleo, gás natural e carvão. Vamos também dar incentivos sérios ao desenvolvimento de fontes alternativas, como a energia solar e a eólica. Queremos incentivar o setor privado sem abrir mão do papel do Estado, que é essencial nesse setor. José Serra - Acho que as opções no setor hidrelétrico não são necessariamente impactantes de forma negativa, se bem implementadas. Aliás, são um diferencial positivo para o País em relação ao resto do mundo, pois são renováveis e permitem manter nossas emissões em níveis baixos. Mas é claro que temos também de avançar muito no setor das tecnologias para eficiência energética e redução dos desperdícios, o que, inclusive, significa mais uma vez gerar muitos empregos. ISA - A crise da Sudam revelou a falência de um modelo de gestão que, ao mesmo tempo em que estimulou projetos inconsistentes e inadequados também propiciou esquemas de corrupção e desvio de verbas inaceitáveis. É possível ressuscitar a Sudam? Com quais objetivos e com qual modelo de gestão? Lula - O Nordeste e a Amazônia foram especialmente prejudicados pela aplicação da política neoliberal do governo, nesses últimos oito anos. O governo FHC aprofundou as desigualdades em todo o país, mas elas são mais graves no Nordeste, por causa dos seus enormes problemas sociais, e a na Amazônia, pelo potencial estratégico dessa região.Isso é mais uma prova do falso caminho que o atual governo e setores das elites conservadoras ainda insistem em defender. O Brasil precisa retomar o compromisso de superar as desigualdades regionais por meio de políticas públicas, rediscutindo o papel da Sudam e da Sudene. O governo preferiu fugir de sua responsabilidade e lavar as mãos diante das irregularidades que elas apresentavam. Mas são órgãos importantes, que podem voltar saneados por um governo responsável, ajudando a eliminar as desigualdades regionais. Metade do analfabetismo nacional está no Nordeste, e também metade da fome e quase metade do contingente que ganha até um salário mínimo em nosso país. Apesar de 174 alguns projetos industriais terem sido instalados nesses estados, a reforma agrária continua no papel. Isso, numa região onde vive metade da população rural do país e 1,8 milhão de famílias enfrentam graves problemas de acesso à terra. Para não falar na falta de investimento em educação, saúde e saneamento básico. José Serra - O Lula é quem disse que quer ressuscitar a Sudam. Eu não acho que é este o caso, pois o atual governo já criou uma nova agência, a ADA, e o que acho urgente é pôr ela para funcionar já. A ADA tem mecanismos de transparência aptos para prevenir a corrupção, mas precisa começar funcionar, e acho que não podemos esperar mais. O mais importante é definir metas e cobrar de instituições como esta as metas. Metas de empregos gerados, por exemplo. Quanto ao modelo, repito, o importante é a transparência, pois dessa forma quem cobra resultados e honestidade é a sociedade, antes de alguma investigação oficial que muitas vezes chega tarde demais. Em que pese a polarização ideológica, naturalmente causada pela realização de um segundo turno de eleições presidenciais no Brasil, as questões envolvidas no debate indicam um elevado grau de interseção quanto aos problemas relacionados à Amazônia – e, de resto, às políticas ambientais para o país. O processo de planejamento servindo para evitar perdas de tempo e dinheiro e, para tanto, levando em conta o nível de consciência ambiental e os avanços da legislação, considerado o desenvolvimento sustentável como gerador de emprego e renda – e, podemos acrescentar, justiça social – não é fator de discórdia significativa entre as partes. O fortalecimento do Ibama, com sua estrutura reformulada e suas atribuições redefinidas, a redução da burocracia e dos tempos de resposta da administração ambiental às solicitações do cidadão, são tópicos que se constituem como uma unanimidade nacional. A inserção da variável ambiental desde a primeira fase do planejamento para restabelecer o planejamento estratégico que existia no setor energético, abandonado por tentativa desastrada, ou não, de implantar um modelo de mercado sem planejamento para a energia, com a privatização das empresas feita, ou não, às pressas e sem transparência é 175 uma tarefa que teria (terá) que ser enfrentada por qualquer governo, independentemente de matizes ideológicos. Em qualquer caso, um planejamento inteligente para o setor elétrico não é apenas uma obrigação de governo e, sim, uma obrigação de Estado. Embora não seja conceitualmente correto considerar que as opções no setor hidrelétrico “não são necessariamente impactantes de forma negativa”, uma vez que impactos negativos necessariamente ocorrerão, mesmo que bem implementados os projetos, há um diferencial positivo para o País em relação ao resto do mundo na sua matriz energética sustentada pela opção hidrelétrica. Os papéis de agências como a Sudam e a Sudene são, evidentemente, deturpados se, qualquer que seja o governo, houver fuga de responsabilidades e omissão ou cumplicidade em irregularidades. Contudo, realmente são órgãos importantes que, saneados por um governo responsável ou resultando em uma nova agência, precisam “funcionar já”. Como os mecanismos reguladores, via agências de desenvolvimento, de regulação ou de fiscalização, continuam ineficientes e ineficazes, o impasse gerador de conflitos permanentes se materializa na perspectiva da retomada de obras de infra-estrutura e a possível repetição dos erros cometidos na época em que o Estado fomentava a abertura de fronteiras na Amazônia, em que as populações tradicionais e os agricultores familiares se tornam os elementos mais vulneráveis. A regularização fundiária e o ordenamento territorial, requisitos obrigatórios para os grandes projetos na Amazônia, exigem uma ação coordenada dos diferentes órgãos do Governo Federal e dos governos estaduais e municipais. As grandes obras também necessitam da análise e avaliação da eficiência econômica, social, fundiária e ambiental, seja nas áreas de impacto direto, seja nas áreas de impacto 176 indireto, em que as atividades induzidas pelos projetos sejam consideradas, de modo que os processos de tomada de decisão contemplem os custos ambientais e sociais. A abertura de novas oportunidades econômicas para a região, a partir da criação da infra-estrutura necessária para os grandes projetos, implica um conjunto de políticas e ações integradas que incorporem as análises críticas dos erros e acertos ocorridos no passado. Também devem ser considerados a complexidade da região e o debate com a sociedade regional, uma vez que as obras de infra-estrutura somente contribuirão para a degradação ambiental e os para conflitos sociais na região quando executadas sem contemplar ações de ordenamento territorial e medidas de prevenção e mitigação dos efeitos ambientais negativos A difusão de informações sobre projetos na região ou obras cuja realização depende de recursos orçamentários, de licitações e de licenciamento ambiental, ou seja, projetos cuja implementação não está garantida é suficiente para desencadear ou estimular a ocupação do território, a grilagem e o desmatamento. Esse processo pode se manter ao longo de décadas, onde a expectativa de sua realização altera profundamente as situações econômica, social e fundiária nas regiões de influência direta e indireta, restando ao próprio Estado – que tem sido incapaz de evitar tal situação – a tarefa de administrar os prejuízos sócio-ambientais produzidos ao longo do tempo. A questão da criação de programas como o “Avança Brasil”, do governo Fernando Henrique Cardoso, ou o Programa Amazônia Sustentável (PAS), do governo Luís Inácio Lula da Silva, esbarra, como em outros casos, na capacidade para orientar ações e investimentos setoriais nos seus eixos estratégicos e na garantia de efetividade das ações previstas, a partir da ausência de recursos específicos para a criação de uma infra-estrutura adequada para o desenvolvimento regional. 177 No caso do PAS, algumas das grandes obras previstas no programa mantêm vivas as polêmicas históricas sobre a Amazônia. A pavimentação de mais de 800 km da rodovia BR-163, a partir da divisa entre os estados de Mato Grosso e Pará, incluindo a ligação com a rodovia Transamazônica (BR230) está prevista no PPA 2000-2003 e no PPA 2004-2007, sendo considerada prioritária pelos grupos privados ligados à cultura da soja e pelo governo do Mato Grosso. As obras são contestadas por ambientalistas que temem a expansão da cultura de soja na Amazônia, principalmente pelos impactos do desmatamento e da ocupação desordenada ao longo dos traçados das rodovias. Proposto pela Petrobrás, o projeto do Poliduto Urucu – Porto Velho consta do PPA 2000-2003. A Licença Prévia do projeto foi suspensa em abril de 2003 pela Justiça Federal, após julgar uma ação civil pública do MPF do Amazonas, na qual são apontadas irregularidades no EIA e no Rima. O governador do estado do Amazonas, Eduardo Braga40,. discute a qualidade do EIA e do Rima apresentados, uma questão semelhante à que será discutida em relação ao conflito de Belo Monte nos próximos capítulos O problema do licenciamento ambiental de Urucu-Porto Velho foi a qualidade do EIA-RIMA apresentado, que é discutido por todos - pelo governo do Amazonas, pelo terceiro setor, pelas universidades - porque não condiz com os problemas de impacto social e de impacto fundiário que serão gerados pela implantação desse gasoduto. (...) É importante - e o Amazonas tem colocado isso de forma clara para o Governo Federal e para a Petrobrás - que no custo do gasoduto estejam previstos recursos para serem investidos em políticas sociais e em políticas públicas do ponto de vista das comunidades. A nossa proposta com relação ao gasoduto Urucu-Porto Velho é que o governo federal desloque um investimento de 15 milhões de reais para a prevenção dos impactos sociais, fundiários e econômicos em cada uma dessas comunidades. (Governador Eduardo Braga, em um trecho da entrevista citada) O PPA 2004-2007 contempla o projeto do poliduto, apesar das questões legais e da oposição por parte de alguns grupos de ambientalistas e ONGs, que alegam impactos 40 Entrevista à revista Debate sobre políticas públicas para a Amazônia na imprensa brasileira Vol. XX · março de 2003 - junho de 2003 178 ambientais graves ao longo dos 520 km de duto através de regiões de florestas na bacia do Purus e próximo a populações indígenas não-contatadas, ressaltando o fato de que o projeto visa a abastecer com gás natural uma usina termoelétrica em Porto Velho, de propriedade da transnacional El Paso e que a obra pode acelerar e estimular o avanço da ocupação e das invasões no sul do Amazonas. A preocupação nas áreas da sociedade civil relacionadas à questão ambiental na área do gasoduto aumentou após a assinatura de um "Termo de Compromisso" entre o Ministério Público e a empresa interessada na obra, com a participação do IBAMA e do governo Estado do Amazonas. Em fins de maio de 2004, a ONG "Amigos da Terra", por meio de um editorial em seu sítio41 na Internet, manifestava preocupação com o andamento do caso. Primeiramente uma preocupação com respeito à expansão de um monopólio estrangeiro na Amazônia, na medida em que a Gaspetro - subsidiária da Petrobras que havia obtido a Licença Prévia, teria solicitado a transferência de titularidade da obra para uma empresa criada e controlada pela norte-americana El Paso e seus parceiros, considerando que, assim, o gasoduto apenas atenderia aos interesses da multinacional que atua na Amazônia ocidental em condição de monopolista da área de energia, tendo adquirido companhias distribuidoras dos estados do Amazonas e de Rondônia, além de ser controladora da usina térmica de Porto Velho, que receberia parte do gás de Urucu. A outra preocupação é de ordem ambiental, e vai muito além do problema do gasoduto (...).O Termo de Compromisso estabelece o pagamento (...) de aproximadamente R$ 11 milhões para atividades de "desenvolvimento sustentável" supostamente em benefício de comunidades locais e indígenas na região de abrangência do gasoduto, além de um valor não especificado para a criação de "uma unidade de conservação de preservação permanente" (também sem qualquer identificação). Nada aparece no Termo a respeito do cumprimento das inúmeras exigências levantadas no decorrer das audiências públicas de 2002, das quais participaram mais de 5 mil pessoas em cinco municípios. Na opinião do Fórum, isso gera um precedente pelo qual qualquer empresa 41 www.amazonia.org.br, acessado em 01.06.2004 179 pode reivindicar uma licença oferecendo uma pequena doação (a obra está orçada em US$ 350 milhões) para programas beneficentes. Os questionamentos que as entidades da sociedade civil apresentaram sobre o Termo são muitos, desde o fato de que as populações não foram consultadas a respeito, até o destino dos recursos, que seriam administrados pelo governo do Estado ou por entidades não definidas a serem escolhidas pela empresa sucessivamente. (Trecho do editorial citado acima) Com isso, segundo o editorial, a obra, que está listada, no Plano Interministerial sobre Desmatamento do Governo Federal, como uma das quatro de mais alto impacto ambiental na Amazônia, coloca o IBAMA num impasse tal que: Se não conceder a Licença de Instalação, irá esvaziar um Termo que ele mesmo assinou, pois os desembolsos da empresa estão vinculados, conforme consta dos anexos, ao "início das obras de construção". Já se conceder a Licença, abrirá o caminho para qualquer empresa se candidatar a obter licenças duvidosas investindo um modesto valor em supostos investimentos sociais paralelos. (Trecho do editorial citado acima) O projeto do poliduto Urucu – Porto Velho e a situação energética do estado de Rondônia é um exemplo da falta de coordenação entre diferentes órgãos de governo e, para os defensores de uma visão nacionalista, da interferência de interesses internacionais no planejamento energético da Amazônia. Nesse sentido, na medida em que o estado permanece na dependência de uma central termoelétrica movida a diesel, da empresa Termonorte, subsidiária da norte-americana El Paso, cujo contrato feito com a Eletronorte é considerado lesivo aos interesses públicos por setores ligados ao Ministério das Minas e Energia, por subsidiar o combustível para Termonorte e por obrigar a estatal a adquirir 85% de sua capacidade de geração. A falta de definição do Estado gera polêmicas como a da interligação, por meio de Linha de Transmissão, da cidade de Porto Velho à rede nacional, previsto no PPA 20002003, ainda não realizada em um trecho de cerca de 300 km entre Ji-Paraná e Vilhena. 180 A linha, se efetivamente implantada, representará uma situação de conflito associado à solução dos problemas energéticos de Rondônia em que estarão em jogo os interesses do capital privado (Termonorte/El Paso), de políticos locais, dos produtores independentes de energia e das estatais Furnas, Eletronorte e Petrobrás, pois, além da problemática local e regional, a linha de transmissão interfere na viabilidade do projeto do poliduto Urucu – Porto Velho e tem interface com os projetos das hidrelétricas Santo Antonio e Jirau, no rio Madeira. Os projetos de Santo Antonio e Jirau se associam ao projeto do sistema hidroviário Alto Madeira-Guaporé-Beni. Proposto por um consórcio feito entre Furnas e a Odebrecht em fevereiro de 2003, o projeto contempla duas barragens a montante de Porto Velho, com reservatório de cerca 450 km2, com objetivo de, além da geração hidrelétrica, viabilizar a navegação no Madeira até os rios Beni e Guaporé, estimulando a produção de soja. Enquanto a lógica econômica que justifica as propostas de obras de infra-estrutura não contemplar a quantificação de custos associados à inserção regional dos empreendimentos e que a ineficiência nos processos de tomada de decisão nas obras de infra-estrutura na Amazônia permanecer predominante, continuarão a ser levantadas questões quanto a quem serão os principais beneficiários, tanto de novos processos produtivos, quanto de eventuais ações, em princípio, positivas do Estado. Um exemplo dessas ações foi a doação de cerca de 6 mil toras de mogno que o Ibama fez, em 2003, para a Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (Fase) e que foi objeto de análise por parte do Tribunal de Contas da União (TCU)42. Revendidas pela ONG diretamente para uma madeireira, em vez de ser objeto de um leilão, como queria o Ministério do Meio Ambiente, o valor arrecadado, R$ 7,9 milhões, ficou bem abaixo do valor da madeira no mercado internacional. 42 Acórdão 601/2004 – Plenário; Relator : Ministro Humberto Guimarães Souto. 181 Como essas toras foram apreendidas em Altamira, Pará, região onde foram realizadas as pesquisas de campo para esta pesquisa, foi possível observar, em entrevistas com atores sociais regionais, uma grande desconfiança com os métodos utilizados pelo Governo Federal – notadamente pelo Ibama. O tema envolve os mesmos atores do conflito associado ao projeto da hidrelétrica Belo Monte e vários dos entrevistados sugeriram que, segundo os especialistas do mercado madeireiro da região, o valor da venda deveria ser muito maior. O acórdão do TCU ressalta a "forte impressão" de que o Ibama, ao doar as toras, não tinha efetiva noção de seu valor e que "os dispositivos, tanto na Lei de Crimes Ambientais quanto na de Licitações e Contratos, estabelecendo a obrigatoriedade de que a doação seja precedida de avaliação, não são sem utilidade". Considerando que o ente público necessita saber, o mais precisamente possível, aquilo que efetivamente está doando, na medida em que "a doação não deixa de ser uma forma de executar políticas públicas", o ministro relator conclui que: Da maneira como se procedeu no caso da FASE, são compreensíveis as desconfianças, veiculadas pela imprensa, de que a empresa madeireira poderia ter sido a grande beneficiária do processo. Considero, contudo, praticamente impossível firmar-se qualquer conclusão quanto a tal aspecto. Não vejo como, sem contar com uma avaliação técnica prévia mais detalhada do material a ser doado (que, pelo visto, não chegou a ser feita), se possa fazer qualquer análise acerca do orçamento (...) Entendo fundamental, portanto, que o Ibama adote providências, quer pela utilização de meios próprios ou por intermédio do estabelecimento de parcerias com universidades ou mediante terceirização, no sentido de que, previamente às alienações de madeiras apreendidas, em especial nos casos de doações com encargos (...) e de leilões, seja previamente promovida a avaliação dos lotes a serem alienados. (...) A doação promovida por ente público não pode ser realizada sem a devida observância dos princípios da isonomia, impessoalidade e publicidade. Falhou-se nesse aspecto. Ao menos nos elementos trazidos 182 aos autos, não ficaram claros os motivos que levaram à escolha da Fase como donatária. Nas circunstâncias, fica difícil afastar a impressão de que outras entidades poderiam ter interesse em receber a doação. (Trecho de referido acórdão; Fonte: TCU) Como pretende demonstrar esta pesquisa, informação, desarticulação entre instituições, voluntarismo, representatividade de organizações, saber técnico e científico e participação da sociedade na tomada de decisões estão no centro de todos os conflitos sócio-ambientais na Amazônia - com um grande catalisador em ação: o desarranjo da atuação do Estado. 3.3.5 Buscando exemplos de visões estratégicas Os caminhos das intervenções do Estado na Amazônia brasileira passam invariavelmente pela elaboração de planos, programas e projetos em que ora são privilegiados os aspectos econômicos, ora são privilegiados os aspectos ambientais – freqüentemente com a dimensão humana em segundo plano. Existe uma espécie de esquizofrenia cíclica na atuação governamental na Amazônia, em que a oscilação das diretrizes adotadas é marcada por influências de natureza eleitoral, de natureza econômica, e de natureza conjuntural – entre outras. Um falso dilema tem sido insistentemente colocado ao longo das últimas décadas tanto na mídia quanto nos meios científicos e acadêmicos: um embate excludente entre a economia e a ecologia. No centro desse dilema se encontra o setor elétrico, principalmente a partir de 1984. O setor, pelas suas próprias características, incorporou fases de planejamento estratégico em suas empresas como nenhum outro no Brasil. Durante o Governo Militar instalado no país em 1964, o planejamento do setor elétrico foi incrementado de forma significativa e, por razões que exploraremos no próximo capítulo, passou a ser associado 183 aos "cavaleiros do mal", aos "bad guys", no conflito economia versus ecologia. Se há razões ou não para tanto, poderemos discutir mais adiante. No entanto, como observam Gomes e Vergolino (1997), de 1960 a 1995, a economia dessa região aumentou em quase doze vezes o seu tamanho. No mesmo período, o produto interno bruto brasileiro foi multiplicado por um fator um pouco menor do que seis. A economia amazônica, impulsionada por grandes adições ao seu estoque de capital físico, como rodovias, ferrovias, fábricas, recursos minerais em exploração, agricultura e pecuária, gerou um crescimento demográfico muito rápido, em grande medida decorrente da imigração. Nesses empreendimentos, o governo exerceu um papel de grande importância e visibilidade ao construir estradas e atrair tanto trabalhadores para as obras quanto aqueles que, em seguida, a partir dos novos caminhos e com o benefício de incentivos também governamentais, tornaram-se colonos, proprietários ou assalariados rurais. Gomes e Vergolino não negam a importância dos aspectos sociais ou ambientais do desenvolvimento, mas consideram que é na economia que a sorte é lançada e que não existe nenhum caso de um país rico que tenha falhado em se tornar um país justo, sobretudo quando comparado aos países que fracassaram economicamente. Assim, segundo os autores, para demonstrar essas afirmações, basta examinar os escores das nações em termos de desenvolvimento humano, "um conceito inventado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para apaziguar seus sócios pobres, amplamente majoritários". Os relatórios de desenvolvimento humano repetem com fatos a lição de que o único caminho que leva os povos a construírem uma sociedade justa é o que também os leva a construírem uma sociedade rica: o crescimento econômico duradouro. São os países mais ricos os que exibem os melhores índices de distribuição da renda, assim como os 184 melhores registros de eqüidade nos campos da educação, da saúde e do acesso aos serviços públicos. Isso não equivale a dizer que o crescimento econômico, por si, produz a eqüidade. O que o crescimento econômico duradouro produz são as condições materiais para a realização duradoura dos objetivos éticos de melhoria e eqüidade social. Gomes e Vergolino (1997) consideram que o alcance desses objetivos pode passar, e freqüentemente passa, pela luta política. Mas, afirmam que essa luta jamais será ganha nas sociedades incapazes de produzirem a sua própria riqueza. Portanto, embora o trajeto possa ser tortuoso, "é somente com a promoção de crescimento econômico que podemos ter esperanças de alcançar objetivos éticos capazes de reduzir as disparidades". Interessa a esta pesquisa se, como querem os autores, muito menos que o crescimento econômico, é a explosão populacional que perturba os equilíbrios ecológicos originais. Considerando que, nas sociedades submetidas a uma súbita aceleração demográfica, sem que, ao mesmo tempo, a tecnologia de produção seja alterada, o desastre ambiental torna-se inevitável, será que o crescimento merece ser tratado em sua própria dimensão? Ou seja se resta, para o Brasil, intensificar a utilização de tecnologias capazes de, simultaneamente, fazer crescer a produção e utilizar mais eficiente e sustentavelmente os recursos naturais. È importante discutir se "O restabelecimento do equilíbrio ecológico perdido com a explosão populacional passa, portanto, pelo crescimento econômico. Tratase, praticamente, na verdade, do único caminho". (Gomes e Vergolino, 1997) Consideramos, neste ponto, que uma visão estratégica para a Amazônia deve incluir uma política ambiental que contemple uma legislação ambiental coerente, realista e aplicável e a articulação de instituições públicas que possam exercer a coordenação e a implementação dessa legislação, com legitimidade social. A tendência mundial surgida com a Conferência de Estocolmo de 1972 foi para institucionalizar-se a questão ambiental como integrante das políticas públicas, gerando áreas específicas de atuação no sistema governamental de cada país. 185 Em 1973, foi criada a Secretaria Especial de Meio Ambiente – Sema, primeira agência ambiental federal. Dentre outras atribuições, possuía a missão de monitorar as transformações do meio ambiente, assessorar os órgãos e entidades incumbidas da conservação ambiental, colaborar com os órgãos responsáveis pelo controle ambiental, promover em escala nacional a educação ambiental e estabelecer normas e padrões de preservação dos recursos ambientais, em especial dos recursos hídricos. A Lei 6938/81, que estabeleceu a Política Nacional de Meio Ambiente, criando o Sistema Nacional de Meio Ambiente Sisnama, integrado também pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente – Conama, favoreceu a criação de novos órgãos estaduais de meio ambiente, apresentando como principais funções as atividades de fiscalização e monitoramento, assim como a tarefa de licenciar as atividades potencialmente poluidoras ou degradadoras do meio ambiente. No âmbito estadual também foram criados Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, com algumas funções análogas às do Conama43, e, em escala municipal, já no início dos anos 1980, foram implantados os primeiros Conselhos Municipais de Defesa de Meio Ambiente - Condemas, com apoio executivo das prefeituras e com duas importantes funções: a fiscalização de empreendimentos de pequeno porte e o estímulo à participação comunitária. Em 1989, como visto na introdução deste trabalho, é criado o Ibama, pela fusão de quatro instituições federais, que tinham responsabilidade por assuntos e/ou recursos relacionados com o ambiente. Em 1990, é criada a Secretaria Especial de Meio Ambiente da Presidência da República que, em 1992, transformou-se em Ministério do Meio Ambiente e, em 1995, foi renomeado como Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, em 1995. 43 Existe uma função do Conama que é única, inclusive que não encontra semelhança em outrosa países. O fato é que a Lei 6.938 atribuiu ao Conselho o mandato de discutir a aprovar normas e resoluções, função esta que nos regimes democráticos é exclusiva do Poder Legislativo. 186 Em 1999, a denominação Ministério do Meio Ambiente é retomada, em ciclo de transformações superficiais, sempre em um contexto institucional frágil para lidar com a questão ambiental. Nessas mudanças, o Ibama permaneceu com a função de executar e fazer executar, como órgão federal, a política e diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente, ou seja, dentre outras: • • • • • • • • • • O estabelecimento de padrões de qualidade ambiental; O zoneamento ambiental; A avaliação de impactos ambientais; O licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras; A criação de as áreas de proteção ambiental, as estações ecológicas, as reservas extrativistas etc; O sistema nacional de informações sobre o meio ambiente – Sisnama O cadastro técnico federal de atividades e instrumentos de defesa ambiental; O cadastro técnico federal de atividades potencialmente poluidoras e/ou utilizadoras dos recursos ambientais; As penalidades disciplinares ou compensatórias ao não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção da degradação ambiental e A instituição do Relatório de Qualidade do Meio Ambiente. (Fonte: Ministério do Meio Ambiente) A Política Nacional de Meio Ambiente, com objetivos como a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando a assegurar no país condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, sofreu alterações na década de 1990, especialmente no que tange à Avaliação de Impacto Ambiental e ao Licenciamento Ambiental. Entretanto, para discutir aspectos relacionados aos procedimentos de Licenciamento Ambiental e, sobretudo, sobre o instrumento principal utilizado para essa atividade, o Estudo de Impactos Ambientas e sua evolução atual, a Avaliação Ambiental Estratégica, é importante uma visita à gênese desse instrumento, que acontece no início da década dos 70s. 187 Considerado como o primeiro documento legal a estabelecer, de uma forma ampla, as ligações entre o processo de tomada de decisão e as preocupações com a manutenção da qualidade ambiental, o Ato da Política Nacional para o Meio Ambiente (The National Environmental Policy Act – NEPA), foi aprovado pelo Congresso Americano em 1969. Ao ser implantado, o NEPA teve reduzido seu escopo inicial, cujo objetivo principal era o estabelecimento de linhas gerais para uma política nacional de meio ambiente. O fato é que atualmente o NEPA é conhecido principalmente pelos arranjos administrativos criados durante seu processo de implementação, em especial o ato de declaração de impactos ambientais (Environmental Impact Statement - EIS) e o processo associado a essa declaração, a Avaliação de Impactos Ambientais – AIA. Um grande número de países, tanto desenvolvidos quanto em desenvolvimento, adotaram o processo de AIA como o procedimento para incorporar as questões ambientais e sociais nas atividades de planejamento e de tomada de decisão. A Avaliação de Impacto Ambiental (AIA), um instrumento de planejamento que permite associar as preocupações ambientais às estratégias do desenvolvimento social e econômico e meio de aplicação de uma política preventiva foi, no Brasil, vinculada ao processo de licenciamento ambiental em 1983. Por meio do decreto que regulamentou a Política Nacional de Meio Ambiente e a partir da Resolução 001/86 do Conama, a elaboração de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) passou a ser uma exigência legal para implantação ou ampliação de empreendimentos e o campo de abrangência da AIA ficou determinado. A preparação de Estudo de Impactos Ambientais – EIA, contendo a descrição do empreendimento e suas diferentes alternativas, o ambiente passível de ser afetado, a natureza dos efeitos no ambiente e os meios para minimizar os efeitos negativos prevê uma revisão do documento por agências governamentais e, por meio de um processo participativo de representatividade democrática, pela sociedade. 188 Prevê, também, a preparação de um relatório final, incluindo as respostas e soluções apresentadas durante o processo de revisão do EIA e a implementação das ações aprovadas nessa revisão, usualmente incluindo medidas de mitigação e um sistema de monitoramento destinado à verificação da implementação das medidas de mitigação sugeridas e à averiguação de como se comportará o ambiente após a implantação do empreendimento. Os critérios dizem respeito particularmente a aspectos ambientais de projetos, restringindo uma possível aplicação do instrumento a políticas, planos e programas - PPPs, ou seja, em níveis mais estratégicos do processo de planejamento e de tomada de decisão. Ocorre que a avaliação de um projeto inserido em uma determinada política, plano ou programa não avaliado devidamente em termos ambientais, freqüentemente produz conflitos que se expandem para além da escala do empreendimento. Desse modo, EIA e Rimas diferentes são produzidos para empreendimentos inseridos em uma mesma política pública ou em projetos de desenvolvimento regional, gerando processos de licenciamento independentes e, muitas vezes, simultâneos. Com isso, ocorre a repetição de estudos e análises, o que, além de onerar desnecessariamente o processo, leva a possíveis omissões – ou não identificação – de impactos cumulativos ou sinérgicos. Egler (2001) aponta para a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) como um instrumento que poderia, pelas suas características abrangentes e integradoras, contribuir significativamente para a inclusão, nos processos de tomada de decisão, da avaliação dos efeitos ambientais das políticas públicas. Atualmente, em muitos países, um processo de estudo de impactos ambientais é utilizado para demonstrar que o ambiente, tanto físico como social está sendo considerado na implementação de empreendimentos. Ocorre que esse processo tanto pode ser utilizado 189 como um procedimento formal de legitimação, ou como um instrumento efetivo de negociação e mediação. Egler resume a avaliação de impactos ambientais como um processo que pode ser definido como um conjunto de procedimentos que incluem a avaliação inicial ou screening para identificar se um projeto pode resultar, em sua implementação, em impactos ambientais ou sociais significativos e, assim, merecer ser objeto de avaliação de impacto ambiental. O processo também busca identificar aspectos econômicos, sociais e ambientais significativos do projeto e eliminar aqueles insignificantes para a elaboração de uma AIA (scoping). Após décadas do estabelecimento do processo de AIA, existem diferentes avaliações de sua efetividade demonstrando que, em relação ao alcance de seus objetivos, resultados positivos foram alcançados na consideração dos aspectos ambientais e sociais no processo de desenho e implementação de projetos de desenvolvimento. Assim, o processo de AIA, quando utilizado como um instrumento de mediação e negociação, contribui para a promoção da consideração de dois valores precariamente considerados até então no processo de tomada de decisão: o ambiental e o social. Algumas deficiências importantes têm sido identificadas, contudo, mesmo quando e onde o processo de AIA é considerado como adequadamente implantado e utilizado. Entre essas deficiências, a mais importante é o fato de o processo de AIA ocorrer muito tarde no processo de planejamento e de desenho de um empreendimento, tornando difícil assegurarse de que todas as alternativas possíveis e relevantes ao projeto sejam adequadamente consideradas. Uma razão para que as possíveis alternativas sejam inadequadamente consideradas no processo de AIA é porque esse processo é incompatível com a prática de planejamento dos 190 empreendimentos. Desse modo, o processo de planejamento de um empreendimento é tido como aquele em que as decisões iniciais são feitas com base em informações pouco precisas, evoluindo progressivamente para decisões fundamentadas com base em informações mais detalhadas, sobretudo em nível técnico e econômico. Contrariamente, a AIA, de acordo com seus princípios básicos, é usualmente considerada como um processo pelo qual uma ampla gama de opções deve ser estudada de forma igualmente detalhada, até que uma opção possa ser feita após avaliação comparativa detalhada. (Egler, op. cit) Para superar essa e outras dificuldades decorrentes da não consideração dos impactos cumulativos, sinergéticos, ancilares, assim como dos impactos regionais e globais, muitos especialistas e organizações internacionais têm apoiado com entusiasmo o uso da avaliação ambiental estratégica – AAE (Strategic Environmental Assessment – SEA). De modo simplificado, poder-se-ia considerar a AAE um processo de avaliação ambiental de políticas, planos e programas – PPPs para o qual Egler sugere como melhor definição aquela de Sadler e Verheem (1996), em que a AAE é vista como um processo sistemático para avaliar as conseqüências ambientais de uma política, plano ou programa. Dessa forma fica assegurado que elas sejam integralmente incluídas e apropriadamente consideradas no estágio inicial e apropriado do processo de tomada de decisão, juntamente com as considerações de ordem econômicas e sociais. Nesse contexto, três tipos principais de ação podem ser submetidos a um processo de AAE: 1. .PPPs setoriais, como energia e transporte, por exemplo; 2. .PPPs relacionados com o uso do território, o qual cobre todas as atividades a serem implementadas em uma determinada área e 191 3. políticas ou ações que não necessariamente se implementam por meio de projetos, mas que podem ter impactos ambientais significativos, como políticas de incentivos ou de créditos. A natureza integrada desses três tipos de ações, uma vez que é impossível discutir uma política, plano ou programa setorial sem ligá-los ao território onde serão implantados, e também ao contexto político e ideológico onde a política, o plano e o programa foram concebidos e aprovados, se materializa como o principal problema com essa tripla contextualização da aplicação do processo de AAE. Um aspecto relevante abordado na literatura relativa ao processo de AAE refere-se às razões que vêm suportando a necessidade de sua adoção e implementação. Neste sentido, duas razões principais podem ser adiantadas para incluir a AAE na agenda atual das arenas política e ambiental. A primeira delas é sua capacidade para superar as deficiências técnicas identificadas no processo de AIA, sobretudo no que diz respeito à sua natureza reativa, ao invés de próativa. A consideração de diferentes alternativas (de escala, de localidade, de tempo, de tecnologia) e as medidas de mitigação são entendidas e concebidas como já decididas em nível dos projetos (o nível de aplicação do processo de AIA), o que deixa limitadas possibilidades para sua modificação. Outra limitação técnica da AIA é o fato de só considerar, na sua realização, os impactos diretos dos empreendimentos, deixando de lado uma diversidade de outros possíveis impactos cumulativos, como: i) impactos aditivos dos empreendimentos que não requerem a AI; ii) impactos sinérgicos, em que o impacto total de diferentes projetos excede a mera soma dos impactos individuais; iii) impactos de limite ou de saturação, onde o ambiente pode ser resiliente até um certo nível, a partir do qual se torna rapidamente degradado; iv) impactos induzidos ou diretos, onde um projeto de desenvolvimento pode estimular ou induzir projetos secundários, sobretudo de infra-estrutura; v) impactos por estresse de tempo ou de espaço, onde o ambiente não tem nem tempo nem espaço para se 192 recuperar de um impacto antes que seja submetido a outro; e vi) impactos globais, tais como os que ocorrem na diversidade biológica e no clima do planeta. A segunda razão que justificaria a adoção dos procedimentos de AAE é o papel que esse processo pode vir a desempenhar na promoção da chamada sustentabilidade do processo de desenvolvimento, ou seja, se o desenvolvimento sustentável é uma meta a ser alcançada, por intermédio da integração das dimensões ambientais, sociais e econômicas no processo de tomada de decisões, o processo de AAE é potencialmente capaz de desempenhar um papel decisivo para essa integração, na medida em que sua atuação pode se dar como um procedimento de coordenação dentro dos diferentes níveis das atividades de planejamento governamentais. Algumas características do processo de AAE fazem com que seja possível distinguilo da AIA. Os objetivos e metas de políticas, planos ou programas são muito mais amplos e extensos do que os de projetos. Na etapa de planejamento os objetivos e metas de PPPs ainda estão abertos a uma discussão e, assim, a disponibilidade de alternativas é muito maior em nível do planejamento de PPPs do que em nível do projeto. As escolhas incluem não apenas opções técnicas, mas também institucionais. Em contextos governamentais, existe a possibilidade de se estabelecer ações horizontais, cruzando diferentes áreas e/ou setores. O tempo no contexto do planejamento de PPPs é muito mais flexível do que em nível do projeto. Essa característica incrementa o potencial de que seja possível incorporar novos objetivos e novas alternativas nos PPPs , sem as pressões usualmente observadas no contexto do desenvolvimento de projetos. O âmbito de projetos é menos amplo e mais preciso do que em PPPs, que podem incluir um país inteiro ou uma região, sendo que mesmo planos que se ocupam do uso de um território específico podem considerar extensas áreas para as quais estudos específicos são caros e difíceis. 193 A identificação de alternativas, embora potencialmente mais complexa devido ao grande número de opções, é uma das principais etapas do processo de AAE, quando comparado com a AIA. Em nível da política, plano e programa, as ações empreendidas não atingiram ainda uma situação de não reversibilidade, ou seja, nenhuma ação de natureza física foi ainda realizada de maneira a impedir possíveis mudanças. Nesse sentido, a investigação e identificação de opções mais adequadas nos contextos sócio, econômico e ambiental podem ser efetivamente facilitadas. Como tornar previamente público os objetivos de uma política, plano ou programa não é um procedimento usual daqueles que são responsáveis pela elaboração desses documentos, o maior problema, capaz de dificultar a implementação da AAE, reside no contexto político que envolve a atividade de planejamento. Isso porque, usualmente, esses detalhes das PPPs são mantidos em caráter restrito, de forma a evitar reações adversas durante seu processo de formulação, ou devido a natureza sensível de alguns deles, como os planos econômicos. Esse aspecto é particularmente interessante para esta pesquisa, pois muitos dos problemas enfrentados pelo setor elétrico brasileiro estão localizados na divulgação antecipada de projetos, especialmente hidrelétricos, resultando em oposições cristalizadas em determinados segmentos da sociedade. Esse fato se torna especialmente relevante quando consideramos o tempo de construção de uma hidrelétrica e as fases inerentes ao desenvolvimento do projeto, tais como a do inventário e a da viabilidade, nas quais a publicização do empreendimento é inevitável. 194 Um dos procedimentos possível de ser utilizado para evitar esses problemas é por meio do uso da atividade de coordenação, onde a divulgação das informações pode ser realizada por concordância ou mediante o uso de instrumentos mais convincentes. Outra etapa complexa do processo de AAE é a descrição do environmental baseline, ou o marco zero, onde a definição da extensão do ambiente a ser considerado para a análise das PPPs pode variar de acordo com pelo menos dois aspectos. O primeiro aspecto se relaciona com a etapa ou nível do processo de planejamento em questão. Trata-se de política, plano, programa ou projeto? Evidentemente que cada uma dessas fases requer níveis diferenciados de informação, tanto para o detalhamento quanto para a abrangência geográfica. O segundo aspecto, diz respeito aos diferentes graus e tipos de informação que a área ou setor que se está planejando: energia, mineração ou produtos florestais, por exemplo. Além disso, a diferença que existe entre as fronteiras administrativas e as ambientais pode introduzir problemas adicionais, impondo mais custos e também mais dificuldades nos procedimentos a serem adotados para se obter as informações adequadas para se descrever o ambiente de referência no contexto de um processo de AAE. Como as coletas de informações são, em geral, realizadas pelo sistema formal – ou oficial – se utilizam de estruturas administrativas como regiões, estados e municípios para definir fronteiras ou limites, em uma prática que se refere não apenas aos domínios econômicos e sociais, mas também aos ambientais. Daí surgem dificuldades pelo fato de que, no contexto da gestão e da análise ambiental, os limites oficiais ou formais não representam o que se poderia chamar de "limites reais". Por conta disso, a disponibilidade de informações para a implementação de um processo de AAE pode impor custos adicionais, uma vez que ajustes a essas bases de informações podem ser necessários 195 Outra etapa difícil do processo de AAE é a previsão dos possíveis impactos no ambiente, pois a principal questão presente nessa etapa é o grau de incerteza que envolve toda atividade de previsão e, principalmente, aquelas relacionadas com o ambiente. Nesse caso, tal como ocorre no processo de AIA, a principal fraqueza presente nessa etapa da AAE é a adequação e a confiabilidade das metodologias utilizadas para identificar e avaliar os impactos ou efeitos possíveis para o ambiente, como resultado da implementação dos PPPs, sendo que, no contexto de um processo de AAE, a incerteza presente na atividade de identificação e avaliação de impactos é muito mais significativa do que no processo de AIA. Essa incerteza é crescente ao longo das etapas sucessivas da AAE, a partir do alto nível de abstração presente em uma política e seguindo nas etapas seguintes do plano e do programa. O uso de procedimentos de avaliação mais adaptativos quando se defrontaram com altos níveis de incerteza é recomendado por diversos autores como forma de superar os problemas existentes na fase ou estágio de previsão e avaliação de impactos ou efeitos de um processo de AAE. Mesmo com o alto nível de incertezas presentes na fase ou etapa de previsão e avaliação de impactos ou efeitos em um processo de AAE, alguns aspectos positivos podem ser a ele associados. O principal está relacionado ao tempo, pois o tempo em nível do planejamento é muito mais flexível do que em nível de um projeto. Desse modo, a análise dos efeitos negativos ou positivos possíveis de acontecerem com a implementação dos PPPs pode ser determinada em um passo que venha a permitir a participação de diferentes atores interessados no processo, facilitando – embora não garantindo - a participação do público na escolha das melhores opções. Além disso, com o uso de um modelo adaptativo, torna-se possível o uso de diferentes e também mais adequadas metodologias para a previsão de impactos. 196 A última fase ou etapa do processo de AAE – que demanda uma discussão mais detalhada – é o monitoramento. A importância dessa fase pode ser enfatizada pelo papel que representa no processo de AIA para a aferição da qualidade e da precisão das previsões feitas no procedimento de avaliação dos impactos, ou seja, nesse aspecto, o que se aplica à AIA se aplica igualmente à AAE. Isso pode ser percebido mesmo na questão relativa à efetiva implementação da atividade de monitoramento, onde existe um paralelo entre a AIA e a AAE, pois a sua prática é limitada. A complexidade do monitoramento e dificuldade para a sua operacionalização no contexto de uma AAE é relacionada ao número das diferentes atividades presentes nesse processo, as quais atravessam os diferentes níveis do processo de planejamento. O custo é outro fator que dificulta a sua implementação, juntamente com a questão da definição sobre quem deve realizá-la e quando. No entanto, todas as evidências indicam que as mesmas soluções que vem sendo adiantadas para o processo de AIA se aplicam, também, à AAE, sendo de fundamental importância identificar e prover os recursos necessários para realizar o monitoramento, juntamente com uma definição relativa à responsabilidade e momento para sua realização – o que pode passar pela questão de definições legais. Como a maioria dos estudos e textos sobre o processo de AAE enfatiza, como razões para apoiar seu uso, a sua capacidade para minimizar as limitações técnicas do processo de AIA e o papel que esse processo pode vir a representar para a promoção do desenvolvimento sustentável, é preciso considerar que a promoção da sustentabilidade necessita de uma discussão mais ampla, juntamente com outros aspectos que são considerados como relevantes para a efetiva implementação de um processo de AAE, como, por exemplo, a sua capacidade integrativa. 197 A segmentação das políticas existentes, sobretudo aquelas relacionadas com o uso e a proteção dos recursos ambientais foi apontada como um problema desde a década de 1960, mesmo antes de os governos dos países desenvolvidos começarem a promulgar um corpo expressivo de leis e legislações, de estabelecerem novas instituições e de colocar em prática medidas para tratarem com os efeitos ambientais. Entretanto, mesmo tendo sido identificada e diagnosticada durante as últimas três décadas como uma questão relevante que prejudica a efetiva implementação de políticas ambientais, nenhuma ação efetiva foi realizada até o momento com o propósito de resolver a questão da fragmentação das políticas ambientais, sendo que as diferentes leis, agências, planos e programas e outros instrumentos criados no domínio ambiental durante esse período apenas contribuíram para aumentar essa fragmentação. Segundo Egler (op. cit.), muitos fatores podem ser invocados para explicar a fragmentação das ações ambientais. Um desses refere-se à questão de o ambiente ser tratado como consistindo de distintos e separados recursos, meios e sistemas . Outro fator pode ser encontrado no contexto do processo de tomada de decisão. Como a capacidade humana é limitada para tratar das complexidades e dos problemas de uma forma integrada, a maneira mais usual de superar essa limitação é por meio da divisão, de forma a criar áreas específicas de racionalidade e de responsabilidade. Ainda em (Egler, op. cit.) podemos ver que na arena administrativa e, sobretudo, no contexto do estado administrativo, essa divisão se expressa pela criação de diferentes agências e instituições responsáveis por diversas áreas/setores, de forma a tornar ‘gerenciável’ a administração delas. O autor considera uma outra explicação para a fragmentação que diz respeito ao contexto institucional das organizações que têm a responsabilidade de implementar as políticas, planos, programas e ações nas diferentes áreas/setores. Egler nos diz que, como um dos assuntos sempre presentes nas agendas dessas instituições diz respeito à sobrevivência das mesmas, nesse processo as instituições 198 usualmente tendem a estabelecer fronteiras de ação claramente delimitadas, o que faz o processo de integração ser bastante difícil. Como visto, o processo de AAE pode ser descrito como a análise e a avaliação dos impactos ambientais e/ou os efeitos, ao menos teoricamente, das políticas, planos e programas estabelecidos em um determinado contexto, seja ele nacional, regional, local ou setorial. Com isso, a AAE pode vir a facilitar o desenvolvimento e a implementação de procedimentos de coordenação, de forma a evitar inconsistências e conflitos entre os objetivos, as metas e os atores participantes dessas PPPs. A estreita relação que existe entre o processo de AAE e a atividade de coordenação não significa, entretanto, que essa relação é assumida como sendo um fator para tornar possível e factível a adoção desse processo no contexto de qualquer país, região e/ou setor, pois a adoção do processo de AAE é dependente de fatores essencialmente relacionados com os contextos econômicos, políticos e culturais de cada país, e não a razões de natureza técnica ou administrativa. É importante ressaltar que o papel que a AAE desempenha está associado tanto à importância da função de coordenação na obtenção da integração entre políticas, sobretudo no domínio das políticas ambientais, quanto ao papel do Estado na organização e implementação dessa coordenação. No caso do Brasil, a natureza significativamente diferente das intervenções feitas no país, quando comparadas com aquelas feitas em países como os europeus, ou nos Estados Unidos, faz com que, diferentemente desses países, o Brasil ainda disponha de imensas áreas a serem ocupadas. Assim, o uso de um procedimento de avaliação como o processo de AAE, concebido para analisar os impactos ambientais e sociais de políticas, planos e programas de desenvolvimento, é muito mais apropriado para a situação brasileira do que o processo de AIA, que tem aplicação restrita a projetos. 199 Como exemplo, podemos citar as intervenções do setor elétrico na Amazônia. Houvessem sido analisadas e avaliadas por um processo mais amplo, ao invés da elaboração de AIAs para cada empreendimento, os resultados relativamente à qualidade dos contextos sociais e ambientais naquela região teriam sido significativamente diferentes. É importante apontar que os diferentes documentos e estudos sobre a AAE elaborados em nível internacional têm apontado que a prática do planejamento é fundamental para a questão ambiental e, mais especificamente, para a viabilização do desenvolvimento sustentável. Fica clara, a partir das demandas impostas pelo processo de AAE, a necessidade de que o ambiente seja pensado a partir de uma perspectiva mais ampla – global, regional, local e setorial, perspectiva essa claramente apontada em documentos como a Agenda 21 e as Convenções de Mudanças Climáticas e de Conservação da Diversidade Biológica. Para que essa perspectiva seja efetivada, é fundamental que a atividade de planejamento seja realizada. Nesse ponto, é necessário estabelecer uma ligação entre o presente capítulo e o próximo, onde nos aproximaremos definitivamente do foco de nossa pesquisa. Torna-se muito interessante, à luz de um instrumento tão avançado e abrangente como a Avaliação Ambiental Estratégica, analisar porque o setor elétrico brasileiro se distanciou de tais procedimentos, inviabilizando projetos e adquirindo opositores tanto em nível local e regional quanto em nível nacional e internacional. Na medida em que o seu Plano Diretor de Meio Ambiente – PDMA 1991-1993, publicado em 1990, tinha como objetivo principal definir princípios básicos e diretrizes para configurar a sua postura geral, o setor elétrico preconizava que, no trato das questões sócio-ambientais nas etapas de planejamento, implantação e operação dos seus empreendimentos, houvesse compatibilidade com as diretrizes e instrumentos da Política 200 Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), suas reformulações e legislação complementar. Com a proposta de promover: 1. o aperfeiçoamento gradual das técnicas e dos procedimentos adotados pelo setor, por meio da definição de um programa prioritário de estudos e projetos a serem desenvolvidos no período 1991/93, e que compreendia a consolidação, sistematização e aperfeiçoamento do conhecimento do Setor no tratamento das questões sócio-ambientais; 2. o acompanhamento das ações sócio-ambientais mais relevantes, relacionadas aos empreendimentos em planejamento, implantação e operação; 3. a caracterização dos custos e dos benefícios sócio-ambientais resultantes da atuação do Setor; 4. a alocação adequada de recursos financeiros, em função do aproveitamento múltiplo, por outros setores de atividade, das obras e serviços executados sob liderança ou com a participação do setor elétrico; e 5. o esclarecimento e o envolvimento da opinião pública, ambos necessários à definição de projetos e programas que melhor respondam aos interesses da sociedade. Por que o setor elétrico encontrou resistências e contradições ao longo de sua trajetória na Amazônia, se considerava seu plano "mais importante que um documento formal"? Afinal, para o setor elétrico era indispensável: • promover um processo, destinado a assegurar a adesão e o comprometimento do corpo técnico e gerencial das empresas concessionárias, sob a coordenação da ELETROBRÁS, nas ações destinadas à conservação e 201 recuperação do meio ambiente e ao equacionamento das questões sociais atinentes aos empreendimentos; • atualizar o Plano Diretor por aproximações sucessivas, mediante formulação de propostas e discussões conjuntas com concessionárias, órgãos e entidades extra-setoriais, fazendo-se uma consolidação progressiva dos resultados alcançados. Cada versão do Plano Diretor deveria ser entendida como uma etapa desse processo contínuo de planejamento, em que cada ciclo deveria: • cobrir toda a extensão do problema, produzindo resultados que representem metas progressivas em relação aos ciclos precedentes; • evitar demora com detalhamentos que são inoportunos face à notória mutabilidade dos fatores políticos, sociais, econômicos e ambientais que presidem o problema; • buscar o aprofundamento dos diversos componentes do Plano através de estudos e pesquisas complementares, a serem desenvolvidos em paralelo. Reconhecendo que, à época, em muitos casos, ainda era incipiente e não sistemático o caráter do planejamento ambiental no âmbito do setor, considerou-se como importante uma definição das diretrizes gerais a serem adotadas pelas empresas concessionárias de energia elétrica, tendo em vista que: • a partir dessas diretrizes, cada empresa concessionária poderá planejar suas ações operacionais, levando em conta as características específicas das diversas regiões do país em que está inserida; • erros de planejamento operacional, causados principalmente pela precariedade de dados disponíveis num trabalho pioneiro, tenderão a se reduzir ao longo de sucessivos ciclos de planejamento, desde que as diretrizes gerais se traduzam numa estratégia setorial eficaz. 202 Todos os termos e expressões (somente aqui) grifadas aparecem para ressaltar a ligação com as questões explicitadas anteriormente enquanto se discutiam as características da AIA e da AAE. Observe-se que o plano também frisava que "medidas preventivas e negociadas são mais vantajosas do que ações corretivas destinadas a resolver conflitos emergentes após investimentos prolongados e posições radicalizadas". Também considerava que convinha que os impactos potenciais fossem identificados logo na fase inicial do processo de planejamento dos empreendimentos do setor elétrico e que fosse buscado um entendimento entre as partes envolvidas ou afetadas pelos empreendimentos, por meio de um processo de esclarecimento de suas implicações e de negociação de alternativas para o adequado equacionamento de conflitos de interesses. O equacionamento dos problemas ambientais era visto com exigências de ampla cooperação interinstitucional e com a sociedade, resultando, como conseqüência, que a montagem e implementação do Plano Diretor deveria abranger: • a articulação com entidades extra-setoriais, nos diversos níveis de governo, com o setor privado e com a sociedade em geral; e • uma previsão do tempo necessário para se consolidar formalmente os entendimentos para um trabalho conjunto envolvendo estas instâncias de discussão e de deliberação. Mais ainda, a proposição de metas viáveis, ao longo do processo em marcha, dependeria de uma adequada avaliação e compatibilização de diversos condicionantes, entre os quais se destacavam: • os recursos financeiros disponíveis pelo setor elétrico, a prazos curto e médio, para o desenvolvimento de estudos e programas sócio-ambientais; 203 • a quantidade e a capacitação dos recursos humanos disponíveis nas concessionárias e consultoras que lhes dão apoio, para projetar e executar atividades de conservação e recuperação ambiental, bem como os programas sociais de responsabilidade do setor elétrico; • o nível de capacitação e eficácia, tanto técnica como financeira e institucional, atingido por outros setores governamentais que são indispensáveis para o êxito de programas sócio-ambientais do setor elétrico, tais como os setores de controle da poluição, defesa florestal, assistência às populações rurais e indígenas. Como um plano que incorporava tantos avanços nas questões relacionadas às estratégias do setor elétrico brasileiro, especialmente nos domínios sociais e ambientais, preconizando a coordenação, a cooperação entre instituições, a negociação, a antecipação aos problemas geradores de conflitos, entre outros, pode ser transformado em mero manual de boas intenções, a julgar pelo desenrolar de conflitos sócio-ambientais do setor na Amazônia, em especial no caso projeto Belo Monte? Sobre essa e outras questões estaremos nos debruçando nos próximos capítulos deste trabalho. 3.4 CONCLUSÃO Discutir as visões da Amazônia – e as possíveis soluções para os seus múltiplos problemas – para poder interpretar a interseção dos conjuntos setor elétrico, meio ambiente e Bioma Amazônico era, desde o delineamento do problema de pesquisa, um pré-requisito indispensável. Na região do principal conflito analisado por este trabalho, provocado pelo projeto da usina hidrelétrica Belo Monte, muitas Amazônias se entrecruzam. Como definiu um dos entrevistados desta tese: 204 Se você observar bem a região, ela tem três Amazônias: a Amazônia indígena, a Amazônia da cultura da borracha e a Amazônia da colonização. Além de uma quarta Amazônia que é a urbana, nascente em Altamira. (Pesquisador com trabalhos na região. Entrevista realizada em 17/04/2004) Assim, para se aproximar de um conflito de características ímpares – e, ao mesmo tempo, exemplares – como o de Belo Monte, na busca do entendimento de em que bases se dão a participação da sociedade, a interação desta com o setor elétrico e a transmissão de informações no processo de tomada de decisão, tornou-se obrigatória a incursão pela Amazônia de cada um dos atores envolvidos no conflito – que, mesmo sendo distinta daquela que cada um de nós, é uma das possíveis Amazônias. Quando eu faço uma pesquisa sobre transplante de coração, eu não posso falar com mecânico, nem com padeiro. Eu tenho que falar com médicos altamente qualificados porque eles vão me dizer qual é o risco e como se faz. Perguntar a pessoas que estão por fora? Tem que ter muito cuidado. Foram feitas palestras que explicaram as conseqüências da água parada, dos mosquitos, peixes? Então a gente pode formar uma opinião. Depende de onde a gente receba a informação. (Padre da Prelazia do Xingu. Entrevista realizada em 13/05/2004) 205 CAPÍTULO 4: SETOR ELÉTRICO, MEIO AMBIENTE E AMAZÔNIA, EM UMA INTERSEÇÃO CONFLITADA 4.1. INTRODUÇÃO Neste capítulo, será feita uma análise descritiva dos principais conflitos do setor elétrico brasileiro na Amazônia. Essa análise, evidentemente, envolve, além dos aspectos do setor como um todo, as “Amazônias” do capítulo anterior e as especificidades da Eletronorte, de certo modo uma empresa que sintetiza todos esses elementos no tipo de conflito que aqui é investigado. Embora o foco vá ser fechado, no próximo capítulo, sobre Belo Monte, é preciso enfatizar que esta pesquisa não é específica sobre aquele projeto e que a compreensão de seus conflitos associados passa, necessariamente, por um conjunto de discussões – iniciado no Capítulo 1 deste trabalho. Neste ponto, são necessárias algumas premissas. A primeira delas é de que existem inúmeros trabalhos acadêmicos que analisam, separadamente, o setor elétrico, a Amazônia e a história do meio ambiente no Brasil, com profusão de dados históricos, estatísticos e científicos. Muitos desses trabalhos fizeram parte da revisão bibliográfica desta pesquisa – principalmente aqueles que contribuem para a compreensão da interface entre essa tríade, desafiadora para qualquer analista. As informações, embora muitas vezes dispersas e fragmentadas, estão disponíveis em muitas bases de dados e são facilmente acessíveis. Por isso mesmo, este capítulo – e, também o que lhe segue – não se caracteriza por gráficos, tabelas e outras formas usuais de apresentação de informações. Esse tipo de formatação tornaria o documento por demais extenso e, possivelmente, repetitivo e pouco original. Assim, as referências às fontes foram consideradas como bastantes a uma eventual busca por maiores detalhes. Uma segunda premissa, decorrente da primeira, é a de que, para fugir da formatação tradicional de uma tese sem, contudo, subverter os rigores acadêmicos, foram evitadas as descrições detalhadas e em ordem cronológica dos aspectos históricos envolvidos, optando- 206 se por uma estrutura textual mais leve. A exceção, de certa forma, ficou por conta da história do setor elétrico, caso em que é imprescindível uma caracterização das causas dos conflitos internos ao setor, especialmente para contextualizar a discussão da privatização das suas empresas que, seguramente, contribuiu para as marchas e contramarchas dos projetos na Amazônia. Nessa formatação, foram introduzidos boxes com informações adicionais, além de depoimentos pessoais do investigador, uma vez que a condição de observador participante permitiu a presença do analista em episódios revestidos de grande interesse para este estudo, principalmente no que diz respeito à transmissão de informações ambientais e à participação da sociedade. Cabe lembrar que estes eram os temas com os quais lidava o autor deste trabalho durante os períodos em que atuou no setor elétrico. Uma terceira premissa é associada ao trabalho de Kai N. Lee, isto é, admitir como possível e desejável a integração entre ciência e política, visando ao meio ambiente. Por fim, é necessário ressaltar que, as análises empreendidas neste capítulo foram fortemente influenciadas pelos trabalhos de Barbosa (2001), Bursztyn (1994, 1998 e 2001), Ferreira, Walter e Bajay (2000), Ferreira (1997), La Rovere e Farah (2000), Lima (1995), Teixeira, Souza e Magrini (1998), Viola e Leis (1995) e, principalmente, Egler (1998). Os dados históricos sobre o setor elétrico brasileiro, em geral, foram buscados e/ou confirmados nos arquivos da Eletrobrás e do Centro da Memória da Eletricidade no Brasil. Quando necessário, as referências foram explicitadas no texto. 4.2. OS CONFLITOS DO SETOR ELÉTRICO A energia elétrica no Brasil começou sua história efetivamente no século dezenove, com os primeiros empreendimentos sendo implantados após o estabelecimento do regime republicano. A Constituição de 1891 sinalizou com os primeiros ordenamentos jurídicos – e bases legais – que passaram a reger o setor. Em contraste com o Segundo Império, centralizador, uma República descentralizada possibilitou uma maior outorga de poderes 207 aos estados e municípios, em um contexto econômico predominantemente agrícola, no qual um grande poder era exercido pelos proprietários das terras agricultáveis que detinham, também, a propriedade das jazidas minerais e dos recursos hídricos. Nesse contexto, ocorria a implantação de pequenas usinas, em dimensões adequadas às necessidades dos próprios produtores agrícolas, principalmente destinadas ao beneficiamento dos seus produtos, notadamente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Posteriormente, houve iniciativas de alguns produtores no sentido de atender, também, os serviços públicos e essa expansão foi mais marcante nos municípios nos quais empresas se organizaram para fornecer iluminação pública e tração elétrica. No fim do mesmo século, prosseguindo ao longo do início do século vinte, empresas internacionais passaram a explorar os serviços de eletricidade nas grandes cidades. Foi o caso do grupo canadense controlador da Brazilian Traction, Light and Power, comumente denominada de Light, dona de concessões para explorar a distribuição de energia elétrica, iluminação pública e tração elétrica nos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro. Os maiores empreendimentos da Light realizaram-se ainda no início do século passado e a sua usina no Ribeirão das Lages, no Rio de Janeiro, entrou em operação em 1908. No início dos anos 1920, as empresas privadas nacionais, após processos de fusão e incorporação, produziram duas empresas de grande porte, para a época: a Companhia Paulista de Força e Luz - CPFL, em São Paulo, e a Companhia Brasileira de Energia Elétrica - CBEE no Rio de Janeiro. Em 1927, a American Foreign & Power Co. – Amforp, do grupo American Bond & Share, veio para o Brasil e, juntamente com a Light, deu início à efetiva formação do setor elétrico brasileiro. As pequenas empresas particulares e municipais foram absorvidas, restando, praticamente, dois grandes grupos estrangeiros no comando do setor. Os anos 1930, significativamente influenciados pela grande depressão econômica gerada pelo crash da Bolsa de Nova Iorque, se caracterizaram pelo fato de os países europeus e os Estados Unidos adotarem uma reação apoiada na concorrência do Estado 208 com a iniciativa privada, em ações de caráter regulatório, resultando em fortes reduções nas tarifas de energia elétrica. Já, no Brasil, até 1930, a ação governamental relacionada com a energia elétrica não se mostrava constante nem ordenada. O setor não existia, a não ser de forma local e, ainda assim, sob a responsabilidade de concessionárias privadas. O caráter nacionalista do primeiro período de governo Getúlio Vargas associou a geração e transmissão de energia elétrica aos interesses nacionais, em clara atitude de oposição às companhias estrangeiras. Na mesma época, investimentos estatais em grandes usinas hidrelétricas foram feitos nos países mais desenvolvidos. Como o desenvolvimento industrial no Brasil gerou forte reação dos empresários ao aumento continuado e automático do custo de energia elétrica, por parte das duas grandes concessionárias estrangeiras que detinham o domínio sobre o mercado, em 1933, Vargas extinguiu a chamada Cláusula-Ouro – que permitia às concessionárias a revisão tarifária automática e vinculada à variação cambial. Nesse contexto estão as raízes dos principais conflitos do setor elétrico brasileiro: o dilema da nacionalização versus privatização, em uma seqüência de marchas e contramarchas que chega até os dias de hoje, estando presente no centro do conflito de Belo Monte. A Constituição de 1934, por exemplo, ao transferir o poder concedente sobre os recursos hídricos destinados à geração de energia elétrica para a União, estimulava a nacionalização dos recursos naturais e atendia aos anseios das correntes nacionalistas. Observou-se, então, o início de uma forte interferência regulatória do Estado e do critério da cobrança de tarifas calculadas pelo custo de geração, além de a competição passar a ser igualmente exercida por empresas estatais, o que possibilitava a oferta de energia bem mais barata. Essa mudança foi provocada pela implantação do Código de Águas, editado em julho de 1934 e regulamentado pelo Conselho Nacional de Águas e Energia – CNAEE, criado em 209 outubro de 1939. Por força destes instrumentos, as quedas d’água passaram a ser patrimônio da União e o seu aproveitamento industrial objeto de concessão por parte do Governo Federal. O Código de Águas impunha o custo histórico, isto é, o custo original das instalações menos a depreciação do capital, enquanto que as empresas privadas consideravam outras formas de cálculo, que julgavam mais favoráveis. Nesse sentido, a primeira iniciativa de peso para a ordenação e a regulamentação do uso dos recursos hídricos no País resultou em um evidente conflito entre o Estado brasileiro e as empresas estrangeiras que controlavam a oferta de energia elétrica.. Na década de 1940, iniciou-se no Brasil um período estatizante, seguindo o exemplo dos Estados Unidos, onde estavam sendo criadas empresas estaduais e federais encarregadas de construir usinas hidrelétricas de grande porte. Em 1945, foi criada a Companhia Hidrelétrica do São Francisco - Chesf, uma empresa de caráter regional sob controle federal, que dava início ao aproveitamento do rio São Francisco, na Cachoeira de Paulo Afonso. Em 1952, o estado de Minas Gerais criou sua empresa estadual a Cemig, sendo seguido por outros estados, que também assumiram os serviços de geração e transmissão de energia elétrica, criando suas próprias empresas concessionárias. Os governos estaduais das regiões Sul e Sudeste já detinham, no início da década dos anos 1960, aproximadamente 30% da capacidade instalada no país. Em dezembro de 1954, a Chesf colocou em operação a usina hidrelétrica Paulo Afonso 1, no rio São Francisco. Em 1957, o governo federal ampliou sua participação direta no setor, criando a Central Elétrica de Furnas e iniciando a construção de seu primeiro mega-empreendimento hidrelétrico – 1.200 MW, no Rio Grande. 210 No governo de Juscelino Kubitschek as empresas públicas de energia elétrica foram privilegiadas, principalmente por conta do Plano de Metas de 1956, a partir do qual o setor foi reorganizado de modo que as empresas federais investissem na geração, ficando a distribuição a cargo do setor privado. A potência instalada atingiu 89% do previsto no plano no ano de 1965, já no Governo Castello Branco. Em 1960, o Juscelino Kubitschek criou o Ministério de Minas e Energia - MME, que substituiu o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica - CNAEE e ao qual estava subordinada a Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN. A criação do MME tinha por intenção a criação de uma instituição que viesse a promover uma integração e, sobretudo, coordenação dos diferentes órgãos com atribuições nos setores energético e mineral44 O projeto de criação da Eletrobrás, enfrentou, desde o momento em que foi proposto pela assessoria do Presidente Getúlio Vargas em abril de 1954, a oposição de concessionárias estrangeiras e de parte da classe política. Mesmo autorizada por Jânio Quadros em 1961, somente em 1962 se materializou, após intensas pressões dos setores nacionalistas. A empresa, contudo, surgiu como uma holding federal, com quatro subsidiárias: a Companhia Hidrelétrica do São Francisco – Chesf, a Central Elétrica de Furnas, a Companhia Hidrelétrica do Vale do Paraíba – Chevap e a Termoelétrica de Charqueadas S. A. – Termochar. A criação da Eletrobrás se inseriu em um contexto de intervenção do Estado na regulação e no planejamento do setor de energia elétrica. A empresa foi constituída como de economia mista, com a responsabilidade de executar a política de energia elétrica, formular diretrizes para o setor e coordenar o planejamento das atividades de expansão e operação. Era também de sua responsabilidade a negociação dos financiamentos, tendo como encargo fundamental a execução dos empreendimentos federais, no caso de a iniciativa privada não os realizar com a ajuda fixada em lei. 44 O MME agregou em sua estrutura um Departamento, vários Conselhos, uma Comissão, duas Autarquias, três Sociedades de Economia Mista e uma Companhia atuando no sistema de livre concorrência. 211 Em 1962, a Cemig iniciou um levantamento completo dos recursos energéticos de Minas Gerais. Os estudos de inventário e viabilidade dos aproveitamentos hidrelétricos do Centro-Sul do Brasil foram feitos a partir da constituição de um grande consórcio, em 1963, formado por empresas de consultoria canadenses e dos Estados Unidos, com o apoio de organismos internacionais e juntamente com técnicos das empresas do grupo Eletrobrás. Esse levantamento foi ampliado e abrangeu as regiões Centro-Sul e Sul do país e foram igualmente realizados por técnicos brasileiros e especialistas canadenses e americanos. Os estudos energéticos da Região Sul foram concluídos em 1969. O trabalho resultou em uma metodologia de planejamento setorial que seria utilizada, nos anos 1970, no levantamento dos potenciais hidrelétricos e no planejamento energético do Nordeste e da Amazônia. Os estudos que abrangiam a Amazônia foram finalizados em 1972 e, em 1973, os estudos relativos à Região Nordeste. O potencial hídrico disponível para todo o Brasil foi estimado em cerca de 260.000 MW. O desenvolvimento do setor elétrico brasileiro resultou em uma competência reconhecida internacionalmente, tanto para a engenharia civil quanto para as outras áreas relacionadas, como a engenharia elétrica e a engenharia mecânica. Também foi obtida uma grande infra-estrutura industrial e de serviços de construção e montagem, incluindo-se a instalação e operação de termelétricas. No início do Governo Militar (1964 a 1985), as companhias do setor de energia elétrica conseguiram recuperar sua capacidade de autofinanciamento, por meio do denominado realismo tarifário – que previa a aplicação de correção monetária sobre o ativo imobilizado das concessionárias de energia elétrica. A elevação das tarifas e os empréstimos estrangeiros favoreceram os investimentos do setor. O regime militar, com suas características de centralismo, beneficiou a atuação da Eletrobrás como agência planejadora e financiadora, além de controladora das empresas federais. O processo de aquisição de empresas estrangeiras foi marcado por conflitos e, em 1978, com a compra do Grupo Light, no governo Geisel, o Estado passou a se 212 responsabilizar integralmente pelos investimentos do setor elétrico. E isto, tanto pelo desinteresse da iniciativa privada, particularmente dos grupos estrangeiros monopolistas, quanto pelo caráter nacionalista dos dirigentes do Governo Brasileiro. Em 1967, o presidente Costa e Silva implantou o sistema nacional de eletrificação e a potência instalada no país atingiu 8.042 MW, acompanhando o crescimento da economia brasileira. Em 1968, o governo Federal constituiu a estatal Centrais Elétricas do Sul do Brasil S.A. – Eletrosul, subsidiária da Eletrobrás, e responsável pela construção e operação de usinas geradoras e de seu sistema de transmissão associado em toda a Região Sul do Brasil A Eletrosul passou a atender o estado do Mato Grosso do Sul, a partir de 1980, na época área de atuação de Furnas. Em 1969, o setor estava estruturado de maneira tal que a Eletrobrás executava a política de energia elétrica do Governo Federal, enquanto o Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – DNAEE se responsabilizava pela atividade normativa. A última grande concessionária federal a ser constituída, em junho de 1973, foi a Eletronorte – ou Centrais Elétricas do Norte do Brasil S. A – com área de atuação abrangendo a Amazônia Legal. A criação da Eletronorte ocorreu em um contexto internacional marcado pela primeira crise do petróleo, em que as restrições para a economia nacional foram imediatamente transferidas para o setor elétrico, à época em um momento de expansão representado pela construção das hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí. A criação da Eletronorte permitiu que a Eletrobrás operasse em todo o território nacional. O Comitê de Estudos Energéticos da Amazônia (Eneram), criado em 1968 para estudar o potencial hidrelétrico da Região Norte, já que o governo investia na geopolítica da região – de riqueza mineral marcante, principalmente em ferro e bauxita – se inseria na intervenção estatal durante o "Período Militar". O objetivo era promover o desenvolvimento econômico por meio de um grande avanço na infra-estrutura energética, 213 chegando-se a 1995 com uma capacidade instalada de aproximadamente 56.000 MW, com mais de 200 hidrelétricas, sendo 89 delas com potência instalada acima de 10 MW. Em julho de 1973, o presidente Médici sancionou a Lei nº 5.899, conhecida como Lei de Itaipu. Essa lei impunha a compra de energia elétrica da usina binacional pelas principais concessionárias das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, como conseqüência de um tratado com o Paraguai. Segundo esse tratado, os governos dos dois países se comprometiam a instalar 12.600 MW de potência no rio Paraná, entre Sete Quedas e Foz do Iguaçu, ou seja, o equivalente a 75% da capacidade de geração brasileira, à época. Nascia a usina Itaipu. A Lei de Itaipu dava à Eletrobrás, por meio de suas subsidiárias, a exclusividade da construção e operação de centrais geradoras e sistemas de alta tensão supra-estaduais. O primeiro choque do petróleo encontrou a Eletrobrás como a maior empresa do setor e o Governo Geisel, promovendo o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). A oferta de energia foi expandida para aumentar a competitividade industrial e fazer frente à crise mundial simbolizada pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP. Para tanto, seria necessário aumentar a exploração dos amplos recursos hídricos do país, o que significou expandir o setor em direção à Amazônia e projetar centrais nucleares em Angra dos Reis (RJ). Existiam projeções que apontavam um grande crescimento do consumo de energia elétrica na Região Sudeste e o possível esgotamento dos recursos hidrelétricos do país até o fim dos anos 1980. Geisel, em busca de outras fontes energéticas para o Brasil, assinou, em junho de 1975, um acordo de cooperação com a Alemanha para um programa de energia nuclear que incluía a construção de centrais nucleares, usinas de enriquecimento de urânio e indústrias de processamento do combustível atômico. 214 Para liderar o processo foi criada a Empresas Nucleares Brasileiras S.A. – Nuclebrás, em 1974. Também neste ano, o Governo criou a Reserva Global de Garantia ou RGG, um fundo administrado pela Eletrobrás, destinado a eliminar as diferenças que prejudicavam as políticas de investimentos nas regiões Norte e no Nordeste do país, permitindo a transferência de recursos de empresas do Sudeste para concessionárias daquelas regiões, cujos custos não as tornavam competitivas diante da tarifa nacional unificada. Com isso, o consumo de energia elétrica cresceu significativamente até o início da década de 1980. Grandes investimentos em geração e transmissão foram realizados e a potência instalada cresceu 2,5 vezes entre 1973 e 1982, chegando a 39.000 MW. Esse crescimento se deveu, principalmente, à Eletrobrás, por meio das suas empresas regionais, à Cesp, à Cemig e à Copel. O grande desenvolvimento do setor também permitiu o crescimento da indústria de equipamentos eletromecânicos. (Barbosa, 2001) Em 1982 foi criado o Grupo Coordenador de Planejamento do Sistema Elétrico – GCPS, um órgão colegiado coordenado pela Eletrobrás e com a participação de todas as concessionárias. O GCPS buscava a racionalização e o planejamento integral do setor, por meio da elaboração de planos com um horizonte de vinte anos. Um plano para dez anos , mais preciso e elaborado anualmente procurava definir os empreendimentos a serem realizados no Plano Nacional de Energia Elétrica - PNEE. A Eletrobrás, criada para planejar e coordenar a preparação dos planos nacionais para o setor, bem como gerenciar os instrumentos de financiamento para a implementação desses planos, centralizava os processos de tomada de decisão. O Plano 1990 foi elaborado em 1974 e nele estavam previstas a construção da Hidrelétrica de Itaipu e o inventário do potencial hidrelétrico da região amazônica. Nunca é demais lembrar que o planejamento centralizado estava entre as características marcantes do regime político vigente à época. O Plano 1990, revisado em 1978, originou o Plano 1995, contendo o potencial hidrelétrico das Regiões Norte e Nordeste e a possível interligação dos sistemas regionais de transmissão. A função do GCPS era integrar as diferentes concessionárias ao 215 planejamento da Eletrobrás, na busca de uma política para o setor e da legitimidade institucional. A partir de 1982, com a formulação do Plano 2000, o planejamento do setor elétrico brasileiro incorporou a variável ambiental – ainda que de forma pouco operacional. O setor elétrico, no início dos anos 1980, continuava a obter recursos externos para os seus grandes projetos. Quando esses recursos ficaram escassos por conta do contexto internacional, descontos na tarifa foram possíveis devido à capacidade ociosa dos sistemas e de retração do mercado. As elevadas taxas de inflação daquele período provocavam defasagem tarifária, fator importante para diminuir o autofinanciamento das empresas. Na segunda metade da década de 1980, o contexto inflacionário da economia brasileira agravou os problemas do setor elétrico. O Plano de Recuperação Setorial – PRS foi elaborado pela Eletrobrás para sanear financeiramente as concessionárias do setor. Esse plano, com o apoio do Banco Mundial, remetia a dívida externa do setor elétrico para o governo federal, mas a política anti-inflacionária adotada pelo governo o inviabilizou. A Constituição de 1988 causou modificações na área da produção de energia elétrica, ao extinguir o Imposto Único e o empréstimo compulsório para a Eletrobrás. Também elevou o imposto de renda das empresas do setor e criou as tarifas de compensação financeira de áreas inundadas, aumentando o custo operacional das empresas em um contexto de crise econômica. Criou-se um conflito de grandes proporções entre a Eletrobrás e as concessionárias estaduais. O governo Collor, em 1990, incluiu a Light e a Escelsa em seu Plano Nacional de Desestatização – PND, sob a alegação de melhoria de atendimento e redução de custos para o usuário, sinalizando com a primeira ação da recente tentativa de privatização do setor e, no mesmo ano, foi apresentado o II Plano Diretor de Meio Ambiente do Setor Elétrico, estabelecendo diretrizes para o tratamento de questões sócio-ambientais. 216 O quadro de crise na economia brasileira, no início da década de 90, fez com que a dívida das empresas públicas do setor aumentasse a valores próximos de US$ 5 bilhões. Esse fato inviabilizou as obras recomendadas pelo Plano 2010. O Governo Collor planejou uma grande reforma do setor, com a exigência de licitação para a construção de novas usinas e o estímulo à presença do setor privado na área de geração. Em junho de 1992, um momento de crise para o Presidente da República que levou ao seu impeachment, o Governo Federal incluiu a Escelsa e a Light no Programa Nacional de Desestatização (PND). De fato, o leilão de venda da primeira só seria realizado em 1995, no primeiro governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Mesmo assim, no fim do Governo Collor, o total de empregados da Eletrobrás e de suas empresas controladas já se encontrava reduzido em 20%, por conta dos chamados Planos de Demissão Incentivadas – PDVs. A política de redução da presença do Estado na economia continuou no Governo do Presidente Itamar Franco, de 1992 a 1994, período em que se iniciou nova reorganização institucional do setor elétrico. Em março de 1993, foram eliminadas a remuneração garantida e a equalização tarifária, de modo que as próprias empresas criassem um plano tarifário para períodos de três anos, sob aprovação do DNAEE. Nesse mesmo período, foi concluída a primeira fase da usina de Tucuruí, em 1992, e inaugurada a usina de Xingó, no rio São Francisco, em 1994. À época, a Eletrobrás e suas quatro subsidiárias regionais – Chesf, Furnas, Eletronorte e Eletrosul – respondiam por 55.500 MW de potência instalada que, somados aos 50% do total gerado por Itaipu, ou seja, a energia correspondente à cota brasileira daquele empreendimento binacional, totalizavam 91% da energia disponível no país. Isso não impediu a entrada das subsidiárias no Programa Nacional de Desestatização do Presidente Fernando Henrique, em 1995. Fernando Henrique modificou a legislação sobre serviços públicos, alterando até mesmo a Constituição, para condicionar concessões a processos de licitação e retirar os grandes consumidores do monopólio comercial das concessionárias, assegurando, inclusive, o livre 217 acesso aos sistemas de transmissão e distribuição. Esse processo de privatização do setor foi simbolizado pelo leilão de venda da Escelsa, em junho de 1995. Em 1995, duas leis entraram em vigor, com profundas modificações para o setor elétrico: a Lei no. 8.987/95 – criando condições de estímulo à participação de capitais privados e à competição na construção de novos projetos – e a Lei no. 9.074/95 – que trouxe bases legais para os grandes consumidores de energia interessados na compra de energia independentemente da empresa geradora da respectiva região. Em 1996, foi criada a Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel, órgão regulador do setor, bem como o Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS, o Mercado Atacadista de Energia – MAE e o Produtor Independente de Energia – PIE, privilegiando expansão do setor por intermédio de capitais privados. Aneel assumiu as funções do extinto DNAEE. Ainda em 1996, o Ministério das Minas e Energia e a Eletrobrás promoveram uma licitação destinada à escolha de empresas de consultoria para elaborar o Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro e empresas inglesas foram vencedoras45, sob alegação, de fontes governamentais, de que a experiência relativa à privatização do setor elétrico inglês foi determinante. A questão da minimização dos conflitos de interesses, pelo fato de o estudo ser feito por consultoria estrangeira, esteve sempre presente. Os críticos dessa decisão e das recomendações advindas do trabalho realizado apontavam o fato como uma violência praticada por um consórcio liderado por uma firma estrangeira contra as instituições brasileiras, especialmente no que se refere à independência do Congresso Nacional, lembrando que a reformulação das leis britânicas, antes da reestruturação do setor elétrico inglês, levou nove anos para se consumar e que esse fato garantiu uma transição que não feriu os interesses da sociedade inglesa. Os procedimentos de licenciamento ambiental, por exemplo, deveriam, segundo os consultores, sofrer ajustes para atender às necessidades do setor privado, fazendo com que o enchimento de reservatórios ou a ativação de usinas deixasse de depender da emissão de 45 Consórcio inglês Coopers & Lybrand 218 uma Licença Operacional depois de realizado o investimento. Essa operação visava facilitar a privatização do setor na medida em que os trabalhos do consórcio inglês levaram o governo a considerar que a reestruturação do setor de energia elétrica implicava dividir as empresas para a venda em separado dos blocos de ativos de geração. Em 1997, após a entrega do relatório final do consórcio inglês ao Ministério das Minas e Energia, o governo autorizou oficialmente a reestruturação da Eletrobrás e de suas empresas regionais. A reestruturação da Eletrobrás foi aprovada em 1998, juntamente com a cisão da Eletrosul, a proposta de se dividir Furnas, Chesf e Eletronorte. Em maio de 1998, foi sancionada a Lei Nº 9.648 visando à reestruturação da Eletrobrás e de suas subsidiárias. O Congresso Nacional elaborou um substitutivo que deu origem à redação final da lei e, assim foi criado o Mercado Atacadista de Energia – MAE, cabendo à Aneel definir as regras de participação nesse mercado. Extinguiu-se o Grupo Coordenador para Operação Interligada – GCOI na criação do Operador Nacional do Sistema - ONS. Ao Poder Executivo foi delegada a reestruturação da Eletrobrás e de suas subsidiárias Eletrosul, Eletronorte, CHESF e Furnas, com vistas à privatização. A reestruturação da Eletronorte previa a sua divisão em até seis empresas: i) duas para a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, relativamente aos sistemas elétricos isolados de Manaus e Boa Vista; ii) uma para a geração pela usina hidrelétrica de Tucuruí; iii) uma para a geração nos sistemas elétricos dos Estados do Acre e Rondônia; iv) uma para a geração no Estado do Amapá; e v) outra para a transmissão de energia elétrica. Em 1998, foram implantados 1.300 quilômetros de linhas de transmissão, unindo as linhas de Furnas às da Eletronorte, formando a interligação Norte-Sul, de tal maneira que, somada a capacidade geradora das quatro subsidiárias com a de Itaipu, a Eletrobrás detinha 52% da potência total instalada no país, operando cerca de dois terços da malha principal de transmissão de energia elétrica e, em 1999, o sistema apresentava 64.700 MW de capacidade, sendo 58.500 MW provenientes das hidrelétricas. No ano de 2000, entrou em operação a usina nuclear de Angra 2 que, somada à Angra 1, totalizou 2.000 MW de geração termonuclear. 219 O ONS, instituído em lugar do GCOI, sofreu duras críticas, em função do chamado “Apagão” de março de 1999, no qual a dificuldade para restabelecer o sistema teria sido resultante da inoperância daquele novo órgão. O novo contexto institucional ainda exigiria a criação, em 1999, do Comitê Coordenador do Planejamento da Expansão (CCPE), justamente para comandar o planejamento da ampliação do sistema, assumindo as tarefas do antigo Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas Elétricos (GCPS). Os setores contrários à privatização se posicionaram no sentido de defender a valorização da experiência adquirida pelo Brasil, ao longo de mais de um século, no desenvolvimento de seu setor elétrico.A condição de monopólio natural para a transmissão de energia, a condenação da possível implantação de um parque termelétrico à base de UTE’s alimentadas a gás natural ou outros combustíveis fósseis, o aproveitamento hidrelétrico vinculado ao uso compartilhado dos recursos hídricos e a repulsa ao conceito neoliberal de minimização do Estado foram outros pontos de discórdia. No modelo proposto pelo consórcio inglês, os encargos relativos a empreendimentos de difícil retorno deveriam ser atribuídos à Eletrobrás e o pouco interesse demonstrado pela iniciativa privada em participar de licitações de usinas hidrelétricas de grande porte criou um impasse no setor, à época. O Plano Decenal de Expansão 2000/200946 considerou um alto crescimento do consumo de energia elétrica, com taxas superiores às da economia e a predominância hidrelétrica, com usinas de grandes reservatórios de regularização plurianual. Mas o grande potencial hidrelétrico, capaz de assegurar energia elétrica ao Brasil nas próximas duas décadas, não impediu que se considerasse um programa termelétrico de transição, sem uma análise consistente de uma possível expansão econômica e ambientalmente viável desse tipo de geração. 46 Aprovado por meio da Portaria 084 do MME, de 17 de abril de 2000, que aprova o Plano Decenal de Expansão - PDE 2000/2009 do setor elétrico, que fica incorporado ao Plano Nacional de Energia Elétrica 1993/2015 - Plano 2015. 220 Todavia, a predominância das hidrelétricas de reservatórios de regularização plurianual e pertencentes a diferentes empresas, cria a necessidade de integração para otimizar o sistema, com aumento da eficiência e minimização de custos de fornecimento da energia elétrica. Entre as alternativas para o desenvolvimento, geração e atendimento energético, estão a utilização do gás natural e as Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCH´s, sendo estas uma alternativa de produção de energia renovável de uso localizado em áreas isoladas ou em pequenos centros agrícolas e industriais. No entanto, os conflitos do setor elétrico brasileiro, para os objetivos deste trabalho, podem ser resumidos em dois: o dilema Estado versus Iniciativa Privada e a questão da viabilidade sócio-ambiental de seus empreendimentos a ser aferida na obtenção das licenças ambientais, visto que essas licenças são vista hoje pelo setor elétrico como mais um processo burocrático a emperrar a sua expansão. Ambos os conflitos, diga-se de passagem, não são exclusivos do setor elétrico nem tampouco do setor de energia, como um todo. Inserem-se eles, na verdade, em um conjunto de contradições que impregna todo o setor produtivo nacional. A Eletrobrás, em 1986, criou o Conselho Consultivo de Meio Ambiente - CCMA, um órgão concebido com o objetivo de reunir consultores e especialistas para assessorar a Diretoria Executiva da Eletrobrás com relação aos problemas ambientais. Nesse mesmo ano, houve a elaboração de dois documentos setoriais: o Manual de Estudos de Efeitos Ambientais dos Sistemas Elétricos e o Plano Diretor para a Melhoria do Meio Ambiente nas Obras e Serviços do Setor Elétrico. Em 1986, a legislação ambiental passou a exigir um relatório sobre o impacto no meio ambiente das centrais acima de 10 MW de potência e, no ano seguinte, a Eletrobrás criou seu Departamento de Meio Ambiente, inicialmente uma divisão. A criação da Divisão de Meio Ambiente da Eletrobrás foi voltada para a tarefa de estabelecer diretrizes e metodologias capazes de orientar o planejamento das políticas ambientais do Setor Elétrico. 221 Em 1987, ano da elaboração do Plano Nacional de Energia Elétrica 1987/2010, uma comissão responsável pela revisão institucional do setor foi criada, o Revise e, em 1988, foi criado o Comitê Coordenador de Atividades de Meio Ambiente do Setor Elétrico – Comase, do qual faziam parte a holding, o DNAEE e 25 concessionárias. Nesse momento, o setor elétrico, teoricamente, assumia a responsabilidade de evitar os danos causados pelos seus projetos em várias regiões do país. Entretanto, o conflito perdurava: enquanto técnicos da área ambiental eram contratados, em uma escala nunca antes utilizada pelo setor, a cultura tradicional predominante nas empresas provocava reações de engenheiros e técnicos, com dezenas de anos de atuação, contra os recursos despendidos com as questões ambientais, consideradas, como já apontado, meros entraves para as empresas. Não se pode negar, todavia, que, nessa época, eram dados os primeiros passos para a criação de um suporte institucional, por parte da estrutura estatal responsável pela gestão ambiental, para as políticas de geração, distribuição e transmissão de energia começava, catalisado pela Resolução Conama 006/87, que , além de definir exigências para a concessão de licença, compatibilizou as etapas específicas da realização de projetos Elétricos com as de licenciamento previstas na Resolução Conama 001/86. As características desta pesquisa determinam uma ênfase para a criação, em 1988, do Comitê Coordenador das Atividades do Meio Ambiente do Setor Elétrico - Comase, uma instância deliberativa composta por representantes da Eletrobrás, do DNAEE e das empresas concessionárias federais e estaduais. Como enfatizado anteriormente, este investigador foi membro do Comase, atuando no grupo de trabalho (GT) que trabalhou com os mecanismos de interação do setor com a sociedade. O Plano Diretor de Meio Ambiente do Setor Elétrico 1990/92 e o Plano Diretor do Meio Ambiente do Setor Elétrico 1991/1993, ambos elaborados pela Eletrobrás, são documentos que contribuíram para que, nessa época, o setor adotasse parâmetros bem definidos para os tipos de estudos a serem realizados. Os estudos de curto prazo, previstos 222 para um período de 10 anos, detalhavam os planos de obras dos primeiros cinco anos e definiam os orçamentos plurianuais de investimentos e as fontes de recursos a serem utilizadas. Os estudos de médio prazo abrangiam um período de 15 anos e definiam os planos de expansão das empresas regionais e estaduais, e os de longo prazo, para um período de até 30 anos, se referiam às principais questões estratégicas associadas ao suprimento de energia elétrica. Também eram claras, ao menos para os técnicos do setor, as etapas de um projeto hidrelétrico. Os Estudos de Inventário analisavam as alternativas de localização de um determinado empreendimento em uma bacia hidrográfica, sendo que o planejamento setorial passava a trabalhar com o custo real do empreendimento, incluindo a variável ambiental. Teoricamente, do ponto de vista sócio-ambiental, a etapa de inventário deve ser claramente identificada, no setor elétrico, pois representa a etapa em que as implicações de possíveis projetos alternativos poderão ser comparadas preliminarmente, antes que estejam comprometidos recursos significativos com a análise detalhada de um projeto específico. Os Estudos de Viabilidade são posteriores, incluem os aspectos de usos múltiplos de recursos hídricos e, a partir do Manual de Estudos de Efeitos Ambientais, de 1986, passaram a incluir quatro planos: de levantamentos, de desapropriação, de enchimento e de utilização. O Projeto Básico (PB) detalha o anteprojeto elaborado na etapa de viabilidade, com as especificações de construção e de equipamentos, bem como os planos e programas necessários para lidar com os impactos ambientais da obra. No Projeto Executivo (PE), etapa correspondente à construção propriamente dita, são implementados os planos e programas previstos e, na fase de Operação, o monitoramento dos planos e programas executados durante a operação do empreendimento. 223 As mudanças ocorridas no setor elétrico brasileiro, no sentido da inclusão das questões sócio-ambientais no planejamento setorial, foram conseqüência de um quadro institucional e legal que será descrito mais adiante. Lembremo-nos, contudo, de que essas mudanças não foram derivadas de reflexões internas ao setor e, sim, uma adaptação, até certo ponto açodada, a um quadro de redemocratização nacional e – segundo alguns dos entrevistados deste trabalho – às pressões de organismos internacionais de financiamento, como o Banco Mundial. Podemos reforçar essa visão com o fato de que, no Governo Sarney, as contratações para o Serviço Público Federal, incluídas aí as empresas estatais, estavam proibidas. Uma exceção foi aberta para que fossem estruturados os departamentos de meio ambiente das empresas do setor elétrico, como parte das exigências para a liberação de um empréstimo internacional para novos projetos. Dessa mesma época é a elaboração do Manual de Estudos de Efeitos Ambientais dos Sistemas Elétricos – julho 1986 – que estabelecia as diretrizes gerais para o estudo dos aspectos ambientais dos sistemas elétricos nas etapas de planejamento e operação. O Manual igualmente incluía aspectos relativos à elaboração dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e dos Relatórios de Impacto Ambiental (Rima), tornados obrigatórios pela Resolução Conama 001/86. O primeiro Plano Diretor para Conservação e Recuperação do Meio Ambiente nas Obras e Serviços do Setor Elétrico – I PDMA, de novembro de 1986, procurava sistematizar as diretrizes a serem adotadas para o tratamento da questão ambiental. Revisado em dezembro de 1987, o plano trouxe recomendações para a implantação e operação de um sistema de planejamento e gestão ambiental para setor elétrico, definindo como fundamental a introdução da questão ambiental como referencia básica para o planejamento do setor elétrico e priorizando, entre outros aspectos, as questões da informação e da participação da sociedade, além da inserção regional. 224 A economia de enclave tem como característica a exploração intensiva dos recursos de uma determinada região, sem que haja uma compensação que se materialize em impactos econômicos ou sociais positivos para a sociedade local. Considerada como uma das causas do incipiente desenvolvimento da maioria dos países latino-americanos, essa modalidade de atividade econômica é, sobretudo, socialmente perversa. No entanto, mesmo que se adote uma visão pragmática e tradicional sobre a questão, as alternativas que a cultura de enclaves oferece se apresentam como pouco sábias diante da tensão e da atenção associadas aos grandes empreendimentos na Amazônia. Assim, a alternativa do conceito de Inserção Regional surgiu como uma opção que une a viabilização econômica do empreendimento com uma expectativa favorável da população da região de influência, haja vista ser esse um conceito que, implementado, coloca o empreendedor diante do desafio de criar condições de dinamização da economia regional e contribuir para um novo modelo de desenvolvimento. A Inserção Regional é uma medida do modo como um empreendimento se insere ou será inserido na região considerada. O conceito se materializa em um estudo temático realizado por meio de consultoria contratada pela Eletrobrás, de 1987 a 1989. O ponto de partida é estabelecido com a premissa de que todo empreendimento hidrelétrico está associado a custos cujo território de incidência é, na ação tradicional, distinto daquele dos benefícios proporcionados. Neste caso, a região que usufrui os benefícios não é a mesma daquela que sofre as conseqüências dos custos, e os interesses e anseios das populações favorecidas pelos benefícios não são os mesmos daquelas populações impactadas pelos referidos custos. Com isso, o empreendimento passa a sofrer de uma rejeição por parte da sociedade onde ele se desenvolve, pois a percepção das populações é de que estão sendo atendidos os interesses e anseios que não são necessariamente os seus. A Inserção Regional se apresenta como um instrumento de mediação do conflito surgido com a implementação de um dado empreendimento e de legitimação e viabilização sócio-política do mesmo. Almeja integrar, no caso de empreendimentos hidrelétricos, a usina à região onde for instalada e ampliar a relação benefício/custo desta usina na ótica 225 regional, concebendo o empreendimento como um indutor do desenvolvimento da região. Desse modo, o desenvolvimento auto-sustentado da região é incentivado pela incorporação, no processo de planejamento, implantação e operação de empreendimentos elétricos, de um conjunto de princípios, posturas, estratégias e ações. O conceito de Inserção Regional pressupõe a minimização de custos, a ampliação de benefícios, e a criação e manutenção das oportunidades de desenvolvimento no âmbito regional, caracterizado por conflitos de interesses. Propõe, também, a internalização, na área de influência do empreendimento, de um número tão expressivo quanto possível de benefícios indiretos associados à sua implantação. Uma visão limitada do processo leva à percepção de que apenas benefícios são obtidos nesse tipo de projeto, como a energia elétrica gerada. Entretanto, além dos custos diretos como bens e serviços utilizados na implantação e operação do empreendimento, as externalidades negativas decorrentes dos impactos sócio-ambientais são significativas, mormente em empreendimentos situados na Região Amazônica. Assim, a Inserção Regional se estrutura como uma equação na qual as variáveis são a mitigação dos impactos negativos, a compensação desses impactos e a potencialização dos benefícios advindos da implantação do projeto. Um Plano de Inserção Regional deve criar condições de contribuir para a dinamização da economia local a partir da concepção da multiplicação de benefícios como: i) os usos múltiplos da água e do reservatório; ii) o produto adicional decorrente do acréscimo de atividade produtiva proporcionado pela energia elétrica gerada; iii) a demanda adicional por bens e serviços criada pela população vinculada ao empreendimento; e iv) a demanda adicional proporcionada pelos bens e serviços necessários á implantação e operação do empreendimento, entre outros. O estabelecimento de parcerias institucionais e sociais, a canalização de investimentos destinados a fortalecer a base sócio-econômica da região, a absorção, pela 226 região dos benefícios gerados pelo empreendimento, a integração do empreendimento às peculiaridades da região e a minimização das interferências ambientais, econômicas e sociais decorrentes da implantação da usina são as principais diretrizes de um Plano de Inserção Regional. Observe-se que os referenciais teóricos acima descritos são, evidentemente, resultantes da evolução do pensamento ambiental brasileiro dentro de um setor que sofreu pesados ataques ao longo de sua atuação e, ao mesmo tempo, sempre trabalhou com um planejamento de longo prazo, como poucos (ou, talvez, nenhum outro) setores da economia brasileira. Absorvendo quadros técnicos, seja sob a forma de consultoria ou de parcerias com instituições científicas de referência, o Setor Elétrico demonstrou, na incorporação do conceito de Inserção Regional, o resultado da dialética inerente aos conflitos sócioambientais. De fato, a tentativa de romper com o modelo de enclaves por meio da Inserção Regional do empreendimento é um avanço considerável na história do setor elétrico brasileiro. Entretanto, a evidência de que a negociação do empreendimento com a sociedade está sendo encaminhada em novas bases surgirá (ou não) a partir da utilização de um instrumento de medição que materialize os resultados desse esforço de comunicação recíproca e pró-ativa. Quais atores foram efetivamente considerados e ouvidos? De que modo foram passadas as informações? De que modo foram incorporados os questionamentos das comunidades ao EIA e ao Rima? Após a elaboração do I PDMA, o Comitê Consultivo do Meio Ambiente – CCMA – materializou a primeira iniciativa do setor elétrico para incorporar às discussões sobre o processo de tomada de decisão e planejamento do Setor, especialistas que não faziam parte de seu quadro técnico. A análise do I PDMA feita por esse grupo produziu críticas à pretensão de se utilizar a Região Amazônica para a produção da energia elétrica a ser apropriada em outras regiões do País. Também foi sugerida a adoção, pelo setor elétrico, de mecanismos institucionais capazes de garantir maior transparência e de tornar públicos os processos de tomada de decisão. 227 A elaboração, no início da década de 90, do II Plano Diretor de Meio Ambiente – II PDMA – deu seqüência às propostas do I PDMA, definindo diretrizes e princípios para a política ambiental do setor, tanto no âmbito do planejamento quanto nas diferentes etapas de seus empreendimentos, harmonizando suas propostas com a legislação ambiental. O II PDMA destaca a viabilidade sócio-ambiental dos empreendimentos, sua inserção regional e a transparência do processo de tomada de decisão, sugerindo a adoção de um ciclo de planejamento “contínuo, preventivo, adaptativo, interativo e participativo” e a utilização de uma metodologia específica para os estudos sócio-ambientais. Na etapa de inventário, as questões sócio-ambientais seriam as principais referências para a escolha de uma dentre várias alternativas de localização do projeto; na etapa de viabilidade, custos e benefícios econômicos e financeiros seriam priorizados; na etapa de projeto básico, adotarse-ia uma estratégia preventiva voltada para a implementação de ações e programas necessários; a fase do projeto executivo destacava o monitoramento de sistemas de controle; e, na operação, a articulação entre as ações cabíveis, as concessionárias federias e estaduais, os usuários dos recursos naturais utilizados e os parceiros institucionais envolvidos na gestão ambiental do empreendimento. O II PDMA apontava para a necessidade de uma articulação institucional que viesse a permitir o relacionamento com a sociedade e para o financiamento de programas sócioambientais que, atendendo à legislação ambiental, fossem voltados para a redução dos impactos associados ao empreendimento. No papel, o setor propunha uma mudança da atitude centralizadora, orientada por critérios econômico–financeiros e de engenharia, para um processo participativo que envolvesse os diferentes atores sociais no trato das questões sócio-ambientais. Essa mudança foi severamente perturbada pela discussão em torno do processo de privatização do setor, na segunda metade de 1995, e por sua possível reestruturação. A década de 1990 teve como marcante a visão da ampliação do espaço da iniciativa privada face às dificuldades de o Estado assumir os investimentos necessários à expansão do setor, 228 o que representou o significativo afastamento do Estado das atividades relacionadas com o setor elétrico. Além disso, as antigas questões de licenciamento ambiental, enfrentadas pelo setor, não haviam sido resolvidas, ainda. O licenciamento de usinas hidrelétricas em operação emperra o trabalho do Ibama, somando, em abril de 2004, 33 mil MW, dos 39 mil MW em análise. A regularização dessas usinas gera um acúmulo significativo de trabalho naquele instituto e, segundo dados do órgão, estas unidades representam mais de 84% dos processos analisados atualmente. A diretoria de licenciamento do Ibama considera uma realidade histórica esse problema, porque a legislação ambiental da época da entrada em operação dos empreendimentos hidrelétricos não exigia as licenças. Há passivos ambientais que precisam ser resolvidos e isso consome muito tempo.47 Na época, abril de 2004, entre as hidrelétricas sem licença estavam, por exemplo, usinas importantes como Cachoeira Dourada e Sobradinho. Os empreendimentos em implantação somavam 6 mil MW aguardando licenciamento. Os projetos licitados aguardando aprovação de viabilidade técnica (licença prévia) montam 2.800 MW de capacidade instalada e, desse total, mais de um terço diz respeito à hidrelétrica de Estreito, que tem 1.087 MW de potência. Em 2003, o Ibama não concedeu nenhuma licença prévia para usinas e os empreendimentos com LP que dependem de autorização para iniciar obras somam 932 MW. As unidades que buscam licença de operação têm 2.430 MW de capacidade instalada e o próprio órgão reconhece, em parte, as críticas dos empresários em relação à morosidade dos processos. 47 Em artigo de Roberto Gonzáles. Sítio www.canalenergia.com.br . Acesso em 16/4/2004. 229 No primeiro semestre de 2004, ainda faltava capacitação para que o Ibama e os órgãos ambientais estaduais pudessem simplificar e agilizar o processo de licenciamento ambiental. Segundo o Ibama, maior qualificação dos técnicos, organização de procedimentos e realização de um concurso para aumentar o quadro de funcionários é parte da solução. Na mesma entrevista citada acima, o diretor do Ibama afirma que o ideal é antecipar os possíveis problemas na implantação das obras para solucioná-los rapidamente e que essa discussão deve ser levada para as políticas públicas, nas quais o planejamento é fundamental. As falhas no planejamento da infra-estrutura criaram conflitos sociais e ambientais com os projetos hidrelétricos da atualidade. Para o Ibama, os problemas são resultantes do fato de que vários projetos foram colocados sem avaliar sua viabilidade ambiental e que o procedimento anterior ao novo modelo do setor elétrico era repassar o projeto para a iniciativa privada, que já iniciava os investimentos, percebendo somente depois os problemas ambientais do empreendimento. Entretanto, algumas das causas desses problemas poderiam ser percebidas a partir de análises empreendidas pelo próprio corpo de técnicos e gerentes do setor elétrico brasileiro. Cascaes48, por exemplo, considera que, no Brasil, o planejamento da expansão da oferta de energia elétrica tem sido dominado por especialistas em hidrologia e economistas e que dificilmente descobrimos nos critérios e nas decisões do governo e das empresas a presença forte do pessoal “elétrico”. Para ele, as usinas hidrelétricas propostas na primeira fase da expansão do setor elétrico brasileiro eram óbvias demais, deseducando o pessoal que decidia, sendo possível 48 João Carlos Cascaes, consultor e ex-presidente da Copel. Artigo disponível em www.canalenergia.com.br. Acesso em 12.04.2004. 230 perceber a recorrência a visões energéticas simplificadas, desprezando-se análise integral sob o ponto de vista probabilidade de sucesso ou falha. Em modo de pensar que, no entendimento deste analista, revela convergência com as propostas de Kai N. Lee, Cascaes afirma que: O mundo probabilístico é fantástico mas exige bancos de dados bem feitos, conhecimento amplo, inteligência superior e muita honestidade e coragem para que os estudos não se pervertam e saiam fazendo recomendações absurdas. (...) Não devemos aceitar usinas sendo distribuídas por acordos políticos ou interesses de empreiteiras e fabricantes mas, sim, sob rígida análise dos efeitos dessas instalações no sistema. Infelizmente o tempo é curtíssimo. O governo federal e o Brasil não poderão esperar muito. Precisamos, de imediato, de um programa especial de construção de usinas. O autor imagina a existência de profissionais blindados contra as más ingerências políticas comandando esse processo e considerando os custos sempre elevados do setor elétrico, destaca a necessidade de estudos de planejamento completos, detalhados, com considerações técnicas firmes – sejam elas energéticas, econômicas, matemáticas, probabilísticas, elétricas ou ambientais – e menor interferência de esquemas prejudiciais ao povo brasileiro: Não podemos instalar usinas hidroelétricas em lugares onde não exista água, termoelétricas a gás sem gasodutos e gás em abundância, aerogeradores sem vento etc... Nos erros do passado procuramos entender as razões dos equívocos. De uma coisa temos certeza, quem decidiu não era “burro” nem ignorante. E continua: O planejamento terá sua Empresa de Planejamento Energético. Não era necessária, bastava a coordenação firme do MME sobre as entidades que comanda para ter resultados provavelmente melhores do que conseguirá numa empresa que deve estar despertando interesses políticos e comerciais de toda espécie. Centrada em Brasília, essa será mais uma organização sujeita a lobistas e atenções perigosas. O planejamento distribuído seria mais democrático, transparente e despertaria maior 231 atenção de todos. Lamentavelmente a opção foi outra. Esperamos que dê certo. Em maio de 2004, o Ministério de Minas e Energia trabalhava com um conjunto de 30 usinas para serem leiloadas, ainda nesse ano de 2004. Para conseguir realizar o leilão com as licenças ambientais e sem o risco de ter obras embargadas no futuro, o MME precisa negociar com o Ministério Público uma alternativa para facilitar o licenciamento. Para evitar um desabastecimento de energia elétrica em 2007 – de modo semelhante ao que ocorreu em 2001 - o país precisaria investir, segundo o MME, entre US$ 3 bilhões e US$ 4 bilhões por ano em geração, transmissão e distribuição. O risco de racionamento pode aumentar se faltarem chuvas nos próximos anos, fato que, associado ao crescimento previsto para o país - da ordem de 5% ao ano - pode trazer prejuízos ao Brasil. Um estudo sobre o suprimento de energia na região Sudeste realizado para o Conselho Empresarial de Energia da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro – Firjan49, resumido pelo economista Adílson de Oliveira, ressalta que, embora os reservatórios das hidrelétricas estejam praticamente cheios, descartando o risco imediato de falta de energia, ainda não foram estabelecidas as regras que vão garantir os projetos de implantação das hidrelétricas. Esse estudo assinala que "Para o setor elétrico, o ano de 2007 já está no horizonte: é amanhã. E não podemos depender de um fato fortuito como a chuva". Para Oliveira, os novos projetos - que dependem do anúncio do novo marco regulatório para o setor elétrico - estão atrasados e, se houver um período crítico, sem chuvas suficientes, em 2005, haverá um racionamento de 7% no Sudeste e de 10% no Nordeste já em 2006. Se não chover o suficiente em 2006, o racionamento, em 2007, será ainda mais grave: 12% no Sudeste e 17% no Nordeste, afetando também o Sul e o Norte do país. Os novos projetos para a criação de termelétricas e hidrelétricas precisam garantir o acréscimo de 4.000 MW por ano ao sistema, assegurando o fornecimento. Para o 49 Disponível em http://www.firjan.org.br. Acesso em 23 de julho de 2004 232 atendimento dessa meta, as usinas termelétricas, com prazo médio de construção de três anos, talvez sejam mais adequadas às urgências de momento, uma vez que as hidrelétricas requerem maiores investimentos e prazos de construção. O fato é que o Brasil, com suas características hidrológicas, tem um grande potencial energético, mas corre o constante risco de desabastecimento porque somente toma providências emergenciais diante de situações de crise, ao invés de adotar medidas preventivas, segundo a Firjan. Em paralelo, o Ministério do Meio Ambiente acha que está em curso uma campanha de “vilanização” do setor ambiental50. O secretário-executivo do ministério, Cláudio Langone considera que o setor tem sido apontado como uma espécie de “empata-projeto”, já que, freqüentemente, investimentos em infra-estrutura esbarram no licenciamento ambiental. Entretanto, segundo o Secretário Executivo, há outros culpados pelo lento andamento dos projetos. Langone e o diretor de licenciamento do Ibama, Nilvo Silva, consideram que a resposta dos órgãos às críticas de que estariam impedindo ou criando dificuldades excessivas aos investimentos em estradas, portos e hidrelétricas, por exemplo, é de que há uma enorme confusão no país sobre esta área, existindo uma série de motivos que leva ao atraso do licenciamento. O Ibama tem atribuições demais e funcionários de menos. Segundo Langone e Silva, o órgão administra 10% do território nacional e, para cuidar de suas atribuições, são poucos os técnicos e o Ministério Público Federal entra com ação contra qualquer obra que tenha licença concedida por órgãos estaduais. Segundo Langone, o Ministério Público tem extrapolado sua área de atuação, ao procurar trazer para nível federal todos os projetos para poder atuar sobre eles. As ações do MP e de outras ações civis públicas estão produzindo o que chama de “excesso de judicialização da questão ambiental”. 50 Informações prestadas ao jornal O Globo – coluna Panorama Econômico – de 24/07/2004 233 Convencidos de que a opinião pública tem sido mal-informada sobre os problemas ambientais e que, por isso, afirma-se sempre que "tudo é culpa do Ibama", que "implica com tudo", até mesmo com uma pequena hidrelétrica, os representantes do governo consideram que muitas vezes, o fato de haver várias pequenas centrais hidrelétricas numa mesma bacia pode ser pior que ter uma média e, por isso, o melhor é avaliar o impacto ambiental da bacia inteira e afirmam: As hidrelétricas continuam sendo, ecologicamente, a melhor opção de matriz energética. As fontes alternativas de energia acabam sendo interessantes apenas de forma específica para regiões diferentes, como é o caso da biomassa, na Amazônia; da solar, nas comunidades isoladas. Não há dúvidas sobre a energia hidrelétrica ser renovável ou não, apenas se discute se ela é sustentável. Quando o projeto chega, nem sempre está bom tecnicamente e, assim, temos que pedir novos dados. Mas trabalhamos com prazos. Quando se trata de uma hidrelétrica pequena, de 5 a 10 megawatts, ele é de 6 meses. Em casos mais complexos, o prazo é de um ano. Na média, tem ficado em 1 ano. (...) A judicialização cria incerteza sobre o tempo ou sobre a decisão a ser tomada e encarece os projetos de investimento. (Trecho da citada entrevista) No próximo capítulo, essa questão será novamente explorada – dentro do contexto do conflito de Belo Monte. 4.3 OS CONFLITOS NO SETOR AMBIENTAL A história recente dos conflitos ambientais no Brasil pode ser divida, apenas para os propósitos desta pesquisa, em quatro períodos distintos. Em um primeiro momento, sob os ecos da Conferência de Estocolmo, em 1972, começaram a despertar algumas consciências na elite intelectual do país. Majoritariamente constituído por atores com um contato cultural com a realidade acadêmica européia, esse grupo se moveu, timidamente, em um cenário de grandes projetos e obras. Esses 234 empreendimentos estavam inseridos na geopolítica concebida por aqueles que compunham, para uns, a ditadura militar e, para outros, um regime cujo poder efetivo se encontrava dividido entre os industriais do Sul e do Sudeste e os coronéis da seca do Nordeste brasileiro. Nesse cenário, apesar de a imprensa alternativa – então representada por jornais como “O Pasquim”, “Opinião” e “Movimento”, entre outros, e revistas como “Veja” e “Realidade” – denunciar agressões ambientais, os defensores da causa eram, por uns, identificados como combatentes de uma “guerra menor” e vistos, muitas vezes, como trânsfugas diante do verdadeiro inimigo, o regime de exceção. Por outros, os ambientalistas eram classificados como "eternos descontentes que atrapalham o progresso do país". Esse primeiro período da história do chamado ambientalismo brasileiro ficou simbolicamente representado pela figura do “bicho grilo”. Este estereótipo foi criado, à época, para representar esse personagem que vivia em comunidades alternativas, consumia o que produzia ou o produto de trocas, muitas vezes realizadas com a comunidade tradicional de localidades-símbolo como Visconde de Mauá e Lumiar, no Rio de Janeiro e Arembepe, na Bahia. A defesa do meio ambiente era, então, percebida pela sociedade em geral como uma “coisa de hippie”, apesar de o Partido Comunista Brasileiro, PCB, ter incluído em suas bandeiras de luta contra o regime vigente a defesa da Amazônia. O segundo momento do processo surge discreta e gradativamente a partir do envolvimento crescente da imprensa, da associação com grupos e organizações estrangeiras de defesa da causa ambiental e da ocorrência de danos ambientais causados por grandes empresas de mineração, fabricação de papel ou de produtos químicos. Esse período compreende, também, o processo de redemocratização do Brasil, culminado em 1985, com a posse de um presidente civil, José Sarney. Entre os dois primeiros períodos aqui considerados não existe um claro divisor de águas. Ao contrário, houve uma superposição temporal dos dois processos, no qual os “alternativos” se dividiram, gradativamente, em dois grupos principais: aqueles que 235 prosseguiram em sua trajetória comunitária, afastada dos grandes centros urbanos, e aqueles que retornaram às metrópoles, oxigenados pela relação íntima e cotidiana com o meio ambiente em condições de pequena ação antrópica. Esse segundo grupo, também de modo gradativo, passou a contribuir com quadros mais ativos no combate pelas causas ambientais e os grandes projetos do Governo Federal, em especial na Amazônia, passaram a ser seus alvos prioritários. Durante o período, os processos de licenciamento ambiental de obras e empreendimentos potencialmente impactantes ao meio ambiente foram estruturados com base na lei n. º. 6.938, de 31 de agosto de 1981, lei essa que estabelece um conjunto de normas e procedimentos ordenado de maneira a permitir que a participação popular seja etapa determinante na decisão da implantação ou não dos empreendimentos - sejam eles públicos ou privados. Em seu artigo 4º., V, a lei 6.938/81 enfatiza que a Política Nacional do Meio Ambiente visará: À difusão de tecnologias de manejo do meio ambiente e à formação de uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico. No entanto, no âmbito federal, o setor governamental ainda se estruturava, durante o segundo período, de forma a ter as questões ambientais analisadas por pelo menos quatro órgãos: a Secretaria Especial de Meio Ambiente – Sema, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, a Superintendência da Borracha – Sudhevea e a Superintendência de Desenvolvimento da Pesca – Sudepe. Cada um desses órgãos possuía a atribuição de regular aspectos diferentes do quadro ambiental brasileiro, desde poluição atmosférica a manejo florestal, por exemplo. Evidentemente que superposições, impasses e, até mesmo, conflitos de atribuições não eram raros durante o período. 236 É desse período uma famosa anedota, contada pelos técnicos da área, a respeito da “crise de identidade” que teria uma tartaruga que nadasse em águas de um rio cujas margens abrigassem respectivamente uma floresta com e sem exploração de borracha e apresentasse risco de poluição de suas águas por produtos químicos de qualquer outro projeto na região. Seria a tartaruga “pertencente” ao IBDF (florestas sem seringueiras), à Sudhevea (florestas com seringueiras), à SEMA (poluição das águas) ou à Sudepe (animal passível de predação pela pesca)? A anedota representa, simbolicamente, o entrave provocado pela fragmentação burocrática vigente, mas pode ser interpretada, nos dias de hoje, como a falta de percepção, por parte da sociedade brasileira, do papel regulador do Estado no trato das questões ambientais. Na verdade, a indecisa tartaruga pode ser hoje percebida como a própria população brasileira. O terceiro período aqui considerado tem início, ainda no Governo Sarney, por ocasião da criação do Ibama. Como já discutido, o Ibama resulta da fusão da Sema, do IBDF, da Sudhevea e da Sudepe, e passa a ser reconhecido e identificado, progressivamente pelo conjunto da população brasileira, como responsável direto pela fiscalização e pelo licenciamento ambientais. Enfrentando dificuldades estruturais provocadas pelas históricas deficiências do Setor Público no Brasil, o Ibama se organizou, inicialmente, como um conjunto não-sinérgico e desarticulado, mas que começou a introduzir, por intermédio de alguns documentos e procedimentos de licenciamento ambiental, componentes de participação popular nos processos de tomada de decisão ambiental. Também nesse período já havia sido criado o Conama, que relaciona no texto da resolução 001 de 23.01.86, as definições, responsabilidades, critérios básicos e diretrizes gerais para o uso e a implementação da Avaliação de Impacto Ambiental como um dos 237 instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, condicionando, em seu Artigo 2º, o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente à elaboração de estudo de impacto ambiental, posteriormente conhecido pela sigla EIA e o respectivo relatório de impacto ambiental, o Rima. Instrumento da Política Nacional de Meio Ambiente, o EIA é um documento denso, de natureza e linguagem técnica – em alguns casos, científica. Tem por objetivo permitir que especialistas de diferentes áreas do saber ambiental possam ter acesso às alternativas tecnológicas e de localização do projeto, aos limites da área geográfica a ser afetada, aos planos e programas governamentais relativos à referida área e - principalmente - à identificação e avaliação dos impactos ambientais gerados na implantação e operação do projeto. São objetivos do EIA: a prevenção do dano ambiental, a transparência administrativa, a consulta aos interessados e a motivação da decisão ambiental. Os procedimentos dos Estudos de Impacto Ambiental exigem que, além da transparência, exista a participação, pois, em caso de decisão ambiental arbitrária, o interesse público não será atendido, mesmo que absolutamente transparente (Milaré, 1998). Assim, no parágrafo único do Artigo 9º, a resolução Conama 001 determina que: O Rima deve ser apresentado de forma objetiva e adequada à sua compreensão. As informações devem ser traduzidas em linguagem acessível, ilustradas por mapas, cartas, quadros, gráficos e demais técnicas de comunicação visual, de modo que se possam entender as vantagens e desvantagens do projeto, bem como todas as conseqüências ambientais de sua implantação. O EIA obedece a diretrizes previstas em lei que, se não cumpridas, podem provocar sua invalidação. Desse modo, requisitos mínimos são exigidos para disciplinar o conteúdo do documento e, além disso, instruções adicionais podem ser fornecidas pelo órgão ambiental competente por meio de Termos de Referência, a partir das características do empreendimento e do ecossistema no qual se insere. 238 O EIA não prioriza a comunicação com públicos não-especializados, tratando-se de um instrumento de natureza predominantemente formal e técnica. Para exercer a função de instrumento de viabilização da participação popular no processo é designado o Rima. Este refletindo as conclusões do EIA - deve ser um documento acessível ao público. O Rima é mais ainda, pois trata-se de peça central do processo de participação da sociedade que culmina em uma audiência pública na qual o cidadão comum tem o direito de se manifestar sobre a implementação ou não de um determinado empreendimento. O EIA diz respeito ao direito que qualquer cidadão tem de conhecer os atos praticados pelos seus agentes públicos. O Rima, de maneira mais extensiva, aplica-se ao direito que tem o cidadão, organizado ou não, de intervir – porque parte interessada – no procedimento de tomada de decisão ambiental e deve destacar como fundamentais os princípios da publicidade e da participação pública (Benjamim, 1987). Segundo Aguiar (1998: 115-116): Para entender a diferença entre o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima), é preciso considerar a maior abrangência do primeiro, que engloba o segundo. O estudo é uma peça com dados científicos, jurídicos, de campo, de laboratório, enquanto o Rima refletirá as conclusões desse estudo, conforme prescreve o art.9º, Parágrafo único, da Resolução nº 001/86 – Conama. A função primordial do Rima é, ou deveria ser, a de se constituir em um instrumento que permita uma participação da sociedade nas discussões dos estudos e relatórios de impacto ambiental, tanto na fase de comentários quanto na Audiência Pública e, além dessas duas oportunidades, ser acessado nos centros de documentação ou bibliotecas do Ibama. Assim, o contexto daquele que aqui se caracteriza como o terceiro período na análise da dimensão temporal, é marcado por um cumprimento burocrático do licenciamento ambiental, cuja vertente da participação popular no processo é rigorosamente teórica, apenas. As distorções criadas ao longo do processo fizeram surgir o que ficou conhecido como a “indústria do Rima”, onde empresas de consultoria privada dominaram um mercado 239 que se desenvolveu de maneira caótica a partir do avanço acelerado – e nem sempre ordenado – das pressões internas e externas dos ambientalistas que levaram os legisladores à criação das exigências associadas ao licenciamento ambiental. Milaré (1998), citando Nogueira Neto, relata um fato inusitado em que uma empresa de consultoria, ao elaborar Estudo de Impacto Ambiental para um projeto de exploração de jazida de pedregulho, utilizou a argumentação técnica correspondente ao licenciamento de uma padaria. Este evento é um claro sinal da existência no Brasil de uma verdadeira “linha de montagem” de Rimas, em confronto evidente com o espírito que norteia a própria Constituição Federal que, em seu art. 5º, inciso LXXIII, estabelece que: Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência. Segundo Milaré (1998), são faces diversas de uma mesma moeda as expressões "Estudo de Impacto Ambiental" (EIA) e "Relatório de Impacto Ambiental" (Rima), apesar de serem tidas vulgarmente como sinônimas. Essa distorção é especialmente inquietante quando legitimada, pela prática, pelos mesmos atores que começam a defender, de forma enfática, o planejamento participativo. Ainda durante o terceiro período aqui considerado, a Constituição de 5 de outubro de 1988, em seu artigo 225, parágrafo 1º, inciso IV estabelece como incumbência do poder público. Exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade. A Constituição enfatiza, portanto, a necessidade de a população tomar conhecimento dos resultados dos estudos associados a empreendimentos potencialmente degradantes ao 240 meio ambiente. Ademais, determina que a todo o conjunto da sociedade brasileira, em especial às comunidades afetadas, devem ser fornecidas as informações necessárias para que sejam corretamente mensurados os efeitos potencialmente positivos ou negativos provocados por uma obra ou atividade sobre o ambiente. Assim, é possível concluir que, segundo a legislação ambiental brasileira, é imprescindível a participação da sociedade, tanto na decisão quanto na aceitação de projetos com potenciais impactos sobre o meio ambiente. Nesse sentido, o terceiro período aqui considerado pode ser caracterizado pelo contraste entre essas diretrizes e o próprio texto legal, no momento em que se constata um impasse, na leitura da Resolução Conama 001/86 (Artigo 8º), na qual fica estabelecido que “correrão por conta do proponente todas as despesas e custos referentes à realização do estudo de impacto ambiental e (...) elaboração do Rima”. A contradição criada pelo fato de que os estudos ambientais de um empreendimento devam ser pagos pelo empreendedor fez surgir uma grande dúvida quanto a possibilidade de vir a existir uma total e imprescindível isenção na elaboração dos EIAs e Rimas. Mais ainda, tal fato provoca um inevitável questionamento quanto à real implementação de um planejamento participativo, uma marca do quarto período desta análise. Edis Milaré (1998: 70-71) afirma: No afã de conjurar qualquer suspeita de parcialidade da equipe técnica, a resolução Conama n. 001/86 exigiu sua independência em relação ao proponente do projeto. Na prática, essa independência tem sido ilusória, na medida em que, por falta de norma regulamentar, as consultorias vêm sendo contratadas pelo autor do projeto, à conta de quem também correm todas as despesas e custos referentes à realização do EIA. 241 A contratação de elaboração de um Estudo de Impacto Ambiental estabelece, portanto, de imediato, um forte vínculo de dependência econômica e jurídica entre contratante e contratada que a Resolução quis impedir. Segundo alguns autores analisados por Egler (1998), a Resolução 001/86 não foi "inocente" ao propor a realização do EIA por equipe autônoma. Ao ser elaborada a resolução, intenções relacionadas à criação de uma "indústria de EIAs e Rimas" já estariam presentes. O quarto período se iniciou com a Conferência Rio 92, estruturada sob o Governo Collor – que apresentou, entre outras características, uma forte vocação para ações de marketing político e de grande visibilidade na mídia. Quanto à participação da sociedade nos processo de tomada de decisão, embora fora dos textos legais, mas em documentos estratégicos para o planejamento e a gestão ambiental, encontrava-se, de forma recorrente, a participação da sociedade como condição indispensável para se obter um desenvolvimento social e ambientalmente justo. Em termos teóricos, tal premissa é enfatizada em todos níveis de discussão, inclusive nas grandes conferências internacionais sobre o futuro do planeta. A Agenda 21, por exemplo, em seu capítulo 8, item 8.3, – recomenda que, na integração entre meio ambiente e desenvolvimento, um dos objetivos a serem alcançados seja o de "criar ou melhorar mecanismos que facilitem a participação em todos os níveis do processo de tomada de decisões, dos indivíduos, grupos ou organizações interessadas". Como atividade a ser desenvolvida para atingir esse objetivo sugere "estabelecer procedimentos de inclusão das comunidades locais nas atividades de planejamento para a eventualidade de ocorrerem acidentes ambientais e industriais e manter uma ativa troca de informações sobre as ameaças locais". Como meio de implementação, o documento considera prioritário que: 242 Os países, em cooperação com instituições e grupos nacionais, a mídia e a comunidade internacional, devem estimular a tomada de consciência do público em geral, (...) da importância de se considerar o meio ambiente e o desenvolvimento de forma integrada, e estabelecer mecanismos que facilitem a troca direta de informações e pontos de vista com o público. A Resolução Conama 009 de 03 de dezembro de 1987, referendada pelo presidente do Conselho muito tempo depois, em 28 de junho de 1990, especifica as características associadas à realização de Audiências Públicas, estabelecendo claramente a finalidade do Rima, que é a de dirimir dúvidas e estimular a participação da sociedade. A Audiência Pública é caracterizada, na mesma resolução, como um evento que deverá ocorrer em local acessível aos interessados, sendo que, em função da 1ocalização geográfica dos solicitantes, e da complexidade do tema, poderá haver mais de uma audiência pública sobre o mesmo projeto. Em todos os casos, a direção do evento deve ser feita por representante do Órgão Licenciador Ambiental que conduz o processo de discussão com o público presente, processo esse que gera uma ata que serve de base para análise e parecer final do licenciador, quanto à aprovação ou não do projeto. Os textos legais surgidos ao longo de todo o processo que poderíamos chamar de histórico-ambiental não permitem dúvidas quanto ao estímulo a um processo de interação entre público interessado, empreendedor e governo, para a tomada de decisão com menores riscos. No entanto, apesar de a perspectiva otimista de alguns conduzir a uma visão de crescente participação popular, na prática, a mobilização da sociedade em torno de processos de licenciamento ambiental tem se revelado pontual e descontínua. Os grupos de pressão que participam do conflito ambiental não viabilizam um conjunto de procedimentos imprescindíveis para a legítima tomada de decisão, entre outros fatores, por total inadequação em um quesito essencial dos processos de interação na 243 sociedade: a clareza e a eficácia dos mecanismos de transmissão de informações, especialmente quanto à linguagem utilizada. O “bicho grilo” do primeiro período era percebido pela comunidade local como um indivíduo de um conjunto estranho à sua realidade sócio-cultural. Os fiscais do Ibama e dos demais órgãos ambientais, cuja atuação se intensificou durante o segundo e o terceiro períodos, se converteram, no imaginário popular, em agentes de repressão. Ao receber uma denúncia, um fiscal do Ibama se dirige à casa do suspeito, "Seu" João e lá ocorre o seguinte diálogo: Fiscal : Boa Tarde! "Seu" João: Tarde! Fiscal : Como vai a vida, "Seu" João ? "Seu" João: Vamos levando, como Deus quer. Fiscal : Tem caçado muito? "Seu" João: Nem tanto. Esta semana mesmo eu só matei uns 10 veadinhos Fiscal : Dez? "Seu" João: Filho, alcance as cabeças dos bichinhos, pro moço ver. Fiscal : E paca, tem caçado muito? "Seu" João: Só uma esta semana. Filho, traz a cabeça da paca. Fiscal : E os outros bichos,o senhor tem caçado muitos? "Seu" João: Alguns. Filho, traz as cabeças dos outros bichos pro moço ver. Fiscal : Não tem passado por aqui nenhum fiscal do Ibama? "Seu" João: Esta semana foi só um. Filho, traz a cabeça do fiscal pro moço ver. Fiscal : Não precisa se incomodar. Até outro dia. Obrigado pela atenção. "Seu" João: Não tem de que. Volte sempre . (Anedota que circula regularmente pela Internet, sem identificação da autoria) O planejamento participativo, tendo surgido como grande ícone do quarto período aqui considerado, é tão distante das comunidades locais quanto o cotidiano dos meios acadêmicos, onde tais propostas são comumente discutidas. Em todos os casos, existem obstáculos comuns: a informação e a linguagem. 244 Evidentemente que, em alguns casos, essas barreiras foram rompidas e o planejamento ambiental pôde ser realizado com uma contribuição efetiva da sociedade local. Entretanto, tais êxitos foram restritos, tanto na dimensão geográfica quanto na dimensão temporal. A regra geral e predominante é um alijamento quase absoluto da população, pois esta não consegue acompanhar um processo de comunicação que se dá em nível de terminologias exóticas ao seu cotidiano. O momento atual das questões ambientais brasileiras se caracteriza por uma síntese mal elaborada dos períodos anteriores. Do primeiro período, idealista e simbólico, herda-se uma componente filosófica que enfatiza uma visão do problema ambiental sob uma ótica planetária. Do segundo e terceiro períodos, o reconhecimento dos órgãos licenciadores ambientais como atores responsáveis pelo cumprimento da legislação. No atual período, a ênfase na busca por mecanismos de participação da sociedade no planejamento e na gestão ambiental é, no entanto, na maioria dos casos, um conjunto de construções teóricas ou burocráticas. Mesmo quando as áreas acadêmicas ou políticopartidárias propõem as regras, as normas e os procedimentos, a comunicação com a sociedade é apenas uma peça de ficção. Consideremos, por exemplo, uma situação hipotética na qual um projeto de construção de um gasoduto está sendo analisado pela comunidade da região de influência direta, com vistas à realização de uma Audiência Pública. O Rima do empreendimento contempla justificativas para o uso do gás natural como alternativa energética. Suponhamos que o texto fosse escrito como o que se segue: A combustão do gás natural é completa; os gases de exaustão não são tóxicos (tanto que são aproveitados em processos de produção industrial de alimentos como leite em pó ou secagem de cereais). Apresenta emissões de SOx praticamente inexistentes e desprezíveis quantidades de NOx. O gás natural pode substituir tanto os energéticos primários como os secundários a preços competitivos, principalmente em comparação com os derivados de petróleo. Sua conversão em valor ou força motriz apresenta um rendimento acima da média dos muitos combustíveis, resultando portanto em menor consumo. 245 Mas esta não é uma situação hipotética! Trata-se de um texto do capítulo 3, página 44, do Rima do Gasoduto Cruzeiro do Sul, conforme descrito em Faria (2001). Agora suponhamos que, ao invés de um texto como acima, o documento fizesse a mesma justificativa da seguinte maneira: Quando o gás natural é queimado para gerar energia você pode gastar menos dinheiro e fazer menos mal à Natureza e às pessoas do que queimar carvão ou combustíveis que vêm do petróleo, por exemplo. Parece óbvio que o universo de pessoas capazes de compreender o texto do Rima estaria consideravelmente ampliado e, portanto, sua função primordial de democratizar a informação estaria sendo priorizada. Consideremos agora que o Rima de uma barragem em um determinado rio fosse disponibilizado para uma colônia de pescadores da região de influência direta do empreendimento e se referisse a um dos principais impactos ambientais previstos da seguinte maneira: A ictiofauna sofrerá impactos significativos quando o regime lótico se transformar em regime lêntico. As espécies reofílicas serão prejudicadas e a proliferação de macrófitas poderá afetar parâmetros importantes de qualidade da água. Da mesma maneira, façamos uma tentativa de tradução do texto, com um mínimo de perdas na qualidade da informação: Quando o rio for represado, os peixes que preferem a água corrente vão ser prejudicados e a quantidade de plantas, como os aguapés ou baronesas, vai aumentar muito, o que pode piorar a água do lago que vai ser formado. É lícito esperar que os pescadores, diretamente ou por meio de agentes intermediários de ação comunitária, pudessem ser informados, mesmo que com o auxílio de intermediários, de maneira muito mais efetiva com uma linguagem mais acessível como essa. Desse modo, surge naturalmente a pergunta em nossas mentes: Por quê não se elabora o Rima com uma linguagem que seja realmente mais acessível à sociedade em 246 geral, já que os textos legais enfatizam a necessidade de essa mesma sociedade participar ativamente do processo de tomada de decisão ambiental? Uma das possíveis respostas seria a de que a linguagem hermética é proposital. Nessa linha de raciocínio, o empreendedor determinaria à equipe elaboradora que assim o fizesse, como forma de ocultar os verdadeiros impactos negativos previstos para o seu projeto. Essa hipótese não resiste a uma análise isenta, sem contaminação de uma visão conspiratória muito comum em alguns grupos. Essa explicação só seria possível se imaginássemos um grande conluio entre empreendedores, técnicos responsáveis pela elaboração do Rima, técnicos dos órgãos licenciadores e pesquisadores associados ao processo. Trata-se de um processo tão difícil de se gerenciar quanto fazer com que um time inteiro de futebol “entregue o jogo” para o adversário. Bastaria que apenas um jogador não se conformasse com o “acordo” e todo o processo estaria comprometido. Além disso, não foram poucos os casos em que vantagens evidentes do projeto não foram percebidas pela sociedade por culpa de um Rima confuso e hermético, prejudicando assim o próprio empreendedor. Um das respostas mais razoáveis parece estar no controle do discurso acadêmico, discurso esse que, se abandonado pode gerar reações oriundas dos respectivos pares das áreas de conhecimento. Em outras palavras, caso um biólogo especializado em peixes utilizasse a “tradução” acima para descrever um dos possíveis impactos de uma barragem, provavelmente não teria dos seus pares uma legitimação do seu trabalho, por uso de uma linguagem não adequada a um documento por eles percebido como de natureza técnico-científica. Assim, o biólogo não “baixaria o nível” da sua linguagem para não ser vítima do controle do discurso, como discutido anteriormente nesta pesquisa. 247 Outra resposta razoável é associar essa distorção à pouca ou nenhuma importância dada à democratização da informação, em uma ótica de mero cumprimento burocrático da legislação ambiental, cujas razões mais profundas podem ser encontradas na obra de Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo. As raízes do Brasil parecem evidentes na estrutura de licenciamento ambiental do Ibama e dos órgãos licenciadores ambientais. No contexto descrito, a questão se torna especialmente grave quando os empreendimentos são projetados para regiões distantes dos grandes centros urbanos e contemplam uma grande diversidade de impactos positivos e negativos associados. Esse é o caso dos grandes projetos na Amazônia, região que agrega ainda um interesse internacional incomum, dando aos fatos gerados pelos conflitos ambientais uma dimensão muito maior e envolvendo um conjunto significativamente heterogêneo de atores. Nem o mais idealista dos defensores do planejamento ambiental participativo poderia supor que a população amazônica estivesse hoje bem informada para participar do processo de tomada de decisão de projetos que geram relatórios de impacto ambiental de centenas de páginas carregadas de gráficos, mapas, tabelas e planilhas. O Relatório de Impacto Ambiental – Rima, com sua linguagem intransponível para a maioria da sociedade brasileira é a peça central de uma discussão que deveria ser intensificada no atual período da questão ambiental brasileira. Se não somos mais “bichos-grilo”, se nossa legislação impõe que as comunidades sejam informadas dos potenciais impactos dos empreendimentos, se defendemos publicamente um planejamento participativo e se compreendemos que o Rima é uma peça de comunicação com a sociedade, indispensável no processo legal e imprescindível nos aspectos éticos da luta por um desenvolvimento sustentável, é inadiável uma profunda reflexão sobre a função social e política desse instrumento. A promulgação da Constituição de 1988 fez com que o Brasil passasse a ter salvaguardas em sua lei maior para justificar a luta pelo direito à vida em um ambiente 248 equilibrado, criando a obrigatoriedade de se fazer conhecido da população o conjunto de estudos associados aos projetos de potenciais impactos ao meio ambiente. Esse princípio filosófico foi resultante do combate contra as formas totalitárias do pensamento universal. Os anos posteriores não trouxeram a prática associada a essa teoria. Por tudo isso, um dos melhores exemplos a que se pode recorrer para ilustrar a enorme série de equívocos que vem ocorrendo no Brasil, sob o ícone do planejamento participativo, é o do projeto da Usina Hidrelétrica Belo Monte, que despertou uma grande polêmica, catalisada por três principais fatores: a mobilização da opinião pública internacional – e, por extensão, a opinião pública nacional – com relação às questões ambientais na Amazônia, um empréstimo de cerca de quinhentos milhões de dólares ao Setor Elétrico Brasileiro por parte do Banco Mundial e a denominada “cultura de enclaves” desse mesmo setor. Nesta época, era recente a criação do Ibama (terceiro período aqui considerado). As pressões das organizações internacionais ligadas à questão ambiental tornavam-se muito intensas e articuladas. Imbricada com a polêmica a respeito dos impactos sobre o meio ambiente, causados por grandes projetos, estava a questão indígena, particularmente sensível na Região Amazônica. Como o antigo projeto da UHE Kararaô envolvia ambas as questões e o setor elétrico, por características de sua cultura própria, não estava preparado para enfrentar esse tipo de conflito, a usina tornou-se alvo de fortes reações contrárias por parte de segmentos constituídos principalmente por intelectuais, ambientalistas e lideranças indígenas. Tomando, analogicamente, esses conflitos como uma guerra, sua batalha definitiva ocorreu no encontro dos povos indígenas realizado em Altamira, em março de 1989. Representantes de grupos de pressão nacionais e internacionais desembarcaram, á época, naquela cidade do interior do Pará, em apoio às lideranças indígenas e em repúdio à construção da UHE. 249 Ao resultado desses movimentos foi creditado o adiamento da obra por total ausência de condições de negociação política e sócio-ambiental para o empreendimento. Na base dessa rejeição se inserem os históricos de usinas como Tucuruí, Balbina, Samuel, Itá e Machadinho, entre outras. A não existência de um processo ordenado e legítimo de negociação dos empreendimentos com a sociedade provocou o surgimento de tensões que induziram a criação de movimentos como o Comitê de Representantes dos Atingidos por Barragens (CRAB). Nesse ínterim, a Eletrobrás, por sua vez, enfrentava resistências provocadas pela desinformação que fazia surgir na mídia notícias da iminente construção de mais de uma centena de usinas, quando, na verdade, tratava-se apenas de um conjunto de estudos de inventários de bacias. Novamente, a ruptura do processo de comunicação se materializava, a partir da ausência de mecanismos de “tradução” da linguagem técnica utilizada pelo setor elétrico. Ainda nos dias de hoje, é comum a distorção, como veremos mais adiante. Apesar das apregoadas vantagens do novo projeto de Belo Monte, a experiência do setor elétrico comprova que, mesmo em projetos de grande viabilidade técnica e ambiental, a negociação com a sociedade é imprescindível. E isto torna necessário um esforço de comunicação social com os segmentos envolvidos, em especial diante do interesse nacional e internacional despertado por grandes projetos para a Região Amazônica. Essa negociação se torna particularmente efetiva quando é demonstrada a intenção de se evitar a chamada cultura de enclaves. Não se deve supor que um Rima bem elaborado, filosófica e metodologicamente, seja a solução para todos os problemas da participação da sociedade no planejamento ambiental. Essa simplificação seria, sob qualquer prisma, primária e inconsistente. O que importa perceber é que, malgrado toda a evolução do pensamento ambiental brasileiro nos períodos históricos considerados, a participação da sociedade no planejamento continuará sendo uma 250 figura de retórica, apenas, enquanto o documento-símbolo dessa participação permanecer como uma peça de um processo apenas burocrático de licenciamento ambiental. O Rima não é apenas um documento a mais no universo amanuense brasileiro. Tratase da consolidação de um processo de negociação ambiental onde a transparência e a democratização da informação passa, necessariamente, pela incorporação dos anseios legítimos da sociedade e pela revelação dos reais propósitos do empreendedor. Assim, admitem-se como premissas, a adequação da linguagem, a identificação dos atores legítimos e poder arbitral do Estado. Estabelecem-se como metas a solução do conflito e a sustentabilidade do projeto. Propõe-se, como ferramenta, a negociação. No estudo do planejamento participativo no Brasil, podemos parodiar Carlos Drummond de Andrade e afirmar que o Rima é um símbolo, não uma solução. Um símbolo que evidencia a distância entre intenção e gesto nos processos em que a participação da sociedade é preconizada pela legislação e pelos autores de referência. Afinal, como esperar que as comunidades possam interferir na tomada de decisão ambiental sobre projetos e obras nas quais os impactos ambientais associados são descritos – de maneira hermética – como inevitáveis e cujas formas de mitigação e compensação não surgem de um processo legítimo de comunicação com os habitantes da região de influência do empreendimento? A participação sem a comunicação é apenas uma pobre rima – ou, um Rima pobre. No centro dos conflitos ambientais enfrentados pelo Estado está o fato de que uma política ambiental tem de estar fundamentada em uma legislação ambiental sólida, em instituições públicas fortalecidas e em uma legitimidade social,conferida pela sociedade. 251 A legislação ambiental brasileira é, para parcelas representativas do pensamento relacionado com a área, avançada e abrangente – embora carente de regulamentação, em muitos casos. As sucessivas transformações de órgãos ambientais são, por outro lado, evidências de fragilidade do arcabouço institucional criado pelo poder público brasileiro para lidar com a questão ambiental, sendo marcante que as mudanças institucionais têm sido, profundamente, dependente da partilha de cargos no governo, feita ao longo das sucessivas gestões – tanto em nível federal quanto estaduais ou municipais. Para esta pesquisa, todavia, interessam mais as deficiências presentes nos mecanismos de legitimação por parte da sociedade, embora seja relevante afirmar que.a solução para a questão do licenciamento passa, necessariamente, pela dimensão institucional. A Política Nacional de Meio Ambiente estabeleceu diversos instrumentos para a sua aplicação, e, dentre eles, a avaliação de impactos ambientais, um instrumento de ajuda ao processo decisório que permite a participação de todos os atores sociais afetados pela intervenção proposta e vinculada ao processo de licenciamento. O licenciamento ambiental autoriza a implementação de um determinado empreendimento por meio da concessão de licenças ambientais e um sistema nacional de informações sobre o meio ambiente tem como objetivo coletar, armazenar, processar e divulgar informações da qualidade ambiental. Um relatório de qualidade do Meio Ambiente, com o objetivo divulgar a situação dos recursos ambientais do país deveria ser publicado anualmente pelo Ibama, mas, sem uma coleta sistemática de dados – e com a falta de continuidade administrativa das instituições responsáveis – apenas duas edições foram publicadas, em 1984 e 1993. O processo de licenciamento ambiental se desenvolve em etapas, mediante a concessão de três licenças: 252 • A Licença Prévia (LP) , solicitada na fase de planejamento da atividade, autoriza a localização do empreendimento e a sua concepção tecnológica, estabelecendo as condições a serem consideradas no desenvolvimento do projeto executivo. O seu prazo de validade é estabelecido em função do cronograma de elaboração do projeto e do estudo de impacto ambiental, quando solicitado, não podendo ser superior a cinco anos. • A Licença de Instalação (LI) autoriza o início da implantação da atividade após análise e aprovação dos projetos e programas e de estudos ambientais. Seu prazo de validade depende do cronograma de instalação da atividade, não podendo exceder 6 anos. • A Licença de Operação (LO) autoriza o início da atividade após a verificação do cumprimento de todas as exigências e detalhes técnicos no projeto, de acordo com o previsto nas licenças anteriores. Seu prazo de validade varia de acordo com a atividade e a localização, não podendo ser superior a 10 anos. Por outro lado, a localização e as características dos empreendimentos e das atividades determinam se o licenciamento deve ser executado pelo Ibama, pelo órgão licenciador estadual ou municipal. O licenciamento ambiental de atividades e obras com significativo impacto ambiental, de âmbito nacional ou regional, é de competência do Ibama – por exemplo, quando localizadas ou desenvolvidas conjuntamente no Brasil e em país limítrofe, no Mar Territorial, na Plataforma Continental, na zona econômica exclusiva, em terras indígenas ou em unidades de conservação de domínio da União. A revisão da Resolução Conama 001/86, realizada por aquele conselho em 1997 e tornada formal pela Resolução 237/97, em alguns aspectos representou um retrocesso. Um deles diz respeito à lista positiva de projetos que devem ser submetidos, obrigatoriamente, a um licenciamento que, na Resolução 001/86, eram considerados apenas em nível de sugestões. Essa obrigatoriedade impõe que projetos sejam submetidos a estudos de impacto ambiental, sem uma avaliação prévia desta necessidade. 253 No entanto, verifica-se que a avaliação de um projeto, inserido em uma política, em um plano ou em um programa não avaliado corretamente em suas implicações ambientais, tende a gerar conflitos que ultrapassam a escala do empreendimento, sendo comum a necessidade de elaboração de inúmeros EIA e Rimas para empreendimentos que resultam de uma mesma política pública. Assim, cada empreendimento é obrigado a procedimentos visando ao seu licenciamento isoladamente, levando à repetição de estudos onerosos, nos quais possíveis impactos cumulativos ou sinérgicos são negligenciados na análise feita. Outro tipo de conflito no setor se dá em nível da institucionalização das políticas ambientais no Brasil. A internalização das questões ambientais nos diversos níveis do processo decisório público configura um conjunto de situações contraditórias, a partir das próprias regulamentações criadas pelo poder público. No setor elétrico são predominantes os argumentos da racionalidade econômica e da função social dos empreendimentos, em uma trajetória traçada a partir de estratégias desenvolvimentistas, em prevalência sobre o caráter sustentável do desenvolvimento. O processo de tomada de decisões subordina, na prática, a variável ambiental a decisões econômicas previamente tomadas. O processo decisório do setor elétrico brasileiro vem sendo fortemente condicionado pela crescente participação da sociedade civil, por meio de vários mecanismos e de forma bem diferenciada, de acordo com o grau de amadurecimento político de cada comunidade e com a especificidade da região onde se localiza um determinado projeto. Instituídas como prática complementar ao processo de licenciamento ambiental, esses mecanismos são destinados a tornar do conhecimento da comunidade as informações e análises contidas nos estudos de impacto ambiental, para que sejam dirimidas suas dúvidas e para instituir canais de escoamento de eventuais insatisfações e preocupações. 254 Formalmente, a concessão de licença a empreendimentos potencialmente causadores de impactos ambientais deve considerar esses mecanismos. Muitos programas voltados à proteção ambiental instituíram mecanismos de participação da sociedade civil organizada em seus respectivos processos decisórios. Além disso, foram criadas linhas de apoio a iniciativas de desenvolvimento sustentável em nível local, envolvendo uma execução sob responsabilidade de organizações não-governamentais associadas ou não a prefeituras. A experiência participativa do processo decisório sobre meio ambiente é de grande importância para o Estado e para a sociedade, mas a democracia participativa compreende escolhas que não ocorrem por meio do sufrágio universal e sim pela representatividade, confundida, muitas vezes, com uma alternativa excludente ao papel regulador do Estado. A fragilidade do poder público brasileiro faz com que a função pública de regulação do Estado sofra por conta de limitações de caráter político-institucional. As instituições públicas que atuam na política e na gestão ambiental deveriam ter suas missões claramente definidas, instrumentos de ação estabelecidos, regras claras e universais paras os processos que afetam o comportamento e as decisões dos atores sociais, sustentabilidade institucional, e canais de interlocução entre Estado e Sociedade. Todos esses fatores, necessários para que as políticas públicas tenham efetividade, especialmente em meio ambiente, encontram-se prejudicados por uma série de conflitos. Nos termos e nos temas que dizem respeito a esta pesquisa, o poder público, ao buscar envolver atores sociais na operacionalização das ações de natureza ambiental, pode estar renunciando ao poder indelegável das decisões públicas que devem se dar na esfera estatal, em um contexto no qual a representatividade dos atores sociais é uma condição mal definida pela legislação ambiental. 255 Assim considerada a realidade, o conflito com o histórico centralizador e a permeabilidade às conjunturas políticas e institucionais do setor elétrico era praticamente inevitável. É essa demonstração que será buscada a partir desse ponto do trabalho, em que a Eletronorte e o projeto de Belo Monte estarão em um foco mais nítido. 4.4 OS CONFLITOS NA ELETRONORTE 4.4.1 Distinguindo os conflitos A Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A – Eletronorte é uma empresa subsidiária das Centrais Elétricas Brasileiras S.A – Eletrobrás. Concessionária de serviços públicos de energia elétrica, foi criada pela Lei 5.824, de 14 de novembro de 1972 e autorizada a funcionar pelo Decreto 72.548, de 30 de julho de 1973. Tendo como missão atender ao mercado de energia elétrica, integrando-se ao desenvolvimento de sua área de atuação, a Eletronorte coordena e executa o desenvolvimento dos sistemas de energia elétrica na Região Norte, com o objetivo de garantir o suprimento às concessionárias estaduais – e o fornecimento aos grandes consumidores da indústria de eletrointensivos. A área de atuação da Eletronorte, caracterizada pela Amazônia Legal, representa 58% do território nacional, compreendendo os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins – onde atuam, também, concessionárias estaduais de energia elétrica. Para esta análise é necessária uma distinção preliminar entre os conflitos que a Eletronorte enfrenta. São eles de dois tipos: internos e externos à empresa. Podemos analisar os conflitos internos em conjunto e os conflitos externos separados por empreendimentos. 256 Um grande conflito interno da empresa está relacionado com as particularidades dos espaços que compõem a sua área de atuação. Grandes extensões territoriais a serem percorridas, populações carentes de uma presença maior do Estado, os problemas ambientais, a demanda variável de energia elétrica e a ausência de articulação entre órgãos de governo não são uma exclusividade da Amazônia Legal. Mas, nessa parte do Brasil essas deficiências são elevadas a um grande expoente. Desse modo, a Eletronorte tem sido obrigada a desempenhar papéis que institucionalmente não lhe cabem, ocupando vácuos deixados por sucessivos governos municipais e estaduais – e, principalmente pelo Governo Federal. O conflito se agrava pelo fato de as diferentes gestões da empresa oscilarem entre assumir – e até estimular – essa expansão de atribuições e rejeitar essa carga extra de responsabilidades. Pior ainda, em uma mesma gestão é possível perceber diferenças significativas nas ações da empresa que, dependendo do assunto em questão, pode atuar como típica empresa do setor ou assumir papéis típicos de agências de desenvolvimento. Outro grande conflito interno da Eletronorte é percebido na forma como é composta a sua diretoria, a cada novo Presidente da República e durante um mesmo governo, quando o cenário político assim determina. Deixando de lado as minúcias estatutárias de uma subsidiária da Eletrobrás e em palavras simples, podemos classificar a empresa como uma das mais vulneráveis estatais do Governo Federal, no que se refere à influência política de congressistas, governadores e políticos regionais. Não foram raras as vezes em que a diretoria da empresa foi “rateada” entre forças políticas dos estados da região. Segundo essa prática, é possível encontrar uma diretoria “reservada” ao Pará, outra ao Mato Grosso, uma terceira ao Maranhão e assim por diante. É necessário enfatizar que essa divisão, por força das composições políticas, pode variar de um governo para outro, mas atravessa os tempos sem que se seja substituída por um modelo mais profissional de gestão. 257 Um terceiro tipo de conflito foi criado a partir dos problemas ambientais enfrentados pela empresa, inicialmente com a usina de Tucuruí. A necessidade de criação de uma área de meio ambiente estruturada de forma a dar apoio à engenharia e à área jurídica, principalmente nos aspectos relacionados com o licenciamento ambiental, fez com que a Eletronorte unisse duas assessorias, uma de recursos naturais e outra de meio ambiente, no Departamento de Estudos de Efeitos Ambientais. Esta última foi inicialmente ligada diretamente à presidência da empresa, (daí a sigla PPA) e, depois vinculada à Diretoria de Engenharia, já com a sigla EEA. O EEA foi estruturado sob uma ótica que determinou uma composição de cinco divisões, cada uma delas responsável por um conjunto de estudos específicos: meio aquático, meio terrestre, aproveitamentos múltiplos de reservatórios, sócio-economia e licenciamento e educação ambiental. O departamento foi composto, basicamente, por quadros da própria Eletronorte, de suas empresas consultoras e de profissionais contratados a partir do empréstimo setorial obtido junto ao Banco Mundial – comentado anteriormente. O ano de 1986 foi especialmente seco e quente no Hemisfério Norte. A opinião pública nos países desenvolvidos ficou extremamente sensível às questões ambientais, num ano em que ocorreu o problema de Chernobyl. As ONGs americanas criaram filiais em Washington e o Banco Mundial foi pressionado. (...) A segunda parte desse empréstimo nunca saiu. Oficialmente, porque a Eletrobrás queria Angra III e o Banco Mundial não aceitava. Oficiosamente, a gente sabia que o banco estava apavorado com a pressão das ONGs e arranjou um motivo para não dar o empréstimo. A pressão do Banco Mundial é que apressou a formação de departamentos de meio ambiente no setor. (entrevista de um ex-engenheiro da Eletronorte que esteve em Washington, nessa época, para acompanhar a questão. Realizada em 24.03.2004) A área ambiental não era bem vista, no começo, pelos integrantes do chamado grupo de “barrageiros” do setor. Para muitos integrantes desse grupo, constituído 258 majoritariamente por engenheiros, formados pela cultura tradicional do setor, meio ambiente era “coisa de bicha”, segundo alguns dos entrevistados para este trabalho. Por trás da expressão preconceituosa havia fatores como críticas aos elevados gastos dos estudos ambientais, entraves causados pelos procedimentos de licenciamento ambiental ao cronograma de obras, uma visão nacionalista do tipo “integrar para não entregar” e a imposição “goela abaixo”, por parte do Banco Mundial. Esse grupo também possuía uma característica interessante: uma grande parte era formada pela Escola de Engenharia de Itajubá, Minas Gerais. Essa presença era tão marcante na Eletronorte que, entre eles, circulava um comentário bem-humorado dando conta da existência de um “engenheiroduto” entre aquela cidade e a empresa, tantos eram os profissionais com a mesma origem na empresa. Ora, o que se vê aqui é uma situação potencialmente explosiva que gerou um conflito interno significativo na Eletronorte. De um lado, a “comunidade barrageira” reivindicando, em uma conjuntura de recursos escassos para o setor, as verbas necessárias para as obras previstas no planejamento setorial que, como vimos, incorporava timidamente as variáveis ambientais naquele período. De outra parte, os quadros do departamento de meio ambiente da empresa eram, predominantemente, portadores de uma visão acadêmica, de pesquisa. Enquanto os coordenadores de projetos pertenciam ao primeiro grupo e detinham o poder de controlar a aplicação das verbas destinadas às diversas fases dos empreendimentos, os integrantes do quadro de técnicos de nível superior da área ambiental se moviam em um meio estranho à sua cultura. Os engenheiros florestais, por exemplo, eram “carinhosamente” tratados pelo apelido de “pica-pau” pelos engenheiros de especialidades tradicionais do setor – mecânicos, 259 eletricistas e civis. Causava muita estranheza, para dizer o mínimo, a presença de veterinários, agrônomos e arqueólogos nos quadros da empresa. Para agravar o quadro, existiam três tipos de conflito que eram internos à própria área ambiental da empresa. O primeiro deles se referia à própria missão do departamento: “Estamos aqui para estudar as questões ambientais dos empreendimentos ou para, apenas, justificar o que a engenharia decide?” era um dilema que justificou, até mesmo, a realização de seminários e workshops internos – e que não resolveram a questão. Antes de trabalhar na Eletronorte, eu participava de um movimento ambientalista e uma das campanhas que a gente fez foi contra Tucuruí. Era um enfoque político. (...) Como o governo passava muito pouca informação e a gente só recebia informações dos grupos contrários usina, então a gente achava que tinha o 'Agente Laranja' e o 'Pó da China' no reservatório, que quando o reservatório fosse formado ia ter uma mortalidade imensa no Tocantins que iria até a foz, no Amazonas. Eu acreditava nisso, no início. Eu fui para Tucuruí por causa de oportunidade de emprego. Quando eu fui trabalhar no resgate de fauna, eu cheguei meio dividido. O pessoal que fazia parte do mesmo movimento ecológico que eu me deixou de meio de escanteio, na época. Eu fui considerado como vendido! (Analista ambiental da Eletronorte. Entrevista em 30.04.2004) O segundo tipo de conflito dizia respeito às visões diferenciadas que os técnicos do departamento possuíam sobre o seu papel. Havia os que adotavam práticas e comportamentos usuais em instituições científicas, os que assumiam um papel gerencial, os que se alinhavam com a visão de cumprimento burocrático no licenciamento ambiental e até os que traziam um dilema interior provocado pelas origens de militante das causas ambientais. Como o gerente do departamento, nesse período inicial, tinha formação em psicologia, eram freqüentes as ironias feitas pelos integrantes das áreas tradicionais da empresa, ora quanto ao caráter “exótico” dessa especialidade em uma gerência de meio 260 ambiente, ora enfatizando que somente um psicólogo poderia administrar uma estrutura com tantos dilemas filosóficos. Ferreira (1997), um engenheiro que atuou, na Eletronorte, por quase 10 anos, como especialista em Geotecnia nos projetos de usinas hidrelétricas e, depois, como analista ambiental desses mesmos empreendimentos, viveu ambas as polaridades – a do "pessoal da engenharia" e a do "pessoal do meio ambiente" – e ilustra muito bem, em seu trabalho, o conflito interno entre essas duas facções, que repercutiu fortemente em Tucuruí, especialmente após o enchimento do reservatório. O autor, ao iniciar sua pesquisa, se perguntava se era real o "fatalismo" com que eram vistos pelos engenheiros os impactos ambientais dessas hidrelétricas e, ao mesmo tempo, se seriam justas as críticas que a área ambiental fazia à Engenharia, atribuindo-lhe a responsabilidade direta por esses impactos. Ao tentar descobrir se teria sido possível fazer usinas de outra forma e – se o era – porque então foram adotados esse caminho e essa postura e não outros, Ferreira percebeu que nos embates entre a área de engenharia e a área ambiental, havia: O predomínio de uma visão tecnicista (mesmo entre os integrantes da área ambiental) que, tentando valorizar o "saber especializado" de cada uma dessas facções, revelava as lutas internas pela legitimação do papel dos diversos especialistas no campo. Ao mesmo tempo, um conteúdo ideológico e maniqueísta (nos rumos de uma "história conspiratória") marcava as tentativas de uma discussão mais ampla da questão. (...) Mais que um confronto entre ecologia e tecnologia, marcado sempre pela discussão de fontes alternativas de geração de energia elétrica, parecia-nos tratar-se de uma questão mais geral e mais profunda, de problematização da inserção social da ciência e da tecnologia. De modo ainda mais específico, para nós que habitávamos esse campo de trabalho, todo o contexto parecia configurar um "jogo social" que, regido pelas distintas crenças profissionais e lutas pela legitimidade do saber específico de cada uma das categorias envolvidas, poderia valerse do conhecimento sociológico para sua compreensão e desvendamento. (Ferreira, 1997) 261 O autor, por meio das entrevistas de sua pesquisa, comparou visões em que o "pessoal da engenharia" era percebido como defensivo em relação aos questionamentos da área ambiental com outras, segundo as quais o departamento de meio ambiente não tinha inicialmente proposta alguma, sendo formado por pessoas de outras áreas que, com problemas de relacionamento pessoal e profissional em suas áreas de origem "acabaram indo" para o meio ambiente. Essa "desqualificação" fazia com que os componentes da equipe de Meio Ambiente fossem vistos como "de segunda" pelo "pessoal da engenharia" É importante ressaltar que essas especificidades descritas não são minúcias supérfluas a este quadro de análise. Tanto a condição de observador participante quanto os aspectos que serão descritos mais adiante legitimam a necessidade de entrar em níveis mais detalhados das causa dos conflitos internos da Eletronorte por, basicamente, três razões: 1. Nenhuma área de meio ambiente do setor elétrico sofreu tantas pressões quanto a da Eletronorte, diante da magnitude e da visibilidade dos impactos ambientais, das extensões territoriais – e, de resto, das escalas utilizadas na região – e da diversidade de problemas a serem enfrentados em empreendimentos na Amazônia. Embora a Chesf e a Eletrosul tenham enfrentado sérios problemas, estes se localizaram, em sua maioria, na área de sócio-economia – como relocações, reassentamentos e indenizações; 2. O conjunto de contradições internas à empresa influenciou, de forma marcante, as suas ações externas, principalmente no que se refere à participação da sociedade, à transmissão de informações e aos processos de comunicação social – temas centrais desta tese; 3. Vários dos entrevistados desta pesquisa foram atores significativos desse período e seus depoimentos são mais bem contextualizados a partir das descrições que foram feitas. 262 4.4.2 Os conflitos de Tucuruí Os principais conflitos externos da Eletronorte começaram com a construção da usina hidrelétrica Tucuruí, concebida e construída dentro de um contexto histórico – descrito anteriormente neste trabalho – em que as estratégias geopolíticas do Governo Federal visavam ao desenvolvimento da região Norte, a partir da década de 60, em busca do crescimento econômico da região e de sua ocupação. Situada no rio Tocantins, Estado do Pará e distando aproximadamente 300km em linha reta da cidade de Belém, oficialmente o principal objetivo de Tucuruí foi o de atender tanto o mercado de energia elétrica polarizado por Belém, quanto fornecer as elevadas cargas decorrentes da planejada implantação de empreendimentos eletrointensivos, com base no complexo alumínio-alumina. Sua construção foi iniciada em 1976 e sua operação comercial teve início em 1984, contando com 4.000MW de potência instalada. A linha de transmissão entre Presidente Dutra (MA) e Boa Esperança (PI), com cerca de 1.700 quilômetros promoveu a interligação com a região Nordeste, contribuindo para a suspensão do racionamento na região da Chesf. A primeira etapa da UHE Tucuruí, totalizando os 4.000 MW instalados, foi concluída em novembro de 1992 e a construção da 2ª etapa da usina deverá dobrar a capacidade final instalada. As principais mudanças desencadeadas na região durante o período de implantação da usina, interferiram fortemente na dinâmica sócio-ambiental e cultural da própria região. Primeiro pelo significativo aumento populacional, representado pelos trabalhadores diretamente envolvidos na construção da usina e, segundo, pelo grande contingente atraído pelas novas oportunidades que se criaram na área, com a implantação da infra-estrutura da obra, provocando alterações nos valores econômicos e culturais da região e a relocação das populações diretamente atingidas pelo reservatório. 263 A população da área atingida pelo reservatório compreendeu mais de quatro mil famílias, consideradas as áreas rurais e urbanas. Cerca de 80% desse total foram reassentadas e uma pequena parcela optou por receber indenização. As famílias foram reassentadas em núcleos urbanos e rurais, recebendo indenização pelos bens e benfeitorias que existiam em seus terrenos, além de transporte de seus bens móveis. As famílias rurais receberam lotes demarcados e materiais de construção para a construção de suas casas, sendo que, nos loteamentos urbanos, foram construídas casas dotadas de rede elétrica e de água e esgoto. Apesar das ações executadas pela Eletronorte, ainda hoje, existe uma elevada demanda por soluções de problemas relativos à saúde, à educação, ao saneamento básico, à infra-estrutura física e ao apoio a atividades produtivas, apesar de os municípios da região receberem cerca de R$ 3,2 milhões mensais da Eletronorte, como compensação pelo alagamento de áreas e o governo do estado do Pará cerca de R$ 2 milhões mensais de ICMS pela energia gerada. O cronograma do empreendimento, elaborado e cumprido sob uma visão tradicional do setor elétrico, não contemplava uma ordenação como a determinada pela legislação atual – e foi atrelado ao cumprimento dos prazos da engenharia e à disponibilidade de recursos financeiros. Os estudos sócio-ambientais, feitos simultaneamente ao processo de construção da usina, não eram da responsabilidade de técnicos da empresa, pois esta não possuía um corpo técnico próprio na área de meio ambiente. O conhecimento disponível sobre o bioma amazônico era muito reduzido, mesmo nas instituições científicas baseadas na região, o que fez com que a Eletronorte buscasse apoio junto a instituições que pudessem fornecer respostas às críticas que começaram a surgir nos meios acadêmicos e na mídia. 264 Um dos documentos simbólicos dessa fase foi o "Relatório Goodland"51 que orientou a busca de soluções para as questões ambientais do projeto e a formação de possíveis parcerias,com instituições científicas e órgãos do governo, para implementar as ações necessárias. A participação de instituições científicas nos estudos sócio-ambientais de Tucuruí, foi definida por um plano de controle ambiental da usina, elaborado em 1979, a partir do qual foram firmados convênios e contratos com diversas instituições de pesquisa. O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa, o Museu Paraense Emilio Goeldi – MPEG, o Instituto Evandro Chagas – IEC, a Universidade Federal do Pará – UFPA e o Instituto Butantã são alguns exemplos. Mais de cem especialistas foram envolvidos apenas nos estudos desenvolvidos pelo Inpa, que abrangiam aspectos meteorológicos da área de Tucuruí, levantamento de solos na área de influência do reservatório, cadastramento de flora, levantamento e quantificação da vegetação a ser inundada – além de estudos da degradação do material florestal, do controle de macrófitas aquáticas, da influência da formação do reservatório no aumento de doenças endêmicas, da qualidade da água, da identificação da ictiofauna e avaliação do potencial da pesca. A articulação e o desenvolvimento de ações conjuntas com a Funai foram buscados pela Eletronorte para a condução das interferências com áreas indígenas, e, em relação a ações de remanejamento da população afetada pelo reservatório, a parceria foi feita com o Incra. A participação da comunidade científica foi fortemente influenciada pela tentativa de conciliar os interesses científicos dos pesquisadores com as necessidades específicas da Eletronorte, em um cenário de urgência determinada pelos prazos da obra. Foram liberados 51 "Environmental Assessment of the Tucuruí Hydroelectric Project, Rio Tocantins, Amazônia" ou, simplesmente, "Relatório Goodland" , é um documento elaborado pelo ecólogo Robert Goodland , em 1977. O ecólogo foi contratado pela Eletronorte visando à elaboração de um diagnóstico dos problemas ambientais associados à implantação da usina Tucuruí. 265 recursos para pesquisas de campo, remuneração dos pesquisadores, análises de laboratório e compra dos equipamentos necessários. Um outro tipo de conflito emergiu desses trabalhos. A insegurança dos pesquisadores quanto a uma intervenção daquela magnitude sobre um rio como o Tocantins – e, claro, sobre a região de influência direta da obra – associada às características próprias do trabalho acadêmico criou um impasse diante do tempo definido pelos prazos da obra. Os resultados pretendidos para subsidiar a tomada de decisões no empreendimento eram restritos pela carência do conhecimento científico básico e as informações obtidas foram limitadas à aplicação do conhecimento gerado à realidade – e às necessidades – do empreendimento. Assim, o conflito de interesses prejudicou a possível minimização dos impactos sócio-ambientais da hidrelétrica, ainda percebidos como apenas obstáculos à otimização do projeto de engenharia e, também, não permitiu a internalização, por parte do setor elétrico como um todo, dos conhecimentos técnicos e científicos gerados. Entre os principais temores dos pesquisadores quanto ao reservatório de Tucuruí estava a possibilidade de a madeira submersa apodrecer e causar alteração da qualidade da água, em uma escala tal que ameaçaria as próprias turbinas de aço da hidrelétrica – em um processo semelhante ao ocorrido em uma usina do Suriname: Brokopondo. Esse nome ecoou como um espectro tanto nos meios acadêmicos quanto na mídia, anunciando um desastre inevitável. Mesmo com lagos de características diferentes – especialmente pelo tempo de permanência da água no reservatório, tecnicamente chamado de tempo de residência – Tucuruí e Brokopondo foram associadas, durante esse período, como exemplos de comprovação da inviabilidade da construção de hidrelétricas em florestas tropicais úmidas. Afinal, durante cerca de quinze anos, o reservatório surinamês permaneceu sem qualquer forma de vida. 266 Essa ótica prevalecia, também, entre pesquisadores que não tinham experiência com a realidade amazônica, temendo que o acelerado represamento do rio acarretasse uma catástrofe sem precedentes sobre a economia e o meio ambiente locais. O enorme lago a ser formado encobriria cerca de 200 mil hectares de floresta e, para muitos pesquisadores, a madeira submersa nas águas de Tucuruí – espécies nobres como castanheiras, mognos, ipês e maçarandubas – estaria condenada ao apodrecimento e a conseqüente acidificação do reservatório provocaria a corrosão das máquinas. No final da década de 1980, um morador da região de Tucurí, "Seu" Juarez, adaptou uma moto-serra para funcionar com ar comprimido e desenvolveu uma técnica de corte submerso. As madeiras submersas se encontravam em excelente estado de conservação, tanto que, em 2000, duas empresas estavam investindo fortemente no aprimoramento e na mecanização desse processo. Apesar de submersa durante décadas, a madeira preserva suas características físicoquímicas que, no caso de algumas espécies, ficam ainda melhores – para a exploração comercial – em contato com a água. Considerando que existem, aproximadamente, cerca de 2 milhões de m³ de madeira sob o lago e um total de 30 glebas definidas, há o suficiente para 12 anos de extração. Entretanto, segundo os dados da Eletronorte, apenas seis glebas estão sendo exploradas atualmente, o que remeteria, nesse ritmo de exploração, a retirada da madeira para até 300 anos. Esse é mais um exemplo em que se aprendeu com a experiência. Os conflitos de Tucuruí atingiram diretamente o grupo indígena dos Parakanã e, em 1978, foi assinado um convênio da Eletronorte com a Funai para relocação da população indígena atingida, sendo que a empresa elaborou, juntamente com aquela Fundação, um programa de apoio à comunidade dos índios Parakanã, com duração aproximada de 25 anos. 267 A Eletronorte removeu, em 1985, a população de duas aldeias Parakanã localizadas em áreas alagadas pelo reservatório. Uma nova área de cerca de 351.000 ha foi demarcada e transformada em reserva. Subprogramas de saúde, educação e apoio à produção foram implantados e a população de 247 indivíduos vem aumentando a taxas superiores a 6% ao ano, sendo que 30% da população foi alfabetizada na língua própria e em português. Os objetivos do programa são: • Garantir o usufruto da terra demarcada aos índios; • Melhorar as condições gerais de vida; • Ampliar a compreensão da realidade sóciopolítico brasileira; • Equilibrar relações econômicas e culturais entre a Comunidade Indígena e a sociedade; Segundo os dados da Eletronorte, desapareceram as epidemias de sarampo, gripe, malária e hepatite B e os Parakanã, que dependiam do fornecimento de alimentos pela Funai, retomaram sua produção em grandes roças e já comercializam o excedente. O extrativismo – da castanha, do açaí e do cupuaçu, entre outros – e a comercialização do artesanato indígena fortalecem a economia das aldeias e estimulam a permanência dos índios na reserva, onde os valores culturais são preservados. Os depoimentos de vários dos entrevistados desta pesquisa e as observações deste analista confirmam esses resultados, mas a credibilidade nacional – e internacional – do indigenista Porfírio de Carvalho, responsável pelo programa, tem sido considerada como um grande aval para as ações empreendidas. Uma das maiores causas de conflito em Tucuruí foi intervenção na região por meio da criação de um enclave, gerando o contraste que ficou conhecido como "Tucuruí do Luxo e Tucuruí do Lixo". 268 Essa expressão foi criada, na região, para ironizar a diferença entre a vila residencial da Eletronorte e a cidade de Tucuruí, no que se refere à qualidade de vida – saúde, educação, segurança etc. Um dos grandes equívocos do setor elétrico na Amazônia, a cultura de enclaves efetivamente criou um "mundo paralelo" nas obras da Eletronorte. Nas usinas Balbina e Samuel, esse contraste foi atenuado pela distância relativamente grande entre a obra e as cidades – principalmente pelo fato de se tratarem de capitais de estados (Amazonas e Rondônia, respectivamente). Em Tucuruí, as diferenças eram muito marcantes, pois a cidade se localiza no interior do Pará e a vila residencial trouxe uma cultura do Sul e do Sudeste do Brasil, regiões onde os contrastes não eram tão acentuados. Essa situação pode ser mais bem compreendida a partir dos depoimentos de engenheiros da Eletronorte, obtidos nesta pesquisa. Alguns exemplos são dados a seguir: O certo seria que o Estado, ao fazer uma obra desse porte, tivesse um conjunto de ações na região. Nós tivemos 22 escolas de 1º e 2º graus e profissionalizante, com 16.000 alunos bancados pela obra. Se nós estivéssemos esperando um acordo com o MEC para fazer essas escolas, nós estaríamos sem a usina até hoje. (...) Nós construímos mais de 5.000 casas. Não seria muito mais fácil se o BNH tivesse financiado essas casas para que elas passassem depois a pertencer à população? O hospital com 220 leitos e 32 médicos era uma referência no estado do Pará: bancado 100% com o dinheiro da obra. O acesso à PA 150 e a PA 70, pontes metálicas e outras coisas: A Eletronorte deu dinheiro para o DER-PA. O hospital atendia emergências de pessoas for a da Vila. (...) Nesse período em que eu era residente por varias vezes eu tive que fazer ordem de serviço para a Camargo Correia para desatolar caminhões e dar manutenção nas estradas depois de Marabá, a 250 km, aproximadamente, da usina , porque não chegava nem comida nem material na obra e o DER-PA não tinha como manter aquelas estradas. (...) O que seria o certo? Vai construir uma usina? Então vamos chamar o MEC, o Ministério da Saúde, o Ministério dos Transportes etc e vamos conversar, trabalhar junto. Na segurança, por exemplo, nós tínhamos 400, 500 pessoas na nossa segurança patrimonial e fazendo o papel de polícia. A polícia não entrava na obra. A gente fazia os boletins das ocorrências e levava para o delegado. Ou você fazia isso e cumpria o seu cronograma de obra ou, se você ficasse esperando que cada um desses órgãos fizesse a sua parte você não faria nunca a obra. 269 (Depoimento de um ex-Engenheiro Residente da Eletronorte em Tucuruí. Entrevista em 16.03.2004) Ferreira (op.cit.) analisa Tucuruí, concluindo que pela magnitude do seu desafio técnico e pelo distanciamento dos grandes centros urbanos da região centro-sul do país, a usina significou um: Espaço de oportunidade para esses engenheiros ainda de pequeno tempo de formado (portanto sem um significativo capital simbólico acumulado). Construir Tucuruí representa então, ao mesmo tempo, construir uma carreira, afirmar uma identidade profissional, luta pela distinção no campo e, logicamente também, garantir a sobrevIvência e buscar uma estabilidade financeira. Desempenhar bem "o seu papel" configura então a orientação principal das condutas, num cotidiano marcado pelo cumprimento dos cronogramas, nas múltiplas atividades parcelares que compõe a execução da obra. Os objetivos setoriais e institucionais são assim reconvertidos em metas e interesses pessoais e individuais, orquestrados por uma representação coletiva absoluta: "a importância de Tucuruí!" Um dos entrevistados, analista ambiental da Eletronorte reforça: Quando eu cheguei em Tucuruí, a coisa era tão complexa, a obra, o resgate de fauna, a interação com as populações relocadas. Eu comecei a abrir mais a minha cabeça, comecei a entender um pouco mais a situação local e desde aquele momento eu comecei a refletir se aquilo tudo que falavam era verdade. Foi meio confuso. Estando lá, eu vi um outro lado – que não era informado. (Entrevista em 30.04.2004) O "Livro Branco"52foi uma peça publicitária elaborada pela Eletronorte para se defender das acusações feitas tanto pela mídia quanto pelos meios acadêmicos. Apesar de, prioritariamente, ser destinada a um desagravo aos técnicos e cientistas que trabalharam em 52 "O Livro Branco sobre o meio ambiente na usina hidrelétrica Tucuruí". Eletronorte – Departamento de Estudos de Efeitos ambientais e Departamento de Comunicação Social. Brasília: Editado em 1984 e impresso em 1987. 270 ações ambientais, trouxe informações relevantes quanto às previsões feitas por alguns cientistas e jornalistas. Alguns trechos da publicação são mostrados abaixo: Foram recrutados técnicos e cientistas de algumas das mais respeitáveis instituições nacionais: INPA - Instituto. Nacional de Pesquisas da Amazônia, Museu Paraense Emilio Goeldi, Centro. Nacional de Primatas, Instituto Evandro Chagas, Universidade Federal de Pará (estes da Amazônia); Instituto Butantã São. Paulo., além de órgãos governamentais, estaduais e federais, responsáveis pelas políticas oficiais em cada segmento econômico e/ou social afetados. Essa mobilização resultou num trabalho de defesa ecológica jamais vista em implantação de hidrelétricas, em qualquer parte de país, em qualquer época. Razões políticas e, às vezes, de funde ideológico, geraram celeuma e exacerbação da opinião pública contra a construção da hidrelétrica certamente seriam as mesmas vozes a condenarem e colapso previsível no abastecimento. de energia à sua região., se deixasse que ocorresse. Como uma bola de neve, a campanha empolgou os segmentos mais desinformados e emocionais da sociedade brasileira. A ELETRONORTE era uma voz - a voz da comunidade científica - contra jornais, emissoras, entidades conservacionistas que davam acústicas às infundadas acusações de agressão ao meio ambiente. Do lado da razão estava o próprio interesse do Governo em apurar as denúncias. Não foi outra a intenção de se convocar a importante Secretaria Especial do Meio Ambiente SEMA para participar da varredura da região do reservatório em busca de supostas incidências de agrotóxicos e devastação da natureza. Como estava programado desde o início da obra, cientistas e técnicos acamparam nas matas aonde chegaria a inundação, provocada pelo enchimento do lago artificial de 2.430 quilômetros quadrados. (...) Os aterrados profetas da "Tragédia de Tucuruí" repetiram, quase em uníssono, que ia começar o desastre.E o desastre não houve: não se salinizaram as reservas de água potável, não houve a mortandade de peixes, as perdas de animais não foram além dos 2%, quando muito, o rio foi devolvido à navegação, e a vida continuou seu curso normalmente no paraíso verde da Amazônia, onde dezenas de milhares de animais foram salvos, na chamada "Operação Curupira". A única presença nova é a do progresso, do desenvolvimento em seus mais amplos aspectos: surgem grandes indústrias, alarga-se o mercado de emprego, confere-se mais qualidade à vida e conhece-se, agora, mais do que nunca, profundamente a flora e a fauna de uma das regiões mais desconhecidas da Amazônia brasileira. 271 A campanha contra o empreendimento de Tucuruí ainda dá sinais, agora mais no exterior do que no Brasil. Mas sem provas suficientes, sem o atestado da comunidade científica, sem a verdade dos fatos. Danos houve, como se disse inicialmente, mas não ocorreram desastres, tragédias, apocalipses. O documento trazia, também, uma espécie de mea-culpa de um dos jornalistas que atacaram a Eletronorte: Este artigo é a expressão amarga de um erro que praticamente fui obrigado a cometer", disse o jornalista Emir Bemerguy, no jornal O Liberal - um dos que mais combateram Tucuruí -, em sua edição de 11 de novembro deste ano. "Estamos quase no meio de novembro. Olho para trás, revejo artigos eruditos, escuto as trombetas do Apocalipse, comparo as profecias com a realidade e me ponho de cabeça baixa, envergonhado... Rigorosamente, não aconteceu nem um por cento das desgraças anunciadas com requintes matemáticos, físicos, hidrológicos, antológicos. A esta altura estamos arrependidos da pressa infantil com que embarcamos no trem da alegria. A hidrelétrica está recebendo nota dez... Entrego a mão à palmatória, retrato-me... Perdoe-me cada irmão a quem ludibriei, porque fui enganado, porque não tive o bom senso de esperar e ver quem tinha razão. Embora trouxesse informações validadas por respeitáveis instituições, o documento adotava um estilo de confrontação aberta – um estilo de atuação que, embora não seja adotado pela empresa atualmente, ainda lhe rende dissabores em seus processos de negociação Em Tucuruí apareceu muito problema que não houve em outras usinas e eles não souberam enfrentar aquilo de uma forma aberta e competente. Já que era desconhecido, então vamos estudar, fazer o máximo possível para poder conhecer e solucionar. Em vez disso, eles pensaram assim: é algo problemático, então vamos esconder. Está aparecendo mosquito, vamos dizer que não temos nada a ver com isso. (...) Até hoje, isto é, em 2000, Belo Monte passou pelo mesmo processo. Foi criticada, usando sempre como comparação Tucuruí, que foi quase vinte anos antes. As pessoas não perceberam que houve uma evolução porque a postura da empresa não mostrou isso. O impacto em si foi grande, mas é compensável, é mitigável, até menor do que hidrelétricas em outras regiões do Brasil, mas não foi tratado de uma forma adequada, transparente e com discussão com a sociedade. Não é o impacto em si. É a forma como ele foi tratado e foi escondido. Isso refletiu em Belo Monte. 9 272 (Analista Ambiental da Eletronorte. Entrevista em 30.04.2004) Até Tucuruí, não era o que a hidrelétrica faria com o meio ambiente e, sim, o que o meio ambiente faria com a hidrelétrica. Era a hidrologia e a geologia. Se tinha água ou não. Se tinha falhas geológicas ou não. (...) Havia uma intimação para que não acontecesse o fechamento de Tucuruí, que tinha que ser entregue ao presidente da empresa. Fez-se de tudo para que o Dr. Douglas não recebesse essa intimação. (...) Foi ridículo (...) O pior é quem estava atacando Tucuruí não sabia porque estava a tacando, nem quem estava defendendo tinha consistência na defesa. (...) A salinização de Belém, por exemplo, era uma coisa maluca, irracional. (Ex- gerente da área de Meio ambiente da Eletronorte. Entrevista em 23.04.2004) Esses aspectos são evidenciados no conflito de Belo Monte, central nesta tese, que será abordado no próximo capítulo. 4.4.3 Os conflitos em Balbina, Samuel e Manso Os conflitos associados a essa três usinas foram aqui agrupados, basicamente, por não serem considerados, no conflito em Belo Monte, como as maiores referências da sociedade da região de Altamira quanto aos projetos anteriores da Eletronorte. Essa referência é, marcantemente, a usina Tucuruí. Entretanto, alguns aspectos da história dessas três usinas trazem elementos importantes para a discussão da atuação do setor elétrico na Amazônia – que serão descritos a seguir. O segundo grande conflito externo da empresa foi relacionado com a Usina Hidrelétrica Balbina (UHE Balbina). Localizada no rio Uatumã, município de Presidente 273 Figueiredo, no Estado do Amazonas, a usina dista aproximadamente 146 Km, em linha reta, da cidade de Manaus. Embora o interesse pelo potencial hidrelétrico da região já houvesse motivado, em 1970, o início dos estudos de inventário dos rios Uatumã e Jatapu, conduzidos pelo comitê Coordenador dos Estudos Energéticos da Amazônia – Eneram, no início dos anos 1970, o parque gerador de energia elétrica da região de Manaus operava exclusivamente à base de derivados de petróleo, tendo sido ampliado para atender ao grande aumento da demanda causado pela implantação da Zona Franca, em 1967. A partir de então, o crescimento sócio-econômico acelerado na região demandava soluções rápidas para suprimento energético, em um quadro que se agravou com o primeiro choque do petróleo, a partir de 1973, levando o Governo Federal a procurar fontes alternativas que substituíssem ou minimizassem o consumo de combustíveis fósseis para geração de energia. A partir de sua criação, em 1973, a Eletronorte responsabilizou-se pelo aprofundamento dos estudos do Eneram – que resultaram, em 1975, na opção por Balbina como a melhor alternativa para atendimento ao mercado de Manaus. Balbina é considerada o “calcanhar de Aquiles” da Eletronorte pelos seus próprios dirigentes, técnicos e engenheiros. Todavia, as entrevistas confirmaram uma informação de que muitos desses personagens consideram que a Eletronorte “teve que engolir” aquele projeto, por determinação das autoridades do governo da época, como se sabe, durante o chamado Regime de Exceção. Eles lembram que Balbina, na época de sua concepção, atenderia perfeitamente o mercado de Manaus, ao qual a sua energia era destinada. Contudo, o mercado foi subestimado, a crise do petróleo passou e a obra demorou muito a sair. Para esses entrevistados, os atrasos sofridos pela obra, a não-construção da usina Cachoeira Porteira – no rio Trombetas – e a ignorância do setor sobre as características dos 274 afluentes da margem esquerda do Amazonas foram sérios agravantes para os problemas ambientais surgidos com a usina. Um dos engenheiros entrevistados relata que: Em Balbina, a floresta mascarava a cartografia. Quanto mais se aprimorava a cartografia, mais aumentava a usina, o reservatório. O único jeito de se ter certeza sobre a cartografia era cortar a floresta toda, coisa que não é possível. (Entrevistado em 24.03.2004) Outro entrevistado, ex- membro do Departamento de Estudos de Efeitos Ambientais da Eletronorte lembra dois momentos distintos de Balbina: Eu me lembro que houve uma sugestão absolutamente irracional de um pesquisador estrangeiro do Inpa, muito respeitado, de que fossem retiradas as máquinas de Balbina e fossem levadas para Cachoeira Porteira, no rio Trombetas. Como se isso fosse possível! Isso é coisa de quem não conhece absolutamente nada de usina hidrelétrica. Balbina levou um ano e meio para encher. Se você leva um ano e meio para encher, um ciclo não resolve. Você precisa de quase dois ciclos para encher, duas cheias. Duas cheias! Um pouco antes do "Apagão", o setor elétrico, de maneira absolutamente irresponsável, turbinou água demais. Em Balbina, só faltou turbinar lama. O reservatório ficou tão vazio que eu não sei se algum dia vai voltar a encher. (Entrevistado em 23.04.2004) Em Balbina existe hoje a maior Rebio do Brasil, a Rebio Uatumã e o Programa Waimiri-Atroari ganhou reportagens elogiosas em revistas de grande circulação nacional ÁREAS PROTEGIDAS ASSOCIADAS À UHE BALBINA 3.515.000 ha ESTADO DE ALAGOAS 2.765.000 ha ESTADO DE SERGIPE 2.205.000 ha BÉLGICA 3.051.900 ha Fonte: www.eln.gov.br, acesso em 30.04.2004 275 Criado em 1988, o convênio Eletronorte / Funai está previsto para um período de 25 anos, tendo objetivos idênticos aos do Programa Parakanã e foi escolhido pela Fundação Coge como a melhor ação ambiental desenvolvida por empresas do setor elétrico nacional. O prêmio, recebido em 21 de novembro de 200. Os resultados positivos da Eletronorte em Balbina não são suficientes para anular o profundo desgaste sofrido com o projeto e as características desse conflito não são comparáveis aos correspondentes em Tucuruí e Belo Monte. O terceiro grande conflito externo da Eletronorte se deu com o projeto da Usina Hidrelétrica Samuel (UHE Samuel), situada no rio Jamari, afluente da margem direita do rio Madeira, no estado de Rondônia, a 52 km da cidade de Porto Velho, pela rodovia BR364 e cujo reservatório estende-se até o município de Ariquemes. Sua construção foi iniciada em 1982 e sua operação comercial teve início em 1989, com uma capacidade máxima de geração de 216 MW e destinando-se a abastecer o mercado de energia elétrica do Sistema Acre-Rondônia. Não houve uma resistência expressiva ao projeto na região, em parte porque aquela região de expansão da fronteira agrícola não possuía um movimento ambientalista de envergadura e, tampouco, a sociedade civil se encontrava organizada. Mas, principalmente, porque a carência de energia elétrica na região atingia níveis tais que a adesão ao projeto era muito facilitada. A Eletronorte, antes do término da construção da barragem propriamente dita, iniciou a implementação do Programa de Educação Ambiental da UHE Samuel – PEA/Samuel, cujo público-alvo atingiu o impressionante número de 23.000 habitantes da região. Esta foi uma iniciativa pioneira da empresa, sem paralelo durante muitos anos no Brasil e cujos ganhos institucionais para a Eletronorte foram discretos. Uma das razões para isso é que o programa não foi “comprado” pelos próprios técnicos e engenheiros da 276 empresa, sendo visto por uns como dispendioso e desnecessário e, por outros, como uma incursão da empresa em territórios de ministérios como o MEC e o Ministério da Saúde. Um programa expressivo que abordava temas como malária, leishmaniose, vegetação, fauna e enchimento do reservatório, o PEA/Samuel foi interrompido bruscamente pela empresa, sob a alegação de falta de recursos financeiros, eliminando uma experiência pioneira da tradução para o público leigo da linguagem hermética do Rima elaborado pela empresa de consultoria. Na mesma época, a empresa implementou uma operação de resgate de fauna na área de inundação, sob uma série de críticas de segmentos científicos e acadêmicos. O projeto da UHE Samuel também sofreu críticas de setores ligados à construção de barragens por conta de uma grande extensão de diques laterais de terra para contornar o problema da pequena profundidade do reservatório, formado em uma área de pequena declividade. Essa característica do projeto foi responsável por mais uma das muitas histórias de conflito entre a Eletronorte e a mídia. Um tatu de proporções amazônicas, acuado pela subida das águas no período de enchimento do lago, atravessou um dos diques, cavando um buraco de proporções tais que provocou uma significativa fuga d’água para as características do reservatório. Foi o que bastou para que um grande jornal de São Paulo publicar a notícia de que o voluntarioso animal havia “furado a barragem” de Samuel, em uma clara conotação de crítica à construção desse tipo de obra na Amazônia. Para reforçar o que foi dito no capítulo desta pesquisa que tratou da informação, é necessário relatar que, em 2002, ao fazer uma palestra para profissionais de comunicação do setor elétrico brasileiro em Tucuruí, um jornalista se referiu ao fato como feito pelo jornal paulistano, mesmo depois de tantos anos e tantas explicações dadas pelos engenheiros da Eletronorte quanto ao absurdo da interpretação dada – em um exemplo 277 claro da permanência – e do uso político – de uma informação distorcida, ao longo dos tempos. Alguns outros conflitos externos da empresa tiveram lugar em sistemas de transmissão e um outro, associado ao projeto da usina do rio Manso, próximo a Cuiabá, estado do Mato Grosso, foi vivido pela Eletronorte por um período restrito, uma vez que o empreendimento foi transferido para Furnas – já na fase final. No que se refere a esta pesquisa, é interessante descrever uma situação que caracteriza as deficiências crônicas de uma Audiência Pública, pois o primeiro evento dessa natureza para uma hidrelétrica teve lugar em Cuiabá, no ano de 1989. A audiência fazia parte do processo de licenciamento ambiental da UHE Manso, nessa época ainda de responsabilidade da Eletronorte – que tinha como empresa consultora para as áreas de engenharia e meio ambiente a Sondotécnica S.A. Durante todo o processo inicial de discussão do projeto, a Eletronorte enfrentou uma forte oposição de parte da sociedade mato-grossense, liderada por professores da Universidade Federal do Mato-Grosso – UFMT. As críticas se referiam, principalmente, aos prováveis impactos ambientais a serem causados sobre o rio Cuiabá, do qual o rio Manso é tributário e que passa pela capital daquele estado, cuja população tem no pescado um alimento preferencial e uma referência cultural. Havia, ainda, uma preocupação crescente com possíveis impactos sobre o Pantanal Mato-Grossense. A audiência era ansiosamente aguardada pelos militantes anti-barragem, como uma oportunidade ímpar para demonstrar seus argumentos – o que, afinal, se enquadra perfeitamente na razão de ser de uma Audiência Pública. Por outro lado, o comando da Eletronorte, em Brasília, era regularmente provido de informações sobre os passos dos segmentos de oposição ao projeto, tanto por seu pessoal lotado regionalmente quanto por alguns setores da sociedade favoráveis ao projeto. 278 Nesse contexto, a empresa teve tempo e razões suficientes para preparar um processo ordenado e eficaz de transmissão sobre a usina e seus efeitos ambientais associados, com vistas a diminuir oposições, ganhar adesões e, acima de tudo, agir dentro do espírito de transparência pregado pelos novos tempos – de consolidação democrática – vigentes no Brasil, à época. Em lugar de assim proceder, a Eletronorte concentrou seus esforços em articulações políticas com o governo estadual e na preparação, juntamente com a consultora, de um caudaloso EIA, um ininteligível Rima e uma apresentação recheada de termos técnicos e jargões do setor para a audiência. Próximo ao “grande dia”, a empresa se deu conta de que a oposição preparava uma série de manifestações e, para tanto, contava com o apoio de parte expressiva dos alunos da universidade e de nascentes grupos ambientalistas da região. Em regime de urgência, o Departamento de Comunicação Social deflagrou uma campanha de propaganda na mídia cuiabana e montou uma grande operação para trazer à audiência os moradores do norte do estado. Esta região, conhecida como “Nortão”, só possuía energia elétrica obtida por meio de geradores e recebeu a informação de que seria possível levar uma linha de transmissão para suas cidades. Na audiência formou-se, então, um grande – e mal-conduzido – “programa de auditório”. Manifestantes da oposição filmavam – de forma ostensiva e intimidadora – todos os que entravam no local do evento, ônibus lotados de moradores do “Nortão” desembarcavam a facção favorável à usina, que foi arregimentada com recursos da Eletronorte. Estudantes da Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT entravam no auditório caracterizados como vítimas do “Agente Laranja de Tucuruí” – o mesmo Tordon que não foi encontrado pela fiscalização da Sema, anos antes, naquela usina – e um grande contingente de engenheiros e técnicos, munidos de gráficos, tabelas e números se encontrava a postos para responder às questões que, supostamente, seriam feitas pela sociedade local. 279 De modo sintético, de nada serviu o evento. A usina foi construída, a linha de transmissão para o “Nortão” só foi inaugurada no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso e a Eletronorte, após todo um desgaste institucional, passou a hidrelétrica para Furnas. Segundo informações de um dos entrevistados desta pesquisa, confirmadas por consulta informal a moradores de Cuiabá, em 2003, membros da comunidade afetada pelo reservatório se referiam à Eletronorte como a responsável pelas questões existentes, ignorando o fato de que a empresa não é mais a responsável pela usina. O episódio ilustra bem as “virtudes” dos processos de comunicação adotados historicamente pelo setor elétrico brasileiro para interagir com as comunidades afetadas pelos seus projetos. Salvo poucas exceções, o setor tem uma cultura de comunicação social construída por estratégias de relações públicas e por uma propaganda institucional voltada para a “venda” das vantagens de suas usinas. Alem disso, é preciso ressaltar que existem, dentro do setor, pouquíssimos casos de interação regular e coordenada dos departamentos de meio ambiente com as assessorias de comunicação social. 4.5 CONCLUSÃO Esta pesquisa investiga a interseção dos conjuntos Setor Elétrico, Meio Ambiente e Amazônia – e, nessa interseção, a participação da sociedade nos processos de tomada de decisão, a transmissão de informações à sociedade e os mecanismos de validação dessas informações. Nesse contexto, tornou-se obrigatório um estudo sobre os conflitos internos dos setores ambiental e elétrico, uma vez que no capítulo anterior procurou-se descrever as características das possíveis Amazônias existentes no inconsciente de cada um daqueles que se interessam pela ou vivem naquela região. 280 A síntese desses conflitos pode ser observada na história da Eletronorte que, embora sendo uma subsidiária da Eletrobrás, tem "vida própria" na sua região de atuação – uma região, aliás, que não mais existe, em termos da ordenação atual do setor elétrico e da legislação vigente. Essa nova ordem institucional, que foi, de certo modo, sinérgica com o desmonte do Estado brasileiro, ocorrido a partir do Governo Collor, tornou a Eletronorte uma empresa em vias de privatização, ao mesmo tempo em que continuava sendo percebida pela sociedade regional de sua área de atuação como um agente de desenvolvimento. Os conflitos internos da empresa, combinados com os conflitos do setor elétrico, como um todo, e com os conflitos intrínsecos do setor ambiental levaram a uma situação única no projeto da usina hidrelétrica Belo Monte. O açodamento da Eletronorte, a surpreendente condição de observadora em que se colocou a Eletrobrás, a intervenção do Ministério Público, o quadro político das eleições presidenciais de 2002, as características da região de Altamira e a não-intervenção de qualquer mediação de conflitos, fizeram com que a história do projeto de Belo Monte se tornasse exemplar para que se analisasse aquela interseção de três conjuntos aqui considerada. No próximo capítulo, esta pesquisa irá discutir e analisar as causas do conflito de Belo Monte, privilegiando os depoimentos colhidos nas entrevistas realizadas e a condição de observador participante, descrita anteriormente. 281 CAPÍTULO 5: DESCOMPASSO E PIROSCÓPIO. (UMA HISTÓRIA DE CONFLITOS EMERGE EM BELO MONTE) 5.1 INTRODUÇÃO Utilizando uma metáfora simples, poderíamos comparar esta pesquisa a um procedimento cirúrgico complexo e arriscado. Complexo porque o "paciente" é um setor de grande tradição no Brasil, com uma cultura própria consolidada e atravessando, no momento da "intervenção cirúrgica", um período conturbado de mudanças em sua estrutura. Agravam esse quadro tanto a conjuntura internacional, quanto a conjuntura brasileira, na qual o Governo Federal é formado, majoritariamente, por forças que se opuseram à estrutura que o setor elétrico mantinha nas gestões anteriores – o que fez com que fossem implementadas mudanças do modelo adotado pelo setor elétrico, durante o período em que foi realizada esta investigação. Complexo é o quadro dos órgãos ambientais no país, em uma fase de cobranças por parte de segmentos expressivos da sociedade, inclusive por atores do próprio Governo Federal, tanto em relação à morosidade de seus procedimentos quanto às suas deficiências estruturais. Mais complexo ainda é o conjunto de características que compõem a atuação desses setores na Amazônia, uma região notável em tantas dimensões – mas, especialmente para esta análise, pelo seu potencial hidrelétrico e pela sua diversidade de ambientes e de atores. O risco da "operação" está associado a múltiplos fatores e, dentre eles, se destacam a multiplicidade de visões quanto a procedimentos e técnicas disponíveis para o "cirurgião". 282 Todavia, o risco mais importante desta tarefa reside no fato de que o "médico" é um "parente", mesmo que afastado, do "paciente". Essa situação é revelada na escolha de uma posição de observador participante, uma condição que aproxima o foco – ao mesmo tempo em que gera riscos derivados de um demasiado envolvimento pessoal que, de todo modo, aqui foi evitado. Por isso mesmo, os capítulos anteriores foram destinados ao detalhamento das escolhas da intervenção e ao próprio trabalho "cirúrgico" – que chega ao seu clímax no presente capítulo, com a expectativa de que esses riscos tenham sido reduzidos a um mínimo possível. Feitas as opções pelo instrumental, pela técnica e pela "escola cirúrgica" a ser seguida, procurou-se adentrar o "centro cirúrgico", com as mãos desinfetadas de preconceito e a convicção de que salvar o "paciente" é uma tarefa por demais ambiciosa para este trabalho. Para tanto, torna-se imprescindível esclarecer que esta intervenção não visa à "cura" dos problemas apontados e sim a uma análise das "mazelas do paciente", sendo voltada para uma "anamnese", ou seja, em termos da medicina, um histórico que vai desde os sintomas iniciais até o momento da observação clínica, realizado com base nas lembranças do paciente. No caso específico desta tese, também com base nas lembranças do "cirurgião". O trabalho de Lee serviu de referência para esta análise e para intitular este capítulo da tese. O que se deseja é que as razões dessa escolha sejam percebidas pelo leitor – bem além do simples jogo de palavras, feito por meio da tradução livre de compass. Nunca é demais lembrar que esta "cirurgia" tem como pré-requisitos a informação e a participação da sociedade e, portanto, a "visão do cirurgião" esteve, durante todo o tempo, voltada para esses aspectos do "paciente" –ou seja, dos conflitos analisados. 283 Finalmente, cabe ressaltar que este capítulo se baseia fortemente em documentos do Governo do Estado do Pará, do IBGE, do PNUD, da Eletrobrás e da Eletronorte, todos referenciados nesta tese. 5.2 O CHE BELO MONTE E A REGIÃO DE ALTAMIRA O projeto Belo Monte, para esta pesquisa, é um complexo hidrelétrico a ser construído na Região Norte do Brasil, no sudoeste do Estado do Pará, em uma área localizada na Volta Grande do rio Xingu. O conjunto barragem, reservatório, tomada d’água e casa de força ocupará áreas dos municípios de Vitória do Xingu, Altamira e Brasil Novo e tem, hoje em dia, a denominação de Complexo Hidrelétrico Belo Monte – CHE Belo Monte. O conjunto de municípios próximos, juntamente com esses três, será aqui denominado, apenas como simplificação textual, de região de Altamira – por ser esse o município polarizador das alterações socioambientais previstas, resultantes da implantação do projeto. Formam um conjunto de 11 municípios. A história do projeto começou com os Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu, iniciados em 1975. A Eletronorte emitiu o Relatório Final em janeiro de 1980, sendo aprovado pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica DNAEE, por meio da Portaria nº 43 de 2 de março de 1988. Baseando-se nas recomendações contidas no relatório, os técnicos da Eletronorte começaram, em julho de 1980, os estudos de viabilidade técnica e econômica do complexo Hidrelétrico de Altamira, compreendendo as usinas Kararaô e Babaquara. Os trabalhos de campo estavam inicialmente concentrados na usina de Babaquara e foram, a partir de 1986, redirecionados para o sítio de Kararaô, em uma conseqüência direta dos estudos desenvolvidos na elaboração do Plano 2010 da Eletrobrás. Nessa época, mesmo 284 em fase de elaboração, o plano indicava essa usina como a melhor opção para iniciar a integração das usinas do Xingu ao Sistema Interligado Brasileiro. È importante lembrar que, desde 1975, a movimentação de técnicos na região já despertava muita curiosidade na população local, dando razões para o surgimento de boatos e especulações a respeito do projeto, sem contudo, ensejar qualquer processo de comunicação ordenado e contínuo por parte da Eletronorte, DNAEE ou Eletrobrás. Assim, a partir dos marcos teóricos adotados neste trabalho, é possível considerar que o conflito aqui analisado se iniciou nesse período. Em janeiro de 1990, a Eletronorte enviou ao DNAEE o Relatório Final dos Estudos de Viabilidade do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte (antiga UHE Kararaô), solicitando sua aprovação e a outorga de concessão. A usina, embora projetada para operar a fio d´água, previa um reservatório com 1.225 km² de área inundada, com 11.000 MW instalados. O aproveitamento de Babaquara, principalmente pelo tamanho do seu reservatório, já estava praticamente descartado, segundo depoimentos de vários entrevistados desta pesquisa. Entretanto esse fato só era conhecido por parte dos engenheiros e técnicos do setor. Como será possível observar, esse é um dos elementos centrais do conflito. O projeto de Kararaô foi alvo de inúmeras críticas e restrições por parte da população local e, principalmente, de organizações ambientais e humanitárias internacionais. Um encontro realizado em março de 1989, na cidade de Altamira, marcou, simbolicamente, o início das escaramuças. Nesse encontro, junto com atores locais e regionais – como representantes da Igreja Católica, movimentos sociais, lideranças indígenas e imprensa, entre outros – militavam representantes de organizações nacionais e internacionais, inclusive com a presença de personalidades do meio artístico de grande visibilidade na mídia. Em relação ao evento, um dos entrevistados desta pesquisa – ex-engenheiro do setor elétrico – fez uma comparação interessante, traçando um paralelo com os processos 285 envolvendo a bacia do rio Uruguai, entre os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Na região, foram estudadas mais de cem possibilidades de aproveitamento hidrelétrico, algumas muito pequenas, sendo, aproximadamente, 12 usinas consideradas importantes. Segundo o entrevistado: Fizeram propaganda no setor elétrico, nas empreiteiras, na região. A população achou que ia ser tudo inundado. É uma região de minifúndios, com imigrantes do Século XIX, classe média. Não deu outra: criaram o CRAB, que depois virou MAB. Fizeram o mesmo "oba-oba" no Xingu, mas lá a população é outra. O pessoal de São Paulo, ligado aos índios, conseguiu levantar a turma. A oposição foi anterior ao projeto. (Entrevista realizada em 24.03.2004) Figura 5.1: Localização do Projeto (Fonte: Eletronorte) 286 Figura 5.2: Imagem de satélite da Volta Grande do Xingu (Fonte; Eletronorte) Nesse momento, ocorreu o que se poderia chamar de primeiro grande embate entre ambientalistas e setor elétrico na Amazônia. As rusgas ocorridas em Tucuruí, até então, não haviam tido a repercussão nos meios de comunicação que o encontro de Altamira gerou. Era a colisão entre os desbravadores da Amazônia, orgulhosos com a magnitude da usina no rio Tocantins – ainda hoje, a maior hidrelétrica nacional em operação – e o movimento ambientalista internacional que, impulsionado por ocorrências recentes como os acidentes de Chernobyl e Goiânia, se articulava fortemente e apoiava as causas das minorias amazônicas, especialmente os indígenas. Um episódio selou definitivamente o encontro: o momento em que a índia Tuíra brandiu ameaçadoramente seu facão próximo ao rosto do engenheiro José Antonio Muniz 287 Lopes, em protesto contra a construção da usina – segundo as lideranças indígenas, uma ameaça à sua existência como nações. Tuíra se transformou, a partir de então, em um ícone da oposição ao projeto, algo como David enfrentando Golias, de modo especialmente interessante pelo fato de se tratar de uma mulher. Internamente, seja por força da "blindagem" criada pelos aspectos culturais do setor, seja pela fase de relativo poder da empresa – o Presidente da República era José Sarney e o presidente da Eletronorte maranhense – ou seja porque tinham informações privilegiadas do mercado nacional e internacional, o corpo técnico e gerencial da empresa não deu uma importância proporcional aos reflexos externos do conflito. Começavam também as primeiras suspeitas, no setor, quanto às interferências de interesses estrangeiros nas opções da matriz energética nacional. Em Altamira, quando o presidente da Eletronorte foi ameaçado pela índia Tuíra, no mesmo movimento havia os vendedores de térmica, falando que elas não barravam rio nenhum, vendendo máquinas lá dentro de Altamira. Ingleses, americanos criando um mercado para eles. Vai ficar dependendo de peças deles, vai ficar a vida inteira comendo na mão deles e pagando diesel. Veja agora, por exemplo. Semana passada, nós estávamos aqui na empresa discutindo uma usininha que o Sivam tem lá em São Gabriel da Cachoeira que gasta 3 litros de óleo para chegar um litro na usina (balsas, caminhão etc). Um absurdo um negócio desses. (Depoimento de um engenheiro da Eletronorte, em 16.03.2004 ) Externamente, o episódio prejudicou, sobremaneira, a Eletronorte, pois, ainda no período em que esta pesquisa foi realizada, era lembrado constantemente pelos entrevistados – principalmente porque o “Dr. Muniz" , como o engenheiro é chamado na região, era o presidente da empresa e principal entusiasta do projeto de Belo Monte. No evento, inclusive, ocorreu uma forte manifestação contrária à denominação Kararaô para a usina, nome que os indígenas utilizavam em situações de guerra e, de certa forma, considerado sagrado. 288 Diretor de Engenharia, na época do evento, o “Zé Antonio”, como é conhecido internamente à empresa, ficou como uma espécie de “centroavante isolado na grande área”, como se diz no mundo do futebol. A reação da empresa ao episódio, muito tímida, evidenciava, além das disputas internas pelo poder, uma espécie de “complexo de inferioridade” que começava a nascer na Eletronorte, como resultado dos sucessivos ataques sofridos – vindos tanto da mídia quanto dos meios acadêmicos e científicos – por conta de Tucuruí e Balbina. O personagem “Dr. Muniz” – ou “Zé Antonio” – assumiu uma importância capital na segunda fase do conflito, como veremos mais adiante. A empresa ocupava, então, um conjunto de três blocos de doze andares em Brasília e, apesar de os departamentos de Meio Ambiente e Comunicação Social se situarem em um mesmo andar, seus profissionais interagiam de forma pontual e predominantemente voltada para propaganda, eventos e relações públicas. Também nessa época, foi apresentada à presidência da empresa uma proposta de interação entre as duas áreas, intitulada Programa de Informação Sobre o Meio Ambiente – Prisma, que buscava, entre outras metas, unificar o discurso externo nos eventos e publicações, aproveitando a também nascente e acelerada informatização no mundo empresarial. Esse programa previa a criação de uma estrutura única que, sem eliminar a autonomia dos dois departamentos, seria a responsável pela coordenação das interações com a sociedade, no que diz respeito à sistematização das informações. Isto com o objetivo de evitar posicionamentos conflitantes como, por exemplo, representantes da engenharia e do meio ambiente, em uma mesma região e falando sobre um mesmo projeto, apresentarem visões colidentes à sociedade local ou aos órgãos licenciadores ambientais – como os possíveis impactos ambientais de um determinado projeto, sua magnitude e as medidas mitigadoras e compensatórias cabíveis. 289 O programa também visava ao público interno, procurando agir em sentido contrário a um nascente “complexo de inferioridade” que fazia com que os empregados se vissem estigmatizados pela classificação, recorrente na mídia, de “matadores de índios, bichos e florestas”. Divulgando internamente, por exemplo, os programas da empresa para os Parakanã e para os Waimiri, o Prisma teria como uma de suas finalidades aumentar a autoestima dos empregados – hoje chamados de colaboradores, mas em uma realidade pouco modificada – e preparar as consciências para a necessária interação com a sociedade, cada vez mais urgente e preconizada nos documentos do Comase. O Prisma, apesar de elogiado pela presidência da empresa e incluído no I Congresso Brasileiro de Educação Ambiental, em 1988, se transformou em mais um natimorto na época do Governo Collor, período em que a empresa sofreu, mais uma vez, transformações radicais em sua gestão. O episódio da índia Tuíra, nesse contexto, permaneceu como uma evidência das razões da derrota do então projeto de Kararaô. Na verdade, não foi bem isso que ocorreu. A crise financeira do setor elétrico, no início da década de 90, interrompeu os trabalhos de campo e fez com que o contrato com a empresa consultora de engenharia que vinha realizando os estudos fosse encerrado e, durante esse período (até o final de 1999) pouco ou nada se discutiu na região de Altamira sobre o projeto, já então com a denominação Belo Monte. Nessa época, o setor elétrico deu uma de avestruz. Investiu demais em hidrelétricas. No Brasil como um todo. Na Amazônia, não. Acreditava-se em um crescimento continuado. Quando Itaipu ficou pronta, não havia mercado. A recessão, a partir de 1982, tornou as UHEs ociosas. Durante anos, não se fez nada no Sul e no Sudeste por causa de Itaipu. Belo Monte não avançou pela falta de dinheiro. A contenção tarifária descapitalizou o setor. Isso até hoje não foi resolvido. (Depoimento de um ex-técnico do Ministério das Minas e Energia, em 24.03.2004) 290 Em 1994, a Eletronorte entregou ao DNAEE e a Eletrobrás um estudo preliminar contendo uma modificação do arranjo indicado no Relatório Final dos Estudos de Viabilidade, segundo a qual o barramento e o vertedouro da usina seriam deslocados para montante e, com isso, a área do reservatório seria reduzida de 1.225 km² para cerca de 440 km², sem alterar as características energéticas do projeto e evitando, assim, a inundação da terra indígena Paquiçamba. Um grupo de trabalho foi constituído pela Portaria DNAEE 769, de 25 de novembro de 1994, para analisar a proposta de novo arranjo e recomendou o aprofundamento da alternativa na fase de viabilidade. O novo arranjo sugeria a construção de dois canais de adução, reduzindo, assim, o espelho d' água do reservatório. Essa solução trouxe como complicador o volume de terra a ser removida na construção dos canais. Em fevereiro de 1999, já sob a responsabilidade da ANEEL, foi registrada a solicitação da Eletrobrás para a elaboração conjunta com a Eletronorte dos Estudos de Complementação da Viabilidade do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte, para validar a viabilidade técnica, econômica e ambiental do novo arranjo. Em dezembro de 2000, a Eletrobrás e a Eletronorte celebraram um Acordo de Cooperação Técnica, objetivando a realização dos estudos. O eixo principal do projeto da barragem atual está situado no rio Xingu, distando quarenta quilômetros rio abaixo da cidade de Altamira, aproximadamente. Seu acesso terrestre principal é por meio da BR-230 – Rodovia Transamazônica – e, por via fluvial, do porto de Belém e pelo rio Xingu, que é totalmente navegável da foz até a Vila de Belo Monte do Pontal. O complexo consiste em uma barragem principal, um reservatório inundando parte da área da Volta Grande e duas usinas hidrelétricas: a usina principal de Belo Monte e uma 291 usina complementar, localizada na barragem principal, no ponto denominado Sítio Pimental. A barragem principal, de terra homogênea e de enrocamento, tem uma extensão de 6.200 m e altura máxima de 36 m, na região da margem direita do rio Xingu. A usina principal foi planejada para uma potência instalada de 11.000 MW, com vinte unidades geradoras do tipo Francis – com eixo vertical – e potência de 550 MW, cada uma. A usina complementar, segundo a Eletronorte, se destina a aproveitar a vazão a ser mantida a jusante do barramento principal, em um trecho denominado estirão de jusante. Com uma potência instalada de 182 MW, em 7 turbinas do tipo bulbo, com potência 25,9 MW cada uma, essa usina pretende ser um aproveitamento da necessidade de se manter a denominada vazão ecológica, ou seja, uma vazão mínima necessária para manter condições ecológicas definidas pela legislação ambiental. O espelho d’água do reservatório terá uma área total de 440 km², com nível máximo normal de operação na cota 97 m. Duas partes distintas compõem o reservatório a calha do Xingu – que compreende a área da calha de inundação do rio Xingu na cota 97 m – e a parte correspondente à área que será inundada pelas vazões desviadas do rio Xingu através dos canais de derivação. Nesta parte do reservatório será construído um vertedouro complementar. O projeto prevê uma geração a fio d’água, isto é, o número de turbinas acionadas depende essencialmente das vazões naturais afluentes à casa de força, não havendo capacidade de acumulação no reservatório. A Eletronorte trabalha com a hipótese de a área de influência direta da construção do empreendimento abranger quatro municípios: Vitória do Xingu, Altamira, Senador José Porfírio e Anapu. 292 Quadro 5.1: DADOS PRINCIPAIS DO CHE BELO MONTE: Potência Instalada 11.182 MW Máquinas 20x 550 MW + 7x 26 MW Área (espelho d' água) do reservatório 440 km² Energia firme global 4.796 MW médios Investimento Total US$ 5252,00 Custo do kW instalado US$ 361 / kW Custo da energia gerada na usina US$ 12,40 / MWh Custo da energia gerada na rede básica U$ 18,95 / MWh Vazão mínima na Volta Grande do Xingu 200 m³/s em outubro Fonte: Relatório do CNPE; Dezembro de 2002. Nesse contexto, os impactos ambientais principais considerados, mesmo sem a conclusão do EIA, seriam: • a inundação provocada pelo reservatório que, embora com área considerada como relativamente pequena, manterá constante a inundação, hoje sazonal, dos igarapés Altamira e Ambé, que cortam a cidade de Altamira, além de inundar parte da área rural do município de Vitória do Xingu; • a redução da água à jusante do barramento do rio, na Volta Grande do Xingu; e • a interrupção do transporte fluvial de Altamira para as comunidades ribeirinhas a jusante, até o rio Bacajá. Um levantamento inicial da população que precisará ser remanejada – por ser diretamente atingida pelo reservatório – indica aproximadamente duas mil famílias na área urbana de Altamira, 813 na área rural de Vitória do Xingu e 400 famílias ribeirinhas. 293 O processo de relocação dessas famílias foi objeto dos primeiros questionamentos feitos durante encontros das comunidades com os técnicos da Eletronorte, na segunda fase do conflito. Juntamente com a questão das praias do Xingu, principal lazer da população da região, foi o tópico mais abordado nos eventos gravados nas fitas de vídeo que fizeram parte do material de pesquisa desta tese. O questionamento sobre relocação de populações é visto, no projeto Belo Monte, de forma diferente daqueles enfrentados em usinas de outras regiões e mesmo do empreendido em Tucuruí, mas esta usina é uma referência constante nas manifestações da oposição àquele complexo hidrelétrico. Os engenheiros mais antigos do setor guardam lembranças não muito agradáveis das experiências anteriores. Eu me lembro muito bem que quando estava fechando a barragem de Xingó o Jornal Nacional, falando do fechamento, entrevistou uma pessoa que estava fazendo um "puxadinho" na casa dele. A repórter perguntou se ele não estava sabendo que ali ia ser inundado e ele respondeu que ele estava fazendo a obra porque depois a Chesf iria indenizá-lo. Você pode ter certeza de que isso é uma indústria! (Depoimento de um engenheiro da Eletronorte, em 16.03.2004) Entre a elaboração dos estudos – de Viabilidade Técnica e Econômica e de Impacto Ambiental – e a entrada em operação da usina em caráter definitivo são previstos 11 anos, considerando a conclusão de todas as obras e montagens, com a conseqüente desmobilização de canteiros e demais instalações. Segundo a Eletronorte, o cronograma do CHE Belo Monte foi dividido em seis principais etapas: Planejamento; Construção; Enchimento do reservatório; Operação Inicial; Desmobilização dos Canteiros e Operação Definitiva. A primeira etapa de planejamento corresponde às atividades relativas obtenção de licenças ambientais. Os Estudos de Viabilidade Técnica e Econômica, Estudos de Impacto Ambiental (EIA), Relatório de Impacto Ambiental (Rima) e Projeto Básico Ambiental 294 (PBA) precedem a elaboração do Projeto Executivo, que deverá se estender até o final da obra. A aprovação dos Estudos de Viabilidade, do EIA, do Rima e do PBA é pré-requisito para a aprovação e para o licenciamento do empreendimento junto aos órgãos ambientais responsáveis e ao poder concedente da outorga de uso de água, a ANEEL. O enchimento do reservatório está previsto para um intervalo de tempo de cerca de 60 dias, entre os meses de janeiro e fevereiro. Apesar de ser, para a escala do empreendimento, curto, esse período possui grande relevância para os estudos ambientais, pois nessa etapa serão desenvolvidas atividades de salvamento de fauna ameaçada de extinção ou de interesse científico, além de ser o momento da acomodação preliminar do reservatório dos canais e do reservatório da calha do Xingu. A 50 km a leste da cidade de Altamira e 400 km a sudoeste da capital Belém, Belo Monte é considerado pela maioria dos técnicos do setor elétrico como um dos melhores aproveitamentos hidrelétricos em todo o mundo, pois se considera que serão produzidos mais de 28 MW por quilômetro quadrado de área alagada, contra 3 MW/km² em Tucuruí ou 8,6 MW/km² em Itaipu, por exemplo. Alguns chegam a afirmar que o Brasil não tem alternativas para Belo Monte e que não há projeto comparável no mundo inteiro. O CHE Belo Monte está situado no bioma amazônico, na bacia do rio Amazonas. O rio Xingu é um dos principais afluentes da margem direita do rio Amazonas, situado entre a Depressão Amazônica e a Planície Amazônica. A usina de Belo Monte aproveita um conhecido desnível que existe nos lugares em que a Rodovia Transamazônica corta não apenas o rio Xingu, mas também os rios Tapajós, Madeira, Ji-Paraná, Aripuanã e de forma similar, o rio Tocantins em Tucuruí. Essa linha representa a transição entre os sedimentos terciários (áreas baixas) e o embasamento cristalino (terras altas), acidente geográfico característico e que inclusive 295 bloqueia o transporte fluvial entre o médio e alto curso dos rios com seus desaguadouros no rio Amazonas. Belo Monte é um caso especial, qualquer que seja o aproveitamento da bacia do Xingu. Ali é um lugar de hidrelétrica. (...) Uma queda muito boa, sem reservatório de regularização e pode ser estudada independentemente do resto da bacia. A energia é a mesma, com ou sem barramento a montante. É uma sorte, um acaso. (Depoimento de um ex- técnico do Ministério das Minas e Energia, em 24.03.2004) O CHE Belo Monte tem como finalidade a produção de energia elétrica para atendimento das demandas do mercado interno brasileiro, devendo ser interligada ao Sistema Elétrico Nacional pelo "Linhão" Norte / Sul, na cidade de Imperatriz, no estado do Maranhão, com potência instalada de 11.182 MW e fazendo parte do Plano de Expansão do Setor Elétrico Brasileiro desde 1986. Uma situação simbólica da precariedade do processo de comunicação entre as partes envolvidas no conflito é o fato de determinados setores, inclusive acadêmicos e jurídicos, insistirem que a denominação atual de Complexo Hidrelétrico Belo Monte (CHE Belo Monte) é uma evidência de que outras quatro usinas (Altamira, Ipixuna, Kakraimoro e Jarina) fariam parte do projeto, enquanto a Eletronorte alega que tal denominação é apenas uma adequação às normas da ANEEL, haja vista o aproveitamento de um vertedouro auxiliar que, se motorizado, acrescentaria 182 MW aos 11.000 MW da casa de força principal. Com isso, caso não fosse utilizada a denominação “complexo”, duas licitações teriam que ser realizadas, com risco teórico de serem vencidas por empreendedores diferentes – o que causaria, evidentemente, uma série de problemas de gerenciamento do sistema. O que se verificou com esta pesquisa é que, embora o setor elétrico considere que do Inventário do Xingu só seja considerado como uma escolha natural o aproveitamento de Belo Monte e que o inventário ter, necessariamente, que ser refeito, a desconfiança permanece. 296 De um lado, opositores do projeto utilizam a denominação CHE para insistir que a Eletronorte não está falando a verdade. A empresa, por outro lado, não consegue ser convincente nas suas explicações à sociedade. Para que sejam percebidos os problemas existentes na região de Altamira, é preciso lembrar que, na década de 1970, a abertura da Transamazônica trouxe uma típica expansão da fronteira agrícola para a região, com a destinação de lotes situados à beira da rodovia, causando impactos significativos em Altamira, então com cerca de 15.000 habitantes. O novo eixo rodoviário interceptou o antigo eixo fluvial do rio Xingu e fez com que Altamira fosse unida ao resto do país por via rodoviária, pela primeira vez, acelerando o seu ritmo de reprodução e de mudança sociais, antes determinados pelo lento transporte fluvial, como bem descrevem Drummond e Nascimento: Altamira virou um daqueles lugares em que uma antiga Amazônia fluvial foi tocada por uma recente Amazônia rodoviária. Dezenas de milhares de pessoas acorreram por via terrestre (e também fluvial) para o eixo da Transamazônica, mesmo antes de a estrada ficar “pronta”. Pode-se até argumentar que ela nunca ficou pronta, mas os seus efeitos forma independentes desse fato. Elas vieram de muitos lugares, algumas em trânsito, outras criando raízes na pré-existente Altamira ou em assentamentos novos que elas mesmas ajudaram a criar. Estranhas quase todos à Amazônia, vindas do Sul, do Centro-Leste, do Nordeste e do Centro-Oeste, traziam consigo os traços de suas regiões de origem – sotaques e falares regionais, comidas, religiões, músicas e ritmos, cultivos agrícolas, laços de família e parentesco, lealdades futebolísticas e assim por diante. Ao mesmo tempo, os modernos sistemas de telefonia e de transmissão televisiva começaram a operar na área, em rede nacional. Habitantes locais puderam ter um contato ainda mais amplo e amiudado com a “cultura nacional”, e os adventícios mantinham alguma forma de conexão com as suas regiões de origem. (Drummond e Nascimento, 2003: 35) O trabalho desses autores e os documentos da Eletronorte, referenciados nesta pesquisa, influenciaram fortemente a descrição que se segue, a respeito da caracterização dos atores relevantes na região de Altamira. 297 A região de Altamira cresceu rapidamente, mas o Governo Federal diminuiu suas intervenções na área depois de 1974, ignorando os efeitos da abertura da estrada e da migração intensa. A agricultura, a pecuária e as madeireiras mantiveram-se, ao seu modo, atuantes, até que na década de 1990, sofressem, também com a estagnação. Ainda hoje, Altamira como atua como pólo da região, seja por ser o mais extenso e populoso dos municípios, seja porque, sendo a cidade maior e mais importante da região leva a uma dependência dos demais municípios em relação a serviços como o do setor bancário e comercial, por exemplo, além, é claro da saúde e da educação. Altamira, Anapu, Brasil Novo, Gurupá, Medicilândia, Pacajá, Placas, Porto de Moz, Senador José Porfírio (antigamente denominado de Souzel), Uruará e Vitória do Xingu são os municípios da região de Altamira. O Censo do IBGE, em 2000, apontou um total de 286.407 habitantes, dos quais cerca de 56% estavam no campo.Da década de 1970 até o ano 2000, um crescimento populacional de, aproximadamente,600% ocorreu na região, sendo desacelerado na última década do século passado, principalmente pelo desinteresse do Governo Federal na área. O setor primário é o mais importante na região, com lavouras temporárias e permanentes, pecuária e extrativismo vegetal. Os principais produtos agrícolas são arroz, mandioca, milho – temporários – cacau, café e pimenta-do-reino – permanentes. A pecuária bovina expandiu-se significativamente na região, tornando-se uma opção para grandes e médios proprietários – mas, também para os pequenos produtores familiares. O extrativismo divide-se, principalmente, entre alimentos e madeira. A região possui serviços urbanos precários, baixa escolaridade e serviços de saúde deficientes, mesmo quando são comparados com os indicadores da Região Norte. A qualidade de vida de boa parte da população é comprometida por números que assinalam, por exemplo, uma cobertura da rede pública em que apenas 18% dos domicílios estão ligados à rede de abastecimento de água e menos de 20% da população dispõe de rede de 298 esgoto – na cidade de Altamira . As demais cidades da região sequer possuem esses serviços. Na região, apenas Altamira dispõe de serviço regular de coleta de lixo. De acordo com dados do IBGE, em 1999, apenas a cidade de Senador José Porfírio tinha acima de 40% de suas ruas asfaltadas. O setor educacional é precário, principalmente o acesso à escola no meio rural, onde as comunidades são relativamente dispersas e de difícil acesso, principalmente na época das chuvas. A rede escolar é também concentrada em Altamira e a maioria das sedes dos municípios não tem escolas secundárias regulares. O ensino superior só existe naquela cidade, por meio da Universidade Federal do Pará - UFPa e da Universidade Estadual do Pará – UEPa. A região conta com cerca de 88 unidades de saúde, das quais 11 são hospitais. Enquanto no Brasil a média é de 3,35 leitos por 1.000 habitantes, na região de Altamira é de menos de dois leitos por 1.000 habitantes. A recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de cinco leitos para cada mil habitantes. Como no caso da educação, a infra-estrutura de saúde se concentra em Altamira. As comunidades indígenas amazônicas contam com o apoio de parte expressiva dos formadores de opinião em nível nacional e, principalmente, internacional. Existem muitos organismos, tais como fundações, ONGs, organizações da sociedade civil e a própria comunidade científica, voltados à defesa dos direitos indígenas. Os documentos preliminares da área de Inserção Regional da Eletronorte assinalam, na região de interesse dos estudos da hidrelétrica de Belo Monte, dez terras indígenas totalizando 5.353.788 hectares. Abrigando uma população de 1.397 pessoas pertencentes a nove povos de cinco famílias lingüísticas, esse conjunto tem nove terras já delimitadas e a décima – a terra indígena Xipaia - em estudos visando à sua identificação. Das nove terras delimitadas, seis já tiveram sua demarcação física homologada por decreto presidencial e, destas, duas estão registradas no Cartório de Registro de Imóveis e 299 três com registro também no Serviço de Patrimônio da União, ou seja, integralmente regularizadas. Dentre o conjunto de terras indígenas, apenas uma sofreria impactos diretos do CHE Belo Monte, pelo projeto atual. É a terra Paquiçamba, a ser afetada pela diminuição da vazão do rio Xingu após a barragem que desvia as águas, por dois canais, para a casa principal das máquinas. Essa população forma um conjunto de atores que podem oscilar de uma posição de neutralidade para a de rejeição do complexo Belo Monte, haja vista a forte influência exercida pelos citados organismos nacionais e internacionais. Como a pecuária é uma das atividades econômicas que mais cresce no Pará, hoje ocupando o nono lugar na produção nacional, em número de cabeças de rebanho bovino, os pecuaristas são, além de um poderoso grupo econômico, constituindo uma parcela da sociedade paraense em fase de ascensão, com atores de grande influência nas esferas social e política. Seu principal interesse é a melhoria da infra-estrutura de transporte, o crédito, a verticalização da produção, os insumos e preços. Esses atores se manifestam por meio de diferentes organizações, tais como associações patronais e federações de empresários rurais que têm se posicionado como grupo de apoio ao empreendimento. Os Pequenos e Médios Produtores Rurais possuem propriedades rurais de pequena extensão territorial para os padrões da região, limitada disponibilidade de capital e um baixo nível de produtividade. Voltados principalmente para a produção de bens agrícolas destinados ao consumo de subsistência, com excedentes orientados para o mercado regional e local, dependem de condições de crédito, assistência técnica e mecanismos de comercialização para a manutenção das suas atividades produtivas. 300 Existe uma forte demanda pelo apoio e pelo incentivo governamental para a sua viabilização econômica, sobretudo no tocante a garantia do preço dos seus produtos. Tendem para a neutralidade no conflito. Os Trabalhadores Rurais, por sua vez, se agrupam em um conjunto de organizações que atuam na mobilização de trabalhadores e de pequenos produtores rurais, visando a garantir ganhos para este segmento. A Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará - Fetagri é a principal organização de trabalhadores e pequenos produtores no Estado e uma entidade que congrega sindicatos e associações nos municípios da região, mobilizando os trabalhadores para garantir a posse da terra, linhas de crédito mais generosas, assistência técnica, escoamento da produção e infra-estrutura social. A posição do grupo diante da construção de Belo Monte é fortemente influenciada pela resultante das forças políticas da região, podendo ir do apoio à rejeição. O Movimento Pelo Desenvolvimento da Transamazônica e do Xingu –MDTX foi criado em meados dos anos oitenta e tem representantes em 13 municípios das margens da rodovia BR-230 (Transamazônica), no trecho entre Pacajás e Itaituba. Integrado por atores sociais dos meios urbano e rural e contando com o apoio expressivo de parlamentares estaduais e federais, sua principal bandeira é a pavimentação da estrada Transamazônica, de vital importância para o setor produtivo da região. Suas lideranças assumem uma posição contrária em relação à usina, enfatizando a comparação com a atuação da Eletronorte nos processos associados à UHE Tucuruí. Os empresários locais se preocupam com a viabilidade de seus negócios em face dos parcos investimentos do governo estadual e da concorrência de pontos de atratividade próximos. Seu interesse na questão ambiental tem o foco principal no potencial turístico do Rio Xingu e de seus afluentes. Assim, existem expectativas pelas potencialidades de uso do futuro lago de Belo Monte, com pretensões de se estabelecerem vínculos externos com operadoras nacionais e internacionais. 301 Especialmente os comerciantes, formam a base dos partidos políticos tradicionais que dominam a região, atuando na produção e comercialização de bens e serviços e demonstrando interesse como investidores e geradores de riquezas, concentram-se basicamente na cidade de Altamira. Lutam pela melhoria do sistema de transporte e apóiam a construção da hidrelétrica de Belo Monte. O grupo tem a expectativa de aumentar substancialmente o volume de negócios pela demanda de bens e serviços que o empreendimento promete trazer para a região. Sua principal organização é a Associação Comercial, Industrial, Agrícola e Pastoril de Altamira – Aciapa. A população urbana a ser remanejada se concentra em Altamira, na região dos igarapés Altamira, Ambé e Panelas. Possuem uma grande expectativa quanto a possíveis alternativas de relocações ou indenizações, fortemente influenciados pelo histórico de Tucuruí. Podem evoluir para uma posição de apoio ou de rejeição, dependendo da evolução dos processos de negociação. A população rural a ser remanejada constitui um grupo cujo posicionamento deverá ser influenciado pelos impactos ambientais e respectivas medidas compensatórias e mitigadoras. Independentemente das pendências ambientais que fizeram parar o projeto de Belo Monte, eu não tenho dúvida que, se houvesse uma decisão política de construir, ela estaria sendo feita. Sabe por que? Porque as pessoas que serão afetadas pelo reservatório estão hoje debaixo d' água. Os igarapés hoje estão cheios, superaram a cota do reservatório. Aí as pessoas saíram daquela desgraça, aí o rio baixou, aí as pessoas voltaram, aí o rio subiu de novo! Essas pessoas têm que ser retiradas dali para viverem com um mínimo de dignidade, independente de Belo Monte ou não. (Depoimento de um engenheiro da Eletronorte, em 16.03.2004) Os madeireiros da região de Altamira são donos de empresas extrativistas de grande ou médio porte que representam uma fonte de renda importante, sobretudo nos municípios de Altamira, Porto de Moz e Senador José Porfírio, numa atividade caracterizada por constantes denúncias, pois a extração vem se dando, muitas vezes, de forma predatória. Sua posição é de apoio à usina, mas com preocupação em torno do controle ambiental a ser 302 exercido por ocasião da construção e operação da usina, tanto pela Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Estado do Pará – Sectam, quanto pelo Ibama. Os movimentos religiosos da Igreja Católica possuem articulação internacional com ampla atuação na Amazônia, combinando religião com prática social articulada com os movimentos sociais e exercendo uma forte influência política na Amazônia. Na região de Altamira, desde há muito, é uma instituição com muita influência sobre os grupos sociais locais e de forte sentido missionário. Assumindo a defesa dos grupos indígenas e atuando junto aos seus diversos grupos, a Igreja Católica tem, na região, as características de uma Missão. Tem exercido influência também nas questões sociais, especialmente em defesa dos excluídos urbanos e seus mais importantes representantes locais têm consolidada uma rede de relações políticas e institucionais, inclusive fora da região e da instituição, no Brasil e no exterior. Seu posicionamento é de oposição ao projeto, em alinhamento com a posição dos movimentos sociais. Entre os evangélicos da região de Altamira existem lideranças que atuam nos movimentos sociais, como o MDTX, com o discurso de uma prática social mais engajada e outras cuja atuação se restringe à pregação do evangelho. Possuem uma certa heterogeneidade de posicionamentos, com tendência de apoio ao empreendimento hidrelétrico. As ONGs ligadas às causas de natureza ambiental e indígena possuem grande articulação em plano nacional e internacional, estando especialmente interessadas na preservação da biodiversidade da Amazônia. Muitas atuam promovendo estudos sobre o meio ambiente e outras por meio de denúncias. Em geral são voltadas à possibilidade de garantia do preservacionismo em áreas não degradadas, inclusive terras indígenas. Por isso mesmo, são atores de potencial rejeição à hidrelétrica. O Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB é grupo contra a construção de barragens, ligado a movimentos 303 religiosos, partidos políticos e movimentos como o Movimento dos Sem Terras - MST, claramente em uma posição de potencial rejeição ao empreendimento. Os Organismos Financiadores Internacionais são atores exógenos como o Banco Mundial – Bird e o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, que têm exercido um papel importante no condicionamento dos financiamentos a programas das áreas sociais e ambientais, especialmente na Amazônia, definindo as restrições ambientais para o investimento regional. Na região, a sua tendência é para atividades que aproveitem racionalmente os recursos naturais, na perspectiva da conservação e sustentabilidade e, em relação a Belo Monte, para a neutralidade perante o projeto. Na região, uma corrente da comunidade científica e acadêmica manifesta sérias restrições a grandes investimentos, inclusive o de asfaltamento de estradas. Em princípio, essa corrente é contrária ou reticente quanto ao projeto da UHE Belo Monte, contudo sua heterogeneidade característica revela conflitos internos. Nos governos estadual e federal a posição dos diversos órgãos é oscilante, em função de fatores múltiplos como crise energética, correlação de forças no Congresso Nacional e Assembléia Legislativa Estadual, pressões das classes empresariais etc. Em síntese, como o processo de tomada de decisão que envolve a construção de uma hidrelétrica é, por sua própria natureza, longo e repleto de variáveis – desde o regime hidrológico a ser considerado até uma possível relocação de habitantes da região de influência direta – tende a se submeter aos prazos do processo construtivo e aos procedimentos preconizados pela legislação ambiental. Durante esse período, o conjunto de atores sociais tende a apresentar um grau de mobilidade significativo, em um movimento que resulta em quadro de alianças com uma volatilidade expressiva até o início da obra propriamente dita. 304 Evidentemente, as ações de comunicação com a sociedade local devem ser, ao longo desse período, um conjunto muito bem planejado e executado por profissionais de várias áreas da empresa responsável pelo projeto, visando a diminuir resistências e a ganhar adesões, por meio da transparência e da credibilidade das informações. Um episódio que ilustra muito bem o problema da comunicação com a sociedade, na região do projeto Belo Monte, ocorreu em um evento na cidade de Vitória do Xingu. Para lá foram enviados, como representantes da Eletronorte, dois engenheiros da empresa, acompanhados de um engenheiro da Eletrobrás e deste analista, à época., consultor da área de Inserção Regional da Eletronorte. Somente um dos engenheiros, assistente do presidente da Eletronorte, estava designado para fazer parte da mesa e, conseqüentemente, falar ao público presente – em sua grande maioria, trabalhadores rurais e suas respectivas famílias. O evento era promovido pelos movimentos sociais da região, MDTX à frente, e se destinava a um debate sobre "a construção da barragem". Em primeiro lugar, falou o engenheiro na defesa do empreendimento. Em determinado momento, ele se utilizou da expressão "figurinhas carimbadas" para denominar os líderes dos movimentos que, por razões óbvias, estavam presentes em todos os eventos daquela natureza. O engenheiro apenas queria se referir ao fato de a sua empresa estar interessada em representatividade legítima e ampla da população, de modo a que as manifestações não se restringissem aos poucos e costumeiros oradores. Contudo, a utilização inadequada de uma expressão muito usada na década de 1960, tempo em que existia o hábito entre as crianças de colecionar álbuns de figurinhas, dentre as quais as mais "difíceis" eram carimbadas pela editora, gerou uma confusão de tal ordem que a "Fila do Povo", ou seja, o conjunto de pessoas que desejavam falar ao microfone, rapidamente aumentou. 305 Quase todos os oradores se diziam ofendidos com a expressão e o debate se transformou em um longo desfile de queixas quanto à postura da Eletronorte no trato com a população local. Voltando ao desenrolar daqueles processos construtivos, o histórico de projetos hidrelétricos tem demonstrado que os atores se posicionam mais claramente em conjuntos formados por alianças mais visíveis e duradouras. Entretanto, pelos mesmos motivos expostos anteriormente, os condicionantes temporais típicos desse tipo de processo construtivo e as licenças ambientais eventualmente concedidas pelos respectivos órgãos licenciadores ambientais diminuem a efetiva participação de alguns conjuntos de atores sociais, podendo até mesmo torná-los incapazes de exercer qualquer influência nos processos de tomada de decisão. O quadro se agrava quando são considerados os aspectos característicos de uma usina hidrelétrica localizada na Amazônia, especialmente em uma região com acentuado declínio em sua economia, como é o caso da microrregião polarizada pela cidade de Altamira. Desse modo, para esta pesquisa, a caracterização dos atores sociais envolvidos – feita anteriormente – é, na verdade, um exercício em torno de um dos aspectos essenciais do processo de tomada de decisão ora em curso, processo esse que tende a possuir magnitude e visibilidades crescentes. Esse processo é profundamente desordenado e dependente de um quadro de discussão que se desenrola de forma intermitente, o que faz com que essa caracterização não tenha um caráter de um dos achados desta tese. Alguns opositores da usina, entrevistados ao longo deste trabalho, argumentam que um estudo para determinar a sustentabilidade de um projeto dessa natureza pode levar até 20 anos e considerar muitos critérios. Contudo, os estudos de inventário do Rio Xingu foram iniciados em 1975, segundo critérios dos manuais denominados “Diretrizes Para a Elaboração de Estudos de Inventário Hidrelétrico” e “Diretrizes Para a Elaboração de Estudos de Viabilidade”, da Eletrobrás e os estudos ambientais são desenvolvidos de acordo com Termos de Referência emitidos pelo órgão ambiental. 306 Ocorre que a elaboração do EIA foi embargada pela Justiça Federal, a pedido do Ministério Público. Entre outras razões, o embargo dos estudos foi pedido, entre outros motivos, por causa de uma suposta incompetência técnica da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Pará – Fadesp, responsável por um trabalho semelhante para a Hidrovia Araguaia-Tocantins, rejeitado pelo próprio Ibama e por órgãos ambientais dos Estados. Para a Eletronorte, os trabalhos contratados com a Universidade Federal do Pará dizem respeito à atualização e complementação dos estudos EIA e RIMA do Projeto Kararaô / Belo Monte, que foram anteriormente executados pelo Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores – CNEC. A contratação atenderia a uma reivindicação dos técnicos paraenses, que argumentavam que embora os aproveitamentos hidrelétricos, como Tucuruí, fossem localizados naquele estado, os estudos e projetos eram executados "por gente de fora" e não contavam com a sua participação, a despeito de a UFPa possuir um dos melhores quadros de especialistas em Amazônia, entre as universidades brasileiras. Balbina e Samuel são os contrapontos da oposição a Belo Monte pelo critério geração de energia por área inundada. As entrevistas realizadas com engenheiros da Eletronorte revelaram uma argumentação, por parte da empresa, que, por esse critério, o projeto Belo Monte só é comparável ao índice da Usina de Xingó, da Chesf, que foi construída num trecho em cânion – uma condição de relevo totalmente favorável a essa relação. É importante, sobre esse aspecto, ressaltar que, em Belo Monte, a área a ser efetivamente alagada será menor de 200 km², se considerada a cheia normal do Xingu. Ao argumento de que não se sabe ao certo durante quantos meses do ano a potência de 11.182 MW será efetiva e que na estiagem talvez nenhuma turbina possa funcionar, a Eletronorte responde com dados do Conselho Nacional de Política Energética – CNPE, referenciados anteriormente nesta pesquisa, segundo os quais a energia firme da Usina de 307 Belo Monte é de 4.567 MW médios, com as mesmas características da usina de Tucuruí e da maioria das usinas hidrelétricas com fator de capacidade em torno de 59%. No setor elétrico, é considerado como um grande ganho a incorporação da Usina Belo Monte ao sistema elétrico brasileiro, especialmente pela possibilidade da exploração da defasagem existente entre as épocas de ocorrência do período crítico e da diversidade existente entre os regimes fluviais. Assim, pelo fato de o trimestre mais chuvoso do Xingu ser nos meses de março, abril e maio – concentrando uma elevada capacidade de vazão – e de que em Itaipu e Xingó essa situação ser observada no trimestre janeiro, fevereiro e março, observa-se que essa diferença propicia uma operação que permite a poupança de água nos reservatórios dos rios do Nordeste e Sudeste. Estes, por sua vez, completam a necessidade de energia elétrica nos mercados atendidos pelos rios da bacia amazônica quando os mesmos apresentam menores vazões, a exemplo do que já acontece com a Usina de Tucuruí. Além das simulações efetuadas, que, segundo os técnicos do setor, comprovam a eficácia da interligação Norte-Sul, essa conexão teria a capacidade de atenuar os eventos episódicos atribuídos aos fenômenos “El Niño” (diminuição de precipitações e secas no norte e precipitações abundantes no sul) e “La Niña” (aumento de precipitações ao norte e secas severas no sul) que têm forte representatividade no país, como durante o período 1930-1996 em que se registraram 17 ocorrências fortes e moderadas. O período crítico do sistema interligado (1949 a 1956) deveu-se à ocorrência de dois eventos, praticamente consecutivos de “La Ninã”. De maneira geral, o setor elétrico trabalha com os seguintes conceitos: • Energia Firme: A energia firme de um sistema corresponde à maior carga constante que o sistema pode atender na ocorrência da pior série hidrológica conhecida. Para fins de 308 dimensionamento energético, é definida como a energia média gerada pela usina no período crítico do sistema elétrico a qual está inserida. • Período Crítico: O período crítico de um sistema é definido como aquele período em que os reservatórios do sistema são plenamente utilizados, no início estão cheios e ao final, totalmente deplecionados. A energia média gerada pelo Complexo Hidrelétrico Belo Monte com as séries de vazões médias mensais do período compreendido entre junho de 1949 a novembro de 1956 é de 4.699 MW médios. • Estudos de Motorização: Avaliam-se os ganhos de energia firme que o aumento na motorização proporciona ao sistema de referência. Avaliam-se os custos ou investimentos adicionais que o aumento na motorização proporciona ao sistema de referência. Determina-se o custo da energia acrescentada. Enquanto o custo da energia for menor que o custo de referência de energia do sistema, é vantajoso ampliar a motorização. • Custo de Referência de Energia Corresponde ao custo de produção de energia pura de uma fonte alternativa de energia num horizonte de longo prazo do sistema de referência. Como apontado, Belo Monte, no jargão do setor, é um projeto de "usina a fio d’água”, ao contrário de Tucuruí, que tem um grande reservatório. O tempo de permanência da água no reservatório de Belo Monte é estimado na ordem de 5 dias, ao passo que em Tucuruí é cerca de 47 dias. Em Belo Monte, considera-se, ainda, que, mesmo que o tempo de residência no reservatório fosse muito maior, a renovação da água poderia ser facilitada pela operação dos dois vertedouros previstos no projeto, um principal e outro auxiliar, projetados para escoar a máxima cheia prevista pelo projeto. 309 Para os autores do projeto, o lago pouco afetaria os tributários que deságuam no reservatório. Entre o vertedouro principal e a foz do rio Bacajá, será definida uma vazão mínima pelos estudos ambientais para mitigar os impactos a jusante da barragem. Essa vazão será utilizada para produzir energia em uma usina dotada de unidades Bulbo, próprias para baixas quedas, resultando daí o fato de a potência instalada ter sido ampliada de 11.000 MW para 11.182 MW, em função daquela vazão, a ser determinada pelo órgão licenciador. O projeto Belo Monte é hoje tratado, como já dito anteriormente, como Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, por que na realidade são duas usinas, sendo a principal com 11.000 MW e uma secundária, dotada de unidades Bulbo, com 182 MW que será colocada no vertedouro principal, aproveitando a vazão exigida por razões ambientais. Os técnicos da Eletronorte informaram à comunidade local que o potencial hidrelétrico de interesse concentra-se na Volta Grande do Xingu, no antigo Complexo Babaquara - Kararaô, que tem capacidade da ordem de 17.000 MW. A única usina que teve os estudos avançados foi a UHE Belo Monte, sendo que uma análise de longo prazo indicou uma possibilidade de aproveitamento no local da antiga Babaquara, hoje chamada de Usina Altamira, mas com níveis operacionais totalmente reformulados. As demais possibilidades que foram levantadas na fase de inventário não apresentam atratividade para aproveitamentos hidrelétricos. A adequação das recomendações da Comissão Mundial de Barragens ao planejamento de hidrelétricas no Brasil e, especificamente, ao projeto de Belo Monte foi discutida por Ghilardi Jr.(2003), que nos remete à criação da Comissão Mundial de Grandes Barragens – CMB, no início de 1998, reunindo representantes de todos os segmentos sociais relacionados com as grandes barragens, vindos de 68 instituições de 36 países, representando uma ampla diversidade de interesses no debate sobre barragens. Os valores essenciais adotados por esta comissão foram: eqüidade, sustentabilidade, eficiência, processo decisório participativo e responsabilidade. 310 Os dois principais objetivos da CMB foram rever a efetividade do desenvolvimento das grandes barragens, avaliando alternativas para o desenvolvimento do uso da água e da energia e desenvolver critérios, diretrizes e padrões aceitáveis internacionalmente, apropriados para o planejamento, projeto, construção, operação, monitoramento e descomissionamento de grandes barragens. Os resultados dos trabalhos da Comissão53 foram consolidados e as recomendações apresentadas sob a forma de sete prioridades estratégicas e diretrizes, cada qual com critérios específicos para os cinco estágios que compõem o planejamento, a construção e a operação de grandes barragens. Essas recomendações são as referências para a pesquisa desenvolvida por Ghilardi Jr. Os dados obtidos pela Comissão apontam para a necessidade de mudanças na forma de avaliar opções nos ciclos de planejamento e detalhamento do projeto de aproveitamento dos recursos hídricos e energéticos. Essas recomendações são norteadas pelos princípios políticos de reconhecimento dos direitos e avaliação de riscos por todos os atores relevantes envolvidos no processo, pois, os estudos de caso demonstraram que, em geral, os aspectos sociais, ambientais, de governabilidade e o comprometimento não foram adequadamente considerados no passado. Os objetivos principais do documento são, portanto, os de salvaguardar os direitos de todos os atores envolvidos, reduzindo riscos de conflitos emergentes e diminuindo os custos totais do projeto. O trabalho de Ghilardi Jr. revela que, ao contrário das políticas setoriais, cujos processos de planejamento nessa fase foram considerados razoavelmente satisfatórios, os procedimentos aplicados ao projeto de Belo Monte deixaram a desejar. Não houve uma prévia e recomendada revisão do inventário hidrelétrico, aplicando-se a metodologia atual estabelecida pelo Setor Elétrico de análise multi-critério. A avaliação dos impactos ambientais e sociais ficou restrita à região de influência direta do empreendimento e não a 53 “Barragens e Desenvolvimento: uma nova estrutura para a tomada de decisão” (WCD, 2000). 311 toda ou parte da bacia hidrográfica que pode ser afetada pela implantação da Usina. Não houve prazo para estudos suficientes para a obtenção de dados ecológicos e sociais que levassem a uma previsão adequada dos impactos. A questão do compartilhamento dos rios também ficou distante do padrão da Comissão e mesmo da legislação brasileira, por não ter havido uma negociação dos estudos no âmbito federal, conforme determina a legislação para rios federais, empreendimento de abrangência nacional e que afetem territórios ou comunidades indígenas. As negociações para viabilização ficaram restritas ao Governo do Estado do Pará, tanto para obtenções de licenças ambientais, quanto para integração com as políticas públicas regionais. O inventário hidrelétrico da bacia previa a implantação de outras barragens a montante de Belo Monte. Ainda não está claro entre os órgãos governamentais e empresas envolvidas com o desenvolvimento energético se estas permanecerão nos planos de expansão ou serão excluídas. Em palavras mais simples, os técnicos do setor elétrico consideram que o inventário do rio Xingu precisa ser refeito. A resposta a essa questão torna-se fundamental por ser uma das principais preocupações dos movimentos sociais, de apoio às comunidades indígenas e ambientalistas, pois as outras quatro hidrelétricas previstas para a bacia inundariam terras indígenas e grandes extensões de floresta nativa, que se encontram em excelente estado de conservação, além de comprometer grande parte do ecossistema aquático do rio Xingu. Os estudos de impacto ambiental não abordaram a possível sinergia do conjunto de empreendimentos hidrelétricos previstos para a bacia, em face da indefinição atual do setor elétrico. Quanto ao fato de que um dos motivos para revisão do projeto ter sido a inundação de terras na bacia do rio Bacajá, o que poderia causar sérios problemas na qualidade da água do reservatório, com conseqüências para os ecossistemas de jusante, o estudo de Ghilardi Jr. assinala que: Foi discutida e está sendo prevista uma vazão ambiental mínima para o trecho de rio entre o barramento e a casa de força, que ficaria sem 312 água no período de estiagem, comprometendo os ecossistemas e as populações ribeirinhas que lá vivem. A vazão mínima proposta pelo proponente, de 200 m³, atende aos critérios energéticos, mas se desconhece sua capacidade de manutenção da integridade dos ecossistemas. Os estudos para definição mais precisa da vazão necessária devem ser de longo prazo, devido à complexidade dos ecossistemas aquáticos naquele trecho do rio, com uma alta riqueza de habitats e espécies. Entretanto, medidas compensatórias estão sendo propostas, entre as quais o aprofundamento dos estudos ecológicos e sociais e o monitoramento dos impactos, com previsão de se rever algumas medidas indicadas previamente. A dificuldade maior que se vê neste momento é quanto a possíveis modificações futuras, caso seja necessário o aumento da vazão da Volta Grande, pois implicariam em revisões dos estudos energéticos e dos custos do projeto. (Ghilardi Jr, 2003: 152) Esta pesquisa confirmou esses resultados, revelando que as legislações e normas do setor elétrico demonstram ainda estarem distantes, em sua aplicação prática, dos princípios preconizados pela CMB, principalmente no que se refere à participação da sociedade no planejamento e na tomada de decisão. Entretanto, não se evidenciaram, ao menos para o Projeto Belo Monte, os avanços identificados pelo autor, principalmente nas décadas de 1980 e 1990, quando foi desenvolvida a maior parte das políticas ambientais setoriais, como o PDMA e as recomendações do Comase. Embora nesse comitê as discussões dos problemas ambientais e sociais tenham sido conduzidas por iniciativas do próprio setor, com a participação da comunidade científica e dos órgãos ambientais, as suas recomendações não foram seguidas nos contatos com a sociedade da região de Altamira. Na verdade, a participação da sociedade, a transmissão de informações e o ordenamento das ações de comunicação social se deram de uma forma caótica e intermitente, como esta investigação tem por objetivo demonstrar. Na região, a falta de integração do setor público no planejamento de políticas, planos, programas e projetos provoca grandes obstáculos ao desenvolvimento sustentável. Falta a 313 definição das áreas de proteção especial, especialmente das terras indígenas; existe uma precariedade do sistema de transporte rodoviário e hidroviário; ocorrem grandes carências de assistência rural; os órgãos públicos existentes na região possuem forte necessidade de capacitação de pessoal; existem altos índices de analfabetismo (24%), uma baixa escolaridade (3,5 anos), com boa parte das escolas pequenas, multi-seriais e sem corpo docente preparado. Além disso, como já foi dito, apenas Altamira tem, de fato, escolas de nível médio. Quanto aos serviços de saúde, são também precários e concentrados naquela cidade. Há escassez de eletrificação rural, embora a linha de transmissão que fornece energia de Tucuruí tenha resolvido o problema da oferta de energia elétrica nas áreas urbanas da região. Contudo, o acesso a essa energia ainda é um problema, pois mais de dois mil domicílios ainda não estão ligados à rede e, no meio rural, a quase totalidade das propriedades não têm ainda acesso à energia, o que, além de dificultar a melhoria da qualidade de vida dos agricultores, impossibilita a verticalização da produção e o aumento da sua competitividade. Os habitantes da região têm na rodovia Transamazônica o símbolo do abandono e injustiça e, por isso mesmo, possuem uma grande desconfiança em relação às iniciativas governamentais. A ausência de um zoneamento ecológico-econômico impede que excelentes terras agricultáveis em toda a região sejam utilizadas em condições de sustentabilidade econômica e ambiental. Os grandes investimentos, como o asfaltamento de estradas federais e a construção de Belo Monte, poderão ter impactos econômicos, fazendo crescer a demanda e facilitando o escoamento da produção. Contudo, esses investimentos podem trazer inúmeros benefícios à região, melhorando a qualidade de vida e atraindo novos investidores. A estagnação econômica do modelo de colonização fez com que o debate atual se concentrasse em torno do asfaltamento da rodovia Transamazônica e da construção de Belo 314 Monte. Belo Monte é parte obrigatória da maioria das propostas de projetos de desenvolvimento nacional, como o Avança Brasil. Mas, ao contrário da conclusão da Transamazônica, não faz parte das expectativas e demandas imediatas de grande parte das populações da região. Ao contrário, nas entrevistas realizadas com atores da região foi possível identificar uma percepção de concorrência entre os dois projetos, na medida em que a sensação de abandono presente na sociedade faz com que se imagine, em algum momento, um quadro de falta de recursos que leve o Governo Federal a optar por um ou outro projeto. Como a colonização da região se deu em um contexto de pioneirismo e de uma expectativa de resultados em grande escala, a frustração da população foi, grosso modo, proporcional à esperança inicial. Calcados em uma base falsa de informações, como a idéia da "riqueza fácil", da existência de terras de alta fertilidade natural e grande potencial agrícola e que a floresta deveria ser vista como um obstáculo ao desenvolvimento, os imigrantes da região tinham na cultura e nas tradições nativas um símbolo do Brasil atrasado. As leis fundiárias condicionavam a posse da terra à derrubada de, pelo menos, cinqüenta por cento da floresta e os resultados se fizeram notar, a partir de desmatamentos e queimadas, por uma queda na produtividade da terra após três anos de cultivo e sua conseqüente substituição pela pecuária bovina extensiva. A política de ocupação da região se estruturou sob uma pressão especulativa, pecuária, camponesa e de implantação de assentamentos. A degradação é agravada pela insegurança quanto ao título de propriedade, de modo que o desmatamento e a conversão agropecuária são considerados um meio para a legalização da propriedade privada de terras públicas. Atualmente, embora o arcabouço legal existente no Brasil seja satisfatório, o Estado não tem exercido a sua missão de implementar as políticas públicas necessárias para construir um sistema produtivo e de defesa dos recursos naturais. Como se trata de uma área de fortes conflitos fundiários, como a maior parte do Pará, a regularização da titularidade é um dos elementos principais no sentido de reduzir as potencialidades de 315 conflito que é maximizado pelo ciclo de derrubada, queimada, cultivo, abandono ao pasto e novas queimadas. O dinamismo econômico local foi seriamente prejudicado pela falta de investimentos do Estado na região e, assim, o ressurgimento do projeto Belo Monte, principalmente a partir de 2000, fez com que a Eletronorte se transformasse em um ator de promoção do desenvolvimento da região, ocupando a posição de face visível do Estado. E esse é um dos pontos centrais do conflito. O fato é que a Eletronorte sempre teve – e cultivou – uma imagem de promotora do progresso amazônico junto às lideranças políticas e empresariais da Região. Atuando em áreas profundamente carentes, a empresa ocupou o vácuo deixado pelo Estado de uma forma tal que, mesmo em períodos de recessão e enfraquecimento, representava um poderoso instrumento para a obtenção de vantagens para os políticos locais – principalmente por conta da possibilidade do uso de equipamentos e instalações. Acresça-se a isso o fato de, como já apontado, seus diretores terem fortes laços com os políticos tradicionais da Amazônia – laços esses que se estendem, muitas vezes a gerentes, engenheiros e técnicos. Desse modo, um engenheiro residente da Eletronorte sempre foi tratado como uma autoridade e, não raro, com status igual ou superior ao dos prefeitos e vereadores dos municípios das regiões de influência das usinas. A retomada do projeto de Belo Monte não foi diferente, em um quadro que incorporou a Eletronorte no cotidiano da região de Altamira, contendo todos esses elementos apontados e mais outros – que serão discutidos a seguir. 316 5.3 O DESCOMPASSO Neste ponto, é necessário que se lembre da metáfora de Lee para a correta compreensão do capítulo: pensar sobre ciência e democracia, respectivamente, como uma bússola e um giroscópio. A bússola, uma forma de traçar direções quando se navega além dos mapas, correspondendo à ciência, ligada ao propósito humano. O giroscópio, é a democracia, que – com sua estabilidade contenciosa – é um instrumento capaz de prover uma forma de manter nossa capacidade para navegar em mares turbulentos. Primeiramente, é importante ressaltar que o uso da tradução de compass para compasso faz com que o termo descompasso aqui utilizado assuma uma conotação mais ampla que uma contraposição àquela utilizada por Lee. Refere-se, nesse caso, a algo a mais: o descompasso entre os diversos atores – tanto os neutros, quanto os de promoção e de apoio – envolvidos nas tentativas de se viabilizar Belo Monte. Para que se analise adequadamente o conflito de Belo Monte, torna-se necessário, neste ponto, estabelecer a presença, durante toda a segunda parte dos embates (1999-2003), de cinco diferentes representantes da Eletronorte na região: a Engenharia, o Meio Ambiente, a Inserção Regional, a Comunicação Social e o Presidente da Empresa. A seguir, serão descritos esses vetores do sistema de forças formado pela Eletronorte na região. Não se trata de uma descrição usual e, sim, uma abordagem destinada a realçar os aspectos comuns aos problemas, contrastes e dilemas levantados ao longo dos capítulos anteriores vis-à-vis o conflito em Belo Monte. Em outras palavras, o que se segue é uma tentativa de sintetizar os conflitos causados pela interseção dos conjuntos – Meio Ambiente, Amazônia e Setor Elétrico – por intermédio de uma particularidade apresentada pela Eletronorte. As características 317 intrínsecas da empresa fizeram com que seus conflitos internos se tornassem visíveis externamente e tivessem grande influência na condução do processo. A Engenharia, por exemplo, é aqui considerada como uma área que se encontrava – no período do renascimento do projeto – sob três intensas pressões: o desmonte do quadro técnico da empresa, a iminência da privatização do setor e a pequena magnitude das obras sob sua responsabilidade, exceto a segunda etapa de Tucuruí. O desmonte da Eletronorte começou, na verdade, a partir de 1991, no contexto descrito anteriormente – no Capítulo 4 – do Governo Collor, prosseguindo durante os dois períodos do Governo Fernando Henrique. Nesse processo, a empresa perdeu uma grande quantidade de profissionais que vivenciaram todos os processos construtivos, de montagem e de operação das usinas Tucuruí, Balbina e Samuel – além da maior parte das etapas de Manso. Toda uma cultura setorial estava em cheque. Alguns dos engenheiros remanescentes reviram ou mantiveram parte de suas posições tradicionais em relação às intervenções na Amazônia, conforme se pode constatar a partir dos depoimentos relacionados abaixo, todos eles de profissionais do setor e que fizeram parte do conjunto de entrevistas desta tese e que foram realizadas entre os dias 16.03.2004 e 30.06.2004: Nesse período em que eu era residente em Tucuruí, por varias vezes eu tive que fazer ordem de serviço para a Camargo Correia para desatolar caminhões e dar manutenção nas estradas depois de Marabá, a 250 km, aproximadamente, da usina, porque não chegava nem comida nem material na obra e o DER-PA não tinha como manter aquelas estradas. O que seria o certo? Vai construir uma usina? Então vamos chamar o MEC, o Ministério da Saúde, o Ministério dos Transportes etc e vamos conversar, trabalhar junto. Na segurança, por exemplo, nós tínhamos 400, 500 pessoas na nossa segurança patrimonial e fazendo o papel de polícia. A polícia não entrava na obra. A gente fazia os boletins das ocorrências e levava para o delegado. Ou você fazia isso e cumpria o seu cronograma de obra ou, se você ficasse esperando que cada um desses órgãos fizesse a sua parte você não iria fazer nunca a obra. * 318 Então não vamos mais barrar o rio. Nós vamos fazer um espelho de 600 km² para coletar energia solar. Custa 20 vezes mais caro que uma UHE. Queremos pagar para isso? * É muito fácil para esses ambientalistas que ficam em Copacabana tomando um chopinho gelado e dormindo no ar condicionado criticar que não quer que faça barramento nesse ou naquele rio. Nós vamos colocar uma usina nuclear na Amazônia? Quantas térmicas há em Manaus hoje, queimando diesel? Se for essa a decisão da sociedade e do governo, vamos instalar térmicas. * O setor elétrico não pode ser o bandido da história. Eu tenho orgulho de falar que trabalhei no projeto de Belo Monte. Ele é maravilhoso! * O projeto de Belo Monte agrega 5000 MW ao sistema brasileiro. Quantas PCHs você tem que instalar para chegar a isso? 200 PCHs para substituir Belo Monte? Você não consegue fazer com todas de 3 km² de reservatório. Mas,se conseguisse, seriam 600 km² e Belo Monte terá 400km² de reservatório. A atuação da Engenharia, nesse contexto, foi no sentido de enfatizar as virtudes do projeto de engenharia de Belo Monte – que não são poucas – e fazer uma espécie de meaculpa em relação a Tucuruí. Cerca de dez horas de gravação em vídeo, contendo encontros de técnicos da empresa com a sociedade local, foram analisadas por esta pesquisa e evidenciaram um esforço desses profissionais no sentido de traduzir as informações técnicas para a população. Todavia, foram ações movidas, quase que exclusivamente, por boa vontade e entusiasmo com o projeto. È necessária uma ênfase para o fato de que a articulação da Engenharia com a área de Comunicação Social da empresa, no período analisado, era tênue e pontual. Um episódio pode servir de ilustração para essa dissociação de ações. Conforme é amplamente sabido por quem conhece a região, os seus habitantes têm nas praias do Xingu 319 uma forma barata e atávica de lazer. A formação do reservatório de Belo Monte trará um efeito sobre essa atividade, mesmo sendo uma usina "a fio d' água", na medida em que perenizará a cheia do rio. Desse modo, as praias que surgem no período da seca e para onde se dirige boa parte da população local, especialmente os jovens da região, sofrerão modificações – e algumas desaparecerão. O setor elétrico tem como modelo desse tipo de alteração – e conseqüente compensação ambiental – a usina hidrelétrica de São Simão, em Minas Gerais. Nessa usina, foram feitas praias que compensaram, ao menos na visão dos engenheiros, a formação do reservatório, quanto ao lazer da população. A urbanização das margens do rio também é considerada como um ganho para a população, com passeios e iluminação pública, entre outras melhorias. Assim, os engenheiros da Eletronorte se referiram, nos contatos iniciais com a população da região de Altamira, às "praias artificiais" que seriam feitas pelo empreendedor de Belo Monte, para compensar o desaparecimento das praias naturais. A condição de consultor para a área de Inserção Regional da empresa, desempenhada por este analista, permitiu perceber, como participante, a profunda reação causada pela expressão "praias artificiais" – pois era visível e facilmente constatado que, entre as comunidades locais, "artificiais" significava "falsas". Em outras palavras, algo como "do Paraguai", na gíria usualmente empregada nos dias de hoje, conforme conversas informais com vários moradores revelaram a este analista. Não adiantou sugerir, na função de consultor junto à empresa, que se substituísse a expressão por outra equivalente, mas desprovida de possíveis conotações dessa natureza – como, por exemplo, "novas praias". A desarticulação das ações na região impedia a percepção de que fatos aparentemente sem importância como esses eram, na verdade, peças de um quebra-cabeça revelador da precariedade das ações de comunicação na região. 320 Ainda mais, é importante realçar um aspecto da situação vivida pelos engenheiros da empresa no período, provocada pela escassez de obras de porte no setor elétrico, combinada com a possível privatização de suas empresas. Nas palavras de um dos entrevistados: A gente vivia um dilema que era provocado pelo fato de não se saber, como no passado, se a Eletronorte iria ou não construir Belo Monte. A gente falava com os nossos interlocutores usando a palavra "empreendedor". Isso queria dizer Eletronorte, Eletrobrás, Iniciativa Privada ou Furnas, que estava ameaçando entrar na nossa área de atuação, por estar capitalizada e sem obras pra tocar. (Engenheiro da Eletronorte, entrevistado em 18.03.2004) Nesse contexto, a Comunicação Social da Eletronorte se encontrava, á época, voltada para reforçar a marca da empresa, promovendo diversas iniciativas nesse sentido e, inclusive, ganhando prêmios setoriais. Em relação a Belo Monte, contudo, a área não se envolvia significativamente alegando que a usina – e, conseqüentemente, o conflito a ela associado – não era "problema da Eletronorte", uma vez que seria licitada pela Aneel e, provavelmente, não seria construída pela empresa. Evidentemente, a tradição do setor não autoriza a inferência de que, se a área de Comunicação Social da Eletronorte estivesse na linha de frente da negociação com a sociedade, Belo Monte encontraria menor oposição. Entretanto, é óbvio que a sua atuação, definida por essas diretrizes, abria um significativo flanco nas trincheiras pró-Belo Monte. Por outro lado, é compreensível que a área de Comunicação Social de uma empresa prestes a perder espaço, inclusive tendo uma área de atuação definida – a Amazônia Legal – em vias de liberação para a entrada de outras empresas do setor, tivesse uma preocupação maior com a sua imagem empresarial. O que não se pode ignorar, contudo, é que se tratava de um projeto de grande magnitude, inserido no "Avança Brasil", descrito pelos técnicos do setor como inadiável e que envolvia um processo de negociação extremamente complexo. 321 Se a gente diz que vai chegar a hidrelétrica, que vai ser um céu aberto e depois pergunta: Você está a favor? Todo mundo vai dizer que sim. Aí depois publica; o povo de Altamira está a favor da hidrelétrica. Só a Igreja é contra o progresso. Depois vai para os comerciantes e diz: vai chegar muita gente, todo mundo vai consumir, vai ter um céu aberto! Vocês estão a favor da hidrelétrica? Claro! Esse tipo de manipulação da opinião pública é indecente! (Depoimento de um padre de Altamira, em 13.05.2004) Técnicos e engenheiros da Eletronorte, consultados nesta pesquisa, relataram que, em novembro de 2000, já havia indícios claros de uma relativa falta de comunicação e fragilidade de coordenação, bem como da impossibilidade de concluir o EIA até março de 2001 – com o conseqüente risco de adiamento da obtenção da licença ambiental para o fim daquele ano e da licitação para 2002, um ano de eleições presidenciais. Também era percebido o fato de que a presença de indígenas sob impacto do empreendimento levaria alguns atores a tentar "federalizar" o licenciamento, adiando ainda mais a licença ambiental, pois os problemas decorrentes da questão indígena poderiam ser agravados pela suposta existência de mais de 1.000 índios citadinos em Altamira e de um processo na FUNAI para ampliação das terras indígenas ao lado do reservatório. Havia dúvidas se a UFPa deveria ou não realizar um trabalho especial de comunicação, a partir da existência de mais de cem pessoas na área sem uma orientação comum. Por isso mesmo, outro documento interno apontava a necessidade de se criar uma Central de Comunicação em Altamira, na medida em que um dos principais problemas nesse tipo de empreendimento, como ocorreu em Tucuruí, é a dispersão e, por vezes, a contradição entre as informações prestadas aos indivíduos e grupos locais ou não, provocando expectativas, receios e conflitos desnecessários. Assim, no caso específico de Belo Monte, havia antecedentes de mal-entendidos e conflitos, emersos dos problemas da transmissão de informações, remanescentes na memória das pessoas. Os profissionais envolvidos com a elaboração do EIA, como já dito, 322 eram mais de cem, realizando estudos e levantamentos, com grau e qualidade de informações distintas, sendo constantemente inquiridos pelos habitantes locais. Uma medida importante que poderia ter sido tomada, à época, seria o treinamento do pessoal local da empresa, agregando membros da Universidade ou de outros órgãos e empresas presentes, e da própria localidade, de forma a constituir um grupo presente cotidianamente, com uma linguagem comum, e que poderia ser acionado a qualquer momento. E, ainda, atualizando-se constantemente. Eles poderiam formar, no seu conjunto, uma espécie de Central de Comunicação, pois não apenas repassariam as informações de maneira especializada e uniforme, mas também colheriam e sistematizariam as questões levantadas. Ressalte-se que, normalmente, os “desastres” na informação não ocorrem com o material preparado, mas nos seus interstícios, ou seja, desentendimento dos ouvintes, comentários do palestrante ou perguntas inesperadas. Nesses moldes, a Central de Comunicação nunca existiu. Outro elemento desse quadro de descompasso era a área de Inserção Regional. A Inserção Regional é entendida pelo setor como uma medida do modo como um empreendimento se insere ou será inserido na região considerada. Como visto no Capítulo 4, o conceito surgiu a partir de um estudo temático realizado para a Eletrobrás, de 1987 a 1989. Seu ponto de partida é estabelecido pela premissa de que todo empreendimento hidrelétrico está associado a custos cujo território de incidência é, na ação tradicional, distinto daquele dos benefícios proporcionados e, assim, a Inserção Regional se apresenta como um instrumento de mediação do conflito surgido, visando à integração da UHE à região e a ampliar a relação benefício/custo da UHE na ótica regional, concebendo o empreendimento como um indutor do desenvolvimento da região. O conceito de Inserção Regional pressupõe a minimização de custos, a ampliação de benefícios, e a criação e manutenção das oportunidades de desenvolvimento no âmbito 323 regional, caracterizado por conflitos de interesses. Propõe, também, a internalização, na área de influência do empreendimento, de um número tão expressivo quanto possível de benefícios indiretos associados à sua implantação. A Inserção Regional se estrutura como uma equação na qual as variáveis são a mitigação dos impactos negativos, a compensação desses impactos e a potencialização dos benefícios advindos da implantação do projeto. A mitigação e a compensação dos impactos são previstas na legislação ambiental e, portanto são uma obrigação legal do empreendedor. A inovação da proposta veio por conta dessa potencialização, na medida em que um Plano de Inserção Regional deve criar condições para contribuir para a dinamização da economia local, a partir da concepção da multiplicação de benefícios. Para tanto, as parcerias institucionais e sociais fazem parte de suas principais diretrizes. Esse processo foi iniciado, no caso de Belo Monte, em uma linha de atuação desarticulada, sem interação significativa dos diversos envolvidos. Pode-se argumentar que isso ocorreu por conta de características particulares da Eletronorte. Em parte é verdadeiro esse argumento. Mas, como esta pesquisa tenta demonstrar, as especificidades da empresa não impedem a generalização para o setor elétrico das dificuldades de estabelecer conjuntos de ações integradas. Para percebermos a pertinência da generalização, tomemos como referência o abrangente trabalho de Barbosa (2001) e alguns dos depoimentos colhidos pela autora: A possibilidade do meio ambiente conseguir introduzir as variáveis ambientais na fase de planejamento passava pela possibilidade de conseguirmos transformar em custos, nossas variáveis. Os engenheiros precisavam de valores para resolver a equação custo/benefícios e a gente sabe que nem tudo pode se resumir em valores. As discussões nessa área são muito grandes, pois por mais que se argumente, ao final eles perguntam; quanto custa? (depoimento de técnico de meio ambiente) 324 Acho que nos últimos 10 anos as empresas do setor elétrico avançaram muito no sentido de se inserir de forma positiva nas regiões. O problema é que ainda predomina o paternalismo, a vontade de resolver todos os problemas e não conseguirmos encontrar a medida exata entre fazer parte de uma região e contribuir com ela, e assumir apenas nossas responsabilidades. (depoimento de técnico de meio ambiente) Parece que o setor já chega numa área se sentindo culpado e o pessoal do meio ambiente nem se fala, começa a fazer acordos de qualquer jeito, como se tivéssemos de resolver tudo. Somos apenas uma empresa que tem como objetivo gerar e transmitir energia elétrica. Não temos de sair por aí fazendo escola, dando cesta básica. Só devemos construir escolas que foram alagadas e dar cesta básica para os que foram atingidos. Não somos uma empresa de desenvolvimento, embora nossas usinas acabem trazendo o desenvolvimento para as regiões. (depoimento de técnico de planejamento) Como o meio ambiente tem um tratamento garantido pela lei, às vezes, para viabilizar algumas ações, temos de colocar no meio ambiente outros custos, da mesma forma que os consultores escrevem como benefícios do meio ambiente algumas ocorrências que sempre existiram; são os impactos positivos. (depoimento de técnico de planejamento) Esta pesquisa encontrou resultados muito semelhantes aos daquela tese, nos depoimentos colhidos: A Eletronorte não conseguiu transmitir a idéia de que Belo Monte é um dos empreendimentos do país. Não conseguiu criar uma credibilidade junto à sociedade. Tudo que tem saído, por causa do passado da Eletronorte, do passado do setor elétrico, não merece confiança de boa parte da sociedade. Em Belo Monte, a postura ainda não foi muito correta. Foi a postura de tentar vender a imagem de que tudo é perfeito e de tentar conseguir aliados que só estão vendo vantagens com aquilo. Mas, muitos outros que tem mais bom-senso, que sabem que a coisa não é assim, se mostram preocupados porque acham que a postura não mudou, que está com um discurso igual ao da década de 1970. (analista ambiental do setor elétrico, em 30.04.2004) 325 As negociações se fazem entre pessoas que ocupam determinados postos. Mas as pessoas mudam. Então acordos verbais entre prefeitos e pessoas com autoridade sobre a população, não valem nada! E as pessoas sabem disso. Não é porque a autoridade é mentirosa, é porque nada garante que ela estará amanhã no mesmo posto, nem que quem venha a substituí-la vá assegurar isso. (pesquisador que estudou o conflito de Belo Monte, em 17.04.2004) Eu acho que, apesar de todas as iniciativas da Eletronorte, principalmente na Inserção Regional, isso é algo que está muito longe da realidade e não existe nada parecido com isso no Brasil. Por isso é difícil vender essa proposta. Porque não tem algo que você possa demonstrar que funcionou ou funcionaria. (analista ambiental do setor elétrico, em 30.04.2004) Repartimento fica no encontro da BR 422 com a Transamazônica e, como a usina iria inundar parte da BR 422, a localidade iria ficar ilhada com a obra de Tucuruí. Nós fizemos um plebiscito para saber para onde eles queriam mudar e eles escolheram o novo entroncamento das duas estradas. A ELN fez uma nova cidade com água de poço artesiano, tratamento de esgotos com bacia de oxidação, terrenos demarcados, arruamento, deu um lote para cada um. O dia em que nós estávamos entregando essa cidade para o Pará, quem era o Secretário de Planejamento do estado era o Simão Jatene, hoje governador. Ele disse que nós estávamos dando para o estado um presente de grego, porque o estado não tinha como manter o crescimento daquela cidade com aquele padrão, com 100% de saneamento. E ele tinha razão. Nós só descobrimos isso depois, quando a cidade virou uma favelona. (engenheiro da Eletronorte, 16.03.2004) Como se pode perceber, a partir da convergência entre os depoimentos colhidos por duas pesquisas distintas, mas que, de certa forma, se aproximaram ao analisar a condução dada pelo setor elétrico aos processos de negociação com a sociedade, o quadro de descompasso nas ações do setor – não apenas na Eletronorte – é marcante. A área de Meio Ambiente da Eletronorte encontrou dois tipos principais de obstáculos no conflito de Belo Monte. O primeiro deles se relaciona com o desmonte – citado anteriormente para o caso da Engenharia – que também afetou fortemente o seu 326 desempenho. Quadros técnicos formados durante o período de maior efervescência das questões envolvendo hidrelétricas na Amazônia se desligaram da empresa, tanto por aposentadorias e planos de incentivo à demissão, quanto pelo desencanto com o marasmo que se abateu sobre o seu campo de atividades durante os governos Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Outro tipo de obstáculo se encontrava no mesmo dilema da privatização do setor, combinado com o fato de Belo Monte exigir, muito mais do que desafios envolvendo meios bióticos, a presença de negociadores e de mediadores de conflitos para a sua viabilização sócio-ambiental. Com isso, a área de meio ambiente – estando desfalcada de profissionais com esse tipo de perfil – teve uma atuação discreta durante o período de maior intensidade do conflito. É importante ressaltar que sua articulação com as áreas de Comunicação e de Inserção Regional era muito pequena, no caso de Belo Monte. Especialmente com a segunda, vista como uma área diretamente ligada ao presidente da empresa, essas relações não eram azeitadas espontaneamente. Esse descompasso entre as quatro áreas da Eletronorte se tornou mais expressivo quando a população local, em 2001, começou a se movimentar em torno de um levantamento que estava sendo feito pela empresa, para diagnosticar as carências da região. Buscando uma forma de se antecipar ao EIA – que, conforme já descrito, estava atrasado – a Eletronorte realizou uma série de reuniões nas principais cidades da região. Mas, a Superintendência da Expansão da Geração, a área de Inserção Regional e a Superintendência de Meio Ambiente, mais uma vez, atuaram separadas. Um dos entrevistados informou que: Já em 1996, já existia uma proposta de equipe institucional que deveria trabalhar com todas as áreas, o que nós não conseguimos fazer. (Engenheiro da Eletronorte, 16.03.2004) 327 O Presidente da Empresa, nesta descrição, é a quinta Eletronorte na região de Belo Monte e se constituiu em um personagem que, por si só, já mereceria uma análise específica. O "Dr. Muniz" ou o "Zé Antônio", dependendo do interlocutor, se converteu em elemento central do conflito, personificando, no inconsciente coletivo dos atores locais, a própria Eletronorte. Dotado de um respeitado conhecimento técnico, o Presidente da Empresa – e essa é a denominação mais adequada, por ser reconhecida por todos os atores envolvidos – se transformou no "Homem de Belo Monte", tanto para os atores locais e regionais quanto para o público interno do setor. Alguns trechos de seu depoimento para esta pesquisa confirmam o entusiasmo com o complexo hidrelétrico: Pra você ter uma energia firme de 4700 MW, no mínimo, podendo chegar a 10.000 MW,com a possível incorporação de Cachoeira Porteira, é evidente que nenhum país do mundo pode abdicar disso. Ao custo de 10 ou 12 dólares por MWh. Outra coisa importante: essa usina não tem impacto no resto da bacia do Xingu. Ela fica presa entre a Volta Grande e a cidade de Altamira. (...) Temos uma forma maravilhosa de compensar os Paquiçamba, aumentando a área deles e garantindo o acesso à água. (...) Altamira vai se transformar numa grande capital, a capital do centro do Pará. Belo Monte é uma mega PCH! (...) Belo Monte pode ser uma usina virtual com 20.000 MW e 10.000 MW firmes. Ora, isso é maior que Três Gargantas! Essa remanejou dois milhões de pessoas para 17.000 MW de potência instalada e oito ou nove mil MW de energia firme. Belo Monte não remaneja nenhuma cidade, nenhuma vila, nada! A maior usina do mundo, com 400 km² de espelho d’ água, sendo a metade correspondente à inundação normal do Xingu 328 Eu até propus agora a um professor da USP que ele fizesse lá o "Tribunal de Belo Monte", eu sendo o advogado. Eu só queria tempo para apresentar o projeto, porque esse projeto eu defendo em qualquer lugar do mundo, ele é incomparável! (Entrevista realizada em 01.04.2004) Um dos aspectos mais explorados pelo Presidente da Empresa foi o da possível interligação com a Venezuela. Neste país, a bacia do rio Caroni, com um potencial estimado em 18.000MW, tem a terceira maior hidrelétrica do mundo: Guri. A interligação com o Brasil atualmente só atende à cidade de Boa Vista, em Roraima, com 200 MW e um singelo sistema de transmissão de 230 kV. Como construir uma linha de transmissão na Amazônia tem suas complicações ambientais específicas, uma hipótese interessante é a da interligação, em 750 kV, entre Boa Vista e Manaus, seguindo para Coari e aproveitando a geração térmica a gás natural. A ligação entre Tucuruí e Manaus, passando por Belo Monte e, não necessariamente, por Cachoeira Porteira, já na margem esquerda do Amazonas, interligaria os sistemas atualmente isolados da Amazônia ao restante do Brasil e romperia com a dependência de energia estrangeira. A geração térmica com o gás de Urucu, mais a interligação com a Venezuela e Belo Monte, aponta para cerca de 20.000 MW instalados. O Presidente da Empresa, na citada entrevista, afirma: È como se construísse uma usina de 4.000 MW na Venezuela, sem alagar 1m². As perdas de transmissão podem ser substancialmente reduzidas em 750 MW, com compensadores. Com fibra ótica, pode ser feita a interligação das comunicações. (..) O gás é uma riqueza jogada fora e essa energia toda tem um custo em torno de US$ 10,00 por MWh. Isso é impossível no resto do mundo! A vontade de viabilizar Belo Monte fez com que o Presidente da Empresa fosse inúmeras vezes à região, comparecendo a encontros com autoridades, debates, solenidades e seminários, sempre defendendo as virtudes do projeto. Sua atuação não tinha uma estratégia pré-determinada em conjunto com as áreas da empresa ligadas à comunicação 329 com a sociedade. A tradução de termos técnicos e cálculos financeiros e de engenharia era feita pelo próprio palestrante. A adesão a essas idéias se tornava, então, uma questão de crença, de credibilidade e de carisma pessoal. A combinação da desarticulação entre as outras "Eletronortes" com o ímpeto do Presidente da Empresa, com seu credo particular em Belo Monte, resultou em movimentos que poderiam ser comparados aos de um inseto de múltiplas patas, cada uma delas com velocidades e movimentos diferentes, embora houvesse um sentimento generalizado de pressa por conta da proximidade das eleições presidenciais. 5.4 O PIROSCÓPIO O piroscópio é um instrumento programado para indicar que a temperatura de um corpo ou objeto atingiu determinado valor. Ou seja, regulado para um determinado grau térmico, o piroscópio indica que a temperatura atingiu esse grau, podendo funcionar, por exemplo, como mecanismo de alarme de incêndio. A comparação com o giroscópio da metáfora de Lee pode ser feita de duas maneiras – para os propósitos deste trabalho: 1. O Giroscópio é um instrumento que mantém a mesma direção, seja qual for a direção do veículo que o conduz. A agulha giroscópica apresenta sobre a magnética – da bússola – a vantagem de não ficar sujeita às anomalias magnéticas locais. O Giroscópio, assim, pode ser utilizado como elemento básico na confecção de agulhas que apontam o Norte verdadeiro. O Piroscópio não indica qualquer direção. 2. O Giroscópio é indicado para quem quer navegar em mares incertos. O Piroscópio é apenas um alarme, estático, à espera de uma situação que determine o seu aviso – que desencadeará, supostamente, uma ação reativa por parte de quem esperava o aviso. 330 O que se observa no Brasil é a presença de um piroscópio permanente, que é utilizado para avisar às autoridades públicas da ocorrência de um novo incêndio político e/ou social que demanda "providências urgentes". Observe-se a situação do conflito em Belo Monte e facilmente se chega a um exemplo de como as coisas funcionam no país. O giroscópio de Lee pode ser associado à idéia maior de um projeto nacional, como pôde ser visto nos governos militares e no Período JK – como também, de certo modo, na Era Vargas. Esse projeto, se existiu no Brasil nas últimas décadas, não foi percebido pela sociedade brasileira, sobretudo por aqueles que tem por profissão descrever e interpretar os eventos políticos. Um pesquisador que analisou o conflito, em entrevista para esta pesquisa, confirma esse raciocínio, ao comentar a oposição local ao projeto: Belo Monte é necessária? Essa discussão técnica não chegou a ser feita. Não se avançou no EIA/Rima para se poder fazer uma discussão dessa natureza. Não foi culpa da Eletronorte, é porque o campo da construção de usinas na Amazônia é um campo muito minado. Com muitas posições pré-concebidas. Antes de se fazer qualquer coisa você já tem conjuntos de atores prós e contras, sem nem conhecer o projeto. São posições preconceituosas. (...) A Eletronorte tinha argumentos interessantes, mas as contraargumentações que eu coletei não batiam diretamente na questão. Elas batiam em questões que estavam à margem do tipo ‘O projeto tem uma caixa-preta que ninguém conhece!’. Só que ninguém sabia onde é que estava essa caixa-preta. È uma espécie de afirmação que lhe pede uma crença de que ela existe. Ou você acredita ou não acredita. (Entrevista em 17.04.2004) Essa é uma situação que o setor elétrico não conseguiu resolver. A falta de credibilidade das empresas junto à sociedade não se relaciona com a sua capacidade técnica. As pesquisas de opinião feitas, na região de Altamira, por consultores contratados pela Eletronorte, constataram um alto índice de reconhecimento de sua competência, 331 especialmente pelo fato da construção da linha de transmissão que levou energia de Tucuruí para a região. A desconfiança dos movimentos sociais se relaciona, predominantemente, com os processos de relocação e de indenização, nos quais o setor teve grandes problemas. Itá, Sobradinho, Itaparica e Tucuruí são alguns exemplos de conflitos que permanecem no inconsciente coletivo das comunidades em vias de ser impactadas por obras dessa natureza. Essa imagem do setor gera atitudes reativas, como a de se procurar impedir os estudos ambientais em Belo Monte. Outra entrevista, de um ex-consultor da Eletronorte, contratado para o projeto de Belo Monte, reforça essa percepção: Esse tipo de raciocínio: "Estou antevendo que pode vir besteira, então eu quero parar o projeto desde já. Eu quero lhe impedir de estudar porque você é mais forte e vai conseguir impor a sua opinião" é uma deturpação do Princípio da Precaução. (Entrevista realizada em 24.03.2004) Esta pesquisa encontrou, de fato, evidências dos fatos apontados pelos dois entrevistados citados acima. O embate em Belo Monte se deu no campo das crenças e convicções. O compasso de Lee, não foi usado. Lembremo-nos que a elaboração do EIA foi suspensa por determinação judicial. O giroscópio – na verdade, algo parecido – só poderia ser encontrado em trabalhos acadêmicos, onde o compromisso com os resultados práticos é discutível. Outros depoimentos acrescentam novas tintas ao quadro: A maior opositora da usina é a externa. É a Amazônia que está lá e não está. A oposição maior é o casamento do internacional com o regional, sem passar pelo nacional. 332 Populações locais que imaginam poder ter uma vida rousseauniana, pedacinhos de terras iguais etc, o que evidentemente comporta do ponto de vista local, mas não do ponto de vista nacional. Ao mesmo tempo, ao internacional interessa isso. Primeiro é interessante que essa região se mantenha aberta, porque facilita a biopirataria. Muitas dessas resistências locais são pessoas ingênuas, outras nem tanto, mas que acabam favorecendo a biopirataria na região. (Professor universitário, com trabalhos na região, em 17.04.2004) A Eletronorte ficou muito tempo numa postura defensiva, escondendo dados, escondendo os problemas que havia. Se ela tivesse chegado de uma forma mais transparente, a sociedade compreenderia. Mas não, a política era esconder os impactos e os problemas que houve. Isso foi terrível porque muitos problemas que a gente sente até hoje são oriundos dessa postura. (Analista Ambiental da Eletronorte, em 30.04.2004) O que falta é a Eletronorte dizer que, pelos seus estudos, chegaram à conclusão que na região tal, no lugar tal, na rua tal, vai encher, vai inundar. Não adianta falar, tem que botar um marco nos locais. É assim que a população vai entender a obra. (Vereador da região, em 12.05.2004) A primeira grande crítica das hidrelétricas da Amazônia foi o tamanho dos reservatórios. Foi por isso que Babaquara desapareceu. Talvez Belo Monte, se vier a ser construída, seja a primeira usina hidrelétrica onde a variável ambiental foi determinante para a concepção de um novo projeto. Agora, a forma de conduzir...Eu não sei se o setor elétrico mudou mesmo. Será que mudou aquela postura de que sabem tudo? (...) Eu me lembro que quando a gente ia falar com as comunidades sobre Belo Monte, a gente chegava cheios de planos e programas e intimidava o pessoal. Era uma postura assim: nós estamos aqui para fazer tudo o que vocês precisarem. Agora, nós sabemos tudo o que vocês precisam. Era uma falsa participação! (Ex-gerente da área ambiental da Eletronorte, em 23.04.2004) No segundo semestre de 2003 e continuando ao longo do primeiro semestre de 2004, os meios de comunicação começaram a dar espaço à possibilidade de um novo "Apagão" no Brasil, considerando a hipótese de crescimento econômico no país. 333 Nesse contexto, Belo Monte voltou à mídia nacional e muitos dos seus antigos opositores radicais alteraram o discurso. Novamente o piroscópio brasileiro soava o seu alarme e a imprensa fornecia as evidências da falta de giroscópio no contexto ambiental. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse ontem em São Paulo que os estudos para a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, serão todos refeitos. De acordo com Marina, a ministra das Minas e Energia, Dilma Roussef, concordou com a retomada dos estudos “a partir do zero”. — De pleno acordo com a ministra Dilma Roussef, nós retomamos o processo de licenciamento no sentido de fazer os estudos, começar tudo de novo. Primeiro, há um conflito muito grande e não houve negociação correta no passado em relação os conflitos existentes na comunidade — disse Marina Silva. O processo teve início no governo do Pará, mas só pode ser licenciado pelo governo federal por incluir território indígena e um rio federal. (Jornal "O Globo" de 21.10.2003 – seção "O País") O Ministério das Minas e Energia já deu demonstrações de que pretende levar adiante o projeto de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, que vem sendo defendido por sucessivos governos desde meados dos anos 70 e que a partir dos anos 80 começou a gerar polêmica. Uma reavaliação só ocorrerá se a Eletronorte e o governo forem convencidos pela opinião pública, segundo afirma o deputado federal Zé Geraldo (PT-PA), que no mês passado teve audiência sobre Belo Monte com a ministra das Minas e Energia, Dilma Roussef. Pelo menos dez povos indígenas estarão na esfera de Belo Monte, e pelo menos seis mil pessoas terão de se mudar. Num segundo momento, a redução do projeto poderá acontecer se o estudo e o relatório de impacto ambiental apontarem nessa direção. A ministra teria dito ao deputado que o governo vai buscar o menor impacto ambiental possível. Segundo Zé Geraldo, Dilma quer, porém, que a potência seja de 7,7 mil Megawatts, e não de 11,18 mil Megawatts como prevê o projeto original. O fato é que o ministério quer a obra. Os prefeitos dos 13 municípios vizinhos de Belo Monte também. Ainda sob o antigo nome de Kararaô, a usina seria, segundo a Eletrobrás, a mais indicada, dentre aquelas projetadas para a região, para integrar as usinas da região do Rio Xingu ao Sistema Interligado Brasileiro. O governo Fernando Henrique estava convencido da necessidade de Belo Monte, desde que respeitado o processo legal de exame do tema, o que não aconteceu, segundo o Ministério Público Federal do Pará. O procurador Felício Pontes conseguiu liminar em ação civil pública sob o argumento de que cabe ao Congresso Nacional autorizar a realização de estudos ambientais se o empreendimento inclui terras indígenas e aproveitamento de recursos hídricos nessas terras. O estudo de impacto 334 ambiental, que era conduzido pela Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa, foi suspenso em novembro do ano passado. (Jornal "O Globo" de 20.10.2003 – seção "O País".) A defesa do meio ambiente está relacionada com a sobrevivência da espécie humana. Ninguém em sã consciência discute a procedência das preocupações com essa questão. Porém, existem muitos exageros cometidos em nome da defesa da natureza que o bom senso rejeita. O Brasil está ameaçado de um colapso de energia e precisa dramaticamente do reforço representado pela usina hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará, que vem de se transformar em verdadeira vilã para as ONGs que defendem o meio ambiente com as garras, muitas delas estrangeiras e suspeitas de defender interesses escusos de grandes grupos econômicos. (Jornal "Diário do Nordeste" de 23.10.2003 – seção "Opinião") Outro dia, o grupo do empresário Antonio Ermírio de Moraes devolveu a concessão para a construção de uma hidrelétrica na Amazônia. Motivo: não conseguiu autorização dos órgãos de meio ambiente. Não que estes tenham vetado a usina, simplesmente não decidiram. A demora foi tanta que o grupo construtor perdeu o interesse pela obra, por cuja concessão pagava. (...) A Usina Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará, com capacidade de gerar 12 mil MW, é essencial no planejamento do Ministério de Minas e Energia. Todo mundo sabe que se não houver investimento agora, o País não crescerá por falta de energia dentro de quatro, cinco anos. Belo Monte é considerada por engenheiros como um exemplo de projeto moderno, com prejuízos mínimos ao meio ambiente. Também está bloqueada no Ministério do Meio Ambiente. Há ambientalistas xiitas que simplesmente querem banir hidrelétricas, estradas e rodovias de toda a Amazônia. Já os dirigentes dos órgãos ambientais, incluindo a ministra Marina Silva, afirmam que seu objetivo não é travar o crescimento, mas apenas garantir que seja sustentado. Tudo bem, mas como os órgãos competentes não têm estrutura suficiente para atender às demandas – faltam funcionários, tecnologia e dinheiro – a coisa empaca. Sem os estudos adequados, os funcionários não se arriscam a liberar obras e pesquisas. Como não conseguem concluir os estudos, pára tudo, inclusive porque o Ministério Público entra na parada. (Carlos Alberto Sardenberg, jornalista. Jornal "Estado de São Paulo" de 10.11.2003) 335 Quando o piroscópio começa a dar sinais de alarme quanto à compatibilização da oferta de energia elétrica com a retomada de crescimento no Brasil, os discursos de antigos opositores do projeto se modificam. O que era um "grande crime ecológico" nos governos anteriores, passa a ser considerado como necessário no atual, evidenciando que o giroscópio democrático está seriamente comprometido, no Brasil, pela falta de um projeto de país que independa do resultado de eleições. Os estudos de impacto ambiental levam muito tempo para serem concluídos e recomeçá-los "a partir do zero" poderia significar desconsiderar-se um conjunto de dados obtidos desde 1975, ignorando o conhecimento adquirido por instituições pagas com o dinheiro do contribuinte. A hidrologia, a geologia, a situação fundiária, a situação socioeconômica da região já foram caracterizadas por órgãos como o IBGE, o Ibama, o Incra e o Inpe, além do próprio governo do Pará. Começar do zero equivale a quebrar as pontas do compasso – ou agulha da bússola – de Lee. A possível redução do projeto, de acordo com depoimentos de engenheiros do setor, seria feita com a construção de apenas um dos canais de adução, podendo ser ampliada a potência instalada posteriormente, com a construção do segundo canal. Caso essa seja a alternativa adotada, permanece o questionamento quanto aos impactos ambientais associados, pois os estudos ambientais não foram concluídos. Nesse contexto, os impactos ambientais teriam que ser relacionados, para que pudessem ser comparadas as duas opções de projeto, vis-à-vis a energia gerada. É possível que a redução de impactos seja mínima, quando comparada com a perda de potência instalada. É possível, também, que seja uma forma de redução de valores a serem investidos para poder viabilizar financeiramente o projeto para o governo ou para as Parcerias Público-Privadas – PPPs. Talvez esses aspectos não tenham sido percebidos pelos opositores ao projeto. O projeto está sendo redimensionado e, atualmente, sendo aceito pela maioria do MDTX. 336 (...) É uma coisa perigosa para os fundamentalistas, porque permitida a construção, mesmo em moldes pequenos, nada impede amanhã a sua ampliação. (...) Basta o país crescer muito que eles não terão como resistir. (Pesquisador do conflito de Belo Monte, em 17.04.2004) Por outro lado, a "vilanização" do Ibama é rejeitada pelo órgão, como se pode observar pelo depoimento colhido por esta pesquisa, junto a um diretor da instituição: Pode até ser que sejamos morosos e inábeis. Mas essa nossa morosidade serve para um monte de justificativas. Nós somos usados. Veja o caso da usina de Santa Isabel. O Ibama não tinha uma posição conclusiva sobre ela. Mas, os empreendedores disseram que o Ibama era contra. Não é verdade! Os empreendedores é que tinham dúvidas sobre a viabilidade do projeto e botaram culpa na gente! A gente assim vai virar "mulher de malandro", a Geni do Chico Buarque: está ali para apanhar. O licenciamento da usina de Tijuco Alto estava implicitamente negado há mais de dez anos, por causa do grande número de relocações a serem feitas. No ano passado, a Diretoria de Licenciamento resolveu assumir e negou a licença. Que ninguém daria, repito. Aí foi uma repercussão enorme. Mas, foi uma única usina. (...) A Aneel licitou usina sem licença e aí o empreendedor vem para cá e o Ibama pede alternativa locacional. (...) Para licitar já teria que ter a Licença Prévia. Aí os estudos de impacto ambiental já tinham que ter sido feitos. (...) Licitar por bacias é novidade? Isso era pra ter sido feito desde 1991! Ninguém fez nada e agora é o grande desespero que foi para os jornais: as usinas têm que ser licitadas e não têm licença! E o Ibama, o que tem a ver com isso? O setor elétrico é que não fez! (Entrevista realizada em 23.04.2004) Um ex-engenheiro do setor elétrico reforça: Os estudos de impacto ambiental não são feitos para resolver o problema nem para orientar o planejamento. Eles são feitos para mostrar que o empreendimento é viável. Têm que ser baratos e mostrar que o empreendimento é bom, só vai trazer benefícios. E acham que assim embromam a turma. 337 (Entrevista realizada em 24.03.2004) A análise e a aprovação de estudos e projetos de geração hidrelétrica são etapas do processo de identificação de potenciais empreendimentos, que poderão ser autorizados ou concedidos a investidores privados ou estatais, após inclusão no planejamento estratégico do governo. Esses empreendimentos são necessários ao aumento da oferta de energia elétrica no país. Os estudos para a identificação do potencial de produção de energia de rios e de bacias hidrográficas, nas diferentes regiões, podem ser realizados por empreendedores públicos ou privados, ou mesmo por empresas contratadas pelo poder público. Da fase inicial até a outorga de autorizações e de concessões, são percorridas as seguintes etapas: • Estudo de Inventário Hidrelétrico - permite a avaliação da capacidade de geração de energia de um rio ou de uma bacia, e delimita os locais onde a vazão e a queda, localizadas no rio, possibilitam a instalação de futuras usinas, tendo em vista o aproveitamento máximo dessa energia ao menor custo econômico e ambiental, assim como o uso múltiplo dos recursos hídricos. • Estudo de Viabilidade - realizado apenas na concepção de usinas hidrelétricas (com potência instalada superior a 30 MW). Esse estudo considera a produção energética, além das variáveis técnico-econômica e ambiental. Nessa etapa é feita a apresentação de Estudos de Impacto Ambiental e de Relatórios de Impacto Ambiental (EIA/Rima). • Projeto Básico – fase que se caracteriza pelo cálculo do valor total dos investimentos a partir de estudos de engenharia mais detalhados, para subsidiar a contratação das obras pelos investidores. Nessa etapa, também são definidas as condições ambientais e de gestão de recursos hídricos necessárias, respectivamente, à obtenção das licenças ambientais e outorgas de uso da água. Os depoimentos confirmam o fato de que a legislação ambiental brasileira enfatiza a fase anterior à tomada de decisão de determinado empreendimento. No caso das 338 hidrelétricas, Viabilidade e EIA, são as exigências. Os procedimentos indicados pelos documentos referenciais do setor elétrico priorizam, também, a fase anterior à concessão. Os procedimentos após a concessão envolvem as negociações com os órgãos licenciadores ambientais responsáveis e com outras entidades envolvidas com a utilização dos recursos hídricos, além das negociações com a população diretamente atingida. As ações previamente estabelecidas ficarão profundamente dependentes do grau de organização da sociedade local. Como descrito anteriormente, as autoridades com as quais se negocia, bem como o conjunto de atores locais e regionais e nacionais, podem não ser os mesmos, ao longo das diversas etapas do processo. Essa condicionante tem fortes implicações na participação da sociedade na tomada de decisão dos empreendimentos. A questão da participação da sociedade foi discutida por Sayago (2000), por meio das relações que se estabelecem entre o Estado brasileiro e suas instituições, assim como as questões culturais e históricas. Outras relações se estabelecem com as elites internacionais que direcionam, fiscalizam e impõem princípios no espaço nacional. A autora conclui que, dentro dessa realidade, pode-se afirmar que a participação é uma falácia. Em depoimento a esta pesquisa, um pesquisador acrescenta: Faroeste existe tanto em uma área de garimpo na Amazônia onde o Estado está ausente quanto no Rio de Janeiro, onde o Estado está, ao menos aparentemente, muito presente. Então, não é a maior ou menor presença do Estado que, necessariamente, acaba faroeste. Depende da qualidade da presença do Estado, da qualidade da organização social presente no local e do modelo de desenvolvimento adotado. A simples presença do Estado não é sinônimo de civilidade. (Entrevista realizada em 17.04.2004) Um vereador da região caracteriza a questão da informação e da participação da seguinte maneira: 339 A população de Altamira tem sido abordada por quem se organiza com essa finalidade, isto é, as ONGs, os índios e os próprios partidos de oposição. A população, de maneira geral, pouco participa. Hoje, se você for buscar quem participa de conselhos e sindicatos, são exatamente todas as pessoas que fundaram o Partido dos Trabalhadores. (...) A cidadania não cresceu. Se você fizer um apanhado preciso, você vai verificar que, a partir de 1989, são as mesmas pessoas. O comando é o mesmo em todos os setores. Grosso modo, creio que são uma cem pessoas. (Entrevista realizada em 12.05.2004) Alguns trechos do depoimento de um engenheiro que também atuou na área de Meio Ambiente da empresa reforçam a dificuldade do setor em trabalhar com a questão da participação: Quem é a sociedade? Quem é o interlocutor? Na Audiência Pública a sociedade não comparece! (...) Por lei, as estatais não podem pagar pela terra a alguém que não pode comprovar a sua propriedade. (...) O Ibama é Governo. Estudo não é só para regularizar um papel! (...) Espera-se que o empreendedor gaste milhões de dólares para aí então se questionar, aí fica uma discussão muito desigual. (...) Em Itaparica, a Chesf gastou mais com assentados do que com a construção da usina. (Entrevista realizada em 18.03.2004) As pesquisas feitas pela Eletronorte, junto à população local, para subsidiar o seu Programa de Inserção Regional – PIR da UHE Belo Monte evidenciaram carências nas áreas de saúde, educação, segurança pública e saneamento básico. O desemprego e a qualificação da mão-de-obra local são também motivos de grande preocupação dos habitantes da região. Em uma pesquisa de respostas múltiplas, a população da cidade de Altamira considerou que os três principais problemas da cidade são o atendimento ao menor, o abandono dos bairros periféricos e o sistema de ensino. Suas três principais demandas foram: urbanização, saneamento básico e serviços de saúde. 340 Para a opinião pública de Vitória do Xingu, segundo pesquisa semelhante, os resultados foram semelhantes. Não são muito diferentes os problemas e demandas vocalizadas nas outras cidades dos municípios da área considerada para a Inserção Regional. Existia preocupação da população local com uma grande defasagem entre os possíveis postos de trabalho gerados pela construção da hidrelétrica e a qualificação profissional dos trabalhadores da região. São, obviamente, questões de caráter comum aos da maioria das cidades brasileiras. O fato novo que se tem é a possibilidade de construção da usina. E essa possibilidade gerou uma busca por um "lugar na fila" por parte dos prefeitos dos municípios da região, visando à obtenção de compensações financeiras pela obra. Querem colocar um município no rio Amazonas, Gurupá, Placas, Rurópolis. Não tem nada a ver. Na verdade, os municípios atingidos vão ser Altamira, Vitória do Xingu, Anapu e Brasil Novo. Os demais... é preciso que se prove tecnicamente em que vão ser prejudicados. Isso foi apenas um acordo entre a AMUT e a Eletronorte. (...) A Eletronorte apareceu nas propagandas e ela é do governo. Mas a gente queria saber é se o governo falava a mesma coisa que a Eletronorte. O que pareceu é que a Eletronorte não era a porta-voz do governo, porque o que a Eletronorte fala publicamente não é a mesma coisa que o governo fala. Não há a mesma empolgação do governo que tem a Eletronorte. Recentemente foi construída pelo Fernando Henrique uma termelétrica no Rio de Janeiro. E que a gente é levado a pensar é que prevalecem as discussões e propagandas, mas se deixa acontecerem as coisas de última hora para que sejam beneficiadas as empresas americanas para comprar esses motores termelétricos que são usados também nos Estados Unidos que tem 35% da sua energia com termelétricas. (Vereador da região, em 12.05.2004) Na verdade, a situação descrita pelo vereador é um dos resultados da inserção do descompasso da Eletronorte no piroscópio brasileiro. A falta de integração, de articulação entre políticas, planos e programas para a região – como ocorre no restante do Brasil – fez com que a face visível do Estado fosse, no inconsciente dos atores locais e regionais, associada à Eletronorte. 341 Além disso, esses episódios deixam clara a necessidade da utilização de instrumentos como a Avaliação Ambiental Estratégica para poder ordenar o conjunto de intervenções previstas para a região. Como tem sido enfatizado ao longo deste trabalho, o conflito em Belo Monte é uma alíquota da grande confusão nacional, colocada em um tubo de ensaio no qual se utilizam testes que permitem generalizações. Entretanto, trocando a Eletronorte pela Petrobrás ou pela Vale do Rio Doce, por exemplo, é provável que a experiência não revelasse resultados semelhantes. Estados brasileiros brigam pela implantação das refinarias de petróleo em seu território, mas não se vêem escaramuças pela "posse" de hidrelétricas. Obviamente que as alternativas locacionais de um projeto hidrelétrico são muito menores que as de uma refinaria de petróleo. Essa é uma das razões para que as refinarias sirvam, muitas vezes, de moedas políticas para o governo central. Os sucessivos governos do estado do Pará têm conhecimento de que Belo Monte é um projeto que não pode ser realizado em outro ponto da bacia do Xingu. Entretanto, existem outras opções de geração de energia elétrica na Amazônia, como as do rio Madeira, que podem ser utilizadas como alternativa a Belo Monte. A diferença fundamental é que a Petrobrás tem um comando único que, mesmo sendo objeto de trocas periódicas provocadas por arranjos políticos conjunturais, dão uma imagem de unidade e poder à empresa, certamente reforçada pela imagem de que "o petróleo é nosso!", uma imagem que acompanha a Petrobrás há cinqüenta anos – desde a sua criação por Vargas. Nunca houve uma campanha "a energia elétrica é nossa!", ao menos com intensidade próxima àquela que envolveu – e, de certa forma, ainda envolve – a exploração de petróleo no Brasil. A Eletrobrás, em muitos momentos, teve atuação comparável à dos monarcas modernos, com um comando simbólico e formal. Apesar da predominância absoluta da hidroeletricidade na matriz energética nacional, essa forma de geração é contestada sistematicamente – enquanto refinarias que apresentam 342 um risco significativamente maior de impactos sobre ecossistemas são disputadas "a tapa" pelos governos e sociedades locais. No Brasil, ao contrário de outros paises, a energia hidrelétrica não é vista como energia alternativa porque é a base da matriz energética. (Analista Ambiental da Eletronorte, em 30.04.2004) Essa fragmentação do setor elétrico nacional permite maior influência política nas empresas, maior aceitação da sociedade quanto à privatização e a montagem de estruturas de gestão totalmente diferenciadas, em função da sustentação de cada uma das subsidiárias da Eletrobrás. Essas características se revelam, de forma marcante, na atuação da Eletronorte no conflito de Belo Monte, no qual a Eletrobrás, paradoxalmente, atuou como se fosse apenas uma observadora. Tanto é assim que esta pesquisa não obteve, uma única vez sequer, qualquer referência espontânea dos atores locais e regionais à holding setorial. Para o bem e para o mal, a Eletronorte é que é identificada pela população como o braço forte da União na região. São poucas as observações como a de um vereador de Altamira, para quem: O estado do Pará não apareceu publicamente, está em cima do muro. Até então o Pará não disse o que quer ou está aguardando a posição do Governo Federal. A Eletronorte grita sozinha. (Entrevista realizada em 12.05.2004) Ainda hoje, a população espera que, com a hidrelétrica, haja uma grande geração de empregos e um expressivo desenvolvimento para a região, a partir do surgimento de novas empresas e da maior circulação de dinheiro. Por outro lado, a atuação da Eletronorte na Amazônia dá à empresa uma imagem fortemente associada ao desenvolvimento econômico regional. Espontaneamente, são atribuídas à Eletronorte a contribuição para o desenvolvimento do setor elétrico e a 343 competência técnica, vinculadas à uma imagem com uma expectativa de futuro, além de uma demanda muito forte no presente pela geração de emprego. Mais ainda, a presença da Eletronorte na região, desde 1975, cristalizou, junto à maioria da população, a idéia de que a empresa será a responsável pela construção da usina. Por vários motivos, inclusive, pela falta de articulação interna, essa idéia não foi desmontada pelos diversos interlocutores que compõem os cinco "braços" da Eletronorte no conflito. Ao contrário, em diversos momentos foi realçada a possibilidade de que a privatização do setor elétrico retrocedesse e a empresa fosse designada para tocar a obra. As distâncias entre as comunidades e as dificuldades de transporte e de comunicação na região fazem com que os meios de comunicação, mesmo os mais comuns, como televisão e rádio, tenham menor impacto na divulgação e veiculação de notícias do que as conversas entre as pessoas no ambiente familiar e nos círculos de relações sociais, em municípios de pequenas dimensões demográficas e de relativo isolamento. Nesse contexto, para o bem e para o mal, a Eletronorte – e não o Governo Federal – é que queria "fazer a barragem". Infelizmente, o problema de Belo Monte foi não saber conduzir o processo de comunicação com a sociedade local, a regional e a nacional. (Depoimento de um analista ambiental da Eletronorte, em 30.04.2004) Um conflito que não tenha mediação, não tem, verdadeiramente, negociação. Para que isso ocorresse em Belo Monte, seria necessário que os respectivos mecanismos institucionais fossem muito bem definidos. Os depoimentos a seguir mostram as características piroscópicas da situação de Belo Monte: Há uma discussão muito acirrada acerca de verbas para os municípios atingidos. Já existem pessoas querendo montar um governo 344 paralelo na região, o que causaria muita insatisfação nos governos municipais. Isso desautoriza o poder municipal. (Vereador da região, em 12.05.2004) Para se entender um pouco dessa coisa que está se chamando de democracia, de participação. Eu estava na minha casa quando esse senhor, o Dr. Muniz, juntamente com o prefeito veio diretamente de Brasília, do aeroporto para a nossa casa. Segundo eles, estavam trazendo uma grande novidade: a notícia de que a hidrelétrica foi aprovada e vai ser construída. O que o senhor diz? Eu disse: não tenho mais nada o que dizer, já está resolvido! Eu quero só que vocês respeitem o povo pobre, aqueles que vão perder as suas casas. Eles então vieram com as melhores promessas. Todo mundo vai ganhar casa melhor. Saíram diretamente para o Xingu Praia Clube e lá disseram que estavam vindo da minha casa e que o padre já abençoou o projeto de Belo Monte. Eu só lhe contando isso para saber como é que a gente manipula as coisas. (Padre da Prelazia do Xingu, em 13.05.2004) “Belo Monte é uma de uma série de usinas que vão ser feitas!’" Essas pessoas já inventaram essa história, por conta da construção daquela pequena usina de 182 MW. "Não há necessidade de construir a usina". E aí tem algumas propostas muito interessantes no computador. Por exemplo alguém me disse que se nós não usarmos mais nenhum chuveiro elétrico, teremos um Belo Monte no país. Ótimo! È muito bonito no computador isso, agora vá convencer o povo brasileiro a não usar chuveiro elétrico. Pode até ser que a gente consiga, mas vai demorar décadas. (Pesquisador que atuou na região, em 17.04.2004) Basicamente foi a questão política e não a questão ambiental a causadora dos conflitos relacionados com hidrelétricas na Amazônia. (Analista Ambiental da Eletronorte, em 30.04.2004) Com um conflito de tamanha proporção, ficam sem respostas as perguntas: • Quem vai mediá-lo? • O Governo Federal? • Mas, e se a obra for do governo? 345 • O Ibama? • Mas, o Ibama não é governo? • O órgão licenciador estadual? • Mas, como o jogo político influirá nas decisões técnicas, em função das composições que, tanto em nível federal quanto estadual e municipal, são costuradas para garantir uma governança conjuntural? A questão da mediação de conflitos por parte do Ibama é vista por um dos seus membros, em entrevista para esta pesquisa, do seguinte modo: O técnico do Ibama não está preparado para mediar conflitos. Falta serenidade e competência nesse campo. A multivisão que é necessária, eles não têm. (...) Eles precisariam ser grandes negociadores, grandes administradores de conflito. Esse é que é o trabalho nosso, se não for assim, ou o ambientalista anula o empreendedor ou o empreendedor anula o ambientalista. Em ambos os casos, é ruim para a sociedade. (Entrevista realizada em 23.04.2004) A "judicialização" do processo, comentada anteriormente, é discutida por Magrini (2003): Estamos confrontados hoje' com uma demanda crescente de "protagonismo" em campo ambiental que, se por um lado mostra-se positiva, pois reflete uma crescente sensibilização e vontade de participação da sociedade em relação às questões ambientais, por outro, põe em evidência uma situação de crescente conflito de competências, com repercussões extremamente negativas não só em campo ambiental mas também nas esferas política e econômica. O licenciamento ambiental apresenta-se como caso emblemático dessa situação. Concentrando-se por lei nas mãos dos órgãos ambientais estaduais e do Ibama, alvo de reivindicações por parte dos municípios, que clamam por uma descentralização do processo, e objeto de crescentes contestações e ações por parte do Ministério Público Federal e dos Estados, o licenciamento é hoje campo para todo tipo de conflito, representando o "pesadelo" dos empresários que atribuem à não aprovação das licenças um grave entrave à produção e ao desenvolvimento econômico. 346 A autora alerta que esse processo faz com que se acumule o "passivo" de licenças nos órgãos ambientais, crescendo o número de empresas que operam "fora da lei", potencializando-se as degradações ambientais, desestruturando-se as instâncias institucionais e esvaziando-se as diretrizes da política, acrescentando que: A legitimidade da crescente demanda de participação por parte dos diferentes agentes sociais, econômicos e políticos parece direcionar-se para uma situação inexorável de conflito, onde prevalecem os interesses corporativos e/ou individuais e onde a única possibilidade de resolução tende a se dar na esfera jurídica. (Magrini, 2003) Essa situação fez com que o Ministério Público passasse a ser protagonista nos conflitos ambientais dos anos recentes. O artigo 129, da Constituição Federal, que estabelece as funções institucionais do Ministério Público, impõe a este o zelo pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública promovendo as medidas necessárias à sua garantia. Não é pouco. Entretanto, a atuação do Ministério Público vem sendo contestada até mesmo por setores que, no passado, se valiam de sua missão constitucional para reforçar as suas estratégias de combate aos governos centrais de então. A imprensa, por exemplo, à época da conclusão desta tese, repercutia intensamente o assunto. No momento em que economistas e empresários convergem em uma opinião - a de que o crescimento econômico no país dependerá de investimentos em infra-estrutura - a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, faz ressalta que a questão ambiental não se coloca como obstáculo aos planos de expansão. "Não é nosso interesse emperrar o processo, em absoluto", diz. A posição de Marina é uma resposta às críticas do setor de infra-estrutura, que se intensificaram no último mês. (...) A ministra revela que o ministério trabalha para reduzir os conflitos no momento de licenciar grandes projetos. O governo, conta, estuda criar uma câmara de mediação dentro da Advocacia Geral da União. "Não existe hoje um sistema adequado para fazer a mediação de conflito. Em muitos casos, as próprias empresas a fazem". Marina também defende o seu projeto original de tornar a questão ambiental pauta de todas ações de governo. 347 Mesmo com as disputas em torno do projeto de lei dos transgênicos, ela garante que a "visão integrada" avança. Como exemplo, cita os projetos da rodovia BR-163 e a usina hidrelétrica de Belo Monte. No caso de Belo Monte se tentou passar por cima da lei, fazendo a licença no Estado do Pará, e como é um investimento federal, o Ministério Público foi lá e embargou. (...) "O problema é que, politicamente, ninguém diz que tal investimento está parado porque o Ministério Público embargou. O pessoal vai brigar com juiz? Bem, está lá a Marina, ela é ambientalista, e esse é o grande pecado dela. Isso politicamente rende." (Jornal "Valor" de 19.12.2003 – 1º Caderno) Originalmente, a construção do complexo energético na Volta Grande Xingu (localizada entre os municípios de Altamira e Vitória do Xingu) foi projetado para inundar 7 mil quilômetros quadrados de área, incluindo grande parte da reserva dos índios Kayapó. Além deles, mais de 20 etnias vivem às margens do rio Xingu, entre os Estados do Pará e Mato Grosso. A reação entre a sociedade foi tamanha que, na segunda etapa do projeto, o governo federal reduziu a área de inundação para 400 quilômetros quadrados. Mas o procurador federal Felício Pontes Jr. detectou três falhas que motivaram o ajuizamento de ação civil pública que tramita na Justiça: a Fadesp, empresa contratada pela Eletronorte para realizar os Estudos de Impactos Ambientais e o Relatório de Impacto Ambiental (Eia-Rima), não participou de concorrência pública, apesar de seu estatuto prever que a entidade é de direito privado. Foram destinados R$ 4 milhões para os estudos, sendo previstos outros R$ 4 milhões para conclusão. O Tribunal de Contas da União já reconheceu a falha e determinou a devolução da verba aos cofres da União. Também foi contestada a liberação da licença ambiental da obra pela Secretaria Executiva de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (Sectam). A Procuradoria da República defende que a obra abrange área da União (reservas indígenas) e que a bacia do Xingu atinge mais de um Estado. Portanto, é o Ibama o órgão apropriado para conceder o licenciamento ambiental. O terceiro fator diz respeito à autorização do Congresso Nacional para a realização da obra. O procurador defendeu a tese de que é necessária primeiro a autorização prévia dos parlamentares para depois serem realizados os estudos, a fim de não se correr o risco de desperdício de recursos, caso a decisão do Congresso seja negativa. Os três pontos foram aceitos pela Justiça, mas a Eletronorte está em sua quarta apelação judicial. Após ouvir a explanação do atual presidente da Eletronorte, Felício Pontes Jr. disse que a empresa ainda não tem um projeto executivo e que, para o direito ambiental, não é possível realizar o Eia-Rima de um complexo hidrelétrico sem a concepção do projeto. “Os estudos têm que compreender toda a bacia do Xingu”, defendeu Pontes, esclarecendo que os estudos da Fadesp levam em consideração apenas parte do rio, onde 348 está prevista a construção de barragem, mas a obra deverá impactar uma área bem mais abrangente. (Jornal "O Liberal" de 21.11.2003 – Seção "Painel") O jurista Hélio Bicudo54 defendeu energicamente o Ministério Público diante de propostas recentes de se impedir os procuradores da investigação – nesse caso, de natureza criminal: A questão não é tão simples como possa parecer, não bastando a simples leitura do aludido texto constitucional para chegar-se à conclusão pretendida, qual seja, a de se afastar o Ministério Público da investigação criminal. “A lei, escreve Francesco Ferrara, citado por Alípio Silveira, não se identifica com a letra da lei. Esta é apenas um meio de comunicação: As palavras são símbolos e portadoras de pensamento, mas podem ser defeituosas" (O fator político-social na interpretação das leis, 1946, p.37) A interpretação de uma norma constitucional não pode se ater exclusivamente ao que nela está escrito. A norma tem de estar conforme com o sistema e com os princípios gerais ínsitos no conjunto do texto constitucional, como os costumes e a realidade sociopolítica. Na lição de Carlos Maximiliano, a tarefa primordial do executor das normas estabelecidas é descobrir a relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o direito. Como pondera Recaséns Siches em sua Nueva filosofia de la interpretación Del Derecho, “O direito não é um sistema constante, uniforme, igual, senão que, pelo contrário, é mutável e tem uma dimensão essencialmente plástica, de adaptação a novas situações e circunstâncias. Tem sempre esse caráter, em medida maior e menor; mas em nossa época o tem em uma enorme proporção.” (op. cit, p.109). Nada tem a ver com a estratificação que se lhe pretende impor. Bicudo considera que a proibição pretendida busca embasamento em atitudes isoladas de membros do Ministério Público que não têm levado em conta a sua unidade funcional, um de seus fundamentos básicos. O Ministério Público é uno e indivisível. Distorções na sua atuação que podem ser facilmente corrigíveis decorrem da concepção, já ultrapassada, que entregava ao chefe da Instituição (então demissível ad nutum pelos Governadores de Estado ou pelo Presidente da República) o monopólio no exercício das atribuições do parquet. A figura do chamado “promotor natural” surgiu, exatamente para impedir a filiação política da Instituição, quando para atender a reclamos da chefia do Poder Executivo, 54 Parecer disponível em www.transparencia.org.br . Acesso em 12.08.2004. 349 destituíam-se promotores que não se alinhavam a uma determinada linha política. Nos dias correntes, nomeado dentro da classe, com mandato certo que somente poderá ser revogado segundo as dificuldades do procedimento instituído, o procurador-geral da Justiça não tem a temer sua destituição se sua atuação não se conforma à vontade da política dominante. Ele passa a agir segundo os princípios que informam a pureza procedimental do Ministério Público, na forma do quanto dispõe a Constituição, como já tivemos a oportunidade de assinalar. Para Bicudo não existem argumentos que possam permitir a redução das atribuições do Ministério Público e, na sociedade atual, impedir-se a ampla atuação do Ministério Público "será acoroçoar-se à ilicitude daqueles que se situam em patamares superiores da sociedade e que por isso mesmo se sentem imunes." E conclui: A lei penal, segundo pensam, não é para eles, mas para aqueles que o sistema político-econômico marginalizou ou excluiu da vida social. (...) Não se pode retirar meios, quaisquer que sejam, que impeçam ou dificultem a propositura da ação penal pelo Ministério Público. Se a tanto chegarmos, estaremos decretando a própria falência do atual ordenamento jurídico que o constituinte de 86/88 buscou normatizar, tendo em vista a contribuição do Ministério Público na construção do Estado Democrático. No caso exemplar de Belo Monte, em 26 de fevereiro de 2002, o Procurador da República, Felício Pontes Jr., dirigiu-se ao Presidente do Supremo Tribunal Federal – STF, Ministro Marco Aurélio Mello, e apresentou resposta, em homenagem à garantia constitucional do contraditório, da qual serão destacados, a seguir, alguns trechos: A UNIÃO tenta, mais uma vez, com base em pressupostos falsos, reverter liminar concedida pelo d. Juízo da 4ª Vara Federal da Seção Judiciária do Pará e o V. Acórdão, unânime, do C. TRF-1ª Região, que determinaram a paralisação do ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL/RELATÓRIO DE IMPACTO AMBIENTAL (EIA/RIMA) da USINA HIDRELÉTRICA BELO MONTE, por desrespeito às normas ambientais e constitucionais. (...) O licenciamento ambiental do megaprojeto UHE BELO MONTE está a cargo da SECTAM – Secretaria Estadual de Ciência Tecnologia e 350 Meio Ambiente/PA, por livre e errônea escolha da ELETRONORTE. Trata-se de um erro gravíssimo. Somente o IBAMA pode licenciar a obra em estudo. (...) A UNIÃO tenta confundir Vossa Excelência ao informar que há participação do IBAMA no licenciamento ambiental. Ledo engano. O licenciamento ambiental é procedimento complexo que se inicia com a aprovação do documento que estabelece o conteúdo do EIA/RIMA: o Termo de Referência. E este foi submetido à infausta aprovação da SECTAM, e não do IBAMA. (...) O mais grave, porém, é que toda essa argumentação foi aceita pela ELETRONORTE. Com efeito, após a d. decisão do C. TRF-1ª Região, a ELETRONORTE submeteu o projeto ao IBAMA. Em janeiro deste ano, a Diretoria de Licenciamento do IBAMA comunica este órgão ministerial que inicia os procedimentos de licenciamento ambiental da UHE BELO MONTE (doc. em anexo). Trata-se de um paradoxo. De um lado, a tese de que somente o IBAMA pode licenciar o projeto é aceita e tem início seu iter constitucional pela ELETRONORTE. De outro, tenta a UNIÃO, que neste ato fala pela ELETRONORTE (art. 5º, Lei n. 9469/97), que o licenciamento não se dê pelo IBAMA. Quanto contra-senso! O EIA/RIMA realizado até o momento não se perde. Apenas será submetido ao órgão competente para licenciamento – o que começou a ser feito. Uma vez licenciado pelo IBAMA, cessa-se a ilegalidade. Antecedendo a essa pendência jurídica, é possível identificar um questionamento constante dos acadêmicos, cientistas e ambientalistas paraenses, especialmente na década de 1980, quanto à contratação, por parte da Eletronorte, de empresas de consultoria do Rio de Janeiro e de São Paulo para realização dos estudos ambientais de seus projetos na Amazônia. No caso de Balbina e Cachoeira Porteira, a Enge-Rio; no caso de Tucuruí, a Engevix; no caso de Samuel e Manso, a Sondotécnica; e, no caso de Ji-Paraná e Belo Monte (antiga Kararaô), o CNEC. Foram muitas as vezes em que esse descontentamento foi manifestado publicamente por um famoso ambientalista da região, o médico Camilo Vianna, particularmente eloqüente em suas intervenções nos eventos dos quais participava. 351 Os engenheiros e técnicos da Eletronorte entrevistados apontam como razão para dirigir o licenciamento à Sectam a necessidade de se prestigiar a comunidade acadêmica local, em uma visão de Inserção Regional dos empreendimentos. Nós em momento algum fugimos do Ibama. Nós temos um ótimo relacionamento com o Ibama, poderíamos conduzir o processo muito mais facilmente aqui em Brasília. Por quê nós levamos para o Pará? Porque nós estávamos com o licenciamento da segunda etapa de Tucuruí na Sectam (LI) e a LO da primeira e da segunda etapa de Tucuruí. E olhe que o rio Tocantins é um rio nacional, nasce aqui no DF e todo o licenciamento de Tucuruí foi feito na Sectam. Se a gente tivesse entrado no Ibama, a gente teria o mesmo problema, ou seja, a Sectam iria dizer que a gente estava fugindo dela. O Ibama em qualquer momento pode entrar no processo. Eu como engenheiro civil não consigo entender esses problemas políticos. (Depoimento de um engenheiro da Eletronorte, em 16.03.2004) O documento do Ministério Público alerta que: As duas vezes em que a FADESP foi contratada para realizar EIA’s de grandes obras, estas foram embargadas judicialmente por problemas nos estudos ambientais. Trata-se das HIDROVIAS ARAGUAIA/TOCANTINS e TELES PIRES/TAPAJÓS. Assim, a FADESP não preenche os requisitos indicados na Lei. Ademais, em recente informação, o IBAMA declarou que apenas um profissional da FADESP possui inscrição no Cadastro Técnico Federal de Atividades e Instrumentos de Defesa Ambiental, ato obrigatório para todo o profissional da área de estudos ambientais ( Resolução CONAMA nº 01/86). (...) Urge ressaltar, por haver alegação da UNIÃO, mais um pressuposto falso. Aqui não se alega má-fé, mas sim desconhecimento de causa. Diz a UNIÃO que a UHE BELO MONTE gerará 11.000 MW. Não acontecerá. Conforme exaustivamente debatido no Estado do Pará, resta comprovado que durante alguns meses do ano a UHE Belo Monte não operará nenhuma de suas máquinas em razão da rigorosa estiagem do Rio Xingu. Tal fato deverá prejudicar qualquer parceria com a iniciativa privada para a realização do projeto. Além disso, ao contrário do que alega a UNIÃO, sua entrada em operação plena somente está prevista para os anos de 2012 a 2014. É imprescindível, neste ponto, enfatizar o que foi abordado no Capítulo 2 desta tese: 352 • Que mecanismo se deve utilizar para validar informações? • Quais as referências adotadas? • Em um conflito entre técnicos, quais as razões da escolha do Ministério Público por informações prestadas por um dos lados que se opõem? • Foi discutida a interligação de Belo Monte com as outras bacias brasileiras? • A interligação com a Venezuela? • Com o gás de Urucu? • Ou essas propostas são consideradas como apenas parte de um processo de "venda" do projeto? Questões como essas permanecem sem respostas, enquanto o piroscópio brasileiro não sinaliza uma crise iminente. O MP fez uma escolha, constante de sua resposta ao STF. A Eletronorte sustenta a importância de Belo Monte. O Governo Lula admite implementar o projeto, com modificações cuja magnitude na redução de impactos ambientais não está definida. • Tem razão o procurador ou os engenheiros e técnicos da Eletronorte, para quem Belo Monte não tem interferência alguma com o restante da bacia do Xingu? • Quem vai decidir se a obra é necessária ao país? • E se for necessária, em que modelo será elaborado o projeto? • Ou será que se vai esperar que se acenda o piroscópio, mais uma vez, para que se toque um projeto desesperadamente, correndo contra o relógio do "Apagão"? Magrini (2003) alerta que situações como essas precisam ser urgentemente revertidas: Não só para recuperar o "foco" da política ambiental, mas, principalmente, para perseguir de forma efetiva o tão falado "desenvolvimento sustentável". 353 É preciso, portanto que se estabeleça um amplo, processo de, negociação que leve à construção de um pacto ambiental voltado para a solução dos problemas emergenciais que a gestão ambiental vem enfrentando. Voltando à questão do licenciamento ambiental, é fundamental que os agentes envolvidos (órgãos ambientais federais, estaduais e municipais, ONGs e sociedade civil, Ministério Público, empresas e entidades representativas etc.) enfrentem de forma conjunta e cooperativa o passivo de licenças que se acumula nos órgãos ambientais, buscando soluções de consenso que garantam ao mesmo tempo a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento do país. Mas, se ao Ministério do Meio Ambiente, por meio de sua titular, é atribuída, na reportagem citada anteriormente, a expressão: O problema é que, politicamente, ninguém diz que tal investimento está parado porque o Ministério Público embargou. O pessoal vai brigar com juiz? O referido documento do MP afirma que: Em estudo elaborado pelo Engenheiro e Professor RENATO LUIZ LEME LOPES, intitulado HIDRELÉTRICAS NA AMAZÔNIA – LIÇÕES DO PASSADO E PERSPECTIVAS PARA O FUTURO, há um alerta para os impactos sócio-ambientais de uma UHE à jusante da barragem, exatamente onde está localizada a T.I. PAQUIÇAMBA: “Mudança do regime das vazões; mudança da qualidade da água; alteração da composição da fauna aquática; redução da fertilidade natural das várzeas; erosão das margens” (fls.79). Quer pelo próprio reconhecimento da ELETRONORTE (Livro Verde), quer pelos dados científicos e conhecimento dos povos indígenas, a construção da UHE BELO MONTE necessitará do aproveitamento de recursos hídricos de Terras Indígenas, sem esquecer os danos imensuráveis aos povos da floresta. Não se espera que um Procurador da República ou um Ministro do STF, apesar das elevadíssimas exigências associadas a cargos tão elevados, tenham conhecimento técnico 354 de áreas tão específicas quanto engenharia e meio ambiente – mas dois aspectos do trecho citado acima merecem comentários. Primeiramente, a expressão "os impactos socioambientais de uma UHE à jusante da barragem" pode dar a conotação de uma outra usina hidrelétrica projetada à jusante de Belo Monte, especialmente quando há controvérsias quanto ao uso da denominação Complexo Hidrelétrico. Tal conotação não seria possível se o texto se referisse, como confirmado junto ao autor citado, aos possíveis impactos à jusante de uma barragem. Desse modo, o texto mais adequado deveria fazer referência aos impactos socioambientais de uma UHE, à jusante da barragem. Como esta pesquisa tem abordado, pequenos detalhes como esses podem se transformar em uma "bola de neve" no conflito, como confirmam os episódios aqui citados no Capítulo 2 – Sokal, Portal da Capes, divisão da Amazônia etc. Em segundo lugar, o "Livro Verde" é uma publicação resultante dos primeiros trabalhos do CNEC na região, a serviço da Eletronorte. O documento é considerado pelos especialistas em planejamento e gestão ambiental como ultrapassado, em vários dos aspectos abordados, pelo fato de haver transcorrido um período de mais de vinte anos desde sua publicação. Esse período não traz grandes alterações em determinados dados – como os hidrológicos e geológicos, por exemplo – mas, descaracteriza, completamente, outras informações – como questões sócio-econômicas e indígenas, por exemplo, que podem estar inclusive mais agravadas do que como considerado no documento do MP. Isso nos remete à necessidade de negociação, de um pacto como o sugerido por Magrini. Caso contrário, ficaremos como na frase da ministra: vamos brigar com juiz? Outra questão relevante sobre o papel do Ministério Público no processo diz respeito à sua interferência nas questões de natureza substantiva, em lugar de desempenhar a função de fiscalização dos aspectos relativos às normas e aos procedimentos. 355 Os movimentos sociais da região de Altamira provocaram a ação do Ministério Público. Por meio dos seus líderes, entrevistados para esta pesquisa, se manifestaram de modo a enfatizar os aspectos descritos abaixo: Hoje, ao longo da Transamazônica, dá para contar nos dedos as famílias que ainda são da colonização original. Na Transamazônica hoje as florestas foram desmatadas e as terras estão ocupadas por fazendeiros, grandes latifundiários. As famílias que foram chegando foram para o final dos travessões, abrindo estradas, picadas na verdade. Essas famílias também poucas delas permanecem. Venderam a preço de banana os seus lotes. Os latifundiários foram comprando os lotes. A pressão veio e as poucas famílias foram deixando a faixa da Transamazônica. A maioria dessas terras ainda hoje não é titulada. Em 1999, por intermédio do então prefeito de Altamira, foram oito meses de propaganda na televisão, quase que de hora em hora, anunciando a vinda da barragem, trazendo 2.0000 novos empregos, sem que os movimentos sociais fossem chamados para a discussão. No final de 2000, nós do movimento social começamos a nos preocupar porque foi chegando muita gente a Altamira, atraídas pela propaganda e nós ficamos pensando: e aí? Como o governo novamente traz esse projeto e nós não fomos chamados? A propaganda está na imprensa e nós estamos alheios a esse processo? Foi aí que agente começou a se reunir e discutir para tomar uma decisão maior. Em abril de 2001, realizamos uma grande assembléia com cerca de 200 lideranças da região dos 12 municípios da região e decidimos uma programação de trabalho para discutir esse projeto.(...) Criamos então o MDTX (...) O Governo não tinha mostrado para nós qual era a novidade do projeto. Era só a redução do lago? A princípio, se dizia só Belo Monte, depois era CHE Belo Monte. Então para nós, era o mesmo projeto de 1989. (Depoimentos de duas lideranças do MDTX, em 14.05.2004) Essas ponderações não podem ser entendidas como sendo de "radicais contra o progresso". São reivindicações legítimas, voltadas para a informação da sociedade e para a sua participação no processo. 356 Uma caracterização dos movimentos sociais da região pode ser encontrada no depoimento de um pesquisador entrevistado para esta pesquisa: Há uma resistência menos fundamentalista, mais racional, que diz espera um pouquinho, vamos ver qual é o desenvolvimento local e regional que é o melhor. Há uma outra resistência, de natureza política, que é o empreendimento estar associado ao FHC. Isso cria uma ambigüidade: para o político que é candidato local a deputado, federal ou estadual, a oposição ao empreendimento pode até lhe favorecer nas eleições, porque há uma parcela da população que, por desconhecimento e pela própria natureza humana, teme a usina porque ela traz uma série de mudanças. Quando eu me coloco contra, eu ganho o apoio dessa população receosa, o que pode ser suficiente para me eleger Deputado Federal.(...) Por outro lado isso não aconteceu com a candidata do PT ao governo estadual. Ela tentou dizer que não era contra, mas o seu partido já havia dito que era contra a usina. (Entrevista realizada em 17.04.2004) Esta pesquisa confirmou a visão do pesquisador citado acima, mas acrescida de um fato, já abordado neste trabalho: a Eletronorte é o Governo Federal em certos momentos e, em outros, é percebida como uma instituição autônoma, um alienígena. Essa esquizofrenia institucional continua não resolvida, no Governo Lula, mesmo com o previsível abrandamento dos discursos contra Belo Monte. Agora é que nós estamos começando a chegar em outro tom. Dizer assim: vocês vão discutir com o Governo e não com a Eletronorte. Com a Eletronorte nós não queremos discutir porque ela já mostrou que não tem interesse m mostrar a verdade. (Depoimento de uma liderança dos movimentos sociais, em 14.05.2004) Para os movimentos sociais, a Eletronorte se comportou como uma "Grande Mãe", promovendo ações de caráter assistencialista nas cidades da região. Esse fato causou uma "grande irritação" nos líderes do movimento, gerando uma oposição ao que denominaram de "lobby pró-barragem". 357 É interessante notar que, mesmo sem que se aprofunde a investigação com fundamentos teóricos da Análise do Discurso, os depoimentos de atores que apóiam o projeto fazem referência à usina ou a Belo Monte. Os opositores, por sua vez, utilizam a palavra barragem quase todas as vezes que se referem ao projeto. Esse fato sugere uma posição de convicção, em que o barramento ao curso natural do rio Xingu não pode ser feito, em nenhuma hipótese. As lideranças dos movimentos sociais consideram que só depois de muita propaganda veiculada nos meios de comunicação foram procuradas pelos técnicos da área de Inserção Regional da Eletronorte, a quem teriam exposto o seu projeto para a região. A partir daí, segundo essas lideranças, a Eletronorte se apoderou da idéia de incluir os 12 municípios em seu Plano de Inserção Regional. Nesse contexto piroscópico, para a Eletronorte estava sendo exercida a consulta aos movimentos sociais, viabilizando a participação da sociedade. Para aquelas lideranças, um caso de apropriação do projeto, com a finalidade de esvaziar os movimentos, uma vez que sempre defenderam a idéia de que a área de influência direta do empreendimento compreende todo o conjunto de doze municípios da região, haja vista a magnitude das obras previstas. No seminário que nós realizamos ficou bastante claro que a população não aceitava mais uma vez esse tipo de imposição da Eletronorte de empurrar de goela abaixo da população um projeto feito às pressas, falar meias-verdades, muita coisa escondida e foi motivo para que a comunidade indígena assinasse o documento, entrando na Justiça. Na primeira vez que a Eletronorte ganhou na Justiça, o Muniz deu uma entrevista direto de Brasília, no "Bom- Dia, Brasil", ele se descobriu. Todo mundo que assistiu viu das mentiras que ele pregava para nós. Nesse dia ele disse que a Eletronorte iria iniciar o projeto que começava com Belo Monte, iria depois fazer Babaquara, que agora se chama Altamira, Jarina, enfim, falou de seis barramentos. (...) Fomos tratados como inimigos deles. (...) Montaram uma maquete na beira do rio que era uma grande mentira. Tudo com meias-verdades. 358 (Depoimento de uma liderança dos movimentos sociais, em 14.05.2004) A montagem da maquete do projeto no cais de Altamira se transformou no último episódio notável das fases do conflito analisadas nesta pesquisa. Tida pela Eletronorte como uma peça de grande impacto no processo de transmissão de informações à população, a maquete contou com um empenho pessoal do Presidente da Empresa para a sua concretização. Os dados obtidos junto ao Centro Eletronorte de Cultura – CEC, em Altamira, rebatizado de Eletronorte Cultural no Governo Lula, apontam para um total de 19.996 visitantes na maquete, em um período menor do que um ano. A esses visitantes, o CEC forneceu formulários de papel, com o título "É conversando que a gente se entende" para que fossem dadas opiniões, críticas, sugestões ou incentivos ao projeto. A opção da empresa por um formulário de respostas abertas impediu um tratamento estatístico dos 402 formulários analisados nesta pesquisa, mas sua distribuição ficou assim discriminada: Tabela 5.2: Pesquisa de opinião em Altamira sobre o projeto de Belo Monte. Manifestações explicitamente 64 contrárias ao projeto Dúvidas, perguntas, pedidos de 83 informações e ilegíveis Manifestações explicitamente 255 favoráveis ao projeto Total 402 359 As manifestações contrárias, perguntas e dúvidas referiram-se, com significativa predominância dos dois primeiros, aos seguintes quatro pontos, em ordem decrescente de ocorrência: 1. A influência negativa do afluxo de pessoas à região e seus possíveis impactos sobre segurança, saúde e educação; 2. A questão do desaparecimento das praias; 3. A questão ambiental, incluída a questão indígena; 4. A questão de o Pará não precisar da obra – que serviria ao Sul e ao Sudeste do Brasil. As manifestações favoráveis se concentraram quase que integralmente no desenvolvimento da região – especialmente na criação de empregos. Uma pesquisa realizada por consultores contratados pela Eletronorte, de acordo com o depoimento de um deles para esta pesquisa, revelou que quase dois terços dos entrevistados se manifestou favoravelmente em relação à construção da usina. Nos igarapés – região onde se concentram os potenciais moradores a serem relocados – o pesquisador afirmou que "havia muita expectativa, mas eles escutavam e acreditavam". Mais uma vez, estamos diante de uma questão de crença, de credibilidade. No trabalho de campo realizado para esta tese foi possível constatar que a população local tem profundas desconfianças com as constantes reviravoltas da política nacional e regional. Mesmo aqueles que se manifestam em apoio à Eletronorte e ao projeto de Belo Monte, temem que a mudança constante de interlocutores possa trazer frustrações como as que foram acumuladas ao longo do período de abandono sofrido pela região. A percepção dos movimentos sociais é de que as grandes intervenções na Amazônia não trazem benefícios para a região. Tucuruí é sempre apontada como referência. Argumentam ter ao seu lado especialistas que argumentam que o projeto é inviável, sem as barragens a montante. 360 É pena que o MDTX tenha se colocado rapidamente contra. Eles se colocaram contra porque a vertente fundamentalista e a vertente política se entenderam para se colocar contra. Se não houvesse um acordo entre essas duas vertentes, provavelmente o MDTX não teria se colocado contra da forma como se colocou, de uma forma absolutamente radical, de não falar nada. Eram insistentemente convidados para os eventos. O líder não ia, mas a esposa do líder não ia. Não ia como esposa do líder, ia como secretaria de educação, por exemplo. Aí ela levava as informações para o MDTX. Claro que ninguém proibia, pois se o MDTX quisesse ir teria tido assento porque foi convidado. (Depoimento de um pesquisador, com trabalhos na região, em 17.04.2004) Lideranças dos movimentos sociais afirmaram que o Partido dos Trabalhadores, tanto em nível nacional quanto regional, não se posicionou publicamente em Altamira. O PT local seria, segundo essas lideranças, oposição, apesar de seu presidente, Vereador Antonio Bispo ser favorável, bem como o Prefeito de Vitória do Xingu, Anselmo Hoffmann, também dos quadros do partido. O depoimento de um pesquisador, com trabalhos na região e que ocupou cargos em administrações petistas traz a seguinte análise: Muitas vezes – e o PT é marcado por isso – se tenta desconhecer os eleitos. Um grande erro, porque eleito é o maior grau de representatividade. Posso discordar, não gostar, mas eles foram eleitos democraticamente. É preciso negociar, mesmo sabendo que eles mudam. (...) O presidente de um sindicato é eleito pelos membros do sindicato, não por todas as pessoas. Ele tem uma representatividade intermediária, precisa ficar muito claro isso. As ONGs não têm necessariamente representatividade, ela vem na medida em que a causa deles passa a ser a causa de um conjunto da população.São três tipos de atores com níveis de representatividades diferentes. As ONGs têm que ter assento, mas tem que saber que elas têm um tipo de representatividade diferente. (...) Seus representantes não são eleitos. Em alguns países, por exemplo, uma ONG passa a ter acesso à televisão, quando ela prova que tem o apoio de x% da população. Mas, não basta dizer, tem que provar! (...) No fundo, muita gente acha que o MDTX é um excelente movimento ecológico. Não é verdade, pois a demanda é pela estrada. È 361 justa, mas se for feito apenas isso, trará uma enorme degradação ambiental para a região. Estrada na Amazônia significa isso. (...) Houve um encontro aqui em Brasília que ocorreria numa segundafeira de manhã e eles foram tomar uma posição na sexta-feira à noite. Não vieram e conseguiram convencer o representante da Igreja, do CPT, a não vir também. (...) Eles adotaram a seguinte estratégia: boicotamos qualquer conversação, pois isso tira a representatividade e permite, para uns, o adiamento para o próximo governo e, para outros, a invibialização. (...) É absolutamente tolo o argumento de que já que vão investir cinco bilhões em Belo Monte, então nos dêem para que possamos implementar os nossos projetos. (...) Todos os projetos na Amazônia: em 25 anos há recessão e decadência. (Entrevista realizada em 17.04.2004) Não foi possível para esta pesquisa mensurar a representatividade dos movimentos sociais na região, mas a sua disposição em não negociar ficou explícita nos depoimentos obtidos55: Somos contra todos os grandes projetos na Amazônia. Não há grande projeto com boa administração. Essas duas coisas estão juntas. Vamos dizer que a prefeitura aqui fosse uma boa administração do PT, séria e transparente. Todos esses recursos seriam muito bem empregados ou não seriam? Com esses recursos o que iria melhorar na vida do povo? Quem garante? Existe uma desconfiança muito grande nas instituições tradicionais da representação política. O grande projeto traz no seu bojo todas essas questões: retirar as populações das cidades, inchar as cidades, privatizar as águas, os recursos minerais. Depois isso vira um mal contra a população. Em vez de virar um bem vira um mal. Mesmo ele passando milhares de recursos para a população, não compensa. Não é a minha opinião pessoal somente, é a opinião dos movimentos. 55 É importante ressaltar que dados significativos a respeito dessa representatividade foram obtidos na fase de fechamento desta tese e foram incluídos na Conclusão. 362 Nós não somos contra a instalação de uma grande indústria para absorver os produtos da região. Se essa barragem for construída, o nosso projeto vai por água abaixo. A construção de um projeto desses ninguém controla. (...) O nosso projeto de agricultura familiar seria inviabilizado. (...) O êxodo no campo seria inevitável. (Trechos das entrevistas realizadas em 14.05.2004 e 18.05.2004) Colocada a questão da possibilidade de que os movimentos sociais venham ser "atropelados" por uma decisão do Governo Lula de, seja por razões políticas ou por razões de Estado, construir Belo Monte e, conseqüentemente, perderem-se oportunidades de negociação que pudessem trazer vantagens para ambas as partes, uma das lideranças manifestou convicção: Nós já discutimos isso. Não há porque negociar. Nós temos certeza que o projeto não vem. (Entrevista realizada em 14.05.2004) Considerando-se as características piroscópicas brasileiras é muito pouco provável que essas lideranças tenham razão. Uma das características mais surpreendentes nesse conflito é a alternância nas velocidades com que ocorrem os eventos: ora em um processo extremamente acelerado, ora em um quadro de marasmo impressionante. A sociedade é convocada – pelas partes presentes no embate – a comparecer a eventos considerados decisivos em um determinado momento e, pouco tempo depois – seja pela mudança de governo, pela morosidade da justiça ou pelas discussões acerca de novos modelos para o setor elétrico – não se fala mais no assunto. 363 Os depoimentos a esta pesquisa – tanto favoráveis, quanto de oposição – revelaram que, além das mudanças nas velocidades de ocorrência dos eventos, também houve uma ausência de interlocutores governamentais que não fossem os da Eletronorte. Nesta pesquisa, tanto os movimentos sociais quanto atores favoráveis a Belo Monte, apontaram a ausência de participação no conflito do Ibama, da Funai, do Incra, da Eletrobrás, do Ministério do Meio Ambiente e de muitos outros órgãos e instituições. Um depoimento de técnico da Eletrobrás para esta pesquisa mostra alguns aspectos dessa situação: O primeiro embargo judicial foi em julho ou agosto. Em abril do mesmo ano, eu já tinha encontrado com uma pessoa que trabalha no Ministério Público em um congresso e ela me falou: "Vai ter uma ação civil!". Eu avisei ao meu chefe, avisei à Eletronorte que ia acontecer isso. A resposta foi: "Não está tudo negociado, os atores estão maravilhados com a Eletronorte etc etc." (...) Eu tentaria ir atrás e tentar negociar um acordo com o Ministério Público (...) A Eletrobrás e a Eletronorte registraram o Estudo de Viabilidade na Aneel em conjunto, mas quem solicitou a licença ambiental foi só a Eletronorte. Frente aos organismos ambientais o responsável é a Eletronorte e não a Eletrobrás. (...) Não sei de quem é de direito, mas quem de fato estava tocando o licenciamento era a Eletronorte. (Entrevista realizada em 30.06.2004) O Conselho Nacional de Política Energética se manifestou, no final de 2001, favoravelmente a que o EIA de Belo Monte fosse discutido entre os vários ministérios envolvidos, por ser um projeto estratégico para o país. Com essa palavra, "estratégico", (...) o pessoal do jurídico da Eletronorte colocou nas defesas que o projeto era de interesse nacional. Isso acabou acionando o outro artigo constitucional da questão indígena, quando é assim é obrigado a ser uma lei complementar e não uma lei 364 ordinária que autoriza a questão.Agora para destravar Belo Monte a gente tem que encarar isso também. (...) Se eu tivesse com o licenciamento no Ibama, eu poderia estar enfrentando essa situação de outra forma. Se eu tivesse encomendado um laudo antropológico para ver como estava a questão indígena no início do EIA, eu poderia estar em uma situação melhor. (...) Final de governo, não se sabe o que vai acontecer etc. Gaveta! De novo! Até que, quando começou o novo governo, a Eletronorte não mais procurou a Eletrobrás e, se tocou alguma coisa de Belo Monte, tocou sozinha.. (Depoimento de técnico da área de Meio Ambiente da Eletrobrás, em 30.06.2004) Belo Monte, um projeto de grande importância para o Brasil e grande visibilidade internacional, chegou ao mês de julho de 2004, 29 anos após o primeiro relatório ser tornado público, em um contexto de ausência de critérios claros de como o Governo Federal irá trabalhar na Amazônia, com propostas governamentais de se refazer um EIA que não foi concluído, sem que a participação da sociedade esteja internalizada no setor elétrico, sem estruturas eficientes na mediação de conflitos, sem utilização de instrumentos como a Avaliação Ambiental Estratégica para articular Políticas, Planos e Programas. 5.5 CONCLUSÃO A existência de um item de conclusão no presente capítulo se faz para que exista uma coerência na estrutura da tese, uma vez que seus outros capítulos tiveram esse tipo de estrutura. Todavia, a conclusão deste capítulo se confunde com o que se apresenta no próximo, a conclusão do trabalho. Portanto, alongar–se aqui seria promover uma situação de redundância na tese. Por isso, não se desenvolvem aqui aspectos conclusivos para este capítulo, na medida em que eles estarão incluídos no próximo. 365 CONCLUSÃO Para concluir esta pesquisa, primeiramente deve ser feito um esclarecimento inicial. O instrumento denominado piroscópio não é conhecido pela maioria da sociedade brasileira, embora esteja presente em seu cotidiano. A sonoridade e a grafia da palavra podem sugerir a quem, pela primeira vez, a ouve ou a lê, uma associação com situações desordenadas, sem controle aparente. Isso provavelmente ocorre por conta do significado de vocábulos como pirado, piração e pirar – que, em nossa linguagem cotidiana, se referem a fatos ou atitudes sem uma dose razoável de sentido lógico. Possivelmente, apenas depois de alguma reflexão, o leitor – ou o ouvinte – fará a ligação com o prefixo grego que pode aparecer na formação de palavras relacionadas com fogo e, em certos casos, com calor e temperatura. Esse contexto foi considerado na elaboração do texto – algumas vezes propositalmente provocado e deliberadamente assumido – desta pesquisa, por conta das características próprias que assumem os conflitos sócio-ambientais em nosso país. O atual momento brasileiro – no contexto da interseção dos conjuntos Meio Ambiente, Amazônia e Setor Elétrico – é, de tanta confusão, que podemos pensar em uma metáfora relacionada tanto com previsíveis e evitáveis incêndios, quanto com uma maluquice generalizada. Assim é que – seja no sentido de se analisar uma situação confusa ou procurar explicações para a prática comum de, em nosso país, aguardar-se uma condição de combustão iminente para agir – o conflito socioambiental de Belo Monte é exemplar. Ao longo do texto desta tese, por várias vezes, ficou estabelecido que não seria abordado apenas o conflito em Belo Monte, uma vez que os elementos presentes no estudo 366 desse caso podem ser encontrados, em maior ou menor grau, em quase todos os conflitos de semelhante natureza, no Brasil. Todavia, Belo Monte reúne notáveis características para uma investigação. O conflito ocorre em uma região de expansão da fronteira agrícola na Amazônia que, concebida no Período Militar pós-1964, foi abandonada pelo Estado brasileiro. O fato gerador desse conflito é, aparentemente, o projeto de um complexo hidrelétrico, mas a região de Altamira acumula uma longa história de embates, envolvendo índios, madeireiros, latifúndios, biopirataria, camponeses, a Sudam e a rodovia Transamazônica, entre outros – em um grande e explosivo caldeirão político, econômico e social. Na verdade, este trabalho de pesquisa se iniciou muito antes de ser uma tese de Doutorado em Desenvolvimento Sustentável, confundindo-se com a própria biografia do pesquisador – afinal de contas, um cidadão brasileiro submetido, como tantos outros, ao descompasso e ao piroscópio nacionais e, por conta de sua experiência profissional, há muito tempo um participante dos conflitos socioambientais do setor elétrico na Amazônia. Mais ainda, essas vivências profissionais – e pessoais – se deram durante o período de formação do Departamento de Estudos de Efeitos Ambientais da Eletronorte, atuando em negociações envolvendo o licenciamento de empreendimentos do setor elétrico e na discussão de mecanismos de interação com a sociedade. E, também, como representante da Eletronorte no Grupo de Trabalho de Comunicação com a Sociedade do Comase. Por esse motivo é que esta pesquisa teve seu embrião em 1987. Uma parte importante dos documentos pesquisados para esta tese compõe um arquivo pessoal que foi iniciado naquele mesmo ano, visando à elaboração de futuras pesquisas. Já naquela época era possível distinguir os sinais de incêndios – ou de maluquices. Mas, por outro lado, havia uma grande esperança entre os técnicos de meio ambiente do setor elétrico quanto ao fato de a legislação ambiental brasileira ser muito recente. Desse modo, seus resultados positivos deveriam ser obtidos em um prazo mais alongado. 367 Como conseqüência dessa posição de participante do processo que caracterizou os primeiros confrontos entre o setor elétrico e a sociedade, após a entrada em vigor da Lei 6.938/91, as questões discutidas neste trabalho adquiriam um caráter central para este investigador à medida que se sucediam as negociações com os órgãos licenciadores ambientais envolvendo as respectivas concessões de licenças para os empreendimentos da Eletronorte e os trabalhos que resultaram no documento-base do Comitê Coordenador de Meio Ambiente do Setor Elétrico – Comase, "Processos de interação do setor elétrico brasileiro com a sociedade", como referenciado nesta tese. Essa atuação profissional permitiu perceber, por exemplo, no campo mesmo de um conflito e como um dos debatedores escolhidos pela Eletronorte para atuar na primeira Audiência Pública do setor elétrico, um evento marcado pelas características "piroscópicas" descritas aqui, mais especificamente no capítulo 4, as profundas dificuldades que marcariam os anos seguintes, no que diz respeito à participação da sociedade nos processos de tomada de decisão previstos na legislação ambiental brasileira. Essas dificuldades foram abordadas por este autor na dissertação de Mestrado em Planejamento e Gestão Ambiental intitulada “O paradoxo 'EIA/RIMA': a democratização da informação ambiental nos processos de tomada de decisão no planejamento ambiental no Brasil" – que é também a base do livro “Macrófita é a mãe! A democratização da informação ambiental: uma análise crítica”. O paradoxo do título se referia ao fato de se constituir em uma quase unanimidade, entre os mais diversos atores envolvidos nesses processos, a necessidade da participação da sociedade e, ao mesmo tempo, ser possível constatar uma ampla e condenável omissão quanto às formas de transmissão da informação à sociedade – por meio de Rimas de 600 páginas, por exemplo, que, na realidade, se constituíam como um mero "corte e cola" do EIA. Desse modo, na concepção inicial desta tese havia a premissa de se considerar essa discussão como encerrada, para o autor, naquela dissertação de mestrado, em uma 368 perspectiva otimista de que estivesse ocorrendo um avanço – mesmo que lento e gradual – nos processos de tomada de decisão inerentes às políticas, planos, programas e projetos no Brasil. Desse modo, à questão da democratização da informação não seria dedicado, por exemplo, todo um capítulo do trabalho. Contudo, mesmo após o tempo transcorrido desde a criação da denominada Política Nacional de Meio Ambiente os atores relevantes no licenciamento ambiental continuam legitimando essas práticas que tornam letra morta o Artigo 225 da Constituição Brasileira, ignorando o espírito de uma lei que preconiza a linguagem acessível e clara para a sociedade nos processos de tomada de decisão envolvendo o meio ambiente. Essa constatação estimulou uma nova investigação acerca da questão da informação, agora no contexto dos processos de negociação envolvendo os projetos do setor elétrico na Amazônia. Assim, embora fosse possível uma ampla generalização para os demais tipos de conflitos socioambientais no Brasil, uma das conclusões deste trabalho evidencia uma característica das interações do setor elétrico brasileiro com a sociedade, ou seja, apesar de divulgar inúmeros textos referenciais – elaborados pelos seus próprios técnicos – preconizando a transparência e a democratização da informação, visando a um processo de negociação de conflitos que resulte em uma mudança positiva na imagem institucional e na viabilização dos seus empreendimentos, o setor enfrenta dificuldades muito semelhantes àquelas existentes na década de 1980. A resistência ao projeto de Belo Monte se sustenta, em boa medida, na difusão de informações que levam o conflito para longe do modelo de Simmel, isto é, para o campo das convicções e das crenças. Os movimentos sociais que se opõem ao projeto se manifestam de maneira a contestar a validade das informações fornecidas pela empresa, como no caso da recorrente afirmativa de que aquela usina hidrelétrica não é viável sem que existam outros aproveitamentos a montante de Altamira, com o objetivo de regularizar a vazão do rio Xingu. 369 Outro ponto de sustentação da oposição ao projeto é o histórico da UHE Tucuruí, especialmente no que se relaciona com as questões socioeconômicas. Os processos de relocação e de indenização de moradores atingidos pela implantação da usina são constantemente apontados como injustos e arbitrários por aqueles que se opõem a Belo Monte. A Eletronorte, por sua vez, julga poder rebater essas afirmações, em sua maioria, tendo, inclusive, viabilizado viagens de várias lideranças da oposição ao projeto de Belo Monte para conhecer a UHE Tucuruí, além de palestras e outros eventos semelhantes, voltados para a exposição de seus argumentos. Esta tese procurou demonstrar que essas ações pouco ou nada adiantaram no sentido de diminuir as resistências existentes entre as lideranças de movimentos como o MDTX, por exemplo. Para ilustrar essas conclusões no campo da disseminação de informações não validadas, é importante citar um fato significativo ocorrido no período final da redação deste trabalho. Em sua edição de 07.09.2004, o jornal The New York Times publicou uma matéria em que o jornalista Larry Rohter – e alguns dos seus entrevistados56 – afirma, entre outras coisas, que, naquela usina: • árvores emitem gases, acidificam a água e danificam as turbinas; • a inundação da vegetação resultou na emissão de toneladas de gases responsáveis pelo agravamento do efeito estufa; • os troncos submersos prejudicam a navegação; • a crescente acidez da água pode corroer as turbinas; • as infestações de mosquitos têm sido tão intensas que moradores de assentamentos foram forçados a se mudar; • alguém esqueceu de cortar as árvores e desmatar a área de 2.875 km2; 56"Tucuruí Journal; Drowned, Not Downed, Trees in the Amazon Get Nasty ". By Larry Rohter (NYT) Late Edition - Final , Section A , Page 4 , Column 3 (Tradução deste autor) 370 • a Eletronorte ordenou a suspensão da remoção das árvores; • (Tucuruí) é uma história de um erro e o governo brasileiro planeja construir mais 70 projetos de hidrelétricas na Amazônia; • (Tucuruí) é virtualmente uma fábrica de metano. Como talvez fizesse Machado de Assis, roga-se, neste ponto, ao prezado leitor que busque em sua memória a discussão feita no Capítulo 2 desta tese e que se lembre do fato de a reportagem ter sido publicada após três décadas da criação da Eletronorte e no ano em que a UHE Tucuruí comemorou 20 anos desde o início de sua operação. Fatos como esses confirmam que a empresa e, de resto, o Governo Federal jamais conseguiu, malgrado todos os investimentos em comunicação social, meio ambiente e reestruturação do setor elétrico, interromper os recorrentes ataques à opção brasileira por geração hidrelétrica na imprensa internacional, sabe-se lá com que motivações. Como ficou estabelecido ao longo deste trabalho, não foram utilizadas como referências as visões de uma possível “teoria da conspiração com o objetivo de internacionalizar a Amazônia”. Desse modo, podemos nos restringir, nesta análise das interações do setor elétrico com a sociedade amazônica, às informações divulgadas pela Eletronorte – e pelo setor elétrico, como um todo – por diversas vezes, em eventos tanto de natureza técnica ou científica, quanto de relações públicas e institucionais. Ressalte-se que a empresa se baseia em estudos técnicos e científicos que considera de qualidade inquestionável e, com freqüência, convida jornalistas, pesquisadores e instituições nacionais e internacionais a visitar Tucuruí. Por outro lado, a matéria do jornal estadunidense se estrutura sobre previsões não confirmadas – que foram discutidas nesta pesquisa – e que há mais de 20 anos vêm sendo desmentidas pela Eletronorte, inclusive por meio do relatório da Comissão Mundial de Barragens, de abril de 2000, aqui referenciado. 371 Um exemplo da não confirmação dessas previsões pode ser encontrado no fato de a madeira das árvores que ficaram submersas não ter apodrecido, mesmo após tantos anos sob a água. Os dados da Eletronorte apontam para a constatação de que, ao contrário, essa madeira adquiriu maior qualidade e valor comercial, além de diminuir a pressão sobre as florestas que seriam utilizadas para a retirada da madeira com valor comercial, em quantidade equivalente. Por conta de fatos como esses é que aqui foram feitas analogias com o princípio físico-químico de Le Chatelier. As alterações provocadas pela ação de um agente externo sobre um sistema em equilíbrio provocam a busca de um novo equilíbrio, no sentido de diminuir o impacto da "agressão" ocorrida. Em palavras mais simples, os sistemas naturais não são inertes às ações humanas e reagem aos impactos – muitas vezes de maneira surpreendente para a ciência. Obviamente que essa capacidade não é ilimitada e não justifica práticas de agressão aos ecossistemas, com objetivos não comprometidos com a sustentabilidade. Entretanto, é um fator que precisa ser considerado seriamente para que se tenha a humildade necessária para se aprender com a experiência. Essa analogia pode ser feita com os indivíduos, grupos sociais e ecossistemas, mas no caso da usina de Tucuruí, adquire uma conotação especialmente interessante. Não houve salinização da água de Belém, não houve apodrecimento das madeiras submersas, não houve a emissão dos gases de Brokopondo, e não houve a corrosão que provocaria a substituição periódica das turbinas. Ao contrário, hoje em dia, os seguranças da usina se esforçam para afastar incautos pescadores que teimam em se aproximar perigosamente do remanso da casa de força, onde procuram os peixes que se refugiam nas águas turbinadas – que, sabidamente tem, em princípio, uma qualidade inferior à da água vertida. 372 Quanto ao possível dano às turbinas da hidrelétrica, embora logo após o enchimento do reservatório de Tucuruí houvesse um impacto negativo na qualidade da água devido à matéria orgânica de rápida decomposição, como galhos e folhas, atualmente, pelos dados referenciados pela empresa, em seu monitoramento limnológico, a madeira submersa não provoca impactos na qualidade da água. Segundo esses estudos, essa vegetação pode exercer a função de proporcionar refúgios para a ictiofauna do reservatório, com benefícios para o aumento da população de peixes. Novamente podemos observar a criação de um novo equilíbrio no qual, segundo os dados da Eletronorte, a produção de peixes no lago de Tucuruí que em 1984 – ano da entrada em operação da usina – era de 775 toneladas, em 1998, atingiu a marca de 4.700 toneladas. Para o ano de 2004, a estimativa é de uma produção total de 5.500 toneladas – que, se confirmada, representará um aumento de aproximadamente 700% em relação aos valores iniciais. Nesta tese foi feita uma referência a um morador da região de influência do reservatório de Tucuruí, “Seu” Juarez. A condição de participante deste autor permitiu testemunhar a exploração da madeira submersa naquele lago – que teve início em 1986, com a invenção da motosserra hidráulica – do “Seu” Juarez. Em 1990, a Eletronorte firmou contratos com empresas interessadas em desenvolver tecnologias de exploração de madeira submersa, cedendo os direitos de exploração. Em 1994, a Empresa promoveu a licitação de 31 glebas para a exploração comercial da madeira. Contudo, segundo a empresa, as atividades de fiscalização e as auditorias realizadas apontaram o descumprimento de cláusulas contratuais, o que teria motivado a abertura de processos de revisão, com conseqüente rescisão de contratos. Atualmente, a empresa considera que a retirada da madeira submersa é uma atividade que representa um risco ao estoque pesqueiro do reservatório e uma ameaça à atividade produtiva de cerca de dez mil pescadores da região. Além disso, a notificação 031/2003, da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Estado do Pará - Sectam, órgão 373 responsável pelo licenciamento ambiental de Tucuruí, exige da Eletronorte o encerramento do programa de exploração da madeira submersa. A Eletronorte alega ter atendido a todas as solicitações do jornalista Rohter e concedido as entrevistas solicitadas, ter colocado à disposição da sociedade brasileira e internacional, todos os estudos, documentos e visitas técnicas sobre o meio ambiente na área de influência da Usina Hidrelétrica Tucuruí, bem como manter, desde 1985, um programa de fiscalização do uso dos recursos naturais em Tucuruí, em conjunto com o Ibama, com o objetivo de identificar infrações à legislação ambiental e autuar infratores, inclusive a exploração irregular de madeira submersa. Todavia, apesar da confiança que demonstra nos resultados obtidos pelo monitoramento ambiental que realiza em Tucuruí ao longo de mais de duas décadas, a Eletronorte continua enfrentando resistências ao projeto de Belo Monte que, quase sempre, se mostram associadas às "catástrofes" de Tucuruí, sugerindo que a desarticulação interna e a postura reativa, características do setor elétrico, sejam determinantes para a permanência de argumentos dessa natureza. Como esta pesquisa procurou demonstrar, a questão da informação – a saber, sua disseminação, seu controle e sua validação – se encontra no centro dos conflitos do setor elétrico na Amazônia. Esse contexto prejudica fortemente a viabilização dos projetos da Eletronorte, desgasta a sua imagem institucional e estimula a dissociação entre o compasso e o giroscópio do modelo de Kai N. Lee – que, enfatize-se, prioriza significativamente a democratização da informação. Como assinala o citado relatório da Comissão Mundial de Barragens, a maior parte dos impactos ambientais associados ao projeto de Tucuruí, antes e durante a sua construção, tinha como referência a experiência da criação de grandes reservatórios em regiões tropicais. Entretanto, como descrito anteriormente, esse conhecimento estava restrito a algumas represas africanas e ao lago formado em Brokopondo. 374 Esses fatos não impedem que as mesmas previsões continuem, em 2004, sendo divulgadas pela mídia nacional e internacional, com óbvios reflexos na negociação do conflito em Belo Monte. Por que esses fatos ocorrem? Os resultados desta pesquisa apontam, no caso da Eletronorte, para um grande descompasso entre as áreas de comunicação, de engenharia e de meio ambiente – que poderiam ser denominadas como tradicionais naquele setor – incluída, nesse caso, a área de inserção regional dos empreendimentos hidrelétricos que, a rigor, só atuou no período da retomada do projeto de Belo Monte (2000-2002). Esse descompasso prejudicou severamente a negociação do conflito surgido, a partir de 1988, na região de Altamira. É certo que não se pode imputar apenas à Eletronorte a responsabilidade pelo fenômeno do ressurgimento periódico de reportagens como a do jornalista do The New York Times, pois como descrito no capítulo 2 desta tese, em diversos segmentos da sociedade existem graves problemas de difusão, controle e validação de informações. No entanto, os conflitos descritos no capítulo 4 são responsáveis por uma desarticulação, interna ao setor elétrico, que é decisiva para a resistência de alguns setores da sociedade aos seus empreendimentos. O setor elétrico se caracterizou, especialmente entre as décadas de 1970 e 1990, por uma notável visão de planejamento de longo prazo. Essa característica provocou inevitáveis colisões com um setor ambiental em construção, às voltas com a criação de diretrizes para o planejamento e a gestão – diretrizes essas fortemente influenciadas pelas experiências de países em estágios mais avançados de desenvolvimento econômico e social, bem como de representatividade das organizações sociais. Nesses países, em geral, a matriz energética nacional tem características totalmente diversas da adotada no Brasil. Assim, a opção de geração hidrelétrica está praticamente descartada nos países mais desenvolvidos, seja por terem sido praticamente esgotadas as 375 alternativas relacionadas com esse tipo de aproveitamento – como no caso dos Estados Unidos e França – seja pelo potencial hidrelétrico incipiente – como no caso do Japão e da Inglaterra. Enquanto isso, no Brasil, apenas 24% do potencial de geração hidrelétrica é aproveitado atualmente, em um quadro de projeções de crescimento econômico significativo para os próximos anos. O setor elétrico brasileiro, portanto, provavelmente assumirá um papel-chave para a viabilização desse crescimento, especialmente pela sua reconhecida capacidade – e necessidade – de planejamento de longo prazo. Paradoxalmente, a competência no planejamento setorial não impediu a fragmentação empresarial provocada pelo fato de a Eletrobrás não exercer um controle efetivo sobre as suas subsidiárias. O setor, na verdade, se configura como um conjunto de empresas estatais com diversos modelos de gestão, significativamente afetados pelos arranjos políticos concebidos após cada eleição presidencial no Brasil. A ausência de uma gestão unificada, diferentemente do que ocorria até recentemente no setor petrolífero, gera modelos distintos de negociação dos conflitos associados aos empreendimentos hidrelétricos em que os embates variam de magnitude não apenas pelas características do projeto em questão mas, fundamentalmente, pelas diferenças existentes na condução do processo por parte dos responsáveis pelas empresas e pelo peso político da região onde se localiza o empreendimento. Além disso, considerando que o setor elétrico se autodefine como capaz de dar ao Brasil uma proposta sustentável de desenvolvimento, sem os “gargalos” da falta de energia elétrica, as questões relacionadas à interface entre energia e meio ambiente devem ser enfrentadas de modo sistemático, em um processo permanente e com rotinas de procedimento. A questão do desenvolvimento sustentável, vista a partir da interseção entre energia e meio ambiente, não pode contemplar um modelo de negociação de conflitos como o 376 utilizado no Brasil, tanto pelo setor elétrico e seus apoiadores, quanto pelos movimentos de oposição às hidrelétricas. Esse modelo possui uma marcante conotação “piroscópica”, na qual uma gestão do tipo “stop and go” soluciona problemas – ou tenta solucioná-los – à medida que eles surgem, numa evidente contradição com a visão de planejamento estratégico daquele setor. O setor elétrico trabalha, em 2004, com a previsão da entrada em operação de 62 usinas hidrelétricas, a maioria delas já licitadas, para atender à demanda energética que o crescimento econômico previsto pelo Governo Federal irá gerar. Nesse contexto, o processo de licenciamento ambiental dessas usinas é crítico para o país não voltar a enfrentar problemas de falta de energia elétrica, pois essas usinas representam a possibilidade de um acréscimo de aproximadamente 16.000 MW ao Sistema Interligado Nacional. O licenciamento ambiental, uma vez entendido como um processo de natureza próativa, subentende uma cooperação entre empreendedor, sociedade e órgão licenciador, visando a uma negociação que se fundamente, como no modelo de Lee, na tentativa de uma Aprendizagem Social. Assim, dentro do setor elétrico, é imprescindível o fortalecimento dos mecanismos de interação com a sociedade – conforme preconizado nos documentos referenciados anteriormente – de modo a que a questão da informação seja percebida como central para a viabilização de projetos e para a consolidação de uma imagem positiva, especialmente na Amazônia – para onde se dirigem os maiores projetos hidrelétricos do Brasil. Ressalte-se que este trabalho, embora com um foco em Belo Monte, incluiu em seu protocolo de pesquisa questões mais amplas, envolvendo o setor elétrico como um todo, cujas respostas não restringiram os problemas citados à Amazônia. Nesta pesquisa, priorizou-se a busca de modelos que discutissem a natureza dos conflitos surgidos nas intervenções do setor elétrico no bioma amazônico, bem como alternativas para a conciliação da ciência com a política, uma vez que esses são dois pilares 377 fundamentais para a discussão do desenvolvimento sustentável para a Amazônia – e, de resto, para qualquer região do mundo. Entretanto, existe, ainda hoje, uma persistente convicção, entre muitos dos atores sociais envolvidos, de que os conflitos que envolvem o desenvolvimento de uma determinada região serão resolvidos, necessariamente, a favor dos empreendedores, desconsiderando as propostas de soluções que contemplem positivamente o maior número possível de atores com a maior amplitude possível para os seus interesses. Com isso, a representatividade da participação da sociedade, as práticas dos empreendedores e a função de mediação nos conflitos se apresentaram como elementos centrais desta pesquisa. Uma premissa desta tese é de que a participação da sociedade na gestão e no planejamento ambiental só poderá se tornar uma realidade quando possuirmos políticas públicas que contemplem a legitimidade das representações, a transparência das informações e a eficácia da gestão ambiental – planejamento, controle e monitoramento. Somente desse modo será permitido à sociedade decidir sabendo sobre o que vai decidir. Para tanto, necessita de um conjunto de informações confiáveis e claras sobre o que decidirá – proveniente de estudos consistentes. Transmitidas em linguagem compreensível para a sociedade, essas informações se tornariam poderosos instrumentos de negociação e de solução dos conflitos. Assim, foi uma escolha natural que o objetivo principal deste trabalho fosse discutir as possibilidades e restrições aos processos de negociação empreendidos pelo setor elétrico na Amazônia, sob uma ótica da importância dos processos de comunicação com a sociedade que foram ou são utilizados e analisar o conflito gerado pelo projeto Belo Monte foi também empreender uma discussão a respeito da distância entre teoria e prática nos processos de tomada de decisão relacionados com o bioma amazônico. Os graves problemas sociais que surgem nas áreas de influência dos projetos hidrelétricos implicam um aprendizado por parte dos atores e instituições envolvidos, 378 visando identificar erros e acertos – em um processo constante de aprimoramento dos instrumentos disponíveis e de criação de novas e criativas formas de intervenção sobre os ecossistemas. Essa é a essência do modelo de Lee. É sabido que fenômenos semelhantes ocorreram em diversos reservatórios mundo afora. Contudo, em poucos deles e, com certeza não no Brasil, as propostas de Lee – para que se aprenda com a experiência – foram consideradas como modelo. O conjunto de informações que circula por todos os meios de comunicação e pelos mecanismos institucionais não se mostra adequado – com relação à democratização, ao controle e à validação – para o correto embasamento da sociedade brasileira com vistas à participação nos processos decisórios. Como abordado nesta pesquisa, a forma como ainda se elaboram os Relatórios de Impacto Ambiental – Rimas - evidencia essa distorção. É importante enfatizar que a mudança nas características dos atuais Rimas, por si só, não resolveria os problemas apontados. Como se sabe, quebrar o termômetro não acaba com a febre. Mas, mantendo a metáfora, a cada Rima elaborado no Brasil, o termômetro acusa uma elevação de temperatura que é ignorada pelo “modelo piroscópico” utilizado nos conflitos ambientais brasileiros. Na verdade, embora em alguns – poucos – pontos o quadro atual dos conflitos socioambientais no Brasil tenha tido uma evolução positiva, a partir da década 1980, essas melhorias se inscrevem em um contexto geral de aprimoramento democrático do país. Dentro de um foco mais fechado, entretanto, alguns pontos nevrálgicos do processo permanecem como estrangulamentos e outros fizeram parte de uma dinâmica de retrocesso. Como causas de estrangulamentos persistentes, podemos citar: i) a falta de estrutura dos órgãos licenciadores ambientais; ii) a desarticulação entre instituições governamentais; e, novamente, iii) a falta de democratização da informação. 379 Como causas de retrocesso, podemos identificar: i)a instabilidade dos mecanismos regulatórios; ii) o protagonismo exacerbado por parte de atores relevantes; e, novamente, iii) a indefinição de um projeto de nação para o país. A Amazônia ainda se configura como um desafio, mas agora em um contexto de décadas sem investimento em pesquisa básica, conforme discutido por Egler (2001), fator indispensável para a composição do par de instrumentos – bússola e giroscópio – proposto por Lee, na tentativa de se realizar uma Aprendizagem Social. O setor elétrico brasileiro, agora desfalcado de profissionais experientes e sem recursos financeiros compatíveis com os seus planos setoriais, não pode mostrar resultados práticos relevantes para a inserção de seus empreendimentos no desenvolvimento regional e continua encarando, na sua prática, o meio ambiente como empecilho para os seus projetos, malgrado os sucessivos documentos gerados pelos seus técnicos, com recomendações de mudanças no planejamento e na gestão do setor. Mais ainda, a fragmentação dessa gestão é agora mais evidente, quando os dilemas que envolvem a construção de novos modelos permanecem. Por exemplo, esta pesquisa não encontrou alterações substantivas no atual processo de escolha dos diretores das empresas do setor elétrico. O setor ambiental, por sua vez, não pode mais se valer da falta de experiência na aplicação de uma legislação recente, como na década de 1980, para se contrapor às acusações de determinados segmentos da sociedade em relação à sua morosidade e incompetência. A esperança na intervenção do Poder Judiciário nesse processo, criada com a possibilidade de o Ministério Público atuar como um elemento provocador do surgimento de estruturas mediadoras de conflitos, tem sido frustrada pela politização e pelo protagonismo exacerbado de algumas intervenções por parte daquele órgão ou pela percepção crescente, entre os diversos atores envolvidos, de que as questões ambientais, no 380 Brasil, caminham, inexoravelmente, para a uma discussão essencialmente de natureza jurídica. As características atuais do Estado brasileiro fazem com que a mediação de conflitos não tenha lugar definido nos poderes Legislativo e Executivo – dando origem a intervenções do Judiciário que são, muitas vezes, contestadas e criticadas por representantes daqueles outros dois poderes. O Licenciamento Ambiental, por sua vez, era, na década de 1980, um processo em construção e, com isso, era possível perceber algum espírito de colaboração entre as partes envolvidas – uma vez que faziam parte de uma aprendizagem em curso. Duas décadas depois, o que se percebe é que o Licenciamento Ambiental é visto pela maioria dos empreendedores como apenas um entrave burocrático. Da parte dos responsáveis pela concessão de licenças, o que se constata é falta de condições mínimas de trabalho e um grande temor quanto à atuação do Ministério Público – que gera insegurança pessoal e profissional quanto às decisões a serem tomadas e inviabiliza a cooperação com o empreendedor. Sem dúvida houve um aprimoramento do diálogo entre as empresas e os órgãos licenciadores, na medida em que as respectivas regras foram se tornando mais claras, ao longo do tempo. Mas, as dificuldades quanto à mediação dos conflitos permanecem. Quanto aos movimentos sociais, é notável a permanência da percepção de que negociação é sinônimo de negociata, de capitulação, de cooptação. Como o Brasil não tem uma tradição histórica e cultural no campo da negociação de conflitos ambientais, essa percepção ultrapassa os limites do campo de atuação dos movimentos sociais mais radicais. Os líderes desses movimentos não levam suas discussões – seja por um compreensível desconhecimento, seja por uma discutível estratégia política – para um campo técnico e científico confiável, optando por se valerem de pareceres que validam seus 381 objetivos, independentemente do grau de respaldo acadêmico e científico que esses pareceres possuem. Essa estratégia política é discutível – não sendo consideradas as ambições pessoais e o protagonismo exacerbado – pois não contempla negociação. Os referenciais teóricos adotados nesta pesquisa levam à premissa de que um conflito, na prática, não contempla solução. Um conflito solucionado deve ser entendido como um conflito negociado, em que ambas as partes devem transigir. Nesta pesquisa, procurou-se um exemplo da falta de disposição para a negociação – tanto por parte do empreendedor, quanto dos movimentos sociais – também no projeto de Manso, para servir de referência na análise do conflito em Belo Monte. Os mesmos erros se repetiram na região de Altamira, agravados por uma maior fragmentação do setor elétrico, fragmentação essa que tornou, oficialmente, Eletronorte e Furnas empresas concorrentes na Amazônia. Embora esteja direcionando, atualmente, suas ações para o projeto do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, a estatal Furnas se inseriu no conflito de Belo Monte a partir de especulações quanto à possibilidade daquela empresa se candidatar ao papel de empreendedora do complexo hidrelétrico no rio Xingu, especulações essas que colocavam duas subsidiárias da Eletrobrás no inusitado papel de concorrentes em uma mesma licitação, especialmente considerando que o Governo Federal não demonstra capacidade de investimentos capaz de dar suporte a dois megaprojetos hidrelétricos simultaneamente, como é o caso dos complexos de Belo Monte e do rio Madeira. Essas especulações só ganharam força entre a sociedade local por conta da indefinição do modelo a ser adotado pelo setor elétrico, do fim das áreas de atuação definidas para cada uma das subsidiárias e do enfraquecimento institucional da Eletronorte na região. Contudo, esse foi mais um elemento de relevância naquele conflito durante o ano de 2002 – que reforçou, mais uma vez, a impressão da ausência de um comando setorial unificado. É importante ressaltar que a presença da Eletrobrás na região, durante o período 382 2000/2002, foi entendida por atores relevantes da região como o desempenho da função de observadora – jamais como protagonista do conflito. Por outro lado, tanto a incapacidade do Ibama para mediar conflitos quanto a incisiva atuação do Ministério Público contribuíram significativamente para que os embates fossem jogados, como constatado nesta pesquisa, para o campo das crenças e convicções – o que, obviamente, não leva a uma negociação legítima entre as partes. A sugestão de modificação no projeto de Belo Monte, reduzindo a sua capacidade instalada, pode ter sido entendidas como uma "saída honrosa" para o conflito, principalmente para aqueles atores que se manifestaram publicamente contra o projeto com afirmações, confirmadas por diversas entrevistas feitas nesta investigação, de que "no Governo FHC, Belo Monte não sairia". No entanto, essa alternativa técnica diz respeito à construção de apenas um dos canais de adução do projeto atual de Belo Monte, dividindo o empreendimento em duas etapas, o que pode ser atraente para investidores privados. Contudo, não resolve o dilema principal do conflito que, segundo as entrevistas das lideranças dos movimentos sociais da região de Altamira, se caracteriza, principalmente, pelo poder de atração exercido pelas obras sobre a população rural, um fator que inviabiliza os projetos daqueles movimentos no sentido do estímulo da Agricultura Familiar e da agregação de valor à produção regional. Para agravar esse quadro, voltar à "estaca zero", na elaboração do EIA, significa ignorar uma vultuosa aplicação de recursos públicos e legitimar um processo de descrédito da Universidade Federal do Pará. Caso seja essa a opção do Governo Federal, é imprescindível que essas duas questões – e as razões que embasaram tal decisão – sejam tornadas claras para os contribuintes brasileiros. Outra questão que precisa ser enfrentada com urgência no Brasil é o esclarecimento da sociedade quanto ao fato de não existirem, atualmente, opções para geração de grandes cargas de energia, sem impactos ambientais – potenciais ou não. Essa informação é 383 imprescindível para embasar a discussão com a sociedade a respeito da opção por hidreletricidade na matriz energética nacional, evitando proposições inconsistentes – recorrentemente apresentadas pelos movimentos sociais. As usinas hidrelétricas formam a base do sistema de geração energética no Brasil. Segundo os dados da Aneel57, as usinas hidrelétricas (UHEs) respondem por 79,04% da potência instalada no país, enquanto a geração térmica se constitui como a segunda opção, onde as térmicas não-nucleares58 atingem 18,57% e as usinas nucleares 2,37%, totalizando 20,94 % da potencia total. As PCHs, MCHs59 e outras fontes renováveis respondem pelo restante, isto é, cerca de 0,02%. As hidrelétricas, obviamente, causam problemas de natureza físico-química e biológica, interferindo diretamente nos ecossistemas das regiões onde são implantadas. A alteração do regime hidrológico e a modificação da qualidade da água, são impactos ambientais inerentes ao barramento de um rio, bem como a eventual emissão de gases que contribuem para o agravamento do Efeito Estufa, a partir da decomposição orgânica nos reservatórios das usinas. Os movimentos sociais que se opõem às usinas hidrelétricas trabalham com números que ultrapassam 34.000 km² de terras inundadas e 200.000 famílias deslocadas pelos diversos projetos dessa natureza no Brasil. Embora não tenha sido possível validar essa informação nesta investigação, dada a controvérsia gerada por diferentes números obtidos nas fontes pesquisadas, constata-se que os principais impactos ambientais motivadores das resistências aos aproveitamentos hidrelétricos brasileiros são encontrados na dimensão socioeconômica dos conflitos. O deslocamento forçado dessas populações, segundo argumentam aqueles movimentos sociais, foi compensado financeiramente por meio de valores injustos ou 57 Boletim Informativo da Geração – dezembro de 2003. 58 Nesse caso, os combustíveis são óleo combustível, óleo Diesel e gás natural. 59 Pequenas Centrais Hidrelétricas e Micros Centrais Hidrelétricas. 384 inadequados, sendo que os reassentamentos feitos não melhoraram ou mantiveram qualidade de vida anterior. Problemas de saúde pública, como o agravamento do quadro de doenças endêmicas e a deterioração da qualidade da água nos reservatórios, com impactos sobre a pesca e a agricultura são também relacionados pelos atores que se opõem às UHEs. As usinas hidrelétricas, contudo, pagam CFURH60, ou seja, 6,75% sobre o valor total da energia produzida – dos quais 45% vão para os municípios afetados e 45% para os respectivos estados. Para se ter uma idéia desses valores, os dados da Eletrobrás apontam para um repasse de compensação financeira e royalties da ordem de R$ 643 milhões a centenas de municípios afetados, somente no primeiro semestre de 2004. A barragem de Furnas, por exemplo, beneficia 34 cidades por meio do pagamento de CFRUH. O lago de Itaipu, em apenas um mês, julho de 2004, permitiu que os 15 municípios do lado brasileiro do reservatório recebessem R$ 11 milhões. Considerando as restrições orçamentárias dos municípios brasileiros, são valores significativos que se juntam à possibilidade de usos múltiplos do reservatório e possuem um grande potencial indutor de desenvolvimento regional. De outra parte, os combustíveis fósseis utilizados para a geração de energia são comprovadas fontes causadoras de impactos ambientais severos. A emissão do CO2 derivado da combustão de hidrocarbonetos e a presença de compostos de enxofre entre os produtos da queima de óleo diesel, óleo combustível e carvão mineral, na geração de energia elétrica, provoca a formação de ácidos como o sulfúrico e o nítrico, com grande probabilidade de causar "chuva ácida" não só em nível local, podendo até afetar países vizinhos. Ressalte-se, ainda, que diversos hidrocarbonetos são considerados carcinogênicos e mutagênicos. A combustão incompleta nas termelétricas pode liberá-los na atmosfera 60 Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos 385 Agravando esse quadro, a legislação ambiental brasileira não prevê padrões de emissão de NOx (óxidos de nitrogênio), um poluente atmosférico comum nas emissões de termelétricas a gás natural. Esses óxidos podem reagir com os hidrocarbonetos formando oxidantes fotoquímicos – dentre eles o ozônio, que, nas camadas superiores da atmosfera, exerce um papel importante na diminuição da incidência dos raios ultravioletas sobre a Terra, mas, nas camadas inferiores, atua com um indesejável oxidante que, mesmo em concentrações relativamente baixas, inibe a fotossíntese e provoca danos na estrutura pulmonar humana – entre outras ações nocivas. A opção nuclear não apresenta um histórico favorável no Brasil, pois as usinas Angra I e Angra II têm provocado questionamentos quanto aos problemas de operação apresentados, ao plano de ação para o período posterior à paralisação completa dessa operação, ao destino dos rejeitos radioativos e quanto ao plano de emergência para o caso de acidentes nucleares. As fontes consideradas como alternativas – a energia eólica, por exemplo – também apresentam impactos ambientais, como a poluição visual e produção de sons de baixa freqüência que afetam as aves. Além disso, não existe, atualmente, viabilidade para que essas fontes possam gerar grandes cargas para grandes centros consumidores. Neste ponto, é importante enfatizar que esta tese não se propôs a discutir as diferentes opções de geração de energia, sua viabilidade e sua importância estratégica. No entanto, a questão da democratização da informação é, novamente, central na abordagem dessas alternativas perante a sociedade, visando à tomada de decisão em processos de negociação envolvendo hidrelétricas na Amazônia, a região do Brasil que concentra os maiores projetos desse tipo de geração, no Brasil. Esse fato, mais cedo ou mais tarde, implicará escolhas por parte da sociedade brasileira. O conflito de Belo Monte demonstra que é fundamental fornecer à sociedade as informações que embasarão suas escolhas e, nesse ponto, o setor elétrico não tem conseguido romper a barreira montada contra as hidrelétricas. Os resultados desta pesquisa 386 sugerem uma urgência na criação, no âmbito do setor, de uma estrutura responsável pela negociação dos conflitos causados pelos projetos hidrelétricos. Essa estrutura não pode ser montada em compartimentos estanques, desarticulados e tendo como objetivo "vender" simplesmente os empreendimentos. Esse tipo de estrutura não funcionou, pois enquanto as áreas de comunicação social das empresas se dedicavam à produção de eventos e outras ações de relações públicas, as áreas ambientais se restringiam aos obstáculos para a obtenção das respectivas licenças e as áreas de engenharia aos procedimentos tradicionais do setor. A integração dessas áreas funcionou de forma pontual e descontínua, não caracterizando uma cultura própria nem, tampouco, um conjunto de ações bem sucedidas de negociação com a sociedade. Por outro lado, o Governo Federal – aqui entendido como as várias administrações após o fim do período militar – não tem assumido a defesa de sua opção pela geração hidrelétrica como parte de um Projeto Nacional de longo prazo. Ao contrário, o descompasso e o piroscópio têm sido os símbolos desse período, em que os planos e as ações se sucedem, muitas vezes, de forma contraditória, ou seja, gastam-se x reais para uma ação Y e, depois, x reais para uma ação –Y. Matematicamente, não restam dúvidas: são gastos 2x reais para um resultado igual a zero. Outras vezes, a política de se "apagar incêndio" leva a opções equivocadas como o caso das termelétricas contratadas no período do "Apagão". Novamente, o projeto de Belo Monte pode ser entendido aqui como uma síntese dessas distorções, pois um significativo montante de recursos financeiros foi consumido, desde a década de 1980, em estudos de engenharia e socio-ambientais e em ações de comunicação social – que resultaram em um projeto paralisado e na iminência de ser conduzido a um ponto de "estaca zero". Esta pesquisa não conseguiu identificar, na região de Altamira, a presença do Governo Federal com uma "voz única" que desse à comunidade local a certeza de que o Complexo Hidrelétrico de Belo Monte é de interesse nacional e o aval de que estaria 387 inserido em um projeto de desenvolvimento regional. Ao contrário, durante o período analisado, a Eletronorte foi percebida como uma instituição autônoma e sujeita a períodos de instabilidade organizacional, determinados pelas mudanças em sua administração, em função dos arranjos políticos periódicos – na maior parte dos casos, com vistas a acomodação de dirigentes indicados por forças políticas importantes para se obter uma base congressual confiável. Esse contexto se confronta fortemente com os modelos de Lee e Simmel, pois, de um lado, o conflito se transforma em algo como uma batalha entre mouros e cristãos, onde a fé determina certezas que inviabilizam um jogo de "ganha-ganha". Por outro lado, a Aprendizagem Social – que deve ser buscada pelas partes em conflito – não pode ser concebida se a bússola se referencia em um Norte não-validado e o giroscópio não atua independentemente das correntes de vento determinadas pelas constantes intervenções das formas mais rudimentares de práticas políticas. A conclusão deste trabalho também implica duas constatações. A primeira delas é de que esta pesquisa não procurou – e não encontrou, mesmo sem intenção – "mocinhos e bandidos" no conflito de Belo Monte. Seria extremamente primário classificar tanto os opositores, quanto os defensores do projeto, por meio de uma rudimentar "Escala de Bondade". Os atores sociais relevantes do conflito, em geral, apresentam argumentos consistentes para justificar suas posições. Entretanto, constata-se que a inserção de Belo Monte em um projeto de nação para o Brasil não fez parte do conflito, em moldes claros e precisos. Provavelmente porque não exista. Essa lacuna fez com que o empreendimento fosse discutido, somente, em um contexto local, no qual é contraposta a geração de emprego ao aumento dos problemas derivados da chegada de grandes contingentes de trabalhadores, a obtenção de 388 compensações financeiras aos impactos sobre as populações tradicionais, a democracia representativa à participação dos movimentos sociais, entre outras dicotomias. Nesse contexto, é possível se considerar a hipótese de que todos tenham razão. A segunda constatação que, de certo modo, configura um dos aspectos propositivos desta tese, é de que enquanto não ficar definida claramente, no Brasil, a função da mediação de conflitos, os membros da Academia, os técnicos do setor ambiental, os participantes de Organizações Não-Governamentais, os líderes comunitários – e, de resto, toda a sociedade brasileira – estaremos correndo o risco de acompanhar as discussões sobre a viabilidade ambiental pela televisão, como nos filmes de tribunais de Hollywood ou aguardarmos o grande piroscópio nacional soar o seu alarme para que os projetos sejam implementados, em regime de urgência e em um contexto em que a participação da sociedade é substituída pelos arranjos político-partidários e, aí sim, negociação talvez possa se transformar em sinônimo de negociata. Esta tese também envolveu uma busca do modo de pensar, sentir e agir de indivíduos em um conflito. Assim, os modos mais verdadeiros e simples de se ordenar a informação é buscando na sua própria vivência, não como marco teórico, mas como uma linha de costura para a observação participante, uma técnica adequada ao conhecimento de situações que envolvem relações formais entre instituições e seus públicos. Segundo Mann (1975:.95), "Observação participante refere-se a uma situação onde o observador fica tão próximo quanto um membro do grupo do qual ele está estudando e participa das atividades normais deste". O pesquisador, nesse caso, tem nas suas observações iniciais os pontos estratégicos sobre os quais formula apontamentos que podem ser reformulados ou redefinidos de acordo com o contexto em que se dá a observação. No caso desta tese, as observações iniciais foram baseadas na condição de participante do conflito de Belo Monte, em sintonia com as etapas propostas por Waddington (1995) para o desenvolvimento de uma observação participante: 389 1. Conhecer o campo de estudo, pois o pesquisador deve compreender as práticas do grupo a ser pesquisado, pois esta é a chave da investigação; 2. Conduzir o campo de estudo, pois o pesquisador de campo deve basear a sua atuação na busca de boas relações com o grupo pesquisado, visando a facilitar a obtenção de respostas verdadeiras; 3. Gravar os dados, em um procedimento rigoroso de anotações dos dados observados que devem incluir a descrição de pessoas, acontecimentos, diálogos estabelecidos bem como, suas ações, sentimentos e o surgimento de novas conjecturas; 4. Analisar os dados, de modo que o pesquisador realize a sua interpretação de forma contextualizada, dialética, procurando unir dados observados aos esclarecimentos promovidos pelo processo interativo entre pesquisador-pesquisado; 5. Vivenciar o campo, pois quando se aplica a observação participante fica difícil o estabelecimento prévio de um momento para encerrar com o estudo, sendo que alguns autores recorrem a saturação dos dados como ponto para decidir pelo seu encerramento. Este último aspecto apontado por Waddington tornou-se especialmente difícil para esta pesquisa, uma vez que as características do conflito analisado instigam o pesquisador no sentido da continuidade da investigação. Uma ilustração dessas dificuldades pode ser encontrada no resultado das eleições municipais de outubro de 2004. Conforme ressaltado em alguns pontos deste trabalho, a oposição ao projeto de Belo Monte teve no núcleo do Partido dos Trabalhadores em Altamira o seu braço visível na democracia representativa, exercida por aqueles que, em palavras simples, "tem voto". 390 Segundo os dados finais do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Pará61, o candidato do PT ao cargo de Prefeito de Altamira ficou em terceiro e último lugar nas eleições, com 6,20% dos votos válidos. No município de Vitória do Xingu, o candidato do partido à prefeitura também foi derrotado – embora deva ser acrescentado que aquele candidato tentava a reeleição e que sua posição como prefeito de um dois municípios de maior relevância no conflito não era de oposição ao projeto, conforme revelado em uma entrevista para esta tese. Os resultados negativos do PT local não se restringiram ao Poder Executivo. Para a Câmara de Vereadores de Altamira, por exemplo, os partidos identificados com a oposição a Belo Monte não elegeram qualquer representante. Ressalte-se que entre os candidatos do PT a vereador de Altamira estavam alguns dos líderes mais atuantes dos movimentos de oposição ao projeto de Belo Monte. Em um universo de 46.748 eleitores altamirenses, uma das lideranças mais atuantes contra Belo Monte, também entrevistada nesta pesquisa, obteve um total de 437 votos. Dados como esses tornam difícil, como apontado por Waddington, estabelecer previamente um momento para encerrar o estudo, pois estimulam a discussão Democracia Participativa vis-à-vis Democracia Representativa, em que a legitimação das representações sociais, a validação das informações, a participação da sociedade nos processos de tomada de decisão, a mediação de conflitos e a interação do setor elétrico com a sociedade seriam, sem dúvida, questões centrais. O que se espera é que esta tese tenha conseguido contribuir para enriquecer essa discussão. 61 Disponíveis no sítio http://www.tre-pa.gov.br/internet/index.php. Acessado em 07.10.2004. REFERÊNCIAS AB’SÁBER, Aziz Nacib, MÜLLER-PLATEBERG, Clarita (Orgs.).Previsão de impactos: o estudo de impacto ambiental no Leste, Oeste e Sul.Experiências no Brasil, na Rússia e na Alemanha. 2.ed. São Paulo: EDUSP,1998. ABRAMO, Cláudio Weber. O telhado de vidro do relativismo. Artigo publicado na Folha de São Paulo de 15 setembro de 1996. ADAS, Melhem. Panorama Geográfico do Brasil: contradições, impasses e desafios. São Paulo: Moderna, 1998. AGUIAR, Roberto Armando de. Direito do meio ambiente e participação popular. 2.ed. Brasília: IBAMA, 1998. ANDRADE, Luís Edgar. Quem tem medo do O?. Artigo publicado no Jornal do Brasil de 16 de dezembro de 2002, página A-9. BARBOSA, Nair Palhano. Setor Elétrico e Meio Ambiente: a institucionalização da questão ambiental. 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Kerman José Machado – engenheiro, ex-presidente da Cemat e ex-diretor da Eletronorte, em 20/04/2004; Brasília, DF. Edmundo Antonio Taveira Pereira – ex-gerente de Meio Ambiente da Eletronorte e diretor do Ibama, em 23/04/2004; Brasília, DF. Rubens Ghilardi Junior – analista ambiental de Eletronorte, em 30/04/2004; Brasília, DF. René Gomes – vereador de Altamira, em 12/05/2004; Altamira, PA. Cizauto Costa – empresário em Altamira, em 12/05/2004; Altamira, PA. Pedro Silva – vereador em Vitória do Xingu, em 12/05/2004; Altamira, PA. Padre Frederico – Prelazia do Xingu, em 13/05/2004; Altamira, PA. Anselmo Hoffmann – prefeito de Vitória do Xingu, em 13/05/2004; Vitória do Xingu, PA. Antônia Melo – liderança dos movimentos sociais em Altamira, em 14/05/2004; Altamira, PA. Antônia Martins – liderança dos movimentos sociais em Altamira, em 14/05/2004; Altamira, PA. João Lopes – jornalista em Altamira, em 15/05/2004; Altamira, PA. Eduardo Machado – secretário executivo do consórcio Belo Monte, em 15/05/2004; Altamira, PA. Cláudio Filomeno – ex-prefeito de Altamira, em 15/05/2004; Altamira, PA. Vilmar Soares – ex-presidente da associação comercial e industrial de Altamira, em 17/05/2004; Altamira, PA. Tarcísio Feitosa - liderança dos movimentos sociais em Altamira, em 18/082004; Altamira, PA. Alessandra Magrini – professora universitária, em 29/06/2004; Rio de Janeiro, RJ. Miriam Nuti – técnica de meio ambiente da Eletrobrás, em 30/06/2004; Rio de Janeiro, RJ. Protocolo da Pesquisa Semi-Estruturada 1. Considerando as determinações legais quanto à necessidade da participação da sociedade nos processos de licenciamento ambiental de empreendimentos no Brasil, como o Sr (Srª) avalia a aplicação dessas determinações – quanto à sua legitimidade e aplicabilidade – ao longo das últimas décadas em nosso país, especialmente em relação aos RIMAs e às Audiências Públicas? 2. Como o Sr (Srª) vê a representatividade das organizações não governamentais (ONGs) envolvidas nos processos de tomada de decisão relacionados a grandes empreendimentos no Brasil, principalmente no que diz respeito às questões ambientais? 3. Qual a sua avaliação sobre a atuação e o desempenho dos principais atores envolvidos nos processos de tomada de decisão de empreendimentos que resultem em impactos sobre o ambiente (Ibama, secretarias de Meio Ambiente, ONGs, partidos políticos etc) sobretudo no que se refere à resolução dos conflitos associados a esses empreendimentos? 4. Em sua opinião, qual o modelo de desenvolvimento mais adequado para a Amazônia? 5. Como o Sr (Srª) definiria “Desenvolvimento Sustentável”? 6. Qual a sua avaliação a respeito da predominância, até o momento, da geração hidrelétrica na matriz energética nacional? 7. Qual a sua opinião a respeito da construção de hidrelétricas na Amazônia? 8. Qual a sua opinião sobre as formas de resolução de conflitos ambientais utilizadas no Brasil para empreendimentos hidrelétricos – até o momento atual. Caso seja do seu conhecimento, qual a sua opinião no caso dos projetos das usinas hidrelétricas de Tucuruí e Belo Monte? 9. Qual a comparação que poderia ser feita – sobretudo para identificarmos avanços ou retrocessos – entre os processos de tomada de decisão para Tucuruí e para Belo Monte. 10. Considerando sua experiência profissional e pessoal , existem outros fatos que poderiam ser destacados como relevantes em relação aos aspectos enfocados nesta pesquisa e que possam contribuir para ela?