Cadernos Metrópole
Transcrição
Cadernos Metrópole
ISSN 1517-2422 cadernos metrópole representação política e governança metropolitana Cadernos Metrópole v. 14, n. 27, pp. 1-282 jan/jun 2012 Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–, Semestral ISSN 1517-2422 A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22 1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles CDD 300.5 Periódico indexado na Library of Congress – Washington Cadernos Metrópole Profa. Dra. Lucia Bógus Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes 05015-001 – São Paulo – SP – Brasil Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles Av. Pedro Calmon, 550 – sala 537 – Ilha do Fundão 21941-901 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 São Paulo – SP – Brasil Telefax: (55-11) 3368.3755 [email protected] http://web.observatoriodasmetropoles.net Secretária Raquel Cerqueira rrepresentação epresentação p política olítica eg governança o v e r n a n ç a metropolitana m e t ro p o l i t a n a PUC-SP Reitor Dirceu de Mello EDUC – Editora da PUC-SP Direção Miguel Wady Chaia Conselho Editorial Ana Maria Rapassi, Cibele Isaac Saad Rodrigues, Dino Preti, Dirceu de Mello (Presidente), Marcelo da Rocha, Marcelo Figueiredo, Maria do Carmo Guedes, Maria Eliza Mazzilli Pereira, Maura Pardini Bicudo Véras, Onésimo de Oliveira Cardoso Coordenação Editorial Sonia Montone Revisão de português Eveline Bouteiller Revisão de inglês Carolina Siqueira M. Ventura Projeto gráfico, editoração e capa Raquel Cerqueira Rua Monte Alegre, 984, sala S-16 05014-901 São Paulo - SP - Brasil Tel/Fax: (55) (11) 3670.8085 [email protected] www.pucsp.br/educ cadernos metrópole EDITORES Lucia Bógus (PUC-SP) Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ) COMISSÃO EDITORIAL Eustógio Wanderley Correia Dantas (UFC, Fortaleza/Ceará/Brasil) Luciana Teixeira Andrade (PUC-MG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Orlando Alves dos Santos Júnior (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Sérgio de Azevedo (UENF, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/ Brasil) Suzana Pasternak (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) CONSELHO EDITORIAL Adauto Lucio Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Aldo Paviani (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, Toluca/Estado del México/México) Ana Fani Alessandri Carlos (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ana Lucia Nogueira de P. Britto (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Ana Maria Fernandes (UFBa, Salvador/Bahia/Brasil) Andrea Claudia Catenazzi (UNGS, Los Polvorines/Provincia de Buenos Aires/Argentina) Anna Alabart Villà (UB, Barcelona/Espanha) Arlete Moyses Rodrigues (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Brasilmar Ferreira Nunes (UFF, Niterói/Rio de Janeiro, Brasil) Carlos Antonio de Mattos (PUC, Santiago/Chile) Carlos José Cândido G. Fortuna (UC, Coimbra/Portugal) Cristina López Villanueva (UB, Barcelona/Espanha) Edna Maria Ramos de Castro (UFPA, Belém/Pará/Brasil) Eleanor Gomes da Silva Palhano (UFPA, Belém/Pará/Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Félix Ramon Ruiz Sánchez (PUCSP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Fernando Nunes da Silva (UTL, Lisboa/Portugal) Frederico Rosa Borges de Holanda (UnB, Brasília/ Distrito Federal/Brasil) Geraldo Magela Costa (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Gilda Collet Bruna (UPM, São Paulo/São Paulo/Brasil) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (PUCSP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heliana Comin Vargas (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heloísa Soares de Moura Costa (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Jesús Leal (UCM, Madri/Espanha) José Antônio F. Alonso (FEE, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) José Machado Pais (UL, Lisboa/Portugal) José Marcos Pinto da Cunha (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) José Maria Carvalho Ferreira (UTL, Lisboa/Portugal) José Tavares Correia Lira (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Leila Christina Duarte Dias (UFSC, Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Luciana Corrêa do Lago (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luís Antonio Machado da Silva (Iuperj, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luis Renato Bezerra Pequeno (UFC, Fortaleza/Ceará/Brasil) Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBa, Salvador/Bahia/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria do Livramento M. Clementino (UFRN, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marília Steinberger (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Nadia Somekh (UPM, São Paulo/São Paulo/Brasil) Nelson Baltrusis (UCSAL, Salvador/Bahia/Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Raquel Rolnik (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ricardo Toledo Silva (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (UFMG, Belo Horizonte/ Minas Gerais/Brasil) Rosa Maria Moura da Silva (Ipardes, Curitiba/Paraná/Brasil) Rosana Baeninger (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Sarah Feldman (USP, São Carlos/São Paulo/Brasil) Tamara Benakouche (UFSC, Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Vera Lucia Michalany Chaia (PUCSP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Wrana Maria Panizzi (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) COLABORADORES AD HOC Benny Schvasberg (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Denise Cunha Tavares Terra (UENF, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/ Brasil) Eduardo César Leão Marques (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Eduardo Marandola Junior (Unicamp, Campinas/São Paulo/ Brasil) Elzira Lúcia de Oliveira (UFF, Niterói/Rio de Janeiro/Brasil) Felipe Link Lazo (UDP, Santiago/Chile) Fernando Garrefa (UFU, Uberlândia/Minas Gerais/Brasil) Francisco de Assis Comaru (UFABC, Santo André/São Paulo/Brasil) Gislene Aparecida dos Santos (UFPR, Curitiba/Paraná/Brasil) Gustavo Henrique Naves Givisiez (UFF, Niterói/Rio de Janeiro/Brasil) Humberto Miranda do Nascimento (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Isabel Aparecida Pinto Alvarez (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) João Carlos Ferreira de Seixas (UL, Lisboa/Portugal) João Farias Rovati (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) João Manuel Machado Ferrão (UL, Lisboa/ Portugal) Jorge da Silva Macaísta Malheiros (UL, Lisboa/Portugal) Jorge Manuel Gonçalves (UTL, Lisboa/Portugal) José Geraldo Simões Junior (Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Laura Machado de M. Bueno (PUCCampinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Lia de Mattos Rocha (UERJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Lúcia Cony Faria Cidade (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Luciane Soares da Silva (UENF, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/Brasil) Luciano Joel Fedozzi (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) Luís António Vicente Baptista (UNL, Lisboa/Portugal) Márcia da Silva Pereira Leite (UERJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Marcia Maria Cabreira M. de Souza (PUC-SP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Márcio Moraes Valença (UFRN, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Maria Augusta Justi Pisani (Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria Lucia Refinetti R. Martins (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Marísia Margarida Santiago Buitoni (PUC-SP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Marta Domínguez Pérez (UCM, Madri/Espanha) Marta Dora Grostein (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Milena Kanashiro (UEL, Londrina/Paraná/Brasil) Neio Lúcio de Oliveira Camps (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Norma Lacerda (UFPE, Recife/Pernambuco/Brasil) Olga Lucia Castreghini de F. Firkowski (UFPR, Curitiba/Paraná/Brasil) Paulo Jorge Marques Peixoto (UC, Coimbra/Portugal) Paulo Roberto Rodrigues Soares (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) Regina Maria Prosperi Meyer (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Renato Cymbalista (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Ricardo Libanez Farret (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Ricardo Ojima (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Rosana Denaldi (UFABC, Santo André/São Paulo/Brasil) Sérgio Manuel Merêncio Martins (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Silvana Maria Pintaudi (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Sonia Lúcio Rodrigues de Lima (UFF, Niterói/Rio de Janeiro/Brasil) Sylvio Carlos Bandeira de Mello e Silva (UCSal, Salvador/Bahia/Brasil) Vitor Matias Ferreira (ISCTE-UL, Lisboa, Portugal) Weber Soares (UFMG, Belo Horizonte/ Minas Gerais/Brasil) sumário 9 Apresentação dossiê: representação política e governança metropolitana A er neoliberaliza on? 15 Após a neoliberalização? Neil Brenner Jamie Peck Nik Theodore Governance and territorializa on: local welfare in Italy between fragmenta on and innova on 41 Governance e territorialização: o welfare local na Itália entre fragmentação e inovação Lavinia Bifulco Electoral strategy under open-list propor onal representa on The weight of the metropolitan vote: the representa veness of metropolitan regions in the Legisla ve Assembly of Paraná 59 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta Barry Ames 89 O peso do voto metropolitano: a representa vidade das regiões metropolitanas na Assembleia Legisla va do Paraná Jéferson Soares Damascena Celene Tonella Habitus, planning and public governance 115 Habitus, planejamento e governança urbana Nilton Ricoy Torres Nego a ng the territory: the formula on 135 Negociando o território: a formulação do Plano of the Strategic Master Plan of São Paulo Diretor Estratégico de São Paulo (2002-2004) (2002-2004) Sidney Piochi Bernardini Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 1-282, jan/jun 2012 7 artigos The tendency towards a degrading spa ality 155 A espacialidade degradante tendencial e o horizonte and the horizon for poli cal space educa on de uma educação polí ca do espaço Ulysses da Cunha Baggio Gated communi es, me, space and society: a historical perspec ve 171 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade: uma perspec va histórica Rita Raposo Brasília: the straight lines in reverse 197 Brasília: as linhas retas pelo avesso or the intersec on of usage ou no entrecortar do uso Rosângela Vieira Neri Viana Karla Chris na Ba sta de França Ananda de Melo Mar ns Urban planning and flooding in Dourados: 217 O planejamento urbano e as enchentes the distance between reality and legality em Dourados: a distância entre a realidade e a legalidade Bianca Rafaela Fiori Tamporoski Maria Aparecida Mar ns Alves Luciana Ferreira da Silva Joelson Gonçalves Pereira Changes in the socio-occupa onal structure 233 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das of the Brazilian metropolises, 1991-2000 metrópoles brasileiras, 1991-2000 Suzana Pasternak 279 Instruções aos autores 8 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 1-282, jan/jun 2012 Apresentação Reunindo tanto trabalhos de natureza teórica como investigações empíricas, o dossiê do Cadernos Metrópole n. 27 centra-se em tema de inquestionável relevância para a vida presente e futura das metrópoles: com pontos de partida diversos – seja no que se refere aos problemas teóricos discutidos, como às realidades empíricas analisadas –, os artigos aqui reunidos convergem para um denominador comum, a saber, a relação nem sempre linear e positiva observada entre os caminhos da Governança Metropolitana e a dinâmica da Representação Política. Da leitura dos artigos que fazem parte do presente dossiê, é possível se identificar um conjunto de indícios preciosos sobre o impacto fundamental dos mecanismos de representação sobre os limites, prospectos e possibilidades de uma governança de natureza metropolitana. Sabem os estudiosos dos modelos de representação e de democracia que as instituições políticas variam de acordo com grau em que fragmentam e dispersam recursos de poder, ou agregam e concentram esses recursos. Denominam-se consociativos aqueles modelos de democracia que produzem incentivos à fragmentação, e majoritários os que têm por efeito a concentração desses recursos. Sem entrarmos no campo extenso do debate sobre as virtudes e mazelas dos dois modelos, é suficiente aqui assinalar que, para um número considerável de analistas, os arranjos consociativos estariam na raiz de uma série de disfuncionalidades observadas nos sistemas políticos inspirados por essa matriz institucional: pulverização e atomização excessiva dos atores políticos, multiplicação dos pontos de veto, custos de cooperação aumentados, resultados subótimos de política, notadamente, a subprovisão de bens públicos. Não é preciso dizer que os arranjos dessa natureza se traduziriam em fortes desincentivos à montagem de mecanismos de governança metropolitana, os quais a um só tempo demandariam e ocasionariam a concentração de recursos de poder no âmbito das regiões metropolitanas, introduzindo nessas regiões uma dinâmica institucional de natureza majoritária. Ora, as críticas ao funcionamento do sistema político brasileiro recaem exatamente sobre o forte componente consociativo presente no interior de nossa matriz institucional, mais precisamente, o federalismo robusto – que a um só tempo amplia o papel dos entes municipais e Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012 9 Apresentação das minorias estaduais – o multipartidarismo e a personalização do mandato parlamentar. Fazendo coro à linha crítica que associa a fragmentação do sistema político brasileiro a desafios no campo da governabilidade, Barry Ames traz contribuição inovadora às investigações sobre geografia do voto e representação; em trabalho pioneiro aqui publicado, o artigo “A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta”, Ames observa que, no caso do sistema proporcional brasileiro, os deputados podem traçar diferentes estratégias para obtenção do mandato, com resultados diversos no espaço: concentram votos em determinadas áreas e nelas são majoritários; concentram votos, mas não são majoritários; fragmentam os votos e são majoritários em determinadas áreas e, por fim, fragmentam os votos, mas sem dominarem essas áreas. Com essa taxonomia, Ames descreve os quatro distritos “de fato”, a partir de onde se elegeriam nossos representantes e constata que aqueles representantes oriundos de áreas onde são eleitoralmente majoritários pautam sua conduta no legislativo por motivações paroquiais, priorizando políticas distributivas e a obtenção de benefícios desagregados para suas respectivas bases. Na sequência do trabalho de Ames, investigações do Observatório das Metrópoles identificaram nas regiões metropolitanas deputados eleitos com base geográfica concentrada em um único município ou em áreas ainda mais limitadas no interior de um único município (perfil comum à quase totalidade dos deputados ali eleitos); identificou-se, assim, um novo localismo de corte municipal ou inframunicipal que produz desincentivos ao tratamento da agenda metropolitana nas instâncias legislativas. Assim, no que se refere à metrópole, nosso sistema representativo reforça e reafirma a fragmentação da dinâmica política, dinâmica avessa à governança metropolitana. Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella testam e confirmam a hipótese do localismo e paroquialismo metropolitano no estado do Paraná: deputados com votação espacialmente concentrada e atuação paroquialista no âmbito da Assembleia Legislativa priorizam políticas distributivistas e ignoram a temática metropolitana. Verificam ainda no caso do Paraná a replicação de uma segunda consequência perversa da operacionalização de nosso sistema eleitoral: a sub-representação das áreas metropolitanas em benefício de áreas mais atrasadas. Embora circunscritos à análise do município de São Paulo, os trabalhos de Nilton Ricoy Torres e Sidney Piochi Bernardini exploram duas dimensões ou possibilidades – até certo ponto contraditórias – de definição do sentido da governança urbana: governança definida como instância de racionalidade e de planejamento vertical, de um lado, e governança entendida como instância de articulação e processamento dos interesses dos atores sociais, de outro. Valendo-se de conceitos centrais da teórica sociológica de Bourdieu, como habitus, campo e dinâmicas de luta pelo poder e dominação, Torres identifica e analisa uma concepção específica de governança urbana, regulada por normas e orientações próprias, a saber, a governança entendida como planejamento. Observa que, limitada à gramática do planejamento, a governança urbana teria sua orientação definida ex ante : caberia ao agente-planejador nada mais do que articular racionalmente meios ao fim de disciplinar e dirigir o objeto de sua ação – o urbano. Compreender a governança como planejamento requer, por seu turno, o mapeamento 10 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012 Apresentação da dinâmica dos conflitos no interior do campo e a identificação, no tempo, da variação no grau de autonomia do campo vis-à-vis os atores sociais – questões que apresentam um novo marco de análise para as investigações da governança urbana. O artigo de Sidney Piochi Bernardini focaliza uma outra variável – situada fora do âmbito estatal – com impacto sobre a governança urbana: a dimensão da participação e interação dos atores sociais. A partir de rica e detalhada descrição das diversas etapas de formulação do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, Bernardini analisa o grau de mobilização participação, de um lado, e a natureza dos interesses, de outro, de três atores sociais centrais no curso do processo de formulação do plano diretor: os representantes do setor imobiliário, as associações de bairro e os movimentos sociais por moradia. Por meio da análise das diversas etapas que culminaram na formulação do plano, tenta-se responder a duas questões maiores: a) o planejamento urbano pode mobilizar participação da sociedade? b) a participação dos diversos atores sociais produz consequências no que diz respeito ao planejamento? O artigo responde de maneira afirmativa às duas questões. Ao longo das diversas etapas que marcaram a formulação do plano diretor de São Paulo, a participação popular se mostrou crescente, alcançando ao fim o universo de 3.000 entidades e 50.000 pessoas. A pressão dos grupos envolvidos, por sua vez, importou em alterações significativas na minuta formulada pelo Executivo, seja na definição da abrangência da regulamentação, seja na especificação de aspectos pontuais como a delimitação do potencial construtivo ou na definição do número de zonas especiais de interesse social. O PDE de São Paulo aparece, assim, como exemplo de formulação de instrumento de política urbana ou, se quisermos, de governança urbana pela via democrática. Se a perspectiva da construção de uma governança metropolitana sofre importantes constrangimentos internos decorrentes de nossa matriz institucional, orientada pelo consociativismo e pela pulverização dos recursos de poder, pela fragmentação dos atores políticos, experiências comparadas de modelos semelhantes podem sugerir outros desfechos. O artigo de Lavinia Bifulco é exemplar neste sentido: trazendo a experiência da descentralização experimentada pela Itália nas últimas décadas. Em “Governance e territorialização: o welfare local na Itália entre fragmentação e inovação”, Bifulco vai chamar a atenção, com base na experiência de descentralização que vem ocorrendo naquele país, para o fato de que a descentralização não está fadada a se traduzir em ações de governança que impedem a cooperação ou que acentuem desigualdades regionais; se a descentralização, via de regra, traz essas implicações, abre, no entanto, possibilidades novas e virtuosas de governança. Descreve o artigo movimento linear de descentralização que vem reduzindo o escopo de funções do estado-nacional no território: a Europa das regiões caminhou na direção da Europa das cidades; ao mesmo tempo, o âmbito do Estado de Bem-Estar deslocou-se do estado nacional para esferas subnacionais, em particular, para os municípios. Inscreve-se esse movimento não só no marco da globalização, mas igualmente nos processos de reforma do setor-público, orientados à ampliação do escopo do mercado, em que custos e responsabilidades, outrora localizados no Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012 11 Apresentação Estado central, deslocam-se para autoridades locais. Nesse percurso, cristaliza-se a realidade de um sentido contratual da cidadania social, em que prima o cidadão-consumidor sobre o cidadão sujeito de direitos. Na Itália, sublinha Bifulco, o movimento descentralizador elevou ao primeiro plano as municipalidades e seus respectivos agentes: “o papel encenado pela política está ligado sobretudo aos novos prefeitos, cujos poderes cresceram de maneira decisiva... com relação às políticas a escala local é sem dúvida um elemento chave dessa renovação”. Importa notar aqui que, no caso italiano, a fragmentação não implicou necessariamente a geração de uma governança subótima, ao contrário, produziram-se vias inovadoras de gestão pública. A partir da análise de duas ações de intervenção pública, sob o regime de contratos, a reforma dos serviços sociais e os contratos de bairro, confirmou-se a última hipótese, em que prevaleceram incentivos a uma quase institucionalização, mesmo sob a forma de contratos, de mecanismos de integração vertical e horizontal de governança. O caso italiano fornece exemplos, portanto, de novos mecanismos de governança desenhados a partir da reforma do estado, a qual não se traduz assim no abando da vida social à lógica do mercado, com consequente fragmentação dos atores e sub-provisão de bens públicos: “aconteceram processos de aprendizado institucional, graças aos quais as agregações intermunicipais começaram a agir e a serem reconhecidas como novos atores públicos... em alguns casos, planos e contratos dão prova de uma elevada capacidade integrativa”. De alguma forma, deve-se assinalar que o artigo de Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore – “Após a neoliberalização?” – fornece instrumental novo para a compreensão dos constrangimentos externos às estruturas de governança nos estados nacionais e em suas subunidades. Cabe assinalar, desde já, que a semântica proposta pelos autores não é isenta de propósitos: ao recusar o conceito de neoliberalismo e lançar mão do conceito de neoliberalização, pretendem assinalar que a implementação de novas práticas regulatórias a partir da década de 1970, orientadas para a extensão do escopo das estruturas do mercado, deve ser lida, antes de mais nada, como processo. Um processo com dinâmicas distintas no espaço, temporalmente descontínuo e permeado por tendências experimentais e híbridas. Antes de produzir algo como um “regime liberal” – plenamente formado e que progressivamente se estenderia até compreender todo o espaço regulatório global –, o processo de neoliberalização se articulou de maneira desigual ao longo de lugares, territórios e escalas. Assinalam, os autores, que esse desenvolvimento desigual da neoliberalização antes de tratar-se de condição temporária, produto de uma institucionalização incompleta, representa uma de suas características constitutivas. Conclusão óbvia quando se tem em vista que se trata de processos dependentes da trajetória de origem (path dependency origin): na medida em que colide com diversos cenários regulatórios herdados de rodadas anteriores (nacional-desenvolvimentismo, socialismo e fordismo), o formato de articulação e institucionalização se caracterizará pela heterogeneidade. Processos de neoliberalização têm seu formato definido tanto pela diversidade dos contextos, como pelas distintas trajetórias de origem. 12 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012 Apresentação Antecipadas as importantes pontuações que distanciam a compreensão do processo de neoliberalização dos modelos difusionistas, os quais preconizam o modelo de convergência de política, os autores constroem um mapa genérico com as diferentes etapas e características do processo de neoliberalização nas últimas décadas. De forma condensada, vale aqui chamar a atenção para os pontos polares do mapa: a) na década de 1970, o processo de neoliberalizaçãos se caracteriza por um processo desarticulado de experimentos regulatórios voltados ao alargamento do escopo do mercado, em escala específica, em lugares e territórios; tantos os sistemas juridiscionais de transferência de políticas como organismos globais (OCDE, BIRD, FMI) ainda se orientavam por parâmetros neokeynesianos; b) na década de 1990, o aprofundamento do processo de neoliberalização se evidencia menos pela intensificação dos experimentos regulatórios orientados para a expansão do mercado e mais pelo redesenho de instituições supranacionais como a OCDE, OMC, FMI e blocos regionais como a UE e NAFTA, na direção de condicionarem – na direção do livre mercado – as formas nacionais e subnacionais de regulação. “Após a neoliberalização? ” apresenta quatro cenários de reestruturação regulatória – desde a acomodação e prosseguimento do processo de neoliberalização até a ruptura com o processo. Se todos os cenários se mostram viáveis para os autores, a hipótese da completa ruptura implicaria o completo desmantelamento do regime de regras neoliberais que hoje hegemonizam agências supranacionais. Menos pelo desenho dos cenários futuros, e mais pelo tratamento sofisticado das restrições externas à governança nacional ou subnacional, o artigo “Após a neoliberalização?” afigura-se de leitura obrigatória. O Cadernos Metrópole 27 prossegue em sua opção de, não se limitando ao dossiê, divulgar artigos que tragam contribuição substantiva para a compreensão da dinâmica urbana/metropolitana, em temas que se reportem tanto a facetas do planejamento, como à morfologia desses espaços. É o caso dos demais artigos que compõem o presente volume. Em “A espacialidade degradante tendencial e horizonte de uma educação política do espaço”, Ulysses da Cunha Baggio explora e detalha a macrodinâmica da urbanização contemporânea – marcada pela segregação – e indica uma lacuna que estaria a reiterar essa dinâmica: a ausência de uma educação política do espaço. Rita Raposo, no artigo “Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade: uma perspectiva histórica”, refaz, a partir de exame empírico rico e minucioso, o percurso histórico e os contextos sociais que produziram uma das manifestações mais contundentes da urbanização traduzida em segregação, a saber, os condomínios fechados. Em “Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso”, Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins, com base no estudo empírico do Plano Piloto de Brasília e com enfoque fenomenológico, trazem importantes elementos de verificação de contradições urbanísticas inerentes à descontinuidade entre o planejamento e o uso da cidade. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012 13 Apresentação Outra de linha de descontinuidade é analisada no artigo “O planejamento urbano e as enchentes em Dourados: a distância entre a realidade e a legalidade”, de Bianca Rafaela Fiori Tamporoski, Maria Aparecida Martins Alves, Luciana Ferreira da Silva e Joelson Gonçalves Pereira. O artigo explora o déficit de planejamento, marca das cidades brasileiras, a partir da resposta setorial e precária do poder público à incidência de inundações no município: no lugar de um planejamento integrado da cidade, os gestores se limitam à realocação das populações invasoras de áreas de risco. Por fim, o artigo de Susana Pasternak, “Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000”, testa para o conjunto das metrópoles brasileiras a pertinência da hipótese central derivada do conceito de global city, a saber, a hipótese do agravamento da dualização social decorrente da alteração da estrutura ocupacional própria das economias pós-fordistas. Nelson Rojas de Carvalho Sérgio de Azevedo Comissão Editorial Cadernos Metrópole 14 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012 Após a neoliberalização?* After neoliberalization? Neil Brenner Jamie Peck Nik Theodore Resumo À luz dos debates sobre as origens e implicações da crise econômica global de 2008-2009, este ensaio apresenta um arcabouço teórico para analisar processos de reestruturação regulatória no contexto do capitalismo contemporâneo. A análise gira em torno do conceito de neoliberalização, que consideramos ser uma palavra-chave para se compreender as transformações regulatórias da nossa época. Inicialmente, oferecemos uma série de explicações a respeito das definições que sustentam nossa conceituação de neoliberalização como um processo diversificado, geograficamente desigual e dependente da trajetória. Nessa base, distinguimos três dimensões dos processos de neoliberalização – experimentação regulatória; transferência interjurisdicional de políticas; e formação de regimes de normas transnacionais. Tais distinções formam a base para uma periodização esquemática de como os processos de neoliberalização têm se arraigado em várias escalas espaciais e como se estendem pela economia mundial desde a década de 1980. Também geram uma perspectiva analítica para se explorar vários cenários para formas contraneoliberalizadoras de reestruturação regulatória. Abstract Against the background of debates on the origins and implications of the global economic crisis of 2008-2009, this essay presents a theoretical framework for analyzing processes of regulatory restructuring under contemporary capitalism. The analysis is framed around the concept of neoliberalization, which we view as a keyword for understanding the regulatory transformations of our time. We begin with a series of definitional clarifications that underpin our conceptualization of neoliberalization as a variegated, geographically uneven and path-dependent process. On this basis, we distinguish three dimensions of neoliberalization processes – regulatory experimentation; interjurisdictional policy transfer; and the formation of transnational rule-regimes. Such distinctions form the basis for a schematic periodization of how neoliberalization processes have been entrenched at various spatial scales and extended across the world economy since the 1980s. They also generate an analytical perspective from which to explore several scenarios for counter-neoliberalizing forms of regulatory restructuring. Palavras-chave: neoliberalização; contraneoliberalização; experimentos regulatórios; transferência de políticas; regimes de normas. Keywords: neoliberalization; counterneoliberalization; regulatory experiments; policy transfer; rule regimes. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore Introdução Debates sobre transformações regulatórias animam os campos da economia política Na esteira da crise econômica global de 2008- heterodoxa e dos estudos críticos urbanos e 2009, muitos comentaristas proeminentes têm regionais há várias décadas, além de desem- defendido que as ideologias e práticas do ca- penhar um papel importante nas literaturas pitalismo de livre mercado, ou “neoliberalis- sobre, entre outros tópicos, pós-fordismo, glo- mo”, estão desacreditadas, e que uma nova balização, triadização, governança multinível, era de reforma regulatória, baseada no inter- financialização, redimensionamento do esta- vencionismo agressivo do estado para restrin- do, o novo regionalismo, empreendedorismo gir as forças do mercado, está se iniciando urbano e, mais recentemente, neoliberalismo/ (Altvater, 2009; Stiglitz, 2008; Wallerstein, neoliberalização. Para os propósitos deste arti- 2008). Entretanto, tais avaliações geralmente go, baseamo-nos em discussões sobre a última se baseiam em suposições insustentavelmente questão – neoliberalização – para conceituar monolíticas quanto ao sistema regulatório que processos de reestruturação regulatória no herdamos e que agora está supostamente em capitalismo pós-década de 1970 e pós-2008. crise, levando a interpretar a crise atual como Conforme argumentamos em outra obra, o uso um colapso sistêmico, análogo ao desmantela- generalizado dos conceitos de neoliberalismo mento do Muro de Berlim duas décadas atrás e neoliberalização tem sido acompanhado de (Peck et al., 2009). De maneira geral, qualquer imprecisão, confusão e controvérsia – com efei- que seja a interpretação das tendências de to, tais conceitos se tornaram rascal concepts crise contemporâneas, os principais relatos do (conceitos malandros) (Brenner et al., 2010). colapso financeiro de 2008-2009 dependem A despeito desses perigos, argumentamos que de suposições definidas, mas frequentemen- um conceito de neoliberalização rigorosamente te não investigadas, sobre as formações (ou definido pode iluminar as transformações regu- a formação) regulatórias que existiam antes latórias de nossa época. dessa última série de reestruturações induzi- Inicialmente, apresentamos uma sé- das pela crise. Por essa razão, este é um mo- rie de explicações para as definições que mento oportuno para se refletir sobre os pro- sustentam nossa conceituação de neolibe- cessos de reestruturação regulatória que se ralização. Distin gui mos suas três principais desenvolvem desde o colapso do fordismo do dimensões – (1) experimentação regulatória; Atlântico Norte, mais de 40 anos atrás. Acre- (2) transferência interjurisdicional de políticas; ditamos que tal reflexão é essencial para as e (3) formação de regimes de normas trans- atuais tentativas de decifrar padrões emergen- nacionais. Tais distinções formam a base para tes de formação de crise no capitalismo pós- uma periodização esquemática de como os 2008. Além disso, há implicações considerá- processos de neoliberalização se estenderam veis para a compreensão das paisagens urba- e se arraigaram na economia mundial. Essas nas contemporâneas, que são profundamente considerações geram uma perspectiva analí- remodeladas através das transformações e tica a partir da qual se pode explorar vários contestações regulatórias contemporâneas. cenários para formas contraneoliberalizadoras 16 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Após a neoliberalização? de reestruturação regulatória em configurações contemporâneas e futuras do capitalismo. Para os propósitos desta discussão, não oferecemos uma descrição detalhada da crise econômica global contemporânea, nem de suas implicações de médio ou longo prazo. Ao invés disso, esta análise destina-se a servir a um propósito metateórico – a saber, estimular debates sobre qual deve ser o arcabouço analítico para se abordar tais questões. Embora a nossa análise não considere os efeitos dessas transformações regulatórias Neoliberalismo em questão Desde o final da década de 1980, os debates sobre o neoliberalismo têm sido mencionados de maneira proeminente na economia política heterodoxa. Inspirados por várias vertentes do pensamento neomarxista, neogramsciano, neopolanyiano, neoinstitucionalista e pós-estruturalista, esses conceitos têm sido centrais para discussões sobre a crise da ordem capitalista no pós-guerra – denominada fordismo do Atlântico Norte, liberalismo incrustado (embedded sobre paisagens urbanas específicas, nossa liberalism), ou desenvolvimentismo nacional – abordagem possui implicações para os atuais e sobre os padrões pós-1970 de reorganização esforços para decifrá-las. Conforme argumen- institucional e espacial. Quaisquer que sejam tamos abaixo, os processos de neoliberaliza- as diferenças entre eles, contudo, todos os usos ção assumem formas específicas de acordo prevalentes da noção de neoliberalismo en- com o local dentro de cidades e cidades-re- volvem referências à ampliação tendencial da giões, mas isso tem ocorrido cada vez mais competição baseada no mercado e de proces- em um contexto georregulatório definido por sos de comodificação em direção a domínios tendências sistêmicas voltadas para reformas previamente isolados de vida político-econô- institucionais para disciplinar o mercado, pela mica. Os usos erudito e prático-político do ter- formação de teias transnacionais de transfe- mo neoliberalismo pareceriam, assim, fornecer rência de políticas orientadas para o merca- uma base inicial comprovativa da proposição do, por padrões cada vez mais profundos de de que processos de mercantilização e como- formação de crises e por ciclos acelerados de dificação de fato se ampliaram, se aceleraram e experimentação de políticas impulsionada pe- se intensificaram em décadas recentes, mais ou la crise. Contra esse pano de fundo, a análise menos após a recessão global que ocorreu em macroespacial apresentada aqui pode servir meados da década de 1970. como um ponto de referência útil não apenas Não podemos proceder, aqui, a uma para análises localizadas e sensíveis ao con- revisão das diversas posições epistemológi- texto, mas também para estratégias políticas cas, metodológicas e políticas que têm sido contra-neoliberalizadoras emergentes, tanto articuladas através dessas discussões sobre em escala urbana como supraurbana. a reestruturação regulatória pós-1970 (mas Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 17 Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore conforme Clarke, 2008; Peck, 2004; Saad-Filho em que necessariamente colidem com diversas e Johnston, 2005; assim como Brenner et al., paisagens regulatórias herdadas de formações 2010). Ao invés disso, passamos diretamente e contestações regulatórias anteriores (incluin- para um panorama de nossa própria orienta- do o fordismo, o nacional-desenvolvimentismo ção teórica, que será, então, elaborada mais e o socialismo de estado), suas formas de arti- detalhadamente em relação ao problema da culação e institucionalização são bastante he- periodização, com referência aos desafios de se terogêneas. Assim, ao invés de esperar alguma decifrar os desenvolvimentos contemporâneos forma pura, prototípica, de neoliberalização (para declarações anteriores, conforme Brenner prevalente em contextos divergentes, conside- e Theodore, 2002; Peck e Theodore, 2007; Peck ramos a diversificação – diferenciação sistêmi- e Tickell, 2002). ca geoinstitucional – como um de seus aspec- No nível mais geral, conceituamos neoli- tos essenciais e duradouros. beralização como uma dentre várias tendências De acordo com Mittelman (2000, p. 4), de mudança regulatória que foram desenca- a globalização representa “não um fenômeno deadas no sistema capitalista global desde a único, unificado, mas uma síndrome de pro- década de 1970: prioriza respostas baseadas cessos e atividades”. Sugerimos que é possível no mercado, orientadas para o mercado ou conceituar a neoliberalização de maneira aná- disciplinadas pelo mercado para problemas loga: ela também é mais bem entendida como regulatórios; esforça-se para intensificar a uma síndrome do que como uma entidade, es- comodificação em todos os domínios da vida sência ou totalidade singular. Desse ponto de social; e, frequentemente, mobiliza instrumen- vista, uma tarefa-chave para qualquer analista tos financeiros especulativos para abrir novas da neoliberalização é especificar o “padrão de arenas para a realização capitalista de lucros. atividades relacionadas [...] dentro da econo- Em nosso trabalho anterior, levantamos ques- mia política global” (Mittelman, 2000, p. 4) que tões críticas sobre explicações estruturalistas constituem e reproduzem essa síndrome em que veem a neoliberalização como um bloco lugares, locais, territórios e escalas que são, de hegemônico abrangente, e também os argu- outro modo, diversos. mentos pós-estruturalistas que enfatizam a particularidade contextual radical de práticas regulatórias e formas de subjetivação neoli- Definindo a neoliberalização beralizadoras. Em contraste, consideramos a neoliberalização uma forma diversificada de Como uma primeira abordagem a esta tarefa, reestruturação regulatória: produz diferencia- propomos a seguinte formulação: a neolibe- ção geoinstitucional em lugares, territórios e ralização representa uma tendência historica- escalas; mas faz isso sistemicamente, como um mente específica, desenvolvida de maneira de- aspecto penetrante, endêmico, de sua lógica sigual, híbrida e padronizada de reestruturação operacional básica. Concomitantemente, enfa- regulatória disciplinada pelo mercado. Cada tizamos a profunda dependência da trajetória elemento dessa afirmação necessita ser espe- dos processos de neoliberalização: na medida cificado de maneira mais precisa. 18 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Após a neoliberalização? Reestruturação regulatória disciplinada pelo 2010a). O processo de neoliberalização come- mercado. Como Polanyi (1944, pp. 140-141) çou a se desenvolver no início dos anos 1970, ● muito ironicamente observou, “a estrada para após uma fase relativamente longue durée de um mercado livre foi aberta e mantida aberta liberalismo incrustado, na qual processos de por um enorme aumento no intervencionismo mercantilização e comodificação haviam sido contínuo, centralmente organizado e controla- tendencialmente reprimidos por meio de vários do”. Analogamente, acreditamos que os pro- arranjos regulatórios globais e nacionais – por cessos de mercantilização e comodificação no exemplo, o sistema Bretton Woods e vários ti- capitalismo (esforços para ampliar a disciplina pos de intervenção estatal nacional-desenvol- de mercado) são sempre mediados através de vimentista e assistencialista. Assim entendidas, instituições do estado em uma variedade de formas especificamente neoliberalizadoras de arenas políticas (por exemplo, trabalho, dinhei- reestruturação regulatória começaram a se ro, capital, proteção social, educação, moradia, desenvolver juntamente com o que alguns cha- terra, meio-ambiente e assim por diante). Por maram de a “segunda grande transformação”, essa razão, concebemos a neoliberalização co- o processo de reestruturação capitalista mun- mo uma forma particular de reorganização re- dial que acontece desde o colapso da ordem gulatória: envolve a recalibração de modos de geoeconômica pós-Segunda Guerra Mundial governança institucionalizados, que obrigam (McMichael, 1996). Como resultado daquela coletivamente e, de modo mais geral, das re- crise, a neoliberalização surgiu como um pro- lações estado-economia, para impor, ampliar cesso dominante, senão hegemônico, de rees- ou consolidar formas mercantilizadas e co- truturação regulatória na economia mundial. modificadas de vida social. Como tal, a neo- Não seria inteiramente inadequado referir- liberalização pode ser analiticamente oposta -se a esse processo de mudança regulatória aos processos regulatórios que contrariam a orientada para o mercado simplesmente como mercantilização e a comodificação, ou àqueles “mercantilização” ou “comodificação”, uma que envolvem agendas diferentes em termos vez que, como já sugerimos, uma de suas ca- qualitativos – por exemplo, formas normativas racterísticas é o projeto de ampliar as relações de alocação coletiva de recursos e coordenação sociais baseadas no mercado e comodificadas. socioinstitucional. Contudo, optamos pelo termo neoliberalização Historicamente específica. As raízes ideoló- para sublinhar as homologias entre padrões gicas e doutrinais da neoliberalização podem pós-1970 de reestruturação regulatória e o ser encontradas no projeto liberal clássico de projeto anterior de liberalização clássica que construir mercados auto-regulados durante a estava associado ao imperialismo britânico do belle époque do imperialismo britânico do final século XIX e início do XX. Entretanto, paralelos do século XIX e início do século XX (Polanyi, com aquela época não devem ser empregados 1944), assim como nas intervenções subse- exageradamente. O processo de neoliberaliza- quentes realizadas no pós-guerra por econo- ção não representa um “retorno” a um arca- mistas do livre mercado que eram renegados bouço anterior de desenvolvimento capitalista, naquela época, como Hayek e Friedman (Peck, ou uma reinvenção contemporânea de formas ● Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 19 Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore institucionais, arranjos regulatórios ou com- de sua evolução, o “mapa em movimento” dos promissos políticos liberais clássicos (Silver e processos de neoliberalização (Harvey, 2005, Arrighi, 2003). A neoliberalização surgiu sob p. 88) tem sido diversificado e continuamente condições geopolíticas e geoeconômicas qua- rediferenciado através de uma rápida suces- litativamente diferentes, em resposta a fracas- são de projetos e contraprojetos regulatórios, sos regulatórios e lutas políticas historicamen- neoliberalizadores ou não. O desenvolvimento te específicos, e em paisagens institucionais desigual da neoliberalização não é, portanto, arraigadas. uma condição temporária, um produto de sua Desenvolvida de maneira desigual. A neolibe- institucionalização “incompleta”, mas uma ralização é geralmente associada a certos ex- de suas características constitutivas. A dife- perimentos regulatórios paradigmáticos – por renciação geoinstitucional é, ao mesmo tem- exemplo, privatização, desregulamentação, li- po, um meio e um produto dos processos de beralização do comércio, financeirização, ajuste neoliberalização. estrutural, reforma da previdência e tratamento ● de choque monetarista. Porém, por mais que beralização retrabalhem sistematicamente as esses projetos de reorganização regulatória paisagens regulatórias herdadas, não devem tenham se tornado prototípicos, sua prolife- ser vistos como representando uma totalidade ração no capitalismo pós-1970 não pode ser que abarque todos os aspectos da reestrutura- compreendida através de simples modelos de ção regulatória em qualquer contexto, local ou “difusão”. Pois, ao invés de envolver a cons- escala. Ao invés disso, a neoliberalização é um trução de um estado de neoliberalismo total- dentre vários processos concorrentes de rees- mente formado, que funcione coerentemente, truturação regulatória que têm sido articula- “semelhante a um regime”, e que tenha se dos no capitalismo pós-1970 (Jessop, 2002; expandido progressivamente para abranger o Streeck e Thelen, 2005) – embora seja um pro- espaço regulatório global, o processo de neo- cesso que venha tendo consequências político- liberalização tem sido articulado de maneira -institucionais particularmente duradouras e desigual em lugares, territórios e escalas. O multiescalares. desenvolvimento desigual da neoliberalização ● resulta, por um lado, da contínua colisão entre nifesta em uma forma pura, como um todo projetos de neoliberalização contextualmente regulatório abrangente. As tendências de neo- específicos e em constante evolução, e de ar- liberalização só podem ser articuladas em mo- ranjos político-institucionais herdados, em es- dalidades incompletas, híbridas, que podem se cala global, nacional ou local. Ao mesmo tem- cristalizar em certas formações regulatórias, po, através dessa colisão, os processos de neo- mas que são, não obstante, contínua e ecleti- liberalização retrabalham formas herdadas de camente retrabalhadas de maneiras contex- organização regulatória e espacial, incluindo tualmente específicas. Consequentemente, as aquelas das próprias instituições estatais, para evidências empíricas que ressaltam o caráter produzir novas formas de diferenciação geoins- paralisado, incompleto, descontínuo ou dife- titucional. Consequentemente, a cada estágio renciado de projetos para impor as regras do ● 20 Tendência. Embora os processos de neoli- Híbrida. A neoliberalização nunca se ma- Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Após a neoliberalização? mercado, ou sua coexistência ao lado de projetos potencialmente antagonísticos (por exemplo, a democracia social), não fornecem base Quatro implicações metodológicas suficiente para se questionar suas dimensões neoliberalizadas e neoliberalizadoras. Essa conceituação de neoliberalização possui Padronizada. Os processos de neoliberali- várias implicações metodológicas que contras- zação inicialmente ganharam impulso e tam fortemente com certas pressuposições e momentum em resposta a uma gama de ten- orientações interpretativas que têm permeado dências de crise herdadas da ordem político- discussões acadêmicas recentes (Brenner et al., -econômica do pós-guerra. Durante a década 2010): de 1970, os processos de neoliberalização re- ● trabalharam paisagens keynesianas nacionais- neoliberalização a uma homogeneização mun- -desenvolvimentistas através de uma série de dial de sistemas regulatórios, pretendemos que colisões entre arcabouços institucionais her- nossa conceituação ilumine as maneiras pelas dados e projetos de reorganização regulatória quais as formas disciplinadas pelo mercado de recentemente mobilizados. Tais colisões, e suas reestruturação regulatória na verdade intensi- consequências político-institucionais duradou- ficaram a diferença geoinstitucional. Segue-se ras, embora imprevisíveis, há muito tempo ani- a isso que nem mesmo as expressões político- mam o desenvolvimento desigual dos proces- -institucionais de neoliberalização mais hiper- sos de neoliberalização. No entanto, é crucial trofiadas – como aquelas exploradas na aná- perceber que, embora os processos de neolibe- lise de Naomi Klein (2007) sobre a “doutrina ralização tenham sido articulados de maneira de choque” neoliberal no Chile pós-golpe e desigual, não envolveram um “acúmulo” for- no Iraque ocupado – deveriam ser igualadas tuito de experimentos regulatórios desconecta- a expectativas de simples convergência em dos, contidos em contextos. Ao invés disso, os uma ordem de mercado unificada e singular, à processos de neoliberalização geraram efeitos maneira da formulação jornalística de Thomas significativos, marcadamente padronizados e Friedman (2005) a respeito da globalização da cumulativos sobre a configuração georregu- terra plana; latória do capitalismo. Desse ponto de vista, ● a trajetória dos processos de neoliberalização posta fornece uma base a partir da qual é pos- desde a década de 1970 pode ser mais bem sível compreender as trajetórias evolucionárias entendida como um processo de articulação re- de médio e longo prazo dos próprios projetos lacional semelhante a uma onda, no qual cada regulatórios disciplinados pelo mercado, com série sucessiva de projetos neoliberalizadores referência particular aos impactos cumulativos transforma as configurações institucionais e erráticos e frequentemente contraditórios que ideológicas nas quais séries subsequentes de produzem sobre as paisagens políticas, institu- reestruturação regulatória se desenvolvem. cionais e discursivas que aspiram reorganizar. ● Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 ao contrário de acadêmicos que igualam a a conceituação de neoliberalização aqui pro- 21 Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore Os processos de neoliberalização derivam mui- próprias condições socioinstitucionais e polí- to de seu ímpeto e de sua lógica precisamente tico-econômicas necessárias para sua imple- das paisagens regulatórias desiguais que com- mentação bem-sucedida (Gill, 2003; Harvey, bativamente encontram, e subsequentemen- 1995). Consequentemente, a falha das políticas te refazem, de uma maneira dependente da não é apenas central para o modus operandi trajetória, embora experimental. Isso significa, exploratório dos processos de neoliberalização; por sua vez, que a diferenciação espacial e os fornece um ímpeto adicional e poderoso para caminhos evolucionários dos processos de neo- sua proliferação acelerada e reinvenção contí- liberalização não podem ser compreendidos nua em locais e escalas. Assim, é crucial notar como uma simples difusão territorial na qual que a falha endêmica das políticas na verda- um modelo pré-fornecido é instalado, ampliado de tende a estimular outras séries de reformas e/ou replicado em uma área cada vez maior; dentro de parâmetros políticos e institucionais dada a nossa ênfase na dependência da amplamente neoliberalizados: desencadeia a trajetória dos processos de neoliberalização, reinvenção contínua dos repertórios de polí- nossa abordagem sublinha a necessidade de ticas neoliberais, ao invés de seu abandono investigações de padrões de experimentação (Peck, 2010a). ● regulatória que sejam sensíveis ao contexto. Contudo, nossa conceituação pode ser distinguida das abordagens puramente “de baixo para cima”, indutivas ou conscientemente “rasas” a estudos de neoliberalização que são, às vezes, associados a modos pós-estruturalistas Em direção a um “mapa em movimento” da neoliberalização de análise. Conforme entendido aqui, os espaços de mudança regulatória – unidades jurisdi- Harvey (2005, p. 87) ressaltou as dificuldades de cionais que abarcam bairros, cidades, regiões, se construir um “mapa em movimento do pro- estados nacionais e zonas multinacionais – são gresso da neoliberalização no cenário mundial relacionalmente interconectados dentro de um desde 1970”. O autor enfatiza especialmente o sistema de governança transnacional, senão caráter parcial e desigual dos realinhamentos global. Os processos de neoliberalização assu- das políticas neoliberais nos estados nacionais mem, necessariamente, formas contextualmen- individuais; a frequência de “inversões lentas” te específicas e dependentes da trajetória, mas e mobilizações políticas contrárias em resposta raramente se originam de um único local; suas a investidas neoliberais iniciais, mais radicais e consequências político-institucionais geralmen- induzidas pela crise; e as vicissitudes das lutas te transcendem qualquer contexto, e há seme- pelo poder político que se desenrolam junta- lhanças de família significativas entre eles. mente com mudanças de políticas neoliberali- finalmente, concebemos os processos de zadoras e transformações institucionais, além neoliberalização como sendo intrinsecamente das tendências de crise associadas. O desafio, contraditórios – isto é, envolvem estratégias propõe Harvey (2005, p. 87), é “entender co- regulatórias que frequentemente minam as mo as transformações locais se relacionam a ● 22 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Após a neoliberalização? tendências mais amplas”, localizando as “cor- caráter constitutivamente desigual dos proces- rentes turbulentas do desenvolvimento geográ- sos de neoliberalização, conforme delineado fico desigual” que são produzidas através dos acima. Embora descrições globalistas tenham processos de neoliberalização. enfatizado produtivamente a capacidade de Como enfrentar esse desafio? Como se- atores e instituições hegemônicos de impor ria um mapa em movimento dos processos de parâmetros disciplinados pelo mercado so- neoliberalização que ocorreram durante os úl- bre instituições subordinadas e configurações timos 30 anos? Com algumas exceções dignas regulatórias, relatos sintonizados localmen- de nota, as literaturas existentes sobre neolibe- te e regionalmente têm focado, em geral, as ralização têm produzido não mais do que res- transformações regulatórias que parecem ser postas parciais a esse desafio, principalmente circunscritas a territórios subnacionais par- devido a suas conceituações inadequadas de ticulares ou nichos escalares. O conceito de desenvolvimento regulatório desigual (Brenner neoliberalização propiciou que pesquisadores et al., 2010). Embora tenham identificado as em ambas as vertentes desta discussão vin- características-chave das paisagens perpe- culassem suas análises a metanarrativas mais tuamente mutantes da mudança regulatória amplas sobre formas pós-1970 de reestrutura- pós-1970 disciplinada pelo mercado, a maioria ção e reorganização regulatória induzidas pela das explicações não se preocupa muito em re- crise. Contudo, esse conceito é frequentemente lacionar esses elementos uns aos outros, nem empregado imprecisamente ou sem a devida às “correntes mais amplas de desenvolvimento reflexão, como se fosse um explanans autoevi- geográfico desigual” às quais Harvey se refere. dente, ao passo que os próprios processos aos Por exemplo, a maior parte da literatura quais se refere requerem interrogação e expla- sobre neoliberalização ainda focaliza os reali- nação continuadas. nhamentos de políticas em nível nacional. Tais O trabalho recente de Simmons, Dobbin relatos frequentemente aludem a contextos e Garrett (2008) aborda muito mais explici- geoeconômicos e geopolíticos, mas tendem tamente a questão de como os processos de a pressupor a suposição metodologicamente neoliberalização evoluíram ao longo do tempo nacionalista de que os estados nacionais repre- e do espaço. Sua análise examina os diferen- sentam a unidade natural ou primária da trans- tes impactos de quatro mecanismos causais formação regulatória (para críticas, cf. Brenner, distintos – coerção, competição, aprendizado 2004; Peck e Theodore, 2007). Tais tendências e emulação – ao explicarem o que os autores metodologicamente nacionalistas têm sido caracterizam como a “difusão” do liberalismo neutralizadas com sucesso quando a neolibera- econômico no final do século XX (Simmons et lização é tratada como um bloco globalmente al., 2008, p. 2, passim). Entretanto, a preocupa- hegemônico, assim como em trabalhos mais ção dos autores em adjudicar entre esses me- recentes sobre a neoliberalização da governan- canismos causais é acompanhada de uma teo- ça urbana e regional. No entanto, por mais va- rização pouco desenvolvida do próprio proces- liosos que sejam tais engajamentos, nenhuma so de neoliberalização, que é retratado como vertente da discussão abordou plenamente o uma “disseminação” de protótipos de políticas Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 23 Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore orientadas para o mercado em territórios na- qualquer esforço para se construir o “mapa em cionais, dentro de um sistema internacional movimento” da neoliberalização visualizado interdependente (para uma crítica bem-argu- por Harvey (2005).1 mentada, cf. Peck, 2010b). Além das tendências metodologicamente nacionalistas dessa abordagem, a metáfora da difusão contém sérias limitações como base para se compreender as Três dimensões analíticas geografias desiguais dos processos de neoliberalização durante os últimos 40 anos. A neo- Para abordar essas tarefas, distinguimos três liberalização não foi simplesmente inventada dimensões analíticas centrais dos processos de em um local (nacional) e depois projetada – neoliberalização:2 experimentos regulatórios: projetos específi- por coerção, competição, aprendizado, imitação ● ou qualquer outro mecanismo – em círculos cos de locais, territórios e escalas, elaborados progressivamente maiores de influência territo- para impor, intensificar ou reproduzir modalida- rial. Ao invés disso, “assemelha-se mais a um des de governança disciplinadas pelo mercado. regime multipolar de (re)mobilização contínua, Tais projetos são necessariamente dependentes que é animado e reanimado tanto pelas falhas da trajetória, e geralmente envolvem tanto um das ondas anteriores de intervenção e regula- momento destrutivo (esforços para reverter ar- ção inadequadas, como por visões estratégicas ranjos regulatórios não-mercado, antimercado, inovadoras” (Peck, 2010b, p. 29). ou que restringem o mercado) como um mo- Assim compreendidas, as geografias da mento criativo (estratégias para promover uma neoliberalização não emanam para fora a par- nova infraestrutura político-institucional para tir de um ponto de origem para “preencher” formas regulatórias mercantilizadas) (Brenner e outras zonas de regulação geograficamente Theodore, 2002; Peck e Tickell, 2002). Esse as- dispersas. Ao invés disso, como enfatizamos pecto da neoliberalização tem sido investigado em nosso esboço, estamos lidando com um de forma abrangente pela vasta literatura ba- processo multicêntrico e dependente da tra- seada em estudos de caso sobre exemplos na- jetória, cuja dinâmica evolucionária e conse- cionais, regionais e locais da forma regulatória quências político-institucionais transformam neoliberal. continuamente as condições globais, nacionais ● e locais sob as quais as estratégias subsequen- de políticas: mecanismos institucionais e re- tes de reestruturação regulatória emergem e des de compartilhamento de conhecimentos se desenvolvem em todas as escalas espaciais. através dos quais protótipos de políticas neoli- Também é crucial perceber que os processos de berais circulam por locais, territórios e escalas, neoliberalização são espacialmente desiguais, geralmente transnacionalmente, para serem temporalmente descontínuos e permeados por reempregados em outro local. Ao estabelecer tendências experimentais, híbridas e frequente- certos tipos de estratégias regulatórias como mente autoenfraquecedoras. Acreditamos que “prototípicas”, tais redes aumentam a legiti- tais considerações devem estar no centro de midade ideológica dos modelos de políticas 24 sistemas de transferência interjurisdicional Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Após a neoliberalização? neoliberais, ao mesmo tempo em que ampliam e transnacionais, esse aspecto da neoliberali- sua disponibilidade como “soluções” pronta- zação também foi investigado por Bockman mente acessíveis para qualquer problema e e Eyal (2002) no contexto da Europa Oriental, crise regulatórios contextualmente específicos. por Dezalay e Garth (2002) no contexto latino- Contudo, até mesmo as formas mais aparente- -americano e, em um nível mais geral, pela lite- mente “prototípicas” de políticas neoliberais ratura sobre transferência de “políticas rápidas’ são transformadas qualitativamente através (Peck, 2010b; Peck e Theodore 2001, 2010). de sua circulação por essas redes. Embora pa- ● reçam estar prontamente disponíveis para uma jos institucionais em larga escala, arcabouços transferência suave em uma rede circulatória regulatórios, sistemas legais e revezamentos que se move rapidamente e, portanto, pare- de políticas que impõem as “regras do jogo” çam ser capazes de promover uma homoge- em formas contextualmente específicas de neização do espaço regulatório, tais mobilida- experimentação de políticas e reorganização des das políticas permanecem incrustadas em regulatória, enquadrando, assim, as ativida- contextos político-institucionais que modelam des de atores e instituições em parâmetros sua forma, conteúdo, recepção e evolução, político-institucionais específicos. Esse aspec- geralmente levando a resultados imprevisí- to “parametrizante” da neoliberalização foi veis, não-intencionais e intensamente diversi- analisado por Gill (2003) em sua descrição ficados (Peck, 2010b). Assim, no contexto dos do novo constitucionalismo. Para Gill, o novo processos de neoliberalização, a transferência constitucionalismo representa um projeto para interjurisdicional de políticas é um mecanismo institucionalizar preceitos de políticas neolibe- importante, não apenas de consolidação espa- rais em longo prazo, e globalmente, por meio cial, mas também de diferenciação institucio- de vários dispositivos legais supranacionais. nal. Uma das primeiras investigações sobre as Trabalha para obrigar os estados nacionais e formas neoliberalizadoras da transferência de todas as outras instituições políticas subordina- políticas foi o estudo clássico de Tabb (1982) das a adotar preceitos de políticas neoliberali- sobre as políticas de austeridade fiscal na ci- zadas em esferas regulatórias importantes (por dade de Nova York durante a década de 1970. exemplo, comércio, investimento de capitais, Esse estudo esboça paradigmaticamente como trabalho, direitos de propriedade).3 Trabalhos uma resposta localmente específica a uma crise recentes de Holman (2004) e Harmes (2006), administrativa foi transformada em um mode- juntamente com o estudo de Peet et al. (2003) lo de reforma mais geral, subsequentemente sobre a OMC, o FMI e o Banco Mundial, tam- “exportada” para outros municípios atingidos bém ressaltaram o papel dos arranjos de go- pela crise nos EUA. O estudo de Peck (2001) es- vernança multiníveis na construção, imposição boça uma narrativa formalmente análoga, mas e reprodução de arranjos regulatórios neoli- transnacional, com referência às geografias da beralizados e disciplinados pelo mercado em transferência de políticas rápidas de assistên- arenas nacionais e subnacionais. Tais regimes cia ao trabalho em regiões e estados nacionais de normas multiníveis servem para promover desde a década de 1980. Em escalas nacionais “mecanismos institucionais circunscritivos para Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 regimes de normas transnacionais: arran- 25 Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore separar o econômico e o político sob condições A Figura 1 apresenta uma periodização de democracia” (Harmes, 2006, p. 732). Dessa estilizada dos processos de neoliberalização forma, servem para criar e manter parâmetros que deriva das distinções introduzidas acima. precisos e disciplinados pelo mercado ao redor Nessa figura, as três dimensões da reestrutura- de formas subordinadas de contestação de po- ção regulatória não mais servem como catego- líticas e desenvolvimento institucional. rias ideais-típicas, mas são agora mobilizadas para iluminar a evolução histórico-geográfica dos próprios processos de neoliberalização. A Paisagens inquietas de neoliberalização linha superior da figura apresenta cada uma das três distinções especificadas acima, entendidas como dimensões interligadas da reestruturação regulatória sob condições de neoli- Qualquer mapeamento dos processos de neo- beralização em andamento. A primeira coluna liberalização derivado dessas distinções con- especifica uma linha do tempo genérica, basea- trastaria fortemente com os modelos difusio- da em décadas, de 1970 até a década de 2000. nistas que prevalecem na literatura ortodoxa, As células sombreadas denotam as dimen- os quais são estreitamente alinhados à anteci- sões da reestruturação regulatória nas quais, pação da convergência de políticas e a várias segundo a nossa leitura, a neoliberalização formas de nacionalismo metodológico. Mas tal tem sido mais pronunciada desde sua elabo- mapeamento não poderia, por si só, iluminar ração institucional inicial na década de 1970. cada aspecto concreto das paisagens da neo- Concomitantemente, as células brancas nos liberalização, em diferentes contextos espaciais quadrantes superiores da figura denotam zo- e temporais. No entanto, em um nível mais abs- nas de atividade regulatória que, durante a(s) trato, tal abordagem pode servir como uma ba- década(s) correspondente(s) especificada(s) na se analítica a partir da qual interpretar as traje- primeira coluna foram largamente configura- tórias criativamente destrutivas e o desenvolvi- das de acordo com princípios de restrição de mento desigual dos processos de neoliberaliza- mercado (keynesianismo, “constitucionalismo ção desde o início da década de 1970. E, como progressivo”).4 A cada década sucessiva, as zo- sugerimos abaixo, também há implicações nas sombreadas na figura são alargadas para úteis para se decifrar possíveis alternativas às incluir uma coluna adicional. Isso denota o que formas regulatórias neoliberalizadas na estei- consideramos uma mudança tendencial, ma- ra da crise econômica global de 2008-2009. croespacial, de formas desarticuladas a formas Aqui, esboçamos essas manobras interpretati- aprofundadas de neoliberalização.5 Para simpli- vas com pinceladas relativamente grossas; sua ficar, delineamos essa série de transformações elaboração e refinamento concretos aguardam década a década, mas aqui, também, uma es- pesquisa e análise mais detalhadas. pecificação mais precisa é necessária. 26 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Após a neoliberalização? Conforme retratado na segunda linha transnacionais (derivadas da economia austría- da Figura 1, a neoliberalização desarticulada ca, do Ordoliberalismo, Manchesterismo e da cristalizou-se durante a década de 1970, e se economia da Escola de Chicago), as paisagens baseou predominantemente em formas de institucionais com as quais colidiram haviam experimentação regulatória disciplinada pelo sido moldadas por agendas regulatórias opos- mercado específicas de locais, territórios e es- tas, intervencionistas de estado e redistributi- calas. Obviamente, a doutrina neoliberal havia vas – incluindo, principalmente, o keynesianis- surgido durante as décadas de 1930 e 1940, mo e o nacional-desenvolvimentismo. “Locais” quando foi mobilizada predominantemente conjunturalmente específicos para esses expe- como uma crítica à ordem político-econômica rimentos regulatórios neoliberalizadores incluí- keynesiana, que se consolidava (Peck, 2010a). ram o Chile pós-nacionalização de Pinochet, a Contudo, foi apenas no início da década de Grã-Bretanha pós-resgate do FMI, os EUA em 1970 que os experimentos de neoliberalização processo de desindustrialização de Reagan e em tempo real foram elaborados, embora em várias cidades e regiões atingidas pela crise no um contexto geoeconômico largamente hostil, mundo capitalista mais antigo, que estavam definido por arranjos regulatórios keynesianos tentando atrair investimento de capital trans- posteriores e estratégias de gerenciamento de nacional “livre” por meio de várias formas de crise. Embora baseadas em redes intelectuais arbitragem regulatória. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 27 Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore Figura 1 – Da neoliberalização desarticulada à neoliberalização profunda/aprofundada: um esboço estilizado Formas contextualmente específicas de experimentação regulatória Neoliberalização desarticulada Década de 1970 Os projetos de neoliberalização assumem formas específicas de lugares, territórios e escalas em um contexto geoeconômico ‘hostil’, ainda definido por arranjos regulatórios keynesianos e tendências emergentes de crises Sistemas de transferência interjurisdicional de políticas Intensificação de formas neokeynesianas de transferência transjuridicional de políticas em resposta à volatilidade geoeconômica penetrante, especialmente na zona da OCDE Tendência de surgimento de formas neoliberalizadoras de transferência de políticas em vetores geopolíticos intersticiais (e.g. de Chicago para Santiago) Aceleração das críticas ideológicas às doutrinas econômicas keynesianas: sinais cada vez mais evidentes de crise sistêmica no regime de normas internacional do liberalismo incrustado do pós-guerra Intensificação contínua das formas impulsionadas pelo mercado de experimentação regulatória e reforma institucional em várias escalas espaciais e em zonas estratégicas (e.g. EUA, Reino Unido, América Latina) Década de 1980 Regimes de normas e processos de parametrização Tendência de enfraquecimento/exaustão das redes neokeynesianas de transferência de políticas, em conjunto com buscas intensamente contestadas por novas ‘correções institucionais’ para resolver crises georregulatórias persistentes Tendência ao adensamento, transnacionalização, recursão mútua, integração programática e coevolução de redes de políticas orientadas para experimentos regulatórios e reformas institucionais impulsionados pelo mercado (e.g. monetarismo, liberalização, privatização, empreendedorismo urbano, governança reinventada) Tendência à destruição do ‘constitucionalismo progressivo’ em escalas globais, supranacionais e nacionais Tendência à consolidação de um ‘novo constitucionalismo’ pela redefinição impulsionada pelo mercado de várias instituições regulatórias globais, supranacionais e nacionais Neoliberalização Profunda/Aprofundada Sendo ou não explicitamente impulsionadas pelo mercado ou restritoras do mercado, as formas contextualmente específicas da experimentação regulatória e da reforma institucional são cada vez mais moldadas dentro de parâmetros amplamente neoliberalizados ou das ‘regras do jogo’ Década de 1990 Sistemas neoliberalizados de transferência de políticas são cada vez mais mobilizados para abordar as tendências de crise e as contradições engendradas através de séries anteriores de reestruturação regulatória impulsionada pelo mercado Arcabouços institucionais macroespaciais passam a ser remodelados em termos neoliberalizados – parâmetros baseados no mercado são, assim, cada vez mais impostos a escalas subordinadas de experimentação regulatória Nota: as células sombreadas denotam as dimensões da reestruturação regulatória nas quais as tendências de neoliberalização têm sido mais pronunciadas. Mesmo nas células sombreadas, contudo, outras formas de reestruturação regulatória coexistem junto a tendências de neoliberalização. 28 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Após a neoliberalização? Durante a década de 1980, uma nova novos revezamentos políticos e extrajurisdicio- fronteira de neoliberalização foi aberta quando nais foram construídos. Tais redes de políticas um repertório de modelos de políticas neolibe- rápidas foram reforçadas no final da década rais começou a circular transnacionalmente e a de 1980, logo após a crise da dívida latino- adquirir o status de soluções “milagrosas” para -americana e, subsequentemente, o colapso qualquer problema regulatório e tendência de do Bloco Soviético. A formação da neolibera- crise (Figura 1, fileira 2). lização desarticulada foi, assim, transformada Embora isso tenha ocorrido em parte em uma formação organizada em rede e or- através de uma “colonização” de redes exis- questrada transnacionalmente de estratégias tentes e neokeynesianas de transferência de de reformas de políticas mutuamente recursi- políticas (por exemplo, no OCDE, Banco Mun- vas e interreferenciais. Nessas circunstâncias, dial e FMI), também envolveu a construção de os projetos de neoliberalização não mais sur- novos circuitos interjurisdicionais para a pro- giam como exemplos relativamente isolados moção, legitimação e entrega dos modelos de de experimentação regulatória disciplinada políticas neoliberais, mediadas por um quadro pelo mercado, alojados em um ambiente polí- cada vez mais influente de peritos e líderes po- tico-econômico hostil. Ao invés disso, padrões líticos com habilidades técnicas, como os infa- de influência, coordenação e troca recíprocas mes Chicago Boys. Por meio de uma série de foram estabelecidos entre programas de refor- manobras, manipulações, negociações e lutas ma neoliberalizadores em contextos e escalas do tipo tentativa-e-erro, muitos dos principais jurisdicionais diversos. Cada vez mais, tais pro- experimentos regulatórios neoliberalizadores gramas foram interconectados recursivamente da década de 1970 – como privatização, finan- para acelerar, aprofundar e intensificar sua cir- ceirização, liberalização, assistência ao traba- culação e implementação transnacionais. lho e empreendedorismo urbano – adquiriram, Esse aprofundamento da formação da subsequentemente, algo próximo ao status neoliberalização consolidou-se ainda mais du- “prototípico”, e se tornaram pontos de refe- rante a década de 1990, quando as agendas de rência importantes para projetos posteriores reformas disciplinadas pelo mercado foram ins- de neoliberalização. Formas neoliberalizadoras titucionalizadas em escala mundial através de de reestruturação regulatória foram, assim, uma série de reformas e rearranjos jurídico-ins- mobilizadas em diversas arenas de políticas titucionais mundiais, multilaterais, multiníveis e por instituições nacionais, regionais e locais, supranacionais. Essa tendência é retratada na não apenas na América do Norte e na Europa linha inferior, totalmente sombreada, da Figu- Ocidental, mas também em um patchwork de- ra 1, que delineia as tendências de aprofunda- sigual e globalmente disperso de estados pós- mento da neoliberalização dentro de cada uma -desenvolvimentais e zonas pós-Comunistas da das três principais dimensões da reestruturação América Latina, Sul da Ásia e África subsaaria- regulatória, agora incluindo aquela dos regi- na, incluindo Europa Oriental e Ásia. Para fa- mes de normas e processos de parametrização. cilitar a circulação, imposição e legitimação de Antes desse período, instituições regulatórias estratégias de reforma baseadas no mercado, do pós-guerra, como o FMI, o Banco Mundial, Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 29 Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore o GATT e, até o início da década de 1970, o são projetados para impor parâmetros disci- acordo de Bretton Woods, haviam estabelecido plinados pelo mercado a instituições e forma- um arcabouço amplamente keynesiano para a ções políticas nacionais e subnacionais, talvez produção e o comércio mundiais, um regime de possa ser considerada uma das consequências normas que tem sido descrito como “liberalis- de maior alcance das últimas três décadas de mo incrustado” (Ruggie, 1982) ou “constitucio- reforma político-econômica neoliberalizadora. nalismo progressivo” (Gill, 2003). Embora tais As cartografias dinâmicas da neolibe- arranjos tenham sido desestabilizados durante ralização aqui esboçadas envolvem rastrear as décadas de 1970 e 1980, somente na déca- sistematicamente o desenvolvimento desigual da de 1990 um regime de normas pós-keyne- e a circulação transnacional dos modelos de siano, neoliberalizado e global foi consolidado. políticas neoliberalizadas, além de seus impac- Através da construção do redesenho discipli- tos diversificados, dependentes da trajetória e nado pelo mercado dos arranjos institucionais contextualmente específicos, em locais, territó- globais e supranacionais, incluindo-se desde a rios e escalas diversos. Contudo, embora esse OCDE, o Banco Mundial e o FMI até a OMC, desenvolvimento desigual dos processos de a CE pós-Maastricht e o NAFTA, entre outros, neoliberalização tenha sido claramente essen- os processos de neoliberalização passaram a cial para a paisagem global da reestruturação impactar e reestruturar os próprios arcabou- regulatória pós-1970, representa apenas uma ços geoinstitucionais que governam as formas camada dentro de um processo multidimensio- nacionais e subnacionais de experimentação nal de destruição criativa institucional e espa- regulatória. Essa configuração geoinstitucional cial. Pois, como indica a linha inferior da Figura tendencialmente neoliberalizada é frequente- 1, os processos de neoliberalização também mente referida como o “Consenso de Washing- transformaram os próprios arcabouços geoins- ton”, mas seus elementos regulatórios e suas titucionais dentro dos quais o desenvolvimento geografias político-econômicas não podem ser regulatório desigual se desenrola, fazendo com reduzidos a um projeto hegemônico puramen- que formas contextualmente específicas de ex- te baseado nos EUA. Ao invés disso, o “novo perimentação regulatória e transferência inter- constitucionalismo” associado ao regime de jurisdicional de políticas sejam canalizadas ao normas global, neoliberalizado e ascendente longo de caminhos com tendência a serem dis- também depende de acordos de condiciona- ciplinados pelo mercado. Esse regime de nor- lidade impostos pela OMC; órgãos regulató- mas certamente não diminuiu nem dissolveu a rios supranacionais e zonas regionais de livre dependência endêmica da trajetória e a espe- comércio, como a CE, NAFTA, CAFTA, APEC e cificidade contextual dos projetos de reforma ASEAN; organizações multinacionais como o neoliberalizadores. Porém, transformou qualita- G8 e a OCDE; assim como órgãos econômicos tivamente o que poderia ser chamado o “con- globais quase independentes, como o Banco texto do contexto”, isto é, o terreno político, de Compensações Internacionais (Gill, 2003). institucional e jurídico dentro do qual os cami- A consolidação desses regimes de normas nhos local, regional e nacionalmente específi- neoliberalizados globais e supranacionais, que cos da reestruturação regulatória são forjados. 30 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Após a neoliberalização? Acreditamos que nenhum mapa em movimento regulatória. Conforme indicado pelo padrão da neoliberalização pode ser completo se não sombreado na figura, cada um dos quatro ce- der atenção a esses arcabouços macroespaciais nários envolve um grau diferente de neolibera- e parâmetros político-institucionais, pois têm lização, definido, em cada caso, com referên- implicações cruciais para os processos contex- cia a uma combinação entre as três dimensões tualmente situados de experimentação regula- listadas na linha superior. tória, sejam eles disciplinados pelo mercado ou controladores do mercado. O cenário da neoliberalização zumbi é retratado na primeira linha. Nesse cenário, apesar de suas consequências disruptivas e destrutivas, a crise econômica global de 2008-2009 Cenários de contraneoliberalização não mina significativamente as tendências de neoliberalização das últimas três décadas (Peck, 2009). O regime de normas neoliberalizado que havia sido consolidado durante a As trajetórias de médio e longo prazo dos pa- década de 1990 e o início da década de 2000 drões contemporâneos da reestruturação regu- pode ser recalibrado ou reconstituído para latória são inerentemente imprevisíveis; neces- restringir certas formas de especulação finan- sitam ser iniciadas através de lutas incrustadas ceira, mas sua orientação básica em direção em conjunturas específicas, provocadas pelas à imposição de parâmetros disciplinados pelo contradições das primeiras ocorrências de neo- mercado sobre economias supranacionais, na- liberalização. Todavia, as considerações acima cionais, regionais e locais permanece dominan- sugerem uma abordagem para confrontar tais te. A ideologia neoliberal ortodoxa é cada vez questões – uma abordagem que dê atenção, mais questionada, mas a maquinaria política simultaneamente, a choques regulatórios glo- da disciplina de mercado imposta pelo estado bais e suas ramificações em locais, territórios permanece essencialmente intacta; as agendas e escalas específicos, e que, ao mesmo tempo, de políticas sociais e econômicas continuam evite modelos dualísticos de transição e decla- a ser subordinadas à prioridade de manter a rações a respeito da morte do neoliberalismo. confiança do investidor e uma atmosfera boa Esboçamos aqui vários cenários possíveis para para os negócios; e as agendas de políticas co- as trajetórias futuras da reestruturação regula- mo livre comércio, privatização, mercados de tória. Esses são resumidos na Figura 2. trabalho flexíveis e competitividade territorial A Figura 2 está organizada em parale- urbana continuam a ser tidas como certas. Nes- lo à Figura 1, com exceção de que a posição se cenário, como propõe Bond (2009, p. 193), das células sombreadas que retratam as três o resultado mais provável da atual crise geo- dimensões da neoliberalização foi inverti- econômica é um “neoliberalismo e um impe- da. A linha superior apresenta cada uma das rialismo relegitimados”. Consequentemente, três dimensões da neoliberalização; a coluna há um maior arraigamento dos arranjos re- mais à esquerda lista quatro cenários distintos gulatórios disciplinados pelo mercado, uma para os futuros caminhos da reestruturação maior lubrificação e aceleração dos sistemas Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 31 Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore neoliberalizados de transferência interjurisdi- maior das formas neoliberalizadas de experi- cional de políticas e um arraigamento ainda mentação regulatória em diferentes contextos. Figura 2 – Contraneoliberalização: caminhos e cenários futuros Regulatória Políticas Parametrização A ideologia neoliberal ortodoxa é gravemente abalada, mas há uma neoliberalização contínua de cada uma das três dimensões da reestruturação regulatória, frequentemente por meios tecnocráticos. Cenário 1: neoliberalização zumbi As tendências de crise e as falhas dos arranjos regulatórios impulsionados pelo mercado contribuem para um arraigamento ainda maior dos projetos de neoliberalização como “soluções” putativas a dilemas regulatórios persistentes em escalas, territórios e contextos Neoliberalização contínua de sistemas de transferência de políticas e regimes de normas transnacionais Cenário 2: contraliberalização desarticulada Cenário 3: contra-liberalização orquestrada Tendência à mobilização de experimentos regulatórios redistributivos, restritores do mercado e/ou regressivos em contextos dispersos e desarticulados, em escalas locais, regionais e nacionais Os projetos de contraliberalização permanecem relativamente fragmentados, desconectados e insuficientemente coordenados – não se infiltraram significativamente em arenas institucionais multilaterais, supranacionais ou globais Regimes de normas macroespaciais continuam a ser dominados pela lógica do mercado, apesar de críticas persistentes realizadas a partir de locais extrainstitucionais e de “instâncias inferiores” (e.g. o movimento de justiça global) Intensificação da orquestração, recursão mútua e coevolução tendencial de experimentos regulatórios redistributivos e restritores do mercado em contextos cada vez mais interligados Adensamento, intensificação e ampliação das redes de transferência de políticas com base em alternativas (progressivas ou regressivas) ao regime de mercado Neoliberalização continuada dos regimes de normas: os projetos de contraliberalização podem começar a se infiltrar em instituições macroespaciais que estabelecem as regras (e.g. Banco Mundial, União Europeia), mas não conseguem reorientar suas tendências básicas voltadas ao mercado Intensificação continuada de (formas progressivas ou reacionárias de) experimentação regulatória redistributiva, socializadora, reinscrustadora e restritora do mercado Cenário 4: socialização profunda Elaboração contínua e consolidação transnacional de formas de transferência transjuridicional de políticas que são redistributivas, socializadoras e restritoras do mercado Desestabilização/desmantelamento de regimes de normas neoliberais: construção de arcabouços alternativos, restritores do mercado, redistributivos e socializadores para a organização regulatória macroespacial Nota: As células sombreadas denotam as esferas da reestruturação regulatória nas quais a neoliberalização seria mais pronunciada. 32 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Após a neoliberalização? Em um segundo cenário, a contraneolibe- neoliberalizada. Mas, a menos que estejam in- ralização desarticulada, um regime de normas terconectadas em lugares, territórios e escalas, neoliberalizado e os sistemas associados de e ligadas a recalibrações institucionais, essas transferência de políticas neoliberais persistem, iniciativas confrontam restrições sistêmicas que mas nesse meio tempo, a crise econômica glo- podem minar sua reprodutibilidade em médio bal oferece novas oportunidades estratégicas, e longo prazo, circunscrevendo sua capacidade embora dentro de arenas político-institucionais de generalização interespacial. relativamente dispersas, para forças sociais e Em um terceiro cenário, as formas or- alianças políticas preocupadas em promover questradas de experimentação regulatória con- estratégias regulatórias que restrinjam ou que traneoliberalização e restritoras do mercado transcendam o mercado. Mesmo antes da cri- não mais ocorrem isoladamente, como “postos se financeira global mais recente, havia muita avançados” de dissidência relativamente fe- oposição organizada às políticas neoliberais, chados em si mesmos, mas são recursivamente realizada pelos movimentos de trabalhadores, interconectadas em lugares, territórios e esca- movimentos de camponeses, movimentos ur- las. Nessas condições, há esforços sustentados banos, por várias vertentes do movimento an- para criar redes antissistêmicas de comparti- tiglobalização e, em alguns casos, por partidos lhamento de conhecimentos, transferência de políticos oficiais social-democráticos, comunis- políticas e construção de instituições entre os tas e populistas (Amoore, 2005; Leitner et al., diversos locais e escalas de mobilização con- 2007). Na esteira da crise econômica atual, traneoliberal. Esse cenário pode assumir uma pode haver novas aberturas estratégicas para forma relativamente estatista – por exemplo, tais movimentos sociais e organizações políti- uma coalizão de governos nacionais, regionais cas perseguirem essas agendas que restringem ou locais neokeynesianos, socialdemocratas ou o mercado, enquanto disseminam críticas mais ecossocialistas, talvez dentro ou entre regiões amplamente produtivas ao capitalismo neolibe- globais importantes. Tal cenário também pode ralizado. Nesse cenário, contudo, esses projetos assumir uma forma baseada em movimento – contraneoliberalizadores permanecem relativa- por exemplo, aquela do Fórum Social Mundial, mente desarticulados – isto é, são confinados a com seu projeto de criar uma rede alternativa parâmetros localizados, regionalizados ou, em de transferência progressiva de políticas, vin- alguns casos, nacionalizados e, ao mesmo tem- culando ativistas e formuladores de políticas po, ainda permanecem incrustados em contex- de diversas instituições, setores e contextos no tos geoinstitucionais dominados por arranjos sistema mundial (Marcuse, 2005). Impulsiona- regulatórios disciplinados pelo mercado e por das pelo estado ou levadas pelos movimentos, redes de transferência de políticas. Claramente, tais redes ganham significado e se tornam cada os experimentos regulatórios contextualmente vez mais coordenadas nesse cenário, levando, específicos associados a formas desarticula- possivelmente, ao desenvolvimento de novas das de contraneoliberalização são uma fron- visões, solidárias e ecologicamente sãs, para a teira estrategicamente essencial para explo- regulação econômica global e para as relações rar alternativas a uma ordem geoeconômica interespaciais. Como argumentamos acima, a Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 33 Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore criação de redes transnacionais para a transfe- à saúde e utilidades públicas. Das cinzas do rência de conhecimentos e políticas foi essen- regime de normas global neoliberalizado surge cial para a consolidação, reprodução e evolu- um modelo de regulamentação global alterna- ção dos processos neoliberalizadores durante tivo, social-democrático, solidário e/ou ecos- as três últimas décadas, e tais redes certamen- socialista. O conteúdo político significativo te serão igualmente essenciais para qualquer de tal regime de normas é – na verdade, tem projeto que aspire a desestabilizar os arranjos sido há muito tempo – uma questão de deba- georregulatórios disciplinados pelo mercado. te intenso dentro da Esquerda global (cf., por No entanto, no cenário da contraneoliberaliza- exemplo, Amin, 2009; Gorz, 1988; Holloway, ção orquestrada, as redes de transferência de 2002). Mas um de seus elementos principais políticas contraneoliberalizadoras recentemen- seria uma democratização radical das toma- te estabelecidas e cada vez mais coordenadas das de decisões e capacidades de alocação em ainda não têm a capacidade de se infiltrar nos todas as escalas espaciais – uma possibilidade escalões do poder político-econômico global, que contrasta fortemente com os princípios como as agências multilaterais, os blocos de da disciplina de mercado e regra corporativa comércio supranacionais e governos nacionais nos quais a neoliberalização se baseia (Harvey, poderosos. Consequentemente, embora o re- 2008; Purcell, 2008). gime de normas global neoliberalizado possa Também deve ser enfatizado que nem tender a ser desestabilizado, sobrevive intacto. todas as alternativas a um regime de normas Será que um regime de normas global neoliberalizado envolvem essa visão normativa alternativo pode ser forjado? Em um quarto progressiva, solidária e radicalmente democrá- cenário, socialização profunda, o regime de tica. Como Brie (2009) indica, qualquer número normas global neoliberalizado é sujeito a um de cenários regressivos, até mesmo bárbaros, maior escrutínio público e à crítica popular. é possível, incluindo várias formas de reação, Subsequentemente, os arcabouços institucio- hiperpolarização, neoimperialismo, remilitari- nais da neoliberalização que foram herdados zação e degradação ecológica neoconserva- são infiltrados em todas as escalas espaciais doras, neototalitárias e neofundamentalistas. por forças sociais e alianças políticas orienta- Questões básicas também podem ser coloca- das para agendas alternativas que restringem das em relação à configuração geográfica de o mercado. Essas poderiam incluir controles qualquer regime de normas global futuro. Se- de capital e de trocas; perdão de dívidas; re- rá cada vez mais China-cêntrico, como prevê gimes de impostos progressivos; esquemas Arrighi (2007)? Será fundamentado em uma de crédito de base não-lucrativa, governados ordem mundial multipolar, como espera Amin por cooperativas e desglobalizados; redistri- (2009)? Envolverá um arquipélago de redes in- buição global mais sistemática; investimentos terurbanas ou interregionais progressivamente em obras públicas; e a descomodificação e orientadas, em conjunto com novas formas de desglobalização das necessidades sociais bási- exclusão socioespacial mundial, como Scott cas, como abrigo, água, transporte, assistência (1998) antecipa? Ou envolverá alguma outra 34 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Após a neoliberalização? formação ainda não visualizada de desenvolvi- experimentação regulatória, os sistemas inter- mento espacial desigual? Essas perguntas não jurisdicionais de transferência de políticas e os podem ser respondidas aqui; destinam-se sim- regimes de normas globais. plesmente a provocar reflexão e debate sobre Experimentos regulatórios contraneoli- as possíveis consequências de médio e longo beralizadores permanecem estrategicamente prazo dos projetos de contraneoliberalização cruciais, especialmente no contexto urbano, dentro de cada uma das três dimensões da re- mas na ausência de redes orquestradas de estruturação regulatória. transferência de políticas contraneoliberalizadoras, provavelmente permanecerão confinados em locais, escalas e territórios específicos. Conclusões Também é importante notar que a construção de sistemas contraneoliberalizadores de transferência de políticas, tanto em meio a movi- Esta linha de análise é, reconhecidamente, mentos sociais, como em cidades, regiões ou especulativa, e ainda há muito trabalho a ser estados, representa um grande passo à frente feito em um nível mais concreto para operacio- para os ativistas e os formuladores de políti- nalizar algumas das orientações metodológi- cas progressistas. Porém, na ausência de uma cas aqui apresentadas, principalmente com re- visão plausível para um regime de normas ferência às últimas três décadas dos processos global alternativo, tais redes provavelmente de neoliberalização e com referência à conjun- permanecerão intersticiais, meros incômodos tura contemporânea da formação de crises, à maquinaria global da neoliberalização, ao in- particularmente em relação às transformações vés de ameaças que poderiam transformar sua dos tipos de paisagens urbanas que estão em influência hegemônica. discussão nesta questão. Em nossa conceitua- Entretanto, nossa intenção aqui não é ção, a neoliberalização não é uma totalidade priorizar nenhum dos três níveis de engaja- global que abarca tudo, mas sim um padrão mento político – todos são estrategicamente de reestruturação desenvolvido de maneira essenciais e possuem ramificações estruturais desigual que tem sido produzido através de significativas. Claramente, na ausência de ex- uma sucessão de colisões dependentes da tra- perimentos regulatórios viáveis, contextual- jetória entre projetos regulatórios emergentes, mente específicos, nossa imaginação em rela- disciplinados pelo mercado e paisagens insti- ção a como poderia ser uma alternativa global tucionais herdadas em locais, territórios e es- à neoliberalização permanecerá seriamente calas. Consequentemente, para considerar as limitada. Mas também é importante notar que, possibilidades contemporâneas de transcender se analistas urbanos e ativistas progressivos ou inverter a influência dos processos de neoli- focalizarem seus esforços predominantemente beralização, tanto dentro como entre cidades, sobre “economias alternativas” local e regio- é necessário distinguir várias dimensões de nalmente específicas, e vincularem os sistemas sua articulação espacial-temporal, incluindo a mais amplos de transferência de políticas e Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 35 Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore os arcabouços geoinstitucionais que impõem regulatória. Essa é a razão da ênfase que colo- as regras do jogo a tais contextos, também camos aqui nas dialéticas inter e extralocais da estarão limitando seriamente sua habilidade de transformação regulatória. imaginar – e perceber – um mundo em que os Assim, nossa análise aponta para duas processos de acumulação de capital não deter- conclusões gerais para estudos de paisagens minem as condições básicas da existência hu- regulatórias urbanas e, de maneira mais geral, mana. Portanto, em nosso ponto de vista, arca- para o estudo de transformações regulatórias bouços interpretativos do “grande cenário” são supraurbanas. Em primeiro lugar, podemos mais essenciais do que nunca, não apenas para antecipar que as trajetórias da reestruturação analisar as origens, expressões e consequên- regulatória pós-2008 serão moldadas podero- cias da crise financeira global contemporânea, samente pelas formas político-institucionais mas também como pontos de referência estru- específicas de locais, territórios e escalas nas turais e estratégicos para mobilizar alternati- quais as séries anteriores de neoliberalização vas contra-hegemônicas às práticas político- foram articuladas. Em segundo lugar, nossa -econômicas atualmente dominantes (para discussão sugere que, na ausência de estra- uma versão anterior dessa argumentação, cf. tégias contraneoliberalizadoras para fraturar, Peck e Tickell, 1994). É claro que os experimen- desestabilizar, reconfigurar e finalmente su- tos locais têm importância, e devem ser enca- plantar os regimes de normas disciplinados pe- rados seriamente, mas o mesmo se aplica aos lo mercado que prevalecem globalmente des- regimes de normas institucionais mais amplos de o final da década de 1980, os parâmetros e aos revezamentos interlocalidades de políti- para formas alternativas de experimentação cas que enquadram e coconstituem caminhos regulatória nacional, regional e local conti- contextualmente específicos da reorganização nuarão a ser intensamente circunscritos. Neil Brenner Professor of Sociology and Metropolitan Studies at New York University, USA. New York, EUA. [email protected] Jamie Peck Canada Research Chair in Urban and Regional Political Economy and Professor of Geography at the University of British Columbia, Canada. Columbia, Canada. [email protected] Nik Theodore Director of the Center for Urban Economic Development (CUED) and Associate Professor in the Department of Urban Planning and Policy at the University of Illinois at Chicago, USA. Chicago, EUA. [email protected] 36 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Após a neoliberalização? Notas (*) Texto publicado no periódico Globaliza ons, 2010, v. 7, n. 3, pp. 327-345. Revisão técnica de Carolina Siqueira M. Ventura. ((1) As análises empíricas apresentadas por Simmons, Dobbin e Garret (2008) são, na verdade, muito mais complexas institucionalmente e matizadas geograficamente do que seu próprio uso da metáfora de “difusão” dá a entender. É interessante notar que, em suas discussões mais concretas sobre cada um dos quatro mecanismos de difusão, os autores sinalizam uma conceituação alterna va da neoliberalização que enfa za a reorganização regulatória mul nível e mul cêntrica, a heterogeneidade ins tucional, a contestação de polí cas e a dependência da trajetória. Dessa forma, seu relato na verdade rompe substancialmente com a literatura difusionista ao redor da qual constroem sua narra va. (2) Esse conjunto de dis nções pode ser aplicável a outras formações de reestruturação regulatória – e.g. ao “liberalismo incrustado” (Ruggie, 1982) ou “cons tucionalismo progressivo” (Gill, 2000) no capitalismo fordista-keynesiano do pós-guerra, ou ao liberalismo clássico do final do século XIX (Silver e Arrighi, 2003). Para os nossos propósitos neste ar go, contudo, são entendidas como dimensões da reestruturação regulatória associadas à neoliberalização transnacional. (3) Dentre as questões mais per nentes a serem perseguidas na inves gação empírica dos regimes de normas estão: (a) Qual é seu escopo, i.e. quão amplamente ou estreitamente se estendem pelo espaço geográfico? (b) Qual é seu formato, i.e. abarcam o espaço de forma abrangente ou desigual? (c) Qual é seu nível de intensidade, i.e. quão fortemente ou frouxamente circunscrevem as dinâmicas regulatórias intrassistêmicas? (d) Qual é seu nível de variabilidade interna, i.e. que pos de diferenças polí co-ins tucionais são possíveis dentro deles? e (e) Qual é seu grau de maleabilidade, i.e. até que ponto podem ser redefinidos por meio de negociações ou lutas polí cas? (4) Essa representação não se des na a negar a presença de projetos regulatórios que restringem o mercado dentro das zonas sombreadas da figura, nem tampouco sugerir que os processos de neoliberalização não figuraram de maneira alguma dentro dos quadrantes brancos. O obje vo, ao invés disso, é demarcar analiticamente a trajetória geral da reestruturação regulatória disciplinada pelo mercado. (5) Em um ar go relacionado, analisamos esses processos transforma vos como uma mudança do desenvolvimento desigual da neoliberalização para a neoliberalização do desenvolvimento regulatório desigual (Brenner et al., 2010). Referências ALTVATER, E. (2009). Postneoliberalism or postcapitalism. Development Dialogue, 51(1), pp. 73–88. AMIN, S. (2009). The world we wish to see. Nova York, Monthly Review Press. AMOORE, L. (ed.) (2005). The global resistance reader. Nova York, Routledge. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 37 Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore ARRIGHI, G. (2007). Adam Smith in Beijing. Nova York, Verso. BOCKMAN, J. e EYAL, G. (2002). Eastern Europe as a laboratory for economic knowledge: the transna onal roots of neo-liberalism. American Journal of Sociology, 108(2), pp. 310–352. BOND, P. (2009). Realis c postneoliberalism. Development Dialogue, 51(1), pp. 193–211. BRENNER, N. (2004). New State Spaces. Oxford, Oxford University Press. BRENNER, N., PECK, J. e THEODORE, N. (2010). Variegated neoliberaliza on: geographies, modali es, pathways. Global Networks, 10(2), pp. 182–222. BRENNER, N. e THEODORE, N. (2002). Ci es and the geographies of ‘actually exis ng neoliberalism’. An pode, 34(3), pp. 349–379. BRIE, M. (2009). Ways out of the crisis of neoliberalism. Development Dialogue, 51(1), pp. 15–32. CLARKE, J. (2008). Living with/in and without neo-liberalism. Focaal, 51(1), pp. 135–147. DEZELAY, Y. e GARTH, B. G. (2002). The Interna onaliza on of Palace Wars. Chicago, University of Chicago Press. FRIEDMAN, T. (2005). The World is Flat. Nova York, Farrar Straus & Giroux. GILL, S. (2003). Power and resistance in the new world order. Londres, Palgrave. GORZ, A. (1988). Cri que of economic reason. Nova York, Verso. HARMES, A. (2006). Neoliberalism and multilevel governance. Review of International Political Economy, 13(5), pp. 725–749. HARVEY, D. (2005). A brief history of neoliberalism. Oxford, Oxford University Press. ______ (2008). The right to the city. New Le Review, 53, pp. 23–40. HOLLOWAY, J. (2002). Change the World Without Taking Power. Londres, Pluto. HOLMAN, O. (2004). Asymmetrical regula on and mul level governance in the European Union. Review of Interna onal Poli cal Economy, 11(4), pp. 714–735. JESSOP, B. (2002). Liberalism, neoliberalism and urban governance. An pode, 34(3), pp. 452–472. KLEIN, N. (2007). Shock doctrine. Nova York, Metropolitan Books. LEITNER, H., PECK, J. e SHEPPARD, E. (eds) (2007). Contes ng neoliberalism: urban fron ers. Nova York, Guilford. MARCUSE, P. (2005). Are social forums the future of social movements? Interna onal Journal of Urban and Regional Research, 29(2), pp. 417–424. McMICHAEL, P. (1996). Development and social change. Londres, Sage. MITTELMAN, R. H. (2000). The globaliza on syndrome. Princeton/NJ, Princeton University Press. PECK, J. (2001). Workfare States. Nova York, Guilford. ______ (2004). Geography and public policy: construc ons of neoliberalism. Progress in Human Geography, 28(3), pp. 392–405. ______ (2009). Zombie neoliberalism and the ambidextrous state. Theore cal Criminology, 13(3), pp. 104–110. 38 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 Após a neoliberalização? PECK, J. (2010a). Construc ons of neoliberal reason. Oxford, Oxford University Press. ______ (2010b). Geographies of policy: from transfer and diffusion to mobility and muta on. Mimeo Department of Geography, University of Bri sh Columbia. PECK, J. e THEODORE, N. (2001). Expor ng workfare/impor ng welfare-to-work. Poli cal Geography, 20(4), pp. 427–460. ______ (2007). Variegated capitalism. Progress in Human Geography, 31(6), pp. 731–772. ______ (2010). Recombinant workfare, across the Americas. Geoforum, 41(2), pp. 195–208. PECK, J., THEODORE, N. e BRENNER, N. (2009). Postneoliberalism and its malcontents. An pode, 41(6), pp. 1236–1258. PECK, J. e TICKELL, A. (1994). “Searching for a new ins tu onal fix: the a er-Fordist crisis and the global-local disorder”. In: AMIN, A. (ed.). Post-Fordism: a Reader. Londres, Blackwell. ______ (2002). Neoliberalizing space. An pode, 34(3), pp. 380–404. PEET, R. et al. (2003). Unholy Trinity: the IMF, World Bank and WTO. Londres, Zed. POLANYI, K. (1944). The great transforma on. Boston, Beacon Press. PURCELL, M. (2008). Recapturing democracy. Nova York, Routledge. RUGGIE, J. G. (1982). Interna onal regimes, transac ons, and change. Interna onal Organiza on, 36(2), pp. 379–415. SAAD-FILHO, A. e JOHNSTON, D. (eds) (2005). Neoliberalism: a cri cal reader. Londres, Pluto Press. SCOTT, A. J. (1998). Regions in the world economy. Nova York, Oxford University Press. SILVER, B. J. e ARRIGHI, G. (2003). Polanyi’s ‘double movement’: the belle epoques of Bri sh and U.S. Hegemony compared. Poli cs & Society, 31(2), pp. 325–355. SIMMONS, B. A.; DOBBIN, F. e GARRETT, G. (2008). “Introduc on: the diffusion of liberaliza on”. In: SIMMONS, B. A.; DOBBIN, F. e GARRETT, G. (eds). The global diffusion of markets and democracy. Nova York, Cambridge University Press. STIGLITZ, J. E. (2008). The end of neo-liberalism? Project Syndicate Commentary. Disponível em: h p:// www.project-syndicate.org. STREECK, W. e THELEN, K. (2005). “Introduc on: ins tu onal change in advanced capitalist economies”. In: STREECK, W. e THELEN, K. (eds.). Beyond con nuity. Oxford, Oxford University Press. TABB, W. (1982). The long default. Nova York, Monthly Review Press. WALLERSTEIN, I. (2008). The demise of neoliberal globaliza on. MRZine, February. Disponível em: h p://www.mrzine.monthlyreview.org. Texto recebido em 25/ago/2011 Texto aprovado em 15/set/2011 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 39 Governance e territorialização: o welfare local na Itália entre fragmentação e inovação* Governance and territorialization: local welfare in Italy between fragmentation and innovation Lavinia Bifulco Resumo Colocado de maneira simples, a territorialização é um enigma. O conceito cobre dois fenômenos principais: o processo de reorganização territorial que tem afetado diferentes níveis de ações públicas e suas relações, e a tendência de tomar o território como o ponto de referência para políticas e intervenções. Esses fenômenos são, ao mesmo tempo, distintos, porém ligados, e compartilham as mesmas consequências, mobilizando novos atores/arenas e politizando uma gama bastante ampla de questões. O objetivo deste artigo é duplo: delinear um esquema analítico do território como o ambiente da relação atual entre cidadania e governança; focalizar problemas e oportunidades que são desencadeados pelo welfare local na Itália. Abstract Briefly put, the territorialization is a puzzle. The concept covers two principal phenomena: the process of territorial reorganization which has affected different levels of public action and their relations; the trend of taking the territory as the reference point for policies and interventions. These phenomena are at the same time distinct but linked, and share the same consequences, mobilizing new actors / arenas and politicizing quite a wide range of issues. The aim of the paper is twofold: to outline an analytical scheme regarding the territory as the medium of the present relationship between citizenship and governance; to focus on problems and opportunities that are triggered by local welfare in Italy. Palavras-chave: governança; territorialização; cidadania; welfare local; Itália. Keywords: governance; territorialization; citizenship; local welfare; Italy. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 Lavinia Bifulco Introdução ação pública está sob pressão, de um lado para a intensificação dos processos de internacionalização, de outro para o reemergir de dinâmicas Desde os anos 80, a ação pública na Europa foi de diferenciação territorial (Ferrarese, 2011). de interesse de um processo de territorializa- Neste ensaio, levarei em consideração a ção cada vez mais intenso. Em termos gerais, reorganização territorial como um componen- a territorialização refere-se a dois fenômenos te chave da governance (Gualini, 2006). Cien- principais: o processo de reorganização terri- te da ambiguidade desta noção, preciso que, torial que tocou os diversos níveis de governo no meu ponto de vista, a governance não equi- e as suas relações; a orientação para assumir vale ao desaparecimento do Estado, concomi- o território como referência de políticas e in- tantemente com a mudança das relações entre tervenções. O primeiro está ligado às dinâmi- público e privado e entre local/central/supra- cas de rescaling do Estado (Brenner, 2004). nacional (Le Galès, 2002). Isso não resolve, O segundo se entrelaça ao desenvolvimento evidentemente, a questão da ambiguidade. É de abordagens e instrumentos de policy que verdade que, enquanto até alguns anos atrás, tendem a considerar os contextos em que se o conceito de governance era, em sua maior desenvolvem as intervenções como recursos, parte, associado a orientações ‘‘pró-mercado’’, targets e atores (Bifulco et al., 2008). Trata-se o debate atual mostra uma maior focalização de fenômenos distintos, mas intrincados entre em temas como a participação dos cidadãos si, que têm como efeitos comuns a mobilização e das comunidades locais, a construção de de novos atores e a politicização de um leque parcerias entre atores públicos e privados, a amplo de issues. Tornou-se evidente, parale- difusão de práticas deliberativas.1 É também lamente, o fato de que o território não é uma verdade que a governance subentende uma realidade dada e inerte, mas é repleto de rela- nova maneira de olhar para a reconstrução das ções sociais, poderes e capacidade de agency. estruturas escalares do Estado que “are now É necessário levar em consideração, mais understood to be historically malleable; they precisamente, a copresença de processos de may be ruptured and rewoven through the desterritorialização e de reterritorialização. Co- very political strategies they enable” (Brenner, mo é sabido, o Estado tomou forma, na Europa, 2009, p. 126). através da neutralização das dinâmicas locais A governance , por isso, torna mani- e a escala estatal/nacional esteve na base da festada a valência política das dinâmicas que democracia moderna (Ferrarese, 2011). Hoje a estão moldando a organização do Estado, das relação entre Estado e território é mais com- instituições, das políticas, ativando e redistri- plicada. A globalização, de fato, dá lugar a buindo poderes. novas montagens entre território, autoridade Um campo de mudanças relacionado é e direitos e os processos de desnacionalização o da cidadania. De acordo com o modelo clás- em curso abrem novas possibilidades da geo- sico, a cidadania é “a relationship between grafia política em níveis supra e subnacional individuals and political authorities inside an (Sassen, 2006). Por isso, a escala nacional da undifferentiated state territory” (Bauböck 42 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 Governance e territorialização e Guiraudon, 2009, p. 440). Como nunca correspondeu totalmente à verdade, tal modelo dominou uma parte significativa da história O quadro europeu da territorialização institucional europeia. Hoje, graças à integração europeia, os confins territoriais da cidada- A reorganização territorial que começou há nia são mais permeáveis e as raízes nacionais cerca de trinta anos, coincidindo com o lança- são menos importantes do que em outro tem- mento da assim chamada Europa das regiões po para o exercício de alguns direitos (Ferrera, da presidência europeia de Jacques Delors, 2005). Paralelamente, tomam forma maneiras produziu uma recomposição profunda do es- regionais e urbanas de cidadania, simultanea- paço político e das políticas, graças à qual mente à difusão de instrumentos de policy lo- “the nationalizing, spatially redistributive calizados, que pretendem envolver cidadãos e orientation of post-war urban and regional comunidades na vida pública (García, 2006). policies has been largely superseded” (Brenner, Isto pode, obviamente, ajudar o processo de- 2009, p. 128). Abriu-se, desde então, uma fase mocrático. Mas pode também contribuir para o de “reinvenção do território” (Keating, 1997) crescimento das desigualdades territoriais. durante a qual o próprio significado da noção O ensaio aborda a relação entre gover- de território se enriqueceu e se complicou, nance e cidadania, colocando em foco os pro- identificando não mais somente um espaço ad- cessos de territorialização. O objetivo é duplo: ministrativo, mas também (ou principalmente) delinear um esquema analítico relativo ao terri- um leque de capacidades de ação coletiva. tório como mediador da relação atual entre ci- Os eixos da mudança são dois. Um é a dadania e governance; colocar em foco os pro- regionalização. Na análise clássica de Michael blemas e as oportunidades que a governance e Keating (1997), trata-se de uma “nova on- a territorialização – no seu duplo sentido – pro- da de regionalismo” que, diferentemente do vocam na Itália, referindo-me principalmente passado, não tem lugar dentro dos Estados ao welfare local. Unidos, mas tem como contexto a União Eu- Começarei deIineando o quadro inter- ropeia e o mercado global. Para seu desenvol- pretativo relativo ao contexto europeu, ilus- vimento concorrem três fatores: a mudança trando o duplo significado de territorialização funcional (solicitada pela globalização e pela das políticas e as geometrias variáveis da cida- necessidade de confronto com o mercado in- dania que daí surgem. Passarei então à análise ternacional), a reorganização institucional do caso italiano, apresentando dois instrumen- (principalmente a descentralização e a inte- tos de policy mais significativos com relação gração europeia) e a mobilização política no aos temas indagados: os Planos sociais de zona interior das Regiões (ibidem). e os Contratos de bairro. A chave analítica prin- Desse ponto de vista, a regionalização cipal que usarei refere-se ao cruzamento ambi- tem como efeito principal ativar novas arenas valente de estímulos à inovação e estímulos à políticas e novos atores da política. As regiões fragmentação que dá forma ao quebra-cabeças jogam, de fato, uma parte de primeiro plano 2 da territorialização. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 na política e, em alguns casos, na europeia, 43 Lavinia Bifulco experimentando novas formas da ação coletiva próprias cidades como atores coletivos reco- e da regulação territorial. O que implica o fim nhecíveis ao externo como tais; definitivo da ideia naturalizada do território. ● Torna-se evidente, de fato, que a região não é terdependência entre os fatores dos quais de- uma entidade natural, mas é uma construção pende o bem-estar, por exemplo a habitação, o social e um espaço político (ibidem). É dito, trabalho, o acesso aos serviços de saúde; a exigência de se levar em consideração a in- o deslocamento da atenção pública da ques- com este propósito, que a descentralização ● na Europa avançou um pouco por toda parte. tão social à questão urbana, identificada pela Na Itália, há uma versão parcial de devolution evidência assumida pelos problemas do tra- à espera de ser completada. Modelos federais balho, da insegurança e das minorias étnicas são aplicados, por exemplo, na Alemanha, Bél- (Donzelot, 2006); gica, Áustria, Espanha (García, 2006; Moreno, ● McEwen, 2005). lização de intervenções integradas e mais cor- a ideia de que a escala local favorece a rea- Junto às regiões, as cidades são atores respondentes às necessidades e às demandas de primeiro plano na nova ordem territorial. específicas de uma coletividade (Benassi e O protagonismo das cidades na Europa é lido Mingione, 2002). à luz do papel encenado pela União Europeia. Um dos pontos cruciais é, obviamen- De fato, a Europa das regiões foi rapidamen- te, a disponibilidade de recursos adequados e te substituída por uma Europa das cidades. de mecanismos alocativos em nível nacional, Aproveitando as oportunidades oferecidas pela mas também, às vezes, supranacionais, que União (principalmente pelas políticas dos fun- sustentam as responsabilidades locais. Muito dos estruturais), as cidades se tornaram atores frequente é a combinação entre recursos escas- políticos no espaço europeu, à procura de le- sos e responsabilidades elevadas. Uma questão gitimidade e de lugares de representação (Le ligada à estrutura das relações entre setor pú- Galès, 2002, p. 90). Graças às políticas urbanas blico, família, terceiro setor – e mercado – com e regionais que desenvolveu nos últimos trinta relação a intervenções de welfare e às relativas anos, a União Europeia modificou o contexto responsabilidades (Saraceno, 2002). Em muitos institucional e econômico no qual as cidades países europeus, as reorganizações recentes estão inseridas, institucionalizando alguns pa- do welfare se inspiraram no princípio da sub- râmetros dos quais dependem as modalidades sidiariedade. Mas a subsidiariedade tem impli- da governance urbana (ibidem, p. 85). cações diferentes, de acordo com os contextos. Um dos aspectos mais significativos des- Nos welfares mediterrâneos, a subsidiariedade se desenvolvimento das cidades e das regiões é associada a mecanismos reguladores que, por como espaço político é o assim chamado um lado, enfatizam o papel da família e, em welfare local. Essencialmente, o welfare local uma certa medida, do terceiro setor, por outro indica: lado, sustentam pouco e mal estes sujeitos a ● o papel que, nos processos de decisão, as- quem enfrentam (Kazepov, 2009). sumem os administradores locais (regionais Segundo Ferrera (2005), um efeito impor- e municipais), as redes público-privadas, as tante da nova fase das relações entre centro 44 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 Governance e territorialização e periferia concretizada pelo welfare local foi claros de como a referência a uma área territo- a crescente politização dos issues relativos às rial se presta a enfatizar objetivos de ativação transferências e às solidariedades interterrito- e participação. riais. Os governos subnacionais tornaram-se, de Apesar de uma certa redundância de fato, muito mais atentos a questões financeiras significados, a territorialização pode ser sinte- nas suas relações com os governos centrais e tizada em dois núcleos com interseção entre muito mais propensos a mobilizar-se. si: o território como colocação em jogo de uma Por um ponto de vista deliciosamente reorganização política; o território como instru- sociológico, o welfare local ilumina os modos mento de policy. Ambos colocam uma série de como as políticas interagem com os processos questões. Geografias localizadas da política e de organização e reorganização (Bagnasco, das políticas podem reduzir os efeitos equali- 2003). Uma vez ressurgido o papel político das zadores, já fracos, do Estado central e colocar cidades, aumenta também a influência que as à prova tanto a integridade territorial quanto a políticas (locais) podem ter no grau de inte- responsabilidade democrática (Keating, 1997). gração das sociedades locais. Mais ainda se as Questões específicas voltadas à cidadania, co- políticas assumem explicitamente o território mo veremos no parágrafo seguinte. como target. Remetemo-nos, desta maneira, às lógicas da territorialização incorporadas nas relações Cidadania: geometrias variáveis de policy em diversos setores (o desenvolvimento local, as políticas contra a exclusão Neste quadro, pode-se identificar quatro ques- social, a requalificação urbana). Neste caso, tões principais relativas à cidadania: trata-se da tendência a enfrentar, de manei- ● ra integrada, um conjunto de problemas – de cussão o modelo da cidadania como perten- natureza social, física e econômica – em áreas cente à comunidade definida pelo espaço do circunscritas. As fórmulas são várias. Bastante estado-nação; difusas são as intervenções que assumem co- ● mo targets territórios em desvantagem, com o direitos ou são denizens,4 por causa do cresci- objetivo de redistribuir e equalizar as oportu- mento dos processos migratórios; nidades. Além disso, a territorialização é con- ● siderada uma condição favorável à realização derivados da integração europeia; a diferenciação territorial que coloca em dis- o aumento de pessoas que não gozam de uma europeização embrionária dos direitos de políticas ativas, um tema chave na agenda ● das políticas sociais na Europa.3 Pensa-se que para os cidadãos nos contextos da governance a escala circunscrita e a aproximação física local. o desenvolvimento de novas oportunidades entre serviços e cidadãos favoreçam processos Como sustentam Bauböck e Guiraudon de inclusão e de empowerment, assim como (2009), a União Europeia tornou-se um labo- anunciado por princípios de subsidiariedade. ratório para a experimentação de uma cidada- As intervenções em bairros desenvolvidos, em nia diferenciada e “realinhada”: ”If citizenship muitos países europeus, são exemplos bastante is membership in a bounded policy, then the Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 45 Lavinia Bifulco boundaries of polities in Europe have certainly direito de participar do confronto democrático not vanished but have become increasingly entre ideias e a possibilidade de influir sobre as overlapping, nested and blurred. What we decisões coletivas. have called ‘realignments of citizenship’ Todavia, as práticas locais se apresen- refers both to macro level processes changing tam bastante frágeis e são colocadas à prova constellations of political boundaries and to por diversas questões. Uma questão refere-se the individual level of vertical relations with aos mecanismos de comercialização (marketi- political authorities and horizontal ties among zation) que se iniciaram no sulco do neolibe- 5 co-citizens” (ibidem, p. 440). rismo. A descentralização e a comercialização A análise de Ferrera (2005) sobre os con- constituem, de fato, o coração dos projetos de fins do welfare aprofunda as mudanças que reforma do setor público iniciados na Europa tocam, em especial, a cidadania social. O pro- no rastro aberto pelo Reino Unido. Projetos que cesso de integração europeia redefiniu a arqui- objetivaram a redução ou, mais ainda, a racio- tetura espacial da cidadania social, provocando nalização da despesa, por meio de mecanismos uma disjunção parcial entre direitos sociais e bastante punitivos de descarga dos custos e território nacional. Mas, se observarmos os das responsabilidades sobre as autoridades e níveis subnacionais, veremos que, em muitos as coletividades locais. Além disso, a afirmação casos, a relação entre direitos e território se do mercado como modelo regulador e a evolu- reforça. Enquanto essas dinâmicas estão ain- ção no sentido contratual da cidadania social da em partes obscuras, pode-se concordar com deram vida à figura do cidadão/consumidor, o fato de que não se trata de uma mudança pouco protegido pelo welfare público e pouco radical e que as novas formas de cidadania se preparado para participar do espaço públi- aproximam das tradicionais, sem substituí-las co das decisões coletivas. Esta figura, de fato, (Keating, 2009, p. 511). radicou-se em uma relação de compra e venda Um dos efeitos visíveis é a mistura dos comercial, por isso não possui as prerrogativas confins entre a cidadania política e a cidada- e as atribuições que contradistinguem formal- nia social. Mais precisamente, o welfare local é mente o papel do cidadão. um terreno potencial de cultura das inovações A Figura 1 sintetiza o que foi dito até da cidadania que são encorajadas conjunta- aqui. No modelo do government, o território mente pelas dinâmicas de modificação terri- nacional representa o mediador cristalizado torial e pela difusão de abordagens de policy dos direitos, da solidariedade (e dos respecti- baseadas no território. Em alguns casos, essas vos mecanismos redistribuitivos) e da demo- inovações, além de potencializar o acesso a cracia. A cidadania, nos termos teorizados por serviços e intervenções, acrescentam a agency Thomas H. Marshall (1950), é um status basea- e a voice na cena pública (García, 2006; Bifulco do no pertencer à coletividade nacional. No se- e Centemeri, 2008; Newman e Clarke, 2009). gundo modelo, que define como “governance Consequentemente, a cidadania social tende comercializada” (marketized governance), o a assumir uma valência política, implicando o território representa recursos a explorar, como 46 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 Governance e territorialização acontece nos mecanismos de descarga das tradicionalmente fazem a distinção entre di- responsabilidades, e a cidadania é concebida mensão social e dimensão política. Isto é evi- como um contrato. No modelo da governance dente nas experiências que reforçam simulta- participativa, o território constitui um sistema neamente entitlements sociais e voice. de ação e um recurso mobilizável por uma Os três modelos têm, obviamente, o ob- variedade de atores, inclusos os cidadãos e, jetivo de enfatizar as diferenças e as questões. em alguns casos, os denizens. A cidadania é Na realidade empírica, encontramos combina- um processo: constrói-se, ao menos em par- ções de problemas e oportunidades bastante te, na prática e muda no tempo e no espaço. confusas também no caso de experiências ins- Além dos seus confins espaciais, são colocados piradas na participação dos cidadãos, como ve- em discussão os confins que, em seu interior, remos a seguir. Figura 1 – Governance, território e cidadania Government Governance comercializada (marketized) Governance participativa Território nacional como mediador cristializado dos direitos, da solidariedade e da democracia Território como recursos a explorar Território como sistema de ação e recurso mobilizável Cidadania como status Cidadania como contrato Cidadania como processo Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 47 Lavinia Bifulco A Itália: contexto e instrumentos de policy Uma linha de mudança ligada remete ao processo de rescaling. Esse processo, na Itália, segue o caminho de uma localização marcada e investe simultaneamente a política, as políti- Passarei agora a ilustrar o contexto italiano, primeiramente delineando a fase de policy change que começou a partir da metade dos anos 90 e analisando sucessivamente dois instrumentos centrais nesta fase: o Plano Social de Zona e o Contrato de Bairro. cas e a estrutura do Estado. O papel encenado pela política está ligado sobretudo aos “novos prefeitos”, cujos poderes cresceram de modo decisivo após a mudança do sistema eleitoral e dos mecanismos da representação local. Com relação às políticas, a escala local é, sem dúvida, um elemento chave dessa estação de O contexto renovação. Dois casos para todos são a reforma dos serviços sociais, aprovada em 2000 (Biful- A estação de renovação da ação pública que co, Centemeri, 2008; Bifulco et al., 2008) e as acompanhou a Itália em direção ao novo mi- políticas para o desenvolvimento baseadas na lênio viu a afirmação de novas abordagens e programação negociada (Piselli, 2005; Magnati instrumentos de policy. Como observado vá- et al., 2005; Trigilia, 2005). Na importância as- rias vezes por Bobbio (2000, 2006), crescem sumida pela escala local, caem tanto perspec- principalmente as práticas de negócios, basea- tivas institucionais de mudança que refletem a das na estipulação de acordos formalizados exigência de valorizar a autonomia dos órgãos e voluntários que empregam reciprocamente locais quanto a demanda difusa de espaços múltiplos atores, públicos e privados, em busca descentralizados de discussão e decisão; tanto, de um interesse coletivo. Uma atenção espe- enfim, a ideia de que as políticas devem ativar cial é dedicada a abordagens de negócios que os recursos de ação presentes ou latentes nas possam favorecer as logísticas integrativas, sociedades locais e nos contextos territoriais. fundamentadas em comportamentos recipro- É considerado, então, o processo de descen- camente orientados, ao invés das distributi- tralização que, através do percurso iniciado vas, orientadas para a repartição de recursos. nos anos 70, aterrou em 2001, na reforma do A buscar a mudança é uma série de fatores, título V da Constituição, que introduz mecanis- exógenos e endógenos. Novos “instrumentos mos de poder legislativo, que concorre entre para governar” encontraram no espaço euro- Estado e Regiões em algumas matérias (entre peu vetores bastante potentes que ajudaram eles os socioassistenciais, a saúde, a instru- na sua difusão (Lascoumes e Le Galès, 2004). ção e a formação profissional).6 A autonomia Em nível nacional, fez-se advertir a necessi- que, em diferente grau, adquiriram o nível re- dade de lubrificar os mecanismos ordinários gional e o municipal pode favorecer a experi- do consenso, muito bloqueados sobretudo no mentação de vias inovadoras da ação pública. caso das intervenções com grande impacto Como foi observado a propósito das políticas ambiental e social, e de enfrentar a crise da da programação negociada, trata-se de opor- representação democrática. tunidades de mudança situadas em um nível 48 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 Governance e territorialização “baixo” da política (também espacialmente) mecanismos de integração em vertical (entre o que se contrapõem ao quadro apresentado nível central, regional e municipal de governo) pela ”alta” política, fundado na ausência de e em horizontal (entre administrações e entre confronto (Bobbio, 2006) e exposto aos proble- administrações e sociedades locais). Em espe- mas da democracia mediática e do populismo cial, este instrumento compromete os municí- (Crouch, 2003; Ginsborg, 2006). Esta autono- pios em programar e governar de maneira inte- mia alimenta, por outro lado, também o risco grada o sistema territorial dos serviços socioas- do exacerbar-se das disparidades. A regionali- sistenciais com o envolvimento de cidadãos e zação italiana, de fato, fica em equilíbrio entre terceiro setor (Bifulco e Centemeri, 2008). Mais a valorização das autonomias territoriais e o precisamente, o plano de zona, normalmente aumento das desigualdades. Além disso, as ex- adotado através de um acordo de programa perimentações se apresentam frágeis e muito pelos municípios que voltam para o mesmo dependentes da iniciativa política local. âmbito territorial tem a tarefa de identificar Esse quadro explica por que as oportu- (Legge 328/2000, art. 19): nidades de inovação podem facilmente arrui- a) os objetivos estratégicos e as prioridades nar-se em novos e mais robustos mecanismos de intervenção, além dos instrumentos para de fragmentação. sua realização; Na realidade, discutiu-se e se discute b) as modalidades organizacionais dos servi- ainda sobre quais são os elementos efetivos de ços, os recursos, os requisitos de qualidade; novidades desse quadro com relação à tradição c) as modalidades para a integração entre ser- italiana, caracterizada por uma longa história viços e prestações; de práticas de negócios além do tipo específico. d) as modalidades para a coordenação dos mu- A diferença é – deveria ser – principalmente a nicípios com outras administrações: transparência: a ideia ou a intenção é, de fa- e) as modalidades para a colaboração dos ser- to, que a negociação deva ser feita não mais à viços territoriais com as organizações do tercei- sombra da hierarquia, mas em plena luz e se- ro setor e as comunidades locais; gundo princípios de accountability que impõem f) as formas de ensaio com a unidade de saúde local. a percepção do que se faz e se segue (Bifulco e Conforme texto da lei, o Plano social de de Leonardis, 2003). zona é voltado a “favorecer a formação de sistemas locais de intervenção fundamentados em serviços e prestações complementares e fle- Os Planos Sociais de Zona e os Contratos de bairro xíveis, estimulando principalmente os recursos locais de solidariedade e de autoajuda, além de responsabilizar os cidadãos pela programação É a reforma dos serviços sociais ocorrida em e verificação dos serviços” (art. 19). 2000, primeiro aceno, que introduz o Plano so- Esse instrumento é, por isso, candida- cial de zona. Trata-se do eixo principal do novo to a promover modalidades de programação sistema de regulação das políticas socioassis- integradas e inclusivas. Sua importância se tenciais, desenhado com o intento de assegurar apoia, precisamente, em quatro ideias base: Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 49 Lavinia Bifulco a referência ao território como sistema de intervenção. Trata-se, de fato, de contextos em recursos a ativar e valorizar; a ação associada que a degradação física dos imóveis e dos es- entre municípios, que requer capacidades de paços públicos e a escassez das infraestruturas coordenação interinstitucional;7 a negociação, se juntam a condições de incômodo e vulne- que valoriza métodos consensuais de tomada rabilidade social. As tipologias projetuais mais de decisões e a participação dos cidadãos e recorrentes são relativas a intervenções em das organizações do terceiro setor; a direção, porções até amplas de edilícia residencial pú- que solicita aos municípios assegurar coerên- blica, que normalmente se aproximam da rea- cia e continuidade à construção do sistema lo- lização de infraestruturas e a construção e/ou cal de serviços. recuperação de espaços coletivos, para a vida Em linha geral, a ideia é que decisões social e cultural, para atividades comerciais e baseadas na construção de cooperativas são de empreendimento. Desde a edição de 1998, preferíveis, tanto às ideias fundamentadas o mecanismo de financiamento, com base con- na autoridade quanto às ideias baseadas na cursal, aproveita as capacidades projetuais das agregação de preferências. De fato, ganhariam administrações locais, privilegiando, ao mesmo simultaneamente sua legitimidade e a demo- tempo, a construção de uma arquitetura ins- cracidade das decisões. Na realidade, os muni- titucional de tipo parceria. Os municípios são, cípios se associam não por escolha, mas pela de fato, os sujeitos titulados a apresentar o força. A alternativa, de fato, é a exclusão pelos projeto de recuperação, mas são chamados a financiamentos nacionais. Deve-se acrescentar envolver outros atores, públicos e privados, na que, após a reforma constitucional de 2001, os realização de uma perspectiva de desenvolvi- atores políticos principais são as regiões. No mento complexivo do bairro. Acrescenta-se que confronto, tanto o Estado como os municípios a instalação do primeiro programa, baseado aparecem como atores secundários. fundamentalmente em financiamentos nacio- Os Contratos de bairro também são co- nais, atribui ao nível central tanto a emanação locados na moldura dos processos de regiona- do anúncio quanto os mecanismos de avalia- lização. Introduzidos no fim de 1998 por inicia- ção e seleção. A segunda edição, lançada ofi- tiva do Ministério dos trabalhos públicos, com cialmente em 2001, tem algumas mudanças. É o objetivo de requalificar os bairros de edilícia reforçado o papel dos cidadãos, já a partir da pública, estes instrumentos voltam ao filão dos definição dos objetivos do contrato. Paralela- programas urbanos complexos, recuperando mente, crescem as prerrogativas das Regiões. como ideia chave a necessidade de superar A terceira edição, lançada em 2008 e em vi- a centralidade da intervenção urbanístico- gor atualmente, acentuou essas prerrogativas, -arquitetônica a favor do tratamento integrado demandando as escolhas mais relevantes aos das dimensões físicas, sociais e econômicas da anúncios regionais. requalificação (Bricocoli, 2007; Briata et al., Quanto à filosofia do instrumento, a mes- 2009). São as mesmas características das áreas ma denominação oficial enfatiza os elementos interessadas pelas intervenções de recupe- principais: a subscrição de um acordo formali- ração a invocar modalidades integradas de zado e a assunção de compromissos recíprocos. 50 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 Governance e territorialização O contrato, desse ponto de vista, deveria favo- envolvimento dos cidadãos são vagas e a di- recer a responsabilização dos atores envolvidos reção desenvolvida pelas administrações pode e a transparência dos mecanismos de decisão. ser fraca. Nos Contratos de bairro, um campo Além disso, deveria consentir a adição de recur- de tensão é aquela dupla alma mencionada an- sos adicionais, privados e públicos. Os critérios teriormente. de financiamento enfatizam uma espécie de Para se compreender melhor esses e ou- “dupla alma” da medida, ligada à copresença tros problemas, passarei agora à implementa- de uma abordagem de discriminação positiva, ção, concentrando-me nas dinâmicas de inte- que atribui prioridade às áreas desavantajadas, gração e nas de participação. e procedimentos de admissão aos financiamentos, baseados na seleção após um anúncio (Bricocoli, 2007). Efeitos de integração Sendo de fato uma obrigação, os Planos de zona, ao contrário dos Contratos de bair- Um dos efeitos “virtuosos” dos dois instru- ro, foram feitos em todo o território nacional. mentos é a institucionalização de espaços para Quanto aos territórios de referência (os assim a coordenação. No âmbito dos Planos de zo- chamados âmbitos territoriais ou sociais), na na, muitos municípios investiram nas relações maior parte dos casos, compreendem uma intermunicipais mais do que por obrigação ou população entre 50.0000 e 100.000 habitan- pela conveniência de se associar. Ainda que de tes (43,6%) (ISFOL, 2006). Quanto aos Con- maneira não linear, aconteceram processos de tratos de bairro, um primeiro dado significati- aprendizado institucional, graças aos quais as vo é o crescimento, no tempo, das propostas, agregações intermunicipais começaram a agir tanto das apresentadas quanto das finan- e a serem reconhecidas como novos atores ciadas. Entre a primeira e a segunda edição, públicos. Em alguns casos, Planos e Contratos passa-se de 57 projetos admitidos para os dão prova de uma elevada capacidade integra- financiamentos (em 126 propostos) a 192 (em tiva. Tratou-se das coalisões instauradas entre cerca de 500 propostos). Um segundo dado é instituições e serviços como das colaborações o crescimento do peso dos recursos regionais entre administrações e terceiro setor. Planos que, substancialmente ausentes na primeira e Contratos inclinaram-se a sustentar proces- edição, na segunda edição totalizam 35% dos sos de organização de partes mais ou menos recursos complexivos. amplas da sociedade local. Em alguns territó- Não levando em conta as diferenças, rios e em diversos bairros, desenvolveram-se não só de ordem quantitativa, a importância dinâmicas associativas que reanimaram uma dada ao território e as modalidades que par- sociedade civil desagregada (Bifulco e Cen- ticipam de elaboração de projeto é claramen- temeri, 2008). O nascimento de agregações te reconhecível como um núcleo cognitivo e que reúnem as organizações que operam em normativo comum aos dois instrumentos. Há, um território (como os fóruns do terceiro se- porém, aspectos que complicam o quadro. Com tor) frequentemente foi desejado “pelo alto” e relação aos Planos de zona, as modalidades do “pelo baixo”. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 51 Lavinia Bifulco Como foi evidenciado, a propósito de grau de coordenação são também abertas e uma experimentação em curso em algumas acessíveis por parte de uma variedade de ato- áreas de Friuli-Venezia Giulia (De Leonardis e res. E nem sempre os atores que participam de- Monteleone, 2007; Bifulco et al., 2008), pode las têm o poder de influir em decisões tomadas. haver efeitos de integração social relativas di- As pesquisas realizadas evidenciam retamente aos habitantes de um bairro. Esses uma variedade de práticas que se diferenciam efeitos parecem ser favorecidos pela contigui- entre si quanto os atores chave, o objeto, os dade física entre os serviços empenhados nas espaços e as regras da negociação (Savoldi, intervenções e os seus destinatários, além do 2006; Bifulco e Centemeri, 2008; Paci, 2008; grau de articulação das atividades. Na experi- Polizzi, 2008). Tal variedade torna manifes- mentação em questão, as intervenções são re- ta a interdependência entre alguns fatores. lativas tanto à elaboração de projetos de inter- Contam tanto os fatores de contexto, como venção personalizados, moldados nas especifi- as arquiteturas político-institucionais e os mo- cidades da pessoa e do seu contexto de vida, delos de organização social; quanto fatores quanto a organização miúda da vida cotidiana que intervêm diretamente nos processos de em um bairro (por exemplo, a organização de policy, como as culturas e as leaderships po- cursos de ginástica e de cozinha, autogeridos líticas, o design e as regras da participação. pelos habitantes), como também a promoção Contam também, obviamente, as bases sociais de iniciativas de uma certa relevância coletiva da participação. Um aspecto de base é a força (festas de bairro, intervenções de recuperação de atração exercida pela ideia da participação de praças e áreas verdes, etc.). como prática de revitalização da democracia Naturalmente, pode-se também produ- local. Essa ideia não tem uma realização uní- zir e reforçar fragmentações. No âmbito das voca. As interações entre instituições e socie- relações entre municipalidades, além dos dade local podem resultar na criação de are- cleavages da formação política, as fragmenta- nas seletivas que, sob a etiqueta da participa- ções executam práticas paroquiais radicadas ção, reforçam desigualdades e configurações na estrutura administrativa italiana ou refletem de elite dos processos decisionais. Mas podem a relação normalmente desigual entre munici- também implicar um envolvimento amplo de palidades maiores e mais dotadas de recursos e cidadãos e organizações de terceiro setor e um municipalidades menores e dependentes. papel bastante incisivo a redistribuir o poder relativo para as decisões públicas. Em alguns Contratos de bairro, isso significa, por exem- A participação plo, que os atores institucionais promovem interações muito frequentes e adaptadas aos O tema da participação é o banco de prova habitantes já em fase de idealização das inter- mais controverso das orientações em campo venções, aprendendo a confrontar-se com uma nos Planos e nos Contratos, principalmente multiplicidade de vozes, às vezes conflituosas com relação à inclusividade e incisividade da (Bricocoli, 2007). Um elemento que joga a participação. Nem sempre arenas com um bom favor é a presença, nos bairros, de formas de 52 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 Governance e territorialização organização dos habitantes que ativam uma âmbitos territoriais, a leadership enfatizou a pluralidade de pontos de vista, sem querer conotação pública da programação social e representá-la. Em todo caso, a experiência dos sua centralização com relação a estratégias de Contratos documenta claramente a importân- crescimento da democracia local. Alguns atores cia do papel que as administrações municipais públicos viram nesse instrumento a oportu- são chamadas a exercer ao sustentar, reconhe- nidade para renovar a política e deram prio- cer e mediar essa pluralidade (ibidem). ridade à construção de um sistema orgânico É necessário, então, considerar que as de programação, capaz de incluir uma plateia políticas socioassistenciais, assim como as de ampla de sujeitos. Deve-se dizer que se trata recuperação urbana são relacionadas normal- somente de algumas experiências, ligadas ao mente a pessoas e contextos em condições ciclo político do momento. Não sendo isoladas precárias e situações em que não estão certos (em muitas municipalidades iniciaram-se práti- nem os recursos necessários para participar cas de participação de tipos variados, como os nem o interesse para tal fim (Borghi, 2006). O Balanços participativos), constroem situações envolvimento dos cidadãos e seu peso “polí- efêmeras. Todavia, são suficientes para lançar tico” dependem de modo determinante das uma tendência bastante inédita na Itália, que oportunidades que as formas institucionaliza- coloca em campo um perfil ativo da leadership das da negociação oferecem para o desenvol- política local e sua propensão a empreender vimento da agency e da voice. O que significa mudanças para a democracia. Em termos me- ter acesso àquele tipo de recursos (recursos nos nítidos, é o que aparece também nas pes- materiais, informações e conhecimentos, di- quisas conduzidas sobre os Contratos de bairro. reitos, legitimidades) que permitem exprimir- No conjunto, nesse modo, ativam-se dinâmi- -se e contar na cena decisional pública. O que cas sociais e institucionais que acrescentam, evidencia a observação da experimentação de maneira interdependente, as condições de em Friuli mencionada anteriormente. Nesse bem-estar (well-being) e as condições de exer- caso, é a redistribuição do poder de se decidir cício da voice, revitalizando a relação entre jus- relativamente sobre as próprias condições de tiça social e democracia. saúde e de vida que torna incisiva a participação. Uma redistribuição que é promovida e sustentada pela administração pública, princi- Conclusões palmente em nome da efetiva realização dos direitos à saúde dos cidadãos. Embora talvez abusada, a imagem das geome- A participação parece manter suas pro- trias variáveis exprime eficazmente a mobili- messas se e quando ocorrem conjuntamente dade e a incerteza que marcam as dinâmicas processos de aprendizado institucional e pro- atuais da governance, da territorialização e cessos de aprendizado social. Com relação aos da cidadania. Após apresentar característi- Planos de zona, foi evidenciado muito clara- cas e problemas principais dessas geometrias, mente que a leadership política local é decisiva concentrei-me em alguns casos de governance para que isso ocorra (Paci, 2008). Em alguns local na Itália especialmente significativos com Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 53 Lavinia Bifulco relação ao duplo fenômeno implicado pela ter- na prática. Por isso, a abertura, a inclusivida- ritorialização: a reorganização territorial entre de e a pluralidade das sedes decisionais e escalas de governo; a ancoragem de políticas e projetuais são dimensões a se indagar de perto intervenções no território. e com atenção; A análise mostra a coexistência entre ● quanto à redistribuição do poder, os resul- oportunidades de inovação e riscos de poste- tados mais inovadores – em termos tanto de riores fragmentações. Mais precisamente: novos atores legitimados a participarem das como vimos a respeito dos Contratos de negociações, quanto de lógicas e efeitos da bairro e dos Planos sociais de zona, toma vida negociação – são levantados onde o ator pú- uma variedade de arenas institucionais. Nes- blico tende a exercer um papel de promoção sa variedade, expressam-se os processos de e mediação. Às vezes, é a leadership política institution building que dinamizam o desenho que domina a cena, sustentando, de modo ex- e a implementação das políticas nos contextos plícito, uma opção de melhoria da democracia locais. O alimento principal é a capacidade de que aponta para uma declinação participada estabelecer molduras normativas e visões com- da programação; ● partilhadas capazes de suportar as interações ● os mecanismos da localização, de um lado, cooperativas intra e interinstitucionais em tor- criam um terreno favorável para as inovações, no de problemas comuns (Donolo, 1997). Em de outro, arriscam reforçar antigos problemas muitos aspectos, trata-se de “quase-institui- italianos, como a fragmentação institucional, ções”, a partir do momento que a sua existên- a incerteza dos direitos e a autarquia local. Os cia é condicionada pela vontade dos diversos problemas podem ser especialmente agudos partners que contribuem para sua constituição quando faltam mecanismos redistributivos (Vino, 2003); interterritoriais. Além disso, em alguns casos, graças às práticas inovadoras da cidadania os governos locais acabam por ter maiores res- que se realizam localmente, as questões de jus- ponsabilidades, mas em ausência de recursos tiça social assumem um peso decisivo com re- adequados, segundo os mecanismos típicos da lação ao processo democrático. Essas práticas, “descentralização da penúria” que tornam vã porém, realizam-se de modo não homogêneo qualquer atribuição de liberdade de ação. ● no território nacional e têm recaídas pouco ge- A territorialização é um quebra-cabeça e neralizáveis. O problema é que a referência à será necessário certo tempo para se entender escala local – como todas as referências terri- melhor como combinar problemas e oportuni- toriais – tem um poder inclusivo, mas também dades. Lembrando que um excesso de individua- efeitos de exclusão. Além disso, a participação lização no espaço causa localismo (Bagnasco, promete tanto a princípio quanto é complicada 2003), o mais insidioso dos problemas. Lavinia Bifulco Professora associada de sociologia da Faculdade de Sociologia da Universidade de Milano-Bicocca. Milão, Itália. [email protected] 54 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 Governance e territorialização Notas (*) Revisão técnica de Patacom Consultoria Linguís ca. (1) Como observa Janet Newman (2005), sobretudo as versões da teoria da governance emergente na Europa con nental estão, em geral, muito atentas ao “social” e tendem a conceitualizar modelos de governo e de regulação baseados na interação estado-sociedade. (2) Os Planos sociais de zona foram indagados no curso do trabalho cole vo de pesquisa desenvolvido em vários anos (financiamentos MIUR) no âmbito do Laboratório Sui Generis, da Universidade de Milão-Bicocca, coordenado por Ota de Leonardis. Mais precisamente, foram analisados dois Planos de zona na Campania, no sul da Itália, dois Planos de zona na Lombardia, no norte da Itália, e dois distritos sociossanitários em Friuli-Venezia Giulia, no nordeste. A escolha das três regiões levou em consideração a combinação entre três dimensões: a macroárea territorial; o modelo de governance regional; os recursos públicos de welfare. Para uma apresentação mais sistemática dos resultados de pesquisa ver Bifulco (2005); Monteleone (2007). Quanto aos Contratos de bairro, trata-se de análise de po secundário que fazem referência, principalmente, ao conjunto das experiências da Lombardia realizadas no âmbito do segundo anúncio. (3) Um tema tão importante quanto ambíguo. A a vação, de fato, pode ser entendida de maneiras diferentes: como par cipação no mercado de trabalho; como empowerment; como cidadania a va (van Berkel e Møller, eds., 2002). (4) Isto é, estrangeiros que gozam somente de uma parte de direitos. (5) Neste quadro, a dupla dinâmica de desterritorialização e reterritorialização se manifesta muito claramente na emergência de um regime que assegura liberdade de movimento aos cidadãos da União Europeia, enquanto reforça os controles sobre os migrantes (Bauböck e Guiraudon, 2009). (6) Atualmente se encontra em vias de definição um sistema de federalismo fiscal. (7) Na maior parte dos casos, de fato, a tarefa de elaborar o Plano é confiada às associações entre municípios e não aos municípios sozinhos. Referências BAGNASCO, A. (2003). Società fuori squadra. Bologna, Il Mulino. BAUBÖCK R. e GUIRAUDON, V. (2009). Introduc on: realignments of ci zenship: reassessing rights in the age of plural memberships and mul -level governance. Ci zenship Studies, v. 13, n. 5, pp. 439-450. BENASSI, D. e MINGIONE, E. (2002). Welfare locale, lo a all'esclusione sociale e riforma dell'assistenza in Italia. Economia & lavoro, v. 36, n. 1, pp. 79-95. BIFULCO, L. (org.) (2005). Le poli che sociali. Roma, Officina. BIFULCO, L.; BRICOCOLI, M. e MONTELEONE, R. (2008). Ac va on and Local Welfare in Italy: trends, issues and a case study. Social Policy&Administra on, n. 2, pp. 143-159. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 55 Lavinia Bifulco BIFULCO, L. e CENTEMERI, L. (2008). Governance and Par cipa on in Local Welfare. The Case of the Italian Piani di zona (Area Plans). Social Policy & Administra on, n. 3, pp. 211-227. BIFULCO, L. e DE LEONARDIS, O. (2003). “Partecipazione o partnership. Una conversazione sul tema”. In: KARRER, F. e ARNOFI, S. (org.). Lo spazio europeo fra pianificazione e governance. Firenze, Alinea. BOBBIO, L. (2000). Produzione di poli che a mezzi di contra Stato e Mercato, n. 1, pp. 111-141. nella pubblica amministrazione italiana. ______ (2006). “Le poli che contra ualizzate”. In: DONOLO, C. (org.). Il futuro delle poli che pubbliche. Milano, Bruno Mondadori. BORGHI, V. (2006). Tra ci adini e is tuzioni. La Rivista delle Poli che Sociali, n. 2, pp. 147-182. BRENNER, N. (2004). New state spaces: urban governance and the rescaling of statehood. Oxford, Oxford University Press. ______ (2009). Open ques ons on state rescaling. Cambridge Journal of Regions, Economy and Society, n. 2, pp. 123–139. BRIATA, P.; BRICOCOLI, M. e TEDESCO, C. (2009). Ci à in periferia. Poli che urbane e proge Francia, Gran Bretagna e Italia. Roma, Carocci. locali in BRICOCOLI, M. (2007). “Territorio, contra ualizzazione e poli che urbane”. In: MONTELEONE, R. (org). La contra ualizzazione nelle poli che sociali. Roma, Officina Edizioni. CALISE, M. (2006). La Terza Repubblica. Roma-Bari, Laterza. CROUCH, C. (2003). Postdemocrazia. Roma- Bari, Laterza. DE LEONARDIS, O. e MONTELEONE, R. (2007). “Dai luoghi della cura alla cura dei luoghi”. In: MONTELEONE R. (org.). La contra ualizzazione nelle poli che sociali. Roma, Officina Edizioni. DONOLO, C. (1997). L’intelligenza delle is tuzioni. Milano, Feltrinelli. DONZELOT, J. (2006). Quand la ville se défait. Paris, Le Seuil. FERRARESE, M. R. (2011). “La governance e la democrazia postmoderna”. In: PIZZORNO, A. (org). La democrazia di fronte allo Stato. Milano, Feltrinelli. FERRERA, M. (2005). The Boundaries of Welfare. European Integra on and the New Spa al Poli cs of Social Protec on. Oxford, Oxford University Press. GARCÍA, M. (2006). Ci zenship prac ces and urban governance in european ci es. Urban Studies, v. 43, n. 4, pp. 745-765. GINSBORG, P. (2006). La democrazia che non c’è. Torino, Einaudi. GUALINI, E. (2006). The Rescaling of Governance in Europe: New Spa al and Ins tu onal Ra onales. European Planning Studies, v. 14, n. 7, pp. 991-904. ISFOL (2006). Il monitoraggio dei Piani di zona: prime evidenze. Roma, www.isfol.it. KAZEPOV, Y. (2009). “La sussidiarizzazione delle poli che sociali in Italia”. In: KAZEPOV, Y. (org.). La dimensione territoriale delle poli che sociali in Italia. Roma, Carocci. KEATING, M. (1997). The inven on of regions: poli cal restructuring and territorial government in Western Europe. Environment and Planning C, v. 15, n. 4, pp. 383-398. 56 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 Governance e territorialização ______ (2009). Social citizenship, solidarity and welfare in regionalized and plurinational states. Ci zenship Studies, v. 13, n. 5, pp. 501-513. LASCOUMES, P. e LE GALÈS, P. (org.). (2004). Gouverner par les instruments. Paris, Presses de Sciences-Po. LE GALÈS, P. (2002). European Ci es. Oxford University Press, Oxford. MAGNATTI, P.; RAMELLA, F.; TRIGILIA, C. e VIESTI, G. (2005). Pa territoriali. Bologna, Il Mulino. MARSHALL, T. H. (1950). Ci zenship and social class and other essays. Cambridge, CUP. MONTELEONE, R. (org.) (2007). La contra ualizzazione delle poli che sociali. Roma, Officina. MORENO, L. e MCEWEN, N. (2005). “Exploring the Territorial Poli cs of Welfare”. In: McEWEN, N. e Moreno, L. (org.). The territorial poli cs of welfare. Londres, Routledge. NEWMAN, J. (2005). Remaking governance: peoples, poli cs and the public sphere. Bristol, Policy Press. NEWMAN, J. e CLARKE, J. (2009). Publics, poli cs and power: remaking the public in public services. Londres, Sage. PACI, M. (org.) (2008). Welfare locale e democrazia partecipa va. Bologna, Il Mulino. PICHIERRI, A. (2001). Concertazione e sviluppo locale. Stato e mercato, n. 62, pp. 237-266. PISELLI, F. (2005). Capitale sociale e società civile nei nuovi modelli di governance locale. Stato e Mercato, n. 3, pp. 455-485. POLIZZI, E. (2008). Programmazione locale e piani di zona. Costruire le poli che sociali con la società civile. Autonomie Locali e Servizi Sociali, n. 3, pp. 437-456 PURCELL, M. (2006). Urban democracy and the local trap. Urban Studies, v. 43, n. 11, pp. 1921-1941. SARACENO, C. (org.) (2002). Social assistance dynamics in Europe: na onal and local poverty regimes. Bristol, Policy Press. SASSEN, S. (2006). Territory, authority, rights: from medieval to global assemblages. Princeton, Princeton University Press. SAVOLDI. P. (2006). Giochi di partecipazione. Milano, Franco Angeli. TRIGILIA, C. (2005). Sviluppo locale. Bari-Roma, Laterza. VAN BERKEL, R. e MØLLER, I. H. (org.) (2002). Ac ve social policies in the EU. Bristol, Policy Press. VINO, A. (2003). Proge azione delle poli che pubbliche e proge azione is tuzionale: su di alcune competenze emergen della dirigenza pubblica, mimeo. Texto recebido em 12/jul/2011 Texto aprovado em 26/ago/2011 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 57 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta* Electoral strategy under open-list proportional representation Barry Ames Resumo Este texto revela de forma inovadora traço distintivo do nosso sistema eleitoral proporcional de lista aberta, a saber, a existência de quatro modalidades de distribuição espacial do voto a partir das quais se elegem quatro tipos de representantes para nossas casas legislativas: deputados com votação concentrada e dominante, deputados com base fragmentada e dominante, deputados com votação concentrada e partilhada e deputados com votação fragmentada e partilhada. O texto aponta, por meio da análise de emendas ao orçamento, o incentivo ao distributivismo e a práticas clientelistas decorrentes de propriedades de nosso sistema eleitoral. Correlaciona dados de carreira política às modalidades diversas de distribuição do voto, discrimina as circunscrições eleitorais seguras e avalia, por fim, o retorno eleitoral de práticas distributivas. Abstract The current paper discloses a distinctive trait of the open-list proportional representation adopted in Brazil. In such a system, congressmen are in fact elected from four spatial patterns or constituencies : concentrated - dominant municipalities, concentrated-shared municipalities, scattered-shared municipalities and scattered-dominant municipalities. Through the analysis of budgetary amendments made by congressmen the article sheds light on pork barrel practices that stem from our electoral system. The article also correlates variables of political career with spatial patterns of vote distribution, tries to discriminate safe seats in Brazil and, finally, the payoff of distributive and parochial attitudes. Palavras-chave: geografia; voto; localismo; distributivismo. Keywords: geography; vote; parochialism; pork barrel. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 Barry Ames Teoria: Este artigo desenvolve uma teoria sobre estratégias de candidatos com base procurar obter benefícios políticos e enfraquece os programas e a disciplina dos partidos. em princípios da escolha social e no funciona- A América Latina, em meados da déca- mento da representação proporcional com lista da de 1990, é uma região marcada pelo oti- aberta. A teoria é utilizada para explicar o com- mismo. Democracias incipientes sobrevivem; portamento na campanha e os padrões espa- economias se estabilizam e crescem. Mas o ciais de distribuição dos votos dos candidatos à Brasil continua a ser um enigma. Enquanto os Câmara dos Deputados brasileira. preços sobem 30% ao mês e a distribuição de Hipóteses : As estratégias de campa- renda piora, o legislativo obstrui as tentativas nha são avaliadas com modelos que preveem de estabilização até que o executivo forneça quando os deputados submeterão emendas empregos de baixo nível para os correligioná- orçamentárias para beneficiar municípios- rios. Uma corrupção sem precedentes faz com -alvo cujos votos querem garantir nas eleições que o Congresso afaste o primeiro presidente subsequentes. Os municípios-alvo são escolhi- eleito pelo povo em 30 anos; um ano depois, dos em função do custo de erguer barreiras à um novo escândalo de corrupção abala o pró- entrada de outros candidatos, da dominação prio Congresso. do deputado no município, da concentração Cada vez mais, os observadores culpam espacial da votação estadual do deputado, as instituições políticas brasileiras. Considere o da vulnerabilidade do município à invasão de sistema partidário e o legislativo. Mesmo pelos candidatos de fora, da fragilidade do deputa- padrões latino-americanos, o sistema parti- do na última eleição e da carreira política an- dário brasileiro é frágil (Mainwaring e Scully, terior do deputado. 1992). Poucos partidos têm raízes genuínas na Métodos: Regressão logística das emen- sociedade. A parte dos votos que cabe a cada das ao orçamento nacional brasileiro em 1989 partido é volátil ao longo do tempo e entre e 1990 e regressão OLS dos resultados eleito- eleições presidenciais e legislativas. No Con- rais no nível municipal para a Câmara dos De- gresso, os líderes dos partidos exercem pouco putados brasileira nas eleições de 1990. controle sobre suas delegações. Muitos depu- Resultados : Os deputados buscam re- tados, senão a maioria, gastam a maior parte dutos eleitorais seguros, procuram municípios de seu tempo arranjando empregos e projetos vulneráveis e lutam para superar suas próprias governamentais que rendam benefícios a seus fragilidades eleitorais por meio de práticas benfeitores e eleitores. Embora partidos bem- clientelistas. As táticas dos candidatos variam, -sucedidos nas eleições abranjam uma ampla em parte, porque os passados políticos são di- gama ideológica, alguns dos maiores partidos ferentes e em parte porque os diferentes con- “de centro” são, na verdade, apenas cascas pa- textos demográficos e econômicos dos estados ra deputados sem nenhum interesse em políti- brasileiros recompensam algumas táticas e ca. Poucos partidos se organizam em torno de penalizam outras. O comportamento dos can- questões de nível nacional; consequentemente, didatos dificulta o controle dos eleitores so- o Congresso raramente aborda questões so- bre os deputados, aumenta os incentivos para ciais e econômicas sérias. 60 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta Os presidentes do Brasil se beneficiam e os problemas do legislativo e do executivo. pouco da fragilidade do Congresso. Com chan- Este artigo examina as eleições para a Câmara ces mínimas de obter apoio legislativo estável, dos Deputados. Focalizo as consequências da o executivo enfrenta governadores indepen- versão brasileira de representação proporcional dentes, um calendário eleitoral que impõe elei- com lista aberta para estratégias individuais de ções em três de cada cinco anos, municípios campanha e para os tipos de deputados que que dependem, para sua própria sobrevivência, ganham cadeiras no legislativo, e investigo as da generosidade federal e uma quantidade maneiras como as estratégias de campanha substancial de deputados que valorizam sua atuam em estados com diferentes característi- própria renda em primeiro lugar, a reeleição em cas sociais e econômicas. Minha exposição tem segundo e a política pública em um distante início com um esboço do sistema eleitoral e terceiro lugar. Os presidentes governam for- uma taxonomia dos padrões espaciais de votos. mando coalizões baseadas em nomeações para Em seguida, apresento uma teoria que explica o gabinete. Pelo fato dessas nomeações terem as estratégias adotadas por diferentes candida- que satisfazer tanto as demandas do partido tos à Câmara dos Deputados. A teoria se baseia quanto as demandas regionais, os gabinetes em noções de estratégia desenvolvidas na lite- tendem a ser bastante inclusivos (Abranches, ratura sobre escolha social, adaptadas ao con- 1988). Os programas governamentais cliente- texto político e social do Brasil. Testar a teoria listas necessários para mantê-los são dispen- exige medir as intenções dos deputados. Utilizo diosos e inovações nas políticas são extrema- as emendas orçamentárias: os deputados sub- mente difíceis. metem emendas para beneficiar localidades No cerne da crise institucional do Brasil onde buscam recompensar aliados e recrutar está o sistema eleitoral. Um conjunto singular novos eleitores. Assim, a análise empírica tem de regras, geralmente conhecido como “re- início com um modelo que prediz a chance de presentação proporcional com lista aberta”, que um determinado deputado submeta uma governa as eleições legislativas. Pesquisadores emenda orçamentária beneficiando um deter- têm investigado a versão brasileira da repre- minado município. Em seguida, testo a eficácia sentação proporcional com lista aberta, mas a das estratégias dos candidatos elaborando um ausência de dados apropriados tem limitado as modelo dos totais de votos obtidos pelos depu- pesquisas tanto em termos de escopo como em tados na eleição legislativa de 1990. Na con- 1 profundidade (cf. De Souza e Lamounier, 1992; clusão, enfatiso três amplas consequências do Fleischer, 1973, 1976, 1977; Kinzo, 1987; Lima comportamento estratégico dos deputados: o Junior, 1991; Mainwaring, 1993). afrouxamento do vínculo mandante-mandatá- Em resumo, é possível que a consolida- rio entre eleitores e deputados, a intensificação ção da democracia no Brasil dependa de nossa dos incentivos para tentativas de obtenção de compreensão da relação entre estruturas ins- benefícios políticos e o enfraquecimento dos titucionais, especialmente o sistema eleitoral, programas e da disciplina partidários. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 61 Barry Ames O sistema eleitoral brasileiro Nas eleições para a Câmara Nacional dos Deputados, cada estado brasileiro é um distrito único, representativo do conjunto da população e constituído por vários deputados. O número de cadeiras por estado varia de oito a 70. Estados pouco povoados são sobrerrepresentados; estados muito povoados, principalmente São Paulo, são sub-representados. As leis eleitorais permitem reeleição ilimitada, e os partidos não podem se recusar a propor novamente a candidatura de deputados que estão exercendo o mandato. Os eleitores votam, em cédulas únicas, ou na legenda do partido – nesse caso, seu voto apenas se soma ao total do partido – ou em candidatos individuais. A maioria vota em indivíduos. Os nomes dos candidatos não aparecem em lugar nenhum na cédula; ao invés disso, o eleitor precisa escrever o nome ou código do candidato. O método D’Hondt determina quantas cadeiras cada partido ganha; a ordenação individual dos votos determina quais candidatos recebem as cadeiras.2 Outros países, incluindo a Finlândia e o Chile pré-1973, adotaram a representação proporcional com lista aberta, mas a versão do Brasil é diferente em dois aspectos: no Brasil, Os regulamentos das campanhas brasileiras são, ao mesmo tempo, restritivos e permissivos. Por exemplo, os candidatos não podem comprar publicidade no rádio ou na televisão. A maioria dos candidatos publica anúncios em jornais, mas a publicidade impressa produz pouco impacto (Straubhaar, 1993). Os candidatos colocam outdoors e cartazes nas paredes, mas geralmente o fazem em conjunto com outros esforços de campanha, tais como participação em comícios ou entrega de obras públicas a líderes locais. Leis de gastos permissivas possibilitam que candidatos à legislatura federal financiem as campanhas dos candidatos às assembleias legislativas estaduais. Pelo fato de que os distritos de assembleias estaduais também abrangem estados inteiros, e os deputados são eleitos para representar toda a população do estado, os políticos se engajam em dobradinhas, nas quais candidatos ao legislativo federal pagam pela literatura de campanha dos candidatos a assembleias cujas bases de apoio ficam distantes. Os candidatos a assembleias retribuem instruindo os correligionários a votar em seu benfeitor para o legislativo nacional. Obviamente, tais acordos não acrescentam muito aos vínculos entre os representantes e seus eleitores. partidos estaduais, não nacionais, selecionam candidatos legislativos, e o distrito eleitoral (o estado) é uma arena política importante por si Uma taxonomia de padrões espaciais mesmo. Em alguns estados, governadores poderosos controlam lançamentos de candidatu- Em termos legais, os candidatos buscam votos ras e dominam campanhas; em outros, líderes em todos os lugares dentro de seus estados, locais entregam blocos de votos a candidatos mas na realidade a maioria limita suas campa- dispostos a fazer acordos; em outros ainda, nhas geograficamente. Os padrões espaciais nem os governadores, nem os chefes locais têm resultantes possuem duas dimensões no nível 3 muita influência sobre os votos individuais. 62 estadual, cada uma baseada em desempenho Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta municipal. Suponha que, para todos os can- dominar seus municípios-chave; aqueles com didatos em cada município, calculemos Vix , a médias ponderadas mais baixas compartilham quota do candidato i de todos os votos dados seus municípios-chave com outros candidatos. no município x. Definimos a dominação muni- Assim, “dominação-compartilhamento” é a cipal de cada candidato como a quota do can- primeira dimensão do apoio espacial. didato dos votos totais dados aos membros de A segunda dimensão também se inicia todos os partidos. Essas quotas representam a com Vix , a quota do candidato i do total de dominação dos candidatos no nível municipal.4 votos dados em cada município, mas essa di- Agora, suponha que usemos Vix para calcular mensão avalia a distribuição espacial dos mu- D i , a dominação média para cada candidato nicípios em que o candidato se sai bem. Esses em todos os municípios do estado, ponderada municípios podem estar concentrados, como pela porcentagem dos votos totais do candi- vizinhos próximos ou contíguos, ou dispersos. dato fornecida por cada município. Candidatos A combinação das duas dimensões produz com médias ponderadas mais altas tendem a quatro padrões espaciais: Figura 1 – Distribuição de votos concentrada-dominante: quota municipal de votos de Laire Rosado Maia, PMDB-RN Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 63 Barry Ames Municípios concentrados-dominados . Rosado Maia recebe todos os seus votos nes- Esse é o clássico “reduto” brasileiro, onde um sa região e, além disso, outros candidatos deputado domina um grupo de municípios raramente ousam competir em seu reduto contíguos. As famílias dos candidatos podem impermeável. ter tradições de poder na região; pode ser que Municípios concentrados-compartilha- eles galguem os degraus da política a partir dos . Em grandes áreas metropolitanas tais de empregos locais; talvez façam acordos com como a Grande São Paulo, uma determinada chefes locais. A Figura 1 mapeia os votos do coorte de eleitores pode ser suficiente para deputado Laire Rosado Maia na eleição de eleger muitos candidatos. Os candidatos da 5 1990, ilustrando concentração extrema. Ro- classe trabalhadora, por exemplo, frequen- sado Maia recebeu quase todos seus votos na temente recebem três quartos de sua vota- Tromba do Elefante, a seção ocidental do Rio ção estadual total de um único município, a Grande do Norte. Os Maias controlam o Oeste cidade de São Paulo. Mas talvez eles nunca há tempos – há até uma cidade com o nome recebam mais do que 5% dos votos dados na da família. Note que nos locais onde Rosado cidade ou em qualquer outro município, pois Maia recebeu votos, ele ganhou uma média de compartilham esses municípios com muitos pelo menos 50% de todos os votos. Portanto, outros candidatos. Figura 2 – Distribuição de votos dispersa-dominante: quota municipal de votos de João Alves, PFL-Bahia 80 60 40 20 0 64 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta Municípios dispersos-compartilhados . Alguns candidatos recorrem a coortes de eleitores cujo apoio é numericamente pequeno dentro de um único município. Dois exemplos comuns são os nipo-brasileiros e os evangéli- Uma teoria sobre as estratégias dos candidatos sob a representação proporcional com lista aberta cos, protestantes que tipicamente votam em candidatos evangélicos. Essas coortes são coe- As estratégias ideais de campanha diferem in- sas e leais, mas não são muito grandes; assim, tensamente entre sistemas eleitorais proporcio- os candidatos que dependem desses eleitores nais e majoritários. Pelo fato de que pequenas constroem coalizões compostas de pequenas fatias do eleitorado podem garantir a vitória 6 fatias de muitos municípios. nas eleições proporcionais, os candidatos que Municípios dispersos-dominados . Esse querem se eleger concentram-se não no eleitor padrão se ajusta a candidatos que alguma vez médio, mas em coortes distintas de eleitores tiveram cargos burocráticos de nível estadual, (Cox, 1990). Como os candidatos definem essas como secretário de educação, um cargo que coortes depende, obviamente, do tamanho dos tem um potencial clientelista substancial. O pa- alvos potenciais e do total de votos necessá- drão também é típico de candidatos que fazem rio para serem eleitos. As estratégias também acordos com líderes locais. A Figura 2 apresen- dependem do custo das campanhas conforme ta os votos de João Alves, um político baiano os candidatos se distanciam dos principais dos velhos tempos, na eleição de 1990. A força correligionários, da existência de líderes locais dos votos de Alves se dispersou pelo estado, procurando por patronagem, da concentração mas ele recebeu muitos votos nesses locais. espacial do início das carreiras políticas dos João Alves conquistou 70-80% dos votos em candidatos, e da simultaneidade das eleições municípios tão dispersos fazendo acordos onde para outros níveis de governo. quer que encontrasse chefes locais disponíveis. Alves distribuía benefícios; os chefes retribuíam com votos. João Alves presidia a Comissão Orçamentária do Congresso. Em 1993, investigadores do congresso o acusaram de receber Como os candidatos calculam os custos e benefícios dos apelos aos eleitores dezenas de milhões de dólares em propinas de construtoras. João Alves chegou ao Congresso Os candidatos sabem aproximadamente quan- em 1966 sem dinheiro; no início da década de tos votos garantem uma cadeira na delegação 1990, possuía milhões de dólares em imóveis e congressista do seu estado. Esse mínimo de- um avião de $6 milhões.7 pende do resultado esperado e do número de Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 65 Barry Ames votos recebidos pelos candidatos mais popula8 cidade e a ser mais deferentes em relação aos res do seu partido. Dada uma meta de votos, proprietários. Esses trabalhadores apóiam can- os candidatos imaginam várias maneiras de didatos que oferecem benefícios particularistas construir coalizões vencedoras. Seus cálculos ao invés de candidatos que prometem fazer a estratégicos centralizam-se nos custos e be- reforma social.9 nefícios de apelar a qualquer grupo potencial. A identificação com a comunidade, es- Esta seção examina alguns princípios que afe- pecialmente em pequenas comunidades, acon- tam os cálculos dos candidatos sob as regras tece de modo quase automático. Os políticos eleitorais brasileiras. Esses princípios operam locais tentam fortalecer a identificação com a em todo o país, isto é, independentemente de comunidade porque sua própria influência de- contextos subnacionais. Em seguida, abordo pende de conseguir votos para os candidatos. A aspectos da política brasileira que variam en- centralidade de cargos governamentais facilita tre estados. a mobilização dos eleitores em pequenas co- Eleitores como membros de grupos po- munidades, e o fato de a proteção do serviço litizados. Um candidato racional procura gas- público restringir-se a posições de baixo nível tar a menor quantidade de recursos e obter o politiza os cargos em setores públicos. Devido maior apoio possível. O alvo ideal é um mem- ao fato de que as eleições para cargos executi- bro consciente de si mesmo pertencente a um vos locais e para cargos legislativos são escalo- grande grupo que possua uma identificação nadas, as autoridades locais sabem que estarão ou queixa politizada. Os nipo-brasileiros, por no cargo tanto antes como depois das eleições exemplo, sempre compreendem sua etnia; os legislativas; assim, são encorajados a fazer evangélicos sabem que não são católicos. No acordos com candidatos legislativos. entanto, os evangélicos têm maior probabili- A dificuldade de assegurar benefícios pa- dade de ver a si mesmos como vítimas do que ra o grupo. Os deputados buscam apoio para os nipo-brasileiros; assim, o voto evangélico é suas promessas de campanha no legislativo. mais unificado. Em ambos os casos, os que es- Optam por benefícios geograficamente indivi- tão de fora veem a divisão de maneira menos dualizáveis, por programas clientelistas, quan- intensa; portanto, os candidatos podem ga- do o sistema decisório é fragmentado e a de- nhar o voto dos evangélicos sem perder todos manda por bens públicos é alta, relativamente os católicos. estável e específica de um distrito (Lowi, 1964; No extremo oposto, em termos de per- Salisbury e Heinz, 1970). O Brasil se caracteriza manência e politização de identificações, estão por ter estados poderosos que agem de acordo os grupos ocupacionais. Para os trabalhadores com seus próprios interesses, seleção de candi- industriais, a consciência de classe depende da datos ao congresso no nível estadual, municí- natureza do processo de produção, dos salários pios que elegem governos locais independente- e da organização do trabalho. Os trabalhado- mente, lideranças fracas de partidos nacionais res de fábricas pequenas, especialmente no se- e separação de poderes entre o presidente e o tor informal, tendem a ser mais jovens, menos legislativo federal. Ademais, enormes desigual- qualificados, a ter chegado há menos tempo na dades regionais deixam alguns municípios tão 66 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta pobres que empregos governamentais e subsí- intermediário oferecem dinheiro ou uma fatia dios são fontes cruciais de renda. Assim, a polí- do benefício assegurado, como um contrato tica brasileira favorece a provisão de benefícios para construir uma rua. Se o intermediário er- locais, geograficamente separados. guer com sucesso barreiras rígidas contra a en- Os custos e benefícios das barreiras que trada de outros intermediários, os candidatos impedem a entrada. Os deputados procuram pagarão mais pelos votos do intermediário do isolar as coortes de eleitores das incursões que a soma dos valores que pagariam por ca- de competidores porque sabem que as bar- da voto individualmente. Se, pelo contrário, o reiras que impedem a entrada, eliminando a intermediário não conseguir proteger seu ter- competição, reduzem o custo das campanhas. ritório, os candidatos pagarão um valor total A dificuldade de erguer barreiras depende da mais baixo por esses votos do que seus valores natureza do grupo a ser blindado. Aumentos individuais. Qualquer que seja o valor e a for- salariais, por exemplo, requerem amplas coali- ma de pagamento, a remuneração dos inter- zões legislativas; portanto, é difícil para qual- mediários exige que os candidatos garantam quer pessoa reivindicar crédito exclusivo. As recursos individualizáveis. barreiras contra forasteiros étnicos, por outro lado, são essencialmente automáticas, mas são mais dispendiosas para erguer contra outras etnias que pertençam ao grupo. O custo da comunicação com eleitores potenciais É difícil erguer barreiras ao redor de localidades específicas? Um simples “Você não Fazer campanhas no Brasil é uma atividade é daqui” blinda uma comunidade pequena e direta, realizada junto ao povo.10 Os candi- altamente integrada. Violência, sob a forma de datos visitam pequenas comunidades, fazem interrupção de comícios ou ameaças físicas, é reuniões e realizam comícios. É racional fazer rotineira em áreas rurais. Comunidades mais campanha em locais em que sua mensagem diversas desenvolvem competição entre fac- atinge poucos eleitores? Na verdade, é. Em ções, na qual cada lado conta com correligioná- primeiro lugar, quanto mais concentrado for rios fortemente partidários. Em áreas urbanas o grupo-alvo, menor será o custo de construir complexas, nenhuma facção ou líder controla uma coalizão vencedora. Em segundo lugar, uma parcela significativa do eleitorado, e a coalizões eleitorais que cobrem pequenas polícia não deve favores a políticos individuais. áreas têm grande probabilidade de ser locacio- Muitos candidatos tentam conseguir votos e as nais, isto é, baseadas puramente na identifica- barreiras contra forasteiros de qualquer partido ção com a comunidade. Embora teoricamente são difíceis de manter. os critérios locacionais e não-locacionais com- Suponha que um intermediário controle binem perfeitamente (todos os habitantes do o acesso a um grupo de eleitores. Esse contro- Sul são negros, todos os habitantes do Norte le deriva de alguma combinação entre coerção são brancos), existem poucos casos como e distribuição anterior de empregos ou servi- esse no Brasil. Assim, a distância física entre ços. Deputados tentando obter os votos do um candidato e o último eleitor, o eleitor cujo Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 67 Barry Ames apoio garante a vitória, é quase sempre menor 11 para coalizões locacionais. muitos candidatos locais, concorrer ao legislativo federal é a primeira atividade política que O suprimento de políticos. As trajetórias abrange todo o estado. Como os candidatos lo- das carreiras dos candidatos restringem suas cais começam com um único pico de reconhe- estratégias de campanha e padrões de votos. cimento de seus nomes, uma campanha con- Candidatos locais, isto é, ex-prefeitos ou verea- centrada é a escolha óbvia. Mas suponha que o 12 dores, sempre existirão em abundância. Exce- candidato tenha chefiado um departamento do to aqueles cujas carreiras estão enraizadas em governo que administrava ruas ou escolas. Cer- grandes áreas metropolitanas, os candidatos tamente, os burocratas que estiverem conside- locais naturalmente desenvolvem distribuições rando a carreira política alocariam projetos de concentradas, pois o reconhecimento de seu modo a obter vantagens políticas, e tais can- nome diminui conforme a distância em relação didatos se tornariam conhecidos nas comuni- ao seu emprego local aumenta. O que acontece dades que se beneficiam da sua generosidade. quando aparecem candidatos que trabalharam Assim, o apoio dos votos de tais candidatos de- na burocracia do estado, ou candidatos sem veria ser disperso ao invés de concentrado. Se história política? Não é uma pergunta simples, eles dominarão ou compartilharão municípios pois em qualquer eleição, o mix de carreiras depende do município-alvo e do programa que dos candidatos depende de dois conjuntos de dirigiram. Nas comunidades rurais, a domina- fatores. Um conjunto (que pode ser chamado ção pode resultar do fato de que um único pro- de endógeno) depende do contexto da própria grama afeta muitas pessoas intensamente ou eleição, no sentido de que as novas candidatu- do programa ter sido elaborado para comprar o ras dependem da distribuição inicial dos candi- apoio de pessoas influentes locais, ao invés de datos que estão exercendo seus mandatos. Por eleitores individuais.13 Comunidades urbanas exemplo, em locais em que os custos do trans- absorvem múltiplos programas – muitas vezes, porte são altos, onde o reconhecimento do no- dirigidos por políticos rivais – e os eleitores não me do candidato em todo o estado é baixo, on- são tão facilmente controlados. Finalmente, de há pouca concentração de trabalhadores ou suponha que a carreira do candidato seja na de etnias e onde os eleitores preferem candi- área de negócios. As pessoas dessa área talvez datos com experiência política municipal, ape- comecem com algum pico de reconhecimento nas os tipos locais se oferecem. Mas o mix de central ao redor da localização do seu negó- carreiras dos candidatos também depende de cio, mas tais picos raramente são tão grandes um segundo conjunto de fatores, exógeno no quanto os dos políticos locais. Sua vantagem sentido de que novas candidaturas respondem é o dinheiro: camisetas, panelas de pressão (a às oportunidades e recompensas da atividade metade inferior dada antes da eleição, a meta- legislativa. Pessoas com formações diferentes de superior depois) e empregos políticos para tornam-se candidatos porque buscam extrair os eleitores. O dinheiro compra os chefes po- recompensas pessoais da atividade legislativa. líticos que controlam os eleitores, e o dinheiro Meu argumento é simples: em campa- engraxa as dobradinhas entre os candidatos às nhas, o que você fez afeta o que você faz. Para assembleias legislativas estaduais e à Câmara 68 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta Federal. Portanto, para os executivos, o apoio devem procurar votos em território inimigo. E disperso produz resultados: o candidato estra- como os municípios compartilhados são mais tégico da área de negócios compra o apoio on- vulneráveis do que os dominados, a dominação de quer que ele esteja disponível. e também a concentração devem diminuir para Neste ponto, é necessário distinguir entre os candidatos locais. desafiantes e titulares dos cargos. Suponha que Mudanças na concentração espacial tam- um político local desafie o titular em um redu- bém ocorrem entre candidatos não locais. Os to concentrado-dominante. Superficialmente, o principais círculos eleitorais dos candidatos que desafio lembra uma disputa por uma cadeira dependem de distribuições dispersas – evangé- ocupada na Câmara do Deputados dos EUA, licos, apresentadores de TV e burocratas do es- mas, na verdade, é mais difícil. Redutos locais tado – são relativamente estáveis em tamanho; geralmente são esparsamente povoados. Se o portanto, tais candidatos precisam de novos desafiante conseguir apenas 51% dos votos seguidores. Como um pouco dos benefícios que do titular, o confronto levará à derrota mútua. esses deputados dão aos seus principais correli- Como os benefícios são mais importantes do gionários beneficia outros nos mesmos municí- que a política nacional, nem os chefes locais, pios, e como os deputados economizam recur- nem os eleitores querem substituir um deputa- sos permanecendo perto de seu apoio principal, do que os tenha beneficiado. Disputas locais, sua concentração espacial deve aumentar. portanto, são tão difíceis que raramente ocor- Os homens de negócios inicialmente rem.14 A menos que o titular negligencie o dis- compram votos dando propinas para chefes trito ou enfureça o chefe local, os desafiantes locais, mas uma vez na legislatura, é provável terão que esperar alguém se aposentar. que busquem apoio mais popular para preen- O que devemos esperar dos próprios ti- cher o espaço entre as áreas onde são fortes. A tulares locais? Dada a baixa frequência de de- concentração entre candidatos bem-sucedidos safios diretos em seus redutos, os locais têm que são homens de negócios aumenta. Maior medo principalmente de uma queda no voto concentração, contudo, pode não produzir partidário agregado. Se diminuir suficiente- maior sucesso eleitoral. O apoio eleitoral de mente, a mesma classificação pós-eleição pode candidatos da área de negócios é mais incons- não garantir uma cadeira. Assim, os titulares tante do que o apoio recebido por políticos locais têm que caçar novos eleitores ou nos locais. Ofertas melhores fazem a lealdade dos redutos de colegas de partido ou nos redutos chefes oscilar em direção a quem oferece o de titulares de outros partidos. A identifica- lance mais alto. Assim, os homens de negócios ção partidária no Brasil é fraca; os deputados enfrentam incentivos contraditórios. Embora atraem facilmente eleitores de outros partidos. as oportunidades sejam claramente melhores Como a representação proporcional recompen- para candidatos não limitados por carreiras lo- sa totais partidários mais altos com cadeiras cais, os homens de negócios podem perder o adicionais, os líderes dos partidos não enco- apoio tão rapidamente quanto o ganham. Os rajam a caça furtiva nos redutos de partidos negócios fornecerão muitos candidatos novos, aliados. Resumindo, os candidatos brasileiros mas os titulares da área de negócios serão Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 69 Barry Ames mais vulneráveis à derrota eleitoral do que can- votos recebidos pelo deputado em 1986; (3) didatos com outras trajetórias. a vulnerabilidade do município X à invasão de candidatos; (4) a similaridade socioeconômica e demográfica de X em relação ao eleitorado Análise As linhas gerais do argumento devem manter-se ou cair por terra no terreno empírico.15 A análise se inicia com um modelo de estratégia de campanha que utiliza emendas orçamentárias como indicadores da intenção do candidato. A seção a seguir incorpora emendas orçamentárias a um modelo de resultados eleitorais reais. principal; (5) a insegurança eleitoral do deputado; (6) a trajetória da carreira do deputado. Distância do centro da votação obtida em 1986. O “centro da votação” obtida por cada deputado titular em 1986 é medido de duas formas.17 O centro municipal, Cm, está baseado na dominação municipal – a porcentagem da votação total recebida pelo deputado i em cada município. O centro pessoal, Cp, se baseia na quota pessoal – a porcentagem do total estadual do deputado i recebido em cada município. Calculo a distância de cada município do Estratégia de campanha na eleição de 1990 estado em relação a Cm e Cp. Conforme os municípios ficam mais distantes, o reconhecimento do nome diminui e o custo da campanha aumenta; municípios distantes possuem menor Os deputados submetem emendas orçamen- probabilidade de serem alvos do deputado i. tárias para reter antigos seguidores e atrair Ao mesmo tempo, deputados com centros pes- novos. O Congresso não recuperou o direito soais de votação em municípios nos quais não constitucional de modificar o orçamento nacio- dominam (tipicamente, grandes cidades) têm nal até 1988, mas os deputados aprenderam probabilidade de fazer emendas mais longe de rapidamente. Entre 1989 e 1992, o número seus centros pessoais porque compartilham o anual de emendas orçamentárias subiu de município central com tantos outros candidatos 8.000 para 72.000, e mais de 90% foram di- que reivindicar o crédito é impossível.18 recionadas a municípios específicos. O modelo Dominação e concentração. Mais acima, avalia, para cada município, a probabilidade defini dominação e concentração como carac- de que um deputado concorrendo à reeleição terísticas dos deputados medidas no nível do submeta uma emenda orçamentária.16 Espe- estado como um todo. Contudo, a dominação cificamente, a probabilidade de que um depu- também é significativa no nível municipal. tado que esteja concorrendo à reeleição em Um deputado poderia dominar municípios 1990 tenha submetido uma emenda em 1989 menores, por exemplo, mas compartilhar mu- ou 1990 direcionada ao município X é uma nicípios maiores com outros. Apenas a domi- função de seis fatores: (1) a distância de X do nação no nível municipal deve afetar a reali- centro da votação obtida pelo deputado em zação de emendas.19 Quanto maior o nível de 1986; (2) a dominação e a concentração dos dominação em um município, mais o deputado 70 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta pode reivindicar crédito por esforços clientelis- dos votos da classe trabalhadora procurariam tas e, portanto, mais emendas orçamentárias municípios industriais. Deputados que apelam ele ou ela submeterão. Quando a dominação para funcionários públicos deveriam fazer isso atinge níveis muito altos, o deputado tem uma em localidades nas quais há muitos cargos go- “cadeira segura” (como no velho Sul norte- vernamentais. Assim, os deputados procuram -americano, que só possuía um partido); assim, novos alvos que tenham composição socioeco- as emendas devem diminuir. nômica semelhante à dos antigos redutos. Ini- Candidatos cujo apoio foi concentra- cio definindo, com base na participação nos do em 1986 devem fazer mais emendas, pois votos e na dominação municipal, o município são vulneráveis às incursões de candidatos principal de cada deputado.21 Em seguida, cal- com carreiras burocráticas ou na área de ne- culo a diferença entre cada município e o mu- gócios. Candidatos concentrados saem de nicípio principal em relação a três indicadores suas bases originais em círculos relativamen- socioeconômicos: tamanho do eleitorado, ren- te concêntricos. Têm que ser menos seletivos da per capita e porcentagem da força de tra- do que os candidatos com votos dispersos, balho empregada pelo governo. Os primeiros pois escolhem alvos não apenas pelo critério dois indicadores refletem a possibilidade de da vulnerabilidade, mas também do critério de busca de votos baseada em classes, enquan- proximidade de seu próprio centro. Como re- to o terceiro representa um interesse bem- sultado, candidatos concentrados apresentam -organizado. Como no Brasil, em geral, apelos “emendas demais”. à classe social não rendem frutos, os funcioná- Vulnerabilidade municipal. Os desafian- rios do governo são o alvo mais provável. Para tes têm poucos incentivos para invadir muni- cada indicador, os municípios mais parecidos cípios dominados por titulares fortes que bus- com o município principal do deputado devem cam a reeleição. Mas as condições mudam; receber mais emendas.22 os municípios tornam-se permeáveis. Um de- Insegurança eleitoral. Sabemos que os putado dominante se aposenta, deixando um votos individuais determinam, em grande me- vazio eleitoral. Um influxo de migrantes sina- dida, a sorte dos deputados nas eleições. Aque- liza um eleitorado livre do controle de velhos les cuja posição em 1986 foi baixa, que esca- líderes e antigas lealdades. A invasão é en- param por pouco da eliminação, trabalharão corajada pela fragmentação municipal, ou no mais na próxima eleição. Seu número total de sentido de que muitos candidatos de um único emendas aumentará. partido compartilham votos ou no sentido de Trajetória da carreira. Devido ao fato de que candidatos de muitos partidos obtêm su- que políticos locais têm maior probabilidade cesso eleitoral. 20 de manter vínculos próximos com os eleitores Paridade social. Se os titulares identi- do que políticos com carreiras burocráticas ou ficam certos grupos ocupacionais ou étnicos na área de negócios, os candidatos locais devem como correligionários-chave, devem visar apresentar mais emendas. Os locais também novos municípios onde grupos semelhantes devem concentrar suas campanhas, incluindo estão presentes. Deputados que dependem suas emendas orçamentárias, mais perto de suas Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 71 Barry Ames casas. Candidatos com carreiras burocráticas e Interpretação. Em cada estado ou grupo na área de negócios dispersam as atividades de de estados, o modelo atingiu um alto nível de campanha, comprando apoio onde implantaram significância estatística; portanto, os resultados projetos e onde identificam municípios vulnerá- empíricos sustentam bem a teoria de maneira veis. Candidatos de famílias com longa tradição geral.26 Em termos dos elementos específicos em política devem ser mais propensos ao clien- da teoria, primeiramente consideraremos os 23 argumentos confirmados em todas ou quase telismo, fazendo mais emendas. Agrupamento e estimativa. A estimativa teve início com observações no nível dos depu- todas as seis configurações, seguidos das hipóteses que não conseguiram apoio consistente. tados; isto é, todos os deputados que serviram Em todos os lugares, a dominação munici- em 1986 e concorreram à reeleição em 1990. pal estimulou fortemente a realização de emen- Em seguida, agrupei os deputados por estado, das. Quanto maior a porcentagem de votos de e em dois casos – seis pequenos estados nor- um município o deputado tivesse recebido em destinos e três estados do Sul – agrupei depu- 1986, maior a probabilidade de aquele deputa- tados em grupos de estados. Esse agrupamento do buscar mais apoio no mesmo local em 1990. de muitos estados, que aumentou substancial- A inclinação negativa no termo ao quadrado mente o número de observações, combina es- significa que os deputados em algum momen- tados que são semelhantes em tamanho, con- to consideraram um município como “fecha- 24 dições econômicas e tradições políticas. do”, não merecendo nenhum esforço adicional. Como o número de emendas em cada Em outras palavras, a diminuição dos retornos município não pode ser menor do que zero, acontecia, mas os verdadeiros pontos de infle- e como a maioria dos deputados faz poucas xão estavam além de quase todos os casos. emendas em qualquer município em particular, A teoria argumentava que os municípios as estimativas de mínimos quadrados não são vulneráveis, aqueles com altas proporções de apropriadas. Experimentei um modelo de migrantes ou com altos níveis de fragmentação Poisson de contagem de eventos, mas os re- partidária, seriam alvos de campanha. Somente sultados revelaram algumas irregularidades nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo estatísticas, então distribuí os dados sobre as (onde o sinal estava correto), os municípios com emendas em uma variável dicotômica e imple- muitos migrantes não atraíram deputados. O 25 A Tabela 1 desvio do Rio e a fragilidade de São Paulo pro- apresenta os resultados simplificados para vavelmente se originam da alta proporção de seis estados ou grupos de estados: Bahia, os migrantes nas próprias cidades do Rio e de São seis pequenos estados do Nordeste, Minas Ge- Paulo. Como muitos deputados recebem votos rais, Rio de Janeiro, São Paulo e os três esta- nesses locais, nem mesmo uma alta proporção dos do Sul. Os resultados completos, incluindo de migrantes consegue fazer essas cidades se- coeficientes e erros-padrão, estão disponíveis rem atrativas como alvos de emendas, embora aos interessados. elas atraiam outras táticas de campanha. mentei uma regressão logística. 72 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta Tabela 1 – O deputado submeterá uma emenda orçamentária a um município? Estimativa Logit Características municipais e individuais Distância do centro municipal Distância municipal ao quadrado Distância do centro pessoal Distância pessoal ao quadrado Dominância municipal Dominância municipal ao quadrado Concentração Nordeste Minas Gerais Rio de Janeiro São Paulo Sul – – + + + + + + + + – – – Predição Bahia – – + – – + + + + + + + + – – – – – – – + + + – Porcentagem de votos a deputados aposentados + + Porcentagem de migrantes + + – Paridade ao município principal: distribuição de renda ? Paridade ao município principal: funcionários do governo – – Paridade ao município principal: população ? + Fragmentação interpartidária + + + + + + + + + + + + + – – + – – – – – – + + Fragmentação intrapartidária + Classificação na lista do partido em 1986 + Carreira local + – Carreira local x Distância municipal – + – + – + Carreira local x Distância pessoal – – + – + – Família política + N= + – 6666 3841 + + – + 9106 1536 7410 6841 + significa um coeficiente positivo, significativo no nível 0,10. – significa um coeficiente negativo, significativo no nível 0,10. Todas as razões de verossimilhança são significativas no nível 0,0001. Altos níveis de fragmentação partidária, alto nível de dominação em 1986. Em 1990, o tanto interpartidária quanto intrapartidária, PMDB iria inevitavelmente escorregar; assim, aumentam, em todos os lugares, as chances sobreviver significava caçar os eleitores de de os candidatos focalizarem um dado muni- companheiros de partido. cípio. Em Minas Gerais e São Paulo, apenas a Os deputados que ficaram em posições fragmentação intrapartidária aumentou a rea- baixas nas listas pós-eleição de seus partidos lização de emendas pelos candidatos. Nesses em 1986 certamente tinham motivos para dois estados, o Partido do Movimento Demo- se sentir vulneráveis. Em todos os estados, crático Brasileiro, PMDB, havia conquistado um com exceção do Rio de Janeiro, deputados Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 73 Barry Ames com baixa classificação (baixas classificações de referência da campanha. Ao invés disso, os recebem pontuações mais positivas) realizaram deputados focam suas campanhas onde rece- significativamente mais emendas do que seus bem a maior parte de seus totais pessoais. colegas cuja classificação foi alta. No Rio, a re- Apenas na Bahia as emendas orçamentá- lação foi positiva, mas muito abaixo da signi- rias não têm relação com a distância dos muni- ficância estatística. É bastante provável que a cípios em relação ao apoio principal dos candi- fragilidade da relação vulnerabilidade-realiza- datos. Por que a Bahia é excepcional? Conside- ção de emendas no Rio se origine da importân- re o contexto político. O governador da Bahia, cia demográfica da capital, combinada com sua Antônio Carlos Magalhães (popularmente co- falta de atratividade como alvo de emendas. nhecido como ACM) é tão poderoso que pode À primeira vista, as hipóteses da distância mandar os candidatos fazerem campanha em não parecem ter sido confirmadas. Uma inves- determinados municípios. A máquina de ACM tigação mais detalhada, contudo, revela que a foi construída sobre seus vínculos com o antigo realização de emendas reflete a distância dos regime militar, vínculos que garantiram à Bahia municípios em relação ao apoio principal dos uma considerável generosidade federal. ACM e deputados na maioria dos casos. Minas Gerais seus aliados na burocracia estatal colheram os e os seis estados do Nordeste corroboram o lucros políticos, e deputados com carreiras bu- argumento original (“realizam menos emen- rocráticas no nível estadual continuam a domi- das conforme a distância do centro municipal nar a delegação da Bahia no Congresso. Ape- aumenta”).27 No Rio, em São Paulo e nos três nas um em cada oito deputados baianos tem estados do Sul, os deputados diminuíram suas um passado local – o segundo menor número campanhas como função da distância de cada em qualquer estado – e deputados puramente município em relação ao centro de seu apoio locais são fracos. Deputados baianos não locais pessoal, ao invés do centro da sua dominação tendem a ter distribuições de votos dominan- 28 municipal. Por que a variação? Em Minas e tes-dispersas; assim, suas emendas são neces- no Nordeste, o nível médio da dominação mu- sariamente espalhadas. De certo modo, o con- nicipal é muito mais alto do que em qualquer ceito de centro de votos significa pouco para outro lugar; os deputados mineiros e nordes- tais deputados; eles lidam com os chefes locais tinos conseguem quotas substanciais de seus onde quer que haja algum disponível. totais pessoais nos locais que dominam. Essas E as variáveis que medem a paridade localidades permanecem cruciais para eles e fi- social de cada município em relação aos elei- cam próximas de suas casas. No Rio, em São torados principais dos deputados? Se os de- Paulo e no Sul, o nível médio de dominação (a putados recorrem a eleitorados que lembram porcentagem obtida pelo deputado dos votos aqueles onde se saem bem, as emendas devem totais do município) é menor do que a metade diminuir conforme a distância social aumenta. do nível conquistado por deputados mineiros e Os funcionários do governo são um eleitora- nordestinos. Com níveis baixos de dominação, do importante para muitos deputados, e tais reivindicar crédito é mais difícil; portanto, o deputados realmente parecem procurar muni- centro da dominação municipal não é o ponto cípios semelhantes: três estados ou grupos de 74 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta estados obtiveram resultados significativos na razões demográficas, não históricas. O Rio tem direção esperada; apenas São Paulo teve o si- apenas 65 municípios para servir de trampo- 29 nal errado. lins para seus 46 deputados (1,41 municípios As outras variáveis de paridade social por deputado), enquanto a Bahia tem 8,6 mu- demonstram que os apelos ideológicos são nicípios por deputado. Faltam oportunidades real mente raros no Brasil. Semelhanças em aos candidatos locais do Rio, mas como não distribuição de renda e população produziram enfrentam nenhuma máquina coerciva, são li- resultados imateriais e inconsistentes.30 Além vres para competir com candidatos estaduais disso, se os deputados buscam alvos em bases através da submissão de um grande número ideológicas, a paridade social deve ser mais de emendas. São Paulo tem um número subs- forte nas regiões mais desenvolvidas do país. tancial de candidatos locais, mas entre 1987 e Rio, São Paulo e o Sul, contudo, não produziram 1990, muitos desertaram do PMDB, o partido resultados mais consistentes do que o Nordes- dominante. Os desertores tiveram que lidar te, a Bahia e Minas Gerais. O resultado negati- com a máquina poderosa do PMDB de Orestes vo é importante: isto é, a maioria dos deputa- Quércia, que enviou candidatos para os redutos dos vê as características sociais e ideológicas eleitorais desses candidatos. Mas a máquina dos municípios como fatores menores em sua não tinha poder para manter seus oponentes decisão de usar a política do clientelismo como dentro de seus redutos; assim, a expansão foi uma ferramenta de campanha. sua estratégia ideal. Considere agora as hipóteses que não A política no Sul e no Nordeste reflete se confirmaram de maneira consistente. A teo- contextos históricos distintos. No Sul, as legen- ria original previa, embora de forma hesitante, das partidárias são significativas, nenhum go- que candidatos com carreiras na política local vernador tem a hegemonia de um ACM, a con- realizariam mais emendas do que aqueles com centração espacial é intensa e os candidatos carreiras burocráticas ou na área de negócios. locais dominam. Os candidatos que não pos- Apenas no Rio e em São Paulo a hipótese foi suem base local lutam para encontrar apoio; confirmada, e na Bahia e no Sul, os candida- assim, os políticos locais sabiamente permane- tos locais realizaram menos emendas. Essas cem em seus redutos eleitorais, fazendo menos diferenças não são simplesmente funções da emendas. O Nordeste e Minas Gerais apoiam dominação dos candidatos com origens locais, níveis intermediários de candidatos locais; os pois o Sul e Minas possuem a mais alta por- locais não lutam, como fazem na Bahia e no centagem de candidatos locais, ao passo que a Rio, e não dominam, como no Sul. Bahia e o Rio possuem a mais baixa. As táticas Originalmente, eu esperava que os polí- dos candidatos locais dependem de contextos ticos locais simplesmente realizariam menos históricos. A Bahia, por exemplo, tem poucos emendas conforme se distanciassem de suas candidatos locais, e aqueles que se aventuram bases. Ao invés disso, os resultados fornecem a sair de seus redutos eleitorais correm o risco uma comparação instrutiva com nossas medi- de incorrer na ira de ACM. O Rio tem ainda me- das de distância, isto é, as variáveis que me- nos candidatos locais do que a Bahia, mas por dem mudanças no comportamento de todos os Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 75 Barry Ames deputados em relação à realização de emen- O argumento original sugeria que os das, independentemente de suas carreiras candidatos com apoio espacialmente concen- políticas. Na Bahia, no Sul e em Minas Gerais, trado iriam realizar muitas emendas para com- os deputados locais aumentam a realização pensar suas bases de votos geograficamente de emendas conforme se distanciam dos mu- restritas. Apenas na Bahia e no Nordeste a hi- nicípios onde são mais dominantes, mas dimi- pótese provou ser correta. Talvez o argumento nuem a realização de emendas conforme se falhe porque concentração é frequentemente distanciam dos municípios onde obtêm a maior relacionada à dominação; isto é, o que real- parte de seus votos. As capitais, nesses casos, mente importa é a dominação local, e não a possuem pouca importância nos eleitorados to- contiguidade espacial dos votos. Como resul- tais dos estados; poucos centros pessoais são tado, a variável dominação (que confirmou encontrados em cidades nas quais a presença a previsão em todos os casos) simplesmente de muitos deputados desencoraja a reivindica- subjuga a concentração. O caso da Bahia mais ção de créditos. Para a maioria dos deputados, uma vez reflete o poder da máquina política portanto, faz sentido permanecer perto dos lo- desse estado. A máquina desencoraja os can- cais que contribuem com a maior parte de seus didatos em relação a deixar suas bases; assim, votos. No Nordeste e no Rio, no entanto, as eles realizam muitas emendas para aumentar capitais têm muito mais peso nos eleitorados a dominação local. totais dos estados, e mais candidatos possuem Finalmente, por que os deputados de centros pessoais exatamente nessas capitais. famílias políticas não conseguem se destacar? Mas como essas capitais são o lar de muitos Suspeito que o aprendizado político é muito deputados, elas desencorajam a reivindicação rápido. Sendo membros de famílias políticas de crédito, e os candidatos locais são forçados ou não, os deputados aprendem táticas de a fugir em busca de novos eleitores. campanha rapidamente. É interessante notar As aposentadorias (avaliadas pela por- que membros das famílias políticas do Nor- centagem dos votos recebida em 1986 por deste realizaram significativamente menos candidatos que não concorreram em 1990) emendas do que os nordestinos sem laços de estimularam mais emendas somente na Bahia. família. Tais laços são muito mais importantes No Sul, as emendas na verdade diminuíram no Nordeste do que em qualquer outro lugar; onde as aposentadorias libertaram mais elei- cerca de 30% de todos os deputados nesses tores. Isso não era esperado, pois nas minhas estados têm parentes na política, em compara- entrevistas, os deputados do Sul mencionaram ção a menos de 10% no Sul. Famílias políticas municípios que haviam se tornado vulneráveis no Nordeste frequentemente significam fazer devido a aposentadorias. Talvez o problema acordos à moda antiga, não populismo; políti- tenha sido falta de sincronia: quando os de- cos nordestinos tradicionais fazem menos por putados ofereceram essas emendas em 1988 seus eleitores – especialmente em termos de e 1989 (para os orçamentos de 1989 e 1990), assistência social – e mais pelos chefes locais. talvez não soubessem quem estava planejando se aposentar. 76 Recapitulação . As estratégias de campanha dos deputados brasileiros no nível Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta municipal respondem fortemente à dominação emendas feitas por outros deputados, são ago- local, à vulnerabilidade à invasão de alvos po- ra variáveis explicativas. Finalmente, o modelo tenciais, à sua própria fragilidade eleitoral e a inclui (para investigar o realinhamento partidá- suas carreiras anteriores. Mas a ausência de es- rio) variáveis que medem o ganho de candida- forços de campanha em comunidades sociolo- tos de partidos aliados.31 gicamente semelhantes aos principais círculos O modelo de resultados funciona bem e eleitorais dos deputados (exemplificada pela explica mais de 50% da variação na votação de fraqueza das variáveis de paridade social) con- 1990 dos candidatos em todos os lugares, com firma a impressão de que poucos deputados exceção de São Paulo. 32 Os votos recebidos buscam votos seguindo linhas ideológicas. A em 1986 foram os preditores mais poderosos. ausência de programas de partido e a fragilida- Esse resultado seria esperado na maioria das de da disciplina partidária fazem com que tais sociedades, mas, aqui, contradiz a sabedoria apelos, exceto para o Partido dos Trabalhado- convencional do Brasil, segundo a qual a im- res, sejam improdutivos. popularidade dos deputados faz com que ter exercido um mandato seja uma desvantagem. Fazer campanha é importante. Na Bahia, no O comportamento estratégico compensa eleitoralmente? Nordeste, em Minas Gerais e no Sul, as emendas aumentaram os votos. 33 As emendas fizeram a diferença no Rio de Janeiro e em São As táticas dos nossos deputados em busca de Paulo também, mas apenas para deputados votos dão certo? A Tabela 2 estima um modelo mais dominantes, isto é, as emendas nesses de “resultados”. É semelhante ao modelo de estados tornaram-se mais importantes à medi- “estratégia”, mas com importantes acrésci- da que a dominação municipal aumentou. Os mos. O modelo de resultados incorpora a vota- municípios no Rio e em São Paulo são, em sua ção de 1986 como um preditor da votação de maior parte, competitivos, com poucos deputa- 1990. Também avalia os efeitos da dominação dos dominantes. Em lugares em que os depu- total (nível estadual) – além da dominação no tados compartilham votos com muitos outros nível municipal – para descobrir se certos ti- (como nas capitais), as emendas são fúteis, pos de deputados foram mais bem-sucedidos. mas à medida que a dominação aumenta, elas As emendas de cada deputado, junto com as fazem mais sentido. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 77 Barry Ames Tabela 2 – O que determina o sucesso eleitoral? Estimativa OLS dos resultados da eleição de 1990 Características municipais, individuais e eleitorais Votação em 1986 Bahia Nordeste Minas Gerais Rio de Janeiro São Paulo Sul + + + + + + + + – + – Emendas por deputado (registradas) + + + Emendas* dominância municipal + + + Emendas realizadas por outros deputados – – – + Distância do centro municipal – Distância do centro pessoal Dominância estadual em 1986 Dominância municipal em 1986 Dominância municipal ao quadrado + + + – + – + – Concentração em 1986 + Fragmentação interpartidária em 1986 + Fragmentação intrapartidária em 1986 Paridade ao município principal: Distribuição de renda + Paridade ao município principal: Funcionários do governo – Paridade ao município principal: População Classificação na lista do partido em 1986 + + + – – – – – – – + + Ganho dos partidos aliados - 1986 + + + Candidato PFL-PDS + + + + Carreira local Candidato PMDB ou de esquerda + + Família política + + Família política* dominância municipal + + + + + – – R2 = 53% 57% 53% 53% 20% 56% N = 8040 6629 13740 1536 16530 8803 + significa um coeficiente positivo, significativo no nível 0,05. – significa um coeficiente negativo, significativo no nível 0,05. Todos os testes F para o modelo inteiro são significativos no nível 0,05. Emendas realizadas por outros deputados deveriam diminuir a votação de um de- A hipótese falhou no Rio e em São Paulo pelas mesmas razões que vimos acima.34 putado, pois tais emendas significam que os Deputados dominantes ganharam mais oponentes também focalizaram o mesmo mu- votos do que aqueles com distribuições com- nicípio. Exceto no Rio e em São Paulo – onde as partilhadas, mas a concentração ajudou so- emendas de outros deputados não produziram mente em Minas Gerais. 35 Em uma eleição impactos –, foi exatamente isso que aconteceu. com mais de 50% de rotatividade dos titulares, 78 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta e com perdas substanciais por parte dos parti- uma derrota para o PMDB após seu sucesso dos de centro e centro-esquerda, esse resulta- esmagador em 1986, os candidatos de direita do tem grande importância. A dominação pro- (“candidato PFL-PDS”) ganharam, ao passo tege os deputados de oscilações partidárias. A que o PMDB e os candidatos de esquerda re- maioria dos titulares que perderam as cadeiras ceberam um impulso apenas no Nordeste e em em 1990 compartilhava os círculos eleitorais. Minas Gerais. Municípios representados por um único depu- Finalmente, as trajetórias das carreiras tado, sejam contíguos ou dispersos, são mais dos deputados, pelo menos conforme medidas seguros. Em um ambiente de partidos fracos e por ocupações anteriores ou por participa- política de clientelismo, a realização de acor- ção em famílias políticas, não tiveram efeito dos com os políticos locais – o clássico padrão consistente sobre os resultados eleitorais. No dominante-disperso – faz sentido. Nordeste e em Minas Gerais – áreas em que O modelo de estratégia demonstrou que porcentagens substanciais de deputados vêm os deputados raramente procuram alvos de de famílias políticas – esses deputados se saí- campanha socioeconomicamente similares aos ram melhor. Mas na Bahia, onde as famílias seus municípios principais. Como era de se es- políticas são mais comuns, tais deputados não perar, também é pouco provável que eles ga- receberam ajuda. Além disso, os candidatos lo- nhem ou percam votos nessa base. Embora em cais não tiveram melhor desempenho em ne- grandes cidades os deputados façam apelos nhum estado. A eleição de 1990 representou ideológicos ou para grupos, eles não procuram um influxo de dinheiro alto na campanha para ou recebem apoio em alvos de campanha dis- o Congresso. Se essa tendência continuar, os tantes com tais apelos. Dado o alto custo de ca- candidatos locais, como esses resultados de- çar no território de companheiros de partido, os monstram, terão sérios problemas. candidatos aumentam o apoio apelando para Recapitulação. As estratégias dos depu- novos grupos em suas áreas de base, ao invés tados têm importância. Os deputados lucram de buscar grupos semelhantes, mas geografica- realizando suas próprias emendas; sofrem mente distantes. Consequentemente, embora quando outros deputados visam os mesmos mudanças na composição ideológica geral de municípios. Os deputados com distribuições legislaturas possam resultar de realinhamentos dominantes de votos conseguem resistir mais eleitorais, tais realinhamentos não são produto a oscilações partidárias do que aqueles com de apelos de campanhas individuais. distribuições compartilhadas.36 Mas a maio- Trocas de partidos desempenham um ria dos deputados ganha pouco concentrando papel importante na sorte dos deputados. Em suas distribuições de votos ou fazendo apelos todos os estados, os ganhos gerais de parti- ideológicos ou a grupos, e os padrões de car- dos próximos no espectro político ajudaram reiras não têm um efeito amplo sobre a sorte os candidatos. Como essa eleição representou em eleições. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 79 Barry Ames Conclusão com base no potencial dos benefícios que A maioria das discussões sobre política bra- deputados a procurar benefícios. Quando com- sileira enfatiza suas raízes tradicionais, clien- binamos esses incentivos com a qualidade telistas. A teoria desenvolvida aqui, pelo centrada no estado que a política brasileira contrário, está baseada no comportamento possui, os resultados sugerem que a procura estratégico de políticos racionais. Inseridos em de benefícios pode não ter atingido um equi- um sistema eleitoral cujos principais atributos líbrio. Os deputados no Sul do Brasil e em incluem representação proporcional com lista estados mais industrializados enfrentam uma aberta, grandes distritos representados por competição maior por parte de candidatos de vários deputados, seleção de candidatos no outros partidos, mas também têm distribuições nível de unidades subnacionais politicamente de votos mais concentradas. Níveis mais altos ativas e possibilidade de reeleição imediata, a de educação e riqueza aumentam o interesse maioria dos deputados presta pouca atenção a e o envolvimento dos eleitores em política, apelos ideológicos. Ao invés disso, buscam re- mas esse interesse aumenta os incentivos para dutos eleitorais seguros, procuram municípios os deputados focalizarem os benefícios. Ao vulneráveis e lutam para superar sua própria mesmo tempo, demandas por benefícios locais fraqueza eleitoral por meio de esquemas polí- podem contribuir para as taxas elevadas de ticos. Candidatos estratégicos não se compor- rotatividade e baixos níveis de antiguidade no tam de maneira idêntica, já que seus passados cargo das delegações congressistas do Sul, fa- políticos variam e também porque os diferen- tores que mudam o centro ideológico do Con- tes contextos demográficos e econômicos dos gresso para a direita. podem obter. O sistema eleitoral brasileiro motiva os estados brasileiros recompensam algumas táticas e penalizam outras. No processo legislativo, o sistema do Brasil produz partidos sem programas, parti- Qual é o significado desses resultados? dos que abrigam uma enorme gama de inte- Considere a relação mandante-mandatário en- resses e preferências. A representação propor- tre eleitores e deputados. O sistema eleitoral cional com lista aberta não é uma condição su- brasileiro dificulta o controle do eleitor. Força ficiente para partidos fracos; o Chile pré-1973 os candidatos a procurar nichos monofocais, combinava a representação proporcional com a gastar muito e a fazer acordos com candi- lista aberta com partidos ferozmente ideoló- datos a outros cargos, candidatos com quem gicos. Mas a representação proporcional com não têm nada em comum. O sistema não pode lista aberta no Brasil funciona de modo dife- ser julgado não-democrático; na verdade, ao rente, porque os interesses dos estados con- não favorecer nenhuma divisão em particular, trolam as indicações, porque os partidos não permite que todas as reclamações sejam arti- podem controlar o comportamento de seus culadas. Porém, os cidadãos aprendem pouco deputados, e porque a importância dos distri- sobre a importância de questões de nível na- tos aumenta tanto a fragmentação interparti- cional, e eleitores racionais apoiam candidatos dária quanto a intrapartidária. 80 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta Esta análise apenas tocou a superfície do 37 orientados para a legislação nacional? A acei- argumento teórico. Quais são as implicações tação ou rejeição do Congresso das emendas das distribuições espaciais de votos para o com- orçamentárias dos deputados também merece portamento legislativo subsequente? De fato, investigação. Por que alguns deputados são os deputados brasileiros representam uma am- mais bem-sucedidos do que outros? Há regras pla gama de eleitorados, que varia de distritos que garantem a todos uma parte da ação? Os dominados por um único representante a coor- deputados seniores podem comprar os votos de tes de interesses especiais dispersas, passando membros juniores necessitados? O caso brasi- por acordos dispersos e distritos da classe tra- leiro – um sistema que permite a formação de balhadora. Será que alguns distritos isolam os vários círculos eleitorais dentro de um único ar- deputados das demandas presidenciais? A cor- cabouço institucional – é um laboratório perfei- rupção é um desenvolvimento natural de certos to para o estudo de influências eleitorais sobre círculos eleitorais? Alguns deputados são mais o comportamento legislativo. Apêndice Fontes e problemas dos dados O mapa e Moran I. Construí os mapas informatizados utilizando mapas estaduais de ruas, uma mesa digitalizadora e Autocad. A base de dados também inclui, além dos resultados eleitorais, indicadores do censo de 1980, todas as emendas orçamentárias submetidas para os orçamentos de 1989-91 e os resultados da eleição presidencial de 1989. As matrizes de vizinho mais próximo utilizadas para calcular a estatística de Moran I foram derivadas das coordenadas dos mapas. Paul Sampson (University of Washington) forneceu o programa que criou as matrizes. Para uma introdução à análise espacial, cf. Cliff et al. 1975. A tendência de subdivisão dos municípios, que é motivada politicamente, pode prejudicar seriamente a elaboração de mapas. Como os dados censitários são baseados nas fronteiras de 1980, municípios criados após essa data precisaram ser agregados aos municípios antigos. Em alguns casos, o número de novas unidades era tão grande que a agregação distorceu os eventos políticos. Em outros casos, estados antigos foram comprometidos pela criação de novos estados. Como resultado, a análise exclui Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Acre, Amapá, Rondônia e Roraima. Embora a divisão inadequada dê a esses estados força política considerável, a maioria possui populações muito pequenas. Emendas orçamentárias. A cada ano, a Comissão de Orçamentos publica as emendas de deputados e senadores (Brasil, Congresso Nacional, 1988-1990). Os membros submetem essas emendas Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 81 Barry Ames em pequenos cartões de aproximadamente 5 cm por 15 cm, e os volumes publicados reproduzem esses cartões, muitos dos quais escritos à mão. Cada cartão contém o nome e o estado do deputado ou senador, o programa modificado, o município beneficiado, a quantia de dinheiro e o programa debitado para financiar a emenda. Codifiquei todas as emendas de 1990 e 1991, mas apenas uma amostra das 72.672 emendas realizadas em 1992. Este artigo não utiliza o grupo de 1992 porque as emendas foram submetidas pelos membros da nova Câmara de 1991-94. A análise também exclui emendas (cerca de 1%) que não beneficiavam nenhum município específico. Agradeço a Orlando de Assis e Carmen Pérez pela ajuda na obtenção das emendas de 1991. Resultados eleitorais. Para 1978 e 1982, os resultados eleitorais vieram do Prodasen, o braço de processamento de dados do Senado. Agradeço a Jalles e William pelo auxílio. Para 1986, o Tribunal Superior Eleitoral forneceu alguns dados, mas oito estados nunca enviaram os resultados eleitorais para Brasília. Copiei os resultados nos tribunais regionais nesses estados. Para 1990, o Tribunal Superior, com a assistência de Roberto Siqueira, Sérgio, Flávio Antônio, Conceição e Nelson, forneceu dados de 15 estados em disquetes. Manuel Caetano, em Porto Alegre, auxiliou com os resultados dos gaúchos. Barry Ames Cientista político pela Universidade de Stanford. Professor do Departamento de Ciências Políticas na Universidade de Pittsburgh. Pittsburgh, Pennsylvania, EUA. [email protected] Notas (*) Texto originalmente publicado em American Journal of Poli cal Science, v. 39, n. 2, maio 1995, pp. 406-33. Revisão técnica de Carolina Ventura. Os dados utilizados neste artigo serão colocados no ICPRS no final de 1995. Pesquisadores interessados nos dados antes dessa data podem contatar o autor. Esta pesquisa foi financiada pela Na onal Science Founda on, Washington University, St. Louis, e pelo IRIS – Ins tu onal Reform and the Informal Sector, University of Maryland, College Park. (1) Nenhum estudo com muitos Estados foi realizado, provavelmente devido à escassez de dados sobre eleições de nível municipal, à ausência de mapas municipais digitalizados e à falta de familiaridade com técnicas esta s cas espaciais. (2) Até 1994, não havia um patamar mínimo para os par dos conseguirem cadeiras no legisla vo. Em 1993, o Congresso aprovou um patamar de 3%, mas uma brecha na lei minimizará seus efeitos. 82 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta (3) As máquinas de estado mais fortes provavelmente são as do Maranhão e da Bahia, ambos no Nordeste. Enquanto era governador, Orestes Quércia dominava o PMDB em São Paulo, e manteve muito desse poder durante a administração do sucessor que ele escolheu. Líderes locais poderosos são encontrados principalmente em áreas menos industriais. (4) Observe que dominação municipal não tem relação nenhuma com efe vamente ganhar cadeiras; estados, não municípios, são distritos eleitorais. Também experimentei conceituar dominação somente em termos de votos para candidatos do próprio par do do candidato. (5) O Apêndice discute a construção do mapa, assim como outros problemas dos dados. (6) Para ilustrações gráficas de padrões dispersos-compar lhados e concentrados-compar lhados, cf. “Electoral rules, cons tuency pressures, and pork barrel: bases of vo ng in the Brazilian Legislature” (1995), de minha autoria. (7) Alves comandava um grupo de deputados conhecidos, por sua estatura, como os Sete Anões. A comissão interna de investigação da Câmara acusou quase todos de extorquir e aceitar propinas, mas a Câmara exonerou alguns. Quase todos têm a mesma distribuição de votos: bolsões dispersos de apoio muito intenso. (8) Os votos dos principais candidatos podem superar os dos retardatários, mas como o número de candidatos eleitos é diretamente proporcional à quota cumula va de todos os votos do par do, os candidatos populares possibilitam a eleição de candidatos com muito menos votos. (9) Paulo Maluf, um polí co populista conservador, não conseguiu ganhar o estado de São Paulo na eleição presidencial de 1989, mas ganhou a eleição para a prefeitura da cidade de São Paulo em 1992 precisamente com os votos desses trabalhadores. (10) O acesso à mídia permanece central para realizar campanhas, embora os candidatos não possam comprar tempo no rádio nem na TV. Pelo fato de o rádio e de os jornais no Brasil serem geralmente par dários, as conexões da mídia fornecem uma barreira efe va à compe ção, assim como um meio de comunicação com os eleitores. Recentemente, muitos apresentadores de programas que se tornaram celebridades viraram candidatos. (11) As exceções incluem coalizões eleitorais vencedoras baseadas no voto de classe nas cidades do Rio de Janeiro ou São Paulo. (12) Os prefeitos precisam procurar outro cargo, já que não podem se reeleger imediatamente. O cargo de deputado federal, no entanto, não é necessariamente um passo acima: em 1992, cerca de um quinto de todos os deputados federais fizeram o caminho inverso, disputando prefeituras. Os detentores de cargos locais são abundantes como candidatos exceto em estados fronteiriços, os quais se desenvolvem tão rapidamente que a polí ca local tende a ser extremamente fraca. Municípios de fronteira dependem da generosidade estadual e federal, e os polí cos frequentemente “caem de paraquedas” para conseguir votos. (13) Uma rua, por exemplo, pode se destinar a enriquecer um determinado empreiteiro ou um grande fazendeiro. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 83 Barry Ames (14) Na eleição de 1990, o governador de São Paulo, Orestes Quércia, apoiou um desafio a um deputado que havia sido membro do PMDB de Quércia, mas havia desertado para o PSDB. O desafiante bem financiado de Quércia ganhou, mas seu alvo também. Para um teste mais amplo, considere a eleição de 1990 no Paraná. Das 30 cadeiras do estado no Congresso, os nãotulares ganharam 24. Desses 24, 12 ganharam com redutos locais concentrados. Desses 12, seis construíram redutos onde antes não havia nenhum. Quatro essencialmente assumiram os distritos de tulares que não concorreram. Apenas dois conquistaram os redutos de tulares que concorreram. Em um dos casos, o desafiante construiu um reduto muito maior; no outro, o desafiante se beneficiou da oscilação para a direita do estado, derrotando dois tulares que haviam compar lhado a mesma área. (15) Dada a considerável con nuidade entre as úl mas eleições legisla vas da ditadura e as da Nova República, não há campanhas sem tulares. Além disso, a disponibilidade de resultados para apenas quatro eleições deixa a estabilidade do sistema em aberto. (16) Obviamente, as emendas orçamentárias não são a única tá ca que os deputados u lizam. Eles visitam vários municípios, fazendo comícios e oferecendo apoio a candidatos a outros cargos. Assim, as emendas orçamentárias representam uma gama de atividades de campanha. Por essa razão, minha análise focaliza as emendas subme das ao invés das emendas efe vamente aprovadas pelo comitê orçamentário. As ações do comitê orçamentário representam um processo legisla vo decisório que analiso em uma obra que desenvolvo no momento. (17) O centro é o centróide de uma super cie plana na qual se assume que os votos de um município são dados em seu centro. Note que Cm e Cp não estão necessariamente no centro sico real de nenhum município em par cular. Os centros socioeconômicos na seção de paridade social, contudo, são mesmo municípios individuais. (18) Sobre o efeito da distância do eleitor em relação aos mercados locais de mídia do candidato, cf. Bowler et al., 1992. (19) Se a dominação no nível estadual tem algum efeito no nível do município, deve ser verdade que os deputados, cujo apoio vem principalmente dos municípios que dominam provavelmente, fazem mais emendas mesmo nos municípios que eles apenas compar lham. Isto é, o hábito do clientelismo de deputados dominantes faz com que se comportem de maneira irracional. (20) Fragmentação interpar dária é definida como 1 menos a soma do quadrado da quota de cada partido em relação ao número total de votos. Fragmentação intrapartidária é definida de maneira equivalente no nível do candidato individual, i.e., 1 menos a soma dos quadrados da quota de cada candidato em relação ao total do par do. (21) Se um deputado possuía um único município com uma par cipação pessoal claramente acima de qualquer outra, selecionei aquele município como o principal. Se as par cipações pessoais do deputado em dois municípios tinham diferença de poucos pontos percentuais, escolhi o município com uma par cipação municipal maior como sendo o principal. (22) Os indicadores socioeconômicos vêm do censo de 1980, exceto pelo tamanho da população de eleitores, que é extraído dos registros eleitorais. (23) Os deputados têm famílias polí cas se um parente da mesma geração ou de geração anterior tiver sido prefeito, deputado estadual ou federal, senador, governador ou presidente. Para dados biográficos, cf. Câmara dos Deputados (1981, 1983, 1991); Brasil (1989); e Isto é (1991). Entrevistas com jornalistas suplementaram as fontes oficiais. 84 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta (24) Os seis estados do Nordeste são Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Os três estados do Sul são Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. (25) Em alguns estados ou grupos de estados, o diagnóstico tanto para o modelo de Poisson como para o binomial negativo mostrou superdispersão; para outros, Poisson funcionou bem. Como a verdadeira questão é se um candidato visou o município x, e não quantas emendas foram realizadas em x, a forma logística é perfeitamente adequada. Essencialmente, os resultados são um pouco mais próximos às predições do modelo com o Poisson original, mas ambas as formas são bastante similares. (26) Pelo fato de este ser um estudo exploratório – e para minimizar as referências a coeficientes insignificantes com frases como “sinaliza a direção certa” –, adotei um nível de significância de 0,10. No entanto, mais de 80% dos coeficientes significa vos também a ngem o nível de 0,05. (27) A ausência do sinal previsto no termo quadrá co simplesmente significa que a realização de emendas não mostrou retornos decrescentes. (28) Tanto no Rio como no Sul, o coeficiente nega vo na variável distância-em-relação- ao-centropessoal domina o coeficiente da variável distância-em-relação-ao-centro-municipal. (29) O desvio de São Paulo provavelmente resulta da extrema falta de atratividade da cidade altamente compe va na qual a maioria dos burocratas mora. (30) O fracasso dos candidatos em buscar municípios de tamanho semelhante pode ter outra causa: pequenas comunidades produzem poucos votos, enquanto grandes cidades são muito compe vas. (31) Na construção desse indicador, os votos do PFL e do PDS medem o ganho da direita; os votos do PMDB medem o ganho da esquerda. Essa úl ma é uma medida imperfeita, mas em muitos municípios o PMDB era a única oposição à direita. Cada deputado foi codificado, com base na filiação ao par do, em termos de orientação de direita ou de centro-esquerda. Resultados semelhantes são ob dos u lizando-se os totais de votos de 1978 e 1982 do MDB-PMDB como subs tutos mais puros da votação do PMDB de 1986. (32) O desempenho ruim do modelo em São Paulo (embora a nja facilmente significância esta s ca geral) pode resultar do alto nível de polí ca ideológica do estado, que é uma função da força dos par dos de esquerda como o PT. O PT encoraja os eleitores a escolher a legenda do par do ao invés de candidatos individuais. (33) O modelo incorpora emendas registradas para reduzir o efeito de cada emenda “adicional”. No Sul, o coeficiente nega vo no termo que representa a interação entre emendas e dominação significa que as emendas são contraproducentes acima de um certo nível de dominação. Cerca de 5% dos deputados do Sul ficam acima desse ponto de inflexão. Tais deputados podem estar engajados em uma luta inú l para manter suas bases em uma região onde a dominação é cada vez mais rara. (34) Sabemos, a par r do modelo de estratégia, que os deputados realizam menos emendas conforme aumenta a distância em relação aos seus centros de votação. O modelo de resultados mostra que sua votação de 1990 não estava relacionada, de maneira geral, à distância do centro. Devemos lembrar, contudo, que o modelo inclui a votação de 1986; portanto, o coeficiente só deverá ser significa vo se houver uma concentração de votos adicional e inesperada. Isso ocorre em dois casos, Minas e São Paulo, em que deputados com padrões de votos mais concentrados veram melhor desempenho em 1990 do que em 1986. No momento, não tenho como explicar esse resultado. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 85 Barry Ames (35) A variável dominação mascara quaisquer possíveis efeitos produzidos pelas duas medidas de fragmentação. Obviamente, a fragmentação é menor quando os deputados dominam os municípios. (36) Os deputados também podem mudar de par do para lucrar com o aumento dos esquemas de bancadas par dárias. (37) Esses achados também têm implicações para outros contextos polí cos com regras similares, e.g., as eleições primárias no EUA (tanto a legisla va quanto a presidencial) e eleições para os conselhos municipais. Com a disseminação dos sistemas de informações geográficas, ficou muito mais fácil explorar esses contextos. Referências ABRANCHES, S. H. H. de (1988). Presidencialismo de coalizão: o dilema ins tucional brasileiro. Dados, n. 31 (1), pp. 5-34. AMES, B. (1995). Electoral rules, cons tuency pressures and Pork Barrel: bases of vo ng in the Brazilian Congress. Journal of Poli cs 57. BOWLER, S.; DONOVAN, T. e SNIPP, J. (1992). Local sources of informa on and voter choice in state elections: micro-level foundations of the “friends and neighbors” effect. American Politics Quarterly 21, pp. 473-489. BRASIL (1989). Assembleia Nacional Cons tuinte 1987. Brasília, Câmara dos Deputados. ______ (Congresso Nacional) (1988-1990). Projeto de lei: es ma a receita e fixa a despesa da União para o exercício financeiro de 1989-1991. Emendas. CÂMARA DOS DEPUTADOS (1981). Deputados brasileiros: 46th legislatura, 1979-1983. Brasília, Câmara dos Deputados. ______ (1983). Deputados brasileiros: 47th legislatura, 1983-1987. Brasília, Câmara dos Deputados. ______ (1991). Deputados brasileiros: 49th legislatura, 1991-1995. Brasília, Câmara dos Deputados. CLIFF, A.; HAGGETT, P.; ORD, J. K.; BASSETT, K. A. e DAVIES, R. (1975). Elements os spa al structure: a quan ta ve approach. Cambridge, Cambridge University Press. COX, G. W. (1990). “Multicandidate spatial competition”. In: ENELOW, J. M. e HINICH, M. J. (ed.) Advances in the spa al theory of vo ng. Cambridge, Cambridge University Press. DE SOUZA, A. e LAMOUNIER, B. (1992). As elites brasileiras e a modernização do setor público: um debate. São Paulo, Sumaré. FLEISCHER, D. (1973). O trampolim polí co: mudanças nos padrões de recrutamento polí co em Minas Gerais. Revista de Administração Pública n.7, pp. 99-116. ______ (1976). Concentração e dispersão eleitoral: um estudo da distribuição geográfica do voto em Minas Gerais (1966-1974). Revista Brasileira de Estudos Polí cos n. 43, pp. 333-360. 86 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta FLEISCHER, D. (1977). A bancada federal mineira. Revista Brasileira de Estudos Polí cos n. 45, pp. 7-58. ISTO É (1991). Perfil Parlamentar Brasileiro. São Paulo, Três. KINZO, M. D’A. G. (1987). A bancada federal paulista de 1986: concentração ou dispersão do voto? Presented at the mee ng of the Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências sociais, Águas de São Pedro. LIMA JUNIOR, O. B. (1991). Sistema eleitoral brasileiro: teoria e prá ca. Rio de Janeiro, Iuperj. LOWI, T. (1964). American Business, Public Policy, Case-Studies, and Poli cal Science. World Poli cs, July. MAINWARING, S. (1993). Brazilian party underdevelopment in compara ve perspec ve. Poli cal Science Quarterly n. 107, pp. 677-708. MAINWARING, S. e SCULLY, T. R. (1992). Party systems in La n America. Presented at the 1992 LASA mee ng, Los Angeles. SALISBURY, R. e HEINZ, J. (1970). “A theory of policy analysis and some preliminary applications”. In: SKARANSKY, I. Policy Analysis in Political Science. Chicago, Markham. STRAUBHAAR, J.; OLSEN, O. e NUNES, M. C. (1993). “The brazilian case: influencing the voter”. In: SKIDMORE, T. E. (ed.). Television, Politics and the transition to democracy in Latin America. Washington DC, The Woodrow Wilson Center Press. Texto recebido em 12/jul/2011 Texto aprovado em 30/jul/2011 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 87 O peso do voto metropolitano: a representatividade das regiões metropolitanas na Assembleia Legislativa do Paraná The weight of the metropolitan vote: the representativeness of metropolitan regions in the Legislative Assembly of Paraná Jéferson Soares Damascena Celene Tonella Resumo Nas últimas décadas as metrópoles tiveram o reconhecimento de sua relevância na dinâmica urbana. Entretanto, não ocorreu a politização do tema metropolitano. Busca-se testar a hipótese de que a negligência em relação às questões metropolitanas tem um nexo causal com o sistema representativo brasileiro. Esse sistema tende a prejudicar a capacidade de representação parlamentar dos centros mais urbanizados do País. Analisaremos a composição da Assembleia Legislativa do Paraná – ALEP, tendo por base a territorialização dos votos obtidos pelos deputados eleitos em 2006 nas regiões metropolitanas (RMs) polarizadas por Curitiba, Maringá e Londrina. A partir dos mapas eleitorais, verifica-se que ocorre uma sub-representação das regiões metropolitanas na Assembleia. Concomitantemente, há uma sobrerrepresentação das cidades-polo, em detrimento das outras cidades das RMs. Abstract In the last few decades the metropolises had had the recognition of its relevance in the urban dynamics. However, this very fact has not happened with the politicization of the metropolitan issue. One searches to test the hypothesis of that the recklessness in relation to the questions metropolitans has a causal nexus with the Brazilian representative system. This very system that in its implementation tends to undermine the capacity of parliamentary representation of the country's most urbanized centers. In this sense, we review the current composition of the legislative assembly of Parana – ALEP, based on the territorialization of votes cast by parliamentarians elected in 2006 in the metropolitan regions (MRs) polarized by Curitiba, Maringa and Londrina. From the electoral maps, it is verified that an under-representation of the regions occurs metropolitans in the Assembly. Concomitantly, it has an overrepresentation of the city-polar region, in detriment of the other cities of the RMs. Palavras-chave: representação metropolitana; Assembleia Legislativa do Paraná; eleição de 2006; representação; voto metropolitano. Keywords: representation metropolitan; State legislature of the Paraná; election of 2006; representation; metropolitan vote. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella Introdução Maringá (RMM) e Londrina (RML) em relação à base geográfica dos deputados estaduais eleitos; e 4) levantamento dos projetos dos de- No presente trabalho, temos por objetivo ana- putados estaduais eleitos com maioria de vo- lisar a distribuição geográfica dos votos para tos nas RMs. A fonte principal de informações os representantes da Assembleia Legislativa serão os mapas eleitorais dos municípios das do Paraná (ALEP), nas regiões metropolitanas duas RMs, para que possamos compreender de Curitiba (RMC), Maringá (RMM) e Londrina a dinâmica das práticas político-eleitorais por (RML) na eleição de 2006. O entendimento é meio de um levantamento1 dos projetos pro- que as regiões metropolitanas, apesar de sua postos pelos deputados. influência socioeconômica e do expressivo elei- Primeiramente, verificamos a votação por torado, não conseguem traduzir esse poder em cidade, de cada um dos 54 deputados eleitos um número condizente na composição da As- em todo o Estado. Em seguida, decidimos fa- sembleia Legislativa, estando, pois, sub-repre- zer um recorte, considerando apenas a votação sentadas em relação ao interior do Estado. dos eleitos nas regiões metropolitanas de Curi- Segundo Carvalho (2010), o sistema re- tiba (RMC), Londrina (RML) e Maringá (RMM). presentativo proporcional, em sua operaciona- Partindo dos mapas da votação dos deputados lização, tende a prejudicar de forma sistemática estaduais eleitos no pleito de 2006 do TSE, foi a composição das representações parlamenta- possível fazermos algumas inferências sobre a res dos centros mais urbanizados do País, bem composição do voto nas RMs estudadas, que como as capitais e as regiões metropolitanas. de certa forma contrariam nosso apriorismo e A falta de integração entre as cidades que nos força a um recorte mais aprofundado nas compõem as RMs estudadas confronta com os questões de estratégias de cada deputado, bem discursos e propostas em defesa da ampliação como na real extensão da sua influência, que dessas regiões. não se limita à sua base territorial. Buscamos empreender um exercício de aproximação com a obra de Carvalho (2003; 2009), replicando-a em um cenário mais adensado, ou seja, a geografia do voto para a Assembleia Legislativa do Paraná, no pleito de As Regiões Metropolitanas do Paraná 2006, mas tentaremos ampliá-la, abrindo as seguintes frentes de investigação: 1) a sub- Conforme apontam Ribeiro e Pasternak (2009), -representação das regiões metropolitanas de o destino das metrópoles está no centro dos di- Maringá, Londrina e Curitiba na Assembleia lemas das sociedades contemporâneas. Desde Legislativa; 2) concomitantemente, a sob- a década de 1970, estão em curso as transfor- -representação das cidades-polo em relação mações tecnológicas, sociais e econômicas, em aos deputados eleitos nas RMs; 3) a sub-repre- especial as decorrentes da globalização e da sentação das cidades menores que compõem reestruturação socioprodutiva, que aprofunda- as Regiões Metropolitanas de Curitiba (RMC), ram a dissociação engendrada pelo capitalismo 90 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 O peso do voto metropolitano industrial entre progresso material e urbaniza- em polos de incorporação de migrantes (Rodri- ção, economia e território, Nação e Estado. gues e Tonella, 2010). Em particular, as metrópoles do hemisfé- Vinte e seis municípios compõem atual- rio sul registram vultosas taxas de crescimento mente a Região Metropolitana de Curitiba, a populacional, sem que ocorra a associação com qual foi instituída originalmente pela Lei Com- o progresso material. Ocorrem dois processos: plementar Federal 14/73 e constantemente re- aquele gerado pela vertiginosa concentração definida por legislações estaduais, o que levou populacional em grandes cidades nos países à configuração de um território extenso e hete- que estão conhecendo o processo de desrura- rogêneo. São quatorze os municípios originais, lização induzido pela incorporação do campo à cinco desmembrados e sete outros integrados expansão das fronteiras mundiais do espaço de por meio de legislações estaduais, o que le- circulação do capital, e o outro decorrente da vou à configuração de um território extenso e condição urbana de concentração do capital, heterogêneo. Conforme nos informa Moura et do poder e dos recursos de bem-estar social. al. (2009, p. 4): “essa área, embora contínua, Na década de 1970, existiam no Brasil é bastante desigual, tanto no que se refere à nove regiões metropolitanas e, hoje, existem inserção dos municípios na dinâmica da econo- vinte e sete. São identificadas regiões me- mia regional, quanto nas condições socioam- tropolitanas oriundas de um primeiro grupo, bientais”. Segundo o Censo de 2010, a região composto pelas criadas por iniciativa federal abriga mais de 3,1 milhões de moradores. durante o regime militar, constituídas como A região metropolitana de Maringá forma de integrar o território nacional e mo- (RMM) foi criada em 1998 pela Lei Estadual dernizar a estrutura econômica, caracterizadas nº 83/98, acrescida pela Lei Complementar Es- pela crescente industrialização e urbanização. É tadual nº 13/565-2002 e pela Lei Complemen- esse grupo de regiões que tem o maior tama- tar nº 110, e 688 de 2005. Assim, ficou cons- nho populacional, dentro do qual se destacam tituída pelos municípios de Maringá, Sarandi, as cidades-sede das regiões metropolitanas Marialva, Mandaguari, Paiçandu, Ângulo, de São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Curitiba, Iguaraçu, Mandaguaçu, Floresta, Doutor Ca- Fortaleza, Salvador, Recife, Porto Alegre e Belo margo, Itambé, Astorga e Ivatuba (Silva, 2006, Horizonte. O segundo grupo é composto pelas p. 185). A população da região metropolitana demais regiões metropolitanas e são de inicia- de Maringá passou a contar com 612.617 ha- tiva estadual, uma tarefa delegada aos Estados bitantes, estando 587.971 na região urbana pela Constituição Federal de 1988. e 24.646 na zona rural, distribuídos em treze Os estudos atuais apontam como uma diferença importante o fato de as regiões me- municípios com uma área territorial total de 3.190,07 km² (IBGE/2010). tropolitanas do segundo grupo liderarem o Desde a sua constituição até a recente crescimento demográfico do conjunto das me- inclusão de alguns municípios, a região me- trópoles do País, com taxas que chegaram a tropolitana de Maringá é caracterizada pela 4% ao ano, entre 1991 e 2000. Isso significa falta de um critério aparente para sua con- que as novas aglomerações têm se constituído formação e gestão, além, é claro, da evidente Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 91 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella priorização dos interesses de alguns grupos no de municípios na gramática metropolitana. poder que patrocinam representantes políticos Mesmo com as limitações no enquadramento movidos apenas pela lógica eleitoral imediata em um tipo puro metropolitano, sofrem de pro- e particularista. blemas inerentes à metropolização e são as re- Na visão de alguns autores, em Londrina giões mais desenvolvidas do estado do Paraná. e em Maringá existem processos de aglomeração que não caracterizam uma metropolização, mas, antes, uma ampliação de papéis e funções de cidades médias. Assim, podemos identificar a aglomeração urbana em ambos os Resultados eleitoriais versus dinâmica metropolitana casos, contudo: Nos últimos anos, vêm ocorrendo algumas mo[...] não fica evidente um processo de metropolização, pois as transformações ocorridas nas duas cidades que conduzem a uma expansão territorial, não chegam a reestruturar os espaços urbanos que compõem as chamadas “Regiões Metropolitanas” e tampouco a extensão territorial desta aglomeração é característica da uma entidade metropolitana. (Silva, 2006, p. 189) dificações no modo como são analisados os resultados eleitorais. Se na década de 1970 os estudos demonstravam que as preferências políticas eram orientadas pelas características sociais, econômicas e culturais dos eleitores, atualmente observamos uma tendência dos eleitores em votar em uma pessoa, e não em um partido ou em conjunto programático. A relevância de profissionais de Desse processo, surge a região metro- marketing político é cada vez maior nas cam- politana, instituída em 1998 pela Lei Estadual panhas, além das assessorias de comunicação Complementar nº 81, de 17/6/98, e acresci- e agências de promoção da imagem do “candi- da pela Lei Estadual Complementar nº 91, de dato-produto”. É necessário que o candidato se 5/6/2002, que ampliou o número de municípios diferencie para um eleitor cada vez mais cético que compõem a região metropolitana de Lon- e desinteressado por propostas (quando exis- drina. São eles: Londrina, Cambé, Jataizinho, tem) cada vez mais similares umas às outras. O Ibiporã, Rolândia, Tamarana, Bela Vista do Pa- que observamos na prática é que os candidatos raíso e Sertanópolis (Silva, 2006). A RML conta que logram sucesso na sua eleição não são os com 764.258 habitantes, estando 731.875 na de maior prestígio local, nem os com propos- região urbana e 32.383 na zona rural, distribuí- tas mais próximas das demandas do eleitorado, dos em oito municípios, com uma área territo- mas sim os "comunicadores", que dominam as rial total de 4.285,39 km² (IBGE/2010). técnicas da mídia e da encenação Cada uma das regiões carrega características próprias, fruto do crescimento econômico, de distintos desenhos de inserção na economia regional, estadual e nacional e, também, de intervenções políticas que levaram à agregação 92 O que estamos assistindo hoje em dia não é a um abandono dos princípios do governo representativo, mas a uma mudança do tipo de elite selecionada: uma nova elite está tomando o lugar dos ativistas Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 O peso do voto metropolitano e líderes de partido. A democracia do público é o reinado do "comunicador". (Manin, 1995, p. 18) consentimento. Entretanto, esse tipo de relação de poder, dado pelo povo para, pelo menos teoricamente, ser usado em seu nome e benefício, exigia um grupo de cidadãos preparados e Assim, podemos inferir que, na opinião dos eleitores, a confiança e o carisma que o candidato “transmite” são fatores decisivos na hora de votar, muito mais relevantes que o conhecimento dos projetos e propostas. Manin legitimamente aptos pelo processo eletivo para tornarem-se apto na elaboração de leis. Nas democracias representativas como o Brasil, os parlamentares eleitos têm basicamente duas atribuições inerentes à sua função: (2010) pontua que os eleitores costumam votar legislar e fiscalizar o Poder Executivo. O que se em partidos distintos em eleições presidenciais, espera de um parlamentar é que cumpra seu legislativas e municipais, sugerindo que as papel de representar da melhor maneira os in- decisões de voto consideram somente a per- teresses de todos os cidadãos, sob a forma de cepção de que o que está sendo decidido diz elaboração de políticas públicas que atendam respeito apenas a uma eleição específica, inde- suas demandas. Também lhes cabe a prerroga- pendente das características socioeconômicas tiva de monitorar e fiscalizar as ações e pro- e culturais dos eleitores: postas do Executivo de forma a garantir que as Esse aspecto aparece de modo nítido na relação que se estabelece entre o poder executivo e os eleitores no plano nacional. Há muito tempo os analistas vêm constatando uma tendência à personalização do poder nos países democráticos. Nos países em que o chefe do poder executivo é eleito diretamente por sufrágio universal, a escolha do presidente da República tende a ser a eleição mais importante. (Manin, 1995, p. 17) A enorme expansão do universo eleito- políticas públicas se traduzam em resultados que garantam a consecução de tais interesses. Manin assinala que: Tal capacidade será maior quanto maior for a articulação política entre os cidadãos visando à manifestação de uma opinião que lhes é comum. É praticamente inútil que opiniões divergentes quanto à forma pela qual é o governo é conduzido se manifestem isoladamente; sem coordenação, tais manifestações não se constituem em ação política eficaz. (Manin, 1995, p. 59) ral, principalmente com a ampliação do direito de voto a várias categorias sociais, requisitou Além disso, os representantes eleitos se- o aperfeiçoamento tanto das instituições po- rão pressionados a fazer valer, junto às instân- líticas como dos sistemas eleitorais, principal- cias decisórias do Estado, demandas e interes- mente no que se refere ao processo de conces- ses dos segmentos sociais específicos que os são, por parte dos eleitores, da defesa de suas elegeram. Assim, “percebe-se que as distintas demandas pelos representantes escolhidos formas de atuação dos representantes políti- por meio do sufrágio. A representação política cos trazem em si o exercício do poder políti- passa a ser um recurso para o uso do poder co derivado do consentimento” (Magdaleno, do Estado em relação ao cidadão, e sob seu 2010, p. 49). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 93 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella Alguns autores, como Ames (2003) e um número excessivo de veto players, ou seja, Nicolau (2007), sustentam que o formato po- atores com poder de obstrução de mudanças lítico institucional e eleitoral brasileiro, de lista podem gerar uma permanente crise de gover- aberta e proporcional, não permite governos nabilidade, uma vez que, para o autor, os políti- com sustentação parlamentar. Torna-se neces- cos são incentivados a maximizar seus ganhos sária a formação de alianças amplas, resultan- pessoais, buscando projetos e recursos para do em coalizões que fragilizariam o Executivo, suas clientelas específicas. Desse modo, grande que precisaria, então, para governar, lançar parte dos representantes orienta sua carreira mão de incentivos a um Legislativo inclinado a "para a oferta de contratos de obras públicas comportamentos individualistas, que minariam e nomeações para cargos burocráticos" (Ames, a coesão e a disciplina partidárias. Ademais, a 2003, p. 46). Esse tipo de político, com perfil fi- proporcionalidade na divisão das cadeiras frag- siologista e clientelista, seria majoritário e con- menta os partidos e reduz a conexão dos elei- tribuiu para o desenho das regras necessárias tores com seus representantes. Para Nicolau, à vazão livre do paroquialismo no interior do [...] com muitos representantes eleitos no distrito, os eleitores teriam mais dificuldades para identificar o representante e fazer uma boa avaliação de sua atuação, seja para puni-lo (caso não tenha tido uma boa atuação), seja para recompensá-lo (quando tenha tido uma boa atuação). (Nicolau, 2007, p. 61) Ames (2003) toma por argumento cen- Poder Legislativo: [...] ali os líderes partidários não possuem controle sobre as bancadas e os indivíduos ou grupos suprapartidários encontram-se em condição de determinar o preço de sua cooperação. Os presidentes da República, por sua vez, precisam "estar sempre reconstruindo maiorias". (Ames, 2003, p. 294) tral a fragilidade do sistema institucional políti- Mesmo com todo o poder, principalmen- co eleitoral brasileiro, consequência do sistema te em matéria orçamentária, que a Constitui- de representação de lista aberta, em que as ção lhe outorgou, o Executivo, por não contar, estratégias eleitorais refletem um tipo singular de fato, com uma maioria no Congresso, se de competição, que pode ser representado com depara com uma considerável margem de in- base em duas dimensões: uma, que varia relati- certeza na aprovação da sua agenda. Assim, a vamente e em ordem direta com a "penetração mesma coalizão que lhe deu sustentação elei- política vertical" do candidato, ou seja, o total toral para chegar ao poder, não lhe dá garan- de votos amealhados em determinado municí- tia de sustentação política nas votações. Para pio ou conjunto de municípios e que traduz a Mainwaring (2001), outra característica dessa dominância do político naquele espaço. Outra relação entre os Executivos e os Legislativos disputa se caracteriza pela relação da distribui- brasileiros, derivadas da necessidade de forma- ção geográfica dos municípios, em que o can- ção de governos de coalizão sempre em bases didato obteve sua votação e que revela o grau frágeis, seria o uso político dos recursos públi- de concentração ou dispersão de sua base elei- cos sob a forma de patronagem. Em outras pa- toral. Combinadas, tais instituições produzem lavras, trata-se da nomeação de apadrinhados 94 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 O peso do voto metropolitano políticos para ocuparem cargos na máquina de atendimento das necessidades e anseios pública, transformados em moeda de troca de das populações. apoio político, e também através do clientelismo e o fisiologismo. Com os avanços da “sociedade da informação em tempo real”, hoje se faz indispen- Essas práticas têm um alto custo para sável a adoção de outras formas de acesso o país, pois, além de emperrarem o processo do cidadão na vida política. A representação, de tomada de decisões importantes no aten- apesar seu importante papel, apresenta alguns dimento das demandas da sociedade por meio problemas, como o revezamento das elites no de soluções coletivas, acabam privilegiando poder, que dificultam a renovação, pois concen- os interesses particularistas de alguns grupos tra demasiado poder em pouquíssimas mãos.2 ou facções. Outro aspecto importante que daria mais A melhoria dessa situação, no sentido qualidade à relação representante e represen- de dar mais efetividade e qualidade na rela- tado refere-se à ampliação dos mecanismos de ção entre Executivo e Legislativo, aponta para prestação de contas dos mandatos, reduzindo uma transformação em sua natureza, cabendo o chamado “déficit de controle da representa- ao eleitor demonstrar o acompanhamento das ção”. Atualmente, depois de eleitos os repre- atividades do seu candidato. Entretanto, é ta- sentantes, a única forma de controle sobre o refa dos representantes proporcionar canais de mandato por parte do eleitor é a possibilidade informação de suas atividades, permitindo aos de não-renovação da outorga, ou seja, a não- cidadãos maior capacidade de fiscalizá-los: -reeleição. A representação tem, sem dúvida, um papel relevante nos governos e nas demo- A disseminação e o aperfeiçoamento de mecanismos institucionalizados de interlocução entre cidadãos e representantes eleitos, na arena legislativa, diminuiriam a assimetria informacional entre estes atores e tornariam mais plurais as fontes de informação dos legisladores, capacitando-os para conhecer quais são e como representar os melhores interesses dos cidadãos. (Anastasia e Nunes, 2006, p. 29) cracias modernas, sendo necessária a ampliação desse processo, incentivando a formação de práticas de comprometimento para além do sufrágio obrigatório como única instância da relação entre eleitor e eleito. Neste sentido, admitiremos neste trabalho que o modo mais fácil e usual de os parlamentares, mais especificamente os deputados estaduais paranaenses da legislatura de 2007-2010, buscarem a reeleição concentra-se A complexidade das sociedades moder- na reivindicação de benefícios e recursos para nas, cada vez mais marcadas por clivagens e seus eleitorados específicos. O modelo distribu- pela diversidade, transforma a representa- tivista parte do princípio de que os parlamenta- ção política em uma espécie de consenso co- res são regidos pelo desejo de reeleição, maxi- mo única solução política capaz de atender mizando suas ações para a obtenção desse re- às demandas. Entretanto, embora hegemôni- sultado esperado. Assim, nesse modelo, o fator cos no mundo ocidental, o sufrágio universal preponderante é a análise das motivações que e a representação não são as únicas formas levam o parlamentar a agir de determinada Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 95 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella forma na arena legislativa. Entretanto, o Legislativo, qualquer que seja, é palco de disputas e conflitos entre os mais variados e diversos interesses individuais e de grupos. Uma das principais atribuições dos legislativos é a formulação e destinação de recursos e benefícios sob a forma de políticas públicas. Carvalho (2003, pp. 20-21) informa que, no caso brasileiro, a importação do modelo distributivista para se interpretar o comportamento legislativo ocorreu pela similitude de alguns elementos análogos identificados no congresso norte-americano: a) a baixa institucionalização dos partidos; b) o particularismo legislativo; e, sobretudo, c) o predomínio do voto personalizado na arena eleitoral. benefícios em um distrito geográfico específico e financia gasto por meio de uma tributação generalizada [...]... se é claro que toda política traz uma incidência geográfica de custos e benefícios, o que distingue uma política distributiva é que os benefícios têm um alvo geograficamente definido. (Carvalho, 2003, p. 20) Torna-se óbvia, então, a preferência dos deputados em relação à deliberação de políticas públicas que viabilizem recursos em forma de benefícios concentrados e custos dispersos, aumentando, teoricamente, suas chances de reeleição. Esse sistema se organiza através dos redutos eleitorais, porque é através deles que o político conhece as preferências dos que votaram nele (Limongi, 2006; Lemos, 2001). Nesse contexto, são sancionados leis e programas que afetam a vida de muitos cidadãos, inclusive os eleitores de cada parlamentar, que têm, por sua vez, a exata dimensão A representação nas Regiões Metropolitanas do fato de estarem subordinados à sanção periódica desses eleitores. A relevância da “conexão eleitoral”, ou seja, da relação entre representado e representante faz com que todo parlamentar tenha fortes incentivos para atender aos interesses específicos dos eleitores de sua região: U ma p o lí t ic a d is t r i b u t i va t ra t a - s e de uma decisão de política que concentra 96 Por meio dos dados disponíveis no Tribunal Superior Eleitoral para as eleições de 2006, organizamos os dados dos deputados mais votados nas RMs do Paraná (Quadro 1), detalhando o total de votos no estado, o total de votos obtidos na RM correspondente, bem como a porcentagem em relação ao total de votos obtidos, o mesmo ocorrendo em relação à cidade-polo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 O peso do voto metropolitano Quadro 1 – Deputados mais votados nas RMs e suas votações nas cidades-polo Deputados RMM x Maringá Total votos PR Votos RMM % Votos Maringá % Manoel Batista da S. Jr. (PMN) 26,174 25.027 93,68 18.821 70,45 Wilson Quinteiro (PSB) 24.307 21.079 86,72 17.060 70,19 Maria Ap. Borguetti (PP) 66.492 51.373 77,26 32.783 49,30 Enio José Verri 36.800 23.650 64,27 17.538 47,66 Luiz Hiloshi Nishimori (PSDB) 45.247 28.602 63,21 15.000 33,15 Deputados RML x Londrina Antonio Casemiro Belinati (PP) Total votos PR 81.157 Votos RML 78.429 % Votos Londrina % 96,64 68.299 84,16 Luiz Eduardo Cheida (PMDB) 39.298 28.596 72,77 26.994 68,69 José Durval M. do Amaral (PFL) 46.476 23.891 51,41 3.776 8,12 Deputados RMC x Curitiba Total votos PR Votos RMC % Izabete Cristina Pavin (PMDB) 38.266 37.357 97,62 Cleusa Rosane R. Ferreira (PV) 18.844 18.176 Osmar Stuart Bertoldi (PFL) 27.385 26.146 Mauro R. Moraes e Silva (PMDB) 48.513 Edson Luiz Strapasson (PMDB) Carlos Xavier Simões (PTB) Votos Curitiba % 5.834 15,25 96,46 2.653 14,08 95,48 22.627 82,63 45.784 94,37 43.651 89,98 38.645 36.408 94,21 4.301 11,13 32.138 29.319 91,23 10.356 32,22 Luiz Carlos Martins (PDT) 54.520 48.779 89,47 31.982 58,66 Ney Leprevost Neto (PP) 53.471 46.581 87,11 37.348 69,85 Antonio Tadeu Veneri (PT) 28.204 22.967 81,43 17.094 60,61 Fabio de Souza Camargo (PFL) 37.973 22.903 60,31 19.712 51,91 Edson da Silva Praczyk (PRB) 38.645 21.066 54,51 13.225 34,22 Fonte: TSE (2010), adaptado por Damascena. Carvalho (2003) estudou a composição avaliação para a geografia do voto do Estado das bancadas ditas “metropolitanas” no Con- do Paraná, e se levarmos em conta o potencial gresso Nacional brasileiro, nos pleitos de 1998, eleitoral das RMs, comparadas com a quanti- 2002 e 2006, testando a hipótese que contra- dade de deputados eleitos, verificaremos uma ria, em princípio, os ditames da sociologia elei- sub-representação da RMs na Assembleia Es- toral, ao apontar a sub-representação dessas tadual. De início, apenas em termos numéricos, áreas mais desenvolvidas. Ao transferirmos a no pleito de 2006, as áreas metropolitanas que Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 97 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella teriam condições de eleger em torno de 23 de- naturais” perdem o “vigor” na captação de vo- putados, elegeram 19. Ainda conforme Carva- tos. Ou seja, nas cidades border line da região lho (2010), na bancada dita metropolitana, a metropolitana, o desempenho dos candidatos quase totalidade dos deputados apresenta vo- com base em Maringá sofrem a concorrência tação concentrada em um único município, que de outros deputados. pode ser a capital do estado ou a cidade-polo: Ora, se os deputados metropolitanos, ou o que poderíamos designar de nossa bancada metropolitana, tratam-se de representantes com votação concentrada em suas respectivas RMs, cabe por fim identificar a natureza – mais ou menos integrada dentro do espaço metropolitano – do município que recebe a maioria dos votos dos deputados dali egressos. Selecionando dois pontos no tempo, as eleições de 1994 e a de 2006, verificamos que nossa bancada metropolitana, além de concentrar a votação, tem seus votos – de forma mais do que majoritária – extraídos dos municípios-polo (em geral, as capitais dos estados) e das áreas mais integradas das RMs. As áreas menos integradas, mais periféricas das nossas RMs pouco se acham representadas [...]. (Carvalho, 2010, p. 11) Mesmo que tenha ocorrido uma renovação de 50% entre os quatro deputados eleitos pela região metropolitana de Maringá em 2006 em relação a 2002, podemos afirmar que, na prática, mais uma vez apenas a elite estava representada. Talvez assim, sem qualquer ameaça de ruptura com as elites dominantes, estivesse garantida a manutenção de práticas políticas tradicionais, comprovando que, ainda hoje, a renovação em Maringá ainda é conservadora: [...] verificamos que a política local seguiu um padrão recorrente na política nacional, que é o de manter fortes contornos clientelistas e personalistas. Tal constatação baseou-se numa prática dos políticos descompromissados com as bases por um lado, e, por outro, no limitado índice de cobranças por parte da sociedade em relação aos seus representantes. (Tonella, 1991, p. 160) Essa constatação explicaria, a priori, a falta de interesse na politização das questões Levando em conta a votação concentra- metropolitanas, porque, segundo a literatura da na região, em especial na cidade-polo, e o da conexão eleitoral, esses deputados estariam histórico dos eleitos mais votados na RMM, “comprometidos” em atender as suas bases por sendo Ênio Verri (PT), Luiz Nishimori (PSDB), meio de ações de natureza localista, em uma Dr. Batista (PMN), Cida Borghetti (PP) e Wil- espécie de “paroquialismo metropolitano”. son Quinteiro (PSB), que assumiu há pouco No caso da RMM, alguns deputados ob- menos de 18 meses do fim da legislatura, po- tiveram votações expressivas e concentradas demos inferir, como sugere Carvalho (2009), não só na cidade-polo, mas também em Saran- a conformação de uma “bancada metropo- di e em Paiçandu, municípios conurbados com litana.” Porém, à medida que nos afastamos Maringá. Analisando os dados, um fato que desses três municípios contíguos dentro da “salta aos olhos” é que, à medida que se sai do RMM, verificamos votações significativas de centro da RMM, Maringá, a votação dos depu- alguns deputados que não têm sua base elei- tados que adotamos por seus “representantes toral na RMM, em alguns casos, superando os 98 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 O peso do voto metropolitano candidatos tidos por “representantes naturais” cidades, votações maiores do que alguns candi- da região metropolitana. datos que têm sua base em Maringá, o que não Importante registrar que, dos treze municípios 3 que compõem a RMM, é apenas e altera significativamente o quadro, pois a cidade-polo tem o maior contingente de eleitores. tão somente em três deles, Maringá, Paiçandu A concentração dos votos dos cinco de- e Sarandi, os deputados Ênio Verri (PT), Cida putados eleitos mais votados na RMM, de Borghetti (PP), Dr. Batista (PMN), Luiz Nishi- acordo com o critério de Carvalho (2010), mori (PSDB) e Wilson Quinteiro (PSB) têm vo- permite assumir que os cinco deputados mais tação absolutamente maior. Em alguns casos, a votados na RMM sejam considerados “deputa- votação de pelo menos um dos quatro é me- dos metropolitanos”, porque, do total de votos nor que a de deputados “estranhos” à região. obtidos na região, todos fizeram mais de 50% No caso, em Ângulo, Antonio Martins Anibelli desses votos na cidade-polo. (PMDB) teve 39,97% dos votos nominais, se- É importante observar que, dos quatro guido por José Durval Matos Amaral (DEM), candidatos mais votados na região metro- com 15,16% dos votos nominais em contras- politana de Maringá, o deputado Dr. Batista te com Cida Borgheti (PP), que teve a terceira (PMN) apresentou a maior concentração de maior votação, 9,26% dos votos nominais. Já votos na RMM (93,68%), mas foi Wilson Quin- em Astorga, José Durval Matos Amaral (PMDB) teiro (PSB) quem apresentou o perfil de votos obteve 13,43%, e Luís Nishimori (PSDB) 7,34% mais concentrado na cidade-polo (72,42%), dos votos nominais. No município de Itambé, demonstrando um padrão mais concentrado. a situação se repete, demonstrando uma forte Cida Borghetti (PP) foi a mais votada entre os votação de José Durval Matos Amaral (PMDB), quatro no Estado. Reeleita, ampliou sua base com 21,78%, enquanto Cida Borgheti (PP) teve eleitoral, tendo a terceira menor concentração 19,29% dos votos nominais. dos seus votos tanto na região metropolitana Mandaguari confirma a tendência de (77,26) quanto na cidade-polo (49,30%). Já dispersão de votos dos deputados de Maringá, Luis Nishimori (PSDB), também no seu segun- mas chama atenção a alta fragmentação dos do mandato, é o deputado da região metropo- votos, uma vez que possui um eleitorado de litana que tem o perfil mais disperso, apresen- 20.549 votantes, e a maior votação foi de Luis tando o menor índice de concentração tanto Carlos Caíto Quintana (PMDB), com 5,14% dos na RMM (64,27%), ainda sim bastante alta, votos nominais, perfazendo apenas 953 votos. como na cidade-polo (33,15%). Entretanto, no É possível constatar que, dos cinco deputados município de Marialva, seu reduto eleitoral, o eleitos mais votados, quatro deles têm sua ba- deputado teve votação maior que e de todos se eleitoral na cidade-polo, Maringá, e apenas os outros juntos, 6.090 votos, e Nishimori (PS- um, Luis Nishimori (PSDB), teve boa votação, DB) também demonstrou agregar os votos da mas seu voto é mais disperso. colônia japonesa, muito grande na região nor- Conforme a análise é feita saindo da te do Paraná. RMM e da “zona de influência” da cidade-polo, Analisando a concentração dos votos dos outros candidatos conseguem, em algumas deputados estaduais eleitos, e considerando-se Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 99 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella que Cida (PP), Ênio (PT), Dr. Batista (PMN) e Nishimori (PSDB) também demonstra agregar Quinteiro (PSB) residem, votam e têm repre- os votos da colônia japonesa, muito grande na sentações políticas em Maringá, à exceção de região norte do Paraná. Nishimori (PSDB), que tem empresa em Marial- A região metropolitana de Londrina é ce- va, é possível inferirmos que a predominância nário de um fato que confirma a tese defendida das elites políticas da cidade-polo é muito sig- por Carvalho (2009) de que a sub-representa- nificativa e decisiva. Por outro lado, os demais ção das grandes cidades e das regiões metro- doze municípios que fazem parte da RMM, a politanas é intrínseca à natureza do sistema exemplo de Sarandi e Mandaguari, que contam eleitoral representativo brasileiro. Contando com o segundo e terceiro maiores eleitorados com oito municípios que representam um po- da região, respectivamente, estas sim estariam tencial eleitoral de 433.187 votos válidos para sub-representadas. deputado estadual, a região metropolitana de Conforme demonstra o Quadro 1, a Londrina elegeu três deputados. Ao comparar- concentração dos votos dos cinco deputados mos com a região metropolitana de Maringá, eleitos mais votados na RMM, de acordo com que, mesmo tendo um número em torno de o critério de Carvalho (2010), permite assumir 29,12% a menos de eleitores (306.168 votos que sejam considerados “deputados metropoli- válidos para deputado estadual), elegeu quatro tanos”, visto que, do total de votos obtidos na deputados e um suplente que mais tarde assu- região, todos fizeram mais de 50% desses vo- miu o mandato, é possível inferir uma conside- tos na cidade-polo. Interessante notar que, dos rável sub-representação da região metropolita- quatro candidatos mais votados na RMM, o de- na de Londrina. putado Dr. Batista (PMN) apresentou a maior O mais votado da RML foi Antonio Be- quantidade de votos na RMM (93,68%), porém linati (PP), que obteve 78.429 votos válidos, foi Wilson Quinteiro (PSB) quem apresentou o o que representa 18% do total da região me- perfil de votos mais concentrado na cidade- tropolitana. O segundo deputado mais votado -polo (72,42%). Cida Borghetti (PP) foi a mais na RML foi Luiz Eduardo Cheida (PMDB). Co- votada entre os quatro no estado. Reeleita, am- mo deputado eleito pela RML em 2006, Cheida pliou sua base eleitoral, tendo a terceira menor (PMDB) também obteve bom desempenho na concentração tanto na região metropolitana cidade de Londrina (10,61%), tendo uma vo- (77,26%), quanto na cidade-polo (49,30%). Já tação muito fraca nas demais cidades da RML. Luis Nishimori (PSDB), também no seu segundo O terceiro deputado eleito mais votado, José mandato, é o deputado da região metropoli- Durval Amaral (PFL, hoje DEM), obteve 51,41% tana que tem o perfil mais disperso, apresen- dos votos válidos na RML, nesse que seria seu tando o menor índice de concentração tanto quinto mandato consecutivo como deputado na RMM (64,27%), ainda sim bastante alta, estadual, mas poucos votos na cidade-polo. como na cidade-polo (33,15%). Entretanto, no Por fim, dos três deputados eleitos e mais município de Marialva, seu reduto eleitoral, votados na RML, apenas Durval Amaral (PFL), o deputado com votação maior que de todos apesar da votação concentrada na RML, não os outros juntos, e mesmo com 6.090 votos, apresenta o mesmo desempenho na cidade- 100 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 O peso do voto metropolitano -polo, tendo um perfil de votação mais disperso ideológica; entretanto, não tem se revertido em pelos demais municípios, em especial Cambé, números suficientes para eleger representantes segundo maior eleitorado da RML. da temática. No caso da RMC, onze deputados tiveram mais de 50% da votação na região metropolitana, resultando, contudo, em pelo menos três cenários; Isabete Pavin (PMDB), Cleusa Ferreira (PV), Carlos Simões (PTB) e Edson Strapasson Produção legislativa dos deputados metropolitanos (PMDB) apresentam-se como os deputados de caráter metropolitano, com a maioria dos votos Para demonstrar melhor os desdobramentos da obtidos na região metropolitana, mas não con- conexão eleitoral e da concentração dos votos centrados na cidade-polo. O segundo caso cor- dos deputados na RMM e na cidade-polo, ana- responde às votações de Osmar Bertoldi (PFL) lisaremos os projetos de lei propostos (Quadro e Mauro Moraes (PMDB), os quais apresentam 2). É possível perceber com mais clareza como as mesmas características de votação restrita se dá a ação localista nas proposições. Para à RMC, mas com mais de 80% dos votos em tanto, apresentaremos as proposições segundo Curitiba. Os demais compõem um quadro inter- sua natureza e recorrência, divididas em qua- mediário de votações mais dispersas em todo o tro linhas gerais, e primeiramente classificare- espectro metropolitano. mos os projetos de lei que declaram entidades Como Carvalho sugere, a concentração sem fins lucrativos como sendo de “utilidade de votos dos deputados ditos “metropolitanos” pública”. Esses projetos são aprovados sem nas cidades-polo caracteriza um situação não dificuldade no plenário, pois em sua imensa prevista na literatura da sociologia eleitoral: maioria contemplam entidades e organizações [...] estaríamos, então, diante de um híbrido perverso, não previsto pela tradição de nossa sociologia eleitoral: a sub-representação das áreas urbanas, de um lado, e o paroquialismo metropolitano, de outro. Embora de origem urbana, a representação metropolitana no Brasil, ao concentrar sua votação no espaço geográfico de um único município, se moveria – tal qual os congêneres das áreas rurais pela lógica do particularismo, deixando fora de sua agenda temas de natureza universalista, como a governança metropolitana. (Carvalho, 2009, p. 369) da base eleitoral do deputado. Assim, nos deteremos mais nesse tipo de projetos por entendê-los como indicadores da ação paroquialista, uma vez que as entidades passam a gozar de benefícios do Executivo Estadual, com maior acesso a políticas públicas (Cervi, 2009). Também agruparemos os projetos de lei que se destinam a prestar homenagens em geral póstumas (nominando ruas, estradas, escolas, prédios públicos); leis que criam datas comemorativas e leis que concedem títulos para homenagear personalidades. Essas leis também contam com alta taxa de aprovação, O pressuposto é que o tema metropoli- porque seus efeitos, na prática, são inócuos e tano chama a atenção de um eleitor de perfil não implicam dispêndio de recursos e servem mais avançado, com um voto de extração mais apenas para melhorar a imagem do deputado. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 101 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella Consideraremos as leis que criam, alteram ou mandato, é a deputada mais ligada às ques- regulamentam políticas públicas e programas, tões metropolitanas. envolvendo temas como saúde, educação, meio O segundo tipo de projeto de lei mais ambiente, direito do consumidor, entre outros. proposto foi criação, alteração ou regulamen- Essas proposições são caracterizadas, por sua tação de programas e políticas públicas (saú- natureza, obtêm baixa taxa de aprovação por de, educação, meio ambiente, etc.), tendo 61 entrarem em conflito com as diretrizes aprova- apresentações ou 21,18% do total. O deputado das por lei complementar ou “simplesmente, que mais apresentou proposições desta natu- não são consensuais à maioria dos parlamen- reza foi o deputado Dr. Batista (PMN), sendo a tares (sofrem o dilema da ação coletiva e a maioria deles ligada à temática da saúde, sua dispersão de preferências entre os deputados)” área de atuação. Dr. Batista costuma reforçar (Veiga et al., 2008, p. 18). esta identificação, ao percorrer o estado dando Por fim, classificamos as propostas de palestras sobre vários temas. projeto de lei que afetam de forma direta a ad- A criação de datas comemorativas, ministração pública, instituindo cargos e alte- concessão de títulos e denominação de ruas, rando salários ou regulamentando questões de com 42 solicitações, ou 14,58% do total. natureza orçamentária e fiscal, como a criação Nesse tipo de projeto de lei, o deputado que e isenção de tributos. Esses projetos de lei são mais apresentou propostas foi Luiz Nishimori na maioria arquivados, por tratarem de maté- (PSDB), muitos deles relacionados com a colô- rias legislativas cuja prerrogativa de proposi- nia japonesa, de todo estado, justificando seu ção é exclusiva do executivo estadual (Veiga perfil de votação mais disperso. Em relação às et al., 2008). propostas de lei que tratam da administração O Quadro 2 demonstra a existência de pública (política fiscal, orçamentária, tributá- relevante quantidade de projetos de declara- ria), na prática prerrogativas do Executivo e de ção de entidades de utilidade pública de tal difícil aprovação, apenas 25 foram apresenta- forma que, do total de 288 projetos propos- das, ou seja, 8,6% do total. Por fim é necessá- tos pelos deputados da RMM, 62 são dessa rio destacar que, dos 288 projetos de lei apre- natureza, ou seja, 21,53%. O deputado que sentados (não consideramos sua aprovação ou mais apresentou este tipo de projeto foi Cida arquivamento), apenas quatro, ou seja, 1,39% Borghetti (PP) com 23 proposições, sendo 16 versavam sobre a questão metropolitana, sen- deles para entidades da cidade-polo, Maringá, do dois de Cida Borghetti (PLs 310/2007 e o que representa 69,57% do total de projetos 344/2007) que incluem municípios na RMM. de concessão do título de entidade pública, Luiz Nishimori (PSDB ) apresentou uma pro- apresentados pela deputada. Como já ressal- posta (PL 129/2008), que também inclui mu- tamos, esse tipo de projeto de lei permite às nicípios na RMM, bem como Wilson Quinteiro entidades gozarem de benefícios do Executi- (PSB), com a PL 105/2010, que dispõe sobre o vo Estadual e terem maior acesso a políticas monitoramento da qualidade do ar da região públicas. Cida Borghetti (PP), no seu segundo metropolitana de Maringá. 102 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 O peso do voto metropolitano Quadro 2 – Projetos de lei apresentados pelos deputados da RMM Cida Borghetti (PP) Natureza da proposta 73 PLs Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 27 36,99 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 13 7,81 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 23 31,51 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 6 8,22 4 5,48 4 Outros Dr. Batista (PMN) Natureza da proposta 60 PLs Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 8 13,33 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 8 13,33 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 29 48,33 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 14 23,33 1 1,67 Outros Enio Verri (PT) Natureza da proposta 9 PLs Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 7 77,78 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 0 0,00 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 0 0,00 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 0 0,00 Luiz Nishimori (PSDB) Natureza da proposta 73 PLs Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 17 29,31 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 18 31,03 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 5 25,86 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 3 5,17 Outros 5 8,62 Wilson Quinteiro (PSB) Natureza da proposta 13 PLs Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 3 23,08 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 3 23,08 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 4 30,77 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 2 15,38 Fonte: ALEP (2011), adaptado por Damascena. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 103 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella Quadro 3 – Projetos de lei apresentados pelos deputados da RML Antonio Belinati (PP) 80 PLs Natureza da proposta Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 12 15,00 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 4 5,00 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 36 45,00 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 23 28,75 Outros 5 6,25 Luiz Cheida (PMDB) 45 PLs Natureza da proposta Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 20 44,44 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 3 6,67 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 19 42,22 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 2 4,44 Outros 1 2,22 Durval Amaral (DEM) 17 PLs Natureza da proposta Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 6 35,29 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 2 11,76 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 1 5,88 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 6 35,29 Outros 2 11,76 Fonte: ALEP (2011), adaptado por Damascena. Os dados do Quadro 3 permitem consta- maioria delas relacionadas à regulamentação tar que de um total de 142 propostas, 56, ou de atividades profissionais, e isenção do pa- seja, 39,44% do total de projetos de lei apre- gamento de taxas e cobranças de pedágio. Os sentados pelos representantes da RML, dizem projetos de declaração de entidades de utili- respeito à criação, alteração ou regulamenta- dade pública ficam em segundo lugar, com 38 ção de programas e políticas públicas. O depu- recorrências, ou 26,76% do total, e o deputado tado que mais apresentou proposições desta que mais apresentou este tipo de projeto foi natureza foi o deputado Antonio Belinati (PP), Luiz Cheida (PMDB), com 20 projetos de lei, re- com 19 propostas (33,93% do total), sendo a presentando 52,63% do total dessa natureza. 104 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 O peso do voto metropolitano Conforme ressaltamos anteriormente, sua aprovação ou arquivamento), apenas um esse tipo de projeto de lei permite às entida- (0,70% do total), versava sobre a questão me- des condição junto ao Executivo, tendo maior tropolitana, sendo de autoria de Antonio Be- acesso a políticas públicas e que assumimos linati (PP), sem dúvida o deputado que mais como passíveis de práticas paroquialistas, pois projetos encaminhou à mesa. atendem as demandas específicas da base do Assim, diferente da região metropolitana deputado. Assim, dos 20 projetos propostos de Maringá, os deputados da região metropoli- por Cheida (PMDB), 14 são para entidades de tana de Londrina apresentaram interesse maior Londrina, sua base eleitoral. As propostas que por temas ligados à criação, alteração ou regu- tratam de administração pública (política fis- lamentação de programas e políticas públicas. cal, orçamentária, tributária), e de competên- Principalmente em virtude da profusão dos cia do executivo, ocupam o terceiro lugar entre 80 projetos apresentados por Antonio Belinati as preposições dos deputados da RM, perfa- (PP), que vão desde a colocação de câmeras zendo 31 projetos de lei, ou 21,83% do total em todas as dependências das escolas públi- de projetos de lei elaborados. Novamente, foi cas, até a garantia da utilização dos elevadores o deputado Antonio Belinati (PP) quem mais dos condomínios residenciais para pessoas de enviou esse tipo de proposta, 23, ou 93,55% todas as classes sociais. Entretanto, é importan- do total desta natureza. Por fim, a criação de te ressaltar que a prática de declarar entidades datas comemorativas, concessão de títulos de utilidade pública teve a segunda maior re- e denominação de ruas foi a que apresentou corrência entre os deputados eleitos pela RML. menos recorrências, nove, respondendo por A exemplo de Cheida (PMDB), o deputado 6,33% do total, tendo no deputado Antonio Belinati (PP) utilizou esta mesma estratégia, Belinati (PP) o maior propositor deste tipo de concedendo essa “benesse” para 12 entidades, projeto, com quatro propostas. Dos 142 pro- porém de forma não tão concentrada em Lon- jetos de lei apresentados (não consideramos drina (duas entidades apenas). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 105 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella Quadro 4 – Projetos de lei apresentados pelos deputados da RMC Rosane Ferreira (PV) 40 PLs Natureza da proposta Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 15 37,50 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 5 12,50 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 15 37,50 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 1 2,50 4 10,00 Outros Osmar Bertoldi (PFL) 77 PLs Natureza da proposta Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 12 15,58 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 0 0,00 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 43 55,84 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 13 16,88 9 11,69 Outros Ney Leprevost (PP) 162 PLs Natureza da proposta Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 19 11,73 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 46 28,40 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 37 22,84 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 22 13,58 38 23,46 Outros Mauro R. Moraes e Silva (PMDB) 84 PLs Natureza da proposta Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 5 5,95 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 1 – Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 30 – Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 15 – 33 – Outros Luiz Carlos Martins (PDT) 15 PLs Natureza da proposta Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 5 33,33 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 3 20,00 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 0 0,00 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 3 20,00 Outros 4 26,67 106 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 O peso do voto metropolitano Isabete Pavin (PMDB) Natureza da proposta 13 PLs Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 2 15,38 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 3 23,08 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 3 23,08 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 2 15,38 3 23,08 Outros Fabio de Souza Camargo (PDT) Natureza da proposta 54 PLs Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 16 29,63 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 9 16,67 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 15 27,78 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 6 11,11 8 14,81 Outros Edson Luiz Strapasson (PMDB) Natureza da proposta 20 PLs Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 9 45 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 4 20 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 2 10 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 4 20 1 5 Outros Edson da Silva Praczyk (PRB) Natureza da proposta 24 PLs Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 7 29,17 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 1 4,17 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 6 25 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 1 4,17 9 37,50 Outros Carlos Xavier Simões (PTB) Natureza da proposta 7 PLs Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 1 14,29 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 2 28,57 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 3 42,86 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 0 0 Outros 1 14,29 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 107 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella Antonio Tadeu Veneri (PT) 41 PLs Natureza da proposta Recorrência % Declaração de entidade de utilidade pública 17 41,46 Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 1 2,44 Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, etc.) 6 14,63 Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 8 19,51 Outros 9 21,95 Fonte: ALEP (2011), adaptado por Damascena. O total de projetos de lei apresentados característica. Individualmente os parlamenta- pelos deputados considerados metropolitanos res que mais apresentaram foram: Tadeu Veneri foi de 214. Individualmente, apresentaram (41,5%), Rosane Ferreira (37,5%) e Luis Carlos maior número de PL, pela ordem, Ney Lepro- Martins (33,3%). Os dois últimos não foram vost (162), Mauro Moraes (84), Osmar Bertoldi reeleitos. Curi, campeão de votos no Estado e (77), Fábio Camargo (54) e Tadeu Veneri (41). conhecido por práticas clientelistas, apresentou Não está em questão a qualidade das proposi- 44,16% de PLs em busca de benefícios a enti- turas e, pela lógica do eleitor, foram bem suce- dades assistenciais.5 didos em apresentar grande volume de propostas, pois todos os listados foram reeleitos. Na análise dos projetos de lei apresentados pelos deputados da 16ª legislatura da Na linha de argumentação que aponta ALEP eleitos pelas RMs estudadas, reforça a ar- que a solicitação de declaração de entidades gumentação de que o tema metropolitano não de utilidade públicas, sem maiores critérios, re- encontra lugar na agenda dos deputados. No força práticas clientelistas, entre os deputados período, dez deputados apresentaram projetos listados, em torno de 24% foram PLs com esta de lei sobre o tema, conforme Quadro 5. 108 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 O peso do voto metropolitano Quadro 5 – PLs apresentados versando sobre o tema metropolitano Deputado Rosane Ferreira (PV) Osmar Bertoldi (DEM) Mauro Moraes (PMDB) PLs Conteúdo PL 257/2010 PL 726/2007 - Institui, no estado do Paraná, o programa “tarifa reduzida” no transporte coletivo metropolitano das regiões metropolitanas no estado do Paraná. - Dispõe sobre o monitoramento em tempo real da qualidade do ar da região metropolitana de Curitiba. PL 368/2010 PL367/2010 PL366/2010 - Autoriza o poder executivo criar a linha do turismo nos municípios da região metropolitana de Curitiba. - Autoriza a criação e instalação de centros integrados de atendimento ao cidadão – CIAC – nos municípios da RMC. - Institui os conselhos metropolitanos de segurança pública das regiões metropolitanas do estado do Paraná, e dá outras providências. PL 483/2008 - Cria uma central de tratamento de resíduos de Curitiba e região metropolitana de Curitiba – Comec. PL 632/2007 - Autoriza o poder executivo a instituir a universidade estadual da comunidade dos municípios da RMC, com sede no município de Faz, Rio Grande. - Autoriza o poder executivo a instituir a subdivisão policial do município de Fazenda Rio Grande, com atuação no âmbito da comarca e cidades vizinhas na região metropolitana de Curitiba. - Altera a redação da lei complementar nº 81, de 17 de junho de 1988, alterada pelas leis complementares nºs 86/00 e 91/02, incluindo o município de Alvorada do Sul, entre os da região metropolitana de Londrina. PL 561/2007 Geraldo Cartário (PMDB) PL Complementar 8/2008 PL Complementar 212/2008 Regionaliza a região metropolitana de Curitiba e seus conselhos deliberativo e consultivo e define o modelo de gestão das funções públicas de interesse comum metropolitanas. PL Complementar 175/2010 - Altera o art. 1º da lei complementar nº 81, de 17/6/88, que foi alterada pelas leis complementares nºs 86/00 e 91/02, que institui a região metropolitana de Londrina (constituída pelos municípios de Londrina, Cambé, Bela Vista do Paraíso, Jataizinho, Ibiporã, Rolândia, Sertanópolis, Tamarana, Primeiro de Maio e Alvorada do Sul). - Altera o art.1º da lei complementar nº 81/88, que instituiu a região metropolitana de Londrina (inclusão do município de Primeiro de Maio). - Institui a região metropolitana de Umuarama e dá outras providências (Umuarama, Alto Paraíso, Cruzeiro do Oeste, Ivate, Perobal, Maria Helena, Xambrê, Altônia, Alto Piquiri, Brasilândia do Sul, Esperança Nova, Cafezal do Sul, Cidade Gaúcha, Douradina, Francisco Alves, Icaraíma, Iporã, Mariluz, Nova Olímpia, Pérola, São Jorge do Patrocínio, Tapejara e Tapira). Edson Strapasson (PMDB) Alexandre Curi (PMDB) PL Complementar 231/2009 PL Complementar 26/2009 PL Complementar 344/2007 Cida Borghetti (PP) PL Complementar 310/2007 Wilson Quinteiro (PSB) Luiz Nishimori (PSDB) - Altera a redação do art. 1º da lei complementar nº 83/1998, região metropolitana de Maringá (inclui os municípios de Bom Sucesso, Jandaia do Sul, Cambira, Presidente Castelo Branco, Flórida, Santa Fé, Lobato, Munhoz de Mello, Floraí, Atalaia, São Jorge do Ivaí e Ourizona. - Altera a redação do art. 1º da lei complementar nº 83/1998 (região metropolitana de Maringá). PL Complementar 105/2010 - Dispõe sobre o monitoramento da qualidade do ar da região metropolitana de Maringá em tempo real. PL Complementar 129/2008 - Propõe ampliação dos municípios que compõem a região metropolitana de Maringá. PL Complementar 328/2009 - Estabelece a criação do passe livre para o cidadão desempregado (empresas de transporte coletivo terão 30 passagens gratuitas para trabalhadores desempregados residentes nas regiões metropolitanas). Antonio Belinati (PP) Fonte: ALEP (2011), adaptado por Damascena. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 109 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella A deputada Cida Borghetti (PP) apresentou dois projetos de lei complementar referentes à região metropolitana de Maringá, (310/2007 e 344/2007), que incluem municípios na RMM. Luiz Nishimori (PSDB) apresentou um projeto de lei complementar 129/2008, também ampliando os municípios que compõem a região metropolitana de Maringá. Wilson Quinteiro (PSB), que assumiu o cargo em dezembro de 2009, apresentou o projeto de lei 105/2010, que dispõe sobre o monitoramento da qualidade do ar da região metropolitana de Maringá em tempo real. Considerações finais Neste trabalho abordamos dois assuntos que, a priori, parecem distintos, mas na prática estão intimamente ligados: regiões metropolitanas e representação política. Em um levantamento da literatura foi possível compreender as razões do descaso com o tema metropolitano, e da consequente ausência da governança metropolitana na agenda dos gestores. O argumento central que orientou este trabalho é que os problemas estruturais – mobilidade populacional, moradia, saneamento, sistema viário, Pela Região Metropolitana de Londrina, violência, entre outros – adquirem a dimensão no período de 2007-2011, apenas o deputado metropolitana, mas a forma de atuação dos Antônio Belinati (PP) apresentou proposta re- parlamentares é local e paroquial, de atendi- lacionada à questão metropolitana, o projeto mento às bases municipais. de lei 328 /2009, que estabelece a criação de Às demais cidades que compõem as re- 30 passes livres mensais pelas empresas de giões metropolitanas de Curitiba, Maringá e transporte coletivo, para o cidadão desempre- Londrina, resta um papel secundário; muitas gado residente nas regiões metropolitanas vezes como fornecedoras de mão de obra, car- A maioria dos PLs é de autorização do regam o ônus do déficit de programas e políti- poder executivo e não aponta destinação de cas públicas. A sub-representação política des- recursos públicos para a ação, o que leva o exe- tes municípios certamente faz parte da causa cutivo a vetar a propositura. dos muitos problemas sociais enfrentados por Observe-se que Geraldo Cartário e Curi, dois deputados não listados como de caráter estas populações, principalmente no que se refere à ausência do Estado. metropolitano, apresentaram projetos sobre Neste sentido, os números indicam a o tema. Esse último tenta instituir uma nova falta de um projeto mais amplo de cooperação região metropolitana, a de Umuarama. Incluir e integração. As elites políticas das regiões municípios nas RMs ou criar novas aparecem metropolitanas de Maringá e Londrina opta- aos parlamentares como um mecanismo de an- ram por priorizar suas práticas personalistas, gariar apoios de prefeitos e do eleitorado, uma seguindo um cálculo puramente eleitoral, o vez que o imaginário político aponta para um que acaba pulverizando seu potencial de re- ganho de status quando o município pertence presentação ao eleger um número bastante a alguma RM, ainda que a prática demonstre baixo de deputados. que não nenhum ganho mais substancial por esta forma de configuração de território. 110 Neste estudo, os dados referentes à Região Metropolitana de Maringá (RMM) Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 O peso do voto metropolitano contradizem nossa hipótese inicial de sub- Em relação ao novo cenário da eleição de -representação, demonstrando, ao contrário, 2010, a RMM, que contava com cinco deputa- que na 16ª legislatura (2007-2010), se verifica dos eleitos em 2006, não conseguiu repetir o uma sob-representação da RMM na assem- mesmo desempenho, elegendo apenas três de- bleia legislativa do Paraná. Com seus 402.582 putados: Dr. Batista (PMN), Evandro Jr. (PSDB) eleitores em 2006, a região metropolitana de e Ênio Verri (PT), caracterizando uma sensível Maringá elegeu quatro deputados, tendo um perda de sua representação. quinto assumido a vaga de suplente. Assim, No caso da RML, que apesar de seu elei- grosso modo, e apenas com fins demonstra- torado ser superior ao da RMM, já em 2006 tivos, a RMM teria um deputado para cada não tinha conseguido traduzir isto em uma 80.516 habitantes. maior representatividade política na esfera Por outro lado, a Região Metropolitana estadual, elegendo apenas dois representan- de Londrina confirma nossa hipótese de sub- tes. Seguindo a tendência de Maringá, a RML -representação, pois, mesmo tendo um eleito- viu sua representação encolher ainda mais em rado de 513.515 votantes (21,6% maior que o 2010, reelegendo apenas dois deputados, Luiz de Maringá), conseguiu eleger apenas três de- Cheida (PMDB) e Durval Amaral (DEM). Belinati putados estaduais, um para cada 171.171 ha- (PP) desistiu de se candidatar com receio da lei bitantes, ou seja, mais que o dobro de eleitores de ficha limpa. por deputado do que a RMM. A RMC tem um histórico mais consolida- Os dados apontam para o fato de que a do de tentativas de integração metropolitana característica presente nas RMs estudadas é a e a Coordenação da Região Metropolitana de sub-representação das cidades menores em re- Curitiba – Comec ser a única das coordenações lação ao poder econômico e social das cidades- metropolitanas com dotação orçamentária polo, que se traduz também em poder político condizente com a relevância de sua área de das suas elites, organizadas em pequenos gru- abrangência. Interessante observar que o único pos na disputa pela representação. deputado que se identificava com a temática Com relação a nossa segunda hipótese, metropolitana, Luis Strapasson, não foi reeleito. de que haveria um paroquialismo metropo- Em 2010, apesar de o índice de renovação da litano “de fato”, o resultado do estudo dos ALEP ser de apenas um terço de parlamentares, projetos apresentados, no qual a recorrência dos deputados metropolitanos foram reeleitos e a ocorrência dos projetos de concessão de somente cinco: Osmar Bertoldi (DEM), Ney Le- título de utilidade pública para as bases elei- provost (PP), Mauro Moraes (PSDB), Fabio Ca- torais sugerem práticas localistas paroquia- margo (PTB) e Tadeu Veneri (PT). listas, uma vez que estas entidades passam a As questões apresentadas objetivam a usufruir de benefícios e têm acesso mais fácil reflexão sobre a pouca integração, coopera- a recursos públicos. Confirmam-se as teses de ção e falta de políticas públicas conjuntas en- Carvalho, de predominância do particularismo tre as regiões metropolitanas. Parece-nos que legislativo e do predomínio do voto personali- a ausência do tema metropolitano da agenda zado na arena eleitoral. dos gestores se dá pela falta de um arcabouço Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 111 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella legislativo que lhes forneça suporte, demons- centros urbanos, que enfrentam problemas ca- trando quão importante é a representação des- da vez mais complexos, requerendo soluções sas regiões na arena legislativa. Assim, gestão conjuntas e integradas, e não apenas servindo metropolitana e representação têm implicação a interesses de acúmulo de capital político com direta na vida cotidiana do cidadão destes vistas à reeleição. Jéferson Soares Damascena Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá e Pesquisador do Observatório das Metrópoles, núcleo Maringá. Maringá, Paraná, Brasil. [email protected] Celene Tonella Cientista político. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá. Maringá, Paraná, Brasil. [email protected] Notas (1) Ressaltamos, porém, que, devido à falta de colaboração dos responsáveis pela estrutura da Assembleia Legisla va do Paraná-ALEP, não vemos acesso aos dados referentes às emendas ao orçamento por parte dos deputados. Sem dúvida, esses dados seriam de extrema relevância na iden ficação de eventuais prá cas distribu vas e clientelistas. (2) Abordagem desenvolvida em Damascena, J. (2011). (3) A RMM conta hoje, oficialmente, com 25 municípios. A adoção de 13 municípios corresponde à configuração existente em 2006. (4) A declaração de en dade de u lidade pública pode ser pleiteada nos três níveis de governo. Por meio desse reconhecimento, as en dades podem obter verbas, isenções, receber doações e demais bene cios do governo. No caso do estado do Paraná, a legislação é bastante an ga, Lei 6.944, de 10/1/78, parcialmente alterada pela Lei 8589, de 22/10/1987. A Lei 6.944 não define o po de bene cio que o poder público estadual pode conceder às en dades. Define quais os requisitos a serem obedecidos para obter a declaração. O ar go 1º, que define os requisitos, em inciso IV, que comprovadamente, mediante relatório apresentado, promove a educação, a assistência social ou exerce a vidades de pesquisas cien ficas, de cultura, inclusive ar s cas ou filantrópicas, de caráter geral ou indiscriminatório. (5) O deputado Alexandre Curi foi o campeão de votos no Estado, sendo reeleito com 131.988 votos. Na RMC fez 26.377 votos, mas representou apenas 20% do total. Não se caracteriza, portanto, como deputado metropolitano. 112 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 O peso do voto metropolitano Referências ALEP - Assembleia Legisla va do Paraná: pesquisa legisla va (2011). Disponível em: h p://www.alep. pr.gov.br/a vidade-parlamentar/pesquisa-legisla va. Acesso em: 12/1/2011. AMES, B. (2003). Os entraves da democracia no Brasil. Rio de Janeiro, Editora FGV. ANASTASIA, F. e NUNES, F. (2006). “A reforma da representação”. In: AVRITZER, L. e ANASTASIA, F. Reforma Polí ca no Brasil. Belo Horizonte, Editora UFMG. CARVALHO, N. R. (2003). E no início eram as bases: geografia polí ca do voto e comportamento legisla vo no Brasil. Rio de Janeiro, Revan. ______ (2009). Geografia polí ca das eleições congressuais: a dinâmica de representação das áreas urbanas e metropolitanas no Brasil. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/ dez. Acesso em: 13/8/2010. ______ (2010). TR- Localismos, geografia social do voto e governança metropolitana. Observatório das Metrópoles, mimeo. CERVI, E. (2009). Produção legisla va e conexão eleitoral na Assembléia Legisla va do Estado do Paraná. Revista Sociologia e Polí ca. Curi ba, v. 17, n. 32, pp. 159-177. DAMASCENA, J. (2011). O peso do voto metropolitano: a representa vidade das regiões metropolitanas de Maringá e Londrina na Assembleia Legisla va do Paraná – ALEP. Dissertação de Mestrado. Maringá, Universidade Estadual de Maringá. FIGUEIREDO, A. C. e LIMONGI, F. (2002). Incen vos eleitorais, par dos e polí ca orçamentária. DADOS – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 45, n. 2, pp. 303-344. IBGE – Ins tuto Brasileiro de Geografia e Esta s ca (2010). Censo 2010. Disponível em: www.ibge.gov. br/cidades. Acesso em: 18/10/2010. LEMOS, L. B. de S. (2001). O congresso brasileiro e a distribuição de bene cios sociais no período 1988-1994: uma análise distribu vista. DADOS-Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 44, n. 3, pp. 561-605. LIMONGI, F. (2006). Presidencialismo, coalizão par dária e processo decisório. Novos Estudos Cebrap, n. 76, pp. 17-41. LOUREIRO, M. R. (2009). Interpretações contemporâneas da representação. Revista Brasileira de Ciência Polí ca. Brasília, n. 1, pp. 63-93. MAGDALENO, F. S. (2010). A territorialidade da representação polí ca – vínculos de compromissos dos deputados fluminenses. São Paulo, Annablume. MAINWARING, S. (2001). Sistemas par dários em novas democracias: o caso do Brasil. Rio de Janeiro, Editora da FGV. MANIN, B. (1995). As metamorfoses do governo representa vo. Disponível em: h p://www.anpocs. org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_29/rbcs29_01.htm. Acesso em: 13/8/2010. MOURA, R. e RODRIGUES, A. L. (org.) (2009). Como andam as metrópoles – Curi ba e Maringá. Rio de Janeiro, Letra Capital/Observatório das Metrópoles. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 113 Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella NICOLAU, J. (2007). “O Sistema Eleitoral Brasileiro”. In: AVELAR, L. e CINTRA, A. O. (org.). Sistema Polí co Brasileiro: uma introdução. São Paulo, UNESP. OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES (2009). Relatório arranjos para a gestão metropolitana. Disponível em: www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/relatorio_arranjos_gestao_metropolitana.pdf. Acesso em: 8/6/2010. RIBEIRO, L. C. Q. e PASTERNAK, S. (2009). Projeto de Pesquisa - Observatório das Metrópoles: território, coesão social e governança democrá ca Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Curi ba, Porto Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém, Natal, Goiânia e Maringá (2009-2013). Mimeo. RODRIGUES, A. L. e TONELLA, C. (orgs.)(2010). Retratos da Região Metropolitana de Maringá: subsídios para a elaboração de polí cas públicas par cipa vas. Maringá, Eduem. SILVA, W. R. (2006). Para além das cidades – centralidade e estruturação urbana: Londrina e Maringá. Tese de doutorado. Presidente Prudente, Universidade Estadual Paulista. TONELLA, C. (1991). Poder local, par dos e eleições na reedição do pluripar darismo em Maringá, Paraná – 1979/1988: um estudo de caso. Dissertação de mestrado. Campinas, IFCH. TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (2010). Disponível em: www.tse.gov.br. Acesso em: 8/10/2010. URBINATI, N. (2006). O que torna a representação democrá ca? São Paulo, Lua Nova, n. 67. VEIGA, L.F.; TOMIO. F. e DE PAULA, C. A. (2008). Conexão Eleitoral em uma Assembleia Legisla va: a atuação do parlamentar e a tude do eleitor. Disponível em: www.cienciapoli ca.servicos.ws/ abcp2008/arquivos. Acesso em: 18/11/2010. Texto recebido em 25/ago/2011 Texto aprovado em 12/out/2011 114 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 Habitus, planejamento e governança urbana Habitus, planning and public governance Nilton Ricoy Torres Resumo Este artigo é organizado em duas seções. A primeira avalia as teses avançadas por Bourdieu, formuladas a partir de sua teoria estrutural construtivista. São analisados os conceitos de habitus, de "campo" e o da "dinâmica das lutas pelo poder e dominação". O objetivo é avaliar em qual medida as proposições de Bourdieu ajudam a entender a prática de planejamento urbano no Brasil. Na segunda parte são discutidas seis hipóteses elaboradas em torno dos conceitos de habitus e campo social, de Pierre Bourdieu, que explicam a relação dialética entre o agente e a estrutura. A discussão é realizada tomando como referência a história da prática de planejamento brasileira e, em particular, a de São Paulo. Os conceitos de habitus e de campo são abordados em detalhes e articulados aos conceitos de relações de poder, dominação e ao de lutas de classes, que são de especial importância para a compreensão dos processos de mudança da estrutura social. O trabalho procura esboçar um esquema que possa servir de referência para pensar a prática de planejamento como um campo de posições e de lutas entre forças que buscam a conservação e forças que buscam a transformação social. Abstract This paper is organized in two sections. The first deals with the propositions advanced by Bourdieu by focusing on his theory of structural constructivism. It draws on Bourdieu's theory of habitus,” field" and "the dynamic of struggles and within the field" in order to assess the extent to which Bourdieu constructs can help to understand the dynamic of planning practice in Brazil. The second section evaluates six working hypothesis dealing with Bourdieu concepts of social field and habitus which explain the dialectical relation between structure and agency in the planning process. The empirical analysis and the theoretical confrontations are simultaneously developed by taking the experience of Brazilian planning practice and particularly that of São Paulo city. The concepts of field and habitus in planning are analyzed in detail, in articulation with the concepts of power, domination and class struggle, which according to Bourdieu, are central for understanding the process of change of the social structure. The paper attempts to sketch a reference framework for analyzing the practice of planning as a field of struggles between forces seeking to keep and forces seeking to change the social structure. Palavras-chave: habitus; campo social; planejamento; governança urbana; poder. Keywords: habitus; social field; planning; urban governance; power. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 Nilton Ricoy Torres Introdução mas esboçar um esquema de interpretação a partir de alguns fatos e circunstâncias históricas, de maneira a contribuir para o entendimento de Este trabalho discute as práticas de planejamento como governança dentro da administração pública, tomando por base os conceitos de habitus e de "campo social", desenvolvidos por Pierre Bourdieu. O objetivo é identificar a natureza e o modus operandi dessa prática, tendo em vista esclarecer o papel social dos agentes de governança urbana nos processos de transformação das estruturas sociais. Os conceitos de habitus e de campo social são analisados a partir das lutas travadas dentro do campo do planejamento e da governança, lutas essas voltadas para acumulação de poder e dominação. Para desenvolver este estudo são destacados e avaliados, na primeira parte do texto, os principais conceitos da teoria estrutural construtivis- alguns aspectos da prática de planejamento como governança urbana no Brasil. O teste dessas hipóteses é realizado a partir do cotejo com a realidade vivida pela prática de planejamento e governança urbana, tanto nos campos profissional como acadêmico. Essas experiências se vinculam às práticas dos agentes nas universidades, nas instituições públicas do estado ou nos movimentos sociais autônomos. A seguir, uma síntese operacional do método de Bourdieu é apresentada, com o propósito de contribuir para o desenvolvimento de pesquisas em campos como geografia, ciência da gestão, planejamento, políticas públicas que têm como fundamento as questões sociais no espaço urbano. ta de Bourdieu. Na segunda parte são discutidas seis hipóteses acerca do planejamento e da governança urbana como um campo social. Essas hipóteses são extraídas das proposições teóricas de Bourdieu e confrontadas com a rea- Bourdieu e a metateoria da prática lidade da governança urbana que, no texto, tem como base empírica de análise a experiên- O estruturalismo crítico de Bourdieu busca o cia de planejamento e governança urbana na desvelamento da articulação entre os proces- cidade de São Paulo. sos de mudança social e as estruturas objetivas Articulando as ideias de revolução cien- subjacentes a esses processos pela análise dos tífica e de superação de paradigmas de Kuhn mecanismos de dominação, de produção de (1970) às de lutas, dentro do campo para su- ideias e da gênese das condutas. O principal peração de habitus e posições de Bourdieu, o objetivo é superar a oposição entre objetivismo estudo avalia em qual medida as práticas espe- e subjetivismo das ciências sociais. O conceito cíficas dos gestores de planejamento, dentro do de habitus é desenvolvido como uma noção campo da governança urbana, podem contribuir mediadora entre os determinismos estruturais para transformar ou perpetuar as relações so- e comportamentais, com o objetivo de romper ciais vigentes. Não se pretende, aqui, elaborar a dualidade de senso comum entre o agente e uma resenha interpretativa da história do pla- a estrutura social. Ao captar “a interiorização nejamento na administração pública no Brasil, da exterioridade e a exteriorização da 116 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 Habitus, planejamento e governança urbana interioridade”, o habitus busca articular o mo- da consciência que faz recair sobre o sujei- do como a sociedade se torna depositada nos to a construção da realidade. O habitus é um agentes sociais sob a forma de disposições esquema historicamente constituído de com- duráveis e propensões estruturadas para pen- partilhamento generativo de percepções, de sar, sentir e agir. Essas capacidades irão, então, apreciações e de categorizações, que serve pa- guiá-los em suas respostas criativas aos cons- ra mediar entre a estrutura e a agência, isto é, trangimentos e solicitações da estrutura social para conectar a estrutura social e o agente em em que estão inseridos. um relacionamento dialético (Bourdieu, 1984; O método de análise é empírico e sistêmi- Hillier e Rooksby, 2001, p. 2). Para Bourdieu, o co e o pressuposto fundamental é que a dinâ- habitus é uma matriz de disposições, adquirida mica social se dá no interior de um grupo social com as experiências sociais inculcadas e que (campo), no qual os indivíduos (agentes), como pode ser entendida como sabedoria prática. portadores de atributos específicos (habitus) , Essa matriz define os modos de perceber, sen- estabelecem confrontos pela hegemonia do tir e pensar que levam o agente a atuar de de- campo. O campo é composto por valores ou terminada maneira diante de certas situações. tipos específicos de capital produzidos pelo As disposições não são mecânicas nem deter- campo. A dinâmica social é marcada por lutas ministas, pois resultam de um processo com- entre os agentes que buscam a manutenção plexo de mútua incorporação e interdepen- ou alteração das formas de distribuição do ca- dência entre a estrutura e o agente. O agente pital e das relações de força dentro do campo. as adquire pela interiorização das estruturas As lutas e os conflitos travados no campo são sociais. Essas estruturas, como portadoras da comandados por estratégias que encontram, no história individual e coletiva, são internaliza- habitus, o elemento determinante da ação. O das a ponto de o agente ignorar que existem. campo é constituído de posições ocupadas pe- São rotinas corporais e mentais inconscientes los agentes e são essas posições que determi- que permitem o agir sem pensar, pois são pro- narão a forma de conduta dos indivíduos e gru- duto de uma aprendizagem da qual o agente pos dentro do campo. Aos conceitos de habitus não tem mais consciência e expressa-se por e de campo, Bourdieu agrega uma constelação uma atitude "natural" de conduta em um de- de conceitos secundários que evoluem articula- terminado meio. dos entre si para fundamentar o entendimento relacional do fenômeno social. O habitus é um sistema de disposições duráveis e transferíveis que opera como suporte das práticas e representações sociais vinculadas a uma forma específica de exis- Habitus tência. O habitus é condicionante e condicionador de nossas ações e aparece sob a forma O conceito é desenvolvido para escapar do de símbolos, crenças, gostos e preferências racionalismo objetivista do estruturalismo, o que caracterizam a posição social do indiví- qual reduz o indivíduo às determinações da duo. É incorporado pela interação social, mas, estrutura, mas também para evitar a filosofia ao ser incorporado, funciona para classificar e Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 117 Nilton Ricoy Torres organizar essa interação. Uma vez incorporado, inovar seu habitus para se adaptar às novas o habitus se torna parte da natureza dos agen- situações e demandas sociais. A reflexividade tes. A incorporação do habitus ocorre de duas crítica no processo de adaptação do habitus formas. A primeira, pela educação familiar e acelera a transformação. Dessa forma, o regras de classe, e acontece de maneira implí- habitus é um atributo dinâmico: quando o ator cita e inconsciente; a segunda é um processo entra em um campo ou jogo que não é familiar, explícito, metodicamente organizado e provém há uma transformação no habitus e o agente da educação escolar, da indústria cultural e dos desenvolve novas facetas de si próprio. Com a meios de comunicação de massa. mudança do habitus, o ator altera sua manei- Como disposições flexíveis e plásticas, os ra de ver, perceber, julgar e valorizar o mundo, habitus se manifestam no cotidiano das rela- determinando, então, seu modo de agir cor- ções sociais de diversas formas. Eles emergem poral e mental. Desse modo, os habitus, como sob a forma de conhecimento tácito e uma estruturas sociais incorporadas, podem ser vis- visão de mundo. Expressam-se por meio de tos como formas “de conhecimento prático... reações às experiências, percepções do jogo, de mundos sociais resultantes… da divisão hipóteses, por intuições, sensibilidades, modos em classes (grupos de idade, gêneros, classes de fazer, sentimentos, predisposições, expecta- sociais) e que funcionam abaixo do nível de tivas, senso de possibilidades e de lugar, ante- consciência e do discurso” (Bourdieu, 1984). O cipações práticas de uma situação, percepção habitus é, portanto, o mecanismo transmissor do timing e do tempo, gostos e desejos, do e “inculcador" das normas, dos valores e das conhecimento das posições, do sentido lógico, crenças do grupo social que agem durante o das aspirações, inspirações, táticas e estraté- processo de socialização do indivíduo e vão gias. O habitus é o elemento vital na organi- se tornar os princípios de ação, de atitudes e zação da vida social, pois atua como uma lei opiniões do indivíduo em sua práxis cotidiana. imanente para orientar as ações do cotidiano e O habitus, assim interiorizado, é convertido em para construir o conhecimento prático que ca- uma disposição que produz práticas que vão pacita o agente a operar no mundo. Assim, o dar sentido à realidade e às percepções que ge- habitus condiciona os agentes sociais de modo ram significado (ibid.). a determinar seu modus operandi, suas moti- O habitus não é um espaço natural, vações, suas preferências, aspirações e expec- mas, ao contrário, é um espaço social cons- tativas. O habitus não possui soluções prontas truído, incorporado pelas estruturas mentais. para cada situação ou contexto. Ele é uma res- É um mecanismo que permite a produção e posta improvisada à circunstância do momen- a reprodução das práticas sociais, pois é uma to. O habitus é, basicamente, adaptativo. Ele percepção estruturada sobre o modo de agir e se modifica e adapta-se a cada nova situação comportar-se dentro das normas estabelecidas e a cada mudança na estrutura social: novos do campo social. O habitus é constituído por comportamentos, novas tecnologias, novas meio de ações miméticas e participativas em realidades, novas condições, novas restrições. consonância com as lógicas de interação social O ator deve e é constantemente compelido a dentro do campo. É pela prática da repetição 118 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 Habitus, planejamento e governança urbana que o agente aprende uma maneira de ser e de legitimar a ação do agente em suas relações fazer, percebida como correta. Nesse processo, com a sociedade, o habitus contribui para res- o agente incorpora uma visão de mundo, um significar essa ação no sentido da manutenção modo de ser, de fazer, o qual, no contexto da ou da mudança no modo de agir desse agente práxis, diferencia-o e torna-o distante de outros no campo social. Sendo assim, Bourdieu defi- que adotam diferentes formas de ser e de fazer. ne o habitus como o produto da internalização, Pela via do habitus, o agente ocupa seu pelo indivíduo, das condições históricas e so- espaço no campo social e permite que os de- ciais realizadas ao longo de sua trajetória pes- mais também ocupem seus espaços, em uma soal e social. Além de produto (consequência) relação de complementaridade e reciprocidade. da história que produz as práticas individuais e Por isso, o habitus determina e regula tanto o coletivas, o habitus também produz (causa) his- indivíduo como o grupo (portanto, as práticas tória em conformidade com os esquemas por coletivas). Como os habitus sofrem influências ela engendrados. Em outras palavras, o habitus de diferentes ambientes, decorre que “… as é estruturado (resultado) pela incorporação das diferentes condições de existência produzem estruturas sociais e pela posição de origem do habitus diferentes”(ibid.). Assim, as inclinações sujeito e é também “estruturador (causa) das se transformam em gostos, ações e formas ações e representações dos sujeitos”. de ser particulares que, por sua vez, reforçam Como o habitus atua como uma espécie o habitus e mantêm a ordem social existente. de regulador da ação social, tanto na dimensão O agente social é múltiplo e variável e pode subjetiva como objetiva, ele pode ser usado desenvolver “múltiplos habitus”, pois ele não para analisar as atitudes subjetivas capazes de está inextricavelmente imerso em um único estruturar as representações e a geração de no- habitus, mas pode se mover de um habitus pa- vas práticas. Cada sujeito vivencia experiências, ra outro e desenvolver comportamentos adap- em função de sua posição na estrutura social tativos dentro de um mesmo habitus. e essas experiências se efetivam em sua subje- O habitus está sempre em busca da su- tividade, constituindo uma espécie de “matriz peração das antinomias que se manifestam na de percepções e apreciações”. Essa matriz ser- tensão entre os eventos do passado e o pro- virá de guia para orientar as ações do agente blema do futuro. Nesse sentido, Bourdieu argu- nas situações posteriores. Por terem o habitus menta que o habitus pode mudar à medida que como fundamento, as práticas e as represen- as condições sociais e históricas são alteradas tações podem ser orientadas para seu objetivo (Bourdieu, 2009). Por esse processo, o habitus sem terem de envolver, por um lado, um dire- incorpora outros esquemas de percepção e cionamento manifesto e consciente em relação ação, que contribuirão para a conservação ou a aos fins e, por outro, o controle expresso das transformação das estruturas do campo social. operações necessárias para atingi-los. Essas Dessa maneira, o conceito de habitus serve pa- disposições são objetivamente reguladas e re- ra analisar tanto situações de crise e mudança gulares, mas não são produtos da obediência quanto de coesão e perpetuação do jogo e das às regras; são coletivamente orquestradas sem relações de poder dentro do campo social. Ao resultar da ação diretriz. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 119 Nilton Ricoy Torres O campo definido como um domínio de contestação e pode ser visto como uma rede ou configuração de relações objetivas entre posições. Essas se Para Bourdieu, campo é o espaço que delimita caracterizam pelos constrangimentos que im- a estrutura na qual o habitus opera. É um espa- põem sobre seus ocupantes (agentes ou insti- ço social estruturado dentro do qual os atores tuições), tendo em vista: 1) a situação presente lutam para atingir seus objetivos. É o locus da ou potencial (situs) do agente na estrutura da práxis em que se faz a mediação entre o ator e distribuição de poder (ou capital), cuja posse a estrutura. O campo possui estrutura própria e comanda o acesso aos lucros específicos que autonomia em relação a outros espaços sociais estão em jogo no campo; e, 2) a relação objeti- e conta com uma lógica específica de funcio- va com outras posições (Wacquant, 2002). namento e estratificação, a qual funciona co- Nas sociedades capitalistas desenvol- mo princípio para regular as relações entre os vidas, os atores se diferenciam pela posse de agentes sociais dentro desse espaço. capital econômico e de capital cultural. Os O campo é uma estrutura social modela- sujeitos ocuparão posições mais próximas em da pela dinâmica das práticas e interações so- função da quantidade e espécie de capitais ciais, no qual prevalecem regras específicas que que detêm e estarão mais distantes no campo determinam o que é prático, objetivo e racio- social, quanto mais desigual for o volume e o nal; o que é adequado, aceitável ou reprovável; tipo de capital que possuírem. Assim, pode-se o que deve ser estimulado ou coibido; e vão dizer que a riqueza econômica (capital econô- consolidar o habitus particular de um contexto. mico) e a cultura acumulada (capital cultural) Um campo pode ser entendido como uma are- geram internalizações de disposições (habitus) na de disputas na qual os agentes jogam, de- capazes de diferenciar as posições ocupadas senvolvem estratégias e lutam pelos recursos pelos homens. Bourdieu explica que os agen- cobiçados: bens simbólicos e posições sociais. tes constroem a realidade social por meio de No interior do campo, os indivíduos lutam pelo lutas e de relações, visando impor sua visão de controle da produção e pela legitimação dos mundo, mas eles o fazem sempre a partir de bens produzidos dentro do campo. Esses bens pontos de vista, interesses e referenciais deter- são constituídos por diversos tipos de capital: minados pela posição que ocupam no mundo cultural, econômico e social. Esses capitais (campo) que pretendem transformar ou conser- possuem graus diferenciados de importância var (Bourdieu, 1989). em cada campo e a posse dos mesmos deter- Bourdieu busca superar a dicotomia en- mina a posição social do indivíduo dentro do tre o subjetivismo e o objetivismo, fazendo in- campo. Os indivíduos que possuírem quanti- teragir os sistemas: 1) de posições objetivas; e dades significativas de capitais considerados 2) de disposições subjetivas dos indivíduos. O importantes no campo ocuparão posições do- habitus que existe dentro de um campo atua minantes dentro do mesmo. O campo constitui, como um mediador entre: 1) o sistema invisí- desse modo, um sistema de hierarquias entre vel das limitações estruturais (que molda as dominantes e dominados. Por isso, o campo é ações do indivíduo e das instituições), e 2) as 120 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 Habitus, planejamento e governança urbana ações visíveis desses atores (que estruturam de forças" no qual se exerce a dominação; as relações). Decorre então que o campo não 2) uma estrutura que constrange a ação dos é uma estrutura estática, mas o resultado da agentes nele envolvidos; (3) um "campo de história das diversas posições (que o consti- lutas" entre os agentes que atuam de acordo tuem) e das disposições que elas privilegiam com suas posições no campo de forças, bus- (cf. Bourdieu, 2001, p. 129). A existência e os cando conservar ou transformar a estrutura limites de um campo são estabelecidos pelos (Bourdieu, 2010, p. 50). Todo campo é defi- interesses nele contidos, pelos investimentos nido por uma estrutura de espaços relacionais econômicos e psicológicos dos agentes e pelas internos (na qual os agentes e instituições instituições nele inseridas. Para Bourdieu, os coexistem em diferentes posições na estrutu- campos se estabelecem por processos de di- ra) e pelo espaço externo (que não é campo) ferenciação social e pelas formas de ser e de (ibid.). Internamente, o campo é constituído conhecer o mundo de seus membros, que vão, por uma estrutura objetiva de posições e por então, determinar seu objeto específico e seu uma estrutura subjetiva de disposições, que princípio de compreensão. Os campos assim se intera gem mutuamente em constante ar- determinados tornam-se espaços estruturados ticulação. Nesse processo, o campo estrutura de posições as quais, em um dado momento, o habitus e esse constitui o campo (Bourdieu, constituem um microcosmo social de valores 1992). O campo é, portanto, a exteriorização (capitais e cabedais), de objetos e interesses ou objetivação do habitus e esse é a internali- específicos (Bourdieu, 1987). zação ou incorporação da estrutura social. As- Bourdieu constrói o conceito de campo sim, a posição do agente no campo é, ao mes- a partir de uma visão construtivista do estru- mo tempo, causa e consequência do habitus, turalismo, de forma a permitir que os campos pois limita e gera o habitus da classe em que sejam analisados como estruturas objetivas, se posiciona o agente. separadamente das características de seus A posição de um agente no campo de- ocupantes. A análise se concentra nas estrutu- termina o modo como ele acessa e consome ras dos diferentes campos, enfocando-as como os objetos sociais e culturais e o modo como produto da incorporação (gênese) das estrutu- ele produz e acumula valores (Bourdieu, 1984). ras preexistentes (ibid.). Os campos são conce- O campo é o lugar onde se travam as disputas bidos como “universos” (universo das artes, da objetivas entre os agentes (indivíduos, grupos política, da música, da ciência) e constituem-se ou instituições) que competem pelo contro- como espaços autônomos no interior do mun- le de um cabedal específico (ibid.). Dentro do do social. A sociedade é, portanto, vista como campo os agentes são vistos como portadores constituída por diversos campos (universos ou de habitus homogêneos, porque valorizam e espaços) de relações concretas, possuidores jogam os jogos do campo na disputa por posi- de uma lógica de funcionamento própria que ções e capital. é incomensurável, não reproduzível e irredutí- O campo possui propriedades universais vel à lógica que rege os demais campos. Por (presentes em todos os campos) e caracterís- isso o campo é definido como: 1) um "campo ticas particulares (específicas de um campo). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 121 Nilton Ricoy Torres São propriedades universais de um campo: 1) o subcampos se caracterizam por lutas de clas- habitus específico; 2) a estrutura; 3) as leis que ses entre os agentes. Alguns buscam manter, regulam a luta pela dominação; e 4) a doxa, ou outros modificar a estrutura do campo com o a opinião consensual. As propriedades específi- objetivo de alterar o princípio hierárquico (eco- cas são definidas pelos nomos (leis gerais que nômico, cultural, simbólico) de posições dentro governam o funcionamento do campo). A doxa do mesmo. As classes dominantes são aquelas é tudo aquilo em que os agentes de um campo que impõem sua tipologia de capital como cri- estão de acordo. Define uma espécie de enten- tério de hierarquização do campo. Essa luta é dimento coletivo, um senso comum. A doxa en- travada no campo político e resulta, na maioria volve aquilo que é aceito como natural ("sendo das vezes, em luta pelo poder. assim mesmo"), tal como os sistemas de clas- O campo é marcado: 1) pelas relações de sificação da realidade. A doxa é desenvolvida força que emergem das lutas internas; 2) pelas para elucidar a ideia marxista, de "ideologia" estratégias (de defesa ou subversão) utiliza- (como "falsa consciência"), pois é entendida das; 3) pelas pressões externas sofridas; 4) pela como um ponto de vista particular, o ponto de interpenetração dos conflitos com outros cam- vista da classe dominante, a qual se apresenta pos; e 5) pela articulação de ideias com outros como ponto de vista universal, pertencente a campos. A autonomia do campo depende do todos que integram o campo (Bourdieu, 2010). volume e da estrutura do capital dominante. A Os nomos são as regras gerais e estáveis que busca de autonomia impõe constante interpre- regulam a operação do campo. Todo campo tação da realidade e um processo de refração tem um nomos distinto porque cada campo tem das interrelações, influências e contaminações uma evolução histórica diferente. O campo ar- introduzidas em cada campo específico. A vi- tístico, no século 19, tinha como nomos: "a arte da dentro do campo não é determinada pelas pela arte"; a arquitetura moderna do século 20 pressões externas, mas pela tradução refrata- exibia como nomos "a busca da racionalidade da da própria ordem interna dessas pressões. entre a forma e a função". Esses nomos devem A história, o habitus e as estruturas do cam- ser aceitos e legitimados por intermédio de po trabalham como uma espécie de prisma de processos históricos de lutas desenroladas no filtragem dos eventos exteriores (Bourdieu, contexto social do campo. O nomos é como um 1984). As lutas externas (econômicas, políti- princípio de visão e divisão que nos é inculcado cas, etc.) contribuem para alterar a relação de por um trabalho de socialização. forças internas ao campo, mas essas influên- Todo campo social pode ser subdividi- cias são sempre mediadas pela estrutura do do em subcampos menores, com as mesmas campo, que se interpõe entre a posição social características do campo que os circunscreve. do agente e sua conduta. A autonomia relativa Como espaços sociais constituídos por uma es- do campo resulta de sua capacidade de esta- trutura de relações gerada pela distribuição de belecer suas próprias regras, ainda que sob a diferentes espécies de capital, os campos e os pressão ou influência de outros campos. 122 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 Habitus, planejamento e governança urbana Prática social Para Bourdieu, o habitus é o princípio gerador e estruturador das práticas e das representações (Bourdieu, 1970). Como o habitus é a mediação entre a estrutura e a prática do agente, a prática se realiza na medida em que o habi- tus entra em contato com uma situação. Por essa razão, a prática é entendida como o produto da relação dialética entre uma situação e um habitus. A relação entre o habitus e a prática provoca e possibilita ações na sociedade. O habitus trabalha com as probabilidades e as possibilidades de ação, é inconsciente e expressa-se por diversas formas: no estilo de vida, nos gostos, nas maneiras de fazer as coisas, ou seja, está na ação humana. A prática social resulta das ações e interações entre os agentes. Essas ações e interações são modeladas pelo habitus e pelo capital dos agentes. A prática é, ao mesmo tempo, necessária e relativamente autônoma em relação à situação imediata, uma vez que ela é o produto da relação dialética entre uma situação e o habitus, e é ela que torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas que permitem entender e resolver os problemas (Bourdieu, 2001). compreensibilidade do jogo de todos os atores envolvidos” (Hillier e Rooksby, 2001). A percepção de jogo vem com a experiência. Por exemplo, ela permite saber quando é válido quebrar as regras. Ela permite também dizer “… o que é possível e o que não é (ibid.)”. “A percepção de jogo é relacionada à posição do ator dentro do campo e depende do ponto de vista que o ator tem do campo” (ibid.). A illusio é o conceito que vincula diretamente o ator ao jogo que se joga dentro de um campo. São crenças compartilhadas que se inscrevem no habitus do campo, das quais não se tem uma consciência clara de suas procedências e determinações. A illusio é a incorporação acrítica de “verdades” de outrem, o encantamento transitivo que projeta como natural o microcosmo que se vive no campo. A illusio é o produto não consciente da adesão à doxa e ao habitus específico do campo, cristalizados em suas regras e valores. A illusio é, portanto, o ajustamento das esperanças às possibilidades limitadas que o campo oferece. Assim, não somos capazes de discuti-la, pensá-la e entendê-la crítica e conscientemente (Bourdieu, 2001). A illusio significa estar envolvido no jogo, é investir nos alvos que existem no jogo, alvos que só existem para as pessoas que possuem os mesmos habitus e, por isso, podem reconhecer os alvos que estão em jogo (Bourdieu, 2010). Todo ator que adentra um campo social Percepção de jogo tende a incorporar essa relação chamada de illusio. Os agentes em disputa buscam inverter as relações de força, subverter a ordem e fazer O campo é constituído por jogos de poder entre a revolução dentro do campo, porque eles reco- os agentes. Todo campo possui seu(s) jogo(s). nhecem os alvos da luta e não são indiferentes A noção de percepção de jogo se refere “… a eles. Essa relação com o campo significa que não apenas à capacidade de entender e seguir os agentes envolvidos nas disputas concordam as regras”, mas também ter “… consciência e com as regras essenciais do campo, e o que Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 123 Nilton Ricoy Torres está em jogo é tão importante a ponto de que- de reconhecimento social, tais como o prestí- rer fazer uma revolução. gio, a honra, autoridade, etc. O capital simbólico é uma síntese dos demais, na medida em que ele os incorpora e constitui-se pela con- Capital Para Bourdieu, o “interesse” significa "capital", tanto no sentido econômico como no cultural, social, político, simbólico, etc. Acumular capital é o alvo fundamental dos agentes de um campo e, para ascender ou manter posições na estrutura do campo, os agentes de- versão dos demais. A educação de um agente, por exemplo, representa seu capital cultural; já o valor simbólico de uma obra de arte pode significar pertencimento a uma classe. A honra, a reputação, o prestígio são formas de capital simbólico que obedecem a uma lógica específica de acumulação fundada no conhecimento e no reconhecimento do outro. vem participar dos jogos. É uma luta explícita que se trava no plano material e político, mas também no simbólico, no qual se confrontam os interesses de conservação (reprodução) e os Relações de força, poder e dominação interesses de mudança (subversão da ordem dominante no campo). Todo campo é uma arena de conflitos perma- O conceito de capital de Bourdieu funda- nentes entre os grupos que mobilizam estraté- menta-se em uma visão econômica. O capital gias para conservar ou subverter as estruturas é acumulado (por operações de investimento), sociais. Dentro do campo, as relações de força é transmitido (por herança) e reproduzido (pe- entre os agentes e as instituições determinam a la habilidade de seu detentor de investir). A estrutura do mesmo. Essas relações envolvem valorização e acumulação dos vários tipos de lutas pela hegemonia em busca do controle do capital ocorrem de diversas maneiras: investi- poder de ditar as regras e de repartir o capital mento, extração de mais-valia, etc. Etimologi- específico do campo. O modo como o capital é camente, o conceito de capital é idêntico ao de repartido condiciona as relações entre os agen- cabedal (ou conjunto de bens) e envolve um tes, determinando sua estrutura (Bourdieu, sofisticado sistema de conceitos acerca dos 1984). Como o capital é distribuído de forma elementos portadores de valor que extrapola desigual, relações de competição e de força es- a visão puramente econômica. Nesse siste- tabelecem-se entre os grupos dominantes que ma estão incluídos: 1) o capital cultural: co- buscam defender seus privilégios e os demais nhecimentos, habilidades, informações, etc., grupos. Para Bourdieu, a dominação é exercida vinculados às qualificações intelectuais pro- sempre mediante violência, seja ela bruta, seja duzidas e transmitidas pela família e pelas ins- simbólica, e manifesta-se pela coação física so- tituições educacionais; 2) o capital social: os bre os corpos, ou pela coação espiritual sobre acessos sociais, isto é, os relacionamentos e a as consciências. O campo é o palco de confron- rede de contatos; 3) o capital simbólico: rituais tos entre os agentes que detêm o poder e os 124 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 Habitus, planejamento e governança urbana que não o detêm. Os agentes que possuem o capital específico do campo dominam o mesmo pela via da autoridade; os demais agentes despossuídos de tal capital competem pela Habitus e prática no campo do planejamento e da governança urbana posse do mesmo, tendo em vista dominar o campo (ibid.). A dominação em um campo é, Esta seção focaliza o planejamento pela prá- em geral, subliminar, implícita, sutil, mas vio- tica da gestão urbana, tendo como referência lenta. Tal violência é simbólica e legítima den- as proposições avançadas por Pierre Bourdieu. tro de cada campo e pertence à natureza do O objetivo é testar os elementos explicativos e sistema de relações sociais. Por esse sistema, generativos da teoria de Bourdieu, tendo em as práticas e as instituições dentro de um cam- vista as práticas de governança empreendidas po sempre favorecem a acumulação de todos por meio do planejamento e avaliar em qual os tipos de capital pelos agentes dominantes. medida as respostas fornecem elementos para A violência simbólica (a opressão) é sempre esclarecer situações específicas dessa prática. exercida com o consentimento e a aquiescên- O foco da análise é a práxis dos agentes que, cia dos que são dela objeto: os oprimidos. Ela direta ou indiretamente, participam do univer- emerge nos discursos da competência científi- so do planejamento como governança urbana, ca, da autoridade burocrática-legal, da supre- e o alvo é esclarecer as razões que determinam macia do conhecimento oficial. Por isso, para as formas de ação desses agentes. O próprio Bourdieu a dominação não é produto da luta universo é objeto de reflexão. Busca-se anali- aberta de classes (dominantes versus domina- sar a estrutura do planejamento como cam- dos), mas emerge da interação de um sistema po de práticas e avaliar em qual medida essa complexo de ações infraconscientes dos agen- estrutura é dependente da esfera do estado. tes e das instituições dominantes sobre todos O texto a seguir avalia seis hipóteses sobre a os demais (Bourdieu, 1996). prática do planejamento como processo de go- Segundo Bourdieu, os agentes e as ins- vernança urbana, formuladas, explicitamente, a tituições dominantes tendem a inculcar a cul- partir do referencial analítico de Bourdieu. Os tura dominante, a fim de reproduzir o habitus testes dessas hipóteses são desenvolvidos com e, portanto, as desigualdades sociais nas ma- referência a episódios, situações e eventos das neiras de falar, de trabalhar e de julgar (ibid.). experiências vividas pelos agentes, ao longo da As instituições do campo (a família, a escola, história recente da prática do planejamento e a igreja, o meio social) não só reproduzem as governança na cidade de São Paulo. desigualdades sociais, mas também legitimam, ● Hipótese 1: Os agentes que integram de forma subliminar e inconsciente, sua repro- o campo de planejamento e gestão urbana in- dução. Desse modo, as instituições são vistas corporam habitus comuns a todos os membros, como agentes da dominação. A desigualdade independentemente de suas concepções ideo- não está somente nas diferenças de posição e lógicas ou posição. de acesso ao campo, mas é parte integral e pertence à gênese do próprio sistema. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 As evidências sugerem que os gestores da governança urbana, tanto conservadores 125 Nilton Ricoy Torres como os progressistas, percebem o planeja- ra um sistema de disposições específicas desse mento como um "instrumento estratégico", campo, que o possibilita não só participar, mas com a missão de organizar e disciplinar o ter- disputar o jogo inerente ao campo. Tomando ritório socioeconômico. A experiência de plane- o planejamento por um campo social, como jamento em São Paulo tende a confirmar essa propõe Bourdieu, não parece inconsistente hipótese. Da análise dos relatos, discursos e das concluir que os planejadores incorporam um práticas, na esfera governamental, observa-se habitus comum a todos os membros do cam- uma confluência de percepções, entendimentos po: o de o planejamento ser uma ferramenta e de ações entre os agentes do campo de pla- estratégica para propor alternativas técnicas e nejamento. A ideia recorrente e consensual é soluções lógicas, razoáveis e racionais para as que o planejamento, como instrumento de go- questões do desenvolvimento urbano. vernança, é um processo de articulação racio- Percebe-se que o habitus não depende nal de meios, tendo em vista disciplinar e dirigir da postura ideológica do agente, pois está in- o objeto social de sua ação: o urbano. Ao longo culcado, incorporado, assimilado como uma dos anos, a maioria dos produtos que emergem disposição nas percepções que o agente traz do campo do planejamento constitui manifes- como visão de mundo e determina como na- tações sobre a necessidade de "racionalizar" tural ter, o planejamento, o papel de planejar, e "organizar" o desenvolvimento urbano, a prever, organizar, proporcionar solução, pois fim de evitar "deseconomias", "desperdícios", não teria sentido ser seu contrário. Os habitus "exclusões" e "danos" aos diversos usos e são rotinas mentais inconscientes que permi- interesses em conflito na cidade. O objetivo tem ao planejador agir sem ter de refletir sobre maior é obter um desenvolvimento "coeso", sua ação. Governar parece ser uma atitude na- "harmonioso", "articulado" e "funcional" do tural, razoável e inquestionável de quem busca espaço para "racionalizar" as ações dos diver- soluções "adequadas" para o objeto da inter- sos atores do meio urbano. venção. Afinal, o planejamento é o antípoda do Da leitura dos planos diretores e das mercado, do caos, da anarquia que impera nos políticas e programas públicos produzidos ao universos do liberalismo. Sem a ação de contro- longo dos últimos 30 anos na cidade de São le e alguma forma de restrição e policiamento Paulo, observa-se a lógica manifesta da inter- do caos, a ordem social e, como parte dela, o venção e do controle (PMSP, 2004). O habitus urbano podem entrar em colapso. Os habitus que emerge dessa prática de planejamento, in- são como certezas irrefletidas e consolidadas dependentemente dos regimes administrativos que produzem uma lógica, uma racionalidade que se sucederam, sugere haver uma percep- prática, irredutível à razão teórica. São produ- ção homogênea e um entendimento comum to da aprendizagem e de um processo do qual sobre o papel "estratégico" do planejamento já não temos mais consciência e se expressam como instrumento destinado a promover e como uma forma natural de ser e de pensar em coordenar articulação das diversas cidades um determinado contexto. dentro da cidade. Como informa Bourdieu, o As rotinas de trabalho e os discursos do agente, para participar de um campo, incorpo- cotidiano do planejamento como governança 126 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 Habitus, planejamento e governança urbana da cidade demonstram haver, entre os agen- ● Hipótese 2: Os habitus do planejamento tes dessa governança, significativas diferenças são saberes práticos inculcados por meio: 1) da ideológicas e de percepção sobre o sentido inserção profissional do agente nas instituições de suas práticas. De fato, essas diferenças se públicas de governança; 2) do aprendizado tá- exprimem, por exemplo, na definição do que cito incorporado ao longo da prática profissio- é uma solução adequada para uma situação. nal; 3) da educação formal. Assim, por exemplo, enquanto para alguns a No campo do planejamento como go- questão da habitação e a viabilização do aces- vernança urbana, observa-se que os habitus so à moradia são o objeto central da governan- específicos do campo desenvolvem-se e são ça urbana – uma forma de reduzir a injustiça e incorporados de três maneiras. Primeiro, pelo a exclusão social –, para outros, a habitação é trabalho profissional e o aprendizado tácito um problema secundário, ante o imperativo do que se adquirem ao longo da prática. É o co- resgate da história e a recuperação dos espa- tidiano da prática de enfrentamentos, do con- ços deteriorados da cidade. Apesar das diferen- fronto com desafios, experimentando sucessos ças, o que é homólogo entre as duas posturas é e fracassos, que o profissional de planejamen- a crença na intervenção e na capacidade trans- to constrói uma forma de ser e de fazer que formadora das propostas técnicas. O Plano Di- se constituirá no habitus do campo. Segundo retor Estratégico de São Paulo, promulgado em Bourdieu, todo agente social que atua no inte- 2002 (PMSP, 2002), é um exemplo excepcional rior de um campo procura ajustar seu esquema da antinomia entre o antagonismo ideológico de pensamento, percepção e ação às exigên- e a confluência de habitus. Nessa experiência cias objetivas daquele espaço social. Para ele, observa-se, de forma mais clara, o processo de o motor da ação repousa na relação entre o integração de habitus homólogos com ideolo- habitus e o campo. Assim, em um processo de gias antagônicas em um único discurso. De um ajustes, transformações e adequações dentro lado, impera o discurso da racionalidade técni- do campo, o agente social constrói sua práti- ca, impondo controles policialescos e restrições ca. As experiências adquiridas nas interações absolutas ao uso e à ocupação do solo, tudo se articulam com o aprendizado passado e se em nome da funcionalidade do espaço do capi- constituem em matriz geradora de saberes, que tal. De outro, são incluídas, de forma admirável, orienta a prática de governança do planejador. todas as disposições inovadoras do Estatuto Bourdieu sustenta: “o conhecimento prático é da Cidade para constituir o discurso do plane- uma operação de construção que aciona siste- jamento democrático e da inclusão social. Por mas de classificação e estes por sua vez orga- fim, como uma totalidade imanente a todas nizam a percepção, a apreciação que estrutu- essas visões e discursos, paira a ideia de táti- ram a prática” (Bourdieu, 2010). A prática de cas e estratégias, algo assim como em um tom governança, assim constituída, define-se como militar de conluio entre generais, para delimitar uma forma de saber construída e incorporada a prerrogativa última do planejador de decidir ao longo de sua trajetória pessoal e profissio- o sentido do jogo. nal. Ao longo dessa trajetória, o planejador Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 127 Nilton Ricoy Torres incorpora saberes sobre como planejar, sobre o particular (soluções locais), em um processo as imagens e os papéis do planejador, sobre dedutivo que permita o controle e a articulação crenças e certezas de sua prática. O habitus, das propostas e ações. assim constituído, torna-se um produto de con- Um terceiro modo de incorporação do dicionamentos que levam o agente-planejador habitus no planejamento é por meio da edu- reproduzir as condições sociais de sua própria cação profissional e das diversas formas de in- reprodução, o que se tornará o princípio gera- culcamento de um modo de pensar transmiti- dor da ação de governança urbana. Segundo, da pelo meio acadêmico, institutos de pesqui- os habitus são incorporados pela cultura (habi- sa e universidades. Existem diversas correntes tus) preexistente nas instituições governamen- de pensamento dentro do meio científico tais nas quais o planejamento se realiza como acerca do que é planejamento e de seu papel ação pública. Nesses contextos há um discurso social, político e ideológico. Essas correntes difuso, genérico, universal e consensual sobre possuem premissas, axiomas e métodos intro- a responsabilidade administrativa e social do duzidos (inculcados) nos alunos através dos planejar a cidade. O planejador no contexto da anos de formação, constituindo escolas ou administração pública, pouco a pouco, incor- culturas de planejamento, que determinarão a pora uma percepção sobre sua missão como forma de ver, perceber e fazer o mesmo. membro do corpus publicus e resume-se em ● Hipótese 3: O planejamento pode ser um zelar pelo "bem comum", "pelo interesse entendido como um habitus incorporado à prá- público" e pelo "bem-estar geral". Estar na po- tica, isto é, um conjunto de disposições e costu- sição de agente do planejamento integrado à mes que determinam o fazer do planejamento. estrutura do estado significa trabalhar em fun- O planejamento como um habitus pode ção do interesse público (do estado). A “cultura ser entendido como um conjunto de disposi- da casa” (habitus) é outra maneira peculiar de ções definido por crenças, modos de pensar, de assimilar o jogo do campo, que, no caso da de entender e de perceber. São suposições mate- São Paulo, é marcado por um modo de fazer rializadas na forma de verdades, maneiras en- planejamento que tem como ponto de parti- raizadas de fazer e empreender a prática pro- da a visão sinótica, isto é, planejamento como fissional. O habitus do planejar percebe o pla- processo que caminha de cima para baixo, no nejamento como um modo de gestão racional, qual o ato do planejar tem sua gênese na ela- estratégica, capaz de articular a ação adminis- boração de um Plano Diretor Estratégico que trativa para o controle integrado dos proces- define as diretrizes gerais de desenvolvimento. sos urbanos. Esse habitus entende que a ação A necessidade sinótica se constitui como par- do planejar deve partir de formulações gerais te de um conhecimento tácito, fruto de regras (diretrizes globais), incorporando as várias di- não escritas e integradas às práticas das insti- mensões do território (usos do solo, transporte, tuições do governo. Não parece, aos olhos do habitação) para integrar e articular as ações planejador (habitus), que a prática possa ser di- dos diversos setores da regulação administrati- ferente. Pela via do habitus o planejamento de- va (setores de obras, saúde, transporte, cultura, ve caminhar do geral (diretrizes globais) para infraestrutura). Da mesma maneira, fruto de 128 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 Habitus, planejamento e governança urbana habitus já consolidados, o planejamento cons- própria razão de ser do campo, ou seja: o pla- titui jogo de repressão e tutela, no qual a ação nejamento existe para racionalizar as ações de polícia é parte integral do planejamento. In- do governo, maximizar os benefícios, coibir culcada no imaginário do planejador, há uma situações indesejáveis, disciplinar as ações concepção de proteção do interesse público dos agentes, penalizar os desvios de conduta. e um senso de responsabilidade social, moti- Como regra geral, o planejamento existe para vado pelas ideias de zelo, vigília e comando. cumprir essas funções. Independentemente Sem o planejamento e sob a ação exclusiva do sentido das ações (privilegiar a funciona- das forças de mercado, a cidade se conflagra lidade do mercado ou a distribuição social da em caos. Vislumbra-se, então, a pertinência do renda), o nomos do planejamento é sempre poder regulatório e de regulação do planeja- agir por intermédio do estado, em nome do mento para amenizar as disfunções, as injusti- interesse público. ças sociais, as carências espaciais. Imagina-se Em São Paulo, a política de uso e ocupa- que a competente intervenção do estado e as ção do solo, por exemplo, reproduz-se por ha- estratégias de luta dentro do campo possam bitus antigos, já consolidados, que foram in- promover a inclusão social no espaço, consoli- corporados aos modos de administrar o uso do dar a função social da propriedade e garantir o território urbano. Esses habitus entendem o es- direito à cidade. paço da cidade como uma bricolagem de áreas Bourdieu afirma que cada campo possui especializadas (zonas de uso) e com densida- uma doxa constituída pelo senso comum, ex- des diferenciadas. O objetivo é regular o uso e pressando-se na forma de ideologia em que as a ocupação do território, tendo em vista man- circunstâncias são aceitas como "sendo assim ter e garantir a funcionalidade econômica da mesmo”. São percepções, apreciações e valo- aglomeração e a reprodução das relações so- res compartidos por todos dentro do campo. ciais. Por essa razão, na regulação do território, No campo específico do planejamento, a doxa em São Paulo, considera-se normal, de praxe, e se estabelece em torno da ideia que o planejar até tradição, isto é, entende-se como adequada deve ser um processo racional, estratégico e e necessária a ação de controlar e disciplinar calculado, voltado para a resolução de impas- o modo como os usos se estabelecem e as ati- ses e manutenção das regras do jogo. Ele de- vidades são exercidas no espaço urbano. Na ve: dirigir, coordenar e regular e para isso deve visão (habitus) dos planejadores instalados no coibir, restringir ou incentivar. Por isso, a doxa campo de governança burocrático, parece não do planejamento incorpora, implicitamente, a haver outra forma de administrar o uso do so- ideia de "reprodução", porque ela se constitui lo senão pelos mecanismos da tutela e da vio- a partir do ponto de vista da classe dominante, lência simbólica da legislação punitiva. Dessa mas se apresenta como o interesse universal, maneira, a condução do planejamento do uso pertencente a todos os membros do campo. do solo, em São Paulo, pode ser vista como um Os nomos são as regras gerais e estáveis habitus arraigado nas estruturas mentais dos que regulam o jogo no campo. No campo do planejadores, assim como nas estruturas ob- planejamento essas regras estão vinculadas à jetivas das instituições de governança urbana. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 129 Nilton Ricoy Torres A legislação de zoneamento cumpre a função podemos chamar de campo epistemológico fundamental de fomentar (e perpetuar) a com- do planejamento. Os agentes desse campo, preensão que o planejamento deve ser um ins- embora participem e estejam envolvidos com trumento de força, de polícia, para controlar os as práticas específicas do campo científico, desvios, os anacronismos e as disfunções que desenvolvem reflexões e proposições teóricas os diversos usos criam entre si. A ideia de se- acerca do objeto urbano, assim como das prá- gregação do espaço em guetos de atividades ticas de planejamento levadas a cabo no cam- e pessoas, assim como a de "proteção" de po institucional-burocrático. Esses discursos usos e "lugares" (zonas), daquelas atividades são desenvolvidos na forma de explanações ou e pessoas indesejáveis e incômodas foi, e ainda de métodos e servem para orientar a prática é, um dogma (habitus) da tradição de planeja- administrativa. Em regimes administrativos mento em São Paulo. Embora esse habitus ve- marcados por concepções político-ideológicas nha, aos poucos, transformando-se – fruto de em formação ou afirmação no campo da po- lutas dentro do campo – e já se admita um ter- lítica, esses subcampos podem se articular de ritório urbano mesclado de usos, as lutas ainda modo a integrar agentes e discursos do campo continuam no interior do campo do planeja- científico a posições do campo institucional. mento, pois não se admite o território urbano Dentro do subcampo da prática (buro- mesclado por classes sociais. A ideia (habitus) crático) as disputas e rivalidades entre setores que o território deva ser dividido em áreas e da burocracia são notórias. Há diferenças entre zonas é ainda fundamental. formas de fazer, métodos de operar e até fins a Hipótese 4: O planejamento como um serem alcançados. Em jogo está o poder de do- campo de forças e de posições é constituído por minar e acumular o capital produzido no cam- dois outros subcampos: o campo institucional- po. A aliança com o subcampo científico pode -burocrático e o campo acadêmico-científico. reforçar as posições dentro do campo burocrá- ● A hipótese indica a possibilidade de tico. As lutas e conflitos no âmbito da socieda- incluir-se, como parte do universo do planeja- de são, em geral, transferidos para o universo mento, dois subcampos os quais, embora au- do planejamento. Esse é o motivo de as lutas tônomos e separados, possuem circunstâncias no interior do processo de governança estarem homólogas, tal que, em momentos específicos, sempre sob a influência e pressões do cidadão podem estar articulados e estabelecerem um e de políticos profissionais, externos ao campo. processo de mútua realimentação. Nesses mo- Nos conflitos envolvendo a população, emer- mentos o campo científico, que se ocupa da gem sempre questões sobre o que é e como de- epistemologia do planejamento, atua como vem ser exercidas as tarefas do planejamento um avalista para garantir a legitimidade das como gestão pública. propostas formuladas no campo burocrático. ● Hipótese 5: O campo do planejamen- Não há dúvida que o urbano, como objeto de to produz dois tipos específicos de valores investigação, é parte integral do campo cien- (capitais) dos quais tanto o campo econômico tífico/acadêmico e, dentro desse, o "planeja- como o campo político dependem. O planeja- mento" se constitui como um microcosmo que mento tem o poder de legitimar as decisões 130 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 Habitus, planejamento e governança urbana políticas por meio do discurso da racionalidade de importância vital para as lutas nos demais técnica e científica e de coordenar a distribui- campos sociais, pois é o locus onde se legitima ção do capital econômico pelo orçamento pú- a distribuição dos capitais econômicos públi- blico). O poder de regulação e polícia, incorpo- cos. O controle desse poder permite coman- rado ao planejamento, atua também como um dar várias formas de repartir o capital sobre o forte mecanismo de distribuição indireta e de território, o que possibilita alterar o equilíbrio redirecionamento de recursos (e cabedais). de forças e a acumulação de capitais entre os A capacidade de legitimar as decisões diversos agentes. Visto isso, lutas sociais inten- políticas e de prover uma imagem menos ar- sas se desenrolam dentro do campo do plane- bitrária aos sectários acordos de “gabinete” jamento, pois o modo de operar desse campo é um dos mais cobiçados produtos do campo torna-se uma estratégia para mudar ou manter do planejamento e rende, conforme sugere as relações de dominação dentro da sociedade. Bourdieu, o capital simbólico. É a capacidade ● Hipótese 6: O planejamento é um cam- de produzir esse tipo de capital que permite po especial na medida em que, de tempos em ao planejamento articular propostas e justificar tempos, ele pode se tornar um “aparelho”. encaminhamentos essenciais para a eficácia da Sendo o planejamento exercido dentro da es- administração pública. O planejamento posto trutura do estado, sua prática torna-se direta- em prática pelos agentes torna-se uma forma mente dependente dos interesses dos grupos de capital simbólico, pois constitui estratégia hegemônicos no poder. de dominação ao estabelecer condições, impor Nessas situações, o planejamento é en- limites, formular premissas, propor objetivos tendido como um campo instrumentalizado do que, pouco a pouco, se transformam no nomos campo político que o domina e impõe limites à de toda a população. O nomos, de acordo com sua autonomia. Não há lutas nem competição Bourdieu, sintetiza a visão dominante que se entre os agentes dentro do campo, e o plane- impõe ao conjunto da sociedade (grupos domi- jamento se torna apenas uma máquina para nados). Assim, ao apresentarem suas proposi- produzir legitimações políticas. Normalmente, a ções sob a forma de "a cidade que queremos" atividade de planejamento é constituída por re- ou "São Paulo não deve parar" ou "cidade lações de trabalho hierarquizadas e dependen- saudável", os agentes do planejamento vão, de tes de estruturas de poder externas ao campo. fato, definindo um conceito de cidade sintoni- Tal condição restringe a autonomia do plane- zado aos interesses dominantes e expressa-se jador e faz com que as ações de governança nos planos e nas políticas públicas. É possível dependam de decisões tomadas em outros afirmar que o habitus o qual comanda a prática universos, isto é, nos campos das autoridades (e a ciência) do planejamento pode incorporar executivas e/ou legislativas. Nas circunstân- visões, percepções e concepções de mundo que cias históricas em que a autonomia do campo acabam por manipular valores, limitar objetivos é reduzida, os conflitos entre os agentes são e condicionar as diretrizes de ação. subsumidos e as relações sociais no cam- No contexto da sociedade, o planejamen- po transformam-se em uma espécie de "pax to é um campo estratégico por produzir valores universal". Esses momentos se caracterizam Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 131 Nilton Ricoy Torres por regimes de governança autoritários, nos pré-concebidos da ação, pois a prática é a res- quais os agentes planejadores que possuem posta do ator para a questão que se defronta vinculação política com os grupos dominantes no momento. No caso do planejamento, pode- (externos) assumem o controle do campo, e -se inferir que o habitus de planejar tempos o planejamento se torna apenas um instru- históricos, lugares e situações diferenciadas é mento executivo para desempenhar tarefas o que determina o modus operandi de grande técnicas. Esses regimes são, de modo geral, parte da prática do campo do planejamento. marcados por administrações conservadoras Planejamento definido como habitus é nas quais predominam processos de decisão uma possibilidade e um campo que se abre pa- pouco transparentes e impostos de cima para ra a pesquisa sobre a prática do planejamento. baixo. Os planos e as políticas públicas elabo- Nesse novo campo de estudos não há determi- rados nessas circunstâncias são enigmáticos, nações dadas a priori, pois não há objeto prio- fechados e sectários, cabendo aos agentes em ritário ou permanente de análise. O foco não se posição de interventores do campo forjar mo- concentra sobre as estruturas de planejamento delos justificativos. nem sobre os atores sociais, mas sobre as relações dialéticas que se estabelecem entre eles. A formulação de Bourdieu possibilita entender o Conclusão planejamento como um campo estruturado de forças e de práticas, permeado por habitus estruturados e estruturantes desse mesmo cam- A contribuição fundamental de Bourdieu para po. O planejamento, assim definido, permite o entendimento do planejamento como práti- capturar a prática do planejar como um habitus ca de governança urbana centra-se, a meu ver, que resulta da interiorização das estruturas (de na ideia de habitus, e seu confronto com uma planejamento) e as mudanças das mesmas co- situação específica da qual resulta a prática. mo produto da ação de exteriorização das inte- Ou seja, não há verdades absolutas ou modelos rioridades dos planejadores. Nilton Ricoy Torres Arquiteto e Urbanista. Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/Tecnologia de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. [email protected] 132 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 Habitus, planejamento e governança urbana Referências BOURDIEU, P. (1984). Ques ons de sociologie. Paris, Les Édi ons de Minuit. ______ (1987). Choses dites. Paris, Les Édi ons de Minuit. ______ (1989). La noblesse de l'état. Paris, Les Édi ons de Minuit. ______ (1992). A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspec va. ______ (1999). A dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. ______ (2001). Meditações pascalianas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. ______ (2009). O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. ______ (2010). Razões prá cas: sobre a teoria da ação. São Paulo, Papirus. HILLIER, J. e ROOKSBY, E. (ed.) (2001). Habitus: a sense of place. Ashgate, Aldershot. KUHN, T. (1970). The structure of scien fic revolu on. Chicago, University of Chicago Press. PMSP (2002). Plano Diretor Estratégico de São Paulo. Lei n. 13.430, 13/9/2002. São Paulo, Sempla/ PMSP. ______ (2004). Planos regionais estratégicos e normas para o parcelamento, disciplina, uso e ocupação do solo. Lei n. 13 13.885, 25/8/2004. São Paulo, Sempla/PMSP. WACQUANT, L. J. D. (2002). O legado sociológico de Pierre Bourdieu: duas dimensões e uma nota pessoal. Revista Sociologia Polí ca. Curi ba, n. 19, pp. 95-110. Texto recebido em 31/ago/2011 Texto aprovado em 4/out/2011 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 133 Negociando o território: a formulação do Plano Diretor Estratégico de São Paulo (2002-2004) Trading the territory: the formulation of the Strategic Master Plan of São Paulo (2002-2004) Sidney Piochi Bernardini Resumo Depois de mais de trinta anos da instituição do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado em 1971, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo foi sancionado em setembro de 2002, após um intenso e peculiar processo de debates e discussões com vários segmentos da sociedade aglutinados em três grandes blocos de interesses: os representantes do setor imobiliário, as associações de bairros e os movimentos sociais por moradia. A sequência de discussões que culminou com a aprovação, em 2004, das leis complementares dos planos regionais estratégicos (PREs) e de uso e ocupação do solo elevou ainda mais as disputas em torno dos interesses específicos de cada um destes grupos representativos, cujas principais questões e debates estão aqui resumidamente relatadas. Abstract After more than thirty years from the establishment of the Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI), in 1971, the Strategic Master Plan of São Paulo was sanctioned in September of 2002 after an intense and queer process of debates and discussions adding several segments of the society agglutinated in three large blocks of interest: the representatives of the real estate, neighborhood associations and social movements for housing. The sequence of discussions was culminated in the adoption, in 2004, of the complementary regional strategic plans and the zonning law increasing further the disputes over these three groups. Palavras-chave: Plano Diretor; planejamento territorial e urbano; processos participativos; Estatuto da Cidade; Plano Diretor Estratégico de São Paulo. Keywords: Master plan; territorial and urban planning; participatory process; Statute of the City; Strategic Master Plan of São Paulo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 Sidney Piochi Bernardini Introdução Brasil. É na interface com os problemas territoriais da sociedade que o planejamento urbano encontra as raízes de seu desenvolvimento. A participação da sociedade brasileira nos Ao mesmo tempo, a análise histórica dos seus processos de planejamento urbano vem se processos nos ensina que suas limitações téc- intensificando ao longo dos últimos anos nicas relacionam-se aos impasses na solução com o fortalecimento institucional introduzi- das inúmeras contradições sociais e políti- do pela Constituição de 1988. A Lei Federal cas intrínsecas à produção do espaço urbano 10.257/01, mais conhecida como Estatuto da (Lamparelli, 1978, p. 109; Corrêa, 1989, p. 9) Cidade, que regulamentou o Capítulo de Polí- já havia destacado que o espaço urbano é ao tica Urbana da Constituição, além de estabe- mesmo tempo “fragmentado e articulado, re- lecer um prazo máximo para que grande parte flexo e condicionante social, um conjunto de dos municípios elaborasse seus planos direto- símbolos e campo de lutas”. É na atuação das res, determinou, em seu artigo 40, a obrigato- forças e agentes sociais que se constrói e se riedade da realização de audiências públicas constitui o espaço urbano, derivado e derivan- e debates com a participação da população e te de sua mobilização. de associações representativas dos seus vários O papel ideológico que o plano diretor, segmentos nos processos de elaboração des- como principal instrumento do planejamento ses planos. Centenas deles já foram ou estão municipal exerceu por várias décadas, confor- sendo aprovados por municípios brasileiros de me apontou Villaça (2010, p. 189), evidencia diferentes características desde a sanção do uma face perversa do planejamento urbano no Estatuto da Cidade, considerando, pelo menos Brasil. O autor questiona o discurso que apre- do ponto de vista formal, tal prerrogativa. O senta o prévio conhecimento técnico da cida- mosaico institucional derivado desse processo de – social, econômico, urbanístico, histórico, introduziu novas substâncias aos processos de geográfico como indispensável para a correta desenvolvimento urbano que se instauraram ação do Poder Público sobre ela. Em que me- desde então. Poderíamos sugerir, com isso, dida os profundos e extensos diagnósticos que estamos imprimindo um novo marco na orientam, de fato, o discurso propositivo dos história do planejamento urbano no Brasil? Ou objetivos e metas traçados pelo plano diretor e se trata de uma mera repetição de processos a posterior tomada de decisões na sua imple- anteriores reconduzidos por novos formatos mentação? É nesta relação entre formulação de participação social? técnica e as práticas cotidianas dos agentes Diante destes inúmeros processos de sociais disciplinadas pelo Poder Público que planejamento intensificados durante pelo me- reside a contradição entre planejamento e pro- nos os últimos dez anos, não se deve ignorar dução do espaço urbano. os fundamentos sociais e políticos que permea- O aumento da participação destes agen- ram, por várias décadas, a constituição do pla- tes no processo de formulação e de implemen- nejamento urbano como campo disciplinar e tação dos planos diretores revela o gradual re- como indutor do desenvolvimento urbano no conhecimento de que é preciso garantir maior 136 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 Negociando o território aderência entre discurso e prática. E essa ade- forças determinantes para o resultado final do rência será tanto maior quanto mais favoráveis plano aprovado, conforme veremos a seguir. forem as condições de atuação dos segmentos Percebe-se, pelo menos no caso de São Paulo, mais variados e mais abrangentes da socieda- que este processo de participação despertou-as de. Assim é que é possível superar tantas ex- para um novo palco de disputas e embates. periências no Brasil nas quais o campo de lutas tem sido historicamente escamoteado pela liberalidade das políticas urbanas com a tradicional pactuação entre Estado e burguesia. Para Oliveira, que estudou o caso de Curitiba, não há como ser diferente: a compatibilização dos A construção do Plano Diretor Estratégico de São Paulo e suas leis complementares interesses dos empresários com os dos urbanistas, pelo menos em torno de algumas ques- O PDE (Plano Diretor Estratégico), como ficou tões essenciais, é fundamental para o êxito de conhecido o atual plano diretor de São Paulo, qualquer política de planejamento urbano. Em Lei Municipal 13.430/02, foi sancionado no dia uma sociedade capitalista, na qual as “coisas 13 de setembro de 2002 e, já em 2004, foi re- têm donos, inclusive principalmente a terra”, gulamentado com a promulgação da Lei muni- torna-se limitada a amplitude das realizações cipal 13.885/04, que estabeleceu normas com- em planejamento (Oliveira, 2000, p. 113). É plementares ao Plano Diretor Estratégico, ins- através dos processos democráticos aliados à tituiu os 31 Planos Regionais Estratégicos das constituição de um marco legal mais progres- Subprefeituras (PREs), dispôs sobre o parcela- sista, entretanto, que tais arranjos podem ser mento e ordenou o uso e ocupação do solo. A quebrados, gerando novas possibilidades que aprovação desses dois instrumentos legais, que vão além dos velhos pactos de poder nas deci- se deu durante a gestão da ex-prefeita Marta sões sobre os rumos do território. Suplicy entre os anos de 2001 e 2004, deve ser Com a intensificação dos processos vista como um processo sequencial, no qual, a participativos na condução do planejamen- participação de vários segmentos da população to municipal a partir da atuação dos Conse- na sua elaboração lentamente se intensificou.1 lhos Munici pais e a exigência da realização Pode-se afirmar com isso que esse processo se de audiências públicas durante a elaboração deu de forma desigual e variada, tanto em ter- dos planos diretores, indaga-se se os emba- mos de formatos, como em termos quantitati- tes, lutas e conflitos entre os vários segmentos vos de participações, sendo possível visualizar representativos da sociedade estão emergindo quatro momentos bem distintos. O primeiro, no de fato e estão produzindo novas soluções e período compreendido entre janeiro de 2001 pactos, diferentes daqueles tradicionalmente e maio de 2002, abrangeu o processo de dis- conhecidos. É através dos estudos específicos cussão para a elaboração do projeto de lei do destes processos atuais que tal questão poderá plano diretor até seu envio à Câmara Munici- ser respondida. No caso do novo plano diretor pal. O segundo período, entre maio e agosto de de São Paulo, assistiu-se a uma polarização de 2002, compreendeu a discussão do projeto de Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 137 Sidney Piochi Bernardini lei na Câmara e sua aprovação em 23 de agos- momentos seguintes foram também bem de- to do mesmo ano (posteriormente sancionado marcados, ressaltando-se novamente a parti- em setembro). O terceiro, compreendido entre cipação da Câmara Municipal com a notória novembro de 2002 e agosto de 2003, incluiu relatoria de Nabil Bonduki, na condução do a discussão para a regulamentação do plano processo, ajudando a fortalecer ainda mais a diretor com a formulação da proposta da nova proposta sancionada em 2004. lei de uso e ocupação do solo e a construção dos planos regionais estratégicos pelas Subprefeituras e o quarto, entre agosto de 2003 e julho de 2004, abrangeu a discussão pública conduzida pela Câmara Municipal para a aprovação de todos os projetos enviados, culminando na sua aprovação em julho e sanção em Incorporações, rejeições, controvérsias e conflitos no processo de construção dos projetos de lei agosto de 2004. No caso da construção do PDE, a ela- Algumas reflexões, diante de processos partici- boração da primeira minuta do projeto de pativos como o que ocorreu durante a elabo- lei pelo Poder Executivo e sua revisão e qua- ração e aprovação do PDE de São Paulo e suas lificação durante o período que tramitou na leis complementares, apontam para o signifi- Câmara Municipal, embora componham dois cado do avanço das práticas democráticas na momentos diferentes bem delineados, são sociedade brasileira pós-Constituição de 1988. parte de um mesmo processo em que se des- Na percepção de uma individualização cada taca o papel da Câmara Municipal, e, mais vez mais pujante nas sociedades contemporâ- especificamente, do gabinete do vereador neas, como evidencia Ascher (2010, p. 38), em Nabil Bonduki, escolhido para ser o relator do que as escolhas individuais são sempre, ao me- projeto. Sua atuação destacou-se não só pela nos em parte, determinadas socialmente, mas articulação para viabilizar a aprovação do pro- o sistema em que se constroem essas decisões jeto de lei, como também pela aglutinação de é mais complexo, e os indivíduos, assim como forças, menos presentes durante a elaboração as organizações, estão mais conscientes de do primeiro projeto pelo Executivo Municipal. decidir sob uma racionalidade limitada e su- A contribuição de demais segmentos sociais, as escolhas dependem de um maior número como os movimentos de moradia e o envolvi- de interações, pergunta-se como, hoje, é pos- mento de um número substancial de pessoas, sível fortalecer a esfera pública nos processos na fase de tramitação na Câmara, imprimiu, à decisórios da arena política. Este tem sido um nova minuta do plano diretor, maior aderên- dos principais dilemas enfrentados por Antony cia dos setores populares, demonstrando um Giddens na discussão sobre a passagem da peculiar e original envolvimento da Câmara modernidade para a pós-modernidade no âm- Municipal, decisivo para a aprovação do pro- bito da sociologia política. Para ele, a transfor- jeto em agosto de 2002. No caso da nova lei mação necessária para a reconstituição de uma de uso e ocupação do solo e dos PREs, os dois vida pública nos tempos atuais baseia-se em 138 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 Negociando o território como reconciliar a individuação da identidade vez, a predominância daqueles segmentos que cultural com o reconhecimento do compartilha- tradicionalmente se expressam nas decisões mento entre indivíduos com diferentes quadros que interferem na produção do espaço urbano. de referências, assim como de diferentes inte- A gradual intensificação da participa- resses, de forma a evitar que os processos de ção nos quatro momentos de construção dos pensamento e prática coletivos não suprimam projetos de lei tem a ver diretamente com o o florescimento desta capacidade individual de delineamento dos posicionamentos defen- cada um (Healey, 1997, p. 44). Ao tratar da di- didos pelos distintos grupos de interesse em versidade que constitui a realidade do mundo, paralelo ao visível amadurecimento acerca do Santos (2007, pp. 28-31) observa que nossa conteúdo apresentado por eles. Pode-se dizer racionalidade se baseia na ideia da transfor- que, se as atividades e dinâmicas isoladas em mação do real, mas não na compreensão do cada um dos momentos ocorreram de forma real. Para ele a reinvenção da emancipação relativamente rápida e acelerada, o proces- social passa pela percepção do que denomina so como um todo – que durou cerca de três “sociologia das ausências”, ou “sociologia das anos e meio – permitiu que os setores mais insurgências”, daquilo que é invisível à realida- representativos da sociedade amadurecessem de hegemônica do mundo. Há cinco modos de suas posições e interferissem de fato no pro- produção das “ausências” em nossa racionali- cesso, incluindo propostas e alterações nos dade ocidental para ele: 1) a monocultura do documentos formulados. Até mesmo a inter- saber e do rigor; 2) a monocultura do tempo rupção no processo encabeçada pelo Ministé- linear; 3) a monocultura da naturalização das rio Público2 demonstra que houve certa aten- diferenças; 4) a monocultura da escala domi- ção da sociedade para os assuntos da política nante; e 5) a monocultura do produtivismo urbana, mesmo considerando os interesses capitalista. No caso do processo participativo corporativistas que permearam esses debates. instaurado durante a preparação do PDE de O primeiro grande conjunto de modifica- São Paulo, os principais grupos organizados ções ao projeto de lei do plano diretor formu- interessados nas discussões e debates não lado pelo Executivo Municipal, através da Se- parecem ter transcendido para além de uma cretaria Municipal de Planejamento (Sempla), racionalidade hegemônica, conforme aponta ocorreu na Câmara dos Vereadores a partir de Santos, mas permanecido na defesa irrestrita maio de 2002, no âmbito da Comissão de Po- dos posicionamentos que tomaram para si em lítica Urbana, que constatou a necessidade de prejuízo da reinvenção das práticas democrá- promover ajustes mais profundos de modo a ticas, a partir de uma diversificação mais rica “superar algumas dificuldades de entendimen- e intensa que poderia emergir do conjunto de to dos objetivos estratégicos propostos, de sua vozes não dominantes que se pronunciaram, articulação com instrumentos previstos e de mas não tiveram força suficiente para interferir sua adequação com as condições concretas de com mais substância nas decisões. A rapidez sua implementação” (São Paulo, 2002, p. 15). e talvez os formatos que se configuraram nes- Depois de aglutinar forças, o gabinete do ve- te processo participativo elevaram, mais uma reador Bonduki construiu um consenso sobre Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 139 Sidney Piochi Bernardini a necessidade de tornar o plano mais autoa- 5 – a criação de uma nova Zonas Especiais de plicativo. No seu parecer conclusivo acerca Interesse Social (Zeis), a Zeis 4 (além das outras do Projeto de Lei 290/02, na ocasião do seu três Zeis propostas), com o objetivo específico encaminhamento para votação, assim estão de minimizar conflitos de usos na Área de Pro- registradas as principais alterações à proposta teção aos Mananciais incidente sobre a cidade original do Executivo: de São Paulo,5 e a delimitação destas e das de- 1 – a necessidade de dividir a Macrozona de mais Zeis indicadas no projeto do Executivo; Estruturação e Qualificação Urbana, definida 6 – a previsão de um Conselho de Política no projeto original como uma grande e única Urbana diretamente subordinado ao gabinete macrozona mista, em quatro áreas diferencia- do prefeito com a principal responsabilidade das – a Macroárea de Reestruturação e Requa- de coordenar a ação dos conselhos setoriais e lificação, a Macroárea de Urbanização Conso- acompanhar a implementação dos objetivos lidada, a de Urbanização em Consolidação e a e ações expressas no plano diretor. de Urbanização e Requalificação – de acordo Cada uma destas mudanças, algumas com identificação das características, graus de relativamente profundas, não ocorreu tranqui- consolidação urbana e necessidades sociais e lamente. A formação dos três grandes blocos de serviços urbanos específicos; de interesse neste momento: a Frente Popular 2 – a adoção de coeficientes de aprovei3 pela Reforma Urbana, que reuniu movimen- tamento básico dos lotes (acima de 1) e um tos, ONGs e universidades; o setor imobiliá- período de transição para aplicação desses co- rio, capitaneado pelo Secovi SP (Sindicato eficientes no lugar do coeficiente básico 1, defi- da Habitação de São Paulo) e Sinduscon SP nido no projeto anterior para toda a cidade, de (Sindicato da Indústria da Construção Civil de modo a evitar impactos negativos no mercado São Paulo) e as associações de bairro, capita- imobiliário e uma variação brusca nos valores neadas pelo Movi men to Defenda São Paulo dos imóveis; (Bonduki, 2007, p. 219), evidencia a compo- 3 – o estabelecimento do instrumento da ou- sição de forças diante de questões cruciais torga onerosa por meio de fórmula previamen- de fundo ideológico e político que a primeira te definida, cujo valor variável seria resultante minuta apresentada ainda não havia aflorado. do interesse urbanístico e do interesse social Neste segundo momento, era clara a intenção de determinadas categorias de atividade para de aplicar os instrumentos da política urbana 4 a cidade; em consideração às diretrizes estabelecidas 4 – a definição de uma nova categoria de ha- pelo Estatuto da Cidade. Mas ainda incipientes, bitação, a Habitação de Mercado Popular, que tais instrumentos inspiravam dúvidas, receios e junto com a Habitação de Interesse Social pre- desconfianças por parte de alguns segmentos. sente no projeto de lei original, ampliaria o pa- Um conjunto de críticas e conflitos, que já esta- drão de habitação a ser estimulado e possibili- vam se delineado ainda no primeiro momento taria o atendimento às faixas de renda média, de construção do plano diretor, consolidou-se além da prioritária de “baixa renda”; neste segundo. 140 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 Negociando o território Assim é que vários posicionamentos em cada região. Defendiam os instrumentos antagônicos podem ser lidos e identificados a “Áreas de Intervenção Urbana”, “Operação Ur- partir do texto final do plano diretor, confor- bana” e “Concessão Urbanística”, através dos me foi sancionado. Alguns segmentos como, quais as pequenas diferenças seriam conside- por exemplo, o Secovi SP, associados a alguns radas e tratadas por projetos específicos com técnicos e profissionais, inclusive de órgãos força de renovação e reconversão. Em defesa da Prefeitura Municipal, não concordavam em das Operações Urbanas, o Secovi-SP criticava incluir um conjunto tão extenso e abrangente os extensos e amplos perímetros contidos no de ações estratégicas (342 ações) no âmbito PDE e defendia perímetros mais compactos, su- das políticas setoriais (Título II do Plano: Das postamente mais eficazes. Políticas Públicas: objetivos, diretrizes e ações Com esses pontos, é possível imaginar estratégicas). Esta vertente defendia um plano algumas controvérsias que permearam o pro- diretor mais “enxuto” e menos volumoso, sem cesso de discussão do plano. Diante desses e tamanha quantidade de ações. Muitos defen- de tantos outros aspectos polêmicos e confli- diam até mesmo a exclusão total das políticas tuosos, não será possível aprofundar aqui cada setoriais do Plano. Para tais representantes, o um dos episódios que acaloraram os debates excesso de aspirações era de difícil cumprimen- durante esses três anos e meio. Cabe destacar to, o que, de fato, tem se demonstrado, decor- apenas alguns mais essenciais. Estes estavam ridos dez anos de aprovação do plano. Obser- identificados com a bandeira de luta dos três vavam ainda que muitas destas políticas não grandes blocos representativos já mencionados estavam amarradas a uma configuração terri- acima: o setor imobiliário, as associações de torial, contrariando as prerrogativas espaciais bairro e a Frente Popular pela Reforma Urbana. de um plano diretor. No primeiro caso (do setor imobiliário), a gran- Outro aspecto levantado foi a difícil apli- de questão se referia ao potencial construtivo cação da lei pelos segmentos ligados à produ- por zona e a respectiva outorga onerosa do di- ção imobiliária. Para eles, a existência de trinta reito de construir. Já as associações de bairro e um planos regionais não tinha nada de estra- defendiam com vigor a manutenção e preser- tégico já que não apontavam para questões es- vação das zonas exclusivamente residenciais senciais e, na prática, dificultavam a utilização, e a Frente Popular, a inclusão e delimitação de pelos promotores imobiliários, dos dispositivos mais perímetros de ZEIS, além daqueles propos- legais complexos e excessivos. Lembram, por tos pelo Executivo. Tudo isso formou um mosai- outro lado, das grandes diferenças territoriais co de debates e embates não só entre os ato- existentes na cidade de São Paulo: regiões mais res-chaves e representantes desses três blocos, ricas e regiões mais pobres, que não podem ser mas de outros representantes da sociedade co- planejadas da mesma forma. Ao invés de ser mo um todo. A imprensa escrita noticiou parte tratada por uma “lei genérica de zoneamento”, desses confrontos, mas se inclinou a reverberar a cidade de São Paulo poderia ter suas diferen- a voz das associações de moradores nos polê- ças consideradas e trabalhadas através, por micos assuntos sobre zoneamento. Reforçava- exemplo, de intervenções urbanas específicas -se, através da imprensa, uma compreensão Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 141 Sidney Piochi Bernardini rasa do significado do plano diretor e das ino- entidades interessadas em manter o direito de vações cruciais que poderia trazer à cidade com construir organizaram-se rapidamente. O Seco- a inclusão dos instrumentos da política urbana vi, Sinduscon, Creci e outras entidades do se- estabelecidos pelo Estatuto da Cidade. tor ecoaram juntos na defesa por um potencial As discussões sobre o potencial constru- básico maior que 1 gratuito, penetrando suas tivo por zonas iniciaram-se ainda no primeiro representações na Câmara de Vereadores e no momento, restritas internamente ao governo. Conselho de Política Urbana que se formaria O ex-diretor do Departamento de Planos Urba- logo em seguida à sanção do plano diretor. O nos da Secretaria Municipal de Planejamento, argumento apresentado naquele momento não Engenheiro Ivan Maglio, conta que não havia foi o da “desvalorização do terreno”, mas o do consenso acerca do uso dos coeficientes de “direito adquirido” – de que a maior parte das aproveitamento mínimo e máximo 6 para a zonas em São Paulo, à exceção das exclusiva- aplicação dos instrumentos e de que alguns mente residenciais (Z1), de preservação patri- participantes pensavam que a utilização de monial e ambiental (como as Z8) e algumas 7 um coeficiente básico para toda a cidade des- outras, já possuíam o coeficiente de aprovei- valorizaria os terrenos. Vencida, porém, essa tamento mínimo igual a 2 e que, portanto, a etapa de discussão, a versão apresentada pelo capacidade para este tipo de adensamento já Executivo incluiu, para a maior parte da cidade existia a priori. A isso, associava-se o discurso (Macrozona de Estruturação e Qualificação Ur- de que o plano que o governo apresentava ti- bana) o coeficiente de aproveitamento igual a nha uma vertente meramente arrecadatória, 1, podendo ser ultrapassado (até 2,5), limitado pretendendo-se, com ele, inibir o crescimento 8 ao “estoque de potencial construtivo fixado imobiliário da cidade. para cada zona ou distrito” e através de con- No gabinete do vereador Nabil Bonduki, trapartida financeira9 “representada por bene- esse debate não ficou só no campo da “nu- fícios urbanísticos à vizinhança e à cidade, a se- merologia”, como bem lembra Evaniza Rodri- rem prestados pelos proprietários dos imóveis gues, atual Coordenadora da União Nacional em questão”. O governo passou a defender o dos Movimentos de Moradia. A compreensão coeficiente básico igual a 1 como forma de di- de que era importante pensar os modelos de rigir a queda dos valores dos terrenos, questão ocupa ção a partir das diferenças existentes que foi refutada pelos produtores imobiliários na cidade e de que o adensamento construti- que não acreditavam nessa tese. O Secovi SP vo não significava necessariamente adensa- alegava, por exemplo, que, mesmo com o coefi- mento populacional elevou a discussão para ciente igual a 1, os proprietários manteriam os questões de fundo, considerando os vários preços altos e os empreendedores buscariam estágios de consolidação urbana e as várias outras alternativas para a produção de imóveis: centralidades e, em especial, o centro principal compra de terrenos maiores e construção de da cidade e a sua dinâmica de esvaziamen- condomínios horizontais. A coalizão de forças to populacional. Essa reflexão levou à criação em relação ao potencial construtivo tomou for- das quatro Macroáreas dentro da Macrozona ça nos momentos seguintes, mas é certo que as de Estruturação e Qualificação Urbana, como 142 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 Negociando o território mencionado acima, assumindo-se os diferen- bairros onde reside a população de maior faixa tes graus de consolidação que esta Macrozona de renda. Em quase todos, a recusa à “inva- possuía. Além disso, a adoção dos “fatores de são” do comércio, ao trânsito e à verticalização planejamento: Fp” e dos “fatores sociais: Fs”10 apareceu fortemente nas variadas manifesta- presentes na fórmula de outorga onerosa, di- ções, inclusive na imprensa, como demonstra a ferenciados e aplicados em cada macroárea série de matérias publicadas semanalmente pe- específica, considerava toda a discussão em lo caderno “Imóveis” do jornal Folha de S.Paulo relação às formas de adensamento construtivo durante o mês de setembro de 2002, logo após e populacional. O resultado deste processo foi a aprovação do PDE. a alteração do coeficiente de aproveitamento Na maior parte delas, o descontentamen- básico 1 proposto no projeto de lei para um to com a lei aprovada foi amplamente noticia- que variou de 1 (nas antigas zonas Z1, Z9, Z6 do, já que para esses moradores entrevistados, e Z7) a 2 (nas demais). A essa decisão, houve tratava-se de manter ou tornar estes bairros uma forte reação dos grupos que defendiam a livres de qualquer interferência, fosse pela res- contenção à verticalização e as associações de trição a intervenções públicas como ampliação moradores que bradavam pela preservação dos e extensão de vias, fosse pela proibição de usos bairros residenciais de baixa densidade cons- do solo mistos. Uma vez que as disposições so- trutiva e populacional. bre zoneamento não foram incluídas nas alte- As associações de moradores e de bairros rações do plano diretor, muitas associações que protagonizaram os debates acerca da segunda reivindicavam restrições mais rígidas nas regras grande questão polêmica do plano diretor. Parte de uso e ocupação de seus bairros sentiram-se das discussões ficou conhecida pela veemência não contempladas. com que o Movimento Defenda São Paulo con- De um lado, estavam aquelas associações duziu as negociações com o Poder Executivo e que ou defendiam a manutenção das zonas ex- com a Câmara de Vereadores. Ainda que, para clusivamente residenciais, ou lutavam para que a opinião pública, esse debate tenha se restrin- seus bairros fossem transformados em uma. gido à defesa da preservação das chamadas De outro, estavam os comerciantes e donos de “zonas exclusivamente residenciais”, delimita- estabelecimentos de usos não residenciais que das originalmente na Lei de 1972, como Zona queriam aproveitar o momento para regularizar 1 (Z1), ele foi mais diversificado e incluiu um situações de inadequação diante da antiga lei conjunto de posicionamentos que tinha na ma- de zoneamento de 1972. Moradores do Jardim nutenção da qualidade urbana de alguns bair- da Saúde, Parque dos Príncipes e Jardim Cam- ros uma bandeira de luta. As discussões locais po Grande, por exemplo, lutaram para que seus foram ganhando força até culminar no momen- bairros se transformassem em zonas exclusiva- to da elaboração dos planos regionais, quando, mente residenciais e se articularam para incluir após um maior amadurecimento acerca das uma das emendas aprovadas pela Câmara (ar- problemáticas e intenções do poder público, os tigo 160), mas vetadas pela prefeita na ocasião embates foram mais intensos. Neste campo, in- da sanção. Em lado oposto, estavam os donos teressante notar que os alardes ocorreram nos de lojas localizadas em vias que atravessavam Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 143 Sidney Piochi Bernardini bairros exclusivamente residenciais, como a rua aprovação do plano diretor estratégico. Para Gabriel Monteiro da Silva, uma das principais alguns urbanistas, que compunham uma ver- avenidas que corta o tradicional bairro Jardim tente de oposição ao governo da ex-prefeita América e que se consolidou com o uso predo- Marta Suplicy, as modificações comandadas minantemente comercial, bem como os donos pelo gabinete do vereador Nabil Bonduki ti- de restaurantes e outros tipos de atividades nham melhorado significativamente o projeto, da Vila Nova Conceição, que também se mo- mas eram ainda insuficientes – demandavam bilizaram para aprovar uma emenda (artigo uma melhor articulação entre as tantas leis e 165) a seu favor, parte vetada pela ex-prefeita planos que foram remetidos para regulamen- Marta Suplicy. tação posterior (como transporte e habitação) O critério, adotado pelo relator Nabil com as diretrizes do plano, assegurando-se a Bonduki, de não autorizar mudanças pontuais aplicabilidade de demandas importantes. O re- de zoneamento no plano diretor estratégico corte do zoneamento foi, para eles, decorrente permitiu que muitas das emendas propostas da ausência de uma tipologia clara de zonas. não fossem aprovadas e que, por solicitação Um dos interlocutores deste momento, o pro- do próprio vereador e de mais 20 entidades, fessor e urbanista Luiz Carlos Costa, insistia na fossem vetadas pela prefeita. Isso permitiu que articulação de todos os elementos do plano. todos os conflitos em relação ao zoneamento Em entrevista concedida no dia 15 de agosto pudessem ser amadurecidos e discutidos com de 2002 para o jornal Folha de S.Paulo, Costa mais calma no momento seguinte, durante as ressaltava a necessidade de que o plano dire- reuniões regionais, o que resultou em acalora- tor contivesse todos os elementos necessários dos debates nas dezenas de encontros realiza- para assegurar a coerência, no conjunto da ci- dos durante a construção desses planos, com dade, das ações executivas e normativas pro- vários dos conflitos resolvidos e outros amplia- postas. Em outras palavras, dizia: dos. Assim é que bairros como Jardim Paulistano, Jardim América e Jardim Europa conseguiram a manutenção da exclusividade do uso residencial e bairros como Vila Nova Conceição tiveram parte de seu território enquadrado em zona exclusivamente residencial, parte em zona mista. O mosaico resultante deste processo de- Não basta, por exemplo, definir um sistema de transportes com determinada capacidade se não ficarem igualmente estabelecidos os limites quantitativos de uso para as regiões servidas por ele (...). Apesar dos diversos mapas que ele contém, não se consegue visualizar claramente qual o plano urbanístico proposto, seus objetivos e a estratégia de implementação. monstra o peso das negociações, mas aponta também para uma complexidade, em termos Esta questão da capacidade de suporte da in- de número de zonas e parâmetros de uso e fraestrutura em consonância com o zoneamen- ocupação do solo. Esta aparente falta de sen- to ensaiava alguns posicionamentos da crítica tido lógico, que ficou mais patente depois de que se faria, nos anos posteriores, à aprovação aprovada a lei de zoneamento, já vinha sen- do plano diretor e da lei de uso e ocupação do do discutida ainda no conturbado período de solo, quando o setor de produção imobiliária 144 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 Negociando o território passou a reivindicar o aumento de estoque de Regularização de Loteamentos – Resolo, construtivo em algumas zonas onde este já ha- respectivamente. Na estrutura departamental via se esgotado. da Sehab, a Superintendência de Habitação O terceiro aspecto a ser destacado refe- Popular é ramificada em departamentos regio- re-se à delimitação das Zonas Especiais de In- nalizados, chamadas de Habi’s regionais, cada 11 teresse Social que também se tornou um de- uma responsável por uma região da cidade safio para os gabinetes técnicos, considerando (Norte, Leste, Sudeste, Sul e Centro), que foram o alto número de favelas e loteamentos irregu- essenciais para o fornecimento de informações lares existentes e os conflitos com a população sobre as favelas. Quanto aos loteamentos irre- local moradora no entorno destes assentamen- gulares, o trabalho de regularização que vinha tos, no decorrer do processo de delimitação. sendo feito por Resolo também possibilitou a Não menos polêmico, esse assunto envolveu indicação daqueles que mereciam ser delimi- discussões entre praticamente todos os campos tados. Foram também acrescidos os conjuntos de interesses e, principalmente, entre os três habitacionais irregulares, esses indicados pela blocos representativos. A Frente Popular que Companhia Metropolitana de Habitação de São reunia os movimentos por moradia defendia Paulo (Cohab) e pela própria Habi, que tinham a inclusão de mais Zeis, principalmente as Zeis o cadastro dos conjuntos por ela geridos. Todos 2 destinadas à construção de empreendimen- esses casos comporiam a chamada Zeis 1, as- tos habitacionais populares; o bloco ligado ao sim denominada para os casos de áreas ocupa- setor imobiliário tinha restrições à inclusão de das por populações de baixa renda, abrangen- Zeis em alguns setores da cidade e duelaram, do favelas, loteamentos precários e empreendi- portanto, com os movimentos sociais. Já algu- mentos habitacionais de interesse social ou de mas associações de moradores, principalmen- mercado popular em que houvesse o interesse te das zonas exclusivamente residenciais, não em promover a recuperação urbanística, a re- queriam ouvir falar em criação de zonas espe- gularização fundiária e a produção ou manu- ciais próximas aos seus bairros – tal posiciona- tenção de HIS (Habitação de Interesse Social). mento vinha carregado de um posicionamento contrário ao adensamento populacional. Quanto às chamadas Zeis destinadas a novos empreendimentos, o desafio era ainda Desde o início, a delimitação das Zeis maior, pois essas ainda eram uma novidade ficou sob a responsabilidade da Secretaria de naquele momento. Alguns municípios já tinham Habitação e Desenvolvimento Urbano (Sehab), delimitado Zeis de terrenos vagos, como Diade- por solicitação da Secretaria de Planejamento ma, por exemplo, mas ainda não havia se con- (Sempla), mas o prazo foi muito curto para rea- solidado um método para realizar tal delimita- lizar todo o trabalho. A vantagem é que Sehab ção. De novo, o auxílio de outros departamen- já dispunha de informações – as favelas e os tos foi essencial. O papel da Sehab foi, então, loteamentos irregulares já estavam mapeados o de selecionar os imóveis indicados mais ade- pelos departamentos, ligados à Sehab, que quados para serem delimitados, tornar precisa faziam a sua gestão: a Superintendência de sua delimitação e estabelecer as regras para Habitação Popular – Habi e o Departamento o funcionamento das Zeis. A indicação, neste Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 145 Sidney Piochi Bernardini caso, foi feita, na sua maioria, pelas Habi’s, terrenos ou edifícios isolados, mas grandes que recebiam indicações dos movimentos de perímetros que incluíam conjuntos de imóveis moradia, da Cohab-SP (Companhia Metropo- contíguos de vários proprietários e com várias litana de Habitação de São Paulo) e da CDHU modalidades de uso, predominando, entretan- (Companhia de Desenvolvimento Habitacional to, os não utilizados ou subutilizados. e Urbano do Governo do Estado de São Paulo). A arquiteta Ana Lucia Ancona, que coor- A Cohab, por exemplo, desenvolvia um estudo denou o processo de delimitação dessas Zeis de imóveis para constituir um banco de terras pela Sehab, argumenta que era importante da Companhia para futuros empreendimentos trabalhar critérios para viabilizar a implemen- habitacionais. Todos esses terrenos estudados tação destas zonas, já que não cabia delimitar foram indicados. todos os terrenos vagos. Esses critérios passa- Na perspectiva de se utilizar esses imó- vam, por exemplo, pela questão da viabilidade veis disponíveis para a habitação em todas as técnica e econômica, pois nem todos os imó- regiões da cidade, surgiu a ideia, então, de veis indicados eram adequados ou viáveis para se trabalhar com uma categoria de Zeis que a construção de habitação social, em razão, abrangesse imóveis na área central da cidade. principalmente, do seu preço. Uma forma de Consideradas como categoria à parte, essas trabalhar esses critérios foi introduzir regras zonas foram denominadas Zeis 3, constituídas específicas para os empreendimentos habita- tanto por terrenos não utilizados ou subutili- cionais de interesse social, categoria de uso zados (estacionamentos, por exemplo) como criada especificamente para o caso das Zeis. por edifícios verticais não utilizados ou aban- Um dos critérios de atendimento, neste caso, donados. A delimitação dessas também tinha era o de renda familiar (até seis salários mí- antecedentes, já que a Coordenadoria do Pro- nimos), mas outros, como por exemplo, tama- grama Morar no Centro, ligada à Sehab, ha- nho mínimo da unidade, restringiam o atendi- via contratado estudos para a delimitação dos mento a um universo específico de famílias ou chamados Perímetros de Reabilitação Integra- pessoas. Por outro lado, havia também a preo- da do Habitat (PRIHs). Ao incluir setores urba- cupação de que os perímetros fossem de fato nos ocupados por habitações precárias e corti- coerentes com a situação de subutilização – ços na área central, os objetivos desses eram um dos critérios, por exemplo, foi indicar imó- o de valorizar as potencialidades do bairro e veis subutilizados há pelo menos cinco anos. da comunidade, mobilizar os grupos visando Ancona lembra que a diversidade de usos era sua organização e exercício da cidadania e a uma diretriz clara do plano diretor e, portanto, inclusão social por meio de melhorias das con- o recorte mais adequado das zonas tinha que dições habitacionais. Muitos desses períme- seguir referências de uso do solo. Não se pre- tros foram, portanto, delimitados como Zeis. tendia delimitar grandes áreas ou bairros intei- Mas não só. Antigas áreas industriais aban- ros, mas estabelecer, de fato, um recorte pre- donadas nos eixos ferroviários ao longo do rio ciso daquelas propriedades que eram interes- Tamanduateí e na Vila Leopoldina também fo- santes para habitação de interesse social. Ao ram incluídas. Não foram delimitados apenas que parece, tal diretriz foi objeto de conflitos 146 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 Negociando o território com os movimentos que desejavam imprimir estratégia, nesse caso, era possibilitar a produ- perímetros mais extensos, como fizeram no ção habitacional também pelo mercado, além distrito da Mooca, cuja proposta teve que ser do poder público. No campo das modificações ajustada por Sehab, recusando boa parte das pontuais estavam as inclusões de Zeis propos- áreas indicadas pelos movimentos. tas pelos movimentos e por vereadores. Muitas Todo o trabalho de delimitação, neste foram recusadas pela equipe da Sehab, mas primeiro momento, foi realizado em no máxi- voltaram a ser propostas durante a elaboração mo três meses e as Zeis foram incluídas sem dos planos regionais. As porcentagens de HIS muitos debates. Mas quando o Projeto de Lei (Habitação de Interesse Social) e HMP (Habita- chegou à Câmara, a mobilização dos movimen- ção de Mercado Popular) obrigatórias nas Zeis tos trouxe nova luz para a questão. Segundo também foram incluídas, além dos incentivos Evaniza Rodrigues, enquanto havia certo con- em relação ao não pagamento das outorgas senso em relação às Zeis 1, as Zeis 2 e 3 esta- onerosas e o estabelecimento do coeficiente vam aquém das expectativas dos Movimentos. de aproveitamento máximo em 4 para as áreas Foi a coalizão de forças que se deu naquele centrais, gratuito para HIS. fórum que permitiu uma entrada mais efetiva Os Movimentos consideravam os períme- dos Movimentos nesta discussão. É importante tros de Zeis 2 e 3 apresentados pelo Executivo lembrar que a Conferência Municipal de Habi- insuficientes e, desde então, o trabalho junto à tação que havia acontecido em setembro de Câmara Municipal foi o de propor a delimita- 2001 tinha municiado os movimentos a discuti- ção de novas zonas. Evaniza Rodrigues conta rem propostas para a política habitacional que que a busca por novos terrenos se deu de for- passavam pela reativação dos mutirões como ma relativamente improvisada. Sem recursos forma de produção habitacional, regularização (automóveis, funcionários ou técnicos), grupos fundiária, obras de urbanização e pelo incen- dos Movimentos se organizaram para visto- tivo à moradia no Centro. Dali, a inclusão de riar terrenos e apresentá-los ao gabinete do zonas especiais orientadas para a produção da vereador Nabil Bonduki. No gabinete, um gru- moradia era um passo. po de técnicos auxiliava os grupos a localizar Na Câmara, modificações expressivas e delimitar esses terrenos no mapa da cidade. alteraram substancialmente o projeto original. Depois, eram encaminhados à Sehab para que No campo das modificações gerais, houve a efetivassem a delimitação completa. inclusão da categoria de Zeis 4 – imóveis va- Os conflitos, neste momento, vieram à gos localizados na Área de Proteção aos Ma- tona, pois boa parte das áreas indicadas pelos nanciais, pensados para servir como “áreas movimentos não foram novamente aceitas por pulmão” no processo de remoção de famílias Sehab, esbarrando naqueles critérios previa- moradoras em áreas de risco naquela zona e, mente estabelecidos. Evaniza lembra que uma no âmbito da discussão com o setor imobiliário, parte das indicações era de terrenos muito a inclusão de mais uma categoria de tipologia pequenos, abaixo do critério de tamanho es- habitacional, a de mercado popular, para aten- tabelecido e, além disso, estava a questão dos der às famílias de até 16 salários mínimos. A preços considerados elevados para viabilizar Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 147 Sidney Piochi Bernardini empreendimentos de interesse social. Quando 16, passou a ser praticado após a aprovação o Projeto de Lei chegou novamente à Câmara do plano diretor por cooperativas habitacio- Municipal, as deficiências continuavam laten- nais ou incorporadoras voltadas ao mercado tes para os movimentos de moradia. Na cha- habitacional de “renda média”. Isso aqueceu a mada “região leste 1”, por exemplo, não havia possibilidade de não ter que usar o instrumen- sequer uma área delimitada e, mesmo com a to das Zeis para realizar empreendimentos de indicação de novos imóveis pelos movimen- interesse desse mercado. tos, a configuração não se modificou. Terrenos Do outro lado está a crítica dos próprios bem localizados nas regiões leste e sudeste, setores ligados ao mercado imobiliário que não por exemplo, não tiveram a concordância por concordaram com o conjunto de Zeis 3 delimi- parte da SEHAB. Percebia-se uma tendência, tadas na área central. Demarcadas em perí- orientada pelos critérios estabelecidos, em diri- metros relativamente extensos, as Zeis 3, para gir as Zeis de “vazios” nas áreas mais periféri- Eduardo Della Manna, diretor de Legislação ur- cas da cidade. A primeira proposta lançada em banística do Secovi-SP, nunca seriam viabiliza- um boletim do plano diretor nos primórdios do das em razão dos altos preços dos imóveis se- processo já mostrava esta tendência, e o ma- lecionados. Os pouquíssimos empreendimentos pa final incluído no plano aprovado ratifica sua já produzidos, restritos à esfera do Poder Pú- posição em relação às Zeis 2. blico, demonstram a dificuldade de viabilizar as Para Evaniza Rodrigues, o tratamento Zeis 3, segundo ele. A partir de outra ótica, es- dado às Zeis 2 foi a grande falha do plano di- sa constatação também foi feita por Tsukumo retor, demonstrando um descontentamento, (2007). Ela ressalta que estudos recentes mos- ainda hoje, em relação aos resultados alcan- tram que o Centro não está desvalorizado e çados. “Este conjunto de Zeis 2 nem arranha que a demarcação das Zeis 3 partiu, portanto, o déficit habitacional atual”, diz ela. Suas crí- de uma suposição equivocada – de que a sim- ticas não param por aí. Lamenta o fato de que ples manutenção da população de baixa renda tais Zeis não estejam relacionadas com outros no Centro seria, por si, um fator de deprecia- instrumentos, como o parcelamento, edifica- ção dos valores dos imóveis. Assim também, a ção e utilização compulsórios ou o direito de autora alerta para uma crença exagerada no preem pção, por exemplo. Lembra também poder transformador dos instrumentos urbanís- que a faixa salarial estabelecida em até seis ticos, que devem estar inseridos em estratégias 12 como critério de atendi- mais arrojadas de gestão, investimentos e pro- mento acaba privilegiando apenas as famílias dução habitacional. Cabe ressaltar, neste senti- que possuem faixas salariais mais próximas do, que a participação ou intervenção dos pro- de seis, excluindo aquelas com faixas salariais prietários de imóveis, cruciais para a efetivação abaixo de três. Assim também, a permissivida- de qualquer política habitacional, não foi muito de para a instalação de usos mais diversifica- expressiva nos momentos de construção do dos em Zeis, não restritas à habitação social plano e, ao que parece, ficaram, na sua maioria, pode “deturpar”, às vezes, seu objetivo origi- alheios ao processo ou tiveram intervenções nal. O atendimento ao HMP, em faixas de 6 a muito pontuais. salários mínimos 148 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 Negociando o território Nos momentos seguintes à aprovação destinada a HIS e HMP, e desses, 50% obriga- do plano diretor, pode-se dizer que houve uma tórios para HIS e os outros 30% para HIS ou forte mobilização para a inclusão de novos HMP. Em Zeis 2 e 3, neste montante de 80%, a perímetros de Zeis, principalmente das Zeis 2, composição foi fixada em 40% para HIS e 40% demonstrando-se que o amadurecimento do para HIS ou HMP. Os outros 20% poderiam ser processo e a realização destas reuniões regio- destinados a outros usos, inclusive para HMP. nais foram essenciais para a revisão destas zo- Outra modificação importante que deve ser nas, questão que não tinha sido devidamente destacada refere-se às exceções previstas para esgotada nos momentos anteriores. O papel todos os casos de Zeis e também incorpora- dos Movimentos, na insistência de incluir novos das posteriormente na lei de uso e ocupação perímetros, resultou no aumento expressivo do solo. Foram excepcionados das destinações de Zeis. Se em relação às Zeis 1, por exemplo, obrigatórias nestas Zeis: os terrenos públi- houve um aumento de pouco mais de 23% de cos edificados ou não edificados, destinados perímetros delimitados (517 no PDE para 640 a áreas verdes e a equipamentos sociais de nos PREs), em relação às Zeis 2 e 3, houve um abastecimento, assistência social, cultura, aumento de mais de 94% de perímetros (292 educação, esportes, lazer, recreação, saúde dos PREs contra 150 do PDE). e segurança, além dos terrenos particula res Por outro lado, as negociações com o edificados ou não edificados que viessem a setor imobiliário resultaram em modificações ser destinados a equipamentos sociais, desde não satisfatórias nas regras da composição que conveniados com o Poder Público. Tais ex- de Habitação de Interesse Social (HIS) e Habi- ceções são até bem-vindas, pois assumem a tação de Mercado Popular (HMP) em Zeis. O prática corriqueira de atividades diversificadas artigo 176 do PDE estabelecia que nas Zeis 1 nos assentamentos habitacionais. O problema, e 2 era obrigatório destinar o mínimo de 70% no entanto, foi não ter se estabelecido um per- 13 da área construída para HIS, podendo o res- centual mínimo obrigatório para os empreen- tante da área ter destinação em conformida- dimentos habitacionais. Todas essas inserções de com as regras da antiga Z2 – que permitia tiveram impactos na aplicação posterior deste usos mistos – e nas Zeis 3, tal porcentagem foi instrumento, já que antigos edifícios residen- fixada em 50%, podendo o restante ser utili- ciais delimitados como Zeis 3 e que se assen- zado em conformidade às regras estabelecidas tam sobre antigas áreas verdes públicas não para a antiga Z4, que também permitia usos terão que ser obrigatoriamente reabilitados mistos. Por pressão dos setores imobiliários, tal para habitação. É o caso dos edifícios São Vi- regra foi substancialmente modificada na lei to e Mercúrio, localizados no centro da cida- de zoneamento. Em Zeis 1, estabeleceu-se que de, que foram demolidos para dar lugar a uma no mínimo 80% da área construída deveria ser provável praça. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 149 Sidney Piochi Bernardini As “emendas na calada da noite” perímetros de zoneamento em respeito a todo o processo de negociação anterior levaram-no a rejeitar as emendas. Para ele, a situação era difícil, uma vez que envolvia um vereador da Um fato que também marcou este momento base governista e, portanto, trazia emendas de controvérsias na elaboração do plano foi de interesse do governo. A rejeição foi um tan- a apresentação inesperada de um conjunto to desgastante politicamente, mas, segundo de emendas ao projeto de lei do PDE no mo- ele, era o melhor a se fazer, em coerência aos mento de sua aprovação em agosto de 2002. acordos estabelecidos no processo participati- Nabil Bonduki explica que, após todo o pro- vo. De todas aquelas emendas apresentadas, cesso de negociação com os vários setores apenas algumas foram incluídas, a contragos- participativos e com os próprios vereadores, to de vários vereadores e do próprio relator. O que já haviam solicitado a inclusão de várias desgaste foi acentuado a partir de toda a abor- emendas durante o processo, muitas discuti- dagem realizada pela imprensa que, em tom de das e incorporadas, tudo caminhava para o “caça às bruxas”, buscava os nomes dos verea- sucesso na aprovação integral do projeto. Na dores que as tinham encaminhado. semana que antecedeu à aprovação, um ve- O momento seguinte foi marcado por reador da base governista, agregado a outros um movimento de derrubada das emendas interlocutores insatisfeitos, resolveu discutir o por meio de vetos da prefeita. Esse movimento projeto, rever cada perímetro proposto para composto por setores representativos demons- as macroáreas e outras zonas, além de ques- trou a legitimidade do processo e significou tionar aspectos do texto. Assim também, al- uma intervenção mais radical da prefeita nos guns setores do Executivo interferiram e apre- vetos realizados, já que ela pretendia vetar sentaram modificações que não haviam sido apenas algumas emendas de menor importân- anteriormente discutidas. cia. A coerência cobrada pelo relator, de que No dia 21 de agosto, durante o proces- nenhuma inclusão relacionada a zoneamento so de aprovação do plano, o mesmo vereador fosse feita naquele momento, contribuiu para apresentou várias propostas para o estabele- sua decisão, consolidando todo o processo par- cimento de Corredores de Comércio e Serviços ticipativo que se realizou. Além dos vetos me- (inclusive em zonas exclusivamente residen- nos expressivos, a maior parte deles referiu-se, ciais) e que, segundo ele, já tinham sido acor- de fato, às alterações de zoneamento. dadas com o Executivo e demais vereadores. Em seguida, já na madrugada do dia 22 para o dia 23, outro vereador, esse da oposição, apresentou uma pasta contendo 150 emen- Considerações finais das substitutivas – a maioria relacionada a mudanças de zoneamento. Para Bonduki, era O processo de participação popular durante inegociá vel incluir qualquer uma daquelas a elaboração do Plano Diretor Estratégico de emendas. Sua posição contrária à inclusão de São Paulo elevou a possibilidade de tornar o 150 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 Negociando o território planejamento municipal mais democrático e institucional nas esferas democráticas de ne- aumentar a aderência entre os representan- gociação. Não se deve esquecer, por outro la- tes políticos, setores técnicos pertencentes ao do, que a abrangência territorial, o volume de quadro da administração pública e os demais participantes e a complexidade das questões agentes sociais interessados no desenvolvi- tornaram, muitas vezes, dispersivas as deci- mento urbano. Nesse caso específico, destaca- sões deliberadas, induzindo, por exemplo, à -se o papel peculiar e preponderante do Poder manutenção de recortes territoriais excessivos Legislativo com a condução do gabinete do no zoneamento municipal. vereador Nabil Bonduki que ampliou os fóruns Mesmo assim, pode-se afirmar, que, em de participação e propagou as esferas de ne- linhas gerais, esses instrumentos legais refle- gociação em dois momentos importantes da tem algumas conquistas dos vários segmentos formulação dos projetos de lei. representativos que ganharam e perderam A aprovação desse conjunto de leis ur- durante o processo. Os ganhos só poderão banísticas foi uma conquista importante, con- ser verificados após uma avaliação precisa da siderando as dificuldades intrínsecas à consti- implementação desses instrumentos. Alguns tuição de regras e disciplinas urbanísticas em trabalhos acadêmicos recentes, como o de uma cidade que possui mais de 10 milhões de Caldas (2009), já demonstraram a timidez com habitantes, onde as dinâmicas de exclusão que as Zeis 2 (imóveis vagos e subutilizados socioterritorial são evidentes, a gama de con- reservados para a construção de habitação de flitos é bastante elevada e, tradicionalmente, interesse social) vêm sendo utilizadas para a as atividades do setor imobiliário são muito produção de habitação social. Ao mesmo tem- intensas. O sucesso da aprovação destes ins- po, o Secovi-SP constatou, através de pesquisa trumentos (o plano diretor, planos regionais própria, que a aplicação da outorga onerosa e lei de uso e ocupação do solo) no período já é um sucesso e que os setores imobiliários de três anos e meio se deve essencialmente incorporaram o instrumento com grande faci- ao substancial processo de negociações em lidade. Tal sucesso pode ser comprovado pelo que os segmentos mais interessados puderam esgotamento, em algumas regiões, do chama- explicitar suas posições e disputá-las em meio do “estoque de potencial construtivo”. O volu- aos variados fóruns de discussão promovidos me considerável de recursos arrecadados com pelos principais interlocutores governamen- a venda de potencial construtivo indica, por tais. Ficou claro que, pelo menos no caso de outro lado, uma receita adicional a ser utiliza- São Paulo, encaminhamentos escusos como os da para investimentos e que já têm sido apli- das “emendas na calada da noite” constrange- cados em obras de urbanização de favelas em ram-se diante de um potencial fortalecimento Zeis 1, conforme comprovou a pesquisa. Sidney Piochi Bernardini Arquiteto e Urbanista. Mestre em Estruturas Ambientais e Urbanas e Doutor em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo. Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Paulista (UNIP). São Paulo, Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 151 Sidney Piochi Bernardini Notas (1) Es ma-se que até o final do processo com promulgação da Lei que ins tuiu os planos regionais estratégicos e a lei de uso e ocupação do solo, par ciparam mais de cinquenta mil pessoas e mais de três mil en dades. (2) Em dezembro de 2003, após o Projeto de Lei ser encaminhado à Câmara Municipal e a realização de inúmeras audiências públicas regionais e temá cas, uma liminar solicitada pelo Promotor de Jus ça Mário Malaquias determinou a interrupção do processo, alegando que a Prefeitura não havia publicado os dois projetos de lei (zoneamento e planos regionais) para a realização das audiências públicas e que os planos regionais deveriam ser discu dos junto a dois outros projetos: o plano municipal de habitação e o plano municipal de circulação viária e transportes. Na prá ca, tal interrupção demonstrava o descontentamento de alguns setores, principalmente das associações de bairros que discordavam de aspectos do zoneamento, pouco discu dos ou não atendidos nas audiências anteriores. Uma matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo, em 4 de setembro de 2003, indicava a existência de “brecha” no projeto do zoneamento, que permi a a instalação de comércio e serviços em zonas exclusivamente residenciais, questão que era absolutamente atacada pelas associações desses bairros residenciais. (3) Coeficiente de Aproveitamento é a relação entre a área construída de uma edificação e a área do terreno que ela ocupa. (4) Ins tuído pelo Estatuto da Cidade, o instrumento da outorga onerosa do direito de construir consiste na concessão que o Poder Público Municipal oferece ao particular, mediante o estabelecimento de normas no plano diretor municipal, para que possa construir acima do coeficiente de aproveitamento fixado para aquela área ou zona, mediante contrapartida financeira. A fórmula da outorga onerosa foi ins tuída com a inclusão de dois fatores: o fator de planejamento urbano e o fator de interesse social, que deveriam variar conforme a zona e os obje vos de desenvolvimento urbano e de diretrizes de uso e ocupação do solo estabelecidos no PDE. (5) A Área de Proteção aos Mananciais foi ins tuída pelas leis estaduais 898/75 e 1172/76, incidindo sobre vários municípios da Região Metropolitana de São Paulo. Com o obje vo de proteger os mananciais hídricos da região, o perímetro desta área abrangeu extensos territórios no entorno dos reservatórios hídricos des nados a abastecer sua população. No caso do município de São Paulo, o perímetro incluiu áreas no entorno dos reservatórios Billings e Guarapiranga que, mesmo com a ins tuição da lei, veram um rápido e danoso processo de ocupação irregular, comprometendo a qualidade das águas destes reservatórios. (6) O PDE considerou o coeficiente de aproveitamento mínimo aquele abaixo do qual o imóvel pode ser considerado subu lizado e máximo, aquele que não pode ser ultrapassado. (7) Coeficiente básico é, segundo o PDE, aquele que resulta do potencial constru vo gratuito inerente aos lotes e glebas urbanos. (8) Estoque de potencial constru vo é, segundo o PDE, o limite de potencial constru vo adicional, definido para zonas, microzonas, distritos ou subperímetros destes, áreas de operação urbana ou de projetos estratégicos ou seus setores, passível de ser adquirido mediante outorga onerosa ou por outro mecanismo previsto em lei. 152 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 Negociando o território (9) Contrapar da financeira é o valor econômico, correspondente à outorga onerosa, a ser pago ao Poder Público pelo proprietário de imóvel, em espécie ou em Cer ficado de Potencial Adicional de Construção – Cepac. (10) Inseridos na fórmula da contrapar da financeira da outorga onerosa incluída no ar go 213 do plano, os fatores de planejamento e social foram estabelecidos por bairros e por categorias de uso, incluindo HIS e HMP, presente nos quadros 15 e 16 do plano. (11) O ar go 171 da Lei do PDE definiu as Zonas Especiais de Interesse Social como sendo porções do território des nadas, prioritariamente, à recuperação urbanís ca, à regularização fundiária e produção de Habitações de Interesse Social – HIS ou do Mercado Popular – HMP definidos nos incisos XIII e XIV do ar go 146 desta lei, incluindo a recuperação de imóveis degradados, a provisão de equipamentos sociais e culturais, espaços públicos, serviço e comércio de caráter local. (12) Ana Lucia Ancona lembra que o teto estabelecido em seis salários mínimos teve como referência o parâmetro adotado para o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), que na prá ca tem atendido às faixas salariais acima de quatro salários mínimos. (13) O parágrafo 9º do ar go 175 considerou a possibilidade de se implantar HMP na porcentagem complementar estabelecida para a zona (30% nas Zeis 1 e 2 e 50% nas Zeis 3), podendo-se u lizar as mesmas regras de HIS, desde que a unidade habitacional vesse área inferior a 50m². Referências ASCHER, F. (2010). Os novos princípios do urbanismo. São Paulo, Romano Guerra. BONDUKI, N. (2007). “O Plano Diretor Estratégico de São Paulo”. In: BUENO, L. M. de M. e CYMBALISTA, R. (org.). Planos diretores municipais. Novos conceitos de planejamento territorial. São Paulo, Annablume. BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Programas Urbanos (2006). Banco de Experiências de Plano Diretores Par cipa vos. CALDAS, N. M. P. (2009). Os novos instrumentos da polí ca urbana: alcance e limitações das ZEIS. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. CORRÊA, R. L. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Á ca. CYMBALISTA, R. (2006). Par cipação popular no Legisla vo – Plano Diretor Estratégico de São Paulo. Brasília. Disponível em: www.cidades.gov.br HEALEY, P. (1997). Collabora ve planning. Shaping places in fragmented socie es. London, Macmillan Press. JORNAL FOLHA DE S.PAULO (2002) “Para especialistas, Projeto con nua precário”. Caderno Co diano. São Paulo, 15 de agosto de 2002. ______ (2003). “Jus ça suspende projetos de zoneamento”. Caderno Co diano, 4 de setembro de 2003. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 153 Sidney Piochi Bernardini LAMPARELLI, C. (1978). “Metodologia do planejamento urbano”. In: CAVALCANTI, M. e TOLEDO, A. H. P. de (org.). Planejamento urbano em debate. São Paulo, Cortez e Moraes. MAGLIO, I. C. (2005). A sustentabilidade ambiental no planejamento urbano do Município de São Paulo: 1971-2004. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. NERY JR., J. M. (2002). Um século de polí ca para poucos: o zoneamento paulistano: 1886-1986. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. OLIVEIRA, D. de (2000). Curi ba e o mito da cidade modelo. Curi ba, UFPR. SANTOS, B. de S. (2007). Renovar a crí ca e reinventar a emancipação social. São Paulo, Boitempo. SÃO PAULO (município) (2002). Gabinete do Vereador Nabil Bonduki. Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo – Lei nº 13.430, de 13 de setembro de 2002. São Paulo, 2002. SECOVI-SP. GeoSECOVI. MARQUES, Silvana e LUSIVO, André Rodriguez (2009). O geoprocessamento como ferramenta de análise do mercado imobiliário. Estoque de outorga onerosa residencial. São Paulo, fevereiro. Disponível em: www.secovi.com.br TSUKUMO, I. T. L.(2007). Habitação Social no Centro de São Paulo: legislação, produção, discurso. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo. VILLAÇA, F. (2010). “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”. In: DEÁK, C. e SCHIFFER, S. (org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, EDUSP. Entrevistas realizadas e citadas no artigo 1)Arquiteta Ana Lucia Ancona – Ex-coordenadora do Programa Guarapiranga (2001-2004), Coordenadora do processo de criação das Zonas Especiais de Interesse Social pela Secretaria de Habitação de São Paulo (SEHAB) para o Plano Diretor Estratégico de São Paulo. 2) Arquiteto Eduardo Della Manna – Diretor de Legislação Urbanís ca do SECOVI. 3) Evaniza Rodrigues – Coordenadora da União Nacional dos Movimentos de Moradia. 4) Arquiteto Nabil Bonduki – Ex-vereador da Câmara Municipal de São Paulo (2001-2004) e relator do projeto de Lei do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, Lei de Uso e Ocupação do Solo e Planos Regionais Estratégicos. Texto recebido em 21/out/2011 Texto aprovado em 30/nov/2011 154 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 A espacialidade degradante tendencial e o horizonte de uma educação política do espaço The tendency towards a degrading spatiality and the horizon for political space education Ulysses da Cunha Baggio Resumo Este artigo se propõe a analisar a formação progressiva de uma condição socioespacial contraditória, descontínua e desigual, submetida a uma crescente privatização e mercantilização, que se afirma como uma tendência na urbanização extensiva contemporânea. Ela se apresenta bastante difundida no mundo atual, com forte incidência no Brasil e na sua realidade urbana, não se restringindo a expressões metropolitanas, mas também recobrindo cidades médias e pequenas, constituindo, desse modo, uma geografia urbana da segregação espacial. Reverberando nas dimensões da vida cotidiana, esse movimento contraditório recrudescido suscita insurgências e práticas de caráter reativo, pelas quais se abrem possibilidades a formas de apropriação e uso do espaço, mais especificamente da cidade. Esse cenário nos estimulou a pensar sobre a importância e a necessidade de uma educação política do espaço para a contemporaneidade. Abstract This article aims to analyze the progressive formation of a contradic tor y sociospatial condition, discontinuous and uneven, submitted to increasing privatization and commodification, that has been consolidating as a trend in contemporary extensive urbanization. It is spread out in the current world, with strong incidence in Brazil and in its urban reality, not only in metropolises, but also in small and medium cities, thus constituting an urban geography of space segregation. Reverberating in the dimensions of daily life, this contradictory and intensified movement raises insurgencies and practices of a reactive nature, which open up possibilities for the forms of appropriation and use of space, more specifically of the city. This scenario has encouraged us to think about the importance and necessity of a political space education for contemporaneity. Palavras-chave: segregação espacial; alienação socioespacial; apropriação do espaço; representação do espaço; educação política do espaço. Keywords : space segregation; sociospatial alienation; appropriation of space; representation of space; political space education. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 Ulysses da Cunha Baggio Introdução urbanístico e da memória da cidade, buscando também assegurar condições favoráveis à vida comunitária no bairro, o que, não raro, envolve O distanciamento gera solidão e desespero, e “encontro com o nada”, cinismo, gestos de desafio. [...] Ou converte-se de súbito [...] na adoção ardente de um ensinamento fanático que, por uma simplificação monstruosa da realidade, finge responder a todas as perguntas. (Schumacher, 1983, p. 73) enfrentamentos com o Estado (Baggio, 2005). Nesse sentido é que se faz necessária certa cautela quanto à aferição de suas reais possibilidades e potencialidades, constituindo um equívoco fazer tábula rasa dessas práticas. Compreende-se que, no conjunto, elas não se traduziriam como sujeitos privilegiados da História, mas mais propriamente como agentes Uma aferição mais atenta da situação de nos- capazes de transformar determinadas situa- sas cidades possibilita-nos a constatação de ções socialmente indesejadas nas comunidades cenários os mais diversos, que recobrem tanto em que atuam. Estaríamos, então, diante de expressões da irracionalidade como de pos- uma crise das formas tradicionais de agregação sibilidades mais favoráveis e factíveis à vida e representação, com a precipitação de novas e à existência. Interessam-nos, mais especifi- forças e atores sociais, bem como de novas es- camente, certas ações e práticas socioespa- tratégias de ação. ciais pelas quais se vislumbram a emergência Se o dinheiro e o mercado adquiriram e o desenvolvimento de novas perspectivas à maior poderio e projeção no mundo atual, sociedade na sua interface relacional com o pode-se dizer que a política e inventividade território, principalmente aquelas dotadas de social também se redefinem e se fortalecem maior autonomia e portadoras do sentido da diante da marcha inexorável do capital e do autogestão, que operam, portanto, mais inde- mercado, situação na qual o econômico e o pendentemente do Estado e de suas interfe- político não se projetam como instâncias mu- rências, afastando-se, desse modo, de possíveis tuamente excludentes, sendo elas integrantes cooptações. de um mesmo processo histórico, isto é, o Assim, o mundo atual nos revela um uni- desenvolvimento socioespacial contraditório verso plural de práticas e reivindicações sociais e desigual do capitalismo. No cerne de suas (movimentos de moradores, lutas ambientais, próprias contradições formam-se virtualidades etc.), nos mais diversos lugares e regiões, com reativas, que sinalizam a possibilidade de uma conformações e objetivos variados, inclusive outra via para o desenvolvimento do homem, e significativamente também no Brasil. Neste bem como de territórios que lhes sejam mais território vêm se desenvolvendo movimentos compatíveis. Aqui se pode falar da construção sociais no campo e na cidade bastante auspi- de territórios de utopia, ou ainda de uma con- ciosos, tais como movimentos de moradores dição socioespacial desejada, forjada cotidia- que lutam em prol da defesa do patrimônio namente pelos próprios interessados. 156 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 A espacialidade degradante tendencial... O território-mercadoria e a conformação de uma espacialidade urbana de enclaves: segregação espacial e alienação do espaço a se estabelecerem próximos uns aos outros. Os condomínios verticais (prédios de apartamentos, também de acesso restrito), por sua vez, terão sua localização condicionada pela proximidade ao local de trabalho, de possibilidades quanto ao usufruto de oportunidades de emprego, acesso a serviços de saúde Estamos submetidos a uma condição espacial e educação – sobretudo privados –, ambiente marcada pela prevalência do valor de troca e favorável à realização de bons negócios, pro- pela difusão do mundo da mercadoria, trazen- ximidade a áreas comerciais e outros serviços do em sua esteira rápidas e profundas trans- (tais como de lazer e entretenimento). Esses formações na cidade. Elas respondem pela condicionantes à sua localização sugerem uma produção de novas formas e funções urbanas, escolha seletiva de espaços na cidade, capazes que redefinem os referenciais da vida na urbe, de atender certas demandas e anseios de seus ao mesmo passo que os modos de vida de seus moradores e usuários. habitantes. Pode-se oferecer como exemplo a Tais formas sugerem uma arquitetura de proliferação de habitats autossegregados, es- enclaves, confinamento, reclusão e individuali- pecialmente os “condomínios urbanísticos” e dade. Dado que praticamente não apresentam os designados “pseudocondomínios” ou lotea- interações e contiguidades territoriais no tecido mentos de acesso controlado, restrito, que se urbano, elas praticamente interditam a mobili- difundem na America Latina e, mais particular- dade espacial dos citadinos, constrangendo a mente, no Brasil. Aqui eles emergem a partir locomoção das pessoas e, portanto, do direito dos anos 70 como uma característica marcante de ir e vir. Nega-se, ademais, o próprio sentido de seu processo de metropolização, que en- histórico da cidade, entendido como o lugar, volve predominantemente segmentos de alto por excelência, de promoção do encontro e da poder aquisitivo, mas também, e mais recen- sociabilidade, portanto de realização da polí- temente, segmentos de classe média. O desen- tica. A produção e o desenvolvimento destas volvimento dessas formas urbanas, contudo, formas urbanas vêm se afirmando como uma não tem se mostrado como uma especificidade tendência na urbanização contemporânea, dos grandes centros, passando também a ocor- sendo, sobretudo, o condomínio vertical (uma rer, a partir dos anos 90, em cidades médias e espécie de edifício autista), junto com os bol- até mesmo em certas cidades pequenas. sões de pobreza (favelas, principalmente) e os De modo geral, a maioria dos condo- shoppings centers, em menor grau, que respon- mínios e loteamentos “fechados” horizon- dem pela reconfiguração atual da paisagem ur- tais (espaços de residências uni-familiares de bana. A constituição dessa genuína morfologia acesso controlado) encontra-se nas áreas pe- de enclaves suscita questionamentos diversos, riféricas das cidades, com sua localização pró- tais como do planejamento e o ordenamento xima a rodovias ou grandes eixos de circula- territorial, de implicações na forma social e de ção intraurbanos, revelando certa tendência sua correlata espacialidade, da violência e da Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 157 Ulysses da Cunha Baggio intolerância entre os desiguais, de constrangi- de exploração, que recobre o território sob os mentos e restrições à locomoção urbana, do vetores de uma impetuosa apropriação privada aprofundamento das contradições urbanas e a e seletiva do espaço. Ela indica claramente que crescente aproximação geográfica de estrutu- estamos diante do recrudescimento da forma- ras díspares. ção da anticidade, derivação da submissão da Para além das indagações suscitadas, cidade à lógica da mercadoria, pela qual ela se estas conformações socioespaciais autossegre- afirma e se projeta como lócus de produção e gadas impõem e sedimentam barreiras físicas reprodução do capital, em detrimento da vida e sociais entre as pessoas em meio ao espaço e da política. urbano, recrudescendo diferenças. Elas, segu- Sucede que a produção de mercado- ramente, representam grandes desafios às po- rias, ao se objetivar também como produção líticas públicas e ao planejamento urbano, em do próprio espaço, instaura uma “ambiência que pese o fato de se difundirem concomitan- mística” que recobre os produtos do trabalho, temente ao crescimento de uma cidade para- obstruindo, assim, seu reconhecimento – ao lela: precária, clandestina e ilegal – submeti- plano do intelecto – na qualidade de produtos da, em larga medida, ao poder e ao controle e formas sociais, pois engendradas por rela- armados do narcotráfico. Conforma-se, desse ções sociais do trabalho. O que significa que modo, um construto urbano marcadamente os fundamentos sociais dessa produção são fragmentado e descontínuo, no qual suas ex- escamoteados e obscurecidos, esvaziando-se a pressões territoriais contraditórias e desiguais dimensão social (e humana) do trabalho. Sob se apresentam cada vez mais aproximadas essa lógica é que as relações sociais que o en- espacialmente, não obstante mais estranhas e volvem se mostram como relações coisificadas refratárias umas às outras, sugerindo-nos, des- ou objetuais, de modo que as relações sociais sa forma, o sentido da dissociação urbana e da das pessoas não aparecem como suas relações alienação do espaço. pessoais, mas sim sob a forma de relações so- Esse cenário sinaliza uma condição ter- ciais das coisas, dos produtos do trabalho. Daí ritorial urbana progressivamente tensionada poder-se falar de certo alheamento do espírito pelo aprofundamento das desigualdades, com em relação à produção do próprio espaço, so- a riqueza e a pobreza se posicionando lado a bretudo a cidade, que se conforma, sob esses lado, com toda a sorte de conflitos que essa es- fundamentos, como um construto “estranho”, trutura contraditória engendra. Nesse sentido, acerca do qual as pessoas pouco, ou nada, se pode-se postular que essa conformação se nos reconhecem e/ou se identificam. Portanto, essa apresenta como uma oposição socioespacial produção, que também se traduz como produ- degradante, em que a regra passa a ser a des- ção de uma segunda natureza, comporta intei- confiança e a insegurança generalizadas, numa ramente o sentido do trabalho alienado, dado espécie de “guerra” de todos contra todos. que expressa o domínio dos objetos (mercado- São evidências que matizam uma dinâmica rias) e das instituições sociais, os quais, pro- social submetida à lógica do capital e do mer- duzidos pelos homens, operam amplamente cado, sob os fundamentos de uma economia sobre os próprios homens, submetendo-os, 158 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 A espacialidade degradante tendencial... assim, a forças tornadas incontroláveis, sen- de condomínios “fechados” que abarcam do clamorosamente plausível a ideia de uma logradouros públicos em seus domínios, e que, alienação socioespacial. Trata-se da produção por isso mesmo, não poderiam ser “fechados”, e da conformação de uma cidade na qual seus conformando, desse modo, uma situação não habitantes, em larga medida, não interferem, prevista legalmente. tanto no plano da concepção como no proces- Mais especificamente no plano da ges- so de sua estruturação, embora se reconheça tão, a atuação do Estado na cidade tem se certo avanço de políticas públicas urbanas de dado como um negócio, pela qual a cidade caráter participativo. Perde-se, praticamente, é tratada como uma mercadoria, como um o sentido que a cidade e o urbano assumem, empreendimento, sendo preparada para se e, desse modo, suas reais implicações, para tornar competitiva, rentável. Isso evidencia o qual a produção social de suas formas tem que as normas do mercado tendem a configu- muito a dizer; formas essas, como os condomí- rar as normas públicas, dando-nos a ideia de nios, que se tornam social e ideologicamente que são os negócios que governam a cidade naturalizadas, operando nas mentes subverti- e não os governos (Santos, 1999, p. 15). Nes- das e fetichizadas como verdadeiros símbolos se sentido, a atuação dos empresários urba- de ascensão social, elevadas à condição de nos torna-se proeminente e decisiva quanto à metas e projetos de vida. constituição e conformação da urbe, atuação Pão e circo não podem compensar ta- que ocorre sob o estímulo e a anuência do Es- manho dano na sociedade e na vida urbana, tado, o qual, por meio das legislações urba- sociedade que, premida por crescentes contra- nas, transforma o espaço de acordo com os dições, opera pelo escapismo (aí incluso o de interesses do grande capital, especialmente caráter territorial) e pela agressão, insuflando os capitais corporativos. Essa condição socio- situações grotescas e indesejadas na vida e na espacial se afirma a despeito de instruir a pro- existência sociais, compondo uma situação de dução de uma espacialidade marcada pelo es- certa imbecilização socioexistencial que ultraja vaziamento da coletividade e da solidariedade a natureza humana. O que nos incita, ao lado urbanas e, desse modo, da retração progres- de outras razões, a indagar sobre os fundamen- siva do espaço público (em declínio notório), tos dessa sociedade e das conformações que o que impacta substancialmente a cidadania assume a sua correlata espacialidade, a qual, e seu sentido. Desse modo, as pessoas vão em essência, os revela. deixando de se reconhecer no espaço onde A proliferação de condomínios e “pseu- vivem, descolando-se dele sob os efeitos de docondomínios” sabidamente encontra um uma lógica devotada à competitividade e a aparato poderoso no aparelho do Estado, privatização da vida. Assim, a rua, cada vez que responde pelo controle das operações mais, se transmuta em via de fluxos e de pas- de normatização do uso e do parcelamento sagem, perdendo sua condição histórica de do solo urbano, muito embora ocorram nesse promoção do encontro e de socialização, pro- universo certas práticas construtivas que se blema que assume maior contundência nos dão à margem da legislação, como é o caso grandes centros, sobretudo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 159 Ulysses da Cunha Baggio No plano da vida cotidiana (âmbito em Pode-se admitir, nesse sentido, que a con- que se estabelece o embate dialético entre tro- vivência e a ocorrência de relações mais diretas ca e uso), regida pelo urbano e estreitamente entre as pessoas no espaço urbano não só es- relacionada e condicionada pelo Estado, o tem- timulariam um sentido mais humano à cidade, po (e as relações sociais), à medida que se dis- como também sentimentos de pertencimento tancia dos ciclos naturais, mostra-se progressi- e afeto por ela, componentes fundamentais à vamente como tempo econômico, quantitativo, civilidade e à cultura pública, o que solicita o isto é, como tempo de trabalho, em detrimento (re)aprendizado da convivência e o exercício da do tempo humano e social, o que constrange e tolerância, que só se realiza sob condições de- subverte relações preexistentes. A concepção e mocráticas mais efetivas, ou ainda sob plenas a experiência do tempo tornam-se, assim, con- condições de emancipação social. tábeis, e a vida urbana, ritmada pelo tempo do Embora a cultura racionalizante capitalis- trabalho, suscita uma concepção quantitativa ta incida amplamente na sociedade e no espa- bastante difundida na sociedade. Essa condi- ço, há descontinuidades e situações pelas quais ção, de acordo com Erich Fromm, traz impli- podem se precipitar certas insurgências sociais cações na própria “orientação do caráter” das não alinhadas a ela, através das quais a apro- pessoas, a que ele designa como “orientação priação do tempo e do espaço pode ocorrer mercantil”, cujas raízes estariam “na impres- sob a perspectiva de uma maior valorização do são de que se é também ‘mercadoria’ e do va- humano, que, ao objetivar-se nos lugares por lor pessoal de cada um como valor de troca”. modos territoriais de vivência, o redefiniria pe- A concepção mercantil de valor, o destaque dado ao valor de troca antes que ao valor de uso, levou a uma concepção semelhante de valor aplicável às pessoas e particularmente à própria pessoa de cada um. [...] Na orientação mercantil, o homem enfrenta suas próprias forças como mercadorias dele alienadas. Não está unificado com elas, pois estão dissimuladas para ele, porque o que importa não é sua realização pessoal ao empregá-las, e sim seu sucesso em vendê-las. Tanto suas forças quanto o que elas criam se afastam, tornam-se algo diferentes de si, algo para os outros julgarem e usarem. [...] A premissa da orientação mercantil é a vacuidade, a ausência de qualquer qualidade específica que não seja suscetível de modificação, pois qualquer traço persistente de caráter poderá algum dia entrar em choque com as exigências do mercado. (Fromm, 1978, pp. 65-76 passim) 160 lo sentido do uso. Daí valorizarmos a fecundidade de experiências socioespaciais livres, que se objetivam como formas e práticas (como certos movimentos de moradores de bairro na luta pelo resguardo e preservação de patrimônio arquitetônico-urbanístico bem como modos territoriais de vivência, movimentos de cultura de arte e música em periferias e áreas centrais da cidade, etc.) com as quais a vida cotidiana se desenrola na cidade, mais independentes ou distanciadas de funcionalismos e dirigismos do Estado, uma vez que este não se apresenta aqui como mediação única ou exclusiva entre as pessoas e sua liberdade, representando, por assim dizer, efetivas utopias urbanas do desejo, dotadas de um caráter libertário, pois mais espontâneas e ao gosto de seus atores. Nesse sentido, elas encerram virtualidades luminosas quanto à constituição de outra espacialidade, Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 A espacialidade degradante tendencial... em que pese o fato de serem as práticas sociais de uma miríade de atores/agentes, geogra- voluntárias de vivência aquelas que prescre- fizam processos e situações sociais, a realiza- vem maior sentido à vida, capazes de precipitar ção da vida e da existência nas suas mais va- a constituição de espaços mais estimulantes e riegadas expressões e especificidades. Nesse influenciadores, forjados por práticas de apro- sentido, a apropriação pode ser compreendida priação e uso mais qualitativo de lugares. Uma como os diversos modos pelo qual o espaço é vez que indagam a possibilidade de novas vias ocupado e usado, tanto por formas materiais à cidade e ao urbano, elas incitam à problema- (objetos), como por atividades inscritas ter- tização da alienação política e de uma forma ritorialmente (que configuram os usos da ter- de socialização sob os influxos e modulações ra), e ainda por indivíduos e segmentos sociais do capital e do mercado, o que vale dizer de variados. Quando a apropriação do espaço se uma socialização não política. Vale lembrar, a realiza de forma sistematizada e institucionali- propósito, que o sentido maior da política é a zada ela pode envolver a produção de formas liberdade. Abre-se, assim, uma perspectiva pela territorialmente determinadas de solidariedade qual se pode pensar a cidade não apenas como social, operando, ademais, como uma efetiva ela é, mas também como ela pode ser a partir atribuição simbólica e valorativa de lugares, de práticas, virtualidades e sobrevivências irre- necessária à própria reprodução da sociedade. dutíveis do tempo presente. Isso vale dizer que as formas podem adquirir ressignificação socioespacial, de modo a atender necessidades não previstas e não contem- O espaço sob uma tensão objetivada pladas, não raro negadas pelo próprio Estado. A apropriação, portanto, está inserida no universo das relações sociais e recobre práticas sociais de naturezas diversas sobre o espaço, Sob os vetores de uma massiva mercantiliza- ações empreendidas por sujeitos sociais nos ção, o espaço é submetido à potencialização lugares, com as quais eles são representados do conflito entre valor de uso e valor de troca, e interpretados, em que pesem mediações da entre demandas referenciadas à existência e à técnica, da política e das ideologias. A apro- vida, de um lado, e de apropriações do espaço priação do espaço, bem como seu uso não para fins de obtenção de algum benefício eco- apenas se dão desigual e fragmentadamente, nômico e renda, de outro. Essa tensão é insepa- como também se mostram dotados de certa rável da mercadoria e, portanto, do próprio es- flexibilidade em seu processo de realização, paço, tensão que se objetiva como um conflito como bem se pode constatar no universo dos efetivamente socioespacial, integrando, assim, problemas urbanos, tais como a precarieda- o mundo prático-sensível. de das condições de moradia para boa parte A apropriação se insere no universo da da população, insuficiência e degradação de política, portanto é inerente ao processo social, infraestruturas técnicas e sociais, baixa ofer- pela qual a sociedade na sua diversidade, por ta de áreas de lazer, dificuldades no trânsito, meio da atuação permanente e multifacetada entre outras expressões. À medida que elas se Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 161 Ulysses da Cunha Baggio revelam bastante impactadas (e submetidas) pela proeminência do valor de troca, constrange-se a condição da cidade de conter a inerência histórica de um uso, que assim se revela Práxis sociais e cidadania: horizonte para uma educação política do espaço pela transformação do espaço de valor de uso em valor de troca, ou ainda, mercadoria, movi- Esse acirramento das contradições urbanas, mento progressivo que impõe a dissociação e o tanto ao plano do conflito entre capital e tra- alheamento do homem em relação ao espaço, balho como no do consumo coletivo e da re- que assume, desse modo, uma existência abs- produção social, reverbera com grande inten- trata e alienada, própria do mundo da merca- sidade num dos papéis fundamentais que a doria; mas também, é importante salientar, uma cidade deveria cumprir, isto é, o de assegurar existência concreta, pois objetivada no mundo condições aceitáveis e melhoradas à qualidade prático sensível, portanto no próprio espaço. de vida de seus habitantes, foco de atuação Sobretudo nos países não desenvolvidos, principal dos movimentos sociais urbanos. Para essa conformação urbana marcadamente con- além de uma luta empreendida para a conquis- traditória carrega o sentido de uma urbanização ta específica de bens diversos (moradia, áreas perversa, que recobre processos de segregação de lazer, equipamentos urbanos, etc.), estas forçada ou induzida, bem como de autossegre- práticas, bem como seus motivos, evidenciam gação, expondo, de um lado, formas de inserção a necessidade quanto à obtenção de condições territorial precária ou perversa (como favelas, de uso da cidade e, nesse sentido, da reconstru- cortiços, loteamentos autoconstruídos) e, de ou- ção de uma efetiva esfera pública, em declínio tro, a proliferação de bairros jardins, shoppings notório. As diversas práxis sociais insurgentes, centers e condomínios (expressões de uma ur- tais como movimentos de luta pela moradia, banização progressivamente privada), que afir- são, pela nossa compreensão, indicativas de ma a condição de uma cidade dividida, tensa uma politização do uso do espaço na cidade, e monitorada. Essa conformação cindida aos que se identificam com formas de apropriação fragmentos desnuda uma progressiva polariza- e uso mais condizentes aos desejos e deman- ção social e espacial, refletindo uma crescente das mais efetivas dos próprios interessados. dualização da sociedade e de polarização do David Harvey, ao analisar a natureza, o mercado de trabalho, que interagem com a dua- sentido e as potencialidades dos movimentos lização das estruturas urbanas. sociais, assinala que: 162 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 A espacialidade degradante tendencial... Movimentos de oposição às destruições do lar, da comunidade, do território e da nação pelo fluxo incessante do capital são legião. Mas também o são os que se opõem às rígidas restrições de uma expressão puramente monetária do valor e da organização sistematizada do espaço e do tempo. E, o que é mais importante, esses movimentos vão bem além dos domínios da luta de classes em todo sentido estrito. A disciplina inflexível dos horários de trabalho, dos direitos de propriedade organizados de maneira imutável e de outras formas de determinação espacial gera amplas resistências por parte de pessoas que querem eximir-se dessas restrições hegemônicas do mesmo modo como outros recusam a disciplina do dinheiro. E, de quando em vez, essas resistências individuais podem tornar-se movimentos sociais que visam liberar o espaço e o tempo de suas materializações vigentes e construir um tipo alternativo de sociedade em que o valor, o tempo e o dinheiro sejam compreendidos de novas formas bem distintas. Movimentos de toda espécie – religiosos, místicos, sociais, comunitários, humanitários, etc. – se definem diretamente em termos de um antagonismo ao poder do dinheiro e das concepções racionalizadas do espaço e do tempo sobre a vida cotidiana. A história desses movimentos utópicos, religiosos e comunitários atesta bem o vigor desse antagonismo. De fato, boa parte da cor e do fermento dos movimentos sociais, da vida e da cultura das ruas e das práticas artísticas e outras práticas culturais deriva precisamente da infinita variedade da textura de oposições às materializações do dinheiro, do espaço e do tempo em condições de hegemonia capitalista. (Harvey, 1992, p. 217) e desafios que eles enfrentam, no conjunto eles sintetizariam uma busca pela conquista do direito à cidade, imprescindível à criação de condições à reprodução social. Segundo Lefebvre (1991), o direito à cidade integra o universo dos direitos que definem a civilização, os quais “abrem caminho” na seara de “condições difíceis” da sociedade capitalista. Embora esses direitos sejam “malreconhecidos” eles gradativamente tornam-se “costumeiros antes de se inscreverem nos códigos formalizados. Mudariam a realidade se entrassem para a prática social: direito ao trabalho, à instrução, à educação, à saúde, à habitação, aos lazeres, à vida”. O direito à cidade compreenderia, assim, não o direito à “cidade arcaica”, mas sim o direito “à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais, etc.” (Lefebvre, 1991, p. 143). Assim, o direito à cidade impõe a necessidade quanto à existência de condições extensivas de uso do espaço tangíveis a toda a cidade, e não apenas a determinadas parcelas dela, operando, desse modo, como uma condição imprescindível a uma efetiva promoção da cidadania. O fomento e a garantia desse estado de direitos implicariam a própria transformação das práticas urbanas, bem como no processo de constituição das cidades. Evidencia-se, portanto, que a noção de cidadania comporta uma importante dimensão geográfica, que intervém em seu estatuto ontológico, à medida que não há cidadania possível que prescinda do território, como bem o revela, por exemplo, a ideia de direito a cidade. É Embora se reconheça a diversidade dos nesse sentido que Santos (1993, p. 116) postula movimentos sociais urbanos e as dificuldades que “[...] é impossível imaginar uma cidadania Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 163 Ulysses da Cunha Baggio concreta que prescinda do componente materiais conquistados por estas lutas, tais co- territorial”, exercendo interferências importan- mo moradia, benfeitorias urbanas, etc., não po- tes na vida das pessoas na cidade. E acrescenta: dem ser negligenciados pela análise, uma vez [...] o valor do indivíduo depende do lugar em que está e que, desse modo, a igualdade dos cidadãos supõe, para todos, uma acessibilidade semelhante aos bens e serviços, sem os quais a vida não será vivida com aquele mínimo de dignidade que se impõe. [...] Uma repartição espacial não-mercantil desses bens e serviços, baseada exclusivamente no interesse público, traria, ao mesmo tempo, mais bem-estar para uma grande quantidade de gente e serviria como alavanca para novas atividades. (Santos, 1993, pp. 116-117) que sem eles a existência não alcança condições mais favoráveis e melhoradas na cidade e na vida urbana, tornando a figura do cidadão uma mera ficção ou caricatura. Considerando-se que a cidadania implica o acesso democratizado a serviços e bens urbanos básicos, ela se articula à formação de um espaço público na cidade, sobre o qual recaem as forças do mercado e os desígnios do consumo, impactando e reduzindo sua existência. Os processos de especulação ampliada do solo urbano estão na base dessa condição mortifi- Decorre que, à medida que a cidadania cante do espaço público na cidade, que revela incorporasse o território em sua base, ela seria a prevalência do valor de troca no território. Por então capaz de imprimir maior eficácia quanto essa via, as relações de sociabilidade, de identi- ao tratamento de problemas sociais no nível dade e vínculo com o lugar são constrangidas e econômico, político e social. Dado que ela está redefinidas, mas não propriamente eliminadas inserida no universo das relações políticas, ad- de forma absoluta diante dos limites encon- quire, assim, uma efetiva expressão geopolíti- trados no movimento de realização geográfica ca, pois as relações políticas e o território, para do valor de troca. As possibilidades quanto a além de interagirem recíproca e estreitamente, uma possível revalorização do espaço público figuram na base da formação e do exercício do não se restringiriam, pelo nosso entendimento, poder. Ademais, não se pode perder de vista o à esfera do Estado, mas fundamentalmente a fato de que a efetiva realização da cidadania e determinadas práticas de (re)apropriação so- seu exercício pressupõem o direito a uma in- cioespacial inventivas e dotadas do sentido do serção digna na cidade, isto é, de determinadas uso social coletivo, para as quais o poder pú- condições que favoreçam o uso social e coleti- blico, é bem verdade, pode empenhar esforços vo de forma permanente na cidade. O próprio importantes, necessários e urgentes. É nesse percurso das lutas sociais urbanas se revela sentido que determinadas formas urbanas po- como um campo de experiências e aprendiza- derão assumir outras e novas funções que refli- do social politicamente profícuo, pelo qual a tam o interesse social e público, e não apenas construção da cidadania pode ser forjada. Afo- interesses particulares específicos. O espaço ra questionamentos se o percurso dessas lutas poderá se tornar, assim, aquilo que a sociedade é ou não mais importante que seus resultados, deseja que ele seja, o que também envolve a há que se considerar que os serviços e os bens mobilização do desejo no sentido da mudança 164 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 A espacialidade degradante tendencial... de nossas subjetividades, práticas e comporta- libido mercantilizada, compondo um cenário mentos, mais especificamente no que se refere de transmutação social que talvez melhor se à consecução de condições mais favoráveis à identificasse com a imagem de um hospício vida e à existência. Isso implicaria esforços per- econômico-social, uma espécie de reino do manentes na busca pela superação da incon- homem-coisa e seu apetite licencioso por mer- gruência estabelecida na vida cotidiana entre, cadorias, as mais diversas e inúteis. Sob esta de um lado, as nossas vontades e desejos e, de condição mortificante o viver tornou-se insípi- outro, o curso dos acontecimentos, sob contra- do, não raro associado a problemas crônicos dições recrudescidas do capitalismo globaliza- de depressão, na qual a sociedade se torna, a do de égide financeira. passos rápidos, paranóica, acuada e agressiva. Esta mudança implica, por sua vez, a su- A realização desse percurso requer a peração do individualismo, enraizado no egoís- valorização do princípio político da autoges- mo e na concorrência mercadológica, aspectos tão, afastando-se, portanto, da submissão à que se tornaram na sociedade atual princípios lógica do estatismo e do mercado. O que não fundamentais para a conquista do poder. Daí a se confunde com uma via orientada à supres- importância de um necessário horizonte políti- são do Estado, mas sim à constituição grada- co à educação, que incorpore e valorize a di- tiva de uma sociedade capaz de fazer valer mensão espacial em seus propósitos maiores, democraticamente suas próprias demandas e abrindo-se, assim, um novo horizonte quanto à desejos diante das instituições, forjando sua formação e ao desenvolvimento de uma edu- própria transformação, sujeitando-as ao pleno cação política do espaço orientada para a vida controle da sociedade. O que vale dizer que o e para a liberdade, tanto quanto seja possível, Estado, sob essa perspectiva, não é tomado que viriam acompanhadas de um imprescindí- como um agente protagonista, mas mais pro- vel e sólido senso de responsabilidade socioes- priamente como auxiliar. Trata-se, portanto, da pacial, que é de toda a sociedade. possibilidade de se forjar formas de vida mais Sucede que o sentimento e a necessida- intensas, mais ricas em diversidade, capazes de da liberdade operam como uma condição de se organizar e evoluir sob a influência e a imprescindível e fundamental da existência, interferência direta dos próprios interessados, imbricada em sua efetiva realização no espaço. tendo-se aqui a convicção de que só dessa for- A restrição ou, ainda mais, a supressão desses ma o espaço será aceitável. dois aspectos na vida social respondem pelo Desse modo, a perspectiva que se abre declínio e pela desaparição tanto do espírito é a de consecução de práticas socioespaciais crítico quanto do desejo a uma inserção par- capazes de conduzir à superação da condição ticipativa e ativa na sociedade, em seu difícil atual de mortificação do espaço e da vida, que e pluralizado movimento de transformação, impõe limites à realização da cidadania. Valo- deixando-nos, assim, uma vida amesquinhada rizam-se, assim, ações portadoras do sentido e reduzida, submetida intensamente ao consu- da reunião e da cooperação, ao invés de forças mismo dirigido e desenfreado, ao espetáculo que operam pela dissociação, que respondem multifacetado e à ejaculação vulcânica da pela fragmentação e atomização reinantes; Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 165 Ulysses da Cunha Baggio ações com potencialidades de forjar as bases portanto, de se pensar acerca de formas de de uma territorialidade de caráter mais soli- apropriação possível no mundo atual, sob inci- dário, favorável à realização mais efetiva de dência de uma progressiva privatização e mer- uma condição cidadã. Essa territorialidade cantilização do espaço, da especulação imobi- compreen deria o conjunto das relações que liária e, de forma correlacionada, da alienação possibilitam aos diversos grupos sociais fazer socioespacial. Segue-se daí que as contradições valer seus interesses no território, tornado recrudescidas do capitalismo globalizado em lugar de vida. Ela se inscreveria como um fe- crise suscitam e induzem dinamismos e insur- nômeno existencial, uma experiência possível, gências de variados matizes no âmbito da rela- por meio da qual um grupo ou indivíduo ad- ção sociedade/espaço. quire consciência do seu território de vida, fa- A questão relativa à apropriação do es- zendo as possibilidades operar como possibili- paço e à formação da(s) territorialidade(s) no dades concretas, ou ainda do que poderíamos âmbito do cotidiano capitalista, sobretudo na qualificar como utopias concretas do desejo contemporaneidade, encerra dificuldades e libertário, irmanado com a autonomia (va- interrogações na sua análise, entre as quais a lor central da vida ética) e a vida digna (mais da conformação de uma ambiguidade entre o identificada com um outro valor, para além do real e sua representação. Ademais, a própria valor de troca, isto é, um valor calcado no sen- noção do que se entende por representação so cooperativo, na ajuda mútua e no trabalho é bastante polêmica, oscilando desde inter- autônomo associado e de caráter autogestio- pretações que a consideram uma ilusão, uma nário, bem como em níveis mais desenvolvidos quimera, isto é, uma expressão descolada do de afetuosidade entre as pessoas). real, ou ainda, uma situação não verdadeira, até leituras que a tomam como parte integrante e formativa do próprio real, havendo ainda Apropriação, territorialidade e o problema da representação (e da representação do espaço) compreensões menos polarizadas que a situam num universo intermediário, ou seja, um misto de real e de sua figuração. Trata-se aqui de operar esta categoria, a representação, numa perspectiva geográfica, socioespacial. Desse O uso cotidiano do território, ou ainda, de um modo, a representação do espaço se traduz por determinado lugar expõe uma relação inse- um conjunto de elaborações discursivas, ima- parável entre apropriação do espaço e terri- géticas e cartográficas realizadas por atores torialidade, em que pesem, na análise da sua sociais diversos sobre a percepção e o entendi- dimensão e extensão, os limites ou restrições mento de situações sociais e ambientais do es- à apropriação espacial na contemporaneida- paço. Compreendemos que estudos e análises de capitalista, advertindo-se, contudo, que sobre as representações do espaço constituam as noções de limite e restrição relativas a ela aportes valorativos ao conhecimento dos luga- não significam necessariamente sua impossibi- res e de suas especificidades. Desse modo, eles lidade, sua não realização absoluta. Trata-se, podem proporcionar subsídios a certas práticas 166 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 A espacialidade degradante tendencial... de gestão (cogestão e autogestão) de caráter âmbito do social engendram-se fronteiras e participativo, mais democráticas e orientadas limites, esses limites não são automáticos e ao desenvolvimento e ao exercício de ações absolutos, uma vez que o social é, por excelên- (políticas) devotadas a um melhor desempe- cia, o universo relacional e comunicacional no nho e adequação de processos socioespaciais, qual emergem proposições de novas possibili- redirecionando-os em bases mais aceitáveis, dades e ações. pois afetam direta e indiretamente a vida das Portanto, não estariam as ações huma- pessoas, que envolve o direito e a liberdade de nas norteadas pelas representações? Elas não se determinar a(s) forma(s) do nosso espaço de modelam comportamentos, práticas sociais? vida e trabalho, dos modos de sua organização, Ao integrar a esfera existencial, portanto, da o que pressupõe o exercício da responsabilida- vida, a representação (e a representação do es- de ao que é comum a todos. paço) não seria ela própria parte da realidade? Há que se atribuir a devida importância Pensamos que sim, até porque se vive também e atenção ao fato de que, sob os influxos da por meio dela, com expressões variadas. O modernização e da fragmentação do espaço na procedimento de apartá-la do real, ou tomá-la atualidade, avançam produções e arranjos ter- como uma espécie de “real distorcido”, conota ritoriais sob a marca da homogeneidade, que uma concepção científica (ou, talvez, cientificis- se objetivam com o rompimento de formas e ta) de objetividade, que condena o investigador estruturas pregressas, realizando estratégias do a um tratamento cognitivo do objeto de conhe- Estado e do capital, refuncionalizando os es- cimento, tornando-o uma expressão destituída paços, dando-lhes nova direção e sentido, con- de subjetividade. formando verdadeiros sistemas socioespaciais. Destarte, a própria formação da territo- Daí a relevância para a pesquisa indagar como rialidade implica também o nível da represen- os moradores e outros atores sociais percebem tação, estando esta associada àquela. O senti- e representam o espaço, em suas mais diversas mento de pertencimento, bem como o de com- formas (cognitiva, cartográfica, etc.). Trata-se, partilhamento a um dado lugar (ingredientes portanto, de uma demanda social que clama – importantes na formação da territorialidade), teórica e praticamente – por ações sob a pers- envolve fatores diversos, bem como são di- pectiva de uma crítica superadora, pelo sentido versas as formas pelas quais eles se realizam. da urgência e da necessidade. Mas é no plano da experiência socioespacial Como uma práxis inscrita no social, argu- efetiva – real – que eles são forjados. Quando menta-se que a apropriação do espaço, embora se analisam os impactos que a modernidade restringida sob a condição espacial capitalista, capitalista provoca no território e, mais espe- encerra potencialidades que indagam sua di- cificamente, nas relações de solidariedade e mensão e seu alcance nos tempos hodiernos, de sociabilidade num dado lugar, isto não sig- precipuamente as potencialidades inscritas no nifica que necessária e automaticamente elas bojo das práxis de caráter inventivo, as quais pereçam, ou se transmutem forçosamente em não devem ser confundidas com as práxis es- relações alienadas, circunscritas a um univer- tritamente repetitivas (Lefebvre, 1958). Se, no so de uma “cidadania caricatural”. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 167 Ulysses da Cunha Baggio Acrescente-se ainda que os dinamismos Desse modo, o desenvolvimento de da vida moderna estabelecem perturbações formas alternativas à vida e a existência, na constantes no universo da formação das ter- perspectiva da formação de uma sociedade ritorialidades, cujas bases de sustentação fle- mais autônoma e orientada ao desenvolvimen- xibilizam e fragilizam-se, podendo mesmo se to de uma condição cidadã, implicaria encon- esboroar, mas, também, é forçoso reconhecer, trar um sentido novo para a vida, diferente, ser (re)criadas em novas bases e em outros lu- mas não de modo a se fechar à compreensão gares. Imaginar que esse movimento só encer- de modos de vida pretéritos. Estamos convic- re perdas constitui uma interpretação redutora tos de que apenas a liberdade representa vida da realidade. Não se trata de uma situação em completa, e que sua negação significaria ener- detrimento da outra (leitura reducionista deri- gia abundante à promoção do autoritarismo, vada de uma concepção binária de movimento de estruturas coercitivas e do condicionamento da realidade), mas ambas se desenvolvendo generalizados, que rejeitam, em sua essência, o ao mesmo tempo, apesar do incontestável efetivo desenvolvimento humano, que só pode mal-estar e anticlímax reinantes da moderni- se realizar – insistimos – sob plenas condições dade capitalista. de emancipação. Isso implica, por conseguinte, a desconstrução das relações de autoridade e de coerção, que modelam a estrutura social e Considerações finais reduzem as possibilidades de realização da cidadania, bem como a transformação e a adequação dos sistemas de ensino – público e pri- Muito se tem falado acerca de uma submersão vado – a uma formação genuinamente crítica e qualitativa e progressiva das relações de socia- humanista, dinâmica e autônoma, contribuindo bilidade na cidade, do desapego dos citadinos substancialmente para tornar mais inteligíveis em relação ao seu espaço de vivência, com im- o mundo, a sociedade, a vida e a existência. pactos evidentes sobre a formação e o desen- Mobiliza-se aqui a necessária comunhão da volvimento da cidadania. Estaria se delineando técnica com a política, a forjar usos devotados diante dos imperativos do capital e do merca- às efetivas necessidades humanas, aqui incluí- do uma submersão da vida nas cidades, com o das as necessidades radicais. Não é demais avanço do trabalho alienado e da produção de dizer que os portadores do novo são aqueles uma cidade igualmente alienada e alienante. que se movem e lutam por necessidades radi- Todavia, embora esses aspectos sejam reais e cais, entendidas como aquelas essenciais à vi- contundentes, não os compreendemos como da e à existência, dentre as quais a liberdade absolutos, em que pese a capacidade criativa e a autonomia, não se confundindo, portanto, e inventiva presente na sociedade, na arte e na com necessidades artificialmente criadas por política. Para além do reconhecimento de cer- veículos de publicidade. tos limites e descontinuidades a este movimen- Ao plano de uma produção intelectual to, a análise, em seu percurso, se conduziu para comprometida com a transformação social, a busca de um horizonte. cabe-nos uma tarefa das mais importantes, 168 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 A espacialidade degradante tendencial... isto é, a elaboração de uma visão sistêmica contemporânea, tendo-se em vista a criação do conjunto de práticas sociais alternativas cotidiana de novas situações socioespaciais, à espacialidade degradante em curso, que se capazes de impulsionar o desenvolvimento da afirma como uma tendência preocupante e condição de se habitar mais plenamente a vida, ameaçadora. Urge, nesse sentido, que a socie- sem remorsos ou culpa, dela esperando-se me- dade interfira mais diretamente na produção e nos, mas nela amando-se mais. São aspectos a na conformação dos seus espaços de vida, fa- compor o sentido de uma nova espacialidade, zendo valer suas próprias demandas e desejos uma espacialidade liberatória. diante das instituições. Essa é uma condição Reafirmam-se, assim, a importância e fundamental à promoção da própria transfor- a necessidade quanto à constituição de uma mação da sociedade e, desse modo, do próprio educação política do espaço, que promova espaço, o que solicita o caráter cooperativo e a autorreflexão permanente e a percepção mais autônomo nas práticas sociais. O que nos lúcida da alteridade, que se norteia por uma incita à busca pela elaboração de matrizes teó- ética existencial devotada à preservação da ricas e práticas de perspectiva libertária e libe- vida e da restituição qualitativa dos valores ratória, que perquira nos meandros e interstí- humanos, que incorpora a espacialidade como cios da vida cotidiana possibilidades factíveis instância e distinção valorativa fundamentais. a práticas criativas e inventivas à formação de Nesse sentido, valemo-nos aqui da assertiva espacializações influenciadoras e estimulantes, luminosa de Vaneigem (2002, p. 232), quan- deflagradas por atores sociais sob as deman- do nos diz que: das da necessidade, necessidades que clamam por uma por uma vida mais plena, por satisfações imperiosas e condições ao exercício da maior liberdade possível. Trata-se, portanto, de um projeto social, ou ainda de um projeto socioespacial urbano-libertário. A afirmação dessa perspectiva implica um novo sentido ao desejo, que agora se mostra mais estreitamente vinculado à existência e ao espaço, deles não mais prescindindo. Desse modo, ela significaria um novo modo de se compreender o sentido da vida sob a complexidade O primado da vida sobre a sobrevivência é o movimento histórico que desfará a história. Construir a vida cotidiana, realizar a história: de hoje em diante, essas duas palavras de ordem são apenas uma. No que consistirá a construção conjugada de uma nova vida e de uma nova sociedade? Qual será a natureza da revolução da vida cotidiana? Nada mais que a superação substituindo o deperecimento à medida que a consciência do deperecimento efetivo alimenta a consciência da superação necessária. Ulysses da Cunha Baggio Doutor em Geografia Humana, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Viçosa. Viçosa, Minas Gerais, Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 169 Ulysses da Cunha Baggio Referências BAGGIO, U. C. (2005). A Luminosidade do lugar – circunscrições inters ciais do uso de espaço em Belo Horizonte: apropriação e territorialidade no bairro de Santa Tereza. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. FROMM, E. (1978). Análise do homem. Rio de Janeiro, Zahar. HAESBAERT, R. (2002). Territórios alterna vos. São Paulo, Contexto. HARVEY, D. (1992). A Condição pós-moderna. São Paulo, Edições Loyola. LEFEBVRE, H. (1958). Cri que de la vie quo dienne. Paris, Édi ons l’Arche. ______ (1991). O Direito à Cidade. São Paulo, Editora Moraes. SANTOS, M. (1993). O Espaço do cidadão. São Paulo, Nobel. ______ (1999). Modo de produção e diferenciação espacial. Revista Território. Rio de Janeiro, n.6 (jan-jun), pp. 5-20. SCHUMACHER, E. F. (1983). O negócio é ser pequeno. Rio de Janeiro, Zahar. VANEIGEM, R. (2002). A arte de viver para as novas gerações. São Paulo, Conrad Editora do Brasil. (Coleção Baderna). Texto recebido em 13/maio/2011 Texto aprovado em 18/out/2011 170 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade: uma perspectiva histórica* Gated communities, time, space and society: a historical perspective Rita Raposo Resumo Neste artigo, discutimos as origens do fenômeno “condomínios fechados”, sua evolução e a sobrevivência contemporânea das suas características originais mais distintivas. Analisamos o modo como essa forma socioespacial específica, historicamente localizada, logrou chegar ao presente praticamente inalterada no que respeita às suas principais características simbólicas e ao essencial das suas condições sociais e políticas de base, apesar de todas as transformações registadas ao longo de mais de dois séculos. A análise baseia-se na bibliografia internacional disponível sobre o assunto e na observação direta do fenômeno na Área Metropolitana de Lisboa, que estudamos em profundidade desde a década de 1990, e noutros lugares do mundo que tivemos a oportunidade de confrontar empiricamente. Abstract This paper discusses the origins of the “gated communities” phenomenon, its evolution, and the contemporary enduring of its more distinctive pristine features. It is about how a specific and historically located socio-spatial form got to survive almost unchanged in its very symbolical core, and in its essential social and political background conditions, for more than t wo centuries in spite of all the obvious supervening changes. Our analysis is essentially based on the available international literature on the issue and on the direct observation of the phenomenon in the Lisbon Metropolitan Area, which we have been studying in depth since the 1990s, and in other world cases we had the opportunity to confront empirically with. Palavras-chave: condomínios fechados; origens; produção social; segregação; simbolismo. Keywords: gated communities; origins; social production; segregation; symbolism. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Rita Raposo Apresentação bem que mudando formalmente de direção graças à intervenção de várias transformações contextuais de relevo, atravessou todo o século Nas últimas décadas do século XX, assistiu-se, XIX para praticamente apenas se extinguir nas em várias partes do globo, à expansão de uma primeiras décadas do século XX. Ora, tal perío- forma socioespacial que, contemporaneamen- do correspondeu grosso modo ao do primeiro te, identificamos como “condomínios fecha- (longo, progressivo e variável, é certo) desen- dos” (CFs) ou “privados” (gated communities volvimento da Modernidade. Desde então e é a sua designação “internacional” mais co- até cerca de 1970 aquela forma socioespacial mum). Essa forma também encontrou lugar manteve-se “adormecida”, datada e localiza- em Portugal nas últimas três décadas, com da. Sua globalização e sua expansão numérica destaque para o final dos anos de 1990, quan- são matéria mais recente, de novo, o arranque do assentou e se expandiu, essencialmente surgiu na mesma área geográfica. Agora, con- nas áreas metropolitanas de Lisboa (AML) e tudo, tal ocorreu em primeiro lugar nos Estados do Porto e na turística costa algarvia. No re- Unidos da América (EUA) e não em Inglaterra, censeamento que realizamos (em duas fases e como acontecera aquando da primeira edição conforme metodologia própria) na AML para do fenômeno. os anos de 1985 a 2004, foram registados 198 Nos EUA, na década de 1970, surgiram empreendimentos do gênero (Raposo, 2008). diversos empreendimentos imobiliários resi- Como seria de esperar, dada a escala e a pré- denciais novos que adotaram a fórmula fe- -organização do território da AML, observam- chada, especialmente localizados em zonas -se grandes variações no seio desse universo. turísticas, com destaque para o Estado da Ca- Em todo o caso, é de assinalar a já muito signi- lifórnia. De um modo geral, esses novos empre- ficativa expressão do fenômeno no panorama endimentos fechados começaram por assumir residencial português, a par da sua impressio- essencialmente a forma de master-planned nante capacidade de expansão. Deve-se notar communities (MPCs). Essas, de grande escala que, em Portugal, os condomínios fechados e dotadas de variados equipamentos e serviços constituem um caso de novidade absoluta, o coletivos privados, são normalmente governa- que, de resto, é muito provavelmente válido das por associações de proprietários e sujeitas para a grande maioria das suas localizações a um plano director e a regulamentos internos contemporâneas a nível mundial. (os famosos CC&Rs, Covenants, Conditions and De fato, e tal como veremos na análise Restrictions que levam a marca do Direito de subsequente, entendemos existir evidência tradição inglesa), traduzindo-se em regra na suficiente para afirmar que os CFs ou gated garantia de um caráter e de um desenho so- communities (GCs) encontraram suas primei- cioespacial coerente e controlado (Moudon, ras manifestações num mundo muito específi- 1990 e Knox, 1992). Na década de 1980, os co: o anglo-americano. Tal terá acontecido há empreendimentos residenciais fechados multi- mais de dois séculos, seja cerca de 1750. Seu plicaram-se, diversificaram-se e globalizaram- primeiro fôlego, que haveria de engrossar, se -se. Nos EUA, estenderam-se a vários Estados 172 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade e invadiram o território das principais metrópo- ausência a ocidente e a norte), padrão para les, instalando-se nos seus subúrbios, cidades e o qual existem explicações históricas relativa- exúrbios (ou seja, nas zonas situadas para além mente simples e compreensíveis (e.g. Raposo da linha de urbanização metropolitana). Passa- e Cotta, 2009). ram também a assumir formas muito variadas: Malgrado as grandes variações formais dos empreendimentos urbanos (em regra de exibidas pelo fenômeno CFs, ao longo do tem- escala mais reduzida e essencialmente cons- po e do espaço, ele corresponde a uma forma tituídos por edifícios de apartamentos) até às socioespacial distintiva. Essa afirmação resulta grandes master-planned communities suburba- de uma definição própria e de uma interpreta- nas e exurbanas já citadas. ção sociológica específica do fenômeno. Essas Se Blakely e Snyder (1997) estimaram baseiam-se na análise das principais caracte- que nos EUA, nesse mesmo ano, já existiam rísticas espaciais, sociais, físicas, funcionais e 20.000 empreendimentos fechados corres- legais dos CFs localizados na AML e noutras pondentes a 3 milhões de unidades residen- partes do mundo e do tempo (documentados ciais e respeitando a 8 milhões de residentes, internacionalmente), assim como dos principais no resto do mundo o fenômeno começou a fatores e processos de produção social regular- fazer-se notar desde cerca de 1980, nalguns mente associados ao seu surgimento e expan- casos de forma já muito expressiva. Nomea- são. Comecemos pela proposta de uma defini- damente no Brasil, nessa sua “década perdi- ção (Raposo, 2002 e 2003) que consideramos da” (Ribeiro, 1996), os condomínios fechados suficientemente compreensiva, distintiva e em- afirmaram-se como uma realidade importan- piricamente operacional. De acordo com essa, te, pelo menos no Rio de Janeiro (idem) e em os condomínios fechados correspondem a uma São Paulo (Caldeira, 1996). Em contrapartida, forma socioespacial residencial que contempla por então, em Portugal (que, de resto, terá si- um conjunto diverso de soluções de habitação do fortemente influenciado pelo caso brasilei- (edifícios isolados e conjuntos de edifícios de ro), à semelhança de outros países e regiões, apartamentos; conjuntos de moradias; conjun- apenas surgiam os primeiros exemplares (Ra- tos mistos que incluem os dois tipos anteriores) poso, 2002). No que respeita ao mundo maior, e que detém, simultaneamente, as três caracte- existe informação segura de que o fenômeno rísticas seguintes: 1) equipamentos privados ou se encontra representado, pelo menos desde privatizados de utilização coletiva em número o final dos anos de 1990 (e em clara expan- e tipo variável (e.g., ruas, piscinas, campos de são desde então), em vários países africanos, tênis, jardins, parques); 2) impermeabilidade do americanos, asiáticos, europeus e da Oceânia: perímetro e controlo do acesso (Luymes, 1997) China, Angola, Bulgária, Líbano, Argentina, de tipo e grau variável; 3) propriedade priva- Austrália, Índia, Malásia, Chile, Rússia, África da coletiva (ou acesso a e usufruto coletivo do Sul, Singapura constituem apenas alguns privatizado) de espaços exteriores associados exemplos. Para o caso europeu, vale a pena à função residencial que coincidem com ou salientar a prevalência do fenômeno a sul e a constituem o suporte físico dos equipamentos leste e em Inglaterra (e sua quase completa já referidos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 173 Rita Raposo A alternativa acima estabelecida entre degradação, objetiva ou percebida, das condi- as categorias “privado” e “privatizado” resulta ções de vida locais. Minoritários, os CFs emer- da observação da presença na AML de vários gentes apresentam-se como uma espécie de casos de empreendimentos residenciais novos fenômeno em “segunda-mão” tipicamente as- que, sendo clausulados (dispõem de perímetros sociado a residentes menos afluentes, ou mes- impermeáveis e realizam o controlo dos aces- mo pobres (vide Carvalho, 2001) e que segue sos e, ainda, por vezes, das circulações interio- a inspiração dos CFs comerciais que os prece- res), incluem no seu perímetro diversos espaços deram no tempo. Reclamam, assim, uma abor- públicos (normalmente arruamentos e espaços dagem própria que inclua questões específicas, ajardinados). De jure, esses empreendimentos com destaque para as que se referem ao en- não podem impedir a entrada ou a circulação quadramento legal e à forma de administração a ninguém. Contudo, podem-nas controlar de deste tipo de CFs, assim como à sua dinâmica fato e, por esse meio, tornar menos provável a e política de ação coletiva. Em Portugal, não há entrada de estranhos. Esse tipo de empreendi- qualquer registo dessa última modalidade de mento é assim incluído no nosso universo de condomínios fechados, e nossa atenção só se estudo, malgrado o fato de a respectiva pro- tem dirigido à variante principal do fenômeno, priedade não ser totalmente privada. Situação seja aquela a que já nos referimos especifica- equivalente foi relatada por Wehrhahn (2003) mente sob a designação de “condomínios fe- para Madri. Este autor recorre à expressão chados comerciais”. pseudo-gated communities para a nomear (ver Precisamente, a interpretação socioló- também Wehrhahn e Raposo, 2006). Não são gica que propomos do fenômeno CFs apenas conhecidas quaisquer outras referências congê- se aplica por inteiro a essa última variante, a neres para outras partes do mundo. Existe, isso única que, de resto, entendemos, exibir raízes sim, ampla documentação internacional para históricas significativas. Interpretamo-la, simul- uma outra modalidade de privatizatição efetiva taneamente, como uma forma de segregação do espaço público e que corresponde a uma va- distintiva e como um produto imobiliário es- riante secundária do fenômeno (também gene- pecífico (Raposo, 2002 e 2003). Entendemos ricamente abrangida pela definição proposta), que, como forma de segregação ou de espa- seja o caso dos CFs que apelidamos de “emer- cialização de desigualdades sociais, os CFs se gentes” (Raposo, 2006) e que correspondem a distinguem graças à associação única de dois conjuntos ou áreas residenciais preexistentes traços essenciais: 1) recurso a barreiras físico- que se transformam pela adoção da mesma -arquitetônicas; 2) carácter voluntário. Os CFs fórmula dos CFs “comerciais”. refletem um método específico de consagração Essa variante, em regra, constitui o resul- espacial de distâncias sociais: o “policiamento tado, legal ou ilegal, da acção coletiva de resi- arquitetônico” (Davis, 1990). Eis algo que não dentes que reclamam a transformação de áreas é original. O gueto já a este recorrera. Contu- que, de raiz, não eram muradas ou fechadas. do, ao contrário desse último, os condomínios Seu surgimento está frequentemente associado fechados não correspondem a um “território a contextos de crime e violência extrema ou à de rejeição” (Vieillard-Baron, 1996) nem se 174 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade identificam com uma “população involunta- intermédio da sua forma construída e da sua riamente definida e tratada como inferior pela apresentação publicitária (o que é especial- sociedade dominante” (Marcuse, 1997, p. 232). mente válido para a edição contemporânea). Alternativa e tipicamente, os residentes em CFs Como se verá, malgrado todas as mudanças provêm de classes médias e médias-altas, já que intervieram ao longo de mais de dois que, se bem que com excepções, os membros séculos, as semelhanças entre ambas as edi- de classes de topo parecem preferir, em regra e ções são extraordinárias. graças à sua maior liberdade de escolha, soluções residenciais mais individualizadas. Considerar que os CFs correspondem a uma forma de segregação serve tanto à compreensão de vários aspectos relativos à sua natureza como à sua produção social. O mesmo Discussão de duas teses sobre a origem dos condomínios fechados acontece com a consideração de que aqueles se tratam, tipicamente, de um produto imobi- No que respeita à pesquisa das origens do liário. Os condomínios fechados são uma mer- fenômeno, é frequente encontrar duas teses cadoria que obedece a uma fórmula definida, a principais, que, de resto, surgem muitas ve- qual, apesar de poder exibir diversas formas, é zes associadas. A primeira respeita essencial- quase sempre um caso de engenharia do tem- mente à identificação de visões específicas po, do espaço e da sociedade. Interpretá-los do espaço e da sociedade que, supostamente, assim é também uma maneira de indicar que o terão inspirado diretamente (e, portanto, sido lado da oferta, a indústria imobiliária (incluin- responsáveis por) a formação e a configuração do os agentes que, no passado, ainda estavam física e social dos CFs. Por sua vez, a segun- longe de merecer por inteiro tal designação) da tese é relativa aos antecedentes históricos sempre teve um papel decisivo na sua criação e do fenômeno, isto é, às formas socioespaciais expansão. Nas próximas páginas, analisaremos similares que terão precedido no tempo os o trajeto histórico do fenômeno. Começaremos condomínios fechados contemporâneos. Ora, por discutir algumas teses existentes sobre a se bem que estas duas demandas não sejam origem dos CFs, para, logo em seguida, passar exatamente incompatíveis, é de notar que elas à análise da sua primeira edição histórica, das devem ser claramente distinguidas já que cor- suas formas e das suas principais condições de respondem a questões bastante diferentes. A produção social. Por fim, olhamos a atual edi- primeira é sobre a possível influência que al- ção do fenômeno, evocando as principais se- gumas construções ideológicas tiveram na his- melhanças e continuidades que os atuais CFs tória dos condomínios fechados; a segunda é apresentam em relação aos seus antecessores. sobre essa mesma história. Nomeadamente, analisar-se-ão seu contexto de A primeira tese a que nos referimos de- produção social específico, assim como as prin- fende que o modelo da Cidade Jardim, de Ebe- cipais representações do tempo, do espaço e nezer Howard (1850-1928) corresponde a uma da sociedade que exibem, nomeadamente por das principais origens dos CFs (e.g. Caldeira, Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 175 Rita Raposo 2000, e a sua referência à “linhagem” do fe- dos principais seguidores, nesse continente, nômeno). Claramente, e conforme à distinção das ideias de Howard. De fato, a par de Stein, supra, esse argumento refere-se à genealogia vários outros arquitetos e urbanistas norte- ideológica dos CFs e não à sua história real. A -americanos foram conquistados para o ideal segunda tese, tantas vezes repetida, por sua da Cidade Jardim, com destaque para seus vez, clama que a verdadeira origem dos con- parceiros da Regional Planning Association domínios fechados contemporâneos radica nas of America. Essa correspondia a um grupo de cidades fortificadas europeias pré-modernas. inovative thinkers em que também se incluía Ora, se bem que esses dois argumentos te- Lewis Mumford (McKenzie, 1994, p. 9). Mesmo nham, como vimos, naturezas muito distintas, já depois da II Guerra Mundial e do fracasso entendemos merecer por igual o exercício da de Radburn, esse grupo continuou a insistir, crítica. Comecemos com o caso do modelo da sem sucesso, na implementação do ideal da Cidade Jardim. Apesar de poderem ser aponta- Garden City nos EUA. De facto, “ they could das algumas semelhanças formais entre os CFs not overcome the ideological and financial e a visão de Howard, as diferenças são segura- qualities of American city building practice” mente em maior número e muito mais signifi- (Richert e Lapping, 1998, p. 127). cativas. Os únicos elementos que os dois casos O ideal de Howard das Garden Cities têm, mais ou menos, em comum são a proprie- of Tomorrow (note-se que esse é o título da dade e o governo privados de todo o solo da ci- segunda impressão, datada de 1902, já que a dade, o caráter autocontido (mas não fechado, obra deu originalmente à estampa em 1898 no ideal de Howard), o planeamento geral e o sob o nome de Tomorrow: A Peaceful Path to desprezo do tecido urbano existente (de resto, Real Reform) apenas foi inteiramente aplicado um traço comum, à maior parte das visões mo- em Inglaterra, ainda que se tenham sucedido dernistas da urbe). Contudo, mesmo estes ele- outras “realizações paralelas” na Suécia, nos mentos podem conduzir a interpretações muito Países-Baixos, em Itália e na União Soviética diferentes e, seguramente, a desenvolvimentos (Mumford, 1964, p. 650). Da iniciativa direta práticos muito distintos. de Howard e da Garden City Association, que Recorde-se, imediata e exemplarmen- aquele fundou em 1899, apenas surgiram te, com McKenzie (1994), como a experiência duas cidades novas em Inglaterra: “il invitait norte-americana de Radburn, concebida inicial- tous ceux qui pouvaient faire confiance à mente como a translação inaugural do mode- sa conception et qui avaient les capitaux lo de Ebenezer Howard para os EUA, resultou nécessaires, à tenter avec lui l’experiénce em apenas mais um “monumento ao privatis- de la construction de la première cité-jardin, mo”, já que esse ideal colidiu com a natureza expérience qui débuta à Letchword, en 1904. e o espírito mais profundos do capitalismo Une quinzaine d’années plus tard, il commença norte-americano. O planeamento de Radburn, d’édifier, à Welwyn, une autre cité semblable” Nova Jersey, iniciado em 1928, teve por princi- (Mumford, 1964, p. 645). Mas a influência pal arquiteto Laurence Stein, um dos grandes dessa concepção não se ficou por aí. Para além urbanistas norte-americanos de então e um de ter largamente influenciado o urbanismo 176 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade do século XX, o sucesso obtido nessas Mas para além do tema da propriedade duas primeiras experiências em Inglaterra privada do solo, que tantas vezes tem levado à conduziu diretamente à adoção do modelo confusão do modelo das Cidades Jardim com no planeamento e construção das New Towns o caso dos condomínios fechados, há outros inglesas do pós-guerra (idem). aspectos de relevo que, na respectiva com- Em contrapartida, como vimos, apesar de paração, também têm contribuído para esse os EUA estarem mais próximos de Inglaterra do tipo de interpretação. Nomeadamente, tem que de qualquer outro país no que respeita a sido frequentemente estabelecida uma equi- tradições urbanísticas e jurídicas, e de, declara- valência direta entre o governo tecnocrático damente, terem constituído uma das principais da Garden City e o governo dos CFs por asso- fontes de inspiração da obra de Howard, neles ciações de proprietários. Contudo, mais uma o modelo não teve qualquer sucesso prático. A vez, existem limites práticos, e especialmente par de outros aspectos, a questão da proprie- ideológicos, para tal interpretação. É claro que dade do solo constituiu, desde o início, um dos o fato de Ebezener Howard ter projetado o go- principais problemas de adaptação do ideal verno da Cidade Jardim como uma tecnocracia das Garden Cities às terras norte-americanas. ajuda a esse tipo de leitura. Contudo, vejam-se Howard previu no seu modelo que todo o so- imediatamente as observações de McKenzie lo dessas cidades haveria de ser privado, assim (1994, p. 5) sobre esta matéria. como o seu governo. Contudo, essa concepção continha um “detalhe” enorme, tão grande, que os EUA nunca poderiam ter “engolido” (e muito menos os potenciais investidores no projeto): a propriedade privada do solo haveria de permanecer coletiva, e os particulares, os residentes, apenas poderiam ser arrendatários de lotes ou de unidades de habitação. Radburn acabou por alojar apenas 500 famílias; o promotor, a City Housing Corporation, faliu em 1934; o plano físico ficou muito longe de se conformar com o das Garden City e, acima de tudo, a população que veio a instalar-se nessa nova planned community não tinha nada a ver com a que inspirara todo o projeto. Radburn acabou por ser apenas mais uma “suburban sudivison for the moneyed classes, albeit one with a number of innovative features”, uma “upper middle class town” (McKenzie, 1994, p. 48), dotada de uma população homogênea e suburbana. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 The government Howard proposed was a democratically controlled corporate technocracy. Renters would elect the heads of various practical departments grouped under general headings: Public Control, with departments on finance, law, assessment, and inspection; Engineering […].The city’s constitution would more closely resemble the charter of a business corporation than the governing document of any existing nation or city. This principle reflected Howard’s belief that politics, in the sense of various interests competing for favor in the distribution of government services and wealth, would be essentially eliminated in his planned city. In place of politics and ideology would be the rational management of practical matters by experts, each elected to a particular department because of his or her expertise in the area. 177 Rita Raposo Indubitavelmente, a visão de Howard Vale ainda a pena observar que a tendên- é democrática e progressista. Apenas há que cia para confundir o modelo da Cidade Jardim colocá-la no contexto próprio. Ela não tem de Howard com outras formas socioespaciais lugar para o político no sentido habitual do muito diferentes não constitui sequer novidade. termo; apenas contempla a hipótese da ad- Tal ocorreu em primeiro lugar na comparação ministração: “it was characteristic of Howard com os subúrbios elegantes que surgiram na that, rather than tackle the essentially political mesma época. Os Garden Suburbs ingleses do problem of government, he should choose to início do século XX (e.g. Hamsptead) foram os address himself to the detailed mechanism of primeiros a receber esse tipo de interpretação. administration” (Beevers, 1988, p. 63). Eis uma Desde logo, foi o próprio Howard que tratou de visão do político muito próxima da de vários recusar tal leitura, comentando a seu propósi- outros autores da sua época que, na senda do to que: “Suburbs are better than barracks, but Iluminismo, se renderam à absoluta crença na further growth of an overgrown city has evils of Razão e no Progresso, imaginando, ingênua its own” (apud Beevers, 1988, p. 133). De fato, mas convictamente, que, num futuro próximo entendia que estes constituíam a antítese do (para o qual tentaram contribuir ativamente), a seu modelo. “administração das coisas haveria de substituir o governo dos homens”, conforme à conhecida fórmula de Saint-Simon. Tratava-se de reformar a sociedade e de dar fim aos conflitos sociais e ao poder (seja, em essência, ao político), recorrendo tão só à Razão humana universal e às suas realizações, como a ciência e a técnica. A esse respeito, recorde-se que Auguste Comte (em tempos secretário do filósofo supra referido) defendeu, na sua famosa teoria sobre a Ordem e o Progresso, que no futuro a guerra passaria a ser um anacronismo, coisa bárbara e sem lugar na era do Positivismo, seja do triunfo A Garden City is, or at its inception aims to become, a complete, and, so to say, self-contained town, with its own industries etc.; and its own full, corporate life. A Garden Suburb is an attempt to wisely regulate the out-flow of a great city’s population: but, in doing this the Garden Suburbs which have so far been built tend rather to increase the distance between the working and the home life of the bread-winners; for they are rather dormitory districts with little or no provision for work, except, indeed, for work in the garden… (Howard apud Beevers, 1988, pp. 133-134) da razão e da ciência. O essencial do ideário iluminista, assim como elementos de outras A este respeito é ainda de notar que correntes ideológicas e valores (nem sempre de vários outros autores saíram a terreiro em de- fácil conciliação), tais como o industrialismo, o fesa de Howard. De entre eles destaca-se, em apelo romântico da natureza e o universalismo primeiro lugar, Lewis Mumford: “the Garden ecoam nitidamente na visão de Howard. Eis City, in Howard’s view, was first of all, a city… algo que pode também ser verificado na sua … It was in its urbanity, not its horticulture, franca adesão ao Esperanto [aquele que tem that the Garden City made a bold departure esperança], língua por ele frequentemente utili- from the established method of building and zada e promovida. planning” (Mumford apud Richert e Lapping, 178 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade 1998, p. 127). Também Tuan (1990) apresen- internas, e o caso em que esses mesmos ele- tou opinião semelhante, frisando que a Cidade mentos construídos servem a separação de Jardim, e nomeadamente a sua materialização diferentes grupos ou classes sociais no seio da em Letchworth, foi desenhada como uma ver- mesma cidade. Assim, tal tese falha um aspec- dadeira cidade, incluindo uma população diver- to decisivo, seja o fato de os CFs corresponde- sificada, múltiplos usos do solo e uma elevada rem a uma forma genuinamente moderna e de densidade residencial. Esses mesmos argumen- constituírem uma faceta ou variante específica tos poderiam ser usados hoje para marcar a di- da história geral da segregação social que ca- ferença entre o ideal da Cidade Jardim e os CFs racteriza de modo distintivo a cidade moderna (em especial na sua versão master-planned), o (e a pós-moderna, se bem que com variações). que, de resto, já foi feito por Paul Knox (1992, De fato, o trabalho das ciências sociais p. 207). Esse salienta que, ao contrário do mo- (e.g. Fishman, 1987; Tuan, 1990; Salgueiro, vimento das Cidades Jardim e das New Towns 1992) veio revelar a existência de profundas inglesas, a proveniência das MPCs contemporâ- diferenças entre as sociedades modernas e pré- neas (na sua maioria muradas e fechadas), que -modernas no que respeita ao fenômeno da apelida “paisagens empacotadas”, “is almost segregação, nomeadamente no terreno das ci- entirely from within the private sector, their dades. Demonstrou que na cidade pré-moderna objectives being less concerned with planning aquele fenômeno é relativamente excepcional, and urban design as solutions to problems of já que é caracterizada pela mistura funcional urbanization than as solutions to the problem e social, segundo um padrão dito de “grão fi- of securing profitable new niches within the no” e restrito a casos muito específicos, isto é, urban development industry”. que nem constituem a norma, nem se baseiam Passemos agora à discussão da tese em princípios de desigualdade socialmente que clama que a verdadeira origem dos CFs centrais nesse contexto, pelo menos a Oci- contemporâneos (seja a sua origem histórica) dente. É assim que a segregação nas cidades radica nas cidades europeias fortificadas pré- pré-modernas se encontra apenas associada a -modernas. De um modo geral, esse argumento princípios de ordem étnico-religiosa (o exemplo costuma ser apresentado de uma forma muito clássico é o do gueto de Veneza do século XV: solta, apenas evocando as muralhas e os por- vide Sennett, 1994, para uma análise aprofun- tões que nessas cidades protegiam as respecti- dada da matéria), ou profissional e corporativa. vas populações de diversas ameaças exteriores. Nas cidades pré-modernas (com destaque para Em nossa opinião, esta tese esquece-se de um as europeias) não só não se observa a segrega- elemento fundamental que inviabiliza qual- ção residencial de classes sociais, como se não quer comparação séria entre essa forma pré- assiste à separação espacial das esferas do tra- -moderna e os CFs nas suas diferentes edições balho e da família, nem dos sexos e das idades. históricas. Nomeadamente, olvida a profunda É claro que a ausência relativa de segre- diferença que existe entre o caso dos muros e gação na cidade pré-moderna não significa a dos portões que encerram uma população in- inexistência de desigualdades profundas. Ape- teira, sem olhar às suas desigualdades sociais nas a ordem social tradicional não precisava Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 179 Rita Raposo da distância física para garantir suas enormes paisagem urbana de Londres: a privatização distâncias sociais. As pessoas de diferentes es- de algumas praças residenciais, por coletivos tados ou ordens sociais podiam cruzar-se nos de residentes. De acordo com Henry Lawren- mesmos espaços físicos sem alguma vez es- ce (1993, p. 90), este fenômeno: “represented quecerem a que espaços sociais pertenciam. some of the first expressions of the desire for Também é certo que as distinções sociais não class segregation, domestic isolation, and deixavam de se revelar por intermédio de vá- privatized open space that later were to form rios outros signos físicos tais que a dimensão the basis of suburban living”. Como veremos, ou a arquitetura das casas. É certo ainda que a novidade destas praças residenciais não re- algumas atividades consideradas (material sidiu apenas no fato de serem clausuladas, ou socialmente) poluentes também podiam mas num coerente e mais amplo conjunto de ser remetidas para fora da muralha, seja para elementos; seja o mesmo que autoriza estabe- essa “quinta dimensão” (Tuan, 1990) a que lecer a respectiva continuidade por relação a correspondiam os subúrbios pré-modernos. formas residenciais posteriores, entre as quais Contudo, a regra na cidade tradicional é a da os CFs contemporâneos. É dessas praças que mistura, a do ombrear de ordens sociais e de falaremos imediatamente no ponto seguinte, a atividades. Na cidade pré-industrial, assim co- par de uma outra forma mais avançada que, mo no campo, o espaço refletia e reforçava obedecendo à mesma lógica, continua essa múltiplas interdependências sociais que mais primeira experiência. Trata-se do caso dos tarde haveriam de se romper. De fato, antes do subúrbios românticos planeados anglo-ameri- seu advento, a proximidade física entre mem- canos. Eis duas formas que em conjunto iden- bros de diferentes grupos ou ordens não tinha tificamos com o primeiro “momento” ou “edi- o mesmo significado nem inspirava os mesmos ção” do fenômeno. Entretanto, é de notar que receios que a sociedade e a cidade moderna também já McKenzie (1994) e Luymes (1997) haveriam de conhecer. tinham estabelecido uma relação de continui- Apenas a modernidade e sua ordem social, econômica e moral, capitalista e burguesa dade entre alguns exemplares dessas formas e os actuais CFs. impuseram a regra da segregação social, por vezes sob condições extremas e mesmo dramáticas como aconteceu nas cidades de Manchester, Liverpool, Londres e, mais tarde, em Nova Uma história, duas formas Iorque e noutras cidades norte-americanas, localizações onde, precisamente, nasceram A primeira forma desenvolveu-se no século alguns dos mais desenvolvidos CFs. De fato, XVIII, como referido, a partir da praça residen- procurando no tempo os antecedentes histó- cial inglesa, nascida em Londres no século pre- ricos dos condomínios fechados, entendemos cedente. Se bem que inicialmente identificada não se poder recuar além de cerca de meados com a aristocracia, esse tipo de praça, com o do século XVIII, momento a partir do qual há passar do tempo, veio a refletir valores e traços registro de uma importante transformação na também, e até mais facilmente, atribuíveis à 180 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade burguesia e, acima de tudo, identificáveis com em riqueza e prestígio, à medida que progre- um mundo capitalista e moderno. Com efeito, dia a lógica do acortesamento, como aconteceu em Inglaterra, no início, os residentes dessas exemplarmente em França. No início, as suas praças eram na sua maioria nobres, se bem que residências urbanas situadas nessas praças no século XVIII já vários burgueses ricos tam- elegantes construídas nos limites de Londres bém as habitassem. Em contrapartida, a segun- destinavam-se apenas à passagem dos meses da forma que consideramos, o subúrbio român- de inverno. tico planeado anglo-americano (ele próprio Os “empreendimentos”, de que as pra- apenas uma variante da forma suburbana), já ças constituíam o centro, incluíam muitas vezes é verdadeiramente burguesa, se bem que refle- uma praça de mercado separada, várias ruas, tindo as influências de modelos aristocráticos lojas, uma igreja e habitação para criados, ar- que, em certa medida, procura emular. Encon- tesãos, etc., se bem que nos séculos XVIII e XIX trando-se exclusivamente ligado ao passado muitas já fossem puramente residenciais e que, do urbanismo anglo-americano, esse primeiro inclusive, se fizessem acompanhar de barreiras momento do fenômeno surgiu na transição de que fechavam as ruas que lhes davam acesso. um mundo dito tradicional, predominantemen- Em regra, a terra pertencia a um senhor que te rural e agrícola e caracterizado por uma es- a arrendava a especuladores ou diretamente trutura social em que imperava o princípio do aos residentes, normalmente por períodos lon- nascimento, para o mundo da Modernidade, gos que podiam ir até 99 anos. De igual for- urbano, industrial, capitalista, dotado de uma ma, era habitualmente o proprietário da terra, nova estrutura social que apresentava novos e apenas raramente o promotor, que detinha atores e novas relações sociais. o controlo do desenho dos edifícios em torno da praça. O controlo dos proprietários exercia-se ainda sob a figura de restrictive covenants A praça residencial inglesa que obrigavam os arrendatários, prevenindo que introduzissem alterações aos edifícios ou O fenômeno de privatização ou clausura de utilizassem o espaço aberto da praça de modo praças residenciais em Inglaterra iniciou-se indesejável. O traçado e o desenho arquitetô- em meados do século XVIII e prolongou-se no nico destas praças inspiravam-se nos modelos seguinte. Sua história começa em Londres no continentais das praças renascentistas de Itá- século XVII, mas apenas o século seguinte as- lia e de França. A primeira praça residencial a sistirá à mudança que lhes garantirá um lugar surgir em Londres foi Covent Garden. Em 1630 nesta história. Sua origem é aristocrática e liga- iniciou-se sua construção nas terras do Conde -se à nobreza inglesa estabelecida no campo de Bedford, sob o desenho de Inigo Jones. No inglês, a esse grupo de ricos gentlemen farmers topo sul encontrava-se a Casa de Bedford, no que clausularam os campos e neles introduzi- lado oeste nascia a igreja de São Paulo, a norte ram a lógica capitalista. Este importante braço e leste da praça foram construídas casas para da nobreza inglesa escapou assim à sorte de arrendar. A composição geral da praça, com ar- muitas nobrezas rurais que ficaram para trás, cadas, imitava a parisiense Place Royale, hoje Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 181 Rita Raposo Place des Vosges, que fora construída apenas acesso para o exercício de diversas atividades vinte e cinco anos antes (Lawrence, 1993). produtivas e recreativas. Até a década de 1720, O amplo espaço central da praça de Co- a exclusão do público dessas praças era difícil vent Garden começou por ser apenas pavimen- e não claramente legal. Apenas o prestígio de tado com pedra e aberto ao uso público. Esse viver em determinada praça onde ficava a ca- recinto era ladeado por ruas que continuavam sa de um senhor de grande estirpe (no caso de para além da praça, ligando-se em parte à ma- St. James’s Square tinha-se o rei por vizinho) lha urbana, em parte ao campo adjacente. À conferia valor econômico à residência nesse semelhança das muitas outras praças que ha- local. Só no século XVIII os valores capitalistas veriam de ser construídas desde então, Covent haveriam de contestar as noções feudais do Garden foi antes de mais projetada como uma valor do solo (Lawrence, 1993). Logo no início praça residencial, e o uso público não consti- desse século se afirmou parte da nova tendên- tuía sua principal vocação. Foi especialmente cia. Uma nova praça, Hanover Square, surgiu após o grande incêndio de Londres de 1666, e à em 1713, apresentando no seu centro um jar- medida que a cidade se expandia, que a praça dim vedado (mas ainda não fechado à chave). residencial se tornou numa das principais for- Várias outras, novas ou mais antigas, haveriam mas escolhidas para a criação de novas zonas rapidamente de adotar o mesmo padrão, dotan- para as classes mais abastadas. Segundo La- do-se por igual de jardins vedados com grades wrence (1993, pp. 94-95), “from the beginning, metálicas. Tal aconteceu em especial com as the squares were intended to be amenities that mais atacadas pela “populaça”. Os residentes increased the value of the property surrounding lutavam então pelo direito à clausura total e them, in speculative construction projects legal desses jardins no meio das praças e ao seu aimed at providing housing for the growing usufruto exclusivo, o que acabou por acontecer upper-class population of London”. Mas, a in- por intermédio de uma forma jurídica especí- tenção de oferecer amenidades aos residentes, fica: “Parliamentary enclosure acts similar to e de recolher os benefícios financeiros da con- those used at the same time on rural estates”. sequente valorização da propriedade, acabou Com estas medidas, “the urban common-field por não se concretizar por inteiro, pelo menos tradition quietly died” (idem, p. 97). A primeira nos tempos mais próximos. As praças mantidas autorização surgiu em 1726: St. James’s Square, abertas ao público acabariam por ser sujeitas a a mais aristocrática de todas as praças de Lon- usos incompatíveis com esse objetivo. dres. Muitas outras haveriam de se lhe seguir. De fato, como argumenta o mesmo autor, Henry Lawrence (1993) nota que, à seme- essas praças eram paisagens socialmente ambí- lhança do que acontecia com os enclosures no guas, e as relações de propriedade envolvidas campo, também os enclosures urbanos “were eram basicamente feudais: 1) os residentes a major step away from the feudal forms of apenas detinham, por arrendamento, o direi- property relations and toward capitalist forms” to de uso das casas; 2) as praças eram baldios (idem). O autor estabelece um claro paralelo [commons] em relação aos quais os anteriores entre os dois casos de clausura, urbana e rural. residentes mantinham o antigo direito de Por então, também nos campos de Inglaterra, 182 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade os senhores extinguiam o direito de acesso dos camponeses aos baldios, ao mesmo tempo que os colocavam à distância da sua casa. Mas o encerramento das praças e a exclusão da “populaça” não foi a única transformação assinalável que essa forma socioespacial sofreu ao longo do século XVIII: “by the third quarter of the century, there was a noticeable trend toward increasing density of vegetation” (idem, p. 101). Os jardins das praças, agora fechados, começaram “to look like more little parks whose spaces were increasingly internal within a screen of plantings” (idem, p. 104). O significado cultural dessa transformação é complexo, ilustrando poderosamente o que por então mudava nas economia, sociedade e cultura inglesas. Em primeiro lugar, há que relacionar essa alteração com a emergência, em torno de 1720, de uma concepção especificamente inglesa da paisagem que haveria de dominar durante muito tempo o desenho de jardins e parques, especialmente na Grã-Bretanha e nos EUA. In the early eighteenth century a new ideal of landscape arose in England based on the idea of nature as variety. The straight lines and right angles of the old gardens would be replaced by gentle curves, the symmetries replaced by carefully planned irregularities. Trees, shrubs, and flowers would be allowed to ‘be themselves’, to grow in their natural shape and to be planted in scatterings which sought to imitate the unaided work of nature. Instead of the strictly-delimited world of the Renaissance garden, the ideal was of an encompassing world of greenery and variety that extended into the most distant prospect. To be sure, this new aesthetics had rules almost as rigid as the old. Its name the Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 ‘picturesque’ betrays its origins not in the direct appreciation of ‘nature’ but in the imitation in real gardens and parks of the landscapes found in certain painters of the seventeenth century, most notably Claude Lorrain. Claude did not work ‘from nature’ but from an idealized view of the classical age, which he sought to captures on his canvases (…). This vision certainly enchanted and consoled the English upper classes. With the encouragement of cultural leaders like Pope and Lord Burlington and the genius of such landscape architects as William Kent, Lancelot ‘Capability’ Brown, and Humphry Repton, the great landowners set out to create ‘parks’ around their country houses that matched the ideal. All the resources of advanced agriculture were called into play to produce the a p p e a r a n c e o f u n s p o il e d n a t u r e. (Fishman, 1987, pp. 47-48) Esse novo ideal da paisagem surgiu e desenvolveu-se primeiro nas ricas e nobres propriedades rurais de Inglaterra. Eis algo que conduz imediatamente ao estabelecimento de mais um paralelo entre as transformações que o campo e a cidade ingleses sofreram ao longo do século XVIII, um paralelo que, de novo, não escapou a Henry Lawrence (1993). A adoção desse ideal de paisagem encontrou-se associada, em ambos os mundos, à remoção dos membros de ordens ou classes inferiores tanto da vista como do contato físico de nobres e burgueses, representando, assim, um desejo de segregação social, a par da valorização da privacidade familiar e de outros elementos pertencentes ao mesmo espectro axiológico. O avanço do capitalismo e a correspondente mudança da estrutura social inglesa trouxeram novos valores que se haveriam de encontrar 183 Rita Raposo principalmente alinhados com o ethos burguês Paisagem Inglesa e a mudança simultânea da moderno. Curiosamente, no caso de Inglater- sociedade, da economia e da cultura inglesas ra, e porque foi aí que o capitalismo agrário desde o século XVIII: e.g. Raymond Williams irrompeu inauguralmente, esses valores aflo- (The Country and the City, 1993 [1973]), John raram primeiro no campo do que na cidade. Berger ( Ways of Seeing , 1975), John Barrell Entretanto, é de notar que essa segregação ( The Dark Side of the Landscape , 1980) e operada pela aristocracia inglesa desde o sé- Lawrence Stone ( The Public and the Private culo XVIII pouco ou nada tem a ver com a lógi- in the Stately Homes of England, 1500-1990, ca tradicional da aristocracia “civilizada”, ain- 1991). Esses autores observaram como, nos da tão visível do outro lado da Mancha, nesse campos de Inglaterra, a paisagem “à inglesa” mesmo século. serviu para esconder pobres, trabalhadores ru- É claro que a nobreza inglesa não perdeu rais e tudo o que a pudesse estragar. Referem- o sentido da distinção nem abrandou a guarda -se, especificamente, à expulsão das casas dos da distância que a separava da burguesia. camponeses e de todas as construções asso- Contudo, adotou grande parte de seus valores, ciadas à exploração agrícola para fora do pe- possivelmente sob o efeito de estímulos seme- rímetro da casa senhorial, assim transformado lhantes. A aristocracia de corte francesa tinha, num parque cênico privado, e, inclusive, à sua por princípio de sobrevivência, a representação, equivalente remoção de muitas representações isto é, a demonstração em todas as ocasiões da literárias e pictóricas do mundo rural e da pai- sua qualidade, o que a obrigava a comportar- sagem de então. -se sempre de acordo com sua categoria (é Na cidade, por sua vez, o espaço, nomea- esse o sentido da “honra” tal como traduzido damente nas praças residenciais, era sujeito por Montesquieu no Espírito das Leis), para à mesma regra de clausura e à mesma con- além de qualquer consideração de ordem eco- cepção de paisagem estreada nos campos de nômica. Nas práticas ostentatórias da nobre- Inglaterra. Essa nova versão das praças ingle- za não se encontra o menor rasto do homo sas nada tinha a ver com sua concepção ori- œconomicus moderno (esse constitui, de resto, ginal. No começo e durante muitas décadas, sua denegação mais prosaica): seu comporta- as praças residenciais eram essencialmente mento de despesa e consumo é agonístico. Em locais de encontro, para ver e ser-se visto, contrapartida, a aristocracia inglesa, que não conforme à já citada lógica da representação deixa de se representar até hoje, “progrediu” aristocrática. Agora a privacidade passava a para outra forma de relação entre a economia ser preferida a essa lógica da exposição inter e a sociedade, desenvolvendo um ethos mis- pares: “by the end of the eighteenth century, to. É assim que se torna compreensível que a some kind of seclusion became necessary for muralha (que haveria de ser identificada com people to observe “decency and good order” a burguesia) pudesse, em grande medida, ter in their assembly” (Lawrence, 1993, p. 106). começado por ser aristocrática. Esta necessidade também passava pela trans- Vários autores contribuíram, de forma formação da cidade de Londres: “the street magistral, para a análise das relações entre a life of London had changed markedly from 184 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade that of a half-century earlier. A rapid growth sua, trabalhada de origem, exclusiva, e já of the city’s population, fed largely by rural pouco devendo à lógica aristocrática, exceção immigrants of the lower classes, had increased feita aos seus símbolos consagrados pela ar- the intensity of street traffic, and their poverty quitetura, a decoração e a paisagem. Muitas had increased the incidence of street crime. das antigas praças perderam seus residentes The streets teemed with strangers, and even e passaram, antes, a alojar escritórios e lojas. a well-dressed person could no longer safely Na década de 1880 aumentou a pressão para be assumed to be a gentleman” (idem). Mas sua abertura ao público. As barreiras que ga- não era apenas esta invasão da “desordem” rantiam a privacidade de várias ruas que per- que motivava a preferência pela separação e o mitiam o acesso às praças, e que tinham sido isolamento. Ao mesmo tempo, crescia um gos- erigidas no âmbito do mesmo movimento de to pela privacidade como valor autônomo, um clausura, foram todas removidas por ordem de gosto mais burguês do que aristocrático, que, um Act of Parliament de 1893. No que respei- de resto, era perfeitamente compatível com a ta ao próprio recinto ajardinado das praças, a ambição de emular o status da classe dominan- questão foi diferente, e ainda hoje várias se te tradicional no terreno da propriedade da ter- mantêm privadas e fechadas ao público (e.g. ra e do controlo da natureza. Para os burgueses Bedford Square, Londres). de então, “the square gardens became their Para além do resto da Grã-Bretanha, on- landscape prospect and borrowed the same de surgiram em várias cidades, o modelo da aristocratic aesthetics to create an ‘imitation of praça foi exportado para o Império, obtendo the country’, with its symbolism of possession especial sucesso nos EUA após a conquista da of the land through the control of nature (idem, respectiva independência. A primeira praça pri- p. 104). vada seria aí construída em 1793, em Boston, Apenas em meados do século XIX have- cidade que viria a registar pelo menos mais ria de chegar ao fim a preponderância do mo- três praças residenciais entre os anos de 1801 delo da praça residencial. Ela refletiu ao longo e 1844 (Luymes, 1997). Também Washington, de mais de dois séculos a evolução da econo- DC, Baltimore e New Haven assistiram ao nas- mia, da estrutura social e da cultura inglesas. cimento do fenômeno durante as três primeiras Seu encerramento ou clausura, assim como o décadas do século XIX. Nova Iorque registou de muitas ruas que a circundavam, revelaram durante o mesmo período quatro praças, entre um desejo de segregação sem precedentes. É as quais Gramercy Park, construída em 1831 claro que, no caso dessa sociedade é sempre e que ainda hoje mantém o estatuto de um difícil decidir de que classes e de que cultura de jardim coletivo privado. À semelhança do que classe se trata, tão cedo se deu a mistura entre aconteceu em Inglaterra, também nos EUA, na a lógica da honra e a do dinheiro. Contudo, é caminhada para o século XX, as praças residen- certo que a cultura burguesa haveria de encon- ciais passaram de moda aos poucos, e quase trar sua maior e mais perfeita expressão numa todas se abriram ao público ainda durante o forma mais evoluída e mais autenticamente século XIX. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 185 Rita Raposo O subúrbio romântico planeado anglo-americano medida que progredia a densificação urbana, Ao mesmo tempo que o modelo da praça resi- crescia o desejo de isolamento doméstico e da dencial britânica perdia sua força, já no hori- “higiênica” separação das classes inferiores e zonte surgia uma outra forma de habitar que da cidade, no seio da burguesia ascendente a haveria de levar ainda mais longe o desejo de ideia do subúrbio avançava. De acordo com Ro- privacidade, de isolamento doméstico e de se- bert Fishman, o nascimento do subúrbio corres- gregação: o subúrbio anglo-americano. A Ingla- pondeu a uma forma completamente nova que terra primeiro e, poucos anos passados, os EUA exigiu e dependeu de uma profunda mudança seriam o palco desta versão mais desenvolvida de valores, incluindo os relativos à concepção do habitat burguês moderno. Essa, por sua vez, do espaço: do centro e da periferia, do espaço obteve várias formas, e apenas uma delas reali- do trabalho e da família, do privado e do pú- za a passagem direta da praça residencial clau- blico. Esse tipo de subúrbio consistiu, na opi- sulada para os atuais CFs: o subúrbio românti- nião daquele autor, na criação coletiva da elite co planeado. Esse consistiu numa variante que burguesa de Londres do final do século XVIII: se destacou no quadro mais amplo da suburba- uma obra improvisada e não planeada, sujeita nização anglo-americana (essa vaga que, desde ao método do ensaio e do erro, e resultado de o final do século XVIII, submergiu os arrabaldes várias decisões, frequentemente não coordena- de várias cidades de Inglaterra e dos EUA) e de das, de promotores, construtores e clientes. que a cidade passava a ser retratada como um locus infecto em vez do centro do mundo, e que que não pode ser isolado. É no subúrbio que o O quadro de motivos que inspirou tal habitat burguês encontra sua melhor expressão criação foi naturalmente complexo. Fishman já que nas praças residenciais inglesas apenas identifica no que Lawrence Stone designou se assistira a uma espécie de ensaio, de um co- por “the closed domesticated nuclear family” meço que arrancara do coração da própria so- a “força emocional” que haveria de separar a ciedade aristocrática. casa e o trabalho da burguesia. Por sua vez, a Ainda antes do fim do século XVIII, a esse “ímpeto cultural” haveria de se reunir um burguesia inglesa começou a construir villas importante quadro econômico. A suburbaniza- nos arredores de Londres, um movimento de ção trazia a possibilidade de terrenos agrícolas que haveria de nascer o subúrbio moderno. baratos, situados para além da prévia zona de De acordo com Robert Fishman (1987), o nas- expansão da cidade, serem transformados de cimento do subúrbio moderno associou-se a modo muito rentável em lotes para constru- um crescimento urbano sem precedentes e à ção de habitação: “this possibility provided the crise da forma urbana que este provocou. A es- great engine that drove suburban expansion ses juntou-se, pela mesma altura, um também forward (…), builders in both England and the inédito aumento da riqueza e da dimensão de United States adapted more easily to the needs uma elite mercantil, que assim atingia a mas- of suburban development that they did to the sa crítica suficiente para operar a transforma- more difficult challenge of creating middle- ção da cidade em função dos seus valores. À -class districts within the city. Suburbia proved 186 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade to be a good investment as well a good home” gótico moderno, o italianate, o Old English). O (Fishman, 1987, p. 10). Não fora a rejeição do modelo básico estava lançado. modelo urbano de vida, ao mesmo tempo que O subúrbio podia ser agora o objeto de se afirmava uma alternativa ideológica, e a uma única operação de promoção e constru- existência de condições econômicas propícias ção, para além de dispor de uma Arquitetu- e nunca esta mudança teria sido adquirida. A ra específica. Ele encontrar-se-ia na base do prová-lo parece encontrar-se o fato de, do ou- planeamento de um conjunto de novos su- tro lado da Mancha, o desejo de isolamento búrbios que haveriam de surgir desde o final doméstico e de segregação da burguesia do da década de 1830 nas franjas de cidades do continente ter seguido um outro rumo. norte de Inglaterra, e desde cerca de 1850 Segundo Robert Fishman, o subúrbio nos EUA. Nascia então o subúrbio romântico moderno só começou verdadeiramente quan- planeado anglo-americano. Em relação a Park do “the merchant elite shifted its primary Village existia apenas uma, mas importante, residence to the weekend villa, allowing the novidade: todo seu espaço era clausulado. De woman and the children of the family to modo significativo, foi em Manchester e em remain wholly separated from the contagions Liverpool que surgiram suas primeiras edi- of London while the merchants themselves ções. Corria o ano de 1837 quando nasceram commuted daily from their villas to London by Victoria Park e Rock Park, respectivamente. private carriages” (idem, p. 39). O momento Seguiram-se, entre outros, Prince’s Park, em exato em que tal ocorreu é, de acordo com o Liverpool, e Ladbroke Grove em Londres. Am- autor, difícil de determinar. Contudo, esse afir- bos foram construídos em 1842. Por sua vez, ma que existem registos de que, na última dé- nos EUA, nos anos de 1850, surgiram vários cada do século XVIII, Clapham, entre outros, já empreendimentos semelhantes ao mode- era um verdadeiro subúrbio conforme ao apon- lo inglês do subúrbio romântico. Alguns dos tamento anterior. Contudo, a esses haveria de primeiros exemplos foram Evergreen Hamlet, se seguir uma experiência mais completa: Park Pensilvânia (1851); Glendale, Ohio (1851); Village, surgida na década de 1820. Esse levava Llewellyn Park, Nova Jersey (1856) e Lake a assinatura de John Nash, arquiteto que habi- Forest, Illinois (1857) (Archer, 1988). tualmente apenas trabalhava ambientes aristo- O subúrbio romântico anglo-americano cráticos. Planeado de raiz, Park Village consa- foi planeado como um todo unitário, compos- grava o subúrbio anglo-americano como o mo- to por moradias isoladas distribuídas de forma delo das “houses in a park” (idem, p. 71). Cria- a obter-se uma baixa densidade, dispondo de va uma verdadeira fórmula, um habitat total e amenidades coletivas como parques, ribeiros, mercantilizável. Esta cruzava o pitoresco inglês lagos e árvores que isolavam visualmente as (a “paisagem à inglesa”) com a libertação dos casas umas das outras, e obedecendo ainda a estilos arquitetônicos em face da antes muita um modelo paisagístico romântico: ruas que usada regra Palladiana (renascentista, clássica, serpenteiam e formam meandros atravessam formal) da construção de villas suburbanas, e a o seu interior, harmonizando-se com a estética adoção da diversidade e do historicismo (e.g. o naturalística e pitoresca do plano geral (idem). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 187 Rita Raposo Esse tipo de espaço apresentava ainda como definitivamente o subúrbio como o seu locus características importantes o fato de ser mu- de residência preferido. Entretanto, era a norte rado e de dispor de portões que limitavam o que a população urbana trabalhadora ganhava acesso ao seu interior, impondo fisicamente o a verdadeira e dramática face do proletariado que todos seus restantes elementos já confor- urbano industrial moderno. Aí a burguesia tam- mavam: homogeneidade (e exclusão) social. A bém mudava de rosto: à medida que se trans- especialização funcional deste tipo de espaço plantava das empresas comerciais para a arena configura ainda outro tipo de “segregação”: da indústria cada vez mais sulcava o fosso que “market and service facilities are carefully a havia de separar dessa outra classe de que segregated away from the residential area; nascera, nalguns casos há uns séculos, noutros stables and mews are in part eliminated, and in possivelmente há muito menos tempo. part relegated to a distant corner of the estate” Robert Fishman elegeu, com razão, (Archer, 1988, pp. 224-225). Por último, deve- Manchester e seu subúrbio romântico planea- -se salientar uma característica fundamental do de Victoria Park, para análise. Da mesma do subúrbio romântico, que, de resto, garante a forma que Los Angeles foi escolhida por vá- possibilidade das restantes: o respectivo espa- rios autores contemporâneos como o paradig- ço era controlado por um só proprietário com ma da cidade pós-moderna, Manchester ou capacidade para impor um plano único, ante- Cottonopolis ficou especialmente conhecida rior ao seu desenvolvimento. Este modelo ob- como o modelo da cidade industrial moder- teve, como seria de esperar, algumas variações. na, em particular graças à obra A Situação da Nomeadamente, os casos inglês e norte-ame- Classe Trabalhadora em Inglaterra de Friedrich ricano não foram exatamente iguais. Contudo, Engels. Foi a rápida nitidez das divisões de clas- obedeceram por igual ao padrão acima descri- se que apressou a suburbanização em Man- to. Constituíram, assim, o mais perfeito e direto chester, que trouxe essa fuga burguesa do cen- ancestral dos actuais CFs, em especial na sua tro da cidade. Segundo Fishman tudo mudou versão suburbana. radicalmente numa década: entre 1835 e 1845. É significativo que tenha sido em Man- Só então surgiu o subúrbio de Manchester. O chester e em Liverpool, cidades industriais “medo de classe”, muito mais do que aconte- do norte de Inglaterra, que essa forma de su- cera em Londres, constituiu um dos principais búrbio clausulado tenha surgido em primeiro motivos dessa decisão “urgente” da burguesia, lugar. Fishman (1987) recorda que Londres se bem que o ideal do isolamento doméstico e permaneceu pouco industrializada quase até o trabalho da especulação imobiliária também ao fim do século XIX e que, como tal, se ca- tenham cumprido o mesmo papel que Londres racterizou ainda durante esse século por uma já conhecera. Apenas em Manchester e noutras certa complexidade pré-industrial, tanto no cidades congêneres se desenvolveram todas as que respeita às relações de classe, como à pressões sociais que haveriam de tornar o su- estrutura urbana. Esse quadro também é con- búrbio, para os burgueses, num caso de “vida sistente com o fato de, apenas após a década ou de morte”. Mais uma vez, a estratégia foi de 1870, a burguesia londrina ter escolhido a da segregação e do dissimular de tudo o que 188 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade pudesse estragar, numa visão insuportável, a “operação” Haussmann de “regularização” ilusão do paraíso. da cidade de Paris, a qual tratou de expulsar as Victoria Park, que Fishman apelidou de “classes perigosas” para a periferia da cidade. Exclusive Victorian Paradise, é um dos subúrbios Ora, nos EUA, tal como acontecera em In- românticos planeados anglo-americanos que glaterra, não existia coordenação nem vontade consideramos antecedente direto dos atuais política que pudesse dar origem a tal tipo de CFs. Vimos como aquele surgiu num contexto iniciativa. Ao mesmo tempo, este último país já em que, para além da enorme e concentrada disponibilizara a fórmula. Llewellyn Park, Nova mudança, se verifica um quadro de enormes Jersey, construído em 1857, é possivelmente o desigualdades e tensões sociais: “Because subúrbio romântico norte-americano mais fa- middle-class women and their families were moso. Como refere Fishman, Kenneth Jackson safely placed behind the walls of Victoria Park, (1985) insiste que esse último consistiu no “pri- the rest of Manchester could indeed be turned meiro subúrbio pitoresco do mundo”. É claro in a ‘furnace ground’. Because the bourgeois que o primeiro autor, seguindo a linha de ra- Eden had been realized in suburbia, human ciocínio que temos a vindo a apresentar sobre beings a short distance away could be left to a origem do subúrbio anglo-americano, contra- sink, in Engels’s phrase, ‘to the lowest level of põe que Llewellyn Park segue o modelo propor- humanity’” (idem, p. 102). Mas não foi apenas cionado por vários outros casos em Inglaterra. em Inglaterra que esse modelo de subúrbio Fishman invoca a este propósito o trabalho de surgiu. Tal também ocorreu nos EUA desde a John Archer (1988) sobre o subúrbio românti- década de 1850. Segundo Fishman, apesar de co anglo-americano, o qual também toma por já antes dessa data existirem algumas zonas de principal exemplo o caso de Llewellyn Park. Ar- villas burguesas nos arredores de cidades como cher relaciona, de forma particularmente inte- Nova Iorque, Boston e Filadélfia, e mesmo ressante, as características do subúrbio român- alguns núcleos que podiam ser considerados tico anglo-americano com alguns traços ideo- suburbanos, não se encontravam ainda aí lógicos, à época comuns às burguesias desses presentes as pressões sociais que conduziriam dois países: “individualismo” e “associação”. à criação e à preferência do subúrbio pela Esses dois elementos haveriam de se traduzir burguesia. Quando, em meados do século numa sociedade dividida entre várias “colônias XIX, surge também nos EUA a urgência em de classe” e, no que respeita aos subúrbios ro- isolar o habitat burguês, a opção não foi, mânticos de ambos os lados do Atlântico, dan- como na Europa continental, a de rasgar do origem a “enclaves residenciais”. Segundo espaço no centro da cidade para alojar as John Archer (1988), a ideologia do individualis- elites, expulsando as “classes inferiores” para mo está presente, a vários níveis, no subúrbio suas margens. De fato, na Europa continental romântico: desde a condição socioeconômica preferiu-se “limpar” o centro das cidades, o que de sua população até a arquitetura e a deco- se traduziu em várias intervenções urbanísticas ração das casas, passando pelo paisagismo e o de grande envergadura. A mais famosa foi a plano geral. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 189 Rita Raposo Finally, a few concluding observations will help tie both English and American suburban plans more closely to the circumstances that produced them. Residents and designers on both sides of the Atlantic were especially enamored of plans comprising complex webs of curving, winding streets. Commentators then and now have emphasized how these streets conform to the topography and enhance an awareness of the picturesque characteristics of the environment. In effect this is a middle-class version of what Raymond Williams identified as the eighteenth-century landed estate owner’s efforts to appropriate the surrounding landscape through visual and other means of landscape control. But there is too a deeper significance to this kind of suburban street pattern, one that addresses more fundamental aspects of the suburban mentality than just the propensity for aesthetic appropriation of nature. Curving, winding streets are aimless and they are timeless. They presuppose that one really doesn’t have to get anywhere and that one has all the time in the world to arrive (…). In some respects, these curving, winding streets are even placeless. To this day, many romantic suburbs pride themselves on at having street numbers for the houses. The implication is that the house and family define their own existence, without need of sanction or corroboration from the society at large. This of course ultimately becomes a supreme fiction, repudiating the very economic and political nexus that gives suburban residents the wherewithal to accomplish such individualistic endeavors. (Idem, p. 240) 190 A reedição contemporânea do fenômeno Como vimos, apenas a Inglaterra e os EUA têm uma história que permite rastrear a origem dos CFs. Apenas nesses dois países se reuniram todas as condições necessárias ao aparecimento dessas experiências “urbanísticas” já longínquas. Por essa altura, o espaço refletia significativamente, pela primeira vez (pelo menos a Ocidente), nas suas formas, a desigualdade social e a separação de classes. Ao longo do século XX, a modernidade e o capitalismo avançaram. Pôde-se assistir, de uma maneira geral, nos países do centro (cujo número entretanto se expandira), ao progressivo eliminar do duro quadro social que, nos primeiros tempos da sociedade industrial e capitalista, contribuíra para o surgimento do fenômeno. Perante essa evolução, os CFs parecem ter perdido a oportunidade por muitas décadas, revelando ter de fato constituído, na sua primeira edição, uma variante menor, localizada, e mesmo extremada, da segregação moderna, em especial do período do capitalismo selvagem. Chegava entretanto uma era de novos equilíbrios que, durante grande parte do século XX, caracterizou, ainda que de modo variável, diversas sociedades capitalistas e industriais. O pós-guerra haveria de, decididamente, trazer essas décadas doiradas de crescimento econômico e de “paz social”, associadas ao Fordismo e ao Estado de Bem-Estar. É claro que esses não acabaram nem com a desigualdade social Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade nem com a segregação moderna. Contudo, em Sua visibilidade e as potenciais tensões sociais regra, trouxeram uma fórmula de integração associadas, em ambos os momentos, parecem social que passava pelo trabalho e a produção, ter facilitado a segregação. sob cuja égide parecia poder a todos acomodar, Tais tensões parecem, precisamente, es- com a ajuda do Estado, se bem que, é claro, em tar na origem de vários sentimentos de insegu- lugares distintos. Desta forma, o sentimento e rança. Em primeiro lugar, surge o da inseguran- a experiência da ordem, do progresso, mesmo ça física que, atualmente, nalgumas cidades e que desigual, não parecem ter propiciado a regiões do mundo se encontra, objetivamente, expansão dessa forma de habitar que, na sua associado a situações dramáticas de pobreza, primeira edição, se encontrou inequivocamente crime e violência urbana, mas que, noutras, ligada a um quadro social de profundas trans- depende de outras fontes seguramente mui- formações estruturais e de extremas desigual- to menos extremas. Em segundo lugar, deve- dades, assim como de crise na experiência do -se também considerar o sentimento de inse- tempo, do espaço e da sociedade. gurança de classe (e do medo do “contágio” Não foi seguramente por acaso que a conducente à “excitação” do jogo da distinção segunda edição do fenômeno surgiu nos EUA, social) dos grupos que seguem na via ascen- um dos seus palcos originais, antes de atingir dente (em muitos casos, são estes os principais grande parte do mundo. A década de relan- “fornecedores” de residentes de CFs), em face çamento, 1970, também parece ser significa- da proximidade física de outros grupos sociais, tiva. Mais uma vez, o fenômeno se associa a situados em posição inferior, mas suficiente- um período de rápidas e profundas mudanças. mente visíveis para recordar aos primeiros a No caso dos EUA e de outros países é mes- fragilidade de sua própria posição, porquanto mo possível falar de uma transição histórica. ainda frequentemente “muito fresca”. Também Parece-nos legítimo estabelecer um paralelo no que respeita à cultura ou à “vida mental” entre o tempo que testemunhou a transição da metrópole, vale a pena chamar a atenção da sociedade tradicional para a modernidade para a importância, em ambos os momentos, e o que assistiu à chegada do pós-fordismo e dos “medos civilizacionais” e de perda de con- da pós-modernidade. A estrutura social e a trole sobre o espaço e a sociedade habituais. cultura de muitas cidades sofreram, em ambos É certo que esse quadro muito geral não os períodos, grandes transformações que ha- se aplica de modo exato a todos os locais on- veriam de revolucionar a organização do espa- de hoje proliferam CFs. Muitas das cidades em ço urbano. Ambos os momentos assistiram à que esses estão presentes não podem, de fato, formação de novas classes ou grupos sociais ser descritas como o palco de processos pós- e ao desenvolvimento de novas dinâmicas e -fordistas ou de pós-modernização, seja pelo relações de classe. Sublinhe-se em particular menos de forma significativa. Contudo, mesmo o fenômeno da polarização social, tradução si- quando assim acontece, assinala-se a presen- multânea da rápida mobilidade ascendente de ça de fenômenos equivalentes, a saber, gran- alguns grupos sociais e do aumento dos níveis de desigualdade, insegurança e instabilidade (e da transformação dos tipos) de pobreza. social. Mais, deve-se ainda notar que, tanto Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 191 Rita Raposo no caso da primeira como da segunda edição De fato, vários elementos parecem re- do fenômeno, se encontra, em regra, em jogo petir-se, tanto no que respeita às condições de outro tipo de condições sociais. Referimo-nos produção social, já vistas, como às principais a fatores que não evidenciam manter qualquer representações do tempo, do espaço e da so- relação específica com os antes enunciados ciedade que os CFs exibem: nomeadamente nem se associam, necessariamente, a qualquer por intermédio da sua forma construída (plano, forma particular de mudança social. Esses fa- arquitetura, paisagismo, toponímia, mobiliário tores parecem apenas depender de circunstân- urbano) e da sua apresentação publicitária (o cias políticas e culturais locais. Referimo-nos, que é especialmente válido, mas não exclusivo, nomeadamente, à situação em que a liberdade para a edição contemporânea). Nossa análise de ação do setor imobiliário e a ideologia do baseia-se na bibliografia internacional dispo- “privatismo” (McKenzie, 1994) se sobrepõem à nível sobre o assunto e na observação direta iniciativa pública e à sua capacidade de contro- do fenômeno na Área Metropolitana de Lis- lo do espaço e da sociedade. boa, que estudamos em profundidade desde a Na verdade, os CFs, tanto hoje como década de 1990, e noutros lugares do mundo no passado, apenas parecem ter oportunida- que tivemos a oportunidade de confrontar em- de e verdadeiro sucesso nos cenários em que piricamente. De um modo geral, em ambas as se observam a ausência ou a insuficiência, a suas edições, os condomínios fechados exibem- abstenção ou o fracasso, da intervenção esta- -se simbolicamente como “lugares” à parte tal na regulação do espaço e da sociedade e em que o tempo, o espaço e a sociedade são na provisão de bens públicos. Tal aconteceu completamente distintos de (e superiores a) o claramente por ocasião da primeira versão do mundo “normal”, “lá fora” (o que, em conjun- fenômeno. Foi no quadro do capitalismo liberal to, garante a “segurança” de seus residentes). e da opção pela (e da ideologia da) não inter- Comecemos pela forma como o espa- venção pública no território urbano que o mun- ço é normalmente representado. Recortados do anglo-americano experimentou uma forma fisicamente, os CFs são imediatamente forne- própria de fazer cidade e subúrbio muito dis- cidos com moldura e distância, o que contri- tinta da que se verificou na Europa continen- bui para sua identificação com a própria ideia tal moderna. E foi nesse mesmo contexto que, de paisagem, seja aquela em que a noção de como vimos, os condomínios fechados encon- “ideal estate” toma o lugar da de “real estate” traram seu primeiro lugar. Algo de semelhante (Mitchell, 1994). O seu espaço apresenta-se ex- ocorre nos nossos dias tal como o demonstra purgado de tudo (nomeadamente do seu Dark a geografia contemporânea do fenômeno. Ho- Side) o que o possa anular ou destruir como je, os cenários do fenômeno são mais amplos paisagem e, no mesmo ato, subtrair-lhe o seu e mais diversificados. Ainda assim, é de reco- valor como mercadoria. Nesta representação nhecer que, se bem que o tempo tenha trazido do espaço dos CFs, a ideia de natureza ocupa a inovação, existiu um modelo anterior cujas um lugar central desde as origens. Se bem que características principais se mantêm, a vários sempre domesticada, racionalizada e objeto de respeitos, surpreendentemente atuais. aturada “manicura”, aquela é normalmente 192 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade apresentada como “natural”. No passado, co- a origem dos CFs, é também hoje evidente, in- mo vimos, a preferência foi para a versão “pi- cluindo nos EUA. Nomeadamente para o caso toresca” (conforme à adoção da Paisagem à das MPC’s fechadas de Washington DC, Knox Inglesa). Contemporaneamente, multiplicam-se (1992, p. 215) observa que esses emprendi- os gostos: do primordial, selvagem ou nativo, ao mentos correspondem a “a collage of private ecológico, passando pelo pitoresco ou o exótico. worlds, each entered through substantial Por sua vez, o tempo, na representação portals in the manner of an English landed normal dos CFs, abandonou, distanciou-se estate, and each announcing itself on large da história e passou a ser um mito, por vezes and expensively sculpted and gilded signs uma memória, simultaneamente “calcificada” with names that draw freely on historic and e alheia ou mesmo uma nostalgia de coisa aristocratic themes”. nenhuma. Fixado e anulado pela distância Finalmente, no que respeita à representa- graças à própria imaginação do tempo, esse ção da sociedade, há que salientar a frequente tempo, tal como sucede com a estrutura dos tendência para a reunião (em proporções variá- mitos, é total e dotado de uma coerência ina- veis) do melhor de dois mundos: gemeinschaft tacável: é um tempo abstrato (passado ou fu- [comunidade] e gesellschaft [associação ou turo) e muitas vezes uma tradição inventada sociedade], conforme à fórmula de Ferdinand (Hobsbawm e Ranger, 1983). Essa represen- Tönnies (1979). Por um lado, as relações so- tação acomoda, muitas vezes, em simultâneo, ciais nos CFs são, em regra, apresentadas co- a promessa de um renascer absoluto, de uma mo calorosas, autênticas e morais e, por outro, nova vida, de um futuro brilhante (onde podem como racionais, civilizadas, meramente con- pontuar referências várias ao novo ou moder- viviais ou clubby e respeitadoras do indivíduo no), e a evocação de um passado nostálgico. e da privacidade familiar. Dadas as caracterís- Esse, por sua vez, encontra-se essencialmente ticas gerais dos CFs e a literatura disponível, associado a um imaginário aristocrático pré- é bastante mais provável que, de fato, a sua -moderno que parece garantir, como há mais vida social seja essencialmente dominada pe- de dois séculos, aos clientes dos CFs uma ve- las lógicas do individualismo, da privacidade e nerável e distintiva (falsa) identidade históri- da associação seletiva de indivíduos e famílias ca: nobreza, antiguidade, distinção, prestígio, do mesmo nível social, tal como já o referi- privilégio, refinamento, exclusividade… Esta ra Archer (1988) para o caso do subúrbio ro- espécie de “aristocracite”, seja a referência mântico anglo-americano. A referência à ideia insistente a um reportório simbólico que po- de comunidade (e de sua “busca” nostálgica) deríamos julgar já ultrapassado ou exausto, é particularmente frequente no caso dos EUA, aproxima claramente os burgueses contem- a propósito da qual, precisamente, existe uma porâneos dos de há muitos séculos… como se ampla discussão e controvérsia sobre sua exata a burguesia (ou a classe média, se se preferir) natureza (e.g. Low, 2003). Por sua vez, e ape- nunca pudera libertar-se de seus primeiros nas a título de exemplo, no caso português, o amos e antagonistas. A presença simbólica apelo à ideia de comunidade, se bem que pre- desta concepção do tempo, assinalável desde sente, é muito menos saliente, preferindo-se Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 193 Rita Raposo claramente a ideia de privacidade. Eis algo que resto já notado por vários autores: e.g. Fishman parece fazer sentido numa sociedade de mo- (Bourgeois Utopias, 1987); McKenzie (Priva- dernização tardia e portanto ainda sem lugar topia, 1994); Mike Davis (1990), pioneiro dos para nostalgias comunitárias como acontece estudos sobre os condomínios fechados con- nos EUA. Como recorda Bauman (2001, p. 3): temporâneos, que a propósito do caso de Los “Raymond Williams, the thoughtful analyst of Angeles evoca a dupla utopia/distopia; David our shared condition, observed caustically that Harvey (2000), autor que recorre ao conceito the remarkable thing about community is that de “utopia degenerada” de Louis Marin para a ‘it always has been’”. qualificação do fenômeno. É certo que a ideia Em conclusão, para além de todas as de utopia se identifica sempre com a crítica variações possíveis, não há lugar para dúvidas da sociedade existente; contudo, por natureza que as principais representações da sociedade, e definição ela é progressiva, carregando um do tempo e do espaço, exibidas pelos CFs (se- importante potencial de resistência. Em con- ja no passado, seja contemporaneamente), se trapartida, e ao contrário do que é comum ao harmonizam entre si para fornecer uma ima- utopianismo e ao gênero utópico em geral, o gem total, benigna, ordenada, esteticizada e reportório simbólico dos CFs tem apenas na- moralizada que se distancia (simbólica e fisi- tureza conservadora. Não corresponde nem camente) do mundo mais largo, normalmente a uma “utopia de reconstrução” nem a uma descrito como oposto e decadente. Desta for- “utopia de refúgio” (Mumford, 1963), mas, tão ma, aproximam-se (em conjunto) “perigosa- só, a uma estratégia de abandono e exclusão mente” da própria ideia de utopia, aspecto de do mundo e, assim, de celebração da casa. Rita Raposo Licenciatura em Sociologia, mestrado em Economia, doutoramento em Sociologia Econômica. Professora doutora. Professora auxiliar e Investigadora no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa, Departamento de Ciências Sociais e SOCIUS – Centro de Investigação em Sociologia Econômica e das Organizações. Lisboa, Portugal. [email protected] Nota (*) Este ar go não foi traduzido para a língua portuguesa em uso no Brasil. 194 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade Referências ARCHER, J. (1988). Ideology and aspira on: individualism, the middle class, and the genesis of the Anglo-American Suburb. Journal of Urban History, v. 14, n. 2, pp. 214-253. BARRELL, J. (1980). The dark side of the landscape: the rural poor in english pain ngs, 1730-1840. Cambridge, Cambridge University Press. BAUMAN, Z. (2001). Community: seeking safety in an insecure world. Cambridge, Polity Press. BEEVERS, R. (1988). The garden city utopia: a cri cal biography of Ebenezer Howard. Houndmills, MacMillan Press. BERGER, J. (1975). Modos de ver. Barcelona, Gustavo Gili. BLAKELY, E. J. e SNYDER, M. G. (1997). Fortress America: gated communi es in the United States. Washington, Brookings Ins tu on Press. CALDEIRA, T. (1996). Building up walls: the new pattern of spatial segregation in São Paulo. Interna onal Social Science Journal, n. 147, pp. 55-66. CALDEIRA, T. P. R. (2000). City of walls: crime, segrega on, and ci zenship in São Paulo. Berkeley, University of California Press. CARVALHO, M. C. (2001). Áreas violentas de São Paulo criam os “Condomínios de Pobre”. Folha de S. Paulo, 2/9/2001: 9. DAVIS, M. (1990). City of quartz: excava ng the future in Los Angeles. Londres, Verso. FISHMAN, R. (1987). Bourgeois Utopias: the rise and fall of Suburbia. Nova York, Basic Books. HARVEY, D. (2000). Spaces of hope. Edimburgo, Edinburgh University Press. HOBSBAWM, E. e RANGER, T. (eds) (1983). The invention of tradition. Cambridge, Cambridge University Press. JACKSON, K. (1985). Crabgrass fron er: the suburbaniza on of the United States. Nova Iorque, Oxford University Press. KNOX, P. (1992). “The packaged landscapes of post-suburban america”. In: WHITEHAND, J. W. R. e LARKHAM, P. J. (eds). Urban landscapes: interna onal perspec ves. Londres, Routledge. LAWRENCE, H. (1993). The greening of the squares of London: transforma on of urban landscapes and ideals. Annals of the Associa on of American Geographers, v. 83, n. 1, pp. 90-118. LOW, S. (2003). Behind the gates. Nova York, Routledge. LUYMES, D. (1997). The fortification of suburbia: investigating the rise of enclave communities. Landscape and Urban Planning, n. 39, pp. 187-203. MARCUSE, P. (1997). The enclave, the citadel, and the ghe o: what has changed in the post-fordist U.S. City. Urban Affairs Review, v. 33, n. 2, pp. 228-264. MCKENZIE, E. (1994). Privatopia: homeowner associations and the rise of residential private government. Yale, Yale University Press. MITCHELL, W. J. T. (ed.) (1994). Landscape and power. Chicago, The University of Chicago Press. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 195 Rita Raposo MOUDON, A. V. (1990). “Introduc on”. In: MOUDON, A. V., WISEMAN, B. e KIM, K. (eds). Master planned communi es: shaping exurbs in the 1990’s. Sea le, Urban Design Program/College of Architecture and Urban Planning/University of Washington. MUMFORD, L. (1963). The story of utopias. Nova York, The Viking Press. ______ (1964). La cité à travers l'histoire. Paris, Seuil. RAPOSO, R. (2002). Novas paisagens: a produção social de condomínios fechados na área metropolitana de Lisboa. Tese de Doutorado. Lisboa, ISEG/UTL. ______ (2003). New landscapes: gated housing estates in the Lisbon Metropolitan Área. Geographica Helve ca, v. 58, n. 4, pp. 293-301. ______ (2006). Gated communi es, commodifica on and aesthe ciza on: the case of the Lisbon Metropolitan Area. Geojournal, n. 66, pp. 43-56. ______(2008). Condomínios fechados em Lisboa: paradigma e paisagem. Análise Social, v. XLIII, n. 1, pp. 109-131. RAPOSO, R. e COTTA, D. (2009). Urbanisations closes, perceptions du (dés)ordre socio spatial et mé(con)fiance à l’État: le cas de la métropole de Lisbonne. Déviance et Société, v. 33, n. 4, pp. 593-612. RIBEIRO, L. C. de Q. (1996). Dos cortiços aos condomínios fechados. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. RICHERT, E. e LAPPING, M. (1998). Ebenezer Howard and the Garden City. Journal of the American Planning Associa on, v. 64, n. 2, pp. 125-127. SALGUEIRO, T. B. (1992). A cidade em Portugal: uma geografia urbana. Lisboa, Afrontamento. SENNETT, R. (1994). Flesh and stone. Londres, Faber & Faber. STONE, L. (1991). The public and the private in the Stately Homes of England, 1500-1990”. Social Research, v. 58, n. 1, pp. 227-252. TÖNNIES, F. (1979). Comunidad y Asociación. s.l., Ediciones Península. TUAN, Y. F. (1990). Topophilia: a study of environmental percep on, a tudes, and values. Nova York, Columbia University Press. VIEILLARD-BARON, H. (1996). Les Banlieues. Paris, Flammarion. WEHRHAHN, R. (2003). Gated communi es in Madrid: Zur Funk on von Mauern im europäischen Kontext. Geographica Helve ca, v. 58, n. 4, pp. 302-313. WEHRHAHN, R. e RAPOSO, R. (2006). “The Rise of Gated Residen al Neighbourhoods in Portugal and Spain”. In: GLASZE, G., WEBSTER, C., e FRANTZ, K. (eds.). Private ci es: global and local perspec ves. Londres, Routledge. WILLIAMS, R. (1993). The country and the city. Londres, The Hogarth Press. Texto recebido em 4/nov/2010 Texto aprovado em 15/dez/2010 196 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso Brasília: the straight lines in reverse or the intersection of usage Rosângela Vieira Neri Viana Karla Christina Batista de França Ananda de Melo Martins Resumo Este artigo analisa algumas expressões da metrópole que surgem no uso cotidiano do espaço. O ponto de partida é a utilização no espaço do Plano Piloto de Brasília – e sua inserção nele – por aqueles que, de certa maneira, rompem com as normatizações do uso e fazem emergir as contradições urbanísticas. Não se trata de um estudo sobre o plano urbanístico de Lúcio Costa, muito menos sobre o desdobramento da urbanização contemporânea, ainda que tais elementos constituam a tessitura da análise. Antes, refere-se a uma reflexão sobre a realidade expressa no sentido da cidade. Abstract This article aims to understand some expressions of the metropolis which emerge in everyday use of space. The starting point is the analysis of the usage/insertion within the Pilot Plan of Brasilia for those who somehow break the normatizations of usage and emerge urban contradictions. It is necessary to emphasize that we do not analize the urban plan of Lucio Costa, much less the unfolding contemporar y urbanization, even though those elements form the tessitura in our analysis. We are methodologically reflecting through practice and knowledge, the reality expressed towards the meaning of the city. Palavras-chave: cidade; metrópole; plano urbanístico; reprodução do espaço; urbano. Keywords: city; metropolis; urban planning; space representation; urban. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins como continuidade-ruptura e passividade-ativi- Introdução dade no uso do espaço. O que dizem tais materialidades especí- Marcovaldo sonhara o ano inteiro em poder usar as ruas como ruas, isto é, caminhar no meio delas: agora podia fazê-lo, e também podia passar os semáforos no vermelho, e atravessar em diagonal, e parar no meio das praças. Mas entendeu que o prazer não era tanto o de fazer essas coisas insólitas quanto o de ver tudo de um outro modo: as ruas como fundos de vale ou leitos secos, as casas como blocos de montanhas íngremes, ou paredes de escolhos. Italo Calvino ficas, contidas nos ritmos e imposições da metrópole7 na cidade brasiliense? O pressuposto é que, ao mesmo tempo, elas derivam e são derivadas da imbricação do espaço vivido ao espaço produzido e, consequentemente, ao espaço concebido8 na vida na cidade. Nessa profusão de ordem-desordem, nesse conjunto-disjunto, a cidade aparece na relação necessária entre sociedade e produção do espaço. Espaço em que desvãos trazem detalhes de um viver que escapam, posto que colocados lado a lado com as chamadas “desordens urbanísticas”, mas que fazem aparecer a cotidianidade na questão 1 Este artigo tem como objetivo analisar 2 algumas expressões da metrópole que emer3 gem no uso e no cotidiano do seu espaço na espacial. É um espaço cingido por tempos diversos, potência de humanidade e incoerências típicas da modernidade brasileira. metrópole. O recorte empírico utilizado corres- Com referência ao vivido, mediante uma ponde à prática espacial no Plano Piloto de Bra- aproximação com a realidade urbana, encon- 4 sília. A provocação da epígrafe mantém conso- tra-se o sentido da cidade. Nesse contexto, as nância com o tipo de uso que a grande maioria expressões da metrópole, ainda que essa seja dos habitantes5 da cidade de Brasília – o que analisada em seus avessos, podem ser obser- não é diferente em outras cidades – deseja, so- vadas nas moradias existentes nos subsolos nha e vive no espaço urbano. O sentido do urba- das quadras comerciais da via W-3 Norte, bem no, aqui, ultrapassa o modo de produção, pois é como nas grandes placas propagandísticas, um modo de consumo em que o pensamento e que ocultam outro andar, burlando as normas o sentimento caracterizam, também, um modo (de gabarito) previstas no ordenamento do de vida. Simultaneamente a uma lógica capita- Plano Piloto de Brasília.9 Todas essas expres- lista que ordena o território, ele dá o sentido e sões evidenciam a forma como um fundo que a materialidade às condições de reprodução das volta à superfície na composição da represen- relações de produção. tação urbanística (Virilio, 1993, p. 52). Tais ex- Configura-se um processo que ultrapassa os planos urbanísticos – a ordem cartesiana es- pressões, embora conflituosas, são constituintes da vida. pacial – e cria rupturas, ainda que cambiantes, Não se trata de rupturas na cidade na organização do espaço. E nesse movimento política, mas de adaptações que mantêm a a articulação entre plano, preservação e cidade urdidura do projeto urbanístico, tombado in- 6 acaba por favorecer, no cotidiano, fenômenos 198 trinsecamente, no sentido de habitar a cidade, Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso cujo processo é de tensão, mas costurado de possibilita elucidar os processos mediadores concordância. Quais seriam as tessituras des- imanentes à (re)produção do espaço, extensi- sa concordância? vos e imbricados ao sentido de cidade, do mun- Não são invenções, como referem do e da vida. Hobsbawm e Roger (2008), no que diz res- A consolidação da cidade de Brasília se peito à construção de tradições. As tessituras efetiva no contexto da dinâmica da ocupação mantêm um vínculo com uma formalização no do território do Distrito Federal e das peculia- espaço, como é o caso do plano urbanístico ridades desse processo. Dada essa característi- de Lúcio Costa, tombado pela Unesco, que ca, o espaço concebido está sempre sujeito a permanece como regra. Mas as mudanças nas um interromper que advém da força do vivido. destinações do uso sugerem que o espaço é Por isso, o uso do espaço no Plano Piloto, ao fim e meio (Lefebvre, 2004, p. 74), em um longo dos seus cinquenta anos, fornece alguns movimento da vida que tensiona a racionali- fios que encaminham a análise para o sentido dade urbanística. da cidade contemporânea. O corte é o enten- As quebras no uso normativo do espaço dimento da via secundária denominada W-3,10 no Plano Piloto são instigantes, embora não no caso específico, ruelas contíguas à W-3 Nor- contradigam os ritmos dessa capital, onde a te, que fazem parte das quadras denominadas técnica fixou a fluidez do tempo no espaço. A 70011 e abrigam comércio e serviços com um utilização do espaço ora o confirma, ora torna- perfil popular e com “má arquitetura”.12 Nas -se insurgência. Mas interessa que esse tipo de faixas das quadras 500, estão edifícios institu- utilização, tal como ocorre em alguns tipos de cionais e centros comerciais. moradia, nega a intencionalidade que contém Já na W-3 Sul, as quadras 500 encon- o tempo no espaço como superfície. A moradia tram-se ocupadas por estabelecimentos comer- humaniza e cria possibilidades de mudança, o ciais e as quadras 700, por residências. Esse que inclui retornar o desvio ao espaço, à sua comércio na W-3 Sul apresenta características materialidade em relação ao ritmo do corpo, e associadas a atividades variadas como bares, não da mercadoria. Mas quando tal ruptura se lojas de departamento, butiques, lanchonetes, dá para ganhos capitalistas, o tempo é tornado entre outros. Embora com índices de degrada- permanente, uma simples sucessão de horas ção urbanística, elas ainda guardam uma tra- (Virilio, 1993). dição. Na análise de Brandão (2009, p. 8), tal Com base em aporte metodológico que tradição é expressa no uso: faz uso da observação de formas urbanísticas no recorte indicado, registros fotográficos permitem uma reflexão, por meio da prática e pelo conhecimento, sobre a realidade expressa no sentido de viver na cidade. O fenomênico e sua articulação nas normatizações urbanísticas e na vida constituem um movimento que Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 A W-3 Sul serviu, também, de palco para as manifestações estudantis, da década de 1960, porque, segundo depoimento de um antigo morador, era mais fácil fugir pelas casas das 700 (que ainda não eram gradeadas) do que pela Praça dos Três Poderes.13 199 Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins O uso permitido para ocupação da W-3 social e historicamente construído no âmbito N, segundo as Normas de Edificação, Uso e da nação brasileira e também da história do Gabarito (NGB) 56/89, seria para comércio lugar, espacializando seus conflitos, suas con- de bens (abastecimento alimentar: mercado e tradições e lutas sociais. supermercado; artigos pessoais e de saúde; artigos eventuais; artigos excepcionais; automotores: peças e acessórios, revendedores de au- Nas linhas retas tomóveis, bicicletas e motos); prestação de serviços (financeiros, negócios, profissionais e de As determinações urbanísticas no Plano Piloto comunicação); serviços sociais (socioculturais); da cidade de Brasília constituem os mecanis- educação (ensino não seriado). A generalidade mos que formam e tornam a terra raridade. A da NGB 56/89 não delimita efetivamente o uso própria concepção do plano de Lúcio Costa, e a ocupação do espaço então analisado. com suas divisões setoriais, imensas áreas ver- No Plano Piloto de Brasília, tais adapta- des e ideologias, constitui a determinação limi- ções de sobrevivência tornam-se ainda mais tante à expansão e ao adensamento urbano, instigantes, tendo em vista o elevado custo de que provocam a escassez na oferta de terrenos. vida e a vigilância ostensiva do poder público e Essa oferta limitada, lado a lado à transforma- de algumas entidades de classe, em virtude do ção do plano urbanístico em patrimônio da tombamento do seu Projeto Urbanístico. Cha- humanidade, adiciona a esses terrenos maior ma a atenção o fato de as ruelas da W-3 Norte valoração imobiliária. Esses fatores contribuem serem muito diferentes das ruelas da W-3 Sul. para a alta valorização dos terrenos e para a Para Martins (2010, p. 12), “são os simples que elevação nos custos da produção imobiliária. nos libertam dos simplismos, que nos pedem a Consequentemente, também contribuem para explicação científica mais consistente, a melhor elevar o valor de venda das projeções, o que e mais profunda compreensão da totalidade tende a propiciar a formação de oligopólios e concreta que reveste de sentido o visível e o in- a produzir esses terrenos como raridades, co- visível”. Isso porque os meios de que os “sim- locando lucro e escassez numa mesma relação ples” necessitam conquistar para permanecer e valor de uso apenas alcançado para alguns. na cidade são muito mais complexos. A configuração do capitalismo mundial e A forma urbana concreta resulta tanto os mecanismos que comandam e regulam seu das políticas públicas e do planejamento terri- desempenho fazem surgir novas formas e con- torial do governo como dos respectivos impac- teúdos nas cidades, principalmente nas metró- tos e atos que compõem o cotidiano. Em con- poles. A busca de rendimentos e de lucrativida- junto, eles reproduzem a sociedade e o espaço. de leva os gestores públicos a desenvolverem A cidade define-se tal qual um produto social, políticas urbanas no âmbito do empresaria- como mediação nas relações de produção, por mento da cidade, semelhantes àquelas obser- sua capacidade organizativa e como lugar da vadas nas operações urbanas desenvolvidas produção de bens, serviços e sentidos. A cida- nas metrópoles. Por isso que a gestão finan- de resulta, portanto, de um processo político, ceira dos negócios desenvolvidos na grande 200 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso maioria das metrópoles, lado a lado ao setor (fixo, investido) e do capital variável (salá- de comércio e serviços de alto valor agregado, rios)” (Lefebvre, 1973, p. 49). Dessa maneira, contribui para que partes da cidade recebam a economia não prescinde da força de trabalho maiores investimentos do setor público. Essas barata e de um espaço com características lu- novidades, segundo Viana (2008), apresentam- crativas. Inerente a esse, há a heterogeneida- -se na materialidade do espaço, uma vez que de apresentada em suas formas e usos. Con- modificam a divisão do trabalho no conjunto tudo a dificuldade de explicar as relações que da sociedade e indicam outra produção espa- na cidade tornam possível o entendimento de cial específica para o conjunto dos meios de partes em seu conjunto é grande. A compreen- reprodução (do capital e da força de trabalho). são da realidade urbana requer pensar na vida No Plano Piloto de Brasília, edificações moder- cotidiana, substrato da mão de obra, fonte de nas evidenciam as adequações ao capitalismo riqueza capitalista. Por ser um tema complexo, financeiro nas representações das fachadas en- limita-se aqui a indicar algumas relações pos- vidraçadas dos imóveis e de produção de espa- síveis, mesmo que isso possa oferecer riscos ços para atender a uma classe privilegiada de de distanciamento dos fatos. Essa análise de- alto valor aquisitivo. manda uma unidade nas relações sociais sob É nesse sentido que afirmamos tratar-se de formas que guardam o empreendedorismo o sentido amplo de produção, extensivo ao espaço como mercadoria.14 urbano e que, pelo processo que as constitui, No que diz respeito à premissa de que a subsumem o tempo no espaço, tal como defi- cidade é uma mediação entre forças produti- ne Lefebvre (2004): tempo permanente posto vas e as relações de produção,15 o projeto de em superfície. Vale assinalar que o empreen- revitalização da via W-3 torna-se significativo. dedorismo urbano apresenta-se como conjun- Apesar de esse projeto ainda não ter sido im- to de ações políticas, econômicas e técnicas plementado, é interessante notar que, no seg- para impulsionar o desenvolvimento econômi- mento Sul e Norte da via W-3, há propostas co e social nas cidades. Não prescinde, assim, distintas para sua revitalização. Tais distinções quer da forma quer de projetos políticos urba- fazem emergir conteúdos geográficos signifi- nos que possibilitem a racionalidade da ação cativos. Vários registros jornalísticos da mídia capitalista e do uso da técnica, para realizar impressa e televisiva e próprio texto do proje- o sentido da urbanização nesse momento de to de revitalização mostram que, nas quadras desregulamentação e liberalização dos mer- 700 em especial, do Setor Comercial Residen- cados pelo modelo de produtividade dado na cial Norte (SCRN), ocorrem uma significativa atual mundialização. deterioração dos prédios e desvio do uso ur- Entretanto, outras formas de utilização banístico estabelecido. Esses desvios, já há al- do Plano Piloto tornam-se possíveis. Mesmo gum tempo, começaram a ser banidos, com a porque “todo crescimento econômico pres- retirada de alguns serviços, como por exemplo supõe [...], simultaneamente, a reprodução as lojas de revendas de automóveis.16 Contu- alargada da força de trabalho e da maquina- do, permanece ainda a diversidade de servi- ria, por outras palavras, do capital constante ços e comércios, lojas de autopeças, oficinas, Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 201 Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins pousadas, lanchonetes, moradias, bares, entre aprovaram a criação, ao longo do tempo, de lixo e edificações, destoantes da “bela arquite- três séries de blocos de uso misto. A primeira tura” existente no Plano Piloto. série de blocos, paralelos à via W-3 Norte, guar- Atualmente, nas quadras 700 da via W-3 da um padrão semelhante ao comércio central Norte, há duas categorias de zona urbana, di- de qualquer grande cidade, se o observador ferentemente do que ocorre na via W-3 Sul não estiver atento aos subsolos, cujo uso, em (Barreto, 2002, p. 37). No segmento norte, ur- sua maioria, foi modificado para residencial. banistas do Governo do Distrito Federal (GDF) Ali, quartos mal ventilados e iluminados, com Figura 1 – Janela vista do subsolo Foto: Rosângela Viana, 15 dez 2010. Figura 2 – Janela vista do plano da rua Foto: Rosângela Viana, 15 dez 2010. 202 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso banheiro e cozinha coletivos, são alugados Embora se perceba a adequação ao pla- em média a R$750,00 (dólar comercial em no urbanístico de Lúcio Costa, dada na simila- R$1,6810). Em registros fotográficos, consta- ridade e geometria nas construções aí existen- tou-se haver nesses ambientes grande acúmulo tes, essa área não recebe atendimento quanto de lixo, tanto nas ruelas quanto ao fundo das à prestação de serviços básicos, tal como lim- janelas protegidas por grades (Figuras 1 e 2) peza urbana e iluminação pública. O uso tan- construídas no nível do passeio, para levar um to para moradia quanto para fins comerciais pouco de ar aos subsolos. configura-se por uma ordem na desordem. A Entre os blocos da primeira e segunda ordem é expressa pela normatização imposta série, há uma ruela de circulação utilizada pe- no plano urbanístico, que se materializa nas los transeuntes. Nessa “ruela”, além das mo- construções, ao passo que a desordem se dá radias no subsolo, verificam-se também casas contrapondo-se a essa normatização, pelo uso construí das no nível do passeio e no andar diferenciado e não previsto. acima em cada uma da série de blocos. Na se- Essa permanência de algo que destoa da gunda série de blocos, especificadamente, en- norma diz sobre a comercialização de um espa- contram-se, ainda, diversos estabelecimentos ço integrado ao capitalismo, mas de outra eta- comerciais, como restaurantes, lan houses, lan- pa. Ou seja, uma etapa em que as demandas chonetes, entre outros. Todos esses elementos de configurações e mecanismos de acumulação apontam para emersão, com mais intensidade, capitalista eram outras, se comparadas à mun- do avesso das linhas retas de Lúcio Costa. dialização do capital da década de 1980 até o A proposta de revitalização sugere a momento atual. Momento esse caracterizado criação de circuitos viários, cujo objetivo é pelo conteúdo do empreendedorismo urbano, priorizar a passagem dos pedestres de forma constituído também por projetos de revitaliza- segura às quadras comerciais e residenciais, ção e instrumentalização da cultura como for- bem como forma de coibir que esses espaços ma de empresariamento da cidade. sejam utilizados como estacionamentos, a Mas se a delimitação do Plano Piloto não exemplo do que ocorre atualmente. No entan- impediu a consecução do espaço produzido to, os projetos de revitalização, em geral, não ora pelas necessidades cotidianas da socieda- envolvem os moradores desses espaços; pelo de, tais como pesquisa de campo mostrou, ora contrário, interferem na sua vida cotidiana pelas necessidades das realizações capitalistas, e transformam tais espaços da cidade para o esses conteúdos redefinem a dialética cidade negócio. Em contrapartida, é importante res- versus urbano. Até que investimentos sejam saltar que os cidadãos envolvidos podem, ou feitos no sentido de empresariar essa via em não, organizar-se, aumentando a possibilidade moldes semelhantes a outras áreas do Plano de permanência. Dessa maneira, “a luta emer- Piloto, as formas e aqueles que dela se apro- ge e se realiza no nível da vida cotidiana – é priam permanecem. Talvez aí resida um dos neste plano que percebem, lutam e reivindi- fios da rentabilidade que o espaço urbano pode cam” (Carlos, 2001, p. 300). oferecer por meio da organização do território Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 203 Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins de uma sociedade baseada na produção de que é preciso desvelar. Segundo Lefebvre mercadorias. Não importam quais sejam e em (1991, p. 13), o cotidiano pode ser expresso que condições. Interessa a funcionalidade do com sua miséria e sua riqueza, com base em espaço em correspondência à espacialidade no acontecimentos aparentemente triviais, ba- tempo do modo de produção. Não se trata de nais, mas que possibilitam desvendar a coti- reduzir a análise para o campo da economia dianidade, por “apresentar o tempo e o espa- vulgar, mas de compreender na contempora- ço ou o espaço no tempo”. neidade a organização do território para além Em observação das formas, alguns con- do discurso da desordem ou caos urbano, pos- teúdos podem ser inferidos, tendo em vista o to que as normatizações dadas ao espaço ur- fenômeno da apropriação por meio do uso bano, de maneira geral, realizam sua ordem, diferenciado ao longo das quadras 700, o que por meio da dramatização da vida cotidiana torna a ocupação intrigante por duas questões como desordem. centrais. A primeira refere-se às condições de moradia em si; a segunda diz respeito à intensidade de apropriação diversa. O avesso ou o entrecortar do uso A primeira questão indicada remete às condições de habitabilidade das residências dos subsolos na primeira e segunda série de blocos da W-3 Norte, tal como descrito na se- Tanto a moradia quanto as atividades comer- ção anterior. Trata-se de espaços, em geral, ciais e de prestação de serviços, observadas coletivos, com pouca privacidade para os mo- ao longo de toda via W-3 Norte, inadequa- radores e condições de higienização precárias, das ao plano urbanístico elaborado para cujos aluguéis são altos, se consideradas as Brasília, apontam para uma cotidianidade condições de moradia ofertadas (Figuras 3 e 4). 204 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso Figura 3 – Interior de moradia do subsolo Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010. Figura 4 – Interior de moradia do subsolo Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 205 Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins Quanto às residências encontradas na aumentando um andar na edificação que tam- terceira série de blocos da W-3 Norte, há de bém deveria ser apenas comercial. Alguns pro- se ressaltar as manobras que são feitas pa- prietários aumentam o número de andares de ra registro legal desses imóveis. Esses apar- forma explícita, outros utilizam placas comer- tamentos, em geral estruturados e alugados ciais, na tentativa de escamotear a ação irregu- individualmente, são vistoriados como imóvel lar, como evidencia a Figura 5. comercial, porém com estruturas que podem As condições de moradia nesses apar- vir a ser adaptadas para o uso residencial, as tamentos são melhores se comparadas às dos quais se modificam após a vistoria. cômodos no subsolo. Mas quando compara- A segunda questão pode ser observada das com as condições dos imóveis em geral também nessa mesma série de blocos, assim no Plano Piloto, os preços de aluguel são mais como em alguns edifícios das entrequadras do acessíveis. Ações como estas, seja as dos em- Setor Comercial Residencial Norte. São estraté- preendedores que camuflam irregularidades, gias usadas para burlar a norma de gabaritos, seja as dos moradores que resistem às ações Figura 5 – Ampliação de andar Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010. 206 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso segregadoras concebidas por um projeto urba- população com menor poder aquisitivo, que nístico, indicam práticas que trazem o avesso procura por residência e por acesso, ainda que da cidade de Brasília, que foge ao plano carte- em condições precárias, aos serviços disponí- siano em que a (re)produção da vida deve se veis no Plano Piloto de Brasília. Buscam evitar adequar às normas. Na ruela entre a primeira e um uso maior de tempo e de dinheiro com des- segunda série de blocos, as formas de moradia locamentos diários para chegar ao trabalho/ e algumas atividades comerciais (academia, estudo fortemente concentrado no Plano Pilo- cozinhas industriais, por exemplo) ocupam to. Para a análise, essa “opção” pela moradia uma área que, a priori, deveria ser destinada central evidencia que ao pensamento teórico a depósitos de mercadorias do comércio que é está posta a necessidade de compreender a exercido na superfície (Figura 6). centralidade, segundo Lefebvre (2008), como No entanto, ao longo de sua extensão, parte do direito à cidade, o direito ao urbano muitas dessas áreas foram transformadas, a construído a partir da vida cotidiana criativa e maior parte em espaço de moradia para uma humanizada. Figura 6 – Vista posterior de ruela W-3 Norte Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 207 Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins O cuidado que cada morador direcio- No que tange à relação de zelo, um dos na ao espaço em que vive, ao longo da ruela principais indicadores de uso desse espaço, entre a primeira e a segunda série de blocos, além das casas bem cuidadas na altura do mostra, por meio das aparências, partes que passeio – fachadas pintadas, jardins bem tra- indicam relação de zelo (quadras 711, 710, tados –, tem-se a arte na rua dada pela pre- 709). Para Lefebvre (2004, p. 81), a relação do sença dos grafites e a aparente relação de vi- homem tanto com a natureza quanto com sua zinhança (Figuras 8 e 9). Aos poucos, o espaço natureza é mediada pelo habitar. Os elemen- concebido se transforma, em certa medida, tos de uma humanização possível estão postos pelos usos presentes no cotidiano, atravessado nessa espontaneidade ou mesmo são vestígios pela vida cotidiana que, por meio de práticas, de arte e poesia, de reencontro com seus de- apontam a possibilidade sempre latente de sejos e seu corpo, ainda que permeados no humanização do urbano pela apropriação do vivido obscurecido pelo mundo da mercadoria espaço ao longo do tempo. e consequentemente de seu empobrecimento. O entrecortar do uso indica uma perma- Em outras partes, identifica-se aparente nência que traz o avesso da cidade. Ela se dá degradação, com acúmulo de lixo, principal- na busca pela sobrevivência em espaços pen- mente (Quadras 714, 713, 712), como demons- sados em linhas retas para um público mais se- tram as Figuras 7 e 8. Estaria esse conjunto de leto. Ou de um grupo de uma classe específica fotografias dizendo algo acerca da contradição de servidores do Estado, uma vez que Brasília, humana, entre desejo e racionalidade? Mas a especialmente o Plano Piloto, foi construída que indagações tais fotografias podem levar? para ser uma cidade política. Nesses termos, O que é, afinal, a problemática do habitar e o discurso normativo – que propugna a inter- não do habitat reduzido, cindido e esfacela- venção urbana como forma de sanar a violên- do, segundo Lefebvre (2004)? O habitar, se- cia em locais de precária existência material gundo esse autor, precisa ser analisado como e fomentar o progresso, pela implantação de fundamento basilar da sociedade e não como serviços e obras de infraestrutura – favorece subordinação e por ele ir para o horizonte pos- as condições da acumulação capitalista. Im- sível de nossa humanização. Para entender o possível negar a acumulação como presença habitar no contexto em que se torna habitat, imanente nos projetos de revitalização. Por é preciso pôr acento no capitalismo. É preciso isso, devem ser tratadas políticas urbanas que entender como os homens se inserem e são le- são, para serem analisadas e debatidas. Isso vados à sua margem e como nesse movimento para impedir que se perpetue a privatização perdem o uso, a cidade na condição de media- do espaço público e seja possível outro sentido ção da sua vida no e para o mundo. na produção do urbano. 208 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso Figura 7 – Área com forte degradação Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010. Figura 8 – Cuidado com a limpeza e aparência da ruela Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 209 Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins Foto 9 – Arte na rua, encontrada em algumas ruelas do recorte em análise Foto: Rosângela Viana, 15 dez 2010. Refere-se a um sentido que encontra possibilidades de romper, no processo de Aproximações ou conclusões metropolização do espaço, o aprofundamento O empreendimento analítico que se seguiu maior e mais amplo que suas significações ma- teve como objetivo compreender algumas ex- teriais e mercantis. Onde o retorno ao urbano pressões da metrópole, que emergem no uso apenas pode se iniciar pelo dissenso e por ou- cotidiano do espaço do Plano Piloto de Brasília. tra maneira de produzir a vida. Consequente- Espaço esse que é dado nos rompimentos das mente esses avessos urbanísticos deixariam de normas urbanísticas ou, tal como se denomi- ser momento negativo do urbano e criariam, nou aqui, no avesso urbanístico, que aproxima de fato, uma ruptura necessária para o envol- conceitualmente o entendimento da cidade e vimento da coletividade e de sua humanização. sua face metropolitana. 210 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso Evidencia-se a necessidade de compre- próprias e necessárias àqueles que habitam de- ensão das velhas e novas contradições, no âm- terminada cidade e a essas leis devem venerar. bito das desigualdades, que o espaço em sua A justiça é o ato de seguir tais leis. Natureza forma visível apresenta. Esta pesquisa empírica é tudo aquilo que todos os homens gregos, trouxe esses elementos da feitura espacial. São bárbaros e estrangeiros sentem. Por exemplo, as articulações fundantes do entendimento da necessidade de respirar, alimentar-se e respirar. unicidade desse processo. Era conhecido o risco Nesse sentido, para Antifonte, somos natural- de o empirismo hipostasiar o sentido da cidade. mente bárbaros ou gregos uns em relação aos Tal hipostasia poderia criar uma imagem outros, por desconhecermos e não venerarmos cujo conteúdo enfatizasse uma fixação ilusória as leis daqueles que moram longe. de interpretação. Para isso, considerem-se as Os conflitos se dão quando as necessi- partes do Plano Piloto que negam as normas dades naturais de cada um se defrontam com urbanísticas. Nesta pesquisa, trata-se da via as leis que compõem a justiça. A lição da razão W-3 Norte, principalmente a ruela e o transbor- grega aqui trazida nas questões de Antifonte damento de outros usos e avessos aí contidos, é que a diferença entre grego e bárbaro é cul- que poderiam fazer deste artigo uma mera tural e não uma questão natural. Nessa estei- descrição. Assim sendo, estar-se-ia retornando ra, o consenso grego significa obedecer a leis aos primórdios da ciência descritiva, com uma que são o sentido da cidade e que ainda assim simples crítica a uma parte que não “segue” as produzem conflito: entre direito da cidade e di- normas urbanísticas. Significaria a velha e sem- reito da família, entre o universal público e o pre renovada crítica que todos fazem a Brasília: universal privado que se aproxima e se articula “isso aqui não está no plano urbanístico de Lú- à propriedade. Se existe cidade, ela é definida cio Costa, fere o Patrimônio”. E nada disso diz pelo acordo, pela cultura e não pela natureza. A sobre que cidade-metrópole é esta. cidade é então definida pelo político. Eis então Essa postura, além de obscurecer a reali- o que se compreende como expressões possí- dade e, portanto, pôr a perder o sentido de pes- veis da metrópole: o conflito e a contradição si- quisar o espaço urbano, cria empecilhos a uma tuados na lógica capitalista do uso e no cálculo análise possível, mesmo que esta esteja ainda do útil. E que faz emergir o confronto parado- em seu início ou seja um esboço dela. A cidade xal (porque renegado) e contraditório entre a não pode ser traduzida apenas como traçado cidade (leis) e a natureza (a qual dela não se normatizado, ainda que obra de arte, única e escapa) no edifício das normas constituídas pe- patrimônio. As semelhanças do entendimento la verdade urbanística e pelas opiniões que se dos gregos em relação ao sentido da cidade tornam una. podem, talvez, fazer encontrar fios outros na No âmbito da cidade e assumindo o en- pesquisa. Tais como aquelas relações criadas tendimento grego de que ser justo é não pres- pelo sentido de cidade, de justiça e de nature- cindir as leis da cidade, pode-se pensar que a 17 za, especialmente em Antifonte. natureza é tudo aquilo que escapa ao político. Para esse pensador, quando é preciso Dessa maneira, as necessidades singulares estabelecer acordo, um grupo estabelece leis a cada cidadão, que ultrapassam o simples Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 211 Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins habitat , como ressalta Lefebvre (2004, pp. reforçam a representação das grandes cidades 80-81), e cuja vivência encontra-se em toda na atualidade: o tempo permanente ordenado sua complexidade, situam-se no campo da pela arquitetura. Quase como um eterno pre- natureza. Assim, a maioria das coisas justas, sente concretizado, sua função pode ser a de segundo o acordo feito pelo grupo na cidade, tornar a todos espectadores da cultura do pro- encontra-se em permanente conflito com a gresso, absorvendo, assim, até mesmo a critici- natureza (porque essa dá aos homens dese- dade em relação ao par contraditório cultura/ jos naturais e por isso inerentes). Em suma, o progresso. Vale dizer, cultura articula-se à inte- prescritivo (ordem urbanística) sobre o neces- riorização de valores comuns a todos. Portanto, sário (vivência concreta do ser) nada mais é difere do conteúdo de mudança que o progres- que a lei do cidadão e a lei do homem. Nes- so realiza, posto que é movimento. sa torção (ou seria um deus ex machina?) em Mas os avessos urbanísticos ainda assim que o fundo volta à superfície na composição permanecem. A concordância dessa permanên- da cidade-metrópole, tem-se as partes difra- cia reside na manutenção de uma arquitetura tadas no seu espaço. que, apesar de ser de “má qualidade”, não cria Pode-se compreender o espaço de re- confrontos. Antes, reforça adesões à formaliza- presentação como o transgredir a norma urba- ção do espaço produzido. De certa maneira, é nística no limite do tombamento. É do exterior praticamente possível afirmar que os avessos (aqui Plano Piloto) que provém a necessidade urbanísticos presentes na W-3 Norte são e es- de aqui permanecer e se submeter a tais condi- tão implicados em uma espécie de consonân- ções. Por isso, no intuito de escamotear o con- cia dada pela própria vida e suas urgências. flito, uma vez que esse traz em si a separação Desse modo, o discurso da degradação urbana na sociedade pela constatação de um modo joga com a culpa e com a opinião pública. A único de vida, a representação do espaço (es- presença dos avessos urbanísticos se dá pela paço concebido dado pelo plano urbanístico e existência de necessidades das pessoas quan- normatizado) produz e reproduz concepções do em coletividade, não de um mando político urbanas que fragilizam o fazer político. e menos ainda das leis da cidade. O discurso Esse fazer político permite o avesso do destrói a culpabilidade do poder público de sua plano urbanístico. Não parece ser estranho isso organização do território para a lógica mercan- numa capital onde os ritmos e a técnica am- til. É dessa maneira que o processo de urbani- pliaram a fluidez do tempo no espaço? Sim e zação produz e reproduz espaços diferenciados não. Se a cidade é ligada às forças produtivas e na metrópole, sob os auspícios de uma verdade à formação da mais-valia, isso explica o espaço que brotou das banalidades da vida, das opi- adequado a um tempo acelerado que permite niões públicas e das formas reconhecidas, para a realização da mercadoria. Concomitantes a preservar a áurea de cultura no movimento do essa velocidade, as construções no Plano Piloto progresso de que a cidade é assim tecida. 212 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso Rosângela Vieira Neri Viana Doutoranda em Geografia na Universidade Federal de Goiás. Goiânia, Goiás, Brasil. [email protected] Karla Christina Batista de França Doutoranda em Geografia na Universidade de Brasília. Distrito Federal, Goiás, Brasil. [email protected] Ananda de Melo Martins Msc. em Geografia da Universidade de Brasília. Distrito Federal, Goiás, Brasil. [email protected] Notas Este ar go, escrito a seis mãos, tem como colaboradores-pesquisadores os graduandos em geografia Leonardo Rocha de Castro e Tiago Sampaio, cujo auxílio foi imprescindível na coleta de dados empíricos. (2) O uso do termo “expressões” não significa o desprezo aos processos mediadores imanentes à (re) produção do espaço extensivos e imbricados ao sen do de cidade, do mundo e da vida. Mas como algo fenomênico que ar cula o plano da vida ao ins tuído e também às representações (Carlos, 2001). (3) Trata-se, neste momento, do co diano capturado e submerso nas funções corriqueiras do dia a dia, cuja dimensão, ainda que alienada às necessidades da sobrevivência norma zada, pode dar indica vos importantes à análise, tendo em vista que, de acordo com Damiani (2002, p. 161), o co diano apresenta diversos níveis de alienação e “envolve outros momentos da vida social, além do trabalho, sob sua lógica, momentos que já não são alheios, ingênuos à reprodução do capitalismo”. (4) Vesentini (1985, p. 107) afirma que “Brasília é uma só cidade, do Plano Piloto às cidades satélites”. O Plano Piloto não exis ria sem as cidades satélites – atualmente designadas Regiões Administra vas – e essas só existem em virtude do plano proposto para a construção da capital. (5) Vale-se aqui da definição de Lefebvre (2004, pp. 80-81) para habitantes, que não restringe os homens aos atos elementares de sobrevivência, e sim de vivência concreta. (6) Para Lefebvre (1991, p. 35), a noção de co diano não possui sen do fora das contradições do processo histórico. Nesses termos, ao caracterizar a sociedade em que se vive, compreende-se a co dianidade como o co diano situado nas relações do mundo. (7) As preocupações teóricas envolvem, para além do sentido da cidade contemporânea, o entendimento da definição metrópole: “Desse modo, a análise da metrópole se revela na simultaneidade e mul plicidade de lugares que se justapõem e interpõem, gerando situações de conflito, mas também revelando em seus fragmentos o mundo do vivido” (Carlos, 2001, p. 50). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 213 Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins (8) As noções de espaço concebido, produzido e vivido derivam das análises de Penna (2000, p. 13), a par r da obra de Lefebvre. Respec vamente, relacionam-se à “representação do espaço” (às deliberações sobre o espaço), à “prá ca espacial” (diz sobre a produção e reprodução das formas sicas no espaço) e ao “espaço de representação” (a prá ca co diana em que o valor de uso permeia qualita vamente seu significado e abre possibilidades de insurgências). (9) No Plano Piloto em Brasília, em virtude de sua concepção urbanís ca, em que os prédios são erguidos sobre pilo s, vendem-se projeções e não terrenos, uma vez que as áreas térreas dos prédios devem permanecer abertas para a livre passagem de todos. Tanto a altura dos prédios quanto a localização e a função foram estabelecidas no Projeto de Lúcio Costa. Aprofundam-se essas questões ao longo deste ar go. (10) A des nação inicial dessa via consta no Relatório Lúcio Costa: “Ao fundo das quadras estende-se a via de serviço para o tráfego de caminhões, des nando-se ao longo dela a frente oposta às quadras, à instalação de garagens, oficinas, depósitos do comércio em grosso etc., e reservando-se uma faixa de terreno, equivalente a uma terceira ordem de quadras, para floricultura, horta e pomar. Entaladas entre essa via de serviço e as vias do eixo rodoviário, intercalam-se então largas e extensas faixas com acesso alternado, ora por uma, ora por outra, e onde se localizaram a igreja, as escolas secundárias, o cinema e o varejo do bairro disposto conforme a sua classe ou natureza. O mercadinho, os açougues, as vendas, quitandas, casas de ferragens, etc., na primeira metade da faixa correspondente ao acesso de serviço; as barbearias, cabeleireiros, modistas, confeitarias etc., na primeira seção da faixa de acesso priva va dos automóveis e ônibus, onde se encontram igualmente os postos de serviço para venda de gasolina. As lojas dispõem-se em renque com vitrinas e passeio coberto na face fronteira às cintas arborizadas de enquadramento dos quarteirões e priva vas dos pedestres, e o estacionamento na face oposta, con gua às vias de acesso motorizado, prevendo-se travessas para ligação de uma parte a outra, ficando assim as lojas geminadas duas a duas, embora o seu conjunto cons tua um corpo só ”. (11) As quadras residenciais do Plano Piloto de Brasília estão dispostas ao longo do Eixo Rodoviário Norte e Sul que percorre toda a extensão das duas asas – Asa Norte e Asa Sul. As quadras que se localizam a oeste do Eixo têm como endereçamento as centenas ímpares (Quadras 100, 300, 500, 700 e 900). Já as quadras que se localizam a leste do Eixo são numeradas pelas centenas pares (Quadras 200, 400, 600 e 800). (12) Segundo Lúcio Costa, no “Plano de Preservação do Conjunto Urbanís co de Brasília”, do livro Brasília 57-85, p. 123, item 3.1. Disponível em: <h p://www.semarh.df.gov.br/005/00502001. asp? CD_CHAVE=15836>. Acesso em: 28 nov 2010. (13) Ar go disponível em: <h p://www.docomomo.org.br/seminario%208%20pdfs/189.pdf>. Acesso em: 2 dez 2010. (14) Em relação ao espaço como mercadoria, ver a dissertação in tulada A (re)produção do espaço como mercadoria: Pólo 3 - Projeto Orla extensões-latências (Viana, 2008). (15) Com a ciência de que esta ar culação entre forças produ vas (meios de produção e força de trabalho) e relações de produção (propriedade econômica das forças produ vas) possui ampla controvérsia no pensamento marxista, adota-se aqui a análise de Cohen (1978, especialmente o capítulo II). (16) Esses estabelecimentos foram transferidos para um novo local denominado Cidade dos Automóveis. (17) Cassin (1993) evidencia uma tradução possível de um autor grego cuja identidade ainda se discute. 214 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso Referências BARRETO, F. F. P. (2002). Concurso Público Nacional de Idéias e de Estudos Preliminares de Arquitetura e Urbanismo para a Revitalização das vias W-3 Sul e Norte, em Brasília-DF. Brasília Sustentável – Memorial. Brasília, DF. BRANDÃO, V. B. (2009). W3 Sul, ontem, hoje e amanhã – os dilemas de uma avenida modernista. 8º Seminário DOCOMOMO Brasil. Rio de Janeiro. Disponível em: h p://www.docommo.org.br CALVINO, I. (1994). Marcovaldo ou as estações na cidade. São Paulo, Companhia das Letras. CARLOS, A. F. A. (1994). A (re)produção do espaço urbano. São Paulo, Edusp. ______(2001). Espaço-tempo na metrópole. São Paulo, Contexto. CASSIN, B. (1993). “‘Barbarizar’ e ‘cidadanizar’” – ou não se escapa de An fonte (sobre a verdade, tradução e comentário). In: CASSIN, B.; LORAUX, N. e PESCHANSKI, C. Gregos, bárbaros, estrangeiros: a cidade e seus outros. Rio de Janeiro, Ed. 34. COHEN, G. A. (1978). Karl Marx's Theory of History: A defence. Oxford: Clarendon; Princeton: Princeton University Press. DAMIANI, A. L. (2002). “O lugar e a produção do co diano”. In: CARLOS, A. F. A. (org.). Novos caminhos da Geografia. São Paulo, Contexto. HOBSBAWM, E. e RANGER, T. (org.) (2008). A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra. LEFEBVRE, H. (1973). A reprodução das relações de produção. Porto, Publicações Escorpião. ______ (1991). A vida co diana no mundo moderno. São Paulo, Á ca. ______ (2004). A revolução urbana. Belo Horizonte, Editora UFMG. ______ (2008). Espaço e polí ca. Belo Horizonte, Editora UFMG. MARTINS, J. de S. (2010). A sociabilidade do homem simples: co diano e história na modernidade anômala. São Paulo, Contexto. PENNA, N. A. (2000). Brasília: do espaço concebido ao espaço produzido. A dinâmica de uma metrópole planejada. 2000. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. VESENTINI, J. W. (1985). Construção do espaço e dominação: considerações sobre Brasília. Revista Teoria & Polí ca. São Paulo, Editora Brasil Debates, ano 2, n. 7, pp. 102-121. VIANA, R. (2008). A re-produção do espaço como mercadoria: Pólo 3 – Projeto Orla extensõeslatências. Dissertação de Mestrado. Brasília, Universidade de Brasília. VIRILIO, P. (1993). O espaço crí co e as perspec vas do tempo real. Rio de Janeiro, Editora 34. Texto recebido em 30/out/2011 Texto aprovado em 10/dez/2011 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 215 O planejamento urbano e as enchentes em Dourados: a distância entre a realidade e a legalidade Urban planning and flooding in Dourados: the distance between reality and legality Bianca Rafaela Fiori Tamporoski Maria Aparecida Martins Alves Luciana Ferreira da Silva Joelson Gonçalves Pereira Resumo As enchentes urbanas estão presentes na realidade de grande parte das cidades brasileiras. Oriundas do desenvolvimento desordenado e da falta de planejamento, transformam-se em grandes desafios para os gestores, pois necessitam conciliar desenvolvimento com gestão ambiental do meio urbano. Este artigo apresenta um olhar sobre o panorama das enchentes no município de Dourados-MS, suas implicações, as medidas de controle empregadas pelo poder público e a necessidade de uma gestão integrada. Abstract Urban flooding is present in the reality of a large number of Brazilian cities. The result of disorderly development and lack of planning turns into a challenge for administrators, however we need to agree on development with urban environment planning in mind. This article looks at a panorama of fl ooding in the municipality of Dourados, MS, Brazil, its implications, control measures by the public powers and the need for integral planning. Palavras-chave: enchentes urbanas; planejamento urbano; Dourados; crescimento populacional; legislação. Key words : urban flooding; urban planning; Dourados; populational growth; legislation. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al. Introdução do escoamento superficial e a magnitude e O crescimento populacional, as mudanças nos dialmente para a redução do potencial de pre- padrões produtivos e de consumo ao longo dos juízos consequentes das inundações abrange últimos anos redefiniram o estado das águas, medidas de planejamento, ações construtivas, do solo, do ar, da fauna e flora e as condições operacionais e políticas. Trata-se de um conjun- socioambientais dos assentamentos urbanos. to de medidas preventivas e de métodos que O planejamento urbano, embora envolva fun- visam à minimização de prejuízos, caso ocorra damento interdisciplinar, na prática se realiza uma catástrofe. Os exemplos internacionais no âmbito mais restrito do conhecimento e demonstram de forma inequívoca que obras não tem considerado aspectos fundamentais, fluviais de proteção e controle de cheias torna- gerando grandes transtornos e custos para a ram-se desacreditadas e que soluções univer- sociedade e para o meio ambiente. sais inexistem (Frank, 1995). frequência das enchentes. O espectro das medidas aplicadas mun- No geral, as cidades brasileiras cresce- Nos países desenvolvidos, o abasteci- ram sem o devido planejamento, fato que traz mento de água, o tratamento de esgoto e o aos gestores um custo muito elevado que se controle quantitativo da drenagem urbana faz sentir em todo o aparelhamento urbano. estão resolvidos por meio de mecanismos de Como a maioria dos municípios brasileiros está investimentos e legislação, que obrigam a po- próxima aos vales e margens dos rios, tornam- pulação a controlar na fonte os impactos de- -se fundamentais o planejamento, a legislação vidos à urbanização. No entanto, os países em e a fiscalização por parte dos governos munici- desenvolvimento ainda estão muito aquém pais para diminuir os riscos e danos causados dessa realidade (Tucci, 2004). por desastres naturais, como os decorrentes O Brasil passou por profundas transfor- das inundações (Secretaria Nacional de Defesa mações econômicas, sociais e ambientais nas Civil, 2011). últimas décadas, que resultaram em grande As inundações são classificadas por pressão sobre os recursos naturais, tanto pe- Tucci (2001) como enchentes em áreas ribei- lo aumento da demanda, quanto pelas novas rinhas ou decorrentes do processo de urba- modalidades de uso. No processo de desenvol- nização. Nas áreas ribeirinhas trata-se de um vimento, o crescimento populacional e a urba- evento natural em que a água escoa do leito nização sem planejamento trouxeram implica- menor para o leito maior de rios, riachos e ções significativas ao ambiente urbano. Even- córregos. O impacto verificado neste evento tos da mais variada ordem resultam da falta de é devido à ocupação do vale de inundação planejamento e, dentre estes, estão as enchen- em períodos de estiagem ou de sequência de tes que, independentemente de sua magnitude, anos secos. Já as inundações que decorrem do alteram toda a fisiologia e a dinâmica urbanas. processo de urbanização têm sua origem na A prática de planejamento do uso e con- ocupação e impermeabilização do solo que servação dos recursos hídricos foi destacada promovem aumento no volume e velocidade pelo governo federal na Lei nº 9.433, de 1997, 218 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 O planejamento urbano e as enchentes em Dourados que institui a Política Nacional de Recursos Hí- Em Dourados, o crescimento desor- dricos e o Sistema Nacional de Gerenciamen- denado, a falta de planejamento urbano e to de Recursos Hídricos. As quais representam os assentamentos em áreas impróprias são um significativo avanço ao criar um sistema de os fatores condicionantes de uma realidade gerenciamento descentralizado e participativo, vivida por parte da população urbana, que em que a bacia hidrográfica é considerada co- tem sido vítima sistemática da ocorrência mo a unidade territorial básica de implementa- de inundações. ção desta política (Bonn, 1997). O processo de urbanização do município A política estabelece, ainda, como de Dourados teve início com o apoio de iniciati- ação do Poder Público, na esfera dos Poderes vas governamentais e privadas de loteamento Executivos Federal, Estaduais e do Distrito Fe- rural na forma de colônias, com pensamento já deral, a promoção da integração da gestão de fixado na produção em escala, para a comer- recursos hídricos com a gestão ambiental; e, cialização num centro político-administrativo e no caso dos municípios e do Distrito Federal, a comercial (Calixto, 2004). integração das políticas locais de saneamento A elevada propagação da lavoura me- básico, de uso, ocupação e conservação do solo canizada na região de Dourados desencadeou e do meio ambiente com as políticas federal e transformações profundas no arranjo da es- estaduais de recursos hídricos (Schubart, 2000). pacialização da população, afetando tanto o Quanto ao uso do solo, a Constituição meio rural, quanto o urbano. A expansão do Federal, em seu Artigo 30, delega essa respon- novo sistema agrícola determinou uma profun- sabilidade ao município. Porém, os estados e a da inversão demográfica que se manifestou no União podem estabelecer normas para o dis- esvaziamento do campo e a consequente ur- ciplinamento do uso desse atributo visando à banização acelerada (Terra, 2004). proteção ambiental, controle da poluição, saú- Essa nova perspectiva elevou as taxas de pública e segurança (Brasil, 1988). Dessa de ocupação humana no município; no entan- forma, observa-se que, no caso da drenagem to, esse fenômeno se deu de forma desordena- urbana que envolve o meio ambiente e o con- da e sem nenhum planejamento e gestão am- trole da poluição, a matéria é de competência biental. Dourados, assim como outras cidades concorrente entre Município, Estado e Fede- brasileiras, respondeu às correntes migratórias ração. A tendência é dos municípios introdu- através das determinantes sociais e econômi- zirem diretrizes de macrozoneamento urbano cas, e a população mais pobre se dirigiu para nos seus Planos Diretores, incentivados pelos os espaços menos desejados, como as regiões Estados (Tucci, 2004). É por meio do Plano de fundo de vale (Alves, 2001). Diretor que emerge/surge a oportunidade de Diante desse cenário, o presente traba- os municípios identificarem as áreas de risco lho se propõe a identificar os principais proble- e estabelecerem regras quanto à urbanização mas ocasionados pelas inundações em Doura- nessas localidades. dos/MS, e suas inter-relações setoriais. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 219 Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al. Metodologia Para o desenvolvimento deste trabalho, foi realizado o levantamento bibliográfico sobre o tema e da legislação que compõe o arcabouço legal do município que ampara a tomada de decisão do poder público quanto a gestão urbana. Os dados sobre a pluviosidade, durante os anos de 2009, 2010 e parte de 2011, foram obtidos junto ao laboratório de meteorologia da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa CPAO. Para obter informações sobre a ocorrência de inundações e seus efeitos para o município de Dourados, foram elaborados questionários estruturados com questões abertas, desenvolvidas especificamente para cada um dos seguintes órgãos: Defesa Civil Municipal, Secretarias Municipais de Meio Ambiente, de Saúde e de Planejamento e Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente – Comdam. As Secretarias Municipais de Meio Ambiente e de Saúde não responderam os questionários. estão os córregos Jaguapiru, Laranja Doce, Água Boa, Rego D’água, Paragem, Chico Viegas, Olho D’água (Dourados, 2003). A Lei Orgânica do município de Dourados prevê a proteção ao meio ambiente, a promoção de programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico, bem como o combate às causas da pobreza e fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos. Além disso, seu Plano Diretor traz em suas diretrizes o controle do processo da urbanização para possibilitar o equilíbrio entre a população urbana e rural e o ambiente, de acordo com os limites de sua competência (Dourados Geo, 1990). Segundo os princípios da política urbana municipal e territorial, considera-se que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade (Dourados, 2003). O atendimento aos interesses dos cidadãos é assegurado quando, simultaneamente, a propriedade tiver aproveitamento para atividades urbanas compatíveis com os equipa- Dourados: características urbanas e legislação mentos urbanos, ao preservar a qualidade do meio ambiente e não prejudicar a saúde e a segurança de seus usuários e da vizinhança e quando não se encontrar subutilizada ou uti- Dourados é o segundo maior município de lizada de maneira especulativa e irracional Mato Grosso do Sul, com uma área territorial (Dourados, 2003). de 4.086,244 km2 e com uma população de Todo loteamento deve ser previamente 196.035 habitantes, dentre os quais 92,36% submetido à Prefeitura Municipal, para estu- concentram-se na área urbana. O município está do de viabilidade e aprovação, amoldando-se a uma altitude de 430 metros, situando-se no às exigências da legalidade e da saúde públi- divisor d’água entre as bacias dos rios Brilhante ca, além de obedecer às regras relativas ao e Dourados, com solo de origem basáltica, zoneamento e às edificações, assim como aos mais conhecido como latossolo (Gressler e parâmetros definidos em cada instrumento le- Swensson, 1988; IBGE, 2010). Na área urbana gal, seja por lei ou regulamento. Entende-se por 220 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 O planejamento urbano e as enchentes em Dourados zona essencialmente urbana aquela já loteada Além disso, o Código de Obras orien- e que tenha sido beneficiada por serviços pú- ta os projetos e a execução de edificação no blicos, e por zona não essencialmente urbana município, assegura a observância de padrões aquela compreendida nos limites urbanos, po- mínimos de segurança, higiene, salubridade e rém em fase de expansão (Dourados, 1979b). conforto das edificações de interesse para a A aprovação de projetos de loteamento em terrenos baixos e alagadiços está condi- comunidade e promove a melhoria desses em todas as edificações de seu território. cionada à execução de obras de drenagem e O uso e a ocupação do solo são defini- aterragem, por parte do loteador. Nos lotea- dos pela lei complementar n° 008, de novem- mentos, as áreas de fundos de vales e onde bro de 1991, que dispõe sobre o zoneamento haja vegetação de porte devem ser respeitadas. de uso do solo e do sistema viário municipal As áreas verdes não podem ser loteadas e as em que constam os critérios estabelecidos edificações nestes locais só são permitidas em para os loteamentos e arruamentos em qual- casos especiais, conforme a Lei de Zoneamento quer nível, as edificações, obras e serviços pú- (Dourados, 1979a). blicos ou particulares, de iniciativa ou a cargo A execução de obras e edificações em de quaisquer empresas ou entidades, mesmo loteamentos sem aprovação oficial fica sujeita as de direito público, dependendo as constru- à interdição administrativa e demolição, sem ções de prévia licença da Administração Muni- prejuízo das demais cominações legais. A Pre- cipal (Dourados, 1991). feitura Municipal pode, ainda, promover o re- Segundo a lei municipal de uso do solo, loteamento de áreas já loteadas, para melhor fundo de vale é a faixa não edificável no sen- aproveitamento e enquadramento no zonea- tido de proteção aos cursos de água, cuja lar- mento de uso do solo (Dourados, 1979a). gura tem no mínimo cinquenta metros em cada Instituído em 1979 pela Lei nº 1.067, o margem, inclusive áreas alagadiças. As áreas Código de Posturas de Dourados dispõe sobre de fundo de vale dos loteamentos são de domí- as relações de polícia administrativa entre o nio do poder público e cabe a esse regulamen- Poder Público Municipal e os munícipes. tar seu uso (Dourados, 1991). Entretanto, as construções e reformas, Dourados também possui uma Política efetuadas por particulares ou entidades pú- Municipal de Meio Ambiente, conhecida como blicas, a qualquer título, são reguladas pela Lei Verde, instituída pela Lei Complementar n° lei municipal nº 1.391 (Código de Obras), de 055, de dezembro de 2002, que objetiva manter 1986, além de obedecerem às normas federais o meio ambiente equilibrado, através do desen- e estaduais relativas à matéria, bem como a volvimento socioeconômico orientado em bases Lei Municipal nº 1.040, de 1979, e legislações sustentáveis. Para tanto, em seus princípios es- complementares. Esta lei complementa as exi- tão o planejamento e a fiscalização do uso dos gências de caráter urbanístico estabelecidas recursos naturais, a gestão do meio ambiente por legislação municipal que regula o uso e a com a participação da sociedade nos processos ocupação do solo e as características fixadas decisórios sobre o uso dos recursos naturais e para a paisagem urbana. nas ações de controle e de defesa ambiental. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 221 Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al. O município, de acordo com a Lei Verde, deve adotar normas relativas ao desenvolvi- Resultados e discussão mento urbano que levem em conta a proteção ambiental, estabelecendo dentre as funções A Defesa Civil de Dourados realizou, por exi- da cidade, prioridade para aquelas que deem gência da Lei Federal n° 12.340, um trabalho suporte, no meio rural, ao desenvolvimento de de monitoramento no município no primeiro técnicas voltadas ao manejo sustentável dos semestre de 2011 com apoio da Secretaria recursos naturais cerceando os vetores de ex- Municipal de Serviços Urbanos – Semsur, do pansão urbana em áreas ambientalmente frá- Planejamento, Assistência Social e Habitação, geis ou de relevante interesse ambiental (Dou- com a finalidade de mapear as áreas de risco rados, 2002). e monitorar os danos provocados por desastres Além disso, esta Lei estabelece a necessidade de programas permanentes de implan- naturais e socorrer as famílias que moram nestas áreas (Dourados Agora, 2011). tação e manutenção da política de saneamen- O levantamento exigiu a criação de uma to básico, de preservação das áreas protegidas comissão técnica de caráter multidisciplinar do Município e a criação de outras necessárias (Mídia MS, 2011), com o objetivo de reivindi- ao equilíbrio ecológico e ao bem-estar da po- car recursos do Estado e da União para drenar pulação, com ênfase para as áreas de manan- as áreas de risco de inundações e garantir a se- ciais e para a recuperação dos corpos hídricos gurança das famílias ribeirinhas (Lange, 2011). poluídos ou assoreados e sua mata ciliar (Dou- Conforme informações do coordenador rados, 2002). da Defesa Civil de Dourados, o município sofre Para tanto, as áreas de proteção aos sistematicamente com inundações em períodos mananciais devem ser demarcadas pelo poder chuvosos. De acordo com o levantamento, fo- público através de lei específica e considerar ram identificados 20 pontos do perímetro urba- as ocupações e usos já existentes, as restri- no sujeitos a alagamentos (Tabela 1) e, atual- ções são impostas pelo zoneamento quanto mente, cerca de 600 famílias, aproximadamen- aos usos mais intensivos, bem como índices te 2.500 pessoas, vivem em áreas de risco, às de impermeabilização do solo e coeficientes margens de córregos, e precisam ser removidas de ocupação máxima para cada propriedade com urgência para regiões mais seguras (Mídia (Dourados, 2002). MS, 2011). O Poder Público Municipal pode estabe- De acordo com as informações obtidas, lecer consórcios intermunicipais para a recupe- as áreas consideradas com risco de inunda- ração e preservação das bacias hidrográficas, ção em Dourados localizam-se às margens dos para tanto deve elaborar um programa prio- córregos Rego D’água, Paragem, Laranja Doce ritário para a recuperação das matas ciliares e Água Boa. Como esses mananciais cortam consideradas pelo Código Florestal como áreas diversos bairros, uma das regiões mais atingi- de preservação permanente, a despoluição e a das por inundação ainda é o grande Cachoei- descontaminação dos corpos hídricos nas Áreas rinha, o que corrobora com os resultados en- de Proteção aos Mananciais (Dourados, 2002). contrados por Alves (2001) e com a ocorrência 222 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 O planejamento urbano e as enchentes em Dourados Tabela 1 – Localização dos pontos de alagamentos ocorridos devido a enxurradas ou inundações bruscas em Dourados e distribuição de pessoas atingidas Região de Dourados Subdivisão da Defesa Civil Pontos de alagamento Noroeste Setor 1 1 Norte Setor II 2 Nordeste Sudoeste Sul Sudeste Setor III Setor IV Setor V Setor VI 6 5 4 2 Bairros atingidos Localidades/ruas dos bairros atingidos Moradias afetadas Aurora Augusta e Cornélio Cerzósimo de Souza 8 I - Jardim Monte Líbano Ivinhema e Dom João VI 25 II - Jardim dos Estados* Hiran P. de Mattos, Maria da Glória e Antonio A. de Mattos 15 I - Jardim Santa Herminia Caburé 1 II - Residencial Caiman Oliveira Marques, Ciro Mello, Projetada “D” e Projetada “E” 16 Chácara Flora III - Residencial Pantanal Rua das Garças e João Vicente Ferreira 4 IV - Vila Nova Esperança Jateí 8 V - Jardim Pelicano* Continental e Rua “N” 80 VI - Jardim Santa Maria Joaquim de Barros 4 I - Vila Cachoeirinha Bolívar L. Rocha, José Martins, Manoel J. da Silva, Projetada C08C, Projetada C10C e General Osório 219 II - Vila N. Sra. Aparecida Apepinos, Corredor 01 e Bolívar L. Rocha 20 III - Vila Bela Miguel Luiz de Oliveira 19 IV - Jardim Clímax Joaquim Távora, Cuiabá e Afonso Pena 69 V - Jardim Londrina Avenida da Liberdade 10 I - Jardim Santo André Humaitá 5 II - Jardim Colibri Rua das Ingazeiras, das Jaqueiras e das Mangueiras 10 III - Jardim Água Boa Vinte de Dezembro e Mato Grosso 17 IV - Jardim Guaicurus Rodovia MS 156 32 I - Jardim do Bosque Projetada 05 8 II - João Paulo II Vereador Ataulfo de Mattos, Jaime Moreira, João Borges e Antonio do Amaral 22 Fonte: Defesa Civil Municipal, Dourados, 2011. * Bairros que também sofreram desastres naturais de causa eólica além de alagamentos devido a enxurradas ou inundações bruscas. de atendimentos realizados pela Defesa Civil, Boa, onde suas águas ocupam o leito maior que se concentraram nos bairros Vila Cachoei- com a precipitação. Esse evento é agravado rinha, Jardim Pelicano, Jardim Clímax e Jardim pela impermeabilização do solo à montante Guaicurus em que foram atendidas respectiva- que acelera o escoamento superficial e inten- mente 219, 80, 69, 32 moradias. sifica a magnitude de inundação em períodos A incidência de inundações no bairro Vila chuvosos. Outro fator importante é a existência Cachoeirinha decorre primeiramente da dinâ- de moradias às margens de ambos os córre- mica natural dos córregos Rego D’água e Água gos muito próximas do leito maior, bem como Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 223 Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al. o acúmulo de resíduos às suas margens que pois é no verão que a ocorrência de tempesta- ganham as águas facilmente e contribuem pa- des e chuvas bruscas, de grande intensidade ra o estrangulamento de seu curso em pontos e curta duração, contribuem para a incidência estreitos e seu consequente transbordamento. de inundações. No Jardim Pelicano, as inundações decor- Na Tabela 2, encontram-se os valores rem de fatores como declive e velocidade da para temperatura, umidade relativa do ar, ve- água das chuvas que avolumam as enxurradas. locidade do vento e pluviosidade, onde é possí- No Jardim Clímax, as inundações resultam do vel observar que a ocorrência dos períodos de aumento do volume das águas pluviais que maior pluviosidade está concentrada nos me- chegam ao córrego Água Boa por meio de ga- ses chuvosos que vão de janeiro a março e de lerias e contribuem para seu transbordamento. outubro a dezembro. Porém, no ano de 2009, a Neste local, encontra-se o assentamento popu- chuva foi intensa nos meses de julho e agosto, larmente conhecido como “Favela do Jardim caracterizando um ano atípico de inverno chu- Clímax”, onde as moradias muito próximas das voso. Em 2010 e parte de 2011, a ocorrência de galerias de águas pluviais são afetadas pelas chuvas foi típica para a região, com delimitação inundações em períodos chuvosos. clara dos períodos de seca e chuva. Para o Conselho Municipal de Defesa do Outro problema no município são Meio Ambiente – Comdam, atualmente o maior os lotea mentos irregulares em áreas de problema relacionado às inundações em Doura- preservação ambiental, localizados ao lon- dos concentra-se nas margens do Córrego Rego go do Córrego Paragem e na região do alto D’água, principalmente, na “Favela do Jardim e médio Córrego Laranja Doce que eventual- Clímax”, dados que corroboram as informações mente sofrem com inundações. obtidas junto à Secretaria Municipal de Plane- De acordo com a Secretaria Municipal jamento. Esta ocupação irregular teve início na de Planejamento, em algumas das áreas de década de 1970 e persiste até os dias atuais. O risco, como ao longo do Córrego Paragem, poder público municipal elaborou um projeto na região do Cachoeirinha e do Clímax, já para a construção de casas populares destina- houve a remoção dos invasores para conjun- das a essas famílias e o incluiu no PAC – Progra- tos habitacionais populares construídos para ma de Aceleração do Crescimento do Governo essa finalidade. Entretanto, houve reinvasão Federal em 2007. As casas estão sendo construí- por novos moradores que, muitas vezes, são das no prolongamento do Jardim Flórida. Con- familiares dos primeiros invasores. Isso de- tudo, com atrasos no cronograma desde 2009, monstra que os instrumentos de controle so- a cada chuva, as famílias que ali se encontram cial, de regulação e de fiscalização não estão continuam sofrendo com as inundações. atuando de forma eficaz, quadro que repre- Segundo a Defesa Civil Municipal, os senta um aspecto negativo para o município, principais períodos em que ocorrem os even- uma vez que o programa do Governo Federal tos mais significativos de cheias e alagamen- para solucionar este tipo de problema não tos estão entre os meses de outubro a março, contempla reinvasão. 224 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 O planejamento urbano e as enchentes em Dourados Tabela 2 – Médias mensais de temperatura (T), umidade relativa do ar (UR), umidade relativa máxima do ar (UR max), umidade relativa mínima do ar (UR min), velocidade do vento (V. Vento) a dois metros e o total da precipitação, de janeiro de 2009 a junho de 2011 Ano 2009 Vel. vento (m/s) Precipitação (mm) 60,21 1,81 194,4 55,7 1,27 80 99,22 57,33 0,88 56,4 99,57 66,14 1,91 55,4 84,43 99,86 66,43 1,32 52,1 80,75 99,67 73,58 1,13 124,2 93,88 100 77,25 1,38 140,18 82,29 98,14 57,71 1,63 49,1 23,17 86,7 98,9 65,5 1,66 241,1 26,21 82,92 97,5 57,67 1,94 238,6 Mês T (ºC) UR (%) UR max. (%) UR min. (%) janeiro 24,36 85,07 99,50 fevereiro 24,94 86,3 99,6 março 24,94 85,33 maio 19,87 87,71 junho 19,57 julho 16,71 agosto 18,09 setembro 22,49 outubro novembro dezembro 24,7 83,5 94,93 56,79 1,42 337,9 janeiro 24,88 83,63 95 59,56 1,36 39,6 fevereiro 24,92 82,46 95,15 54,77 1,39 217,4 março 25,08 78 95,67 46,17 1,68 91,0 abril 23,07 86,67 96 62 1,68 24,2 maio 18,27 84,43 96,43 63,29 1,92 161,4 junho 21,1 84 96 63 1,38 2,0 julho 13,55 81 95 65,5 1,73 49,8 agosto 14,65 87,5 96 70 1,45 35,8 setembro 19,96 86,38 97,25 68,13 1,44 177,4 outubro 20,81 80,5 97,13 54,5 1,70 84,2 novembro 22,73 78,71 97,29 52 1,47 117,4 dezembro 23,87 84,73 98,36 58,73 1,20 104,5 janeiro 25,17 83,07 98,8 52,33 1,1 289,6 fevereiro 24,65 85,89 99,26 55,05 1,07 196,4 março 23,69 86,73 97,87 63,27 1,31 126,6 abril 22,24 85,89 99,11 57,56 1,20 214,8 maio 17,5 92 100 81 1,84 5,8 junho 14,05 86 97,5 68 1,85 122,9 2010 2011 Fonte: Embrapa/CPAO, 2011. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 225 Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al. As inundações também atingem os bair- escoamento da água, além da implantação de ros Estrela Porã, Novo Horizonte e Parque do tubulação de drenagem para desviar o grande Lago II e no Jardim Caiman, e nesse último, em volume de água que desce do bairro Parque algumas residências a água da chuva já atin- das Nações I em direção ao túnel, desviando giu cerca de um metro e meio de altura. As fa- a enxurrada para uma área de várzea próxima, mílias ficaram isoladas, foram removidas pela porém essas medidas não foram suficientes Defesa Civil e, posteriormente, encaminhadas para impedir as inundações no local (Dourados à Casa da Acolhida e ao Estádio Frédis Saldi- News, 2011). var, até que pudessem retornar ao bairro. Nes- Nesse mesmo período, a área central sa região, o alagamento provocou a interdição da cidade também sofreu com alagamentos do Posto de Saúde da Família – PSF 34, devido devido a falhas na manutenção e limpeza do às inundações nas suas dependências. Outros sistema de captação de água pluvial. Por essa pontos inclusos no planejamento de contenção razão, a Secretaria de Serviços Urbanos tem de riscos encontram-se no Jardim João Paulo realizado a limpeza das galerias subterrâneas II, no trecho da Rua Antônio do Amaral, onde (Dourados News, 2011). várias famílias ficam ilhadas em dias de chuva forte (Lange, 2011). A ocorrência de inundações no município de Dourados revela que as ações por parte dos Em 2009, foi feito um financiamento pela gestores devem estar centradas em medidas de prefeitura junto à Caixa Econômica Federal, no controle e minimização desse tipo de impacto. valor de R$35.320.906,78 para custear as obras Tais medidas passam pelo o gerenciamento dos e serviços relativos aos projetos de manejo de recursos hídricos integrado ao planejamento águas pluviais para o controle e minimização de urbano, de modo a incorporar uma abordagem inundações no âmbito do Plano de Aceleração que adote os aspectos ambientais, sociais, eco- do Crescimento – PAC (Dourados, 2009). nômicos e políticos, destacando-se o primeiro, Porém, na segunda quinzena do mês de pois a capacidade ambiental de dar suporte ao março desse ano, também ocorreram eventos desenvolvimento possui sempre um limite, a de inundações no túnel sob a BR-163 que liga partir do qual todos os outros aspectos serão o Parque das Nações I ao Parque II, isolando inevitavelmente afetados (Bonn, 1997). completamente os dois bairros. A manutenção O município dispõe de arcabouço legal da rua que passa sob a rodovia é de responsa- apropriado e de órgãos de controle e partici- bilidade do município e as margens da BR são pação pública na figura dos conselhos muni- de domínio da União, o que exigiu uma parce- cipais e secretaria de meio ambiente, os quais ria para a elaboração e execução de um projeto têm pressionado o poder público no sentido de definitivo para resolver os problemas de alaga- cobrar a solução dos problemas relacionados à mentos nesse local (Dourados News, 2011). defesa do meio ambiente e, consequentemente, A solução do problema foi baseada em da invasão das áreas de preservação ambiental. medidas emergenciais como a limpeza da par- Dentre as medidas realizadas pelo te interna do túnel e a abertura de valetas, Comdam quanto às áreas de preservação am- em sistema de curva de nível, para facilitar o biental, está a notificação junto à prefeitura 226 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 O planejamento urbano e as enchentes em Dourados para uma maior atenção às Zonas Especiais de andamento o projeto de construção do Con- Interesse Ambiental – ZEIA e Áreas de Preser- junto Habitacional Ipê Roxo, com 186 mora- vação Permanente – APP’s, pois a pressão para dias que contemplarão famílias de baixa renda construção de moradia, por parte da popula- que vivem em áreas de risco. Outro projeto em ção, é grande em Dourados e as áreas sujeitas andamento refere-se à urbanização da bacia a inundações devem ser monitoradas e cerca- hidrográfica do córrego Paragem, que prevê a das a fim de evitar a ocupação indevida. Além remoção de invasores, e a implantação de um disso, atualmente, este conselho está revendo a parque linear. As obras relativas ao córrego “Lei Verde” e tencionando o poder público mu- Rego D’água foram retomadas pela prefeitura. nicipal para que revise o Plano Diretor e a Lei O cercamento de todas as áreas de pre- do Uso do Solo. Sabe-se que a legislação de- servação ambiental e a fiscalização das mes- ve passar por adequações quando necessário, mas pela Polícia Ambiental não foram ações porém uma das necessidades mais prementes elencadas como prioritárias pela atual adminis- é o poder público dotar a administração de tração municipal, embora, segundo a Secretaria estrutura capaz de fiscalizar e fazer cumprir as de Planejamento, tais ações possam contribuir leis e normas que regem a sociedade. preventivamente na redução de invasões e de Os recursos para atender a demanda de habitação popular destinada à retirada de construções de moradias irregulares em áreas de risco. pessoas residentes em áreas de risco são pro- Dentre as próximas ações do governo venientes do Governo Federal através do Mi- Municipal, está a alteração do Plano Diretor, nistério das Cidades, de fundos destinados a que teve início em agosto de 2011, com a parti- programas sociais. O Estado pode entrar com cipação da sociedade. Também é objeto de dis- parcerias, como, por exemplo, nas obras de cussão a expansão do perímetro urbano de 82 saneamento básico. Ao Município cabe soli- km2 para 205 km2 e, consequentemente, a revi- citar recursos por meio de projetos e, quando são da Lei de Uso do Solo do Município, já que atendido, é sua responsabilidade geri-los para uma ação está diretamente vinculada à outra. resolver as invasões em áreas de preservação Se a expansão da área urbanizada das cidades ambiental e de risco. sobre o território necessariamente implica al- As áreas destinadas aos loteamentos gum tipo de impacto sobre o meio ambiente, para construções de habitações populares quando ela ocorre de forma precária e incom- com o objetivo de remover as famílias residen- pleta, mais impactos ainda ela provoca quando tes em áreas de fundo de vale são adquiridas não atende às exigências técnicas necessárias pelo município, compradas de terceiros, onde ao parcelamento do solo não respeitando os a Prefeitura deve implantar a infraestrutura condicionantes do meio físico (Moretti e Fer- do novo loteamento. nandes, 2000). De acordo com o último levantamento Outro grande problema da cidade de da Prefeitura, são aproximadamente 7.500 Dourados corresponde à drenagem urbana e, pessoas, com renda de 0 a 3 salários, que ne- para atender a esta demanda, foram requeri- cessitam de moradias. Atualmente, está em dos recursos federais através da elaboração Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 227 Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al. de projetos de drenagem pluvial que contem- estão muito além da capacidade de seu equa- plam, inclusive, o estudo de impacto ambien- cionamento (Silva e Travassos, 2008). tal dessas obras. Segundo a Secretaria de Diante dessa situação, o país necessita Planejamento, na abertura de loteamentos as desenvolver uma cultura de gestão integrada ruas apenas são asfaltadas sem a instalação das águas, pois, atualmente, o que existe é de obras de drenagem. O asfaltamento sem uma multiplicidade de agentes, com objetivos a devida infraestrutura de drenagem provoca e responsabilidades conflitantes. Cada um vi- impactos em todo o aparelhamento urbano, sualiza uma única função e um único uso para como se verifica no bairro Jardim Universitá- a água, de acordo com seus interesses e ne- rio, localizado atrás do Centro Universitário cessidades. O resultado é uma série de inter- da Grande Dourados – Unigran, onde existem venções descoordenadas que frequentemente ruas destruídas pela erosão provocada pela geram significativos danos ao meio ambiente, força da água das chuvas. além de desperdiçar os recursos disponíveis Para a Secretaria de Planejamento, as (Bonn, 1997). inundações, além de causar muitos prejuízos à população atingida, também causam impacto sobre os trabalhos desenvolvidos em vários setores e secretarias municipais. Contudo, sabe- Conclusão -se que as medidas preventivas necessárias para que esse quadro seja sanado em Dourados O número de casos de alagamentos atendidos envolve o planejamento urbanístico e ambien- pela Defesa Civil de Dourados apenas no pri- tal da cidade, focando o bem comum e o futuro meiro semestre de 2011 cresceu muito quando de todos os cidadãos, não apenas os interesses comparado aos dois anos anteriores. Também particulares de poucos. houve aumento no número de pessoas com A falta de integração entre os setores necessidade de remoção das áreas de preser- que promovem a gestão municipal afeta di- vação ambiental e de risco, o que demanda a retamente o meio ambiente, a população e construção de moradias populares, dependen- onera os cofres públicos, pois as limitações do, assim, de recursos federais para a imple- das ações do poder público em muitas cida- mentação das obras. des brasileiras estão indevidamente voltadas Do ponto de vista da gestão, o poder para medidas estruturais com visão pontual público municipal trata o problema das inun- (Tucci, 1997a), o que resulta, dentre outros, dações de forma setorial quando retira e rea- da incapacidade de conceber políticas públi- loca a população invasora de áreas de risco. cas que levem em conta não somente o efeito, Uma perspectiva reducionista que enxerga mas também suas causas de transformações apenas a ocupação humana em regiões sujei- do espaço urbano (Tucci, 1997b). Esse distan- tas a inundações ao contrário de contemplar ciamento também decorre do imenso passivo o planejamento urbano que considere a re- socioambiental existente nessas cidades, onde dução da impermeabilização do solo confor- os problemas de degradação socioambiental me o crescimento populacional e que esteja 228 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 O planejamento urbano e as enchentes em Dourados integrado a uma gestão ambiental focada no forma intersetorial. Isto significa elaborar e de- manancial hídrico da cidade e desconsiderando senvolver o planejamento urbano considerando o retrato da realidade nacional. a cidade como um todo, de forma sistêmica e Embora, saiba-se que o planejamento integrada, levando em conta as interações entre urbano é o caminho mais curto e econômico as intervenções humanas e o meio natural no para solucionar os problemas com eventos de âmbito do manancial constituinte das bacias hi- inundações e todas suas consequências des- drográficas pertencentes ao território municipal, truidoras e onerosas, o que se observa é uma diminuindo, assim, a distância entre a realidade inabilidade dos gestores em fomentar um pla- socioambiental do município e o discurso conti- nejamento urbano e ambiental organizado de do nas agendas e documentos. Bianca Rafaela Fiori Tamporoski Graduada em Química, cursando Especialização Latu Sensu em Planejamento e Gestão Ambiental na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil. [email protected] Maria Aparecida Martins Alves Graduada em Ciências Biológicas, Mestrado em Desenvolvimento Sustentável, professora auxiliar da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil. [email protected] Luciana Ferreira da Silva Graduada em Matemática, Mestrado em Desenvolvimento Sustentável, Doutorado em Economia Aplicada. Professora adjunta da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil. [email protected] Joelson Gonçalves Pereira Doutorado em Geografia Humana. Professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados. Mato Grosso do Sul, Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 229 Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al. Referências AGÊNCIA NACIONAL DAS ÁGUAS – ANA (2011). A ANA na Gestão das Águas. Disponível em: <h p:// www.ana.gov.br/gestaorechidricos/usosmul plos/default.asp>. Acesso em: 16/3/2011. ALVES, M. A. M. (2001). Vulnerabilidade socioambiental da população ribeirinha da Vila Cachoeirinha. Dissertação de Mestrado. Brasília, Universidade de Brasília. BONN, N. (1997). Aspectos legais da gestão dos recursos hídricos. Quinta Reunião Especial SBPC (Floresta Atlân ca diversidade biológica e sócio-econômica), Blumenau. Anais.... São Paulo, SBPC, pp. 89-92. Disponível em: <h p://comiteitajai.org.br:8080/bitstream/123456789/1104/13/ Aspectos_legais_da_gestao_dos_recursos_hidricos.pdf>. Acesso em: 26/3/2011. BRASIL, (1988) Cons tuição da República Federa va do Brasil: DF, Senado Federal, 1988. CALIXTO, M. J. M. S. (2004). Produção, apropriação e consumo do espaço urbano: uma leitura geográfica da cidade de Dourados-MS. Campo Grande, UFMS. DOURADOS (1979a). Regula os loteamentos e terrenos urbanos. Lei n° 1041, de 11 de julho de 1979. ______ (1979b). Código de Posturas do Município de Dourados. Lei n° 1067, de 28 de dezembro de 1979. ______ (1990). Lei Orgânica do Município de Dourados. Lei de 5 de abril de 1990. Disponível em: <h p://www.camaradourados.ms.gov.br/arquivos/lei_organica.pdf>. Acesso em: 30/3/2011. ______ (1991). Dispõe sobre o Zoneamento de Uso do Solo. Lei Complementar n° 008, de 5 de novembro de 1991. ______ (2002). Polí ca Municipal de Meio Ambiente. Lei Complementar n° 055, de 19 de dezembro de 2002. ______ (2003). Plano Diretor de Dourados. Lei Complementar n° 72, de 30 de dezembro de 2003. ______ (2009). Decreto Lei n. 306, de 6 de outubro de 2009. Diário Oficial do Município, ano XI, n. 2.616, p. 8, 7/10/2009. ______ (2011). A Cidade – Síntese histórica e perfil. Disponível em: <h p://www.dourados.ms.gov.br/ ACidade>. Acesso em: 19/8/2011. DOURADOS AGORA (2011). Municípios têm prazo para encaminhar levantamento de áreas de risco para Defesa Civil. Disponível em: <h p://www.douradosagora.com.br/no cias/meio-ambiente/ municipios-tem-prazo-para-iden ficar-areas-de-risco>. Acesso em 1/3/2011. DOURADOS GEO (2003). Disponível em: h p://geo.dourados.ms.gov.br/geodourados/map.phtml. Acesso em: 6/4/2011. DOURADOS NEWS (2011). Disponível em: <h p://www.douradosnews.com.br/leitura.php?id=6387>. Acesso em 1/3/2011. EMBRAPA CPAO (2011). Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Centro de Pesquisa Agropecuária Oeste. Base de Dados Meteorológicos. Disponível em: h p://www.cpao.embrapa. br/clima/index.php?pg=base_dados. Acesso em: 5/7/2011. 230 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 O planejamento urbano e as enchentes em Dourados FRANK, B. (1995). Uma abordagem para o gerenciamento ambiental da Bacia Hidrográfica do Rio Itajaí, com ênfase no problema das enchentes. Tese de doutorado. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina GRESSLER, L. A. e SWENSSON, L. J. (1988). Aspectos históricos do povoamento e da colonização do Estado de Mato Grosso do Sul - destaque especial para o Município de Dourados. Dourados, Estado de Mato Grosso do Sul. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE (2010). Sinopse do Censo Demográfico 2010 – Brasil. Disponível em: <h p://www.ibge.gov.br/cidadesat/link.php?codmun=500370>. Acesso em 4/5/2011. LANGE, M (2011). Áreas de risco em Dourados abrigam 600 famílias. Disponível em <h p://www. progresso.com.br/dia-a-dia/areas-de-risco-em-dourados-abrigam-600-familias>. Acesso em: 1/3/2011. MÍDIA MS (2011). Defesa Civil faz monitoramento de áreas de risco para enchentes. Disponível em: <h p://www.midiams.com.br/site/cidades/defesa-civil-faz-monitoramento-de-areas-de-riscopara-enchentes-23033.html>. Acesso em 1/3/2011>. MORETTI, R. S. e FERNANDES, A. (2000). Sustentabilidade urbana e habitação de interesse social. CD 8º Encontro Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído (Salvador), São Paulo, Associação Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído. SCHUBART, H. O. R. (2000). O zoneamento ecológico-econômico e a gestão dos recursos hídricos. In: MUÑOZ, H. R. (org.). Interfaces da gestão de recursos hídricos. Desafios da Lei de Águas de 1997. Brasília, Ministério do Meio Ambiente, Secretaria de Recursos Hídricos. Disponível em: <h p:// www.uff.br/cienciaambiental/biblioteca/rhidricos/parte3.pdf>. Acesso em: 26/3/2011. SECRETARIA NACIONAL DE DEFESA CIVIL (2011). Ocorrência de desastres. Disponível em: <h p:// www.defesacivil.gov.br/desastres/index.asp>. Acesso em 16/3/2011. ______ (2011). Ocorrência de desastres. Inundações. Disponível em: <h p://www.defesacivil.gov.br/ desastres/recomendacoes/inundacao.asp>.Acesso em 16/3/2011. SILVA, L. S. e TRAVASSOS, L. (2008). Problemas ambientais urbanos: desafios para a elaboração de polí cas públicas integradas. Cadernos Metrópole, n. 19, pp. 27-47. TERRA, A. (2004). A organização do espaço rural na microregião geográfica de Dourados/MS. Dissertação de mestrado. Maringá, Universidade Estadual de Maringá. TUCCI, C. E. M. (1997a). Água no meio urbano. Disponível em: <http://4ccr.pgr.mpf.gov.br/ ins tucional/grupos-de-trabalho/residuos/docs_resid_solidos/aguanomeio%20urbano.pdf>. Acesso em: 25/3/2011. ______ (1997b). Plano Diretor de Drenagem Urbana: princípios e concepção. Revista Brasileira de Recursos Hídricos – RBRH, v. 2, n. 2, pp. 5-12. ______ (2001). Aspectos Ins tucionais do Controle das Inundações Urbanas. Avaliação e controle da Drenagem Urbana. Porto Alegre, Ed. ABRH, pp. 405-419. ______ (2004) Gerenciamento integrado das inundações no Brasil. Revista Rega, v. 1, n. 1, pp. 59-73. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 231 Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al. TUCCI, C. E. M. e BERTONI, J. C. (2003). Inundações urbanas na América do Sul. Porto Alegre. Disponível em: <http://www.iph.ufrgs.br/corpodocente/tucci/DisciplinaDrenagem.pdf>. Acesso em: 26/3/2011. TUCCI, C. E. M. e COLLISCHONN, W. (1998). Drenagem urbana e controle de erosão. VI Simpósio Nacional de Controle de Erosão. Anais. Presidente Prudente, v. 1, pp. 92-101. Disponível em: <http://4ccr.pgr.mpf.gov.br/institucional/grupos-de-trabalho/residuos/docs_resid_solidos/ SED.PDF>. Acesso em: 26/3/2011. Texto recebido em 24/out/2011 Texto aprovado em 2/dez/2011 232 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Changes in the socio-occupational structure of the Brazilian metropolises, 1991-2000 Suzana Pasternak Resumo O trabalho apresenta os resultados de um estudo comparativo com 10 metrópoles e uma aglomeração urbana no Brasil, procurando observar as semelhanças e diferenças entre as estruturas socioocupacionais das metrópoles estudadas e sua evolução entre 1991 e 2000. Trata-se de responder às questões: 1) como a reestruturação produtiva afetou a estrutura sócio-ocupacional de cada metrópole no fim do século passado; 2) se a evolução entre 1991 e 2000 foi semelhante nas aglomerações estudadas; 3) quem são os componentes das distintas categorias sócio-ocupacionas nas diferentes metrópoles das grandes regiões brasileiras. Todas as metrópoles estudadas tiveram crescimento demográfico maior na periferia que no núcleo. Embora as metrópoles sejam específicas, há certa semelhança na sua estrutura: no ano 2000, em todas as ocupações médias predominam. No Sudeste, é nítida a perda de dirigentes, mas apenas em São Paulo percebeu-se aumento significativo da base da pirâmide social. Abstract The paper shows the results of a comparative study with ten metropolises and an urban agglomeration in Brazil, trying to observe the similarities and differences among their socio-occupational structures and their evolution between 1991 and 2000. It answers the following questions: 1) how the productive restructuring affected the sociooccupational structure of each metropolis at the end of the last century; 2) whether the evolution between 1991 and 2000 was similar in the agglomerations that were studied; 3) who are the components of the different socio-occupational categories in the metropolises of the large Brazilian regions. The demographic growth of all the studied metropolises has been higher in the periphery than in the central part of the city. Although the metropolises are specific, there is a certain similarity in their structures: in the year 2000, all the middle jobs were predominating. In the Southeast, the loss of leaders is clear, but only in São Paulo has a meaningful increase in the basis of the social pyramid been noticed. Palavras-chave: estrutura sócio-ocupacional; metrópoles brasileiras; reestruturação produtiva nas metrópoles. Keywords: socio-occupational structure; Brazilian metropolises; productive restructuring in the metropolises. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Suzana Pasternak Introdução social, alicerçada na indústria da informação, em especial nas grandes metrópoles, estaria assentada, de um lado, na existência de profis- O Observatório das Metrópoles tem desenvol- sionais altamente qualificados e bem remune- vido estudos e pesquisas que visam contribuir rados e, de outro, em um contingente de tra- teórica e metodologicamente para os deba- balhadores menos qualificados e de não menos tes, no âmbito da academia, das instituições importância, como secretárias, faxineiros e tra- governamentais e não governamentais e dos balhadores de manutenção, configurando uma movimentos sociais, sobre os impactos sociais estrutura social no formato de ampulheta. Essa produzidos pelas transformações econômicas imagem, que não encontra unanimidade junto que ocorrem no Brasil, desde meados de 1980. aos pesquisadores, estaria em contraposição Esses impactos se externalizam particularmen- à de um ovo, que representa a predominância te nas grandes cidades e nas regiões metro- das camadas médias e operárias na estrutura politanas, onde as transformações adquirem social e a presença reduzida dos estratos supe- maior significado. A polêmica que alimenta o riores e inferiores dessa estrutura. debate está centrada nos efeitos da reestrutu- Com base nesses pressupostos, e preten- ração produtiva sobre o mercado de trabalho, dendo verificar a procedência ou não das teses com significativas alterações na oposição entre da global city na realidade brasileira, foi ela- as classes sociais, que marcou a era industrial borada uma hierarquia sócio-ocupacional com fordista, e o surgimento de uma nova estrutura a construção de um conjunto de categorias, a social, marcada por uma crescente polarização partir das variáveis censitárias de ocupação se- entre estratos superiores e inferiores da socie- gundo a Classificação Brasileira de Ocupações dade. Essas questões estão no centro das dis- (CBO), criada de acordo com as diretrizes da cussões sobre a global city (Sassen, 1998), cuja Classificação Internacional Uniforme de Ocupa- hipótese central é a existência de nexos es- ções (CIUO) da Organização Internacional do truturais entre as mudanças em curso na eco- Trabalho (OIT). Os dados censitários são os nomia e a intensificação da dualização social. únicos disponíveis, no Brasil, com capacidade Nesse processo, em que o Setor Terciário esta- simultânea de comparabilidade no tempo e no ria assumindo predominância diante de pro- espaço, contemplando dados do mundo do tra- cessos simultâneos de modernização e relativa balho. Como ponto de referência, foi utilizado o retração no emprego do Setor Secundário, ha- sistema de classificação das profissões na Fran- veria igualmente uma reconfiguração e um en- ça, adotado pelo Institut National d’Économie colhimento das classes médias, tendo em vista et Statistique (INSEE), e o primeiro trabalho as mudanças na estrutura produtiva e nos pa- comparativo realizado foi entre Paris e Rio de drões organizacionais e tecnológicos. Algumas Janeiro (Preitecelle e Ribeiro, 1998). ocupações típicas das classes médias estariam Essas pesquisas têm como ponto de em declínio, outras se desqualificariam, e surgi- partida uma concepção multidimensional da riam novas profissões ligadas à expansão das estruturação do espaço social, o que permi- funções de gestão (Sassen, 1998). A estrutura te alcançar uma compreensão mais refinada 234 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 das eventuais posições sociais que os grupos de indivíduos ocupam e detectar as múltiplas escalas de hierarquização no espaço social. A estrutura social “[...] é entendida, simultaneamente, como um espaço de posições sociais e um espaço de indivíduos ocupando esses setores da produção, como o Secundário e o Terciário, e, finalmente, entre os ocupados no Setor Secundário, foi feita uma distinção a partir da inserção dos trabalhadores nos segmentos modernos ou tradicionais da indústria (Ribeiro e Lago, 2000). (Mammarella, 2007, p. 157) postos e dotados de atributos sociais desigualmente distribuídos e ligados às suas histórias” Entre 1991 e 2000, o Censo modificou (Ribeiro e Lago, 2000, p. 112), dentro de uma sua forma de definir tanto o desemprego, co- articulação que remete ao pensamento de mo o tipo de ocupação, o que dificulta a com- Bourdieu (1989). O autor desenvolve a noção paração entre 1980, 1991 e 2000. Em 1991, o de que os indivíduos ou agentes ocupam po- período de referência para a verificação do es- sições relativas no espaço social, as quais se tado de emprego era de 12 meses, assim como encontram em oposição. É possível classificar em 1980. E a condição de ocupação referia-se empiricamente essas posições relativas segun- a três possíveis estados: se trabalhou habitual- do os diferentes agrupamentos sociais, poden- mente ou eventualmente neste período de re- do ser identificadas pelo volume dos capitais ferência, ou se não trabalhou. No ano 2000, (econômicos, sociais e simbólicos) que eles de- o período de referência foi de uma semana, têm e pela estrutura desses capitais. Colocados e a questão foi mais detalhada: perguntava- em posições semelhantes e estando sujeitos a -se se trabalhou em atividade remunerada condicionamentos similares, há probabilidade ou não; em caso da resposta não, se estava de que esses agentes ou indivíduos desenvol- temporariamente afastado, se exerceu ativi- vam atitudes, interesses e práticas aproxima- dade não remunerada ou se, no período de 1 das. A incorporação desse esquema à pesquisa mês na data anterior ao Censo, tomou alguma sobre as metrópoles brasileiras está pautada providência para conseguir trabalho. Assim, as no pressuposto metodológico da centralidade cifras de ocupados entre os anos 1980, 1991 do trabalho como categoria estruturadora das e 2000 não são comparáveis: a adoção do pe- relações sociais (Ribeiro e Lago, 2000, p. 112). ríodo de uma semana, em lugar de 12 meses, pode induzir a uma ampliação da magnitude As categorias sócio-ocupacionais, através das quais é possível captar a segmentação social nas metrópoles brasileiras, foram construídas a partir de alguns princípios gerais que se contrapõem e que estão na base da organização da sociedade capitalista, tais como: capital e trabalho, grande e pequeno capital, assalariamento e trabalho autônomo, trabalho manual versus não manual e atividades de controle e de execução. Também foi levada em consideração a diferenciação entre Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 do desemprego. De outro lado, atividades domiciliares como ajuda a outro, trabalho para o autoconsumo, etc., reduzem o desemprego, pois passam a ser computadas. Em 2000, modificou-se também a forma de classificar as ocupações, através da utilização da CBO (Classificação Brasileira de Ocupações) e da CNAE (Classificação Nacional de Atividade Econômica). Na pesquisa, foi feito um ajuste da classificação ocupacional de 235 Suzana Pasternak 1991 com a metodologia censitária de 2000, o obtido da mesma forma que o de 2000. Mesmo que possibilita a comparação entre estas duas assim optou-se por analisar a evolução, apesar datas. Para 1980, entretanto, isso não foi feito. desta ressalva. A análise relativa dos percentu- Assim, qualquer comparação que envolve os 20 ais pode elucidar a evolução. últimos anos do século XX só poderá ser feita Foram verificadas também as altera- entre grandes grupos, e o percentual de popu- ções no mercado de trabalho formal das me- lação ocupada em relação à total entre estas trópoles estudadas. Para tanto se utilizaram três datas não é passível de comparação. Por dados da RAIS (Relação Anual de Informações isso, a análise da evolução das categorias só- Sociais, Ministério do Trabalho), cobrindo o cio-ocupacionais se concentra em 1991 e 2000. mercado formal de 1991 e 2000, cotejando-os E deve ser lembrado que o número absoluto com as informações censitárias sobre a popu- de ocupados de 1991 não é, rigorosamente, lação ocupada. Quadro 1 – Categorias sócio-ocupacionais dirigentes grandes empregadores dirigentes do setor público dirigentes do setor privado profissionais de nível superior profissionais autônomos de nível superior profissionais empregados de nível superior profissionais estatutários de nível superior professores de nível superior pequenos empregadores pequenos empregadores ocupações médias ocupações de escritório ocupações de supervisão ocupações técnicas ocupações de saúde e educação ocupações de segurança, justiça e correio ocupações artísticas e similares trabalhadores do terciário trabalhadores do comércio trabalhadores de serviços especializados trabalhadores do secundário trabalhadores manuais da indústria moderna trabalhadores manuais da indústria tradicional trabalhadores manuais de serviços auxiliares trabalhadores manuais da construção civil trabalhadores do terciário não especializado prestadores de serviços não especializados empregados domésticos ambulantes e biscateiros 236 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Questões colocadas As transformações que se processam na economia brasileira têm provocado mudanças tecnológicas na formatação social e na organização espacial. Nesse movimento também foram alteradas situações que marcaram durante muito tempo a organização espacial da atividade econômica e o tipo de vínculo existente entre as regiões. O território se cobriu de redes de fluxos, tangíveis e intangíveis, que intensificaram as relações entre as pessoas, as empresas e os lugares, facilitando a possibilidade de cooperação, mas aumentando também a competição. Algumas regiões de antiga tradição industrial perderam atrativo como localização diante do aparecimento de outras áreas emergentes. (Piquet, 2000, p. 97) formas de produção e a uma eliminação de milhares de postos de trabalho. “Em consequência, sobre uma estrutura social já desigual e excludente, ampliaram-se o desemprego e as formas precárias de trabalho, tais como o trabalho sem carteira, o trabalho em tempo parcial, o de elevada rotatividade, etc.” (Piquet, 2000, p. 98). Tanto trabalhos produzidos sobre esta dinâmica, como os dados da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais, Ministério do Trabalho), cobrindo o período de 1991 a 2000, atestam esta redução do mercado formal nas metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro, as maiores do país, onde o impacto da reestruturação produtiva parece ser maior (a taxa de crescimento dos empregos formais de São Paulo no período foi de -0,28% ao ano, e a do Rio de Janeiro, de -0,87% anuais). Deve também ser lembrado que a reengenharia feita nestes anos, visando tornar os produtos As consequências desse processo se fi- brasileiros mais competitivos, terceirizou parte zeram sentir também no mercado de trabalho, do trabalho não diretamente ligado à produ- provocando alterações no perfil do emprego. ção, antes computado como industrial, agora Há algumas teorizações sobre essas mudan- como serviço. É o caso, entre outros, das ativi- ças, entre as quais uma das mais conhecidas dades de manutenção, segurança, alimentação é a de Sassen (1991) que propõe, como hipó- e limpeza. tese central para as chamadas cidade globais, As sociedades do mundo desenvolvido “a existência de um vínculo estrutural entre o têm apresentado um processo de terceirização, tipo de transformação econômica caracterís- com transferência de empregos das atividades tica dessas cidades e a intensificação de sua da indústria de transformação para as ativida- dualização social e urbana” (Preteceille, 1994, des de serviços. Alguns autores chamam a este p. 66). fenômeno passagem da fase industrial para No Brasil, as consequências das trans- uma fase pós-industrial e, inclusive, acreditam formações econômicas mundial compeliram a que um indicador como uma proporção de indústria, setor mais exposto à concorrência mais da metade dos empregos em serviços po- internacional, sobretudo depois da abertura deria ser considerado como indicador positivo comercial do governo Collor, nos anos 90, a de progresso econômico: o progresso se daria proceder a um vigoroso ajuste produtivo, que pela passagem das sociedades pré-industriais resultou numa intensificação de capital nas para outras, de caráter industrial, e destas para Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 237 Suzana Pasternak pós-industriais. Para dar um exemplo na região Outra visão, chamada de “industrial”, metropolitana de São Paulo, a proporção de destaca o declínio da grande indústria fordista empregos formais em serviços em 1991 foi e sua transformação ou substituição por no- de 45,23%, que passou para 59,26% no ano vas formas de produção, nas quais cresceria 2000). Segundo esta corrente, a RMSP estaria a parte do trabalho qualificado, intelectual, num caminho positivo. e se reduziria o trabalho manual repetitivo. Essa visão de crescimento econômico Isso provocaria o crescimento de categorias pode ser facilmente contestada: o setor de médias qualificadas, de categorias superiores serviços é extremamente heterogêneo. Há ligadas à pesquisa, ao design, ao marketing, e os serviços à produção, com aumento das um decréscimo das categorias tradicionais de tarefas prévias e posteriores à fabricação pro- operários qualificados e não qualificados. Para priamente dita, característicos das economias muitos, a estrutura geral da mão de obra não avançadas. E há também o terciário como re- mudaria, mudaria apenas a empresa controla- fúgio, absorvente da mão de obra por ativi- dora e aconteceria uma dispersão da mão de dades pouco qualificadas, comum em países obra entre diferentes empresas e regiões. Au- emergentes com problema de empregos. tores com Preteceille (1995), Hammett (1995), Segundo o paradigma de Sassen, a rees- Maldonado (2000) ressaltam que em Paris, truturação produtiva vigente estaria causan- Londres e Madri não se deu um processo de do um alto crescimento do emprego de baixa dualização social. qualificação, de caráter precário ou autônomo, o que permitiria falar num processo de dualização ocupacional. Essa visão [...] leva à dupla hipótese da desindustrialização-terciarização e da dualização do mercado de trabalho, evoluindo de acordo com uma estrutura do tipo ampulheta, com a diminuição das categorias médias (entre as quais os operários qualificados), e o crescimento forte, de um lado, das categorias superiores ligadas ao conjunto das atividades terciárias dominantes (finanças, serviços, etc.); de outro, das categorias inferiores necessárias ao funcionamento dessas atividades (pequenos empregos de escritório, mensageiros, etc.) e ao funcionamento dos serviços de consumo que garantem o luxuoso nível de vida das categorias anteriores (restaurantes, hotéis, serviços domésticos, etc.). (Preteceille, 1994, p. 71) 238 O resultado das mudanças sociais no seu conjunto é a elevada profissionalização das categorias sociais, embora se deva levar em conta o fato de que se abrem outras linhas de desigualdade nas diferenças marcadas pela idade, pelo gênero e pelo território. Se, considerando a sociedade no seu conjunto, houve uma certa diminuição das desigualdades na distribuição de renda no período 1981-91 e um crescimento das classes médias, em face de uma diminuição dos trabalhadores, as diferenças experimentadas pelos distintos grupos de idade, a dificuldade das mulheres para encontrar trabalho e a diferenciação no assentamento dos grupos sociais no território, marcado em grande parte por um mercado imobiliário que seleciona a distribuição dos grupos sociais, apontam para um resultado matizado desses avanços na diminuição das desigualdades. (Maldonado, 2000, pp. 177-178) Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 No Brasil, muitas grandes empresas ver- • as mudanças foram num mesmo sentido ticalmente integradas estão sendo levadas, em todas as metrópoles de cada segmento por pressão do mercado, a terceirizar suas ati- espacial? vidades complementares para comprá-las no • há mercado concorrencial a menor preço. Assim, das diversas regiões? muitas atividades antes integradas à grande •a indústria passam a serem exercidas por peque- da? Ou seja, houve real aumento dos empregos nos empresários, autônomos, cooperativas, sem carteira e dos autônomos? A taxa de de- o que transforma certo número de empregos semprego, por mudança no conceito, não pode formais em ocupações precárias, sem garan- ser comparada. tias e direitos trabalhistas. Há um claro pro- • quem cesso de precarização das relações de trabalho cio-ocupacionais em cada metrópole? Por exem- nos anos 90, o que nem sempre significa dimi- plo: a elite nordestina é semelhante à elite das nuição do nível de rendimento. metrópoles mais industriais? Quem são as cha- distinções marcantes entre as metrópoles precarização realmente aumentou na déca- são os componentes das categorias só- O presente trabalho analisa a estru- mada camadas médias nas distintas metrópoles tura sócio-ocupacional em 11 regiões me- brasileiras? A estrutura ocupacional dos traba- tropolitanas brasileiras que compõem o lhadores manuais urbanos apresenta diferenças? Observatório das Metrópoles (Belém não foi analisada): • no Sudeste, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte; • no Sul, Curitiba e Porto Alegre; • no Nordeste, Nat al, For t aleza, Recife Escala e taxas de incremento da população As metrópoles estudadas pelo Observatório e Salvador; • no Centro Oeste, Goiânia; apresentam tamanho populacional bem distin- • a aglomeração urbana de Maringá. Goiânia to: as três metrópoles do Sudeste – Belo Hori- e Maringá serão analisadas como áreas de zonte, Rio de Janeiro e São Paulo – têm popula- expansão. ção com mais de 4 milhões de habitantes. São Pretende-se verificar: • semelhanças e diferenças entre as estruturas Paulo tinha, no ano 2000, mais de 17 milhões e o Rio de Janeiro, quase 11 milhões. Porto Ale- sócio-ocupacionais das metrópoles por região; gre, no Sul, Recife e Salvador, no Nordeste, con- • semelhanças e diferenças entre as mudanças tam com mais de 3 milhões; Fortaleza e Curiti- nesta estrutura nos ano 90, que marcam a re- ba apresentam tamanho demográfico de mais estruturação produtiva no país. de 2,5 milhões de pessoas, enquanto Belém, Tenta-se responder às questões: • como a reestruturação produtiva afetou a es- trutura social de cada metrópole brasileira? • há semelhanças e diferenças nestas estrutu- ras e por quê? Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Goiânia e Natal ficam na casa de 1 milhão. A aglomeração urbana de Maringá não alcançava 500 mil pessoas no ano 2000. O tamanho da população total apresenta, assim, uma enorme amplitude, assim como a população ocupada. 239 Suzana Pasternak Tabela 1 – Metrópoles, por tamanho da população total e da população ocupada em 2000 População total População ocupada Taxa de ocupação - % São Paulo Metrópole 17.834.664 7.115.257 39,90 Rio de Janeiro 10.872.768 4.119.788 37,89 Belo Horizonte 4.811.760 1.739.846 36,16 Porto Alegre 3.655.834 1.568.232 42,90 Recife 3.335.704 1.090.342 32,69 Salvador 3.018.285 1.115.958 36,97 Fortaleza 2.975.703 1.042.528 35,03 Curitiba 2.725.629 1.162.205 42,64 Belém 1.794.981 624.129 34,77 Goiânia 1.636.465 717.769 43,86 Natal 1.040.109 379.566 36,49 473.898 211.459 44,62 Maringá Fonte: Sinopse Preliminar do Censo Demográfico de 2000; Censo de 2000. Percebe-se que as taxas de ocupação as quatro metrópoles do Nordeste, a taxa de são significantemente maiores nas metrópo- ocupação é menor e apresenta o valor míni- les do Sul (Curitiba e Porto Alegre) e nas aglo- mo no Recife e tendo valores mais altos em merações de expansão (Goiânia e Maringá). Fortaleza e Salvador. Essa taxa de ocupação No Sudeste essa taxa fica em torno de 37%, varia com o nível de desemprego local e com com São Paulo atingindo quase 40%. Entre a estrutura etária. Tabela 2 – Metrópoles, taxas anuais de crescimento populacional total, do núcleo e da periferia entre 1991 e 2000, em percentagem Metrópole População total População ocupada Taxa de ocupação - % São Paulo 1,49 0,81 2,55 Rio de Janeiro 1,19 0,76 1,71 Belo Horizonte 3,84 1,16 6,91 Porto Alegre 2,12 0,93 2,89 Recife 1,64 1,03 2,11 Salvador 2,16 1,85 3,59 Fortaleza 2,92 2,17 5,12 Curitiba 3,15 2,13 5,80 Belém 3,37 0,31 21,68 Goiânia 3,24 1,91 6,57 Natal 2,61 1,80 4,22 Maringá 2,26 2,06 2,57 Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. 240 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Notou-se, em relação ao incremento po- dividida numa taxa de 1,91% para o núcleo pulacional 1991-2000, que São Paulo e Rio de central e 6,57% para a periferia. Maringá, por Janeiro tiveram taxas modestas (1,19 e 1,49 % sua vez, cresce à taxa de 2,26, sendo a única anuais, respectivamente). No Sudeste, a única aglomeração que cresce de forma mais equili- metrópole com crescimento elevado foi Be- brada entre centro ( 2,06%) e periferia (2,57%) lo Horizonte, com taxa de 3,84% anuais. Mas Assim, todas as metrópoles estudadas essa taxa elevada deve-se principalmente ao tiveram crescimento maior na periferia. As me- crescimento periférico, de 6,91% anuais. A taxa trópoles do Sudeste mostram esvaziamento do núcleo central, para as três metrópoles do populacional e funcional de áreas centrais con- Sudeste, é baixa (0,76% para o Rio de Janeiro, solidadas. Esta frente de urbanização periféri- 0, 81% para São Paulo e 1,16% para Belo Ho- ca, não raro, se traduz em destruição de meio rizonte). Tanto no Rio, como em São Paulo, com ambiente. Em todas as metrópoles percebe-se em Belo Horizonte, a periferia cresce bem mais um movimento geral em direção a uma ur- que o município capital. banização dispersa, com maior proporção de O nível de crescimento total das metró- população urbana e menos agricultores e uma poles do Sul é bem mais alto: Curitiba cresceu estrutura sócio-ocupacional mostrando perda a 3,51% ao ano no período, e Porto Alegre a de trabalhadores industriais, ganho de traba- 2,12%. Nas metrópoles do Sul, o crescimento lhadores de serviços (especializados e não es- periférico também ultrapassou largamente o pecializados) e maior profissionalização. do pólo central: em Curitiba foi 2,72 vezes o da capital, e em Porto Alegre, 3,30 vezes. Porto Alegre teve apenas 0,93% de taxa de crescimento no núcleo. No Nordeste, as taxas também foram ele- Evolução do mercado formal de empregos vadas em Fortaleza (2,92% anuais) e Salvador (2,16). Já no Recife o crescimento populacional A evolução dos empregos formais nas metró- entre 1991 e 2000 foi de apenas 1,64. Mas nas poles estudadas entre 1991 e 2000 se deu de metrópoles do Nordeste o fenômeno do maior forma distinta: no Sudeste, São Paulo e Rio de crescimento dos municípios periféricos também Janeiro apresentaram perda absoluta de postos é visível, mesmo Recife apresentando taxa de de trabalho formais, mais acentuada no Rio incremento na periferia de 2,11% anuais. Em que em São Paulo, enquanto em Belo Horizonte Fortaleza e Salvador, essas taxas ultrapassam o número absoluto de postos de trabalho su- 3,5% anuais. Em Natal, a taxa de crescimento biu um pouco na década. No Sul, tanto Porto total atingiu 2,61% anuais no período, também Alegre como Curitiba tiveram aumento, grande com a periferia crescendo 2,34 vezes o centro em Curitiba (a maior taxa de aumento entre (a taxa dos municípios periféricos foi de 4,22% as metrópoles estudadas); no Nordeste, onde ao ano, e a do município central de Natal, de todas as metrópoles apresentaram aumento, a 1,80%). Em Goiânia, a taxa bastante alta de maior taxa de incremento aconteceu em Salva- crescimento total de 3,24% ao ano pode ser dor, com ganho de 1,98% anuais, num total de Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 241 Suzana Pasternak 113 mil novos empregos formais no período. As Fortaleza e Belo Horizonte, certa estagnação no duas áreas de expansão tiveram altas taxas de Recife, Natal e Porto Alegre e perda nas duas incremento anual de empregos. Tanto Maringá maiores metrópoles, Rio de Janeiro e São Paulo. como Goiânia viram seus empregos formais No conjunto as metrópoles estudadas ganha- crescerem a taxas maiores que 3,5% anuais, ram 475 mil empregos formais no período. As com Goiânia ganhando mais de 100 mil postos duas maiores metrópoles brasileiras, Rio de São de trabalho no período. A Tabela 2 abaixo mos- Paulo, perderam 257 mil postos de trabalho tra os ganhos em Curitiba, Maringá, Salvador, nos anos 90. Tabela 3 – Evolução dos empregos formais entre 1991 e 2000, metrópoles estudadas Região RM Empregos formais 1991 2000 Diferença Taxa - % 2.355.039 4.749.809 1.018.915 2.117.078 4.630.809 1.192.068 -237.961 -119.000 173.153 -0,87 -0,28 1,76 Sudeste Rio de Janeiro São Paulo Belo Horizonte Sul Porto Alegre Curitiba 884.943 505.113 953.005 730.814 68.062 225.701 0,83 4,19 Nordeste Fortaleza Natal Recife Salvador 419.474 195.029 591.460 588.685 495.382 210.830 621.075 702.172 75.908 15.801 29.615 113.514 1,87 0,87 0,54 1,98 Expansão Maringá Goiânia 65.972 281.826 94.839 384.024 28.867 102.198 4,12 3,50 Fonte: RAIS/MTE, 1991 e 2000. As taxas de informalidade do trabalho, quase 53% da população ocupada não têm estimadas a partir da comparação entre os vínculo formal de emprego. Em Salvador, esse empregos formais e a população ocupada, valor é menor que o de São Paulo. De qualquer aumentaram em todas as metrópoles estu- forma, o crescimento do assalariamento sem dadas no período. A mais baixa, de São Pau- carteira é generalizado nos anos 90. A evolu- lo em 1991, alcançava, naquela data, o valor ção dos mercados de trabalho no que diz res- de menos de 20%, aumentando para 35% no peito a este item apresenta forte semelhança, ano 2000. No Rio de Janeiro, a taxa de infor- com a informalidade crescendo em todas as malidade no ano 2000 tem um padrão “nor- metrópoles, com exceção de Maringá, onde a destino”, de quase 50%. Nas metrópoles do taxa, que era extremamente elevada, caiu um Nordeste, o valor maior é o de Fortaleza, onde pouco no período. 242 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Tabela 4 – Estimativa da informalidade no trabalho (empregos formais/população ocupada) Região Metrópole 1991 - % 2000 - % Sudeste Rio de Janeiro São Paulo Belo Horizonte 35,54 19,24 24,91 47,20 34,92 29,93 Sul Porto Alegre Curitiba 50,43 34,40 52,90 34,71 Nordeste Fortaleza Natal Recife Salvador 49,45 32,83 38,70 29,75 52,68 43,93 43,04 37,08 Expansão Maringá Goiânia 63,84 41,62 58,95 44,17 Fonte: MTE/RAIS e IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. A estrutura dos empregos do mercado dentro da indústria, foram terceirizados. Entre formal mostrou, para as metrópoles do Sudes- estes setores estão principalmente atividades te, forte queda dos empregos na indústria e ligadas à segurança, limpeza e alimentação. grande incremento relativo dos empregos nos Esses postos de trabalho, antes computados serviços. A metrópole mais industrial, São como industriais, passaram a ser terceirizados Paulo, foi a que mais perdeu participação do e entraram nas estatísticas como serviços. emprego formal na indústria (perda de 6,88 Acredita-se que parte da diminuição dos pos- pontos percentuais), seguida pelo Rio de Ja- tos industriais deva-se a este fenômeno, o que neiro (perda de 5,96 pontos percentuais) e não exclui também uma perda real de empre- por Belo Horizonte (perda de 3,22 pontos gos na indústria. percentuais). Mesmo assim, a participação Os subsetores industriais de São Paulo relativa da indústria na metrópole paulista é mostraram pouca mudança relativa em 1991 ainda a maior do Sudeste. De outro lado, a e 2000: nas duas datas, os setores predomi- maior participação relativa nos serviços está nantes foram os das indústrias metalúrgica, no Rio de Janeiro. Deve ser lembrado sempre farmacêutica, têxtil e construção civil. Aliás, que no fim da década de 80 e início de 90, houve aumento da participação relativa na com a abertura comercial, se intensificaram construção civil de 12,76% dos empregos for- os processos de reengenharia para ajuste de mais em 1991 para 16,35% em 2000. Os em- custos e aguentar a concorrência com produ- pregos na indústria de matéria de transporte, tos importados. Esta reengenharia implicava que alcançavam 10,48% dos empregos em redução de custos e terceirização de ativida- 1991, caem para 8,77% no ano 2000. O perfil des. Assim, muitos setores de atividade, antes dos empregos industriais no Rio é distinto do Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 243 Suzana Pasternak paulista: apresenta maior peso na construção O perfil dos empregos em Belo Horizon- civil (19% dos empregos em 1991 e 23,19% no te apresenta grande peso na indústria meta- ano 2000), a indústria metalúrgica é relativa- lúrgica (mais de 22% em 1991), nos serviços mente menos importante do que em São Pau- de utilidade pública (9,02% em 1991), na lo, mas a químico-farmacêutica e a têxtil tem indústria de bebidas e alimentos (10,78% no peso grande tanto em 1991 como em 2000. ano 2000). O grande peso do emprego indus- Outras diferenças grandes surgem nos serviços trial em Belo Horizonte é o da construção civil, industriais de utilidade pública, que no Rio em- com 30,16% dos empregos em 1991 e 31,98% pregam mais de 10% da força de trabalho for- em 2000. Belo Horizonte compartilha essa for- malmente empregada, enquanto em São Paulo te proporção de empregados na construção esse percentual passa de 2,61% para 3,52%, civil com Recife (onde a proporção é 31,60% entre 1991 e 2000 e na indústria de alimentos no ano 2000), com Salvador 9,41% em 1991 e bebidas, no Rio com 12,65% dos empregos e e 42,7% em 2000) e Goiânia (43% em 1991 e São Paulo com 7,28%. 31% no ano 2000). Tabela 5 – Estrutura do emprego formal nas metrópoles do Sudeste, 1991 e 2000, em % Setor Rio de Janeiro São Paulo Belo Horizonte 1991 2000 1991 2000 1991 2000 Indústria 21,10 15,14 35,22 25,34 24,90 21,68 Comércio 13,14 17,12 11,03 15,12 10,81 13,33 Serviços 56,54 67,54 45,23 59,26 54,35 64,14 Agropecuária 0,24 0,18 0,14 0,27 0,41 0,85 Outros/ig 8,98 0,00 8,37 0,00 9,52 0,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 Total Fonte: MTE/RAIS, de 1991 e 2000. No Sul também acontece uma queda na 32,12% dos seus empregos formais na indús- proporção de empregos industriais. Porto Ale- tria em 1991, perde mais de 11 pontos percen- gre tem queda insignificante, de apenas 1,7 tuais e apresenta profunda transformação da pontos percentuais, conservando seu perfil de estrutura de emprego em 2000, com ganho de cidade operária. Curitiba, entretanto, que tinha 18 pontos em serviços. 244 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 O perfil industrial de Curitiba apre- químico-farmacêutica, a de alimentos e bebi- senta uma grande transformação nos anos das e a construção civil. 90: os empregos na indústria de material de Porto Alegre tem perfil industrial mui- transporte, que eram apenas 3,77% dos em- to específico: 26,65% dos empregos formais pregos formais, sobem para 10,25% em 2000. alocavam-se na indústria de calçados em Em números absolutos, isso significou um ga- 1991, proporção com pequena mudança pa- nho de quase 12 mil postos de trabalho for- ra 24% em 2000. Em números absolutos, a mais. Provavelmente a instalação da Renault indústria calçadista perde quase 7 mil em- na região metropolitana foi responsável por pregos no período, mas é ainda a grande em- esse ganho. Outros setores com nível grande pregadora, com 1/4 dos empregos formais no de emprego foram a indústria mecânica, a setor secundário. Tabela 6 – Estrutura do emprego formal nas metrópoles do Sul, 1991 e 2000, em % Curitiba Setor Indústria Porto Alegre 1991 2000 1991 2000 35,12 23,86 29,84 28,15 Comércio 13,58 15,20 12,36 13,88 Serviços 42,34 60,33 52,02 57,25 0,38 0,60 0,40 0,71 Agropecuária Outros/ig Total 11,58 0,00 5,38 0,00 100,00 100,00 100,00 100,00 Fonte: MTE/RAIS, de 1991 e 2000. Fortaleza surge como a metrópole nor- Recife têm estrutura de empregos muito seme- destina com maior proporção de empregos for- lhante no ano 2000. Em Salvador e no Recife, mais na indústria: 27% em 1991 e 26% no ano o aumento relativo dos empregos nos serviços 2000. Natal e Recife ficam com cerca de 19% é alto. Já em Natal esta proporção já era alta de emprego industrial, e Salvador tem apenas em 1991, subindo ligeiramente em 2000. Em 15% no ano 2000. De outro lado, Salvador apre- Fortaleza vai existir a menor proporção de em- senta mais de 70% de sua força de trabalho pregos formais em serviços entre as metrópoles formal nos serviços, mais que o Natal e Recife, nordestinas, e o aumento entre 1991 e 2000 foi onde o percentual é de mais que 65%. Natal e de pouco mais de 4 pontos percentuais. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 245 Suzana Pasternak Tabela 7 – Estrutura do emprego formal, metrópoles do Nordeste, 1991 e 2000, em % Setor Fortaleza 1991 Natal 2000 1991 Recife 2000 1991 Salvador 2000 1991 2000 Indústria 27,29 26,35 18,42 19,55 24,35 19,52 19,30 14,65 Comércio 11,36 14,46 7,76 14,10 11,36 13,92 11,02 13,66 Serviços 53,81 58,03 64,6 65,25 49,72 65,12 62,66 71,13 Agropec. 2,05 1,16 0,29 1,09 0,56 1,41 0,57 0,56 Outros/ig Total 5,49 0,00 8,67 0,00 14,01 0,00 6,45 0,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 Fonte: MTE/RAIS, de 1991 e 2000. O perfil industrial das metrópoles do construção civil, o outro ramo industrial com Nordeste é distinto das do Sul e Sudeste. alta proporção é o da indústria de produtos Nessas, a proporção dos empregos formais alimentícios, com 25% dos empregos formais na construção civil era de ordem de 20% em na indústria em 1991 e 21% em 2000. Em Sal- 2000, com exceção de Belo Horizonte, onde vador, 15% dos empregos na indústria estão alcançava 32%. Já Recife, Natal e Salvador na indústria química, 10% nos produtos ali- apresentam percentuais da ordem de 26% a mentícios. Nessas duas metrópoles, cerca de 43% de emprego na construção civil. Forta- 10% dos empregos formais encontram-se nos leza diminui sua proporção de 23% em 1991 serviços industriais de utilidade publica, dife- para 19% no ano 2000. rentemente de Fortaleza e Natal. O outro ramo industrial com for te As duas aglomerações chamadas de proporção de empregos formais é o da expansão: Goiânia e a aglomeração urbana indústria têxtil: em Fortaleza alcança 35% em de Maringá apresentam perfil diverso. Goiâ- 2000 (45 mil pessoas), e em Natal, 38% (15,5 nia tem pouco mais de 20% dos empregos mil empregos). formais na indústria, enquanto Maringá che- Salvador e Recife têm em comum com ga a quase 31%. De outro lado, o setor servi- as outras metrópoles nordestinas a grande ços aparece com forte percentual em Goiânia proporção em construção civil (32% no Reci- (61,5% em 2000), e em Maringá tem apenas fe e 43% em Salvador). Diferem, entretanto, 42,24% dos empregos. Entre 1991 e 2000, de Fortaleza e Natal na distribuição dos ou- as duas metrópoles se mantiveram com rela- tros setores industriais: no Recife, além da tiva estabilidade. 246 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Tabela 8 – Estrutura do emprego formal nas metrópoles de Goiânia e Maringá Setor Goiânia 1991 Maringá 2000 1991 2000 Indústria 20,76 21,05 26,14 30,42 Comércio 12,01 16,62 18,06 23,01 Serviços 59,90 61,45 43,82 42,32 Agropecuária 0,41 0,88 5,74 4,24 Outros/ig 6,92 0,00 6,23 0,00 100,00 100,00 100,00 100,00 Total Fonte: MTE/RAIS, de 1991 e 2000. O perfil industrial de cada uma dessas números absolutos, a indústria da madeira e metrópoles é bem específico. Na RM de Goiâ- mobiliário passou de 1,7 mil para 2,3 mil em- nia, tal como nas metrópoles do Nordeste, a pregados, a têxtil de 3 mil para 6 mil e a cons- proporção dos empregos formais na constru- trução civil de quase 4 mil para mais de 7 mil. ção civil é elevada: 43% em 1991 e 31% no Concluindo, pode-se observar que a es- ano 2000. A indústria têxtil aparece também trutura do mercado de trabalho formal apre- como grande empregadora, e crescente, com senta diferenças entre as metrópoles estuda- proporção aumentando entre 1991 e 2000 de das. No Sul e Sudeste, São Paulo, Belo Horizon- 8,60% para 14,85% dos empregos formais na te, Curitiba e Porto Alegre têm mais de 20% do indústria subindo de 5 mil para 12 mil empre- seu emprego formal no setor secundário. Nas gos. Os empregos na indústria de produtos ali- áreas de expansão do emprego formal, onde mentícios também sobem de 16% para 24%, sua taxa de crescimento é superior a 3% ao aumentando de 9 mil postos de trabalho pa- ano, acontece o mesmo: tanto Goiânia como ra 19 mil. De outro lado, o peso dos serviços Maringá apresentam mais de 20% da força de industriais de utilidade pública diminui, assim trabalho empregada formalmente na indústria. como o número absoluto de empregados. No Rio de Janeiro, isso não acontece, com ape- Entre construção civil, produtos alimentícios nas 15% do emprego formal no setor secundá- e têxtil, estão 70% dos empregos formais no rio no ano 2000. setor secundário. Nas metrópoles do Nordeste, o perfil é Já em Maringá, além da indústria da distinto: apenas Fortaleza aparece com mais de construção civil (com 22% em 1991 e 24% 20% do emprego formal na indústria. Recife e em 2000), alimentos e têxtil, tem grande peso Natal aproximam-se desta cifra, mas Salvador, a indústria de madeira e mobiliário, com 10% tal como o Rio de Janeiro, tem apenas cerca de dos empregos em 1991 e 8% em 2000. Em 15% do emprego formal no setor secundário. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 247 Suzana Pasternak O perfil dos setores industriais onde se Goiânia e Maringá também têm grande aloca essa mão de obra também difere bastan- proporção de empregos na construção civil. te: no Sudeste, a não ser em Belo Horizonte, a Mas o resto de seu perfil industrial é distinto: proporção de empregados na construção civil em Maringá, nota-se a grande importância da fica inferior a 20% da mão de obra emprega- indústria de alimentos, têxtil e de madeira e da na indústria. O perfil dos empregos no setor mobiliário. Em Goiânia, produtos alimentícios secundário é também específico, com concen- e têxteis. tração nos setores de metalurgia, material de Essas estruturas distintas do emprego transporte, indústria química e indústria têxtil, formal e o perfil da economia de cada metró- no caso de São Paulo; química e têxtil e ser- pole se refletirão na evolução das categorias viços de utilidade pública, no caso do Rio de sócio-ocupacionais. Janeiro e metalúrgica e produtos alimentícios, além da construção civil, para Belo Horizonte. No Sul, chama a atenção a evolução da mão de obra formal em Curitiba: material de transporte, que empregava 6 mil pessoas em 1991, vai empregar 18 mil no ano 2000. A in- Estrutura sócio-ocupacional nas Regiões Metropolitanas do Brasil, 1991 e 2000 dústria de alimentos, com 13 mil, passa a 18 mil também, no ano 2000. As indústrias de Para análise comparativa, sintetizou-se a es- material de transporte, químico-farmacêutica trutura sócio-ocupacional urbana em quatro e produtos alimentícios agregam 30% dos em- grandes grupos: pregos industrias. Já na RM de Porto Alegre, • categorias superiores, compreendendo os domina a indústria de calçados, com cerca de dirigentes, profissionais de nível superior e pe- 25% do total de empregos. Nas duas metró- quenos empregadores; poles do Sul, o emprego formal na construção • categorias médias; civil não alcança 20% no ano 2000. • categorias populares urbanas, com trabalha- As metrópoles do Nordeste, como já foi dores de terciário especializado, não especiali- colocado, têm grande proporção de empregos zado e secundários; na construção civil diferentemente das outras • agricultores. metrópoles. Em Salvador, o percentual chega a Devido à impossibilidade de compara- 43%, representando 44 mil empregos no ano ção das proporções tal como se apresentam 2000. Em 1991, o número absoluto era ainda nas tabelas, dado o conceito distinto utilizado maior, 47 mil postos de trabalho. Salvador e nos Censos de 1991 e 2000 para a definição Recife apresentam, tal como o Rio de Janeiro, de ocupado, verificou-se apenas o incremento 10% dos empregos em serviços de utilidade relativo, colocando-se como limiar a porcenta- pública. Além da construção civil, a indústria gem de 20%. Assim, quando uma proporção forte no Nordeste é a têxtil, a não ser em Salva- aumentava ou diminuía mais que 20%, consi- dor, onde sua representação é pequena. derava-se relevante. 248 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles do Sudeste Tabela 9 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles do Sudeste, pelas 8 categorias e indicação de aumento/diminuição maior que 20% no período Rio de Janeiro Grandes categorias Dirigentes São Paulo Belo Horizonte 1991 2000 1991 2000 1991 2000 1,45 1,17 2,16 1,37 1,64 1,27 Profissionais nível superior 6,95 8,76 5,54 7,83 5,67 7,44 Pequenos empregadores 2,65 2,45 3,14 2,65 3,34 2,81 11,05 12,38 10,84 11,85 10,65 11,52 Categorias médias 30,36 27,78 32,03 28,15 29,01 26,13 Trabalhadores terciário especializado 16,68 20,72 15,19 19,34 15,48 19,05 Trabalhadores secundário 22,44 20,18 27,35 24,01 25,03 23,60 Categorias superiores Trabalhadores terciário não especializado 18,43 18,39 13,71 16,16 18,33 18,55 Categorias populares urbanas 57,55 59,29 56,25 59,51 58,84 61,20 1,04 0,56 0,87 0,50 1,50 1,14 Agricultores Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Tabulações especiais Observatório das Metrópoles. Em vermelho = aumento maior que 20% Em verde = diminuição menor que 20% Nota-se semelhança entre as distribui- • tanto no Rio, como em São Paulo e em Be- ções sócio-ocupacionais nas metrópoles do Su- lo Horizonte, o maior peso entre as categorias deste e sua dinâmica na década de 90: sócio-ocupacionais encontra-se entre as catego- • nas três, a proporção de categorias superio- rias médias. Nas três metrópoles, essa proporção res situa-se em torno de 10% em 1991, aumen- diminui em 2000, passando de porcentagem em tando em 2000; torno de 30% para algo em volta de 27%; • nas três, o peso dos dirigentes cai bastante • nas três metrópoles, a proporção de cate- entre 1991 e 2000; a maior queda se dá em São gorias populares urbanas aumentou, sobretu- Paulo, onde a proporção era maior em 1991; do devido ao aumento – superior a 20% – do • nas três metrópoles, verifica-se nítido au- terciário especializado. Na metrópole de São mento dos profissionais de nível superior, maior Paulo, notou-se também, e apenas nela, um in- que 20% no período; cremento do terciário não especializado; Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 249 Suzana Pasternak • nas três metrópoles, a proporção de agricul- relativo nos empregos formais em serviços, o tores é pequena, e está com diminuição relati- que se refletirá no crescimento dos trabalha- va acentuada, maior que 20%. dores do terciário especializado, maior que Lembrando a Tabela 4, pode-se asso- 20% no período, e na queda dos trabalhado- ciar o enorme incremento do terciário não res do secundário. Percebe-se nas metrópo- especializado na metrópole paulista ao gran- les do Sudeste: de aumento da estimativa de informalidade, • forte profissionalização; 19% em 1991 e 35% no ano 2000. Foi São • ligeira queda das categorias médias, de pa- Paulo a metrópole que mais perdeu partici- tamar maior que 30% para valores mais pró- pação no emprego formal. E as três metró- ximos de 27%; poles tiveram forte queda nos empregos • aumento de terciário especializado; formais na indústria e grande incremento • diminuição dos agricultores. Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles do Sul Tabela 10 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles do Sul, pelas 8 categorias e indicação de aumento/diminuição maior que 20% no período Grandes categorias Porto Alegre Curitiba 1991 2000 1991 2000 Dirigentes 1,48 1,41 1,72 1,44 Profissionais nível superior 5,87 7,59 5,99 7,55 Pequenos empregadores 3,48 3,23 3,36 3,27 Categorias superiores 10,83 12,23 11,07 14,46 Categorias médias 29,50 26,94 28,39 27,28 Trabalhadores terciário especializado 14,90 17,42 15,22 18,15 Trabalhadores do secundário 29,23 27,35 26,10 25,13 Trabalhadores terciário não especializado 14,04 14,70 14,75 14,29 Categorias populares urbanas 58,17 59,47 56,07 57,57 1,50 1,35 4,47 2,68 Agricultores Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Tabulações especiais Observatório das Metrópoles. Em vermelho = aumento maior que 20% Em verde = diminuição menor que 20% 250 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Em relação às metrópoles do Sul, pode- • há maior estabilidade na estrutura das me- -se notar: trópoles no Sul que nas metrópoles do Sudeste; • tal como entre as metrópoles do Sudeste, há • o peso dos trabalhadores industriais é maior um aumento das categorias superiores, sobre- no Sul que no Sudeste; tudo devido a um forte incremento nos profis- • percebe-se também uma profissionalização sionais de nível superior; tanto em Curitiba como em Porto Alegre; • percebe-se perda dos dirigentes, mas menos • há diminuição dos agricultores, mais forte acentuada que entre as metrópoles do Sudeste; em Curitiba; • embora perceba-se pequeno aumento das • as categorias médias caem, de quase 30% categorias populares urbanas nas duas me- para proporção mais próxima a 25%. trópoles, o incremento entre os trabalhadores Os empregos formais cresceram nas me- terciários especializados é menor que entre as trópoles do Sul, diferentemente de São Paulo e metrópoles do Sudeste; Rio de Janeiro. Em Curitiba, o saldo de empre- • de outro lado, o peso dos trabalhadores do gos formais entre 1991 e 2000 foi alto, de mais secundário em Curitiba e em Porto Alegre é de 200 mil postos de trabalho. As estimativas maior que nas metrópoles do Sudeste; de informalidade, embora aumentando no pe- • tal como nas metrópoles do Sudeste, há per- ríodo, cresceram muito pouco. Em Porto Alegre, da de trabalhadores do secundário, mas menos o peso dos empregos industriais formais caiu acentuada. minimamente, de 29,84% para 28,15%; já em • em Curitiba, em 1991, a proporção de agri- Curitiba a queda dos empregos formais indus- cultores era considerável; quase 5% dos ocupa- triais foi grande, de mais de 11 pontos percen- dos. Ela decresce fortemente em 2000, indo tuais. Essa queda nos empregos formais do para 2,7% dos ocupados. secundário não se reflete na proporção de tra- Assim, sintetizando as mudanças na estrutura sócio-ocupacional do Sul, nota-se que: Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 balhadores do secundário de 2000 em Curitiba, que ficou bem próxima da de 1991. 251 Suzana Pasternak Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles do Nordeste Tabela 11 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles do Nordeste, pelas 8 categorias e indicação de aumento/diminuição maior que 20% no período Fortaleza Natal Recife Salvador Grandes categorias 1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000 0,79 1,10 0,90 1,21 0,40 1,21 0,48 0,40 Profissionais superiores 3,87 5,78 6,11 7,08 5,66 6,91 1,41 2,74 Pequenos empregadores 2,62 1,94 2,21 2,47 2,56 2,21 1,75 2,96 Dirigentes Categorias superiores 7,28 8,82 9,22 10,76 8,62 10,33 3,64 5,10 23,18 22,89 26,06 25,39 26,61 26,43 18,67 19,83 Trabalhadores terciário especializado 15,77 20,89 16,87 20,23 16,44 21,54 15,87 20,51 Trabalhadores secundário 27,17 24,71 22,69 21,70 20,97 19,89 34,84 28,49 Categorias médias Trabalhadores terciário não especializado 19,43 19,41 18,43 17,26 19,88 20,04 20,86 21,05 Categorias populares urbanas 62,37 65,01 57,99 59,19 57,29 61,47 71,57 70,05 7,18 3,27 6,74 4,65 3,45 1,77 6,08 4,41 Agricultores Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Tabulações especiais Observatório das Metrópoles. Em vermelho = aumento maior que 20% Em verde = diminuição menor que 20% As estruturas sócio-ocupacionais das me- Salvador apenas de 3,6%, que sobe para 5% trópoles nordestinas têm mais em comum en- em 2000; de outro lado, o peso dos agricultores tre si que em relação às metrópoles do Sudeste em Fortaleza, Natal e Salvador em 1991 alcan- e do Sul: çava mais de 6%; além disso, nas metrópoles • apenas em Natal não houve aumento maior do Nordeste há ganho entre os dirigentes, o que 20% nas categorias superiores, embora que não acontece no Sudeste e no Sul; mesmo em Natal observa-se incremento nesta • no ano 2000, há uma aumento das cate- proporção. A proporção de ocupados perten- gorias populares urbanas em todas as quatro centes às categorias superiores era bem menor metrópoles nordestinas estudadas, assim como em 1991 que nas metrópoles do Sudeste e Sul, uma redução das camadas médias, com exce- e mesmo em 2000 continua menor: no Sudeste ção de Salvador; e no Sul, em 1991, a proporção de ocupados • a dinâmica 1991-2000 apresenta semelhan- das categorias superiores ficava em torno de ças: todas as metrópoles do Nordeste apre- 11%, e em 2000, de 12%; já nas metrópoles sentam ganho significativo de trabalhadores do Nordeste, em 1991, Fortaleza, Natal e Re- do terciário especializado e perda importante cife apresentavam proporções entre 7 a 9%, e dos agricultores; 252 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 • em relação às categorias superiores, a Nordeste, a porcentagem de ocupados classi- evolução das metrópoles do Nordeste não é ficados como profissionais de nível superior é uniforme: Fortaleza, Natal e Recife mostram menor que no Sul (cerca de 7%) e no Sudeste ganho significativo de dirigentes, o que não (cerca de 7,5%). Em Salvador, a porcentagem acontece em Salvador; de outro lado, Fortale- não atinge 3%; za, Recife e Salvador mostram crescente pro- • aumento das categorias superiores como fissionalização, o que não sucede em Natal. um todo; Fortaleza é a única metrópole que demonstra • a proporção de trabalhadores do terciário perda de pequenos empregadores e Salvador, especializado em 2000 alcança mais de 20% ganho destes pequenos empregadores. dos ocupados em todas as quatro metrópo- Nas metrópoles do Nordeste, há ganho les; no Sul, era cerca de 17% e no Sudeste, absoluto de empregos formais no período 19%. Mas, tal qual nas outras regiões, en- 1991-2000, com taxas anuais de quase 2% ao tre 1991 e 2000 essa proporção aumentou ano em Fortaleza e Salvador. Apesar disso, há significativamente; forte aumento da informalidade nestas metró- • a proporção de trabalhadores do secun- poles, com taxas maiores que 40% de traba- dário é alta em Fortaleza e em Salvador, tal lho informal (menos Salvador, com 37%). Per- como em Curitiba e em Porto Alegre. No Re- cebe-se assim nas metrópoles do Nordeste: cife e em Natal, ela é bem menor, perto dos • aumento significativo dos dirigentes, dife- 20%; rentemente das metrópoles do Sul e do Sudes- • as categorias médias representam menos te. A proporção é bem menor que nas outras de 20% em Salvador, 23% em Fortaleza e em metrópoles, mas o incremento é significativo; torno de 25% no Recife e em Natal. Nas me- • profissionalização, com aumento da pro- trópoles do Sudeste e do Sul, as proporções porção dos profissionais de nível superior. No são maiores, cerca de 27%. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 253 Suzana Pasternak Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles das áreas de expansão Tabela 12 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles das áreas de expansão, pelas 8 categorias e indicação de aumento/diminuição maior que 20% no período Grandes categorias Maringá Goiânia 1991 2000 1991 2000 Dirigentes 1,75 1,25 1,45 1,62 Profissionais nível superior 4,00 5,39 5,37 6,53 Pequenos empregadores 5,32 4,16 4,05 3,44 11,07 10,80 10,87 11,58 Categorias médias 21,37 20,90 27,77 24,52 Trabalhadores terciário especializado 13,79 17,15 17,48 18,98 Trabalhadores do secundário 25,23 26,53 24,49 24,79 Trabalhadores terciário não especializado 16,71 16,42 17,49 18,10 Categorias populares urbanas 55,73 60,10 59,46 61,86 Agricultores 11,82 8,20 1,89 2,03 Categorias superiores Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Tabulações especiais Observatório das Metrópoles. Em vermelho = aumento maior que 20% Em verde = diminuição menor que 20% Maringá e Goiânia apresentam taxas de empregos formais na indústria, enquanto anuais de crescimento populacional maiores que em Maringá essa proporção chega a 31%. De 2% no período 1991-2000. Foram chamadas de outro lado, o setor serviços aparece com forte expansão porque são as únicas, entre todas as percentual em Goiânia, com 61,5% dos empre- metrópoles estudadas, com taxa anual de cres- gos formais em 2000, enquanto em Maringá cimento do emprego formal maiores que 3,5% atinge 42% dos empregos formais. ao ano (Maringá com 4,12% anuais e Goiânia A estrutura sócio-ocupacional também com 3,55 ao ano). As duas aglomerações apre- difere, com a proporção de categorias médias sentavam alta informalidade em 1991– Marin- em Goiânia bem superior à de Maringá. O per- gá com mais de 60% e Goiânia com pouco mais centual de agricultores de Maringá era bastan- de 40%. Essa informalidade caiu em Maringá e te alto em 1991 e continua alto em 2000, em- subiu ligeiramente em Goiânia. bora com redução significativa. Como já foi dito, o perfil dos empregos A única comunalidade entre as duas formais nas duas metrópoles de expansão é aglomerações é o forte aumento de profissio- bem diverso: Goiânia tem pouco mais de 20% nais de nível superior. 254 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Considerações finais sobre a estrutura socioespacial e sua dinâmica O único local onde algo semelhante à tendência descrita por Sassen se manifestou, com aumento das categorias superiores e in- Todas as metrópoles estudadas tiveram crescimento demográfico maior na periferia que no núcleo e muitas apresentam esvaziamento populacional e funcional das áreas centrais mais consolidadas. Não raro, o movimento geral em direção a uma urbanização mais dispersa tem forte impacto sobre o meio ambiente. Embora as metrópoles apresentem especificidades, há certa semelhança nas suas estruturas: no ano 2000, em todas predominam os ocupados nas ocupações médias, a participação das categorias superiores é reduzida, assim como a dos agricultores. A comparação de 1991 com 2000 mostra a perda de agricultores, a perda de trabalhadores industriais, o ganho de trabalhadores de serviços e a maior profissionalização com o aumento dos trabalhadores de nível superior. feriores e perda das médias, foi na metrópole paulista. Mesmo assim, a proporção que aumentou entre as categorias superiores não foi a dos dirigentes, mas a hierarquicamente inferior – a dos profissionais de nível superior. Mas em São Paulo existirá um certo achatamento das categorias médias e aumento das populares urbanas, sobretudo devido ao aumento dos trabalhadores do terciário não especializado compensando a diminuição dos trabalhadores do secundário. Nas outras duas metrópoles do Sudeste, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, não se verificou aumento do terciário não especializado. Nas metrópoles do Nordeste, percebeu-se aumento das categorias superiores, tanto dirigentes como profissionais de nível superior e manutenção da proporção do terciário não especializado. Surgem algumas diferenças na dinâmica sócio-ocupacional entre o Sudeste e o Nordeste: • no Sudeste, é nítida a perda de dirigentes, enquanto no Nordeste percebe-se um ganho Perfil de algumas categorias sócio-ocupacionais nas categorias superiores e um ganho entre os dirigentes; A questão básica à qual este item pretende res- • no Sudeste, percebe-se perda considerável ponder liga-se às características dos componen- nas categorias médias, enquanto no Nordeste tes das categorias sócio-ocupacionais em cada há ganho em Salvador e perdas muito tênues grande região brasileira. Através de alguns in- em Natal, Fortaleza e Recife; dicadores demográficos, socioeconômicos e da • em São Paulo, houve aumento significativo moradia, pretende-se comparar perfis das diver- dos trabalhadores do terciário não especiali- sas categorias sócio-ocupacionais nas distintas zado; no Rio, praticamente a proporção destes metrópoles, respondendo a questões como: trabalhadores se manteve. Tanto em Belo Hori- • quem são os componentes da elite? Serão zonte como nas metrópoles do Nordeste a pro- eles distintos nas metrópoles do Sudeste e do porção dos não especializados diminui entre Nordeste? Esta elite vem se modificando no 1991 e 2000. tempo? Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 255 Suzana Pasternak • quais as características das categorias médias Censos Demográficos de 1991 e 2000, re- nas diferentes metrópoles e nas distintas datas? lacionadas à demografia, renda, trabalho, • qual o peso de cada categoria ocupacional educação e moradia. Algumas metrópo- nos trabalhadores manuais urbanos de cada ti- les não tiveram tempo hábil para o deta- po de metrópole? Quem são estes trabalhado- lhamento desses indicadores. Assim, esta res manuais urbanos e suas características se parte do texto reunirá informações de São mantiveram na década? Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Por- Para embasar essas questões, utilizaram-se alguns indicadores fornecidos pelos to Alegre, Curitiba, Natal, Recife, Fortaleza e Salvador. Perfil das categorias superiores a) dirigentes Quadro 2 – Indicadores para os dirigentes nas metrópoles do Sudeste Indicadores sintéticos São Paulo Rio de Janeiro Belo Horizonte 1991 2000 1991 2000 1991 2000 Demografia – % homens – % 65 anos e mais – % brancos – % nascidos no estrangeiro – % migrantes há menos de 5 anos no Estado – tempo médio dos migrantes no Estado 82,51 3,54 85,68 22,84 5,99 5,11 68,26 4,39 87,78 30,79 6,24 5,09 82,1 4,4 86,5 – 5,5 – 67,6 6,1 84,3 – 2,9 – 82,21 3,48 81,69 1,56 13,92 4,92 67,86 4,28 81,35 1,33 13,89 5,37 Renda – média renda domiciliar sm – média renda per capita sm 26,68 8,55 22,03 13,93 – – 55,83 – 25,56 7,99 28,80 11,78 Trabalho – % de contribuintes à previdência – % de conta própria sem previdência 87,38 – 100,00 – – 0,00 39,3 0,1 89,88 0,00 51,38 0,00 Educação – média de anos de estudo entre os que estudaram 11,86 13,14 12,0 13,3 11,96 13,10 Moradia – % apartamentos – % casas com saneamernto escoado – média de banheiros 40,39 93,97 2,58 49,84 97,18 2,72 62,3 90,3 – 59,7 95,7 – 51,12 92,47 2,87 56,04 95,66 2,89 Fonte: Censos Demográficos de 1991 e 2000. 256 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Há inúmeras comunalidades entre os metrópole paulista, local preferencial da sede integrantes dos dirigentes nas metrópoles de grandes corporações; do Sudeste: • em relação à migração, em Belo Horizonte • os homens são predominantementes, cerca há migrantes mais recentes. Mas isso não se de 80% em 1991, com entrada de mulheres em reflete num tempo médio menor dos migrantes 2000, quando a proporção masculina desce pa- no Estado, perto de 5 anos para as elites nas ra cerca de 67% nas três metrópoles; metrópoles do Sudeste; • a proporção de pessoas com 65 anos e mais • a renda média domiciliar da elite no Rio de é equivalente em São Paulo e Belo Horizonte Janeiro é quase o dobro que em São Paulo e (perto de 3,5% em 1991 e 4,3% no ano 2000) Belo Horizonte, o que é, no mínimo, estranho... e mais elevada no Rio de Janeiro, onde chega a Pode ter havido algum erro no cômputo dessa 6% em 2000; renda domiciliar carioca. As rendas domiciliares • a elite é predominantemente branca nas e per capita de São Paulo e Belo Horizonte se três metrópoles, com menor intensidade em aproximam, com a domiciliar com cerca de 25 Belo Horizonte salários mínimos. Mas nota-se que em Belo Ho- • a grande diferença se encontrou na pro- rizonte ela sobre entre 1991 e 2000, enquanto porção de nascidos no estrangeiro, mais que a de São Paulo diminui; 20% em São Paulo em 1991 e subindo para • a média de anos de estudo é semelhante nas 31% no ano 2000. Em Belo Horizonte, essa três metrópoles, cerca de 12 anos, com tendên- proporção é ínfima, de pouco mais de 1%. A cia a aumentar em 2000; presença de tantos nascidos em outros países • a verticalização da moradia é maior no Rio na elite da maior metrópole brasileira, nu- de Janeiro, onde acontece o inverso das outras ma época em que a migração internacional metrópoles: nessas outras, a proporção das eli- é pequena, pode refletir a presença de altos tes morando em apartamentos aumenta entre executivos de multinacionais sediados na 1991 e 2000. No Rio, ela diminui. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 257 Suzana Pasternak Quadro 3 – Indicadores para os dirigentes nas metrópoles do Sul Indicadores sintéticos Curitiba Porto Alegre 1991 2000 1991 2000 Demografia – % homens – % 65 anos e mais – % brancos – % nascidos no estrangeiro – % migrantes há menos de 5 anos no Estado – tempo médio dos migrantes no Estado 80,8 3,8 94,3 9,33 9,59 4,87 67,8 4,1 94,2 9,30 8,90 5,00 81,43 3,19 96,67 3,22 2,07 5,11 64,42 3,41 96,68 1,30 5,02 4,52 Renda – média renda domiciliar sm – média renda per capita sm 24,9 7,6 19,9 10,7 22,63 7,6 27,57 11,52 Trabalho – % de contribuintes à previdência – % de conta própria sem previdência 87,0 – 82,3 – 87,18 0,00 74,76 0,00 Educação – média de anos de estudo entre os que estudaram 11,7 13,0 11,47 12,93 Moradia – % apartamentos – % casas com saneamernto escoado – média de banheiros 38,2 85,1 2,8 48,5 92,6 2,7 45,23 89,19 2,41 48,56 98,32 2,31 Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Observando-se alguns indicadores para • em Porto Alegre, a proporção de nascidos no as duas metrópoles do Sul, temos: estrangeiro é mínima, como em Belo Horizonte; • a proporção de dirigentes do sexo masculi- já em Curitiba essa proporção atinge mais de no é equivalente à das metrópoles do Sudeste, 9% dos dirigentes. É alta, embora bem menor assim como a tendência da diminuição dessa que a de São Paulo. Mas atesta a presença de proporção em 2000. Aliás, em 2000 a propor- migração de executivos para a metrópole; ção de homens entre dirigentes do Sul asseme- • em relação à migração, em Curitiba há mais lha-se à dos dirigentes do Sudeste; migrantes recentes. Em Porto Alegre, a situação • a proporção de pessoas com 65 anos e mais migratória parece a de São Paulo: os tempos também se assemelha à do Sudeste; é mais médios dos migrantes no Estado, em volta de 5 elevada em Curitiba no ano 2000 que em Por- anos, são iguais aos do Sudeste; to Alegre; • a renda domiciliar média é um pouco menor • a elite é quase totalmente branca, e os per- que a das metrópoles do Sudeste. Em Curitiba, centuais de brancos são ainda superiores aos a dinâmica é como a paulista, com a renda mé- das metrópoles do Sudeste; dia de 2000 menor que a de 1991. Em Porto 258 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Alegre, como em Belo Horizonte, deu-se o fenô- • tanto em Curitiba como em Porto Alegre meno inverso. As rendas per capita aumentam, a elite ainda mora em casas: a verticali- o que indica tamanho menor de família, tal co- zação de Curitiba aumenta, mas não atin- mo no Sudeste; ge 50% . Porto Alegre tem uma elite mais • a média de anos de estudo aumenta e tem a verticalizada, mas em proporção menor que mesma grandeza que nas metrópoles do Sudeste; o Rio de Janeiro. Quadro 4 – Indicadores para os dirigentes nas metrópoles do Nordeste Fortaleza Natal Recife Salvador Indicadores sintéticos 1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000 79,31 3,95 58,69 1,20 7,21 33,07* 82,59 4,22 68,01 0,00 12,57 10,2 82,59 4,22 68,01 0,00 12,57 10,2 60,76 1,55 67,68 0,61 6,79 17,85 80,45 3,73 71,46 3,67 7,11 1,79 61,01 4,05 72,48 2,45 5,20 2,40 80,71 3,17 65,04 – – – 63,07 3,93 61,74 11,66 5,51 6,06 Renda – média renda domiciliar sm – média renda per capita sm 30,80 7,28 24,56 4,45 24,56 4,45 29,35 75,41* 9,08 19,28 21,94 3,45 Trabalho – % de contribuintes à previdência – % de conta própria sem previdência 78,38 0,00 76,52 0,00 76,52 0,00 61,11 0,00 80,81 0,00 46,02 0,00 85,20 0,00 82,52 0,00 9,76 11,91 11,91 13,34 23,91* 12,88 12,16 13,50 43,25 40,92 2,62 23,64 33,60 3,03 23,64 33,60 3,03 19,46 92,34 2,91 62,00 83,18 2,72 64,25 96,95 2,81 70,67 89,44 2,93 Demografia – % homens – % 65 anos e mais – % brancos – % nascidos no estrangeiro – % migrantes há menos de 5 anos no Estado – tempo médio dos migrantes no Estado Educação – média de anos de estudo entre os que estudaram Moradia – % apartamentos – % casas com saneamernto escoado – média de banheiros 58,03 68,12 5,48 – 57,25* – 16,09 Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. • Os valores marcados com * devem ter algum problema, estão muito fora do esperado. Assim, não entrarão para a análise. Percebe-se que: no ano 2000. Nesse item, também não se per- • nas metrópoles do Nordeste, a tendência ao cebe diferença entre as elites nordestinas e as aumento da proporção de mulheres entre os di- do Sul-Sudeste; rigentes é semelhante ao Sudeste e ao Sul, com • o percentual de brancos entre os membros porcentagem por volta de 80% em 1991 e 60% da elite é bem menor no Nordeste, com menos no ano 2000; de 70% em Natal e Fortaleza, pouco mais de • a proporção de pessoas com 65 anos e mais 70% em Recife e 60% em Salvador. No Sul, fica em torno de 4%, aumentando ligeiramente essa elite era quase que totalmente branca, Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 259 Suzana Pasternak e no Sudeste, essa proporção atingia mais de tempo que no Sul ou no Sudeste, com exceção 80% em Belo Horizonte e quase 90% no Rio de Belo Horizonte; e em São Paulo. Percebe-se a existência de • a comparação com a renda média domiciliar proporção significativa de não brancos na elite foi prejudicada pela constatação que alguns do Nordeste; valores podem estar superdimensionados. Mas • a proporção de nascidos no estrangeiro aparentemente em Fortaleza e em Natal atinge entre a elite nordestina é ínfima, mesmo no valores maiores que no Sul e no Sudeste. Uma Recife, onde atinge um pouco mais (3,7% hipótese é de que altos executivos migrantes em 1991). As únicas metrópoles com alta internos exijam salários e bonificações altas proporção de nascidos no estrangeiro são para fixarem residência no Nordeste; Curitiba e São Paulo. No Nordeste, a elite é • a tendência ao aumento da média de anos basicamente nacional, a não ser em Salvador, de estudo se mantém; onde 12% dos dirigentes em 2000 nasceram • outra grande diferença entre a elite do Nor- no estrangeiro; deste e a do Sul Sudeste diz respeito às con- • percebe-se nas metrópoles nordestinas que dições de moradia: a não ser o Recife e em parcela considerável da elite é migrante recen- Salvador, a verticalização é baixa. Em 1991, o te: em Natal, em 1991, mais de 12% estava na saneamento básico era precário, melhorando cidade há menos de 5 anos. Mesmo em Forta- em todas as metrópoles nordestinas no ano leza a proporção de 7% dos membros da elite 2000. E o número de banheiros por domicílio há menos de 5 anos no Estado, assim como no é também alto, tal qual as casas da elite no Sul Recife, mostra uma elite que chegou há menos e no Sudeste. 260 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 b) profissionais de nível superior Quadro 5 – Indicadores para os profissionais de nível superior nas metrópoles do Sudeste Indicadores sintéticos São Paulo Rio de Janeiro Belo Horizonte 1991 2000 1991 2000 1991 2000 Demografia – % homens – % 65 anos e mais – % brancos – % nascidos no estrangeiro – % migrantes há menos de 5 anos no Estado – tempo médio dos migrantes no Estado 51,48 1,72 86,21 8,20 6,81 5,09 48,77 2,00 83,48 12,97 8,07 5,03 50,8 2,4 82,7 – 2,6 – 49,8 3,1 79,9 – 2,8 – 67,99 2,09 69,15 1,04 6,73 4,79 58,83 2,98 74,55 0,65 4,31 5,09 Renda – média renda domiciliar sm – média renda per capita sm 22,27 7,72 19,66 10,05 21,14 – 30,62 – 15,83 4,96 22,22 8,30 Trabalho – % de contribuintes à previdência – % de conta própria sem previdência 82,65 28,65 68,12 40,38 78,1 6,0 63,1 11,1 78,34 34,00 60,97 54,38 Educação – média de anos de estudo entre os que estudaram 14,87 14,33 15,0 14,6 11,03 12,46 Moradia – % apartamentos – % casas com saneamernto escoado – média de banheiros 38,42 95,38 2,12 42,77 96,91 2,03 64,1 93,9 – 60,7 96,8 – 51,12 87,88 1,97 48,88 93,97 2,17 Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Analisando o Quadro 5, que se refere aos de Janeiro e em Belo Horizonte, está por volta profissionais de nível superior das metrópoles de 3%; já em São Paulo situa-se em 2%. Entre do Sudeste, e comparando os indicadores aos os dirigentes, esse percentual era da ordem de dos dirigentes, tem-se: 4,5%. Assim, os profissionais de nível superior • a razão de sexo entre os profissionais de ní- são mais jovens que os dirigentes; vel superior é distinta da razão de sexo entre os • a proporção de brancos é dominante entre dirigentes, com maior proporção de mulheres os profissionais de nível superior das metrópo- nas três metrópoles, com tendência ao aumen- les no Sudeste, mas em nível inferior à dos di- to do peso para o sexo feminino, como para os rigentes: entre esses, 85% eram brancos. Entre dirigentes. A ordem de grandeza dessa porcen- os profissionais de nível superior, apenas em tagem é de 50% para o Rio de Janeiro e São São Paulo a proporção é equivalente. No Rio Paulo, e 60% para Belo Horizonte; e em Belo Horizonte, a proporção desce para • a proporção de pessoas com mais de 65 perto de 80%. Nas três metrópoles, ela é de- anos é menor que entre os dirigentes. No Rio crescente em 2000; Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 261 Suzana Pasternak • São Paulo continua com proporção alta de dirigentes, observa-se que é mais baixa, já que nascidos no estrangeiro, 13% no ano 2000, a dos dirigentes apresentava média de 25 salá- mas muito menor que entre os dirigentes; rios mínimos; • a proporção de migrantes há menos de 5 • percebe-se, nas três metrópoles, uma preca- anos no estado é alta em São Paulo, onde rização das relações de trabalho: a proporção 8% dos profissionais de nível superior estão de contribuintes à previdência decresce nas nesta condição no ano 2000. Para a mesma três metrópoles, com decréscimo de 15 a 17 metrópole, entre os dirigentes a proporção pontos percentuais; era de 6% . Portanto da mesma ordem de • a média de anos de estudo é maior que entre grandeza. Em Belo Horizonte, as porcentagens os dirigentes em São Paulo e no Rio; são menores ; • a moradia é pouquíssimo menos verticali- • a renda média domiciliar dos profissionais zada que entre os dirigentes. E a proporção de nível superior de São Paulo e Belo Horizonte dos moradores em apartamentos é maior no está em torno de 20 salários mínimos, subindo Rio. As condições sanitárias das moradias são em Belo Horizonte e descendo em São Paulo no boas, e a média de banheiros por domicílio é período estudado. No Rio, apresenta-se mais perto de dois, menor que entre os dirigentes, alta. Comparando essa renda média com a dos de 2,7. Quadro 6 – Indicadores para os profissionais de nível superior nas metrópoles do Sul Indicadores sintéticos Curitiba Porto Alegre 1991 2000 1991 2000 Demografia – % homens – % 65 anos e mais – % brancos – % nascidos no estrangeiro – % migrantes há menos de 5 anos no Estado – tempo médio dos migrantes no Estado 51,4 3,8 92,0 7,16 9,83 4,95 47,8 1,8 91,8 6,8 10,9 5,0 44,91 1,50 95,95 0,86 4,73 4,62 44,61 2,02 95,13 1,31 5,74 4,80 Renda – média renda domiciliar sm – média renda per capita sm 18,4 6,2 16,5 7,2 18,25 6,65 23,53 8,62 Trabalho – % de contribuintes à previdência – % de conta própria sem previdência 83,3 39,5 64,1 50,6 84,36 33,29 70,30 42,05 Educação – média de anos de estudo entre os que estudaram 14,7 14,3 15,39 14,97 Moradia – % apartamentos – % casas com saneamernto escoado – média de banheiros 49,2 89,9 2,2 51,4 95,8 2,0 65,71 92,85 1,91 63,16 98,16 1,76 Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. 262 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Caracterizando-se os profissionais de ní- mínimos. Para o Sul, a renda média dos dirigen- vel superior do Sul, percebe-se que: tes foi de 23 salários mínimos; • o perfil demográfico – proporção de homens • também é notável a precarização das rela- e de idosos – é bastante semelhante entre si ções de trabalho entre os profissionais de nível e com as metrópoles do Sudeste. Percebe-se superior no Sul, cerca de 19 pontos percentuais também que os profissionais de nível superior em Curitiba e 15 em Porto Alegre. E a propor- têm maior proporção de mulheres e menor de ção dos que trabalham por conta própria e não pessoas mais velhas que os dirigentes; têm previdência é de 50% em Curitiba e 42% • a proporção de brancos é alta, da ordem de em Porto Alegre, equivalente, assim, à propor- 95% em Porto Alegre e 92% em Curitiba; ção dos mineiros e paulistas; • praticamente não há estrangeiros em Porto • as condições sanitárias domiciliares são boas, Alegre, mas em Curitiba a proporção é signifi- e a média de banheiros por domicílio é perto de cativa, como em São Paulo; 2, inferior à média dos dirigentes. Em Porto Ale- • a renda média dos profissionais de nível su- gre, a verticalização das moradias é forte, com periores estava em torno de 18 salários míni- mais de 605 dos profissionais de nível superior mos em 1991. Em Curitiba, desce no ano 2000, residindo em apartamentos, mais que os diri- enquanto em Porto Alegre sobe para 23,5 salá- gentes, ainda detentores de residências unifami- rios mínimos. Nas metrópoles do Sudeste, essa liares. Em Curitiba, a proporção era menor, mas renda média situava-se por volta de 20 salários também maior que a entre os dirigentes. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 263 Suzana Pasternak Quadro 7 – Indicadores para os profissionais de nível superior nas metrópoles do Nordeste Fortaleza Natal Recife Salvador Indicadores sintéticos 1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000 47,09 1,47 55,32 0,39 6,30 46,56 1,75 61,07 0,50 11,00 44,51 0,61 61,03 0,58 15,32 14,3 45,70 1,06 64,84 0,41 13,03 16,09 46,36 1,50 71,46 0,73 5,45 3,18 45,76 2,07 67,60 0,80 8,94 2,50 46,14 1,35 55,07 – – – 45,57 1,80 61,74 5,33 11,71 4,66 11,84 2,82 28,59 7,50 16,74 2,92 8,81 – 34,96 9,58 12,71 4,81 – – 27,38 8,28 78,49 – 84,70 55,01 43,25 62,77 85,94 – 61,86 – 86,80 52,85 41,83 54,25 Educação – média de anos de estudo entre os que estudaram 12,98 12,40 15,00 14,44 – 14,31 14,72 14,32 Moradia – % apartamentos – % casas com saneamernto escoado – média de banheiros 25,14 34,60 1,97 42,03 83,68 2,02 27,94 25,86 2,4 18,52 88,80 2,46 50,95 67,81 4,25 55,68 82,55 2,23 57,47 97,77 2,25 68,63 89,06 2,32 Demografia – % homens – % 65 anos e mais – % brancos – % nascidos no estrangeiro – % migrantes há menos de 5 anos no Estado – tempo médio dos migrantes no Estado Renda – média renda domiciliar sm – média renda per capita sm Trabalho – % de contribuintes à previdência – % de conta própria sem previdência Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. • Os valores marcados com * devem ter algum problema, estão muito fora do esperado. Assim, não entrarão para a análise. Comparando-se os Quadros 5, 6 e 7, tem- • em relação à cor da pele, os profissio- -se que: nais de nível superior do Nordeste apresen- • as proporções de homens entre os profissio- tam menor proporção de brancos, cerca de nais de nível superior nas metrópoles do Sudes- 60% . Em Recife , essa porcentagem atinge te, Sul e Nordeste são semelhantes, em torno quase 70%. Nas metrópoles do Sul, as pro- de 45 a 50%, mantendo-se na década. Há bem porções de brancos são altíssimas, de mais mais mulheres entre esses profissionais que en- de 90% . No Sudeste, um pouco menores, tre os dirigentes, em que a proporção variava da ordem de 80%. Mas deve ser notado que em torno de 60 a 70%; em todas as metrópoles essa proporção é • a proporção de idosos é ligeiramente maior menor entre os profissionais de nível supe- no Rio de Janeiro e em Curitiba. Nas outras rior que entre os dirigentes; metrópoles, quer do Sudeste quer do Sul ou do • não há estrangeiros no Nordeste, com ex- Nordeste, é pequena, em torno de 1 a 2%; ceção de Salvador, onde cerca de 55 dos 264 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 profissionais de nível superior nasceram fora • a média de anos de estudo é semelhante em do Brasil. Mas apresentam proporção significa- todas as metrópoles, muitas vezes maior que tiva em São Paulo e Curitiba. São metrópoles entre os dirigentes; industriais, com sedes de multinacionais. Mas • as condições de moradia no Nordeste são mesmo em São Paulo, Curitiba e em Salvador, a distintas do Sudeste e Sul: menor verticaliza- proporção de nascidos no estrangeiro é maior ção, condições sanitárias precárias em 1991 e entre os dirigentes; melhorando em 2000. • a renda média dos profissionais de nível Resumindo, as categorias superiores superior parece ser maior no Sudeste que no possuem perfil demográfico bastante seme- Sul, e nestas duas regiões quando comparadas lhante. Destaca-se a presença de estrangeiros com o Nordeste. No Sudeste, a média ficou em em Curitiba, em São Paulo e, em proporção um torno de 20 salários mínimos; no Sul, em torno pouco menor, em Salvador. Em relação à cor da de 18 salários mínimos. E no Nordeste, embo- pele, nas categorias superiores predominam os ra alguns dados saiam da média, ela parece brancos, embora nas metrópoles nordestinas a se situar por volta de 15 salários mínimos. De proporção de não brancos seja mais elevada. qualquer forma, há diferença significativa entre As rendas médias se situam num intervalo en- a renda média dos dirigentes e a dos profissio- tre 25 e 18 salários mínimos, sendo maior no nais de nível superior; Sudeste. As médias de anos de estudo variaram • a precarização das relações de trabalho entre 12 e 15 anos. As relações de trabalho es- ocorre em todas as metrópoles, do Sudes- tavam se precarizando em todas as metrópoles te, Sul e Nordeste. Em Natal e em Curitiba, na década de 1990. Além da cor e da renda, ela é violenta, com queda na contribuição à outra distinção entre categorias superiores no Previdência de cerca de 40 e 20 pontos percen- Sudeste, Sul e Nordeste diz respeito às condi- tuais, respectivamente; ções de moradia. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 265 Suzana Pasternak Perfil das categoria médias Quadro 8 – Indicadores para as categorias médias nas metrópoles do Sudeste e do Sul Indicadores sintéticos São Paulo Rio de Janeiro Belo Horizonte 1991 1991 2000 55,4 56,09 52,12 58,6 1,6 0,55 0,80 0,8 61,5 55,98 59,30 86,4 – – 0,21 0,28 5,0 1,2 4,41 4,80 – – 4,98 14,26 9,68 14,99 5,24 – – 81,75 70,63 84,4 42,35 57,91 – 9,54 10,80 1991 2000 58,35 53,10 60,2 0,86 1,05 1,1 75,14 74,62 77,9 – % nascidos no estrangeiro 3,85 4,96 – % migrantes há menos de 5 anos no Estado 7,93 7,30 – tempo médio dos migrantes no Estado 5,08 5,71 – média renda domiciliar sm 12,55 – média renda per capita sm 3,80 – % de contribuintes à previdência – % de conta própria sem previdência 2000 Curitiba 1991 Porto Alegre 2000 1991 2000 53,9 58,36 53,84 0,9 0,80 1,04 86,9 89,20 89,10 4,17 2,3 0,58 0,37 9,40 10,2 3,79 4,15 5,17 4,66 5,0 4,98 4,93 10,15 14,02 10,1 10,9 9,39 14,01 2,94 4,54 3,1 3,8 3,14 4,99 72,5 86,10 67,73 84,6 73,2 84,72 68,77 – 35,40 61,21 49,6 62,7 41,71 54,48 10,1 10,8 9,86 10,75 9,9 10,7 9,80 10,74 Demografia – % homens – % 65 anos e mais – % brancos Renda Trabalho Educação – média de anos de estudo entre os que estudaram Moradia 15,90 25,29 35,9 34,6 24,36 34,21 28,4 27,7 40,77 38,10 – % casas com saneamernto escoado 88,1 93,62 84,9 91,9 83,83 89,72 76,7 90,3 79,66 94,63 – média de banheiros 1,43 1,57 – – 1,48 1,57 1,5 1,5 1,25 1,32 – % apartamentos Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. As camadas médias das metrópoles do • a proporção de migrantes há menos de 5 Sudeste e do Sul mostram semelhanças entre si, anos no estado continua mais alta em São Pau- e diferenças em relação às camadas superiores: lo e em Curitiba, mas é menor nas categorias • os ocupados das categorias médias já não superiores. O mesmo se dá na proporção de são basicamente homens: em 2000, em todas nascidos no estrangeiro, significativa apenas as cinco metrópoles do Quadro 8 percebe-se para São Paulo e Curitiba, mas bem menor en- que mais de 40% dos membros são do sexo tre as categorias superiores; feminino. São mais jovens que as categorias • a renda média domiciliar é semelhante no superiores; ano 2000 em todas as metrópoles, cerca de • a proporção de brancos no Sudeste fica em 14 salários mínimos, bem menor que entre os torno de 75% e no Sul, de 87%. Pode-se dizer dirigentes (25 s.m.) e entre os profissionais de que o percentual de brancos nas camadas mé- nível superior (20 s.m.); dias é superior ao do total da população das • a escolaridade média fica em pouco me- metrópoles, mas inferior ao das categorias nos que 10 anos de estudo, para todas as superiores; metrópoles; 266 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 • entre as categorias médias também se veri- em Porto Alegre, com percentuais em torno de fica a precarização das relações de trabalho na 35 a 38% morando em apartamentos. Em to- década de 90, com perda de cerca de 15 pontos das as metrópoles, as condições sanitárias do- percentuais em quase todas as metrópoles do miciliares são corretas e melhoraram em 1991. Sudeste e do Sul. E, entre os que trabalham por A média de banheiros por domicílios é inferior conta própria, grande proporção já não con- à das categorias superiores; tribui para a previdência. Esta média era em • pode-se concluir que as categorias média torno de 40% em 1991, subindo para mais de das metrópoles do Sudeste e do Sul apresen- 55% no ano 2000; tam muita semelhança entre si, e diferem das • as camadas médias são menos verticalizadas categorias superiores em relação à cor, razão que as categorias superiores em todas as me- de sexo, renda, escolaridade, precarização trópoles do Sul e Sudeste. Sua maior proporção maior das relações de trabalho, menor verticali- de verticalização vai ocorrer no Rio de Janeiro e zação e menos banheiros por moradia. Quadro 9 – Indicadores para as categorias médias nas metrópoles do Nordeste Fortaleza Natal Recife Salvador Indicadores sintéticos Demografia – % homens – % 65 anos e mais – % brancos – % nascidos no estrangeiro – % migrantes há menos de 5 anos no Estado – tempo médio dos migrantes no Estado Renda – média renda domiciliar sm – média renda per capita sm Trabalho – % de contribuintes à previdência – % de conta própria sem previdência Educação – média de anos de estudo entre os que estudaram Moradia – % apartamentos – % casas com saneamernto escoado – média de banheiros 1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000 54,37 0,79 40,09 0,14 4,35 – 51,29 0,79 48,02 0,50 4,83 – 56,26 0,79 47,05 0,20 10,60 16,8 51,57 0,77 52,92 0,11 10,89 17,52 57,34 1,06 43,78 0,21 3,89 2,29 51,55 1,04 50,62 0,24 4,21 2,60 54,29 0,76 26,00 – – – 50,16 0,97 31,41 3,05 7,82 4,76 – – 14,52 3,59 7,98 1,56 7,21 3,41 16,48 4,39 20,96 4,08 – – 13,05 3,63 72,44 – – – 75,28 74,66 36,30 80,62 78,92 – 55,52 – 81,82 38,68 62,68 70,56 8,66 9,52 9,99 10,52 19,73 10,64 9,84 10,69 16,04 23,09 1,39 19,29 70,79 1,48 10,28 15,02 1,50 19,93 74,67 1,68 28,30 48,32 2,88 29,8 65,69 1,57 22,72 93,55 1,42 46,05 84,18 1,61 Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 267 Suzana Pasternak Observando-se o perfil das categorias No Sul-Sudeste, os porcentuais estão por vol- médias do Nordeste, pode-se ver que: ta de 70%; • os ocupados das categorias médias apresen- • as categorias médias são menos verticaliza- tam proporção de mulheres maior que entre as das que a superiores, com cerca de 20% mo- categorias superiores, cerca de 40%. Essa pro- rando em apartamentos em Natal e Fortaleza e porção cresceu entre 1991 e 2000. A razão de 30% no Recife. No Sul-Sudeste, essa proporção sexo entre os ocupados das categorias médias alcançou 38%. Em todas as metrópoles nordes- do Sul-Sudeste e do Nordeste é semelhante; tinas, as condições sanitárias melhoraram entre • a proporção de brancos entre as categorias 1991 e 2000, mas são ainda bem inferiores às médias do Nordeste fica entre 40 e 50%. En- das camadas médias do Sul-Sudeste; tre as categorias superiores era de 60%. Assim, • pode-se concluir que as categorias médias têm em comum com as categorias médias do do Nordeste apresentam muita semelhança en- Sul-Sudeste a diminuição de brancos em rela- tre si, tal como as do Sul-Sudeste. A única com ção às categorias superiores. Mas, comparando diferença marcante é Salvador, com maior pro- com as categorias médias do Sul-Sudeste, onde porção de não brancos e maior verticalização. a porcentagem de brancos era da ordem de 75- E, em relação a essas, apresentam poucas dife- 85%, pode-se afirmar que os não brancos são renças: têm maior proporção de não brancos e mais presentes no Nordeste. A grande exceção moram com condições sanitárias piores. A ren- é Salvador, com cerca de 30% de brancos no da parece ser menor em Natal, mas os dados ano 2000. Salvador é a metrópole com maior de Recife e Fortaleza desmentem essas ideias, proporção de não brancos tanto nas categorias mostrando renda maior. superiores como nas médias; • quase não há estrangeiros, e a proporção de migrantes há menos de 5 anos no estado é pequena no Recife e em Fortaleza, um pouco Perfil das categorias populares urbanas maior em Salvador, mas considerável em Natal, onde esse percentual atinge mais de 10%; a) Trabalhadores do secundário • a renda média domiciliar alcança 7 salários Dado que o perfil do emprego formal difere en- mínimos em Natal, mas chega a 14 em Forta- tre as metrópoles do Sul – onde a proporção leza e em Salvador e a 20 no Recife. Assim, em de empregos formais na indústria é maior; no Natal apresenta níveis inferiores aos do Sul-Su- Sudeste – onde apenas São Paulo possui mais deste, mas no Recife, Salvador e em Fortaleza de 25% de sua força de trabalho formal aloca- têm níveis superiores; da na indústria; e no Nordeste, onde Salvador, • a escolaridade média fica em torno de 10 Recife e Natal apresentam menos de 20% dos anos de estudo, tal como no Sul-Sudeste; empregos formais na indústria, enquanto For- • a proporção de contribuintes à Previdência taleza surge como “polo industrial nordestino”, decresce entre 1991 e 2000, tal como no Sul- com mais de 26% dos empregos formais neste -Sudeste. Atinge, em 2000, níveis bem infe- setor da economia – verificou-se a proporção riores, como 36% em Natal e 55% no Recife. da população ocupada como trabalhadores do 268 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Tabela 11 – Proporção de trabalhadores do secundário no total dos ocupados das categorias urbanas populares, diversas metrópoles, 2000 Metrópole % dos trabalhadores do secundário Porto Alegre 61,08 Curitiba 58,06 São Paulo 40,35 Belo Horizonte 38,56 Fortaleza 38,01 Natal 36,66 Rio de Janeiro 34,03 Recife 32,36 Salvador 31,89 Fonte: IBGE:Censo de 2000. secundário nas diversas metrópoles, o que indi- indústria tradicional representam apenas 16% caria composição distinta entre trabalhadores dos trabalhadores do secundário. O maior per- do terciário especializado e não especializado e centual encontra-se entre os trabalhadores da trabalhadores do secundário nas aglomerações construção civil. Já em Porto Alegre, a indústria brasileiras estudadas. tradicional aparece com força, com 32,53% Observa-se que o peso dos ocupados no dos operários. O polo calçadista tem presen- secundário é bastante diverso nas diferentes ça indiscutível. Aliás, outra metrópole onde metrópoles, indo de percentuais elevados en- a indústria tradicional lidera o percentual de tre as categorias populares urbanas, como nas trabalhadores é Fortaleza. Nota-se que o cha- metrópoles do Sul, onde agrega cerca de 60% mado perfil 2, com aproximadamente 40% das desta categoria, passando por São Paulo, Belo categorias populares urbanas no secundário, Horizonte e Fortaleza, com percentual apro- é bastante diverso: em São Paulo, a indústria ximado de 40%, Rio de Janeiro e Natal, com moderna aparece como grande empregadora, 35%, e Recife e Salvador, com cerca de 30%. com quase 30% dos trabalhadores do secun- São quatro perfis de metrópole em relação ao dário; já em Fortaleza, esse papel é desem- peso do secundário entre as categorias urba- penhado pela indústria tradicional e em Belo nas populares. Horizonte pela construção civil. Nas outras Mas vão existir diferenças dentro des- metrópoles, tanto do perfil 3 (35% de traba- ses perfis. As metrópoles do Sul, onde a pro- lhadores das categorias populares urbanas no porção de trabalhadores do secundário é alta, secundário) como do perfil 4 (apenas 30% no de aproximadamente 60%, mostram uma dis- secundário) a construção civil é, indiscutivel- tribuição destes trabalhadores entre os diver- mente, a grande empregadora entre os traba- sos segmentos do secundário. Pela Tabela 12, lhadores do secundário. Se a análise for feita nota-se que em Curitiba os trabalhadores da por grande região, o Rio de Janeiro apresenta Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 269 Suzana Pasternak um perfil nordestino, enquanto Fortaleza fo- Salvador a construção civil empregue mais de ge a este perfil. Chama a atenção que em 40% do total de trabalhadores do secundário. Tabela 12 – Composição dos trabalhadores do secundário, metrópoles dos perfis 1 e 2, em % Curitiba Porto Alegre São Paulo Belo Horizonte Fortaleza Indústria moderna Categoria sócio-ocupacional 24,20 23,26 29,59 23,89 15,06 Indústria tradicional 16,00 32,53 19,11 17,84 37,75 Serviços auxiliares 26,00 17,90 24,96 22,71 18,79 Construção civil 32,80 26,31 26,34 35,57 28,40 Total secundário 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 Fonte: IBGE: Censo de 2000. Tabela 13 – Composição dos trabalhadores do secundário, metrópoles com perfis 3 e 4, em % Categoria sócio-ocupacional Rio de Janeiro Natal Recife Salvador Indústria moderna 19,34 17,45 21,03 21,03 Indústria tradicional 19,35 26,27 20,43 16,34 Serviços auxiliares 25,21 24,19 25,89 21,46 Construção civil 36,10 32,08 32,64 41,17 Total secundário 100,00 100,00 100,00 100,00 Fonte: IBGE: Censo de 2000. Resumindo, há duas metrópoles com gran- peso relativo maior na indústria moderna – São de peso de ocupação na indústria tradicional – Paulo, embora Curitiba e Belo Horizonte já apare- Porto Alegre e Fortaleza, com Natal surgindo como çam com peso relativo digno de nota neste item. possível centro da indústria tradicional, com 26% dos ocupados do secundário. Apenas uma com 270 Resta saber o perfil destes trabalhadores do secundário. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Quadro 10 – Perfil dos trabalhadores do secundário nas metrópoles mais industrializadas (perfis 1 e 2) Indicadores sintéticos Curitiba 1991 Porto Alegre 2000 São Paulo Belo Horizonte Fortaleza 1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000 73,45 Demografia 86,6 87,8 78,12 80,46 81,05 84,12 74,50 75,17 72,38 1,0 1,2 1,55 1,17 1,22 1,36 1,17 1,32 1,22 1,27 – % brancos 75,3 76,4 73,84 84,56 59,42 56,88 34,69 38,71 23,60 31,58 – % migrantes há menos de 5 anos no Estado 6,10 7,10 3,17 2,49 12,65 10,22 3,57 3,38 4,98 3,30 – tempo médio dos migrantes no Estado 4,80 5,10 4,94 5,66 4,84 5,81 4,90 5,59 – – – média renda domiciliar SM 5,6 6,3 4,91 6,88 7,69 8,50 4,90 6,95 2,78 8,15 – média renda per capita SM 1,4 1,7 1,39 2,10 2,06 2,18 1,19 1,91 0,64 1,95 – % de contribuintes à previdência 67,0 56,7 76,70 64,23 65,80 50,17 80,76* – 49,86 43,28 – % de conta própria sem previdência 67,2 84,6 52,99 71,13 59,06 77,77 31,53 71,24 – – 5,5 6,6 5,36 6,36 5,68 6,72 5,41 6,47 3,95 5,41 – % homens – % 65 anos e mais Renda Trabalho Educação – média de anos de estudo entre os que estudaram Moradia 5,2 3,9 7,72 5,79 3,31 8,14 3,03 7,96 2,57 4,02 47,5 74,8 57,91 83,46 72,66 92,48 62,25 76,35 11,46 53,40 1,1 1,2 0,90 1,05 1,11 1,22 1,02 1,14 0,89 0,95 – % apartamentos – % casas com saneamernto escoado – média de banheiros Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. * estimativa superdimensionada. As características dos trabalhadores do em São Paulo, o percentual de brancos é menor secundário nas metrópoles mais industrializa- entre os trabalhadores do secundário que entre das mostram muitas semelhanças: os ocupados das categorias médias e superiores; • em todas as cinco metrópoles a proporção • em relação à migração, apenas em São Paulo de homens entre os trabalhadores do secun- e em Curitiba ela aparece como fenômeno que dário era maior que a média da metrópole, e merece algum registro; maior que entre profissionais de nível superior • a renda média domiciliar aumenta entre e categorias médias. É provável que os operá- 1991 e 2000, para todas as metrópoles indus- rios da construção civil, majoritariamente mas- triais. É maior em São Paulo, onde atingiu, em culinos, estejam afetando esse número; 2000, 8,50 salários mínimos e a renda domi- • em todas as metrópoles o percentual de ido- ciliar per capita de 2,18 salários mínimos. Em sos é mínimo; Curitiba e Belo horizonte, a renda domiciliar per • em relação à cor, os brancos dominam nas capita não chega a dois salários mínimos, e em metrópoles do Sul, Curitiba e Porto Alegre. Mas Porto Alegre alcança 2,10 no ano 2000. O dado mesmo nessas metrópoles, essas proporções de Fortaleza para o ano 2000 parece estar su- são menores que entre as categorias médias e perestimado, dado que a diferença entre 1991 superiores. Em São Paulo, há quase a mesma e 2000 é enorme. E, em todas as metrópoles, é proporção de brancos e não brancos. Também menor que entre as categorias médias. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 271 Suzana Pasternak • sobre as relações de trabalho, em todas • a média de anos de estudo é maior que 6 as metrópoles percebe-se uma forte precari- anos, e aumentou entre 1991 e 2000. Apenas zação entre 1991 e 2000. Em Porto Alegre, o em Fortaleza tem valores menores que 6 no nível de contribuição à previdência é maior, ano 2000; e em Fortaleza, menor. A proporção dos • as condições de moradia são melhores na “por conta própria sem previdência” tam- metrópole paulista e piores em Fortaleza. E a bém aumentou; moradia é predominantemente horizontal. Quadro 11 – Perfil dos trabalhadores do secundário nas metrópoles menos industrializadas (perfis 3 e 4) Indicadores sintéticos Rio de Janeiro Natal Recife Salvador 1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000 Demografia – % homens – % 65 anos e mais – % brancos – % migrantes há menos de 5 anos no Estado – tempo médio dos migrantes no Estado 81,8 1,7 41,4 2,4 – 86,9 2,1 42,9 2,9 – 78,82 0,95 27,49 7,50 – 83,36 1,01 36,12 7,38 – 85,53 1,28 25,87 3,82 2,11 86,84 1,24 33,04 1,60 2,67 87,46 1,05 11,49 – – 88,85 1,42 14,57 4,47 5,36 Renda – média renda domiciliar SM – média renda per capita SM 4,93 – 6,99 – 4,34 0,64 5,67 1,35 6,75 2,12 – 3,84 5,67 – 5,72 1,46 Trabalho – % de contribuintes à previdência – % de conta própria sem previdência 51,3 – 40,7 – 53,41 76,61 45,18 90,37 60,58 – 43,41 – 66,13 69,48 42,49 83,00 5,5 6,7 5,44 6,07 – 6,08 5,15 6,16 10,4 66,9 – 9,6 78,4 – 1,15 8,70 1,1 17,00 50,65 1,22 6,64 21,83 1,90 7,18 39,36 1,04 5,23 75,25 0,97 17,48 69,36 1,12 Educação – média de anos de estudo entre os que estudaram Moradia – % apartamentos – % casas com saneamernto escoado – média de banheiros Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. O perfil dos trabalhadores do secun- homens, também influenciados operários da dário das metrópoles menos industrializa- construção civil; das difere em poucos pontos do perfil das • a proporção de idosos é insignificante; industrializadas: • o percentual de brancos não atinge 40% nas • a razão de sexo favorece, como nas outras, o metrópoles do Nordeste e apenas ultrapassa sexo masculino. Pode-se afirmar que os traba- esta cifra no Rio de Janeiro. Era maior em São lhadores do secundário são predominantemente Paulo e nas metrópoles do Sul; 272 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 • a migração aparece como significante ape- • a média de anos de estudo, tal como nas ou- nas em Natal; tras, está por volta de 6 anos, sendo maior em • a renda média domiciliar é semelhante à das 2000 que em 1991; metrópoles com perfil 1 e 2; • as condições de moradia são bastante precá- • as relações de trabalho estão mais precárias rias em Natal e no Recife, embora o saneamen- em 2000 que em 1991 e têm ordem de gran- to básico tenha melhorado sensivelmente na deza inferior às metrópoles do Sul e São Paulo; década. A moradia é quase sempre horizontal. b) Trabalhadores do terciário não especializado Quadro 12 – Alguns indicadores de 2000 para os trabalhadores do terciário não especializado Metrópole % homens % brancos Renda domiciliar Anos de estudo Previdência Curitiba 32,80 73,20 5,70 6,00 44,50 Porto Alegre 32,14 75,62 6,56 6,05 55,03 São Paulo 36,42 52,49 7,58 6,03 81,75 Rio de Janeiro 36,60 38,50 6,99 6,00 40,60 Belo Horizonte 50,34 32,82 6,40 5,53 49,17 Fortaleza 42,38 30,33 6,07 4,50 – Natal 38,67 34,64 5,72 5,68 44,53 Recife 39,01 32,33 – 5,16 – Salvador 30,86 12,99 7,84 5,46 40,40 Fonte: IBGE: Censo Demográfico de 2000. Alguns pontos podem ser enfatizados so- de serviços não especializados. Nas metrópo- bre os trabalhadores do terciário não especiali- les do Sul e em São Paulo e Rio de Janeiro, zado, a partir da observação de indicadores de a forte presença feminina deve estar ligada 2000 para as metrópoles em estudo: ao contingente de trabalhadores domésticos. • a razão de sexo favorece as mulheres, com É provável que em Fortaleza, Belo Horizonte, exceção de Belo Horizonte, onde é pratica- Natal e Recife, além dos domésticos, a repre- mente igual. Em Fortaleza, a proporção de ho- sentação dos prestadores de serviços não es- mens alcança mais de 40%. Os trabalhadores pecializados, biscateiros e ambulantes tenha do terciário não especializado incluem domés- forte componente masculino. Já em Salva- ticos, ambulante e biscateiros e prestadores dor, além dos domésticos, é provável grande Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 273 Suzana Pasternak presença de ambulantes do sexo feminino, resultando na razão de sexo de 31% de homens. Considerações parciais sobre o perfil das categorias sócio-ocupacionais Um ponto que deve ser enfatizado é que a proporção de mulheres entre os trabalhadores Como já foi apontado no item “Considerações do terciário não especializado é sempre maior finais sobre a estrutura socioespacial e sua di- que entre os demais ocupados, em todas as nâmica”, a dinâmica sócio-ocupacional apre- metrópoles. Além disso, percebe-se que a senta algumas diferenças claras entre as me- proporção de mulheres é bastante semelhante trópoles do Sudeste e do Nordeste. No Sudeste, entre as metrópoles; há perda de dirigentes, enquanto no Nordeste • a proporção de brancos entre estes traba- vai acontecer um ganho. Nas metrópoles das lhadores é a menor entre as categorias sócio- duas regiões, há grande aumento relativo dos -ocupacionais, para todas as metrópoles. Em- profissionais de nível superior. bora os percentuais entre elas sejam diversos, indo desde 75% de homens no Sul, passando por 50% em São Paulo, cerca de 30% no Rio de Janeiro e nas metrópoles nordestinas e alcançando apenas 13% em Salvador, isso reflete a proporção de não brancos em cada uma dessas metrópoles; • a renda domiciliar é mais alta em São Paulo e em Salvador. Nas outras metrópoles fica por volta de 6 a 7 salários mínimos. Chama a atenção a grande estabilidade entre metrópoles. Dois pontos escapam dessa estabilidade, São Paulo e Salvador. Uma hipótese é que em São Em relação às camadas médias, no Sudeste percebe-se significativa redução, enquanto no Nordeste houve ganho em Salvador e tênue redução nas outras metrópoles. Os trabalhadores do terciário não especializado apresentam aumento relativo apenas na metrópole paulista. No Rio de Janeiro, seu peso relativo se manteve, enquanto nas outras metrópoles sua proporção diminui. Havia uma hipótese que os perfis das distintas categorias fossem heterogêneos entre as diferentes metrópoles. O que se percebeu, entretanto, foi grande semelhança nestes perfis entre metrópoles e grande distinção Paulo realmente a renda seja mais alta acom- entre as categorias dentro de cada metrópo- panhando os pisos salariais da cidade, enquan- le. Ou seja, há heterogeneidade entre distin- to em Salvador a renda de ambulantes traria a tas categorias e homogeneidade na mesma média para cima; categoria entre diferentes metrópoles. É claro • os anos de estudo também são homogêneos que isto é uma tendência, que não oculta algu- nas distintas metrópoles, em torno de 6 anos mas diferenças entre o perfil de determinada no Sul/Sudeste a 5 no Nordeste. Em Fortaleza, a categorias entre uma metrópole e outra. Mas média é menor, apenas 4,5 anos; a tendência é maior heterogeneidade entre • a cobertura de previdência social é precária categorias de uma mesma metrópole e maior em quase todas as metrópoles, a grande exce- semelhança entre perfis da mesma categoria ção sendo São Paulo. entre distintas metrópoles. 274 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 Entre as categorias superiores: as metrópoles e diferente da porcentagem de – para os dirigentes homens entre os dirigentes, que é maior; • em todas as metrópoles há tendência de • a proporção de idosos é ligeiramente su- maior proporção de mulheres em 2000 que em perior no Rio de Janeiro e em Curitiba. Mas é 1991. Não há diferença significativa nas distin- sempre menor que entre os dirigentes; tas metrópoles; • em relação à cor da pele, no Nordeste vai • a proporção de idosos fica em torno de existir menor proporção de brancos que no Su- 4%, também sem diferença visível entre as deste e no Sul. Mas é inferior, nas três metrópo- metrópoles; les, a proporção de brancos entre os dirigentes; • o percentual de brancos entre os membros • a proporção de estrangeiros continuava sig- da elite é bem menor no Nordeste. No Sul, a nificativa apenas em São Paulo e em Curitiba, elite é quase toda branca e, no Sudeste, a pro- tal como entre os dirigentes. Mas, mesmo nes- porção ficava por volta de 90%. Assim, nas sas metrópoles, apresenta-se inferior à porcen- metrópoles do Nordeste percebe-se uma elite tagem de estrangeiros entre os dirigentes; não branca; • há diferença significativa entre a renda mé- • nas metrópoles do Nordeste, percebe-se que dia dos profissionais de nível superior e os di- parte da elite é migrante recente. De outro la- rigentes. E, entre estes profissionais de nível do, a parcela de nascidos no estrangeiro na eli- superior, a renda média é maior no Sudeste que te nordestina é ínfima, o que não acontece em no Sul e maior no Sul que no Nordeste; São Paulo e Curitiba. Salvador aparece como • a precarização das relações de trabalho em exceção, com 12% de seus dirigentes nascidos todas as metrópoles é violenta entre 1991 e fora do Brasil; 2000; • a renda média da elite nordestina é maior • a média de anos de estudo é semelhante en- que a da elite nas outras metrópoles. Uma hi- tre os profissionais de nível superior, em todas pótese é que altos executivos migrantes inter- as metrópoles, e maior que a dos dirigentes; nos exijam salários e bonificações para fixarem • as condições de moradia do Nordeste são residência no Nordeste; distintas das do Sul e Sudeste, com menor ver- • as condições de moradia são fortemente ticalização e pior condição sanitária. condicionadas pelas condições da metrópole. Assim era esperado que o perfil da moradia fosse distinto. No Nordeste, a verticalização tende a ser mais baixa e as condições de saneamento, sobretudo em 1991, eram bastante precárias. Entre as categorias médias: • a razão de sexo entre as categorias média nas distintas metrópoles é semelhante, mas distinta da razão entre as categorias superiores. Nas médias, a proporção de mulheres é maior e cresceu entre 1991 e 2000; – para os profissionais de nível superior • a proporção de brancos nas categorias mé- • a proporção de homens entre os profissionais dias do Nordeste fica entre 40 e 50%. No Sul e de nível superior é bastante semelhante entre no Sudeste, é maior. Mas todas as metrópoles Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 275 Suzana Pasternak têm maior proporção de brancos entre as cate- • dentro de cada um desses perfis, vão existir gorias superiores; distintas composições dentro dos trabalhadores • quase não há estrangeiros e a proporção de do secundário. Há duas metrópoles com grande migrantes é pequena. A única exceção é em peso de ocupação na indústria tradicional: Por- Natal, onde cerca de 10% dos ocupados nas to Alegre e Fortaleza, com Natal despontando categorias médias são migrantes; como possível polo de emprego para operários • a renda domiciliar média das categorias mé- da indústria tradicional. Apenas uma metrópo- dias é menor que das superiores. Há variabili- le – São Paulo – caracteriza-se como centro de dade de renda média entre Sul-Sudeste e Nor- emprego de operários da indústria moderna, deste. A renda média do Nordeste é superior, embora Curitiba e Belo Horizonte já apareçam com exceção de Natal; com peso relativo digno de nota nesse item. • a escolaridade é menor que nas categorias Nas outras, o maior peso relativo encontra-se superiores, mas semelhante entre as metrópo- na construção civil. Salvador chega a ter mais les, em torno de 10 anos de estudo; de 40% dos seus ocupados no secundário na • a contribuição à previdência cai entre 1991 e construção civil; 2000 em todas as metrópoles. Em 2000, atinge • em todas as metrópoles, a proporção de ho- níveis muito baixos nas metrópoles do Nordeste; mens entre os trabalhadores do secundário é • as condições de moradia apresentam menor maior que a média da metrópole, e maior que verticalização que entre as categorias supe- entre os profissionais de nível superior e as ca- riores. As condições sanitárias das moradias tegorias médias. É provável que os operários da do Nordeste melhoraram na década, mas ain- construção civil, majoritariamente masculinos, da são inferiores às condições de moradia no estejam afetando esse porcentual; Sul-Sudeste. • em todas as metrópoles, a proporção de ido- Entre as categorias populares urbanas: sos é mínima; – trabalhadores do secundário • a proporção de brancos difere nas metrópo- • a proporção de trabalhadores do secundá- les do Sul, Sudeste e Nordeste. Mas é sempre rio no total das categorias populares urbanas maior que entre as categorias médias; é bastante distinta. Pode-se determinar quatro • a renda domiciliar aumenta para todas entre tipos de perfil: o perfil 1, com cerca de 60% de 1991 e 2000, mas é menor que entre as cate- trabalhadores do secundário entre as catego- gorias médias; é semelhante entre os diversos rias populares urbanas em 2000 (Porto Alegre perfis de taxa de industrialização; e Curitiba); o perfil 2, com aproximadamente • a média de anos de estudo e menor que en- 40% de secundário (São Paulo, Belo Horizonte tre as categorias médias, mas é semelhante en- e Fortaleza); o perfil 3, com 35% de secundá- tre as metrópoles, cerca de 6 anos; rios (Rio de Janeiro e Natal); e o perfil 4, com • as condições de moradia são melhores em cerca de 30% de trabalhadores do secundário São Paulo e piores em Fortaleza. São mais ho- no total das categorias populares urbanas (Re- rizontais e com condições sanitárias piores que cife e Salvador); entre as categorias médias; 276 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000 – trabalhadores do terciário não especializado • a cobertura da previdência é precária em to- • os trabalhadores do terciário não especia- das as metrópoles. lizado são predominantemente mulheres, em todas as metrópoles. E sempre a proporção de mulheres nesses trabalhadores é a maior entre Resumindo todas as categorias sócio-ocupacionais, e semelhante entre as metrópoles; • há diferenças marcantes na razão de sexo, • a proporção de brancos é também a menor proporção de idosos, origem, escolaridade, entre todas as categorias. Varia por metrópole. renda, condições de trabalho e de moradia No Sul chega a 75%, enquanto no Nordeste é entre as categorias sócio-ocupacionais numa menor, atingindo seu mínimo em Salvador, com mesma metrópole; apenas 13% dos trabalhadores do terciário não • há algumas diversidades em relação à cor, especializados brancos; renda e condição de moradia entre as mesmas • a renda domiciliar fica entre 6 a 7 salários categorias sócio-ocupacionais nas distintas mínimo. Apenas dois pontos escapam da esta- metrópoles (sobretudo diferenças entre as me- bilidade: São Paulo e Salvador; trópoles do Sul/Sudeste e do Nordeste); • a média de anos de estudo é também homo- • há inúmeras semelhanças entre os perfis das gênea, com cerca de 5 a 6 anos de estudo; mesmas categorias nas distintas metrópoles. Suzana Pasternak Professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do CNPq. Vice coordenadora do Observatório das Metrópoles. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 277 Suzana Pasternak Referências BOURDIEU, P. ( 1989). O poder simbólico. Lisboa/Rio de Janeiro, DIFEL/Bertrand Brasil. HAMMET, C. (1995). Les changements socioéconomiques à Londres: croissance des catégories ter aires. Societés Contemporaines, n. 22, pp. 15-32. MALDONADO, J. L, (2000). “Economia, emprego e desigualdade social em Madri”. In: QUEIROZ RIBEIRO, L. C. (org.) O futuro das metrópoles. Rio de Janeiro, Revan. MAMMARELLA, R. (2007). “Box II Panorama da estrutura socioocupacinal das Regiões Metropolitanas no Brasil, 2000”. In: QUEIROZ RIBEIRO, L. C. e SANTOS JUNIOR, O. A. As metrópoles e a questão social brasileira. Rio de Janeiro, Revan/Fase. PIQUET, R. (2000). O emprego industrial metropolitano e a nova divisão espacial do trabalho no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 3, pp. 97-110. PRETECEILLE, E. (1994). “Cidade globais e segmentção social”. In: QUEIROZ RIBEIRO, L. C. e SANTOS JUNIOR, O. A. Globalização, fragmentação e reforma urbana. O futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. ______ (1995). Division sociale de l’espace et globalisa on: le cas de la Métropole Parisienne. Societés Contemporaines, n. 22, pp 33-68. RIBEIRO, L. C. de Q. e LAGO, L. (2000). O espaço social das grandes metrópoles: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 3, pp. 111-128. SASSEN, S. (1991). The global city: New York, London, Tokyo. Princeton, Princeton University Press. Texto recebido em 4/nov/2010 Texto aprovado em 15/dez/2010 278 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 Instruções aos autores ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL A revista Cadernos Metrópole, de periodicidade semestral, tem como enfoque o debate de questões ligadas aos processos de urbanização e à questão urbana, nas diferentes formas que assume na realidade contemporânea. Trata-se de periódico dirigido à comunidade acadêmica em geral, especialmente, às áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Geografia, Demografia e Ciências Sociais. A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema político-institucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão baseados na governança urbana. CHAMADA DE TRABALHOS A revista Cadernos Metrópole é composta de um núcleo temático, com chamada de trabalho específica, e um de temas livres relacionados às áreas citadas. Os textos temáticos deverão ser encaminhados dentro do prazo estabelecido e deverão atender aos requisitos exigidos na chamada; os textos livres terão fluxo contínuo de recebimento. Os artigos podem ser redigidos em língua portuguesa ou espanhola. Os artigos apresentados em outros idiomas serão traduzidos para o português. AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS Os artigos recebidos para publicação deverão ser inéditos e serão submetidos à apreciação dos membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos receberão duas avaliações e, se necessário, uma terceira. Será respeitado o anonimato tanto dos autores quanto dos pareceristas. Caberá aos Editores Científicos e à Comissão Editorial a seleção final dos textos recomendados para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta sua consistência acadêmico-científica, clareza de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema. COMUNICAÇÃO COM OS AUTORES Os autores serão comunicados por email da decisão final, sendo que a revista não se compromete a devolver os originais não publicados. OS DIREITOS DO AUTOR A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. Cada autor receberá dois exemplares do número em que for publicado seu trabalho. O Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Autorais, datado e assinado pelo(s) autor(es), deve ser enviado juntamente com o artigo. O conteúdo do texto é de responsabilidade do(s) autor(es). NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS Os trabalhos devem conter: • título, em português, ou na língua em que o artigo foi escrito, e em inglês; • texto, digitado em Word, espaço 1,5, fonte arial tamanho 11, margem 2,5, tendo no máximo 25 (vinte e cinco) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras, referências bibliográficas; as imagens devem ser em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm; • resumo/abstract de, no máximo, 120 (cento e vinte) palavras em português ou na língua em que o artigo foi escrito e outro em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave em português e em inglês; • identificação do autor, com as seguintes informações, por extenso: nome do autor, formação básica, instituição de formação, titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha, unidade e departamento, cidade, estado, país, e-mail, telefone e endereço para correspondência; • referências bibliográficas, conforme instruções solicitadas pelo periódico. Os trabalhos devem ser encaminhados para o email: [email protected] ou para o endereço: Cadernos Metrópole – Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 – São Paulo, SP, Brasil. É imprescindível o envio do Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Autorais, datado e assinado pelo(s) autor(es). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS As referências bibliográficas, que seguem as normas da ABNT adaptadas pela Educ, deverão ser colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções: Livros AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Capítulos de livros AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR (org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar. Artigos de periódicos AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo. Exemplo: TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28. Trabalhos apresentados em eventos científicos AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, número, ano, local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final. Exemplo: SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília, MPAS/ SAS, pp. 193-207. Teses, dissertações e monografias AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição. Exemplo: FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH. Textos retirados de Internet AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso. Exemplo: FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em: 8 set 2005. Rede Observatório das Metrópoles Estado Instituição Coordenador Belém Universidade Federal do Pará Simaia Mercês [email protected] Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Luciana Andrade [email protected] Brasília Universidade de Brasília Rômulo Ribeiro [email protected] Curitiba Ipardes Rosa Moura [email protected] Fortaleza Universidade Federal do Ceará Clélia Lustosa [email protected] Goiânia Universidade Católica de Goiás Aristides Moysés [email protected] Maringá Universidade Estadual de Maringá Ana Lucia Rodrigues [email protected] Natal Universidade Federal do Rio Grande do Norte Maria do Livramento M. Clementino [email protected] Porto Alegre Fundação de Economia e Estatística Rosetta Mammarella [email protected] Recife Universidade Federal de Pernambuco Angela Maria Gordilho Souza [email protected] Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Luiz César de Queiroz Ribeiro [email protected] Salvador Universidade Federal da Bahia Inaiá Maria Moreira Carvalho [email protected] Santos Universidade Católica de Santos Marinez Brandão [email protected] São Paulo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Lucia Maria Machado Bógus [email protected] Vitória Instituto Jones dos Santos Neves Caroline Jabour [email protected] Cadernos Metrópole vendas e assinaturas Exemplar avulso: R$20,00 Assinatura anual (dois números): R$36,00 Enviar a ficha abaixo, juntamente com o comprovante de depósito bancário realizado no Banco do Brasil, agência 3326-x, conta corrente 10547-3, ou enviar cheque para a Caixa Postal nº 60022 - CEP 05033-970 - São Paulo – SP – Brasil. Telefax: (11) 3368.3755 Cel: (11) 9931.9100 [email protected] Exemplares nºs _________ Assinatura referente aos números _____ e _____ Nome __________________________________________ _ Endereço ________________________________________ Cidade ____________________ UF _____ CEP _________ Telefone ( Fax ( ) _______________ ) _____________ E-mail __________________________________________ Data ________ Assinatura __________________________