Cadernos Metrópole

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Cadernos Metrópole
ISSN 1517-2422
cadernos
metrópole
representação política
e governança metropolitana
Cadernos Metrópole
v. 14, n. 27, pp. 1-282
jan/jun 2012
Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–,
Semestral
ISSN 1517-2422
A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22
1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles
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Periódico indexado na Library of Congress – Washington
Cadernos Metrópole
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rrepresentação
epresentação p
política
olítica
eg
governança
o v e r n a n ç a metropolitana
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PUC-SP
Reitor
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Mello e Silva (UCSal, Salvador/Bahia/Brasil) Vitor Matias Ferreira (ISCTE-UL, Lisboa, Portugal) Weber Soares (UFMG, Belo Horizonte/
Minas Gerais/Brasil)
sumário
9
Apresentação
dossiê: representação política
e governança metropolitana
A er neoliberaliza on?
15
Após a neoliberalização?
Neil Brenner
Jamie Peck
Nik Theodore
Governance and territorializa on: local welfare
in Italy between fragmenta on and innova on
41
Governance e territorialização: o welfare local
na Itália entre fragmentação e inovação
Lavinia Bifulco
Electoral strategy under open-list
propor onal representa on
The weight of the metropolitan vote:
the representa veness of metropolitan regions
in the Legisla ve Assembly of Paraná
59 A estratégia eleitoral na representação
proporcional com lista aberta
Barry Ames
89 O peso do voto metropolitano: a representa vidade
das regiões metropolitanas na Assembleia
Legisla va do Paraná
Jéferson Soares Damascena
Celene Tonella
Habitus, planning and public governance 115 Habitus, planejamento e governança urbana
Nilton Ricoy Torres
Nego a ng the territory: the formula on 135 Negociando o território: a formulação do Plano
of the Strategic Master Plan of São Paulo
Diretor Estratégico de São Paulo (2002-2004)
(2002-2004)
Sidney Piochi Bernardini
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 1-282, jan/jun 2012
7
artigos
The tendency towards a degrading spa ality 155 A espacialidade degradante tendencial e o horizonte
and the horizon for poli cal space educa on
de uma educação polí ca do espaço
Ulysses da Cunha Baggio
Gated communi es, me, space and society:
a historical perspec ve
171 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade:
uma perspec va histórica
Rita Raposo
Brasília: the straight lines in reverse 197 Brasília: as linhas retas pelo avesso
or the intersec on of usage
ou no entrecortar do uso
Rosângela Vieira Neri Viana
Karla Chris na Ba sta de França
Ananda de Melo Mar ns
Urban planning and flooding in Dourados: 217 O planejamento urbano e as enchentes
the distance between reality and legality
em Dourados: a distância entre a realidade
e a legalidade
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski
Maria Aparecida Mar ns Alves
Luciana Ferreira da Silva
Joelson Gonçalves Pereira
Changes in the socio-occupa onal structure 233 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das
of the Brazilian metropolises, 1991-2000
metrópoles brasileiras, 1991-2000
Suzana Pasternak
279 Instruções aos autores
8
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 1-282, jan/jun 2012
Apresentação
Reunindo tanto trabalhos de natureza teórica como investigações empíricas, o dossiê do
Cadernos Metrópole n. 27 centra-se em tema de inquestionável relevância para a vida presente
e futura das metrópoles: com pontos de partida diversos – seja no que se refere aos problemas
teóricos discutidos, como às realidades empíricas analisadas –, os artigos aqui reunidos convergem
para um denominador comum, a saber, a relação nem sempre linear e positiva observada entre
os caminhos da Governança Metropolitana e a dinâmica da Representação Política. Da leitura
dos artigos que fazem parte do presente dossiê, é possível se identificar um conjunto de indícios
preciosos sobre o impacto fundamental dos mecanismos de representação sobre os limites,
prospectos e possibilidades de uma governança de natureza metropolitana.
Sabem os estudiosos dos modelos de representação e de democracia que as instituições
políticas variam de acordo com grau em que fragmentam e dispersam recursos de poder,
ou agregam e concentram esses recursos. Denominam-se consociativos aqueles modelos de
democracia que produzem incentivos à fragmentação, e majoritários os que têm por efeito a
concentração desses recursos. Sem entrarmos no campo extenso do debate sobre as virtudes
e mazelas dos dois modelos, é suficiente aqui assinalar que, para um número considerável de
analistas, os arranjos consociativos estariam na raiz de uma série de disfuncionalidades observadas
nos sistemas políticos inspirados por essa matriz institucional: pulverização e atomização excessiva
dos atores políticos, multiplicação dos pontos de veto, custos de cooperação aumentados,
resultados subótimos de política, notadamente, a subprovisão de bens públicos. Não é preciso
dizer que os arranjos dessa natureza se traduziriam em fortes desincentivos à montagem de
mecanismos de governança metropolitana, os quais a um só tempo demandariam e ocasionariam
a concentração de recursos de poder no âmbito das regiões metropolitanas, introduzindo nessas
regiões uma dinâmica institucional de natureza majoritária.
Ora, as críticas ao funcionamento do sistema político brasileiro recaem exatamente
sobre o forte componente consociativo presente no interior de nossa matriz institucional, mais
precisamente, o federalismo robusto – que a um só tempo amplia o papel dos entes municipais e
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Apresentação
das minorias estaduais – o multipartidarismo e a personalização do mandato parlamentar. Fazendo
coro à linha crítica que associa a fragmentação do sistema político brasileiro a desafios no campo
da governabilidade, Barry Ames traz contribuição inovadora às investigações sobre geografia do
voto e representação; em trabalho pioneiro aqui publicado, o artigo “A estratégia eleitoral na
representação proporcional com lista aberta”, Ames observa que, no caso do sistema proporcional
brasileiro, os deputados podem traçar diferentes estratégias para obtenção do mandato, com
resultados diversos no espaço: concentram votos em determinadas áreas e nelas são majoritários;
concentram votos, mas não são majoritários; fragmentam os votos e são majoritários em
determinadas áreas e, por fim, fragmentam os votos, mas sem dominarem essas áreas.
Com essa taxonomia, Ames descreve os quatro distritos “de fato”, a partir de onde se
elegeriam nossos representantes e constata que aqueles representantes oriundos de áreas onde são
eleitoralmente majoritários pautam sua conduta no legislativo por motivações paroquiais, priorizando
políticas distributivas e a obtenção de benefícios desagregados para suas respectivas bases.
Na sequência do trabalho de Ames, investigações do Observatório das Metrópoles
identificaram nas regiões metropolitanas deputados eleitos com base geográfica concentrada
em um único município ou em áreas ainda mais limitadas no interior de um único município
(perfil comum à quase totalidade dos deputados ali eleitos); identificou-se, assim, um novo
localismo de corte municipal ou inframunicipal que produz desincentivos ao tratamento da
agenda metropolitana nas instâncias legislativas. Assim, no que se refere à metrópole, nosso
sistema representativo reforça e reafirma a fragmentação da dinâmica política, dinâmica avessa à
governança metropolitana.
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella testam e confirmam a hipótese do localismo
e paroquialismo metropolitano no estado do Paraná: deputados com votação espacialmente
concentrada e atuação paroquialista no âmbito da Assembleia Legislativa priorizam políticas
distributivistas e ignoram a temática metropolitana. Verificam ainda no caso do Paraná a
replicação de uma segunda consequência perversa da operacionalização de nosso sistema
eleitoral: a sub-representação das áreas metropolitanas em benefício de áreas mais atrasadas.
Embora circunscritos à análise do município de São Paulo, os trabalhos de Nilton Ricoy
Torres e Sidney Piochi Bernardini exploram duas dimensões ou possibilidades – até certo ponto
contraditórias – de definição do sentido da governança urbana: governança definida como
instância de racionalidade e de planejamento vertical, de um lado, e governança entendida
como instância de articulação e processamento dos interesses dos atores sociais, de outro.
Valendo-se de conceitos centrais da teórica sociológica de Bourdieu, como habitus, campo e
dinâmicas de luta pelo poder e dominação, Torres identifica e analisa uma concepção específica
de governança urbana, regulada por normas e orientações próprias, a saber, a governança
entendida como planejamento. Observa que, limitada à gramática do planejamento, a
governança urbana teria sua orientação definida ex ante : caberia ao agente-planejador nada
mais do que articular racionalmente meios ao fim de disciplinar e dirigir o objeto de sua ação – o
urbano. Compreender a governança como planejamento requer, por seu turno, o mapeamento
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Apresentação
da dinâmica dos conflitos no interior do campo e a identificação, no tempo, da variação no grau
de autonomia do campo vis-à-vis os atores sociais – questões que apresentam um novo marco de
análise para as investigações da governança urbana.
O artigo de Sidney Piochi Bernardini focaliza uma outra variável – situada fora do âmbito
estatal – com impacto sobre a governança urbana: a dimensão da participação e interação dos
atores sociais. A partir de rica e detalhada descrição das diversas etapas de formulação do Plano
Diretor Estratégico de São Paulo, Bernardini analisa o grau de mobilização participação, de um
lado, e a natureza dos interesses, de outro, de três atores sociais centrais no curso do processo
de formulação do plano diretor: os representantes do setor imobiliário, as associações de bairro
e os movimentos sociais por moradia. Por meio da análise das diversas etapas que culminaram
na formulação do plano, tenta-se responder a duas questões maiores: a) o planejamento urbano
pode mobilizar participação da sociedade? b) a participação dos diversos atores sociais produz
consequências no que diz respeito ao planejamento?
O artigo responde de maneira afirmativa às duas questões. Ao longo das diversas etapas
que marcaram a formulação do plano diretor de São Paulo, a participação popular se mostrou
crescente, alcançando ao fim o universo de 3.000 entidades e 50.000 pessoas. A pressão dos grupos
envolvidos, por sua vez, importou em alterações significativas na minuta formulada pelo Executivo,
seja na definição da abrangência da regulamentação, seja na especificação de aspectos pontuais
como a delimitação do potencial construtivo ou na definição do número de zonas especiais de
interesse social. O PDE de São Paulo aparece, assim, como exemplo de formulação de instrumento
de política urbana ou, se quisermos, de governança urbana pela via democrática.
Se a perspectiva da construção de uma governança metropolitana sofre importantes
constrangimentos internos decorrentes de nossa matriz institucional, orientada pelo
consociativismo e pela pulverização dos recursos de poder, pela fragmentação dos atores
políticos, experiências comparadas de modelos semelhantes podem sugerir outros desfechos. O
artigo de Lavinia Bifulco é exemplar neste sentido: trazendo a experiência da descentralização
experimentada pela Itália nas últimas décadas. Em “Governance e territorialização: o welfare local
na Itália entre fragmentação e inovação”, Bifulco vai chamar a atenção, com base na experiência
de descentralização que vem ocorrendo naquele país, para o fato de que a descentralização não
está fadada a se traduzir em ações de governança que impedem a cooperação ou que acentuem
desigualdades regionais; se a descentralização, via de regra, traz essas implicações, abre, no
entanto, possibilidades novas e virtuosas de governança.
Descreve o artigo movimento linear de descentralização que vem reduzindo o escopo de
funções do estado-nacional no território: a Europa das regiões caminhou na direção da Europa
das cidades; ao mesmo tempo, o âmbito do Estado de Bem-Estar deslocou-se do estado nacional
para esferas subnacionais, em particular, para os municípios. Inscreve-se esse movimento não só
no marco da globalização, mas igualmente nos processos de reforma do setor-público, orientados
à ampliação do escopo do mercado, em que custos e responsabilidades, outrora localizados no
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Apresentação
Estado central, deslocam-se para autoridades locais. Nesse percurso, cristaliza-se a realidade de
um sentido contratual da cidadania social, em que prima o cidadão-consumidor sobre o cidadão
sujeito de direitos.
Na Itália, sublinha Bifulco, o movimento descentralizador elevou ao primeiro plano as
municipalidades e seus respectivos agentes: “o papel encenado pela política está ligado sobretudo
aos novos prefeitos, cujos poderes cresceram de maneira decisiva... com relação às políticas a
escala local é sem dúvida um elemento chave dessa renovação”. Importa notar aqui que, no
caso italiano, a fragmentação não implicou necessariamente a geração de uma governança
subótima, ao contrário, produziram-se vias inovadoras de gestão pública. A partir da análise de
duas ações de intervenção pública, sob o regime de contratos, a reforma dos serviços sociais e
os contratos de bairro, confirmou-se a última hipótese, em que prevaleceram incentivos a uma
quase institucionalização, mesmo sob a forma de contratos, de mecanismos de integração vertical
e horizontal de governança. O caso italiano fornece exemplos, portanto, de novos mecanismos de
governança desenhados a partir da reforma do estado, a qual não se traduz assim no abando da
vida social à lógica do mercado, com consequente fragmentação dos atores e sub-provisão de bens
públicos: “aconteceram processos de aprendizado institucional, graças aos quais as agregações
intermunicipais começaram a agir e a serem reconhecidas como novos atores públicos... em
alguns casos, planos e contratos dão prova de uma elevada capacidade integrativa”.
De alguma forma, deve-se assinalar que o artigo de Neil Brenner, Jamie Peck e Nik
Theodore – “Após a neoliberalização?” – fornece instrumental novo para a compreensão dos
constrangimentos externos às estruturas de governança nos estados nacionais e em suas
subunidades. Cabe assinalar, desde já, que a semântica proposta pelos autores não é isenta de
propósitos: ao recusar o conceito de neoliberalismo e lançar mão do conceito de neoliberalização,
pretendem assinalar que a implementação de novas práticas regulatórias a partir da década de
1970, orientadas para a extensão do escopo das estruturas do mercado, deve ser lida, antes de
mais nada, como processo. Um processo com dinâmicas distintas no espaço, temporalmente
descontínuo e permeado por tendências experimentais e híbridas. Antes de produzir algo como um
“regime liberal” – plenamente formado e que progressivamente se estenderia até compreender
todo o espaço regulatório global –, o processo de neoliberalização se articulou de maneira desigual
ao longo de lugares, territórios e escalas.
Assinalam, os autores, que esse desenvolvimento desigual da neoliberalização antes de
tratar-se de condição temporária, produto de uma institucionalização incompleta, representa uma
de suas características constitutivas. Conclusão óbvia quando se tem em vista que se trata de
processos dependentes da trajetória de origem (path dependency origin): na medida em que colide
com diversos cenários regulatórios herdados de rodadas anteriores (nacional-desenvolvimentismo,
socialismo e fordismo), o formato de articulação e institucionalização se caracterizará pela
heterogeneidade. Processos de neoliberalização têm seu formato definido tanto pela diversidade
dos contextos, como pelas distintas trajetórias de origem.
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Apresentação
Antecipadas as importantes pontuações que distanciam a compreensão do processo de
neoliberalização dos modelos difusionistas, os quais preconizam o modelo de convergência de
política, os autores constroem um mapa genérico com as diferentes etapas e características do
processo de neoliberalização nas últimas décadas. De forma condensada, vale aqui chamar a
atenção para os pontos polares do mapa: a) na década de 1970, o processo de neoliberalizaçãos se
caracteriza por um processo desarticulado de experimentos regulatórios voltados ao alargamento
do escopo do mercado, em escala específica, em lugares e territórios; tantos os sistemas
juridiscionais de transferência de políticas como organismos globais (OCDE, BIRD, FMI) ainda se
orientavam por parâmetros neokeynesianos; b) na década de 1990, o aprofundamento do processo
de neoliberalização se evidencia menos pela intensificação dos experimentos regulatórios
orientados para a expansão do mercado e mais pelo redesenho de instituições supranacionais
como a OCDE, OMC, FMI e blocos regionais como a UE e NAFTA, na direção de condicionarem – na
direção do livre mercado – as formas nacionais e subnacionais de regulação.
“Após a neoliberalização? ” apresenta quatro cenários de reestruturação regulatória –
desde a acomodação e prosseguimento do processo de neoliberalização até a ruptura com o
processo. Se todos os cenários se mostram viáveis para os autores, a hipótese da completa ruptura
implicaria o completo desmantelamento do regime de regras neoliberais que hoje hegemonizam
agências supranacionais.
Menos pelo desenho dos cenários futuros, e mais pelo tratamento sofisticado das restrições
externas à governança nacional ou subnacional, o artigo “Após a neoliberalização?” afigura-se de
leitura obrigatória.
O Cadernos Metrópole 27 prossegue em sua opção de, não se limitando ao dossiê, divulgar
artigos que tragam contribuição substantiva para a compreensão da dinâmica urbana/metropolitana,
em temas que se reportem tanto a facetas do planejamento, como à morfologia desses espaços.
É o caso dos demais artigos que compõem o presente volume. Em “A espacialidade degradante
tendencial e horizonte de uma educação política do espaço”, Ulysses da Cunha Baggio explora e
detalha a macrodinâmica da urbanização contemporânea – marcada pela segregação – e indica
uma lacuna que estaria a reiterar essa dinâmica: a ausência de uma educação política do espaço.
Rita Raposo, no artigo “Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade: uma perspectiva
histórica”, refaz, a partir de exame empírico rico e minucioso, o percurso histórico e os contextos
sociais que produziram uma das manifestações mais contundentes da urbanização traduzida em
segregação, a saber, os condomínios fechados.
Em “Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso”, Rosângela Vieira Neri
Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins, com base no estudo empírico
do Plano Piloto de Brasília e com enfoque fenomenológico, trazem importantes elementos de
verificação de contradições urbanísticas inerentes à descontinuidade entre o planejamento e o
uso da cidade.
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Apresentação
Outra de linha de descontinuidade é analisada no artigo “O planejamento urbano e
as enchentes em Dourados: a distância entre a realidade e a legalidade”, de Bianca Rafaela
Fiori Tamporoski, Maria Aparecida Martins Alves, Luciana Ferreira da Silva e Joelson Gonçalves
Pereira. O artigo explora o déficit de planejamento, marca das cidades brasileiras, a partir da
resposta setorial e precária do poder público à incidência de inundações no município: no lugar
de um planejamento integrado da cidade, os gestores se limitam à realocação das populações
invasoras de áreas de risco.
Por fim, o artigo de Susana Pasternak, “Mudanças na estrutura sócio-ocupacional
das metrópoles brasileiras, 1991-2000”, testa para o conjunto das metrópoles brasileiras
a pertinência da hipótese central derivada do conceito de global city, a saber, a hipótese do
agravamento da dualização social decorrente da alteração da estrutura ocupacional própria das
economias pós-fordistas.
Nelson Rojas de Carvalho
Sérgio de Azevedo
Comissão Editorial
Cadernos Metrópole
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?*
After neoliberalization?
Neil Brenner
Jamie Peck
Nik Theodore
Resumo
À luz dos debates sobre as origens e implicações da
crise econômica global de 2008-2009, este ensaio
apresenta um arcabouço teórico para analisar processos de reestruturação regulatória no contexto
do capitalismo contemporâneo. A análise gira em
torno do conceito de neoliberalização, que consideramos ser uma palavra-chave para se compreender
as transformações regulatórias da nossa época.
Inicialmente, oferecemos uma série de explicações
a respeito das definições que sustentam nossa conceituação de neoliberalização como um processo
diversificado, geograficamente desigual e dependente da trajetória. Nessa base, distinguimos três
dimensões dos processos de neoliberalização –
experimentação regulatória; transferência interjurisdicional de políticas; e formação de regimes de
normas transnacionais. Tais distinções formam a
base para uma periodização esquemática de como
os processos de neoliberalização têm se arraigado
em várias escalas espaciais e como se estendem
pela economia mundial desde a década de 1980.
Também geram uma perspectiva analítica para se
explorar vários cenários para formas contraneoliberalizadoras de reestruturação regulatória.
Abstract
Against the background of debates on the origins
and implications of the global economic crisis
of 2008-2009, this essay presents a theoretical
framework for analyzing processes of regulatory
restructuring under contemporary capitalism.
The analysis is framed around the concept of
neoliberalization, which we view as a keyword
for understanding the regulatory transformations
of our time. We begin with a series of definitional
clarifications that underpin our conceptualization
of neoliberalization as a variegated, geographically
uneven and path-dependent process. On this basis,
we distinguish three dimensions of neoliberalization
processes – regulatory experimentation; interjurisdictional policy transfer; and the formation of
transnational rule-regimes. Such distinctions form
the basis for a schematic periodization of how
neoliberalization processes have been entrenched
at various spatial scales and extended across the
world economy since the 1980s. They also generate
an analytical perspective from which to explore
several scenarios for counter-neoliberalizing forms
of regulatory restructuring.
Palavras-chave: neoliberalização; contraneoliberalização; experimentos regulatórios; transferência
de políticas; regimes de normas.
Keywords: neoliberalization; counterneoliberalization; regulatory experiments; policy
transfer; rule regimes.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore
Introdução
Debates sobre transformações regulatórias animam os campos da economia política
Na esteira da crise econômica global de 2008-
heterodoxa e dos estudos críticos urbanos e
2009, muitos comentaristas proeminentes têm
regionais há várias décadas, além de desem-
defendido que as ideologias e práticas do ca-
penhar um papel importante nas literaturas
pitalismo de livre mercado, ou “neoliberalis-
sobre, entre outros tópicos, pós-fordismo, glo-
mo”, estão desacreditadas, e que uma nova
balização, triadização, governança multinível,
era de reforma regulatória, baseada no inter-
financialização, redimensionamento do esta-
vencionismo agressivo do estado para restrin-
do, o novo regionalismo, empreendedorismo
gir as forças do mercado, está se iniciando
urbano e, mais recentemente, neoliberalismo/
(Altvater, 2009; Stiglitz, 2008; Wallerstein,
neoliberalização. Para os propósitos deste arti-
2008). Entretanto, tais avaliações geralmente
go, baseamo-nos em discussões sobre a última
se baseiam em suposições insustentavelmente
questão – neoliberalização – para conceituar
monolíticas quanto ao sistema regulatório que
processos de reestruturação regulatória no
herdamos e que agora está supostamente em
capitalismo pós-década de 1970 e pós-2008.
crise, levando a interpretar a crise atual como
Conforme argumentamos em outra obra, o uso
um colapso sistêmico, análogo ao desmantela-
generalizado dos conceitos de neoliberalismo
mento do Muro de Berlim duas décadas atrás
e neoliberalização tem sido acompanhado de
(Peck et al., 2009). De maneira geral, qualquer
imprecisão, confusão e controvérsia – com efei-
que seja a interpretação das tendências de
to, tais conceitos se tornaram rascal concepts
crise contemporâneas, os principais relatos do
(conceitos malandros) (Brenner et al., 2010).
colapso financeiro de 2008-2009 dependem
A despeito desses perigos, argumentamos que
de suposições definidas, mas frequentemen-
um conceito de neoliberalização rigorosamente
te não investigadas, sobre as formações (ou
definido pode iluminar as transformações regu-
a formação) regulatórias que existiam antes
latórias de nossa época.
dessa última série de reestruturações induzi-
Inicialmente, apresentamos uma sé-
das pela crise. Por essa razão, este é um mo-
rie de explicações para as definições que
mento oportuno para se refletir sobre os pro-
sustentam nossa conceituação de neolibe-
cessos de reestruturação regulatória que se
ralização. Distin gui mos suas três principais
desenvolvem desde o colapso do fordismo do
dimensões – (1) experimentação regulatória;
Atlântico Norte, mais de 40 anos atrás. Acre-
(2) transferência interjurisdicional de políticas;
ditamos que tal reflexão é essencial para as
e (3) formação de regimes de normas trans-
atuais tentativas de decifrar padrões emergen-
nacionais. Tais distinções formam a base para
tes de formação de crise no capitalismo pós-
uma periodização esquemática de como os
2008. Além disso, há implicações considerá-
processos de neoliberalização se estenderam
veis para a compreensão das paisagens urba-
e se arraigaram na economia mundial. Essas
nas contemporâneas, que são profundamente
considerações geram uma perspectiva analí-
remodeladas através das transformações e
tica a partir da qual se pode explorar vários
contestações regulatórias contemporâneas.
cenários para formas contraneoliberalizadoras
16
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?
de reestruturação regulatória em configurações contemporâneas e futuras do capitalismo. Para os propósitos desta discussão, não
oferecemos uma descrição detalhada da crise
econômica global contemporânea, nem de
suas implicações de médio ou longo prazo. Ao
invés disso, esta análise destina-se a servir a
um propósito metateórico – a saber, estimular
debates sobre qual deve ser o arcabouço analítico para se abordar tais questões.
Embora a nossa análise não considere
os efeitos dessas transformações regulatórias
Neoliberalismo em questão
Desde o final da década de 1980, os debates
sobre o neoliberalismo têm sido mencionados
de maneira proeminente na economia política
heterodoxa. Inspirados por várias vertentes do
pensamento neomarxista, neogramsciano, neopolanyiano, neoinstitucionalista e pós-estruturalista, esses conceitos têm sido centrais para
discussões sobre a crise da ordem capitalista no
pós-guerra – denominada fordismo do Atlântico Norte, liberalismo incrustado (embedded
sobre paisagens urbanas específicas, nossa
liberalism), ou desenvolvimentismo nacional –
abordagem possui implicações para os atuais
e sobre os padrões pós-1970 de reorganização
esforços para decifrá-las. Conforme argumen-
institucional e espacial. Quaisquer que sejam
tamos abaixo, os processos de neoliberaliza-
as diferenças entre eles, contudo, todos os usos
ção assumem formas específicas de acordo
prevalentes da noção de neoliberalismo en-
com o local dentro de cidades e cidades-re-
volvem referências à ampliação tendencial da
giões, mas isso tem ocorrido cada vez mais
competição baseada no mercado e de proces-
em um contexto georregulatório definido por
sos de comodificação em direção a domínios
tendências sistêmicas voltadas para reformas
previamente isolados de vida político-econô-
institucionais para disciplinar o mercado, pela
mica. Os usos erudito e prático-político do ter-
formação de teias transnacionais de transfe-
mo neoliberalismo pareceriam, assim, fornecer
rência de políticas orientadas para o merca-
uma base inicial comprovativa da proposição
do, por padrões cada vez mais profundos de
de que processos de mercantilização e como-
formação de crises e por ciclos acelerados de
dificação de fato se ampliaram, se aceleraram e
experimentação de políticas impulsionada pe-
se intensificaram em décadas recentes, mais ou
la crise. Contra esse pano de fundo, a análise
menos após a recessão global que ocorreu em
macroespacial apresentada aqui pode servir
meados da década de 1970.
como um ponto de referência útil não apenas
Não podemos proceder, aqui, a uma
para análises localizadas e sensíveis ao con-
revisão das diversas posições epistemológi-
texto, mas também para estratégias políticas
cas, metodológicas e políticas que têm sido
contra-neoliberalizadoras emergentes, tanto
articuladas através dessas discussões sobre
em escala urbana como supraurbana.
a reestruturação regulatória pós-1970 (mas
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Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore
conforme Clarke, 2008; Peck, 2004; Saad-Filho
em que necessariamente colidem com diversas
e Johnston, 2005; assim como Brenner et al.,
paisagens regulatórias herdadas de formações
2010). Ao invés disso, passamos diretamente
e contestações regulatórias anteriores (incluin-
para um panorama de nossa própria orienta-
do o fordismo, o nacional-desenvolvimentismo
ção teórica, que será, então, elaborada mais
e o socialismo de estado), suas formas de arti-
detalhadamente em relação ao problema da
culação e institucionalização são bastante he-
periodização, com referência aos desafios de se
terogêneas. Assim, ao invés de esperar alguma
decifrar os desenvolvimentos contemporâneos
forma pura, prototípica, de neoliberalização
(para declarações anteriores, conforme Brenner
prevalente em contextos divergentes, conside-
e Theodore, 2002; Peck e Theodore, 2007; Peck
ramos a diversificação – diferenciação sistêmi-
e Tickell, 2002).
ca geoinstitucional – como um de seus aspec-
No nível mais geral, conceituamos neoli-
tos essenciais e duradouros.
beralização como uma dentre várias tendências
De acordo com Mittelman (2000, p. 4),
de mudança regulatória que foram desenca-
a globalização representa “não um fenômeno
deadas no sistema capitalista global desde a
único, unificado, mas uma síndrome de pro-
década de 1970: prioriza respostas baseadas
cessos e atividades”. Sugerimos que é possível
no mercado, orientadas para o mercado ou
conceituar a neoliberalização de maneira aná-
disciplinadas pelo mercado para problemas
loga: ela também é mais bem entendida como
regulatórios; esforça-se para intensificar a
uma síndrome do que como uma entidade, es-
comodificação em todos os domínios da vida
sência ou totalidade singular. Desse ponto de
social; e, frequentemente, mobiliza instrumen-
vista, uma tarefa-chave para qualquer analista
tos financeiros especulativos para abrir novas
da neoliberalização é especificar o “padrão de
arenas para a realização capitalista de lucros.
atividades relacionadas [...] dentro da econo-
Em nosso trabalho anterior, levantamos ques-
mia política global” (Mittelman, 2000, p. 4) que
tões críticas sobre explicações estruturalistas
constituem e reproduzem essa síndrome em
que veem a neoliberalização como um bloco
lugares, locais, territórios e escalas que são, de
hegemônico abrangente, e também os argu-
outro modo, diversos.
mentos pós-estruturalistas que enfatizam a
particularidade contextual radical de práticas
regulatórias e formas de subjetivação neoli-
Definindo a neoliberalização
beralizadoras. Em contraste, consideramos a
neoliberalização uma forma diversificada de
Como uma primeira abordagem a esta tarefa,
reestruturação regulatória: produz diferencia-
propomos a seguinte formulação: a neolibe-
ção geoinstitucional em lugares, territórios e
ralização representa uma tendência historica-
escalas; mas faz isso sistemicamente, como um
mente específica, desenvolvida de maneira de-
aspecto penetrante, endêmico, de sua lógica
sigual, híbrida e padronizada de reestruturação
operacional básica. Concomitantemente, enfa-
regulatória disciplinada pelo mercado. Cada
tizamos a profunda dependência da trajetória
elemento dessa afirmação necessita ser espe-
dos processos de neoliberalização: na medida
cificado de maneira mais precisa.
18
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Após a neoliberalização?
Reestruturação regulatória disciplinada pelo
2010a). O processo de neoliberalização come-
mercado. Como Polanyi (1944, pp. 140-141)
çou a se desenvolver no início dos anos 1970,
●
muito ironicamente observou, “a estrada para
após uma fase relativamente longue durée de
um mercado livre foi aberta e mantida aberta
liberalismo incrustado, na qual processos de
por um enorme aumento no intervencionismo
mercantilização e comodificação haviam sido
contínuo, centralmente organizado e controla-
tendencialmente reprimidos por meio de vários
do”. Analogamente, acreditamos que os pro-
arranjos regulatórios globais e nacionais – por
cessos de mercantilização e comodificação no
exemplo, o sistema Bretton Woods e vários ti-
capitalismo (esforços para ampliar a disciplina
pos de intervenção estatal nacional-desenvol-
de mercado) são sempre mediados através de
vimentista e assistencialista. Assim entendidas,
instituições do estado em uma variedade de
formas especificamente neoliberalizadoras de
arenas políticas (por exemplo, trabalho, dinhei-
reestruturação regulatória começaram a se
ro, capital, proteção social, educação, moradia,
desenvolver juntamente com o que alguns cha-
terra, meio-ambiente e assim por diante). Por
maram de a “segunda grande transformação”,
essa razão, concebemos a neoliberalização co-
o processo de reestruturação capitalista mun-
mo uma forma particular de reorganização re-
dial que acontece desde o colapso da ordem
gulatória: envolve a recalibração de modos de
geoeconômica pós-Segunda Guerra Mundial
governança institucionalizados, que obrigam
(McMichael, 1996). Como resultado daquela
coletivamente e, de modo mais geral, das re-
crise, a neoliberalização surgiu como um pro-
lações estado-economia, para impor, ampliar
cesso dominante, senão hegemônico, de rees-
ou consolidar formas mercantilizadas e co-
truturação regulatória na economia mundial.
modificadas de vida social. Como tal, a neo-
Não seria inteiramente inadequado referir-
liberalização pode ser analiticamente oposta
-se a esse processo de mudança regulatória
aos processos regulatórios que contrariam a
orientada para o mercado simplesmente como
mercantilização e a comodificação, ou àqueles
“mercantilização” ou “comodificação”, uma
que envolvem agendas diferentes em termos
vez que, como já sugerimos, uma de suas ca-
qualitativos – por exemplo, formas normativas
racterísticas é o projeto de ampliar as relações
de alocação coletiva de recursos e coordenação
sociais baseadas no mercado e comodificadas.
socioinstitucional.
Contudo, optamos pelo termo neoliberalização
Historicamente específica. As raízes ideoló-
para sublinhar as homologias entre padrões
gicas e doutrinais da neoliberalização podem
pós-1970 de reestruturação regulatória e o
ser encontradas no projeto liberal clássico de
projeto anterior de liberalização clássica que
construir mercados auto-regulados durante a
estava associado ao imperialismo britânico do
belle époque do imperialismo britânico do final
século XIX e início do XX. Entretanto, paralelos
do século XIX e início do século XX (Polanyi,
com aquela época não devem ser empregados
1944), assim como nas intervenções subse-
exageradamente. O processo de neoliberaliza-
quentes realizadas no pós-guerra por econo-
ção não representa um “retorno” a um arca-
mistas do livre mercado que eram renegados
bouço anterior de desenvolvimento capitalista,
naquela época, como Hayek e Friedman (Peck,
ou uma reinvenção contemporânea de formas
●
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19
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore
institucionais, arranjos regulatórios ou com-
de sua evolução, o “mapa em movimento” dos
promissos políticos liberais clássicos (Silver e
processos de neoliberalização (Harvey, 2005,
Arrighi, 2003). A neoliberalização surgiu sob
p. 88) tem sido diversificado e continuamente
condições geopolíticas e geoeconômicas qua-
rediferenciado através de uma rápida suces-
litativamente diferentes, em resposta a fracas-
são de projetos e contraprojetos regulatórios,
sos regulatórios e lutas políticas historicamen-
neoliberalizadores ou não. O desenvolvimento
te específicos, e em paisagens institucionais
desigual da neoliberalização não é, portanto,
arraigadas.
uma condição temporária, um produto de sua
Desenvolvida de maneira desigual. A neolibe-
institucionalização “incompleta”, mas uma
ralização é geralmente associada a certos ex-
de suas características constitutivas. A dife-
perimentos regulatórios paradigmáticos – por
renciação geoinstitucional é, ao mesmo tem-
exemplo, privatização, desregulamentação, li-
po, um meio e um produto dos processos de
beralização do comércio, financeirização, ajuste
neoliberalização.
estrutural, reforma da previdência e tratamento
●
de choque monetarista. Porém, por mais que
beralização retrabalhem sistematicamente as
esses projetos de reorganização regulatória
paisagens regulatórias herdadas, não devem
tenham se tornado prototípicos, sua prolife-
ser vistos como representando uma totalidade
ração no capitalismo pós-1970 não pode ser
que abarque todos os aspectos da reestrutura-
compreendida através de simples modelos de
ção regulatória em qualquer contexto, local ou
“difusão”. Pois, ao invés de envolver a cons-
escala. Ao invés disso, a neoliberalização é um
trução de um estado de neoliberalismo total-
dentre vários processos concorrentes de rees-
mente formado, que funcione coerentemente,
truturação regulatória que têm sido articula-
“semelhante a um regime”, e que tenha se
dos no capitalismo pós-1970 (Jessop, 2002;
expandido progressivamente para abranger o
Streeck e Thelen, 2005) – embora seja um pro-
espaço regulatório global, o processo de neo-
cesso que venha tendo consequências político-
liberalização tem sido articulado de maneira
-institucionais particularmente duradouras e
desigual em lugares, territórios e escalas. O
multiescalares.
desenvolvimento desigual da neoliberalização
●
resulta, por um lado, da contínua colisão entre
nifesta em uma forma pura, como um todo
projetos de neoliberalização contextualmente
regulatório abrangente. As tendências de neo-
específicos e em constante evolução, e de ar-
liberalização só podem ser articuladas em mo-
ranjos político-institucionais herdados, em es-
dalidades incompletas, híbridas, que podem se
cala global, nacional ou local. Ao mesmo tem-
cristalizar em certas formações regulatórias,
po, através dessa colisão, os processos de neo-
mas que são, não obstante, contínua e ecleti-
liberalização retrabalham formas herdadas de
camente retrabalhadas de maneiras contex-
organização regulatória e espacial, incluindo
tualmente específicas. Consequentemente, as
aquelas das próprias instituições estatais, para
evidências empíricas que ressaltam o caráter
produzir novas formas de diferenciação geoins-
paralisado, incompleto, descontínuo ou dife-
titucional. Consequentemente, a cada estágio
renciado de projetos para impor as regras do
●
20
Tendência. Embora os processos de neoli-
Híbrida. A neoliberalização nunca se ma-
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?
mercado, ou sua coexistência ao lado de projetos potencialmente antagonísticos (por exemplo, a democracia social), não fornecem base
Quatro implicações
metodológicas
suficiente para se questionar suas dimensões
neoliberalizadas e neoliberalizadoras.
Essa conceituação de neoliberalização possui
Padronizada. Os processos de neoliberali-
várias implicações metodológicas que contras-
zação inicialmente ganharam impulso e
tam fortemente com certas pressuposições e
momentum em resposta a uma gama de ten-
orientações interpretativas que têm permeado
dências de crise herdadas da ordem político-
discussões acadêmicas recentes (Brenner et al.,
-econômica do pós-guerra. Durante a década
2010):
de 1970, os processos de neoliberalização re-
●
trabalharam paisagens keynesianas nacionais-
neoliberalização a uma homogeneização mun-
-desenvolvimentistas através de uma série de
dial de sistemas regulatórios, pretendemos que
colisões entre arcabouços institucionais her-
nossa conceituação ilumine as maneiras pelas
dados e projetos de reorganização regulatória
quais as formas disciplinadas pelo mercado de
recentemente mobilizados. Tais colisões, e suas
reestruturação regulatória na verdade intensi-
consequências político-institucionais duradou-
ficaram a diferença geoinstitucional. Segue-se
ras, embora imprevisíveis, há muito tempo ani-
a isso que nem mesmo as expressões político-
mam o desenvolvimento desigual dos proces-
-institucionais de neoliberalização mais hiper-
sos de neoliberalização. No entanto, é crucial
trofiadas – como aquelas exploradas na aná-
perceber que, embora os processos de neolibe-
lise de Naomi Klein (2007) sobre a “doutrina
ralização tenham sido articulados de maneira
de choque” neoliberal no Chile pós-golpe e
desigual, não envolveram um “acúmulo” for-
no Iraque ocupado – deveriam ser igualadas
tuito de experimentos regulatórios desconecta-
a expectativas de simples convergência em
dos, contidos em contextos. Ao invés disso, os
uma ordem de mercado unificada e singular, à
processos de neoliberalização geraram efeitos
maneira da formulação jornalística de Thomas
significativos, marcadamente padronizados e
Friedman (2005) a respeito da globalização da
cumulativos sobre a configuração georregu-
terra plana;
latória do capitalismo. Desse ponto de vista,
●
a trajetória dos processos de neoliberalização
posta fornece uma base a partir da qual é pos-
desde a década de 1970 pode ser mais bem
sível compreender as trajetórias evolucionárias
entendida como um processo de articulação re-
de médio e longo prazo dos próprios projetos
lacional semelhante a uma onda, no qual cada
regulatórios disciplinados pelo mercado, com
série sucessiva de projetos neoliberalizadores
referência particular aos impactos cumulativos
transforma as configurações institucionais e
erráticos e frequentemente contraditórios que
ideológicas nas quais séries subsequentes de
produzem sobre as paisagens políticas, institu-
reestruturação regulatória se desenvolvem.
cionais e discursivas que aspiram reorganizar.
●
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
ao contrário de acadêmicos que igualam a
a conceituação de neoliberalização aqui pro-
21
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore
Os processos de neoliberalização derivam mui-
próprias condições socioinstitucionais e polí-
to de seu ímpeto e de sua lógica precisamente
tico-econômicas necessárias para sua imple-
das paisagens regulatórias desiguais que com-
mentação bem-sucedida (Gill, 2003; Harvey,
bativamente encontram, e subsequentemen-
1995). Consequentemente, a falha das políticas
te refazem, de uma maneira dependente da
não é apenas central para o modus operandi
trajetória, embora experimental. Isso significa,
exploratório dos processos de neoliberalização;
por sua vez, que a diferenciação espacial e os
fornece um ímpeto adicional e poderoso para
caminhos evolucionários dos processos de neo-
sua proliferação acelerada e reinvenção contí-
liberalização não podem ser compreendidos
nua em locais e escalas. Assim, é crucial notar
como uma simples difusão territorial na qual
que a falha endêmica das políticas na verda-
um modelo pré-fornecido é instalado, ampliado
de tende a estimular outras séries de reformas
e/ou replicado em uma área cada vez maior;
dentro de parâmetros políticos e institucionais
dada a nossa ênfase na dependência da
amplamente neoliberalizados: desencadeia a
trajetória dos processos de neoliberalização,
reinvenção contínua dos repertórios de polí-
nossa abordagem sublinha a necessidade de
ticas neoliberais, ao invés de seu abandono
investigações de padrões de experimentação
(Peck, 2010a).
●
regulatória que sejam sensíveis ao contexto.
Contudo, nossa conceituação pode ser distinguida das abordagens puramente “de baixo
para cima”, indutivas ou conscientemente “rasas” a estudos de neoliberalização que são, às
vezes, associados a modos pós-estruturalistas
Em direção
a um “mapa em movimento”
da neoliberalização
de análise. Conforme entendido aqui, os espaços de mudança regulatória – unidades jurisdi-
Harvey (2005, p. 87) ressaltou as dificuldades de
cionais que abarcam bairros, cidades, regiões,
se construir um “mapa em movimento do pro-
estados nacionais e zonas multinacionais – são
gresso da neoliberalização no cenário mundial
relacionalmente interconectados dentro de um
desde 1970”. O autor enfatiza especialmente o
sistema de governança transnacional, senão
caráter parcial e desigual dos realinhamentos
global. Os processos de neoliberalização assu-
das políticas neoliberais nos estados nacionais
mem, necessariamente, formas contextualmen-
individuais; a frequência de “inversões lentas”
te específicas e dependentes da trajetória, mas
e mobilizações políticas contrárias em resposta
raramente se originam de um único local; suas
a investidas neoliberais iniciais, mais radicais e
consequências político-institucionais geralmen-
induzidas pela crise; e as vicissitudes das lutas
te transcendem qualquer contexto, e há seme-
pelo poder político que se desenrolam junta-
lhanças de família significativas entre eles.
mente com mudanças de políticas neoliberali-
finalmente, concebemos os processos de
zadoras e transformações institucionais, além
neoliberalização como sendo intrinsecamente
das tendências de crise associadas. O desafio,
contraditórios – isto é, envolvem estratégias
propõe Harvey (2005, p. 87), é “entender co-
regulatórias que frequentemente minam as
mo as transformações locais se relacionam a
●
22
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?
tendências mais amplas”, localizando as “cor-
caráter constitutivamente desigual dos proces-
rentes turbulentas do desenvolvimento geográ-
sos de neoliberalização, conforme delineado
fico desigual” que são produzidas através dos
acima. Embora descrições globalistas tenham
processos de neoliberalização.
enfatizado produtivamente a capacidade de
Como enfrentar esse desafio? Como se-
atores e instituições hegemônicos de impor
ria um mapa em movimento dos processos de
parâmetros disciplinados pelo mercado so-
neoliberalização que ocorreram durante os úl-
bre instituições subordinadas e configurações
timos 30 anos? Com algumas exceções dignas
regulatórias, relatos sintonizados localmen-
de nota, as literaturas existentes sobre neolibe-
te e regionalmente têm focado, em geral, as
ralização têm produzido não mais do que res-
transformações regulatórias que parecem ser
postas parciais a esse desafio, principalmente
circunscritas a territórios subnacionais par-
devido a suas conceituações inadequadas de
ticulares ou nichos escalares. O conceito de
desenvolvimento regulatório desigual (Brenner
neoliberalização propiciou que pesquisadores
et al., 2010). Embora tenham identificado as
em ambas as vertentes desta discussão vin-
características-chave das paisagens perpe-
culassem suas análises a metanarrativas mais
tuamente mutantes da mudança regulatória
amplas sobre formas pós-1970 de reestrutura-
pós-1970 disciplinada pelo mercado, a maioria
ção e reorganização regulatória induzidas pela
das explicações não se preocupa muito em re-
crise. Contudo, esse conceito é frequentemente
lacionar esses elementos uns aos outros, nem
empregado imprecisamente ou sem a devida
às “correntes mais amplas de desenvolvimento
reflexão, como se fosse um explanans autoevi-
geográfico desigual” às quais Harvey se refere.
dente, ao passo que os próprios processos aos
Por exemplo, a maior parte da literatura
quais se refere requerem interrogação e expla-
sobre neoliberalização ainda focaliza os reali-
nação continuadas.
nhamentos de políticas em nível nacional. Tais
O trabalho recente de Simmons, Dobbin
relatos frequentemente aludem a contextos
e Garrett (2008) aborda muito mais explici-
geoeconômicos e geopolíticos, mas tendem
tamente a questão de como os processos de
a pressupor a suposição metodologicamente
neoliberalização evoluíram ao longo do tempo
nacionalista de que os estados nacionais repre-
e do espaço. Sua análise examina os diferen-
sentam a unidade natural ou primária da trans-
tes impactos de quatro mecanismos causais
formação regulatória (para críticas, cf. Brenner,
distintos – coerção, competição, aprendizado
2004; Peck e Theodore, 2007). Tais tendências
e emulação – ao explicarem o que os autores
metodologicamente nacionalistas têm sido
caracterizam como a “difusão” do liberalismo
neutralizadas com sucesso quando a neolibera-
econômico no final do século XX (Simmons et
lização é tratada como um bloco globalmente
al., 2008, p. 2, passim). Entretanto, a preocupa-
hegemônico, assim como em trabalhos mais
ção dos autores em adjudicar entre esses me-
recentes sobre a neoliberalização da governan-
canismos causais é acompanhada de uma teo-
ça urbana e regional. No entanto, por mais va-
rização pouco desenvolvida do próprio proces-
liosos que sejam tais engajamentos, nenhuma
so de neoliberalização, que é retratado como
vertente da discussão abordou plenamente o
uma “disseminação” de protótipos de políticas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
23
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore
orientadas para o mercado em territórios na-
qualquer esforço para se construir o “mapa em
cionais, dentro de um sistema internacional
movimento” da neoliberalização visualizado
interdependente (para uma crítica bem-argu-
por Harvey (2005).1
mentada, cf. Peck, 2010b). Além das tendências
metodologicamente nacionalistas dessa abordagem, a metáfora da difusão contém sérias
limitações como base para se compreender as
Três dimensões analíticas
geografias desiguais dos processos de neoliberalização durante os últimos 40 anos. A neo-
Para abordar essas tarefas, distinguimos três
liberalização não foi simplesmente inventada
dimensões analíticas centrais dos processos de
em um local (nacional) e depois projetada –
neoliberalização:2
experimentos regulatórios: projetos específi-
por coerção, competição, aprendizado, imitação
●
ou qualquer outro mecanismo – em círculos
cos de locais, territórios e escalas, elaborados
progressivamente maiores de influência territo-
para impor, intensificar ou reproduzir modalida-
rial. Ao invés disso, “assemelha-se mais a um
des de governança disciplinadas pelo mercado.
regime multipolar de (re)mobilização contínua,
Tais projetos são necessariamente dependentes
que é animado e reanimado tanto pelas falhas
da trajetória, e geralmente envolvem tanto um
das ondas anteriores de intervenção e regula-
momento destrutivo (esforços para reverter ar-
ção inadequadas, como por visões estratégicas
ranjos regulatórios não-mercado, antimercado,
inovadoras” (Peck, 2010b, p. 29).
ou que restringem o mercado) como um mo-
Assim compreendidas, as geografias da
mento criativo (estratégias para promover uma
neoliberalização não emanam para fora a par-
nova infraestrutura político-institucional para
tir de um ponto de origem para “preencher”
formas regulatórias mercantilizadas) (Brenner e
outras zonas de regulação geograficamente
Theodore, 2002; Peck e Tickell, 2002). Esse as-
dispersas. Ao invés disso, como enfatizamos
pecto da neoliberalização tem sido investigado
em nosso esboço, estamos lidando com um
de forma abrangente pela vasta literatura ba-
processo multicêntrico e dependente da tra-
seada em estudos de caso sobre exemplos na-
jetória, cuja dinâmica evolucionária e conse-
cionais, regionais e locais da forma regulatória
quências político-institucionais transformam
neoliberal.
continuamente as condições globais, nacionais
●
e locais sob as quais as estratégias subsequen-
de políticas: mecanismos institucionais e re-
tes de reestruturação regulatória emergem e
des de compartilhamento de conhecimentos
se desenvolvem em todas as escalas espaciais.
através dos quais protótipos de políticas neoli-
Também é crucial perceber que os processos de
berais circulam por locais, territórios e escalas,
neoliberalização são espacialmente desiguais,
geralmente transnacionalmente, para serem
temporalmente descontínuos e permeados por
reempregados em outro local. Ao estabelecer
tendências experimentais, híbridas e frequente-
certos tipos de estratégias regulatórias como
mente autoenfraquecedoras. Acreditamos que
“prototípicas”, tais redes aumentam a legiti-
tais considerações devem estar no centro de
midade ideológica dos modelos de políticas
24
sistemas de transferência interjurisdicional
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?
neoliberais, ao mesmo tempo em que ampliam
e transnacionais, esse aspecto da neoliberali-
sua disponibilidade como “soluções” pronta-
zação também foi investigado por Bockman
mente acessíveis para qualquer problema e
e Eyal (2002) no contexto da Europa Oriental,
crise regulatórios contextualmente específicos.
por Dezalay e Garth (2002) no contexto latino-
Contudo, até mesmo as formas mais aparente-
-americano e, em um nível mais geral, pela lite-
mente “prototípicas” de políticas neoliberais
ratura sobre transferência de “políticas rápidas’
são transformadas qualitativamente através
(Peck, 2010b; Peck e Theodore 2001, 2010).
de sua circulação por essas redes. Embora pa-
●
reçam estar prontamente disponíveis para uma
jos institucionais em larga escala, arcabouços
transferência suave em uma rede circulatória
regulatórios, sistemas legais e revezamentos
que se move rapidamente e, portanto, pare-
de políticas que impõem as “regras do jogo”
çam ser capazes de promover uma homoge-
em formas contextualmente específicas de
neização do espaço regulatório, tais mobilida-
experimentação de políticas e reorganização
des das políticas permanecem incrustadas em
regulatória, enquadrando, assim, as ativida-
contextos político-institucionais que modelam
des de atores e instituições em parâmetros
sua forma, conteúdo, recepção e evolução,
político-institucionais específicos. Esse aspec-
geralmente levando a resultados imprevisí-
to “parametrizante” da neoliberalização foi
veis, não-intencionais e intensamente diversi-
analisado por Gill (2003) em sua descrição
ficados (Peck, 2010b). Assim, no contexto dos
do novo constitucionalismo. Para Gill, o novo
processos de neoliberalização, a transferência
constitucionalismo representa um projeto para
interjurisdicional de políticas é um mecanismo
institucionalizar preceitos de políticas neolibe-
importante, não apenas de consolidação espa-
rais em longo prazo, e globalmente, por meio
cial, mas também de diferenciação institucio-
de vários dispositivos legais supranacionais.
nal. Uma das primeiras investigações sobre as
Trabalha para obrigar os estados nacionais e
formas neoliberalizadoras da transferência de
todas as outras instituições políticas subordina-
políticas foi o estudo clássico de Tabb (1982)
das a adotar preceitos de políticas neoliberali-
sobre as políticas de austeridade fiscal na ci-
zadas em esferas regulatórias importantes (por
dade de Nova York durante a década de 1970.
exemplo, comércio, investimento de capitais,
Esse estudo esboça paradigmaticamente como
trabalho, direitos de propriedade).3 Trabalhos
uma resposta localmente específica a uma crise
recentes de Holman (2004) e Harmes (2006),
administrativa foi transformada em um mode-
juntamente com o estudo de Peet et al. (2003)
lo de reforma mais geral, subsequentemente
sobre a OMC, o FMI e o Banco Mundial, tam-
“exportada” para outros municípios atingidos
bém ressaltaram o papel dos arranjos de go-
pela crise nos EUA. O estudo de Peck (2001) es-
vernança multiníveis na construção, imposição
boça uma narrativa formalmente análoga, mas
e reprodução de arranjos regulatórios neoli-
transnacional, com referência às geografias da
beralizados e disciplinados pelo mercado em
transferência de políticas rápidas de assistên-
arenas nacionais e subnacionais. Tais regimes
cia ao trabalho em regiões e estados nacionais
de normas multiníveis servem para promover
desde a década de 1980. Em escalas nacionais
“mecanismos institucionais circunscritivos para
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
regimes de normas transnacionais: arran-
25
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore
separar o econômico e o político sob condições
A Figura 1 apresenta uma periodização
de democracia” (Harmes, 2006, p. 732). Dessa
estilizada dos processos de neoliberalização
forma, servem para criar e manter parâmetros
que deriva das distinções introduzidas acima.
precisos e disciplinados pelo mercado ao redor
Nessa figura, as três dimensões da reestrutura-
de formas subordinadas de contestação de po-
ção regulatória não mais servem como catego-
líticas e desenvolvimento institucional.
rias ideais-típicas, mas são agora mobilizadas
para iluminar a evolução histórico-geográfica
dos próprios processos de neoliberalização. A
Paisagens inquietas
de neoliberalização
linha superior da figura apresenta cada uma
das três distinções especificadas acima, entendidas como dimensões interligadas da reestruturação regulatória sob condições de neoli-
Qualquer mapeamento dos processos de neo-
beralização em andamento. A primeira coluna
liberalização derivado dessas distinções con-
especifica uma linha do tempo genérica, basea-
trastaria fortemente com os modelos difusio-
da em décadas, de 1970 até a década de 2000.
nistas que prevalecem na literatura ortodoxa,
As células sombreadas denotam as dimen-
os quais são estreitamente alinhados à anteci-
sões da reestruturação regulatória nas quais,
pação da convergência de políticas e a várias
segundo a nossa leitura, a neoliberalização
formas de nacionalismo metodológico. Mas tal
tem sido mais pronunciada desde sua elabo-
mapeamento não poderia, por si só, iluminar
ração institucional inicial na década de 1970.
cada aspecto concreto das paisagens da neo-
Concomitantemente, as células brancas nos
liberalização, em diferentes contextos espaciais
quadrantes superiores da figura denotam zo-
e temporais. No entanto, em um nível mais abs-
nas de atividade regulatória que, durante a(s)
trato, tal abordagem pode servir como uma ba-
década(s) correspondente(s) especificada(s) na
se analítica a partir da qual interpretar as traje-
primeira coluna foram largamente configura-
tórias criativamente destrutivas e o desenvolvi-
das de acordo com princípios de restrição de
mento desigual dos processos de neoliberaliza-
mercado (keynesianismo, “constitucionalismo
ção desde o início da década de 1970. E, como
progressivo”).4 A cada década sucessiva, as zo-
sugerimos abaixo, também há implicações
nas sombreadas na figura são alargadas para
úteis para se decifrar possíveis alternativas às
incluir uma coluna adicional. Isso denota o que
formas regulatórias neoliberalizadas na estei-
consideramos uma mudança tendencial, ma-
ra da crise econômica global de 2008-2009.
croespacial, de formas desarticuladas a formas
Aqui, esboçamos essas manobras interpretati-
aprofundadas de neoliberalização.5 Para simpli-
vas com pinceladas relativamente grossas; sua
ficar, delineamos essa série de transformações
elaboração e refinamento concretos aguardam
década a década, mas aqui, também, uma es-
pesquisa e análise mais detalhadas.
pecificação mais precisa é necessária.
26
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?
Conforme retratado na segunda linha
transnacionais (derivadas da economia austría-
da Figura 1, a neoliberalização desarticulada
ca, do Ordoliberalismo, Manchesterismo e da
cristalizou-se durante a década de 1970, e se
economia da Escola de Chicago), as paisagens
baseou predominantemente em formas de
institucionais com as quais colidiram haviam
experimentação regulatória disciplinada pelo
sido moldadas por agendas regulatórias opos-
mercado específicas de locais, territórios e es-
tas, intervencionistas de estado e redistributi-
calas. Obviamente, a doutrina neoliberal havia
vas – incluindo, principalmente, o keynesianis-
surgido durante as décadas de 1930 e 1940,
mo e o nacional-desenvolvimentismo. “Locais”
quando foi mobilizada predominantemente
conjunturalmente específicos para esses expe-
como uma crítica à ordem político-econômica
rimentos regulatórios neoliberalizadores incluí-
keynesiana, que se consolidava (Peck, 2010a).
ram o Chile pós-nacionalização de Pinochet, a
Contudo, foi apenas no início da década de
Grã-Bretanha pós-resgate do FMI, os EUA em
1970 que os experimentos de neoliberalização
processo de desindustrialização de Reagan e
em tempo real foram elaborados, embora em
várias cidades e regiões atingidas pela crise no
um contexto geoeconômico largamente hostil,
mundo capitalista mais antigo, que estavam
definido por arranjos regulatórios keynesianos
tentando atrair investimento de capital trans-
posteriores e estratégias de gerenciamento de
nacional “livre” por meio de várias formas de
crise. Embora baseadas em redes intelectuais
arbitragem regulatória.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
27
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore
Figura 1 – Da neoliberalização desarticulada
à neoliberalização profunda/aprofundada: um esboço estilizado
Formas contextualmente específicas
de experimentação regulatória
Neoliberalização desarticulada
Década
de 1970
Os projetos de neoliberalização
assumem formas específicas
de lugares, territórios e escalas
em um contexto geoeconômico
‘hostil’, ainda definido por arranjos
regulatórios keynesianos e
tendências emergentes de crises
Sistemas de transferência
interjurisdicional de políticas
Intensificação de formas neokeynesianas de transferência transjuridicional de
políticas em resposta à volatilidade geoeconômica penetrante, especialmente
na zona da OCDE
Tendência de surgimento de formas neoliberalizadoras de transferência de
políticas em vetores geopolíticos intersticiais (e.g. de Chicago para Santiago)
Aceleração das críticas ideológicas às doutrinas econômicas keynesianas:
sinais cada vez mais evidentes de crise sistêmica no regime de normas
internacional do liberalismo incrustado do pós-guerra
Intensificação contínua das formas impulsionadas pelo mercado de
experimentação regulatória e reforma institucional em várias escalas
espaciais e em zonas estratégicas (e.g. EUA, Reino Unido, América Latina)
Década
de 1980
Regimes de normas e processos de
parametrização
Tendência de enfraquecimento/exaustão das redes neokeynesianas de
transferência de políticas, em conjunto com buscas intensamente contestadas
por novas ‘correções institucionais’ para resolver crises georregulatórias
persistentes
Tendência ao adensamento, transnacionalização, recursão mútua,
integração programática e coevolução de redes de políticas orientadas para
experimentos regulatórios e reformas institucionais impulsionados pelo
mercado (e.g. monetarismo, liberalização, privatização, empreendedorismo
urbano, governança reinventada)
Tendência à destruição do
‘constitucionalismo progressivo’ em
escalas globais, supranacionais e
nacionais
Tendência à consolidação de um
‘novo constitucionalismo’ pela
redefinição impulsionada pelo
mercado de várias instituições
regulatórias globais, supranacionais
e nacionais
Neoliberalização Profunda/Aprofundada
Sendo ou não explicitamente impulsionadas pelo mercado ou restritoras do mercado, as formas contextualmente
específicas da experimentação regulatória e da reforma institucional são cada vez mais moldadas dentro de
parâmetros amplamente neoliberalizados ou das ‘regras do jogo’
Década
de 1990
Sistemas neoliberalizados de transferência de políticas são cada vez mais mobilizados para abordar as tendências
de crise e as contradições engendradas através de séries anteriores de reestruturação regulatória impulsionada pelo
mercado
Arcabouços institucionais macroespaciais passam a ser remodelados em termos neoliberalizados – parâmetros
baseados no mercado são, assim, cada vez mais impostos a escalas subordinadas de experimentação regulatória
Nota: as células sombreadas denotam as dimensões da reestruturação regulatória nas quais as tendências de neoliberalização
têm sido mais pronunciadas. Mesmo nas células sombreadas, contudo, outras formas de reestruturação regulatória coexistem
junto a tendências de neoliberalização.
28
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?
Durante a década de 1980, uma nova
novos revezamentos políticos e extrajurisdicio-
fronteira de neoliberalização foi aberta quando
nais foram construídos. Tais redes de políticas
um repertório de modelos de políticas neolibe-
rápidas foram reforçadas no final da década
rais começou a circular transnacionalmente e a
de 1980, logo após a crise da dívida latino-
adquirir o status de soluções “milagrosas” para
-americana e, subsequentemente, o colapso
qualquer problema regulatório e tendência de
do Bloco Soviético. A formação da neolibera-
crise (Figura 1, fileira 2).
lização desarticulada foi, assim, transformada
Embora isso tenha ocorrido em parte
em uma formação organizada em rede e or-
através de uma “colonização” de redes exis-
questrada transnacionalmente de estratégias
tentes e neokeynesianas de transferência de
de reformas de políticas mutuamente recursi-
políticas (por exemplo, no OCDE, Banco Mun-
vas e interreferenciais. Nessas circunstâncias,
dial e FMI), também envolveu a construção de
os projetos de neoliberalização não mais sur-
novos circuitos interjurisdicionais para a pro-
giam como exemplos relativamente isolados
moção, legitimação e entrega dos modelos de
de experimentação regulatória disciplinada
políticas neoliberais, mediadas por um quadro
pelo mercado, alojados em um ambiente polí-
cada vez mais influente de peritos e líderes po-
tico-econômico hostil. Ao invés disso, padrões
líticos com habilidades técnicas, como os infa-
de influência, coordenação e troca recíprocas
mes Chicago Boys. Por meio de uma série de
foram estabelecidos entre programas de refor-
manobras, manipulações, negociações e lutas
ma neoliberalizadores em contextos e escalas
do tipo tentativa-e-erro, muitos dos principais
jurisdicionais diversos. Cada vez mais, tais pro-
experimentos regulatórios neoliberalizadores
gramas foram interconectados recursivamente
da década de 1970 – como privatização, finan-
para acelerar, aprofundar e intensificar sua cir-
ceirização, liberalização, assistência ao traba-
culação e implementação transnacionais.
lho e empreendedorismo urbano – adquiriram,
Esse aprofundamento da formação da
subsequentemente, algo próximo ao status
neoliberalização consolidou-se ainda mais du-
“prototípico”, e se tornaram pontos de refe-
rante a década de 1990, quando as agendas de
rência importantes para projetos posteriores
reformas disciplinadas pelo mercado foram ins-
de neoliberalização. Formas neoliberalizadoras
titucionalizadas em escala mundial através de
de reestruturação regulatória foram, assim,
uma série de reformas e rearranjos jurídico-ins-
mobilizadas em diversas arenas de políticas
titucionais mundiais, multilaterais, multiníveis e
por instituições nacionais, regionais e locais,
supranacionais. Essa tendência é retratada na
não apenas na América do Norte e na Europa
linha inferior, totalmente sombreada, da Figu-
Ocidental, mas também em um patchwork de-
ra 1, que delineia as tendências de aprofunda-
sigual e globalmente disperso de estados pós-
mento da neoliberalização dentro de cada uma
-desenvolvimentais e zonas pós-Comunistas da
das três principais dimensões da reestruturação
América Latina, Sul da Ásia e África subsaaria-
regulatória, agora incluindo aquela dos regi-
na, incluindo Europa Oriental e Ásia. Para fa-
mes de normas e processos de parametrização.
cilitar a circulação, imposição e legitimação de
Antes desse período, instituições regulatórias
estratégias de reforma baseadas no mercado,
do pós-guerra, como o FMI, o Banco Mundial,
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
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Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore
o GATT e, até o início da década de 1970, o
são projetados para impor parâmetros disci-
acordo de Bretton Woods, haviam estabelecido
plinados pelo mercado a instituições e forma-
um arcabouço amplamente keynesiano para a
ções políticas nacionais e subnacionais, talvez
produção e o comércio mundiais, um regime de
possa ser considerada uma das consequências
normas que tem sido descrito como “liberalis-
de maior alcance das últimas três décadas de
mo incrustado” (Ruggie, 1982) ou “constitucio-
reforma político-econômica neoliberalizadora.
nalismo progressivo” (Gill, 2003). Embora tais
As cartografias dinâmicas da neolibe-
arranjos tenham sido desestabilizados durante
ralização aqui esboçadas envolvem rastrear
as décadas de 1970 e 1980, somente na déca-
sistematicamente o desenvolvimento desigual
da de 1990 um regime de normas pós-keyne-
e a circulação transnacional dos modelos de
siano, neoliberalizado e global foi consolidado.
políticas neoliberalizadas, além de seus impac-
Através da construção do redesenho discipli-
tos diversificados, dependentes da trajetória e
nado pelo mercado dos arranjos institucionais
contextualmente específicos, em locais, territó-
globais e supranacionais, incluindo-se desde a
rios e escalas diversos. Contudo, embora esse
OCDE, o Banco Mundial e o FMI até a OMC,
desenvolvimento desigual dos processos de
a CE pós-Maastricht e o NAFTA, entre outros,
neoliberalização tenha sido claramente essen-
os processos de neoliberalização passaram a
cial para a paisagem global da reestruturação
impactar e reestruturar os próprios arcabou-
regulatória pós-1970, representa apenas uma
ços geoinstitucionais que governam as formas
camada dentro de um processo multidimensio-
nacionais e subnacionais de experimentação
nal de destruição criativa institucional e espa-
regulatória. Essa configuração geoinstitucional
cial. Pois, como indica a linha inferior da Figura
tendencialmente neoliberalizada é frequente-
1, os processos de neoliberalização também
mente referida como o “Consenso de Washing-
transformaram os próprios arcabouços geoins-
ton”, mas seus elementos regulatórios e suas
titucionais dentro dos quais o desenvolvimento
geografias político-econômicas não podem ser
regulatório desigual se desenrola, fazendo com
reduzidos a um projeto hegemônico puramen-
que formas contextualmente específicas de ex-
te baseado nos EUA. Ao invés disso, o “novo
perimentação regulatória e transferência inter-
constitucionalismo” associado ao regime de
jurisdicional de políticas sejam canalizadas ao
normas global, neoliberalizado e ascendente
longo de caminhos com tendência a serem dis-
também depende de acordos de condiciona-
ciplinados pelo mercado. Esse regime de nor-
lidade impostos pela OMC; órgãos regulató-
mas certamente não diminuiu nem dissolveu a
rios supranacionais e zonas regionais de livre
dependência endêmica da trajetória e a espe-
comércio, como a CE, NAFTA, CAFTA, APEC e
cificidade contextual dos projetos de reforma
ASEAN; organizações multinacionais como o
neoliberalizadores. Porém, transformou qualita-
G8 e a OCDE; assim como órgãos econômicos
tivamente o que poderia ser chamado o “con-
globais quase independentes, como o Banco
texto do contexto”, isto é, o terreno político,
de Compensações Internacionais (Gill, 2003).
institucional e jurídico dentro do qual os cami-
A consolidação desses regimes de normas
nhos local, regional e nacionalmente específi-
neoliberalizados globais e supranacionais, que
cos da reestruturação regulatória são forjados.
30
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?
Acreditamos que nenhum mapa em movimento
regulatória. Conforme indicado pelo padrão
da neoliberalização pode ser completo se não
sombreado na figura, cada um dos quatro ce-
der atenção a esses arcabouços macroespaciais
nários envolve um grau diferente de neolibera-
e parâmetros político-institucionais, pois têm
lização, definido, em cada caso, com referên-
implicações cruciais para os processos contex-
cia a uma combinação entre as três dimensões
tualmente situados de experimentação regula-
listadas na linha superior.
tória, sejam eles disciplinados pelo mercado ou
controladores do mercado.
O cenário da neoliberalização zumbi é
retratado na primeira linha. Nesse cenário, apesar de suas consequências disruptivas e destrutivas, a crise econômica global de 2008-2009
Cenários
de contraneoliberalização
não mina significativamente as tendências
de neoliberalização das últimas três décadas
(Peck, 2009). O regime de normas neoliberalizado que havia sido consolidado durante a
As trajetórias de médio e longo prazo dos pa-
década de 1990 e o início da década de 2000
drões contemporâneos da reestruturação regu-
pode ser recalibrado ou reconstituído para
latória são inerentemente imprevisíveis; neces-
restringir certas formas de especulação finan-
sitam ser iniciadas através de lutas incrustadas
ceira, mas sua orientação básica em direção
em conjunturas específicas, provocadas pelas
à imposição de parâmetros disciplinados pelo
contradições das primeiras ocorrências de neo-
mercado sobre economias supranacionais, na-
liberalização. Todavia, as considerações acima
cionais, regionais e locais permanece dominan-
sugerem uma abordagem para confrontar tais
te. A ideologia neoliberal ortodoxa é cada vez
questões – uma abordagem que dê atenção,
mais questionada, mas a maquinaria política
simultaneamente, a choques regulatórios glo-
da disciplina de mercado imposta pelo estado
bais e suas ramificações em locais, territórios
permanece essencialmente intacta; as agendas
e escalas específicos, e que, ao mesmo tempo,
de políticas sociais e econômicas continuam
evite modelos dualísticos de transição e decla-
a ser subordinadas à prioridade de manter a
rações a respeito da morte do neoliberalismo.
confiança do investidor e uma atmosfera boa
Esboçamos aqui vários cenários possíveis para
para os negócios; e as agendas de políticas co-
as trajetórias futuras da reestruturação regula-
mo livre comércio, privatização, mercados de
tória. Esses são resumidos na Figura 2.
trabalho flexíveis e competitividade territorial
A Figura 2 está organizada em parale-
urbana continuam a ser tidas como certas. Nes-
lo à Figura 1, com exceção de que a posição
se cenário, como propõe Bond (2009, p. 193),
das células sombreadas que retratam as três
o resultado mais provável da atual crise geo-
dimensões da neoliberalização foi inverti-
econômica é um “neoliberalismo e um impe-
da. A linha superior apresenta cada uma das
rialismo relegitimados”. Consequentemente,
três dimensões da neoliberalização; a coluna
há um maior arraigamento dos arranjos re-
mais à esquerda lista quatro cenários distintos
gulatórios disciplinados pelo mercado, uma
para os futuros caminhos da reestruturação
maior lubrificação e aceleração dos sistemas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
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Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore
neoliberalizados de transferência interjurisdi-
maior das formas neoliberalizadas de experi-
cional de políticas e um arraigamento ainda
mentação regulatória em diferentes contextos.
Figura 2 – Contraneoliberalização: caminhos e cenários futuros
Regulatória
Políticas
Parametrização
A ideologia neoliberal ortodoxa é gravemente abalada, mas há uma neoliberalização contínua de cada
uma das três dimensões da reestruturação regulatória, frequentemente por meios tecnocráticos.
Cenário 1:
neoliberalização zumbi
As tendências de crise e as falhas dos arranjos regulatórios impulsionados pelo mercado contribuem
para um arraigamento ainda maior dos projetos de neoliberalização como “soluções” putativas a
dilemas regulatórios persistentes em escalas, territórios e contextos
Neoliberalização contínua de sistemas de transferência de políticas
e regimes de normas transnacionais
Cenário 2:
contraliberalização
desarticulada
Cenário 3:
contra-liberalização
orquestrada
Tendência à mobilização de
experimentos regulatórios
redistributivos, restritores
do mercado e/ou regressivos
em contextos dispersos e
desarticulados, em escalas
locais, regionais e nacionais
Os projetos de contraliberalização permanecem relativamente
fragmentados, desconectados e insuficientemente coordenados
– não se infiltraram significativamente em arenas institucionais
multilaterais, supranacionais ou globais
Regimes de normas macroespaciais continuam a ser dominados
pela lógica do mercado, apesar de críticas persistentes realizadas a
partir de locais extrainstitucionais e de “instâncias inferiores” (e.g.
o movimento de justiça global)
Intensificação da orquestração, recursão mútua e coevolução
tendencial de experimentos regulatórios redistributivos e restritores
do mercado em contextos cada vez mais interligados
Adensamento, intensificação e ampliação das redes de
transferência de políticas com base em alternativas (progressivas
ou regressivas) ao regime de mercado
Neoliberalização continuada
dos regimes de normas: os
projetos de contraliberalização
podem começar a se infiltrar
em instituições macroespaciais
que estabelecem as regras
(e.g. Banco Mundial, União
Europeia), mas não conseguem
reorientar suas tendências
básicas voltadas ao mercado
Intensificação continuada de (formas progressivas ou reacionárias de) experimentação regulatória
redistributiva, socializadora, reinscrustadora e restritora do mercado
Cenário 4:
socialização profunda
Elaboração contínua e consolidação transnacional de formas de transferência transjuridicional de
políticas que são redistributivas, socializadoras e restritoras do mercado
Desestabilização/desmantelamento de regimes de normas neoliberais: construção de arcabouços
alternativos, restritores do mercado, redistributivos e socializadores para a organização regulatória
macroespacial
Nota: As células sombreadas denotam as esferas da reestruturação regulatória nas quais a neoliberalização
seria mais pronunciada.
32
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?
Em um segundo cenário, a contraneolibe-
neoliberalizada. Mas, a menos que estejam in-
ralização desarticulada, um regime de normas
terconectadas em lugares, territórios e escalas,
neoliberalizado e os sistemas associados de
e ligadas a recalibrações institucionais, essas
transferência de políticas neoliberais persistem,
iniciativas confrontam restrições sistêmicas que
mas nesse meio tempo, a crise econômica glo-
podem minar sua reprodutibilidade em médio
bal oferece novas oportunidades estratégicas,
e longo prazo, circunscrevendo sua capacidade
embora dentro de arenas político-institucionais
de generalização interespacial.
relativamente dispersas, para forças sociais e
Em um terceiro cenário, as formas or-
alianças políticas preocupadas em promover
questradas de experimentação regulatória con-
estratégias regulatórias que restrinjam ou que
traneoliberalização e restritoras do mercado
transcendam o mercado. Mesmo antes da cri-
não mais ocorrem isoladamente, como “postos
se financeira global mais recente, havia muita
avançados” de dissidência relativamente fe-
oposição organizada às políticas neoliberais,
chados em si mesmos, mas são recursivamente
realizada pelos movimentos de trabalhadores,
interconectadas em lugares, territórios e esca-
movimentos de camponeses, movimentos ur-
las. Nessas condições, há esforços sustentados
banos, por várias vertentes do movimento an-
para criar redes antissistêmicas de comparti-
tiglobalização e, em alguns casos, por partidos
lhamento de conhecimentos, transferência de
políticos oficiais social-democráticos, comunis-
políticas e construção de instituições entre os
tas e populistas (Amoore, 2005; Leitner et al.,
diversos locais e escalas de mobilização con-
2007). Na esteira da crise econômica atual,
traneoliberal. Esse cenário pode assumir uma
pode haver novas aberturas estratégicas para
forma relativamente estatista – por exemplo,
tais movimentos sociais e organizações políti-
uma coalizão de governos nacionais, regionais
cas perseguirem essas agendas que restringem
ou locais neokeynesianos, socialdemocratas ou
o mercado, enquanto disseminam críticas mais
ecossocialistas, talvez dentro ou entre regiões
amplamente produtivas ao capitalismo neolibe-
globais importantes. Tal cenário também pode
ralizado. Nesse cenário, contudo, esses projetos
assumir uma forma baseada em movimento –
contraneoliberalizadores permanecem relativa-
por exemplo, aquela do Fórum Social Mundial,
mente desarticulados – isto é, são confinados a
com seu projeto de criar uma rede alternativa
parâmetros localizados, regionalizados ou, em
de transferência progressiva de políticas, vin-
alguns casos, nacionalizados e, ao mesmo tem-
culando ativistas e formuladores de políticas
po, ainda permanecem incrustados em contex-
de diversas instituições, setores e contextos no
tos geoinstitucionais dominados por arranjos
sistema mundial (Marcuse, 2005). Impulsiona-
regulatórios disciplinados pelo mercado e por
das pelo estado ou levadas pelos movimentos,
redes de transferência de políticas. Claramente,
tais redes ganham significado e se tornam cada
os experimentos regulatórios contextualmente
vez mais coordenadas nesse cenário, levando,
específicos associados a formas desarticula-
possivelmente, ao desenvolvimento de novas
das de contraneoliberalização são uma fron-
visões, solidárias e ecologicamente sãs, para a
teira estrategicamente essencial para explo-
regulação econômica global e para as relações
rar alternativas a uma ordem geoeconômica
interespaciais. Como argumentamos acima, a
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
33
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore
criação de redes transnacionais para a transfe-
à saúde e utilidades públicas. Das cinzas do
rência de conhecimentos e políticas foi essen-
regime de normas global neoliberalizado surge
cial para a consolidação, reprodução e evolu-
um modelo de regulamentação global alterna-
ção dos processos neoliberalizadores durante
tivo, social-democrático, solidário e/ou ecos-
as três últimas décadas, e tais redes certamen-
socialista. O conteúdo político significativo
te serão igualmente essenciais para qualquer
de tal regime de normas é – na verdade, tem
projeto que aspire a desestabilizar os arranjos
sido há muito tempo – uma questão de deba-
georregulatórios disciplinados pelo mercado.
te intenso dentro da Esquerda global (cf., por
No entanto, no cenário da contraneoliberaliza-
exemplo, Amin, 2009; Gorz, 1988; Holloway,
ção orquestrada, as redes de transferência de
2002). Mas um de seus elementos principais
políticas contraneoliberalizadoras recentemen-
seria uma democratização radical das toma-
te estabelecidas e cada vez mais coordenadas
das de decisões e capacidades de alocação em
ainda não têm a capacidade de se infiltrar nos
todas as escalas espaciais – uma possibilidade
escalões do poder político-econômico global,
que contrasta fortemente com os princípios
como as agências multilaterais, os blocos de
da disciplina de mercado e regra corporativa
comércio supranacionais e governos nacionais
nos quais a neoliberalização se baseia (Harvey,
poderosos. Consequentemente, embora o re-
2008; Purcell, 2008).
gime de normas global neoliberalizado possa
Também deve ser enfatizado que nem
tender a ser desestabilizado, sobrevive intacto.
todas as alternativas a um regime de normas
Será que um regime de normas global
neoliberalizado envolvem essa visão normativa
alternativo pode ser forjado? Em um quarto
progressiva, solidária e radicalmente democrá-
cenário, socialização profunda, o regime de
tica. Como Brie (2009) indica, qualquer número
normas global neoliberalizado é sujeito a um
de cenários regressivos, até mesmo bárbaros,
maior escrutínio público e à crítica popular.
é possível, incluindo várias formas de reação,
Subsequentemente, os arcabouços institucio-
hiperpolarização, neoimperialismo, remilitari-
nais da neoliberalização que foram herdados
zação e degradação ecológica neoconserva-
são infiltrados em todas as escalas espaciais
doras, neototalitárias e neofundamentalistas.
por forças sociais e alianças políticas orienta-
Questões básicas também podem ser coloca-
das para agendas alternativas que restringem
das em relação à configuração geográfica de
o mercado. Essas poderiam incluir controles
qualquer regime de normas global futuro. Se-
de capital e de trocas; perdão de dívidas; re-
rá cada vez mais China-cêntrico, como prevê
gimes de impostos progressivos; esquemas
Arrighi (2007)? Será fundamentado em uma
de crédito de base não-lucrativa, governados
ordem mundial multipolar, como espera Amin
por cooperativas e desglobalizados; redistri-
(2009)? Envolverá um arquipélago de redes in-
buição global mais sistemática; investimentos
terurbanas ou interregionais progressivamente
em obras públicas; e a descomodificação e
orientadas, em conjunto com novas formas de
desglobalização das necessidades sociais bási-
exclusão socioespacial mundial, como Scott
cas, como abrigo, água, transporte, assistência
(1998) antecipa? Ou envolverá alguma outra
34
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?
formação ainda não visualizada de desenvolvi-
experimentação regulatória, os sistemas inter-
mento espacial desigual? Essas perguntas não
jurisdicionais de transferência de políticas e os
podem ser respondidas aqui; destinam-se sim-
regimes de normas globais.
plesmente a provocar reflexão e debate sobre
Experimentos regulatórios contraneoli-
as possíveis consequências de médio e longo
beralizadores permanecem estrategicamente
prazo dos projetos de contraneoliberalização
cruciais, especialmente no contexto urbano,
dentro de cada uma das três dimensões da re-
mas na ausência de redes orquestradas de
estruturação regulatória.
transferência de políticas contraneoliberalizadoras, provavelmente permanecerão confinados em locais, escalas e territórios específicos.
Conclusões
Também é importante notar que a construção
de sistemas contraneoliberalizadores de transferência de políticas, tanto em meio a movi-
Esta linha de análise é, reconhecidamente,
mentos sociais, como em cidades, regiões ou
especulativa, e ainda há muito trabalho a ser
estados, representa um grande passo à frente
feito em um nível mais concreto para operacio-
para os ativistas e os formuladores de políti-
nalizar algumas das orientações metodológi-
cas progressistas. Porém, na ausência de uma
cas aqui apresentadas, principalmente com re-
visão plausível para um regime de normas
ferência às últimas três décadas dos processos
global alternativo, tais redes provavelmente
de neoliberalização e com referência à conjun-
permanecerão intersticiais, meros incômodos
tura contemporânea da formação de crises,
à maquinaria global da neoliberalização, ao in-
particularmente em relação às transformações
vés de ameaças que poderiam transformar sua
dos tipos de paisagens urbanas que estão em
influência hegemônica.
discussão nesta questão. Em nossa conceitua-
Entretanto, nossa intenção aqui não é
ção, a neoliberalização não é uma totalidade
priorizar nenhum dos três níveis de engaja-
global que abarca tudo, mas sim um padrão
mento político – todos são estrategicamente
de reestruturação desenvolvido de maneira
essenciais e possuem ramificações estruturais
desigual que tem sido produzido através de
significativas. Claramente, na ausência de ex-
uma sucessão de colisões dependentes da tra-
perimentos regulatórios viáveis, contextual-
jetória entre projetos regulatórios emergentes,
mente específicos, nossa imaginação em rela-
disciplinados pelo mercado e paisagens insti-
ção a como poderia ser uma alternativa global
tucionais herdadas em locais, territórios e es-
à neoliberalização permanecerá seriamente
calas. Consequentemente, para considerar as
limitada. Mas também é importante notar que,
possibilidades contemporâneas de transcender
se analistas urbanos e ativistas progressivos
ou inverter a influência dos processos de neoli-
focalizarem seus esforços predominantemente
beralização, tanto dentro como entre cidades,
sobre “economias alternativas” local e regio-
é necessário distinguir várias dimensões de
nalmente específicas, e vincularem os sistemas
sua articulação espacial-temporal, incluindo a
mais amplos de transferência de políticas e
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
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Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore
os arcabouços geoinstitucionais que impõem
regulatória. Essa é a razão da ênfase que colo-
as regras do jogo a tais contextos, também
camos aqui nas dialéticas inter e extralocais da
estarão limitando seriamente sua habilidade de
transformação regulatória.
imaginar – e perceber – um mundo em que os
Assim, nossa análise aponta para duas
processos de acumulação de capital não deter-
conclusões gerais para estudos de paisagens
minem as condições básicas da existência hu-
regulatórias urbanas e, de maneira mais geral,
mana. Portanto, em nosso ponto de vista, arca-
para o estudo de transformações regulatórias
bouços interpretativos do “grande cenário” são
supraurbanas. Em primeiro lugar, podemos
mais essenciais do que nunca, não apenas para
antecipar que as trajetórias da reestruturação
analisar as origens, expressões e consequên-
regulatória pós-2008 serão moldadas podero-
cias da crise financeira global contemporânea,
samente pelas formas político-institucionais
mas também como pontos de referência estru-
específicas de locais, territórios e escalas nas
turais e estratégicos para mobilizar alternati-
quais as séries anteriores de neoliberalização
vas contra-hegemônicas às práticas político-
foram articuladas. Em segundo lugar, nossa
-econômicas atualmente dominantes (para
discussão sugere que, na ausência de estra-
uma versão anterior dessa argumentação, cf.
tégias contraneoliberalizadoras para fraturar,
Peck e Tickell, 1994). É claro que os experimen-
desestabilizar, reconfigurar e finalmente su-
tos locais têm importância, e devem ser enca-
plantar os regimes de normas disciplinados pe-
rados seriamente, mas o mesmo se aplica aos
lo mercado que prevalecem globalmente des-
regimes de normas institucionais mais amplos
de o final da década de 1980, os parâmetros
e aos revezamentos interlocalidades de políti-
para formas alternativas de experimentação
cas que enquadram e coconstituem caminhos
regulatória nacional, regional e local conti-
contextualmente específicos da reorganização
nuarão a ser intensamente circunscritos.
Neil Brenner
Professor of Sociology and Metropolitan Studies at New York University, USA. New York, EUA.
[email protected]
Jamie Peck
Canada Research Chair in Urban and Regional Political Economy and Professor of Geography at the
University of British Columbia, Canada. Columbia, Canada.
[email protected]
Nik Theodore
Director of the Center for Urban Economic Development (CUED) and Associate Professor in the
Department of Urban Planning and Policy at the University of Illinois at Chicago, USA. Chicago, EUA.
[email protected]
36
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Após a neoliberalização?
Notas
(*) Texto publicado no periódico Globaliza ons, 2010, v. 7, n. 3, pp. 327-345. Revisão técnica de
Carolina Siqueira M. Ventura.
((1) As análises empíricas apresentadas por Simmons, Dobbin e Garret (2008) são, na verdade,
muito mais complexas institucionalmente e matizadas geograficamente do que seu próprio
uso da metáfora de “difusão” dá a entender. É interessante notar que, em suas discussões
mais concretas sobre cada um dos quatro mecanismos de difusão, os autores sinalizam uma
conceituação alterna va da neoliberalização que enfa za a reorganização regulatória mul nível
e mul cêntrica, a heterogeneidade ins tucional, a contestação de polí cas e a dependência
da trajetória. Dessa forma, seu relato na verdade rompe substancialmente com a literatura
difusionista ao redor da qual constroem sua narra va.
(2) Esse conjunto de dis nções pode ser aplicável a outras formações de reestruturação regulatória –
e.g. ao “liberalismo incrustado” (Ruggie, 1982) ou “cons tucionalismo progressivo” (Gill, 2000)
no capitalismo fordista-keynesiano do pós-guerra, ou ao liberalismo clássico do final do século
XIX (Silver e Arrighi, 2003). Para os nossos propósitos neste ar go, contudo, são entendidas
como dimensões da reestruturação regulatória associadas à neoliberalização transnacional.
(3) Dentre as questões mais per nentes a serem perseguidas na inves gação empírica dos regimes
de normas estão: (a) Qual é seu escopo, i.e. quão amplamente ou estreitamente se estendem
pelo espaço geográfico? (b) Qual é seu formato, i.e. abarcam o espaço de forma abrangente
ou desigual? (c) Qual é seu nível de intensidade, i.e. quão fortemente ou frouxamente
circunscrevem as dinâmicas regulatórias intrassistêmicas? (d) Qual é seu nível de variabilidade
interna, i.e. que pos de diferenças polí co-ins tucionais são possíveis dentro deles? e (e) Qual
é seu grau de maleabilidade, i.e. até que ponto podem ser redefinidos por meio de negociações
ou lutas polí cas?
(4) Essa representação não se des na a negar a presença de projetos regulatórios que restringem o
mercado dentro das zonas sombreadas da figura, nem tampouco sugerir que os processos de
neoliberalização não figuraram de maneira alguma dentro dos quadrantes brancos. O obje vo,
ao invés disso, é demarcar analiticamente a trajetória geral da reestruturação regulatória
disciplinada pelo mercado.
(5) Em um ar go relacionado, analisamos esses processos transforma vos como uma mudança do
desenvolvimento desigual da neoliberalização para a neoliberalização do desenvolvimento
regulatório desigual (Brenner et al., 2010).
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Texto recebido em 25/ago/2011
Texto aprovado em 15/set/2011
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
39
Governance e territorialização:
o welfare local na Itália
entre fragmentação e inovação*
Governance and territorialization: local welfare
in Italy between fragmentation and innovation
Lavinia Bifulco
Resumo
Colocado de maneira simples, a territorialização
é um enigma. O conceito cobre dois fenômenos
principais: o processo de reorganização territorial
que tem afetado diferentes níveis de ações
públicas e suas relações, e a tendência de tomar o
território como o ponto de referência para políticas
e intervenções. Esses fenômenos são, ao mesmo
tempo, distintos, porém ligados, e compartilham
as mesmas consequências, mobilizando novos
atores/arenas e politizando uma gama bastante
ampla de questões. O objetivo deste artigo é duplo:
delinear um esquema analítico do território como
o ambiente da relação atual entre cidadania e
governança; focalizar problemas e oportunidades
que são desencadeados pelo welfare local na Itália.
Abstract
Briefly put, the territorialization is a puzzle. The
concept covers two principal phenomena: the
process of territorial reorganization which has
affected different levels of public action and their
relations; the trend of taking the territory as the
reference point for policies and interventions.
These phenomena are at the same time distinct
but linked, and share the same consequences,
mobilizing new actors / arenas and politicizing
quite a wide range of issues. The aim of the paper is
twofold: to outline an analytical scheme regarding
the territory as the medium of the present
relationship between citizenship and governance;
to focus on problems and opportunities that are
triggered by local welfare in Italy.
Palavras-chave: governança; territorialização;
cidadania; welfare local; Itália.
Keywords: governance; territorialization;
citizenship; local welfare; Italy.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Lavinia Bifulco
Introdução
ação pública está sob pressão, de um lado para
a intensificação dos processos de internacionalização, de outro para o reemergir de dinâmicas
Desde os anos 80, a ação pública na Europa foi
de diferenciação territorial (Ferrarese, 2011).
de interesse de um processo de territorializa-
Neste ensaio, levarei em consideração a
ção cada vez mais intenso. Em termos gerais,
reorganização territorial como um componen-
a territorialização refere-se a dois fenômenos
te chave da governance (Gualini, 2006). Cien-
principais: o processo de reorganização terri-
te da ambiguidade desta noção, preciso que,
torial que tocou os diversos níveis de governo
no meu ponto de vista, a governance não equi-
e as suas relações; a orientação para assumir
vale ao desaparecimento do Estado, concomi-
o território como referência de políticas e in-
tantemente com a mudança das relações entre
tervenções. O primeiro está ligado às dinâmi-
público e privado e entre local/central/supra-
cas de rescaling do Estado (Brenner, 2004).
nacional (Le Galès, 2002). Isso não resolve,
O segundo se entrelaça ao desenvolvimento
evidentemente, a questão da ambiguidade. É
de abordagens e instrumentos de policy que
verdade que, enquanto até alguns anos atrás,
tendem a considerar os contextos em que se
o conceito de governance era, em sua maior
desenvolvem as intervenções como recursos,
parte, associado a orientações ‘‘pró-mercado’’,
targets e atores (Bifulco et al., 2008). Trata-se
o debate atual mostra uma maior focalização
de fenômenos distintos, mas intrincados entre
em temas como a participação dos cidadãos
si, que têm como efeitos comuns a mobilização
e das comunidades locais, a construção de
de novos atores e a politicização de um leque
parcerias entre atores públicos e privados, a
amplo de issues. Tornou-se evidente, parale-
difusão de práticas deliberativas.1 É também
lamente, o fato de que o território não é uma
verdade que a governance subentende uma
realidade dada e inerte, mas é repleto de rela-
nova maneira de olhar para a reconstrução das
ções sociais, poderes e capacidade de agency.
estruturas escalares do Estado que “are now
É necessário levar em consideração, mais
understood to be historically malleable; they
precisamente, a copresença de processos de
may be ruptured and rewoven through the
desterritorialização e de reterritorialização. Co-
very political strategies they enable” (Brenner,
mo é sabido, o Estado tomou forma, na Europa,
2009, p. 126).
através da neutralização das dinâmicas locais
A governance , por isso, torna mani-
e a escala estatal/nacional esteve na base da
festada a valência política das dinâmicas que
democracia moderna (Ferrarese, 2011). Hoje a
estão moldando a organização do Estado, das
relação entre Estado e território é mais com-
instituições, das políticas, ativando e redistri-
plicada. A globalização, de fato, dá lugar a
buindo poderes.
novas montagens entre território, autoridade
Um campo de mudanças relacionado é
e direitos e os processos de desnacionalização
o da cidadania. De acordo com o modelo clás-
em curso abrem novas possibilidades da geo-
sico, a cidadania é “a relationship between
grafia política em níveis supra e subnacional
individuals and political authorities inside an
(Sassen, 2006). Por isso, a escala nacional da
undifferentiated state territory” (Bauböck
42
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização
e Guiraudon, 2009, p. 440). Como nunca
correspondeu totalmente à verdade, tal modelo dominou uma parte significativa da história
O quadro europeu
da territorialização
institucional europeia. Hoje, graças à integração europeia, os confins territoriais da cidada-
A reorganização territorial que começou há
nia são mais permeáveis e as raízes nacionais
cerca de trinta anos, coincidindo com o lança-
são menos importantes do que em outro tem-
mento da assim chamada Europa das regiões
po para o exercício de alguns direitos (Ferrera,
da presidência europeia de Jacques Delors,
2005). Paralelamente, tomam forma maneiras
produziu uma recomposição profunda do es-
regionais e urbanas de cidadania, simultanea-
paço político e das políticas, graças à qual
mente à difusão de instrumentos de policy lo-
“the nationalizing, spatially redistributive
calizados, que pretendem envolver cidadãos e
orientation of post-war urban and regional
comunidades na vida pública (García, 2006).
policies has been largely superseded” (Brenner,
Isto pode, obviamente, ajudar o processo de-
2009, p. 128). Abriu-se, desde então, uma fase
mocrático. Mas pode também contribuir para o
de “reinvenção do território” (Keating, 1997)
crescimento das desigualdades territoriais.
durante a qual o próprio significado da noção
O ensaio aborda a relação entre gover-
de território se enriqueceu e se complicou,
nance e cidadania, colocando em foco os pro-
identificando não mais somente um espaço ad-
cessos de territorialização. O objetivo é duplo:
ministrativo, mas também (ou principalmente)
delinear um esquema analítico relativo ao terri-
um leque de capacidades de ação coletiva.
tório como mediador da relação atual entre ci-
Os eixos da mudança são dois. Um é a
dadania e governance; colocar em foco os pro-
regionalização. Na análise clássica de Michael
blemas e as oportunidades que a governance e
Keating (1997), trata-se de uma “nova on-
a territorialização – no seu duplo sentido – pro-
da de regionalismo” que, diferentemente do
vocam na Itália, referindo-me principalmente
passado, não tem lugar dentro dos Estados
ao welfare local.
Unidos, mas tem como contexto a União Eu-
Começarei deIineando o quadro inter-
ropeia e o mercado global. Para seu desenvol-
pretativo relativo ao contexto europeu, ilus-
vimento concorrem três fatores: a mudança
trando o duplo significado de territorialização
funcional (solicitada pela globalização e pela
das políticas e as geometrias variáveis da cida-
necessidade de confronto com o mercado in-
dania que daí surgem. Passarei então à análise
ternacional), a reorganização institucional
do caso italiano, apresentando dois instrumen-
(principalmente a descentralização e a inte-
tos de policy mais significativos com relação
gração europeia) e a mobilização política no
aos temas indagados: os Planos sociais de zona
interior das Regiões (ibidem).
e os Contratos de bairro. A chave analítica prin-
Desse ponto de vista, a regionalização
cipal que usarei refere-se ao cruzamento ambi-
tem como efeito principal ativar novas arenas
valente de estímulos à inovação e estímulos à
políticas e novos atores da política. As regiões
fragmentação que dá forma ao quebra-cabeças
jogam, de fato, uma parte de primeiro plano
2
da territorialização.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
na política e, em alguns casos, na europeia,
43
Lavinia Bifulco
experimentando novas formas da ação coletiva
próprias cidades como atores coletivos reco-
e da regulação territorial. O que implica o fim
nhecíveis ao externo como tais;
definitivo da ideia naturalizada do território.
●
Torna-se evidente, de fato, que a região não é
terdependência entre os fatores dos quais de-
uma entidade natural, mas é uma construção
pende o bem-estar, por exemplo a habitação, o
social e um espaço político (ibidem). É dito,
trabalho, o acesso aos serviços de saúde;
a exigência de se levar em consideração a in-
o deslocamento da atenção pública da ques-
com este propósito, que a descentralização
●
na Europa avançou um pouco por toda parte.
tão social à questão urbana, identificada pela
Na Itália, há uma versão parcial de devolution
evidência assumida pelos problemas do tra-
à espera de ser completada. Modelos federais
balho, da insegurança e das minorias étnicas
são aplicados, por exemplo, na Alemanha, Bél-
(Donzelot, 2006);
gica, Áustria, Espanha (García, 2006; Moreno,
●
McEwen, 2005).
lização de intervenções integradas e mais cor-
a ideia de que a escala local favorece a rea-
Junto às regiões, as cidades são atores
respondentes às necessidades e às demandas
de primeiro plano na nova ordem territorial.
específicas de uma coletividade (Benassi e
O protagonismo das cidades na Europa é lido
Mingione, 2002).
à luz do papel encenado pela União Europeia.
Um dos pontos cruciais é, obviamen-
De fato, a Europa das regiões foi rapidamen-
te, a disponibilidade de recursos adequados e
te substituída por uma Europa das cidades.
de mecanismos alocativos em nível nacional,
Aproveitando as oportunidades oferecidas pela
mas também, às vezes, supranacionais, que
União (principalmente pelas políticas dos fun-
sustentam as responsabilidades locais. Muito
dos estruturais), as cidades se tornaram atores
frequente é a combinação entre recursos escas-
políticos no espaço europeu, à procura de le-
sos e responsabilidades elevadas. Uma questão
gitimidade e de lugares de representação (Le
ligada à estrutura das relações entre setor pú-
Galès, 2002, p. 90). Graças às políticas urbanas
blico, família, terceiro setor – e mercado – com
e regionais que desenvolveu nos últimos trinta
relação a intervenções de welfare e às relativas
anos, a União Europeia modificou o contexto
responsabilidades (Saraceno, 2002). Em muitos
institucional e econômico no qual as cidades
países europeus, as reorganizações recentes
estão inseridas, institucionalizando alguns pa-
do welfare se inspiraram no princípio da sub-
râmetros dos quais dependem as modalidades
sidiariedade. Mas a subsidiariedade tem impli-
da governance urbana (ibidem, p. 85).
cações diferentes, de acordo com os contextos.
Um dos aspectos mais significativos des-
Nos welfares mediterrâneos, a subsidiariedade
se desenvolvimento das cidades e das regiões
é associada a mecanismos reguladores que, por
como espaço político é o assim chamado
um lado, enfatizam o papel da família e, em
welfare local. Essencialmente, o welfare local
uma certa medida, do terceiro setor, por outro
indica:
lado, sustentam pouco e mal estes sujeitos a
●
o papel que, nos processos de decisão, as-
quem enfrentam (Kazepov, 2009).
sumem os administradores locais (regionais
Segundo Ferrera (2005), um efeito impor-
e municipais), as redes público-privadas, as
tante da nova fase das relações entre centro
44
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização
e periferia concretizada pelo welfare local foi
claros de como a referência a uma área territo-
a crescente politização dos issues relativos às
rial se presta a enfatizar objetivos de ativação
transferências e às solidariedades interterrito-
e participação.
riais. Os governos subnacionais tornaram-se, de
Apesar de uma certa redundância de
fato, muito mais atentos a questões financeiras
significados, a territorialização pode ser sinte-
nas suas relações com os governos centrais e
tizada em dois núcleos com interseção entre
muito mais propensos a mobilizar-se.
si: o território como colocação em jogo de uma
Por um ponto de vista deliciosamente
reorganização política; o território como instru-
sociológico, o welfare local ilumina os modos
mento de policy. Ambos colocam uma série de
como as políticas interagem com os processos
questões. Geografias localizadas da política e
de organização e reorganização (Bagnasco,
das políticas podem reduzir os efeitos equali-
2003). Uma vez ressurgido o papel político das
zadores, já fracos, do Estado central e colocar
cidades, aumenta também a influência que as
à prova tanto a integridade territorial quanto a
políticas (locais) podem ter no grau de inte-
responsabilidade democrática (Keating, 1997).
gração das sociedades locais. Mais ainda se as
Questões específicas voltadas à cidadania, co-
políticas assumem explicitamente o território
mo veremos no parágrafo seguinte.
como target.
Remetemo-nos, desta maneira, às lógicas
da territorialização incorporadas nas relações
Cidadania: geometrias variáveis
de policy em diversos setores (o desenvolvimento local, as políticas contra a exclusão
Neste quadro, pode-se identificar quatro ques-
social, a requalificação urbana). Neste caso,
tões principais relativas à cidadania:
trata-se da tendência a enfrentar, de manei-
●
ra integrada, um conjunto de problemas – de
cussão o modelo da cidadania como perten-
natureza social, física e econômica – em áreas
cente à comunidade definida pelo espaço do
circunscritas. As fórmulas são várias. Bastante
estado-nação;
difusas são as intervenções que assumem co-
●
mo targets territórios em desvantagem, com o
direitos ou são denizens,4 por causa do cresci-
objetivo de redistribuir e equalizar as oportu-
mento dos processos migratórios;
nidades. Além disso, a territorialização é con-
●
siderada uma condição favorável à realização
derivados da integração europeia;
a diferenciação territorial que coloca em dis-
o aumento de pessoas que não gozam de
uma europeização embrionária dos direitos
de políticas ativas, um tema chave na agenda
●
das políticas sociais na Europa.3 Pensa-se que
para os cidadãos nos contextos da governance
a escala circunscrita e a aproximação física
local.
o desenvolvimento de novas oportunidades
entre serviços e cidadãos favoreçam processos
Como sustentam Bauböck e Guiraudon
de inclusão e de empowerment, assim como
(2009), a União Europeia tornou-se um labo-
anunciado por princípios de subsidiariedade.
ratório para a experimentação de uma cidada-
As intervenções em bairros desenvolvidos, em
nia diferenciada e “realinhada”: ”If citizenship
muitos países europeus, são exemplos bastante
is membership in a bounded policy, then the
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
45
Lavinia Bifulco
boundaries of polities in Europe have certainly
direito de participar do confronto democrático
not vanished but have become increasingly
entre ideias e a possibilidade de influir sobre as
overlapping, nested and blurred. What we
decisões coletivas.
have called ‘realignments of citizenship’
Todavia, as práticas locais se apresen-
refers both to macro level processes changing
tam bastante frágeis e são colocadas à prova
constellations of political boundaries and to
por diversas questões. Uma questão refere-se
the individual level of vertical relations with
aos mecanismos de comercialização (marketi-
political authorities and horizontal ties among
zation) que se iniciaram no sulco do neolibe-
5
co-citizens” (ibidem, p. 440).
rismo. A descentralização e a comercialização
A análise de Ferrera (2005) sobre os con-
constituem, de fato, o coração dos projetos de
fins do welfare aprofunda as mudanças que
reforma do setor público iniciados na Europa
tocam, em especial, a cidadania social. O pro-
no rastro aberto pelo Reino Unido. Projetos que
cesso de integração europeia redefiniu a arqui-
objetivaram a redução ou, mais ainda, a racio-
tetura espacial da cidadania social, provocando
nalização da despesa, por meio de mecanismos
uma disjunção parcial entre direitos sociais e
bastante punitivos de descarga dos custos e
território nacional. Mas, se observarmos os
das responsabilidades sobre as autoridades e
níveis subnacionais, veremos que, em muitos
as coletividades locais. Além disso, a afirmação
casos, a relação entre direitos e território se
do mercado como modelo regulador e a evolu-
reforça. Enquanto essas dinâmicas estão ain-
ção no sentido contratual da cidadania social
da em partes obscuras, pode-se concordar com
deram vida à figura do cidadão/consumidor,
o fato de que não se trata de uma mudança
pouco protegido pelo welfare público e pouco
radical e que as novas formas de cidadania se
preparado para participar do espaço públi-
aproximam das tradicionais, sem substituí-las
co das decisões coletivas. Esta figura, de fato,
(Keating, 2009, p. 511).
radicou-se em uma relação de compra e venda
Um dos efeitos visíveis é a mistura dos
comercial, por isso não possui as prerrogativas
confins entre a cidadania política e a cidada-
e as atribuições que contradistinguem formal-
nia social. Mais precisamente, o welfare local é
mente o papel do cidadão.
um terreno potencial de cultura das inovações
A Figura 1 sintetiza o que foi dito até
da cidadania que são encorajadas conjunta-
aqui. No modelo do government, o território
mente pelas dinâmicas de modificação terri-
nacional representa o mediador cristalizado
torial e pela difusão de abordagens de policy
dos direitos, da solidariedade (e dos respecti-
baseadas no território. Em alguns casos, essas
vos mecanismos redistribuitivos) e da demo-
inovações, além de potencializar o acesso a
cracia. A cidadania, nos termos teorizados por
serviços e intervenções, acrescentam a agency
Thomas H. Marshall (1950), é um status basea-
e a voice na cena pública (García, 2006; Bifulco
do no pertencer à coletividade nacional. No se-
e Centemeri, 2008; Newman e Clarke, 2009).
gundo modelo, que define como “governance
Consequentemente, a cidadania social tende
comercializada” (marketized governance), o
a assumir uma valência política, implicando o
território representa recursos a explorar, como
46
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização
acontece nos mecanismos de descarga das
tradicionalmente fazem a distinção entre di-
responsabilidades, e a cidadania é concebida
mensão social e dimensão política. Isto é evi-
como um contrato. No modelo da governance
dente nas experiências que reforçam simulta-
participativa, o território constitui um sistema
neamente entitlements sociais e voice.
de ação e um recurso mobilizável por uma
Os três modelos têm, obviamente, o ob-
variedade de atores, inclusos os cidadãos e,
jetivo de enfatizar as diferenças e as questões.
em alguns casos, os denizens. A cidadania é
Na realidade empírica, encontramos combina-
um processo: constrói-se, ao menos em par-
ções de problemas e oportunidades bastante
te, na prática e muda no tempo e no espaço.
confusas também no caso de experiências ins-
Além dos seus confins espaciais, são colocados
piradas na participação dos cidadãos, como ve-
em discussão os confins que, em seu interior,
remos a seguir.
Figura 1 – Governance, território e cidadania
Government
Governance comercializada
(marketized)
Governance participativa
Território nacional como
mediador cristializado dos
direitos, da solidariedade e
da democracia
Território como recursos
a explorar
Território como sistema de
ação e recurso mobilizável
Cidadania como status
Cidadania como contrato
Cidadania como processo
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47
Lavinia Bifulco
A Itália: contexto
e instrumentos de policy
Uma linha de mudança ligada remete ao
processo de rescaling. Esse processo, na Itália,
segue o caminho de uma localização marcada
e investe simultaneamente a política, as políti-
Passarei agora a ilustrar o contexto italiano,
primeiramente delineando a fase de policy
change que começou a partir da metade dos
anos 90 e analisando sucessivamente dois instrumentos centrais nesta fase: o Plano Social
de Zona e o Contrato de Bairro.
cas e a estrutura do Estado. O papel encenado
pela política está ligado sobretudo aos “novos
prefeitos”, cujos poderes cresceram de modo
decisivo após a mudança do sistema eleitoral e dos mecanismos da representação local.
Com relação às políticas, a escala local é, sem
dúvida, um elemento chave dessa estação de
O contexto
renovação. Dois casos para todos são a reforma
dos serviços sociais, aprovada em 2000 (Biful-
A estação de renovação da ação pública que
co, Centemeri, 2008; Bifulco et al., 2008) e as
acompanhou a Itália em direção ao novo mi-
políticas para o desenvolvimento baseadas na
lênio viu a afirmação de novas abordagens e
programação negociada (Piselli, 2005; Magnati
instrumentos de policy. Como observado vá-
et al., 2005; Trigilia, 2005). Na importância as-
rias vezes por Bobbio (2000, 2006), crescem
sumida pela escala local, caem tanto perspec-
principalmente as práticas de negócios, basea-
tivas institucionais de mudança que refletem a
das na estipulação de acordos formalizados
exigência de valorizar a autonomia dos órgãos
e voluntários que empregam reciprocamente
locais quanto a demanda difusa de espaços
múltiplos atores, públicos e privados, em busca
descentralizados de discussão e decisão; tanto,
de um interesse coletivo. Uma atenção espe-
enfim, a ideia de que as políticas devem ativar
cial é dedicada a abordagens de negócios que
os recursos de ação presentes ou latentes nas
possam favorecer as logísticas integrativas,
sociedades locais e nos contextos territoriais.
fundamentadas em comportamentos recipro-
É considerado, então, o processo de descen-
camente orientados, ao invés das distributi-
tralização que, através do percurso iniciado
vas, orientadas para a repartição de recursos.
nos anos 70, aterrou em 2001, na reforma do
A buscar a mudança é uma série de fatores,
título V da Constituição, que introduz mecanis-
exógenos e endógenos. Novos “instrumentos
mos de poder legislativo, que concorre entre
para governar” encontraram no espaço euro-
Estado e Regiões em algumas matérias (entre
peu vetores bastante potentes que ajudaram
eles os socioassistenciais, a saúde, a instru-
na sua difusão (Lascoumes e Le Galès, 2004).
ção e a formação profissional).6 A autonomia
Em nível nacional, fez-se advertir a necessi-
que, em diferente grau, adquiriram o nível re-
dade de lubrificar os mecanismos ordinários
gional e o municipal pode favorecer a experi-
do consenso, muito bloqueados sobretudo no
mentação de vias inovadoras da ação pública.
caso das intervenções com grande impacto
Como foi observado a propósito das políticas
ambiental e social, e de enfrentar a crise da
da programação negociada, trata-se de opor-
representação democrática.
tunidades de mudança situadas em um nível
48
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização
“baixo” da política (também espacialmente)
mecanismos de integração em vertical (entre o
que se contrapõem ao quadro apresentado
nível central, regional e municipal de governo)
pela ”alta” política, fundado na ausência de
e em horizontal (entre administrações e entre
confronto (Bobbio, 2006) e exposto aos proble-
administrações e sociedades locais). Em espe-
mas da democracia mediática e do populismo
cial, este instrumento compromete os municí-
(Crouch, 2003; Ginsborg, 2006). Esta autono-
pios em programar e governar de maneira inte-
mia alimenta, por outro lado, também o risco
grada o sistema territorial dos serviços socioas-
do exacerbar-se das disparidades. A regionali-
sistenciais com o envolvimento de cidadãos e
zação italiana, de fato, fica em equilíbrio entre
terceiro setor (Bifulco e Centemeri, 2008). Mais
a valorização das autonomias territoriais e o
precisamente, o plano de zona, normalmente
aumento das desigualdades. Além disso, as ex-
adotado através de um acordo de programa
perimentações se apresentam frágeis e muito
pelos municípios que voltam para o mesmo
dependentes da iniciativa política local.
âmbito territorial tem a tarefa de identificar
Esse quadro explica por que as oportu-
(Legge 328/2000, art. 19):
nidades de inovação podem facilmente arrui-
a) os objetivos estratégicos e as prioridades
nar-se em novos e mais robustos mecanismos
de intervenção, além dos instrumentos para
de fragmentação.
sua realização;
Na realidade, discutiu-se e se discute
b) as modalidades organizacionais dos servi-
ainda sobre quais são os elementos efetivos de
ços, os recursos, os requisitos de qualidade;
novidades desse quadro com relação à tradição
c) as modalidades para a integração entre ser-
italiana, caracterizada por uma longa história
viços e prestações;
de práticas de negócios além do tipo específico.
d) as modalidades para a coordenação dos mu-
A diferença é – deveria ser – principalmente a
nicípios com outras administrações:
transparência: a ideia ou a intenção é, de fa-
e) as modalidades para a colaboração dos ser-
to, que a negociação deva ser feita não mais à
viços territoriais com as organizações do tercei-
sombra da hierarquia, mas em plena luz e se-
ro setor e as comunidades locais;
gundo princípios de accountability que impõem
f) as formas de ensaio com a unidade de saúde local.
a percepção do que se faz e se segue (Bifulco e
Conforme texto da lei, o Plano social de
de Leonardis, 2003).
zona é voltado a “favorecer a formação de sistemas locais de intervenção fundamentados
em serviços e prestações complementares e fle-
Os Planos Sociais de Zona
e os Contratos de bairro
xíveis, estimulando principalmente os recursos
locais de solidariedade e de autoajuda, além de
responsabilizar os cidadãos pela programação
É a reforma dos serviços sociais ocorrida em
e verificação dos serviços” (art. 19).
2000, primeiro aceno, que introduz o Plano so-
Esse instrumento é, por isso, candida-
cial de zona. Trata-se do eixo principal do novo
to a promover modalidades de programação
sistema de regulação das políticas socioassis-
integradas e inclusivas. Sua importância se
tenciais, desenhado com o intento de assegurar
apoia, precisamente, em quatro ideias base:
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
49
Lavinia Bifulco
a referência ao território como sistema de
intervenção. Trata-se, de fato, de contextos em
recursos a ativar e valorizar; a ação associada
que a degradação física dos imóveis e dos es-
entre municípios, que requer capacidades de
paços públicos e a escassez das infraestruturas
coordenação interinstitucional;7 a negociação,
se juntam a condições de incômodo e vulne-
que valoriza métodos consensuais de tomada
rabilidade social. As tipologias projetuais mais
de decisões e a participação dos cidadãos e
recorrentes são relativas a intervenções em
das organizações do terceiro setor; a direção,
porções até amplas de edilícia residencial pú-
que solicita aos municípios assegurar coerên-
blica, que normalmente se aproximam da rea-
cia e continuidade à construção do sistema lo-
lização de infraestruturas e a construção e/ou
cal de serviços.
recuperação de espaços coletivos, para a vida
Em linha geral, a ideia é que decisões
social e cultural, para atividades comerciais e
baseadas na construção de cooperativas são
de empreendimento. Desde a edição de 1998,
preferíveis, tanto às ideias fundamentadas
o mecanismo de financiamento, com base con-
na autoridade quanto às ideias baseadas na
cursal, aproveita as capacidades projetuais das
agregação de preferências. De fato, ganhariam
administrações locais, privilegiando, ao mesmo
simultaneamente sua legitimidade e a demo-
tempo, a construção de uma arquitetura ins-
cracidade das decisões. Na realidade, os muni-
titucional de tipo parceria. Os municípios são,
cípios se associam não por escolha, mas pela
de fato, os sujeitos titulados a apresentar o
força. A alternativa, de fato, é a exclusão pelos
projeto de recuperação, mas são chamados a
financiamentos nacionais. Deve-se acrescentar
envolver outros atores, públicos e privados, na
que, após a reforma constitucional de 2001, os
realização de uma perspectiva de desenvolvi-
atores políticos principais são as regiões. No
mento complexivo do bairro. Acrescenta-se que
confronto, tanto o Estado como os municípios
a instalação do primeiro programa, baseado
aparecem como atores secundários.
fundamentalmente em financiamentos nacio-
Os Contratos de bairro também são co-
nais, atribui ao nível central tanto a emanação
locados na moldura dos processos de regiona-
do anúncio quanto os mecanismos de avalia-
lização. Introduzidos no fim de 1998 por inicia-
ção e seleção. A segunda edição, lançada ofi-
tiva do Ministério dos trabalhos públicos, com
cialmente em 2001, tem algumas mudanças. É
o objetivo de requalificar os bairros de edilícia
reforçado o papel dos cidadãos, já a partir da
pública, estes instrumentos voltam ao filão dos
definição dos objetivos do contrato. Paralela-
programas urbanos complexos, recuperando
mente, crescem as prerrogativas das Regiões.
como ideia chave a necessidade de superar
A terceira edição, lançada em 2008 e em vi-
a centralidade da intervenção urbanístico-
gor atualmente, acentuou essas prerrogativas,
-arquitetônica a favor do tratamento integrado
demandando as escolhas mais relevantes aos
das dimensões físicas, sociais e econômicas da
anúncios regionais.
requalificação (Bricocoli, 2007; Briata et al.,
Quanto à filosofia do instrumento, a mes-
2009). São as mesmas características das áreas
ma denominação oficial enfatiza os elementos
interessadas pelas intervenções de recupe-
principais: a subscrição de um acordo formali-
ração a invocar modalidades integradas de
zado e a assunção de compromissos recíprocos.
50
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização
O contrato, desse ponto de vista, deveria favo-
envolvimento dos cidadãos são vagas e a di-
recer a responsabilização dos atores envolvidos
reção desenvolvida pelas administrações pode
e a transparência dos mecanismos de decisão.
ser fraca. Nos Contratos de bairro, um campo
Além disso, deveria consentir a adição de recur-
de tensão é aquela dupla alma mencionada an-
sos adicionais, privados e públicos. Os critérios
teriormente.
de financiamento enfatizam uma espécie de
Para se compreender melhor esses e ou-
“dupla alma” da medida, ligada à copresença
tros problemas, passarei agora à implementa-
de uma abordagem de discriminação positiva,
ção, concentrando-me nas dinâmicas de inte-
que atribui prioridade às áreas desavantajadas,
gração e nas de participação.
e procedimentos de admissão aos financiamentos, baseados na seleção após um anúncio
(Bricocoli, 2007).
Efeitos de integração
Sendo de fato uma obrigação, os Planos
de zona, ao contrário dos Contratos de bair-
Um dos efeitos “virtuosos” dos dois instru-
ro, foram feitos em todo o território nacional.
mentos é a institucionalização de espaços para
Quanto aos territórios de referência (os assim
a coordenação. No âmbito dos Planos de zo-
chamados âmbitos territoriais ou sociais), na
na, muitos municípios investiram nas relações
maior parte dos casos, compreendem uma
intermunicipais mais do que por obrigação ou
população entre 50.0000 e 100.000 habitan-
pela conveniência de se associar. Ainda que de
tes (43,6%) (ISFOL, 2006). Quanto aos Con-
maneira não linear, aconteceram processos de
tratos de bairro, um primeiro dado significati-
aprendizado institucional, graças aos quais as
vo é o crescimento, no tempo, das propostas,
agregações intermunicipais começaram a agir
tanto das apresentadas quanto das finan-
e a serem reconhecidas como novos atores
ciadas. Entre a primeira e a segunda edição,
públicos. Em alguns casos, Planos e Contratos
passa-se de 57 projetos admitidos para os
dão prova de uma elevada capacidade integra-
financiamentos (em 126 propostos) a 192 (em
tiva. Tratou-se das coalisões instauradas entre
cerca de 500 propostos). Um segundo dado é
instituições e serviços como das colaborações
o crescimento do peso dos recursos regionais
entre administrações e terceiro setor. Planos
que, substancialmente ausentes na primeira
e Contratos inclinaram-se a sustentar proces-
edição, na segunda edição totalizam 35% dos
sos de organização de partes mais ou menos
recursos complexivos.
amplas da sociedade local. Em alguns territó-
Não levando em conta as diferenças,
rios e em diversos bairros, desenvolveram-se
não só de ordem quantitativa, a importância
dinâmicas associativas que reanimaram uma
dada ao território e as modalidades que par-
sociedade civil desagregada (Bifulco e Cen-
ticipam de elaboração de projeto é claramen-
temeri, 2008). O nascimento de agregações
te reconhecível como um núcleo cognitivo e
que reúnem as organizações que operam em
normativo comum aos dois instrumentos. Há,
um território (como os fóruns do terceiro se-
porém, aspectos que complicam o quadro. Com
tor) frequentemente foi desejado “pelo alto” e
relação aos Planos de zona, as modalidades do
“pelo baixo”.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
51
Lavinia Bifulco
Como foi evidenciado, a propósito de
grau de coordenação são também abertas e
uma experimentação em curso em algumas
acessíveis por parte de uma variedade de ato-
áreas de Friuli-Venezia Giulia (De Leonardis e
res. E nem sempre os atores que participam de-
Monteleone, 2007; Bifulco et al., 2008), pode
las têm o poder de influir em decisões tomadas.
haver efeitos de integração social relativas di-
As pesquisas realizadas evidenciam
retamente aos habitantes de um bairro. Esses
uma variedade de práticas que se diferenciam
efeitos parecem ser favorecidos pela contigui-
entre si quanto os atores chave, o objeto, os
dade física entre os serviços empenhados nas
espaços e as regras da negociação (Savoldi,
intervenções e os seus destinatários, além do
2006; Bifulco e Centemeri, 2008; Paci, 2008;
grau de articulação das atividades. Na experi-
Polizzi, 2008). Tal variedade torna manifes-
mentação em questão, as intervenções são re-
ta a interdependência entre alguns fatores.
lativas tanto à elaboração de projetos de inter-
Contam tanto os fatores de contexto, como
venção personalizados, moldados nas especifi-
as arquiteturas político-institucionais e os mo-
cidades da pessoa e do seu contexto de vida,
delos de organização social; quanto fatores
quanto a organização miúda da vida cotidiana
que intervêm diretamente nos processos de
em um bairro (por exemplo, a organização de
policy, como as culturas e as leaderships po-
cursos de ginástica e de cozinha, autogeridos
líticas, o design e as regras da participação.
pelos habitantes), como também a promoção
Contam também, obviamente, as bases sociais
de iniciativas de uma certa relevância coletiva
da participação. Um aspecto de base é a força
(festas de bairro, intervenções de recuperação
de atração exercida pela ideia da participação
de praças e áreas verdes, etc.).
como prática de revitalização da democracia
Naturalmente, pode-se também produ-
local. Essa ideia não tem uma realização uní-
zir e reforçar fragmentações. No âmbito das
voca. As interações entre instituições e socie-
relações entre municipalidades, além dos
dade local podem resultar na criação de are-
cleavages da formação política, as fragmenta-
nas seletivas que, sob a etiqueta da participa-
ções executam práticas paroquiais radicadas
ção, reforçam desigualdades e configurações
na estrutura administrativa italiana ou refletem
de elite dos processos decisionais. Mas podem
a relação normalmente desigual entre munici-
também implicar um envolvimento amplo de
palidades maiores e mais dotadas de recursos e
cidadãos e organizações de terceiro setor e um
municipalidades menores e dependentes.
papel bastante incisivo a redistribuir o poder
relativo para as decisões públicas. Em alguns
Contratos de bairro, isso significa, por exem-
A participação
plo, que os atores institucionais promovem
interações muito frequentes e adaptadas aos
O tema da participação é o banco de prova
habitantes já em fase de idealização das inter-
mais controverso das orientações em campo
venções, aprendendo a confrontar-se com uma
nos Planos e nos Contratos, principalmente
multiplicidade de vozes, às vezes conflituosas
com relação à inclusividade e incisividade da
(Bricocoli, 2007). Um elemento que joga a
participação. Nem sempre arenas com um bom
favor é a presença, nos bairros, de formas de
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização
organização dos habitantes que ativam uma
âmbitos territoriais, a leadership enfatizou a
pluralidade de pontos de vista, sem querer
conotação pública da programação social e
representá-la. Em todo caso, a experiência dos
sua centralização com relação a estratégias de
Contratos documenta claramente a importân-
crescimento da democracia local. Alguns atores
cia do papel que as administrações municipais
públicos viram nesse instrumento a oportu-
são chamadas a exercer ao sustentar, reconhe-
nidade para renovar a política e deram prio-
cer e mediar essa pluralidade (ibidem).
ridade à construção de um sistema orgânico
É necessário, então, considerar que as
de programação, capaz de incluir uma plateia
políticas socioassistenciais, assim como as de
ampla de sujeitos. Deve-se dizer que se trata
recuperação urbana são relacionadas normal-
somente de algumas experiências, ligadas ao
mente a pessoas e contextos em condições
ciclo político do momento. Não sendo isoladas
precárias e situações em que não estão certos
(em muitas municipalidades iniciaram-se práti-
nem os recursos necessários para participar
cas de participação de tipos variados, como os
nem o interesse para tal fim (Borghi, 2006). O
Balanços participativos), constroem situações
envolvimento dos cidadãos e seu peso “polí-
efêmeras. Todavia, são suficientes para lançar
tico” dependem de modo determinante das
uma tendência bastante inédita na Itália, que
oportunidades que as formas institucionaliza-
coloca em campo um perfil ativo da leadership
das da negociação oferecem para o desenvol-
política local e sua propensão a empreender
vimento da agency e da voice. O que significa
mudanças para a democracia. Em termos me-
ter acesso àquele tipo de recursos (recursos
nos nítidos, é o que aparece também nas pes-
materiais, informações e conhecimentos, di-
quisas conduzidas sobre os Contratos de bairro.
reitos, legitimidades) que permitem exprimir-
No conjunto, nesse modo, ativam-se dinâmi-
-se e contar na cena decisional pública. O que
cas sociais e institucionais que acrescentam,
evidencia a observação da experimentação
de maneira interdependente, as condições de
em Friuli mencionada anteriormente. Nesse
bem-estar (well-being) e as condições de exer-
caso, é a redistribuição do poder de se decidir
cício da voice, revitalizando a relação entre jus-
relativamente sobre as próprias condições de
tiça social e democracia.
saúde e de vida que torna incisiva a participação. Uma redistribuição que é promovida e
sustentada pela administração pública, princi-
Conclusões
palmente em nome da efetiva realização dos
direitos à saúde dos cidadãos.
Embora talvez abusada, a imagem das geome-
A participação parece manter suas pro-
trias variáveis exprime eficazmente a mobili-
messas se e quando ocorrem conjuntamente
dade e a incerteza que marcam as dinâmicas
processos de aprendizado institucional e pro-
atuais da governance, da territorialização e
cessos de aprendizado social. Com relação aos
da cidadania. Após apresentar característi-
Planos de zona, foi evidenciado muito clara-
cas e problemas principais dessas geometrias,
mente que a leadership política local é decisiva
concentrei-me em alguns casos de governance
para que isso ocorra (Paci, 2008). Em alguns
local na Itália especialmente significativos com
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
53
Lavinia Bifulco
relação ao duplo fenômeno implicado pela ter-
na prática. Por isso, a abertura, a inclusivida-
ritorialização: a reorganização territorial entre
de e a pluralidade das sedes decisionais e
escalas de governo; a ancoragem de políticas e
projetuais são dimensões a se indagar de perto
intervenções no território.
e com atenção;
A análise mostra a coexistência entre
●
quanto à redistribuição do poder, os resul-
oportunidades de inovação e riscos de poste-
tados mais inovadores – em termos tanto de
riores fragmentações. Mais precisamente:
novos atores legitimados a participarem das
como vimos a respeito dos Contratos de
negociações, quanto de lógicas e efeitos da
bairro e dos Planos sociais de zona, toma vida
negociação – são levantados onde o ator pú-
uma variedade de arenas institucionais. Nes-
blico tende a exercer um papel de promoção
sa variedade, expressam-se os processos de
e mediação. Às vezes, é a leadership política
institution building que dinamizam o desenho
que domina a cena, sustentando, de modo ex-
e a implementação das políticas nos contextos
plícito, uma opção de melhoria da democracia
locais. O alimento principal é a capacidade de
que aponta para uma declinação participada
estabelecer molduras normativas e visões com-
da programação;
●
partilhadas capazes de suportar as interações
●
os mecanismos da localização, de um lado,
cooperativas intra e interinstitucionais em tor-
criam um terreno favorável para as inovações,
no de problemas comuns (Donolo, 1997). Em
de outro, arriscam reforçar antigos problemas
muitos aspectos, trata-se de “quase-institui-
italianos, como a fragmentação institucional,
ções”, a partir do momento que a sua existên-
a incerteza dos direitos e a autarquia local. Os
cia é condicionada pela vontade dos diversos
problemas podem ser especialmente agudos
partners que contribuem para sua constituição
quando faltam mecanismos redistributivos
(Vino, 2003);
interterritoriais. Além disso, em alguns casos,
graças às práticas inovadoras da cidadania
os governos locais acabam por ter maiores res-
que se realizam localmente, as questões de jus-
ponsabilidades, mas em ausência de recursos
tiça social assumem um peso decisivo com re-
adequados, segundo os mecanismos típicos da
lação ao processo democrático. Essas práticas,
“descentralização da penúria” que tornam vã
porém, realizam-se de modo não homogêneo
qualquer atribuição de liberdade de ação.
●
no território nacional e têm recaídas pouco ge-
A territorialização é um quebra-cabeça e
neralizáveis. O problema é que a referência à
será necessário certo tempo para se entender
escala local – como todas as referências terri-
melhor como combinar problemas e oportuni-
toriais – tem um poder inclusivo, mas também
dades. Lembrando que um excesso de individua-
efeitos de exclusão. Além disso, a participação
lização no espaço causa localismo (Bagnasco,
promete tanto a princípio quanto é complicada
2003), o mais insidioso dos problemas.
Lavinia Bifulco
Professora associada de sociologia da Faculdade de Sociologia da Universidade de Milano-Bicocca.
Milão, Itália.
[email protected]
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Governance e territorialização
Notas
(*) Revisão técnica de Patacom Consultoria Linguís ca.
(1) Como observa Janet Newman (2005), sobretudo as versões da teoria da governance emergente
na Europa con nental estão, em geral, muito atentas ao “social” e tendem a conceitualizar
modelos de governo e de regulação baseados na interação estado-sociedade.
(2) Os Planos sociais de zona foram indagados no curso do trabalho cole vo de pesquisa desenvolvido
em vários anos (financiamentos MIUR) no âmbito do Laboratório Sui Generis, da Universidade
de Milão-Bicocca, coordenado por Ota de Leonardis. Mais precisamente, foram analisados dois
Planos de zona na Campania, no sul da Itália, dois Planos de zona na Lombardia, no norte da
Itália, e dois distritos sociossanitários em Friuli-Venezia Giulia, no nordeste. A escolha das três
regiões levou em consideração a combinação entre três dimensões: a macroárea territorial; o
modelo de governance regional; os recursos públicos de welfare. Para uma apresentação mais
sistemática dos resultados de pesquisa ver Bifulco (2005); Monteleone (2007). Quanto aos
Contratos de bairro, trata-se de análise de po secundário que fazem referência, principalmente,
ao conjunto das experiências da Lombardia realizadas no âmbito do segundo anúncio.
(3) Um tema tão importante quanto ambíguo. A a vação, de fato, pode ser entendida de maneiras
diferentes: como par cipação no mercado de trabalho; como empowerment; como cidadania
a va (van Berkel e Møller, eds., 2002).
(4) Isto é, estrangeiros que gozam somente de uma parte de direitos.
(5) Neste quadro, a dupla dinâmica de desterritorialização e reterritorialização se manifesta muito
claramente na emergência de um regime que assegura liberdade de movimento aos cidadãos da
União Europeia, enquanto reforça os controles sobre os migrantes (Bauböck e Guiraudon, 2009).
(6) Atualmente se encontra em vias de definição um sistema de federalismo fiscal.
(7) Na maior parte dos casos, de fato, a tarefa de elaborar o Plano é confiada às associações entre
municípios e não aos municípios sozinhos.
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Texto recebido em 12/jul/2011
Texto aprovado em 26/ago/2011
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
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A estratégia eleitoral na representação
proporcional com lista aberta*
Electoral strategy under open-list proportional representation
Barry Ames
Resumo
Este texto revela de forma inovadora traço
distintivo do nosso sistema eleitoral proporcional
de lista aberta, a saber, a existência de quatro
modalidades de distribuição espacial do voto a
partir das quais se elegem quatro tipos de representantes para nossas casas legislativas: deputados com votação concentrada e dominante, deputados com base fragmentada e dominante,
deputados com votação concentrada e partilhada
e deputados com votação fragmentada e partilhada. O texto aponta, por meio da análise de
emendas ao orçamento, o incentivo ao distributivismo e a práticas clientelistas decorrentes de
propriedades de nosso sistema eleitoral. Correlaciona dados de carreira política às modalidades
diversas de distribuição do voto, discrimina as
circunscrições eleitorais seguras e avalia, por fim,
o retorno eleitoral de práticas distributivas.
Abstract
The current paper discloses a distinctive trait
of the open-list proportional representation
adopted in Brazil. In such a system, congressmen
are in fact elected from four spatial patterns
or constituencies : concentrated - dominant
municipalities, concentrated-shared
municipalities, scattered-shared municipalities
and scattered-dominant municipalities. Through
the analysis of budgetary amendments made
by congressmen the article sheds light on pork
barrel practices that stem from our electoral
system. The article also correlates variables of
political career with spatial patterns of vote
distribution, tries to discriminate safe seats in
Brazil and, finally, the payoff of distributive and
parochial attitudes.
Palavras-chave: geografia; voto; localismo;
distributivismo.
Keywords: geography; vote; parochialism; pork
barrel.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
Barry Ames
Teoria: Este artigo desenvolve uma teoria sobre estratégias de candidatos com base
procurar obter benefícios políticos e enfraquece
os programas e a disciplina dos partidos.
em princípios da escolha social e no funciona-
A América Latina, em meados da déca-
mento da representação proporcional com lista
da de 1990, é uma região marcada pelo oti-
aberta. A teoria é utilizada para explicar o com-
mismo. Democracias incipientes sobrevivem;
portamento na campanha e os padrões espa-
economias se estabilizam e crescem. Mas o
ciais de distribuição dos votos dos candidatos à
Brasil continua a ser um enigma. Enquanto os
Câmara dos Deputados brasileira.
preços sobem 30% ao mês e a distribuição de
Hipóteses : As estratégias de campa-
renda piora, o legislativo obstrui as tentativas
nha são avaliadas com modelos que preveem
de estabilização até que o executivo forneça
quando os deputados submeterão emendas
empregos de baixo nível para os correligioná-
orçamentárias para beneficiar municípios-
rios. Uma corrupção sem precedentes faz com
-alvo cujos votos querem garantir nas eleições
que o Congresso afaste o primeiro presidente
subsequentes. Os municípios-alvo são escolhi-
eleito pelo povo em 30 anos; um ano depois,
dos em função do custo de erguer barreiras à
um novo escândalo de corrupção abala o pró-
entrada de outros candidatos, da dominação
prio Congresso.
do deputado no município, da concentração
Cada vez mais, os observadores culpam
espacial da votação estadual do deputado,
as instituições políticas brasileiras. Considere o
da vulnerabilidade do município à invasão de
sistema partidário e o legislativo. Mesmo pelos
candidatos de fora, da fragilidade do deputa-
padrões latino-americanos, o sistema parti-
do na última eleição e da carreira política an-
dário brasileiro é frágil (Mainwaring e Scully,
terior do deputado.
1992). Poucos partidos têm raízes genuínas na
Métodos: Regressão logística das emen-
sociedade. A parte dos votos que cabe a cada
das ao orçamento nacional brasileiro em 1989
partido é volátil ao longo do tempo e entre
e 1990 e regressão OLS dos resultados eleito-
eleições presidenciais e legislativas. No Con-
rais no nível municipal para a Câmara dos De-
gresso, os líderes dos partidos exercem pouco
putados brasileira nas eleições de 1990.
controle sobre suas delegações. Muitos depu-
Resultados : Os deputados buscam re-
tados, senão a maioria, gastam a maior parte
dutos eleitorais seguros, procuram municípios
de seu tempo arranjando empregos e projetos
vulneráveis e lutam para superar suas próprias
governamentais que rendam benefícios a seus
fragilidades eleitorais por meio de práticas
benfeitores e eleitores. Embora partidos bem-
clientelistas. As táticas dos candidatos variam,
-sucedidos nas eleições abranjam uma ampla
em parte, porque os passados políticos são di-
gama ideológica, alguns dos maiores partidos
ferentes e em parte porque os diferentes con-
“de centro” são, na verdade, apenas cascas pa-
textos demográficos e econômicos dos estados
ra deputados sem nenhum interesse em políti-
brasileiros recompensam algumas táticas e
ca. Poucos partidos se organizam em torno de
penalizam outras. O comportamento dos can-
questões de nível nacional; consequentemente,
didatos dificulta o controle dos eleitores so-
o Congresso raramente aborda questões so-
bre os deputados, aumenta os incentivos para
ciais e econômicas sérias.
60
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A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
Os presidentes do Brasil se beneficiam
e os problemas do legislativo e do executivo.
pouco da fragilidade do Congresso. Com chan-
Este artigo examina as eleições para a Câmara
ces mínimas de obter apoio legislativo estável,
dos Deputados. Focalizo as consequências da
o executivo enfrenta governadores indepen-
versão brasileira de representação proporcional
dentes, um calendário eleitoral que impõe elei-
com lista aberta para estratégias individuais de
ções em três de cada cinco anos, municípios
campanha e para os tipos de deputados que
que dependem, para sua própria sobrevivência,
ganham cadeiras no legislativo, e investigo as
da generosidade federal e uma quantidade
maneiras como as estratégias de campanha
substancial de deputados que valorizam sua
atuam em estados com diferentes característi-
própria renda em primeiro lugar, a reeleição em
cas sociais e econômicas. Minha exposição tem
segundo e a política pública em um distante
início com um esboço do sistema eleitoral e
terceiro lugar. Os presidentes governam for-
uma taxonomia dos padrões espaciais de votos.
mando coalizões baseadas em nomeações para
Em seguida, apresento uma teoria que explica
o gabinete. Pelo fato dessas nomeações terem
as estratégias adotadas por diferentes candida-
que satisfazer tanto as demandas do partido
tos à Câmara dos Deputados. A teoria se baseia
quanto as demandas regionais, os gabinetes
em noções de estratégia desenvolvidas na lite-
tendem a ser bastante inclusivos (Abranches,
ratura sobre escolha social, adaptadas ao con-
1988). Os programas governamentais cliente-
texto político e social do Brasil. Testar a teoria
listas necessários para mantê-los são dispen-
exige medir as intenções dos deputados. Utilizo
diosos e inovações nas políticas são extrema-
as emendas orçamentárias: os deputados sub-
mente difíceis.
metem emendas para beneficiar localidades
No cerne da crise institucional do Brasil
onde buscam recompensar aliados e recrutar
está o sistema eleitoral. Um conjunto singular
novos eleitores. Assim, a análise empírica tem
de regras, geralmente conhecido como “re-
início com um modelo que prediz a chance de
presentação proporcional com lista aberta”,
que um determinado deputado submeta uma
governa as eleições legislativas. Pesquisadores
emenda orçamentária beneficiando um deter-
têm investigado a versão brasileira da repre-
minado município. Em seguida, testo a eficácia
sentação proporcional com lista aberta, mas a
das estratégias dos candidatos elaborando um
ausência de dados apropriados tem limitado as
modelo dos totais de votos obtidos pelos depu-
pesquisas tanto em termos de escopo como em
tados na eleição legislativa de 1990. Na con-
1
profundidade (cf. De Souza e Lamounier, 1992;
clusão, enfatiso três amplas consequências do
Fleischer, 1973, 1976, 1977; Kinzo, 1987; Lima
comportamento estratégico dos deputados: o
Junior, 1991; Mainwaring, 1993).
afrouxamento do vínculo mandante-mandatá-
Em resumo, é possível que a consolida-
rio entre eleitores e deputados, a intensificação
ção da democracia no Brasil dependa de nossa
dos incentivos para tentativas de obtenção de
compreensão da relação entre estruturas ins-
benefícios políticos e o enfraquecimento dos
titucionais, especialmente o sistema eleitoral,
programas e da disciplina partidários.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
61
Barry Ames
O sistema eleitoral brasileiro
Nas eleições para a Câmara Nacional dos Deputados, cada estado brasileiro é um distrito
único, representativo do conjunto da população e constituído por vários deputados. O número de cadeiras por estado varia de oito a 70.
Estados pouco povoados são sobrerrepresentados; estados muito povoados, principalmente
São Paulo, são sub-representados. As leis eleitorais permitem reeleição ilimitada, e os partidos não podem se recusar a propor novamente
a candidatura de deputados que estão exercendo o mandato. Os eleitores votam, em cédulas
únicas, ou na legenda do partido – nesse caso, seu voto apenas se soma ao total do partido – ou em candidatos individuais. A maioria
vota em indivíduos. Os nomes dos candidatos
não aparecem em lugar nenhum na cédula; ao
invés disso, o eleitor precisa escrever o nome
ou código do candidato. O método D’Hondt determina quantas cadeiras cada partido ganha;
a ordenação individual dos votos determina
quais candidatos recebem as cadeiras.2
Outros países, incluindo a Finlândia e o
Chile pré-1973, adotaram a representação proporcional com lista aberta, mas a versão do
Brasil é diferente em dois aspectos: no Brasil,
Os regulamentos das campanhas brasileiras são, ao mesmo tempo, restritivos e
permissivos. Por exemplo, os candidatos não
podem comprar publicidade no rádio ou na televisão. A maioria dos candidatos publica anúncios em jornais, mas a publicidade impressa
produz pouco impacto (Straubhaar, 1993). Os
candidatos colocam outdoors e cartazes nas
paredes, mas geralmente o fazem em conjunto
com outros esforços de campanha, tais como
participação em comícios ou entrega de obras
públicas a líderes locais. Leis de gastos permissivas possibilitam que candidatos à legislatura
federal financiem as campanhas dos candidatos às assembleias legislativas estaduais. Pelo
fato de que os distritos de assembleias estaduais também abrangem estados inteiros, e os
deputados são eleitos para representar toda a
população do estado, os políticos se engajam
em dobradinhas, nas quais candidatos ao legislativo federal pagam pela literatura de campanha dos candidatos a assembleias cujas bases
de apoio ficam distantes. Os candidatos a assembleias retribuem instruindo os correligionários a votar em seu benfeitor para o legislativo
nacional. Obviamente, tais acordos não acrescentam muito aos vínculos entre os representantes e seus eleitores.
partidos estaduais, não nacionais, selecionam
candidatos legislativos, e o distrito eleitoral (o
estado) é uma arena política importante por si
Uma taxonomia
de padrões espaciais
mesmo. Em alguns estados, governadores poderosos controlam lançamentos de candidatu-
Em termos legais, os candidatos buscam votos
ras e dominam campanhas; em outros, líderes
em todos os lugares dentro de seus estados,
locais entregam blocos de votos a candidatos
mas na realidade a maioria limita suas campa-
dispostos a fazer acordos; em outros ainda,
nhas geograficamente. Os padrões espaciais
nem os governadores, nem os chefes locais têm
resultantes possuem duas dimensões no nível
3
muita influência sobre os votos individuais.
62
estadual, cada uma baseada em desempenho
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
municipal. Suponha que, para todos os can-
dominar seus municípios-chave; aqueles com
didatos em cada município, calculemos Vix , a
médias ponderadas mais baixas compartilham
quota do candidato i de todos os votos dados
seus municípios-chave com outros candidatos.
no município x. Definimos a dominação muni-
Assim, “dominação-compartilhamento” é a
cipal de cada candidato como a quota do can-
primeira dimensão do apoio espacial.
didato dos votos totais dados aos membros de
A segunda dimensão também se inicia
todos os partidos. Essas quotas representam a
com Vix , a quota do candidato i do total de
dominação dos candidatos no nível municipal.4
votos dados em cada município, mas essa di-
Agora, suponha que usemos Vix para calcular
mensão avalia a distribuição espacial dos mu-
D i , a dominação média para cada candidato
nicípios em que o candidato se sai bem. Esses
em todos os municípios do estado, ponderada
municípios podem estar concentrados, como
pela porcentagem dos votos totais do candi-
vizinhos próximos ou contíguos, ou dispersos.
dato fornecida por cada município. Candidatos
A combinação das duas dimensões produz
com médias ponderadas mais altas tendem a
quatro padrões espaciais:
Figura 1 – Distribuição de votos concentrada-dominante:
quota municipal de votos de Laire Rosado Maia, PMDB-RN
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
63
Barry Ames
Municípios concentrados-dominados .
Rosado Maia recebe todos os seus votos nes-
Esse é o clássico “reduto” brasileiro, onde um
sa região e, além disso, outros candidatos
deputado domina um grupo de municípios
raramente ousam competir em seu reduto
contíguos. As famílias dos candidatos podem
impermeável.
ter tradições de poder na região; pode ser que
Municípios concentrados-compartilha-
eles galguem os degraus da política a partir
dos . Em grandes áreas metropolitanas tais
de empregos locais; talvez façam acordos com
como a Grande São Paulo, uma determinada
chefes locais. A Figura 1 mapeia os votos do
coorte de eleitores pode ser suficiente para
deputado Laire Rosado Maia na eleição de
eleger muitos candidatos. Os candidatos da
5
1990, ilustrando concentração extrema. Ro-
classe trabalhadora, por exemplo, frequen-
sado Maia recebeu quase todos seus votos na
temente recebem três quartos de sua vota-
Tromba do Elefante, a seção ocidental do Rio
ção estadual total de um único município, a
Grande do Norte. Os Maias controlam o Oeste
cidade de São Paulo. Mas talvez eles nunca
há tempos – há até uma cidade com o nome
recebam mais do que 5% dos votos dados na
da família. Note que nos locais onde Rosado
cidade ou em qualquer outro município, pois
Maia recebeu votos, ele ganhou uma média de
compartilham esses municípios com muitos
pelo menos 50% de todos os votos. Portanto,
outros candidatos.
Figura 2 – Distribuição de votos dispersa-dominante:
quota municipal de votos de João Alves, PFL-Bahia
80
60
40
20
0
64
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
Municípios dispersos-compartilhados .
Alguns candidatos recorrem a coortes de eleitores cujo apoio é numericamente pequeno
dentro de um único município. Dois exemplos
comuns são os nipo-brasileiros e os evangéli-
Uma teoria sobre
as estratégias dos candidatos
sob a representação
proporcional com lista aberta
cos, protestantes que tipicamente votam em
candidatos evangélicos. Essas coortes são coe-
As estratégias ideais de campanha diferem in-
sas e leais, mas não são muito grandes; assim,
tensamente entre sistemas eleitorais proporcio-
os candidatos que dependem desses eleitores
nais e majoritários. Pelo fato de que pequenas
constroem coalizões compostas de pequenas
fatias do eleitorado podem garantir a vitória
6
fatias de muitos municípios.
nas eleições proporcionais, os candidatos que
Municípios dispersos-dominados . Esse
querem se eleger concentram-se não no eleitor
padrão se ajusta a candidatos que alguma vez
médio, mas em coortes distintas de eleitores
tiveram cargos burocráticos de nível estadual,
(Cox, 1990). Como os candidatos definem essas
como secretário de educação, um cargo que
coortes depende, obviamente, do tamanho dos
tem um potencial clientelista substancial. O pa-
alvos potenciais e do total de votos necessá-
drão também é típico de candidatos que fazem
rio para serem eleitos. As estratégias também
acordos com líderes locais. A Figura 2 apresen-
dependem do custo das campanhas conforme
ta os votos de João Alves, um político baiano
os candidatos se distanciam dos principais
dos velhos tempos, na eleição de 1990. A força
correligionários, da existência de líderes locais
dos votos de Alves se dispersou pelo estado,
procurando por patronagem, da concentração
mas ele recebeu muitos votos nesses locais.
espacial do início das carreiras políticas dos
João Alves conquistou 70-80% dos votos em
candidatos, e da simultaneidade das eleições
municípios tão dispersos fazendo acordos onde
para outros níveis de governo.
quer que encontrasse chefes locais disponíveis.
Alves distribuía benefícios; os chefes retribuíam
com votos. João Alves presidia a Comissão
Orçamentária do Congresso. Em 1993, investigadores do congresso o acusaram de receber
Como os candidatos calculam
os custos e benefícios dos apelos
aos eleitores
dezenas de milhões de dólares em propinas de
construtoras. João Alves chegou ao Congresso
Os candidatos sabem aproximadamente quan-
em 1966 sem dinheiro; no início da década de
tos votos garantem uma cadeira na delegação
1990, possuía milhões de dólares em imóveis e
congressista do seu estado. Esse mínimo de-
um avião de $6 milhões.7
pende do resultado esperado e do número de
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
65
Barry Ames
votos recebidos pelos candidatos mais popula8
cidade e a ser mais deferentes em relação aos
res do seu partido. Dada uma meta de votos,
proprietários. Esses trabalhadores apóiam can-
os candidatos imaginam várias maneiras de
didatos que oferecem benefícios particularistas
construir coalizões vencedoras. Seus cálculos
ao invés de candidatos que prometem fazer a
estratégicos centralizam-se nos custos e be-
reforma social.9
nefícios de apelar a qualquer grupo potencial.
A identificação com a comunidade, es-
Esta seção examina alguns princípios que afe-
pecialmente em pequenas comunidades, acon-
tam os cálculos dos candidatos sob as regras
tece de modo quase automático. Os políticos
eleitorais brasileiras. Esses princípios operam
locais tentam fortalecer a identificação com a
em todo o país, isto é, independentemente de
comunidade porque sua própria influência de-
contextos subnacionais. Em seguida, abordo
pende de conseguir votos para os candidatos. A
aspectos da política brasileira que variam en-
centralidade de cargos governamentais facilita
tre estados.
a mobilização dos eleitores em pequenas co-
Eleitores como membros de grupos po-
munidades, e o fato de a proteção do serviço
litizados. Um candidato racional procura gas-
público restringir-se a posições de baixo nível
tar a menor quantidade de recursos e obter o
politiza os cargos em setores públicos. Devido
maior apoio possível. O alvo ideal é um mem-
ao fato de que as eleições para cargos executi-
bro consciente de si mesmo pertencente a um
vos locais e para cargos legislativos são escalo-
grande grupo que possua uma identificação
nadas, as autoridades locais sabem que estarão
ou queixa politizada. Os nipo-brasileiros, por
no cargo tanto antes como depois das eleições
exemplo, sempre compreendem sua etnia; os
legislativas; assim, são encorajados a fazer
evangélicos sabem que não são católicos. No
acordos com candidatos legislativos.
entanto, os evangélicos têm maior probabili-
A dificuldade de assegurar benefícios pa-
dade de ver a si mesmos como vítimas do que
ra o grupo. Os deputados buscam apoio para
os nipo-brasileiros; assim, o voto evangélico é
suas promessas de campanha no legislativo.
mais unificado. Em ambos os casos, os que es-
Optam por benefícios geograficamente indivi-
tão de fora veem a divisão de maneira menos
dualizáveis, por programas clientelistas, quan-
intensa; portanto, os candidatos podem ga-
do o sistema decisório é fragmentado e a de-
nhar o voto dos evangélicos sem perder todos
manda por bens públicos é alta, relativamente
os católicos.
estável e específica de um distrito (Lowi, 1964;
No extremo oposto, em termos de per-
Salisbury e Heinz, 1970). O Brasil se caracteriza
manência e politização de identificações, estão
por ter estados poderosos que agem de acordo
os grupos ocupacionais. Para os trabalhadores
com seus próprios interesses, seleção de candi-
industriais, a consciência de classe depende da
datos ao congresso no nível estadual, municí-
natureza do processo de produção, dos salários
pios que elegem governos locais independente-
e da organização do trabalho. Os trabalhado-
mente, lideranças fracas de partidos nacionais
res de fábricas pequenas, especialmente no se-
e separação de poderes entre o presidente e o
tor informal, tendem a ser mais jovens, menos
legislativo federal. Ademais, enormes desigual-
qualificados, a ter chegado há menos tempo na
dades regionais deixam alguns municípios tão
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
pobres que empregos governamentais e subsí-
intermediário oferecem dinheiro ou uma fatia
dios são fontes cruciais de renda. Assim, a polí-
do benefício assegurado, como um contrato
tica brasileira favorece a provisão de benefícios
para construir uma rua. Se o intermediário er-
locais, geograficamente separados.
guer com sucesso barreiras rígidas contra a en-
Os custos e benefícios das barreiras que
trada de outros intermediários, os candidatos
impedem a entrada. Os deputados procuram
pagarão mais pelos votos do intermediário do
isolar as coortes de eleitores das incursões
que a soma dos valores que pagariam por ca-
de competidores porque sabem que as bar-
da voto individualmente. Se, pelo contrário, o
reiras que impedem a entrada, eliminando a
intermediário não conseguir proteger seu ter-
competição, reduzem o custo das campanhas.
ritório, os candidatos pagarão um valor total
A dificuldade de erguer barreiras depende da
mais baixo por esses votos do que seus valores
natureza do grupo a ser blindado. Aumentos
individuais. Qualquer que seja o valor e a for-
salariais, por exemplo, requerem amplas coali-
ma de pagamento, a remuneração dos inter-
zões legislativas; portanto, é difícil para qual-
mediários exige que os candidatos garantam
quer pessoa reivindicar crédito exclusivo. As
recursos individualizáveis.
barreiras contra forasteiros étnicos, por outro
lado, são essencialmente automáticas, mas
são mais dispendiosas para erguer contra outras etnias que pertençam ao grupo.
O custo da comunicação
com eleitores potenciais
É difícil erguer barreiras ao redor de localidades específicas? Um simples “Você não
Fazer campanhas no Brasil é uma atividade
é daqui” blinda uma comunidade pequena e
direta, realizada junto ao povo.10 Os candi-
altamente integrada. Violência, sob a forma de
datos visitam pequenas comunidades, fazem
interrupção de comícios ou ameaças físicas, é
reuniões e realizam comícios. É racional fazer
rotineira em áreas rurais. Comunidades mais
campanha em locais em que sua mensagem
diversas desenvolvem competição entre fac-
atinge poucos eleitores? Na verdade, é. Em
ções, na qual cada lado conta com correligioná-
primeiro lugar, quanto mais concentrado for
rios fortemente partidários. Em áreas urbanas
o grupo-alvo, menor será o custo de construir
complexas, nenhuma facção ou líder controla
uma coalizão vencedora. Em segundo lugar,
uma parcela significativa do eleitorado, e a
coalizões eleitorais que cobrem pequenas
polícia não deve favores a políticos individuais.
áreas têm grande probabilidade de ser locacio-
Muitos candidatos tentam conseguir votos e as
nais, isto é, baseadas puramente na identifica-
barreiras contra forasteiros de qualquer partido
ção com a comunidade. Embora teoricamente
são difíceis de manter.
os critérios locacionais e não-locacionais com-
Suponha que um intermediário controle
binem perfeitamente (todos os habitantes do
o acesso a um grupo de eleitores. Esse contro-
Sul são negros, todos os habitantes do Norte
le deriva de alguma combinação entre coerção
são brancos), existem poucos casos como
e distribuição anterior de empregos ou servi-
esse no Brasil. Assim, a distância física entre
ços. Deputados tentando obter os votos do
um candidato e o último eleitor, o eleitor cujo
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
67
Barry Ames
apoio garante a vitória, é quase sempre menor
11
para coalizões locacionais.
muitos candidatos locais, concorrer ao legislativo federal é a primeira atividade política que
O suprimento de políticos. As trajetórias
abrange todo o estado. Como os candidatos lo-
das carreiras dos candidatos restringem suas
cais começam com um único pico de reconhe-
estratégias de campanha e padrões de votos.
cimento de seus nomes, uma campanha con-
Candidatos locais, isto é, ex-prefeitos ou verea-
centrada é a escolha óbvia. Mas suponha que o
12
dores, sempre existirão em abundância. Exce-
candidato tenha chefiado um departamento do
to aqueles cujas carreiras estão enraizadas em
governo que administrava ruas ou escolas. Cer-
grandes áreas metropolitanas, os candidatos
tamente, os burocratas que estiverem conside-
locais naturalmente desenvolvem distribuições
rando a carreira política alocariam projetos de
concentradas, pois o reconhecimento de seu
modo a obter vantagens políticas, e tais can-
nome diminui conforme a distância em relação
didatos se tornariam conhecidos nas comuni-
ao seu emprego local aumenta. O que acontece
dades que se beneficiam da sua generosidade.
quando aparecem candidatos que trabalharam
Assim, o apoio dos votos de tais candidatos de-
na burocracia do estado, ou candidatos sem
veria ser disperso ao invés de concentrado. Se
história política? Não é uma pergunta simples,
eles dominarão ou compartilharão municípios
pois em qualquer eleição, o mix de carreiras
depende do município-alvo e do programa que
dos candidatos depende de dois conjuntos de
dirigiram. Nas comunidades rurais, a domina-
fatores. Um conjunto (que pode ser chamado
ção pode resultar do fato de que um único pro-
de endógeno) depende do contexto da própria
grama afeta muitas pessoas intensamente ou
eleição, no sentido de que as novas candidatu-
do programa ter sido elaborado para comprar o
ras dependem da distribuição inicial dos candi-
apoio de pessoas influentes locais, ao invés de
datos que estão exercendo seus mandatos. Por
eleitores individuais.13 Comunidades urbanas
exemplo, em locais em que os custos do trans-
absorvem múltiplos programas – muitas vezes,
porte são altos, onde o reconhecimento do no-
dirigidos por políticos rivais – e os eleitores não
me do candidato em todo o estado é baixo, on-
são tão facilmente controlados. Finalmente,
de há pouca concentração de trabalhadores ou
suponha que a carreira do candidato seja na
de etnias e onde os eleitores preferem candi-
área de negócios. As pessoas dessa área talvez
datos com experiência política municipal, ape-
comecem com algum pico de reconhecimento
nas os tipos locais se oferecem. Mas o mix de
central ao redor da localização do seu negó-
carreiras dos candidatos também depende de
cio, mas tais picos raramente são tão grandes
um segundo conjunto de fatores, exógeno no
quanto os dos políticos locais. Sua vantagem
sentido de que novas candidaturas respondem
é o dinheiro: camisetas, panelas de pressão (a
às oportunidades e recompensas da atividade
metade inferior dada antes da eleição, a meta-
legislativa. Pessoas com formações diferentes
de superior depois) e empregos políticos para
tornam-se candidatos porque buscam extrair
os eleitores. O dinheiro compra os chefes po-
recompensas pessoais da atividade legislativa.
líticos que controlam os eleitores, e o dinheiro
Meu argumento é simples: em campa-
engraxa as dobradinhas entre os candidatos às
nhas, o que você fez afeta o que você faz. Para
assembleias legislativas estaduais e à Câmara
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
Federal. Portanto, para os executivos, o apoio
devem procurar votos em território inimigo. E
disperso produz resultados: o candidato estra-
como os municípios compartilhados são mais
tégico da área de negócios compra o apoio on-
vulneráveis do que os dominados, a dominação
de quer que ele esteja disponível.
e também a concentração devem diminuir para
Neste ponto, é necessário distinguir entre
os candidatos locais.
desafiantes e titulares dos cargos. Suponha que
Mudanças na concentração espacial tam-
um político local desafie o titular em um redu-
bém ocorrem entre candidatos não locais. Os
to concentrado-dominante. Superficialmente, o
principais círculos eleitorais dos candidatos que
desafio lembra uma disputa por uma cadeira
dependem de distribuições dispersas – evangé-
ocupada na Câmara do Deputados dos EUA,
licos, apresentadores de TV e burocratas do es-
mas, na verdade, é mais difícil. Redutos locais
tado – são relativamente estáveis em tamanho;
geralmente são esparsamente povoados. Se o
portanto, tais candidatos precisam de novos
desafiante conseguir apenas 51% dos votos
seguidores. Como um pouco dos benefícios que
do titular, o confronto levará à derrota mútua.
esses deputados dão aos seus principais correli-
Como os benefícios são mais importantes do
gionários beneficia outros nos mesmos municí-
que a política nacional, nem os chefes locais,
pios, e como os deputados economizam recur-
nem os eleitores querem substituir um deputa-
sos permanecendo perto de seu apoio principal,
do que os tenha beneficiado. Disputas locais,
sua concentração espacial deve aumentar.
portanto, são tão difíceis que raramente ocor-
Os homens de negócios inicialmente
rem.14 A menos que o titular negligencie o dis-
compram votos dando propinas para chefes
trito ou enfureça o chefe local, os desafiantes
locais, mas uma vez na legislatura, é provável
terão que esperar alguém se aposentar.
que busquem apoio mais popular para preen-
O que devemos esperar dos próprios ti-
cher o espaço entre as áreas onde são fortes. A
tulares locais? Dada a baixa frequência de de-
concentração entre candidatos bem-sucedidos
safios diretos em seus redutos, os locais têm
que são homens de negócios aumenta. Maior
medo principalmente de uma queda no voto
concentração, contudo, pode não produzir
partidário agregado. Se diminuir suficiente-
maior sucesso eleitoral. O apoio eleitoral de
mente, a mesma classificação pós-eleição pode
candidatos da área de negócios é mais incons-
não garantir uma cadeira. Assim, os titulares
tante do que o apoio recebido por políticos
locais têm que caçar novos eleitores ou nos
locais. Ofertas melhores fazem a lealdade dos
redutos de colegas de partido ou nos redutos
chefes oscilar em direção a quem oferece o
de titulares de outros partidos. A identifica-
lance mais alto. Assim, os homens de negócios
ção partidária no Brasil é fraca; os deputados
enfrentam incentivos contraditórios. Embora
atraem facilmente eleitores de outros partidos.
as oportunidades sejam claramente melhores
Como a representação proporcional recompen-
para candidatos não limitados por carreiras lo-
sa totais partidários mais altos com cadeiras
cais, os homens de negócios podem perder o
adicionais, os líderes dos partidos não enco-
apoio tão rapidamente quanto o ganham. Os
rajam a caça furtiva nos redutos de partidos
negócios fornecerão muitos candidatos novos,
aliados. Resumindo, os candidatos brasileiros
mas os titulares da área de negócios serão
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Barry Ames
mais vulneráveis à derrota eleitoral do que can-
votos recebidos pelo deputado em 1986; (3)
didatos com outras trajetórias.
a vulnerabilidade do município X à invasão de
candidatos; (4) a similaridade socioeconômica
e demográfica de X em relação ao eleitorado
Análise
As linhas gerais do argumento devem manter-se ou cair por terra no terreno empírico.15 A
análise se inicia com um modelo de estratégia
de campanha que utiliza emendas orçamentárias como indicadores da intenção do candidato. A seção a seguir incorpora emendas
orçamentárias a um modelo de resultados eleitorais reais.
principal; (5) a insegurança eleitoral do deputado; (6) a trajetória da carreira do deputado.
Distância do centro da votação obtida
em 1986. O “centro da votação” obtida por cada deputado titular em 1986 é medido de duas
formas.17 O centro municipal, Cm, está baseado na dominação municipal – a porcentagem
da votação total recebida pelo deputado i em
cada município. O centro pessoal, Cp, se baseia
na quota pessoal – a porcentagem do total estadual do deputado i recebido em cada município. Calculo a distância de cada município do
Estratégia de campanha
na eleição de 1990
estado em relação a Cm e Cp. Conforme os municípios ficam mais distantes, o reconhecimento do nome diminui e o custo da campanha
aumenta; municípios distantes possuem menor
Os deputados submetem emendas orçamen-
probabilidade de serem alvos do deputado i.
tárias para reter antigos seguidores e atrair
Ao mesmo tempo, deputados com centros pes-
novos. O Congresso não recuperou o direito
soais de votação em municípios nos quais não
constitucional de modificar o orçamento nacio-
dominam (tipicamente, grandes cidades) têm
nal até 1988, mas os deputados aprenderam
probabilidade de fazer emendas mais longe de
rapidamente. Entre 1989 e 1992, o número
seus centros pessoais porque compartilham o
anual de emendas orçamentárias subiu de
município central com tantos outros candidatos
8.000 para 72.000, e mais de 90% foram di-
que reivindicar o crédito é impossível.18
recionadas a municípios específicos. O modelo
Dominação e concentração. Mais acima,
avalia, para cada município, a probabilidade
defini dominação e concentração como carac-
de que um deputado concorrendo à reeleição
terísticas dos deputados medidas no nível do
submeta uma emenda orçamentária.16 Espe-
estado como um todo. Contudo, a dominação
cificamente, a probabilidade de que um depu-
também é significativa no nível municipal.
tado que esteja concorrendo à reeleição em
Um deputado poderia dominar municípios
1990 tenha submetido uma emenda em 1989
menores, por exemplo, mas compartilhar mu-
ou 1990 direcionada ao município X é uma
nicípios maiores com outros. Apenas a domi-
função de seis fatores: (1) a distância de X do
nação no nível municipal deve afetar a reali-
centro da votação obtida pelo deputado em
zação de emendas.19 Quanto maior o nível de
1986; (2) a dominação e a concentração dos
dominação em um município, mais o deputado
70
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A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
pode reivindicar crédito por esforços clientelis-
dos votos da classe trabalhadora procurariam
tas e, portanto, mais emendas orçamentárias
municípios industriais. Deputados que apelam
ele ou ela submeterão. Quando a dominação
para funcionários públicos deveriam fazer isso
atinge níveis muito altos, o deputado tem uma
em localidades nas quais há muitos cargos go-
“cadeira segura” (como no velho Sul norte-
vernamentais. Assim, os deputados procuram
-americano, que só possuía um partido); assim,
novos alvos que tenham composição socioeco-
as emendas devem diminuir.
nômica semelhante à dos antigos redutos. Ini-
Candidatos cujo apoio foi concentra-
cio definindo, com base na participação nos
do em 1986 devem fazer mais emendas, pois
votos e na dominação municipal, o município
são vulneráveis às incursões de candidatos
principal de cada deputado.21 Em seguida, cal-
com carreiras burocráticas ou na área de ne-
culo a diferença entre cada município e o mu-
gócios. Candidatos concentrados saem de
nicípio principal em relação a três indicadores
suas bases originais em círculos relativamen-
socioeconômicos: tamanho do eleitorado, ren-
te concêntricos. Têm que ser menos seletivos
da per capita e porcentagem da força de tra-
do que os candidatos com votos dispersos,
balho empregada pelo governo. Os primeiros
pois escolhem alvos não apenas pelo critério
dois indicadores refletem a possibilidade de
da vulnerabilidade, mas também do critério de
busca de votos baseada em classes, enquan-
proximidade de seu próprio centro. Como re-
to o terceiro representa um interesse bem-
sultado, candidatos concentrados apresentam
-organizado. Como no Brasil, em geral, apelos
“emendas demais”.
à classe social não rendem frutos, os funcioná-
Vulnerabilidade municipal. Os desafian-
rios do governo são o alvo mais provável. Para
tes têm poucos incentivos para invadir muni-
cada indicador, os municípios mais parecidos
cípios dominados por titulares fortes que bus-
com o município principal do deputado devem
cam a reeleição. Mas as condições mudam;
receber mais emendas.22
os municípios tornam-se permeáveis. Um de-
Insegurança eleitoral. Sabemos que os
putado dominante se aposenta, deixando um
votos individuais determinam, em grande me-
vazio eleitoral. Um influxo de migrantes sina-
dida, a sorte dos deputados nas eleições. Aque-
liza um eleitorado livre do controle de velhos
les cuja posição em 1986 foi baixa, que esca-
líderes e antigas lealdades. A invasão é en-
param por pouco da eliminação, trabalharão
corajada pela fragmentação municipal, ou no
mais na próxima eleição. Seu número total de
sentido de que muitos candidatos de um único
emendas aumentará.
partido compartilham votos ou no sentido de
Trajetória da carreira. Devido ao fato de
que candidatos de muitos partidos obtêm su-
que políticos locais têm maior probabilidade
cesso eleitoral.
20
de manter vínculos próximos com os eleitores
Paridade social. Se os titulares identi-
do que políticos com carreiras burocráticas ou
ficam certos grupos ocupacionais ou étnicos
na área de negócios, os candidatos locais devem
como correligionários-chave, devem visar
apresentar mais emendas. Os locais também
novos municípios onde grupos semelhantes
devem concentrar suas campanhas, incluindo
estão presentes. Deputados que dependem
suas emendas orçamentárias, mais perto de suas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
71
Barry Ames
casas. Candidatos com carreiras burocráticas e
Interpretação. Em cada estado ou grupo
na área de negócios dispersam as atividades de
de estados, o modelo atingiu um alto nível de
campanha, comprando apoio onde implantaram
significância estatística; portanto, os resultados
projetos e onde identificam municípios vulnerá-
empíricos sustentam bem a teoria de maneira
veis. Candidatos de famílias com longa tradição
geral.26 Em termos dos elementos específicos
em política devem ser mais propensos ao clien-
da teoria, primeiramente consideraremos os
23
argumentos confirmados em todas ou quase
telismo, fazendo mais emendas.
Agrupamento e estimativa. A estimativa
teve início com observações no nível dos depu-
todas as seis configurações, seguidos das hipóteses que não conseguiram apoio consistente.
tados; isto é, todos os deputados que serviram
Em todos os lugares, a dominação munici-
em 1986 e concorreram à reeleição em 1990.
pal estimulou fortemente a realização de emen-
Em seguida, agrupei os deputados por estado,
das. Quanto maior a porcentagem de votos de
e em dois casos – seis pequenos estados nor-
um município o deputado tivesse recebido em
destinos e três estados do Sul – agrupei depu-
1986, maior a probabilidade de aquele deputa-
tados em grupos de estados. Esse agrupamento
do buscar mais apoio no mesmo local em 1990.
de muitos estados, que aumentou substancial-
A inclinação negativa no termo ao quadrado
mente o número de observações, combina es-
significa que os deputados em algum momen-
tados que são semelhantes em tamanho, con-
to consideraram um município como “fecha-
24
dições econômicas e tradições políticas.
do”, não merecendo nenhum esforço adicional.
Como o número de emendas em cada
Em outras palavras, a diminuição dos retornos
município não pode ser menor do que zero,
acontecia, mas os verdadeiros pontos de infle-
e como a maioria dos deputados faz poucas
xão estavam além de quase todos os casos.
emendas em qualquer município em particular,
A teoria argumentava que os municípios
as estimativas de mínimos quadrados não são
vulneráveis, aqueles com altas proporções de
apropriadas. Experimentei um modelo de
migrantes ou com altos níveis de fragmentação
Poisson de contagem de eventos, mas os re-
partidária, seriam alvos de campanha. Somente
sultados revelaram algumas irregularidades
nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo
estatísticas, então distribuí os dados sobre as
(onde o sinal estava correto), os municípios com
emendas em uma variável dicotômica e imple-
muitos migrantes não atraíram deputados. O
25
A Tabela 1
desvio do Rio e a fragilidade de São Paulo pro-
apresenta os resultados simplificados para
vavelmente se originam da alta proporção de
seis estados ou grupos de estados: Bahia, os
migrantes nas próprias cidades do Rio e de São
seis pequenos estados do Nordeste, Minas Ge-
Paulo. Como muitos deputados recebem votos
rais, Rio de Janeiro, São Paulo e os três esta-
nesses locais, nem mesmo uma alta proporção
dos do Sul. Os resultados completos, incluindo
de migrantes consegue fazer essas cidades se-
coeficientes e erros-padrão, estão disponíveis
rem atrativas como alvos de emendas, embora
aos interessados.
elas atraiam outras táticas de campanha.
mentei uma regressão logística.
72
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
Tabela 1 – O deputado submeterá
uma emenda orçamentária a um município?
Estimativa Logit
Características municipais e individuais
Distância do centro municipal
Distância municipal ao quadrado
Distância do centro pessoal
Distância pessoal ao quadrado
Dominância municipal
Dominância municipal ao quadrado
Concentração
Nordeste
Minas
Gerais
Rio de
Janeiro
São
Paulo
Sul
–
–
+
+
+
+
+
+
+
+
–
–
–
Predição
Bahia
–
–
+
–
–
+
+
+
+
+
+
+
+
–
–
–
–
–
–
–
+
+
+
–
Porcentagem de votos a deputados aposentados
+
+
Porcentagem de migrantes
+
+
–
Paridade ao município principal:
distribuição de renda
?
Paridade ao município principal:
funcionários do governo
–
–
Paridade ao município principal: população
?
+
Fragmentação interpartidária
+
+
+
+
+
+
+
+
+
+
+
+
+
–
–
+
–
–
–
–
–
–
+
+
Fragmentação intrapartidária
+
Classificação na lista do partido em 1986
+
Carreira local
+
–
Carreira local x Distância municipal
–
+
–
+
–
+
Carreira local x Distância pessoal
–
–
+
–
+
–
Família política
+
N=
+
–
6666
3841
+
+
–
+
9106
1536
7410
6841
+ significa um coeficiente positivo, significativo no nível 0,10.
– significa um coeficiente negativo, significativo no nível 0,10.
Todas as razões de verossimilhança são significativas no nível 0,0001.
Altos níveis de fragmentação partidária,
alto nível de dominação em 1986. Em 1990, o
tanto interpartidária quanto intrapartidária,
PMDB iria inevitavelmente escorregar; assim,
aumentam, em todos os lugares, as chances
sobreviver significava caçar os eleitores de
de os candidatos focalizarem um dado muni-
companheiros de partido.
cípio. Em Minas Gerais e São Paulo, apenas a
Os deputados que ficaram em posições
fragmentação intrapartidária aumentou a rea-
baixas nas listas pós-eleição de seus partidos
lização de emendas pelos candidatos. Nesses
em 1986 certamente tinham motivos para
dois estados, o Partido do Movimento Demo-
se sentir vulneráveis. Em todos os estados,
crático Brasileiro, PMDB, havia conquistado um
com exceção do Rio de Janeiro, deputados
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
73
Barry Ames
com baixa classificação (baixas classificações
de referência da campanha. Ao invés disso, os
recebem pontuações mais positivas) realizaram
deputados focam suas campanhas onde rece-
significativamente mais emendas do que seus
bem a maior parte de seus totais pessoais.
colegas cuja classificação foi alta. No Rio, a re-
Apenas na Bahia as emendas orçamentá-
lação foi positiva, mas muito abaixo da signi-
rias não têm relação com a distância dos muni-
ficância estatística. É bastante provável que a
cípios em relação ao apoio principal dos candi-
fragilidade da relação vulnerabilidade-realiza-
datos. Por que a Bahia é excepcional? Conside-
ção de emendas no Rio se origine da importân-
re o contexto político. O governador da Bahia,
cia demográfica da capital, combinada com sua
Antônio Carlos Magalhães (popularmente co-
falta de atratividade como alvo de emendas.
nhecido como ACM) é tão poderoso que pode
À primeira vista, as hipóteses da distância
mandar os candidatos fazerem campanha em
não parecem ter sido confirmadas. Uma inves-
determinados municípios. A máquina de ACM
tigação mais detalhada, contudo, revela que a
foi construída sobre seus vínculos com o antigo
realização de emendas reflete a distância dos
regime militar, vínculos que garantiram à Bahia
municípios em relação ao apoio principal dos
uma considerável generosidade federal. ACM e
deputados na maioria dos casos. Minas Gerais
seus aliados na burocracia estatal colheram os
e os seis estados do Nordeste corroboram o
lucros políticos, e deputados com carreiras bu-
argumento original (“realizam menos emen-
rocráticas no nível estadual continuam a domi-
das conforme a distância do centro municipal
nar a delegação da Bahia no Congresso. Ape-
aumenta”).27 No Rio, em São Paulo e nos três
nas um em cada oito deputados baianos tem
estados do Sul, os deputados diminuíram suas
um passado local – o segundo menor número
campanhas como função da distância de cada
em qualquer estado – e deputados puramente
município em relação ao centro de seu apoio
locais são fracos. Deputados baianos não locais
pessoal, ao invés do centro da sua dominação
tendem a ter distribuições de votos dominan-
28
municipal. Por que a variação? Em Minas e
tes-dispersas; assim, suas emendas são neces-
no Nordeste, o nível médio da dominação mu-
sariamente espalhadas. De certo modo, o con-
nicipal é muito mais alto do que em qualquer
ceito de centro de votos significa pouco para
outro lugar; os deputados mineiros e nordes-
tais deputados; eles lidam com os chefes locais
tinos conseguem quotas substanciais de seus
onde quer que haja algum disponível.
totais pessoais nos locais que dominam. Essas
E as variáveis que medem a paridade
localidades permanecem cruciais para eles e fi-
social de cada município em relação aos elei-
cam próximas de suas casas. No Rio, em São
torados principais dos deputados? Se os de-
Paulo e no Sul, o nível médio de dominação (a
putados recorrem a eleitorados que lembram
porcentagem obtida pelo deputado dos votos
aqueles onde se saem bem, as emendas devem
totais do município) é menor do que a metade
diminuir conforme a distância social aumenta.
do nível conquistado por deputados mineiros e
Os funcionários do governo são um eleitora-
nordestinos. Com níveis baixos de dominação,
do importante para muitos deputados, e tais
reivindicar crédito é mais difícil; portanto, o
deputados realmente parecem procurar muni-
centro da dominação municipal não é o ponto
cípios semelhantes: três estados ou grupos de
74
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
estados obtiveram resultados significativos na
razões demográficas, não históricas. O Rio tem
direção esperada; apenas São Paulo teve o si-
apenas 65 municípios para servir de trampo-
29
nal errado.
lins para seus 46 deputados (1,41 municípios
As outras variáveis de paridade social
por deputado), enquanto a Bahia tem 8,6 mu-
demonstram que os apelos ideológicos são
nicípios por deputado. Faltam oportunidades
real mente raros no Brasil. Semelhanças em
aos candidatos locais do Rio, mas como não
distribuição de renda e população produziram
enfrentam nenhuma máquina coerciva, são li-
resultados imateriais e inconsistentes.30 Além
vres para competir com candidatos estaduais
disso, se os deputados buscam alvos em bases
através da submissão de um grande número
ideológicas, a paridade social deve ser mais
de emendas. São Paulo tem um número subs-
forte nas regiões mais desenvolvidas do país.
tancial de candidatos locais, mas entre 1987 e
Rio, São Paulo e o Sul, contudo, não produziram
1990, muitos desertaram do PMDB, o partido
resultados mais consistentes do que o Nordes-
dominante. Os desertores tiveram que lidar
te, a Bahia e Minas Gerais. O resultado negati-
com a máquina poderosa do PMDB de Orestes
vo é importante: isto é, a maioria dos deputa-
Quércia, que enviou candidatos para os redutos
dos vê as características sociais e ideológicas
eleitorais desses candidatos. Mas a máquina
dos municípios como fatores menores em sua
não tinha poder para manter seus oponentes
decisão de usar a política do clientelismo como
dentro de seus redutos; assim, a expansão foi
uma ferramenta de campanha.
sua estratégia ideal.
Considere agora as hipóteses que não
A política no Sul e no Nordeste reflete
se confirmaram de maneira consistente. A teo-
contextos históricos distintos. No Sul, as legen-
ria original previa, embora de forma hesitante,
das partidárias são significativas, nenhum go-
que candidatos com carreiras na política local
vernador tem a hegemonia de um ACM, a con-
realizariam mais emendas do que aqueles com
centração espacial é intensa e os candidatos
carreiras burocráticas ou na área de negócios.
locais dominam. Os candidatos que não pos-
Apenas no Rio e em São Paulo a hipótese foi
suem base local lutam para encontrar apoio;
confirmada, e na Bahia e no Sul, os candida-
assim, os políticos locais sabiamente permane-
tos locais realizaram menos emendas. Essas
cem em seus redutos eleitorais, fazendo menos
diferenças não são simplesmente funções da
emendas. O Nordeste e Minas Gerais apoiam
dominação dos candidatos com origens locais,
níveis intermediários de candidatos locais; os
pois o Sul e Minas possuem a mais alta por-
locais não lutam, como fazem na Bahia e no
centagem de candidatos locais, ao passo que a
Rio, e não dominam, como no Sul.
Bahia e o Rio possuem a mais baixa. As táticas
Originalmente, eu esperava que os polí-
dos candidatos locais dependem de contextos
ticos locais simplesmente realizariam menos
históricos. A Bahia, por exemplo, tem poucos
emendas conforme se distanciassem de suas
candidatos locais, e aqueles que se aventuram
bases. Ao invés disso, os resultados fornecem
a sair de seus redutos eleitorais correm o risco
uma comparação instrutiva com nossas medi-
de incorrer na ira de ACM. O Rio tem ainda me-
das de distância, isto é, as variáveis que me-
nos candidatos locais do que a Bahia, mas por
dem mudanças no comportamento de todos os
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
75
Barry Ames
deputados em relação à realização de emen-
O argumento original sugeria que os
das, independentemente de suas carreiras
candidatos com apoio espacialmente concen-
políticas. Na Bahia, no Sul e em Minas Gerais,
trado iriam realizar muitas emendas para com-
os deputados locais aumentam a realização
pensar suas bases de votos geograficamente
de emendas conforme se distanciam dos mu-
restritas. Apenas na Bahia e no Nordeste a hi-
nicípios onde são mais dominantes, mas dimi-
pótese provou ser correta. Talvez o argumento
nuem a realização de emendas conforme se
falhe porque concentração é frequentemente
distanciam dos municípios onde obtêm a maior
relacionada à dominação; isto é, o que real-
parte de seus votos. As capitais, nesses casos,
mente importa é a dominação local, e não a
possuem pouca importância nos eleitorados to-
contiguidade espacial dos votos. Como resul-
tais dos estados; poucos centros pessoais são
tado, a variável dominação (que confirmou
encontrados em cidades nas quais a presença
a previsão em todos os casos) simplesmente
de muitos deputados desencoraja a reivindica-
subjuga a concentração. O caso da Bahia mais
ção de créditos. Para a maioria dos deputados,
uma vez reflete o poder da máquina política
portanto, faz sentido permanecer perto dos lo-
desse estado. A máquina desencoraja os can-
cais que contribuem com a maior parte de seus
didatos em relação a deixar suas bases; assim,
votos. No Nordeste e no Rio, no entanto, as
eles realizam muitas emendas para aumentar
capitais têm muito mais peso nos eleitorados
a dominação local.
totais dos estados, e mais candidatos possuem
Finalmente, por que os deputados de
centros pessoais exatamente nessas capitais.
famílias políticas não conseguem se destacar?
Mas como essas capitais são o lar de muitos
Suspeito que o aprendizado político é muito
deputados, elas desencorajam a reivindicação
rápido. Sendo membros de famílias políticas
de crédito, e os candidatos locais são forçados
ou não, os deputados aprendem táticas de
a fugir em busca de novos eleitores.
campanha rapidamente. É interessante notar
As aposentadorias (avaliadas pela por-
que membros das famílias políticas do Nor-
centagem dos votos recebida em 1986 por
deste realizaram significativamente menos
candidatos que não concorreram em 1990)
emendas do que os nordestinos sem laços de
estimularam mais emendas somente na Bahia.
família. Tais laços são muito mais importantes
No Sul, as emendas na verdade diminuíram
no Nordeste do que em qualquer outro lugar;
onde as aposentadorias libertaram mais elei-
cerca de 30% de todos os deputados nesses
tores. Isso não era esperado, pois nas minhas
estados têm parentes na política, em compara-
entrevistas, os deputados do Sul mencionaram
ção a menos de 10% no Sul. Famílias políticas
municípios que haviam se tornado vulneráveis
no Nordeste frequentemente significam fazer
devido a aposentadorias. Talvez o problema
acordos à moda antiga, não populismo; políti-
tenha sido falta de sincronia: quando os de-
cos nordestinos tradicionais fazem menos por
putados ofereceram essas emendas em 1988
seus eleitores – especialmente em termos de
e 1989 (para os orçamentos de 1989 e 1990),
assistência social – e mais pelos chefes locais.
talvez não soubessem quem estava planejando se aposentar.
76
Recapitulação . As estratégias de campanha dos deputados brasileiros no nível
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
municipal respondem fortemente à dominação
emendas feitas por outros deputados, são ago-
local, à vulnerabilidade à invasão de alvos po-
ra variáveis explicativas. Finalmente, o modelo
tenciais, à sua própria fragilidade eleitoral e a
inclui (para investigar o realinhamento partidá-
suas carreiras anteriores. Mas a ausência de es-
rio) variáveis que medem o ganho de candida-
forços de campanha em comunidades sociolo-
tos de partidos aliados.31
gicamente semelhantes aos principais círculos
O modelo de resultados funciona bem e
eleitorais dos deputados (exemplificada pela
explica mais de 50% da variação na votação de
fraqueza das variáveis de paridade social) con-
1990 dos candidatos em todos os lugares, com
firma a impressão de que poucos deputados
exceção de São Paulo. 32 Os votos recebidos
buscam votos seguindo linhas ideológicas. A
em 1986 foram os preditores mais poderosos.
ausência de programas de partido e a fragilida-
Esse resultado seria esperado na maioria das
de da disciplina partidária fazem com que tais
sociedades, mas, aqui, contradiz a sabedoria
apelos, exceto para o Partido dos Trabalhado-
convencional do Brasil, segundo a qual a im-
res, sejam improdutivos.
popularidade dos deputados faz com que ter
exercido um mandato seja uma desvantagem.
Fazer campanha é importante. Na Bahia, no
O comportamento estratégico
compensa eleitoralmente?
Nordeste, em Minas Gerais e no Sul, as emendas aumentaram os votos. 33 As emendas fizeram a diferença no Rio de Janeiro e em São
As táticas dos nossos deputados em busca de
Paulo também, mas apenas para deputados
votos dão certo? A Tabela 2 estima um modelo
mais dominantes, isto é, as emendas nesses
de “resultados”. É semelhante ao modelo de
estados tornaram-se mais importantes à medi-
“estratégia”, mas com importantes acrésci-
da que a dominação municipal aumentou. Os
mos. O modelo de resultados incorpora a vota-
municípios no Rio e em São Paulo são, em sua
ção de 1986 como um preditor da votação de
maior parte, competitivos, com poucos deputa-
1990. Também avalia os efeitos da dominação
dos dominantes. Em lugares em que os depu-
total (nível estadual) – além da dominação no
tados compartilham votos com muitos outros
nível municipal – para descobrir se certos ti-
(como nas capitais), as emendas são fúteis,
pos de deputados foram mais bem-sucedidos.
mas à medida que a dominação aumenta, elas
As emendas de cada deputado, junto com as
fazem mais sentido.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
77
Barry Ames
Tabela 2 – O que determina o sucesso eleitoral?
Estimativa OLS dos resultados da eleição de 1990
Características municipais, individuais e eleitorais
Votação em 1986
Bahia
Nordeste
Minas
Gerais
Rio de
Janeiro
São
Paulo
Sul
+
+
+
+
+
+
+
+
–
+
–
Emendas por deputado (registradas)
+
+
+
Emendas* dominância municipal
+
+
+
Emendas realizadas por outros deputados
–
–
–
+
Distância do centro municipal
–
Distância do centro pessoal
Dominância estadual em 1986
Dominância municipal em 1986
Dominância municipal ao quadrado
+
+
+
–
+
–
+
–
Concentração em 1986
+
Fragmentação interpartidária em 1986
+
Fragmentação intrapartidária em 1986
Paridade ao município principal: Distribuição de renda
+
Paridade ao município principal: Funcionários do governo
–
Paridade ao município principal: População
Classificação na lista do partido em 1986
+
+
+
–
–
–
–
–
–
–
+
+
Ganho dos partidos aliados - 1986
+
+
+
Candidato PFL-PDS
+
+
+
+
Carreira local
Candidato PMDB ou de esquerda
+
+
Família política
+
+
Família política* dominância municipal
+
+
+
+
+
–
–
R2 =
53%
57%
53%
53%
20%
56%
N =
8040
6629
13740
1536
16530
8803
+ significa um coeficiente positivo, significativo no nível 0,05.
– significa um coeficiente negativo, significativo no nível 0,05.
Todos os testes F para o modelo inteiro são significativos no nível 0,05.
Emendas realizadas por outros deputados deveriam diminuir a votação de um de-
A hipótese falhou no Rio e em São Paulo pelas
mesmas razões que vimos acima.34
putado, pois tais emendas significam que os
Deputados dominantes ganharam mais
oponentes também focalizaram o mesmo mu-
votos do que aqueles com distribuições com-
nicípio. Exceto no Rio e em São Paulo – onde as
partilhadas, mas a concentração ajudou so-
emendas de outros deputados não produziram
mente em Minas Gerais. 35 Em uma eleição
impactos –, foi exatamente isso que aconteceu.
com mais de 50% de rotatividade dos titulares,
78
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
e com perdas substanciais por parte dos parti-
uma derrota para o PMDB após seu sucesso
dos de centro e centro-esquerda, esse resulta-
esmagador em 1986, os candidatos de direita
do tem grande importância. A dominação pro-
(“candidato PFL-PDS”) ganharam, ao passo
tege os deputados de oscilações partidárias. A
que o PMDB e os candidatos de esquerda re-
maioria dos titulares que perderam as cadeiras
ceberam um impulso apenas no Nordeste e em
em 1990 compartilhava os círculos eleitorais.
Minas Gerais.
Municípios representados por um único depu-
Finalmente, as trajetórias das carreiras
tado, sejam contíguos ou dispersos, são mais
dos deputados, pelo menos conforme medidas
seguros. Em um ambiente de partidos fracos e
por ocupações anteriores ou por participa-
política de clientelismo, a realização de acor-
ção em famílias políticas, não tiveram efeito
dos com os políticos locais – o clássico padrão
consistente sobre os resultados eleitorais. No
dominante-disperso – faz sentido.
Nordeste e em Minas Gerais – áreas em que
O modelo de estratégia demonstrou que
porcentagens substanciais de deputados vêm
os deputados raramente procuram alvos de
de famílias políticas – esses deputados se saí-
campanha socioeconomicamente similares aos
ram melhor. Mas na Bahia, onde as famílias
seus municípios principais. Como era de se es-
políticas são mais comuns, tais deputados não
perar, também é pouco provável que eles ga-
receberam ajuda. Além disso, os candidatos lo-
nhem ou percam votos nessa base. Embora em
cais não tiveram melhor desempenho em ne-
grandes cidades os deputados façam apelos
nhum estado. A eleição de 1990 representou
ideológicos ou para grupos, eles não procuram
um influxo de dinheiro alto na campanha para
ou recebem apoio em alvos de campanha dis-
o Congresso. Se essa tendência continuar, os
tantes com tais apelos. Dado o alto custo de ca-
candidatos locais, como esses resultados de-
çar no território de companheiros de partido, os
monstram, terão sérios problemas.
candidatos aumentam o apoio apelando para
Recapitulação. As estratégias dos depu-
novos grupos em suas áreas de base, ao invés
tados têm importância. Os deputados lucram
de buscar grupos semelhantes, mas geografica-
realizando suas próprias emendas; sofrem
mente distantes. Consequentemente, embora
quando outros deputados visam os mesmos
mudanças na composição ideológica geral de
municípios. Os deputados com distribuições
legislaturas possam resultar de realinhamentos
dominantes de votos conseguem resistir mais
eleitorais, tais realinhamentos não são produto
a oscilações partidárias do que aqueles com
de apelos de campanhas individuais.
distribuições compartilhadas.36 Mas a maio-
Trocas de partidos desempenham um
ria dos deputados ganha pouco concentrando
papel importante na sorte dos deputados. Em
suas distribuições de votos ou fazendo apelos
todos os estados, os ganhos gerais de parti-
ideológicos ou a grupos, e os padrões de car-
dos próximos no espectro político ajudaram
reiras não têm um efeito amplo sobre a sorte
os candidatos. Como essa eleição representou
em eleições.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
79
Barry Ames
Conclusão
com base no potencial dos benefícios que
A maioria das discussões sobre política bra-
deputados a procurar benefícios. Quando com-
sileira enfatiza suas raízes tradicionais, clien-
binamos esses incentivos com a qualidade
telistas. A teoria desenvolvida aqui, pelo
centrada no estado que a política brasileira
contrário, está baseada no comportamento
possui, os resultados sugerem que a procura
estratégico de políticos racionais. Inseridos em
de benefícios pode não ter atingido um equi-
um sistema eleitoral cujos principais atributos
líbrio. Os deputados no Sul do Brasil e em
incluem representação proporcional com lista
estados mais industrializados enfrentam uma
aberta, grandes distritos representados por
competição maior por parte de candidatos de
vários deputados, seleção de candidatos no
outros partidos, mas também têm distribuições
nível de unidades subnacionais politicamente
de votos mais concentradas. Níveis mais altos
ativas e possibilidade de reeleição imediata, a
de educação e riqueza aumentam o interesse
maioria dos deputados presta pouca atenção a
e o envolvimento dos eleitores em política,
apelos ideológicos. Ao invés disso, buscam re-
mas esse interesse aumenta os incentivos para
dutos eleitorais seguros, procuram municípios
os deputados focalizarem os benefícios. Ao
vulneráveis e lutam para superar sua própria
mesmo tempo, demandas por benefícios locais
fraqueza eleitoral por meio de esquemas polí-
podem contribuir para as taxas elevadas de
ticos. Candidatos estratégicos não se compor-
rotatividade e baixos níveis de antiguidade no
tam de maneira idêntica, já que seus passados
cargo das delegações congressistas do Sul, fa-
políticos variam e também porque os diferen-
tores que mudam o centro ideológico do Con-
tes contextos demográficos e econômicos dos
gresso para a direita.
podem obter.
O sistema eleitoral brasileiro motiva os
estados brasileiros recompensam algumas táticas e penalizam outras.
No processo legislativo, o sistema do
Brasil produz partidos sem programas, parti-
Qual é o significado desses resultados?
dos que abrigam uma enorme gama de inte-
Considere a relação mandante-mandatário en-
resses e preferências. A representação propor-
tre eleitores e deputados. O sistema eleitoral
cional com lista aberta não é uma condição su-
brasileiro dificulta o controle do eleitor. Força
ficiente para partidos fracos; o Chile pré-1973
os candidatos a procurar nichos monofocais,
combinava a representação proporcional com
a gastar muito e a fazer acordos com candi-
lista aberta com partidos ferozmente ideoló-
datos a outros cargos, candidatos com quem
gicos. Mas a representação proporcional com
não têm nada em comum. O sistema não pode
lista aberta no Brasil funciona de modo dife-
ser julgado não-democrático; na verdade, ao
rente, porque os interesses dos estados con-
não favorecer nenhuma divisão em particular,
trolam as indicações, porque os partidos não
permite que todas as reclamações sejam arti-
podem controlar o comportamento de seus
culadas. Porém, os cidadãos aprendem pouco
deputados, e porque a importância dos distri-
sobre a importância de questões de nível na-
tos aumenta tanto a fragmentação interparti-
cional, e eleitores racionais apoiam candidatos
dária quanto a intrapartidária.
80
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
Esta análise apenas tocou a superfície do
37
orientados para a legislação nacional? A acei-
argumento teórico. Quais são as implicações
tação ou rejeição do Congresso das emendas
das distribuições espaciais de votos para o com-
orçamentárias dos deputados também merece
portamento legislativo subsequente? De fato,
investigação. Por que alguns deputados são
os deputados brasileiros representam uma am-
mais bem-sucedidos do que outros? Há regras
pla gama de eleitorados, que varia de distritos
que garantem a todos uma parte da ação? Os
dominados por um único representante a coor-
deputados seniores podem comprar os votos de
tes de interesses especiais dispersas, passando
membros juniores necessitados? O caso brasi-
por acordos dispersos e distritos da classe tra-
leiro – um sistema que permite a formação de
balhadora. Será que alguns distritos isolam os
vários círculos eleitorais dentro de um único ar-
deputados das demandas presidenciais? A cor-
cabouço institucional – é um laboratório perfei-
rupção é um desenvolvimento natural de certos
to para o estudo de influências eleitorais sobre
círculos eleitorais? Alguns deputados são mais
o comportamento legislativo.
Apêndice
Fontes e problemas dos dados
O mapa e Moran I. Construí os mapas informatizados utilizando mapas estaduais de ruas,
uma mesa digitalizadora e Autocad. A base de dados também inclui, além dos resultados eleitorais,
indicadores do censo de 1980, todas as emendas orçamentárias submetidas para os orçamentos
de 1989-91 e os resultados da eleição presidencial de 1989. As matrizes de vizinho mais próximo
utilizadas para calcular a estatística de Moran I foram derivadas das coordenadas dos mapas. Paul
Sampson (University of Washington) forneceu o programa que criou as matrizes. Para uma introdução à análise espacial, cf. Cliff et al. 1975.
A tendência de subdivisão dos municípios, que é motivada politicamente, pode prejudicar seriamente a elaboração de mapas. Como os dados censitários são baseados nas fronteiras de 1980,
municípios criados após essa data precisaram ser agregados aos municípios antigos. Em alguns casos, o número de novas unidades era tão grande que a agregação distorceu os eventos políticos. Em
outros casos, estados antigos foram comprometidos pela criação de novos estados. Como resultado,
a análise exclui Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Acre, Amapá, Rondônia e Roraima. Embora a divisão inadequada dê a esses estados força política considerável, a maioria possui
populações muito pequenas.
Emendas orçamentárias. A cada ano, a Comissão de Orçamentos publica as emendas de deputados e senadores (Brasil, Congresso Nacional, 1988-1990). Os membros submetem essas emendas
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Barry Ames
em pequenos cartões de aproximadamente 5 cm por 15 cm, e os volumes publicados reproduzem
esses cartões, muitos dos quais escritos à mão. Cada cartão contém o nome e o estado do deputado ou senador, o programa modificado, o município beneficiado, a quantia de dinheiro e o programa debitado para financiar a emenda. Codifiquei todas as emendas de 1990 e 1991, mas apenas
uma amostra das 72.672 emendas realizadas em 1992. Este artigo não utiliza o grupo de 1992
porque as emendas foram submetidas pelos membros da nova Câmara de 1991-94. A análise também exclui emendas (cerca de 1%) que não beneficiavam nenhum município específico. Agradeço
a Orlando de Assis e Carmen Pérez pela ajuda na obtenção das emendas de 1991.
Resultados eleitorais. Para 1978 e 1982, os resultados eleitorais vieram do Prodasen, o braço
de processamento de dados do Senado. Agradeço a Jalles e William pelo auxílio. Para 1986, o Tribunal Superior Eleitoral forneceu alguns dados, mas oito estados nunca enviaram os resultados eleitorais para Brasília. Copiei os resultados nos tribunais regionais nesses estados. Para 1990, o Tribunal
Superior, com a assistência de Roberto Siqueira, Sérgio, Flávio Antônio, Conceição e Nelson, forneceu
dados de 15 estados em disquetes. Manuel Caetano, em Porto Alegre, auxiliou com os resultados
dos gaúchos.
Barry Ames
Cientista político pela Universidade de Stanford. Professor do Departamento de Ciências Políticas na
Universidade de Pittsburgh. Pittsburgh, Pennsylvania, EUA.
[email protected]
Notas
(*) Texto originalmente publicado em American Journal of Poli cal Science, v. 39, n. 2, maio 1995,
pp. 406-33. Revisão técnica de Carolina Ventura.
Os dados utilizados neste artigo serão colocados no ICPRS no final de 1995. Pesquisadores
interessados nos dados antes dessa data podem contatar o autor. Esta pesquisa foi financiada
pela Na onal Science Founda on, Washington University, St. Louis, e pelo IRIS – Ins tu onal
Reform and the Informal Sector, University of Maryland, College Park.
(1) Nenhum estudo com muitos Estados foi realizado, provavelmente devido à escassez de dados
sobre eleições de nível municipal, à ausência de mapas municipais digitalizados e à falta de
familiaridade com técnicas esta s cas espaciais.
(2) Até 1994, não havia um patamar mínimo para os par dos conseguirem cadeiras no legisla vo. Em
1993, o Congresso aprovou um patamar de 3%, mas uma brecha na lei minimizará seus efeitos.
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A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
(3) As máquinas de estado mais fortes provavelmente são as do Maranhão e da Bahia, ambos no
Nordeste. Enquanto era governador, Orestes Quércia dominava o PMDB em São Paulo, e
manteve muito desse poder durante a administração do sucessor que ele escolheu. Líderes
locais poderosos são encontrados principalmente em áreas menos industriais.
(4) Observe que dominação municipal não tem relação nenhuma com efe vamente ganhar cadeiras;
estados, não municípios, são distritos eleitorais. Também experimentei conceituar dominação
somente em termos de votos para candidatos do próprio par do do candidato.
(5) O Apêndice discute a construção do mapa, assim como outros problemas dos dados.
(6) Para ilustrações gráficas de padrões dispersos-compar lhados e concentrados-compar lhados,
cf. “Electoral rules, cons tuency pressures, and pork barrel: bases of vo ng in the Brazilian
Legislature” (1995), de minha autoria.
(7) Alves comandava um grupo de deputados conhecidos, por sua estatura, como os Sete Anões.
A comissão interna de investigação da Câmara acusou quase todos de extorquir e aceitar
propinas, mas a Câmara exonerou alguns. Quase todos têm a mesma distribuição de votos:
bolsões dispersos de apoio muito intenso.
(8) Os votos dos principais candidatos podem superar os dos retardatários, mas como o número de
candidatos eleitos é diretamente proporcional à quota cumula va de todos os votos do par do,
os candidatos populares possibilitam a eleição de candidatos com muito menos votos.
(9) Paulo Maluf, um polí co populista conservador, não conseguiu ganhar o estado de São Paulo na
eleição presidencial de 1989, mas ganhou a eleição para a prefeitura da cidade de São Paulo em
1992 precisamente com os votos desses trabalhadores.
(10) O acesso à mídia permanece central para realizar campanhas, embora os candidatos não
possam comprar tempo no rádio nem na TV. Pelo fato de o rádio e de os jornais no Brasil serem
geralmente par dários, as conexões da mídia fornecem uma barreira efe va à compe ção,
assim como um meio de comunicação com os eleitores. Recentemente, muitos apresentadores
de programas que se tornaram celebridades viraram candidatos.
(11) As exceções incluem coalizões eleitorais vencedoras baseadas no voto de classe nas cidades do
Rio de Janeiro ou São Paulo.
(12) Os prefeitos precisam procurar outro cargo, já que não podem se reeleger imediatamente. O
cargo de deputado federal, no entanto, não é necessariamente um passo acima: em 1992,
cerca de um quinto de todos os deputados federais fizeram o caminho inverso, disputando
prefeituras. Os detentores de cargos locais são abundantes como candidatos exceto em
estados fronteiriços, os quais se desenvolvem tão rapidamente que a polí ca local tende a ser
extremamente fraca. Municípios de fronteira dependem da generosidade estadual e federal, e
os polí cos frequentemente “caem de paraquedas” para conseguir votos.
(13) Uma rua, por exemplo, pode se destinar a enriquecer um determinado empreiteiro ou um
grande fazendeiro.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
83
Barry Ames
(14) Na eleição de 1990, o governador de São Paulo, Orestes Quércia, apoiou um desafio a um
deputado que havia sido membro do PMDB de Quércia, mas havia desertado para o PSDB.
O desafiante bem financiado de Quércia ganhou, mas seu alvo também. Para um teste mais
amplo, considere a eleição de 1990 no Paraná. Das 30 cadeiras do estado no Congresso, os nãotulares ganharam 24. Desses 24, 12 ganharam com redutos locais concentrados. Desses 12,
seis construíram redutos onde antes não havia nenhum. Quatro essencialmente assumiram os
distritos de tulares que não concorreram. Apenas dois conquistaram os redutos de tulares
que concorreram. Em um dos casos, o desafiante construiu um reduto muito maior; no outro,
o desafiante se beneficiou da oscilação para a direita do estado, derrotando dois tulares que
haviam compar lhado a mesma área.
(15) Dada a considerável con nuidade entre as úl mas eleições legisla vas da ditadura e as da Nova
República, não há campanhas sem tulares. Além disso, a disponibilidade de resultados para
apenas quatro eleições deixa a estabilidade do sistema em aberto.
(16) Obviamente, as emendas orçamentárias não são a única tá ca que os deputados u lizam. Eles
visitam vários municípios, fazendo comícios e oferecendo apoio a candidatos a outros cargos.
Assim, as emendas orçamentárias representam uma gama de atividades de campanha. Por
essa razão, minha análise focaliza as emendas subme das ao invés das emendas efe vamente
aprovadas pelo comitê orçamentário. As ações do comitê orçamentário representam um
processo legisla vo decisório que analiso em uma obra que desenvolvo no momento.
(17) O centro é o centróide de uma super cie plana na qual se assume que os votos de um município
são dados em seu centro. Note que Cm e Cp não estão necessariamente no centro sico real
de nenhum município em par cular. Os centros socioeconômicos na seção de paridade social,
contudo, são mesmo municípios individuais.
(18) Sobre o efeito da distância do eleitor em relação aos mercados locais de mídia do candidato,
cf. Bowler et al., 1992.
(19) Se a dominação no nível estadual tem algum efeito no nível do município, deve ser verdade
que os deputados, cujo apoio vem principalmente dos municípios que dominam provavelmente,
fazem mais emendas mesmo nos municípios que eles apenas compar lham. Isto é, o hábito do
clientelismo de deputados dominantes faz com que se comportem de maneira irracional.
(20) Fragmentação interpar dária é definida como 1 menos a soma do quadrado da quota de cada
partido em relação ao número total de votos. Fragmentação intrapartidária é definida de
maneira equivalente no nível do candidato individual, i.e., 1 menos a soma dos quadrados da
quota de cada candidato em relação ao total do par do.
(21) Se um deputado possuía um único município com uma par cipação pessoal claramente acima
de qualquer outra, selecionei aquele município como o principal. Se as par cipações pessoais
do deputado em dois municípios tinham diferença de poucos pontos percentuais, escolhi o
município com uma par cipação municipal maior como sendo o principal.
(22) Os indicadores socioeconômicos vêm do censo de 1980, exceto pelo tamanho da população de
eleitores, que é extraído dos registros eleitorais.
(23) Os deputados têm famílias polí cas se um parente da mesma geração ou de geração anterior
tiver sido prefeito, deputado estadual ou federal, senador, governador ou presidente. Para
dados biográficos, cf. Câmara dos Deputados (1981, 1983, 1991); Brasil (1989); e Isto é (1991).
Entrevistas com jornalistas suplementaram as fontes oficiais.
84
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A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta
(24) Os seis estados do Nordeste são Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e
Sergipe. Os três estados do Sul são Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
(25) Em alguns estados ou grupos de estados, o diagnóstico tanto para o modelo de Poisson como
para o binomial negativo mostrou superdispersão; para outros, Poisson funcionou bem.
Como a verdadeira questão é se um candidato visou o município x, e não quantas emendas
foram realizadas em x, a forma logística é perfeitamente adequada. Essencialmente, os
resultados são um pouco mais próximos às predições do modelo com o Poisson original, mas
ambas as formas são bastante similares.
(26) Pelo fato de este ser um estudo exploratório – e para minimizar as referências a coeficientes
insignificantes com frases como “sinaliza a direção certa” –, adotei um nível de significância de
0,10. No entanto, mais de 80% dos coeficientes significa vos também a ngem o nível de 0,05.
(27) A ausência do sinal previsto no termo quadrá co simplesmente significa que a realização de
emendas não mostrou retornos decrescentes.
(28) Tanto no Rio como no Sul, o coeficiente nega vo na variável distância-em-relação- ao-centropessoal domina o coeficiente da variável distância-em-relação-ao-centro-municipal.
(29) O desvio de São Paulo provavelmente resulta da extrema falta de atratividade da cidade
altamente compe va na qual a maioria dos burocratas mora.
(30) O fracasso dos candidatos em buscar municípios de tamanho semelhante pode ter outra
causa: pequenas comunidades produzem poucos votos, enquanto grandes cidades são muito
compe vas.
(31) Na construção desse indicador, os votos do PFL e do PDS medem o ganho da direita; os votos
do PMDB medem o ganho da esquerda. Essa úl ma é uma medida imperfeita, mas em muitos
municípios o PMDB era a única oposição à direita. Cada deputado foi codificado, com base
na filiação ao par do, em termos de orientação de direita ou de centro-esquerda. Resultados
semelhantes são ob dos u lizando-se os totais de votos de 1978 e 1982 do MDB-PMDB como
subs tutos mais puros da votação do PMDB de 1986.
(32) O desempenho ruim do modelo em São Paulo (embora a nja facilmente significância esta s ca
geral) pode resultar do alto nível de polí ca ideológica do estado, que é uma função da força
dos par dos de esquerda como o PT. O PT encoraja os eleitores a escolher a legenda do par do
ao invés de candidatos individuais.
(33) O modelo incorpora emendas registradas para reduzir o efeito de cada emenda “adicional”. No
Sul, o coeficiente nega vo no termo que representa a interação entre emendas e dominação
significa que as emendas são contraproducentes acima de um certo nível de dominação. Cerca
de 5% dos deputados do Sul ficam acima desse ponto de inflexão. Tais deputados podem estar
engajados em uma luta inú l para manter suas bases em uma região onde a dominação é cada
vez mais rara.
(34) Sabemos, a par r do modelo de estratégia, que os deputados realizam menos emendas conforme
aumenta a distância em relação aos seus centros de votação. O modelo de resultados mostra
que sua votação de 1990 não estava relacionada, de maneira geral, à distância do centro.
Devemos lembrar, contudo, que o modelo inclui a votação de 1986; portanto, o coeficiente só
deverá ser significa vo se houver uma concentração de votos adicional e inesperada. Isso ocorre
em dois casos, Minas e São Paulo, em que deputados com padrões de votos mais concentrados
veram melhor desempenho em 1990 do que em 1986. No momento, não tenho como explicar
esse resultado.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
85
Barry Ames
(35) A variável dominação mascara quaisquer possíveis efeitos produzidos pelas duas medidas de
fragmentação. Obviamente, a fragmentação é menor quando os deputados dominam os
municípios.
(36) Os deputados também podem mudar de par do para lucrar com o aumento dos esquemas de
bancadas par dárias.
(37) Esses achados também têm implicações para outros contextos polí cos com regras similares,
e.g., as eleições primárias no EUA (tanto a legisla va quanto a presidencial) e eleições para
os conselhos municipais. Com a disseminação dos sistemas de informações geográficas, ficou
muito mais fácil explorar esses contextos.
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Texto recebido em 12/jul/2011
Texto aprovado em 30/jul/2011
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
87
O peso do voto metropolitano:
a representatividade das regiões
metropolitanas na Assembleia
Legislativa do Paraná
The weight of the metropolitan vote: the representativeness
of metropolitan regions in the Legislative Assembly of Paraná
Jéferson Soares Damascena
Celene Tonella
Resumo
Nas últimas décadas as metrópoles tiveram o reconhecimento de sua relevância na dinâmica urbana. Entretanto, não ocorreu a politização do tema
metropolitano. Busca-se testar a hipótese de que
a negligência em relação às questões metropolitanas tem um nexo causal com o sistema representativo brasileiro. Esse sistema tende a prejudicar
a capacidade de representação parlamentar dos
centros mais urbanizados do País. Analisaremos a
composição da Assembleia Legislativa do Paraná –
ALEP, tendo por base a territorialização dos votos
obtidos pelos deputados eleitos em 2006 nas regiões metropolitanas (RMs) polarizadas por Curitiba, Maringá e Londrina. A partir dos mapas eleitorais, verifica-se que ocorre uma sub-representação
das regiões metropolitanas na Assembleia. Concomitantemente, há uma sobrerrepresentação das
cidades-polo, em detrimento das outras cidades
das RMs.
Abstract
In the last few decades the metropolises had had the
recognition of its relevance in the urban dynamics.
However, this very fact has not happened with the
politicization of the metropolitan issue. One searches
to test the hypothesis of that the recklessness
in relation to the questions metropolitans has a
causal nexus with the Brazilian representative
system. This very system that in its implementation
tends to undermine the capacity of parliamentary
representation of the country's most urbanized
centers. In this sense, we review the current
composition of the legislative assembly of Parana –
ALEP, based on the territorialization of votes cast by
parliamentarians elected in 2006 in the metropolitan
regions (MRs) polarized by Curitiba, Maringa and
Londrina. From the electoral maps, it is verified
that an under-representation of the regions occurs
metropolitans in the Assembly. Concomitantly, it
has an overrepresentation of the city-polar region, in
detriment of the other cities of the RMs.
Palavras-chave: representação metropolitana;
Assembleia Legislativa do Paraná; eleição de 2006;
representação; voto metropolitano.
Keywords: representation metropolitan; State
legislature of the Paraná; election of 2006;
representation; metropolitan vote.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella
Introdução
Maringá (RMM) e Londrina (RML) em relação
à base geográfica dos deputados estaduais
eleitos; e 4) levantamento dos projetos dos de-
No presente trabalho, temos por objetivo ana-
putados estaduais eleitos com maioria de vo-
lisar a distribuição geográfica dos votos para
tos nas RMs. A fonte principal de informações
os representantes da Assembleia Legislativa
serão os mapas eleitorais dos municípios das
do Paraná (ALEP), nas regiões metropolitanas
duas RMs, para que possamos compreender
de Curitiba (RMC), Maringá (RMM) e Londrina
a dinâmica das práticas político-eleitorais por
(RML) na eleição de 2006. O entendimento é
meio de um levantamento1 dos projetos pro-
que as regiões metropolitanas, apesar de sua
postos pelos deputados.
influência socioeconômica e do expressivo elei-
Primeiramente, verificamos a votação por
torado, não conseguem traduzir esse poder em
cidade, de cada um dos 54 deputados eleitos
um número condizente na composição da As-
em todo o Estado. Em seguida, decidimos fa-
sembleia Legislativa, estando, pois, sub-repre-
zer um recorte, considerando apenas a votação
sentadas em relação ao interior do Estado.
dos eleitos nas regiões metropolitanas de Curi-
Segundo Carvalho (2010), o sistema re-
tiba (RMC), Londrina (RML) e Maringá (RMM).
presentativo proporcional, em sua operaciona-
Partindo dos mapas da votação dos deputados
lização, tende a prejudicar de forma sistemática
estaduais eleitos no pleito de 2006 do TSE, foi
a composição das representações parlamenta-
possível fazermos algumas inferências sobre a
res dos centros mais urbanizados do País, bem
composição do voto nas RMs estudadas, que
como as capitais e as regiões metropolitanas.
de certa forma contrariam nosso apriorismo e
A falta de integração entre as cidades que
nos força a um recorte mais aprofundado nas
compõem as RMs estudadas confronta com os
questões de estratégias de cada deputado, bem
discursos e propostas em defesa da ampliação
como na real extensão da sua influência, que
dessas regiões.
não se limita à sua base territorial.
Buscamos empreender um exercício de
aproximação com a obra de Carvalho (2003;
2009), replicando-a em um cenário mais adensado, ou seja, a geografia do voto para a Assembleia Legislativa do Paraná, no pleito de
As Regiões Metropolitanas
do Paraná
2006, mas tentaremos ampliá-la, abrindo as
seguintes frentes de investigação: 1) a sub-
Conforme apontam Ribeiro e Pasternak (2009),
-representação das regiões metropolitanas de
o destino das metrópoles está no centro dos di-
Maringá, Londrina e Curitiba na Assembleia
lemas das sociedades contemporâneas. Desde
Legislativa; 2) concomitantemente, a sob-
a década de 1970, estão em curso as transfor-
-representação das cidades-polo em relação
mações tecnológicas, sociais e econômicas, em
aos deputados eleitos nas RMs; 3) a sub-repre-
especial as decorrentes da globalização e da
sentação das cidades menores que compõem
reestruturação socioprodutiva, que aprofunda-
as Regiões Metropolitanas de Curitiba (RMC),
ram a dissociação engendrada pelo capitalismo
90
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano
industrial entre progresso material e urbaniza-
em polos de incorporação de migrantes (Rodri-
ção, economia e território, Nação e Estado.
gues e Tonella, 2010).
Em particular, as metrópoles do hemisfé-
Vinte e seis municípios compõem atual-
rio sul registram vultosas taxas de crescimento
mente a Região Metropolitana de Curitiba, a
populacional, sem que ocorra a associação com
qual foi instituída originalmente pela Lei Com-
o progresso material. Ocorrem dois processos:
plementar Federal 14/73 e constantemente re-
aquele gerado pela vertiginosa concentração
definida por legislações estaduais, o que levou
populacional em grandes cidades nos países
à configuração de um território extenso e hete-
que estão conhecendo o processo de desrura-
rogêneo. São quatorze os municípios originais,
lização induzido pela incorporação do campo à
cinco desmembrados e sete outros integrados
expansão das fronteiras mundiais do espaço de
por meio de legislações estaduais, o que le-
circulação do capital, e o outro decorrente da
vou à configuração de um território extenso e
condição urbana de concentração do capital,
heterogêneo. Conforme nos informa Moura et
do poder e dos recursos de bem-estar social.
al. (2009, p. 4): “essa área, embora contínua,
Na década de 1970, existiam no Brasil
é bastante desigual, tanto no que se refere à
nove regiões metropolitanas e, hoje, existem
inserção dos municípios na dinâmica da econo-
vinte e sete. São identificadas regiões me-
mia regional, quanto nas condições socioam-
tropolitanas oriundas de um primeiro grupo,
bientais”. Segundo o Censo de 2010, a região
composto pelas criadas por iniciativa federal
abriga mais de 3,1 milhões de moradores.
durante o regime militar, constituídas como
A região metropolitana de Maringá
forma de integrar o território nacional e mo-
(RMM) foi criada em 1998 pela Lei Estadual
dernizar a estrutura econômica, caracterizadas
nº 83/98, acrescida pela Lei Complementar Es-
pela crescente industrialização e urbanização. É
tadual nº 13/565-2002 e pela Lei Complemen-
esse grupo de regiões que tem o maior tama-
tar nº 110, e 688 de 2005. Assim, ficou cons-
nho populacional, dentro do qual se destacam
tituída pelos municípios de Maringá, Sarandi,
as cidades-sede das regiões metropolitanas
Marialva, Mandaguari, Paiçandu, Ângulo,
de São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Curitiba,
Iguaraçu, Mandaguaçu, Floresta, Doutor Ca-
Fortaleza, Salvador, Recife, Porto Alegre e Belo
margo, Itambé, Astorga e Ivatuba (Silva, 2006,
Horizonte. O segundo grupo é composto pelas
p. 185). A população da região metropolitana
demais regiões metropolitanas e são de inicia-
de Maringá passou a contar com 612.617 ha-
tiva estadual, uma tarefa delegada aos Estados
bitantes, estando 587.971 na região urbana
pela Constituição Federal de 1988.
e 24.646 na zona rural, distribuídos em treze
Os estudos atuais apontam como uma
diferença importante o fato de as regiões me-
municípios com uma área territorial total de
3.190,07 km² (IBGE/2010).
tropolitanas do segundo grupo liderarem o
Desde a sua constituição até a recente
crescimento demográfico do conjunto das me-
inclusão de alguns municípios, a região me-
trópoles do País, com taxas que chegaram a
tropolitana de Maringá é caracterizada pela
4% ao ano, entre 1991 e 2000. Isso significa
falta de um critério aparente para sua con-
que as novas aglomerações têm se constituído
formação e gestão, além, é claro, da evidente
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
91
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella
priorização dos interesses de alguns grupos no
de municípios na gramática metropolitana.
poder que patrocinam representantes políticos
Mesmo com as limitações no enquadramento
movidos apenas pela lógica eleitoral imediata
em um tipo puro metropolitano, sofrem de pro-
e particularista.
blemas inerentes à metropolização e são as re-
Na visão de alguns autores, em Londrina
giões mais desenvolvidas do estado do Paraná.
e em Maringá existem processos de aglomeração que não caracterizam uma metropolização, mas, antes, uma ampliação de papéis e
funções de cidades médias. Assim, podemos
identificar a aglomeração urbana em ambos os
Resultados eleitoriais versus
dinâmica metropolitana
casos, contudo:
Nos últimos anos, vêm ocorrendo algumas mo[...] não fica evidente um processo de
metropolização, pois as transformações
ocorridas nas duas cidades que conduzem a uma expansão territorial, não chegam a reestruturar os espaços urbanos
que compõem as chamadas “Regiões
Metropolitanas” e tampouco a extensão
territorial desta aglomeração é característica da uma entidade metropolitana.
(Silva, 2006, p. 189)
dificações no modo como são analisados os
resultados eleitorais. Se na década de 1970
os estudos demonstravam que as preferências
políticas eram orientadas pelas características
sociais, econômicas e culturais dos eleitores,
atualmente observamos uma tendência dos
eleitores em votar em uma pessoa, e não em
um partido ou em conjunto programático.
A relevância de profissionais de
Desse processo, surge a região metro-
marketing político é cada vez maior nas cam-
politana, instituída em 1998 pela Lei Estadual
panhas, além das assessorias de comunicação
Complementar nº 81, de 17/6/98, e acresci-
e agências de promoção da imagem do “candi-
da pela Lei Estadual Complementar nº 91, de
dato-produto”. É necessário que o candidato se
5/6/2002, que ampliou o número de municípios
diferencie para um eleitor cada vez mais cético
que compõem a região metropolitana de Lon-
e desinteressado por propostas (quando exis-
drina. São eles: Londrina, Cambé, Jataizinho,
tem) cada vez mais similares umas às outras. O
Ibiporã, Rolândia, Tamarana, Bela Vista do Pa-
que observamos na prática é que os candidatos
raíso e Sertanópolis (Silva, 2006). A RML conta
que logram sucesso na sua eleição não são os
com 764.258 habitantes, estando 731.875 na
de maior prestígio local, nem os com propos-
região urbana e 32.383 na zona rural, distribuí-
tas mais próximas das demandas do eleitorado,
dos em oito municípios, com uma área territo-
mas sim os "comunicadores", que dominam as
rial total de 4.285,39 km² (IBGE/2010).
técnicas da mídia e da encenação
Cada uma das regiões carrega características próprias, fruto do crescimento econômico,
de distintos desenhos de inserção na economia
regional, estadual e nacional e, também, de intervenções políticas que levaram à agregação
92
O que estamos assistindo hoje em dia não
é a um abandono dos princípios do governo representativo, mas a uma mudança
do tipo de elite selecionada: uma nova
elite está tomando o lugar dos ativistas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano
e líderes de partido. A democracia do
público é o reinado do "comunicador".
(Manin, 1995, p. 18)
consentimento. Entretanto, esse tipo de relação de poder, dado pelo povo para, pelo menos
teoricamente, ser usado em seu nome e benefício, exigia um grupo de cidadãos preparados e
Assim, podemos inferir que, na opinião
dos eleitores, a confiança e o carisma que o
candidato “transmite” são fatores decisivos
na hora de votar, muito mais relevantes que o
conhecimento dos projetos e propostas. Manin
legitimamente aptos pelo processo eletivo para
tornarem-se apto na elaboração de leis.
Nas democracias representativas como
o Brasil, os parlamentares eleitos têm basicamente duas atribuições inerentes à sua função:
(2010) pontua que os eleitores costumam votar
legislar e fiscalizar o Poder Executivo. O que se
em partidos distintos em eleições presidenciais,
espera de um parlamentar é que cumpra seu
legislativas e municipais, sugerindo que as
papel de representar da melhor maneira os in-
decisões de voto consideram somente a per-
teresses de todos os cidadãos, sob a forma de
cepção de que o que está sendo decidido diz
elaboração de políticas públicas que atendam
respeito apenas a uma eleição específica, inde-
suas demandas. Também lhes cabe a prerroga-
pendente das características socioeconômicas
tiva de monitorar e fiscalizar as ações e pro-
e culturais dos eleitores:
postas do Executivo de forma a garantir que as
Esse aspecto aparece de modo nítido na
relação que se estabelece entre o poder
executivo e os eleitores no plano nacional. Há muito tempo os analistas vêm
constatando uma tendência à personalização do poder nos países democráticos.
Nos países em que o chefe do poder executivo é eleito diretamente por sufrágio
universal, a escolha do presidente da República tende a ser a eleição mais importante. (Manin, 1995, p. 17)
A enorme expansão do universo eleito-
políticas públicas se traduzam em resultados
que garantam a consecução de tais interesses.
Manin assinala que:
Tal capacidade será maior quanto maior
for a articulação política entre os cidadãos visando à manifestação de uma opinião que lhes é comum. É praticamente
inútil que opiniões divergentes quanto à
forma pela qual é o governo é conduzido
se manifestem isoladamente; sem coordenação, tais manifestações não se constituem em ação política eficaz. (Manin,
1995, p. 59)
ral, principalmente com a ampliação do direito
de voto a várias categorias sociais, requisitou
Além disso, os representantes eleitos se-
o aperfeiçoamento tanto das instituições po-
rão pressionados a fazer valer, junto às instân-
líticas como dos sistemas eleitorais, principal-
cias decisórias do Estado, demandas e interes-
mente no que se refere ao processo de conces-
ses dos segmentos sociais específicos que os
são, por parte dos eleitores, da defesa de suas
elegeram. Assim, “percebe-se que as distintas
demandas pelos representantes escolhidos
formas de atuação dos representantes políti-
por meio do sufrágio. A representação política
cos trazem em si o exercício do poder políti-
passa a ser um recurso para o uso do poder
co derivado do consentimento” (Magdaleno,
do Estado em relação ao cidadão, e sob seu
2010, p. 49).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
93
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella
Alguns autores, como Ames (2003) e
um número excessivo de veto players, ou seja,
Nicolau (2007), sustentam que o formato po-
atores com poder de obstrução de mudanças
lítico institucional e eleitoral brasileiro, de lista
podem gerar uma permanente crise de gover-
aberta e proporcional, não permite governos
nabilidade, uma vez que, para o autor, os políti-
com sustentação parlamentar. Torna-se neces-
cos são incentivados a maximizar seus ganhos
sária a formação de alianças amplas, resultan-
pessoais, buscando projetos e recursos para
do em coalizões que fragilizariam o Executivo,
suas clientelas específicas. Desse modo, grande
que precisaria, então, para governar, lançar
parte dos representantes orienta sua carreira
mão de incentivos a um Legislativo inclinado a
"para a oferta de contratos de obras públicas
comportamentos individualistas, que minariam
e nomeações para cargos burocráticos" (Ames,
a coesão e a disciplina partidárias. Ademais, a
2003, p. 46). Esse tipo de político, com perfil fi-
proporcionalidade na divisão das cadeiras frag-
siologista e clientelista, seria majoritário e con-
menta os partidos e reduz a conexão dos elei-
tribuiu para o desenho das regras necessárias
tores com seus representantes. Para Nicolau,
à vazão livre do paroquialismo no interior do
[...] com muitos representantes eleitos no distrito, os eleitores teriam mais
dificuldades para identificar o representante e fazer uma boa avaliação de sua
atuação, seja para puni-lo (caso não
tenha tido uma boa atuação), seja para
recompensá-lo (quando tenha tido uma
boa atuação). (Nicolau, 2007, p. 61)
Ames (2003) toma por argumento cen-
Poder Legislativo:
[...] ali os líderes partidários não possuem controle sobre as bancadas e os
indivíduos ou grupos suprapartidários
encontram-se em condição de determinar
o preço de sua cooperação. Os presidentes da República, por sua vez, precisam
"estar sempre reconstruindo maiorias".
(Ames, 2003, p. 294)
tral a fragilidade do sistema institucional políti-
Mesmo com todo o poder, principalmen-
co eleitoral brasileiro, consequência do sistema
te em matéria orçamentária, que a Constitui-
de representação de lista aberta, em que as
ção lhe outorgou, o Executivo, por não contar,
estratégias eleitorais refletem um tipo singular
de fato, com uma maioria no Congresso, se
de competição, que pode ser representado com
depara com uma considerável margem de in-
base em duas dimensões: uma, que varia relati-
certeza na aprovação da sua agenda. Assim, a
vamente e em ordem direta com a "penetração
mesma coalizão que lhe deu sustentação elei-
política vertical" do candidato, ou seja, o total
toral para chegar ao poder, não lhe dá garan-
de votos amealhados em determinado municí-
tia de sustentação política nas votações. Para
pio ou conjunto de municípios e que traduz a
Mainwaring (2001), outra característica dessa
dominância do político naquele espaço. Outra
relação entre os Executivos e os Legislativos
disputa se caracteriza pela relação da distribui-
brasileiros, derivadas da necessidade de forma-
ção geográfica dos municípios, em que o can-
ção de governos de coalizão sempre em bases
didato obteve sua votação e que revela o grau
frágeis, seria o uso político dos recursos públi-
de concentração ou dispersão de sua base elei-
cos sob a forma de patronagem. Em outras pa-
toral. Combinadas, tais instituições produzem
lavras, trata-se da nomeação de apadrinhados
94
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano
políticos para ocuparem cargos na máquina
de atendimento das necessidades e anseios
pública, transformados em moeda de troca de
das populações.
apoio político, e também através do clientelismo e o fisiologismo.
Com os avanços da “sociedade da informação em tempo real”, hoje se faz indispen-
Essas práticas têm um alto custo para
sável a adoção de outras formas de acesso
o país, pois, além de emperrarem o processo
do cidadão na vida política. A representação,
de tomada de decisões importantes no aten-
apesar seu importante papel, apresenta alguns
dimento das demandas da sociedade por meio
problemas, como o revezamento das elites no
de soluções coletivas, acabam privilegiando
poder, que dificultam a renovação, pois concen-
os interesses particularistas de alguns grupos
tra demasiado poder em pouquíssimas mãos.2
ou facções.
Outro aspecto importante que daria mais
A melhoria dessa situação, no sentido
qualidade à relação representante e represen-
de dar mais efetividade e qualidade na rela-
tado refere-se à ampliação dos mecanismos de
ção entre Executivo e Legislativo, aponta para
prestação de contas dos mandatos, reduzindo
uma transformação em sua natureza, cabendo
o chamado “déficit de controle da representa-
ao eleitor demonstrar o acompanhamento das
ção”. Atualmente, depois de eleitos os repre-
atividades do seu candidato. Entretanto, é ta-
sentantes, a única forma de controle sobre o
refa dos representantes proporcionar canais de
mandato por parte do eleitor é a possibilidade
informação de suas atividades, permitindo aos
de não-renovação da outorga, ou seja, a não-
cidadãos maior capacidade de fiscalizá-los:
-reeleição. A representação tem, sem dúvida,
um papel relevante nos governos e nas demo-
A disseminação e o aperfeiçoamento de
mecanismos institucionalizados de interlocução entre cidadãos e representantes
eleitos, na arena legislativa, diminuiriam a assimetria informacional entre
estes atores e tornariam mais plurais as
fontes de informação dos legisladores,
capacitando-os para conhecer quais são
e como representar os melhores interesses dos cidadãos. (Anastasia e Nunes,
2006, p. 29)
cracias modernas, sendo necessária a ampliação desse processo, incentivando a formação
de práticas de comprometimento para além do
sufrágio obrigatório como única instância da
relação entre eleitor e eleito.
Neste sentido, admitiremos neste trabalho que o modo mais fácil e usual de os parlamentares, mais especificamente os deputados estaduais paranaenses da legislatura de
2007-2010, buscarem a reeleição concentra-se
A complexidade das sociedades moder-
na reivindicação de benefícios e recursos para
nas, cada vez mais marcadas por clivagens e
seus eleitorados específicos. O modelo distribu-
pela diversidade, transforma a representa-
tivista parte do princípio de que os parlamenta-
ção política em uma espécie de consenso co-
res são regidos pelo desejo de reeleição, maxi-
mo única solução política capaz de atender
mizando suas ações para a obtenção desse re-
às demandas. Entretanto, embora hegemôni-
sultado esperado. Assim, nesse modelo, o fator
cos no mundo ocidental, o sufrágio universal
preponderante é a análise das motivações que
e a representação não são as únicas formas
levam o parlamentar a agir de determinada
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
95
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella
forma na arena legislativa. Entretanto, o Legislativo, qualquer que seja, é palco de disputas e
conflitos entre os mais variados e diversos interesses individuais e de grupos. Uma das principais atribuições dos legislativos é a formulação
e destinação de recursos e benefícios sob a forma de políticas públicas.
Carvalho (2003, pp. 20-21) informa que,
no caso brasileiro, a importação do modelo distributivista para se interpretar o comportamento legislativo ocorreu pela similitude de alguns
elementos análogos identificados no congresso
norte-americano:
a) a baixa institucionalização dos partidos;
b) o particularismo legislativo; e, sobretudo,
c) o predomínio do voto personalizado na
arena eleitoral.
benefícios em um distrito geográfico específico e financia gasto por meio de uma
tributação generalizada [...]... se é claro
que toda política traz uma incidência geográfica de custos e benefícios, o que distingue uma política distributiva é que os
benefícios têm um alvo geograficamente
definido. (Carvalho, 2003, p. 20)
Torna-se óbvia, então, a preferência dos
deputados em relação à deliberação de políticas públicas que viabilizem recursos em forma
de benefícios concentrados e custos dispersos,
aumentando, teoricamente, suas chances de
reeleição. Esse sistema se organiza através dos
redutos eleitorais, porque é através deles que o
político conhece as preferências dos que votaram nele (Limongi, 2006; Lemos, 2001).
Nesse contexto, são sancionados leis e
programas que afetam a vida de muitos cidadãos, inclusive os eleitores de cada parlamentar, que têm, por sua vez, a exata dimensão
A representação nas Regiões
Metropolitanas
do fato de estarem subordinados à sanção
periódica desses eleitores. A relevância da
“conexão eleitoral”, ou seja, da relação entre
representado e representante faz com que todo parlamentar tenha fortes incentivos para
atender aos interesses específicos dos eleitores de sua região:
U ma p o lí t ic a d is t r i b u t i va t ra t a - s e
de uma decisão de política que concentra
96
Por meio dos dados disponíveis no Tribunal Superior Eleitoral para as eleições de 2006, organizamos os dados dos deputados mais votados
nas RMs do Paraná (Quadro 1), detalhando o
total de votos no estado, o total de votos obtidos na RM correspondente, bem como a porcentagem em relação ao total de votos obtidos,
o mesmo ocorrendo em relação à cidade-polo.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano
Quadro 1 – Deputados mais votados nas RMs
e suas votações nas cidades-polo
Deputados RMM x Maringá
Total votos
PR
Votos
RMM
%
Votos
Maringá
%
Manoel Batista da S. Jr. (PMN)
26,174
25.027
93,68
18.821
70,45
Wilson Quinteiro (PSB)
24.307
21.079
86,72
17.060
70,19
Maria Ap. Borguetti (PP)
66.492
51.373
77,26
32.783
49,30
Enio José Verri
36.800
23.650
64,27
17.538
47,66
Luiz Hiloshi Nishimori (PSDB)
45.247
28.602
63,21
15.000
33,15
Deputados RML x Londrina
Antonio Casemiro Belinati (PP)
Total votos
PR
81.157
Votos
RML
78.429
%
Votos
Londrina
%
96,64
68.299
84,16
Luiz Eduardo Cheida (PMDB)
39.298
28.596
72,77
26.994
68,69
José Durval M. do Amaral (PFL)
46.476
23.891
51,41
3.776
8,12
Deputados RMC x Curitiba
Total votos
PR
Votos
RMC
%
Izabete Cristina Pavin (PMDB)
38.266
37.357
97,62
Cleusa Rosane R. Ferreira (PV)
18.844
18.176
Osmar Stuart Bertoldi (PFL)
27.385
26.146
Mauro R. Moraes e Silva (PMDB)
48.513
Edson Luiz Strapasson (PMDB)
Carlos Xavier Simões (PTB)
Votos
Curitiba
%
5.834
15,25
96,46
2.653
14,08
95,48
22.627
82,63
45.784
94,37
43.651
89,98
38.645
36.408
94,21
4.301
11,13
32.138
29.319
91,23
10.356
32,22
Luiz Carlos Martins (PDT)
54.520
48.779
89,47
31.982
58,66
Ney Leprevost Neto (PP)
53.471
46.581
87,11
37.348
69,85
Antonio Tadeu Veneri (PT)
28.204
22.967
81,43
17.094
60,61
Fabio de Souza Camargo (PFL)
37.973
22.903
60,31
19.712
51,91
Edson da Silva Praczyk (PRB)
38.645
21.066
54,51
13.225
34,22
Fonte: TSE (2010), adaptado por Damascena.
Carvalho (2003) estudou a composição
avaliação para a geografia do voto do Estado
das bancadas ditas “metropolitanas” no Con-
do Paraná, e se levarmos em conta o potencial
gresso Nacional brasileiro, nos pleitos de 1998,
eleitoral das RMs, comparadas com a quanti-
2002 e 2006, testando a hipótese que contra-
dade de deputados eleitos, verificaremos uma
ria, em princípio, os ditames da sociologia elei-
sub-representação da RMs na Assembleia Es-
toral, ao apontar a sub-representação dessas
tadual. De início, apenas em termos numéricos,
áreas mais desenvolvidas. Ao transferirmos a
no pleito de 2006, as áreas metropolitanas que
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
97
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella
teriam condições de eleger em torno de 23 de-
naturais” perdem o “vigor” na captação de vo-
putados, elegeram 19. Ainda conforme Carva-
tos. Ou seja, nas cidades border line da região
lho (2010), na bancada dita metropolitana, a
metropolitana, o desempenho dos candidatos
quase totalidade dos deputados apresenta vo-
com base em Maringá sofrem a concorrência
tação concentrada em um único município, que
de outros deputados.
pode ser a capital do estado ou a cidade-polo:
Ora, se os deputados metropolitanos,
ou o que poderíamos designar de nossa
bancada metropolitana, tratam-se de representantes com votação concentrada
em suas respectivas RMs, cabe por fim
identificar a natureza – mais ou menos
integrada dentro do espaço metropolitano – do município que recebe a maioria
dos votos dos deputados dali egressos.
Selecionando dois pontos no tempo, as
eleições de 1994 e a de 2006, verificamos que nossa bancada metropolitana,
além de concentrar a votação, tem seus
votos – de forma mais do que majoritária – extraídos dos municípios-polo (em
geral, as capitais dos estados) e das
áreas mais integradas das RMs. As áreas
menos integradas, mais periféricas das
nossas RMs pouco se acham representadas [...]. (Carvalho, 2010, p. 11)
Mesmo que tenha ocorrido uma renovação de 50% entre os quatro deputados eleitos
pela região metropolitana de Maringá em 2006
em relação a 2002, podemos afirmar que, na
prática, mais uma vez apenas a elite estava representada. Talvez assim, sem qualquer ameaça
de ruptura com as elites dominantes, estivesse
garantida a manutenção de práticas políticas
tradicionais, comprovando que, ainda hoje, a
renovação em Maringá ainda é conservadora:
[...] verificamos que a política local seguiu
um padrão recorrente na política nacional, que é o de manter fortes contornos
clientelistas e personalistas. Tal constatação baseou-se numa prática dos políticos
descompromissados com as bases por
um lado, e, por outro, no limitado índice
de cobranças por parte da sociedade em
relação aos seus representantes. (Tonella,
1991, p. 160)
Essa constatação explicaria, a priori, a
falta de interesse na politização das questões
Levando em conta a votação concentra-
metropolitanas, porque, segundo a literatura
da na região, em especial na cidade-polo, e o
da conexão eleitoral, esses deputados estariam
histórico dos eleitos mais votados na RMM,
“comprometidos” em atender as suas bases por
sendo Ênio Verri (PT), Luiz Nishimori (PSDB),
meio de ações de natureza localista, em uma
Dr. Batista (PMN), Cida Borghetti (PP) e Wil-
espécie de “paroquialismo metropolitano”.
son Quinteiro (PSB), que assumiu há pouco
No caso da RMM, alguns deputados ob-
menos de 18 meses do fim da legislatura, po-
tiveram votações expressivas e concentradas
demos inferir, como sugere Carvalho (2009),
não só na cidade-polo, mas também em Saran-
a conformação de uma “bancada metropo-
di e em Paiçandu, municípios conurbados com
litana.” Porém, à medida que nos afastamos
Maringá. Analisando os dados, um fato que
desses três municípios contíguos dentro da
“salta aos olhos” é que, à medida que se sai do
RMM, verificamos votações significativas de
centro da RMM, Maringá, a votação dos depu-
alguns deputados que não têm sua base elei-
tados que adotamos por seus “representantes
toral na RMM, em alguns casos, superando os
98
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano
candidatos tidos por “representantes naturais”
cidades, votações maiores do que alguns candi-
da região metropolitana.
datos que têm sua base em Maringá, o que não
Importante registrar que, dos treze municípios 3 que compõem a RMM, é apenas e
altera significativamente o quadro, pois a cidade-polo tem o maior contingente de eleitores.
tão somente em três deles, Maringá, Paiçandu
A concentração dos votos dos cinco de-
e Sarandi, os deputados Ênio Verri (PT), Cida
putados eleitos mais votados na RMM, de
Borghetti (PP), Dr. Batista (PMN), Luiz Nishi-
acordo com o critério de Carvalho (2010),
mori (PSDB) e Wilson Quinteiro (PSB) têm vo-
permite assumir que os cinco deputados mais
tação absolutamente maior. Em alguns casos, a
votados na RMM sejam considerados “deputa-
votação de pelo menos um dos quatro é me-
dos metropolitanos”, porque, do total de votos
nor que a de deputados “estranhos” à região.
obtidos na região, todos fizeram mais de 50%
No caso, em Ângulo, Antonio Martins Anibelli
desses votos na cidade-polo.
(PMDB) teve 39,97% dos votos nominais, se-
É importante observar que, dos quatro
guido por José Durval Matos Amaral (DEM),
candidatos mais votados na região metro-
com 15,16% dos votos nominais em contras-
politana de Maringá, o deputado Dr. Batista
te com Cida Borgheti (PP), que teve a terceira
(PMN) apresentou a maior concentração de
maior votação, 9,26% dos votos nominais. Já
votos na RMM (93,68%), mas foi Wilson Quin-
em Astorga, José Durval Matos Amaral (PMDB)
teiro (PSB) quem apresentou o perfil de votos
obteve 13,43%, e Luís Nishimori (PSDB) 7,34%
mais concentrado na cidade-polo (72,42%),
dos votos nominais. No município de Itambé,
demonstrando um padrão mais concentrado.
a situação se repete, demonstrando uma forte
Cida Borghetti (PP) foi a mais votada entre os
votação de José Durval Matos Amaral (PMDB),
quatro no Estado. Reeleita, ampliou sua base
com 21,78%, enquanto Cida Borgheti (PP) teve
eleitoral, tendo a terceira menor concentração
19,29% dos votos nominais.
dos seus votos tanto na região metropolitana
Mandaguari confirma a tendência de
(77,26) quanto na cidade-polo (49,30%). Já
dispersão de votos dos deputados de Maringá,
Luis Nishimori (PSDB), também no seu segun-
mas chama atenção a alta fragmentação dos
do mandato, é o deputado da região metropo-
votos, uma vez que possui um eleitorado de
litana que tem o perfil mais disperso, apresen-
20.549 votantes, e a maior votação foi de Luis
tando o menor índice de concentração tanto
Carlos Caíto Quintana (PMDB), com 5,14% dos
na RMM (64,27%), ainda sim bastante alta,
votos nominais, perfazendo apenas 953 votos.
como na cidade-polo (33,15%). Entretanto, no
É possível constatar que, dos cinco deputados
município de Marialva, seu reduto eleitoral, o
eleitos mais votados, quatro deles têm sua ba-
deputado teve votação maior que e de todos
se eleitoral na cidade-polo, Maringá, e apenas
os outros juntos, 6.090 votos, e Nishimori (PS-
um, Luis Nishimori (PSDB), teve boa votação,
DB) também demonstrou agregar os votos da
mas seu voto é mais disperso.
colônia japonesa, muito grande na região nor-
Conforme a análise é feita saindo da
te do Paraná.
RMM e da “zona de influência” da cidade-polo,
Analisando a concentração dos votos dos
outros candidatos conseguem, em algumas
deputados estaduais eleitos, e considerando-se
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
99
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella
que Cida (PP), Ênio (PT), Dr. Batista (PMN) e
Nishimori (PSDB) também demonstra agregar
Quinteiro (PSB) residem, votam e têm repre-
os votos da colônia japonesa, muito grande na
sentações políticas em Maringá, à exceção de
região norte do Paraná.
Nishimori (PSDB), que tem empresa em Marial-
A região metropolitana de Londrina é ce-
va, é possível inferirmos que a predominância
nário de um fato que confirma a tese defendida
das elites políticas da cidade-polo é muito sig-
por Carvalho (2009) de que a sub-representa-
nificativa e decisiva. Por outro lado, os demais
ção das grandes cidades e das regiões metro-
doze municípios que fazem parte da RMM, a
politanas é intrínseca à natureza do sistema
exemplo de Sarandi e Mandaguari, que contam
eleitoral representativo brasileiro. Contando
com o segundo e terceiro maiores eleitorados
com oito municípios que representam um po-
da região, respectivamente, estas sim estariam
tencial eleitoral de 433.187 votos válidos para
sub-representadas.
deputado estadual, a região metropolitana de
Conforme demonstra o Quadro 1, a
Londrina elegeu três deputados. Ao comparar-
concentração dos votos dos cinco deputados
mos com a região metropolitana de Maringá,
eleitos mais votados na RMM, de acordo com
que, mesmo tendo um número em torno de
o critério de Carvalho (2010), permite assumir
29,12% a menos de eleitores (306.168 votos
que sejam considerados “deputados metropoli-
válidos para deputado estadual), elegeu quatro
tanos”, visto que, do total de votos obtidos na
deputados e um suplente que mais tarde assu-
região, todos fizeram mais de 50% desses vo-
miu o mandato, é possível inferir uma conside-
tos na cidade-polo. Interessante notar que, dos
rável sub-representação da região metropolita-
quatro candidatos mais votados na RMM, o de-
na de Londrina.
putado Dr. Batista (PMN) apresentou a maior
O mais votado da RML foi Antonio Be-
quantidade de votos na RMM (93,68%), porém
linati (PP), que obteve 78.429 votos válidos,
foi Wilson Quinteiro (PSB) quem apresentou o
o que representa 18% do total da região me-
perfil de votos mais concentrado na cidade-
tropolitana. O segundo deputado mais votado
-polo (72,42%). Cida Borghetti (PP) foi a mais
na RML foi Luiz Eduardo Cheida (PMDB). Co-
votada entre os quatro no estado. Reeleita, am-
mo deputado eleito pela RML em 2006, Cheida
pliou sua base eleitoral, tendo a terceira menor
(PMDB) também obteve bom desempenho na
concentração tanto na região metropolitana
cidade de Londrina (10,61%), tendo uma vo-
(77,26%), quanto na cidade-polo (49,30%). Já
tação muito fraca nas demais cidades da RML.
Luis Nishimori (PSDB), também no seu segundo
O terceiro deputado eleito mais votado, José
mandato, é o deputado da região metropoli-
Durval Amaral (PFL, hoje DEM), obteve 51,41%
tana que tem o perfil mais disperso, apresen-
dos votos válidos na RML, nesse que seria seu
tando o menor índice de concentração tanto
quinto mandato consecutivo como deputado
na RMM (64,27%), ainda sim bastante alta,
estadual, mas poucos votos na cidade-polo.
como na cidade-polo (33,15%). Entretanto, no
Por fim, dos três deputados eleitos e mais
município de Marialva, seu reduto eleitoral,
votados na RML, apenas Durval Amaral (PFL),
o deputado com votação maior que de todos
apesar da votação concentrada na RML, não
os outros juntos, e mesmo com 6.090 votos,
apresenta o mesmo desempenho na cidade-
100
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano
-polo, tendo um perfil de votação mais disperso
ideológica; entretanto, não tem se revertido em
pelos demais municípios, em especial Cambé,
números suficientes para eleger representantes
segundo maior eleitorado da RML.
da temática.
No caso da RMC, onze deputados tiveram
mais de 50% da votação na região metropolitana, resultando, contudo, em pelo menos três
cenários; Isabete Pavin (PMDB), Cleusa Ferreira
(PV), Carlos Simões (PTB) e Edson Strapasson
Produção legislativa
dos deputados metropolitanos
(PMDB) apresentam-se como os deputados de
caráter metropolitano, com a maioria dos votos
Para demonstrar melhor os desdobramentos da
obtidos na região metropolitana, mas não con-
conexão eleitoral e da concentração dos votos
centrados na cidade-polo. O segundo caso cor-
dos deputados na RMM e na cidade-polo, ana-
responde às votações de Osmar Bertoldi (PFL)
lisaremos os projetos de lei propostos (Quadro
e Mauro Moraes (PMDB), os quais apresentam
2). É possível perceber com mais clareza como
as mesmas características de votação restrita
se dá a ação localista nas proposições. Para
à RMC, mas com mais de 80% dos votos em
tanto, apresentaremos as proposições segundo
Curitiba. Os demais compõem um quadro inter-
sua natureza e recorrência, divididas em qua-
mediário de votações mais dispersas em todo o
tro linhas gerais, e primeiramente classificare-
espectro metropolitano.
mos os projetos de lei que declaram entidades
Como Carvalho sugere, a concentração
sem fins lucrativos como sendo de “utilidade
de votos dos deputados ditos “metropolitanos”
pública”. Esses projetos são aprovados sem
nas cidades-polo caracteriza um situação não
dificuldade no plenário, pois em sua imensa
prevista na literatura da sociologia eleitoral:
maioria contemplam entidades e organizações
[...] estaríamos, então, diante de um híbrido perverso, não previsto pela tradição
de nossa sociologia eleitoral: a sub-representação das áreas urbanas, de um lado, e
o paroquialismo metropolitano, de outro.
Embora de origem urbana, a representação metropolitana no Brasil, ao concentrar sua votação no espaço geográfico de
um único município, se moveria – tal qual
os congêneres das áreas rurais pela lógica
do particularismo, deixando fora de sua
agenda temas de natureza universalista,
como a governança metropolitana. (Carvalho, 2009, p. 369)
da base eleitoral do deputado. Assim, nos deteremos mais nesse tipo de projetos por entendê-los como indicadores da ação paroquialista,
uma vez que as entidades passam a gozar de
benefícios do Executivo Estadual, com maior
acesso a políticas públicas (Cervi, 2009).
Também agruparemos os projetos de lei
que se destinam a prestar homenagens em
geral póstumas (nominando ruas, estradas,
escolas, prédios públicos); leis que criam datas comemorativas e leis que concedem títulos
para homenagear personalidades. Essas leis
também contam com alta taxa de aprovação,
O pressuposto é que o tema metropoli-
porque seus efeitos, na prática, são inócuos e
tano chama a atenção de um eleitor de perfil
não implicam dispêndio de recursos e servem
mais avançado, com um voto de extração mais
apenas para melhorar a imagem do deputado.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
101
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella
Consideraremos as leis que criam, alteram ou
mandato, é a deputada mais ligada às ques-
regulamentam políticas públicas e programas,
tões metropolitanas.
envolvendo temas como saúde, educação, meio
O segundo tipo de projeto de lei mais
ambiente, direito do consumidor, entre outros.
proposto foi criação, alteração ou regulamen-
Essas proposições são caracterizadas, por sua
tação de programas e políticas públicas (saú-
natureza, obtêm baixa taxa de aprovação por
de, educação, meio ambiente, etc.), tendo 61
entrarem em conflito com as diretrizes aprova-
apresentações ou 21,18% do total. O deputado
das por lei complementar ou “simplesmente,
que mais apresentou proposições desta natu-
não são consensuais à maioria dos parlamen-
reza foi o deputado Dr. Batista (PMN), sendo a
tares (sofrem o dilema da ação coletiva e a
maioria deles ligada à temática da saúde, sua
dispersão de preferências entre os deputados)”
área de atuação. Dr. Batista costuma reforçar
(Veiga et al., 2008, p. 18).
esta identificação, ao percorrer o estado dando
Por fim, classificamos as propostas de
palestras sobre vários temas.
projeto de lei que afetam de forma direta a ad-
A criação de datas comemorativas,
ministração pública, instituindo cargos e alte-
concessão de títulos e denominação de ruas,
rando salários ou regulamentando questões de
com 42 solicitações, ou 14,58% do total.
natureza orçamentária e fiscal, como a criação
Nesse tipo de projeto de lei, o deputado que
e isenção de tributos. Esses projetos de lei são
mais apresentou propostas foi Luiz Nishimori
na maioria arquivados, por tratarem de maté-
(PSDB), muitos deles relacionados com a colô-
rias legislativas cuja prerrogativa de proposi-
nia japonesa, de todo estado, justificando seu
ção é exclusiva do executivo estadual (Veiga
perfil de votação mais disperso. Em relação às
et al., 2008).
propostas de lei que tratam da administração
O Quadro 2 demonstra a existência de
pública (política fiscal, orçamentária, tributá-
relevante quantidade de projetos de declara-
ria), na prática prerrogativas do Executivo e de
ção de entidades de utilidade pública de tal
difícil aprovação, apenas 25 foram apresenta-
forma que, do total de 288 projetos propos-
das, ou seja, 8,6% do total. Por fim é necessá-
tos pelos deputados da RMM, 62 são dessa
rio destacar que, dos 288 projetos de lei apre-
natureza, ou seja, 21,53%. O deputado que
sentados (não consideramos sua aprovação ou
mais apresentou este tipo de projeto foi Cida
arquivamento), apenas quatro, ou seja, 1,39%
Borghetti (PP) com 23 proposições, sendo 16
versavam sobre a questão metropolitana, sen-
deles para entidades da cidade-polo, Maringá,
do dois de Cida Borghetti (PLs 310/2007 e
o que representa 69,57% do total de projetos
344/2007) que incluem municípios na RMM.
de concessão do título de entidade pública,
Luiz Nishimori (PSDB ) apresentou uma pro-
apresentados pela deputada. Como já ressal-
posta (PL 129/2008), que também inclui mu-
tamos, esse tipo de projeto de lei permite às
nicípios na RMM, bem como Wilson Quinteiro
entidades gozarem de benefícios do Executi-
(PSB), com a PL 105/2010, que dispõe sobre o
vo Estadual e terem maior acesso a políticas
monitoramento da qualidade do ar da região
públicas. Cida Borghetti (PP), no seu segundo
metropolitana de Maringá.
102
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano
Quadro 2 – Projetos de lei apresentados pelos deputados da RMM
Cida Borghetti (PP)
Natureza da proposta
73 PLs
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
27
36,99
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
13
7,81
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
23
31,51
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
6
8,22
4
5,48
4
Outros
Dr. Batista (PMN)
Natureza da proposta
60 PLs
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
8
13,33
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
8
13,33
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
29
48,33
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
14
23,33
1
1,67
Outros
Enio Verri (PT)
Natureza da proposta
9 PLs
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
7
77,78
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
0
0,00
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
0
0,00
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
0
0,00
Luiz Nishimori (PSDB)
Natureza da proposta
73 PLs
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
17
29,31
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
18
31,03
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
5
25,86
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
3
5,17
Outros
5
8,62
Wilson Quinteiro (PSB)
Natureza da proposta
13 PLs
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
3
23,08
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
3
23,08
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
4
30,77
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
2
15,38
Fonte: ALEP (2011), adaptado por Damascena.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
103
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella
Quadro 3 – Projetos de lei apresentados pelos deputados da RML
Antonio Belinati (PP)
80 PLs
Natureza da proposta
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
12
15,00
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
4
5,00
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
36
45,00
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
23
28,75
Outros
5
6,25
Luiz Cheida (PMDB)
45 PLs
Natureza da proposta
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
20
44,44
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
3
6,67
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
19
42,22
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
2
4,44
Outros
1
2,22
Durval Amaral (DEM)
17 PLs
Natureza da proposta
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
6
35,29
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
2
11,76
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
1
5,88
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
6
35,29
Outros
2
11,76
Fonte: ALEP (2011), adaptado por Damascena.
Os dados do Quadro 3 permitem consta-
maioria delas relacionadas à regulamentação
tar que de um total de 142 propostas, 56, ou
de atividades profissionais, e isenção do pa-
seja, 39,44% do total de projetos de lei apre-
gamento de taxas e cobranças de pedágio. Os
sentados pelos representantes da RML, dizem
projetos de declaração de entidades de utili-
respeito à criação, alteração ou regulamenta-
dade pública ficam em segundo lugar, com 38
ção de programas e políticas públicas. O depu-
recorrências, ou 26,76% do total, e o deputado
tado que mais apresentou proposições desta
que mais apresentou este tipo de projeto foi
natureza foi o deputado Antonio Belinati (PP),
Luiz Cheida (PMDB), com 20 projetos de lei, re-
com 19 propostas (33,93% do total), sendo a
presentando 52,63% do total dessa natureza.
104
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano
Conforme ressaltamos anteriormente,
sua aprovação ou arquivamento), apenas um
esse tipo de projeto de lei permite às entida-
(0,70% do total), versava sobre a questão me-
des condição junto ao Executivo, tendo maior
tropolitana, sendo de autoria de Antonio Be-
acesso a políticas públicas e que assumimos
linati (PP), sem dúvida o deputado que mais
como passíveis de práticas paroquialistas, pois
projetos encaminhou à mesa.
atendem as demandas específicas da base do
Assim, diferente da região metropolitana
deputado. Assim, dos 20 projetos propostos
de Maringá, os deputados da região metropoli-
por Cheida (PMDB), 14 são para entidades de
tana de Londrina apresentaram interesse maior
Londrina, sua base eleitoral. As propostas que
por temas ligados à criação, alteração ou regu-
tratam de administração pública (política fis-
lamentação de programas e políticas públicas.
cal, orçamentária, tributária), e de competên-
Principalmente em virtude da profusão dos
cia do executivo, ocupam o terceiro lugar entre
80 projetos apresentados por Antonio Belinati
as preposições dos deputados da RM, perfa-
(PP), que vão desde a colocação de câmeras
zendo 31 projetos de lei, ou 21,83% do total
em todas as dependências das escolas públi-
de projetos de lei elaborados. Novamente, foi
cas, até a garantia da utilização dos elevadores
o deputado Antonio Belinati (PP) quem mais
dos condomínios residenciais para pessoas de
enviou esse tipo de proposta, 23, ou 93,55%
todas as classes sociais. Entretanto, é importan-
do total desta natureza. Por fim, a criação de
te ressaltar que a prática de declarar entidades
datas comemorativas, concessão de títulos
de utilidade pública teve a segunda maior re-
e denominação de ruas foi a que apresentou
corrência entre os deputados eleitos pela RML.
menos recorrências, nove, respondendo por
A exemplo de Cheida (PMDB), o deputado
6,33% do total, tendo no deputado Antonio
Belinati (PP) utilizou esta mesma estratégia,
Belinati (PP) o maior propositor deste tipo de
concedendo essa “benesse” para 12 entidades,
projeto, com quatro propostas. Dos 142 pro-
porém de forma não tão concentrada em Lon-
jetos de lei apresentados (não consideramos
drina (duas entidades apenas).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
105
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella
Quadro 4 – Projetos de lei apresentados pelos deputados da RMC
Rosane Ferreira (PV)
40 PLs
Natureza da proposta
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
15
37,50
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
5
12,50
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
15
37,50
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
1
2,50
4
10,00
Outros
Osmar Bertoldi (PFL)
77 PLs
Natureza da proposta
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
12
15,58
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
0
0,00
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
43
55,84
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
13
16,88
9
11,69
Outros
Ney Leprevost (PP)
162 PLs
Natureza da proposta
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
19
11,73
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
46
28,40
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
37
22,84
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
22
13,58
38
23,46
Outros
Mauro R. Moraes e Silva (PMDB)
84 PLs
Natureza da proposta
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
5
5,95
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
1
–
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
30
–
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
15
–
33
–
Outros
Luiz Carlos Martins (PDT)
15 PLs
Natureza da proposta
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
5
33,33
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
3
20,00
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
0
0,00
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
3
20,00
Outros
4
26,67
106
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano
Isabete Pavin (PMDB)
Natureza da proposta
13 PLs
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
2
15,38
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
3
23,08
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
3
23,08
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
2
15,38
3
23,08
Outros
Fabio de Souza Camargo (PDT)
Natureza da proposta
54 PLs
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
16
29,63
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
9
16,67
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
15
27,78
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
6
11,11
8
14,81
Outros
Edson Luiz Strapasson (PMDB)
Natureza da proposta
20 PLs
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
9
45
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
4
20
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
2
10
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
4
20
1
5
Outros
Edson da Silva Praczyk (PRB)
Natureza da proposta
24 PLs
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
7
29,17
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
1
4,17
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
6
25
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
1
4,17
9
37,50
Outros
Carlos Xavier Simões (PTB)
Natureza da proposta
7 PLs
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
1
14,29
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
2
28,57
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
3
42,86
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
0
0
Outros
1
14,29
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
107
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella
Antonio Tadeu Veneri (PT)
41 PLs
Natureza da proposta
Recorrência
%
Declaração de entidade de utilidade pública
17
41,46
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas
1
2,44
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
ambiente, etc.)
6
14,63
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária)
8
19,51
Outros
9
21,95
Fonte: ALEP (2011), adaptado por Damascena.
O total de projetos de lei apresentados
característica. Individualmente os parlamenta-
pelos deputados considerados metropolitanos
res que mais apresentaram foram: Tadeu Veneri
foi de 214. Individualmente, apresentaram
(41,5%), Rosane Ferreira (37,5%) e Luis Carlos
maior número de PL, pela ordem, Ney Lepro-
Martins (33,3%). Os dois últimos não foram
vost (162), Mauro Moraes (84), Osmar Bertoldi
reeleitos. Curi, campeão de votos no Estado e
(77), Fábio Camargo (54) e Tadeu Veneri (41).
conhecido por práticas clientelistas, apresentou
Não está em questão a qualidade das proposi-
44,16% de PLs em busca de benefícios a enti-
turas e, pela lógica do eleitor, foram bem suce-
dades assistenciais.5
didos em apresentar grande volume de propostas, pois todos os listados foram reeleitos.
Na análise dos projetos de lei apresentados pelos deputados da 16ª legislatura da
Na linha de argumentação que aponta
ALEP eleitos pelas RMs estudadas, reforça a ar-
que a solicitação de declaração de entidades
gumentação de que o tema metropolitano não
de utilidade públicas, sem maiores critérios, re-
encontra lugar na agenda dos deputados. No
força práticas clientelistas, entre os deputados
período, dez deputados apresentaram projetos
listados, em torno de 24% foram PLs com esta
de lei sobre o tema, conforme Quadro 5.
108
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano
Quadro 5 – PLs apresentados versando sobre o tema metropolitano
Deputado
Rosane Ferreira (PV)
Osmar Bertoldi (DEM)
Mauro Moraes (PMDB)
PLs
Conteúdo
PL 257/2010
PL 726/2007
- Institui, no estado do Paraná, o programa “tarifa reduzida” no transporte
coletivo metropolitano das regiões metropolitanas no estado do Paraná.
- Dispõe sobre o monitoramento em tempo real da qualidade do ar da região
metropolitana de Curitiba.
PL 368/2010
PL367/2010
PL366/2010
- Autoriza o poder executivo criar a linha do turismo nos municípios da
região metropolitana de Curitiba.
- Autoriza a criação e instalação de centros integrados de atendimento ao
cidadão – CIAC – nos municípios da RMC.
- Institui os conselhos metropolitanos de segurança pública das regiões
metropolitanas do estado do Paraná, e dá outras providências.
PL 483/2008
- Cria uma central de tratamento de resíduos de Curitiba e região
metropolitana de Curitiba – Comec.
PL 632/2007
- Autoriza o poder executivo a instituir a universidade estadual da
comunidade dos municípios da RMC, com sede no município de Faz, Rio
Grande.
- Autoriza o poder executivo a instituir a subdivisão policial do município de
Fazenda Rio Grande, com atuação no âmbito da comarca e cidades vizinhas
na região metropolitana de Curitiba.
- Altera a redação da lei complementar nº 81, de 17 de junho de 1988,
alterada pelas leis complementares nºs 86/00 e 91/02, incluindo o município
de Alvorada do Sul, entre os da região metropolitana de Londrina.
PL 561/2007
Geraldo Cartário (PMDB)
PL Complementar 8/2008
PL Complementar 212/2008
Regionaliza a região metropolitana de Curitiba e seus conselhos deliberativo
e consultivo e define o modelo de gestão das funções públicas de interesse
comum metropolitanas.
PL Complementar 175/2010
- Altera o art. 1º da lei complementar nº 81, de 17/6/88, que foi alterada
pelas leis complementares nºs 86/00 e 91/02, que institui a região
metropolitana de Londrina (constituída pelos municípios de Londrina,
Cambé, Bela Vista do Paraíso, Jataizinho, Ibiporã, Rolândia, Sertanópolis,
Tamarana, Primeiro de Maio e Alvorada do Sul).
- Altera o art.1º da lei complementar nº 81/88, que instituiu a região
metropolitana de Londrina (inclusão do município de Primeiro de Maio).
- Institui a região metropolitana de Umuarama e dá outras providências
(Umuarama, Alto Paraíso, Cruzeiro do Oeste, Ivate, Perobal, Maria Helena,
Xambrê, Altônia, Alto Piquiri, Brasilândia do Sul, Esperança Nova, Cafezal
do Sul, Cidade Gaúcha, Douradina, Francisco Alves, Icaraíma, Iporã, Mariluz,
Nova Olímpia, Pérola, São Jorge do Patrocínio, Tapejara e Tapira).
Edson Strapasson (PMDB)
Alexandre Curi (PMDB)
PL Complementar 231/2009
PL Complementar 26/2009
PL Complementar 344/2007
Cida Borghetti (PP)
PL Complementar 310/2007
Wilson Quinteiro (PSB)
Luiz Nishimori (PSDB)
- Altera a redação do art. 1º da lei complementar nº 83/1998, região
metropolitana de Maringá (inclui os municípios de Bom Sucesso, Jandaia do
Sul, Cambira, Presidente Castelo Branco, Flórida, Santa Fé, Lobato, Munhoz
de Mello, Floraí, Atalaia, São Jorge do Ivaí e Ourizona.
- Altera a redação do art. 1º da lei complementar nº 83/1998 (região
metropolitana de Maringá).
PL Complementar 105/2010
- Dispõe sobre o monitoramento da qualidade do ar da região metropolitana
de Maringá em tempo real.
PL Complementar 129/2008
- Propõe ampliação dos municípios que compõem a região metropolitana
de Maringá.
PL Complementar 328/2009
- Estabelece a criação do passe livre para o cidadão desempregado
(empresas de transporte coletivo terão 30 passagens gratuitas para
trabalhadores desempregados residentes nas regiões metropolitanas).
Antonio Belinati (PP)
Fonte: ALEP (2011), adaptado por Damascena.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
109
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella
A deputada Cida Borghetti (PP) apresentou dois projetos de lei complementar referentes à região metropolitana de Maringá,
(310/2007 e 344/2007), que incluem municípios na RMM. Luiz Nishimori (PSDB) apresentou um projeto de lei complementar 129/2008,
também ampliando os municípios que compõem a região metropolitana de Maringá. Wilson Quinteiro (PSB), que assumiu o cargo em
dezembro de 2009, apresentou o projeto de lei
105/2010, que dispõe sobre o monitoramento
da qualidade do ar da região metropolitana de
Maringá em tempo real.
Considerações finais
Neste trabalho abordamos dois assuntos que, a
priori, parecem distintos, mas na prática estão
intimamente ligados: regiões metropolitanas e
representação política. Em um levantamento
da literatura foi possível compreender as razões do descaso com o tema metropolitano, e
da consequente ausência da governança metropolitana na agenda dos gestores. O argumento central que orientou este trabalho é que
os problemas estruturais – mobilidade populacional, moradia, saneamento, sistema viário,
Pela Região Metropolitana de Londrina,
violência, entre outros – adquirem a dimensão
no período de 2007-2011, apenas o deputado
metropolitana, mas a forma de atuação dos
Antônio Belinati (PP) apresentou proposta re-
parlamentares é local e paroquial, de atendi-
lacionada à questão metropolitana, o projeto
mento às bases municipais.
de lei 328 /2009, que estabelece a criação de
Às demais cidades que compõem as re-
30 passes livres mensais pelas empresas de
giões metropolitanas de Curitiba, Maringá e
transporte coletivo, para o cidadão desempre-
Londrina, resta um papel secundário; muitas
gado residente nas regiões metropolitanas
vezes como fornecedoras de mão de obra, car-
A maioria dos PLs é de autorização do
regam o ônus do déficit de programas e políti-
poder executivo e não aponta destinação de
cas públicas. A sub-representação política des-
recursos públicos para a ação, o que leva o exe-
tes municípios certamente faz parte da causa
cutivo a vetar a propositura.
dos muitos problemas sociais enfrentados por
Observe-se que Geraldo Cartário e Curi,
dois deputados não listados como de caráter
estas populações, principalmente no que se refere à ausência do Estado.
metropolitano, apresentaram projetos sobre
Neste sentido, os números indicam a
o tema. Esse último tenta instituir uma nova
falta de um projeto mais amplo de cooperação
região metropolitana, a de Umuarama. Incluir
e integração. As elites políticas das regiões
municípios nas RMs ou criar novas aparecem
metropolitanas de Maringá e Londrina opta-
aos parlamentares como um mecanismo de an-
ram por priorizar suas práticas personalistas,
gariar apoios de prefeitos e do eleitorado, uma
seguindo um cálculo puramente eleitoral, o
vez que o imaginário político aponta para um
que acaba pulverizando seu potencial de re-
ganho de status quando o município pertence
presentação ao eleger um número bastante
a alguma RM, ainda que a prática demonstre
baixo de deputados.
que não nenhum ganho mais substancial por
esta forma de configuração de território.
110
Neste estudo, os dados referentes à
Região Metropolitana de Maringá (RMM)
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano
contradizem nossa hipótese inicial de sub-
Em relação ao novo cenário da eleição de
-representação, demonstrando, ao contrário,
2010, a RMM, que contava com cinco deputa-
que na 16ª legislatura (2007-2010), se verifica
dos eleitos em 2006, não conseguiu repetir o
uma sob-representação da RMM na assem-
mesmo desempenho, elegendo apenas três de-
bleia legislativa do Paraná. Com seus 402.582
putados: Dr. Batista (PMN), Evandro Jr. (PSDB)
eleitores em 2006, a região metropolitana de
e Ênio Verri (PT), caracterizando uma sensível
Maringá elegeu quatro deputados, tendo um
perda de sua representação.
quinto assumido a vaga de suplente. Assim,
No caso da RML, que apesar de seu elei-
grosso modo, e apenas com fins demonstra-
torado ser superior ao da RMM, já em 2006
tivos, a RMM teria um deputado para cada
não tinha conseguido traduzir isto em uma
80.516 habitantes.
maior representatividade política na esfera
Por outro lado, a Região Metropolitana
estadual, elegendo apenas dois representan-
de Londrina confirma nossa hipótese de sub-
tes. Seguindo a tendência de Maringá, a RML
-representação, pois, mesmo tendo um eleito-
viu sua representação encolher ainda mais em
rado de 513.515 votantes (21,6% maior que o
2010, reelegendo apenas dois deputados, Luiz
de Maringá), conseguiu eleger apenas três de-
Cheida (PMDB) e Durval Amaral (DEM). Belinati
putados estaduais, um para cada 171.171 ha-
(PP) desistiu de se candidatar com receio da lei
bitantes, ou seja, mais que o dobro de eleitores
de ficha limpa.
por deputado do que a RMM.
A RMC tem um histórico mais consolida-
Os dados apontam para o fato de que a
do de tentativas de integração metropolitana
característica presente nas RMs estudadas é a
e a Coordenação da Região Metropolitana de
sub-representação das cidades menores em re-
Curitiba – Comec ser a única das coordenações
lação ao poder econômico e social das cidades-
metropolitanas com dotação orçamentária
polo, que se traduz também em poder político
condizente com a relevância de sua área de
das suas elites, organizadas em pequenos gru-
abrangência. Interessante observar que o único
pos na disputa pela representação.
deputado que se identificava com a temática
Com relação a nossa segunda hipótese,
metropolitana, Luis Strapasson, não foi reeleito.
de que haveria um paroquialismo metropo-
Em 2010, apesar de o índice de renovação da
litano “de fato”, o resultado do estudo dos
ALEP ser de apenas um terço de parlamentares,
projetos apresentados, no qual a recorrência
dos deputados metropolitanos foram reeleitos
e a ocorrência dos projetos de concessão de
somente cinco: Osmar Bertoldi (DEM), Ney Le-
título de utilidade pública para as bases elei-
provost (PP), Mauro Moraes (PSDB), Fabio Ca-
torais sugerem práticas localistas paroquia-
margo (PTB) e Tadeu Veneri (PT).
listas, uma vez que estas entidades passam a
As questões apresentadas objetivam a
usufruir de benefícios e têm acesso mais fácil
reflexão sobre a pouca integração, coopera-
a recursos públicos. Confirmam-se as teses de
ção e falta de políticas públicas conjuntas en-
Carvalho, de predominância do particularismo
tre as regiões metropolitanas. Parece-nos que
legislativo e do predomínio do voto personali-
a ausência do tema metropolitano da agenda
zado na arena eleitoral.
dos gestores se dá pela falta de um arcabouço
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
111
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella
legislativo que lhes forneça suporte, demons-
centros urbanos, que enfrentam problemas ca-
trando quão importante é a representação des-
da vez mais complexos, requerendo soluções
sas regiões na arena legislativa. Assim, gestão
conjuntas e integradas, e não apenas servindo
metropolitana e representação têm implicação
a interesses de acúmulo de capital político com
direta na vida cotidiana do cidadão destes
vistas à reeleição.
Jéferson Soares Damascena
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá e Pesquisador do Observatório
das Metrópoles, núcleo Maringá. Maringá, Paraná, Brasil.
[email protected]
Celene Tonella
Cientista político. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Estadual de Maringá. Maringá, Paraná, Brasil.
[email protected]
Notas
(1) Ressaltamos, porém, que, devido à falta de colaboração dos responsáveis pela estrutura da
Assembleia Legisla va do Paraná-ALEP, não vemos acesso aos dados referentes às emendas ao
orçamento por parte dos deputados. Sem dúvida, esses dados seriam de extrema relevância na
iden ficação de eventuais prá cas distribu vas e clientelistas.
(2) Abordagem desenvolvida em Damascena, J. (2011).
(3) A RMM conta hoje, oficialmente, com 25 municípios. A adoção de 13 municípios corresponde à
configuração existente em 2006.
(4) A declaração de en dade de u lidade pública pode ser pleiteada nos três níveis de governo. Por
meio desse reconhecimento, as en dades podem obter verbas, isenções, receber doações e
demais bene cios do governo. No caso do estado do Paraná, a legislação é bastante an ga, Lei
6.944, de 10/1/78, parcialmente alterada pela Lei 8589, de 22/10/1987. A Lei 6.944 não define
o po de bene cio que o poder público estadual pode conceder às en dades. Define quais os
requisitos a serem obedecidos para obter a declaração. O ar go 1º, que define os requisitos,
em inciso IV, que comprovadamente, mediante relatório apresentado, promove a educação, a
assistência social ou exerce a vidades de pesquisas cien ficas, de cultura, inclusive ar s cas ou
filantrópicas, de caráter geral ou indiscriminatório.
(5) O deputado Alexandre Curi foi o campeão de votos no Estado, sendo reeleito com 131.988 votos.
Na RMC fez 26.377 votos, mas representou apenas 20% do total. Não se caracteriza, portanto,
como deputado metropolitano.
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O peso do voto metropolitano
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Texto recebido em 25/ago/2011
Texto aprovado em 12/out/2011
114
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
Habitus, planejamento
e governança urbana
Habitus, planning and public governance
Nilton Ricoy Torres
Resumo
Este artigo é organizado em duas seções. A primeira avalia as teses avançadas por Bourdieu,
formuladas a partir de sua teoria estrutural construtivista. São analisados os conceitos de habitus,
de "campo" e o da "dinâmica das lutas pelo poder
e dominação". O objetivo é avaliar em qual medida as proposições de Bourdieu ajudam a entender a prática de planejamento urbano no Brasil.
Na segunda parte são discutidas seis hipóteses
elaboradas em torno dos conceitos de habitus e
campo social, de Pierre Bourdieu, que explicam a
relação dialética entre o agente e a estrutura. A
discussão é realizada tomando como referência
a história da prática de planejamento brasileira e, em particular, a de São Paulo. Os conceitos
de habitus e de campo são abordados em detalhes e articulados aos conceitos de relações de
poder, dominação e ao de lutas de classes, que
são de especial importância para a compreensão
dos processos de mudança da estrutura social. O
trabalho procura esboçar um esquema que possa
servir de referência para pensar a prática de planejamento como um campo de posições e de lutas
entre forças que buscam a conservação e forças
que buscam a transformação social.
Abstract
This paper is organized in two sections. The
first deals with the propositions advanced by
Bourdieu by focusing on his theory of structural
constructivism. It draws on Bourdieu's theory of
habitus,” field" and "the dynamic of struggles and
within the field" in order to assess the extent to
which Bourdieu constructs can help to understand
the dynamic of planning practice in Brazil. The
second section evaluates six working hypothesis
dealing with Bourdieu concepts of social field
and habitus which explain the dialectical relation
between structure and agency in the planning
process. The empirical analysis and the theoretical
confrontations are simultaneously developed by
taking the experience of Brazilian planning practice
and particularly that of São Paulo city. The concepts
of field and habitus in planning are analyzed in
detail, in articulation with the concepts of power,
domination and class struggle, which according
to Bourdieu, are central for understanding the
process of change of the social structure. The
paper attempts to sketch a reference framework
for analyzing the practice of planning as a field
of struggles between forces seeking to keep and
forces seeking to change the social structure.
Palavras-chave: habitus; campo social; planejamento; governança urbana; poder.
Keywords: habitus; social field; planning; urban
governance; power.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Nilton Ricoy Torres
Introdução
mas esboçar um esquema de interpretação a
partir de alguns fatos e circunstâncias históricas,
de maneira a contribuir para o entendimento de
Este trabalho discute as práticas de planejamento como governança dentro da administração pública, tomando por base os conceitos de
habitus e de "campo social", desenvolvidos por
Pierre Bourdieu. O objetivo é identificar a natureza e o modus operandi dessa prática, tendo
em vista esclarecer o papel social dos agentes
de governança urbana nos processos de transformação das estruturas sociais. Os conceitos
de habitus e de campo social são analisados a
partir das lutas travadas dentro do campo do
planejamento e da governança, lutas essas voltadas para acumulação de poder e dominação.
Para desenvolver este estudo são destacados e
avaliados, na primeira parte do texto, os principais conceitos da teoria estrutural construtivis-
alguns aspectos da prática de planejamento como governança urbana no Brasil.
O teste dessas hipóteses é realizado a
partir do cotejo com a realidade vivida pela
prática de planejamento e governança urbana,
tanto nos campos profissional como acadêmico. Essas experiências se vinculam às práticas
dos agentes nas universidades, nas instituições
públicas do estado ou nos movimentos sociais
autônomos. A seguir, uma síntese operacional
do método de Bourdieu é apresentada, com o
propósito de contribuir para o desenvolvimento
de pesquisas em campos como geografia, ciência da gestão, planejamento, políticas públicas
que têm como fundamento as questões sociais
no espaço urbano.
ta de Bourdieu. Na segunda parte são discutidas seis hipóteses acerca do planejamento e
da governança urbana como um campo social.
Essas hipóteses são extraídas das proposições
teóricas de Bourdieu e confrontadas com a rea-
Bourdieu e a metateoria
da prática
lidade da governança urbana que, no texto,
tem como base empírica de análise a experiên-
O estruturalismo crítico de Bourdieu busca o
cia de planejamento e governança urbana na
desvelamento da articulação entre os proces-
cidade de São Paulo.
sos de mudança social e as estruturas objetivas
Articulando as ideias de revolução cien-
subjacentes a esses processos pela análise dos
tífica e de superação de paradigmas de Kuhn
mecanismos de dominação, de produção de
(1970) às de lutas, dentro do campo para su-
ideias e da gênese das condutas. O principal
peração de habitus e posições de Bourdieu, o
objetivo é superar a oposição entre objetivismo
estudo avalia em qual medida as práticas espe-
e subjetivismo das ciências sociais. O conceito
cíficas dos gestores de planejamento, dentro do
de habitus é desenvolvido como uma noção
campo da governança urbana, podem contribuir
mediadora entre os determinismos estruturais
para transformar ou perpetuar as relações so-
e comportamentais, com o objetivo de romper
ciais vigentes. Não se pretende, aqui, elaborar
a dualidade de senso comum entre o agente e
uma resenha interpretativa da história do pla-
a estrutura social. Ao captar “a interiorização
nejamento na administração pública no Brasil,
da exterioridade e a exteriorização da
116
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana
interioridade”, o habitus busca articular o mo-
da consciência que faz recair sobre o sujei-
do como a sociedade se torna depositada nos
to a construção da realidade. O habitus é um
agentes sociais sob a forma de disposições
esquema historicamente constituído de com-
duráveis e propensões estruturadas para pen-
partilhamento generativo de percepções, de
sar, sentir e agir. Essas capacidades irão, então,
apreciações e de categorizações, que serve pa-
guiá-los em suas respostas criativas aos cons-
ra mediar entre a estrutura e a agência, isto é,
trangimentos e solicitações da estrutura social
para conectar a estrutura social e o agente em
em que estão inseridos.
um relacionamento dialético (Bourdieu, 1984;
O método de análise é empírico e sistêmi-
Hillier e Rooksby, 2001, p. 2). Para Bourdieu, o
co e o pressuposto fundamental é que a dinâ-
habitus é uma matriz de disposições, adquirida
mica social se dá no interior de um grupo social
com as experiências sociais inculcadas e que
(campo), no qual os indivíduos (agentes), como
pode ser entendida como sabedoria prática.
portadores de atributos específicos (habitus) ,
Essa matriz define os modos de perceber, sen-
estabelecem confrontos pela hegemonia do
tir e pensar que levam o agente a atuar de de-
campo. O campo é composto por valores ou
terminada maneira diante de certas situações.
tipos específicos de capital produzidos pelo
As disposições não são mecânicas nem deter-
campo. A dinâmica social é marcada por lutas
ministas, pois resultam de um processo com-
entre os agentes que buscam a manutenção
plexo de mútua incorporação e interdepen-
ou alteração das formas de distribuição do ca-
dência entre a estrutura e o agente. O agente
pital e das relações de força dentro do campo.
as adquire pela interiorização das estruturas
As lutas e os conflitos travados no campo são
sociais. Essas estruturas, como portadoras da
comandados por estratégias que encontram, no
história individual e coletiva, são internaliza-
habitus, o elemento determinante da ação. O
das a ponto de o agente ignorar que existem.
campo é constituído de posições ocupadas pe-
São rotinas corporais e mentais inconscientes
los agentes e são essas posições que determi-
que permitem o agir sem pensar, pois são pro-
narão a forma de conduta dos indivíduos e gru-
duto de uma aprendizagem da qual o agente
pos dentro do campo. Aos conceitos de habitus
não tem mais consciência e expressa-se por
e de campo, Bourdieu agrega uma constelação
uma atitude "natural" de conduta em um de-
de conceitos secundários que evoluem articula-
terminado meio.
dos entre si para fundamentar o entendimento
relacional do fenômeno social.
O habitus é um sistema de disposições
duráveis e transferíveis que opera como suporte das práticas e representações sociais
vinculadas a uma forma específica de exis-
Habitus
tência. O habitus é condicionante e condicionador de nossas ações e aparece sob a forma
O conceito é desenvolvido para escapar do
de símbolos, crenças, gostos e preferências
racionalismo objetivista do estruturalismo, o
que caracterizam a posição social do indiví-
qual reduz o indivíduo às determinações da
duo. É incorporado pela interação social, mas,
estrutura, mas também para evitar a filosofia
ao ser incorporado, funciona para classificar e
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
117
Nilton Ricoy Torres
organizar essa interação. Uma vez incorporado,
inovar seu habitus para se adaptar às novas
o habitus se torna parte da natureza dos agen-
situações e demandas sociais. A reflexividade
tes. A incorporação do habitus ocorre de duas
crítica no processo de adaptação do habitus
formas. A primeira, pela educação familiar e
acelera a transformação. Dessa forma, o
regras de classe, e acontece de maneira implí-
habitus é um atributo dinâmico: quando o ator
cita e inconsciente; a segunda é um processo
entra em um campo ou jogo que não é familiar,
explícito, metodicamente organizado e provém
há uma transformação no habitus e o agente
da educação escolar, da indústria cultural e dos
desenvolve novas facetas de si próprio. Com a
meios de comunicação de massa.
mudança do habitus, o ator altera sua manei-
Como disposições flexíveis e plásticas, os
ra de ver, perceber, julgar e valorizar o mundo,
habitus se manifestam no cotidiano das rela-
determinando, então, seu modo de agir cor-
ções sociais de diversas formas. Eles emergem
poral e mental. Desse modo, os habitus, como
sob a forma de conhecimento tácito e uma
estruturas sociais incorporadas, podem ser vis-
visão de mundo. Expressam-se por meio de
tos como formas “de conhecimento prático...
reações às experiências, percepções do jogo,
de mundos sociais resultantes… da divisão
hipóteses, por intuições, sensibilidades, modos
em classes (grupos de idade, gêneros, classes
de fazer, sentimentos, predisposições, expecta-
sociais) e que funcionam abaixo do nível de
tivas, senso de possibilidades e de lugar, ante-
consciência e do discurso” (Bourdieu, 1984). O
cipações práticas de uma situação, percepção
habitus é, portanto, o mecanismo transmissor
do timing e do tempo, gostos e desejos, do
e “inculcador" das normas, dos valores e das
conhecimento das posições, do sentido lógico,
crenças do grupo social que agem durante o
das aspirações, inspirações, táticas e estraté-
processo de socialização do indivíduo e vão
gias. O habitus é o elemento vital na organi-
se tornar os princípios de ação, de atitudes e
zação da vida social, pois atua como uma lei
opiniões do indivíduo em sua práxis cotidiana.
imanente para orientar as ações do cotidiano e
O habitus, assim interiorizado, é convertido em
para construir o conhecimento prático que ca-
uma disposição que produz práticas que vão
pacita o agente a operar no mundo. Assim, o
dar sentido à realidade e às percepções que ge-
habitus condiciona os agentes sociais de modo
ram significado (ibid.).
a determinar seu modus operandi, suas moti-
O habitus não é um espaço natural,
vações, suas preferências, aspirações e expec-
mas, ao contrário, é um espaço social cons-
tativas. O habitus não possui soluções prontas
truído, incorporado pelas estruturas mentais.
para cada situação ou contexto. Ele é uma res-
É um mecanismo que permite a produção e
posta improvisada à circunstância do momen-
a reprodução das práticas sociais, pois é uma
to. O habitus é, basicamente, adaptativo. Ele
percepção estruturada sobre o modo de agir e
se modifica e adapta-se a cada nova situação
comportar-se dentro das normas estabelecidas
e a cada mudança na estrutura social: novos
do campo social. O habitus é constituído por
comportamentos, novas tecnologias, novas
meio de ações miméticas e participativas em
realidades, novas condições, novas restrições.
consonância com as lógicas de interação social
O ator deve e é constantemente compelido a
dentro do campo. É pela prática da repetição
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana
que o agente aprende uma maneira de ser e de
legitimar a ação do agente em suas relações
fazer, percebida como correta. Nesse processo,
com a sociedade, o habitus contribui para res-
o agente incorpora uma visão de mundo, um
significar essa ação no sentido da manutenção
modo de ser, de fazer, o qual, no contexto da
ou da mudança no modo de agir desse agente
práxis, diferencia-o e torna-o distante de outros
no campo social. Sendo assim, Bourdieu defi-
que adotam diferentes formas de ser e de fazer.
ne o habitus como o produto da internalização,
Pela via do habitus, o agente ocupa seu
pelo indivíduo, das condições históricas e so-
espaço no campo social e permite que os de-
ciais realizadas ao longo de sua trajetória pes-
mais também ocupem seus espaços, em uma
soal e social. Além de produto (consequência)
relação de complementaridade e reciprocidade.
da história que produz as práticas individuais e
Por isso, o habitus determina e regula tanto o
coletivas, o habitus também produz (causa) his-
indivíduo como o grupo (portanto, as práticas
tória em conformidade com os esquemas por
coletivas). Como os habitus sofrem influências
ela engendrados. Em outras palavras, o habitus
de diferentes ambientes, decorre que “… as
é estruturado (resultado) pela incorporação das
diferentes condições de existência produzem
estruturas sociais e pela posição de origem do
habitus diferentes”(ibid.). Assim, as inclinações
sujeito e é também “estruturador (causa) das
se transformam em gostos, ações e formas
ações e representações dos sujeitos”.
de ser particulares que, por sua vez, reforçam
Como o habitus atua como uma espécie
o habitus e mantêm a ordem social existente.
de regulador da ação social, tanto na dimensão
O agente social é múltiplo e variável e pode
subjetiva como objetiva, ele pode ser usado
desenvolver “múltiplos habitus”, pois ele não
para analisar as atitudes subjetivas capazes de
está inextricavelmente imerso em um único
estruturar as representações e a geração de no-
habitus, mas pode se mover de um habitus pa-
vas práticas. Cada sujeito vivencia experiências,
ra outro e desenvolver comportamentos adap-
em função de sua posição na estrutura social
tativos dentro de um mesmo habitus.
e essas experiências se efetivam em sua subje-
O habitus está sempre em busca da su-
tividade, constituindo uma espécie de “matriz
peração das antinomias que se manifestam na
de percepções e apreciações”. Essa matriz ser-
tensão entre os eventos do passado e o pro-
virá de guia para orientar as ações do agente
blema do futuro. Nesse sentido, Bourdieu argu-
nas situações posteriores. Por terem o habitus
menta que o habitus pode mudar à medida que
como fundamento, as práticas e as represen-
as condições sociais e históricas são alteradas
tações podem ser orientadas para seu objetivo
(Bourdieu, 2009). Por esse processo, o habitus
sem terem de envolver, por um lado, um dire-
incorpora outros esquemas de percepção e
cionamento manifesto e consciente em relação
ação, que contribuirão para a conservação ou a
aos fins e, por outro, o controle expresso das
transformação das estruturas do campo social.
operações necessárias para atingi-los. Essas
Dessa maneira, o conceito de habitus serve pa-
disposições são objetivamente reguladas e re-
ra analisar tanto situações de crise e mudança
gulares, mas não são produtos da obediência
quanto de coesão e perpetuação do jogo e das
às regras; são coletivamente orquestradas sem
relações de poder dentro do campo social. Ao
resultar da ação diretriz.
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Nilton Ricoy Torres
O campo
definido como um domínio de contestação e
pode ser visto como uma rede ou configuração
de relações objetivas entre posições. Essas se
Para Bourdieu, campo é o espaço que delimita
caracterizam pelos constrangimentos que im-
a estrutura na qual o habitus opera. É um espa-
põem sobre seus ocupantes (agentes ou insti-
ço social estruturado dentro do qual os atores
tuições), tendo em vista: 1) a situação presente
lutam para atingir seus objetivos. É o locus da
ou potencial (situs) do agente na estrutura da
práxis em que se faz a mediação entre o ator e
distribuição de poder (ou capital), cuja posse
a estrutura. O campo possui estrutura própria e
comanda o acesso aos lucros específicos que
autonomia em relação a outros espaços sociais
estão em jogo no campo; e, 2) a relação objeti-
e conta com uma lógica específica de funcio-
va com outras posições (Wacquant, 2002).
namento e estratificação, a qual funciona co-
Nas sociedades capitalistas desenvol-
mo princípio para regular as relações entre os
vidas, os atores se diferenciam pela posse de
agentes sociais dentro desse espaço.
capital econômico e de capital cultural. Os
O campo é uma estrutura social modela-
sujeitos ocuparão posições mais próximas em
da pela dinâmica das práticas e interações so-
função da quantidade e espécie de capitais
ciais, no qual prevalecem regras específicas que
que detêm e estarão mais distantes no campo
determinam o que é prático, objetivo e racio-
social, quanto mais desigual for o volume e o
nal; o que é adequado, aceitável ou reprovável;
tipo de capital que possuírem. Assim, pode-se
o que deve ser estimulado ou coibido; e vão
dizer que a riqueza econômica (capital econô-
consolidar o habitus particular de um contexto.
mico) e a cultura acumulada (capital cultural)
Um campo pode ser entendido como uma are-
geram internalizações de disposições (habitus)
na de disputas na qual os agentes jogam, de-
capazes de diferenciar as posições ocupadas
senvolvem estratégias e lutam pelos recursos
pelos homens. Bourdieu explica que os agen-
cobiçados: bens simbólicos e posições sociais.
tes constroem a realidade social por meio de
No interior do campo, os indivíduos lutam pelo
lutas e de relações, visando impor sua visão de
controle da produção e pela legitimação dos
mundo, mas eles o fazem sempre a partir de
bens produzidos dentro do campo. Esses bens
pontos de vista, interesses e referenciais deter-
são constituídos por diversos tipos de capital:
minados pela posição que ocupam no mundo
cultural, econômico e social. Esses capitais
(campo) que pretendem transformar ou conser-
possuem graus diferenciados de importância
var (Bourdieu, 1989).
em cada campo e a posse dos mesmos deter-
Bourdieu busca superar a dicotomia en-
mina a posição social do indivíduo dentro do
tre o subjetivismo e o objetivismo, fazendo in-
campo. Os indivíduos que possuírem quanti-
teragir os sistemas: 1) de posições objetivas; e
dades significativas de capitais considerados
2) de disposições subjetivas dos indivíduos. O
importantes no campo ocuparão posições do-
habitus que existe dentro de um campo atua
minantes dentro do mesmo. O campo constitui,
como um mediador entre: 1) o sistema invisí-
desse modo, um sistema de hierarquias entre
vel das limitações estruturais (que molda as
dominantes e dominados. Por isso, o campo é
ações do indivíduo e das instituições), e 2) as
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Habitus, planejamento e governança urbana
ações visíveis desses atores (que estruturam
de forças" no qual se exerce a dominação;
as relações). Decorre então que o campo não
2) uma estrutura que constrange a ação dos
é uma estrutura estática, mas o resultado da
agentes nele envolvidos; (3) um "campo de
história das diversas posições (que o consti-
lutas" entre os agentes que atuam de acordo
tuem) e das disposições que elas privilegiam
com suas posições no campo de forças, bus-
(cf. Bourdieu, 2001, p. 129). A existência e os
cando conservar ou transformar a estrutura
limites de um campo são estabelecidos pelos
(Bourdieu, 2010, p. 50). Todo campo é defi-
interesses nele contidos, pelos investimentos
nido por uma estrutura de espaços relacionais
econômicos e psicológicos dos agentes e pelas
internos (na qual os agentes e instituições
instituições nele inseridas. Para Bourdieu, os
coexistem em diferentes posições na estrutu-
campos se estabelecem por processos de di-
ra) e pelo espaço externo (que não é campo)
ferenciação social e pelas formas de ser e de
(ibid.). Internamente, o campo é constituído
conhecer o mundo de seus membros, que vão,
por uma estrutura objetiva de posições e por
então, determinar seu objeto específico e seu
uma estrutura subjetiva de disposições, que
princípio de compreensão. Os campos assim
se intera gem mutuamente em constante ar-
determinados tornam-se espaços estruturados
ticulação. Nesse processo, o campo estrutura
de posições as quais, em um dado momento,
o habitus e esse constitui o campo (Bourdieu,
constituem um microcosmo social de valores
1992). O campo é, portanto, a exteriorização
(capitais e cabedais), de objetos e interesses
ou objetivação do habitus e esse é a internali-
específicos (Bourdieu, 1987).
zação ou incorporação da estrutura social. As-
Bourdieu constrói o conceito de campo
sim, a posição do agente no campo é, ao mes-
a partir de uma visão construtivista do estru-
mo tempo, causa e consequência do habitus,
turalismo, de forma a permitir que os campos
pois limita e gera o habitus da classe em que
sejam analisados como estruturas objetivas,
se posiciona o agente.
separadamente das características de seus
A posição de um agente no campo de-
ocupantes. A análise se concentra nas estrutu-
termina o modo como ele acessa e consome
ras dos diferentes campos, enfocando-as como
os objetos sociais e culturais e o modo como
produto da incorporação (gênese) das estrutu-
ele produz e acumula valores (Bourdieu, 1984).
ras preexistentes (ibid.). Os campos são conce-
O campo é o lugar onde se travam as disputas
bidos como “universos” (universo das artes, da
objetivas entre os agentes (indivíduos, grupos
política, da música, da ciência) e constituem-se
ou instituições) que competem pelo contro-
como espaços autônomos no interior do mun-
le de um cabedal específico (ibid.). Dentro do
do social. A sociedade é, portanto, vista como
campo os agentes são vistos como portadores
constituída por diversos campos (universos ou
de habitus homogêneos, porque valorizam e
espaços) de relações concretas, possuidores
jogam os jogos do campo na disputa por posi-
de uma lógica de funcionamento própria que
ções e capital.
é incomensurável, não reproduzível e irredutí-
O campo possui propriedades universais
vel à lógica que rege os demais campos. Por
(presentes em todos os campos) e caracterís-
isso o campo é definido como: 1) um "campo
ticas particulares (específicas de um campo).
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Nilton Ricoy Torres
São propriedades universais de um campo: 1) o
subcampos se caracterizam por lutas de clas-
habitus específico; 2) a estrutura; 3) as leis que
ses entre os agentes. Alguns buscam manter,
regulam a luta pela dominação; e 4) a doxa, ou
outros modificar a estrutura do campo com o
a opinião consensual. As propriedades específi-
objetivo de alterar o princípio hierárquico (eco-
cas são definidas pelos nomos (leis gerais que
nômico, cultural, simbólico) de posições dentro
governam o funcionamento do campo). A doxa
do mesmo. As classes dominantes são aquelas
é tudo aquilo em que os agentes de um campo
que impõem sua tipologia de capital como cri-
estão de acordo. Define uma espécie de enten-
tério de hierarquização do campo. Essa luta é
dimento coletivo, um senso comum. A doxa en-
travada no campo político e resulta, na maioria
volve aquilo que é aceito como natural ("sendo
das vezes, em luta pelo poder.
assim mesmo"), tal como os sistemas de clas-
O campo é marcado: 1) pelas relações de
sificação da realidade. A doxa é desenvolvida
força que emergem das lutas internas; 2) pelas
para elucidar a ideia marxista, de "ideologia"
estratégias (de defesa ou subversão) utiliza-
(como "falsa consciência"), pois é entendida
das; 3) pelas pressões externas sofridas; 4) pela
como um ponto de vista particular, o ponto de
interpenetração dos conflitos com outros cam-
vista da classe dominante, a qual se apresenta
pos; e 5) pela articulação de ideias com outros
como ponto de vista universal, pertencente a
campos. A autonomia do campo depende do
todos que integram o campo (Bourdieu, 2010).
volume e da estrutura do capital dominante. A
Os nomos são as regras gerais e estáveis que
busca de autonomia impõe constante interpre-
regulam a operação do campo. Todo campo
tação da realidade e um processo de refração
tem um nomos distinto porque cada campo tem
das interrelações, influências e contaminações
uma evolução histórica diferente. O campo ar-
introduzidas em cada campo específico. A vi-
tístico, no século 19, tinha como nomos: "a arte
da dentro do campo não é determinada pelas
pela arte"; a arquitetura moderna do século 20
pressões externas, mas pela tradução refrata-
exibia como nomos "a busca da racionalidade
da da própria ordem interna dessas pressões.
entre a forma e a função". Esses nomos devem
A história, o habitus e as estruturas do cam-
ser aceitos e legitimados por intermédio de
po trabalham como uma espécie de prisma de
processos históricos de lutas desenroladas no
filtragem dos eventos exteriores (Bourdieu,
contexto social do campo. O nomos é como um
1984). As lutas externas (econômicas, políti-
princípio de visão e divisão que nos é inculcado
cas, etc.) contribuem para alterar a relação de
por um trabalho de socialização.
forças internas ao campo, mas essas influên-
Todo campo social pode ser subdividi-
cias são sempre mediadas pela estrutura do
do em subcampos menores, com as mesmas
campo, que se interpõe entre a posição social
características do campo que os circunscreve.
do agente e sua conduta. A autonomia relativa
Como espaços sociais constituídos por uma es-
do campo resulta de sua capacidade de esta-
trutura de relações gerada pela distribuição de
belecer suas próprias regras, ainda que sob a
diferentes espécies de capital, os campos e os
pressão ou influência de outros campos.
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Habitus, planejamento e governança urbana
Prática social
Para Bourdieu, o habitus é o princípio gerador
e estruturador das práticas e das representações (Bourdieu, 1970). Como o habitus é a mediação entre a estrutura e a prática do agente,
a prática se realiza na medida em que o habi-
tus entra em contato com uma situação. Por
essa razão, a prática é entendida como o produto da relação dialética entre uma situação e
um habitus.
A relação entre o habitus e a prática
provoca e possibilita ações na sociedade. O
habitus trabalha com as probabilidades e as
possibilidades de ação, é inconsciente e expressa-se por diversas formas: no estilo de vida,
nos gostos, nas maneiras de fazer as coisas, ou
seja, está na ação humana. A prática social resulta das ações e interações entre os agentes.
Essas ações e interações são modeladas pelo
habitus e pelo capital dos agentes. A prática
é, ao mesmo tempo, necessária e relativamente autônoma em relação à situação imediata,
uma vez que ela é o produto da relação dialética entre uma situação e o habitus, e é ela que
torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências
analógicas de esquemas que permitem entender e resolver os problemas (Bourdieu, 2001).
compreensibilidade do jogo de todos os atores envolvidos” (Hillier e Rooksby, 2001). A
percepção de jogo vem com a experiência. Por
exemplo, ela permite saber quando é válido
quebrar as regras. Ela permite também dizer
“… o que é possível e o que não é (ibid.)”. “A
percepção de jogo é relacionada à posição do
ator dentro do campo e depende do ponto de
vista que o ator tem do campo” (ibid.).
A illusio é o conceito que vincula diretamente o ator ao jogo que se joga dentro de um
campo. São crenças compartilhadas que se inscrevem no habitus do campo, das quais não se
tem uma consciência clara de suas procedências e determinações. A illusio é a incorporação
acrítica de “verdades” de outrem, o encantamento transitivo que projeta como natural o
microcosmo que se vive no campo. A illusio é
o produto não consciente da adesão à doxa e
ao habitus específico do campo, cristalizados
em suas regras e valores. A illusio é, portanto, o
ajustamento das esperanças às possibilidades
limitadas que o campo oferece. Assim, não somos capazes de discuti-la, pensá-la e entendê-la crítica e conscientemente (Bourdieu, 2001).
A illusio significa estar envolvido no jogo, é
investir nos alvos que existem no jogo, alvos
que só existem para as pessoas que possuem
os mesmos habitus e, por isso, podem reconhecer os alvos que estão em jogo (Bourdieu,
2010). Todo ator que adentra um campo social
Percepção de jogo
tende a incorporar essa relação chamada de
illusio. Os agentes em disputa buscam inverter
as relações de força, subverter a ordem e fazer
O campo é constituído por jogos de poder entre
a revolução dentro do campo, porque eles reco-
os agentes. Todo campo possui seu(s) jogo(s).
nhecem os alvos da luta e não são indiferentes
A noção de percepção de jogo se refere “…
a eles. Essa relação com o campo significa que
não apenas à capacidade de entender e seguir
os agentes envolvidos nas disputas concordam
as regras”, mas também ter “… consciência e
com as regras essenciais do campo, e o que
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Nilton Ricoy Torres
está em jogo é tão importante a ponto de que-
de reconhecimento social, tais como o prestí-
rer fazer uma revolução.
gio, a honra, autoridade, etc. O capital simbólico é uma síntese dos demais, na medida em
que ele os incorpora e constitui-se pela con-
Capital
Para Bourdieu, o “interesse” significa "capital", tanto no sentido econômico como no cultural, social, político, simbólico, etc. Acumular
capital é o alvo fundamental dos agentes de
um campo e, para ascender ou manter posições na estrutura do campo, os agentes de-
versão dos demais. A educação de um agente,
por exemplo, representa seu capital cultural;
já o valor simbólico de uma obra de arte pode significar pertencimento a uma classe. A
honra, a reputação, o prestígio são formas de
capital simbólico que obedecem a uma lógica
específica de acumulação fundada no conhecimento e no reconhecimento do outro.
vem participar dos jogos. É uma luta explícita
que se trava no plano material e político, mas
também no simbólico, no qual se confrontam
os interesses de conservação (reprodução) e os
Relações de força,
poder e dominação
interesses de mudança (subversão da ordem
dominante no campo).
Todo campo é uma arena de conflitos perma-
O conceito de capital de Bourdieu funda-
nentes entre os grupos que mobilizam estraté-
menta-se em uma visão econômica. O capital
gias para conservar ou subverter as estruturas
é acumulado (por operações de investimento),
sociais. Dentro do campo, as relações de força
é transmitido (por herança) e reproduzido (pe-
entre os agentes e as instituições determinam a
la habilidade de seu detentor de investir). A
estrutura do mesmo. Essas relações envolvem
valorização e acumulação dos vários tipos de
lutas pela hegemonia em busca do controle do
capital ocorrem de diversas maneiras: investi-
poder de ditar as regras e de repartir o capital
mento, extração de mais-valia, etc. Etimologi-
específico do campo. O modo como o capital é
camente, o conceito de capital é idêntico ao de
repartido condiciona as relações entre os agen-
cabedal (ou conjunto de bens) e envolve um
tes, determinando sua estrutura (Bourdieu,
sofisticado sistema de conceitos acerca dos
1984). Como o capital é distribuído de forma
elementos portadores de valor que extrapola
desigual, relações de competição e de força es-
a visão puramente econômica. Nesse siste-
tabelecem-se entre os grupos dominantes que
ma estão incluídos: 1) o capital cultural: co-
buscam defender seus privilégios e os demais
nhecimentos, habilidades, informações, etc.,
grupos. Para Bourdieu, a dominação é exercida
vinculados às qualificações intelectuais pro-
sempre mediante violência, seja ela bruta, seja
duzidas e transmitidas pela família e pelas ins-
simbólica, e manifesta-se pela coação física so-
tituições educacionais; 2) o capital social: os
bre os corpos, ou pela coação espiritual sobre
acessos sociais, isto é, os relacionamentos e a
as consciências. O campo é o palco de confron-
rede de contatos; 3) o capital simbólico: rituais
tos entre os agentes que detêm o poder e os
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Habitus, planejamento e governança urbana
que não o detêm. Os agentes que possuem o
capital específico do campo dominam o mesmo pela via da autoridade; os demais agentes
despossuídos de tal capital competem pela
Habitus e prática
no campo do planejamento
e da governança urbana
posse do mesmo, tendo em vista dominar o
campo (ibid.). A dominação em um campo é,
Esta seção focaliza o planejamento pela prá-
em geral, subliminar, implícita, sutil, mas vio-
tica da gestão urbana, tendo como referência
lenta. Tal violência é simbólica e legítima den-
as proposições avançadas por Pierre Bourdieu.
tro de cada campo e pertence à natureza do
O objetivo é testar os elementos explicativos e
sistema de relações sociais. Por esse sistema,
generativos da teoria de Bourdieu, tendo em
as práticas e as instituições dentro de um cam-
vista as práticas de governança empreendidas
po sempre favorecem a acumulação de todos
por meio do planejamento e avaliar em qual
os tipos de capital pelos agentes dominantes.
medida as respostas fornecem elementos para
A violência simbólica (a opressão) é sempre
esclarecer situações específicas dessa prática.
exercida com o consentimento e a aquiescên-
O foco da análise é a práxis dos agentes que,
cia dos que são dela objeto: os oprimidos. Ela
direta ou indiretamente, participam do univer-
emerge nos discursos da competência científi-
so do planejamento como governança urbana,
ca, da autoridade burocrática-legal, da supre-
e o alvo é esclarecer as razões que determinam
macia do conhecimento oficial. Por isso, para
as formas de ação desses agentes. O próprio
Bourdieu a dominação não é produto da luta
universo é objeto de reflexão. Busca-se anali-
aberta de classes (dominantes versus domina-
sar a estrutura do planejamento como cam-
dos), mas emerge da interação de um sistema
po de práticas e avaliar em qual medida essa
complexo de ações infraconscientes dos agen-
estrutura é dependente da esfera do estado.
tes e das instituições dominantes sobre todos
O texto a seguir avalia seis hipóteses sobre a
os demais (Bourdieu, 1996).
prática do planejamento como processo de go-
Segundo Bourdieu, os agentes e as ins-
vernança urbana, formuladas, explicitamente, a
tituições dominantes tendem a inculcar a cul-
partir do referencial analítico de Bourdieu. Os
tura dominante, a fim de reproduzir o habitus
testes dessas hipóteses são desenvolvidos com
e, portanto, as desigualdades sociais nas ma-
referência a episódios, situações e eventos das
neiras de falar, de trabalhar e de julgar (ibid.).
experiências vividas pelos agentes, ao longo da
As instituições do campo (a família, a escola,
história recente da prática do planejamento e
a igreja, o meio social) não só reproduzem as
governança na cidade de São Paulo.
desigualdades sociais, mas também legitimam,
●
Hipótese 1: Os agentes que integram
de forma subliminar e inconsciente, sua repro-
o campo de planejamento e gestão urbana in-
dução. Desse modo, as instituições são vistas
corporam habitus comuns a todos os membros,
como agentes da dominação. A desigualdade
independentemente de suas concepções ideo-
não está somente nas diferenças de posição e
lógicas ou posição.
de acesso ao campo, mas é parte integral e pertence à gênese do próprio sistema.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
As evidências sugerem que os gestores
da governança urbana, tanto conservadores
125
Nilton Ricoy Torres
como os progressistas, percebem o planeja-
ra um sistema de disposições específicas desse
mento como um "instrumento estratégico",
campo, que o possibilita não só participar, mas
com a missão de organizar e disciplinar o ter-
disputar o jogo inerente ao campo. Tomando
ritório socioeconômico. A experiência de plane-
o planejamento por um campo social, como
jamento em São Paulo tende a confirmar essa
propõe Bourdieu, não parece inconsistente
hipótese. Da análise dos relatos, discursos e das
concluir que os planejadores incorporam um
práticas, na esfera governamental, observa-se
habitus comum a todos os membros do cam-
uma confluência de percepções, entendimentos
po: o de o planejamento ser uma ferramenta
e de ações entre os agentes do campo de pla-
estratégica para propor alternativas técnicas e
nejamento. A ideia recorrente e consensual é
soluções lógicas, razoáveis e racionais para as
que o planejamento, como instrumento de go-
questões do desenvolvimento urbano.
vernança, é um processo de articulação racio-
Percebe-se que o habitus não depende
nal de meios, tendo em vista disciplinar e dirigir
da postura ideológica do agente, pois está in-
o objeto social de sua ação: o urbano. Ao longo
culcado, incorporado, assimilado como uma
dos anos, a maioria dos produtos que emergem
disposição nas percepções que o agente traz
do campo do planejamento constitui manifes-
como visão de mundo e determina como na-
tações sobre a necessidade de "racionalizar"
tural ter, o planejamento, o papel de planejar,
e "organizar" o desenvolvimento urbano, a
prever, organizar, proporcionar solução, pois
fim de evitar "deseconomias", "desperdícios",
não teria sentido ser seu contrário. Os habitus
"exclusões" e "danos" aos diversos usos e
são rotinas mentais inconscientes que permi-
interesses em conflito na cidade. O objetivo
tem ao planejador agir sem ter de refletir sobre
maior é obter um desenvolvimento "coeso",
sua ação. Governar parece ser uma atitude na-
"harmonioso", "articulado" e "funcional" do
tural, razoável e inquestionável de quem busca
espaço para "racionalizar" as ações dos diver-
soluções "adequadas" para o objeto da inter-
sos atores do meio urbano.
venção. Afinal, o planejamento é o antípoda do
Da leitura dos planos diretores e das
mercado, do caos, da anarquia que impera nos
políticas e programas públicos produzidos ao
universos do liberalismo. Sem a ação de contro-
longo dos últimos 30 anos na cidade de São
le e alguma forma de restrição e policiamento
Paulo, observa-se a lógica manifesta da inter-
do caos, a ordem social e, como parte dela, o
venção e do controle (PMSP, 2004). O habitus
urbano podem entrar em colapso. Os habitus
que emerge dessa prática de planejamento, in-
são como certezas irrefletidas e consolidadas
dependentemente dos regimes administrativos
que produzem uma lógica, uma racionalidade
que se sucederam, sugere haver uma percep-
prática, irredutível à razão teórica. São produ-
ção homogênea e um entendimento comum
to da aprendizagem e de um processo do qual
sobre o papel "estratégico" do planejamento
já não temos mais consciência e se expressam
como instrumento destinado a promover e
como uma forma natural de ser e de pensar em
coordenar articulação das diversas cidades
um determinado contexto.
dentro da cidade. Como informa Bourdieu, o
As rotinas de trabalho e os discursos do
agente, para participar de um campo, incorpo-
cotidiano do planejamento como governança
126
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana
da cidade demonstram haver, entre os agen-
●
Hipótese 2: Os habitus do planejamento
tes dessa governança, significativas diferenças
são saberes práticos inculcados por meio: 1) da
ideológicas e de percepção sobre o sentido
inserção profissional do agente nas instituições
de suas práticas. De fato, essas diferenças se
públicas de governança; 2) do aprendizado tá-
exprimem, por exemplo, na definição do que
cito incorporado ao longo da prática profissio-
é uma solução adequada para uma situação.
nal; 3) da educação formal.
Assim, por exemplo, enquanto para alguns a
No campo do planejamento como go-
questão da habitação e a viabilização do aces-
vernança urbana, observa-se que os habitus
so à moradia são o objeto central da governan-
específicos do campo desenvolvem-se e são
ça urbana – uma forma de reduzir a injustiça e
incorporados de três maneiras. Primeiro, pelo
a exclusão social –, para outros, a habitação é
trabalho profissional e o aprendizado tácito
um problema secundário, ante o imperativo do
que se adquirem ao longo da prática. É o co-
resgate da história e a recuperação dos espa-
tidiano da prática de enfrentamentos, do con-
ços deteriorados da cidade. Apesar das diferen-
fronto com desafios, experimentando sucessos
ças, o que é homólogo entre as duas posturas é
e fracassos, que o profissional de planejamen-
a crença na intervenção e na capacidade trans-
to constrói uma forma de ser e de fazer que
formadora das propostas técnicas. O Plano Di-
se constituirá no habitus do campo. Segundo
retor Estratégico de São Paulo, promulgado em
Bourdieu, todo agente social que atua no inte-
2002 (PMSP, 2002), é um exemplo excepcional
rior de um campo procura ajustar seu esquema
da antinomia entre o antagonismo ideológico
de pensamento, percepção e ação às exigên-
e a confluência de habitus. Nessa experiência
cias objetivas daquele espaço social. Para ele,
observa-se, de forma mais clara, o processo de
o motor da ação repousa na relação entre o
integração de habitus homólogos com ideolo-
habitus e o campo. Assim, em um processo de
gias antagônicas em um único discurso. De um
ajustes, transformações e adequações dentro
lado, impera o discurso da racionalidade técni-
do campo, o agente social constrói sua práti-
ca, impondo controles policialescos e restrições
ca. As experiências adquiridas nas interações
absolutas ao uso e à ocupação do solo, tudo
se articulam com o aprendizado passado e se
em nome da funcionalidade do espaço do capi-
constituem em matriz geradora de saberes, que
tal. De outro, são incluídas, de forma admirável,
orienta a prática de governança do planejador.
todas as disposições inovadoras do Estatuto
Bourdieu sustenta: “o conhecimento prático é
da Cidade para constituir o discurso do plane-
uma operação de construção que aciona siste-
jamento democrático e da inclusão social. Por
mas de classificação e estes por sua vez orga-
fim, como uma totalidade imanente a todas
nizam a percepção, a apreciação que estrutu-
essas visões e discursos, paira a ideia de táti-
ram a prática” (Bourdieu, 2010). A prática de
cas e estratégias, algo assim como em um tom
governança, assim constituída, define-se como
militar de conluio entre generais, para delimitar
uma forma de saber construída e incorporada
a prerrogativa última do planejador de decidir
ao longo de sua trajetória pessoal e profissio-
o sentido do jogo.
nal. Ao longo dessa trajetória, o planejador
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
127
Nilton Ricoy Torres
incorpora saberes sobre como planejar, sobre
o particular (soluções locais), em um processo
as imagens e os papéis do planejador, sobre
dedutivo que permita o controle e a articulação
crenças e certezas de sua prática. O habitus,
das propostas e ações.
assim constituído, torna-se um produto de con-
Um terceiro modo de incorporação do
dicionamentos que levam o agente-planejador
habitus no planejamento é por meio da edu-
reproduzir as condições sociais de sua própria
cação profissional e das diversas formas de in-
reprodução, o que se tornará o princípio gera-
culcamento de um modo de pensar transmiti-
dor da ação de governança urbana. Segundo,
da pelo meio acadêmico, institutos de pesqui-
os habitus são incorporados pela cultura (habi-
sa e universidades. Existem diversas correntes
tus) preexistente nas instituições governamen-
de pensamento dentro do meio científico
tais nas quais o planejamento se realiza como
acerca do que é planejamento e de seu papel
ação pública. Nesses contextos há um discurso
social, político e ideológico. Essas correntes
difuso, genérico, universal e consensual sobre
possuem premissas, axiomas e métodos intro-
a responsabilidade administrativa e social do
duzidos (inculcados) nos alunos através dos
planejar a cidade. O planejador no contexto da
anos de formação, constituindo escolas ou
administração pública, pouco a pouco, incor-
culturas de planejamento, que determinarão a
pora uma percepção sobre sua missão como
forma de ver, perceber e fazer o mesmo.
membro do corpus publicus e resume-se em
●
Hipótese 3: O planejamento pode ser
um zelar pelo "bem comum", "pelo interesse
entendido como um habitus incorporado à prá-
público" e pelo "bem-estar geral". Estar na po-
tica, isto é, um conjunto de disposições e costu-
sição de agente do planejamento integrado à
mes que determinam o fazer do planejamento.
estrutura do estado significa trabalhar em fun-
O planejamento como um habitus pode
ção do interesse público (do estado). A “cultura
ser entendido como um conjunto de disposi-
da casa” (habitus) é outra maneira peculiar de
ções definido por crenças, modos de pensar, de
assimilar o jogo do campo, que, no caso da de
entender e de perceber. São suposições mate-
São Paulo, é marcado por um modo de fazer
rializadas na forma de verdades, maneiras en-
planejamento que tem como ponto de parti-
raizadas de fazer e empreender a prática pro-
da a visão sinótica, isto é, planejamento como
fissional. O habitus do planejar percebe o pla-
processo que caminha de cima para baixo, no
nejamento como um modo de gestão racional,
qual o ato do planejar tem sua gênese na ela-
estratégica, capaz de articular a ação adminis-
boração de um Plano Diretor Estratégico que
trativa para o controle integrado dos proces-
define as diretrizes gerais de desenvolvimento.
sos urbanos. Esse habitus entende que a ação
A necessidade sinótica se constitui como par-
do planejar deve partir de formulações gerais
te de um conhecimento tácito, fruto de regras
(diretrizes globais), incorporando as várias di-
não escritas e integradas às práticas das insti-
mensões do território (usos do solo, transporte,
tuições do governo. Não parece, aos olhos do
habitação) para integrar e articular as ações
planejador (habitus), que a prática possa ser di-
dos diversos setores da regulação administrati-
ferente. Pela via do habitus o planejamento de-
va (setores de obras, saúde, transporte, cultura,
ve caminhar do geral (diretrizes globais) para
infraestrutura). Da mesma maneira, fruto de
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana
habitus já consolidados, o planejamento cons-
própria razão de ser do campo, ou seja: o pla-
titui jogo de repressão e tutela, no qual a ação
nejamento existe para racionalizar as ações
de polícia é parte integral do planejamento. In-
do governo, maximizar os benefícios, coibir
culcada no imaginário do planejador, há uma
situações indesejáveis, disciplinar as ações
concepção de proteção do interesse público
dos agentes, penalizar os desvios de conduta.
e um senso de responsabilidade social, moti-
Como regra geral, o planejamento existe para
vado pelas ideias de zelo, vigília e comando.
cumprir essas funções. Independentemente
Sem o planejamento e sob a ação exclusiva
do sentido das ações (privilegiar a funciona-
das forças de mercado, a cidade se conflagra
lidade do mercado ou a distribuição social da
em caos. Vislumbra-se, então, a pertinência do
renda), o nomos do planejamento é sempre
poder regulatório e de regulação do planeja-
agir por intermédio do estado, em nome do
mento para amenizar as disfunções, as injusti-
interesse público.
ças sociais, as carências espaciais. Imagina-se
Em São Paulo, a política de uso e ocupa-
que a competente intervenção do estado e as
ção do solo, por exemplo, reproduz-se por ha-
estratégias de luta dentro do campo possam
bitus antigos, já consolidados, que foram in-
promover a inclusão social no espaço, consoli-
corporados aos modos de administrar o uso do
dar a função social da propriedade e garantir o
território urbano. Esses habitus entendem o es-
direito à cidade.
paço da cidade como uma bricolagem de áreas
Bourdieu afirma que cada campo possui
especializadas (zonas de uso) e com densida-
uma doxa constituída pelo senso comum, ex-
des diferenciadas. O objetivo é regular o uso e
pressando-se na forma de ideologia em que as
a ocupação do território, tendo em vista man-
circunstâncias são aceitas como "sendo assim
ter e garantir a funcionalidade econômica da
mesmo”. São percepções, apreciações e valo-
aglomeração e a reprodução das relações so-
res compartidos por todos dentro do campo.
ciais. Por essa razão, na regulação do território,
No campo específico do planejamento, a doxa
em São Paulo, considera-se normal, de praxe, e
se estabelece em torno da ideia que o planejar
até tradição, isto é, entende-se como adequada
deve ser um processo racional, estratégico e
e necessária a ação de controlar e disciplinar
calculado, voltado para a resolução de impas-
o modo como os usos se estabelecem e as ati-
ses e manutenção das regras do jogo. Ele de-
vidades são exercidas no espaço urbano. Na
ve: dirigir, coordenar e regular e para isso deve
visão (habitus) dos planejadores instalados no
coibir, restringir ou incentivar. Por isso, a doxa
campo de governança burocrático, parece não
do planejamento incorpora, implicitamente, a
haver outra forma de administrar o uso do so-
ideia de "reprodução", porque ela se constitui
lo senão pelos mecanismos da tutela e da vio-
a partir do ponto de vista da classe dominante,
lência simbólica da legislação punitiva. Dessa
mas se apresenta como o interesse universal,
maneira, a condução do planejamento do uso
pertencente a todos os membros do campo.
do solo, em São Paulo, pode ser vista como um
Os nomos são as regras gerais e estáveis
habitus arraigado nas estruturas mentais dos
que regulam o jogo no campo. No campo do
planejadores, assim como nas estruturas ob-
planejamento essas regras estão vinculadas à
jetivas das instituições de governança urbana.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
129
Nilton Ricoy Torres
A legislação de zoneamento cumpre a função
podemos chamar de campo epistemológico
fundamental de fomentar (e perpetuar) a com-
do planejamento. Os agentes desse campo,
preensão que o planejamento deve ser um ins-
embora participem e estejam envolvidos com
trumento de força, de polícia, para controlar os
as práticas específicas do campo científico,
desvios, os anacronismos e as disfunções que
desenvolvem reflexões e proposições teóricas
os diversos usos criam entre si. A ideia de se-
acerca do objeto urbano, assim como das prá-
gregação do espaço em guetos de atividades
ticas de planejamento levadas a cabo no cam-
e pessoas, assim como a de "proteção" de
po institucional-burocrático. Esses discursos
usos e "lugares" (zonas), daquelas atividades
são desenvolvidos na forma de explanações ou
e pessoas indesejáveis e incômodas foi, e ainda
de métodos e servem para orientar a prática
é, um dogma (habitus) da tradição de planeja-
administrativa. Em regimes administrativos
mento em São Paulo. Embora esse habitus ve-
marcados por concepções político-ideológicas
nha, aos poucos, transformando-se – fruto de
em formação ou afirmação no campo da po-
lutas dentro do campo – e já se admita um ter-
lítica, esses subcampos podem se articular de
ritório urbano mesclado de usos, as lutas ainda
modo a integrar agentes e discursos do campo
continuam no interior do campo do planeja-
científico a posições do campo institucional.
mento, pois não se admite o território urbano
Dentro do subcampo da prática (buro-
mesclado por classes sociais. A ideia (habitus)
crático) as disputas e rivalidades entre setores
que o território deva ser dividido em áreas e
da burocracia são notórias. Há diferenças entre
zonas é ainda fundamental.
formas de fazer, métodos de operar e até fins a
Hipótese 4: O planejamento como um
serem alcançados. Em jogo está o poder de do-
campo de forças e de posições é constituído por
minar e acumular o capital produzido no cam-
dois outros subcampos: o campo institucional-
po. A aliança com o subcampo científico pode
-burocrático e o campo acadêmico-científico.
reforçar as posições dentro do campo burocrá-
●
A hipótese indica a possibilidade de
tico. As lutas e conflitos no âmbito da socieda-
incluir-se, como parte do universo do planeja-
de são, em geral, transferidos para o universo
mento, dois subcampos os quais, embora au-
do planejamento. Esse é o motivo de as lutas
tônomos e separados, possuem circunstâncias
no interior do processo de governança estarem
homólogas, tal que, em momentos específicos,
sempre sob a influência e pressões do cidadão
podem estar articulados e estabelecerem um
e de políticos profissionais, externos ao campo.
processo de mútua realimentação. Nesses mo-
Nos conflitos envolvendo a população, emer-
mentos o campo científico, que se ocupa da
gem sempre questões sobre o que é e como de-
epistemologia do planejamento, atua como
vem ser exercidas as tarefas do planejamento
um avalista para garantir a legitimidade das
como gestão pública.
propostas formuladas no campo burocrático.
●
Hipótese 5: O campo do planejamen-
Não há dúvida que o urbano, como objeto de
to produz dois tipos específicos de valores
investigação, é parte integral do campo cien-
(capitais) dos quais tanto o campo econômico
tífico/acadêmico e, dentro desse, o "planeja-
como o campo político dependem. O planeja-
mento" se constitui como um microcosmo que
mento tem o poder de legitimar as decisões
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana
políticas por meio do discurso da racionalidade
de importância vital para as lutas nos demais
técnica e científica e de coordenar a distribui-
campos sociais, pois é o locus onde se legitima
ção do capital econômico pelo orçamento pú-
a distribuição dos capitais econômicos públi-
blico). O poder de regulação e polícia, incorpo-
cos. O controle desse poder permite coman-
rado ao planejamento, atua também como um
dar várias formas de repartir o capital sobre o
forte mecanismo de distribuição indireta e de
território, o que possibilita alterar o equilíbrio
redirecionamento de recursos (e cabedais).
de forças e a acumulação de capitais entre os
A capacidade de legitimar as decisões
diversos agentes. Visto isso, lutas sociais inten-
políticas e de prover uma imagem menos ar-
sas se desenrolam dentro do campo do plane-
bitrária aos sectários acordos de “gabinete”
jamento, pois o modo de operar desse campo
é um dos mais cobiçados produtos do campo
torna-se uma estratégia para mudar ou manter
do planejamento e rende, conforme sugere
as relações de dominação dentro da sociedade.
Bourdieu, o capital simbólico. É a capacidade
●
Hipótese 6: O planejamento é um cam-
de produzir esse tipo de capital que permite
po especial na medida em que, de tempos em
ao planejamento articular propostas e justificar
tempos, ele pode se tornar um “aparelho”.
encaminhamentos essenciais para a eficácia da
Sendo o planejamento exercido dentro da es-
administração pública. O planejamento posto
trutura do estado, sua prática torna-se direta-
em prática pelos agentes torna-se uma forma
mente dependente dos interesses dos grupos
de capital simbólico, pois constitui estratégia
hegemônicos no poder.
de dominação ao estabelecer condições, impor
Nessas situações, o planejamento é en-
limites, formular premissas, propor objetivos
tendido como um campo instrumentalizado do
que, pouco a pouco, se transformam no nomos
campo político que o domina e impõe limites à
de toda a população. O nomos, de acordo com
sua autonomia. Não há lutas nem competição
Bourdieu, sintetiza a visão dominante que se
entre os agentes dentro do campo, e o plane-
impõe ao conjunto da sociedade (grupos domi-
jamento se torna apenas uma máquina para
nados). Assim, ao apresentarem suas proposi-
produzir legitimações políticas. Normalmente, a
ções sob a forma de "a cidade que queremos"
atividade de planejamento é constituída por re-
ou "São Paulo não deve parar" ou "cidade
lações de trabalho hierarquizadas e dependen-
saudável", os agentes do planejamento vão, de
tes de estruturas de poder externas ao campo.
fato, definindo um conceito de cidade sintoni-
Tal condição restringe a autonomia do plane-
zado aos interesses dominantes e expressa-se
jador e faz com que as ações de governança
nos planos e nas políticas públicas. É possível
dependam de decisões tomadas em outros
afirmar que o habitus o qual comanda a prática
universos, isto é, nos campos das autoridades
(e a ciência) do planejamento pode incorporar
executivas e/ou legislativas. Nas circunstân-
visões, percepções e concepções de mundo que
cias históricas em que a autonomia do campo
acabam por manipular valores, limitar objetivos
é reduzida, os conflitos entre os agentes são
e condicionar as diretrizes de ação.
subsumidos e as relações sociais no cam-
No contexto da sociedade, o planejamen-
po transformam-se em uma espécie de "pax
to é um campo estratégico por produzir valores
universal". Esses momentos se caracterizam
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
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Nilton Ricoy Torres
por regimes de governança autoritários, nos
pré-concebidos da ação, pois a prática é a res-
quais os agentes planejadores que possuem
posta do ator para a questão que se defronta
vinculação política com os grupos dominantes
no momento. No caso do planejamento, pode-
(externos) assumem o controle do campo, e
-se inferir que o habitus de planejar tempos
o planejamento se torna apenas um instru-
históricos, lugares e situações diferenciadas é
mento executivo para desempenhar tarefas
o que determina o modus operandi de grande
técnicas. Esses regimes são, de modo geral,
parte da prática do campo do planejamento.
marcados por administrações conservadoras
Planejamento definido como habitus é
nas quais predominam processos de decisão
uma possibilidade e um campo que se abre pa-
pouco transparentes e impostos de cima para
ra a pesquisa sobre a prática do planejamento.
baixo. Os planos e as políticas públicas elabo-
Nesse novo campo de estudos não há determi-
rados nessas circunstâncias são enigmáticos,
nações dadas a priori, pois não há objeto prio-
fechados e sectários, cabendo aos agentes em
ritário ou permanente de análise. O foco não se
posição de interventores do campo forjar mo-
concentra sobre as estruturas de planejamento
delos justificativos.
nem sobre os atores sociais, mas sobre as relações dialéticas que se estabelecem entre eles. A
formulação de Bourdieu possibilita entender o
Conclusão
planejamento como um campo estruturado de
forças e de práticas, permeado por habitus estruturados e estruturantes desse mesmo cam-
A contribuição fundamental de Bourdieu para
po. O planejamento, assim definido, permite
o entendimento do planejamento como práti-
capturar a prática do planejar como um habitus
ca de governança urbana centra-se, a meu ver,
que resulta da interiorização das estruturas (de
na ideia de habitus, e seu confronto com uma
planejamento) e as mudanças das mesmas co-
situação específica da qual resulta a prática.
mo produto da ação de exteriorização das inte-
Ou seja, não há verdades absolutas ou modelos
rioridades dos planejadores.
Nilton Ricoy Torres
Arquiteto e Urbanista. Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Professor na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo/Tecnologia de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
[email protected]
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana
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Texto recebido em 31/ago/2011
Texto aprovado em 4/out/2011
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
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Negociando o território: a formulação
do Plano Diretor Estratégico
de São Paulo (2002-2004)
Trading the territory: the formulation of the Strategic
Master Plan of São Paulo (2002-2004)
Sidney Piochi Bernardini
Resumo
Depois de mais de trinta anos da instituição do
Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado em
1971, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo foi
sancionado em setembro de 2002, após um intenso e peculiar processo de debates e discussões com
vários segmentos da sociedade aglutinados em
três grandes blocos de interesses: os representantes do setor imobiliário, as associações de bairros
e os movimentos sociais por moradia. A sequência
de discussões que culminou com a aprovação, em
2004, das leis complementares dos planos regionais estratégicos (PREs) e de uso e ocupação do
solo elevou ainda mais as disputas em torno dos
interesses específicos de cada um destes grupos representativos, cujas principais questões e debates
estão aqui resumidamente relatadas.
Abstract
After more than thirty years from the establishment
of the Plano Diretor de Desenvolvimento
Integrado (PDDI), in 1971, the Strategic Master
Plan of São Paulo was sanctioned in September
of 2002 after an intense and queer process of
debates and discussions adding several segments
of the society agglutinated in three large blocks
of interest: the representatives of the real estate,
neighborhood associations and social movements
for housing. The sequence of discussions was
culminated in the adoption, in 2004, of the
complementary regional strategic plans and the
zonning law increasing further the disputes over
these three groups.
Palavras-chave: Plano Diretor; planejamento territorial e urbano; processos participativos; Estatuto
da Cidade; Plano Diretor Estratégico de São Paulo.
Keywords: Master plan; territorial and urban
planning; participatory process; Statute of the City;
Strategic Master Plan of São Paulo.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Sidney Piochi Bernardini
Introdução
Brasil. É na interface com os problemas territoriais da sociedade que o planejamento urbano
encontra as raízes de seu desenvolvimento.
A participação da sociedade brasileira nos
Ao mesmo tempo, a análise histórica dos seus
processos de planejamento urbano vem se
processos nos ensina que suas limitações téc-
intensificando ao longo dos últimos anos
nicas relacionam-se aos impasses na solução
com o fortalecimento institucional introduzi-
das inúmeras contradições sociais e políti-
do pela Constituição de 1988. A Lei Federal
cas intrínsecas à produção do espaço urbano
10.257/01, mais conhecida como Estatuto da
(Lamparelli, 1978, p. 109; Corrêa, 1989, p. 9)
Cidade, que regulamentou o Capítulo de Polí-
já havia destacado que o espaço urbano é ao
tica Urbana da Constituição, além de estabe-
mesmo tempo “fragmentado e articulado, re-
lecer um prazo máximo para que grande parte
flexo e condicionante social, um conjunto de
dos municípios elaborasse seus planos direto-
símbolos e campo de lutas”. É na atuação das
res, determinou, em seu artigo 40, a obrigato-
forças e agentes sociais que se constrói e se
riedade da realização de audiências públicas
constitui o espaço urbano, derivado e derivan-
e debates com a participação da população e
te de sua mobilização.
de associações representativas dos seus vários
O papel ideológico que o plano diretor,
segmentos nos processos de elaboração des-
como principal instrumento do planejamento
ses planos. Centenas deles já foram ou estão
municipal exerceu por várias décadas, confor-
sendo aprovados por municípios brasileiros de
me apontou Villaça (2010, p. 189), evidencia
diferentes características desde a sanção do
uma face perversa do planejamento urbano no
Estatuto da Cidade, considerando, pelo menos
Brasil. O autor questiona o discurso que apre-
do ponto de vista formal, tal prerrogativa. O
senta o prévio conhecimento técnico da cida-
mosaico institucional derivado desse processo
de – social, econômico, urbanístico, histórico,
introduziu novas substâncias aos processos de
geográfico como indispensável para a correta
desenvolvimento urbano que se instauraram
ação do Poder Público sobre ela. Em que me-
desde então. Poderíamos sugerir, com isso,
dida os profundos e extensos diagnósticos
que estamos imprimindo um novo marco na
orientam, de fato, o discurso propositivo dos
história do planejamento urbano no Brasil? Ou
objetivos e metas traçados pelo plano diretor e
se trata de uma mera repetição de processos
a posterior tomada de decisões na sua imple-
anteriores reconduzidos por novos formatos
mentação? É nesta relação entre formulação
de participação social?
técnica e as práticas cotidianas dos agentes
Diante destes inúmeros processos de
sociais disciplinadas pelo Poder Público que
planejamento intensificados durante pelo me-
reside a contradição entre planejamento e pro-
nos os últimos dez anos, não se deve ignorar
dução do espaço urbano.
os fundamentos sociais e políticos que permea-
O aumento da participação destes agen-
ram, por várias décadas, a constituição do pla-
tes no processo de formulação e de implemen-
nejamento urbano como campo disciplinar e
tação dos planos diretores revela o gradual re-
como indutor do desenvolvimento urbano no
conhecimento de que é preciso garantir maior
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Negociando o território
aderência entre discurso e prática. E essa ade-
forças determinantes para o resultado final do
rência será tanto maior quanto mais favoráveis
plano aprovado, conforme veremos a seguir.
forem as condições de atuação dos segmentos
Percebe-se, pelo menos no caso de São Paulo,
mais variados e mais abrangentes da socieda-
que este processo de participação despertou-as
de. Assim é que é possível superar tantas ex-
para um novo palco de disputas e embates.
periências no Brasil nas quais o campo de lutas
tem sido historicamente escamoteado pela liberalidade das políticas urbanas com a tradicional pactuação entre Estado e burguesia. Para Oliveira, que estudou o caso de Curitiba, não
há como ser diferente: a compatibilização dos
A construção do Plano Diretor
Estratégico de São Paulo
e suas leis complementares
interesses dos empresários com os dos urbanistas, pelo menos em torno de algumas ques-
O PDE (Plano Diretor Estratégico), como ficou
tões essenciais, é fundamental para o êxito de
conhecido o atual plano diretor de São Paulo,
qualquer política de planejamento urbano. Em
Lei Municipal 13.430/02, foi sancionado no dia
uma sociedade capitalista, na qual as “coisas
13 de setembro de 2002 e, já em 2004, foi re-
têm donos, inclusive principalmente a terra”,
gulamentado com a promulgação da Lei muni-
torna-se limitada a amplitude das realizações
cipal 13.885/04, que estabeleceu normas com-
em planejamento (Oliveira, 2000, p. 113). É
plementares ao Plano Diretor Estratégico, ins-
através dos processos democráticos aliados à
tituiu os 31 Planos Regionais Estratégicos das
constituição de um marco legal mais progres-
Subprefeituras (PREs), dispôs sobre o parcela-
sista, entretanto, que tais arranjos podem ser
mento e ordenou o uso e ocupação do solo. A
quebrados, gerando novas possibilidades que
aprovação desses dois instrumentos legais, que
vão além dos velhos pactos de poder nas deci-
se deu durante a gestão da ex-prefeita Marta
sões sobre os rumos do território.
Suplicy entre os anos de 2001 e 2004, deve ser
Com a intensificação dos processos
vista como um processo sequencial, no qual, a
participativos na condução do planejamen-
participação de vários segmentos da população
to municipal a partir da atuação dos Conse-
na sua elaboração lentamente se intensificou.1
lhos Munici pais e a exigência da realização
Pode-se afirmar com isso que esse processo se
de audiências públicas durante a elaboração
deu de forma desigual e variada, tanto em ter-
dos planos diretores, indaga-se se os emba-
mos de formatos, como em termos quantitati-
tes, lutas e conflitos entre os vários segmentos
vos de participações, sendo possível visualizar
representativos da sociedade estão emergindo
quatro momentos bem distintos. O primeiro, no
de fato e estão produzindo novas soluções e
período compreendido entre janeiro de 2001
pactos, diferentes daqueles tradicionalmente
e maio de 2002, abrangeu o processo de dis-
conhecidos. É através dos estudos específicos
cussão para a elaboração do projeto de lei do
destes processos atuais que tal questão poderá
plano diretor até seu envio à Câmara Munici-
ser respondida. No caso do novo plano diretor
pal. O segundo período, entre maio e agosto de
de São Paulo, assistiu-se a uma polarização de
2002, compreendeu a discussão do projeto de
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
137
Sidney Piochi Bernardini
lei na Câmara e sua aprovação em 23 de agos-
momentos seguintes foram também bem de-
to do mesmo ano (posteriormente sancionado
marcados, ressaltando-se novamente a parti-
em setembro). O terceiro, compreendido entre
cipação da Câmara Municipal com a notória
novembro de 2002 e agosto de 2003, incluiu
relatoria de Nabil Bonduki, na condução do
a discussão para a regulamentação do plano
processo, ajudando a fortalecer ainda mais a
diretor com a formulação da proposta da nova
proposta sancionada em 2004.
lei de uso e ocupação do solo e a construção
dos planos regionais estratégicos pelas Subprefeituras e o quarto, entre agosto de 2003
e julho de 2004, abrangeu a discussão pública
conduzida pela Câmara Municipal para a aprovação de todos os projetos enviados, culminando na sua aprovação em julho e sanção em
Incorporações, rejeições,
controvérsias e conflitos
no processo de construção
dos projetos de lei
agosto de 2004.
No caso da construção do PDE, a ela-
Algumas reflexões, diante de processos partici-
boração da primeira minuta do projeto de
pativos como o que ocorreu durante a elabo-
lei pelo Poder Executivo e sua revisão e qua-
ração e aprovação do PDE de São Paulo e suas
lificação durante o período que tramitou na
leis complementares, apontam para o signifi-
Câmara Municipal, embora componham dois
cado do avanço das práticas democráticas na
momentos diferentes bem delineados, são
sociedade brasileira pós-Constituição de 1988.
parte de um mesmo processo em que se des-
Na percepção de uma individualização cada
taca o papel da Câmara Municipal, e, mais
vez mais pujante nas sociedades contemporâ-
especificamente, do gabinete do vereador
neas, como evidencia Ascher (2010, p. 38), em
Nabil Bonduki, escolhido para ser o relator do
que as escolhas individuais são sempre, ao me-
projeto. Sua atuação destacou-se não só pela
nos em parte, determinadas socialmente, mas
articulação para viabilizar a aprovação do pro-
o sistema em que se constroem essas decisões
jeto de lei, como também pela aglutinação de
é mais complexo, e os indivíduos, assim como
forças, menos presentes durante a elaboração
as organizações, estão mais conscientes de
do primeiro projeto pelo Executivo Municipal.
decidir sob uma racionalidade limitada e su-
A contribuição de demais segmentos sociais,
as escolhas dependem de um maior número
como os movimentos de moradia e o envolvi-
de interações, pergunta-se como, hoje, é pos-
mento de um número substancial de pessoas,
sível fortalecer a esfera pública nos processos
na fase de tramitação na Câmara, imprimiu, à
decisórios da arena política. Este tem sido um
nova minuta do plano diretor, maior aderên-
dos principais dilemas enfrentados por Antony
cia dos setores populares, demonstrando um
Giddens na discussão sobre a passagem da
peculiar e original envolvimento da Câmara
modernidade para a pós-modernidade no âm-
Municipal, decisivo para a aprovação do pro-
bito da sociologia política. Para ele, a transfor-
jeto em agosto de 2002. No caso da nova lei
mação necessária para a reconstituição de uma
de uso e ocupação do solo e dos PREs, os dois
vida pública nos tempos atuais baseia-se em
138
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território
como reconciliar a individuação da identidade
vez, a predominância daqueles segmentos que
cultural com o reconhecimento do compartilha-
tradicionalmente se expressam nas decisões
mento entre indivíduos com diferentes quadros
que interferem na produção do espaço urbano.
de referências, assim como de diferentes inte-
A gradual intensificação da participa-
resses, de forma a evitar que os processos de
ção nos quatro momentos de construção dos
pensamento e prática coletivos não suprimam
projetos de lei tem a ver diretamente com o
o florescimento desta capacidade individual de
delineamento dos posicionamentos defen-
cada um (Healey, 1997, p. 44). Ao tratar da di-
didos pelos distintos grupos de interesse em
versidade que constitui a realidade do mundo,
paralelo ao visível amadurecimento acerca do
Santos (2007, pp. 28-31) observa que nossa
conteúdo apresentado por eles. Pode-se dizer
racionalidade se baseia na ideia da transfor-
que, se as atividades e dinâmicas isoladas em
mação do real, mas não na compreensão do
cada um dos momentos ocorreram de forma
real. Para ele a reinvenção da emancipação
relativamente rápida e acelerada, o proces-
social passa pela percepção do que denomina
so como um todo – que durou cerca de três
“sociologia das ausências”, ou “sociologia das
anos e meio – permitiu que os setores mais
insurgências”, daquilo que é invisível à realida-
representativos da sociedade amadurecessem
de hegemônica do mundo. Há cinco modos de
suas posições e interferissem de fato no pro-
produção das “ausências” em nossa racionali-
cesso, incluindo propostas e alterações nos
dade ocidental para ele: 1) a monocultura do
documentos formulados. Até mesmo a inter-
saber e do rigor; 2) a monocultura do tempo
rupção no processo encabeçada pelo Ministé-
linear; 3) a monocultura da naturalização das
rio Público2 demonstra que houve certa aten-
diferenças; 4) a monocultura da escala domi-
ção da sociedade para os assuntos da política
nante; e 5) a monocultura do produtivismo
urbana, mesmo considerando os interesses
capitalista. No caso do processo participativo
corporativistas que permearam esses debates.
instaurado durante a preparação do PDE de
O primeiro grande conjunto de modifica-
São Paulo, os principais grupos organizados
ções ao projeto de lei do plano diretor formu-
interessados nas discussões e debates não
lado pelo Executivo Municipal, através da Se-
parecem ter transcendido para além de uma
cretaria Municipal de Planejamento (Sempla),
racionalidade hegemônica, conforme aponta
ocorreu na Câmara dos Vereadores a partir de
Santos, mas permanecido na defesa irrestrita
maio de 2002, no âmbito da Comissão de Po-
dos posicionamentos que tomaram para si em
lítica Urbana, que constatou a necessidade de
prejuízo da reinvenção das práticas democrá-
promover ajustes mais profundos de modo a
ticas, a partir de uma diversificação mais rica
“superar algumas dificuldades de entendimen-
e intensa que poderia emergir do conjunto de
to dos objetivos estratégicos propostos, de sua
vozes não dominantes que se pronunciaram,
articulação com instrumentos previstos e de
mas não tiveram força suficiente para interferir
sua adequação com as condições concretas de
com mais substância nas decisões. A rapidez
sua implementação” (São Paulo, 2002, p. 15).
e talvez os formatos que se configuraram nes-
Depois de aglutinar forças, o gabinete do ve-
te processo participativo elevaram, mais uma
reador Bonduki construiu um consenso sobre
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
139
Sidney Piochi Bernardini
a necessidade de tornar o plano mais autoa-
5 – a criação de uma nova Zonas Especiais de
plicativo. No seu parecer conclusivo acerca
Interesse Social (Zeis), a Zeis 4 (além das outras
do Projeto de Lei 290/02, na ocasião do seu
três Zeis propostas), com o objetivo específico
encaminhamento para votação, assim estão
de minimizar conflitos de usos na Área de Pro-
registradas as principais alterações à proposta
teção aos Mananciais incidente sobre a cidade
original do Executivo:
de São Paulo,5 e a delimitação destas e das de-
1 – a necessidade de dividir a Macrozona de
mais Zeis indicadas no projeto do Executivo;
Estruturação e Qualificação Urbana, definida
6 – a previsão de um Conselho de Política
no projeto original como uma grande e única
Urbana diretamente subordinado ao gabinete
macrozona mista, em quatro áreas diferencia-
do prefeito com a principal responsabilidade
das – a Macroárea de Reestruturação e Requa-
de coordenar a ação dos conselhos setoriais e
lificação, a Macroárea de Urbanização Conso-
acompanhar a implementação dos objetivos
lidada, a de Urbanização em Consolidação e a
e ações expressas no plano diretor.
de Urbanização e Requalificação – de acordo
Cada uma destas mudanças, algumas
com identificação das características, graus de
relativamente profundas, não ocorreu tranqui-
consolidação urbana e necessidades sociais e
lamente. A formação dos três grandes blocos
de serviços urbanos específicos;
de interesse neste momento: a Frente Popular
2 – a adoção de coeficientes de aprovei3
pela Reforma Urbana, que reuniu movimen-
tamento básico dos lotes (acima de 1) e um
tos, ONGs e universidades; o setor imobiliá-
período de transição para aplicação desses co-
rio, capitaneado pelo Secovi SP (Sindicato
eficientes no lugar do coeficiente básico 1, defi-
da Habitação de São Paulo) e Sinduscon SP
nido no projeto anterior para toda a cidade, de
(Sindicato da Indústria da Construção Civil de
modo a evitar impactos negativos no mercado
São Paulo) e as associações de bairro, capita-
imobiliário e uma variação brusca nos valores
neadas pelo Movi men to Defenda São Paulo
dos imóveis;
(Bonduki, 2007, p. 219), evidencia a compo-
3 – o estabelecimento do instrumento da ou-
sição de forças diante de questões cruciais
torga onerosa por meio de fórmula previamen-
de fundo ideológico e político que a primeira
te definida, cujo valor variável seria resultante
minuta apresentada ainda não havia aflorado.
do interesse urbanístico e do interesse social
Neste segundo momento, era clara a intenção
de determinadas categorias de atividade para
de aplicar os instrumentos da política urbana
4
a cidade;
em consideração às diretrizes estabelecidas
4 – a definição de uma nova categoria de ha-
pelo Estatuto da Cidade. Mas ainda incipientes,
bitação, a Habitação de Mercado Popular, que
tais instrumentos inspiravam dúvidas, receios e
junto com a Habitação de Interesse Social pre-
desconfianças por parte de alguns segmentos.
sente no projeto de lei original, ampliaria o pa-
Um conjunto de críticas e conflitos, que já esta-
drão de habitação a ser estimulado e possibili-
vam se delineado ainda no primeiro momento
taria o atendimento às faixas de renda média,
de construção do plano diretor, consolidou-se
além da prioritária de “baixa renda”;
neste segundo.
140
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território
Assim é que vários posicionamentos
em cada região. Defendiam os instrumentos
antagônicos podem ser lidos e identificados a
“Áreas de Intervenção Urbana”, “Operação Ur-
partir do texto final do plano diretor, confor-
bana” e “Concessão Urbanística”, através dos
me foi sancionado. Alguns segmentos como,
quais as pequenas diferenças seriam conside-
por exemplo, o Secovi SP, associados a alguns
radas e tratadas por projetos específicos com
técnicos e profissionais, inclusive de órgãos
força de renovação e reconversão. Em defesa
da Prefeitura Municipal, não concordavam em
das Operações Urbanas, o Secovi-SP criticava
incluir um conjunto tão extenso e abrangente
os extensos e amplos perímetros contidos no
de ações estratégicas (342 ações) no âmbito
PDE e defendia perímetros mais compactos, su-
das políticas setoriais (Título II do Plano: Das
postamente mais eficazes.
Políticas Públicas: objetivos, diretrizes e ações
Com esses pontos, é possível imaginar
estratégicas). Esta vertente defendia um plano
algumas controvérsias que permearam o pro-
diretor mais “enxuto” e menos volumoso, sem
cesso de discussão do plano. Diante desses e
tamanha quantidade de ações. Muitos defen-
de tantos outros aspectos polêmicos e confli-
diam até mesmo a exclusão total das políticas
tuosos, não será possível aprofundar aqui cada
setoriais do Plano. Para tais representantes, o
um dos episódios que acaloraram os debates
excesso de aspirações era de difícil cumprimen-
durante esses três anos e meio. Cabe destacar
to, o que, de fato, tem se demonstrado, decor-
apenas alguns mais essenciais. Estes estavam
ridos dez anos de aprovação do plano. Obser-
identificados com a bandeira de luta dos três
vavam ainda que muitas destas políticas não
grandes blocos representativos já mencionados
estavam amarradas a uma configuração terri-
acima: o setor imobiliário, as associações de
torial, contrariando as prerrogativas espaciais
bairro e a Frente Popular pela Reforma Urbana.
de um plano diretor.
No primeiro caso (do setor imobiliário), a gran-
Outro aspecto levantado foi a difícil apli-
de questão se referia ao potencial construtivo
cação da lei pelos segmentos ligados à produ-
por zona e a respectiva outorga onerosa do di-
ção imobiliária. Para eles, a existência de trinta
reito de construir. Já as associações de bairro
e um planos regionais não tinha nada de estra-
defendiam com vigor a manutenção e preser-
tégico já que não apontavam para questões es-
vação das zonas exclusivamente residenciais
senciais e, na prática, dificultavam a utilização,
e a Frente Popular, a inclusão e delimitação de
pelos promotores imobiliários, dos dispositivos
mais perímetros de ZEIS, além daqueles propos-
legais complexos e excessivos. Lembram, por
tos pelo Executivo. Tudo isso formou um mosai-
outro lado, das grandes diferenças territoriais
co de debates e embates não só entre os ato-
existentes na cidade de São Paulo: regiões mais
res-chaves e representantes desses três blocos,
ricas e regiões mais pobres, que não podem ser
mas de outros representantes da sociedade co-
planejadas da mesma forma. Ao invés de ser
mo um todo. A imprensa escrita noticiou parte
tratada por uma “lei genérica de zoneamento”,
desses confrontos, mas se inclinou a reverberar
a cidade de São Paulo poderia ter suas diferen-
a voz das associações de moradores nos polê-
ças consideradas e trabalhadas através, por
micos assuntos sobre zoneamento. Reforçava-
exemplo, de intervenções urbanas específicas
-se, através da imprensa, uma compreensão
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
141
Sidney Piochi Bernardini
rasa do significado do plano diretor e das ino-
entidades interessadas em manter o direito de
vações cruciais que poderia trazer à cidade com
construir organizaram-se rapidamente. O Seco-
a inclusão dos instrumentos da política urbana
vi, Sinduscon, Creci e outras entidades do se-
estabelecidos pelo Estatuto da Cidade.
tor ecoaram juntos na defesa por um potencial
As discussões sobre o potencial constru-
básico maior que 1 gratuito, penetrando suas
tivo por zonas iniciaram-se ainda no primeiro
representações na Câmara de Vereadores e no
momento, restritas internamente ao governo.
Conselho de Política Urbana que se formaria
O ex-diretor do Departamento de Planos Urba-
logo em seguida à sanção do plano diretor. O
nos da Secretaria Municipal de Planejamento,
argumento apresentado naquele momento não
Engenheiro Ivan Maglio, conta que não havia
foi o da “desvalorização do terreno”, mas o do
consenso acerca do uso dos coeficientes de
“direito adquirido” – de que a maior parte das
aproveitamento mínimo e máximo 6 para a
zonas em São Paulo, à exceção das exclusiva-
aplicação dos instrumentos e de que alguns
mente residenciais (Z1), de preservação patri-
participantes pensavam que a utilização de
monial e ambiental (como as Z8) e algumas
7
um coeficiente básico para toda a cidade des-
outras, já possuíam o coeficiente de aprovei-
valorizaria os terrenos. Vencida, porém, essa
tamento mínimo igual a 2 e que, portanto, a
etapa de discussão, a versão apresentada pelo
capacidade para este tipo de adensamento já
Executivo incluiu, para a maior parte da cidade
existia a priori. A isso, associava-se o discurso
(Macrozona de Estruturação e Qualificação Ur-
de que o plano que o governo apresentava ti-
bana) o coeficiente de aproveitamento igual a
nha uma vertente meramente arrecadatória,
1, podendo ser ultrapassado (até 2,5), limitado
pretendendo-se, com ele, inibir o crescimento
8
ao “estoque de potencial construtivo fixado
imobiliário da cidade.
para cada zona ou distrito” e através de con-
No gabinete do vereador Nabil Bonduki,
trapartida financeira9 “representada por bene-
esse debate não ficou só no campo da “nu-
fícios urbanísticos à vizinhança e à cidade, a se-
merologia”, como bem lembra Evaniza Rodri-
rem prestados pelos proprietários dos imóveis
gues, atual Coordenadora da União Nacional
em questão”. O governo passou a defender o
dos Movimentos de Moradia. A compreensão
coeficiente básico igual a 1 como forma de di-
de que era importante pensar os modelos de
rigir a queda dos valores dos terrenos, questão
ocupa ção a partir das diferenças existentes
que foi refutada pelos produtores imobiliários
na cidade e de que o adensamento construti-
que não acreditavam nessa tese. O Secovi SP
vo não significava necessariamente adensa-
alegava, por exemplo, que, mesmo com o coefi-
mento populacional elevou a discussão para
ciente igual a 1, os proprietários manteriam os
questões de fundo, considerando os vários
preços altos e os empreendedores buscariam
estágios de consolidação urbana e as várias
outras alternativas para a produção de imóveis:
centralidades e, em especial, o centro principal
compra de terrenos maiores e construção de
da cidade e a sua dinâmica de esvaziamen-
condomínios horizontais. A coalizão de forças
to populacional. Essa reflexão levou à criação
em relação ao potencial construtivo tomou for-
das quatro Macroáreas dentro da Macrozona
ça nos momentos seguintes, mas é certo que as
de Estruturação e Qualificação Urbana, como
142
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território
mencionado acima, assumindo-se os diferen-
bairros onde reside a população de maior faixa
tes graus de consolidação que esta Macrozona
de renda. Em quase todos, a recusa à “inva-
possuía. Além disso, a adoção dos “fatores de
são” do comércio, ao trânsito e à verticalização
planejamento: Fp” e dos “fatores sociais: Fs”10
apareceu fortemente nas variadas manifesta-
presentes na fórmula de outorga onerosa, di-
ções, inclusive na imprensa, como demonstra a
ferenciados e aplicados em cada macroárea
série de matérias publicadas semanalmente pe-
específica, considerava toda a discussão em
lo caderno “Imóveis” do jornal Folha de S.Paulo
relação às formas de adensamento construtivo
durante o mês de setembro de 2002, logo após
e populacional. O resultado deste processo foi
a aprovação do PDE.
a alteração do coeficiente de aproveitamento
Na maior parte delas, o descontentamen-
básico 1 proposto no projeto de lei para um
to com a lei aprovada foi amplamente noticia-
que variou de 1 (nas antigas zonas Z1, Z9, Z6
do, já que para esses moradores entrevistados,
e Z7) a 2 (nas demais). A essa decisão, houve
tratava-se de manter ou tornar estes bairros
uma forte reação dos grupos que defendiam a
livres de qualquer interferência, fosse pela res-
contenção à verticalização e as associações de
trição a intervenções públicas como ampliação
moradores que bradavam pela preservação dos
e extensão de vias, fosse pela proibição de usos
bairros residenciais de baixa densidade cons-
do solo mistos. Uma vez que as disposições so-
trutiva e populacional.
bre zoneamento não foram incluídas nas alte-
As associações de moradores e de bairros
rações do plano diretor, muitas associações que
protagonizaram os debates acerca da segunda
reivindicavam restrições mais rígidas nas regras
grande questão polêmica do plano diretor. Parte
de uso e ocupação de seus bairros sentiram-se
das discussões ficou conhecida pela veemência
não contempladas.
com que o Movimento Defenda São Paulo con-
De um lado, estavam aquelas associações
duziu as negociações com o Poder Executivo e
que ou defendiam a manutenção das zonas ex-
com a Câmara de Vereadores. Ainda que, para
clusivamente residenciais, ou lutavam para que
a opinião pública, esse debate tenha se restrin-
seus bairros fossem transformados em uma.
gido à defesa da preservação das chamadas
De outro, estavam os comerciantes e donos de
“zonas exclusivamente residenciais”, delimita-
estabelecimentos de usos não residenciais que
das originalmente na Lei de 1972, como Zona
queriam aproveitar o momento para regularizar
1 (Z1), ele foi mais diversificado e incluiu um
situações de inadequação diante da antiga lei
conjunto de posicionamentos que tinha na ma-
de zoneamento de 1972. Moradores do Jardim
nutenção da qualidade urbana de alguns bair-
da Saúde, Parque dos Príncipes e Jardim Cam-
ros uma bandeira de luta. As discussões locais
po Grande, por exemplo, lutaram para que seus
foram ganhando força até culminar no momen-
bairros se transformassem em zonas exclusiva-
to da elaboração dos planos regionais, quando,
mente residenciais e se articularam para incluir
após um maior amadurecimento acerca das
uma das emendas aprovadas pela Câmara (ar-
problemáticas e intenções do poder público, os
tigo 160), mas vetadas pela prefeita na ocasião
embates foram mais intensos. Neste campo, in-
da sanção. Em lado oposto, estavam os donos
teressante notar que os alardes ocorreram nos
de lojas localizadas em vias que atravessavam
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
143
Sidney Piochi Bernardini
bairros exclusivamente residenciais, como a rua
aprovação do plano diretor estratégico. Para
Gabriel Monteiro da Silva, uma das principais
alguns urbanistas, que compunham uma ver-
avenidas que corta o tradicional bairro Jardim
tente de oposição ao governo da ex-prefeita
América e que se consolidou com o uso predo-
Marta Suplicy, as modificações comandadas
minantemente comercial, bem como os donos
pelo gabinete do vereador Nabil Bonduki ti-
de restaurantes e outros tipos de atividades
nham melhorado significativamente o projeto,
da Vila Nova Conceição, que também se mo-
mas eram ainda insuficientes – demandavam
bilizaram para aprovar uma emenda (artigo
uma melhor articulação entre as tantas leis e
165) a seu favor, parte vetada pela ex-prefeita
planos que foram remetidos para regulamen-
Marta Suplicy.
tação posterior (como transporte e habitação)
O critério, adotado pelo relator Nabil
com as diretrizes do plano, assegurando-se a
Bonduki, de não autorizar mudanças pontuais
aplicabilidade de demandas importantes. O re-
de zoneamento no plano diretor estratégico
corte do zoneamento foi, para eles, decorrente
permitiu que muitas das emendas propostas
da ausência de uma tipologia clara de zonas.
não fossem aprovadas e que, por solicitação
Um dos interlocutores deste momento, o pro-
do próprio vereador e de mais 20 entidades,
fessor e urbanista Luiz Carlos Costa, insistia na
fossem vetadas pela prefeita. Isso permitiu que
articulação de todos os elementos do plano.
todos os conflitos em relação ao zoneamento
Em entrevista concedida no dia 15 de agosto
pudessem ser amadurecidos e discutidos com
de 2002 para o jornal Folha de S.Paulo, Costa
mais calma no momento seguinte, durante as
ressaltava a necessidade de que o plano dire-
reuniões regionais, o que resultou em acalora-
tor contivesse todos os elementos necessários
dos debates nas dezenas de encontros realiza-
para assegurar a coerência, no conjunto da ci-
dos durante a construção desses planos, com
dade, das ações executivas e normativas pro-
vários dos conflitos resolvidos e outros amplia-
postas. Em outras palavras, dizia:
dos. Assim é que bairros como Jardim Paulistano, Jardim América e Jardim Europa conseguiram a manutenção da exclusividade do uso
residencial e bairros como Vila Nova Conceição
tiveram parte de seu território enquadrado em
zona exclusivamente residencial, parte em zona mista.
O mosaico resultante deste processo de-
Não basta, por exemplo, definir um sistema de transportes com determinada capacidade se não ficarem igualmente estabelecidos os limites quantitativos de uso para as regiões servidas por ele (...). Apesar
dos diversos mapas que ele contém, não
se consegue visualizar claramente qual o
plano urbanístico proposto, seus objetivos
e a estratégia de implementação.
monstra o peso das negociações, mas aponta
também para uma complexidade, em termos
Esta questão da capacidade de suporte da in-
de número de zonas e parâmetros de uso e
fraestrutura em consonância com o zoneamen-
ocupação do solo. Esta aparente falta de sen-
to ensaiava alguns posicionamentos da crítica
tido lógico, que ficou mais patente depois de
que se faria, nos anos posteriores, à aprovação
aprovada a lei de zoneamento, já vinha sen-
do plano diretor e da lei de uso e ocupação do
do discutida ainda no conturbado período de
solo, quando o setor de produção imobiliária
144
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território
passou a reivindicar o aumento de estoque
de Regularização de Loteamentos – Resolo,
construtivo em algumas zonas onde este já ha-
respectivamente. Na estrutura departamental
via se esgotado.
da Sehab, a Superintendência de Habitação
O terceiro aspecto a ser destacado refe-
Popular é ramificada em departamentos regio-
re-se à delimitação das Zonas Especiais de In-
nalizados, chamadas de Habi’s regionais, cada
11
teresse Social que também se tornou um de-
uma responsável por uma região da cidade
safio para os gabinetes técnicos, considerando
(Norte, Leste, Sudeste, Sul e Centro), que foram
o alto número de favelas e loteamentos irregu-
essenciais para o fornecimento de informações
lares existentes e os conflitos com a população
sobre as favelas. Quanto aos loteamentos irre-
local moradora no entorno destes assentamen-
gulares, o trabalho de regularização que vinha
tos, no decorrer do processo de delimitação.
sendo feito por Resolo também possibilitou a
Não menos polêmico, esse assunto envolveu
indicação daqueles que mereciam ser delimi-
discussões entre praticamente todos os campos
tados. Foram também acrescidos os conjuntos
de interesses e, principalmente, entre os três
habitacionais irregulares, esses indicados pela
blocos representativos. A Frente Popular que
Companhia Metropolitana de Habitação de São
reunia os movimentos por moradia defendia
Paulo (Cohab) e pela própria Habi, que tinham
a inclusão de mais Zeis, principalmente as Zeis
o cadastro dos conjuntos por ela geridos. Todos
2 destinadas à construção de empreendimen-
esses casos comporiam a chamada Zeis 1, as-
tos habitacionais populares; o bloco ligado ao
sim denominada para os casos de áreas ocupa-
setor imobiliário tinha restrições à inclusão de
das por populações de baixa renda, abrangen-
Zeis em alguns setores da cidade e duelaram,
do favelas, loteamentos precários e empreendi-
portanto, com os movimentos sociais. Já algu-
mentos habitacionais de interesse social ou de
mas associações de moradores, principalmen-
mercado popular em que houvesse o interesse
te das zonas exclusivamente residenciais, não
em promover a recuperação urbanística, a re-
queriam ouvir falar em criação de zonas espe-
gularização fundiária e a produção ou manu-
ciais próximas aos seus bairros – tal posiciona-
tenção de HIS (Habitação de Interesse Social).
mento vinha carregado de um posicionamento
contrário ao adensamento populacional.
Quanto às chamadas Zeis destinadas a
novos empreendimentos, o desafio era ainda
Desde o início, a delimitação das Zeis
maior, pois essas ainda eram uma novidade
ficou sob a responsabilidade da Secretaria de
naquele momento. Alguns municípios já tinham
Habitação e Desenvolvimento Urbano (Sehab),
delimitado Zeis de terrenos vagos, como Diade-
por solicitação da Secretaria de Planejamento
ma, por exemplo, mas ainda não havia se con-
(Sempla), mas o prazo foi muito curto para rea-
solidado um método para realizar tal delimita-
lizar todo o trabalho. A vantagem é que Sehab
ção. De novo, o auxílio de outros departamen-
já dispunha de informações – as favelas e os
tos foi essencial. O papel da Sehab foi, então,
loteamentos irregulares já estavam mapeados
o de selecionar os imóveis indicados mais ade-
pelos departamentos, ligados à Sehab, que
quados para serem delimitados, tornar precisa
faziam a sua gestão: a Superintendência de
sua delimitação e estabelecer as regras para
Habitação Popular – Habi e o Departamento
o funcionamento das Zeis. A indicação, neste
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145
Sidney Piochi Bernardini
caso, foi feita, na sua maioria, pelas Habi’s,
terrenos ou edifícios isolados, mas grandes
que recebiam indicações dos movimentos de
perímetros que incluíam conjuntos de imóveis
moradia, da Cohab-SP (Companhia Metropo-
contíguos de vários proprietários e com várias
litana de Habitação de São Paulo) e da CDHU
modalidades de uso, predominando, entretan-
(Companhia de Desenvolvimento Habitacional
to, os não utilizados ou subutilizados.
e Urbano do Governo do Estado de São Paulo).
A arquiteta Ana Lucia Ancona, que coor-
A Cohab, por exemplo, desenvolvia um estudo
denou o processo de delimitação dessas Zeis
de imóveis para constituir um banco de terras
pela Sehab, argumenta que era importante
da Companhia para futuros empreendimentos
trabalhar critérios para viabilizar a implemen-
habitacionais. Todos esses terrenos estudados
tação destas zonas, já que não cabia delimitar
foram indicados.
todos os terrenos vagos. Esses critérios passa-
Na perspectiva de se utilizar esses imó-
vam, por exemplo, pela questão da viabilidade
veis disponíveis para a habitação em todas as
técnica e econômica, pois nem todos os imó-
regiões da cidade, surgiu a ideia, então, de
veis indicados eram adequados ou viáveis para
se trabalhar com uma categoria de Zeis que
a construção de habitação social, em razão,
abrangesse imóveis na área central da cidade.
principalmente, do seu preço. Uma forma de
Consideradas como categoria à parte, essas
trabalhar esses critérios foi introduzir regras
zonas foram denominadas Zeis 3, constituídas
específicas para os empreendimentos habita-
tanto por terrenos não utilizados ou subutili-
cionais de interesse social, categoria de uso
zados (estacionamentos, por exemplo) como
criada especificamente para o caso das Zeis.
por edifícios verticais não utilizados ou aban-
Um dos critérios de atendimento, neste caso,
donados. A delimitação dessas também tinha
era o de renda familiar (até seis salários mí-
antecedentes, já que a Coordenadoria do Pro-
nimos), mas outros, como por exemplo, tama-
grama Morar no Centro, ligada à Sehab, ha-
nho mínimo da unidade, restringiam o atendi-
via contratado estudos para a delimitação dos
mento a um universo específico de famílias ou
chamados Perímetros de Reabilitação Integra-
pessoas. Por outro lado, havia também a preo-
da do Habitat (PRIHs). Ao incluir setores urba-
cupação de que os perímetros fossem de fato
nos ocupados por habitações precárias e corti-
coerentes com a situação de subutilização –
ços na área central, os objetivos desses eram
um dos critérios, por exemplo, foi indicar imó-
o de valorizar as potencialidades do bairro e
veis subutilizados há pelo menos cinco anos.
da comunidade, mobilizar os grupos visando
Ancona lembra que a diversidade de usos era
sua organização e exercício da cidadania e a
uma diretriz clara do plano diretor e, portanto,
inclusão social por meio de melhorias das con-
o recorte mais adequado das zonas tinha que
dições habitacionais. Muitos desses períme-
seguir referências de uso do solo. Não se pre-
tros foram, portanto, delimitados como Zeis.
tendia delimitar grandes áreas ou bairros intei-
Mas não só. Antigas áreas industriais aban-
ros, mas estabelecer, de fato, um recorte pre-
donadas nos eixos ferroviários ao longo do rio
ciso daquelas propriedades que eram interes-
Tamanduateí e na Vila Leopoldina também fo-
santes para habitação de interesse social. Ao
ram incluídas. Não foram delimitados apenas
que parece, tal diretriz foi objeto de conflitos
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território
com os movimentos que desejavam imprimir
estratégia, nesse caso, era possibilitar a produ-
perímetros mais extensos, como fizeram no
ção habitacional também pelo mercado, além
distrito da Mooca, cuja proposta teve que ser
do poder público. No campo das modificações
ajustada por Sehab, recusando boa parte das
pontuais estavam as inclusões de Zeis propos-
áreas indicadas pelos movimentos.
tas pelos movimentos e por vereadores. Muitas
Todo o trabalho de delimitação, neste
foram recusadas pela equipe da Sehab, mas
primeiro momento, foi realizado em no máxi-
voltaram a ser propostas durante a elaboração
mo três meses e as Zeis foram incluídas sem
dos planos regionais. As porcentagens de HIS
muitos debates. Mas quando o Projeto de Lei
(Habitação de Interesse Social) e HMP (Habita-
chegou à Câmara, a mobilização dos movimen-
ção de Mercado Popular) obrigatórias nas Zeis
tos trouxe nova luz para a questão. Segundo
também foram incluídas, além dos incentivos
Evaniza Rodrigues, enquanto havia certo con-
em relação ao não pagamento das outorgas
senso em relação às Zeis 1, as Zeis 2 e 3 esta-
onerosas e o estabelecimento do coeficiente
vam aquém das expectativas dos Movimentos.
de aproveitamento máximo em 4 para as áreas
Foi a coalizão de forças que se deu naquele
centrais, gratuito para HIS.
fórum que permitiu uma entrada mais efetiva
Os Movimentos consideravam os períme-
dos Movimentos nesta discussão. É importante
tros de Zeis 2 e 3 apresentados pelo Executivo
lembrar que a Conferência Municipal de Habi-
insuficientes e, desde então, o trabalho junto à
tação que havia acontecido em setembro de
Câmara Municipal foi o de propor a delimita-
2001 tinha municiado os movimentos a discuti-
ção de novas zonas. Evaniza Rodrigues conta
rem propostas para a política habitacional que
que a busca por novos terrenos se deu de for-
passavam pela reativação dos mutirões como
ma relativamente improvisada. Sem recursos
forma de produção habitacional, regularização
(automóveis, funcionários ou técnicos), grupos
fundiária, obras de urbanização e pelo incen-
dos Movimentos se organizaram para visto-
tivo à moradia no Centro. Dali, a inclusão de
riar terrenos e apresentá-los ao gabinete do
zonas especiais orientadas para a produção da
vereador Nabil Bonduki. No gabinete, um gru-
moradia era um passo.
po de técnicos auxiliava os grupos a localizar
Na Câmara, modificações expressivas
e delimitar esses terrenos no mapa da cidade.
alteraram substancialmente o projeto original.
Depois, eram encaminhados à Sehab para que
No campo das modificações gerais, houve a
efetivassem a delimitação completa.
inclusão da categoria de Zeis 4 – imóveis va-
Os conflitos, neste momento, vieram à
gos localizados na Área de Proteção aos Ma-
tona, pois boa parte das áreas indicadas pelos
nanciais, pensados para servir como “áreas
movimentos não foram novamente aceitas por
pulmão” no processo de remoção de famílias
Sehab, esbarrando naqueles critérios previa-
moradoras em áreas de risco naquela zona e,
mente estabelecidos. Evaniza lembra que uma
no âmbito da discussão com o setor imobiliário,
parte das indicações era de terrenos muito
a inclusão de mais uma categoria de tipologia
pequenos, abaixo do critério de tamanho es-
habitacional, a de mercado popular, para aten-
tabelecido e, além disso, estava a questão dos
der às famílias de até 16 salários mínimos. A
preços considerados elevados para viabilizar
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Sidney Piochi Bernardini
empreendimentos de interesse social. Quando
16, passou a ser praticado após a aprovação
o Projeto de Lei chegou novamente à Câmara
do plano diretor por cooperativas habitacio-
Municipal, as deficiências continuavam laten-
nais ou incorporadoras voltadas ao mercado
tes para os movimentos de moradia. Na cha-
habitacional de “renda média”. Isso aqueceu a
mada “região leste 1”, por exemplo, não havia
possibilidade de não ter que usar o instrumen-
sequer uma área delimitada e, mesmo com a
to das Zeis para realizar empreendimentos de
indicação de novos imóveis pelos movimen-
interesse desse mercado.
tos, a configuração não se modificou. Terrenos
Do outro lado está a crítica dos próprios
bem localizados nas regiões leste e sudeste,
setores ligados ao mercado imobiliário que não
por exemplo, não tiveram a concordância por
concordaram com o conjunto de Zeis 3 delimi-
parte da SEHAB. Percebia-se uma tendência,
tadas na área central. Demarcadas em perí-
orientada pelos critérios estabelecidos, em diri-
metros relativamente extensos, as Zeis 3, para
gir as Zeis de “vazios” nas áreas mais periféri-
Eduardo Della Manna, diretor de Legislação ur-
cas da cidade. A primeira proposta lançada em
banística do Secovi-SP, nunca seriam viabiliza-
um boletim do plano diretor nos primórdios do
das em razão dos altos preços dos imóveis se-
processo já mostrava esta tendência, e o ma-
lecionados. Os pouquíssimos empreendimentos
pa final incluído no plano aprovado ratifica sua
já produzidos, restritos à esfera do Poder Pú-
posição em relação às Zeis 2.
blico, demonstram a dificuldade de viabilizar as
Para Evaniza Rodrigues, o tratamento
Zeis 3, segundo ele. A partir de outra ótica, es-
dado às Zeis 2 foi a grande falha do plano di-
sa constatação também foi feita por Tsukumo
retor, demonstrando um descontentamento,
(2007). Ela ressalta que estudos recentes mos-
ainda hoje, em relação aos resultados alcan-
tram que o Centro não está desvalorizado e
çados. “Este conjunto de Zeis 2 nem arranha
que a demarcação das Zeis 3 partiu, portanto,
o déficit habitacional atual”, diz ela. Suas crí-
de uma suposição equivocada – de que a sim-
ticas não param por aí. Lamenta o fato de que
ples manutenção da população de baixa renda
tais Zeis não estejam relacionadas com outros
no Centro seria, por si, um fator de deprecia-
instrumentos, como o parcelamento, edifica-
ção dos valores dos imóveis. Assim também, a
ção e utilização compulsórios ou o direito de
autora alerta para uma crença exagerada no
preem pção, por exemplo. Lembra também
poder transformador dos instrumentos urbanís-
que a faixa salarial estabelecida em até seis
ticos, que devem estar inseridos em estratégias
12
como critério de atendi-
mais arrojadas de gestão, investimentos e pro-
mento acaba privilegiando apenas as famílias
dução habitacional. Cabe ressaltar, neste senti-
que possuem faixas salariais mais próximas
do, que a participação ou intervenção dos pro-
de seis, excluindo aquelas com faixas salariais
prietários de imóveis, cruciais para a efetivação
abaixo de três. Assim também, a permissivida-
de qualquer política habitacional, não foi muito
de para a instalação de usos mais diversifica-
expressiva nos momentos de construção do
dos em Zeis, não restritas à habitação social
plano e, ao que parece, ficaram, na sua maioria,
pode “deturpar”, às vezes, seu objetivo origi-
alheios ao processo ou tiveram intervenções
nal. O atendimento ao HMP, em faixas de 6 a
muito pontuais.
salários mínimos
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Negociando o território
Nos momentos seguintes à aprovação
destinada a HIS e HMP, e desses, 50% obriga-
do plano diretor, pode-se dizer que houve uma
tórios para HIS e os outros 30% para HIS ou
forte mobilização para a inclusão de novos
HMP. Em Zeis 2 e 3, neste montante de 80%, a
perímetros de Zeis, principalmente das Zeis 2,
composição foi fixada em 40% para HIS e 40%
demonstrando-se que o amadurecimento do
para HIS ou HMP. Os outros 20% poderiam ser
processo e a realização destas reuniões regio-
destinados a outros usos, inclusive para HMP.
nais foram essenciais para a revisão destas zo-
Outra modificação importante que deve ser
nas, questão que não tinha sido devidamente
destacada refere-se às exceções previstas para
esgotada nos momentos anteriores. O papel
todos os casos de Zeis e também incorpora-
dos Movimentos, na insistência de incluir novos
das posteriormente na lei de uso e ocupação
perímetros, resultou no aumento expressivo
do solo. Foram excepcionados das destinações
de Zeis. Se em relação às Zeis 1, por exemplo,
obrigatórias nestas Zeis: os terrenos públi-
houve um aumento de pouco mais de 23% de
cos edificados ou não edificados, destinados
perímetros delimitados (517 no PDE para 640
a áreas verdes e a equipamentos sociais de
nos PREs), em relação às Zeis 2 e 3, houve um
abastecimento, assistência social, cultura,
aumento de mais de 94% de perímetros (292
educação, esportes, lazer, recreação, saúde
dos PREs contra 150 do PDE).
e segurança, além dos terrenos particula res
Por outro lado, as negociações com o
edificados ou não edificados que viessem a
setor imobiliário resultaram em modificações
ser destinados a equipamentos sociais, desde
não satisfatórias nas regras da composição
que conveniados com o Poder Público. Tais ex-
de Habitação de Interesse Social (HIS) e Habi-
ceções são até bem-vindas, pois assumem a
tação de Mercado Popular (HMP) em Zeis. O
prática corriqueira de atividades diversificadas
artigo 176 do PDE estabelecia que nas Zeis 1
nos assentamentos habitacionais. O problema,
e 2 era obrigatório destinar o mínimo de 70%
no entanto, foi não ter se estabelecido um per-
13
da área construída para HIS, podendo o res-
centual mínimo obrigatório para os empreen-
tante da área ter destinação em conformida-
dimentos habitacionais. Todas essas inserções
de com as regras da antiga Z2 – que permitia
tiveram impactos na aplicação posterior deste
usos mistos – e nas Zeis 3, tal porcentagem foi
instrumento, já que antigos edifícios residen-
fixada em 50%, podendo o restante ser utili-
ciais delimitados como Zeis 3 e que se assen-
zado em conformidade às regras estabelecidas
tam sobre antigas áreas verdes públicas não
para a antiga Z4, que também permitia usos
terão que ser obrigatoriamente reabilitados
mistos. Por pressão dos setores imobiliários, tal
para habitação. É o caso dos edifícios São Vi-
regra foi substancialmente modificada na lei
to e Mercúrio, localizados no centro da cida-
de zoneamento. Em Zeis 1, estabeleceu-se que
de, que foram demolidos para dar lugar a uma
no mínimo 80% da área construída deveria ser
provável praça.
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149
Sidney Piochi Bernardini
As “emendas na calada
da noite”
perímetros de zoneamento em respeito a todo
o processo de negociação anterior levaram-no
a rejeitar as emendas. Para ele, a situação era
difícil, uma vez que envolvia um vereador da
Um fato que também marcou este momento
base governista e, portanto, trazia emendas
de controvérsias na elaboração do plano foi
de interesse do governo. A rejeição foi um tan-
a apresentação inesperada de um conjunto
to desgastante politicamente, mas, segundo
de emendas ao projeto de lei do PDE no mo-
ele, era o melhor a se fazer, em coerência aos
mento de sua aprovação em agosto de 2002.
acordos estabelecidos no processo participati-
Nabil Bonduki explica que, após todo o pro-
vo. De todas aquelas emendas apresentadas,
cesso de negociação com os vários setores
apenas algumas foram incluídas, a contragos-
participativos e com os próprios vereadores,
to de vários vereadores e do próprio relator. O
que já haviam solicitado a inclusão de várias
desgaste foi acentuado a partir de toda a abor-
emendas durante o processo, muitas discuti-
dagem realizada pela imprensa que, em tom de
das e incorporadas, tudo caminhava para o
“caça às bruxas”, buscava os nomes dos verea-
sucesso na aprovação integral do projeto. Na
dores que as tinham encaminhado.
semana que antecedeu à aprovação, um ve-
O momento seguinte foi marcado por
reador da base governista, agregado a outros
um movimento de derrubada das emendas
interlocutores insatisfeitos, resolveu discutir o
por meio de vetos da prefeita. Esse movimento
projeto, rever cada perímetro proposto para
composto por setores representativos demons-
as macroáreas e outras zonas, além de ques-
trou a legitimidade do processo e significou
tionar aspectos do texto. Assim também, al-
uma intervenção mais radical da prefeita nos
guns setores do Executivo interferiram e apre-
vetos realizados, já que ela pretendia vetar
sentaram modificações que não haviam sido
apenas algumas emendas de menor importân-
anteriormente discutidas.
cia. A coerência cobrada pelo relator, de que
No dia 21 de agosto, durante o proces-
nenhuma inclusão relacionada a zoneamento
so de aprovação do plano, o mesmo vereador
fosse feita naquele momento, contribuiu para
apresentou várias propostas para o estabele-
sua decisão, consolidando todo o processo par-
cimento de Corredores de Comércio e Serviços
ticipativo que se realizou. Além dos vetos me-
(inclusive em zonas exclusivamente residen-
nos expressivos, a maior parte deles referiu-se,
ciais) e que, segundo ele, já tinham sido acor-
de fato, às alterações de zoneamento.
dadas com o Executivo e demais vereadores.
Em seguida, já na madrugada do dia 22 para
o dia 23, outro vereador, esse da oposição,
apresentou uma pasta contendo 150 emen-
Considerações finais
das substitutivas – a maioria relacionada a
mudanças de zoneamento. Para Bonduki, era
O processo de participação popular durante
inegociá vel incluir qualquer uma daquelas
a elaboração do Plano Diretor Estratégico de
emendas. Sua posição contrária à inclusão de
São Paulo elevou a possibilidade de tornar o
150
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Negociando o território
planejamento municipal mais democrático e
institucional nas esferas democráticas de ne-
aumentar a aderência entre os representan-
gociação. Não se deve esquecer, por outro la-
tes políticos, setores técnicos pertencentes ao
do, que a abrangência territorial, o volume de
quadro da administração pública e os demais
participantes e a complexidade das questões
agentes sociais interessados no desenvolvi-
tornaram, muitas vezes, dispersivas as deci-
mento urbano. Nesse caso específico, destaca-
sões deliberadas, induzindo, por exemplo, à
-se o papel peculiar e preponderante do Poder
manutenção de recortes territoriais excessivos
Legislativo com a condução do gabinete do
no zoneamento municipal.
vereador Nabil Bonduki que ampliou os fóruns
Mesmo assim, pode-se afirmar, que, em
de participação e propagou as esferas de ne-
linhas gerais, esses instrumentos legais refle-
gociação em dois momentos importantes da
tem algumas conquistas dos vários segmentos
formulação dos projetos de lei.
representativos que ganharam e perderam
A aprovação desse conjunto de leis ur-
durante o processo. Os ganhos só poderão
banísticas foi uma conquista importante, con-
ser verificados após uma avaliação precisa da
siderando as dificuldades intrínsecas à consti-
implementação desses instrumentos. Alguns
tuição de regras e disciplinas urbanísticas em
trabalhos acadêmicos recentes, como o de
uma cidade que possui mais de 10 milhões de
Caldas (2009), já demonstraram a timidez com
habitantes, onde as dinâmicas de exclusão
que as Zeis 2 (imóveis vagos e subutilizados
socioterritorial são evidentes, a gama de con-
reservados para a construção de habitação de
flitos é bastante elevada e, tradicionalmente,
interesse social) vêm sendo utilizadas para a
as atividades do setor imobiliário são muito
produção de habitação social. Ao mesmo tem-
intensas. O sucesso da aprovação destes ins-
po, o Secovi-SP constatou, através de pesquisa
trumentos (o plano diretor, planos regionais
própria, que a aplicação da outorga onerosa
e lei de uso e ocupação do solo) no período
já é um sucesso e que os setores imobiliários
de três anos e meio se deve essencialmente
incorporaram o instrumento com grande faci-
ao substancial processo de negociações em
lidade. Tal sucesso pode ser comprovado pelo
que os segmentos mais interessados puderam
esgotamento, em algumas regiões, do chama-
explicitar suas posições e disputá-las em meio
do “estoque de potencial construtivo”. O volu-
aos variados fóruns de discussão promovidos
me considerável de recursos arrecadados com
pelos principais interlocutores governamen-
a venda de potencial construtivo indica, por
tais. Ficou claro que, pelo menos no caso de
outro lado, uma receita adicional a ser utiliza-
São Paulo, encaminhamentos escusos como os
da para investimentos e que já têm sido apli-
das “emendas na calada da noite” constrange-
cados em obras de urbanização de favelas em
ram-se diante de um potencial fortalecimento
Zeis 1, conforme comprovou a pesquisa.
Sidney Piochi Bernardini
Arquiteto e Urbanista. Mestre em Estruturas Ambientais e Urbanas e Doutor em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo. Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Paulista (UNIP). São Paulo, Brasil.
[email protected]
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
151
Sidney Piochi Bernardini
Notas
(1) Es ma-se que até o final do processo com promulgação da Lei que ins tuiu os planos regionais
estratégicos e a lei de uso e ocupação do solo, par ciparam mais de cinquenta mil pessoas e
mais de três mil en dades.
(2) Em dezembro de 2003, após o Projeto de Lei ser encaminhado à Câmara Municipal e a realização
de inúmeras audiências públicas regionais e temá cas, uma liminar solicitada pelo Promotor
de Jus ça Mário Malaquias determinou a interrupção do processo, alegando que a Prefeitura
não havia publicado os dois projetos de lei (zoneamento e planos regionais) para a realização
das audiências públicas e que os planos regionais deveriam ser discu dos junto a dois outros
projetos: o plano municipal de habitação e o plano municipal de circulação viária e transportes.
Na prá ca, tal interrupção demonstrava o descontentamento de alguns setores, principalmente
das associações de bairros que discordavam de aspectos do zoneamento, pouco discu dos ou
não atendidos nas audiências anteriores. Uma matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo,
em 4 de setembro de 2003, indicava a existência de “brecha” no projeto do zoneamento, que
permi a a instalação de comércio e serviços em zonas exclusivamente residenciais, questão que
era absolutamente atacada pelas associações desses bairros residenciais.
(3) Coeficiente de Aproveitamento é a relação entre a área construída de uma edificação e a área do
terreno que ela ocupa.
(4) Ins tuído pelo Estatuto da Cidade, o instrumento da outorga onerosa do direito de construir
consiste na concessão que o Poder Público Municipal oferece ao particular, mediante o
estabelecimento de normas no plano diretor municipal, para que possa construir acima do
coeficiente de aproveitamento fixado para aquela área ou zona, mediante contrapartida
financeira. A fórmula da outorga onerosa foi ins tuída com a inclusão de dois fatores: o fator
de planejamento urbano e o fator de interesse social, que deveriam variar conforme a zona e os
obje vos de desenvolvimento urbano e de diretrizes de uso e ocupação do solo estabelecidos
no PDE.
(5) A Área de Proteção aos Mananciais foi ins tuída pelas leis estaduais 898/75 e 1172/76, incidindo
sobre vários municípios da Região Metropolitana de São Paulo. Com o obje vo de proteger os
mananciais hídricos da região, o perímetro desta área abrangeu extensos territórios no entorno
dos reservatórios hídricos des nados a abastecer sua população. No caso do município de São
Paulo, o perímetro incluiu áreas no entorno dos reservatórios Billings e Guarapiranga que,
mesmo com a ins tuição da lei, veram um rápido e danoso processo de ocupação irregular,
comprometendo a qualidade das águas destes reservatórios.
(6) O PDE considerou o coeficiente de aproveitamento mínimo aquele abaixo do qual o imóvel pode
ser considerado subu lizado e máximo, aquele que não pode ser ultrapassado.
(7) Coeficiente básico é, segundo o PDE, aquele que resulta do potencial constru vo gratuito inerente
aos lotes e glebas urbanos.
(8) Estoque de potencial constru vo é, segundo o PDE, o limite de potencial constru vo adicional,
definido para zonas, microzonas, distritos ou subperímetros destes, áreas de operação urbana
ou de projetos estratégicos ou seus setores, passível de ser adquirido mediante outorga onerosa
ou por outro mecanismo previsto em lei.
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Negociando o território
(9) Contrapar da financeira é o valor econômico, correspondente à outorga onerosa, a ser pago ao
Poder Público pelo proprietário de imóvel, em espécie ou em Cer ficado de Potencial Adicional
de Construção – Cepac.
(10) Inseridos na fórmula da contrapar da financeira da outorga onerosa incluída no ar go 213 do
plano, os fatores de planejamento e social foram estabelecidos por bairros e por categorias de
uso, incluindo HIS e HMP, presente nos quadros 15 e 16 do plano.
(11) O ar go 171 da Lei do PDE definiu as Zonas Especiais de Interesse Social como sendo porções
do território des nadas, prioritariamente, à recuperação urbanís ca, à regularização fundiária
e produção de Habitações de Interesse Social – HIS ou do Mercado Popular – HMP definidos
nos incisos XIII e XIV do ar go 146 desta lei, incluindo a recuperação de imóveis degradados, a
provisão de equipamentos sociais e culturais, espaços públicos, serviço e comércio de caráter
local.
(12) Ana Lucia Ancona lembra que o teto estabelecido em seis salários mínimos teve como referência
o parâmetro adotado para o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), que na prá ca tem
atendido às faixas salariais acima de quatro salários mínimos.
(13) O parágrafo 9º do ar go 175 considerou a possibilidade de se implantar HMP na porcentagem
complementar estabelecida para a zona (30% nas Zeis 1 e 2 e 50% nas Zeis 3), podendo-se
u lizar as mesmas regras de HIS, desde que a unidade habitacional vesse área inferior a 50m².
Referências
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Entrevistas realizadas e citadas no artigo
1)Arquiteta Ana Lucia Ancona – Ex-coordenadora do Programa Guarapiranga (2001-2004),
Coordenadora do processo de criação das Zonas Especiais de Interesse Social pela Secretaria de
Habitação de São Paulo (SEHAB) para o Plano Diretor Estratégico de São Paulo.
2) Arquiteto Eduardo Della Manna – Diretor de Legislação Urbanís ca do SECOVI.
3) Evaniza Rodrigues – Coordenadora da União Nacional dos Movimentos de Moradia.
4) Arquiteto Nabil Bonduki – Ex-vereador da Câmara Municipal de São Paulo (2001-2004) e relator do
projeto de Lei do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, Lei de Uso e Ocupação do Solo e Planos
Regionais Estratégicos.
Texto recebido em 21/out/2011
Texto aprovado em 30/nov/2011
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A espacialidade degradante tendencial
e o horizonte de uma educação
política do espaço
The tendency towards a degrading spatiality
and the horizon for political space education
Ulysses da Cunha Baggio
Resumo
Este artigo se propõe a analisar a formação progressiva de uma condição socioespacial contraditória, descontínua e desigual, submetida a uma
crescente privatização e mercantilização, que se
afirma como uma tendência na urbanização extensiva contemporânea. Ela se apresenta bastante
difundida no mundo atual, com forte incidência no
Brasil e na sua realidade urbana, não se restringindo a expressões metropolitanas, mas também recobrindo cidades médias e pequenas, constituindo,
desse modo, uma geografia urbana da segregação
espacial. Reverberando nas dimensões da vida cotidiana, esse movimento contraditório recrudescido
suscita insurgências e práticas de caráter reativo,
pelas quais se abrem possibilidades a formas de
apropriação e uso do espaço, mais especificamente da cidade. Esse cenário nos estimulou a pensar
sobre a importância e a necessidade de uma educação política do espaço para a contemporaneidade.
Abstract
This article aims to analyze the progressive
formation of a contradic tor y sociospatial
condition, discontinuous and uneven, submitted
to increasing privatization and commodification,
that has been consolidating as a trend in
contemporary extensive urbanization. It is spread
out in the current world, with strong incidence
in Brazil and in its urban reality, not only in
metropolises, but also in small and medium cities,
thus constituting an urban geography of space
segregation. Reverberating in the dimensions
of daily life, this contradictory and intensified
movement raises insurgencies and practices of
a reactive nature, which open up possibilities
for the forms of appropriation and use of space,
more specifically of the city. This scenario has
encouraged us to think about the importance
and necessity of a political space education for
contemporaneity.
Palavras-chave: segregação espacial; alienação
socioespacial; apropriação do espaço; representação do espaço; educação política do espaço.
Keywords : space segregation; sociospatial
alienation; appropriation of space; representation
of space; political space education.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012
Ulysses da Cunha Baggio
Introdução
urbanístico e da memória da cidade, buscando
também assegurar condições favoráveis à vida
comunitária no bairro, o que, não raro, envolve
O distanciamento gera solidão e desespero, e “encontro com o nada”, cinismo,
gestos de desafio. [...] Ou converte-se de súbito [...] na adoção ardente de
um ensinamento fanático que, por uma
simplificação monstruosa da realidade,
finge responder a todas as perguntas.
(Schumacher, 1983, p. 73)
enfrentamentos com o Estado (Baggio, 2005).
Nesse sentido é que se faz necessária
certa cautela quanto à aferição de suas reais
possibilidades e potencialidades, constituindo
um equívoco fazer tábula rasa dessas práticas.
Compreende-se que, no conjunto, elas não se
traduziriam como sujeitos privilegiados da História, mas mais propriamente como agentes
Uma aferição mais atenta da situação de nos-
capazes de transformar determinadas situa-
sas cidades possibilita-nos a constatação de
ções socialmente indesejadas nas comunidades
cenários os mais diversos, que recobrem tanto
em que atuam. Estaríamos, então, diante de
expressões da irracionalidade como de pos-
uma crise das formas tradicionais de agregação
sibilidades mais favoráveis e factíveis à vida
e representação, com a precipitação de novas
e à existência. Interessam-nos, mais especifi-
forças e atores sociais, bem como de novas es-
camente, certas ações e práticas socioespa-
tratégias de ação.
ciais pelas quais se vislumbram a emergência
Se o dinheiro e o mercado adquiriram
e o desenvolvimento de novas perspectivas à
maior poderio e projeção no mundo atual,
sociedade na sua interface relacional com o
pode-se dizer que a política e inventividade
território, principalmente aquelas dotadas de
social também se redefinem e se fortalecem
maior autonomia e portadoras do sentido da
diante da marcha inexorável do capital e do
autogestão, que operam, portanto, mais inde-
mercado, situação na qual o econômico e o
pendentemente do Estado e de suas interfe-
político não se projetam como instâncias mu-
rências, afastando-se, desse modo, de possíveis
tuamente excludentes, sendo elas integrantes
cooptações.
de um mesmo processo histórico, isto é, o
Assim, o mundo atual nos revela um uni-
desenvolvimento socioespacial contraditório
verso plural de práticas e reivindicações sociais
e desigual do capitalismo. No cerne de suas
(movimentos de moradores, lutas ambientais,
próprias contradições formam-se virtualidades
etc.), nos mais diversos lugares e regiões, com
reativas, que sinalizam a possibilidade de uma
conformações e objetivos variados, inclusive
outra via para o desenvolvimento do homem,
e significativamente também no Brasil. Neste
bem como de territórios que lhes sejam mais
território vêm se desenvolvendo movimentos
compatíveis. Aqui se pode falar da construção
sociais no campo e na cidade bastante auspi-
de territórios de utopia, ou ainda de uma con-
ciosos, tais como movimentos de moradores
dição socioespacial desejada, forjada cotidia-
que lutam em prol da defesa do patrimônio
namente pelos próprios interessados.
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A espacialidade degradante tendencial...
O território-mercadoria
e a conformação de uma
espacialidade urbana
de enclaves: segregação
espacial e alienação do espaço
a se estabelecerem próximos uns aos outros.
Os condomínios verticais (prédios de apartamentos, também de acesso restrito), por sua
vez, terão sua localização condicionada pela
proximidade ao local de trabalho, de possibilidades quanto ao usufruto de oportunidades de emprego, acesso a serviços de saúde
Estamos submetidos a uma condição espacial
e educação – sobretudo privados –, ambiente
marcada pela prevalência do valor de troca e
favorável à realização de bons negócios, pro-
pela difusão do mundo da mercadoria, trazen-
ximidade a áreas comerciais e outros serviços
do em sua esteira rápidas e profundas trans-
(tais como de lazer e entretenimento). Esses
formações na cidade. Elas respondem pela
condicionantes à sua localização sugerem uma
produção de novas formas e funções urbanas,
escolha seletiva de espaços na cidade, capazes
que redefinem os referenciais da vida na urbe,
de atender certas demandas e anseios de seus
ao mesmo passo que os modos de vida de seus
moradores e usuários.
habitantes. Pode-se oferecer como exemplo a
Tais formas sugerem uma arquitetura de
proliferação de habitats autossegregados, es-
enclaves, confinamento, reclusão e individuali-
pecialmente os “condomínios urbanísticos” e
dade. Dado que praticamente não apresentam
os designados “pseudocondomínios” ou lotea-
interações e contiguidades territoriais no tecido
mentos de acesso controlado, restrito, que se
urbano, elas praticamente interditam a mobili-
difundem na America Latina e, mais particular-
dade espacial dos citadinos, constrangendo a
mente, no Brasil. Aqui eles emergem a partir
locomoção das pessoas e, portanto, do direito
dos anos 70 como uma característica marcante
de ir e vir. Nega-se, ademais, o próprio sentido
de seu processo de metropolização, que en-
histórico da cidade, entendido como o lugar,
volve predominantemente segmentos de alto
por excelência, de promoção do encontro e da
poder aquisitivo, mas também, e mais recen-
sociabilidade, portanto de realização da polí-
temente, segmentos de classe média. O desen-
tica. A produção e o desenvolvimento destas
volvimento dessas formas urbanas, contudo,
formas urbanas vêm se afirmando como uma
não tem se mostrado como uma especificidade
tendência na urbanização contemporânea,
dos grandes centros, passando também a ocor-
sendo, sobretudo, o condomínio vertical (uma
rer, a partir dos anos 90, em cidades médias e
espécie de edifício autista), junto com os bol-
até mesmo em certas cidades pequenas.
sões de pobreza (favelas, principalmente) e os
De modo geral, a maioria dos condo-
shoppings centers, em menor grau, que respon-
mínios e loteamentos “fechados” horizon-
dem pela reconfiguração atual da paisagem ur-
tais (espaços de residências uni-familiares de
bana. A constituição dessa genuína morfologia
acesso controlado) encontra-se nas áreas pe-
de enclaves suscita questionamentos diversos,
riféricas das cidades, com sua localização pró-
tais como do planejamento e o ordenamento
xima a rodovias ou grandes eixos de circula-
territorial, de implicações na forma social e de
ção intraurbanos, revelando certa tendência
sua correlata espacialidade, da violência e da
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Ulysses da Cunha Baggio
intolerância entre os desiguais, de constrangi-
de exploração, que recobre o território sob os
mentos e restrições à locomoção urbana, do
vetores de uma impetuosa apropriação privada
aprofundamento das contradições urbanas e a
e seletiva do espaço. Ela indica claramente que
crescente aproximação geográfica de estrutu-
estamos diante do recrudescimento da forma-
ras díspares.
ção da anticidade, derivação da submissão da
Para além das indagações suscitadas,
cidade à lógica da mercadoria, pela qual ela se
estas conformações socioespaciais autossegre-
afirma e se projeta como lócus de produção e
gadas impõem e sedimentam barreiras físicas
reprodução do capital, em detrimento da vida
e sociais entre as pessoas em meio ao espaço
e da política.
urbano, recrudescendo diferenças. Elas, segu-
Sucede que a produção de mercado-
ramente, representam grandes desafios às po-
rias, ao se objetivar também como produção
líticas públicas e ao planejamento urbano, em
do próprio espaço, instaura uma “ambiência
que pese o fato de se difundirem concomitan-
mística” que recobre os produtos do trabalho,
temente ao crescimento de uma cidade para-
obstruindo, assim, seu reconhecimento – ao
lela: precária, clandestina e ilegal – submeti-
plano do intelecto – na qualidade de produtos
da, em larga medida, ao poder e ao controle
e formas sociais, pois engendradas por rela-
armados do narcotráfico. Conforma-se, desse
ções sociais do trabalho. O que significa que
modo, um construto urbano marcadamente
os fundamentos sociais dessa produção são
fragmentado e descontínuo, no qual suas ex-
escamoteados e obscurecidos, esvaziando-se a
pressões territoriais contraditórias e desiguais
dimensão social (e humana) do trabalho. Sob
se apresentam cada vez mais aproximadas
essa lógica é que as relações sociais que o en-
espacialmente, não obstante mais estranhas e
volvem se mostram como relações coisificadas
refratárias umas às outras, sugerindo-nos, des-
ou objetuais, de modo que as relações sociais
sa forma, o sentido da dissociação urbana e da
das pessoas não aparecem como suas relações
alienação do espaço.
pessoais, mas sim sob a forma de relações so-
Esse cenário sinaliza uma condição ter-
ciais das coisas, dos produtos do trabalho. Daí
ritorial urbana progressivamente tensionada
poder-se falar de certo alheamento do espírito
pelo aprofundamento das desigualdades, com
em relação à produção do próprio espaço, so-
a riqueza e a pobreza se posicionando lado a
bretudo a cidade, que se conforma, sob esses
lado, com toda a sorte de conflitos que essa es-
fundamentos, como um construto “estranho”,
trutura contraditória engendra. Nesse sentido,
acerca do qual as pessoas pouco, ou nada, se
pode-se postular que essa conformação se nos
reconhecem e/ou se identificam. Portanto, essa
apresenta como uma oposição socioespacial
produção, que também se traduz como produ-
degradante, em que a regra passa a ser a des-
ção de uma segunda natureza, comporta intei-
confiança e a insegurança generalizadas, numa
ramente o sentido do trabalho alienado, dado
espécie de “guerra” de todos contra todos.
que expressa o domínio dos objetos (mercado-
São evidências que matizam uma dinâmica
rias) e das instituições sociais, os quais, pro-
social submetida à lógica do capital e do mer-
duzidos pelos homens, operam amplamente
cado, sob os fundamentos de uma economia
sobre os próprios homens, submetendo-os,
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A espacialidade degradante tendencial...
assim, a forças tornadas incontroláveis, sen-
de condomínios “fechados” que abarcam
do clamorosamente plausível a ideia de uma
logradouros públicos em seus domínios, e que,
alienação socioespacial. Trata-se da produção
por isso mesmo, não poderiam ser “fechados”,
e da conformação de uma cidade na qual seus
conformando, desse modo, uma situação não
habitantes, em larga medida, não interferem,
prevista legalmente.
tanto no plano da concepção como no proces-
Mais especificamente no plano da ges-
so de sua estruturação, embora se reconheça
tão, a atuação do Estado na cidade tem se
certo avanço de políticas públicas urbanas de
dado como um negócio, pela qual a cidade
caráter participativo. Perde-se, praticamente,
é tratada como uma mercadoria, como um
o sentido que a cidade e o urbano assumem,
empreendimento, sendo preparada para se
e, desse modo, suas reais implicações, para
tornar competitiva, rentável. Isso evidencia
o qual a produção social de suas formas tem
que as normas do mercado tendem a configu-
muito a dizer; formas essas, como os condomí-
rar as normas públicas, dando-nos a ideia de
nios, que se tornam social e ideologicamente
que são os negócios que governam a cidade
naturalizadas, operando nas mentes subverti-
e não os governos (Santos, 1999, p. 15). Nes-
das e fetichizadas como verdadeiros símbolos
se sentido, a atuação dos empresários urba-
de ascensão social, elevadas à condição de
nos torna-se proeminente e decisiva quanto à
metas e projetos de vida.
constituição e conformação da urbe, atuação
Pão e circo não podem compensar ta-
que ocorre sob o estímulo e a anuência do Es-
manho dano na sociedade e na vida urbana,
tado, o qual, por meio das legislações urba-
sociedade que, premida por crescentes contra-
nas, transforma o espaço de acordo com os
dições, opera pelo escapismo (aí incluso o de
interesses do grande capital, especialmente
caráter territorial) e pela agressão, insuflando
os capitais corporativos. Essa condição socio-
situações grotescas e indesejadas na vida e na
espacial se afirma a despeito de instruir a pro-
existência sociais, compondo uma situação de
dução de uma espacialidade marcada pelo es-
certa imbecilização socioexistencial que ultraja
vaziamento da coletividade e da solidariedade
a natureza humana. O que nos incita, ao lado
urbanas e, desse modo, da retração progres-
de outras razões, a indagar sobre os fundamen-
siva do espaço público (em declínio notório),
tos dessa sociedade e das conformações que
o que impacta substancialmente a cidadania
assume a sua correlata espacialidade, a qual,
e seu sentido. Desse modo, as pessoas vão
em essência, os revela.
deixando de se reconhecer no espaço onde
A proliferação de condomínios e “pseu-
vivem, descolando-se dele sob os efeitos de
docondomínios” sabidamente encontra um
uma lógica devotada à competitividade e a
aparato poderoso no aparelho do Estado,
privatização da vida. Assim, a rua, cada vez
que responde pelo controle das operações
mais, se transmuta em via de fluxos e de pas-
de normatização do uso e do parcelamento
sagem, perdendo sua condição histórica de
do solo urbano, muito embora ocorram nesse
promoção do encontro e de socialização, pro-
universo certas práticas construtivas que se
blema que assume maior contundência nos
dão à margem da legislação, como é o caso
grandes centros, sobretudo.
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Ulysses da Cunha Baggio
No plano da vida cotidiana (âmbito em
Pode-se admitir, nesse sentido, que a con-
que se estabelece o embate dialético entre tro-
vivência e a ocorrência de relações mais diretas
ca e uso), regida pelo urbano e estreitamente
entre as pessoas no espaço urbano não só es-
relacionada e condicionada pelo Estado, o tem-
timulariam um sentido mais humano à cidade,
po (e as relações sociais), à medida que se dis-
como também sentimentos de pertencimento
tancia dos ciclos naturais, mostra-se progressi-
e afeto por ela, componentes fundamentais à
vamente como tempo econômico, quantitativo,
civilidade e à cultura pública, o que solicita o
isto é, como tempo de trabalho, em detrimento
(re)aprendizado da convivência e o exercício da
do tempo humano e social, o que constrange e
tolerância, que só se realiza sob condições de-
subverte relações preexistentes. A concepção e
mocráticas mais efetivas, ou ainda sob plenas
a experiência do tempo tornam-se, assim, con-
condições de emancipação social.
tábeis, e a vida urbana, ritmada pelo tempo do
Embora a cultura racionalizante capitalis-
trabalho, suscita uma concepção quantitativa
ta incida amplamente na sociedade e no espa-
bastante difundida na sociedade. Essa condi-
ço, há descontinuidades e situações pelas quais
ção, de acordo com Erich Fromm, traz impli-
podem se precipitar certas insurgências sociais
cações na própria “orientação do caráter” das
não alinhadas a ela, através das quais a apro-
pessoas, a que ele designa como “orientação
priação do tempo e do espaço pode ocorrer
mercantil”, cujas raízes estariam “na impres-
sob a perspectiva de uma maior valorização do
são de que se é também ‘mercadoria’ e do va-
humano, que, ao objetivar-se nos lugares por
lor pessoal de cada um como valor de troca”.
modos territoriais de vivência, o redefiniria pe-
A concepção mercantil de valor, o destaque dado ao valor de troca antes que
ao valor de uso, levou a uma concepção
semelhante de valor aplicável às pessoas
e particularmente à própria pessoa de
cada um. [...] Na orientação mercantil, o
homem enfrenta suas próprias forças como mercadorias dele alienadas. Não está
unificado com elas, pois estão dissimuladas para ele, porque o que importa não é
sua realização pessoal ao empregá-las, e
sim seu sucesso em vendê-las. Tanto suas
forças quanto o que elas criam se afastam, tornam-se algo diferentes de si, algo para os outros julgarem e usarem. [...]
A premissa da orientação mercantil é a
vacuidade, a ausência de qualquer qualidade específica que não seja suscetível de
modificação, pois qualquer traço persistente de caráter poderá algum dia entrar
em choque com as exigências do mercado. (Fromm, 1978, pp. 65-76 passim)
160
lo sentido do uso. Daí valorizarmos a fecundidade de experiências socioespaciais livres, que
se objetivam como formas e práticas (como
certos movimentos de moradores de bairro na
luta pelo resguardo e preservação de patrimônio arquitetônico-urbanístico bem como modos
territoriais de vivência, movimentos de cultura
de arte e música em periferias e áreas centrais
da cidade, etc.) com as quais a vida cotidiana
se desenrola na cidade, mais independentes
ou distanciadas de funcionalismos e dirigismos
do Estado, uma vez que este não se apresenta
aqui como mediação única ou exclusiva entre
as pessoas e sua liberdade, representando, por
assim dizer, efetivas utopias urbanas do desejo, dotadas de um caráter libertário, pois mais
espontâneas e ao gosto de seus atores. Nesse
sentido, elas encerram virtualidades luminosas
quanto à constituição de outra espacialidade,
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A espacialidade degradante tendencial...
em que pese o fato de serem as práticas sociais
de uma miríade de atores/agentes, geogra-
voluntárias de vivência aquelas que prescre-
fizam processos e situações sociais, a realiza-
vem maior sentido à vida, capazes de precipitar
ção da vida e da existência nas suas mais va-
a constituição de espaços mais estimulantes e
riegadas expressões e especificidades. Nesse
influenciadores, forjados por práticas de apro-
sentido, a apropriação pode ser compreendida
priação e uso mais qualitativo de lugares. Uma
como os diversos modos pelo qual o espaço é
vez que indagam a possibilidade de novas vias
ocupado e usado, tanto por formas materiais
à cidade e ao urbano, elas incitam à problema-
(objetos), como por atividades inscritas ter-
tização da alienação política e de uma forma
ritorialmente (que configuram os usos da ter-
de socialização sob os influxos e modulações
ra), e ainda por indivíduos e segmentos sociais
do capital e do mercado, o que vale dizer de
variados. Quando a apropriação do espaço se
uma socialização não política. Vale lembrar, a
realiza de forma sistematizada e institucionali-
propósito, que o sentido maior da política é a
zada ela pode envolver a produção de formas
liberdade. Abre-se, assim, uma perspectiva pela
territorialmente determinadas de solidariedade
qual se pode pensar a cidade não apenas como
social, operando, ademais, como uma efetiva
ela é, mas também como ela pode ser a partir
atribuição simbólica e valorativa de lugares,
de práticas, virtualidades e sobrevivências irre-
necessária à própria reprodução da sociedade.
dutíveis do tempo presente.
Isso vale dizer que as formas podem adquirir
ressignificação socioespacial, de modo a atender necessidades não previstas e não contem-
O espaço sob
uma tensão objetivada
pladas, não raro negadas pelo próprio Estado.
A apropriação, portanto, está inserida no universo das relações sociais e recobre práticas
sociais de naturezas diversas sobre o espaço,
Sob os vetores de uma massiva mercantiliza-
ações empreendidas por sujeitos sociais nos
ção, o espaço é submetido à potencialização
lugares, com as quais eles são representados
do conflito entre valor de uso e valor de troca,
e interpretados, em que pesem mediações da
entre demandas referenciadas à existência e à
técnica, da política e das ideologias. A apro-
vida, de um lado, e de apropriações do espaço
priação do espaço, bem como seu uso não
para fins de obtenção de algum benefício eco-
apenas se dão desigual e fragmentadamente,
nômico e renda, de outro. Essa tensão é insepa-
como também se mostram dotados de certa
rável da mercadoria e, portanto, do próprio es-
flexibilidade em seu processo de realização,
paço, tensão que se objetiva como um conflito
como bem se pode constatar no universo dos
efetivamente socioespacial, integrando, assim,
problemas urbanos, tais como a precarieda-
o mundo prático-sensível.
de das condições de moradia para boa parte
A apropriação se insere no universo da
da população, insuficiência e degradação de
política, portanto é inerente ao processo social,
infraestruturas técnicas e sociais, baixa ofer-
pela qual a sociedade na sua diversidade, por
ta de áreas de lazer, dificuldades no trânsito,
meio da atuação permanente e multifacetada
entre outras expressões. À medida que elas se
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Ulysses da Cunha Baggio
revelam bastante impactadas (e submetidas)
pela proeminência do valor de troca, constrange-se a condição da cidade de conter a inerência histórica de um uso, que assim se revela
Práxis sociais e cidadania:
horizonte para uma educação
política do espaço
pela transformação do espaço de valor de uso
em valor de troca, ou ainda, mercadoria, movi-
Esse acirramento das contradições urbanas,
mento progressivo que impõe a dissociação e o
tanto ao plano do conflito entre capital e tra-
alheamento do homem em relação ao espaço,
balho como no do consumo coletivo e da re-
que assume, desse modo, uma existência abs-
produção social, reverbera com grande inten-
trata e alienada, própria do mundo da merca-
sidade num dos papéis fundamentais que a
doria; mas também, é importante salientar, uma
cidade deveria cumprir, isto é, o de assegurar
existência concreta, pois objetivada no mundo
condições aceitáveis e melhoradas à qualidade
prático sensível, portanto no próprio espaço.
de vida de seus habitantes, foco de atuação
Sobretudo nos países não desenvolvidos,
principal dos movimentos sociais urbanos. Para
essa conformação urbana marcadamente con-
além de uma luta empreendida para a conquis-
traditória carrega o sentido de uma urbanização
ta específica de bens diversos (moradia, áreas
perversa, que recobre processos de segregação
de lazer, equipamentos urbanos, etc.), estas
forçada ou induzida, bem como de autossegre-
práticas, bem como seus motivos, evidenciam
gação, expondo, de um lado, formas de inserção
a necessidade quanto à obtenção de condições
territorial precária ou perversa (como favelas,
de uso da cidade e, nesse sentido, da reconstru-
cortiços, loteamentos autoconstruídos) e, de ou-
ção de uma efetiva esfera pública, em declínio
tro, a proliferação de bairros jardins, shoppings
notório. As diversas práxis sociais insurgentes,
centers e condomínios (expressões de uma ur-
tais como movimentos de luta pela moradia,
banização progressivamente privada), que afir-
são, pela nossa compreensão, indicativas de
ma a condição de uma cidade dividida, tensa
uma politização do uso do espaço na cidade,
e monitorada. Essa conformação cindida aos
que se identificam com formas de apropriação
fragmentos desnuda uma progressiva polariza-
e uso mais condizentes aos desejos e deman-
ção social e espacial, refletindo uma crescente
das mais efetivas dos próprios interessados.
dualização da sociedade e de polarização do
David Harvey, ao analisar a natureza, o
mercado de trabalho, que interagem com a dua-
sentido e as potencialidades dos movimentos
lização das estruturas urbanas.
sociais, assinala que:
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A espacialidade degradante tendencial...
Movimentos de oposição às destruições
do lar, da comunidade, do território e da
nação pelo fluxo incessante do capital
são legião. Mas também o são os que se
opõem às rígidas restrições de uma expressão puramente monetária do valor e
da organização sistematizada do espaço
e do tempo. E, o que é mais importante,
esses movimentos vão bem além dos domínios da luta de classes em todo sentido
estrito. A disciplina inflexível dos horários
de trabalho, dos direitos de propriedade
organizados de maneira imutável e de
outras formas de determinação espacial
gera amplas resistências por parte de pessoas que querem eximir-se dessas restrições hegemônicas do mesmo modo como
outros recusam a disciplina do dinheiro.
E, de quando em vez, essas resistências
individuais podem tornar-se movimentos
sociais que visam liberar o espaço e o
tempo de suas materializações vigentes e
construir um tipo alternativo de sociedade em que o valor, o tempo e o dinheiro
sejam compreendidos de novas formas
bem distintas.
Movimentos de toda espécie – religiosos,
místicos, sociais, comunitários, humanitários, etc. – se definem diretamente em
termos de um antagonismo ao poder do
dinheiro e das concepções racionalizadas do espaço e do tempo sobre a vida
cotidiana. A história desses movimentos
utópicos, religiosos e comunitários atesta bem o vigor desse antagonismo. De
fato, boa parte da cor e do fermento dos
movimentos sociais, da vida e da cultura
das ruas e das práticas artísticas e outras
práticas culturais deriva precisamente da
infinita variedade da textura de oposições
às materializações do dinheiro, do espaço
e do tempo em condições de hegemonia
capitalista. (Harvey, 1992, p. 217)
e desafios que eles enfrentam, no conjunto
eles sintetizariam uma busca pela conquista
do direito à cidade, imprescindível à criação de
condições à reprodução social. Segundo Lefebvre (1991), o direito à cidade integra o universo dos direitos que definem a civilização,
os quais “abrem caminho” na seara de “condições difíceis” da sociedade capitalista. Embora
esses direitos sejam “malreconhecidos” eles
gradativamente tornam-se “costumeiros antes
de se inscreverem nos códigos formalizados.
Mudariam a realidade se entrassem para a
prática social: direito ao trabalho, à instrução,
à educação, à saúde, à habitação, aos lazeres,
à vida”. O direito à cidade compreenderia, assim, não o direito à “cidade arcaica”, mas sim
o direito “à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos
ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos
e locais, etc.” (Lefebvre, 1991, p. 143). Assim,
o direito à cidade impõe a necessidade quanto
à existência de condições extensivas de uso do
espaço tangíveis a toda a cidade, e não apenas a determinadas parcelas dela, operando,
desse modo, como uma condição imprescindível a uma efetiva promoção da cidadania. O
fomento e a garantia desse estado de direitos
implicariam a própria transformação das práticas urbanas, bem como no processo de constituição das cidades.
Evidencia-se, portanto, que a noção de
cidadania comporta uma importante dimensão
geográfica, que intervém em seu estatuto ontológico, à medida que não há cidadania possível
que prescinda do território, como bem o revela, por exemplo, a ideia de direito a cidade. É
Embora se reconheça a diversidade dos
nesse sentido que Santos (1993, p. 116) postula
movimentos sociais urbanos e as dificuldades
que “[...] é impossível imaginar uma cidadania
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Ulysses da Cunha Baggio
concreta que prescinda do componente
materiais conquistados por estas lutas, tais co-
territorial”, exercendo interferências importan-
mo moradia, benfeitorias urbanas, etc., não po-
tes na vida das pessoas na cidade. E acrescenta:
dem ser negligenciados pela análise, uma vez
[...] o valor do indivíduo depende do lugar
em que está e que, desse modo, a igualdade dos cidadãos supõe, para todos, uma
acessibilidade semelhante aos bens e serviços, sem os quais a vida não será vivida
com aquele mínimo de dignidade que se
impõe. [...] Uma repartição espacial não-mercantil desses bens e serviços, baseada exclusivamente no interesse público,
traria, ao mesmo tempo, mais bem-estar
para uma grande quantidade de gente e
serviria como alavanca para novas atividades. (Santos, 1993, pp. 116-117)
que sem eles a existência não alcança condições mais favoráveis e melhoradas na cidade
e na vida urbana, tornando a figura do cidadão
uma mera ficção ou caricatura.
Considerando-se que a cidadania implica
o acesso democratizado a serviços e bens urbanos básicos, ela se articula à formação de um
espaço público na cidade, sobre o qual recaem
as forças do mercado e os desígnios do consumo, impactando e reduzindo sua existência.
Os processos de especulação ampliada do solo
urbano estão na base dessa condição mortifi-
Decorre que, à medida que a cidadania
cante do espaço público na cidade, que revela
incorporasse o território em sua base, ela seria
a prevalência do valor de troca no território. Por
então capaz de imprimir maior eficácia quanto
essa via, as relações de sociabilidade, de identi-
ao tratamento de problemas sociais no nível
dade e vínculo com o lugar são constrangidas e
econômico, político e social. Dado que ela está
redefinidas, mas não propriamente eliminadas
inserida no universo das relações políticas, ad-
de forma absoluta diante dos limites encon-
quire, assim, uma efetiva expressão geopolíti-
trados no movimento de realização geográfica
ca, pois as relações políticas e o território, para
do valor de troca. As possibilidades quanto a
além de interagirem recíproca e estreitamente,
uma possível revalorização do espaço público
figuram na base da formação e do exercício do
não se restringiriam, pelo nosso entendimento,
poder. Ademais, não se pode perder de vista o
à esfera do Estado, mas fundamentalmente a
fato de que a efetiva realização da cidadania e
determinadas práticas de (re)apropriação so-
seu exercício pressupõem o direito a uma in-
cioespacial inventivas e dotadas do sentido do
serção digna na cidade, isto é, de determinadas
uso social coletivo, para as quais o poder pú-
condições que favoreçam o uso social e coleti-
blico, é bem verdade, pode empenhar esforços
vo de forma permanente na cidade. O próprio
importantes, necessários e urgentes. É nesse
percurso das lutas sociais urbanas se revela
sentido que determinadas formas urbanas po-
como um campo de experiências e aprendiza-
derão assumir outras e novas funções que refli-
do social politicamente profícuo, pelo qual a
tam o interesse social e público, e não apenas
construção da cidadania pode ser forjada. Afo-
interesses particulares específicos. O espaço
ra questionamentos se o percurso dessas lutas
poderá se tornar, assim, aquilo que a sociedade
é ou não mais importante que seus resultados,
deseja que ele seja, o que também envolve a
há que se considerar que os serviços e os bens
mobilização do desejo no sentido da mudança
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de nossas subjetividades, práticas e comporta-
libido mercantilizada, compondo um cenário
mentos, mais especificamente no que se refere
de transmutação social que talvez melhor se
à consecução de condições mais favoráveis à
identificasse com a imagem de um hospício
vida e à existência. Isso implicaria esforços per-
econômico-social, uma espécie de reino do
manentes na busca pela superação da incon-
homem-coisa e seu apetite licencioso por mer-
gruência estabelecida na vida cotidiana entre,
cadorias, as mais diversas e inúteis. Sob esta
de um lado, as nossas vontades e desejos e, de
condição mortificante o viver tornou-se insípi-
outro, o curso dos acontecimentos, sob contra-
do, não raro associado a problemas crônicos
dições recrudescidas do capitalismo globaliza-
de depressão, na qual a sociedade se torna, a
do de égide financeira.
passos rápidos, paranóica, acuada e agressiva.
Esta mudança implica, por sua vez, a su-
A realização desse percurso requer a
peração do individualismo, enraizado no egoís-
valorização do princípio político da autoges-
mo e na concorrência mercadológica, aspectos
tão, afastando-se, portanto, da submissão à
que se tornaram na sociedade atual princípios
lógica do estatismo e do mercado. O que não
fundamentais para a conquista do poder. Daí a
se confunde com uma via orientada à supres-
importância de um necessário horizonte políti-
são do Estado, mas sim à constituição grada-
co à educação, que incorpore e valorize a di-
tiva de uma sociedade capaz de fazer valer
mensão espacial em seus propósitos maiores,
democraticamente suas próprias demandas e
abrindo-se, assim, um novo horizonte quanto à
desejos diante das instituições, forjando sua
formação e ao desenvolvimento de uma edu-
própria transformação, sujeitando-as ao pleno
cação política do espaço orientada para a vida
controle da sociedade. O que vale dizer que o
e para a liberdade, tanto quanto seja possível,
Estado, sob essa perspectiva, não é tomado
que viriam acompanhadas de um imprescindí-
como um agente protagonista, mas mais pro-
vel e sólido senso de responsabilidade socioes-
priamente como auxiliar. Trata-se, portanto, da
pacial, que é de toda a sociedade.
possibilidade de se forjar formas de vida mais
Sucede que o sentimento e a necessida-
intensas, mais ricas em diversidade, capazes
de da liberdade operam como uma condição
de se organizar e evoluir sob a influência e a
imprescindível e fundamental da existência,
interferência direta dos próprios interessados,
imbricada em sua efetiva realização no espaço.
tendo-se aqui a convicção de que só dessa for-
A restrição ou, ainda mais, a supressão desses
ma o espaço será aceitável.
dois aspectos na vida social respondem pelo
Desse modo, a perspectiva que se abre
declínio e pela desaparição tanto do espírito
é a de consecução de práticas socioespaciais
crítico quanto do desejo a uma inserção par-
capazes de conduzir à superação da condição
ticipativa e ativa na sociedade, em seu difícil
atual de mortificação do espaço e da vida, que
e pluralizado movimento de transformação,
impõe limites à realização da cidadania. Valo-
deixando-nos, assim, uma vida amesquinhada
rizam-se, assim, ações portadoras do sentido
e reduzida, submetida intensamente ao consu-
da reunião e da cooperação, ao invés de forças
mismo dirigido e desenfreado, ao espetáculo
que operam pela dissociação, que respondem
multifacetado e à ejaculação vulcânica da
pela fragmentação e atomização reinantes;
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Ulysses da Cunha Baggio
ações com potencialidades de forjar as bases
portanto, de se pensar acerca de formas de
de uma territorialidade de caráter mais soli-
apropriação possível no mundo atual, sob inci-
dário, favorável à realização mais efetiva de
dência de uma progressiva privatização e mer-
uma condição cidadã. Essa territorialidade
cantilização do espaço, da especulação imobi-
compreen deria o conjunto das relações que
liária e, de forma correlacionada, da alienação
possibilitam aos diversos grupos sociais fazer
socioespacial. Segue-se daí que as contradições
valer seus interesses no território, tornado
recrudescidas do capitalismo globalizado em
lugar de vida. Ela se inscreveria como um fe-
crise suscitam e induzem dinamismos e insur-
nômeno existencial, uma experiência possível,
gências de variados matizes no âmbito da rela-
por meio da qual um grupo ou indivíduo ad-
ção sociedade/espaço.
quire consciência do seu território de vida, fa-
A questão relativa à apropriação do es-
zendo as possibilidades operar como possibili-
paço e à formação da(s) territorialidade(s) no
dades concretas, ou ainda do que poderíamos
âmbito do cotidiano capitalista, sobretudo na
qualificar como utopias concretas do desejo
contemporaneidade, encerra dificuldades e
libertário, irmanado com a autonomia (va-
interrogações na sua análise, entre as quais a
lor central da vida ética) e a vida digna (mais
da conformação de uma ambiguidade entre o
identificada com um outro valor, para além do
real e sua representação. Ademais, a própria
valor de troca, isto é, um valor calcado no sen-
noção do que se entende por representação
so cooperativo, na ajuda mútua e no trabalho
é bastante polêmica, oscilando desde inter-
autônomo associado e de caráter autogestio-
pretações que a consideram uma ilusão, uma
nário, bem como em níveis mais desenvolvidos
quimera, isto é, uma expressão descolada do
de afetuosidade entre as pessoas).
real, ou ainda, uma situação não verdadeira,
até leituras que a tomam como parte integrante e formativa do próprio real, havendo ainda
Apropriação, territorialidade
e o problema da representação
(e da representação do espaço)
compreensões menos polarizadas que a situam
num universo intermediário, ou seja, um misto de real e de sua figuração. Trata-se aqui de
operar esta categoria, a representação, numa
perspectiva geográfica, socioespacial. Desse
O uso cotidiano do território, ou ainda, de um
modo, a representação do espaço se traduz por
determinado lugar expõe uma relação inse-
um conjunto de elaborações discursivas, ima-
parável entre apropriação do espaço e terri-
géticas e cartográficas realizadas por atores
torialidade, em que pesem, na análise da sua
sociais diversos sobre a percepção e o entendi-
dimensão e extensão, os limites ou restrições
mento de situações sociais e ambientais do es-
à apropriação espacial na contemporaneida-
paço. Compreendemos que estudos e análises
de capitalista, advertindo-se, contudo, que
sobre as representações do espaço constituam
as noções de limite e restrição relativas a ela
aportes valorativos ao conhecimento dos luga-
não significam necessariamente sua impossibi-
res e de suas especificidades. Desse modo, eles
lidade, sua não realização absoluta. Trata-se,
podem proporcionar subsídios a certas práticas
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A espacialidade degradante tendencial...
de gestão (cogestão e autogestão) de caráter
âmbito do social engendram-se fronteiras e
participativo, mais democráticas e orientadas
limites, esses limites não são automáticos e
ao desenvolvimento e ao exercício de ações
absolutos, uma vez que o social é, por excelên-
(políticas) devotadas a um melhor desempe-
cia, o universo relacional e comunicacional no
nho e adequação de processos socioespaciais,
qual emergem proposições de novas possibili-
redirecionando-os em bases mais aceitáveis,
dades e ações.
pois afetam direta e indiretamente a vida das
Portanto, não estariam as ações huma-
pessoas, que envolve o direito e a liberdade de
nas norteadas pelas representações? Elas não
se determinar a(s) forma(s) do nosso espaço de
modelam comportamentos, práticas sociais?
vida e trabalho, dos modos de sua organização,
Ao integrar a esfera existencial, portanto, da
o que pressupõe o exercício da responsabilida-
vida, a representação (e a representação do es-
de ao que é comum a todos.
paço) não seria ela própria parte da realidade?
Há que se atribuir a devida importância
Pensamos que sim, até porque se vive também
e atenção ao fato de que, sob os influxos da
por meio dela, com expressões variadas. O
modernização e da fragmentação do espaço na
procedimento de apartá-la do real, ou tomá-la
atualidade, avançam produções e arranjos ter-
como uma espécie de “real distorcido”, conota
ritoriais sob a marca da homogeneidade, que
uma concepção científica (ou, talvez, cientificis-
se objetivam com o rompimento de formas e
ta) de objetividade, que condena o investigador
estruturas pregressas, realizando estratégias do
a um tratamento cognitivo do objeto de conhe-
Estado e do capital, refuncionalizando os es-
cimento, tornando-o uma expressão destituída
paços, dando-lhes nova direção e sentido, con-
de subjetividade.
formando verdadeiros sistemas socioespaciais.
Destarte, a própria formação da territo-
Daí a relevância para a pesquisa indagar como
rialidade implica também o nível da represen-
os moradores e outros atores sociais percebem
tação, estando esta associada àquela. O senti-
e representam o espaço, em suas mais diversas
mento de pertencimento, bem como o de com-
formas (cognitiva, cartográfica, etc.). Trata-se,
partilhamento a um dado lugar (ingredientes
portanto, de uma demanda social que clama –
importantes na formação da territorialidade),
teórica e praticamente – por ações sob a pers-
envolve fatores diversos, bem como são di-
pectiva de uma crítica superadora, pelo sentido
versas as formas pelas quais eles se realizam.
da urgência e da necessidade.
Mas é no plano da experiência socioespacial
Como uma práxis inscrita no social, argu-
efetiva – real – que eles são forjados. Quando
menta-se que a apropriação do espaço, embora
se analisam os impactos que a modernidade
restringida sob a condição espacial capitalista,
capitalista provoca no território e, mais espe-
encerra potencialidades que indagam sua di-
cificamente, nas relações de solidariedade e
mensão e seu alcance nos tempos hodiernos,
de sociabilidade num dado lugar, isto não sig-
precipuamente as potencialidades inscritas no
nifica que necessária e automaticamente elas
bojo das práxis de caráter inventivo, as quais
pereçam, ou se transmutem forçosamente em
não devem ser confundidas com as práxis es-
relações alienadas, circunscritas a um univer-
tritamente repetitivas (Lefebvre, 1958). Se, no
so de uma “cidadania caricatural”.
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Ulysses da Cunha Baggio
Acrescente-se ainda que os dinamismos
Desse modo, o desenvolvimento de
da vida moderna estabelecem perturbações
formas alternativas à vida e a existência, na
constantes no universo da formação das ter-
perspectiva da formação de uma sociedade
ritorialidades, cujas bases de sustentação fle-
mais autônoma e orientada ao desenvolvimen-
xibilizam e fragilizam-se, podendo mesmo se
to de uma condição cidadã, implicaria encon-
esboroar, mas, também, é forçoso reconhecer,
trar um sentido novo para a vida, diferente,
ser (re)criadas em novas bases e em outros lu-
mas não de modo a se fechar à compreensão
gares. Imaginar que esse movimento só encer-
de modos de vida pretéritos. Estamos convic-
re perdas constitui uma interpretação redutora
tos de que apenas a liberdade representa vida
da realidade. Não se trata de uma situação em
completa, e que sua negação significaria ener-
detrimento da outra (leitura reducionista deri-
gia abundante à promoção do autoritarismo,
vada de uma concepção binária de movimento
de estruturas coercitivas e do condicionamento
da realidade), mas ambas se desenvolvendo
generalizados, que rejeitam, em sua essência, o
ao mesmo tempo, apesar do incontestável
efetivo desenvolvimento humano, que só pode
mal-estar e anticlímax reinantes da moderni-
se realizar – insistimos – sob plenas condições
dade capitalista.
de emancipação. Isso implica, por conseguinte,
a desconstrução das relações de autoridade e
de coerção, que modelam a estrutura social e
Considerações finais
reduzem as possibilidades de realização da cidadania, bem como a transformação e a adequação dos sistemas de ensino – público e pri-
Muito se tem falado acerca de uma submersão
vado – a uma formação genuinamente crítica e
qualitativa e progressiva das relações de socia-
humanista, dinâmica e autônoma, contribuindo
bilidade na cidade, do desapego dos citadinos
substancialmente para tornar mais inteligíveis
em relação ao seu espaço de vivência, com im-
o mundo, a sociedade, a vida e a existência.
pactos evidentes sobre a formação e o desen-
Mobiliza-se aqui a necessária comunhão da
volvimento da cidadania. Estaria se delineando
técnica com a política, a forjar usos devotados
diante dos imperativos do capital e do merca-
às efetivas necessidades humanas, aqui incluí-
do uma submersão da vida nas cidades, com o
das as necessidades radicais. Não é demais
avanço do trabalho alienado e da produção de
dizer que os portadores do novo são aqueles
uma cidade igualmente alienada e alienante.
que se movem e lutam por necessidades radi-
Todavia, embora esses aspectos sejam reais e
cais, entendidas como aquelas essenciais à vi-
contundentes, não os compreendemos como
da e à existência, dentre as quais a liberdade
absolutos, em que pese a capacidade criativa
e a autonomia, não se confundindo, portanto,
e inventiva presente na sociedade, na arte e na
com necessidades artificialmente criadas por
política. Para além do reconhecimento de cer-
veículos de publicidade.
tos limites e descontinuidades a este movimen-
Ao plano de uma produção intelectual
to, a análise, em seu percurso, se conduziu para
comprometida com a transformação social,
a busca de um horizonte.
cabe-nos uma tarefa das mais importantes,
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A espacialidade degradante tendencial...
isto é, a elaboração de uma visão sistêmica
contemporânea, tendo-se em vista a criação
do conjunto de práticas sociais alternativas
cotidiana de novas situações socioespaciais,
à espacialidade degradante em curso, que se
capazes de impulsionar o desenvolvimento da
afirma como uma tendência preocupante e
condição de se habitar mais plenamente a vida,
ameaçadora. Urge, nesse sentido, que a socie-
sem remorsos ou culpa, dela esperando-se me-
dade interfira mais diretamente na produção e
nos, mas nela amando-se mais. São aspectos a
na conformação dos seus espaços de vida, fa-
compor o sentido de uma nova espacialidade,
zendo valer suas próprias demandas e desejos
uma espacialidade liberatória.
diante das instituições. Essa é uma condição
Reafirmam-se, assim, a importância e
fundamental à promoção da própria transfor-
a necessidade quanto à constituição de uma
mação da sociedade e, desse modo, do próprio
educação política do espaço, que promova
espaço, o que solicita o caráter cooperativo e
a autorreflexão permanente e a percepção
mais autônomo nas práticas sociais. O que nos
lúcida da alteridade, que se norteia por uma
incita à busca pela elaboração de matrizes teó-
ética existencial devotada à preservação da
ricas e práticas de perspectiva libertária e libe-
vida e da restituição qualitativa dos valores
ratória, que perquira nos meandros e interstí-
humanos, que incorpora a espacialidade como
cios da vida cotidiana possibilidades factíveis
instância e distinção valorativa fundamentais.
a práticas criativas e inventivas à formação de
Nesse sentido, valemo-nos aqui da assertiva
espacializações influenciadoras e estimulantes,
luminosa de Vaneigem (2002, p. 232), quan-
deflagradas por atores sociais sob as deman-
do nos diz que:
das da necessidade, necessidades que clamam
por uma por uma vida mais plena, por satisfações imperiosas e condições ao exercício da
maior liberdade possível. Trata-se, portanto, de
um projeto social, ou ainda de um projeto socioespacial urbano-libertário.
A afirmação dessa perspectiva implica
um novo sentido ao desejo, que agora se mostra mais estreitamente vinculado à existência e
ao espaço, deles não mais prescindindo. Desse
modo, ela significaria um novo modo de se compreender o sentido da vida sob a complexidade
O primado da vida sobre a sobrevivência
é o movimento histórico que desfará a
história. Construir a vida cotidiana, realizar a história: de hoje em diante, essas
duas palavras de ordem são apenas uma.
No que consistirá a construção conjugada
de uma nova vida e de uma nova sociedade? Qual será a natureza da revolução da
vida cotidiana? Nada mais que a superação substituindo o deperecimento à medida que a consciência do deperecimento
efetivo alimenta a consciência da superação necessária.
Ulysses da Cunha Baggio
Doutor em Geografia Humana, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de
Viçosa. Viçosa, Minas Gerais, Brasil.
[email protected]
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012
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Ulysses da Cunha Baggio
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(Coleção Baderna).
Texto recebido em 13/maio/2011
Texto aprovado em 18/out/2011
170
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço
e sociedade: uma perspectiva histórica*
Gated communities, time, space and society:
a historical perspective
Rita Raposo
Resumo
Neste artigo, discutimos as origens do fenômeno
“condomínios fechados”, sua evolução e a sobrevivência contemporânea das suas características
originais mais distintivas. Analisamos o modo como
essa forma socioespacial específica, historicamente
localizada, logrou chegar ao presente praticamente
inalterada no que respeita às suas principais características simbólicas e ao essencial das suas condições sociais e políticas de base, apesar de todas as
transformações registadas ao longo de mais de dois
séculos. A análise baseia-se na bibliografia internacional disponível sobre o assunto e na observação
direta do fenômeno na Área Metropolitana de Lisboa, que estudamos em profundidade desde a década de 1990, e noutros lugares do mundo que tivemos a oportunidade de confrontar empiricamente.
Abstract
This paper discusses the origins of the “gated
communities” phenomenon, its evolution, and
the contemporary enduring of its more distinctive
pristine features. It is about how a specific and
historically located socio-spatial form got to
survive almost unchanged in its very symbolical
core, and in its essential social and political
background conditions, for more than t wo
centuries in spite of all the obvious supervening
changes. Our analysis is essentially based on the
available international literature on the issue and
on the direct observation of the phenomenon in
the Lisbon Metropolitan Area, which we have been
studying in depth since the 1990s, and in other
world cases we had the opportunity to confront
empirically with.
Palavras-chave: condomínios fechados; origens;
produção social; segregação; simbolismo.
Keywords: gated communities; origins; social
production; segregation; symbolism.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Rita Raposo
Apresentação
bem que mudando formalmente de direção
graças à intervenção de várias transformações
contextuais de relevo, atravessou todo o século
Nas últimas décadas do século XX, assistiu-se,
XIX para praticamente apenas se extinguir nas
em várias partes do globo, à expansão de uma
primeiras décadas do século XX. Ora, tal perío-
forma socioespacial que, contemporaneamen-
do correspondeu grosso modo ao do primeiro
te, identificamos como “condomínios fecha-
(longo, progressivo e variável, é certo) desen-
dos” (CFs) ou “privados” (gated communities
volvimento da Modernidade. Desde então e
é a sua designação “internacional” mais co-
até cerca de 1970 aquela forma socioespacial
mum). Essa forma também encontrou lugar
manteve-se “adormecida”, datada e localiza-
em Portugal nas últimas três décadas, com
da. Sua globalização e sua expansão numérica
destaque para o final dos anos de 1990, quan-
são matéria mais recente, de novo, o arranque
do assentou e se expandiu, essencialmente
surgiu na mesma área geográfica. Agora, con-
nas áreas metropolitanas de Lisboa (AML) e
tudo, tal ocorreu em primeiro lugar nos Estados
do Porto e na turística costa algarvia. No re-
Unidos da América (EUA) e não em Inglaterra,
censeamento que realizamos (em duas fases e
como acontecera aquando da primeira edição
conforme metodologia própria) na AML para
do fenômeno.
os anos de 1985 a 2004, foram registados 198
Nos EUA, na década de 1970, surgiram
empreendimentos do gênero (Raposo, 2008).
diversos empreendimentos imobiliários resi-
Como seria de esperar, dada a escala e a pré-
denciais novos que adotaram a fórmula fe-
-organização do território da AML, observam-
chada, especialmente localizados em zonas
-se grandes variações no seio desse universo.
turísticas, com destaque para o Estado da Ca-
Em todo o caso, é de assinalar a já muito signi-
lifórnia. De um modo geral, esses novos empre-
ficativa expressão do fenômeno no panorama
endimentos fechados começaram por assumir
residencial português, a par da sua impressio-
essencialmente a forma de master-planned
nante capacidade de expansão. Deve-se notar
communities (MPCs). Essas, de grande escala
que, em Portugal, os condomínios fechados
e dotadas de variados equipamentos e serviços
constituem um caso de novidade absoluta, o
coletivos privados, são normalmente governa-
que, de resto, é muito provavelmente válido
das por associações de proprietários e sujeitas
para a grande maioria das suas localizações
a um plano director e a regulamentos internos
contemporâneas a nível mundial.
(os famosos CC&Rs, Covenants, Conditions and
De fato, e tal como veremos na análise
Restrictions que levam a marca do Direito de
subsequente, entendemos existir evidência
tradição inglesa), traduzindo-se em regra na
suficiente para afirmar que os CFs ou gated
garantia de um caráter e de um desenho so-
communities (GCs) encontraram suas primei-
cioespacial coerente e controlado (Moudon,
ras manifestações num mundo muito específi-
1990 e Knox, 1992). Na década de 1980, os
co: o anglo-americano. Tal terá acontecido há
empreendimentos residenciais fechados multi-
mais de dois séculos, seja cerca de 1750. Seu
plicaram-se, diversificaram-se e globalizaram-
primeiro fôlego, que haveria de engrossar, se
-se. Nos EUA, estenderam-se a vários Estados
172
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade
e invadiram o território das principais metrópo-
ausência a ocidente e a norte), padrão para
les, instalando-se nos seus subúrbios, cidades e
o qual existem explicações históricas relativa-
exúrbios (ou seja, nas zonas situadas para além
mente simples e compreensíveis (e.g. Raposo
da linha de urbanização metropolitana). Passa-
e Cotta, 2009).
ram também a assumir formas muito variadas:
Malgrado as grandes variações formais
dos empreendimentos urbanos (em regra de
exibidas pelo fenômeno CFs, ao longo do tem-
escala mais reduzida e essencialmente cons-
po e do espaço, ele corresponde a uma forma
tituídos por edifícios de apartamentos) até às
socioespacial distintiva. Essa afirmação resulta
grandes master-planned communities suburba-
de uma definição própria e de uma interpreta-
nas e exurbanas já citadas.
ção sociológica específica do fenômeno. Essas
Se Blakely e Snyder (1997) estimaram
baseiam-se na análise das principais caracte-
que nos EUA, nesse mesmo ano, já existiam
rísticas espaciais, sociais, físicas, funcionais e
20.000 empreendimentos fechados corres-
legais dos CFs localizados na AML e noutras
pondentes a 3 milhões de unidades residen-
partes do mundo e do tempo (documentados
ciais e respeitando a 8 milhões de residentes,
internacionalmente), assim como dos principais
no resto do mundo o fenômeno começou a
fatores e processos de produção social regular-
fazer-se notar desde cerca de 1980, nalguns
mente associados ao seu surgimento e expan-
casos de forma já muito expressiva. Nomea-
são. Comecemos pela proposta de uma defini-
damente no Brasil, nessa sua “década perdi-
ção (Raposo, 2002 e 2003) que consideramos
da” (Ribeiro, 1996), os condomínios fechados
suficientemente compreensiva, distintiva e em-
afirmaram-se como uma realidade importan-
piricamente operacional. De acordo com essa,
te, pelo menos no Rio de Janeiro (idem) e em
os condomínios fechados correspondem a uma
São Paulo (Caldeira, 1996). Em contrapartida,
forma socioespacial residencial que contempla
por então, em Portugal (que, de resto, terá si-
um conjunto diverso de soluções de habitação
do fortemente influenciado pelo caso brasilei-
(edifícios isolados e conjuntos de edifícios de
ro), à semelhança de outros países e regiões,
apartamentos; conjuntos de moradias; conjun-
apenas surgiam os primeiros exemplares (Ra-
tos mistos que incluem os dois tipos anteriores)
poso, 2002). No que respeita ao mundo maior,
e que detém, simultaneamente, as três caracte-
existe informação segura de que o fenômeno
rísticas seguintes: 1) equipamentos privados ou
se encontra representado, pelo menos desde
privatizados de utilização coletiva em número
o final dos anos de 1990 (e em clara expan-
e tipo variável (e.g., ruas, piscinas, campos de
são desde então), em vários países africanos,
tênis, jardins, parques); 2) impermeabilidade do
americanos, asiáticos, europeus e da Oceânia:
perímetro e controlo do acesso (Luymes, 1997)
China, Angola, Bulgária, Líbano, Argentina,
de tipo e grau variável; 3) propriedade priva-
Austrália, Índia, Malásia, Chile, Rússia, África
da coletiva (ou acesso a e usufruto coletivo
do Sul, Singapura constituem apenas alguns
privatizado) de espaços exteriores associados
exemplos. Para o caso europeu, vale a pena
à função residencial que coincidem com ou
salientar a prevalência do fenômeno a sul e a
constituem o suporte físico dos equipamentos
leste e em Inglaterra (e sua quase completa
já referidos.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
173
Rita Raposo
A alternativa acima estabelecida entre
degradação, objetiva ou percebida, das condi-
as categorias “privado” e “privatizado” resulta
ções de vida locais. Minoritários, os CFs emer-
da observação da presença na AML de vários
gentes apresentam-se como uma espécie de
casos de empreendimentos residenciais novos
fenômeno em “segunda-mão” tipicamente as-
que, sendo clausulados (dispõem de perímetros
sociado a residentes menos afluentes, ou mes-
impermeáveis e realizam o controlo dos aces-
mo pobres (vide Carvalho, 2001) e que segue
sos e, ainda, por vezes, das circulações interio-
a inspiração dos CFs comerciais que os prece-
res), incluem no seu perímetro diversos espaços
deram no tempo. Reclamam, assim, uma abor-
públicos (normalmente arruamentos e espaços
dagem própria que inclua questões específicas,
ajardinados). De jure, esses empreendimentos
com destaque para as que se referem ao en-
não podem impedir a entrada ou a circulação
quadramento legal e à forma de administração
a ninguém. Contudo, podem-nas controlar de
deste tipo de CFs, assim como à sua dinâmica
fato e, por esse meio, tornar menos provável a
e política de ação coletiva. Em Portugal, não há
entrada de estranhos. Esse tipo de empreendi-
qualquer registo dessa última modalidade de
mento é assim incluído no nosso universo de
condomínios fechados, e nossa atenção só se
estudo, malgrado o fato de a respectiva pro-
tem dirigido à variante principal do fenômeno,
priedade não ser totalmente privada. Situação
seja aquela a que já nos referimos especifica-
equivalente foi relatada por Wehrhahn (2003)
mente sob a designação de “condomínios fe-
para Madri. Este autor recorre à expressão
chados comerciais”.
pseudo-gated communities para a nomear (ver
Precisamente, a interpretação socioló-
também Wehrhahn e Raposo, 2006). Não são
gica que propomos do fenômeno CFs apenas
conhecidas quaisquer outras referências congê-
se aplica por inteiro a essa última variante, a
neres para outras partes do mundo. Existe, isso
única que, de resto, entendemos, exibir raízes
sim, ampla documentação internacional para
históricas significativas. Interpretamo-la, simul-
uma outra modalidade de privatizatição efetiva
taneamente, como uma forma de segregação
do espaço público e que corresponde a uma va-
distintiva e como um produto imobiliário es-
riante secundária do fenômeno (também gene-
pecífico (Raposo, 2002 e 2003). Entendemos
ricamente abrangida pela definição proposta),
que, como forma de segregação ou de espa-
seja o caso dos CFs que apelidamos de “emer-
cialização de desigualdades sociais, os CFs se
gentes” (Raposo, 2006) e que correspondem a
distinguem graças à associação única de dois
conjuntos ou áreas residenciais preexistentes
traços essenciais: 1) recurso a barreiras físico-
que se transformam pela adoção da mesma
-arquitetônicas; 2) carácter voluntário. Os CFs
fórmula dos CFs “comerciais”.
refletem um método específico de consagração
Essa variante, em regra, constitui o resul-
espacial de distâncias sociais: o “policiamento
tado, legal ou ilegal, da acção coletiva de resi-
arquitetônico” (Davis, 1990). Eis algo que não
dentes que reclamam a transformação de áreas
é original. O gueto já a este recorrera. Contu-
que, de raiz, não eram muradas ou fechadas.
do, ao contrário desse último, os condomínios
Seu surgimento está frequentemente associado
fechados não correspondem a um “território
a contextos de crime e violência extrema ou à
de rejeição” (Vieillard-Baron, 1996) nem se
174
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade
identificam com uma “população involunta-
intermédio da sua forma construída e da sua
riamente definida e tratada como inferior pela
apresentação publicitária (o que é especial-
sociedade dominante” (Marcuse, 1997, p. 232).
mente válido para a edição contemporânea).
Alternativa e tipicamente, os residentes em CFs
Como se verá, malgrado todas as mudanças
provêm de classes médias e médias-altas, já
que intervieram ao longo de mais de dois
que, se bem que com excepções, os membros
séculos, as semelhanças entre ambas as edi-
de classes de topo parecem preferir, em regra e
ções são extraordinárias.
graças à sua maior liberdade de escolha, soluções residenciais mais individualizadas.
Considerar que os CFs correspondem a
uma forma de segregação serve tanto à compreensão de vários aspectos relativos à sua natureza como à sua produção social. O mesmo
Discussão de duas
teses sobre a origem
dos condomínios fechados
acontece com a consideração de que aqueles
se tratam, tipicamente, de um produto imobi-
No que respeita à pesquisa das origens do
liário. Os condomínios fechados são uma mer-
fenômeno, é frequente encontrar duas teses
cadoria que obedece a uma fórmula definida, a
principais, que, de resto, surgem muitas ve-
qual, apesar de poder exibir diversas formas, é
zes associadas. A primeira respeita essencial-
quase sempre um caso de engenharia do tem-
mente à identificação de visões específicas
po, do espaço e da sociedade. Interpretá-los
do espaço e da sociedade que, supostamente,
assim é também uma maneira de indicar que o
terão inspirado diretamente (e, portanto, sido
lado da oferta, a indústria imobiliária (incluin-
responsáveis por) a formação e a configuração
do os agentes que, no passado, ainda estavam
física e social dos CFs. Por sua vez, a segun-
longe de merecer por inteiro tal designação)
da tese é relativa aos antecedentes históricos
sempre teve um papel decisivo na sua criação e
do fenômeno, isto é, às formas socioespaciais
expansão. Nas próximas páginas, analisaremos
similares que terão precedido no tempo os
o trajeto histórico do fenômeno. Começaremos
condomínios fechados contemporâneos. Ora,
por discutir algumas teses existentes sobre a
se bem que estas duas demandas não sejam
origem dos CFs, para, logo em seguida, passar
exatamente incompatíveis, é de notar que elas
à análise da sua primeira edição histórica, das
devem ser claramente distinguidas já que cor-
suas formas e das suas principais condições de
respondem a questões bastante diferentes. A
produção social. Por fim, olhamos a atual edi-
primeira é sobre a possível influência que al-
ção do fenômeno, evocando as principais se-
gumas construções ideológicas tiveram na his-
melhanças e continuidades que os atuais CFs
tória dos condomínios fechados; a segunda é
apresentam em relação aos seus antecessores.
sobre essa mesma história.
Nomeadamente, analisar-se-ão seu contexto de
A primeira tese a que nos referimos de-
produção social específico, assim como as prin-
fende que o modelo da Cidade Jardim, de Ebe-
cipais representações do tempo, do espaço e
nezer Howard (1850-1928) corresponde a uma
da sociedade que exibem, nomeadamente por
das principais origens dos CFs (e.g. Caldeira,
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
175
Rita Raposo
2000, e a sua referência à “linhagem” do fe-
dos principais seguidores, nesse continente,
nômeno). Claramente, e conforme à distinção
das ideias de Howard. De fato, a par de Stein,
supra, esse argumento refere-se à genealogia
vários outros arquitetos e urbanistas norte-
ideológica dos CFs e não à sua história real. A
-americanos foram conquistados para o ideal
segunda tese, tantas vezes repetida, por sua
da Cidade Jardim, com destaque para seus
vez, clama que a verdadeira origem dos con-
parceiros da Regional Planning Association
domínios fechados contemporâneos radica nas
of America. Essa correspondia a um grupo de
cidades fortificadas europeias pré-modernas.
inovative thinkers em que também se incluía
Ora, se bem que esses dois argumentos te-
Lewis Mumford (McKenzie, 1994, p. 9). Mesmo
nham, como vimos, naturezas muito distintas,
já depois da II Guerra Mundial e do fracasso
entendemos merecer por igual o exercício da
de Radburn, esse grupo continuou a insistir,
crítica. Comecemos com o caso do modelo da
sem sucesso, na implementação do ideal da
Cidade Jardim. Apesar de poderem ser aponta-
Garden City nos EUA. De facto, “ they could
das algumas semelhanças formais entre os CFs
not overcome the ideological and financial
e a visão de Howard, as diferenças são segura-
qualities of American city building practice”
mente em maior número e muito mais signifi-
(Richert e Lapping, 1998, p. 127).
cativas. Os únicos elementos que os dois casos
O ideal de Howard das Garden Cities
têm, mais ou menos, em comum são a proprie-
of Tomorrow (note-se que esse é o título da
dade e o governo privados de todo o solo da ci-
segunda impressão, datada de 1902, já que a
dade, o caráter autocontido (mas não fechado,
obra deu originalmente à estampa em 1898
no ideal de Howard), o planeamento geral e o
sob o nome de Tomorrow: A Peaceful Path to
desprezo do tecido urbano existente (de resto,
Real Reform) apenas foi inteiramente aplicado
um traço comum, à maior parte das visões mo-
em Inglaterra, ainda que se tenham sucedido
dernistas da urbe). Contudo, mesmo estes ele-
outras “realizações paralelas” na Suécia, nos
mentos podem conduzir a interpretações muito
Países-Baixos, em Itália e na União Soviética
diferentes e, seguramente, a desenvolvimentos
(Mumford, 1964, p. 650). Da iniciativa direta
práticos muito distintos.
de Howard e da Garden City Association, que
Recorde-se, imediata e exemplarmen-
aquele fundou em 1899, apenas surgiram
te, com McKenzie (1994), como a experiência
duas cidades novas em Inglaterra: “il invitait
norte-americana de Radburn, concebida inicial-
tous ceux qui pouvaient faire confiance à
mente como a translação inaugural do mode-
sa conception et qui avaient les capitaux
lo de Ebenezer Howard para os EUA, resultou
nécessaires, à tenter avec lui l’experiénce
em apenas mais um “monumento ao privatis-
de la construction de la première cité-jardin,
mo”, já que esse ideal colidiu com a natureza
expérience qui débuta à Letchword, en 1904.
e o espírito mais profundos do capitalismo
Une quinzaine d’années plus tard, il commença
norte-americano. O planeamento de Radburn,
d’édifier, à Welwyn, une autre cité semblable”
Nova Jersey, iniciado em 1928, teve por princi-
(Mumford, 1964, p. 645). Mas a influência
pal arquiteto Laurence Stein, um dos grandes
dessa concepção não se ficou por aí. Para além
urbanistas norte-americanos de então e um
de ter largamente influenciado o urbanismo
176
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade
do século XX, o sucesso obtido nessas
Mas para além do tema da propriedade
duas primeiras experiências em Inglaterra
privada do solo, que tantas vezes tem levado à
conduziu diretamente à adoção do modelo
confusão do modelo das Cidades Jardim com
no planeamento e construção das New Towns
o caso dos condomínios fechados, há outros
inglesas do pós-guerra (idem).
aspectos de relevo que, na respectiva com-
Em contrapartida, como vimos, apesar de
paração, também têm contribuído para esse
os EUA estarem mais próximos de Inglaterra do
tipo de interpretação. Nomeadamente, tem
que de qualquer outro país no que respeita a
sido frequentemente estabelecida uma equi-
tradições urbanísticas e jurídicas, e de, declara-
valência direta entre o governo tecnocrático
damente, terem constituído uma das principais
da Garden City e o governo dos CFs por asso-
fontes de inspiração da obra de Howard, neles
ciações de proprietários. Contudo, mais uma
o modelo não teve qualquer sucesso prático. A
vez, existem limites práticos, e especialmente
par de outros aspectos, a questão da proprie-
ideológicos, para tal interpretação. É claro que
dade do solo constituiu, desde o início, um dos
o fato de Ebezener Howard ter projetado o go-
principais problemas de adaptação do ideal
verno da Cidade Jardim como uma tecnocracia
das Garden Cities às terras norte-americanas.
ajuda a esse tipo de leitura. Contudo, vejam-se
Howard previu no seu modelo que todo o so-
imediatamente as observações de McKenzie
lo dessas cidades haveria de ser privado, assim
(1994, p. 5) sobre esta matéria.
como o seu governo. Contudo, essa concepção
continha um “detalhe” enorme, tão grande, que
os EUA nunca poderiam ter “engolido” (e muito
menos os potenciais investidores no projeto): a
propriedade privada do solo haveria de permanecer coletiva, e os particulares, os residentes,
apenas poderiam ser arrendatários de lotes ou
de unidades de habitação. Radburn acabou por
alojar apenas 500 famílias; o promotor, a City
Housing Corporation, faliu em 1934; o plano
físico ficou muito longe de se conformar com
o das Garden City e, acima de tudo, a população que veio a instalar-se nessa nova planned
community não tinha nada a ver com a que inspirara todo o projeto. Radburn acabou por ser
apenas mais uma “suburban sudivison for the
moneyed classes, albeit one with a number of
innovative features”, uma “upper middle class
town” (McKenzie, 1994, p. 48), dotada de uma
população homogênea e suburbana.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
The government Howard proposed was
a democratically controlled corporate
technocracy. Renters would elect the
heads of various practical departments
grouped under general headings: Public
Control, with departments on finance, law,
assessment, and inspection; Engineering
[…].The city’s constitution would more
closely resemble the charter of a business
corporation than the governing document
of any existing nation or city.
This principle reflected Howard’s belief
that politics, in the sense of various
interests competing for favor in the
distribution of government services and
wealth, would be essentially eliminated
in his planned city. In place of politics
and ideology would be the rational
management of practical matters by
experts, each elected to a particular
department because of his or her
expertise in the area.
177
Rita Raposo
Indubitavelmente, a visão de Howard
Vale ainda a pena observar que a tendên-
é democrática e progressista. Apenas há que
cia para confundir o modelo da Cidade Jardim
colocá-la no contexto próprio. Ela não tem
de Howard com outras formas socioespaciais
lugar para o político no sentido habitual do
muito diferentes não constitui sequer novidade.
termo; apenas contempla a hipótese da ad-
Tal ocorreu em primeiro lugar na comparação
ministração: “it was characteristic of Howard
com os subúrbios elegantes que surgiram na
that, rather than tackle the essentially political
mesma época. Os Garden Suburbs ingleses do
problem of government, he should choose to
início do século XX (e.g. Hamsptead) foram os
address himself to the detailed mechanism of
primeiros a receber esse tipo de interpretação.
administration” (Beevers, 1988, p. 63). Eis uma
Desde logo, foi o próprio Howard que tratou de
visão do político muito próxima da de vários
recusar tal leitura, comentando a seu propósi-
outros autores da sua época que, na senda do
to que: “Suburbs are better than barracks, but
Iluminismo, se renderam à absoluta crença na
further growth of an overgrown city has evils of
Razão e no Progresso, imaginando, ingênua
its own” (apud Beevers, 1988, p. 133). De fato,
mas convictamente, que, num futuro próximo
entendia que estes constituíam a antítese do
(para o qual tentaram contribuir ativamente), a
seu modelo.
“administração das coisas haveria de substituir
o governo dos homens”, conforme à conhecida
fórmula de Saint-Simon. Tratava-se de reformar
a sociedade e de dar fim aos conflitos sociais
e ao poder (seja, em essência, ao político), recorrendo tão só à Razão humana universal e às
suas realizações, como a ciência e a técnica. A
esse respeito, recorde-se que Auguste Comte
(em tempos secretário do filósofo supra referido) defendeu, na sua famosa teoria sobre a
Ordem e o Progresso, que no futuro a guerra
passaria a ser um anacronismo, coisa bárbara e
sem lugar na era do Positivismo, seja do triunfo
A Garden City is, or at its inception
aims to become, a complete, and, so to
say, self-contained town, with its own
industries etc.; and its own full, corporate
life. A Garden Suburb is an attempt to
wisely regulate the out-flow of a great
city’s population: but, in doing this the
Garden Suburbs which have so far been
built tend rather to increase the distance
between the working and the home
life of the bread-winners; for they are
rather dormitory districts with little or
no provision for work, except, indeed,
for work in the garden… (Howard apud
Beevers, 1988, pp. 133-134)
da razão e da ciência. O essencial do ideário
iluminista, assim como elementos de outras
A este respeito é ainda de notar que
correntes ideológicas e valores (nem sempre de
vários outros autores saíram a terreiro em de-
fácil conciliação), tais como o industrialismo, o
fesa de Howard. De entre eles destaca-se, em
apelo romântico da natureza e o universalismo
primeiro lugar, Lewis Mumford: “the Garden
ecoam nitidamente na visão de Howard. Eis
City, in Howard’s view, was first of all, a city…
algo que pode também ser verificado na sua
… It was in its urbanity, not its horticulture,
franca adesão ao Esperanto [aquele que tem
that the Garden City made a bold departure
esperança], língua por ele frequentemente utili-
from the established method of building and
zada e promovida.
planning” (Mumford apud Richert e Lapping,
178
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade
1998, p. 127). Também Tuan (1990) apresen-
internas, e o caso em que esses mesmos ele-
tou opinião semelhante, frisando que a Cidade
mentos construídos servem a separação de
Jardim, e nomeadamente a sua materialização
diferentes grupos ou classes sociais no seio da
em Letchworth, foi desenhada como uma ver-
mesma cidade. Assim, tal tese falha um aspec-
dadeira cidade, incluindo uma população diver-
to decisivo, seja o fato de os CFs corresponde-
sificada, múltiplos usos do solo e uma elevada
rem a uma forma genuinamente moderna e de
densidade residencial. Esses mesmos argumen-
constituírem uma faceta ou variante específica
tos poderiam ser usados hoje para marcar a di-
da história geral da segregação social que ca-
ferença entre o ideal da Cidade Jardim e os CFs
racteriza de modo distintivo a cidade moderna
(em especial na sua versão master-planned), o
(e a pós-moderna, se bem que com variações).
que, de resto, já foi feito por Paul Knox (1992,
De fato, o trabalho das ciências sociais
p. 207). Esse salienta que, ao contrário do mo-
(e.g. Fishman, 1987; Tuan, 1990; Salgueiro,
vimento das Cidades Jardim e das New Towns
1992) veio revelar a existência de profundas
inglesas, a proveniência das MPCs contemporâ-
diferenças entre as sociedades modernas e pré-
neas (na sua maioria muradas e fechadas), que
-modernas no que respeita ao fenômeno da
apelida “paisagens empacotadas”, “is almost
segregação, nomeadamente no terreno das ci-
entirely from within the private sector, their
dades. Demonstrou que na cidade pré-moderna
objectives being less concerned with planning
aquele fenômeno é relativamente excepcional,
and urban design as solutions to problems of
já que é caracterizada pela mistura funcional
urbanization than as solutions to the problem
e social, segundo um padrão dito de “grão fi-
of securing profitable new niches within the
no” e restrito a casos muito específicos, isto é,
urban development industry”.
que nem constituem a norma, nem se baseiam
Passemos agora à discussão da tese
em princípios de desigualdade socialmente
que clama que a verdadeira origem dos CFs
centrais nesse contexto, pelo menos a Oci-
contemporâneos (seja a sua origem histórica)
dente. É assim que a segregação nas cidades
radica nas cidades europeias fortificadas pré-
pré-modernas se encontra apenas associada a
-modernas. De um modo geral, esse argumento
princípios de ordem étnico-religiosa (o exemplo
costuma ser apresentado de uma forma muito
clássico é o do gueto de Veneza do século XV:
solta, apenas evocando as muralhas e os por-
vide Sennett, 1994, para uma análise aprofun-
tões que nessas cidades protegiam as respecti-
dada da matéria), ou profissional e corporativa.
vas populações de diversas ameaças exteriores.
Nas cidades pré-modernas (com destaque para
Em nossa opinião, esta tese esquece-se de um
as europeias) não só não se observa a segrega-
elemento fundamental que inviabiliza qual-
ção residencial de classes sociais, como se não
quer comparação séria entre essa forma pré-
assiste à separação espacial das esferas do tra-
-moderna e os CFs nas suas diferentes edições
balho e da família, nem dos sexos e das idades.
históricas. Nomeadamente, olvida a profunda
É claro que a ausência relativa de segre-
diferença que existe entre o caso dos muros e
gação na cidade pré-moderna não significa a
dos portões que encerram uma população in-
inexistência de desigualdades profundas. Ape-
teira, sem olhar às suas desigualdades sociais
nas a ordem social tradicional não precisava
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
179
Rita Raposo
da distância física para garantir suas enormes
paisagem urbana de Londres: a privatização
distâncias sociais. As pessoas de diferentes es-
de algumas praças residenciais, por coletivos
tados ou ordens sociais podiam cruzar-se nos
de residentes. De acordo com Henry Lawren-
mesmos espaços físicos sem alguma vez es-
ce (1993, p. 90), este fenômeno: “represented
quecerem a que espaços sociais pertenciam.
some of the first expressions of the desire for
Também é certo que as distinções sociais não
class segregation, domestic isolation, and
deixavam de se revelar por intermédio de vá-
privatized open space that later were to form
rios outros signos físicos tais que a dimensão
the basis of suburban living”. Como veremos,
ou a arquitetura das casas. É certo ainda que
a novidade destas praças residenciais não re-
algumas atividades consideradas (material
sidiu apenas no fato de serem clausuladas,
ou socialmente) poluentes também podiam
mas num coerente e mais amplo conjunto de
ser remetidas para fora da muralha, seja para
elementos; seja o mesmo que autoriza estabe-
essa “quinta dimensão” (Tuan, 1990) a que
lecer a respectiva continuidade por relação a
correspondiam os subúrbios pré-modernos.
formas residenciais posteriores, entre as quais
Contudo, a regra na cidade tradicional é a da
os CFs contemporâneos. É dessas praças que
mistura, a do ombrear de ordens sociais e de
falaremos imediatamente no ponto seguinte, a
atividades. Na cidade pré-industrial, assim co-
par de uma outra forma mais avançada que,
mo no campo, o espaço refletia e reforçava
obedecendo à mesma lógica, continua essa
múltiplas interdependências sociais que mais
primeira experiência. Trata-se do caso dos
tarde haveriam de se romper. De fato, antes do
subúrbios românticos planeados anglo-ameri-
seu advento, a proximidade física entre mem-
canos. Eis duas formas que em conjunto iden-
bros de diferentes grupos ou ordens não tinha
tificamos com o primeiro “momento” ou “edi-
o mesmo significado nem inspirava os mesmos
ção” do fenômeno. Entretanto, é de notar que
receios que a sociedade e a cidade moderna
também já McKenzie (1994) e Luymes (1997)
haveriam de conhecer.
tinham estabelecido uma relação de continui-
Apenas a modernidade e sua ordem social, econômica e moral, capitalista e burguesa
dade entre alguns exemplares dessas formas e
os actuais CFs.
impuseram a regra da segregação social, por
vezes sob condições extremas e mesmo dramáticas como aconteceu nas cidades de Manchester, Liverpool, Londres e, mais tarde, em Nova
Uma história, duas formas
Iorque e noutras cidades norte-americanas,
localizações onde, precisamente, nasceram
A primeira forma desenvolveu-se no século
alguns dos mais desenvolvidos CFs. De fato,
XVIII, como referido, a partir da praça residen-
procurando no tempo os antecedentes histó-
cial inglesa, nascida em Londres no século pre-
ricos dos condomínios fechados, entendemos
cedente. Se bem que inicialmente identificada
não se poder recuar além de cerca de meados
com a aristocracia, esse tipo de praça, com o
do século XVIII, momento a partir do qual há
passar do tempo, veio a refletir valores e traços
registro de uma importante transformação na
também, e até mais facilmente, atribuíveis à
180
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade
burguesia e, acima de tudo, identificáveis com
em riqueza e prestígio, à medida que progre-
um mundo capitalista e moderno. Com efeito,
dia a lógica do acortesamento, como aconteceu
em Inglaterra, no início, os residentes dessas
exemplarmente em França. No início, as suas
praças eram na sua maioria nobres, se bem que
residências urbanas situadas nessas praças
no século XVIII já vários burgueses ricos tam-
elegantes construídas nos limites de Londres
bém as habitassem. Em contrapartida, a segun-
destinavam-se apenas à passagem dos meses
da forma que consideramos, o subúrbio român-
de inverno.
tico planeado anglo-americano (ele próprio
Os “empreendimentos”, de que as pra-
apenas uma variante da forma suburbana), já
ças constituíam o centro, incluíam muitas vezes
é verdadeiramente burguesa, se bem que refle-
uma praça de mercado separada, várias ruas,
tindo as influências de modelos aristocráticos
lojas, uma igreja e habitação para criados, ar-
que, em certa medida, procura emular. Encon-
tesãos, etc., se bem que nos séculos XVIII e XIX
trando-se exclusivamente ligado ao passado
muitas já fossem puramente residenciais e que,
do urbanismo anglo-americano, esse primeiro
inclusive, se fizessem acompanhar de barreiras
momento do fenômeno surgiu na transição de
que fechavam as ruas que lhes davam acesso.
um mundo dito tradicional, predominantemen-
Em regra, a terra pertencia a um senhor que
te rural e agrícola e caracterizado por uma es-
a arrendava a especuladores ou diretamente
trutura social em que imperava o princípio do
aos residentes, normalmente por períodos lon-
nascimento, para o mundo da Modernidade,
gos que podiam ir até 99 anos. De igual for-
urbano, industrial, capitalista, dotado de uma
ma, era habitualmente o proprietário da terra,
nova estrutura social que apresentava novos
e apenas raramente o promotor, que detinha
atores e novas relações sociais.
o controlo do desenho dos edifícios em torno
da praça. O controlo dos proprietários exercia-se ainda sob a figura de restrictive covenants
A praça residencial inglesa
que obrigavam os arrendatários, prevenindo
que introduzissem alterações aos edifícios ou
O fenômeno de privatização ou clausura de
utilizassem o espaço aberto da praça de modo
praças residenciais em Inglaterra iniciou-se
indesejável. O traçado e o desenho arquitetô-
em meados do século XVIII e prolongou-se no
nico destas praças inspiravam-se nos modelos
seguinte. Sua história começa em Londres no
continentais das praças renascentistas de Itá-
século XVII, mas apenas o século seguinte as-
lia e de França. A primeira praça residencial a
sistirá à mudança que lhes garantirá um lugar
surgir em Londres foi Covent Garden. Em 1630
nesta história. Sua origem é aristocrática e liga-
iniciou-se sua construção nas terras do Conde
-se à nobreza inglesa estabelecida no campo
de Bedford, sob o desenho de Inigo Jones. No
inglês, a esse grupo de ricos gentlemen farmers
topo sul encontrava-se a Casa de Bedford, no
que clausularam os campos e neles introduzi-
lado oeste nascia a igreja de São Paulo, a norte
ram a lógica capitalista. Este importante braço
e leste da praça foram construídas casas para
da nobreza inglesa escapou assim à sorte de
arrendar. A composição geral da praça, com ar-
muitas nobrezas rurais que ficaram para trás,
cadas, imitava a parisiense Place Royale, hoje
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
181
Rita Raposo
Place des Vosges, que fora construída apenas
acesso para o exercício de diversas atividades
vinte e cinco anos antes (Lawrence, 1993).
produtivas e recreativas. Até a década de 1720,
O amplo espaço central da praça de Co-
a exclusão do público dessas praças era difícil
vent Garden começou por ser apenas pavimen-
e não claramente legal. Apenas o prestígio de
tado com pedra e aberto ao uso público. Esse
viver em determinada praça onde ficava a ca-
recinto era ladeado por ruas que continuavam
sa de um senhor de grande estirpe (no caso de
para além da praça, ligando-se em parte à ma-
St. James’s Square tinha-se o rei por vizinho)
lha urbana, em parte ao campo adjacente. À
conferia valor econômico à residência nesse
semelhança das muitas outras praças que ha-
local. Só no século XVIII os valores capitalistas
veriam de ser construídas desde então, Covent
haveriam de contestar as noções feudais do
Garden foi antes de mais projetada como uma
valor do solo (Lawrence, 1993). Logo no início
praça residencial, e o uso público não consti-
desse século se afirmou parte da nova tendên-
tuía sua principal vocação. Foi especialmente
cia. Uma nova praça, Hanover Square, surgiu
após o grande incêndio de Londres de 1666, e à
em 1713, apresentando no seu centro um jar-
medida que a cidade se expandia, que a praça
dim vedado (mas ainda não fechado à chave).
residencial se tornou numa das principais for-
Várias outras, novas ou mais antigas, haveriam
mas escolhidas para a criação de novas zonas
rapidamente de adotar o mesmo padrão, dotan-
para as classes mais abastadas. Segundo La-
do-se por igual de jardins vedados com grades
wrence (1993, pp. 94-95), “from the beginning,
metálicas. Tal aconteceu em especial com as
the squares were intended to be amenities that
mais atacadas pela “populaça”. Os residentes
increased the value of the property surrounding
lutavam então pelo direito à clausura total e
them, in speculative construction projects
legal desses jardins no meio das praças e ao seu
aimed at providing housing for the growing
usufruto exclusivo, o que acabou por acontecer
upper-class population of London”. Mas, a in-
por intermédio de uma forma jurídica especí-
tenção de oferecer amenidades aos residentes,
fica: “Parliamentary enclosure acts similar to
e de recolher os benefícios financeiros da con-
those used at the same time on rural estates”.
sequente valorização da propriedade, acabou
Com estas medidas, “the urban common-field
por não se concretizar por inteiro, pelo menos
tradition quietly died” (idem, p. 97). A primeira
nos tempos mais próximos. As praças mantidas
autorização surgiu em 1726: St. James’s Square,
abertas ao público acabariam por ser sujeitas a
a mais aristocrática de todas as praças de Lon-
usos incompatíveis com esse objetivo.
dres. Muitas outras haveriam de se lhe seguir.
De fato, como argumenta o mesmo autor,
Henry Lawrence (1993) nota que, à seme-
essas praças eram paisagens socialmente ambí-
lhança do que acontecia com os enclosures no
guas, e as relações de propriedade envolvidas
campo, também os enclosures urbanos “were
eram basicamente feudais: 1) os residentes
a major step away from the feudal forms of
apenas detinham, por arrendamento, o direi-
property relations and toward capitalist forms”
to de uso das casas; 2) as praças eram baldios
(idem). O autor estabelece um claro paralelo
[commons] em relação aos quais os anteriores
entre os dois casos de clausura, urbana e rural.
residentes mantinham o antigo direito de
Por então, também nos campos de Inglaterra,
182
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Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade
os senhores extinguiam o direito de acesso
dos camponeses aos baldios, ao mesmo tempo que os colocavam à distância da sua casa.
Mas o encerramento das praças e a exclusão
da “populaça” não foi a única transformação
assinalável que essa forma socioespacial sofreu ao longo do século XVIII: “by the third
quarter of the century, there was a noticeable
trend toward increasing density of vegetation”
(idem, p. 101). Os jardins das praças, agora
fechados, começaram “to look like more little
parks whose spaces were increasingly internal
within a screen of plantings” (idem, p. 104).
O significado cultural dessa transformação é
complexo, ilustrando poderosamente o que
por então mudava nas economia, sociedade
e cultura inglesas. Em primeiro lugar, há que
relacionar essa alteração com a emergência,
em torno de 1720, de uma concepção especificamente inglesa da paisagem que haveria
de dominar durante muito tempo o desenho
de jardins e parques, especialmente na Grã-Bretanha e nos EUA.
In the early eighteenth century a new
ideal of landscape arose in England
based on the idea of nature as variety.
The straight lines and right angles of
the old gardens would be replaced by
gentle curves, the symmetries replaced
by carefully planned irregularities. Trees,
shrubs, and flowers would be allowed to
‘be themselves’, to grow in their natural
shape and to be planted in scatterings
which sought to imitate the unaided work
of nature. Instead of the strictly-delimited
world of the Renaissance garden, the
ideal was of an encompassing world
of greenery and variety that extended
into the most distant prospect. To be
sure, this new aesthetics had rules
almost as rigid as the old. Its name the
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‘picturesque’ betrays its origins not in
the direct appreciation of ‘nature’ but in
the imitation in real gardens and parks of
the landscapes found in certain painters
of the seventeenth century, most notably
Claude Lorrain. Claude did not work
‘from nature’ but from an idealized view
of the classical age, which he sought
to captures on his canvases (…). This
vision certainly enchanted and consoled
the English upper classes. With the
encouragement of cultural leaders like
Pope and Lord Burlington and the genius
of such landscape architects as William
Kent, Lancelot ‘Capability’ Brown, and
Humphry Repton, the great landowners
set out to create ‘parks’ around their
country houses that matched the ideal.
All the resources of advanced agriculture
were called into play to produce the
a p p e a r a n c e o f u n s p o il e d n a t u r e.
(Fishman, 1987, pp. 47-48)
Esse novo ideal da paisagem surgiu e
desenvolveu-se primeiro nas ricas e nobres
propriedades rurais de Inglaterra. Eis algo que
conduz imediatamente ao estabelecimento de
mais um paralelo entre as transformações que
o campo e a cidade ingleses sofreram ao longo
do século XVIII, um paralelo que, de novo, não
escapou a Henry Lawrence (1993). A adoção
desse ideal de paisagem encontrou-se associada, em ambos os mundos, à remoção dos
membros de ordens ou classes inferiores tanto da vista como do contato físico de nobres
e burgueses, representando, assim, um desejo de segregação social, a par da valorização
da privacidade familiar e de outros elementos
pertencentes ao mesmo espectro axiológico. O
avanço do capitalismo e a correspondente mudança da estrutura social inglesa trouxeram
novos valores que se haveriam de encontrar
183
Rita Raposo
principalmente alinhados com o ethos burguês
Paisagem Inglesa e a mudança simultânea da
moderno. Curiosamente, no caso de Inglater-
sociedade, da economia e da cultura inglesas
ra, e porque foi aí que o capitalismo agrário
desde o século XVIII: e.g. Raymond Williams
irrompeu inauguralmente, esses valores aflo-
(The Country and the City, 1993 [1973]), John
raram primeiro no campo do que na cidade.
Berger ( Ways of Seeing , 1975), John Barrell
Entretanto, é de notar que essa segregação
( The Dark Side of the Landscape , 1980) e
operada pela aristocracia inglesa desde o sé-
Lawrence Stone ( The Public and the Private
culo XVIII pouco ou nada tem a ver com a lógi-
in the Stately Homes of England, 1500-1990,
ca tradicional da aristocracia “civilizada”, ain-
1991). Esses autores observaram como, nos
da tão visível do outro lado da Mancha, nesse
campos de Inglaterra, a paisagem “à inglesa”
mesmo século.
serviu para esconder pobres, trabalhadores ru-
É claro que a nobreza inglesa não perdeu
rais e tudo o que a pudesse estragar. Referem-
o sentido da distinção nem abrandou a guarda
-se, especificamente, à expulsão das casas dos
da distância que a separava da burguesia.
camponeses e de todas as construções asso-
Contudo, adotou grande parte de seus valores,
ciadas à exploração agrícola para fora do pe-
possivelmente sob o efeito de estímulos seme-
rímetro da casa senhorial, assim transformado
lhantes. A aristocracia de corte francesa tinha,
num parque cênico privado, e, inclusive, à sua
por princípio de sobrevivência, a representação,
equivalente remoção de muitas representações
isto é, a demonstração em todas as ocasiões da
literárias e pictóricas do mundo rural e da pai-
sua qualidade, o que a obrigava a comportar-
sagem de então.
-se sempre de acordo com sua categoria (é
Na cidade, por sua vez, o espaço, nomea-
esse o sentido da “honra” tal como traduzido
damente nas praças residenciais, era sujeito
por Montesquieu no Espírito das Leis), para
à mesma regra de clausura e à mesma con-
além de qualquer consideração de ordem eco-
cepção de paisagem estreada nos campos de
nômica. Nas práticas ostentatórias da nobre-
Inglaterra. Essa nova versão das praças ingle-
za não se encontra o menor rasto do homo
sas nada tinha a ver com sua concepção ori-
œconomicus moderno (esse constitui, de resto,
ginal. No começo e durante muitas décadas,
sua denegação mais prosaica): seu comporta-
as praças residenciais eram essencialmente
mento de despesa e consumo é agonístico. Em
locais de encontro, para ver e ser-se visto,
contrapartida, a aristocracia inglesa, que não
conforme à já citada lógica da representação
deixa de se representar até hoje, “progrediu”
aristocrática. Agora a privacidade passava a
para outra forma de relação entre a economia
ser preferida a essa lógica da exposição inter
e a sociedade, desenvolvendo um ethos mis-
pares: “by the end of the eighteenth century,
to. É assim que se torna compreensível que a
some kind of seclusion became necessary for
muralha (que haveria de ser identificada com
people to observe “decency and good order”
a burguesia) pudesse, em grande medida, ter
in their assembly” (Lawrence, 1993, p. 106).
começado por ser aristocrática.
Esta necessidade também passava pela trans-
Vários autores contribuíram, de forma
formação da cidade de Londres: “the street
magistral, para a análise das relações entre a
life of London had changed markedly from
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Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade
that of a half-century earlier. A rapid growth
sua, trabalhada de origem, exclusiva, e já
of the city’s population, fed largely by rural
pouco devendo à lógica aristocrática, exceção
immigrants of the lower classes, had increased
feita aos seus símbolos consagrados pela ar-
the intensity of street traffic, and their poverty
quitetura, a decoração e a paisagem. Muitas
had increased the incidence of street crime.
das antigas praças perderam seus residentes
The streets teemed with strangers, and even
e passaram, antes, a alojar escritórios e lojas.
a well-dressed person could no longer safely
Na década de 1880 aumentou a pressão para
be assumed to be a gentleman” (idem). Mas
sua abertura ao público. As barreiras que ga-
não era apenas esta invasão da “desordem”
rantiam a privacidade de várias ruas que per-
que motivava a preferência pela separação e o
mitiam o acesso às praças, e que tinham sido
isolamento. Ao mesmo tempo, crescia um gos-
erigidas no âmbito do mesmo movimento de
to pela privacidade como valor autônomo, um
clausura, foram todas removidas por ordem de
gosto mais burguês do que aristocrático, que,
um Act of Parliament de 1893. No que respei-
de resto, era perfeitamente compatível com a
ta ao próprio recinto ajardinado das praças, a
ambição de emular o status da classe dominan-
questão foi diferente, e ainda hoje várias se
te tradicional no terreno da propriedade da ter-
mantêm privadas e fechadas ao público (e.g.
ra e do controlo da natureza. Para os burgueses
Bedford Square, Londres).
de então, “the square gardens became their
Para além do resto da Grã-Bretanha, on-
landscape prospect and borrowed the same
de surgiram em várias cidades, o modelo da
aristocratic aesthetics to create an ‘imitation of
praça foi exportado para o Império, obtendo
the country’, with its symbolism of possession
especial sucesso nos EUA após a conquista da
of the land through the control of nature (idem,
respectiva independência. A primeira praça pri-
p. 104).
vada seria aí construída em 1793, em Boston,
Apenas em meados do século XIX have-
cidade que viria a registar pelo menos mais
ria de chegar ao fim a preponderância do mo-
três praças residenciais entre os anos de 1801
delo da praça residencial. Ela refletiu ao longo
e 1844 (Luymes, 1997). Também Washington,
de mais de dois séculos a evolução da econo-
DC, Baltimore e New Haven assistiram ao nas-
mia, da estrutura social e da cultura inglesas.
cimento do fenômeno durante as três primeiras
Seu encerramento ou clausura, assim como o
décadas do século XIX. Nova Iorque registou
de muitas ruas que a circundavam, revelaram
durante o mesmo período quatro praças, entre
um desejo de segregação sem precedentes. É
as quais Gramercy Park, construída em 1831
claro que, no caso dessa sociedade é sempre
e que ainda hoje mantém o estatuto de um
difícil decidir de que classes e de que cultura de
jardim coletivo privado. À semelhança do que
classe se trata, tão cedo se deu a mistura entre
aconteceu em Inglaterra, também nos EUA, na
a lógica da honra e a do dinheiro. Contudo, é
caminhada para o século XX, as praças residen-
certo que a cultura burguesa haveria de encon-
ciais passaram de moda aos poucos, e quase
trar sua maior e mais perfeita expressão numa
todas se abriram ao público ainda durante o
forma mais evoluída e mais autenticamente
século XIX.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
185
Rita Raposo
O subúrbio romântico planeado
anglo-americano
medida que progredia a densificação urbana,
Ao mesmo tempo que o modelo da praça resi-
crescia o desejo de isolamento doméstico e da
dencial britânica perdia sua força, já no hori-
“higiênica” separação das classes inferiores e
zonte surgia uma outra forma de habitar que
da cidade, no seio da burguesia ascendente a
haveria de levar ainda mais longe o desejo de
ideia do subúrbio avançava. De acordo com Ro-
privacidade, de isolamento doméstico e de se-
bert Fishman, o nascimento do subúrbio corres-
gregação: o subúrbio anglo-americano. A Ingla-
pondeu a uma forma completamente nova que
terra primeiro e, poucos anos passados, os EUA
exigiu e dependeu de uma profunda mudança
seriam o palco desta versão mais desenvolvida
de valores, incluindo os relativos à concepção
do habitat burguês moderno. Essa, por sua vez,
do espaço: do centro e da periferia, do espaço
obteve várias formas, e apenas uma delas reali-
do trabalho e da família, do privado e do pú-
za a passagem direta da praça residencial clau-
blico. Esse tipo de subúrbio consistiu, na opi-
sulada para os atuais CFs: o subúrbio românti-
nião daquele autor, na criação coletiva da elite
co planeado. Esse consistiu numa variante que
burguesa de Londres do final do século XVIII:
se destacou no quadro mais amplo da suburba-
uma obra improvisada e não planeada, sujeita
nização anglo-americana (essa vaga que, desde
ao método do ensaio e do erro, e resultado de
o final do século XVIII, submergiu os arrabaldes
várias decisões, frequentemente não coordena-
de várias cidades de Inglaterra e dos EUA) e de
das, de promotores, construtores e clientes.
que a cidade passava a ser retratada como um
locus infecto em vez do centro do mundo, e que
que não pode ser isolado. É no subúrbio que o
O quadro de motivos que inspirou tal
habitat burguês encontra sua melhor expressão
criação foi naturalmente complexo. Fishman
já que nas praças residenciais inglesas apenas
identifica no que Lawrence Stone designou
se assistira a uma espécie de ensaio, de um co-
por “the closed domesticated nuclear family”
meço que arrancara do coração da própria so-
a “força emocional” que haveria de separar a
ciedade aristocrática.
casa e o trabalho da burguesia. Por sua vez, a
Ainda antes do fim do século XVIII, a
esse “ímpeto cultural” haveria de se reunir um
burguesia inglesa começou a construir villas
importante quadro econômico. A suburbaniza-
nos arredores de Londres, um movimento de
ção trazia a possibilidade de terrenos agrícolas
que haveria de nascer o subúrbio moderno.
baratos, situados para além da prévia zona de
De acordo com Robert Fishman (1987), o nas-
expansão da cidade, serem transformados de
cimento do subúrbio moderno associou-se a
modo muito rentável em lotes para constru-
um crescimento urbano sem precedentes e à
ção de habitação: “this possibility provided the
crise da forma urbana que este provocou. A es-
great engine that drove suburban expansion
ses juntou-se, pela mesma altura, um também
forward (…), builders in both England and the
inédito aumento da riqueza e da dimensão de
United States adapted more easily to the needs
uma elite mercantil, que assim atingia a mas-
of suburban development that they did to the
sa crítica suficiente para operar a transforma-
more difficult challenge of creating middle-
ção da cidade em função dos seus valores. À
-class districts within the city. Suburbia proved
186
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Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade
to be a good investment as well a good home”
gótico moderno, o italianate, o Old English). O
(Fishman, 1987, p. 10). Não fora a rejeição do
modelo básico estava lançado.
modelo urbano de vida, ao mesmo tempo que
O subúrbio podia ser agora o objeto de
se afirmava uma alternativa ideológica, e a
uma única operação de promoção e constru-
existência de condições econômicas propícias
ção, para além de dispor de uma Arquitetu-
e nunca esta mudança teria sido adquirida. A
ra específica. Ele encontrar-se-ia na base do
prová-lo parece encontrar-se o fato de, do ou-
planeamento de um conjunto de novos su-
tro lado da Mancha, o desejo de isolamento
búrbios que haveriam de surgir desde o final
doméstico e de segregação da burguesia do
da década de 1830 nas franjas de cidades do
continente ter seguido um outro rumo.
norte de Inglaterra, e desde cerca de 1850
Segundo Robert Fishman, o subúrbio
nos EUA. Nascia então o subúrbio romântico
moderno só começou verdadeiramente quan-
planeado anglo-americano. Em relação a Park
do “the merchant elite shifted its primary
Village existia apenas uma, mas importante,
residence to the weekend villa, allowing the
novidade: todo seu espaço era clausulado. De
woman and the children of the family to
modo significativo, foi em Manchester e em
remain wholly separated from the contagions
Liverpool que surgiram suas primeiras edi-
of London while the merchants themselves
ções. Corria o ano de 1837 quando nasceram
commuted daily from their villas to London by
Victoria Park e Rock Park, respectivamente.
private carriages” (idem, p. 39). O momento
Seguiram-se, entre outros, Prince’s Park, em
exato em que tal ocorreu é, de acordo com o
Liverpool, e Ladbroke Grove em Londres. Am-
autor, difícil de determinar. Contudo, esse afir-
bos foram construídos em 1842. Por sua vez,
ma que existem registos de que, na última dé-
nos EUA, nos anos de 1850, surgiram vários
cada do século XVIII, Clapham, entre outros, já
empreendimentos semelhantes ao mode-
era um verdadeiro subúrbio conforme ao apon-
lo inglês do subúrbio romântico. Alguns dos
tamento anterior. Contudo, a esses haveria de
primeiros exemplos foram Evergreen Hamlet,
se seguir uma experiência mais completa: Park
Pensilvânia (1851); Glendale, Ohio (1851);
Village, surgida na década de 1820. Esse levava
Llewellyn Park, Nova Jersey (1856) e Lake
a assinatura de John Nash, arquiteto que habi-
Forest, Illinois (1857) (Archer, 1988).
tualmente apenas trabalhava ambientes aristo-
O subúrbio romântico anglo-americano
cráticos. Planeado de raiz, Park Village consa-
foi planeado como um todo unitário, compos-
grava o subúrbio anglo-americano como o mo-
to por moradias isoladas distribuídas de forma
delo das “houses in a park” (idem, p. 71). Cria-
a obter-se uma baixa densidade, dispondo de
va uma verdadeira fórmula, um habitat total e
amenidades coletivas como parques, ribeiros,
mercantilizável. Esta cruzava o pitoresco inglês
lagos e árvores que isolavam visualmente as
(a “paisagem à inglesa”) com a libertação dos
casas umas das outras, e obedecendo ainda a
estilos arquitetônicos em face da antes muita
um modelo paisagístico romântico: ruas que
usada regra Palladiana (renascentista, clássica,
serpenteiam e formam meandros atravessam
formal) da construção de villas suburbanas, e a
o seu interior, harmonizando-se com a estética
adoção da diversidade e do historicismo (e.g. o
naturalística e pitoresca do plano geral (idem).
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187
Rita Raposo
Esse tipo de espaço apresentava ainda como
definitivamente o subúrbio como o seu locus
características importantes o fato de ser mu-
de residência preferido. Entretanto, era a norte
rado e de dispor de portões que limitavam o
que a população urbana trabalhadora ganhava
acesso ao seu interior, impondo fisicamente o
a verdadeira e dramática face do proletariado
que todos seus restantes elementos já confor-
urbano industrial moderno. Aí a burguesia tam-
mavam: homogeneidade (e exclusão) social. A
bém mudava de rosto: à medida que se trans-
especialização funcional deste tipo de espaço
plantava das empresas comerciais para a arena
configura ainda outro tipo de “segregação”:
da indústria cada vez mais sulcava o fosso que
“market and service facilities are carefully
a havia de separar dessa outra classe de que
segregated away from the residential area;
nascera, nalguns casos há uns séculos, noutros
stables and mews are in part eliminated, and in
possivelmente há muito menos tempo.
part relegated to a distant corner of the estate”
Robert Fishman elegeu, com razão,
(Archer, 1988, pp. 224-225). Por último, deve-
Manchester e seu subúrbio romântico planea-
-se salientar uma característica fundamental
do de Victoria Park, para análise. Da mesma
do subúrbio romântico, que, de resto, garante a
forma que Los Angeles foi escolhida por vá-
possibilidade das restantes: o respectivo espa-
rios autores contemporâneos como o paradig-
ço era controlado por um só proprietário com
ma da cidade pós-moderna, Manchester ou
capacidade para impor um plano único, ante-
Cottonopolis ficou especialmente conhecida
rior ao seu desenvolvimento. Este modelo ob-
como o modelo da cidade industrial moder-
teve, como seria de esperar, algumas variações.
na, em particular graças à obra A Situação da
Nomeadamente, os casos inglês e norte-ame-
Classe Trabalhadora em Inglaterra de Friedrich
ricano não foram exatamente iguais. Contudo,
Engels. Foi a rápida nitidez das divisões de clas-
obedeceram por igual ao padrão acima descri-
se que apressou a suburbanização em Man-
to. Constituíram, assim, o mais perfeito e direto
chester, que trouxe essa fuga burguesa do cen-
ancestral dos actuais CFs, em especial na sua
tro da cidade. Segundo Fishman tudo mudou
versão suburbana.
radicalmente numa década: entre 1835 e 1845.
É significativo que tenha sido em Man-
Só então surgiu o subúrbio de Manchester. O
chester e em Liverpool, cidades industriais
“medo de classe”, muito mais do que aconte-
do norte de Inglaterra, que essa forma de su-
cera em Londres, constituiu um dos principais
búrbio clausulado tenha surgido em primeiro
motivos dessa decisão “urgente” da burguesia,
lugar. Fishman (1987) recorda que Londres
se bem que o ideal do isolamento doméstico e
permaneceu pouco industrializada quase até
o trabalho da especulação imobiliária também
ao fim do século XIX e que, como tal, se ca-
tenham cumprido o mesmo papel que Londres
racterizou ainda durante esse século por uma
já conhecera. Apenas em Manchester e noutras
certa complexidade pré-industrial, tanto no
cidades congêneres se desenvolveram todas as
que respeita às relações de classe, como à
pressões sociais que haveriam de tornar o su-
estrutura urbana. Esse quadro também é con-
búrbio, para os burgueses, num caso de “vida
sistente com o fato de, apenas após a década
ou de morte”. Mais uma vez, a estratégia foi
de 1870, a burguesia londrina ter escolhido
a da segregação e do dissimular de tudo o que
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Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade
pudesse estragar, numa visão insuportável, a
“operação” Haussmann de “regularização”
ilusão do paraíso.
da cidade de Paris, a qual tratou de expulsar as
Victoria Park, que Fishman apelidou de
“classes perigosas” para a periferia da cidade.
Exclusive Victorian Paradise, é um dos subúrbios
Ora, nos EUA, tal como acontecera em In-
românticos planeados anglo-americanos que
glaterra, não existia coordenação nem vontade
consideramos antecedente direto dos atuais
política que pudesse dar origem a tal tipo de
CFs. Vimos como aquele surgiu num contexto
iniciativa. Ao mesmo tempo, este último país já
em que, para além da enorme e concentrada
disponibilizara a fórmula. Llewellyn Park, Nova
mudança, se verifica um quadro de enormes
Jersey, construído em 1857, é possivelmente o
desigualdades e tensões sociais: “Because
subúrbio romântico norte-americano mais fa-
middle-class women and their families were
moso. Como refere Fishman, Kenneth Jackson
safely placed behind the walls of Victoria Park,
(1985) insiste que esse último consistiu no “pri-
the rest of Manchester could indeed be turned
meiro subúrbio pitoresco do mundo”. É claro
in a ‘furnace ground’. Because the bourgeois
que o primeiro autor, seguindo a linha de ra-
Eden had been realized in suburbia, human
ciocínio que temos a vindo a apresentar sobre
beings a short distance away could be left to
a origem do subúrbio anglo-americano, contra-
sink, in Engels’s phrase, ‘to the lowest level of
põe que Llewellyn Park segue o modelo propor-
humanity’” (idem, p. 102). Mas não foi apenas
cionado por vários outros casos em Inglaterra.
em Inglaterra que esse modelo de subúrbio
Fishman invoca a este propósito o trabalho de
surgiu. Tal também ocorreu nos EUA desde a
John Archer (1988) sobre o subúrbio românti-
década de 1850. Segundo Fishman, apesar de
co anglo-americano, o qual também toma por
já antes dessa data existirem algumas zonas de
principal exemplo o caso de Llewellyn Park. Ar-
villas burguesas nos arredores de cidades como
cher relaciona, de forma particularmente inte-
Nova Iorque, Boston e Filadélfia, e mesmo
ressante, as características do subúrbio român-
alguns núcleos que podiam ser considerados
tico anglo-americano com alguns traços ideo-
suburbanos, não se encontravam ainda aí
lógicos, à época comuns às burguesias desses
presentes as pressões sociais que conduziriam
dois países: “individualismo” e “associação”.
à criação e à preferência do subúrbio pela
Esses dois elementos haveriam de se traduzir
burguesia. Quando, em meados do século
numa sociedade dividida entre várias “colônias
XIX, surge também nos EUA a urgência em
de classe” e, no que respeita aos subúrbios ro-
isolar o habitat burguês, a opção não foi,
mânticos de ambos os lados do Atlântico, dan-
como na Europa continental, a de rasgar
do origem a “enclaves residenciais”. Segundo
espaço no centro da cidade para alojar as
John Archer (1988), a ideologia do individualis-
elites, expulsando as “classes inferiores” para
mo está presente, a vários níveis, no subúrbio
suas margens. De fato, na Europa continental
romântico: desde a condição socioeconômica
preferiu-se “limpar” o centro das cidades, o que
de sua população até a arquitetura e a deco-
se traduziu em várias intervenções urbanísticas
ração das casas, passando pelo paisagismo e o
de grande envergadura. A mais famosa foi a
plano geral.
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Rita Raposo
Finally, a few concluding observations
will help tie both English and American
suburban plans more closely to the
circumstances that produced them.
Residents and designers on both sides
of the Atlantic were especially enamored
of plans comprising complex webs of
curving, winding streets. Commentators
then and now have emphasized how these
streets conform to the topography and
enhance an awareness of the picturesque
characteristics of the environment. In
effect this is a middle-class version of
what Raymond Williams identified as the
eighteenth-century landed estate owner’s
efforts to appropriate the surrounding
landscape through visual and other
means of landscape control. But there
is too a deeper significance to this kind
of suburban street pattern, one that
addresses more fundamental aspects
of the suburban mentality than just the
propensity for aesthetic appropriation
of nature. Curving, winding streets are
aimless and they are timeless. They
presuppose that one really doesn’t have
to get anywhere and that one has all the
time in the world to arrive (…). In some
respects, these curving, winding streets
are even placeless. To this day, many
romantic suburbs pride themselves on at
having street numbers for the houses. The
implication is that the house and family
define their own existence, without need
of sanction or corroboration from the
society at large. This of course ultimately
becomes a supreme fiction, repudiating
the very economic and political nexus that
gives suburban residents the wherewithal
to accomplish such individualistic
endeavors. (Idem, p. 240)
190
A reedição contemporânea
do fenômeno
Como vimos, apenas a Inglaterra e os EUA têm
uma história que permite rastrear a origem dos
CFs. Apenas nesses dois países se reuniram todas as condições necessárias ao aparecimento
dessas experiências “urbanísticas” já longínquas. Por essa altura, o espaço refletia significativamente, pela primeira vez (pelo menos
a Ocidente), nas suas formas, a desigualdade
social e a separação de classes. Ao longo do século XX, a modernidade e o capitalismo avançaram. Pôde-se assistir, de uma maneira geral,
nos países do centro (cujo número entretanto
se expandira), ao progressivo eliminar do duro quadro social que, nos primeiros tempos da
sociedade industrial e capitalista, contribuíra
para o surgimento do fenômeno. Perante essa
evolução, os CFs parecem ter perdido a oportunidade por muitas décadas, revelando ter de
fato constituído, na sua primeira edição, uma
variante menor, localizada, e mesmo extremada, da segregação moderna, em especial do
período do capitalismo selvagem.
Chegava entretanto uma era de novos
equilíbrios que, durante grande parte do século
XX, caracterizou, ainda que de modo variável,
diversas sociedades capitalistas e industriais.
O pós-guerra haveria de, decididamente, trazer
essas décadas doiradas de crescimento econômico e de “paz social”, associadas ao Fordismo
e ao Estado de Bem-Estar. É claro que esses
não acabaram nem com a desigualdade social
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Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade
nem com a segregação moderna. Contudo, em
Sua visibilidade e as potenciais tensões sociais
regra, trouxeram uma fórmula de integração
associadas, em ambos os momentos, parecem
social que passava pelo trabalho e a produção,
ter facilitado a segregação.
sob cuja égide parecia poder a todos acomodar,
Tais tensões parecem, precisamente, es-
com a ajuda do Estado, se bem que, é claro, em
tar na origem de vários sentimentos de insegu-
lugares distintos. Desta forma, o sentimento e
rança. Em primeiro lugar, surge o da inseguran-
a experiência da ordem, do progresso, mesmo
ça física que, atualmente, nalgumas cidades e
que desigual, não parecem ter propiciado a
regiões do mundo se encontra, objetivamente,
expansão dessa forma de habitar que, na sua
associado a situações dramáticas de pobreza,
primeira edição, se encontrou inequivocamente
crime e violência urbana, mas que, noutras,
ligada a um quadro social de profundas trans-
depende de outras fontes seguramente mui-
formações estruturais e de extremas desigual-
to menos extremas. Em segundo lugar, deve-
dades, assim como de crise na experiência do
-se também considerar o sentimento de inse-
tempo, do espaço e da sociedade.
gurança de classe (e do medo do “contágio”
Não foi seguramente por acaso que a
conducente à “excitação” do jogo da distinção
segunda edição do fenômeno surgiu nos EUA,
social) dos grupos que seguem na via ascen-
um dos seus palcos originais, antes de atingir
dente (em muitos casos, são estes os principais
grande parte do mundo. A década de relan-
“fornecedores” de residentes de CFs), em face
çamento, 1970, também parece ser significa-
da proximidade física de outros grupos sociais,
tiva. Mais uma vez, o fenômeno se associa a
situados em posição inferior, mas suficiente-
um período de rápidas e profundas mudanças.
mente visíveis para recordar aos primeiros a
No caso dos EUA e de outros países é mes-
fragilidade de sua própria posição, porquanto
mo possível falar de uma transição histórica.
ainda frequentemente “muito fresca”. Também
Parece-nos legítimo estabelecer um paralelo
no que respeita à cultura ou à “vida mental”
entre o tempo que testemunhou a transição
da metrópole, vale a pena chamar a atenção
da sociedade tradicional para a modernidade
para a importância, em ambos os momentos,
e o que assistiu à chegada do pós-fordismo e
dos “medos civilizacionais” e de perda de con-
da pós-modernidade. A estrutura social e a
trole sobre o espaço e a sociedade habituais.
cultura de muitas cidades sofreram, em ambos
É certo que esse quadro muito geral não
os períodos, grandes transformações que ha-
se aplica de modo exato a todos os locais on-
veriam de revolucionar a organização do espa-
de hoje proliferam CFs. Muitas das cidades em
ço urbano. Ambos os momentos assistiram à
que esses estão presentes não podem, de fato,
formação de novas classes ou grupos sociais
ser descritas como o palco de processos pós-
e ao desenvolvimento de novas dinâmicas e
-fordistas ou de pós-modernização, seja pelo
relações de classe. Sublinhe-se em particular
menos de forma significativa. Contudo, mesmo
o fenômeno da polarização social, tradução si-
quando assim acontece, assinala-se a presen-
multânea da rápida mobilidade ascendente de
ça de fenômenos equivalentes, a saber, gran-
alguns grupos sociais e do aumento dos níveis
de desigualdade, insegurança e instabilidade
(e da transformação dos tipos) de pobreza.
social. Mais, deve-se ainda notar que, tanto
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no caso da primeira como da segunda edição
De fato, vários elementos parecem re-
do fenômeno, se encontra, em regra, em jogo
petir-se, tanto no que respeita às condições de
outro tipo de condições sociais. Referimo-nos
produção social, já vistas, como às principais
a fatores que não evidenciam manter qualquer
representações do tempo, do espaço e da so-
relação específica com os antes enunciados
ciedade que os CFs exibem: nomeadamente
nem se associam, necessariamente, a qualquer
por intermédio da sua forma construída (plano,
forma particular de mudança social. Esses fa-
arquitetura, paisagismo, toponímia, mobiliário
tores parecem apenas depender de circunstân-
urbano) e da sua apresentação publicitária (o
cias políticas e culturais locais. Referimo-nos,
que é especialmente válido, mas não exclusivo,
nomeadamente, à situação em que a liberdade
para a edição contemporânea). Nossa análise
de ação do setor imobiliário e a ideologia do
baseia-se na bibliografia internacional dispo-
“privatismo” (McKenzie, 1994) se sobrepõem à
nível sobre o assunto e na observação direta
iniciativa pública e à sua capacidade de contro-
do fenômeno na Área Metropolitana de Lis-
lo do espaço e da sociedade.
boa, que estudamos em profundidade desde a
Na verdade, os CFs, tanto hoje como
década de 1990, e noutros lugares do mundo
no passado, apenas parecem ter oportunida-
que tivemos a oportunidade de confrontar em-
de e verdadeiro sucesso nos cenários em que
piricamente. De um modo geral, em ambas as
se observam a ausência ou a insuficiência, a
suas edições, os condomínios fechados exibem-
abstenção ou o fracasso, da intervenção esta-
-se simbolicamente como “lugares” à parte
tal na regulação do espaço e da sociedade e
em que o tempo, o espaço e a sociedade são
na provisão de bens públicos. Tal aconteceu
completamente distintos de (e superiores a) o
claramente por ocasião da primeira versão do
mundo “normal”, “lá fora” (o que, em conjun-
fenômeno. Foi no quadro do capitalismo liberal
to, garante a “segurança” de seus residentes).
e da opção pela (e da ideologia da) não inter-
Comecemos pela forma como o espa-
venção pública no território urbano que o mun-
ço é normalmente representado. Recortados
do anglo-americano experimentou uma forma
fisicamente, os CFs são imediatamente forne-
própria de fazer cidade e subúrbio muito dis-
cidos com moldura e distância, o que contri-
tinta da que se verificou na Europa continen-
bui para sua identificação com a própria ideia
tal moderna. E foi nesse mesmo contexto que,
de paisagem, seja aquela em que a noção de
como vimos, os condomínios fechados encon-
“ideal estate” toma o lugar da de “real estate”
traram seu primeiro lugar. Algo de semelhante
(Mitchell, 1994). O seu espaço apresenta-se ex-
ocorre nos nossos dias tal como o demonstra
purgado de tudo (nomeadamente do seu Dark
a geografia contemporânea do fenômeno. Ho-
Side) o que o possa anular ou destruir como
je, os cenários do fenômeno são mais amplos
paisagem e, no mesmo ato, subtrair-lhe o seu
e mais diversificados. Ainda assim, é de reco-
valor como mercadoria. Nesta representação
nhecer que, se bem que o tempo tenha trazido
do espaço dos CFs, a ideia de natureza ocupa
a inovação, existiu um modelo anterior cujas
um lugar central desde as origens. Se bem que
características principais se mantêm, a vários
sempre domesticada, racionalizada e objeto de
respeitos, surpreendentemente atuais.
aturada “manicura”, aquela é normalmente
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Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade
apresentada como “natural”. No passado, co-
a origem dos CFs, é também hoje evidente, in-
mo vimos, a preferência foi para a versão “pi-
cluindo nos EUA. Nomeadamente para o caso
toresca” (conforme à adoção da Paisagem à
das MPC’s fechadas de Washington DC, Knox
Inglesa). Contemporaneamente, multiplicam-se
(1992, p. 215) observa que esses emprendi-
os gostos: do primordial, selvagem ou nativo, ao
mentos correspondem a “a collage of private
ecológico, passando pelo pitoresco ou o exótico.
worlds, each entered through substantial
Por sua vez, o tempo, na representação
portals in the manner of an English landed
normal dos CFs, abandonou, distanciou-se
estate, and each announcing itself on large
da história e passou a ser um mito, por vezes
and expensively sculpted and gilded signs
uma memória, simultaneamente “calcificada”
with names that draw freely on historic and
e alheia ou mesmo uma nostalgia de coisa
aristocratic themes”.
nenhuma. Fixado e anulado pela distância
Finalmente, no que respeita à representa-
graças à própria imaginação do tempo, esse
ção da sociedade, há que salientar a frequente
tempo, tal como sucede com a estrutura dos
tendência para a reunião (em proporções variá-
mitos, é total e dotado de uma coerência ina-
veis) do melhor de dois mundos: gemeinschaft
tacável: é um tempo abstrato (passado ou fu-
[comunidade] e gesellschaft [associação ou
turo) e muitas vezes uma tradição inventada
sociedade], conforme à fórmula de Ferdinand
(Hobsbawm e Ranger, 1983). Essa represen-
Tönnies (1979). Por um lado, as relações so-
tação acomoda, muitas vezes, em simultâneo,
ciais nos CFs são, em regra, apresentadas co-
a promessa de um renascer absoluto, de uma
mo calorosas, autênticas e morais e, por outro,
nova vida, de um futuro brilhante (onde podem
como racionais, civilizadas, meramente con-
pontuar referências várias ao novo ou moder-
viviais ou clubby e respeitadoras do indivíduo
no), e a evocação de um passado nostálgico.
e da privacidade familiar. Dadas as caracterís-
Esse, por sua vez, encontra-se essencialmente
ticas gerais dos CFs e a literatura disponível,
associado a um imaginário aristocrático pré-
é bastante mais provável que, de fato, a sua
-moderno que parece garantir, como há mais
vida social seja essencialmente dominada pe-
de dois séculos, aos clientes dos CFs uma ve-
las lógicas do individualismo, da privacidade e
nerável e distintiva (falsa) identidade históri-
da associação seletiva de indivíduos e famílias
ca: nobreza, antiguidade, distinção, prestígio,
do mesmo nível social, tal como já o referi-
privilégio, refinamento, exclusividade… Esta
ra Archer (1988) para o caso do subúrbio ro-
espécie de “aristocracite”, seja a referência
mântico anglo-americano. A referência à ideia
insistente a um reportório simbólico que po-
de comunidade (e de sua “busca” nostálgica)
deríamos julgar já ultrapassado ou exausto,
é particularmente frequente no caso dos EUA,
aproxima claramente os burgueses contem-
a propósito da qual, precisamente, existe uma
porâneos dos de há muitos séculos… como se
ampla discussão e controvérsia sobre sua exata
a burguesia (ou a classe média, se se preferir)
natureza (e.g. Low, 2003). Por sua vez, e ape-
nunca pudera libertar-se de seus primeiros
nas a título de exemplo, no caso português, o
amos e antagonistas. A presença simbólica
apelo à ideia de comunidade, se bem que pre-
desta concepção do tempo, assinalável desde
sente, é muito menos saliente, preferindo-se
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claramente a ideia de privacidade. Eis algo que
resto já notado por vários autores: e.g. Fishman
parece fazer sentido numa sociedade de mo-
(Bourgeois Utopias, 1987); McKenzie (Priva-
dernização tardia e portanto ainda sem lugar
topia, 1994); Mike Davis (1990), pioneiro dos
para nostalgias comunitárias como acontece
estudos sobre os condomínios fechados con-
nos EUA. Como recorda Bauman (2001, p. 3):
temporâneos, que a propósito do caso de Los
“Raymond Williams, the thoughtful analyst of
Angeles evoca a dupla utopia/distopia; David
our shared condition, observed caustically that
Harvey (2000), autor que recorre ao conceito
the remarkable thing about community is that
de “utopia degenerada” de Louis Marin para a
‘it always has been’”.
qualificação do fenômeno. É certo que a ideia
Em conclusão, para além de todas as
de utopia se identifica sempre com a crítica
variações possíveis, não há lugar para dúvidas
da sociedade existente; contudo, por natureza
que as principais representações da sociedade,
e definição ela é progressiva, carregando um
do tempo e do espaço, exibidas pelos CFs (se-
importante potencial de resistência. Em con-
ja no passado, seja contemporaneamente), se
trapartida, e ao contrário do que é comum ao
harmonizam entre si para fornecer uma ima-
utopianismo e ao gênero utópico em geral, o
gem total, benigna, ordenada, esteticizada e
reportório simbólico dos CFs tem apenas na-
moralizada que se distancia (simbólica e fisi-
tureza conservadora. Não corresponde nem
camente) do mundo mais largo, normalmente
a uma “utopia de reconstrução” nem a uma
descrito como oposto e decadente. Desta for-
“utopia de refúgio” (Mumford, 1963), mas, tão
ma, aproximam-se (em conjunto) “perigosa-
só, a uma estratégia de abandono e exclusão
mente” da própria ideia de utopia, aspecto de
do mundo e, assim, de celebração da casa.
Rita Raposo
Licenciatura em Sociologia, mestrado em Economia, doutoramento em Sociologia Econômica.
Professora doutora. Professora auxiliar e Investigadora no Instituto Superior de Economia e Gestão
da Universidade Técnica de Lisboa, Departamento de Ciências Sociais e SOCIUS – Centro de
Investigação em Sociologia Econômica e das Organizações. Lisboa, Portugal.
[email protected]
Nota
(*) Este ar go não foi traduzido para a língua portuguesa em uso no Brasil.
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Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade
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Texto recebido em 4/nov/2010
Texto aprovado em 15/dez/2010
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Brasília: as linhas retas pelo avesso
ou no entrecortar do uso
Brasília: the straight lines in reverse or the intersection of usage
Rosângela Vieira Neri Viana
Karla Christina Batista de França
Ananda de Melo Martins
Resumo
Este artigo analisa algumas expressões da metrópole que surgem no uso cotidiano do espaço.
O ponto de partida é a utilização no espaço do
Plano Piloto de Brasília – e sua inserção nele – por
aqueles que, de certa maneira, rompem com as
normatizações do uso e fazem emergir as contradições urbanísticas. Não se trata de um estudo
sobre o plano urbanístico de Lúcio Costa, muito
menos sobre o desdobramento da urbanização
contemporânea, ainda que tais elementos constituam a tessitura da análise. Antes, refere-se a
uma reflexão sobre a realidade expressa no sentido da cidade.
Abstract
This article aims to understand some expressions
of the metropolis which emerge in everyday use
of space. The starting point is the analysis of the
usage/insertion within the Pilot Plan of Brasilia
for those who somehow break the normatizations
of usage and emerge urban contradictions. It is
necessary to emphasize that we do not analize
the urban plan of Lucio Costa, much less the
unfolding contemporar y urbanization, even
though those elements form the tessitura in our
analysis. We are methodologically reflecting
through practice and knowledge, the reality
expressed towards the meaning of the city.
Palavras-chave: cidade; metrópole; plano urbanístico; reprodução do espaço; urbano.
Keywords: city; metropolis; urban planning; space
representation; urban.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012
Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins
como continuidade-ruptura e passividade-ativi-
Introdução
dade no uso do espaço.
O que dizem tais materialidades especí-
Marcovaldo sonhara o ano inteiro em
poder usar as ruas como ruas, isto é, caminhar no meio delas: agora podia fazê-lo, e também podia passar os semáforos no vermelho, e atravessar em diagonal, e parar no meio das praças. Mas
entendeu que o prazer não era tanto o
de fazer essas coisas insólitas quanto o
de ver tudo de um outro modo: as ruas
como fundos de vale ou leitos secos, as
casas como blocos de montanhas íngremes, ou paredes de escolhos.
Italo Calvino
ficas, contidas nos ritmos e imposições da metrópole7 na cidade brasiliense? O pressuposto é
que, ao mesmo tempo, elas derivam e são derivadas da imbricação do espaço vivido ao espaço produzido e, consequentemente, ao espaço
concebido8 na vida na cidade. Nessa profusão
de ordem-desordem, nesse conjunto-disjunto,
a cidade aparece na relação necessária entre
sociedade e produção do espaço. Espaço em
que desvãos trazem detalhes de um viver que
escapam, posto que colocados lado a lado com
as chamadas “desordens urbanísticas”, mas
que fazem aparecer a cotidianidade na questão
1
Este artigo tem como objetivo analisar
2
algumas expressões da metrópole que emer3
gem no uso e no cotidiano do seu espaço na
espacial. É um espaço cingido por tempos diversos, potência de humanidade e incoerências
típicas da modernidade brasileira.
metrópole. O recorte empírico utilizado corres-
Com referência ao vivido, mediante uma
ponde à prática espacial no Plano Piloto de Bra-
aproximação com a realidade urbana, encon-
4
sília. A provocação da epígrafe mantém conso-
tra-se o sentido da cidade. Nesse contexto, as
nância com o tipo de uso que a grande maioria
expressões da metrópole, ainda que essa seja
dos habitantes5 da cidade de Brasília – o que
analisada em seus avessos, podem ser obser-
não é diferente em outras cidades – deseja, so-
vadas nas moradias existentes nos subsolos
nha e vive no espaço urbano. O sentido do urba-
das quadras comerciais da via W-3 Norte, bem
no, aqui, ultrapassa o modo de produção, pois é
como nas grandes placas propagandísticas,
um modo de consumo em que o pensamento e
que ocultam outro andar, burlando as normas
o sentimento caracterizam, também, um modo
(de gabarito) previstas no ordenamento do
de vida. Simultaneamente a uma lógica capita-
Plano Piloto de Brasília.9 Todas essas expres-
lista que ordena o território, ele dá o sentido e
sões evidenciam a forma como um fundo que
a materialidade às condições de reprodução das
volta à superfície na composição da represen-
relações de produção.
tação urbanística (Virilio, 1993, p. 52). Tais ex-
Configura-se um processo que ultrapassa
os planos urbanísticos – a ordem cartesiana es-
pressões, embora conflituosas, são constituintes da vida.
pacial – e cria rupturas, ainda que cambiantes,
Não se trata de rupturas na cidade
na organização do espaço. E nesse movimento
política, mas de adaptações que mantêm a
a articulação entre plano, preservação e cidade
urdidura do projeto urbanístico, tombado in-
6
acaba por favorecer, no cotidiano, fenômenos
198
trinsecamente, no sentido de habitar a cidade,
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Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso
cujo processo é de tensão, mas costurado de
possibilita elucidar os processos mediadores
concordância. Quais seriam as tessituras des-
imanentes à (re)produção do espaço, extensi-
sa concordância?
vos e imbricados ao sentido de cidade, do mun-
Não são invenções, como referem
do e da vida.
Hobsbawm e Roger (2008), no que diz res-
A consolidação da cidade de Brasília se
peito à construção de tradições. As tessituras
efetiva no contexto da dinâmica da ocupação
mantêm um vínculo com uma formalização no
do território do Distrito Federal e das peculia-
espaço, como é o caso do plano urbanístico
ridades desse processo. Dada essa característi-
de Lúcio Costa, tombado pela Unesco, que
ca, o espaço concebido está sempre sujeito a
permanece como regra. Mas as mudanças nas
um interromper que advém da força do vivido.
destinações do uso sugerem que o espaço é
Por isso, o uso do espaço no Plano Piloto, ao
fim e meio (Lefebvre, 2004, p. 74), em um
longo dos seus cinquenta anos, fornece alguns
movimento da vida que tensiona a racionali-
fios que encaminham a análise para o sentido
dade urbanística.
da cidade contemporânea. O corte é o enten-
As quebras no uso normativo do espaço
dimento da via secundária denominada W-3,10
no Plano Piloto são instigantes, embora não
no caso específico, ruelas contíguas à W-3 Nor-
contradigam os ritmos dessa capital, onde a
te, que fazem parte das quadras denominadas
técnica fixou a fluidez do tempo no espaço. A
70011 e abrigam comércio e serviços com um
utilização do espaço ora o confirma, ora torna-
perfil popular e com “má arquitetura”.12 Nas
-se insurgência. Mas interessa que esse tipo de
faixas das quadras 500, estão edifícios institu-
utilização, tal como ocorre em alguns tipos de
cionais e centros comerciais.
moradia, nega a intencionalidade que contém
Já na W-3 Sul, as quadras 500 encon-
o tempo no espaço como superfície. A moradia
tram-se ocupadas por estabelecimentos comer-
humaniza e cria possibilidades de mudança, o
ciais e as quadras 700, por residências. Esse
que inclui retornar o desvio ao espaço, à sua
comércio na W-3 Sul apresenta características
materialidade em relação ao ritmo do corpo, e
associadas a atividades variadas como bares,
não da mercadoria. Mas quando tal ruptura se
lojas de departamento, butiques, lanchonetes,
dá para ganhos capitalistas, o tempo é tornado
entre outros. Embora com índices de degrada-
permanente, uma simples sucessão de horas
ção urbanística, elas ainda guardam uma tra-
(Virilio, 1993).
dição. Na análise de Brandão (2009, p. 8), tal
Com base em aporte metodológico que
tradição é expressa no uso:
faz uso da observação de formas urbanísticas no recorte indicado, registros fotográficos
permitem uma reflexão, por meio da prática e
pelo conhecimento, sobre a realidade expressa
no sentido de viver na cidade. O fenomênico e
sua articulação nas normatizações urbanísticas e na vida constituem um movimento que
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A W-3 Sul serviu, também, de palco para
as manifestações estudantis, da década
de 1960, porque, segundo depoimento
de um antigo morador, era mais fácil fugir pelas casas das 700 (que ainda não
eram gradeadas) do que pela Praça dos
Três Poderes.13
199
Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins
O uso permitido para ocupação da W-3
social e historicamente construído no âmbito
N, segundo as Normas de Edificação, Uso e
da nação brasileira e também da história do
Gabarito (NGB) 56/89, seria para comércio
lugar, espacializando seus conflitos, suas con-
de bens (abastecimento alimentar: mercado e
tradições e lutas sociais.
supermercado; artigos pessoais e de saúde; artigos eventuais; artigos excepcionais; automotores: peças e acessórios, revendedores de au-
Nas linhas retas
tomóveis, bicicletas e motos); prestação de serviços (financeiros, negócios, profissionais e de
As determinações urbanísticas no Plano Piloto
comunicação); serviços sociais (socioculturais);
da cidade de Brasília constituem os mecanis-
educação (ensino não seriado). A generalidade
mos que formam e tornam a terra raridade. A
da NGB 56/89 não delimita efetivamente o uso
própria concepção do plano de Lúcio Costa,
e a ocupação do espaço então analisado.
com suas divisões setoriais, imensas áreas ver-
No Plano Piloto de Brasília, tais adapta-
des e ideologias, constitui a determinação limi-
ções de sobrevivência tornam-se ainda mais
tante à expansão e ao adensamento urbano,
instigantes, tendo em vista o elevado custo de
que provocam a escassez na oferta de terrenos.
vida e a vigilância ostensiva do poder público e
Essa oferta limitada, lado a lado à transforma-
de algumas entidades de classe, em virtude do
ção do plano urbanístico em patrimônio da
tombamento do seu Projeto Urbanístico. Cha-
humanidade, adiciona a esses terrenos maior
ma a atenção o fato de as ruelas da W-3 Norte
valoração imobiliária. Esses fatores contribuem
serem muito diferentes das ruelas da W-3 Sul.
para a alta valorização dos terrenos e para a
Para Martins (2010, p. 12), “são os simples que
elevação nos custos da produção imobiliária.
nos libertam dos simplismos, que nos pedem a
Consequentemente, também contribuem para
explicação científica mais consistente, a melhor
elevar o valor de venda das projeções, o que
e mais profunda compreensão da totalidade
tende a propiciar a formação de oligopólios e
concreta que reveste de sentido o visível e o in-
a produzir esses terrenos como raridades, co-
visível”. Isso porque os meios de que os “sim-
locando lucro e escassez numa mesma relação
ples” necessitam conquistar para permanecer
e valor de uso apenas alcançado para alguns.
na cidade são muito mais complexos.
A configuração do capitalismo mundial e
A forma urbana concreta resulta tanto
os mecanismos que comandam e regulam seu
das políticas públicas e do planejamento terri-
desempenho fazem surgir novas formas e con-
torial do governo como dos respectivos impac-
teúdos nas cidades, principalmente nas metró-
tos e atos que compõem o cotidiano. Em con-
poles. A busca de rendimentos e de lucrativida-
junto, eles reproduzem a sociedade e o espaço.
de leva os gestores públicos a desenvolverem
A cidade define-se tal qual um produto social,
políticas urbanas no âmbito do empresaria-
como mediação nas relações de produção, por
mento da cidade, semelhantes àquelas obser-
sua capacidade organizativa e como lugar da
vadas nas operações urbanas desenvolvidas
produção de bens, serviços e sentidos. A cida-
nas metrópoles. Por isso que a gestão finan-
de resulta, portanto, de um processo político,
ceira dos negócios desenvolvidos na grande
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Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso
maioria das metrópoles, lado a lado ao setor
(fixo, investido) e do capital variável (salá-
de comércio e serviços de alto valor agregado,
rios)” (Lefebvre, 1973, p. 49). Dessa maneira,
contribui para que partes da cidade recebam
a economia não prescinde da força de trabalho
maiores investimentos do setor público. Essas
barata e de um espaço com características lu-
novidades, segundo Viana (2008), apresentam-
crativas. Inerente a esse, há a heterogeneida-
-se na materialidade do espaço, uma vez que
de apresentada em suas formas e usos. Con-
modificam a divisão do trabalho no conjunto
tudo a dificuldade de explicar as relações que
da sociedade e indicam outra produção espa-
na cidade tornam possível o entendimento de
cial específica para o conjunto dos meios de
partes em seu conjunto é grande. A compreen-
reprodução (do capital e da força de trabalho).
são da realidade urbana requer pensar na vida
No Plano Piloto de Brasília, edificações moder-
cotidiana, substrato da mão de obra, fonte de
nas evidenciam as adequações ao capitalismo
riqueza capitalista. Por ser um tema complexo,
financeiro nas representações das fachadas en-
limita-se aqui a indicar algumas relações pos-
vidraçadas dos imóveis e de produção de espa-
síveis, mesmo que isso possa oferecer riscos
ços para atender a uma classe privilegiada de
de distanciamento dos fatos. Essa análise de-
alto valor aquisitivo.
manda uma unidade nas relações sociais sob
É nesse sentido que afirmamos tratar-se
de formas que guardam o empreendedorismo
o sentido amplo de produção, extensivo ao espaço como mercadoria.14
urbano e que, pelo processo que as constitui,
No que diz respeito à premissa de que a
subsumem o tempo no espaço, tal como defi-
cidade é uma mediação entre forças produti-
ne Lefebvre (2004): tempo permanente posto
vas e as relações de produção,15 o projeto de
em superfície. Vale assinalar que o empreen-
revitalização da via W-3 torna-se significativo.
dedorismo urbano apresenta-se como conjun-
Apesar de esse projeto ainda não ter sido im-
to de ações políticas, econômicas e técnicas
plementado, é interessante notar que, no seg-
para impulsionar o desenvolvimento econômi-
mento Sul e Norte da via W-3, há propostas
co e social nas cidades. Não prescinde, assim,
distintas para sua revitalização. Tais distinções
quer da forma quer de projetos políticos urba-
fazem emergir conteúdos geográficos signifi-
nos que possibilitem a racionalidade da ação
cativos. Vários registros jornalísticos da mídia
capitalista e do uso da técnica, para realizar
impressa e televisiva e próprio texto do proje-
o sentido da urbanização nesse momento de
to de revitalização mostram que, nas quadras
desregulamentação e liberalização dos mer-
700 em especial, do Setor Comercial Residen-
cados pelo modelo de produtividade dado na
cial Norte (SCRN), ocorrem uma significativa
atual mundialização.
deterioração dos prédios e desvio do uso ur-
Entretanto, outras formas de utilização
banístico estabelecido. Esses desvios, já há al-
do Plano Piloto tornam-se possíveis. Mesmo
gum tempo, começaram a ser banidos, com a
porque “todo crescimento econômico pres-
retirada de alguns serviços, como por exemplo
supõe [...], simultaneamente, a reprodução
as lojas de revendas de automóveis.16 Contu-
alargada da força de trabalho e da maquina-
do, permanece ainda a diversidade de servi-
ria, por outras palavras, do capital constante
ços e comércios, lojas de autopeças, oficinas,
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Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins
pousadas, lanchonetes, moradias, bares, entre
aprovaram a criação, ao longo do tempo, de
lixo e edificações, destoantes da “bela arquite-
três séries de blocos de uso misto. A primeira
tura” existente no Plano Piloto.
série de blocos, paralelos à via W-3 Norte, guar-
Atualmente, nas quadras 700 da via W-3
da um padrão semelhante ao comércio central
Norte, há duas categorias de zona urbana, di-
de qualquer grande cidade, se o observador
ferentemente do que ocorre na via W-3 Sul
não estiver atento aos subsolos, cujo uso, em
(Barreto, 2002, p. 37). No segmento norte, ur-
sua maioria, foi modificado para residencial.
banistas do Governo do Distrito Federal (GDF)
Ali, quartos mal ventilados e iluminados, com
Figura 1 – Janela vista do subsolo
Foto: Rosângela Viana, 15 dez 2010.
Figura 2 – Janela vista do plano da rua
Foto: Rosângela Viana, 15 dez 2010.
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Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso
banheiro e cozinha coletivos, são alugados
Embora se perceba a adequação ao pla-
em média a R$750,00 (dólar comercial em
no urbanístico de Lúcio Costa, dada na simila-
R$1,6810). Em registros fotográficos, consta-
ridade e geometria nas construções aí existen-
tou-se haver nesses ambientes grande acúmulo
tes, essa área não recebe atendimento quanto
de lixo, tanto nas ruelas quanto ao fundo das
à prestação de serviços básicos, tal como lim-
janelas protegidas por grades (Figuras 1 e 2)
peza urbana e iluminação pública. O uso tan-
construídas no nível do passeio, para levar um
to para moradia quanto para fins comerciais
pouco de ar aos subsolos.
configura-se por uma ordem na desordem. A
Entre os blocos da primeira e segunda
ordem é expressa pela normatização imposta
série, há uma ruela de circulação utilizada pe-
no plano urbanístico, que se materializa nas
los transeuntes. Nessa “ruela”, além das mo-
construções, ao passo que a desordem se dá
radias no subsolo, verificam-se também casas
contrapondo-se a essa normatização, pelo uso
construí das no nível do passeio e no andar
diferenciado e não previsto.
acima em cada uma da série de blocos. Na se-
Essa permanência de algo que destoa da
gunda série de blocos, especificadamente, en-
norma diz sobre a comercialização de um espa-
contram-se, ainda, diversos estabelecimentos
ço integrado ao capitalismo, mas de outra eta-
comerciais, como restaurantes, lan houses, lan-
pa. Ou seja, uma etapa em que as demandas
chonetes, entre outros. Todos esses elementos
de configurações e mecanismos de acumulação
apontam para emersão, com mais intensidade,
capitalista eram outras, se comparadas à mun-
do avesso das linhas retas de Lúcio Costa.
dialização do capital da década de 1980 até o
A proposta de revitalização sugere a
momento atual. Momento esse caracterizado
criação de circuitos viários, cujo objetivo é
pelo conteúdo do empreendedorismo urbano,
priorizar a passagem dos pedestres de forma
constituído também por projetos de revitaliza-
segura às quadras comerciais e residenciais,
ção e instrumentalização da cultura como for-
bem como forma de coibir que esses espaços
ma de empresariamento da cidade.
sejam utilizados como estacionamentos, a
Mas se a delimitação do Plano Piloto não
exemplo do que ocorre atualmente. No entan-
impediu a consecução do espaço produzido
to, os projetos de revitalização, em geral, não
ora pelas necessidades cotidianas da socieda-
envolvem os moradores desses espaços; pelo
de, tais como pesquisa de campo mostrou, ora
contrário, interferem na sua vida cotidiana
pelas necessidades das realizações capitalistas,
e transformam tais espaços da cidade para o
esses conteúdos redefinem a dialética cidade
negócio. Em contrapartida, é importante res-
versus urbano. Até que investimentos sejam
saltar que os cidadãos envolvidos podem, ou
feitos no sentido de empresariar essa via em
não, organizar-se, aumentando a possibilidade
moldes semelhantes a outras áreas do Plano
de permanência. Dessa maneira, “a luta emer-
Piloto, as formas e aqueles que dela se apro-
ge e se realiza no nível da vida cotidiana – é
priam permanecem. Talvez aí resida um dos
neste plano que percebem, lutam e reivindi-
fios da rentabilidade que o espaço urbano pode
cam” (Carlos, 2001, p. 300).
oferecer por meio da organização do território
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de uma sociedade baseada na produção de
que é preciso desvelar. Segundo Lefebvre
mercadorias. Não importam quais sejam e em
(1991, p. 13), o cotidiano pode ser expresso
que condições. Interessa a funcionalidade do
com sua miséria e sua riqueza, com base em
espaço em correspondência à espacialidade no
acontecimentos aparentemente triviais, ba-
tempo do modo de produção. Não se trata de
nais, mas que possibilitam desvendar a coti-
reduzir a análise para o campo da economia
dianidade, por “apresentar o tempo e o espa-
vulgar, mas de compreender na contempora-
ço ou o espaço no tempo”.
neidade a organização do território para além
Em observação das formas, alguns con-
do discurso da desordem ou caos urbano, pos-
teúdos podem ser inferidos, tendo em vista o
to que as normatizações dadas ao espaço ur-
fenômeno da apropriação por meio do uso
bano, de maneira geral, realizam sua ordem,
diferenciado ao longo das quadras 700, o que
por meio da dramatização da vida cotidiana
torna a ocupação intrigante por duas questões
como desordem.
centrais. A primeira refere-se às condições de
moradia em si; a segunda diz respeito à intensidade de apropriação diversa.
O avesso ou o entrecortar
do uso
A primeira questão indicada remete às
condições de habitabilidade das residências
dos subsolos na primeira e segunda série de
blocos da W-3 Norte, tal como descrito na se-
Tanto a moradia quanto as atividades comer-
ção anterior. Trata-se de espaços, em geral,
ciais e de prestação de serviços, observadas
coletivos, com pouca privacidade para os mo-
ao longo de toda via W-3 Norte, inadequa-
radores e condições de higienização precárias,
das ao plano urbanístico elaborado para
cujos aluguéis são altos, se consideradas as
Brasília, apontam para uma cotidianidade
condições de moradia ofertadas (Figuras 3 e 4).
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Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso
Figura 3 – Interior de moradia do subsolo
Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010.
Figura 4 – Interior de moradia do subsolo
Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010.
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Quanto às residências encontradas na
aumentando um andar na edificação que tam-
terceira série de blocos da W-3 Norte, há de
bém deveria ser apenas comercial. Alguns pro-
se ressaltar as manobras que são feitas pa-
prietários aumentam o número de andares de
ra registro legal desses imóveis. Esses apar-
forma explícita, outros utilizam placas comer-
tamentos, em geral estruturados e alugados
ciais, na tentativa de escamotear a ação irregu-
individualmente, são vistoriados como imóvel
lar, como evidencia a Figura 5.
comercial, porém com estruturas que podem
As condições de moradia nesses apar-
vir a ser adaptadas para o uso residencial, as
tamentos são melhores se comparadas às dos
quais se modificam após a vistoria.
cômodos no subsolo. Mas quando compara-
A segunda questão pode ser observada
das com as condições dos imóveis em geral
também nessa mesma série de blocos, assim
no Plano Piloto, os preços de aluguel são mais
como em alguns edifícios das entrequadras do
acessíveis. Ações como estas, seja as dos em-
Setor Comercial Residencial Norte. São estraté-
preendedores que camuflam irregularidades,
gias usadas para burlar a norma de gabaritos,
seja as dos moradores que resistem às ações
Figura 5 – Ampliação de andar
Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010.
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Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso
segregadoras concebidas por um projeto urba-
população com menor poder aquisitivo, que
nístico, indicam práticas que trazem o avesso
procura por residência e por acesso, ainda que
da cidade de Brasília, que foge ao plano carte-
em condições precárias, aos serviços disponí-
siano em que a (re)produção da vida deve se
veis no Plano Piloto de Brasília. Buscam evitar
adequar às normas. Na ruela entre a primeira e
um uso maior de tempo e de dinheiro com des-
segunda série de blocos, as formas de moradia
locamentos diários para chegar ao trabalho/
e algumas atividades comerciais (academia,
estudo fortemente concentrado no Plano Pilo-
cozinhas industriais, por exemplo) ocupam
to. Para a análise, essa “opção” pela moradia
uma área que, a priori, deveria ser destinada
central evidencia que ao pensamento teórico
a depósitos de mercadorias do comércio que é
está posta a necessidade de compreender a
exercido na superfície (Figura 6).
centralidade, segundo Lefebvre (2008), como
No entanto, ao longo de sua extensão,
parte do direito à cidade, o direito ao urbano
muitas dessas áreas foram transformadas, a
construído a partir da vida cotidiana criativa e
maior parte em espaço de moradia para uma
humanizada.
Figura 6 – Vista posterior de ruela W-3 Norte
Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010.
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O cuidado que cada morador direcio-
No que tange à relação de zelo, um dos
na ao espaço em que vive, ao longo da ruela
principais indicadores de uso desse espaço,
entre a primeira e a segunda série de blocos,
além das casas bem cuidadas na altura do
mostra, por meio das aparências, partes que
passeio – fachadas pintadas, jardins bem tra-
indicam relação de zelo (quadras 711, 710,
tados –, tem-se a arte na rua dada pela pre-
709). Para Lefebvre (2004, p. 81), a relação do
sença dos grafites e a aparente relação de vi-
homem tanto com a natureza quanto com sua
zinhança (Figuras 8 e 9). Aos poucos, o espaço
natureza é mediada pelo habitar. Os elemen-
concebido se transforma, em certa medida,
tos de uma humanização possível estão postos
pelos usos presentes no cotidiano, atravessado
nessa espontaneidade ou mesmo são vestígios
pela vida cotidiana que, por meio de práticas,
de arte e poesia, de reencontro com seus de-
apontam a possibilidade sempre latente de
sejos e seu corpo, ainda que permeados no
humanização do urbano pela apropriação do
vivido obscurecido pelo mundo da mercadoria
espaço ao longo do tempo.
e consequentemente de seu empobrecimento.
O entrecortar do uso indica uma perma-
Em outras partes, identifica-se aparente
nência que traz o avesso da cidade. Ela se dá
degradação, com acúmulo de lixo, principal-
na busca pela sobrevivência em espaços pen-
mente (Quadras 714, 713, 712), como demons-
sados em linhas retas para um público mais se-
tram as Figuras 7 e 8. Estaria esse conjunto de
leto. Ou de um grupo de uma classe específica
fotografias dizendo algo acerca da contradição
de servidores do Estado, uma vez que Brasília,
humana, entre desejo e racionalidade? Mas a
especialmente o Plano Piloto, foi construída
que indagações tais fotografias podem levar?
para ser uma cidade política. Nesses termos,
O que é, afinal, a problemática do habitar e
o discurso normativo – que propugna a inter-
não do habitat reduzido, cindido e esfacela-
venção urbana como forma de sanar a violên-
do, segundo Lefebvre (2004)? O habitar, se-
cia em locais de precária existência material
gundo esse autor, precisa ser analisado como
e fomentar o progresso, pela implantação de
fundamento basilar da sociedade e não como
serviços e obras de infraestrutura – favorece
subordinação e por ele ir para o horizonte pos-
as condições da acumulação capitalista. Im-
sível de nossa humanização. Para entender o
possível negar a acumulação como presença
habitar no contexto em que se torna habitat,
imanente nos projetos de revitalização. Por
é preciso pôr acento no capitalismo. É preciso
isso, devem ser tratadas políticas urbanas que
entender como os homens se inserem e são le-
são, para serem analisadas e debatidas. Isso
vados à sua margem e como nesse movimento
para impedir que se perpetue a privatização
perdem o uso, a cidade na condição de media-
do espaço público e seja possível outro sentido
ção da sua vida no e para o mundo.
na produção do urbano.
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Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso
Figura 7 – Área com forte degradação
Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010.
Figura 8 – Cuidado com a limpeza e aparência da ruela
Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010.
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Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins
Foto 9 – Arte na rua, encontrada em algumas ruelas do recorte em análise
Foto: Rosângela Viana, 15 dez 2010.
Refere-se a um sentido que encontra possibilidades de romper, no processo de
Aproximações ou conclusões
metropolização do espaço, o aprofundamento
O empreendimento analítico que se seguiu
maior e mais amplo que suas significações ma-
teve como objetivo compreender algumas ex-
teriais e mercantis. Onde o retorno ao urbano
pressões da metrópole, que emergem no uso
apenas pode se iniciar pelo dissenso e por ou-
cotidiano do espaço do Plano Piloto de Brasília.
tra maneira de produzir a vida. Consequente-
Espaço esse que é dado nos rompimentos das
mente esses avessos urbanísticos deixariam de
normas urbanísticas ou, tal como se denomi-
ser momento negativo do urbano e criariam,
nou aqui, no avesso urbanístico, que aproxima
de fato, uma ruptura necessária para o envol-
conceitualmente o entendimento da cidade e
vimento da coletividade e de sua humanização.
sua face metropolitana.
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Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso
Evidencia-se a necessidade de compre-
próprias e necessárias àqueles que habitam de-
ensão das velhas e novas contradições, no âm-
terminada cidade e a essas leis devem venerar.
bito das desigualdades, que o espaço em sua
A justiça é o ato de seguir tais leis. Natureza
forma visível apresenta. Esta pesquisa empírica
é tudo aquilo que todos os homens gregos,
trouxe esses elementos da feitura espacial. São
bárbaros e estrangeiros sentem. Por exemplo,
as articulações fundantes do entendimento da
necessidade de respirar, alimentar-se e respirar.
unicidade desse processo. Era conhecido o risco
Nesse sentido, para Antifonte, somos natural-
de o empirismo hipostasiar o sentido da cidade.
mente bárbaros ou gregos uns em relação aos
Tal hipostasia poderia criar uma imagem
outros, por desconhecermos e não venerarmos
cujo conteúdo enfatizasse uma fixação ilusória
as leis daqueles que moram longe.
de interpretação. Para isso, considerem-se as
Os conflitos se dão quando as necessi-
partes do Plano Piloto que negam as normas
dades naturais de cada um se defrontam com
urbanísticas. Nesta pesquisa, trata-se da via
as leis que compõem a justiça. A lição da razão
W-3 Norte, principalmente a ruela e o transbor-
grega aqui trazida nas questões de Antifonte
damento de outros usos e avessos aí contidos,
é que a diferença entre grego e bárbaro é cul-
que poderiam fazer deste artigo uma mera
tural e não uma questão natural. Nessa estei-
descrição. Assim sendo, estar-se-ia retornando
ra, o consenso grego significa obedecer a leis
aos primórdios da ciência descritiva, com uma
que são o sentido da cidade e que ainda assim
simples crítica a uma parte que não “segue” as
produzem conflito: entre direito da cidade e di-
normas urbanísticas. Significaria a velha e sem-
reito da família, entre o universal público e o
pre renovada crítica que todos fazem a Brasília:
universal privado que se aproxima e se articula
“isso aqui não está no plano urbanístico de Lú-
à propriedade. Se existe cidade, ela é definida
cio Costa, fere o Patrimônio”. E nada disso diz
pelo acordo, pela cultura e não pela natureza. A
sobre que cidade-metrópole é esta.
cidade é então definida pelo político. Eis então
Essa postura, além de obscurecer a reali-
o que se compreende como expressões possí-
dade e, portanto, pôr a perder o sentido de pes-
veis da metrópole: o conflito e a contradição si-
quisar o espaço urbano, cria empecilhos a uma
tuados na lógica capitalista do uso e no cálculo
análise possível, mesmo que esta esteja ainda
do útil. E que faz emergir o confronto parado-
em seu início ou seja um esboço dela. A cidade
xal (porque renegado) e contraditório entre a
não pode ser traduzida apenas como traçado
cidade (leis) e a natureza (a qual dela não se
normatizado, ainda que obra de arte, única e
escapa) no edifício das normas constituídas pe-
patrimônio. As semelhanças do entendimento
la verdade urbanística e pelas opiniões que se
dos gregos em relação ao sentido da cidade
tornam una.
podem, talvez, fazer encontrar fios outros na
No âmbito da cidade e assumindo o en-
pesquisa. Tais como aquelas relações criadas
tendimento grego de que ser justo é não pres-
pelo sentido de cidade, de justiça e de nature-
cindir as leis da cidade, pode-se pensar que a
17
za, especialmente em Antifonte.
natureza é tudo aquilo que escapa ao político.
Para esse pensador, quando é preciso
Dessa maneira, as necessidades singulares
estabelecer acordo, um grupo estabelece leis
a cada cidadão, que ultrapassam o simples
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Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins
habitat , como ressalta Lefebvre (2004, pp.
reforçam a representação das grandes cidades
80-81), e cuja vivência encontra-se em toda
na atualidade: o tempo permanente ordenado
sua complexidade, situam-se no campo da
pela arquitetura. Quase como um eterno pre-
natureza. Assim, a maioria das coisas justas,
sente concretizado, sua função pode ser a de
segundo o acordo feito pelo grupo na cidade,
tornar a todos espectadores da cultura do pro-
encontra-se em permanente conflito com a
gresso, absorvendo, assim, até mesmo a critici-
natureza (porque essa dá aos homens dese-
dade em relação ao par contraditório cultura/
jos naturais e por isso inerentes). Em suma, o
progresso. Vale dizer, cultura articula-se à inte-
prescritivo (ordem urbanística) sobre o neces-
riorização de valores comuns a todos. Portanto,
sário (vivência concreta do ser) nada mais é
difere do conteúdo de mudança que o progres-
que a lei do cidadão e a lei do homem. Nes-
so realiza, posto que é movimento.
sa torção (ou seria um deus ex machina?) em
Mas os avessos urbanísticos ainda assim
que o fundo volta à superfície na composição
permanecem. A concordância dessa permanên-
da cidade-metrópole, tem-se as partes difra-
cia reside na manutenção de uma arquitetura
tadas no seu espaço.
que, apesar de ser de “má qualidade”, não cria
Pode-se compreender o espaço de re-
confrontos. Antes, reforça adesões à formaliza-
presentação como o transgredir a norma urba-
ção do espaço produzido. De certa maneira, é
nística no limite do tombamento. É do exterior
praticamente possível afirmar que os avessos
(aqui Plano Piloto) que provém a necessidade
urbanísticos presentes na W-3 Norte são e es-
de aqui permanecer e se submeter a tais condi-
tão implicados em uma espécie de consonân-
ções. Por isso, no intuito de escamotear o con-
cia dada pela própria vida e suas urgências.
flito, uma vez que esse traz em si a separação
Desse modo, o discurso da degradação urbana
na sociedade pela constatação de um modo
joga com a culpa e com a opinião pública. A
único de vida, a representação do espaço (es-
presença dos avessos urbanísticos se dá pela
paço concebido dado pelo plano urbanístico e
existência de necessidades das pessoas quan-
normatizado) produz e reproduz concepções
do em coletividade, não de um mando político
urbanas que fragilizam o fazer político.
e menos ainda das leis da cidade. O discurso
Esse fazer político permite o avesso do
destrói a culpabilidade do poder público de sua
plano urbanístico. Não parece ser estranho isso
organização do território para a lógica mercan-
numa capital onde os ritmos e a técnica am-
til. É dessa maneira que o processo de urbani-
pliaram a fluidez do tempo no espaço? Sim e
zação produz e reproduz espaços diferenciados
não. Se a cidade é ligada às forças produtivas e
na metrópole, sob os auspícios de uma verdade
à formação da mais-valia, isso explica o espaço
que brotou das banalidades da vida, das opi-
adequado a um tempo acelerado que permite
niões públicas e das formas reconhecidas, para
a realização da mercadoria. Concomitantes a
preservar a áurea de cultura no movimento do
essa velocidade, as construções no Plano Piloto
progresso de que a cidade é assim tecida.
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Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso
Rosângela Vieira Neri Viana
Doutoranda em Geografia na Universidade Federal de Goiás. Goiânia, Goiás, Brasil.
[email protected]
Karla Christina Batista de França
Doutoranda em Geografia na Universidade de Brasília. Distrito Federal, Goiás, Brasil.
[email protected]
Ananda de Melo Martins
Msc. em Geografia da Universidade de Brasília. Distrito Federal, Goiás, Brasil.
[email protected]
Notas
Este ar go, escrito a seis mãos, tem como colaboradores-pesquisadores os graduandos em geografia
Leonardo Rocha de Castro e Tiago Sampaio, cujo auxílio foi imprescindível na coleta de dados
empíricos.
(2) O uso do termo “expressões” não significa o desprezo aos processos mediadores imanentes à (re)
produção do espaço extensivos e imbricados ao sen do de cidade, do mundo e da vida. Mas
como algo fenomênico que ar cula o plano da vida ao ins tuído e também às representações
(Carlos, 2001).
(3) Trata-se, neste momento, do co diano capturado e submerso nas funções corriqueiras do dia a
dia, cuja dimensão, ainda que alienada às necessidades da sobrevivência norma zada, pode dar
indica vos importantes à análise, tendo em vista que, de acordo com Damiani (2002, p. 161),
o co diano apresenta diversos níveis de alienação e “envolve outros momentos da vida social,
além do trabalho, sob sua lógica, momentos que já não são alheios, ingênuos à reprodução do
capitalismo”.
(4) Vesentini (1985, p. 107) afirma que “Brasília é uma só cidade, do Plano Piloto às cidades
satélites”. O Plano Piloto não exis ria sem as cidades satélites – atualmente designadas Regiões
Administra vas – e essas só existem em virtude do plano proposto para a construção da capital.
(5) Vale-se aqui da definição de Lefebvre (2004, pp. 80-81) para habitantes, que não restringe os
homens aos atos elementares de sobrevivência, e sim de vivência concreta.
(6) Para Lefebvre (1991, p. 35), a noção de co diano não possui sen do fora das contradições do
processo histórico. Nesses termos, ao caracterizar a sociedade em que se vive, compreende-se a
co dianidade como o co diano situado nas relações do mundo.
(7) As preocupações teóricas envolvem, para além do sentido da cidade contemporânea, o
entendimento da definição metrópole: “Desse modo, a análise da metrópole se revela na
simultaneidade e mul plicidade de lugares que se justapõem e interpõem, gerando situações de
conflito, mas também revelando em seus fragmentos o mundo do vivido” (Carlos, 2001, p. 50).
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Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins
(8) As noções de espaço concebido, produzido e vivido derivam das análises de Penna (2000, p. 13),
a par r da obra de Lefebvre. Respec vamente, relacionam-se à “representação do espaço”
(às deliberações sobre o espaço), à “prá ca espacial” (diz sobre a produção e reprodução das
formas sicas no espaço) e ao “espaço de representação” (a prá ca co diana em que o valor de
uso permeia qualita vamente seu significado e abre possibilidades de insurgências).
(9) No Plano Piloto em Brasília, em virtude de sua concepção urbanís ca, em que os prédios são
erguidos sobre pilo s, vendem-se projeções e não terrenos, uma vez que as áreas térreas dos
prédios devem permanecer abertas para a livre passagem de todos. Tanto a altura dos prédios
quanto a localização e a função foram estabelecidas no Projeto de Lúcio Costa. Aprofundam-se
essas questões ao longo deste ar go.
(10) A des nação inicial dessa via consta no Relatório Lúcio Costa: “Ao fundo das quadras estende-se
a via de serviço para o tráfego de caminhões, des nando-se ao longo dela a frente oposta às
quadras, à instalação de garagens, oficinas, depósitos do comércio em grosso etc., e reservando-se uma faixa de terreno, equivalente a uma terceira ordem de quadras, para floricultura, horta
e pomar. Entaladas entre essa via de serviço e as vias do eixo rodoviário, intercalam-se então
largas e extensas faixas com acesso alternado, ora por uma, ora por outra, e onde se localizaram
a igreja, as escolas secundárias, o cinema e o varejo do bairro disposto conforme a sua classe ou
natureza. O mercadinho, os açougues, as vendas, quitandas, casas de ferragens, etc., na primeira
metade da faixa correspondente ao acesso de serviço; as barbearias, cabeleireiros, modistas,
confeitarias etc., na primeira seção da faixa de acesso priva va dos automóveis e ônibus, onde
se encontram igualmente os postos de serviço para venda de gasolina. As lojas dispõem-se em
renque com vitrinas e passeio coberto na face fronteira às cintas arborizadas de enquadramento
dos quarteirões e priva vas dos pedestres, e o estacionamento na face oposta, con gua às vias
de acesso motorizado, prevendo-se travessas para ligação de uma parte a outra, ficando assim
as lojas geminadas duas a duas, embora o seu conjunto cons tua um corpo só ”.
(11) As quadras residenciais do Plano Piloto de Brasília estão dispostas ao longo do Eixo Rodoviário
Norte e Sul que percorre toda a extensão das duas asas – Asa Norte e Asa Sul. As quadras que
se localizam a oeste do Eixo têm como endereçamento as centenas ímpares (Quadras 100, 300,
500, 700 e 900). Já as quadras que se localizam a leste do Eixo são numeradas pelas centenas
pares (Quadras 200, 400, 600 e 800).
(12) Segundo Lúcio Costa, no “Plano de Preservação do Conjunto Urbanís co de Brasília”, do livro
Brasília 57-85, p. 123, item 3.1. Disponível em: <h p://www.semarh.df.gov.br/005/00502001.
asp? CD_CHAVE=15836>. Acesso em: 28 nov 2010.
(13) Ar go disponível em: <h p://www.docomomo.org.br/seminario%208%20pdfs/189.pdf>. Acesso
em: 2 dez 2010.
(14) Em relação ao espaço como mercadoria, ver a dissertação in tulada A (re)produção do espaço
como mercadoria: Pólo 3 - Projeto Orla extensões-latências (Viana, 2008).
(15) Com a ciência de que esta ar culação entre forças produ vas (meios de produção e força de
trabalho) e relações de produção (propriedade econômica das forças produ vas) possui ampla
controvérsia no pensamento marxista, adota-se aqui a análise de Cohen (1978, especialmente
o capítulo II).
(16) Esses estabelecimentos foram transferidos para um novo local denominado Cidade dos
Automóveis.
(17) Cassin (1993) evidencia uma tradução possível de um autor grego cuja identidade ainda se
discute.
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Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso
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Texto recebido em 30/out/2011
Texto aprovado em 10/dez/2011
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O planejamento urbano e as enchentes
em Dourados: a distância entre
a realidade e a legalidade
Urban planning and flooding in Dourados:
the distance between reality and legality
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski
Maria Aparecida Martins Alves
Luciana Ferreira da Silva
Joelson Gonçalves Pereira
Resumo
As enchentes urbanas estão presentes na realidade de grande parte das cidades brasileiras. Oriundas do desenvolvimento desordenado e da falta
de planejamento, transformam-se em grandes desafios para os gestores, pois necessitam conciliar
desenvolvimento com gestão ambiental do meio
urbano. Este artigo apresenta um olhar sobre o
panorama das enchentes no município de Dourados-MS, suas implicações, as medidas de controle
empregadas pelo poder público e a necessidade de
uma gestão integrada.
Abstract
Urban flooding is present in the reality of a large
number of Brazilian cities. The result of disorderly
development and lack of planning turns into
a challenge for administrators, however we
need to agree on development with urban
environment planning in mind. This article looks
at a panorama of fl ooding in the municipality of
Dourados, MS, Brazil, its implications, control
measures by the public powers and the need for
integral planning.
Palavras-chave: enchentes urbanas; planejamento urbano; Dourados; crescimento populacional; legislação.
Key words : urban flooding; urban planning;
Dourados; populational growth; legislation.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.
Introdução
do escoamento superficial e a magnitude e
O crescimento populacional, as mudanças nos
dialmente para a redução do potencial de pre-
padrões produtivos e de consumo ao longo dos
juízos consequentes das inundações abrange
últimos anos redefiniram o estado das águas,
medidas de planejamento, ações construtivas,
do solo, do ar, da fauna e flora e as condições
operacionais e políticas. Trata-se de um conjun-
socioambientais dos assentamentos urbanos.
to de medidas preventivas e de métodos que
O planejamento urbano, embora envolva fun-
visam à minimização de prejuízos, caso ocorra
damento interdisciplinar, na prática se realiza
uma catástrofe. Os exemplos internacionais
no âmbito mais restrito do conhecimento e
demonstram de forma inequívoca que obras
não tem considerado aspectos fundamentais,
fluviais de proteção e controle de cheias torna-
gerando grandes transtornos e custos para a
ram-se desacreditadas e que soluções univer-
sociedade e para o meio ambiente.
sais inexistem (Frank, 1995).
frequência das enchentes.
O espectro das medidas aplicadas mun-
No geral, as cidades brasileiras cresce-
Nos países desenvolvidos, o abasteci-
ram sem o devido planejamento, fato que traz
mento de água, o tratamento de esgoto e o
aos gestores um custo muito elevado que se
controle quantitativo da drenagem urbana
faz sentir em todo o aparelhamento urbano.
estão resolvidos por meio de mecanismos de
Como a maioria dos municípios brasileiros está
investimentos e legislação, que obrigam a po-
próxima aos vales e margens dos rios, tornam-
pulação a controlar na fonte os impactos de-
-se fundamentais o planejamento, a legislação
vidos à urbanização. No entanto, os países em
e a fiscalização por parte dos governos munici-
desenvolvimento ainda estão muito aquém
pais para diminuir os riscos e danos causados
dessa realidade (Tucci, 2004).
por desastres naturais, como os decorrentes
O Brasil passou por profundas transfor-
das inundações (Secretaria Nacional de Defesa
mações econômicas, sociais e ambientais nas
Civil, 2011).
últimas décadas, que resultaram em grande
As inundações são classificadas por
pressão sobre os recursos naturais, tanto pe-
Tucci (2001) como enchentes em áreas ribei-
lo aumento da demanda, quanto pelas novas
rinhas ou decorrentes do processo de urba-
modalidades de uso. No processo de desenvol-
nização. Nas áreas ribeirinhas trata-se de um
vimento, o crescimento populacional e a urba-
evento natural em que a água escoa do leito
nização sem planejamento trouxeram implica-
menor para o leito maior de rios, riachos e
ções significativas ao ambiente urbano. Even-
córregos. O impacto verificado neste evento
tos da mais variada ordem resultam da falta de
é devido à ocupação do vale de inundação
planejamento e, dentre estes, estão as enchen-
em períodos de estiagem ou de sequência de
tes que, independentemente de sua magnitude,
anos secos. Já as inundações que decorrem do
alteram toda a fisiologia e a dinâmica urbanas.
processo de urbanização têm sua origem na
A prática de planejamento do uso e con-
ocupação e impermeabilização do solo que
servação dos recursos hídricos foi destacada
promovem aumento no volume e velocidade
pelo governo federal na Lei nº 9.433, de 1997,
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados
que institui a Política Nacional de Recursos Hí-
Em Dourados, o crescimento desor-
dricos e o Sistema Nacional de Gerenciamen-
denado, a falta de planejamento urbano e
to de Recursos Hídricos. As quais representam
os assentamentos em áreas impróprias são
um significativo avanço ao criar um sistema de
os fatores condicionantes de uma realidade
gerenciamento descentralizado e participativo,
vivida por parte da população urbana, que
em que a bacia hidrográfica é considerada co-
tem sido vítima sistemática da ocorrência
mo a unidade territorial básica de implementa-
de inundações.
ção desta política (Bonn, 1997).
O processo de urbanização do município
A política estabelece, ainda, como
de Dourados teve início com o apoio de iniciati-
ação do Poder Público, na esfera dos Poderes
vas governamentais e privadas de loteamento
Executivos Federal, Estaduais e do Distrito Fe-
rural na forma de colônias, com pensamento já
deral, a promoção da integração da gestão de
fixado na produção em escala, para a comer-
recursos hídricos com a gestão ambiental; e,
cialização num centro político-administrativo e
no caso dos municípios e do Distrito Federal, a
comercial (Calixto, 2004).
integração das políticas locais de saneamento
A elevada propagação da lavoura me-
básico, de uso, ocupação e conservação do solo
canizada na região de Dourados desencadeou
e do meio ambiente com as políticas federal e
transformações profundas no arranjo da es-
estaduais de recursos hídricos (Schubart, 2000).
pacialização da população, afetando tanto o
Quanto ao uso do solo, a Constituição
meio rural, quanto o urbano. A expansão do
Federal, em seu Artigo 30, delega essa respon-
novo sistema agrícola determinou uma profun-
sabilidade ao município. Porém, os estados e a
da inversão demográfica que se manifestou no
União podem estabelecer normas para o dis-
esvaziamento do campo e a consequente ur-
ciplinamento do uso desse atributo visando à
banização acelerada (Terra, 2004).
proteção ambiental, controle da poluição, saú-
Essa nova perspectiva elevou as taxas
de pública e segurança (Brasil, 1988). Dessa
de ocupação humana no município; no entan-
forma, observa-se que, no caso da drenagem
to, esse fenômeno se deu de forma desordena-
urbana que envolve o meio ambiente e o con-
da e sem nenhum planejamento e gestão am-
trole da poluição, a matéria é de competência
biental. Dourados, assim como outras cidades
concorrente entre Município, Estado e Fede-
brasileiras, respondeu às correntes migratórias
ração. A tendência é dos municípios introdu-
através das determinantes sociais e econômi-
zirem diretrizes de macrozoneamento urbano
cas, e a população mais pobre se dirigiu para
nos seus Planos Diretores, incentivados pelos
os espaços menos desejados, como as regiões
Estados (Tucci, 2004). É por meio do Plano
de fundo de vale (Alves, 2001).
Diretor que emerge/surge a oportunidade de
Diante desse cenário, o presente traba-
os municípios identificarem as áreas de risco
lho se propõe a identificar os principais proble-
e estabelecerem regras quanto à urbanização
mas ocasionados pelas inundações em Doura-
nessas localidades.
dos/MS, e suas inter-relações setoriais.
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Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.
Metodologia
Para o desenvolvimento deste trabalho, foi realizado o levantamento bibliográfico sobre o
tema e da legislação que compõe o arcabouço
legal do município que ampara a tomada de
decisão do poder público quanto a gestão urbana. Os dados sobre a pluviosidade, durante
os anos de 2009, 2010 e parte de 2011, foram
obtidos junto ao laboratório de meteorologia
da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa CPAO.
Para obter informações sobre a ocorrência de inundações e seus efeitos para o município de Dourados, foram elaborados questionários estruturados com questões abertas,
desenvolvidas especificamente para cada um
dos seguintes órgãos: Defesa Civil Municipal,
Secretarias Municipais de Meio Ambiente, de
Saúde e de Planejamento e Conselho Municipal
de Defesa do Meio Ambiente – Comdam. As
Secretarias Municipais de Meio Ambiente e de
Saúde não responderam os questionários.
estão os córregos Jaguapiru, Laranja Doce,
Água Boa, Rego D’água, Paragem, Chico Viegas,
Olho D’água (Dourados, 2003).
A Lei Orgânica do município de Dourados
prevê a proteção ao meio ambiente, a promoção de programas de construção de moradias
e melhoria das condições habitacionais e de
saneamento básico, bem como o combate às
causas da pobreza e fatores de marginalização,
promovendo a integração social dos setores
desfavorecidos. Além disso, seu Plano Diretor
traz em suas diretrizes o controle do processo
da urbanização para possibilitar o equilíbrio
entre a população urbana e rural e o ambiente,
de acordo com os limites de sua competência
(Dourados Geo, 1990).
Segundo os princípios da política urbana municipal e territorial, considera-se que a
propriedade urbana cumpre sua função social
quando atende as exigências fundamentais de
ordenação da cidade (Dourados, 2003).
O atendimento aos interesses dos cidadãos é assegurado quando, simultaneamente,
a propriedade tiver aproveitamento para atividades urbanas compatíveis com os equipa-
Dourados: características
urbanas e legislação
mentos urbanos, ao preservar a qualidade do
meio ambiente e não prejudicar a saúde e a
segurança de seus usuários e da vizinhança e
quando não se encontrar subutilizada ou uti-
Dourados é o segundo maior município de
lizada de maneira especulativa e irracional
Mato Grosso do Sul, com uma área territorial
(Dourados, 2003).
de 4.086,244 km2 e com uma população de
Todo loteamento deve ser previamente
196.035 habitantes, dentre os quais 92,36%
submetido à Prefeitura Municipal, para estu-
concentram-se na área urbana. O município está
do de viabilidade e aprovação, amoldando-se
a uma altitude de 430 metros, situando-se no
às exigências da legalidade e da saúde públi-
divisor d’água entre as bacias dos rios Brilhante
ca, além de obedecer às regras relativas ao
e Dourados, com solo de origem basáltica,
zoneamento e às edificações, assim como aos
mais conhecido como latossolo (Gressler e
parâmetros definidos em cada instrumento le-
Swensson, 1988; IBGE, 2010). Na área urbana
gal, seja por lei ou regulamento. Entende-se por
220
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados
zona essencialmente urbana aquela já loteada
Além disso, o Código de Obras orien-
e que tenha sido beneficiada por serviços pú-
ta os projetos e a execução de edificação no
blicos, e por zona não essencialmente urbana
município, assegura a observância de padrões
aquela compreendida nos limites urbanos, po-
mínimos de segurança, higiene, salubridade e
rém em fase de expansão (Dourados, 1979b).
conforto das edificações de interesse para a
A aprovação de projetos de loteamento
em terrenos baixos e alagadiços está condi-
comunidade e promove a melhoria desses em
todas as edificações de seu território.
cionada à execução de obras de drenagem e
O uso e a ocupação do solo são defini-
aterragem, por parte do loteador. Nos lotea-
dos pela lei complementar n° 008, de novem-
mentos, as áreas de fundos de vales e onde
bro de 1991, que dispõe sobre o zoneamento
haja vegetação de porte devem ser respeitadas.
de uso do solo e do sistema viário municipal
As áreas verdes não podem ser loteadas e as
em que constam os critérios estabelecidos
edificações nestes locais só são permitidas em
para os loteamentos e arruamentos em qual-
casos especiais, conforme a Lei de Zoneamento
quer nível, as edificações, obras e serviços pú-
(Dourados, 1979a).
blicos ou particulares, de iniciativa ou a cargo
A execução de obras e edificações em
de quaisquer empresas ou entidades, mesmo
loteamentos sem aprovação oficial fica sujeita
as de direito público, dependendo as constru-
à interdição administrativa e demolição, sem
ções de prévia licença da Administração Muni-
prejuízo das demais cominações legais. A Pre-
cipal (Dourados, 1991).
feitura Municipal pode, ainda, promover o re-
Segundo a lei municipal de uso do solo,
loteamento de áreas já loteadas, para melhor
fundo de vale é a faixa não edificável no sen-
aproveitamento e enquadramento no zonea-
tido de proteção aos cursos de água, cuja lar-
mento de uso do solo (Dourados, 1979a).
gura tem no mínimo cinquenta metros em cada
Instituído em 1979 pela Lei nº 1.067, o
margem, inclusive áreas alagadiças. As áreas
Código de Posturas de Dourados dispõe sobre
de fundo de vale dos loteamentos são de domí-
as relações de polícia administrativa entre o
nio do poder público e cabe a esse regulamen-
Poder Público Municipal e os munícipes.
tar seu uso (Dourados, 1991).
Entretanto, as construções e reformas,
Dourados também possui uma Política
efetuadas por particulares ou entidades pú-
Municipal de Meio Ambiente, conhecida como
blicas, a qualquer título, são reguladas pela
Lei Verde, instituída pela Lei Complementar n°
lei municipal nº 1.391 (Código de Obras), de
055, de dezembro de 2002, que objetiva manter
1986, além de obedecerem às normas federais
o meio ambiente equilibrado, através do desen-
e estaduais relativas à matéria, bem como a
volvimento socioeconômico orientado em bases
Lei Municipal nº 1.040, de 1979, e legislações
sustentáveis. Para tanto, em seus princípios es-
complementares. Esta lei complementa as exi-
tão o planejamento e a fiscalização do uso dos
gências de caráter urbanístico estabelecidas
recursos naturais, a gestão do meio ambiente
por legislação municipal que regula o uso e a
com a participação da sociedade nos processos
ocupação do solo e as características fixadas
decisórios sobre o uso dos recursos naturais e
para a paisagem urbana.
nas ações de controle e de defesa ambiental.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
221
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.
O município, de acordo com a Lei Verde,
deve adotar normas relativas ao desenvolvi-
Resultados e discussão
mento urbano que levem em conta a proteção
ambiental, estabelecendo dentre as funções
A Defesa Civil de Dourados realizou, por exi-
da cidade, prioridade para aquelas que deem
gência da Lei Federal n° 12.340, um trabalho
suporte, no meio rural, ao desenvolvimento de
de monitoramento no município no primeiro
técnicas voltadas ao manejo sustentável dos
semestre de 2011 com apoio da Secretaria
recursos naturais cerceando os vetores de ex-
Municipal de Serviços Urbanos – Semsur, do
pansão urbana em áreas ambientalmente frá-
Planejamento, Assistência Social e Habitação,
geis ou de relevante interesse ambiental (Dou-
com a finalidade de mapear as áreas de risco
rados, 2002).
e monitorar os danos provocados por desastres
Além disso, esta Lei estabelece a necessidade de programas permanentes de implan-
naturais e socorrer as famílias que moram nestas áreas (Dourados Agora, 2011).
tação e manutenção da política de saneamen-
O levantamento exigiu a criação de uma
to básico, de preservação das áreas protegidas
comissão técnica de caráter multidisciplinar
do Município e a criação de outras necessárias
(Mídia MS, 2011), com o objetivo de reivindi-
ao equilíbrio ecológico e ao bem-estar da po-
car recursos do Estado e da União para drenar
pulação, com ênfase para as áreas de manan-
as áreas de risco de inundações e garantir a se-
ciais e para a recuperação dos corpos hídricos
gurança das famílias ribeirinhas (Lange, 2011).
poluídos ou assoreados e sua mata ciliar (Dou-
Conforme informações do coordenador
rados, 2002).
da Defesa Civil de Dourados, o município sofre
Para tanto, as áreas de proteção aos
sistematicamente com inundações em períodos
mananciais devem ser demarcadas pelo poder
chuvosos. De acordo com o levantamento, fo-
público através de lei específica e considerar
ram identificados 20 pontos do perímetro urba-
as ocupações e usos já existentes, as restri-
no sujeitos a alagamentos (Tabela 1) e, atual-
ções são impostas pelo zoneamento quanto
mente, cerca de 600 famílias, aproximadamen-
aos usos mais intensivos, bem como índices
te 2.500 pessoas, vivem em áreas de risco, às
de impermeabilização do solo e coeficientes
margens de córregos, e precisam ser removidas
de ocupação máxima para cada propriedade
com urgência para regiões mais seguras (Mídia
(Dourados, 2002).
MS, 2011).
O Poder Público Municipal pode estabe-
De acordo com as informações obtidas,
lecer consórcios intermunicipais para a recupe-
as áreas consideradas com risco de inunda-
ração e preservação das bacias hidrográficas,
ção em Dourados localizam-se às margens dos
para tanto deve elaborar um programa prio-
córregos Rego D’água, Paragem, Laranja Doce
ritário para a recuperação das matas ciliares
e Água Boa. Como esses mananciais cortam
consideradas pelo Código Florestal como áreas
diversos bairros, uma das regiões mais atingi-
de preservação permanente, a despoluição e a
das por inundação ainda é o grande Cachoei-
descontaminação dos corpos hídricos nas Áreas
rinha, o que corrobora com os resultados en-
de Proteção aos Mananciais (Dourados, 2002).
contrados por Alves (2001) e com a ocorrência
222
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados
Tabela 1 – Localização dos pontos de alagamentos
ocorridos devido a enxurradas ou inundações bruscas
em Dourados e distribuição de pessoas atingidas
Região de
Dourados
Subdivisão da
Defesa Civil
Pontos de
alagamento
Noroeste
Setor 1
1
Norte
Setor II
2
Nordeste
Sudoeste
Sul
Sudeste
Setor III
Setor IV
Setor V
Setor VI
6
5
4
2
Bairros atingidos
Localidades/ruas dos bairros atingidos
Moradias
afetadas
Aurora Augusta e Cornélio Cerzósimo
de Souza
8
I - Jardim Monte Líbano
Ivinhema e Dom João VI
25
II - Jardim dos Estados*
Hiran P. de Mattos, Maria da Glória e
Antonio A. de Mattos
15
I - Jardim Santa Herminia
Caburé
1
II - Residencial Caiman
Oliveira Marques, Ciro Mello, Projetada
“D” e Projetada “E”
16
Chácara Flora
III - Residencial Pantanal
Rua das Garças e João Vicente Ferreira
4
IV - Vila Nova Esperança
Jateí
8
V - Jardim Pelicano*
Continental e Rua “N”
80
VI - Jardim Santa Maria
Joaquim de Barros
4
I - Vila Cachoeirinha
Bolívar L. Rocha, José Martins, Manoel
J. da Silva, Projetada C08C, Projetada
C10C e General Osório
219
II - Vila N. Sra. Aparecida
Apepinos, Corredor 01 e Bolívar L.
Rocha
20
III - Vila Bela
Miguel Luiz de Oliveira
19
IV - Jardim Clímax
Joaquim Távora, Cuiabá e Afonso Pena
69
V - Jardim Londrina
Avenida da Liberdade
10
I - Jardim Santo André
Humaitá
5
II - Jardim Colibri
Rua das Ingazeiras, das Jaqueiras e das
Mangueiras
10
III - Jardim Água Boa
Vinte de Dezembro e Mato Grosso
17
IV - Jardim Guaicurus
Rodovia MS 156
32
I - Jardim do Bosque
Projetada 05
8
II - João Paulo II
Vereador Ataulfo de Mattos, Jaime
Moreira, João Borges e Antonio do
Amaral
22
Fonte: Defesa Civil Municipal, Dourados, 2011.
* Bairros que também sofreram desastres naturais de causa eólica além de alagamentos devido a enxurradas ou inundações
bruscas.
de atendimentos realizados pela Defesa Civil,
Boa, onde suas águas ocupam o leito maior
que se concentraram nos bairros Vila Cachoei-
com a precipitação. Esse evento é agravado
rinha, Jardim Pelicano, Jardim Clímax e Jardim
pela impermeabilização do solo à montante
Guaicurus em que foram atendidas respectiva-
que acelera o escoamento superficial e inten-
mente 219, 80, 69, 32 moradias.
sifica a magnitude de inundação em períodos
A incidência de inundações no bairro Vila
chuvosos. Outro fator importante é a existência
Cachoeirinha decorre primeiramente da dinâ-
de moradias às margens de ambos os córre-
mica natural dos córregos Rego D’água e Água
gos muito próximas do leito maior, bem como
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
223
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.
o acúmulo de resíduos às suas margens que
pois é no verão que a ocorrência de tempesta-
ganham as águas facilmente e contribuem pa-
des e chuvas bruscas, de grande intensidade
ra o estrangulamento de seu curso em pontos
e curta duração, contribuem para a incidência
estreitos e seu consequente transbordamento.
de inundações.
No Jardim Pelicano, as inundações decor-
Na Tabela 2, encontram-se os valores
rem de fatores como declive e velocidade da
para temperatura, umidade relativa do ar, ve-
água das chuvas que avolumam as enxurradas.
locidade do vento e pluviosidade, onde é possí-
No Jardim Clímax, as inundações resultam do
vel observar que a ocorrência dos períodos de
aumento do volume das águas pluviais que
maior pluviosidade está concentrada nos me-
chegam ao córrego Água Boa por meio de ga-
ses chuvosos que vão de janeiro a março e de
lerias e contribuem para seu transbordamento.
outubro a dezembro. Porém, no ano de 2009, a
Neste local, encontra-se o assentamento popu-
chuva foi intensa nos meses de julho e agosto,
larmente conhecido como “Favela do Jardim
caracterizando um ano atípico de inverno chu-
Clímax”, onde as moradias muito próximas das
voso. Em 2010 e parte de 2011, a ocorrência de
galerias de águas pluviais são afetadas pelas
chuvas foi típica para a região, com delimitação
inundações em períodos chuvosos.
clara dos períodos de seca e chuva.
Para o Conselho Municipal de Defesa do
Outro problema no município são
Meio Ambiente – Comdam, atualmente o maior
os lotea mentos irregulares em áreas de
problema relacionado às inundações em Doura-
preservação ambiental, localizados ao lon-
dos concentra-se nas margens do Córrego Rego
go do Córrego Paragem e na região do alto
D’água, principalmente, na “Favela do Jardim
e médio Córrego Laranja Doce que eventual-
Clímax”, dados que corroboram as informações
mente sofrem com inundações.
obtidas junto à Secretaria Municipal de Plane-
De acordo com a Secretaria Municipal
jamento. Esta ocupação irregular teve início na
de Planejamento, em algumas das áreas de
década de 1970 e persiste até os dias atuais. O
risco, como ao longo do Córrego Paragem,
poder público municipal elaborou um projeto
na região do Cachoeirinha e do Clímax, já
para a construção de casas populares destina-
houve a remoção dos invasores para conjun-
das a essas famílias e o incluiu no PAC – Progra-
tos habitacionais populares construídos para
ma de Aceleração do Crescimento do Governo
essa finalidade. Entretanto, houve reinvasão
Federal em 2007. As casas estão sendo construí-
por novos moradores que, muitas vezes, são
das no prolongamento do Jardim Flórida. Con-
familiares dos primeiros invasores. Isso de-
tudo, com atrasos no cronograma desde 2009,
monstra que os instrumentos de controle so-
a cada chuva, as famílias que ali se encontram
cial, de regulação e de fiscalização não estão
continuam sofrendo com as inundações.
atuando de forma eficaz, quadro que repre-
Segundo a Defesa Civil Municipal, os
senta um aspecto negativo para o município,
principais períodos em que ocorrem os even-
uma vez que o programa do Governo Federal
tos mais significativos de cheias e alagamen-
para solucionar este tipo de problema não
tos estão entre os meses de outubro a março,
contempla reinvasão.
224
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados
Tabela 2 – Médias mensais de temperatura (T),
umidade relativa do ar (UR), umidade relativa máxima do ar (UR max),
umidade relativa mínima do ar (UR min), velocidade do vento (V. Vento)
a dois metros e o total da precipitação, de janeiro de 2009 a junho de 2011
Ano
2009
Vel. vento
(m/s)
Precipitação
(mm)
60,21
1,81
194,4
55,7
1,27
80
99,22
57,33
0,88
56,4
99,57
66,14
1,91
55,4
84,43
99,86
66,43
1,32
52,1
80,75
99,67
73,58
1,13
124,2
93,88
100
77,25
1,38
140,18
82,29
98,14
57,71
1,63
49,1
23,17
86,7
98,9
65,5
1,66
241,1
26,21
82,92
97,5
57,67
1,94
238,6
Mês
T (ºC)
UR (%)
UR max. (%)
UR min. (%)
janeiro
24,36
85,07
99,50
fevereiro
24,94
86,3
99,6
março
24,94
85,33
maio
19,87
87,71
junho
19,57
julho
16,71
agosto
18,09
setembro
22,49
outubro
novembro
dezembro
24,7
83,5
94,93
56,79
1,42
337,9
janeiro
24,88
83,63
95
59,56
1,36
39,6
fevereiro
24,92
82,46
95,15
54,77
1,39
217,4
março
25,08
78
95,67
46,17
1,68
91,0
abril
23,07
86,67
96
62
1,68
24,2
maio
18,27
84,43
96,43
63,29
1,92
161,4
junho
21,1
84
96
63
1,38
2,0
julho
13,55
81
95
65,5
1,73
49,8
agosto
14,65
87,5
96
70
1,45
35,8
setembro
19,96
86,38
97,25
68,13
1,44
177,4
outubro
20,81
80,5
97,13
54,5
1,70
84,2
novembro
22,73
78,71
97,29
52
1,47
117,4
dezembro
23,87
84,73
98,36
58,73
1,20
104,5
janeiro
25,17
83,07
98,8
52,33
1,1
289,6
fevereiro
24,65
85,89
99,26
55,05
1,07
196,4
março
23,69
86,73
97,87
63,27
1,31
126,6
abril
22,24
85,89
99,11
57,56
1,20
214,8
maio
17,5
92
100
81
1,84
5,8
junho
14,05
86
97,5
68
1,85
122,9
2010
2011
Fonte: Embrapa/CPAO, 2011.
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225
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.
As inundações também atingem os bair-
escoamento da água, além da implantação de
ros Estrela Porã, Novo Horizonte e Parque do
tubulação de drenagem para desviar o grande
Lago II e no Jardim Caiman, e nesse último, em
volume de água que desce do bairro Parque
algumas residências a água da chuva já atin-
das Nações I em direção ao túnel, desviando
giu cerca de um metro e meio de altura. As fa-
a enxurrada para uma área de várzea próxima,
mílias ficaram isoladas, foram removidas pela
porém essas medidas não foram suficientes
Defesa Civil e, posteriormente, encaminhadas
para impedir as inundações no local (Dourados
à Casa da Acolhida e ao Estádio Frédis Saldi-
News, 2011).
var, até que pudessem retornar ao bairro. Nes-
Nesse mesmo período, a área central
sa região, o alagamento provocou a interdição
da cidade também sofreu com alagamentos
do Posto de Saúde da Família – PSF 34, devido
devido a falhas na manutenção e limpeza do
às inundações nas suas dependências. Outros
sistema de captação de água pluvial. Por essa
pontos inclusos no planejamento de contenção
razão, a Secretaria de Serviços Urbanos tem
de riscos encontram-se no Jardim João Paulo
realizado a limpeza das galerias subterrâneas
II, no trecho da Rua Antônio do Amaral, onde
(Dourados News, 2011).
várias famílias ficam ilhadas em dias de chuva
forte (Lange, 2011).
A ocorrência de inundações no município
de Dourados revela que as ações por parte dos
Em 2009, foi feito um financiamento pela
gestores devem estar centradas em medidas de
prefeitura junto à Caixa Econômica Federal, no
controle e minimização desse tipo de impacto.
valor de R$35.320.906,78 para custear as obras
Tais medidas passam pelo o gerenciamento dos
e serviços relativos aos projetos de manejo de
recursos hídricos integrado ao planejamento
águas pluviais para o controle e minimização de
urbano, de modo a incorporar uma abordagem
inundações no âmbito do Plano de Aceleração
que adote os aspectos ambientais, sociais, eco-
do Crescimento – PAC (Dourados, 2009).
nômicos e políticos, destacando-se o primeiro,
Porém, na segunda quinzena do mês de
pois a capacidade ambiental de dar suporte ao
março desse ano, também ocorreram eventos
desenvolvimento possui sempre um limite, a
de inundações no túnel sob a BR-163 que liga
partir do qual todos os outros aspectos serão
o Parque das Nações I ao Parque II, isolando
inevitavelmente afetados (Bonn, 1997).
completamente os dois bairros. A manutenção
O município dispõe de arcabouço legal
da rua que passa sob a rodovia é de responsa-
apropriado e de órgãos de controle e partici-
bilidade do município e as margens da BR são
pação pública na figura dos conselhos muni-
de domínio da União, o que exigiu uma parce-
cipais e secretaria de meio ambiente, os quais
ria para a elaboração e execução de um projeto
têm pressionado o poder público no sentido de
definitivo para resolver os problemas de alaga-
cobrar a solução dos problemas relacionados à
mentos nesse local (Dourados News, 2011).
defesa do meio ambiente e, consequentemente,
A solução do problema foi baseada em
da invasão das áreas de preservação ambiental.
medidas emergenciais como a limpeza da par-
Dentre as medidas realizadas pelo
te interna do túnel e a abertura de valetas,
Comdam quanto às áreas de preservação am-
em sistema de curva de nível, para facilitar o
biental, está a notificação junto à prefeitura
226
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados
para uma maior atenção às Zonas Especiais de
andamento o projeto de construção do Con-
Interesse Ambiental – ZEIA e Áreas de Preser-
junto Habitacional Ipê Roxo, com 186 mora-
vação Permanente – APP’s, pois a pressão para
dias que contemplarão famílias de baixa renda
construção de moradia, por parte da popula-
que vivem em áreas de risco. Outro projeto em
ção, é grande em Dourados e as áreas sujeitas
andamento refere-se à urbanização da bacia
a inundações devem ser monitoradas e cerca-
hidrográfica do córrego Paragem, que prevê a
das a fim de evitar a ocupação indevida. Além
remoção de invasores, e a implantação de um
disso, atualmente, este conselho está revendo a
parque linear. As obras relativas ao córrego
“Lei Verde” e tencionando o poder público mu-
Rego D’água foram retomadas pela prefeitura.
nicipal para que revise o Plano Diretor e a Lei
O cercamento de todas as áreas de pre-
do Uso do Solo. Sabe-se que a legislação de-
servação ambiental e a fiscalização das mes-
ve passar por adequações quando necessário,
mas pela Polícia Ambiental não foram ações
porém uma das necessidades mais prementes
elencadas como prioritárias pela atual adminis-
é o poder público dotar a administração de
tração municipal, embora, segundo a Secretaria
estrutura capaz de fiscalizar e fazer cumprir as
de Planejamento, tais ações possam contribuir
leis e normas que regem a sociedade.
preventivamente na redução de invasões e de
Os recursos para atender a demanda
de habitação popular destinada à retirada de
construções de moradias irregulares em áreas
de risco.
pessoas residentes em áreas de risco são pro-
Dentre as próximas ações do governo
venientes do Governo Federal através do Mi-
Municipal, está a alteração do Plano Diretor,
nistério das Cidades, de fundos destinados a
que teve início em agosto de 2011, com a parti-
programas sociais. O Estado pode entrar com
cipação da sociedade. Também é objeto de dis-
parcerias, como, por exemplo, nas obras de
cussão a expansão do perímetro urbano de 82
saneamento básico. Ao Município cabe soli-
km2 para 205 km2 e, consequentemente, a revi-
citar recursos por meio de projetos e, quando
são da Lei de Uso do Solo do Município, já que
atendido, é sua responsabilidade geri-los para
uma ação está diretamente vinculada à outra.
resolver as invasões em áreas de preservação
Se a expansão da área urbanizada das cidades
ambiental e de risco.
sobre o território necessariamente implica al-
As áreas destinadas aos loteamentos
gum tipo de impacto sobre o meio ambiente,
para construções de habitações populares
quando ela ocorre de forma precária e incom-
com o objetivo de remover as famílias residen-
pleta, mais impactos ainda ela provoca quando
tes em áreas de fundo de vale são adquiridas
não atende às exigências técnicas necessárias
pelo município, compradas de terceiros, onde
ao parcelamento do solo não respeitando os
a Prefeitura deve implantar a infraestrutura
condicionantes do meio físico (Moretti e Fer-
do novo loteamento.
nandes, 2000).
De acordo com o último levantamento
Outro grande problema da cidade de
da Prefeitura, são aproximadamente 7.500
Dourados corresponde à drenagem urbana e,
pessoas, com renda de 0 a 3 salários, que ne-
para atender a esta demanda, foram requeri-
cessitam de moradias. Atualmente, está em
dos recursos federais através da elaboração
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Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.
de projetos de drenagem pluvial que contem-
estão muito além da capacidade de seu equa-
plam, inclusive, o estudo de impacto ambien-
cionamento (Silva e Travassos, 2008).
tal dessas obras. Segundo a Secretaria de
Diante dessa situação, o país necessita
Planejamento, na abertura de loteamentos as
desenvolver uma cultura de gestão integrada
ruas apenas são asfaltadas sem a instalação
das águas, pois, atualmente, o que existe é
de obras de drenagem. O asfaltamento sem
uma multiplicidade de agentes, com objetivos
a devida infraestrutura de drenagem provoca
e responsabilidades conflitantes. Cada um vi-
impactos em todo o aparelhamento urbano,
sualiza uma única função e um único uso para
como se verifica no bairro Jardim Universitá-
a água, de acordo com seus interesses e ne-
rio, localizado atrás do Centro Universitário
cessidades. O resultado é uma série de inter-
da Grande Dourados – Unigran, onde existem
venções descoordenadas que frequentemente
ruas destruídas pela erosão provocada pela
geram significativos danos ao meio ambiente,
força da água das chuvas.
além de desperdiçar os recursos disponíveis
Para a Secretaria de Planejamento, as
(Bonn, 1997).
inundações, além de causar muitos prejuízos à
população atingida, também causam impacto
sobre os trabalhos desenvolvidos em vários setores e secretarias municipais. Contudo, sabe-
Conclusão
-se que as medidas preventivas necessárias para que esse quadro seja sanado em Dourados
O número de casos de alagamentos atendidos
envolve o planejamento urbanístico e ambien-
pela Defesa Civil de Dourados apenas no pri-
tal da cidade, focando o bem comum e o futuro
meiro semestre de 2011 cresceu muito quando
de todos os cidadãos, não apenas os interesses
comparado aos dois anos anteriores. Também
particulares de poucos.
houve aumento no número de pessoas com
A falta de integração entre os setores
necessidade de remoção das áreas de preser-
que promovem a gestão municipal afeta di-
vação ambiental e de risco, o que demanda a
retamente o meio ambiente, a população e
construção de moradias populares, dependen-
onera os cofres públicos, pois as limitações
do, assim, de recursos federais para a imple-
das ações do poder público em muitas cida-
mentação das obras.
des brasileiras estão indevidamente voltadas
Do ponto de vista da gestão, o poder
para medidas estruturais com visão pontual
público municipal trata o problema das inun-
(Tucci, 1997a), o que resulta, dentre outros,
dações de forma setorial quando retira e rea-
da incapacidade de conceber políticas públi-
loca a população invasora de áreas de risco.
cas que levem em conta não somente o efeito,
Uma perspectiva reducionista que enxerga
mas também suas causas de transformações
apenas a ocupação humana em regiões sujei-
do espaço urbano (Tucci, 1997b). Esse distan-
tas a inundações ao contrário de contemplar
ciamento também decorre do imenso passivo
o planejamento urbano que considere a re-
socioambiental existente nessas cidades, onde
dução da impermeabilização do solo confor-
os problemas de degradação socioambiental
me o crescimento populacional e que esteja
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados
integrado a uma gestão ambiental focada no
forma intersetorial. Isto significa elaborar e de-
manancial hídrico da cidade e desconsiderando
senvolver o planejamento urbano considerando
o retrato da realidade nacional.
a cidade como um todo, de forma sistêmica e
Embora, saiba-se que o planejamento
integrada, levando em conta as interações entre
urbano é o caminho mais curto e econômico
as intervenções humanas e o meio natural no
para solucionar os problemas com eventos de
âmbito do manancial constituinte das bacias hi-
inundações e todas suas consequências des-
drográficas pertencentes ao território municipal,
truidoras e onerosas, o que se observa é uma
diminuindo, assim, a distância entre a realidade
inabilidade dos gestores em fomentar um pla-
socioambiental do município e o discurso conti-
nejamento urbano e ambiental organizado de
do nas agendas e documentos.
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski
Graduada em Química, cursando Especialização Latu Sensu em Planejamento e Gestão Ambiental
na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil.
[email protected]
Maria Aparecida Martins Alves
Graduada em Ciências Biológicas, Mestrado em Desenvolvimento Sustentável, professora auxiliar da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil.
[email protected]
Luciana Ferreira da Silva
Graduada em Matemática, Mestrado em Desenvolvimento Sustentável, Doutorado em Economia
Aplicada. Professora adjunta da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, Mato
Grosso do Sul, Brasil.
[email protected]
Joelson Gonçalves Pereira
Doutorado em Geografia Humana. Professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados.
Mato Grosso do Sul, Brasil.
[email protected]
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Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.
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Texto recebido em 24/out/2011
Texto aprovado em 2/dez/2011
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Mudanças na estrutura sócio-ocupacional
das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Changes in the socio-occupational structure
of the Brazilian metropolises, 1991-2000
Suzana Pasternak
Resumo
O trabalho apresenta os resultados de um estudo
comparativo com 10 metrópoles e uma aglomeração urbana no Brasil, procurando observar as
semelhanças e diferenças entre as estruturas socioocupacionais das metrópoles estudadas e sua
evolução entre 1991 e 2000. Trata-se de responder
às questões: 1) como a reestruturação produtiva
afetou a estrutura sócio-ocupacional de cada metrópole no fim do século passado; 2) se a evolução
entre 1991 e 2000 foi semelhante nas aglomerações estudadas; 3) quem são os componentes das
distintas categorias sócio-ocupacionas nas diferentes metrópoles das grandes regiões brasileiras.
Todas as metrópoles estudadas tiveram crescimento demográfico maior na periferia que no núcleo.
Embora as metrópoles sejam específicas, há certa
semelhança na sua estrutura: no ano 2000, em todas as ocupações médias predominam. No Sudeste,
é nítida a perda de dirigentes, mas apenas em São
Paulo percebeu-se aumento significativo da base
da pirâmide social.
Abstract
The paper shows the results of a comparative study
with ten metropolises and an urban agglomeration
in Brazil, trying to observe the similarities and
differences among their socio-occupational
structures and their evolution between 1991 and
2000. It answers the following questions: 1) how
the productive restructuring affected the sociooccupational structure of each metropolis at the
end of the last century; 2) whether the evolution
between 1991 and 2000 was similar in the
agglomerations that were studied; 3) who are the
components of the different socio-occupational
categories in the metropolises of the large Brazilian
regions. The demographic growth of all the studied
metropolises has been higher in the periphery
than in the central part of the city. Although the
metropolises are specific, there is a certain similarity
in their structures: in the year 2000, all the middle
jobs were predominating. In the Southeast, the
loss of leaders is clear, but only in São Paulo has
a meaningful increase in the basis of the social
pyramid been noticed.
Palavras-chave: estrutura sócio-ocupacional; metrópoles brasileiras; reestruturação produtiva nas
metrópoles.
Keywords: socio-occupational structure; Brazilian
metropolises; productive restructuring in the
metropolises.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Suzana Pasternak
Introdução
social, alicerçada na indústria da informação,
em especial nas grandes metrópoles, estaria
assentada, de um lado, na existência de profis-
O Observatório das Metrópoles tem desenvol-
sionais altamente qualificados e bem remune-
vido estudos e pesquisas que visam contribuir
rados e, de outro, em um contingente de tra-
teórica e metodologicamente para os deba-
balhadores menos qualificados e de não menos
tes, no âmbito da academia, das instituições
importância, como secretárias, faxineiros e tra-
governamentais e não governamentais e dos
balhadores de manutenção, configurando uma
movimentos sociais, sobre os impactos sociais
estrutura social no formato de ampulheta. Essa
produzidos pelas transformações econômicas
imagem, que não encontra unanimidade junto
que ocorrem no Brasil, desde meados de 1980.
aos pesquisadores, estaria em contraposição
Esses impactos se externalizam particularmen-
à de um ovo, que representa a predominância
te nas grandes cidades e nas regiões metro-
das camadas médias e operárias na estrutura
politanas, onde as transformações adquirem
social e a presença reduzida dos estratos supe-
maior significado. A polêmica que alimenta o
riores e inferiores dessa estrutura.
debate está centrada nos efeitos da reestrutu-
Com base nesses pressupostos, e preten-
ração produtiva sobre o mercado de trabalho,
dendo verificar a procedência ou não das teses
com significativas alterações na oposição entre
da global city na realidade brasileira, foi ela-
as classes sociais, que marcou a era industrial
borada uma hierarquia sócio-ocupacional com
fordista, e o surgimento de uma nova estrutura
a construção de um conjunto de categorias, a
social, marcada por uma crescente polarização
partir das variáveis censitárias de ocupação se-
entre estratos superiores e inferiores da socie-
gundo a Classificação Brasileira de Ocupações
dade. Essas questões estão no centro das dis-
(CBO), criada de acordo com as diretrizes da
cussões sobre a global city (Sassen, 1998), cuja
Classificação Internacional Uniforme de Ocupa-
hipótese central é a existência de nexos es-
ções (CIUO) da Organização Internacional do
truturais entre as mudanças em curso na eco-
Trabalho (OIT). Os dados censitários são os
nomia e a intensificação da dualização social.
únicos disponíveis, no Brasil, com capacidade
Nesse processo, em que o Setor Terciário esta-
simultânea de comparabilidade no tempo e no
ria assumindo predominância diante de pro-
espaço, contemplando dados do mundo do tra-
cessos simultâneos de modernização e relativa
balho. Como ponto de referência, foi utilizado o
retração no emprego do Setor Secundário, ha-
sistema de classificação das profissões na Fran-
veria igualmente uma reconfiguração e um en-
ça, adotado pelo Institut National d’Économie
colhimento das classes médias, tendo em vista
et Statistique (INSEE), e o primeiro trabalho
as mudanças na estrutura produtiva e nos pa-
comparativo realizado foi entre Paris e Rio de
drões organizacionais e tecnológicos. Algumas
Janeiro (Preitecelle e Ribeiro, 1998).
ocupações típicas das classes médias estariam
Essas pesquisas têm como ponto de
em declínio, outras se desqualificariam, e surgi-
partida uma concepção multidimensional da
riam novas profissões ligadas à expansão das
estruturação do espaço social, o que permi-
funções de gestão (Sassen, 1998). A estrutura
te alcançar uma compreensão mais refinada
234
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
das eventuais posições sociais que os grupos
de indivíduos ocupam e detectar as múltiplas
escalas de hierarquização no espaço social. A
estrutura social “[...] é entendida, simultaneamente, como um espaço de posições sociais
e um espaço de indivíduos ocupando esses
setores da produção, como o Secundário
e o Terciário, e, finalmente, entre os ocupados no Setor Secundário, foi feita uma
distinção a partir da inserção dos trabalhadores nos segmentos modernos ou
tradicionais da indústria (Ribeiro e Lago,
2000). (Mammarella, 2007, p. 157)
postos e dotados de atributos sociais desigualmente distribuídos e ligados às suas histórias”
Entre 1991 e 2000, o Censo modificou
(Ribeiro e Lago, 2000, p. 112), dentro de uma
sua forma de definir tanto o desemprego, co-
articulação que remete ao pensamento de
mo o tipo de ocupação, o que dificulta a com-
Bourdieu (1989). O autor desenvolve a noção
paração entre 1980, 1991 e 2000. Em 1991, o
de que os indivíduos ou agentes ocupam po-
período de referência para a verificação do es-
sições relativas no espaço social, as quais se
tado de emprego era de 12 meses, assim como
encontram em oposição. É possível classificar
em 1980. E a condição de ocupação referia-se
empiricamente essas posições relativas segun-
a três possíveis estados: se trabalhou habitual-
do os diferentes agrupamentos sociais, poden-
mente ou eventualmente neste período de re-
do ser identificadas pelo volume dos capitais
ferência, ou se não trabalhou. No ano 2000,
(econômicos, sociais e simbólicos) que eles de-
o período de referência foi de uma semana,
têm e pela estrutura desses capitais. Colocados
e a questão foi mais detalhada: perguntava-
em posições semelhantes e estando sujeitos a
-se se trabalhou em atividade remunerada
condicionamentos similares, há probabilidade
ou não; em caso da resposta não, se estava
de que esses agentes ou indivíduos desenvol-
temporariamente afastado, se exerceu ativi-
vam atitudes, interesses e práticas aproxima-
dade não remunerada ou se, no período de 1
das. A incorporação desse esquema à pesquisa
mês na data anterior ao Censo, tomou alguma
sobre as metrópoles brasileiras está pautada
providência para conseguir trabalho. Assim, as
no pressuposto metodológico da centralidade
cifras de ocupados entre os anos 1980, 1991
do trabalho como categoria estruturadora das
e 2000 não são comparáveis: a adoção do pe-
relações sociais (Ribeiro e Lago, 2000, p. 112).
ríodo de uma semana, em lugar de 12 meses,
pode induzir a uma ampliação da magnitude
As categorias sócio-ocupacionais, através
das quais é possível captar a segmentação social nas metrópoles brasileiras,
foram construídas a partir de alguns princípios gerais que se contrapõem e que estão na base da organização da sociedade
capitalista, tais como: capital e trabalho,
grande e pequeno capital, assalariamento e trabalho autônomo, trabalho manual
versus não manual e atividades de controle e de execução. Também foi levada
em consideração a diferenciação entre
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
do desemprego. De outro lado, atividades domiciliares como ajuda a outro, trabalho para
o autoconsumo, etc., reduzem o desemprego,
pois passam a ser computadas.
Em 2000, modificou-se também a forma de classificar as ocupações, através da
utilização da CBO (Classificação Brasileira de
Ocupações) e da CNAE (Classificação Nacional
de Atividade Econômica). Na pesquisa, foi feito um ajuste da classificação ocupacional de
235
Suzana Pasternak
1991 com a metodologia censitária de 2000, o
obtido da mesma forma que o de 2000. Mesmo
que possibilita a comparação entre estas duas
assim optou-se por analisar a evolução, apesar
datas. Para 1980, entretanto, isso não foi feito.
desta ressalva. A análise relativa dos percentu-
Assim, qualquer comparação que envolve os 20
ais pode elucidar a evolução.
últimos anos do século XX só poderá ser feita
Foram verificadas também as altera-
entre grandes grupos, e o percentual de popu-
ções no mercado de trabalho formal das me-
lação ocupada em relação à total entre estas
trópoles estudadas. Para tanto se utilizaram
três datas não é passível de comparação. Por
dados da RAIS (Relação Anual de Informações
isso, a análise da evolução das categorias só-
Sociais, Ministério do Trabalho), cobrindo o
cio-ocupacionais se concentra em 1991 e 2000.
mercado formal de 1991 e 2000, cotejando-os
E deve ser lembrado que o número absoluto
com as informações censitárias sobre a popu-
de ocupados de 1991 não é, rigorosamente,
lação ocupada.
Quadro 1 – Categorias sócio-ocupacionais
dirigentes
grandes empregadores
dirigentes do setor público
dirigentes do setor privado
profissionais de nível superior
profissionais autônomos de nível superior
profissionais empregados de nível superior
profissionais estatutários de nível superior
professores de nível superior
pequenos empregadores
pequenos empregadores
ocupações médias
ocupações de escritório
ocupações de supervisão
ocupações técnicas
ocupações de saúde e educação
ocupações de segurança, justiça e correio
ocupações artísticas e similares
trabalhadores do terciário
trabalhadores do comércio
trabalhadores de serviços especializados
trabalhadores do secundário
trabalhadores manuais da indústria moderna
trabalhadores manuais da indústria tradicional
trabalhadores manuais de serviços auxiliares
trabalhadores manuais da construção civil
trabalhadores do terciário não especializado
prestadores de serviços não especializados
empregados domésticos
ambulantes e biscateiros
236
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Questões colocadas
As transformações que se processam na economia
brasileira têm provocado mudanças tecnológicas
na formatação social e na organização espacial.
Nesse movimento também foram alteradas situações que marcaram durante
muito tempo a organização espacial da
atividade econômica e o tipo de vínculo
existente entre as regiões. O território
se cobriu de redes de fluxos, tangíveis e
intangíveis, que intensificaram as relações entre as pessoas, as empresas e os
lugares, facilitando a possibilidade de
cooperação, mas aumentando também
a competição. Algumas regiões de antiga tradição industrial perderam atrativo
como localização diante do aparecimento de outras áreas emergentes. (Piquet,
2000, p. 97)
formas de produção e a uma eliminação de milhares de postos de trabalho. “Em consequência, sobre uma estrutura social já desigual e
excludente, ampliaram-se o desemprego e as
formas precárias de trabalho, tais como o trabalho sem carteira, o trabalho em tempo parcial, o de elevada rotatividade, etc.” (Piquet,
2000, p. 98). Tanto trabalhos produzidos sobre
esta dinâmica, como os dados da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais, Ministério
do Trabalho), cobrindo o período de 1991 a
2000, atestam esta redução do mercado formal nas metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro, as maiores do país, onde o impacto da
reestruturação produtiva parece ser maior (a
taxa de crescimento dos empregos formais de
São Paulo no período foi de -0,28% ao ano,
e a do Rio de Janeiro, de -0,87% anuais). Deve também ser lembrado que a reengenharia
feita nestes anos, visando tornar os produtos
As consequências desse processo se fi-
brasileiros mais competitivos, terceirizou parte
zeram sentir também no mercado de trabalho,
do trabalho não diretamente ligado à produ-
provocando alterações no perfil do emprego.
ção, antes computado como industrial, agora
Há algumas teorizações sobre essas mudan-
como serviço. É o caso, entre outros, das ativi-
ças, entre as quais uma das mais conhecidas
dades de manutenção, segurança, alimentação
é a de Sassen (1991) que propõe, como hipó-
e limpeza.
tese central para as chamadas cidade globais,
As sociedades do mundo desenvolvido
“a existência de um vínculo estrutural entre o
têm apresentado um processo de terceirização,
tipo de transformação econômica caracterís-
com transferência de empregos das atividades
tica dessas cidades e a intensificação de sua
da indústria de transformação para as ativida-
dualização social e urbana” (Preteceille, 1994,
des de serviços. Alguns autores chamam a este
p. 66).
fenômeno passagem da fase industrial para
No Brasil, as consequências das trans-
uma fase pós-industrial e, inclusive, acreditam
formações econômicas mundial compeliram a
que um indicador como uma proporção de
indústria, setor mais exposto à concorrência
mais da metade dos empregos em serviços po-
internacional, sobretudo depois da abertura
deria ser considerado como indicador positivo
comercial do governo Collor, nos anos 90, a
de progresso econômico: o progresso se daria
proceder a um vigoroso ajuste produtivo, que
pela passagem das sociedades pré-industriais
resultou numa intensificação de capital nas
para outras, de caráter industrial, e destas para
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
237
Suzana Pasternak
pós-industriais. Para dar um exemplo na região
Outra visão, chamada de “industrial”,
metropolitana de São Paulo, a proporção de
destaca o declínio da grande indústria fordista
empregos formais em serviços em 1991 foi
e sua transformação ou substituição por no-
de 45,23%, que passou para 59,26% no ano
vas formas de produção, nas quais cresceria
2000). Segundo esta corrente, a RMSP estaria
a parte do trabalho qualificado, intelectual,
num caminho positivo.
e se reduziria o trabalho manual repetitivo.
Essa visão de crescimento econômico
Isso provocaria o crescimento de categorias
pode ser facilmente contestada: o setor de
médias qualificadas, de categorias superiores
serviços é extremamente heterogêneo. Há
ligadas à pesquisa, ao design, ao marketing, e
os serviços à produção, com aumento das
um decréscimo das categorias tradicionais de
tarefas prévias e posteriores à fabricação pro-
operários qualificados e não qualificados. Para
priamente dita, característicos das economias
muitos, a estrutura geral da mão de obra não
avançadas. E há também o terciário como re-
mudaria, mudaria apenas a empresa controla-
fúgio, absorvente da mão de obra por ativi-
dora e aconteceria uma dispersão da mão de
dades pouco qualificadas, comum em países
obra entre diferentes empresas e regiões. Au-
emergentes com problema de empregos.
tores com Preteceille (1995), Hammett (1995),
Segundo o paradigma de Sassen, a rees-
Maldonado (2000) ressaltam que em Paris,
truturação produtiva vigente estaria causan-
Londres e Madri não se deu um processo de
do um alto crescimento do emprego de baixa
dualização social.
qualificação, de caráter precário ou autônomo,
o que permitiria falar num processo de dualização ocupacional. Essa visão
[...] leva à dupla hipótese da desindustrialização-terciarização e da dualização
do mercado de trabalho, evoluindo de
acordo com uma estrutura do tipo ampulheta, com a diminuição das categorias
médias (entre as quais os operários qualificados), e o crescimento forte, de um
lado, das categorias superiores ligadas ao
conjunto das atividades terciárias dominantes (finanças, serviços, etc.); de outro,
das categorias inferiores necessárias ao
funcionamento dessas atividades (pequenos empregos de escritório, mensageiros,
etc.) e ao funcionamento dos serviços de
consumo que garantem o luxuoso nível
de vida das categorias anteriores (restaurantes, hotéis, serviços domésticos, etc.).
(Preteceille, 1994, p. 71)
238
O resultado das mudanças sociais no seu
conjunto é a elevada profissionalização
das categorias sociais, embora se deva
levar em conta o fato de que se abrem outras linhas de desigualdade nas diferenças
marcadas pela idade, pelo gênero e pelo
território. Se, considerando a sociedade
no seu conjunto, houve uma certa diminuição das desigualdades na distribuição
de renda no período 1981-91 e um crescimento das classes médias, em face de
uma diminuição dos trabalhadores, as
diferenças experimentadas pelos distintos
grupos de idade, a dificuldade das mulheres para encontrar trabalho e a diferenciação no assentamento dos grupos sociais
no território, marcado em grande parte
por um mercado imobiliário que seleciona
a distribuição dos grupos sociais, apontam para um resultado matizado desses
avanços na diminuição das desigualdades. (Maldonado, 2000, pp. 177-178)
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
No Brasil, muitas grandes empresas ver-
•
as mudanças foram num mesmo sentido
ticalmente integradas estão sendo levadas,
em todas as metrópoles de cada segmento
por pressão do mercado, a terceirizar suas ati-
espacial?
vidades complementares para comprá-las no
• há
mercado concorrencial a menor preço. Assim,
das diversas regiões?
muitas atividades antes integradas à grande
•a
indústria passam a serem exercidas por peque-
da? Ou seja, houve real aumento dos empregos
nos empresários, autônomos, cooperativas,
sem carteira e dos autônomos? A taxa de de-
o que transforma certo número de empregos
semprego, por mudança no conceito, não pode
formais em ocupações precárias, sem garan-
ser comparada.
tias e direitos trabalhistas. Há um claro pro-
• quem
cesso de precarização das relações de trabalho
cio-ocupacionais em cada metrópole? Por exem-
nos anos 90, o que nem sempre significa dimi-
plo: a elite nordestina é semelhante à elite das
nuição do nível de rendimento.
metrópoles mais industriais? Quem são as cha-
distinções marcantes entre as metrópoles
precarização realmente aumentou na déca-
são os componentes das categorias só-
O presente trabalho analisa a estru-
mada camadas médias nas distintas metrópoles
tura sócio-ocupacional em 11 regiões me-
brasileiras? A estrutura ocupacional dos traba-
tropolitanas brasileiras que compõem o
lhadores manuais urbanos apresenta diferenças?
Observatório das Metrópoles (Belém não foi
analisada):
•
no Sudeste, São Paulo, Rio de Janeiro e
Belo Horizonte;
•
no Sul, Curitiba e Porto Alegre;
•
no Nordeste, Nat al, For t aleza, Recife
Escala e taxas de incremento
da população
As metrópoles estudadas pelo Observatório
e Salvador;
•
no Centro Oeste, Goiânia;
apresentam tamanho populacional bem distin-
•
a aglomeração urbana de Maringá. Goiânia
to: as três metrópoles do Sudeste – Belo Hori-
e Maringá serão analisadas como áreas de
zonte, Rio de Janeiro e São Paulo – têm popula-
expansão.
ção com mais de 4 milhões de habitantes. São
Pretende-se verificar:
• semelhanças
e diferenças entre as estruturas
Paulo tinha, no ano 2000, mais de 17 milhões
e o Rio de Janeiro, quase 11 milhões. Porto Ale-
sócio-ocupacionais das metrópoles por região;
gre, no Sul, Recife e Salvador, no Nordeste, con-
• semelhanças
e diferenças entre as mudanças
tam com mais de 3 milhões; Fortaleza e Curiti-
nesta estrutura nos ano 90, que marcam a re-
ba apresentam tamanho demográfico de mais
estruturação produtiva no país.
de 2,5 milhões de pessoas, enquanto Belém,
Tenta-se responder às questões:
• como
a reestruturação produtiva afetou a es-
trutura social de cada metrópole brasileira?
•
há semelhanças e diferenças nestas estrutu-
ras e por quê?
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Goiânia e Natal ficam na casa de 1 milhão. A
aglomeração urbana de Maringá não alcançava 500 mil pessoas no ano 2000. O tamanho da
população total apresenta, assim, uma enorme
amplitude, assim como a população ocupada.
239
Suzana Pasternak
Tabela 1 – Metrópoles, por tamanho da população total
e da população ocupada em 2000
População total
População ocupada
Taxa de ocupação - %
São Paulo
Metrópole
17.834.664
7.115.257
39,90
Rio de Janeiro
10.872.768
4.119.788
37,89
Belo Horizonte
4.811.760
1.739.846
36,16
Porto Alegre
3.655.834
1.568.232
42,90
Recife
3.335.704
1.090.342
32,69
Salvador
3.018.285
1.115.958
36,97
Fortaleza
2.975.703
1.042.528
35,03
Curitiba
2.725.629
1.162.205
42,64
Belém
1.794.981
624.129
34,77
Goiânia
1.636.465
717.769
43,86
Natal
1.040.109
379.566
36,49
473.898
211.459
44,62
Maringá
Fonte: Sinopse Preliminar do Censo Demográfico de 2000; Censo de 2000.
Percebe-se que as taxas de ocupação
as quatro metrópoles do Nordeste, a taxa de
são significantemente maiores nas metrópo-
ocupação é menor e apresenta o valor míni-
les do Sul (Curitiba e Porto Alegre) e nas aglo-
mo no Recife e tendo valores mais altos em
merações de expansão (Goiânia e Maringá).
Fortaleza e Salvador. Essa taxa de ocupação
No Sudeste essa taxa fica em torno de 37%,
varia com o nível de desemprego local e com
com São Paulo atingindo quase 40%. Entre
a estrutura etária.
Tabela 2 – Metrópoles, taxas anuais de crescimento populacional total,
do núcleo e da periferia entre 1991 e 2000, em percentagem
Metrópole
População total
População ocupada
Taxa de ocupação - %
São Paulo
1,49
0,81
2,55
Rio de Janeiro
1,19
0,76
1,71
Belo Horizonte
3,84
1,16
6,91
Porto Alegre
2,12
0,93
2,89
Recife
1,64
1,03
2,11
Salvador
2,16
1,85
3,59
Fortaleza
2,92
2,17
5,12
Curitiba
3,15
2,13
5,80
Belém
3,37
0,31
21,68
Goiânia
3,24
1,91
6,57
Natal
2,61
1,80
4,22
Maringá
2,26
2,06
2,57
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.
240
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Notou-se, em relação ao incremento po-
dividida numa taxa de 1,91% para o núcleo
pulacional 1991-2000, que São Paulo e Rio de
central e 6,57% para a periferia. Maringá, por
Janeiro tiveram taxas modestas (1,19 e 1,49 %
sua vez, cresce à taxa de 2,26, sendo a única
anuais, respectivamente). No Sudeste, a única
aglomeração que cresce de forma mais equili-
metrópole com crescimento elevado foi Be-
brada entre centro ( 2,06%) e periferia (2,57%)
lo Horizonte, com taxa de 3,84% anuais. Mas
Assim, todas as metrópoles estudadas
essa taxa elevada deve-se principalmente ao
tiveram crescimento maior na periferia. As me-
crescimento periférico, de 6,91% anuais. A taxa
trópoles do Sudeste mostram esvaziamento
do núcleo central, para as três metrópoles do
populacional e funcional de áreas centrais con-
Sudeste, é baixa (0,76% para o Rio de Janeiro,
solidadas. Esta frente de urbanização periféri-
0, 81% para São Paulo e 1,16% para Belo Ho-
ca, não raro, se traduz em destruição de meio
rizonte). Tanto no Rio, como em São Paulo, com
ambiente. Em todas as metrópoles percebe-se
em Belo Horizonte, a periferia cresce bem mais
um movimento geral em direção a uma ur-
que o município capital.
banização dispersa, com maior proporção de
O nível de crescimento total das metró-
população urbana e menos agricultores e uma
poles do Sul é bem mais alto: Curitiba cresceu
estrutura sócio-ocupacional mostrando perda
a 3,51% ao ano no período, e Porto Alegre a
de trabalhadores industriais, ganho de traba-
2,12%. Nas metrópoles do Sul, o crescimento
lhadores de serviços (especializados e não es-
periférico também ultrapassou largamente o
pecializados) e maior profissionalização.
do pólo central: em Curitiba foi 2,72 vezes o
da capital, e em Porto Alegre, 3,30 vezes. Porto
Alegre teve apenas 0,93% de taxa de crescimento no núcleo.
No Nordeste, as taxas também foram ele-
Evolução do mercado
formal de empregos
vadas em Fortaleza (2,92% anuais) e Salvador
(2,16). Já no Recife o crescimento populacional
A evolução dos empregos formais nas metró-
entre 1991 e 2000 foi de apenas 1,64. Mas nas
poles estudadas entre 1991 e 2000 se deu de
metrópoles do Nordeste o fenômeno do maior
forma distinta: no Sudeste, São Paulo e Rio de
crescimento dos municípios periféricos também
Janeiro apresentaram perda absoluta de postos
é visível, mesmo Recife apresentando taxa de
de trabalho formais, mais acentuada no Rio
incremento na periferia de 2,11% anuais. Em
que em São Paulo, enquanto em Belo Horizonte
Fortaleza e Salvador, essas taxas ultrapassam
o número absoluto de postos de trabalho su-
3,5% anuais. Em Natal, a taxa de crescimento
biu um pouco na década. No Sul, tanto Porto
total atingiu 2,61% anuais no período, também
Alegre como Curitiba tiveram aumento, grande
com a periferia crescendo 2,34 vezes o centro
em Curitiba (a maior taxa de aumento entre
(a taxa dos municípios periféricos foi de 4,22%
as metrópoles estudadas); no Nordeste, onde
ao ano, e a do município central de Natal, de
todas as metrópoles apresentaram aumento, a
1,80%). Em Goiânia, a taxa bastante alta de
maior taxa de incremento aconteceu em Salva-
crescimento total de 3,24% ao ano pode ser
dor, com ganho de 1,98% anuais, num total de
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
241
Suzana Pasternak
113 mil novos empregos formais no período. As
Fortaleza e Belo Horizonte, certa estagnação no
duas áreas de expansão tiveram altas taxas de
Recife, Natal e Porto Alegre e perda nas duas
incremento anual de empregos. Tanto Maringá
maiores metrópoles, Rio de Janeiro e São Paulo.
como Goiânia viram seus empregos formais
No conjunto as metrópoles estudadas ganha-
crescerem a taxas maiores que 3,5% anuais,
ram 475 mil empregos formais no período. As
com Goiânia ganhando mais de 100 mil postos
duas maiores metrópoles brasileiras, Rio de São
de trabalho no período. A Tabela 2 abaixo mos-
Paulo, perderam 257 mil postos de trabalho
tra os ganhos em Curitiba, Maringá, Salvador,
nos anos 90.
Tabela 3 – Evolução dos empregos formais entre 1991 e 2000,
metrópoles estudadas
Região
RM
Empregos formais
1991
2000
Diferença
Taxa - %
2.355.039
4.749.809
1.018.915
2.117.078
4.630.809
1.192.068
-237.961
-119.000
173.153
-0,87
-0,28
1,76
Sudeste
Rio de Janeiro
São Paulo
Belo Horizonte
Sul
Porto Alegre
Curitiba
884.943
505.113
953.005
730.814
68.062
225.701
0,83
4,19
Nordeste
Fortaleza
Natal
Recife
Salvador
419.474
195.029
591.460
588.685
495.382
210.830
621.075
702.172
75.908
15.801
29.615
113.514
1,87
0,87
0,54
1,98
Expansão
Maringá
Goiânia
65.972
281.826
94.839
384.024
28.867
102.198
4,12
3,50
Fonte: RAIS/MTE, 1991 e 2000.
As taxas de informalidade do trabalho,
quase 53% da população ocupada não têm
estimadas a partir da comparação entre os
vínculo formal de emprego. Em Salvador, esse
empregos formais e a população ocupada,
valor é menor que o de São Paulo. De qualquer
aumentaram em todas as metrópoles estu-
forma, o crescimento do assalariamento sem
dadas no período. A mais baixa, de São Pau-
carteira é generalizado nos anos 90. A evolu-
lo em 1991, alcançava, naquela data, o valor
ção dos mercados de trabalho no que diz res-
de menos de 20%, aumentando para 35% no
peito a este item apresenta forte semelhança,
ano 2000. No Rio de Janeiro, a taxa de infor-
com a informalidade crescendo em todas as
malidade no ano 2000 tem um padrão “nor-
metrópoles, com exceção de Maringá, onde a
destino”, de quase 50%. Nas metrópoles do
taxa, que era extremamente elevada, caiu um
Nordeste, o valor maior é o de Fortaleza, onde
pouco no período.
242
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Tabela 4 – Estimativa da informalidade no trabalho
(empregos formais/população ocupada)
Região
Metrópole
1991 - %
2000 - %
Sudeste
Rio de Janeiro
São Paulo
Belo Horizonte
35,54
19,24
24,91
47,20
34,92
29,93
Sul
Porto Alegre
Curitiba
50,43
34,40
52,90
34,71
Nordeste
Fortaleza
Natal
Recife
Salvador
49,45
32,83
38,70
29,75
52,68
43,93
43,04
37,08
Expansão
Maringá
Goiânia
63,84
41,62
58,95
44,17
Fonte: MTE/RAIS e IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.
A estrutura dos empregos do mercado
dentro da indústria, foram terceirizados. Entre
formal mostrou, para as metrópoles do Sudes-
estes setores estão principalmente atividades
te, forte queda dos empregos na indústria e
ligadas à segurança, limpeza e alimentação.
grande incremento relativo dos empregos nos
Esses postos de trabalho, antes computados
serviços. A metrópole mais industrial, São
como industriais, passaram a ser terceirizados
Paulo, foi a que mais perdeu participação do
e entraram nas estatísticas como serviços.
emprego formal na indústria (perda de 6,88
Acredita-se que parte da diminuição dos pos-
pontos percentuais), seguida pelo Rio de Ja-
tos industriais deva-se a este fenômeno, o que
neiro (perda de 5,96 pontos percentuais) e
não exclui também uma perda real de empre-
por Belo Horizonte (perda de 3,22 pontos
gos na indústria.
percentuais). Mesmo assim, a participação
Os subsetores industriais de São Paulo
relativa da indústria na metrópole paulista é
mostraram pouca mudança relativa em 1991
ainda a maior do Sudeste. De outro lado, a
e 2000: nas duas datas, os setores predomi-
maior participação relativa nos serviços está
nantes foram os das indústrias metalúrgica,
no Rio de Janeiro. Deve ser lembrado sempre
farmacêutica, têxtil e construção civil. Aliás,
que no fim da década de 80 e início de 90,
houve aumento da participação relativa na
com a abertura comercial, se intensificaram
construção civil de 12,76% dos empregos for-
os processos de reengenharia para ajuste de
mais em 1991 para 16,35% em 2000. Os em-
custos e aguentar a concorrência com produ-
pregos na indústria de matéria de transporte,
tos importados. Esta reengenharia implicava
que alcançavam 10,48% dos empregos em
redução de custos e terceirização de ativida-
1991, caem para 8,77% no ano 2000. O perfil
des. Assim, muitos setores de atividade, antes
dos empregos industriais no Rio é distinto do
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
243
Suzana Pasternak
paulista: apresenta maior peso na construção
O perfil dos empregos em Belo Horizon-
civil (19% dos empregos em 1991 e 23,19% no
te apresenta grande peso na indústria meta-
ano 2000), a indústria metalúrgica é relativa-
lúrgica (mais de 22% em 1991), nos serviços
mente menos importante do que em São Pau-
de utilidade pública (9,02% em 1991), na
lo, mas a químico-farmacêutica e a têxtil tem
indústria de bebidas e alimentos (10,78% no
peso grande tanto em 1991 como em 2000.
ano 2000). O grande peso do emprego indus-
Outras diferenças grandes surgem nos serviços
trial em Belo Horizonte é o da construção civil,
industriais de utilidade pública, que no Rio em-
com 30,16% dos empregos em 1991 e 31,98%
pregam mais de 10% da força de trabalho for-
em 2000. Belo Horizonte compartilha essa for-
malmente empregada, enquanto em São Paulo
te proporção de empregados na construção
esse percentual passa de 2,61% para 3,52%,
civil com Recife (onde a proporção é 31,60%
entre 1991 e 2000 e na indústria de alimentos
no ano 2000), com Salvador 9,41% em 1991
e bebidas, no Rio com 12,65% dos empregos e
e 42,7% em 2000) e Goiânia (43% em 1991 e
São Paulo com 7,28%.
31% no ano 2000).
Tabela 5 – Estrutura do emprego formal nas metrópoles do Sudeste,
1991 e 2000, em %
Setor
Rio de Janeiro
São Paulo
Belo Horizonte
1991
2000
1991
2000
1991
2000
Indústria
21,10
15,14
35,22
25,34
24,90
21,68
Comércio
13,14
17,12
11,03
15,12
10,81
13,33
Serviços
56,54
67,54
45,23
59,26
54,35
64,14
Agropecuária
0,24
0,18
0,14
0,27
0,41
0,85
Outros/ig
8,98
0,00
8,37
0,00
9,52
0,00
100,00
100,00
100,00
100,00
100,00
100,00
Total
Fonte: MTE/RAIS, de 1991 e 2000.
No Sul também acontece uma queda na
32,12% dos seus empregos formais na indús-
proporção de empregos industriais. Porto Ale-
tria em 1991, perde mais de 11 pontos percen-
gre tem queda insignificante, de apenas 1,7
tuais e apresenta profunda transformação da
pontos percentuais, conservando seu perfil de
estrutura de emprego em 2000, com ganho de
cidade operária. Curitiba, entretanto, que tinha
18 pontos em serviços.
244
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
O perfil industrial de Curitiba apre-
químico-farmacêutica, a de alimentos e bebi-
senta uma grande transformação nos anos
das e a construção civil.
90: os empregos na indústria de material de
Porto Alegre tem perfil industrial mui-
transporte, que eram apenas 3,77% dos em-
to específico: 26,65% dos empregos formais
pregos formais, sobem para 10,25% em 2000.
alocavam-se na indústria de calçados em
Em números absolutos, isso significou um ga-
1991, proporção com pequena mudança pa-
nho de quase 12 mil postos de trabalho for-
ra 24% em 2000. Em números absolutos, a
mais. Provavelmente a instalação da Renault
indústria calçadista perde quase 7 mil em-
na região metropolitana foi responsável por
pregos no período, mas é ainda a grande em-
esse ganho. Outros setores com nível grande
pregadora, com 1/4 dos empregos formais no
de emprego foram a indústria mecânica, a
setor secundário.
Tabela 6 – Estrutura do emprego formal nas metrópoles do Sul,
1991 e 2000, em %
Curitiba
Setor
Indústria
Porto Alegre
1991
2000
1991
2000
35,12
23,86
29,84
28,15
Comércio
13,58
15,20
12,36
13,88
Serviços
42,34
60,33
52,02
57,25
0,38
0,60
0,40
0,71
Agropecuária
Outros/ig
Total
11,58
0,00
5,38
0,00
100,00
100,00
100,00
100,00
Fonte: MTE/RAIS, de 1991 e 2000.
Fortaleza surge como a metrópole nor-
Recife têm estrutura de empregos muito seme-
destina com maior proporção de empregos for-
lhante no ano 2000. Em Salvador e no Recife,
mais na indústria: 27% em 1991 e 26% no ano
o aumento relativo dos empregos nos serviços
2000. Natal e Recife ficam com cerca de 19%
é alto. Já em Natal esta proporção já era alta
de emprego industrial, e Salvador tem apenas
em 1991, subindo ligeiramente em 2000. Em
15% no ano 2000. De outro lado, Salvador apre-
Fortaleza vai existir a menor proporção de em-
senta mais de 70% de sua força de trabalho
pregos formais em serviços entre as metrópoles
formal nos serviços, mais que o Natal e Recife,
nordestinas, e o aumento entre 1991 e 2000 foi
onde o percentual é de mais que 65%. Natal e
de pouco mais de 4 pontos percentuais.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
245
Suzana Pasternak
Tabela 7 – Estrutura do emprego formal, metrópoles do Nordeste,
1991 e 2000, em %
Setor
Fortaleza
1991
Natal
2000
1991
Recife
2000
1991
Salvador
2000
1991
2000
Indústria
27,29
26,35
18,42
19,55
24,35
19,52
19,30
14,65
Comércio
11,36
14,46
7,76
14,10
11,36
13,92
11,02
13,66
Serviços
53,81
58,03
64,6
65,25
49,72
65,12
62,66
71,13
Agropec.
2,05
1,16
0,29
1,09
0,56
1,41
0,57
0,56
Outros/ig
Total
5,49
0,00
8,67
0,00
14,01
0,00
6,45
0,00
100,00
100,00
100,00
100,00
100,00
100,00
100,00
100,00
Fonte: MTE/RAIS, de 1991 e 2000.
O perfil industrial das metrópoles do
construção civil, o outro ramo industrial com
Nordeste é distinto das do Sul e Sudeste.
alta proporção é o da indústria de produtos
Nessas, a proporção dos empregos formais
alimentícios, com 25% dos empregos formais
na construção civil era de ordem de 20% em
na indústria em 1991 e 21% em 2000. Em Sal-
2000, com exceção de Belo Horizonte, onde
vador, 15% dos empregos na indústria estão
alcançava 32%. Já Recife, Natal e Salvador
na indústria química, 10% nos produtos ali-
apresentam percentuais da ordem de 26% a
mentícios. Nessas duas metrópoles, cerca de
43% de emprego na construção civil. Forta-
10% dos empregos formais encontram-se nos
leza diminui sua proporção de 23% em 1991
serviços industriais de utilidade publica, dife-
para 19% no ano 2000.
rentemente de Fortaleza e Natal.
O outro ramo industrial com for te
As duas aglomerações chamadas de
proporção de empregos formais é o da
expansão: Goiânia e a aglomeração urbana
indústria têxtil: em Fortaleza alcança 35% em
de Maringá apresentam perfil diverso. Goiâ-
2000 (45 mil pessoas), e em Natal, 38% (15,5
nia tem pouco mais de 20% dos empregos
mil empregos).
formais na indústria, enquanto Maringá che-
Salvador e Recife têm em comum com
ga a quase 31%. De outro lado, o setor servi-
as outras metrópoles nordestinas a grande
ços aparece com forte percentual em Goiânia
proporção em construção civil (32% no Reci-
(61,5% em 2000), e em Maringá tem apenas
fe e 43% em Salvador). Diferem, entretanto,
42,24% dos empregos. Entre 1991 e 2000,
de Fortaleza e Natal na distribuição dos ou-
as duas metrópoles se mantiveram com rela-
tros setores industriais: no Recife, além da
tiva estabilidade.
246
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Tabela 8 – Estrutura do emprego formal nas metrópoles de Goiânia e Maringá
Setor
Goiânia
1991
Maringá
2000
1991
2000
Indústria
20,76
21,05
26,14
30,42
Comércio
12,01
16,62
18,06
23,01
Serviços
59,90
61,45
43,82
42,32
Agropecuária
0,41
0,88
5,74
4,24
Outros/ig
6,92
0,00
6,23
0,00
100,00
100,00
100,00
100,00
Total
Fonte: MTE/RAIS, de 1991 e 2000.
O perfil industrial de cada uma dessas
números absolutos, a indústria da madeira e
metrópoles é bem específico. Na RM de Goiâ-
mobiliário passou de 1,7 mil para 2,3 mil em-
nia, tal como nas metrópoles do Nordeste, a
pregados, a têxtil de 3 mil para 6 mil e a cons-
proporção dos empregos formais na constru-
trução civil de quase 4 mil para mais de 7 mil.
ção civil é elevada: 43% em 1991 e 31% no
Concluindo, pode-se observar que a es-
ano 2000. A indústria têxtil aparece também
trutura do mercado de trabalho formal apre-
como grande empregadora, e crescente, com
senta diferenças entre as metrópoles estuda-
proporção aumentando entre 1991 e 2000 de
das. No Sul e Sudeste, São Paulo, Belo Horizon-
8,60% para 14,85% dos empregos formais na
te, Curitiba e Porto Alegre têm mais de 20% do
indústria subindo de 5 mil para 12 mil empre-
seu emprego formal no setor secundário. Nas
gos. Os empregos na indústria de produtos ali-
áreas de expansão do emprego formal, onde
mentícios também sobem de 16% para 24%,
sua taxa de crescimento é superior a 3% ao
aumentando de 9 mil postos de trabalho pa-
ano, acontece o mesmo: tanto Goiânia como
ra 19 mil. De outro lado, o peso dos serviços
Maringá apresentam mais de 20% da força de
industriais de utilidade pública diminui, assim
trabalho empregada formalmente na indústria.
como o número absoluto de empregados.
No Rio de Janeiro, isso não acontece, com ape-
Entre construção civil, produtos alimentícios
nas 15% do emprego formal no setor secundá-
e têxtil, estão 70% dos empregos formais no
rio no ano 2000.
setor secundário.
Nas metrópoles do Nordeste, o perfil é
Já em Maringá, além da indústria da
distinto: apenas Fortaleza aparece com mais de
construção civil (com 22% em 1991 e 24%
20% do emprego formal na indústria. Recife e
em 2000), alimentos e têxtil, tem grande peso
Natal aproximam-se desta cifra, mas Salvador,
a indústria de madeira e mobiliário, com 10%
tal como o Rio de Janeiro, tem apenas cerca de
dos empregos em 1991 e 8% em 2000. Em
15% do emprego formal no setor secundário.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
247
Suzana Pasternak
O perfil dos setores industriais onde se
Goiânia e Maringá também têm grande
aloca essa mão de obra também difere bastan-
proporção de empregos na construção civil.
te: no Sudeste, a não ser em Belo Horizonte, a
Mas o resto de seu perfil industrial é distinto:
proporção de empregados na construção civil
em Maringá, nota-se a grande importância da
fica inferior a 20% da mão de obra emprega-
indústria de alimentos, têxtil e de madeira e
da na indústria. O perfil dos empregos no setor
mobiliário. Em Goiânia, produtos alimentícios
secundário é também específico, com concen-
e têxteis.
tração nos setores de metalurgia, material de
Essas estruturas distintas do emprego
transporte, indústria química e indústria têxtil,
formal e o perfil da economia de cada metró-
no caso de São Paulo; química e têxtil e ser-
pole se refletirão na evolução das categorias
viços de utilidade pública, no caso do Rio de
sócio-ocupacionais.
Janeiro e metalúrgica e produtos alimentícios,
além da construção civil, para Belo Horizonte.
No Sul, chama a atenção a evolução da
mão de obra formal em Curitiba: material de
transporte, que empregava 6 mil pessoas em
1991, vai empregar 18 mil no ano 2000. A in-
Estrutura sócio-ocupacional
nas Regiões Metropolitanas
do Brasil, 1991 e 2000
dústria de alimentos, com 13 mil, passa a 18
mil também, no ano 2000. As indústrias de
Para análise comparativa, sintetizou-se a es-
material de transporte, químico-farmacêutica
trutura sócio-ocupacional urbana em quatro
e produtos alimentícios agregam 30% dos em-
grandes grupos:
pregos industrias. Já na RM de Porto Alegre,
• categorias superiores, compreendendo os
domina a indústria de calçados, com cerca de
dirigentes, profissionais de nível superior e pe-
25% do total de empregos. Nas duas metró-
quenos empregadores;
poles do Sul, o emprego formal na construção
• categorias médias;
civil não alcança 20% no ano 2000.
• categorias populares urbanas, com trabalha-
As metrópoles do Nordeste, como já foi
dores de terciário especializado, não especiali-
colocado, têm grande proporção de empregos
zado e secundários;
na construção civil diferentemente das outras
• agricultores.
metrópoles. Em Salvador, o percentual chega a
Devido à impossibilidade de compara-
43%, representando 44 mil empregos no ano
ção das proporções tal como se apresentam
2000. Em 1991, o número absoluto era ainda
nas tabelas, dado o conceito distinto utilizado
maior, 47 mil postos de trabalho. Salvador e
nos Censos de 1991 e 2000 para a definição
Recife apresentam, tal como o Rio de Janeiro,
de ocupado, verificou-se apenas o incremento
10% dos empregos em serviços de utilidade
relativo, colocando-se como limiar a porcenta-
pública. Além da construção civil, a indústria
gem de 20%. Assim, quando uma proporção
forte no Nordeste é a têxtil, a não ser em Salva-
aumentava ou diminuía mais que 20%, consi-
dor, onde sua representação é pequena.
derava-se relevante.
248
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Estrutura sócio-ocupacional
das metrópoles do Sudeste
Tabela 9 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles do Sudeste,
pelas 8 categorias e indicação de aumento/diminuição
maior que 20% no período
Rio de Janeiro
Grandes categorias
Dirigentes
São Paulo
Belo Horizonte
1991
2000
1991
2000
1991
2000
1,45
1,17
2,16
1,37
1,64
1,27
Profissionais nível superior
6,95
8,76
5,54
7,83
5,67
7,44
Pequenos empregadores
2,65
2,45
3,14
2,65
3,34
2,81
11,05
12,38
10,84
11,85
10,65
11,52
Categorias médias
30,36
27,78
32,03
28,15
29,01
26,13
Trabalhadores terciário especializado
16,68
20,72
15,19
19,34
15,48
19,05
Trabalhadores secundário
22,44
20,18
27,35
24,01
25,03
23,60
Categorias superiores
Trabalhadores terciário não especializado
18,43
18,39
13,71
16,16
18,33
18,55
Categorias populares urbanas
57,55
59,29
56,25
59,51
58,84
61,20
1,04
0,56
0,87
0,50
1,50
1,14
Agricultores
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Tabulações especiais Observatório das Metrópoles.
Em vermelho = aumento maior que 20%
Em verde = diminuição menor que 20%
Nota-se semelhança entre as distribui-
• tanto no Rio, como em São Paulo e em Be-
ções sócio-ocupacionais nas metrópoles do Su-
lo Horizonte, o maior peso entre as categorias
deste e sua dinâmica na década de 90:
sócio-ocupacionais encontra-se entre as catego-
• nas três, a proporção de categorias superio-
rias médias. Nas três metrópoles, essa proporção
res situa-se em torno de 10% em 1991, aumen-
diminui em 2000, passando de porcentagem em
tando em 2000;
torno de 30% para algo em volta de 27%;
• nas três, o peso dos dirigentes cai bastante
• nas três metrópoles, a proporção de cate-
entre 1991 e 2000; a maior queda se dá em São
gorias populares urbanas aumentou, sobretu-
Paulo, onde a proporção era maior em 1991;
do devido ao aumento – superior a 20% – do
• nas três metrópoles, verifica-se nítido au-
terciário especializado. Na metrópole de São
mento dos profissionais de nível superior, maior
Paulo, notou-se também, e apenas nela, um in-
que 20% no período;
cremento do terciário não especializado;
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
249
Suzana Pasternak
• nas três metrópoles, a proporção de agricul-
relativo nos empregos formais em serviços, o
tores é pequena, e está com diminuição relati-
que se refletirá no crescimento dos trabalha-
va acentuada, maior que 20%.
dores do terciário especializado, maior que
Lembrando a Tabela 4, pode-se asso-
20% no período, e na queda dos trabalhado-
ciar o enorme incremento do terciário não
res do secundário. Percebe-se nas metrópo-
especializado na metrópole paulista ao gran-
les do Sudeste:
de aumento da estimativa de informalidade,
• forte profissionalização;
19% em 1991 e 35% no ano 2000. Foi São
• ligeira queda das categorias médias, de pa-
Paulo a metrópole que mais perdeu partici-
tamar maior que 30% para valores mais pró-
pação no emprego formal. E as três metró-
ximos de 27%;
poles tiveram forte queda nos empregos
• aumento de terciário especializado;
formais na indústria e grande incremento
• diminuição dos agricultores.
Estrutura sócio-ocupacional
das metrópoles do Sul
Tabela 10 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles do Sul,
pelas 8 categorias e indicação de aumento/diminuição maior que 20% no período
Grandes categorias
Porto Alegre
Curitiba
1991
2000
1991
2000
Dirigentes
1,48
1,41
1,72
1,44
Profissionais nível superior
5,87
7,59
5,99
7,55
Pequenos empregadores
3,48
3,23
3,36
3,27
Categorias superiores
10,83
12,23
11,07
14,46
Categorias médias
29,50
26,94
28,39
27,28
Trabalhadores terciário especializado
14,90
17,42
15,22
18,15
Trabalhadores do secundário
29,23
27,35
26,10
25,13
Trabalhadores terciário não especializado
14,04
14,70
14,75
14,29
Categorias populares urbanas
58,17
59,47
56,07
57,57
1,50
1,35
4,47
2,68
Agricultores
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Tabulações especiais Observatório das Metrópoles.
Em vermelho = aumento maior que 20%
Em verde = diminuição menor que 20%
250
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Em relação às metrópoles do Sul, pode-
• há maior estabilidade na estrutura das me-
-se notar:
trópoles no Sul que nas metrópoles do Sudeste;
• tal como entre as metrópoles do Sudeste, há
• o peso dos trabalhadores industriais é maior
um aumento das categorias superiores, sobre-
no Sul que no Sudeste;
tudo devido a um forte incremento nos profis-
• percebe-se também uma profissionalização
sionais de nível superior;
tanto em Curitiba como em Porto Alegre;
• percebe-se perda dos dirigentes, mas menos
• há diminuição dos agricultores, mais forte
acentuada que entre as metrópoles do Sudeste;
em Curitiba;
• embora perceba-se pequeno aumento das
• as categorias médias caem, de quase 30%
categorias populares urbanas nas duas me-
para proporção mais próxima a 25%.
trópoles, o incremento entre os trabalhadores
Os empregos formais cresceram nas me-
terciários especializados é menor que entre as
trópoles do Sul, diferentemente de São Paulo e
metrópoles do Sudeste;
Rio de Janeiro. Em Curitiba, o saldo de empre-
• de outro lado, o peso dos trabalhadores do
gos formais entre 1991 e 2000 foi alto, de mais
secundário em Curitiba e em Porto Alegre é
de 200 mil postos de trabalho. As estimativas
maior que nas metrópoles do Sudeste;
de informalidade, embora aumentando no pe-
• tal como nas metrópoles do Sudeste, há per-
ríodo, cresceram muito pouco. Em Porto Alegre,
da de trabalhadores do secundário, mas menos
o peso dos empregos industriais formais caiu
acentuada.
minimamente, de 29,84% para 28,15%; já em
• em Curitiba, em 1991, a proporção de agri-
Curitiba a queda dos empregos formais indus-
cultores era considerável; quase 5% dos ocupa-
triais foi grande, de mais de 11 pontos percen-
dos. Ela decresce fortemente em 2000, indo
tuais. Essa queda nos empregos formais do
para 2,7% dos ocupados.
secundário não se reflete na proporção de tra-
Assim, sintetizando as mudanças na estrutura sócio-ocupacional do Sul, nota-se que:
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
balhadores do secundário de 2000 em Curitiba,
que ficou bem próxima da de 1991.
251
Suzana Pasternak
Estrutura sócio-ocupacional
das metrópoles do Nordeste
Tabela 11 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles do Nordeste,
pelas 8 categorias e indicação de aumento/diminuição maior que 20% no período
Fortaleza
Natal
Recife
Salvador
Grandes categorias
1991
2000
1991
2000
1991
2000
1991
2000
0,79
1,10
0,90
1,21
0,40
1,21
0,48
0,40
Profissionais superiores
3,87
5,78
6,11
7,08
5,66
6,91
1,41
2,74
Pequenos empregadores
2,62
1,94
2,21
2,47
2,56
2,21
1,75
2,96
Dirigentes
Categorias superiores
7,28
8,82
9,22
10,76
8,62
10,33
3,64
5,10
23,18
22,89
26,06
25,39
26,61
26,43
18,67
19,83
Trabalhadores terciário especializado
15,77
20,89
16,87
20,23
16,44
21,54
15,87
20,51
Trabalhadores secundário
27,17
24,71
22,69
21,70
20,97
19,89
34,84
28,49
Categorias médias
Trabalhadores terciário não especializado
19,43
19,41
18,43
17,26
19,88
20,04
20,86
21,05
Categorias populares urbanas
62,37
65,01
57,99
59,19
57,29
61,47
71,57
70,05
7,18
3,27
6,74
4,65
3,45
1,77
6,08
4,41
Agricultores
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Tabulações especiais Observatório das Metrópoles.
Em vermelho = aumento maior que 20%
Em verde = diminuição menor que 20%
As estruturas sócio-ocupacionais das me-
Salvador apenas de 3,6%, que sobe para 5%
trópoles nordestinas têm mais em comum en-
em 2000; de outro lado, o peso dos agricultores
tre si que em relação às metrópoles do Sudeste
em Fortaleza, Natal e Salvador em 1991 alcan-
e do Sul:
çava mais de 6%; além disso, nas metrópoles
• apenas em Natal não houve aumento maior
do Nordeste há ganho entre os dirigentes, o
que 20% nas categorias superiores, embora
que não acontece no Sudeste e no Sul;
mesmo em Natal observa-se incremento nesta
• no ano 2000, há uma aumento das cate-
proporção. A proporção de ocupados perten-
gorias populares urbanas em todas as quatro
centes às categorias superiores era bem menor
metrópoles nordestinas estudadas, assim como
em 1991 que nas metrópoles do Sudeste e Sul,
uma redução das camadas médias, com exce-
e mesmo em 2000 continua menor: no Sudeste
ção de Salvador;
e no Sul, em 1991, a proporção de ocupados
• a dinâmica 1991-2000 apresenta semelhan-
das categorias superiores ficava em torno de
ças: todas as metrópoles do Nordeste apre-
11%, e em 2000, de 12%; já nas metrópoles
sentam ganho significativo de trabalhadores
do Nordeste, em 1991, Fortaleza, Natal e Re-
do terciário especializado e perda importante
cife apresentavam proporções entre 7 a 9%, e
dos agricultores;
252
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
• em relação às categorias superiores, a
Nordeste, a porcentagem de ocupados classi-
evolução das metrópoles do Nordeste não é
ficados como profissionais de nível superior é
uniforme: Fortaleza, Natal e Recife mostram
menor que no Sul (cerca de 7%) e no Sudeste
ganho significativo de dirigentes, o que não
(cerca de 7,5%). Em Salvador, a porcentagem
acontece em Salvador; de outro lado, Fortale-
não atinge 3%;
za, Recife e Salvador mostram crescente pro-
• aumento das categorias superiores como
fissionalização, o que não sucede em Natal.
um todo;
Fortaleza é a única metrópole que demonstra
• a proporção de trabalhadores do terciário
perda de pequenos empregadores e Salvador,
especializado em 2000 alcança mais de 20%
ganho destes pequenos empregadores.
dos ocupados em todas as quatro metrópo-
Nas metrópoles do Nordeste, há ganho
les; no Sul, era cerca de 17% e no Sudeste,
absoluto de empregos formais no período
19%. Mas, tal qual nas outras regiões, en-
1991-2000, com taxas anuais de quase 2% ao
tre 1991 e 2000 essa proporção aumentou
ano em Fortaleza e Salvador. Apesar disso, há
significativamente;
forte aumento da informalidade nestas metró-
• a proporção de trabalhadores do secun-
poles, com taxas maiores que 40% de traba-
dário é alta em Fortaleza e em Salvador, tal
lho informal (menos Salvador, com 37%). Per-
como em Curitiba e em Porto Alegre. No Re-
cebe-se assim nas metrópoles do Nordeste:
cife e em Natal, ela é bem menor, perto dos
• aumento significativo dos dirigentes, dife-
20%;
rentemente das metrópoles do Sul e do Sudes-
• as categorias médias representam menos
te. A proporção é bem menor que nas outras
de 20% em Salvador, 23% em Fortaleza e em
metrópoles, mas o incremento é significativo;
torno de 25% no Recife e em Natal. Nas me-
• profissionalização, com aumento da pro-
trópoles do Sudeste e do Sul, as proporções
porção dos profissionais de nível superior. No
são maiores, cerca de 27%.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
253
Suzana Pasternak
Estrutura sócio-ocupacional
das metrópoles das áreas de expansão
Tabela 12 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles das áreas de expansão,
pelas 8 categorias e indicação de aumento/diminuição maior que 20% no período
Grandes categorias
Maringá
Goiânia
1991
2000
1991
2000
Dirigentes
1,75
1,25
1,45
1,62
Profissionais nível superior
4,00
5,39
5,37
6,53
Pequenos empregadores
5,32
4,16
4,05
3,44
11,07
10,80
10,87
11,58
Categorias médias
21,37
20,90
27,77
24,52
Trabalhadores terciário especializado
13,79
17,15
17,48
18,98
Trabalhadores do secundário
25,23
26,53
24,49
24,79
Trabalhadores terciário não especializado
16,71
16,42
17,49
18,10
Categorias populares urbanas
55,73
60,10
59,46
61,86
Agricultores
11,82
8,20
1,89
2,03
Categorias superiores
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Tabulações especiais Observatório das Metrópoles.
Em vermelho = aumento maior que 20%
Em verde = diminuição menor que 20%
Maringá e Goiânia apresentam taxas
de empregos formais na indústria, enquanto
anuais de crescimento populacional maiores que
em Maringá essa proporção chega a 31%. De
2% no período 1991-2000. Foram chamadas de
outro lado, o setor serviços aparece com forte
expansão porque são as únicas, entre todas as
percentual em Goiânia, com 61,5% dos empre-
metrópoles estudadas, com taxa anual de cres-
gos formais em 2000, enquanto em Maringá
cimento do emprego formal maiores que 3,5%
atinge 42% dos empregos formais.
ao ano (Maringá com 4,12% anuais e Goiânia
A estrutura sócio-ocupacional também
com 3,55 ao ano). As duas aglomerações apre-
difere, com a proporção de categorias médias
sentavam alta informalidade em 1991– Marin-
em Goiânia bem superior à de Maringá. O per-
gá com mais de 60% e Goiânia com pouco mais
centual de agricultores de Maringá era bastan-
de 40%. Essa informalidade caiu em Maringá e
te alto em 1991 e continua alto em 2000, em-
subiu ligeiramente em Goiânia.
bora com redução significativa.
Como já foi dito, o perfil dos empregos
A única comunalidade entre as duas
formais nas duas metrópoles de expansão é
aglomerações é o forte aumento de profissio-
bem diverso: Goiânia tem pouco mais de 20%
nais de nível superior.
254
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Considerações finais sobre a estrutura
socioespacial e sua dinâmica
O único local onde algo semelhante à
tendência descrita por Sassen se manifestou,
com aumento das categorias superiores e in-
Todas as metrópoles estudadas tiveram crescimento demográfico maior na periferia que no
núcleo e muitas apresentam esvaziamento populacional e funcional das áreas centrais mais
consolidadas. Não raro, o movimento geral em
direção a uma urbanização mais dispersa tem
forte impacto sobre o meio ambiente.
Embora as metrópoles apresentem especificidades, há certa semelhança nas suas estruturas: no ano 2000, em todas predominam
os ocupados nas ocupações médias, a participação das categorias superiores é reduzida, assim como a dos agricultores. A comparação de
1991 com 2000 mostra a perda de agricultores,
a perda de trabalhadores industriais, o ganho
de trabalhadores de serviços e a maior profissionalização com o aumento dos trabalhadores
de nível superior.
feriores e perda das médias, foi na metrópole paulista. Mesmo assim, a proporção que
aumentou entre as categorias superiores não
foi a dos dirigentes, mas a hierarquicamente
inferior – a dos profissionais de nível superior.
Mas em São Paulo existirá um certo achatamento das categorias médias e aumento das
populares urbanas, sobretudo devido ao aumento dos trabalhadores do terciário não especializado compensando a diminuição dos
trabalhadores do secundário. Nas outras duas
metrópoles do Sudeste, Rio de Janeiro e Belo
Horizonte, não se verificou aumento do terciário não especializado. Nas metrópoles do Nordeste, percebeu-se aumento das categorias
superiores, tanto dirigentes como profissionais
de nível superior e manutenção da proporção
do terciário não especializado.
Surgem algumas diferenças na dinâmica
sócio-ocupacional entre o Sudeste e o Nordeste:
• no Sudeste, é nítida a perda de dirigentes,
enquanto no Nordeste percebe-se um ganho
Perfil de algumas categorias
sócio-ocupacionais
nas categorias superiores e um ganho entre os
dirigentes;
A questão básica à qual este item pretende res-
• no Sudeste, percebe-se perda considerável
ponder liga-se às características dos componen-
nas categorias médias, enquanto no Nordeste
tes das categorias sócio-ocupacionais em cada
há ganho em Salvador e perdas muito tênues
grande região brasileira. Através de alguns in-
em Natal, Fortaleza e Recife;
dicadores demográficos, socioeconômicos e da
• em São Paulo, houve aumento significativo
moradia, pretende-se comparar perfis das diver-
dos trabalhadores do terciário não especiali-
sas categorias sócio-ocupacionais nas distintas
zado; no Rio, praticamente a proporção destes
metrópoles, respondendo a questões como:
trabalhadores se manteve. Tanto em Belo Hori-
• quem são os componentes da elite? Serão
zonte como nas metrópoles do Nordeste a pro-
eles distintos nas metrópoles do Sudeste e do
porção dos não especializados diminui entre
Nordeste? Esta elite vem se modificando no
1991 e 2000.
tempo?
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
255
Suzana Pasternak
• quais as características das categorias médias
Censos Demográficos de 1991 e 2000, re-
nas diferentes metrópoles e nas distintas datas?
lacionadas à demografia, renda, trabalho,
• qual o peso de cada categoria ocupacional
educação e moradia. Algumas metrópo-
nos trabalhadores manuais urbanos de cada ti-
les não tiveram tempo hábil para o deta-
po de metrópole? Quem são estes trabalhado-
lhamento desses indicadores. Assim, esta
res manuais urbanos e suas características se
parte do texto reunirá informações de São
mantiveram na década?
Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Por-
Para embasar essas questões, utilizaram-se alguns indicadores fornecidos pelos
to Alegre, Curitiba, Natal, Recife, Fortaleza
e Salvador.
Perfil das categorias superiores
a) dirigentes
Quadro 2 – Indicadores para os dirigentes nas metrópoles do Sudeste
Indicadores sintéticos
São Paulo
Rio de Janeiro
Belo Horizonte
1991
2000
1991
2000
1991
2000
Demografia
– % homens
– % 65 anos e mais
– % brancos
– % nascidos no estrangeiro
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado
– tempo médio dos migrantes no Estado
82,51
3,54
85,68
22,84
5,99
5,11
68,26
4,39
87,78
30,79
6,24
5,09
82,1
4,4
86,5
–
5,5
–
67,6
6,1
84,3
–
2,9
–
82,21
3,48
81,69
1,56
13,92
4,92
67,86
4,28
81,35
1,33
13,89
5,37
Renda
– média renda domiciliar sm
– média renda per capita sm
26,68
8,55
22,03
13,93
–
–
55,83
–
25,56
7,99
28,80
11,78
Trabalho
– % de contribuintes à previdência
– % de conta própria sem previdência
87,38
–
100,00
–
–
0,00
39,3
0,1
89,88
0,00
51,38
0,00
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram
11,86
13,14
12,0
13,3
11,96
13,10
Moradia
– % apartamentos
– % casas com saneamernto escoado
– média de banheiros
40,39
93,97
2,58
49,84
97,18
2,72
62,3
90,3
–
59,7
95,7
–
51,12
92,47
2,87
56,04
95,66
2,89
Fonte: Censos Demográficos de 1991 e 2000.
256
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Há inúmeras comunalidades entre os
metrópole paulista, local preferencial da sede
integrantes dos dirigentes nas metrópoles
de grandes corporações;
do Sudeste:
• em relação à migração, em Belo Horizonte
• os homens são predominantementes, cerca
há migrantes mais recentes. Mas isso não se
de 80% em 1991, com entrada de mulheres em
reflete num tempo médio menor dos migrantes
2000, quando a proporção masculina desce pa-
no Estado, perto de 5 anos para as elites nas
ra cerca de 67% nas três metrópoles;
metrópoles do Sudeste;
• a proporção de pessoas com 65 anos e mais
• a renda média domiciliar da elite no Rio de
é equivalente em São Paulo e Belo Horizonte
Janeiro é quase o dobro que em São Paulo e
(perto de 3,5% em 1991 e 4,3% no ano 2000)
Belo Horizonte, o que é, no mínimo, estranho...
e mais elevada no Rio de Janeiro, onde chega a
Pode ter havido algum erro no cômputo dessa
6% em 2000;
renda domiciliar carioca. As rendas domiciliares
• a elite é predominantemente branca nas
e per capita de São Paulo e Belo Horizonte se
três metrópoles, com menor intensidade em
aproximam, com a domiciliar com cerca de 25
Belo Horizonte
salários mínimos. Mas nota-se que em Belo Ho-
• a grande diferença se encontrou na pro-
rizonte ela sobre entre 1991 e 2000, enquanto
porção de nascidos no estrangeiro, mais que
a de São Paulo diminui;
20% em São Paulo em 1991 e subindo para
• a média de anos de estudo é semelhante nas
31% no ano 2000. Em Belo Horizonte, essa
três metrópoles, cerca de 12 anos, com tendên-
proporção é ínfima, de pouco mais de 1%. A
cia a aumentar em 2000;
presença de tantos nascidos em outros países
• a verticalização da moradia é maior no Rio
na elite da maior metrópole brasileira, nu-
de Janeiro, onde acontece o inverso das outras
ma época em que a migração internacional
metrópoles: nessas outras, a proporção das eli-
é pequena, pode refletir a presença de altos
tes morando em apartamentos aumenta entre
executivos de multinacionais sediados na
1991 e 2000. No Rio, ela diminui.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
257
Suzana Pasternak
Quadro 3 – Indicadores para os dirigentes nas metrópoles do Sul
Indicadores sintéticos
Curitiba
Porto Alegre
1991
2000
1991
2000
Demografia
– % homens
– % 65 anos e mais
– % brancos
– % nascidos no estrangeiro
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado
– tempo médio dos migrantes no Estado
80,8
3,8
94,3
9,33
9,59
4,87
67,8
4,1
94,2
9,30
8,90
5,00
81,43
3,19
96,67
3,22
2,07
5,11
64,42
3,41
96,68
1,30
5,02
4,52
Renda
– média renda domiciliar sm
– média renda per capita sm
24,9
7,6
19,9
10,7
22,63
7,6
27,57
11,52
Trabalho
– % de contribuintes à previdência
– % de conta própria sem previdência
87,0
–
82,3
–
87,18
0,00
74,76
0,00
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram
11,7
13,0
11,47
12,93
Moradia
– % apartamentos
– % casas com saneamernto escoado
– média de banheiros
38,2
85,1
2,8
48,5
92,6
2,7
45,23
89,19
2,41
48,56
98,32
2,31
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.
Observando-se alguns indicadores para
• em Porto Alegre, a proporção de nascidos no
as duas metrópoles do Sul, temos:
estrangeiro é mínima, como em Belo Horizonte;
• a proporção de dirigentes do sexo masculi-
já em Curitiba essa proporção atinge mais de
no é equivalente à das metrópoles do Sudeste,
9% dos dirigentes. É alta, embora bem menor
assim como a tendência da diminuição dessa
que a de São Paulo. Mas atesta a presença de
proporção em 2000. Aliás, em 2000 a propor-
migração de executivos para a metrópole;
ção de homens entre dirigentes do Sul asseme-
• em relação à migração, em Curitiba há mais
lha-se à dos dirigentes do Sudeste;
migrantes recentes. Em Porto Alegre, a situação
• a proporção de pessoas com 65 anos e mais
migratória parece a de São Paulo: os tempos
também se assemelha à do Sudeste; é mais
médios dos migrantes no Estado, em volta de 5
elevada em Curitiba no ano 2000 que em Por-
anos, são iguais aos do Sudeste;
to Alegre;
• a renda domiciliar média é um pouco menor
• a elite é quase totalmente branca, e os per-
que a das metrópoles do Sudeste. Em Curitiba,
centuais de brancos são ainda superiores aos
a dinâmica é como a paulista, com a renda mé-
das metrópoles do Sudeste;
dia de 2000 menor que a de 1991. Em Porto
258
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Alegre, como em Belo Horizonte, deu-se o fenô-
• tanto em Curitiba como em Porto Alegre
meno inverso. As rendas per capita aumentam,
a elite ainda mora em casas: a verticali-
o que indica tamanho menor de família, tal co-
zação de Curitiba aumenta, mas não atin-
mo no Sudeste;
ge 50% . Porto Alegre tem uma elite mais
• a média de anos de estudo aumenta e tem a
verticalizada, mas em proporção menor que
mesma grandeza que nas metrópoles do Sudeste;
o Rio de Janeiro.
Quadro 4 – Indicadores para os dirigentes nas metrópoles do Nordeste
Fortaleza
Natal
Recife
Salvador
Indicadores sintéticos
1991
2000
1991
2000
1991
2000
1991
2000
79,31
3,95
58,69
1,20
7,21
33,07*
82,59
4,22
68,01
0,00
12,57
10,2
82,59
4,22
68,01
0,00
12,57
10,2
60,76
1,55
67,68
0,61
6,79
17,85
80,45
3,73
71,46
3,67
7,11
1,79
61,01
4,05
72,48
2,45
5,20
2,40
80,71
3,17
65,04
–
–
–
63,07
3,93
61,74
11,66
5,51
6,06
Renda
– média renda domiciliar sm
– média renda per capita sm
30,80
7,28
24,56
4,45
24,56
4,45
29,35 75,41*
9,08
19,28
21,94
3,45
Trabalho
– % de contribuintes à previdência
– % de conta própria sem previdência
78,38
0,00
76,52
0,00
76,52
0,00
61,11
0,00
80,81
0,00
46,02
0,00
85,20
0,00
82,52
0,00
9,76
11,91
11,91
13,34 23,91*
12,88
12,16
13,50
43,25
40,92
2,62
23,64
33,60
3,03
23,64
33,60
3,03
19,46
92,34
2,91
62,00
83,18
2,72
64,25
96,95
2,81
70,67
89,44
2,93
Demografia
– % homens
– % 65 anos e mais
– % brancos
– % nascidos no estrangeiro
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado
– tempo médio dos migrantes no Estado
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram
Moradia
– % apartamentos
– % casas com saneamernto escoado
– média de banheiros
58,03
68,12
5,48
– 57,25*
–
16,09
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.
• Os valores marcados com * devem ter algum problema, estão muito fora do esperado. Assim, não entrarão para a análise.
Percebe-se que:
no ano 2000. Nesse item, também não se per-
• nas metrópoles do Nordeste, a tendência ao
cebe diferença entre as elites nordestinas e as
aumento da proporção de mulheres entre os di-
do Sul-Sudeste;
rigentes é semelhante ao Sudeste e ao Sul, com
• o percentual de brancos entre os membros
porcentagem por volta de 80% em 1991 e 60%
da elite é bem menor no Nordeste, com menos
no ano 2000;
de 70% em Natal e Fortaleza, pouco mais de
• a proporção de pessoas com 65 anos e mais
70% em Recife e 60% em Salvador. No Sul,
fica em torno de 4%, aumentando ligeiramente
essa elite era quase que totalmente branca,
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
259
Suzana Pasternak
e no Sudeste, essa proporção atingia mais de
tempo que no Sul ou no Sudeste, com exceção
80% em Belo Horizonte e quase 90% no Rio
de Belo Horizonte;
e em São Paulo. Percebe-se a existência de
• a comparação com a renda média domiciliar
proporção significativa de não brancos na elite
foi prejudicada pela constatação que alguns
do Nordeste;
valores podem estar superdimensionados. Mas
• a proporção de nascidos no estrangeiro
aparentemente em Fortaleza e em Natal atinge
entre a elite nordestina é ínfima, mesmo no
valores maiores que no Sul e no Sudeste. Uma
Recife, onde atinge um pouco mais (3,7%
hipótese é de que altos executivos migrantes
em 1991). As únicas metrópoles com alta
internos exijam salários e bonificações altas
proporção de nascidos no estrangeiro são
para fixarem residência no Nordeste;
Curitiba e São Paulo. No Nordeste, a elite é
• a tendência ao aumento da média de anos
basicamente nacional, a não ser em Salvador,
de estudo se mantém;
onde 12% dos dirigentes em 2000 nasceram
• outra grande diferença entre a elite do Nor-
no estrangeiro;
deste e a do Sul Sudeste diz respeito às con-
• percebe-se nas metrópoles nordestinas que
dições de moradia: a não ser o Recife e em
parcela considerável da elite é migrante recen-
Salvador, a verticalização é baixa. Em 1991, o
te: em Natal, em 1991, mais de 12% estava na
saneamento básico era precário, melhorando
cidade há menos de 5 anos. Mesmo em Forta-
em todas as metrópoles nordestinas no ano
leza a proporção de 7% dos membros da elite
2000. E o número de banheiros por domicílio
há menos de 5 anos no Estado, assim como no
é também alto, tal qual as casas da elite no Sul
Recife, mostra uma elite que chegou há menos
e no Sudeste.
260
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
b) profissionais de nível superior
Quadro 5 – Indicadores para os profissionais de nível superior
nas metrópoles do Sudeste
Indicadores sintéticos
São Paulo
Rio de Janeiro
Belo Horizonte
1991
2000
1991
2000
1991
2000
Demografia
– % homens
– % 65 anos e mais
– % brancos
– % nascidos no estrangeiro
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado
– tempo médio dos migrantes no Estado
51,48
1,72
86,21
8,20
6,81
5,09
48,77
2,00
83,48
12,97
8,07
5,03
50,8
2,4
82,7
–
2,6
–
49,8
3,1
79,9
–
2,8
–
67,99
2,09
69,15
1,04
6,73
4,79
58,83
2,98
74,55
0,65
4,31
5,09
Renda
– média renda domiciliar sm
– média renda per capita sm
22,27
7,72
19,66
10,05
21,14
–
30,62
–
15,83
4,96
22,22
8,30
Trabalho
– % de contribuintes à previdência
– % de conta própria sem previdência
82,65
28,65
68,12
40,38
78,1
6,0
63,1
11,1
78,34
34,00
60,97
54,38
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram
14,87
14,33
15,0
14,6
11,03
12,46
Moradia
– % apartamentos
– % casas com saneamernto escoado
– média de banheiros
38,42
95,38
2,12
42,77
96,91
2,03
64,1
93,9
–
60,7
96,8
–
51,12
87,88
1,97
48,88
93,97
2,17
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.
Analisando o Quadro 5, que se refere aos
de Janeiro e em Belo Horizonte, está por volta
profissionais de nível superior das metrópoles
de 3%; já em São Paulo situa-se em 2%. Entre
do Sudeste, e comparando os indicadores aos
os dirigentes, esse percentual era da ordem de
dos dirigentes, tem-se:
4,5%. Assim, os profissionais de nível superior
• a razão de sexo entre os profissionais de ní-
são mais jovens que os dirigentes;
vel superior é distinta da razão de sexo entre os
• a proporção de brancos é dominante entre
dirigentes, com maior proporção de mulheres
os profissionais de nível superior das metrópo-
nas três metrópoles, com tendência ao aumen-
les no Sudeste, mas em nível inferior à dos di-
to do peso para o sexo feminino, como para os
rigentes: entre esses, 85% eram brancos. Entre
dirigentes. A ordem de grandeza dessa porcen-
os profissionais de nível superior, apenas em
tagem é de 50% para o Rio de Janeiro e São
São Paulo a proporção é equivalente. No Rio
Paulo, e 60% para Belo Horizonte;
e em Belo Horizonte, a proporção desce para
• a proporção de pessoas com mais de 65
perto de 80%. Nas três metrópoles, ela é de-
anos é menor que entre os dirigentes. No Rio
crescente em 2000;
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
261
Suzana Pasternak
• São Paulo continua com proporção alta de
dirigentes, observa-se que é mais baixa, já que
nascidos no estrangeiro, 13% no ano 2000,
a dos dirigentes apresentava média de 25 salá-
mas muito menor que entre os dirigentes;
rios mínimos;
• a proporção de migrantes há menos de 5
• percebe-se, nas três metrópoles, uma preca-
anos no estado é alta em São Paulo, onde
rização das relações de trabalho: a proporção
8% dos profissionais de nível superior estão
de contribuintes à previdência decresce nas
nesta condição no ano 2000. Para a mesma
três metrópoles, com decréscimo de 15 a 17
metrópole, entre os dirigentes a proporção
pontos percentuais;
era de 6% . Portanto da mesma ordem de
• a média de anos de estudo é maior que entre
grandeza. Em Belo Horizonte, as porcentagens
os dirigentes em São Paulo e no Rio;
são menores ;
• a moradia é pouquíssimo menos verticali-
• a renda média domiciliar dos profissionais
zada que entre os dirigentes. E a proporção
de nível superior de São Paulo e Belo Horizonte
dos moradores em apartamentos é maior no
está em torno de 20 salários mínimos, subindo
Rio. As condições sanitárias das moradias são
em Belo Horizonte e descendo em São Paulo no
boas, e a média de banheiros por domicílio é
período estudado. No Rio, apresenta-se mais
perto de dois, menor que entre os dirigentes,
alta. Comparando essa renda média com a dos
de 2,7.
Quadro 6 – Indicadores para os profissionais
de nível superior nas metrópoles do Sul
Indicadores sintéticos
Curitiba
Porto Alegre
1991
2000
1991
2000
Demografia
– % homens
– % 65 anos e mais
– % brancos
– % nascidos no estrangeiro
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado
– tempo médio dos migrantes no Estado
51,4
3,8
92,0
7,16
9,83
4,95
47,8
1,8
91,8
6,8
10,9
5,0
44,91
1,50
95,95
0,86
4,73
4,62
44,61
2,02
95,13
1,31
5,74
4,80
Renda
– média renda domiciliar sm
– média renda per capita sm
18,4
6,2
16,5
7,2
18,25
6,65
23,53
8,62
Trabalho
– % de contribuintes à previdência
– % de conta própria sem previdência
83,3
39,5
64,1
50,6
84,36
33,29
70,30
42,05
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram
14,7
14,3
15,39
14,97
Moradia
– % apartamentos
– % casas com saneamernto escoado
– média de banheiros
49,2
89,9
2,2
51,4
95,8
2,0
65,71
92,85
1,91
63,16
98,16
1,76
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.
262
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Caracterizando-se os profissionais de ní-
mínimos. Para o Sul, a renda média dos dirigen-
vel superior do Sul, percebe-se que:
tes foi de 23 salários mínimos;
• o perfil demográfico – proporção de homens
• também é notável a precarização das rela-
e de idosos – é bastante semelhante entre si
ções de trabalho entre os profissionais de nível
e com as metrópoles do Sudeste. Percebe-se
superior no Sul, cerca de 19 pontos percentuais
também que os profissionais de nível superior
em Curitiba e 15 em Porto Alegre. E a propor-
têm maior proporção de mulheres e menor de
ção dos que trabalham por conta própria e não
pessoas mais velhas que os dirigentes;
têm previdência é de 50% em Curitiba e 42%
• a proporção de brancos é alta, da ordem de
em Porto Alegre, equivalente, assim, à propor-
95% em Porto Alegre e 92% em Curitiba;
ção dos mineiros e paulistas;
• praticamente não há estrangeiros em Porto
• as condições sanitárias domiciliares são boas,
Alegre, mas em Curitiba a proporção é signifi-
e a média de banheiros por domicílio é perto de
cativa, como em São Paulo;
2, inferior à média dos dirigentes. Em Porto Ale-
• a renda média dos profissionais de nível su-
gre, a verticalização das moradias é forte, com
periores estava em torno de 18 salários míni-
mais de 605 dos profissionais de nível superior
mos em 1991. Em Curitiba, desce no ano 2000,
residindo em apartamentos, mais que os diri-
enquanto em Porto Alegre sobe para 23,5 salá-
gentes, ainda detentores de residências unifami-
rios mínimos. Nas metrópoles do Sudeste, essa
liares. Em Curitiba, a proporção era menor, mas
renda média situava-se por volta de 20 salários
também maior que a entre os dirigentes.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
263
Suzana Pasternak
Quadro 7 – Indicadores para os profissionais de nível superior
nas metrópoles do Nordeste
Fortaleza
Natal
Recife
Salvador
Indicadores sintéticos
1991
2000
1991
2000
1991
2000
1991
2000
47,09
1,47
55,32
0,39
6,30
46,56
1,75
61,07
0,50
11,00
44,51
0,61
61,03
0,58
15,32
14,3
45,70
1,06
64,84
0,41
13,03
16,09
46,36
1,50
71,46
0,73
5,45
3,18
45,76
2,07
67,60
0,80
8,94
2,50
46,14
1,35
55,07
–
–
–
45,57
1,80
61,74
5,33
11,71
4,66
11,84
2,82
28,59
7,50
16,74
2,92
8,81
–
34,96
9,58
12,71
4,81
–
–
27,38
8,28
78,49
–
84,70
55,01
43,25
62,77
85,94
–
61,86
–
86,80
52,85
41,83
54,25
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram
12,98
12,40
15,00
14,44
–
14,31
14,72
14,32
Moradia
– % apartamentos
– % casas com saneamernto escoado
– média de banheiros
25,14
34,60
1,97
42,03
83,68
2,02
27,94
25,86
2,4
18,52
88,80
2,46
50,95
67,81
4,25
55,68
82,55
2,23
57,47
97,77
2,25
68,63
89,06
2,32
Demografia
– % homens
– % 65 anos e mais
– % brancos
– % nascidos no estrangeiro
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado
– tempo médio dos migrantes no Estado
Renda
– média renda domiciliar sm
– média renda per capita sm
Trabalho
– % de contribuintes à previdência
– % de conta própria sem previdência
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.
• Os valores marcados com * devem ter algum problema, estão muito fora do esperado. Assim, não entrarão para a análise.
Comparando-se os Quadros 5, 6 e 7, tem-
• em relação à cor da pele, os profissio-
-se que:
nais de nível superior do Nordeste apresen-
• as proporções de homens entre os profissio-
tam menor proporção de brancos, cerca de
nais de nível superior nas metrópoles do Sudes-
60% . Em Recife , essa porcentagem atinge
te, Sul e Nordeste são semelhantes, em torno
quase 70%. Nas metrópoles do Sul, as pro-
de 45 a 50%, mantendo-se na década. Há bem
porções de brancos são altíssimas, de mais
mais mulheres entre esses profissionais que en-
de 90% . No Sudeste, um pouco menores,
tre os dirigentes, em que a proporção variava
da ordem de 80%. Mas deve ser notado que
em torno de 60 a 70%;
em todas as metrópoles essa proporção é
• a proporção de idosos é ligeiramente maior
menor entre os profissionais de nível supe-
no Rio de Janeiro e em Curitiba. Nas outras
rior que entre os dirigentes;
metrópoles, quer do Sudeste quer do Sul ou do
• não há estrangeiros no Nordeste, com ex-
Nordeste, é pequena, em torno de 1 a 2%;
ceção de Salvador, onde cerca de 55 dos
264
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
profissionais de nível superior nasceram fora
• a média de anos de estudo é semelhante em
do Brasil. Mas apresentam proporção significa-
todas as metrópoles, muitas vezes maior que
tiva em São Paulo e Curitiba. São metrópoles
entre os dirigentes;
industriais, com sedes de multinacionais. Mas
• as condições de moradia no Nordeste são
mesmo em São Paulo, Curitiba e em Salvador, a
distintas do Sudeste e Sul: menor verticaliza-
proporção de nascidos no estrangeiro é maior
ção, condições sanitárias precárias em 1991 e
entre os dirigentes;
melhorando em 2000.
• a renda média dos profissionais de nível
Resumindo, as categorias superiores
superior parece ser maior no Sudeste que no
possuem perfil demográfico bastante seme-
Sul, e nestas duas regiões quando comparadas
lhante. Destaca-se a presença de estrangeiros
com o Nordeste. No Sudeste, a média ficou em
em Curitiba, em São Paulo e, em proporção um
torno de 20 salários mínimos; no Sul, em torno
pouco menor, em Salvador. Em relação à cor da
de 18 salários mínimos. E no Nordeste, embo-
pele, nas categorias superiores predominam os
ra alguns dados saiam da média, ela parece
brancos, embora nas metrópoles nordestinas a
se situar por volta de 15 salários mínimos. De
proporção de não brancos seja mais elevada.
qualquer forma, há diferença significativa entre
As rendas médias se situam num intervalo en-
a renda média dos dirigentes e a dos profissio-
tre 25 e 18 salários mínimos, sendo maior no
nais de nível superior;
Sudeste. As médias de anos de estudo variaram
• a precarização das relações de trabalho
entre 12 e 15 anos. As relações de trabalho es-
ocorre em todas as metrópoles, do Sudes-
tavam se precarizando em todas as metrópoles
te, Sul e Nordeste. Em Natal e em Curitiba,
na década de 1990. Além da cor e da renda,
ela é violenta, com queda na contribuição à
outra distinção entre categorias superiores no
Previdência de cerca de 40 e 20 pontos percen-
Sudeste, Sul e Nordeste diz respeito às condi-
tuais, respectivamente;
ções de moradia.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
265
Suzana Pasternak
Perfil das categoria médias
Quadro 8 – Indicadores para as categorias médias
nas metrópoles do Sudeste e do Sul
Indicadores sintéticos
São Paulo
Rio de Janeiro
Belo Horizonte
1991
1991
2000
55,4
56,09
52,12
58,6
1,6
0,55
0,80
0,8
61,5
55,98
59,30
86,4
–
–
0,21
0,28
5,0
1,2
4,41
4,80
–
–
4,98
14,26
9,68
14,99
5,24
–
–
81,75
70,63
84,4
42,35
57,91
–
9,54
10,80
1991
2000
58,35
53,10
60,2
0,86
1,05
1,1
75,14
74,62
77,9
– % nascidos no estrangeiro
3,85
4,96
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado
7,93
7,30
– tempo médio dos migrantes no Estado
5,08
5,71
– média renda domiciliar sm
12,55
– média renda per capita sm
3,80
– % de contribuintes à previdência
– % de conta própria sem previdência
2000
Curitiba
1991
Porto Alegre
2000
1991
2000
53,9
58,36
53,84
0,9
0,80
1,04
86,9
89,20
89,10
4,17
2,3
0,58
0,37
9,40
10,2
3,79
4,15
5,17
4,66
5,0
4,98
4,93
10,15
14,02
10,1
10,9
9,39
14,01
2,94
4,54
3,1
3,8
3,14
4,99
72,5
86,10
67,73
84,6
73,2
84,72
68,77
–
35,40
61,21
49,6
62,7
41,71
54,48
10,1
10,8
9,86
10,75
9,9
10,7
9,80
10,74
Demografia
– % homens
– % 65 anos e mais
– % brancos
Renda
Trabalho
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram
Moradia
15,90
25,29
35,9
34,6
24,36
34,21
28,4
27,7
40,77
38,10
– % casas com saneamernto escoado
88,1
93,62
84,9
91,9
83,83
89,72
76,7
90,3
79,66
94,63
– média de banheiros
1,43
1,57
–
–
1,48
1,57
1,5
1,5
1,25
1,32
– % apartamentos
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.
As camadas médias das metrópoles do
• a proporção de migrantes há menos de 5
Sudeste e do Sul mostram semelhanças entre si,
anos no estado continua mais alta em São Pau-
e diferenças em relação às camadas superiores:
lo e em Curitiba, mas é menor nas categorias
• os ocupados das categorias médias já não
superiores. O mesmo se dá na proporção de
são basicamente homens: em 2000, em todas
nascidos no estrangeiro, significativa apenas
as cinco metrópoles do Quadro 8 percebe-se
para São Paulo e Curitiba, mas bem menor en-
que mais de 40% dos membros são do sexo
tre as categorias superiores;
feminino. São mais jovens que as categorias
• a renda média domiciliar é semelhante no
superiores;
ano 2000 em todas as metrópoles, cerca de
• a proporção de brancos no Sudeste fica em
14 salários mínimos, bem menor que entre os
torno de 75% e no Sul, de 87%. Pode-se dizer
dirigentes (25 s.m.) e entre os profissionais de
que o percentual de brancos nas camadas mé-
nível superior (20 s.m.);
dias é superior ao do total da população das
• a escolaridade média fica em pouco me-
metrópoles, mas inferior ao das categorias
nos que 10 anos de estudo, para todas as
superiores;
metrópoles;
266
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
• entre as categorias médias também se veri-
em Porto Alegre, com percentuais em torno de
fica a precarização das relações de trabalho na
35 a 38% morando em apartamentos. Em to-
década de 90, com perda de cerca de 15 pontos
das as metrópoles, as condições sanitárias do-
percentuais em quase todas as metrópoles do
miciliares são corretas e melhoraram em 1991.
Sudeste e do Sul. E, entre os que trabalham por
A média de banheiros por domicílios é inferior
conta própria, grande proporção já não con-
à das categorias superiores;
tribui para a previdência. Esta média era em
• pode-se concluir que as categorias média
torno de 40% em 1991, subindo para mais de
das metrópoles do Sudeste e do Sul apresen-
55% no ano 2000;
tam muita semelhança entre si, e diferem das
• as camadas médias são menos verticalizadas
categorias superiores em relação à cor, razão
que as categorias superiores em todas as me-
de sexo, renda, escolaridade, precarização
trópoles do Sul e Sudeste. Sua maior proporção
maior das relações de trabalho, menor verticali-
de verticalização vai ocorrer no Rio de Janeiro e
zação e menos banheiros por moradia.
Quadro 9 – Indicadores para as categorias médias
nas metrópoles do Nordeste
Fortaleza
Natal
Recife
Salvador
Indicadores sintéticos
Demografia
– % homens
– % 65 anos e mais
– % brancos
– % nascidos no estrangeiro
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado
– tempo médio dos migrantes no Estado
Renda
– média renda domiciliar sm
– média renda per capita sm
Trabalho
– % de contribuintes à previdência
– % de conta própria sem previdência
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram
Moradia
– % apartamentos
– % casas com saneamernto escoado
– média de banheiros
1991
2000
1991
2000
1991
2000
1991
2000
54,37
0,79
40,09
0,14
4,35
–
51,29
0,79
48,02
0,50
4,83
–
56,26
0,79
47,05
0,20
10,60
16,8
51,57
0,77
52,92
0,11
10,89
17,52
57,34
1,06
43,78
0,21
3,89
2,29
51,55
1,04
50,62
0,24
4,21
2,60
54,29
0,76
26,00
–
–
–
50,16
0,97
31,41
3,05
7,82
4,76
–
–
14,52
3,59
7,98
1,56
7,21
3,41
16,48
4,39
20,96
4,08
–
–
13,05
3,63
72,44
–
–
–
75,28
74,66
36,30
80,62
78,92
–
55,52
–
81,82
38,68
62,68
70,56
8,66
9,52
9,99
10,52
19,73
10,64
9,84
10,69
16,04
23,09
1,39
19,29
70,79
1,48
10,28
15,02
1,50
19,93
74,67
1,68
28,30
48,32
2,88
29,8
65,69
1,57
22,72
93,55
1,42
46,05
84,18
1,61
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
267
Suzana Pasternak
Observando-se o perfil das categorias
No Sul-Sudeste, os porcentuais estão por vol-
médias do Nordeste, pode-se ver que:
ta de 70%;
• os ocupados das categorias médias apresen-
• as categorias médias são menos verticaliza-
tam proporção de mulheres maior que entre as
das que a superiores, com cerca de 20% mo-
categorias superiores, cerca de 40%. Essa pro-
rando em apartamentos em Natal e Fortaleza e
porção cresceu entre 1991 e 2000. A razão de
30% no Recife. No Sul-Sudeste, essa proporção
sexo entre os ocupados das categorias médias
alcançou 38%. Em todas as metrópoles nordes-
do Sul-Sudeste e do Nordeste é semelhante;
tinas, as condições sanitárias melhoraram entre
• a proporção de brancos entre as categorias
1991 e 2000, mas são ainda bem inferiores às
médias do Nordeste fica entre 40 e 50%. En-
das camadas médias do Sul-Sudeste;
tre as categorias superiores era de 60%. Assim,
• pode-se concluir que as categorias médias
têm em comum com as categorias médias do
do Nordeste apresentam muita semelhança en-
Sul-Sudeste a diminuição de brancos em rela-
tre si, tal como as do Sul-Sudeste. A única com
ção às categorias superiores. Mas, comparando
diferença marcante é Salvador, com maior pro-
com as categorias médias do Sul-Sudeste, onde
porção de não brancos e maior verticalização.
a porcentagem de brancos era da ordem de 75-
E, em relação a essas, apresentam poucas dife-
85%, pode-se afirmar que os não brancos são
renças: têm maior proporção de não brancos e
mais presentes no Nordeste. A grande exceção
moram com condições sanitárias piores. A ren-
é Salvador, com cerca de 30% de brancos no
da parece ser menor em Natal, mas os dados
ano 2000. Salvador é a metrópole com maior
de Recife e Fortaleza desmentem essas ideias,
proporção de não brancos tanto nas categorias
mostrando renda maior.
superiores como nas médias;
• quase não há estrangeiros, e a proporção
de migrantes há menos de 5 anos no estado
é pequena no Recife e em Fortaleza, um pouco
Perfil das categorias
populares urbanas
maior em Salvador, mas considerável em Natal,
onde esse percentual atinge mais de 10%;
a) Trabalhadores do secundário
• a renda média domiciliar alcança 7 salários
Dado que o perfil do emprego formal difere en-
mínimos em Natal, mas chega a 14 em Forta-
tre as metrópoles do Sul – onde a proporção
leza e em Salvador e a 20 no Recife. Assim, em
de empregos formais na indústria é maior; no
Natal apresenta níveis inferiores aos do Sul-Su-
Sudeste – onde apenas São Paulo possui mais
deste, mas no Recife, Salvador e em Fortaleza
de 25% de sua força de trabalho formal aloca-
têm níveis superiores;
da na indústria; e no Nordeste, onde Salvador,
• a escolaridade média fica em torno de 10
Recife e Natal apresentam menos de 20% dos
anos de estudo, tal como no Sul-Sudeste;
empregos formais na indústria, enquanto For-
• a proporção de contribuintes à Previdência
taleza surge como “polo industrial nordestino”,
decresce entre 1991 e 2000, tal como no Sul-
com mais de 26% dos empregos formais neste
-Sudeste. Atinge, em 2000, níveis bem infe-
setor da economia – verificou-se a proporção
riores, como 36% em Natal e 55% no Recife.
da população ocupada como trabalhadores do
268
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Tabela 11 – Proporção de trabalhadores do secundário no total dos ocupados
das categorias urbanas populares, diversas metrópoles, 2000
Metrópole
% dos trabalhadores do secundário
Porto Alegre
61,08
Curitiba
58,06
São Paulo
40,35
Belo Horizonte
38,56
Fortaleza
38,01
Natal
36,66
Rio de Janeiro
34,03
Recife
32,36
Salvador
31,89
Fonte: IBGE:Censo de 2000.
secundário nas diversas metrópoles, o que indi-
indústria tradicional representam apenas 16%
caria composição distinta entre trabalhadores
dos trabalhadores do secundário. O maior per-
do terciário especializado e não especializado e
centual encontra-se entre os trabalhadores da
trabalhadores do secundário nas aglomerações
construção civil. Já em Porto Alegre, a indústria
brasileiras estudadas.
tradicional aparece com força, com 32,53%
Observa-se que o peso dos ocupados no
dos operários. O polo calçadista tem presen-
secundário é bastante diverso nas diferentes
ça indiscutível. Aliás, outra metrópole onde
metrópoles, indo de percentuais elevados en-
a indústria tradicional lidera o percentual de
tre as categorias populares urbanas, como nas
trabalhadores é Fortaleza. Nota-se que o cha-
metrópoles do Sul, onde agrega cerca de 60%
mado perfil 2, com aproximadamente 40% das
desta categoria, passando por São Paulo, Belo
categorias populares urbanas no secundário,
Horizonte e Fortaleza, com percentual apro-
é bastante diverso: em São Paulo, a indústria
ximado de 40%, Rio de Janeiro e Natal, com
moderna aparece como grande empregadora,
35%, e Recife e Salvador, com cerca de 30%.
com quase 30% dos trabalhadores do secun-
São quatro perfis de metrópole em relação ao
dário; já em Fortaleza, esse papel é desem-
peso do secundário entre as categorias urba-
penhado pela indústria tradicional e em Belo
nas populares.
Horizonte pela construção civil. Nas outras
Mas vão existir diferenças dentro des-
metrópoles, tanto do perfil 3 (35% de traba-
ses perfis. As metrópoles do Sul, onde a pro-
lhadores das categorias populares urbanas no
porção de trabalhadores do secundário é alta,
secundário) como do perfil 4 (apenas 30% no
de aproximadamente 60%, mostram uma dis-
secundário) a construção civil é, indiscutivel-
tribuição destes trabalhadores entre os diver-
mente, a grande empregadora entre os traba-
sos segmentos do secundário. Pela Tabela 12,
lhadores do secundário. Se a análise for feita
nota-se que em Curitiba os trabalhadores da
por grande região, o Rio de Janeiro apresenta
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
269
Suzana Pasternak
um perfil nordestino, enquanto Fortaleza fo-
Salvador a construção civil empregue mais de
ge a este perfil. Chama a atenção que em
40% do total de trabalhadores do secundário.
Tabela 12 – Composição dos trabalhadores do secundário,
metrópoles dos perfis 1 e 2, em %
Curitiba
Porto Alegre
São Paulo
Belo Horizonte
Fortaleza
Indústria moderna
Categoria sócio-ocupacional
24,20
23,26
29,59
23,89
15,06
Indústria tradicional
16,00
32,53
19,11
17,84
37,75
Serviços auxiliares
26,00
17,90
24,96
22,71
18,79
Construção civil
32,80
26,31
26,34
35,57
28,40
Total secundário
100,00
100,00
100,00
100,00
100,00
Fonte: IBGE: Censo de 2000.
Tabela 13 – Composição dos trabalhadores do secundário,
metrópoles com perfis 3 e 4, em %
Categoria sócio-ocupacional
Rio de Janeiro
Natal
Recife
Salvador
Indústria moderna
19,34
17,45
21,03
21,03
Indústria tradicional
19,35
26,27
20,43
16,34
Serviços auxiliares
25,21
24,19
25,89
21,46
Construção civil
36,10
32,08
32,64
41,17
Total secundário
100,00
100,00
100,00
100,00
Fonte: IBGE: Censo de 2000.
Resumindo, há duas metrópoles com gran-
peso relativo maior na indústria moderna – São
de peso de ocupação na indústria tradicional –
Paulo, embora Curitiba e Belo Horizonte já apare-
Porto Alegre e Fortaleza, com Natal surgindo como
çam com peso relativo digno de nota neste item.
possível centro da indústria tradicional, com 26%
dos ocupados do secundário. Apenas uma com
270
Resta saber o perfil destes trabalhadores
do secundário.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Quadro 10 – Perfil dos trabalhadores do secundário nas metrópoles
mais industrializadas (perfis 1 e 2)
Indicadores sintéticos
Curitiba
1991
Porto Alegre
2000
São Paulo
Belo Horizonte
Fortaleza
1991
2000
1991
2000
1991
2000
1991
2000
73,45
Demografia
86,6
87,8
78,12
80,46
81,05
84,12
74,50
75,17
72,38
1,0
1,2
1,55
1,17
1,22
1,36
1,17
1,32
1,22
1,27
– % brancos
75,3
76,4
73,84
84,56
59,42
56,88
34,69
38,71
23,60
31,58
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado
6,10
7,10
3,17
2,49
12,65
10,22
3,57
3,38
4,98
3,30
– tempo médio dos migrantes no Estado
4,80
5,10
4,94
5,66
4,84
5,81
4,90
5,59
–
–
– média renda domiciliar SM
5,6
6,3
4,91
6,88
7,69
8,50
4,90
6,95
2,78
8,15
– média renda per capita SM
1,4
1,7
1,39
2,10
2,06
2,18
1,19
1,91
0,64
1,95
– % de contribuintes à previdência
67,0
56,7
76,70
64,23
65,80
50,17
80,76*
–
49,86
43,28
– % de conta própria sem previdência
67,2
84,6
52,99
71,13
59,06
77,77
31,53
71,24
–
–
5,5
6,6
5,36
6,36
5,68
6,72
5,41
6,47
3,95
5,41
– % homens
– % 65 anos e mais
Renda
Trabalho
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram
Moradia
5,2
3,9
7,72
5,79
3,31
8,14
3,03
7,96
2,57
4,02
47,5
74,8
57,91
83,46
72,66
92,48
62,25
76,35
11,46
53,40
1,1
1,2
0,90
1,05
1,11
1,22
1,02
1,14
0,89
0,95
– % apartamentos
– % casas com saneamernto escoado
– média de banheiros
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.
* estimativa superdimensionada.
As características dos trabalhadores do
em São Paulo, o percentual de brancos é menor
secundário nas metrópoles mais industrializa-
entre os trabalhadores do secundário que entre
das mostram muitas semelhanças:
os ocupados das categorias médias e superiores;
• em todas as cinco metrópoles a proporção
• em relação à migração, apenas em São Paulo
de homens entre os trabalhadores do secun-
e em Curitiba ela aparece como fenômeno que
dário era maior que a média da metrópole, e
merece algum registro;
maior que entre profissionais de nível superior
• a renda média domiciliar aumenta entre
e categorias médias. É provável que os operá-
1991 e 2000, para todas as metrópoles indus-
rios da construção civil, majoritariamente mas-
triais. É maior em São Paulo, onde atingiu, em
culinos, estejam afetando esse número;
2000, 8,50 salários mínimos e a renda domi-
• em todas as metrópoles o percentual de ido-
ciliar per capita de 2,18 salários mínimos. Em
sos é mínimo;
Curitiba e Belo horizonte, a renda domiciliar per
• em relação à cor, os brancos dominam nas
capita não chega a dois salários mínimos, e em
metrópoles do Sul, Curitiba e Porto Alegre. Mas
Porto Alegre alcança 2,10 no ano 2000. O dado
mesmo nessas metrópoles, essas proporções
de Fortaleza para o ano 2000 parece estar su-
são menores que entre as categorias médias e
perestimado, dado que a diferença entre 1991
superiores. Em São Paulo, há quase a mesma
e 2000 é enorme. E, em todas as metrópoles, é
proporção de brancos e não brancos. Também
menor que entre as categorias médias.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
271
Suzana Pasternak
• sobre as relações de trabalho, em todas
• a média de anos de estudo é maior que 6
as metrópoles percebe-se uma forte precari-
anos, e aumentou entre 1991 e 2000. Apenas
zação entre 1991 e 2000. Em Porto Alegre, o
em Fortaleza tem valores menores que 6 no
nível de contribuição à previdência é maior,
ano 2000;
e em Fortaleza, menor. A proporção dos
• as condições de moradia são melhores na
“por conta própria sem previdência” tam-
metrópole paulista e piores em Fortaleza. E a
bém aumentou;
moradia é predominantemente horizontal.
Quadro 11 – Perfil dos trabalhadores do secundário nas metrópoles
menos industrializadas (perfis 3 e 4)
Indicadores sintéticos
Rio de Janeiro
Natal
Recife
Salvador
1991
2000
1991
2000
1991
2000
1991
2000
Demografia
– % homens
– % 65 anos e mais
– % brancos
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado
– tempo médio dos migrantes no Estado
81,8
1,7
41,4
2,4
–
86,9
2,1
42,9
2,9
–
78,82
0,95
27,49
7,50
–
83,36
1,01
36,12
7,38
–
85,53
1,28
25,87
3,82
2,11
86,84
1,24
33,04
1,60
2,67
87,46
1,05
11,49
–
–
88,85
1,42
14,57
4,47
5,36
Renda
– média renda domiciliar SM
– média renda per capita SM
4,93
–
6,99
–
4,34
0,64
5,67
1,35
6,75
2,12
–
3,84
5,67
–
5,72
1,46
Trabalho
– % de contribuintes à previdência
– % de conta própria sem previdência
51,3
–
40,7
–
53,41
76,61
45,18
90,37
60,58
–
43,41
–
66,13
69,48
42,49
83,00
5,5
6,7
5,44
6,07
–
6,08
5,15
6,16
10,4
66,9
–
9,6
78,4
–
1,15
8,70
1,1
17,00
50,65
1,22
6,64
21,83
1,90
7,18
39,36
1,04
5,23
75,25
0,97
17,48
69,36
1,12
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram
Moradia
– % apartamentos
– % casas com saneamernto escoado
– média de banheiros
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.
O perfil dos trabalhadores do secun-
homens, também influenciados operários da
dário das metrópoles menos industrializa-
construção civil;
das difere em poucos pontos do perfil das
• a proporção de idosos é insignificante;
industrializadas:
• o percentual de brancos não atinge 40% nas
• a razão de sexo favorece, como nas outras, o
metrópoles do Nordeste e apenas ultrapassa
sexo masculino. Pode-se afirmar que os traba-
esta cifra no Rio de Janeiro. Era maior em São
lhadores do secundário são predominantemente
Paulo e nas metrópoles do Sul;
272
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
• a migração aparece como significante ape-
• a média de anos de estudo, tal como nas ou-
nas em Natal;
tras, está por volta de 6 anos, sendo maior em
• a renda média domiciliar é semelhante à das
2000 que em 1991;
metrópoles com perfil 1 e 2;
• as condições de moradia são bastante precá-
• as relações de trabalho estão mais precárias
rias em Natal e no Recife, embora o saneamen-
em 2000 que em 1991 e têm ordem de gran-
to básico tenha melhorado sensivelmente na
deza inferior às metrópoles do Sul e São Paulo;
década. A moradia é quase sempre horizontal.
b) Trabalhadores do terciário não especializado
Quadro 12 – Alguns indicadores de 2000 para os trabalhadores
do terciário não especializado
Metrópole
% homens
% brancos
Renda domiciliar
Anos de estudo
Previdência
Curitiba
32,80
73,20
5,70
6,00
44,50
Porto Alegre
32,14
75,62
6,56
6,05
55,03
São Paulo
36,42
52,49
7,58
6,03
81,75
Rio de Janeiro
36,60
38,50
6,99
6,00
40,60
Belo Horizonte
50,34
32,82
6,40
5,53
49,17
Fortaleza
42,38
30,33
6,07
4,50
–
Natal
38,67
34,64
5,72
5,68
44,53
Recife
39,01
32,33
–
5,16
–
Salvador
30,86
12,99
7,84
5,46
40,40
Fonte: IBGE: Censo Demográfico de 2000.
Alguns pontos podem ser enfatizados so-
de serviços não especializados. Nas metrópo-
bre os trabalhadores do terciário não especiali-
les do Sul e em São Paulo e Rio de Janeiro,
zado, a partir da observação de indicadores de
a forte presença feminina deve estar ligada
2000 para as metrópoles em estudo:
ao contingente de trabalhadores domésticos.
• a razão de sexo favorece as mulheres, com
É provável que em Fortaleza, Belo Horizonte,
exceção de Belo Horizonte, onde é pratica-
Natal e Recife, além dos domésticos, a repre-
mente igual. Em Fortaleza, a proporção de ho-
sentação dos prestadores de serviços não es-
mens alcança mais de 40%. Os trabalhadores
pecializados, biscateiros e ambulantes tenha
do terciário não especializado incluem domés-
forte componente masculino. Já em Salva-
ticos, ambulante e biscateiros e prestadores
dor, além dos domésticos, é provável grande
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
273
Suzana Pasternak
presença de ambulantes do sexo feminino, resultando na razão de sexo de 31% de homens.
Considerações parciais sobre o perfil
das categorias sócio-ocupacionais
Um ponto que deve ser enfatizado é que a
proporção de mulheres entre os trabalhadores
Como já foi apontado no item “Considerações
do terciário não especializado é sempre maior
finais sobre a estrutura socioespacial e sua di-
que entre os demais ocupados, em todas as
nâmica”, a dinâmica sócio-ocupacional apre-
metrópoles. Além disso, percebe-se que a
senta algumas diferenças claras entre as me-
proporção de mulheres é bastante semelhante
trópoles do Sudeste e do Nordeste. No Sudeste,
entre as metrópoles;
há perda de dirigentes, enquanto no Nordeste
• a proporção de brancos entre estes traba-
vai acontecer um ganho. Nas metrópoles das
lhadores é a menor entre as categorias sócio-
duas regiões, há grande aumento relativo dos
-ocupacionais, para todas as metrópoles. Em-
profissionais de nível superior.
bora os percentuais entre elas sejam diversos,
indo desde 75% de homens no Sul, passando
por 50% em São Paulo, cerca de 30% no Rio
de Janeiro e nas metrópoles nordestinas e alcançando apenas 13% em Salvador, isso reflete a proporção de não brancos em cada uma
dessas metrópoles;
• a renda domiciliar é mais alta em São Paulo
e em Salvador. Nas outras metrópoles fica por
volta de 6 a 7 salários mínimos. Chama a atenção a grande estabilidade entre metrópoles.
Dois pontos escapam dessa estabilidade, São
Paulo e Salvador. Uma hipótese é que em São
Em relação às camadas médias, no Sudeste percebe-se significativa redução, enquanto no Nordeste houve ganho em Salvador e tênue redução nas outras metrópoles.
Os trabalhadores do terciário não especializado apresentam aumento relativo apenas
na metrópole paulista. No Rio de Janeiro, seu
peso relativo se manteve, enquanto nas outras
metrópoles sua proporção diminui.
Havia uma hipótese que os perfis das
distintas categorias fossem heterogêneos entre as diferentes metrópoles. O que se percebeu, entretanto, foi grande semelhança nestes
perfis entre metrópoles e grande distinção
Paulo realmente a renda seja mais alta acom-
entre as categorias dentro de cada metrópo-
panhando os pisos salariais da cidade, enquan-
le. Ou seja, há heterogeneidade entre distin-
to em Salvador a renda de ambulantes traria a
tas categorias e homogeneidade na mesma
média para cima;
categoria entre diferentes metrópoles. É claro
• os anos de estudo também são homogêneos
que isto é uma tendência, que não oculta algu-
nas distintas metrópoles, em torno de 6 anos
mas diferenças entre o perfil de determinada
no Sul/Sudeste a 5 no Nordeste. Em Fortaleza, a
categorias entre uma metrópole e outra. Mas
média é menor, apenas 4,5 anos;
a tendência é maior heterogeneidade entre
• a cobertura de previdência social é precária
categorias de uma mesma metrópole e maior
em quase todas as metrópoles, a grande exce-
semelhança entre perfis da mesma categoria
ção sendo São Paulo.
entre distintas metrópoles.
274
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Entre as categorias superiores:
as metrópoles e diferente da porcentagem de
– para os dirigentes
homens entre os dirigentes, que é maior;
• em todas as metrópoles há tendência de
• a proporção de idosos é ligeiramente su-
maior proporção de mulheres em 2000 que em
perior no Rio de Janeiro e em Curitiba. Mas é
1991. Não há diferença significativa nas distin-
sempre menor que entre os dirigentes;
tas metrópoles;
• em relação à cor da pele, no Nordeste vai
• a proporção de idosos fica em torno de
existir menor proporção de brancos que no Su-
4%, também sem diferença visível entre as
deste e no Sul. Mas é inferior, nas três metrópo-
metrópoles;
les, a proporção de brancos entre os dirigentes;
• o percentual de brancos entre os membros
• a proporção de estrangeiros continuava sig-
da elite é bem menor no Nordeste. No Sul, a
nificativa apenas em São Paulo e em Curitiba,
elite é quase toda branca e, no Sudeste, a pro-
tal como entre os dirigentes. Mas, mesmo nes-
porção ficava por volta de 90%. Assim, nas
sas metrópoles, apresenta-se inferior à porcen-
metrópoles do Nordeste percebe-se uma elite
tagem de estrangeiros entre os dirigentes;
não branca;
• há diferença significativa entre a renda mé-
• nas metrópoles do Nordeste, percebe-se que
dia dos profissionais de nível superior e os di-
parte da elite é migrante recente. De outro la-
rigentes. E, entre estes profissionais de nível
do, a parcela de nascidos no estrangeiro na eli-
superior, a renda média é maior no Sudeste que
te nordestina é ínfima, o que não acontece em
no Sul e maior no Sul que no Nordeste;
São Paulo e Curitiba. Salvador aparece como
• a precarização das relações de trabalho em
exceção, com 12% de seus dirigentes nascidos
todas as metrópoles é violenta entre 1991 e
fora do Brasil;
2000;
• a renda média da elite nordestina é maior
• a média de anos de estudo é semelhante en-
que a da elite nas outras metrópoles. Uma hi-
tre os profissionais de nível superior, em todas
pótese é que altos executivos migrantes inter-
as metrópoles, e maior que a dos dirigentes;
nos exijam salários e bonificações para fixarem
• as condições de moradia do Nordeste são
residência no Nordeste;
distintas das do Sul e Sudeste, com menor ver-
• as condições de moradia são fortemente
ticalização e pior condição sanitária.
condicionadas pelas condições da metrópole.
Assim era esperado que o perfil da moradia
fosse distinto. No Nordeste, a verticalização
tende a ser mais baixa e as condições de saneamento, sobretudo em 1991, eram bastante precárias.
Entre as categorias médias:
• a razão de sexo entre as categorias média
nas distintas metrópoles é semelhante, mas
distinta da razão entre as categorias superiores. Nas médias, a proporção de mulheres é
maior e cresceu entre 1991 e 2000;
– para os profissionais de nível superior
• a proporção de brancos nas categorias mé-
• a proporção de homens entre os profissionais
dias do Nordeste fica entre 40 e 50%. No Sul e
de nível superior é bastante semelhante entre
no Sudeste, é maior. Mas todas as metrópoles
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
275
Suzana Pasternak
têm maior proporção de brancos entre as cate-
• dentro de cada um desses perfis, vão existir
gorias superiores;
distintas composições dentro dos trabalhadores
• quase não há estrangeiros e a proporção de
do secundário. Há duas metrópoles com grande
migrantes é pequena. A única exceção é em
peso de ocupação na indústria tradicional: Por-
Natal, onde cerca de 10% dos ocupados nas
to Alegre e Fortaleza, com Natal despontando
categorias médias são migrantes;
como possível polo de emprego para operários
• a renda domiciliar média das categorias mé-
da indústria tradicional. Apenas uma metrópo-
dias é menor que das superiores. Há variabili-
le – São Paulo – caracteriza-se como centro de
dade de renda média entre Sul-Sudeste e Nor-
emprego de operários da indústria moderna,
deste. A renda média do Nordeste é superior,
embora Curitiba e Belo Horizonte já apareçam
com exceção de Natal;
com peso relativo digno de nota nesse item.
• a escolaridade é menor que nas categorias
Nas outras, o maior peso relativo encontra-se
superiores, mas semelhante entre as metrópo-
na construção civil. Salvador chega a ter mais
les, em torno de 10 anos de estudo;
de 40% dos seus ocupados no secundário na
• a contribuição à previdência cai entre 1991 e
construção civil;
2000 em todas as metrópoles. Em 2000, atinge
• em todas as metrópoles, a proporção de ho-
níveis muito baixos nas metrópoles do Nordeste;
mens entre os trabalhadores do secundário é
• as condições de moradia apresentam menor
maior que a média da metrópole, e maior que
verticalização que entre as categorias supe-
entre os profissionais de nível superior e as ca-
riores. As condições sanitárias das moradias
tegorias médias. É provável que os operários da
do Nordeste melhoraram na década, mas ain-
construção civil, majoritariamente masculinos,
da são inferiores às condições de moradia no
estejam afetando esse porcentual;
Sul-Sudeste.
• em todas as metrópoles, a proporção de ido-
Entre as categorias populares urbanas:
sos é mínima;
– trabalhadores do secundário
• a proporção de brancos difere nas metrópo-
• a proporção de trabalhadores do secundá-
les do Sul, Sudeste e Nordeste. Mas é sempre
rio no total das categorias populares urbanas
maior que entre as categorias médias;
é bastante distinta. Pode-se determinar quatro
• a renda domiciliar aumenta para todas entre
tipos de perfil: o perfil 1, com cerca de 60% de
1991 e 2000, mas é menor que entre as cate-
trabalhadores do secundário entre as catego-
gorias médias; é semelhante entre os diversos
rias populares urbanas em 2000 (Porto Alegre
perfis de taxa de industrialização;
e Curitiba); o perfil 2, com aproximadamente
• a média de anos de estudo e menor que en-
40% de secundário (São Paulo, Belo Horizonte
tre as categorias médias, mas é semelhante en-
e Fortaleza); o perfil 3, com 35% de secundá-
tre as metrópoles, cerca de 6 anos;
rios (Rio de Janeiro e Natal); e o perfil 4, com
• as condições de moradia são melhores em
cerca de 30% de trabalhadores do secundário
São Paulo e piores em Fortaleza. São mais ho-
no total das categorias populares urbanas (Re-
rizontais e com condições sanitárias piores que
cife e Salvador);
entre as categorias médias;
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Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000
– trabalhadores do terciário não especializado
• a cobertura da previdência é precária em to-
• os trabalhadores do terciário não especia-
das as metrópoles.
lizado são predominantemente mulheres, em
todas as metrópoles. E sempre a proporção de
mulheres nesses trabalhadores é a maior entre
Resumindo
todas as categorias sócio-ocupacionais, e semelhante entre as metrópoles;
• há diferenças marcantes na razão de sexo,
• a proporção de brancos é também a menor
proporção de idosos, origem, escolaridade,
entre todas as categorias. Varia por metrópole.
renda, condições de trabalho e de moradia
No Sul chega a 75%, enquanto no Nordeste é
entre as categorias sócio-ocupacionais numa
menor, atingindo seu mínimo em Salvador, com
mesma metrópole;
apenas 13% dos trabalhadores do terciário não
• há algumas diversidades em relação à cor,
especializados brancos;
renda e condição de moradia entre as mesmas
• a renda domiciliar fica entre 6 a 7 salários
categorias sócio-ocupacionais nas distintas
mínimo. Apenas dois pontos escapam da esta-
metrópoles (sobretudo diferenças entre as me-
bilidade: São Paulo e Salvador;
trópoles do Sul/Sudeste e do Nordeste);
• a média de anos de estudo é também homo-
• há inúmeras semelhanças entre os perfis das
gênea, com cerca de 5 a 6 anos de estudo;
mesmas categorias nas distintas metrópoles.
Suzana Pasternak
Professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
Pesquisadora do CNPq. Vice coordenadora do Observatório das Metrópoles.
[email protected]
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
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Suzana Pasternak
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Texto recebido em 4/nov/2010
Texto aprovado em 15/dez/2010
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Instruções aos autores
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A revista Cadernos Metrópole, de periodicidade semestral, tem como enfoque o debate de
questões ligadas aos processos de urbanização e à questão urbana, nas diferentes formas que assume
na realidade contemporânea. Trata-se de periódico dirigido à comunidade acadêmica em geral,
especialmente, às áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Geografia,
Demografia e Ciências Sociais.
A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam
com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema
político-institucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão baseados na
governança urbana.
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A revista Cadernos Metrópole é composta de um núcleo temático, com chamada de trabalho
específica, e um de temas livres relacionados às áreas citadas. Os textos temáticos deverão ser
encaminhados dentro do prazo estabelecido e deverão atender aos requisitos exigidos na chamada; os
textos livres terão fluxo contínuo de recebimento.
Os artigos podem ser redigidos em língua portuguesa ou espanhola. Os artigos apresentados
em outros idiomas serão traduzidos para o português.
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dos membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos
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de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema.
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ser colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções:
Livros
AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Capítulos de livros
AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR
(org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar.
Artigos de periódicos
AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo.
Exemplo:
TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos
Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28.
Trabalhos apresentados em eventos científicos
AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, número, ano,
local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final.
Exemplo:
SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle
social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília, MPAS/
SAS, pp. 193-207.
Teses, dissertações e monografias
AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição.
Exemplo:
FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de
gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de
mestrado. São Paulo, FFLCH.
Textos retirados de Internet
AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso.
Exemplo:
FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em: 8 set 2005.
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