seminário olhares sócio-históricos sobre a religião

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seminário olhares sócio-históricos sobre a religião
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A
RELIGIÃO
22 a 23 de maio de 2012
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro –
Instituto Multidisciplinar
CADERNO DE ANAIS
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
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Seminário Olhares Sócio-Históricos sobre a Religião (1.: 2012: Nova Iguaçu,
RJ)
Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião: Caderno de Anais do Seminário
Olhares Sócio-Históricos sobre a Religião. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Maio
22 – 23, 2012. / Autor: Comissão Organizadora do Seminário Olhares SócioHistóricos sobre a Religião / Organizado por Sílvia Regina Alves Fernandes.
Nova Iguaçu: UFRRJ/IM, 2012.
258 p.
ISSN: 2317-1278
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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EXPEDIENTE
Realização
Grupo de pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião
Coordenação Geral
Profª. Drª. Sílvia Regina Alves Fernandes
Comitê Científico
Prof. Dr. Ítalo Domingos Santirocchi
Prof. Dr. Marcos José de Araújo Caldas
Profª. Drª. Sílvia Regina Alves Fernandes
Comissão Organizadora
Anderson Leon Almeida de Araújo
Bruno Marinho dos Santos Loura
Carla Juliana Delecrode do N. Pires
Elizabeth Santos de Souza
Laís de Almeida Medeiros
Larissa Oliveira
Lindalva Trajano
Maria Lúcia Alexandre
Olga Djmila dos Santos Chiapim
Editoração, Capa e Design
Elizabeth Santos de Souza
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APRESENTAÇÃO
Este Seminário é fruto do acúmulo de reflexão acadêmica que
vem sendo realizada no Instituto Multidisciplinar sobre a temática
Religião. Desde o ano de 2007, quando da instalação do grupo de
pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CNPq), sob a
liderança da professora Sílvia Regina Alves Fernandes, a inserção
de alunos do curso de História nos projetos de pesquisa
desenvolvidos no grupo e o diálogo interdisciplinar realizado em
sala de aula - sobretudo na disciplina Sociologia da Religião -,
resultaram na proposta deste seminário.
Objetivo
Ampliar o conhecimento sobre os estudos em andamento ou
concluídos de alunos e professores da UFRRJ que têm a Religião
como foco de interesse acadêmico. Pretende-se ainda divulgar as
atividades do grupo e delinear novas possibilidades de pesquisa
nas áreas de Sociologia, Antropologia e História da Religião em
níveis de graduação e Pós-graduação.
Público Alvo: Alunos de Graduação e Pós na UFRRJ
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SUMÁRIO
PROGRAMAÇÃO .............................................................................................. 8
COMUNICAÇÕES ............................................................................................. 9
GRUPO 1: RELIGIÃO NA ANTIGUIDADE........................................... 10
Eduardo Belleza Abdala Miranda
Apostasia solar: Juliano (361 – 363) e a retomada do culto solar ................... 10
GRUPO 2: RELIGIÃO NO MEDIEVO E NA MODERNIDADE.............. 14
Tatiane Santos de Souza
Conversões forçadas e o discurso de resistência na obra de Maimônides (1135
– 1204) ............................................................................................................. 14
Marcelo Inácio de Oliveira Alves
Escravidão africana e Igreja Católica: legitimação do cativeiro e a teoria cristã
no governo dos escravos no Brasil colonial ..................................................... 26
Ana Paula de Souza Rodrigues
O bem morrer no recôncavo da Guanabara. Freguesias de Nossa Senhora da
Piedade do Iguaçu e Santo Antônio de Jacuntiga (Século XVIII) .................... 37
Cezar Augusto Sales Uchoa Júnior
O padroado régio no formação do Império brasileiro ...................................... 52
Pedro Henrique Carvalho de Medeiros
A defesa pela liberdade religiosa na Imprensa Evangélica (1864 – 1867)....... 68
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Fernando de Azevedo Pereira
O pseudocristianismo e suas conseqüências na História ................................ 84
GRUPO 3: RELIGIÃO NA CONTEMPORANEIDADE.......................... 91
Cleiton Machado Maia
As técnicas xamânicas e o caso de xamanismo de tia Neiva do Vale do
Amanhecer........................................................................................................ 91
Anderson Leon Almeida de Araújo e Leila Dupret
Memória do samba e negras religiões – Musicalidade e Identidade ............. 106
Vinicius Esperança Lopes
Favela, Exército e Religião: tensões e aproximações na ocupação militar do
Complexo do Alemão ..................................................................................... 122
Marcelo Loura de Morais
Ensaio sobre a Geografia da Religião na Contemporaneidade, Contribuições
para os estudos sócio-históricos da Religião ................................................. 139
Anderson Leon A. de Araújo, Diego Hajime, Rainie V. Mendes, Rodrigo S.
Pinto e Vanessa Moreno
Casa de Convivência e Alquimia Espiritual – O Sagrado, a New Age e a
Ayahuasca ..................................................................................................... 148
Alice F. Signes, Daiane E. Azeredo e Elizabeth S. de Souza
Ritual Eucarístico: A devoção e a fé dos fiéis na comunidade paroquial de
Santo Antônio da Prata .................................................................................. 171
Rodrigo Costa Silva
Ética da Libertação: a descoberta de um mundo periférico ........................... 184
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Gabriel do Nascimento Silva
A construção e a concepção de evangelização da diocese de Nova Iguaçu. 195
Olga D. dos Santos Chiapim, Mayara C. de Souza e Silvia R. A. Fernandes
A Igreja Católica e os meios de comunicação: o impacto das novas tecnologias
........................................................................................................................ 208
Carla Juliana Delecrode, Laís Medeiros, Larissa Bernardes, Maria Lúcia B.
S. Alexandre, Monalisa Silva e Samanta Mourão de Oliveira
Tradição e Modernidade: Um estudo de caso da relação entre a Irmandade de
Nossa Senhor do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos e a Missa de
Cura e Libertação. (Rio de Janeiro – 2011).................................................... 211
Allan do Carmo Silva
Inserção da Religião na educação pública e os olhares de diferentes
segmentos religiosos...................................................................................... 225
Luciano Marques da Silva
Acolher
e/ou
Discriminar:
A
carta
da
congregação
da
fé
sobre
homossexualidade e a realidade das travestis na Baixado Fluminense........ 239
Carlos Eduardo da Silva Moraes Cardozo
Juventude e Religião estudos de ontem e de hoje......................................... 248
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PROGRAMAÇÃO
Dia 22/05/2012
HORA: 17 às 18 h: Conferência de abertura
Profª Drª. Eloisa Martín (UFRJ)
HORA: 18:30 às 21:00
GT: Religião na Antiguidade
sala 301– Bloco Multimídia
Coordenação: Profº Drº Marcos Caldas (UFRRJ)
GT: Religião na Contemporaneidade
Sala 309 -Bloco Multimídia
Coordenação: Profª Drª Sílvia Fernandes (UFRRJ)
Dia 23/05/2012
HORA: 17h às 19h30
GT: Religião no Medievo e na Modernidade
Sala 303 - Bloco Multimídia
Coordenação: Profº. Drº Ítalo Santirocchi
GT: Religião na Contemporaneidade
Sala 309 -Bloco Multimídia
Coordenação: Profª Drª Sílvia Fernandes (UFRRJ)
HORA: 20:00 h - Mesa de encerramento.
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COMUNICAÇÕES
Os artigos a seguir estão organizados de acordo com a ordem de apresentação
dos trabalhos durante as sessões de comunicação. A revisão dos textos é de
responsabilidade dos autores.
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GRUPO 1: RELIGIÃO NA ANTIGUIDADE
APOSTASIA SOLAR: JULIANO (361–363) E A RETOMADA DO CULTO
SOLAR
Eduardo Belleza Abdala Miranda1
O presente trabalho tem por objetivo analisar o Culto Solar oriental em Roma no
período do Imperador Juliano, mostrando como o Imperador recebe essa religião, e
quais os objetivos dele retomando o Culto pagão após a tolerância cedida ao
cristianismo pelo Imperador Constantino. O trabalho tem como fonte um hino de
Juliano em reverencia ao deus Sol e uma fábula sobre o Imperador Constantino contada
por Juliano, que estão presentes no livro ―The works of Emperor Julian‖ do autor
Wilmer C. Wright. traduzido do grego para o inglês.
É importante compreender como o Culto Solar chega a Roma e porque ele é
adotado pelo império e como os romanos se adaptam ao Culto. Essas religiões orientais
penetram no Império Romano através da: propagação de fiéis, comerciantes que entram
em Roma, escravos levados a Roma de regiões como o Egito, por exemplo. As religiões
do oriente, como o Culto Solar, ganham força no Império Romano devido à preferência
da população por elas e principalmente pela primazia do Imperador. Tal preferência
existe devido aos mistérios que os romanos vêem nesses cultos, além de transmitirem
um amplo conhecimento, não apenas a nível religioso, mas o conhecimento de mundo, e
também por essas crenças transmitirem uma relação mais direta com os deuses.
Segundo a autora Paloma Aguado García, em seu livro ―Religión y Plítica
Religiosa Del Emperador Caracalla‖ os sincretismos (ou seja, essa fusão entre as
doutrinas religiosas) que ocorreram entre os romanos e as religiões orientais, fez com
que os deuses representantes dessas crenças orientais fossem inseridos no Panteão
romano. Em alguns casos o nome do deus se modifica para o latim e em outros o deus
se adapta ao Panteão romano e permanece com a mesma titulação. Dessa forma os
cultos vão se modificando para os rituais romanos
Segundo essa mesma autora o Culto Solar foi adotado por alguns Imperadores
antes de Juliano e antes da permissão resignada ao cristianismo. O culto ao deus Sol já
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Graduando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
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aparece em Roma desde os Imperadores Trajano e Adriano (século II d.C). mas se
intensifica mesmo no Império de Cómodo (180 – 192) onde o Imperador inicia a
criação de moedas com a imagem do deus Sol. O Império de Séptimo Severo (193 –
211) também é marcado pelo Culto, já que é Severo quem apresenta o deus Sol como o
criador da luz, o deus inventor de todas as coisas, dando-lhe o apelido de Invictus. No
entanto, o Culto Solar só foi livremente exercido a partir do Imperador Caracalla (
Marco Aurélio Antonino – 211 - 217). Nesse momento o culto ao deus Sol aparece com
muita força na região oriental do Império. Caracalla teria sido o primeiro Imperador a
realizar uma consagração oficial do Culto Solar, permitindo que fosse realizado.
É Constantino o ultimo Imperador a elaborar moedas com a imagem do deus
Invictus, e é Constantino quem tolera o cristianismo no Império, o que não acaba com
os cultos pagãos, todavia fará com que os cultos orientais se enfraqueçam no decorrer
do Império.
É importante compreender que Juliano, pertencente à dinastia constantiniana, e
com grande formação intelectual dedicou seu Império a retomar os cultos pagãos, por
isso foi denominado mais tarde como o Apostata, ou seja, aquele que abriu mão de sua
fé anterior. Sobre influencia de Imperadores anteriores ele procura retomar o Culto
Solar que estava em declínio desde Constantino.
Podemos perceber a grande adoração de Juliano ao deus Sol a partir de um hino
elaborado pelo próprio Imperador, como já vimos. Nele o Imperador descreve o deus
Sol como pai da humanidade, o criador, relatando que o deus se encontra no centro do
universo movimentando o cosmos, é o que se chama de principio da autoridade. Juliano
descreve o deus Sol como o ser mais importante do universo, e que todos devem
realizar oferendas a esse deus, como, por exemplo, sacrifício de animais. Os outros
deuses possuem suas funções, mas o poder de Invictus é superior.
Em uma passagem do hino, Juliano mostra que o deus Sol é divino, e que o
divino não se pode tocar, não tem cheiro e é invisível, mas é uma força que está
presente. Todavia relata que o deus Sol possui uma forma visível, o disco solar, e ele
menciona que é mais fácil acreditar no que é visível, por isso a supremacia de Invictus.
Juliano apresenta cinco grandes características do deus: 1ª – O poder que ele tem
de aperfeiçoar a luz, tornando visíveis os objetos do universo. 2ª – O poder de conduzir
o universo, criando e o transformando. 3ª – ―O poder de unir todas as coisas em um
todo, através da simetria dos movimentos para um único objeto‖. 4ª – Possui uma
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posição central no universo. 5ª – É considerado um rei entre os deuses devido sua
posição central.
O Imperador Juliano adota esse culto devido ao atrativo social que essa religião
possui para a população romana, como a purificação e a salvação. Para oferecer o culto
ao deus, não é necessário ser um iniciado na religião, qualquer um pode oferecer o
culto, isso facilita a atração de fiéis. Esses fiéis estão presentes nos campos, onde se
encontram os pagãos, já que nas cidades o cristianismo está em grande crescimento.
Juliano procura realizar melhorias na administração do Estado acabando com as
negligencias, procura melhorar as condições de vida diminuindo a fome, e sua principal
ideologia que era restaurar o culto solar no Império Romano, que como já vimos estava
em decadência desde Constantino. Esses feitos é o que ele chama de ―reparação dos
tempos felizes‖ (Felicium Temporum Reparatio).
Para que se tenha uma analise mais profunda sobre a importância do culto o
trabalho retoma o período do Faraó Akenaton (1351 – 1334 a.C.), já que seu reinado,
apesar dos poucos estudos sobre ele, foi marcado por sua adoração a um único deus,
Aton, o deus do disco solar, desafiando uma tradição religiosa milenar ao tentar
estabelecer uma única divindade aos egípcios.
Os estudos sobre Akenaton são recentes, e novas teorias sobre seus feitos estão
sendo elaboradas, de acordo com a mais recente teoria a adoção de um único deus não
tem um caráter religioso mais sim político. O que este Faraó pretendia era acabar com o
culto a Amo, a deidade mais importante desse período, fazendo com que o corpo
sacerdotal desse deus perdesse o poder sobre o império. Segundo novas teorias o que
Akenaton pretendia era restaurar um período em que os Faraós eram considerados
divinos, sem sofrer qualquer questionamento, dessa forma ele seria considerado o
representante do deus Aton, a única deidade na terra, seria o próprio deus na forma
humana, o que daria a ele um poder absoluto, como ocorria em tempos anteriores. Ele
chega a criar uma cidade religiosa denominada Aketaton (horizonte de Aton), esta era
uma cidade política e cultural, e um templo de devoção ao deus Aton.
O que se pretende com essas descrições do período de Amenófis IV (Akenaton),
não é relacionar o que acontece no Egito durante seu reinado com o que aconteceu no
Império Romano no período de Juliano, mas sim mostrar quem em ambos os casos o
culto a uma divindade solar tem grande importância na política, na economia, na
cultura. Nem todos os acontecimentos se equivalem, Juliano não cria uma cidade
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religiosa, o mais próximo foi dar a cidade de Antióquia um caráter cultural e religioso.
Juliano também não impõe a religião no Império como faz Akenaton no Egito.
Sendo assim o presente trabalho foi elaborado pensando uma hipótese, a de que
Juliano estaria buscando transformar o Império em uma monarquia. Juliano estaria
pretendendo ser cultuado como um deus, o que lhe colocaria como um soberano,
características de uma monarquia divina, mas não buscando um ideal religioso, e sim
político, centralizando o poder do Império nas mãos dele.
Quando se apresenta neste trabalho as características do reinado de Akenaton,
não há pretensão de compará-lo ao Império de Juliano, mas sim demonstrar que Juliano
não teria sido, hipoteticamente falando, o primeiro a buscar o poder político por meio
do Culto Solar, ou seja, chegar ao poder político, através do poder religioso.
Referencias Bibliográficas
BASLEZ, Marie-France. “Juliano, a esperança dos pagãos”. Arquivos História Viva,
volumen 5: os melhores artigos sobre Roma / Liliana Pinheiro. Rio de Janeiro: Duetto,
2009.
GARCÍA, Paloma A. “Religión y Política Religiosa Del Emperador Caracalla”.
Espanha. Universidad Complutense.2003
JACQ, Christian. “Nefertiti e Akhenaton: o casal solar”. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2008. p.238.
REEVES, Nicholas. “Akenaton, o renegado filho do sol”. BBC Revista
História. Egito e outras civilizações antigas. edição nº 8, 2010. p.30-33.
SHAFER, Byron E. “As religiões no Egito antigo: deuses, mitos e rituais domésticos”.
São Paulo: Nova Alexandria, 2002.
WRIGHT, Wilmer C. “The Works of the Emperor Julian” London: Willian
Heinemann. New York: The Macmillan CO.
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GRUPO 2: RELIGIÃO NO MEDIEVO E NA MODERNIDADE
CONVERSÕES FORÇADAS E O DISCURSO DE RESISTÊNCIA NA
OBRA DE MAIMÔNIDES (1135-1204).
Tatiane Santos de Souza2
Resumo: Este trabalho busca viabilizar uma maior reflexão quanto aos conflitos
religiosos e sociais entre judeus e muçulmanos no medievo. As Epístolas de Rabi
Moshe ben Maimon (Maimônides), escritas entre 1167 e 1204, são fontes históricas que
até hoje não se tornaram alvo de análises mais profundas pela historiografia
medievalista, referente a temática das conversões. Neste trabalho, me proponho a
analisar o discurso rabínico sobre a intolerância religiosa contra os judeus a partir do
século XII, num período de estreitamento e transformações político-sociais nos
territórios de domínio muçulmano.
Palavras-chaves: Maimônides – Resistência – Discurso
Entre os extensos conjuntos textuais rabínicos produzidos na Idade Média,
a “Epístola do Iêmem”3 representa um dos pilares da literatura sefaradí sobre a
temática da conversão. Nesta documentação epistolar redigida por Maimônides é um
conjunto de proposições a judeus aflitos perante a série de medidas radicais de um novo
governo muçulmano: almôadas e os almorávidas.
Ao longo do século XII, o poder islâmico dos almôadas (1130-1269), cuja
dominação incluiu Marrocos, Argélia, Tunísia e Espanha Muçulmana realizou diversas
políticas de conversão forçada de judeus.
2 Graduanda em História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ, ICHS,
DHIS. Bolsista de Iniciação Científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa do estado do Rio
de Janeiro - FAPERJ.
3 Para esta análise fizemos uso da edição brasileira, traduzida por Alice Frank. MAIMÔNIDES,
Moses. A Epístola do Iêmen. São Paulo: Maayanot, 1996. p.5. Esta epístola encontra-se também
publicada, em inglês, no mesmo volume do ―Tratado sobre o Extermínio‖.
MAIMONIDES. EPISTLES OF MAIMONIDES: CRISIS AND LEADERSHIP. Philadelphia:
Jewish Publication Society of America, 1985. Discussions by David Hartman.
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Diante das adversidades, muitos judeus abriram mão de confortos pessoais,
propriedades e bens, e escaparam às perseguições. Outros se submeteram aos
juramentos de fidelidade a Maomé e passaram a externar, ainda que de forma precária, a
fé na religião dominante, mantendo secretamente a fé judaica.
Ao escrever esta epistola, Rabi Moshe ben Maimon, mais conhecido como
Rambam4, não se preocupou apenas com questões filosóficas ou legislativas. Ele se
engajou de maneira profunda, na batalha pela sobrevivência das comunidades judaicas
ameaçadas de desaparecimento, fazendo um projeto discursivo de definição dos grandes
alicerces da religião e crenças judaicas, a fim de oferecer aos seus contemporâneos
judeus os meios necessários para resistir aos excessos populares e permanecerem
crentes em sua fé.
Escrita originalmente em árabe, língua de seus destinatários, exceto pela
breve introdução em hebraico, esta carta disserta sobre um possível antigo ódio ao Povo
Judeu e os motivos, creditados pelo rabino, de várias perseguições sofridas, a eternidade
e a peculiaridade de Israel e os fundamentos da fé. Tudo isto a fim de recolher e
apresentar formas de resistência ao líder islâmico.
Proporcionando palavras de consolo, Rambam, se aproxima de seus irmãos
de fé, ao dizer que o mesmo que está acontecendo no Iêmen, ocorreu nas terras no
Marrocos, que o obrigou a fugir, e exilar em terras longínquas. Esta atitude do líder
islâmico assustou e atemorizou toda a comunidade judaica.
Rabi Moshe ben Maimon, Musa Ibn Maimun ou Maimônides, nascido em
Córdoba, em 1135, viveu junto a sua família parte desse momento de estreitamento das
relações sociais da nova politica rigorista muçulmana, tendo que fugir de Córdoba para
outros territórios muçulmanos onde ainda existia a politica de proteção aos dhimmis e
tal movimento rigorista não imperava.
Para verticalizar esta temática buscaram-se teorias que esclarecem, direta ou
indiretamente, as bases da formação cultural da Espanha visigoda, de forma a identificar
elementos que sustentassem o estabelecimento de mudança, como a entrada dos
muçulmanos nesse território, e como posteriormente com os almorávidas e almôadas,
4 Entre alguns círculos rabínicos medievais, Maimônides foi conhecido como Rambam, um
acrograma de ‗Rabi ‗M‘oshe ‗B‘en (filho de) ‗M‘aimon. Ao passo que universalmente ele é
chamado de ―Maimônides‖, a forma grega de ―o filho de Maimon‖.
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isto foi reorganizado. Desse modo, devido à chegada dos muçulmanos à península
ibérica visigoda, as novas formas políticas, principalmente com aqueles que pertenciam
a outros grupamentos sociorreligiosos, tornaram este lugar um espaço incomum e de
situação singular, segundo historiadores. E de fato a sociedade hispânica nos séculos de
dominação muçulmana fora singular, em relação às construções discursivas, errôneas,
que acreditavam na existência uma sociedade cristã europeia homogênea e monolítica.
A simples possibilidade de indivíduos de religiões monoteístas diferentes
poderem habitar um mesmo espaço sem conflitos fora algo diferenciado naquele
contexto, onde o mundo externo vivia tempos cruzadísticos e indivíduos das três
religiões, das três culturas se enfrentavam, lutavam, matavam e morriam em conflitos
sangrentos em outras regiões. Talvez justamente por esta questão externa, na discussão
historiográfica – principalmente segundo Claudio Sanchez Albornoz5- a Espanha
emerge como um enigma histórico, um local onde é possível uma convivência religiosa,
uma troca de experiências e cultura de forma receptiva, servindo de exemplo para a
posteridade.
Pela formação de uma sociedade diversa, multicultural e plurirreligiosa,
generalizou-se a ideia de uma Espanha - ou Al-Andaluz como ficara conhecida entre os
muçulmanos- homogênea e integracionista. Entretanto ao identificarmos esta sociedade
incomum devemos nos dispor da crença superficial de harmonia, e atentarmos para as
problemáticas desta convivência cultural, social e religiosa.
Não podemos negar que a primeira vista existiram processos históricos que
justificam, até certo ponto, a ideia de uma coexistência pacifica entre os distintos grupos
religiosos dentro de um mesmo marco sociopolítico, processos estes utilizados para
forjar a imagem de uma sociedade tolerante, nos moldes que temos hoje por tolerância.
Segundo Francisco Garcia Fitz, (FITZ,2003. p. 13-56.) em muitas ocasiões tais
processos históricos foram interpretados como sinais de aceitação e integração das
minorias sociorreligiosas, fomentando teses que insistem em afirmar a concretude de
uma Espanha aberta e flexível que reconhecia e aceitava a diferença.
5 Sobre Claudio Sanchez Albornoz, um dos mais notáveis historiadores espanhóis. A obra de
Quesada promove uma releitura das teses de Claudio Sanchez Albornoz. Apud: ― Es todavia
España um enigma histórico?. QUESADA, Miguel Angel Ladero . Lecturas sobre La España
Histórica. Madrid : Real Academia de la Historia, 1998.
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Os vestígios que nos permitem estudar as características das relações entre
muçulmanos, judeus e cristãos – como as cartas de Maimônides- não nos confirmam a
imagem cristalizada de uma sociedade integracionista e pacifista. Os comportamentos
que foram interpretados como indícios de harmonia e respeito apenas representam
realidades fragmentadas e desconexas oferecendo uma visão distorcida de tais
momentos históricos. Portanto nessa compreensão (FITZ,2003. p. 13-56.) seria correto
afirmar que a visão de uma Espanha ou Andaluzia medieval tolerante e igualitária
sobretudo, tornar-se-ia utópica, e porque não dizer, mitológica.
Um fator inicial que pode ser considerado fundamental para os que
defendem o mito da tolerância seriam as atitudes políticas e econômicas adotadas pelos
governantes muçulmanos. De acordo com preceitos islâmicos, a Sha‟aryia6, garantia
aos povos monoteístas proteção territorial interna e externa. Assim os dhimmis7 (―povos
do livro‖) como eram chamados, poderiam circular socialmente sem sofrerem
perseguições. Sendo árabes muçulmanos e berberes islamizados a minoria na população
andaluza seria proveitoso manter viva a força econômica das populações já residentes.
Esta dita tolerância não comportou uma mistura ou assimilação das religiões.
Aparentemente, pelas prescrições legais aos dhimmis judeus e cristãos
puderam viver, trabalhar e ainda manter suas práticas religiosas secretamente sob
domínio islâmico. Contudo essa convivência era tolhida por restrições no aspecto
politico, econômico e religioso. Tanto cristãos como judeus encontravam-se de diversas
formas subjugados, e estas restrições os conduziam à condição de excluídos e
inferiorizados.
As complicadas estruturas jurídicas e sociais dessa difícil convivência
ofereciam uma ampla superfície para conflitos de todo tipo. A tolerância, mesmo sendo
pautada em lei corânica, não se fundamentava nas premissas do moderno conceito de
tolerância. A tolerância religiosa tem hoje em dia seu fundamento, seja na indiferença
6 Conjunto de princípios, leis e preceitos morais estabelecidos por governantes e pensadores do
Islã, segundo Albert Hourani.
7 Transliterando do árabe ahl al-ḏimmah / dhimmah, "o povo da dhimma" . Ser um Dhimmi é
estar num contrato teórico estabelecido com base numa doutrina islâmica que concede direitos e
responsabilidades limitadas aos seguidores do Judaísmo, Cristianismo ("Povos do Livro") .
Permitindo a estes indivíduos o direito de residência em território islâmico, em troca do
pagamento de determinadas taxas.
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religiosa, seja no respeito à dignidade e à liberdade da pessoa humana; ambos esses,
conceitos alheios a uma visão medieval do mundo. Na Espanha medieval houve uma
tolerância política que nunca foi ditada por reverência às outras religiões ou por respeito
à liberdade do outro, mas, simplesmente, pela necessidade de integrar dentro do sistema
político uma realidade social fática.
Desse modo, por bastante tempo na Espanha, em Andaluzia, as relações
entre dhimmis e muçulmanos transcorriam, mesmo com todas as restrições, com certa
fluidez em questão da ausência de exigência de apostasia ou exilio. Todavia estas
relações sociais não devem ser tomadas como sinônimos de relações harmônicas e
igualitárias, e sim relações de coexistência diferenciada, pois a segregação que existia
nos territórios muçulmanos era considerada branda se compararmos a segregação tida
como comum nos territórios da cristandade ocidental.
Com o passar do tempo, durante as épocas de dominação almôada e
almorávida na península, as relações com os dhimmis se estreitaram. O movimento de
invasões almôadas e almorávidas, aos territórios muçulmanos antes em poder da
dinastia Omíada8, mudaram o status dos dhimmis, que de protegidos passaram a
perseguidos. (SANCHEZ, 1994.) Os judeus e cristãos antes protegidos do exílio e
autorizados a permanecer em sua fé, foram submetidos desde finas do século XI a uma
pressão até então desconhecida.
Os almorávidas entraram na península ibérica em 1040, sendo estes
originariamente uns monges-soldados saídos de grupos nómadas provenientes do Saara,
estabeleceram-se e governaram até 1147. Insatisfeitos com a forma em que se
organizava o Islã neste território, as almorávida obtinham uma politica rigorista do Islã.
Posteriormente, insatisfeitos com a tentativa almorávida, por volta de 1125 um novo
poder estava a surgir no Magrebe, o dos Almôadas, surgidos da tribo dos Zanatas, que
conseguiram com um novo espírito de aplicação rigorosa da lei islâmica, já relaxados os
costumes dos Almorávidas, impor-se ao poderio almorávida após a queda da sua
capital Marrakesh em 1147. (COLLINS, 1986.)
Com a pretensão de reestabelecer o islã no verdadeiro caminho e inaugurar o
reino dos céus na terra, os muçulmanos, segundo Albert Hourani (HOURANI, 2006.),
8Os Omíadas foram uma dinastia de califas conhecida como Califado Omíada. Em Córdoba
(929-1131)
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em sua maioria de origem berbere, não toleravam nenhum desvio de sua versão própria
do islã. Para este movimento messiânico e milenarista, a presença de judeus e cristãos
em territórios muçulmanos estaria influenciando os costumes mais ínfimos dos fiéis do
islã, consequentemente isso se desdobraria numa infração a religião e distorção, pois
para eles, mesmos com todas as restrições e condição inferiorizadas, os dhimmis
representavam uma ameaça ao islã justamente pelos fiéis estarem em contato a todo o
momento com aqueles que negavam o verdadeiro Deus e a verdadeira religião, era
inaceitável dividir território com aqueles que desprezavam Deus e seu Profeta. Os
muçulmanos insubmissos eram implacavelmente expurgados ao passo que aos judeus e
cristãos negava-se a tolerância recomendada pela Sharia e os impunha uma escolha: a
conversão ou exílio.
Desse modo foi a partir da identificação dessas relações sociais, políticas e
religiosas, de acordo com a nova etapa 1140 de dominação muçulmana de origem
berbere - dominação almôada - que fora feita a seleção das cartas. Esta baseada em
princípios de referência temática: conversões forçadas e as medidas de resistências. Tal
análise funcionou em duas etapas, de acordo com a metodologia sugerida por Durval
Muniz de Albuquerque (ALBUQUERQUE, In: PINSKY, 2011, p 223- 249), análise
externa e análise interna, da produção discursiva. A análise externa implicou nas
relações com as condições históricas que possibilitaram a produção daquele discurso, ou
seja, o questionamento sobre o contexto daquela fala, as relações sociais, econômicas e
políticas. Já a análise interna tratou de considerar os discursos pertencentes a uma dada
ordem discursiva, historicamente datada, e que possuem suas próprias regras de
constituição e produção, ou seja, possuem sua própria “(...) estrutura interna que
precisa ser analisada”.(ALBUQUERQUE, 2011, p. 247)
Como já mencionado, Maimônides recebeu apelos de diversas comunidades
judaicas submetidas à conversão ao Islã, solicitando seus conselhos sobre sua situação
religiosa, deveriam resistir, deveriam fugir ou deveriam aceitar a fé islâmica? Com a
ameaça de conversão forçada, surgem problemas que aparentemente parecem apenas
religiosos, mas são também problemas sociais. A partir daí nota-se o pensamento
racionalista na epístola de Maimônides, que procura resolver o problema da conversão
através da fuga.
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[Aqueles que estão sendo forçados à conversão] devem fugir e
continuar a ser fiéis a Hashem. Devem se refugiar-se no deserto e
esconder-se em lugares desabitados. Eles não devem pensar na
separação da família e dos amigos ou ficar preocupados com a perda
de rendimentos. Isto significapreservar a Torá em sua totalidade. (...)
Com certeza quando um judeu é impedido de seguir a Torá e a fé
divina ele deve fugir para um outro lugar. (MAIMÔNIDES, 1996,
p.21)
Permanecer no lugar onde a apostasia tornar-se-ia inevitável seria o mesmo
que transgredir aos preceitos da fé judaica. No texto, Maimônides não aborda
explicitamente a questão da judaização, apenas recorre à ideia de que mesmo um
convertido que se veja impossibilitado de sair do local da perseguição, não estaria livre
para pecar. Um converso não seria, por assim dizer, isento de punições por transgressões
religiosas que venha a cometer contra o Judaísmo.
Indiretamente, a todos aqueles que permaneceriam nas regiões onde a
conversão fosse aplicada, o Rabino solicita a prática da judaização da melhor forma
possível. Judaizar não representaria apenas uma estratégia de resistência, mas,
sobretudo, uma obrigação do judeu perseguido e convertido à força.
Nesta mesma epístola, Maimônides num discurso inflamado hostiliza outras
religiões e enaltece a sobrevivência do Judaísmo a diversos domínios políticos
opressores que tentaram extirpar o povo judeu, e recorrendo a episódios históricos,
constrói um cronograma de reinos e dinastias que haveriam tentado destruí-los, e que
por efeito da providência divina, foram, nas palavras do rabino, “decadentes e infelizes”
(MAIMÔNIDES, 1996, p.9). Maimônides entendia que o Judaísmo, enquanto perseguido,
constituía-se inabalável.
Amalek, Sisera, Sancheriv, Nabucodonosor, Tito, Adriano e muitos
outros semelhantes tentaram derrubar a nossa religião pela força, pela
violência, e pela espada. (...) O segundo grupo consiste nos mais
inteligentes e mais educados entre as nações, como os romanos, persas
e gregos. Eles também tentaram derrubar a nossa religião e erradicar a
nossa Torá, mas eles fazem por meio de argumentos e perguntas que
imaginam. Eles tentam destruir a Torá e apagar seus vestígios com os
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seus escritos. Os tiranos tentaram fazer assim com suas guerras.(
MAIMÔNIDES, 1996, p.8)
Ao difundir o ideal de que qualquer política dominadora que visasse
aniquilar o povo judeu seria destituída pelo divino, podemos notar que o discurso de
Maimônides é forjado numa lógica determinista, onde o pensamento escatológico e
fatalista seriam uma constante. E para criar essa trajetória determinante de sucessivas
vitórias, entre Oriente e Ocidente, Maimônides se valeu de diferentes eventos de
―subjugo‖ e ―resistência‖ vivenciados em diferentes épocas por comunidades judaicas
diversas.
Nenhuma dessas estratégias terá sucesso. Hashem declarou através do
profeta Isaías que Ele destruíra todos os armamentos de qualquer
déspota ou opressor que tenha a intenção de destruir a nossa Torá e
erradicar a nossa religião por meio de armas de guerra. Da mesma
maneira, quando um disputante vier contestar com o propósito de
enfraquecer a nossa religião, ele perderá a discussão. A sua teoria será
demolida e refutada. (...) Eles somente estão aumentando sua labuta e
esforço, enquanto a estrutura permanece tão forte como nunca.
(MAIMÔNIDES, 1996, p.9)
Notamos então a intenção desta retórica, sendo seu objetivo relembrar a
estes judeus, que estavam vivendo situações de subordinação com sob supostos riscos
de vida, que teria havido outros que passaram por situações semelhantes, e não teriam
abandonado a sua fé. Através de uma narrativa comparativa e retórica baseada na
dicotomia de um resgaste de um passado heroico, de judeus resistentes que sofreram
com governantes opressores, e de uma positividade do sofrimento, como se o
sofrimento fosse princípio para uma exaltação posterior - para que possa existir e
prevalecer uma trajetória vitoriosa-, o ponto culminante é fortalecer a fé destes judeus,
estimula-los a resistir em tempos considerados pelo rabino, difíceis. ―Queridos irmãos
sejam fortes e corajosos. Depositem sua confiança nessas Escrituras verdadeiras. Não se
deixem desencorajar pelas perseguições que continuadamente acontecem a vocês. Não se
assustem pela força do seu inimigo e a fraqueza do nosso povo.‖ (MAIMÔNIDES, 1996, p.7)
A todo o momento durante a leitura da fonte, das cartas nesse caso, percebese que Maimônides deixa claro seu desgosto e descontentamento com as atitudes do
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almôadas e almorávidas, se reportando ao período emiral Omíada onde os judeus não
eram obrigados a conversão.
Você escreve que o líder revolucionário no Iêmen forçou os judeus a
se converterem ao Islão. Ele obrigou os habitantes das regiões sob seu
controle a abandonarem sua religião. Isto é exatamente como fez o
líder árabe nas terras de Marrocos. Esta notícia nos assustou e fez toda
a nossa comunidade estremecer e ficar indignada. Com motivo,
porque são realmente péssimas as noticias e farão tinir ambos os
ouvidos de quem as ouça. Sim, os nossos corações estão fracos e
nossas mentes confusas por causa destas terríveis calamidades que
trouxeram conversão forçada ao nosso povo, alcançando duas
extremidades do mundo, o ocidente e oriente. O povo judeu está no
centro e sob ataque de ambos os lados. (MAIMÔNIDES, 1996, p.1)
O tom de denúncia em sua escrita e o discurso inflamado é de grande
relevância, justamente por ser uma epístola a circulação desta documentação previa um
destino, e este destino era coletivo, pois o rabino fora solicitado por outros rabinos que
se reportariam a suas comunidades. Portanto para enfrentar o problema da conversão e
resistir, seria necessário criar um sentimento de unidade, e Maimônides utilizara a
retórica a favor de seus objetivos, da exaltação da predestinação do povo judeu a
sobreposição de sofrimentos, e ao mesmo tempo também constrói um discurso
denunciador contra o povo opressor.
D-us nos distinguiu do resto da humanidade quando nos deu Sua Torá
por Moisés. Isto não aconteceu porque merecemos, mas sim, foi um
ato de bondade Divina, porque nossos pais reconheceram Hashem e O
veneraram. (...) Hashem nos fez especiais por suas leis e
mandamentos. As outras nações reconhecem a nossa superioridade
porque somos guiados pelos Seus princípios e estatutos. Como
resultado as nações do mundo ficaram com muita inveja. Por causa da
Torá todos os reis da terra desencadearam o ódio e a inveja contra nós.
A sua verdadeira intenção é guerrear contra Hashem, mas ninguém
pode se opor ao Todo-Poderoso. Desde os tempos da outorga da Torá,
todo rei idólatra, não importa como tenha chegado ao poder, colocou
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como seu principal objetivo a destruição da Torá. (MAIMÔNIDES,
1996, p.8)
De um modo ideológico combativo, o Rambam, se propõe a esclarecer
argumentos errôneos da parte dos muçulmanos que procuram usar a própria Torá para
afirmar a legitimidade da existência superior de seu profeta. Para ele, Mesmo
convertidos, os judeus não só poderiam como deveriam retornar ao Judaísmo, sem que
tais conversões fossem interpretadas como apostasia ou idolatria. A situação tornava-se
ainda mais iminente quando se tratava de processos de conversão forçada.
Para Maimônides, o Rambam, estes argumentos não passam de distorções
forjadas para trazer duvida ao seio da comunidade judaica. Ele ridiculariza os
argumentos, identificando resposta para todos os argumentos, a luz da Torá, afirmando
que os muçulmanos por não terem encontrado nenhuma alusão a Maomé na Torá,
usaram um fraco argumento: de que os judeus teriam alterado a Torá.
Essa discussão se dá em torno do curioso relato de Gênesis 17:20, os
muçulmanos alegam que a Torá afirma a legitimidade de Maomé por descendência de
Ismael, entretanto, Maimônides explica que Isaac era o herdeiro legítimo, afirmando,
portanto, a superioridade do povo judeu descendente de Isaac, enquanto a Ismael,
mesmo sendo abençoado fecundamente, não seria reconhecido e proclamados pelas suas
qualidades de retidão e perfeição humana. Toda essa retórica apoiada nas Escrituras da
Torá é para engrandecer e fortificar a fé dessas comunidades judaicas, e desacreditar
qualquer argumento antijudaico.
Hashem que é a Verdade, zomba e os ridiculariza, porque com sua
inteligência fraca tentam atingir uma meta inalcançável. (...) Somente
uma criança que não sabe nada dessas religiões poderia comparar a
nossa fé dada por D‘us, a teorias fabricadas pelo homem. (...) As
outras religiões que são parecidas com a nossa não tem um significado
profundo, são histórias e contos imaginários nos quais seu fundador
tenta se glorificar. Os sábios percebem a farsa. (MAIMÔNIDES,
1996, p.11)
Na relação saber-poder que ora percebemos, as posições política e religiosa
de Maimônides como mestre de corte e rabino, por si mesmas, já representariam
instrumentos de legitimação de seu lugar discursivo, creditado pelas comunidades
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justamente por ostentar uma titulação, onde seu saber era reconhecido. Este saber lhe
concede o exercício de poder para atuar na vida dessas comunidades através de códigos
talmúdicas de conduta9 e epístolas, sendo estas construídas num discurso apologético,
apoiado numa hostilização do povo opressor e em favor de uma resistência judaica.
Através da análise do corpus documental epistolar de Maimônides, fica
evidente que este pretendeu orientar e dar assistência religiosa e social a essas
comunidades judaicas iemenitas – que, pelo teor do discurso rabínico se mostravam
aflitas e atônitas, colocando-se de forma crítica e voraz contra o uso da religião como
instrumento de opressão, de violência e dominação sobre os outros.
Portanto, a Halachá que orientou as reflexões rabínicas em todo o Ocidente
preservaria também, no Judaísmo Ibérico Medieval, os princípios da livre crítica e do
questionamento sobre as ordens políticas. O converso, à luz desta mesma literatura,
constitui-se de fato num problema religioso para as nações que o criaram, comprovando
a insolubilidade da questão judaica no medievo.
Referência Bibliográfica:
Fonte:
MAIMÔNIDES, Moses. 1135-1204.
A epístola do Iêmen /Maimônides. Tradução
Alice Frank - São Paulo :Maayanot, 1996
Obras:
COLLINS, Roger. España en La alta edad media. Barcelona: Editorial Crítica, 1986.
FITZ, Francisco García. Las minorias religiosas y la tolerância em la Edad
Media hispânica: ¿ Mito o realidade ? In: SANJUAN, Alejandro Garcia. III
Jornadas de cultura islâmica: Tolerancia y convivência étnico-religiosa em
La península ibérica durante la Edad Media. Huelva: Universidade de
Huelva Publicaciones, 2003.
HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. São Paulo: Companhia da Letras,
2006.
9 Tais códigos de conduta são compreendidos através de Halachá, escritos rabínicos e
talmúdicos relacionados aos costumes e tradições, servindo como guia do modo de viver
judaico.
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ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A dimensão retórica da historiografia.
Discursos e Pronunciamentos. In: Carla Bassanezi Pinsky (Org.) et. Aliae. O historiador e
suas Fontes. São Paulo: Editora Contexto, 2011. p.223-249.
LEWIS, Bernard. Judeus do Islã. Rio de Janeiro: Xenon Editora, 1990.
QUESADA, Miguel Angel Ladero. Lecturas sobre La España Histórica. Madrid : Real
Academia de la Historia, 1998.
SANCHES, Maria Guadalupe Pedrero. Os judeus na Espanha.
São Paulo: Editora
Giordano, 1994.
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ESCRAVIDÃO AFRICANA E IGREJA CATÓLICA: LEGITIMAÇÃO DO
CATIVEIRO E A TEORIA CRISTÃ NO GOVERNO DOS ESCRAVOS NO
BRASIL COLONIAL
Marcelo Inácio de Oliveira Alves10
Resumo: Os objetivos desse trabalho são, primeiro, discutir a visão da Igreja Católica
sobre a escravidão africana no Brasil Colonial no tocante ao seu discurso de legitimação
do cativeiro africano e aos instrumentos de inserção subordinada do (ex)escravo na
sociedade colonial brasileira. Segundo, analisar a Teoria Cristã dos senhores no governo
dos escravos, postulada pelos jesuítas setecentistas Antonil e Benci, na qual constam as
obrigações que o senhor tem para com o servo: panis, et disciplina, et opus servo. O pão
ao servo para que não desfaleça, panis, ne succumbat; o ensino, para que não erre,
disciplina, ne erret; e o trabalho para que não se faça insolente, opus, ne insolescat. E
atentando que tal discurso consta na Bíblia (Eclesiásticos, 33, 25-33). Eis a base da
legitimação da escravidão africana e da dominação senhorial através do viés religioso.
Palavra-chave: Escravidão; Igreja Católica; Teoria cristã no governo dos escravos.
Introdução: a sociedade de Antigo Regime nos Trópicos
Ao longo desse artigo buscaremos atentar para os fatores de legitimação da
escravidão africana os quais se relacionam com o discurso proposto pela igreja católica
na América portuguesa.
A expansão do império português é acompanhada pelo sistema de Cristandade:
um conjunto de relações entre Estado e Igreja pelas quais ambos se legitimam no
interior de uma sociedade (Oliveira, 2007, p. 356). E como a escravidão era
fundamental para a lógica de seu funcionamento, logo, a Igreja teria de legitimar o
regime escravista o tornando, então, um componente do processo de construção de tal
Cristandade colonial.
10
Mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (PPHR/UFRRJ).
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Entender os valores da sociedade do Antigo Regime colonial e a concepção de
mundo é fundamental. Na América lusa, ―as populações eram ordenadas pelos preceitos
da segunda escolástica, com as suas idéias de monarquia católica, autogoverno,
sociedade corporativa e de casa.‖ (Fragoso, 2010, p. 80) Tal vertente foi fundamental
para o funcionamento ideológico da sociedade de Antigo Regime, cujos códigos
cognitivos e as relações pessoais são calcados pela religião católica (Hespanha &
Xavier, 1993). Esse pensamento de matriz católica, através do qual pessoas pensavam a
si próprias e formavam a concepção de mundo, imperava no século XVIII fluminense.
Importante perceber que, mesmo sendo uma sociedade predominantemente de iletrados,
não era necessário saber o que significa segunda escolástica, bastava compreender a
visão de mundo da época.
A sociedade de Antigo Regime do Império português era polissinodal e
corporativa, ou seja, hierarquizada em todos os segmentos – inclusive dentro da
escravaria – cujas diferenças são resguardadas pelos participantes. Todos compartilham
essa visão de uma ordem natural perpétua com uma lógica divina. A partir dessas
diferenças o mundo era ordenado (Hespanha, 2010).
De acordo com o pensamento medieval, na realização do destino cósmico11,
cada parte do todo tem sua função diferente e cada um coopera de maneira diversa.
Logo, todos os órgãos da sociedade eram indispensáveis. A criação é ordenada visando
o fim comum. Ligando-se a isso está, então, o impedimento de um poder político único:
se a sociedade caminha repartida e hierarquizada em que cada um tem sua função no
destino cósmico, assim o é o poder político. Desse modo, Hespanha faz alusão às
monarquias católicas, corporativistas no sentido de que a cabeça é o rei, de onde emana
a vontade e as ordens que passam por todo o reino, ou seja, o corpo. Cada órgão é
possuidor de sua autonomia, autoregulação e função específica, mas também o são as
instituições do reino. Em suma, as ordens vêm do rei, mas as instituições – religiosas,
públicas, familiares, comunitárias e grupos profissionais – têm autonomia para cumprilas ou adaptá-las. O rei (a cabeça) não pode impor-se ou limitar as prerrogativas ou
11
O pensamento político e social medieval é sobranceado pela idéia de existência de um ―cosmos‖, de
uma ordem universal que abarca os homens e o mundo, guiando cada um dos seres criados para um
objetivo último, e o pensamento cristão o identificava como o próprio Criador. Então, sem tomar como
referência a essa causa última, derradeira, a esse fim que os transcendia, os mundos humano e físico não
seriam inteligíveis. (HESPANHA, A. M. & XAVIER, A. B., 1993, p. 32)
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funções dessas instituições – órgãos do corpo –, e funciona como representação da
sociedade.
Assim configuram-se as monarquias católicas de Antigo Regime, cujo
autogoverno expressa-se, no âmbito holístico, através da representação corporativa da
sociedade e do poder; na prática, segundo Hespanha e Xavier,
o poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem governada, esta
partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-juridica (iurisdictio)
dos corpos sociais, embora esta autonomia não devesse destruir a sua
articulação natural (cohaerentia, ordo, dispositio naturae) – entre a cabeça e a
mão deve existir o ombro e o braço, entre o soberano e os oficiais executivos
devem existir instâncias intermédias. A função da cabeça (caput) não é, pois, a
de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio
propria), mas a de, por um lado, representar externamente a unidade do corpo
e, por outro, manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a
cada um aquilo que lhe é próprio (ius suum cuique tribuendi), garantindo a
cada qual o seu estatuto (‗foro‘, ‗direito‘, ‗privilégio‘); numa palavra,
realizando a justiça. E assim é que a realização da justiça – finalidade que os
juristas e politólogos tardomedievais e primomodernos consideram como o
primeiro ou até o único fim do poder político – se acaba por confundir com a
manutenção da ordem social e política objectivamente estabelecida.
(Hespanha & Xavier, 1993, p. 32).
Evidentemente, em meio a essas concepções, ―a autoridade dos senhores sobre
os escravos, forros, lavradores livres – os moradores dos engenhos e de suas cercanias –
foi construída,‖ (Fragoso, 2010, p. 80), pois:
os negros ou os ameríndios eram como que meninos, a carecer de direcção, de educação. Os
trabalhos que teriam que prestar aos seus senhores eram como que pagas graciosas da protecção
e direcção recebidas; tal como os serviços obsequiosos dos filhos a seus pais. E, nesse sentido,
do que se trata [...] de uma dependência doméstica‖. Essa ―é a teoria da casa e das relações
domésticas. (Hespanha,
2010, p. 202).
A visão de senhor na sociedade de Antigo Regime colonial é a do pai da casa, não (só)
no sentido familiar, mas político. E a idéia de casa não concerne à estrutura física e
concreta de moradia, e sim organismo político no qual o senhor/pai assume a função –
de acordo com os costumes (Alfonso X, Disponível em: http://Rebeliones.4shared.com.
Acessado em: 15/07/2011) e posturas honestamente ocupadas dentro de suas respectivas
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posições na ordenação hierárquica do mundo12 – da cabeça que rege a organização
parental e política de sua casa, ou seja, de sua linhagem, de seu sangue; buscando
legitimar e ascender de acordo com seu poder e referendado pela sociedade colonial
segundo os costumes da comunidade.
De acordo com as noções patriarcais de Antigo Regime, o senhor é visto como o
patria potesta no sentido de possuir o poder de mando em sua casa perante não só aos
filhos, mas também sobre os escravos. Eles devem ao senhor reverência e sujeição. E o
patria tem como atribuição exercer as punições com intuito de buscar o mantenimento
da ordenação social e política, em consonância com os bons costumes, expondo sua
ascendência moral sobre os subalternos, leia-se, parentes consanguíneos e escravos,
dentro do seu senhorio.13
Resumindo, partindo da noção da naturalidade da desigualdade, do poder de uns
sobre outros, tidos como inferiores, subalternos, não seria pejorativo escravizar, pelo
contrário, há justificativas religiosas que torna a escravidão africana plausível e com
funcionalidade para a época.
Igreja e a legitimação da Escravidão Africana
Quais os motivos para escravizar africanos e não outros povos? E o que torna tal prática
legitima para a época? ―As principais justificativas para escravidão dos negros africanos
estavam relacionados à religião. Descendentes de Caim ou de Cam, os negros teriam
seu destino determinado pelos erros de seus antepassados.‖ (Campos, 1999, p. 26)
Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; e serei
fugitivo e vagabundo na terra, e será que todo aquele que me achar, me matará.
O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes
será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse
qualquer
que
o
achasse.
E saiu Caim de diante da face do Senhor. (Gênesis 4:14-16)
12
―A idéia de ordem nesta sociedade tradicional faz do mundo o reino da diversidade, um
enorme conjunto de coisas infinitamente diferentes entre si e, em virtude dessas diferenças,
hierarquizadas (ordo autem in disparitate consistit – de facto, a ordem consiste na desigualdade das
coisas).‖ (HESPANHA, 2010. p. 54)
13
―A veces se toma esta palabra potestas por ligamiento de reverencia, y de sujeción y de
castigamiento que debe tener el padre sobre su hijo y de esta postrimera manera hablan las leyes de este
título.‖ (Alfonso X El Sabio. Las Siete Partidas. Primeira Cuarta, Titulo 17, Ley 3.)
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Caim, filho de Adão e Eva, teria assassinado seu irmão mais novo, Abel, pois estava
cego de inveja e ciúmes pelo amor de Deus dispensado ao caçula. Como punição, Deus
o expulsa de suas vistas. Mas Caim, com medo de ser morto por ser um desgraçado
caminhando pelo mundo, recebe na carne uma marca de Deus como um sinal, a qual
seria transmitida os seus descendentes. ―Na crença popular, alimentada pelo clero, a cor
negra dos africanos era a marca da punição de Caim.‖ (Campos, 1999, p. 26)
Na segunda maldição, os africanos seriam descendentes de Cam, filho de Noé,
que havia zombado do pai quando este estava nu e embriagado.
E bebeu do vinho, e embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tenda.
E viu Cam, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo saber a ambos seus
irmãos
no
lado
de
fora.
E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor lhe fizera.
E disse: Maldito seja Canaã; que ele seja o último dos escravos de seus irmãos!
E acrescentou: Bendito seja o Senhor Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por
escravo.
Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã por escravo
(Gênesis 9:21-27)
Noé pune, então, Cam e seu descendente, Canaã, a ser o ―último‖ dos escravos,
o que significa, literalmente, o escravo dos escravos. ―Eram os africanos, segundo a
concepção vigente, os legítimos descendentes de Cam, filho amaldiçoado por Noé por
ter zombado de sua nudez. Como Noé representava a honestidade num mundo de
corrupção, Cam e seus descendentes foram identificados à negatividade ética e à
tentação diabólica de destruir o plano divino.‖ (Oliveira, 2007, p. 360)
Consoante com essa interpretação bíblica, a África era vista pelos membros do
clero como terra da infidelidade (falta de fé) e do pecado. A travessia do
Atlântico e a chegada à América eram tidas, assim, como uma espécie de
milagre de Deus. Batizados aos milhares antes de embarcar nos navios
negreiros, os africanos eram encaminhados às terras coloniais para desempenhar
trabalhos humilhantes e desumanos, vivendo amontoados em senzalas e sendo
vitimas de toda sorte de violências. Segundo essa concepção religiosa, o Brasil
seria o purgatório dos negros, e as injustiças da escravidão, o instrumento da
justiça divina em favor da salvação eterna. (Campos, 1999, p. 26)
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A partir dessas concepções, o cativeiro dos africanos era perfeitamente compreensível já
que eram marcados pelo pecado e inferioridade ética. ―Essa era a função dos africanos e
seus descendentes nas sociedades que se formavam no Novo Mundo. Herdeiros do
pecado de Cam, sua posição social estava, previamente determinada, segundo a vontade
do criador. O cativeiro africano, portanto, era tomando como pedra basilar para o
funcionamento harmônico do corpo social.‖ (Oliveira, 2007, p. 361)
Conversão de africanos e seus descendentes no Brasil colonial
Como vimos, há todo um discurso religioso de origem pecaminosa do africano que o
torna espiritual e eticamente inferior. E a escravidão é a ―chance‖ dada pelos cristãos de
purificação desses africanos, os tirando do espaço do pecado (África) e os levando para
o purgatório (Brasil colônia), dando-os a possibilidade de salvação. Não obstante,
mesmo de forma subalterna, os africanos seriam catequizados e inseridos no Império
português. Mas de que forma?
A estrutura social, ―fundada nas diferenças e hierarquias, exigia um projeto
especifico de cristianização dos africanos e seus descendentes‖, ainda mais a partir do
século XVII em que africanos e seus descendentes eram a maioria populacional na
América portuguesa. (Oliveira, 2007, p. 361)
A Igreja católica, com o papel de manter uma estrutura social excludente,
―multiplicou suas ações ao longo do setecentos na tarefa de inserção dos chamados
‗homens de cor‘ no interior da Cristandade. A multiplicação dessas ações se desdobraria
também na promoção de santos pretos que deveriam funcionar como exemplos de
virtudes cristãs para os africanos e seus descendentes.‖ (Oliveira, 2007, p. 362)
A questão da cor, pois, assumia nesse discurso um papel predominante ao
distinguir os segmentos sociais e expressar uma concepção hierárquica da sociedade
colonial. A cor, no contexto do Império português,
no século XVIII, não traduz nenhuma perspectiva racial e/ou racista entendida à
luz do campo discursivo das teorias cientifico - raciais do século XIX. Numa
primeira perspectiva deve-se entender esse sistema de cores dentro de um
campo cultural que se definiu em Portugal e em toda Europa Ocidental desde a
Idade Média. [...] Perspectiva sócio-cultural difundida em Portugal e na
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SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
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sociedade colonial brasileira, onde a cor designava lugar social. (Oliveira, 2007,
p. 380-382)
No caso dos africanos, preto/negro são cores que eram vistas como castigos impostos
aos pecadores. Logo, houve um acidente espiritual ou são negros devido a um pecado
original. Mas os africanos poderiam atenuar, superar essa inferioridade com uma vida
virtuosa na fé cristã. Vide e espelhem-se nos santos negros exortados pela Igreja
Católica para esse fim: santo Elesbão e Santa Efigênia.
Teoria Cristã no Governo dos Escravos no Brasil Colonial
Para o asno, forragem, chicote e carga; para o escravo, pão, castigo e trabalho.
Faz trabalhar o teu escravo com disciplina, e encontrarás sossego. Deixa-o com
as mãos livres, e ele procurará a liberdade.
Jugo e rédea dobram o pescoço; torturas e interrogatório dobram o mau escravo.
Manda-o trabalhar, para que não fique ocioso, porque a ociosidade ensina
muitos males.
Obriga-o ao trabalho que lhe compete; e, se não obedecer, prende-o com
correntes.
Entretanto, não cometas excessos com ninguém, e não pratiques nada contra a
justiça.
Se só tens um escravo, trata-o como a ti mesmo, pois compraste-o a preço de
sangue.
Se só tens um escravo, trata-o como irmão, porque precisas dele, como de ti
mesmo.
Se o maltratares, ele fugirá, e por qual caminho irás procurá-lo?
(Eclesiástico, 33, 25-33)
A teoria Cristã no governo dos escravos visava adestrar os senhores dentro de
um viés religioso, cuja moral humanitária seria a mais importante. Essa teoria ―buscou
ordenar a prática do governo dos escravos com base em preceitos cristãos.‖ Os
religiosos denunciavam a inaptidão dos senhores ao controlar os escravos, ―a mensagem
básica dos textos jesuíticos era a de que os proprietários da América portuguesa eram
incapazes de governar corretamente seus escravos, pois haviam se afastado dos
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
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preceitos da moralidade católica‖ (Marquese, 2004, p. 172). Nesse sentido, o senhor
deveria preocupar-se com a conversão dos escravos, dar-lhes razoáveis condições de
vida para que assim pudessem (sobre)viver bem e não revoltarem-se.
Como um arquiteto do engenho açucareiro, Antonil vai descreve sua confecção,
ordenamento, funcionamento e manutenção, inclusive da mão de obra escrava. Sobre
isso, postula Antonil, que ―no Brasil, costumam dizer que para o escravo são
necessários três PPP, a saber, pau, pão e pano.‖ (Antonil, 1982, p. 91). O castigo é
imprescindível, pois ele regula e regra o escravo, porém o pão material e principalmente
espiritual não lhe deve ser negado, assim como a roupa limpa e seca. Em troca o escravo
presta obediência e gratidão ao seu senhor.
Esse tipo de acordo assimétrico é expresso através da chamada ―Economia
Cristã: isto é, regra, norma e modelo, por onde se devem governar os senhores Cristãos
para satisfazerem as obrigações de verdadeiros senhores‖, como postulava, no século
XVIII, o padre Benci. ―Mas que obrigações pode dever o senhor ao servo? [...] Em que
se trata da primeira obrigação dos senhores para com os servos [...] é o Pão: panis.
Deve o senhor ao servo o pão, para que não desfaleça: panis, ne succumbat. E debaixo
deste nome de pão,‖ o qual possui variado sentido temporal e espiritual, ―se compreende
primeiramente tudo aquilo que conduz para a conservação da vida humana, ou seja o
sustento, ou o vestido, ou os medicamentos no tempo da enfermidade.‖ (Benci, 1977, p.
53-81)
Entretanto, ―não só deve o senhor dar-lhes o sustento corporal para que não
pereçam seus corpos, mas também o espiritual para que não desfaleçam suas almas,
panis, ne succumbat.‖ Daí os sacramentos, os ensinamentos da doutrina e o próprio
exemplo do senhor como bom cristão. Tratava-se da ―segunda obrigação dos senhores
para com os servos.‖ (Benci, 1977, p. 83-111)
A terceira ―obrigação dos senhores é dar ao escravo o castigo, para que se não
acostume a errar, vendo que seus erros passam sem castigo: Disciplina, ne erret‖, pois,
―para trazer bem domados e disciplinados os escravos é necessário que o senhor lhes
não falte com o castigo, quando eles se desmandam e fazem por onde o merecem.[...]
Deixar o senhor viver o escravo à sua vontade, e por mais desordens que faça, dar tudo
por em feito ou (quando muito) passar com uma repreensão; é dar-lhe atrevimento, para
que se arroje a todo o gênero de pecados.” Ou seja, ausência do castigo é uma falha
irrepreensível do senhor. Logo, ―merecendo o escravo o castigo, não deve deixar de lho
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dar o senhor; porque não só não é crueldade castigar os servos, quando merecem por
seus delitos ser castigados, mas antes é uma das sete obras de misericórdia, que manda
castigar aos que erram.‖ Não obstante, ―no castigo dos servos não devem usar os
senhores de sevícia.‖ (Benci, 1977, p. 125-128 e 152). Do contrário, ―o castigo for
freqüente e excessivo, ou se irão embora, fugindo para o mato, ou se matarão per si,
como costumam, tomando a respiração ou enforcando-se, ou procurarão tirar a vida aos
que lha dão tão má, recorrendo (se for necessário) a artes diabólicas.‖ (Antonil, 1982, p.
91).
A quarta e última obrigação dos senhores é
dar o trabalho aos servos, para que com o ócio se não façam insolentes: opus, ne insolescat. Há
senhores, que nisto pecam por defeito; porém os mais pecam por excesso. Pecam por defeito os
que os deixam viver à larga sem ocupação nem, trabalho. Pecam por excesso os que os oprimem
com trabalhos superiores a suas forças, ou por excessivos ou por demasiadamente continuados. E
porque ser o trabalho demasiadamente pouco ou demasiadamente muito, tudo é meu e danoso
para o servo; por isso [...] os senhores não devem deixar estar ociosos os escravos, mas ocupálos; e depois [...] que devem guardar no trabalho que lhes dão. (Benci,
1977, p. 171)
Alimento, cuidados, a Palavra, trabalho moderado e o castigo justo eram as obrigações
que os senhores deviam ao escravo. Em contrapartida, o cativo lhe devia obediência,
gratidão e serviços. E ―a razão disto é porque senhor e servo são de tal sorte
correlativos, que assim como o servo está obrigado ao senhor, assim o senhor está
obrigado ao servo.‖ Esta é a
mútua e recíproca correspondência de obrigações entre os senhores e os servos [...]. E por isso,
depois de intimar aos servos que se sujeitem em tudo e obedeçam a seus senhores com
simplicidade de coração. [...] A diversidade, que há entre o senhor e o servo, não consiste em que
o servo esteja obrigado ao senhor e não o senhor ao servo; mas na diversidade das obrigações,
que recìprocamente devem um ao outro. (Benci,
1977, p. 49-50)
Assim pensa, também, o jesuíta setecentista Antonil, a ponto de sustentar que
certo é que, se o senhor se houver com os escravos como pai, dando-lhes o necessário para o
sustento e vestido, e algum descanso no trabalho, se poderá também depois haver como senhor,
e não estranharão, sendo convencidos das culpas que cometeram, de receberem com misericórdia
o justo e merecido castigo. (Antonil,
1982, p. 92)
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Portanto, Antonil estabeleceu alguns critérios importantes para que o senhor chegue à
tal posição. Primeiro é haver-se como pai – dentro da perspectiva política vista até aqui.
E nesse sentido ser o protetor da casa, estabelecendo seus direitos e deveres recíprocos
com os subalternos através dos quais construirá seu poder e, podendo então, após,
haver-se como senhor.
Conclusão
Nesse artigo visamos demonstrar a relação entre Igreja Católica e Escravidão no
contexto do Antigo Regime colonial. Ou seja, fugindo do anacronismo, a escravidão era
legitimada pela Igreja como um método de conversão dos africanos, originariamente
pecaminosos, cuja purificação seria necessária para a possibilidade dos negros
chegarem à salvação. E os santos negros eram um grande instrumento de comprovação
para os africanos de que tal missão era possível.
Enfim, pensamos que tal tema de pesquisa é mister para elucidar as razões, e
mais, os argumentos de legitimação da escravidão africana, sem fugir da
contextualização com a mentalidade da época.
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CADERNO DE ANAIS, 2012.
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O BEM MORRER NO RECÔNCAVO DA GUANABARA. FREGUESIAS DE
NOSSA SENHORA DA PIEDADE DO IGUAÇU E SANTO ANTÔNIO DE
JACUTINGA (SÉCULO XVIII)
Ana Paula Souza Rodrigues14
Resumo: O trabalho analisa concepções de morte na Freguesia de Piedade do Iguaçu e
Santo Antonio de Jacutinga, situadas ao fundo do Recôncavo da Guanabara, no século
XVIII. O objetivo da comunicação a ser apresentada é discutir o bem morrer, fruto da
visão escatológica do catolicismo, construída a partir da Reforma Tridentina. Primeiro,
analisaremos os elementos que caracterizam a boa morte (sacramentos, feitura dos
testamentos, mortalhas, local de sepultamento, dentre outros), em seguida, os elementos
que compõem os ritos e costumes para ―guiar a alma no caminho da salvação‖, os quais
expressam as hierarquias de uma sociedade pré-industrial, escravista e hierarquizada.
Palavras-Chaves: Freguesias Rurais, Bem Morrer e Hierarquia.
O que era Iguaçu e Jacutinga?
A resposta ficará mais completa ao longo do texto, contudo, deixemos claro que
se trata de duas freguesias rurais do Rio de Janeiro, situadas na região que hoje
denominamos como Baixada Fluminense, outrora conhecida como fundo do Recôncavo
da Guanabara15.
Em um estudo sobre o quadro espacial português, Ana Cristina Nogueira e Antonio
Manuel Hespanha afirmam que “o espaço é uma realidade construída e não uma
extensão bruta e objetiva”. Ademais, em sociedades como as de Antigo Regime,
hierarquizadas, o espaço era visto de forma diferente por cada indivíduo ou grupo, de
acordo com o papel social que figurava. Daí, ―a coexistência (por vezes conflituoso) de
vários discursos sobre o espaço e de diversas práticas de apropriação espacial”
(NOGUEIRA; HESPANHA, 1993, p.35). Desta maneira, a análise sobre o espaço deve
14 Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro.
15 Em 1793, Monsenhor Pizarro utilizou o termo Recôncavo da Guanabara para denominar toda a região
do entorno da Baía da Guanabara. (PEDROZA, 2008, p. 9). Ver mapa no anexo 1.
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ultrapassar o simples exame de demarcações e limites geográficos, e levar em conta
como os indivíduos o criavam, concebiam e transformavam.
Em uma sociedade católica, era a partir do espaço eclesiástico que os indivíduos
referenciavam os diferentes territórios do Recôncavo da Guanabara, sobretudo por meio
do estabelecimento de freguesias. Freguesia era a unidade espacial mínima do domínio
da Igreja; o pároco, ou cura das almas, exerciam a função religiosa interferindo na vida
individual e coletiva 16.
Não obstante a dificuldade da análise de espaços geográficos, é importante
apreender de que forma essas freguesias rurais surgem. Obviamente o fator religioso
interfere diretamente no estabelecimento dessas freguesias, já que as pessoas tinham a
preocupação de participar de todos os rituais católicos.
Contudo, outros elementos permeavam o estabelecimento de uma freguesia, para
além do âmbito religioso de fé e devoção. Antes de tudo é preciso lembrar que a
iniciativa particular fora imprescindível para o projeto colonial. De acordo com Freyre
“foi a iniciativa particular que, concorrendo às sesmarias, dispôs-se a vir povoar e
defender militarmente, como era exigência real, as muitas léguas de terra em bruto que
o trabalho negro fecundaria” (FREYRE, Gilberto, 1980, p. 18-19). Relacionado a esta
constatação, o primeiro elemento que permeia as fundações de freguesias rurais é o fato
de todas as freguesias do Recôncavo da Guanabara iniciarem suas atividades como
capela curada, ou seja, uma capela em terras de um particular, dirigida em caráter
permanente por um pároco ou cura.17. Assim foi o caso de Iguaçu, quando, em 1699, o
povo construiu uma simples capela de taipa, em terras do Alferes José Dias de Araújo
Em Jacutinga, a primeira capela curada fora instituída em lugar denominado Jambuí, em
16 De acordo com Cristina Nogueira e Hespanha ―a freguesia foi, durante o Antigo Regime, uma
circunscrição territorial decisiva no enquadramento político do espaço (...) é, também, um fator de
dispersão política do espaço.‖ Ibidem, p. 38. Uma outra definição de Freguesia: ―Circunscrição
eclesiástica que forma a paróquia; sede de uma igreja paroquial, que servia também, para a administração
civil; categoria oficial institucionalmente reconhecida a que era elevado um povoado quando nele
houvesse uma capela curada ou paróquia na qual pudesse manter um padre à custa destes paroquianos,
pagando a ele a côngrua anual; fração territorial em que se dividem as dioceses; designação portuguesa de
paróquia‖. A definição desta e outras áreas estão publicadas no site da SEADE (Fundação Sistema
Estadual
de
Análise
de
Dados/
Estado
de
São
Paulo).
Disponível
em:
http://www.seade.gov.br/produtos/500anos/index. php?tip=defi# def2.
17 SEADE (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados/ Estado de São Paulo). Disponível em:
http://www.seade.gov.br/produtos/500anos/index. php?tip=defi# def2.
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1657 (ARAÚJO, 1945, p. 84-85; 142-143). Essas primeiras construções eram simples, de
taipa e, por isso, logo careciam de reparos.
O aumento do número de fiéis e/ou a ruína das capelas geravam a construção da
primeira igreja matriz, a qual recebia o nome de um Santo, e este é o segundo elemento.
Pizarro identifica o ano em que, pela primeira vez, a capela curada surge então como
freguesia. Santo Antonio de Jacutinga surge como freguesia em 1686. Iguaçu foi
fundada como freguesia em 1719, quando ocorreu a separação com a freguesia de Nossa
Senhora da Conceição de Serapuhy (que na década de 1710 será anexa a Santo Antonio
de Jacutinga).
A partir das memórias históricas sobre a fundação de Iguaçu, constatamos um
terceiro elemento que marca o estabelecimento dessas freguesias: não só o aumento do
número de habitantes, mas a ação de senhores de terras dessas localidades. Muitos
destes senhores adquiriram estas terras por meio da concessão de sesmaria.18 Como
exposto, o primeiro local de reunião dos paroquianos de Iguaçu fora em uma capela
construída nas terras de José Dias de Araújo. Por ter obtido o título de Alferes, pertencia
à hierarquia militar. Por ter doado terras para os fiéis construírem a dita capela 19, era
senhor de terras. Adiante veremos que possuir terras e exercer funções militares era para
poucos, apenas para aqueles pertencentes à elite, além de constituírem elementos de
distinção em uma sociedade hierarquizada.
Um último elemento que gostaríamos de analisar, de grande importância para que
freguesias rurais surgissem ou desfrutassem de crescimento econômico e populacional,
é a descoberta do ouro nas Minas Gerais. Graças ao boom aurífero, estradas foram
criadas para que o ouro fosse escoado ao Porto do Rio de Janeiro e daí para a Metrópole
e outras paragens. Tais estradas entrecortavam diversas Freguesias do Recôncavo da
Guanabara.
18 O Recôncavo da Guanabara começou a ser povoado durante o século XVI por meio da doação de
sesmarias, logo após a fundação da cidade de São Sebastião, em 1565, pelo Capitão-Mor Estácio de Sá.
Todavia, atentemos para um fato, tal concessão de terras foi realizada de forma desigual, pois foram
feitas principalmente aos que prestaram algum tipo de serviço a El-Rei. Portanto, desde o século XVI há
registros de indivíduos que obtiveram sesmarias na área do fundo do Recôncavo fluminense, com base
no seguinte argumento: o uso de seus próprios bens, parentes e escravos no processo de conquista da
terra.
19 A capela era uma pequena igreja com um só altar, erigido por nobres ou senhores de terras, muitas das
quais se converteram depois em paróquias e igrejas principais, podendo ser pública ou privada.
Disponível em: http://www.seade.gov.br/produtos/500anos/index.php?tip=defi# def2
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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A estrada então existente para se chegar às minas era denominada Caminho do
Paraty, posteriormente ―Caminho Velho‖. A viagem por essa via era longa e
dispendiosa. Deste modo, com o objetivo de ter um controle mais eficaz e um transporte
mais rápido das mercadorias, a Coroa portuguesa incentivou a abertura de novos
caminhos por particulares em troca de títulos e privilégios. O Caminho Novo, aberto por
Garcia Rodrigues Paes em 1698, próximo às margens do Parahiabana, hoje parte
integrante de Pati do Alferes, até o Rio de Janeiro, tornou-se a principal rota utilizada
pelos viajantes.
Durante o século XVIII, as áreas entrecortadas por esse caminhos foram
amplamente beneficiadas. Outras paróquias foram povoadas e elevadas à categoria de
vilas: Pati do Alferes, Vassouras e Paraíba (FORTE, 1933, p. 56). 20
Com as tropas que transitavam por esses caminhos, o comércio local se
favoreceu com armazenamento e transporte de mercadorias, aluguéis de escravos, venda
de produtos locais (BEZERRA, 2008, p. 26). Além disso, muitos viajantes precisavam
descansar, assim como repor provisões de mantimentos e alimentar os animais,
estendendo sua estadia por alguns dias na freguesia que estivesse mais próxima. Deste
modo, Iguaçu e Jacutinga podem ser caracterizadas como uma área de trânsito, pois
entrecortada pelos caminhos do Ouro, recebiam viajantes de todas as partes Reino com
seus escravos e manufaturas em busca das minas auríferas, e paralelamente acolhia aos
transportadores do ouro que partiam em direção ao litoral.
Além destes caminhos a rede fluvial fora muito utilizada para o escoamento das
mercadorias, pois perpassava as freguesias rurais e desembocava na Baía de Guanabara,
o que significa um meio direto de comunicação com o litoral; por isso, mais que a
utilização das tropas, canoas e barcos eram o principal meio de transporte utilizado para
o trânsito de pessoas e mercadorias21.
Sobre as atividades econômicas realizadas nestas freguesias podemos afirmar que
foram muito mais exímias na produção de alimentos do que de açúcar ou aguardente.
20 ―Ao longo desses caminhos foram surgindo fazendas, capelas, freguesias. Enquanto isso a parte
litorânea relativa ao recôncavo é inteiramente ocupada e fragmentada, diversas freguesias são instaladas,
muitos engenhos são erguidos e aldeias são estabelecidas.‖ (ATLAS FUNDIÁRIO DO RIO DE
JANEIRO, 1991, p. 17).
21 Nielson Bezerra afirma que o entorno do Guanabara possuía uma rica malha hidrográfica, ―com a
suma importância estratégica para o dinamismo econômico da região, pois exerceu a função de
‘estradas‘, servindo para o escoamento de mercadorias, circulação de pessoas e informações etc.‖
(BEZERRA, 2008, p. 25).
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Alimentos como mandioca, farinha de mandioca, milho, feijão, charque e carne de
porco foram artigos comerciados no mercado interno da colônia portuguesa.22 Assim,
pois, tais freguesias estavam inseridas dentro do circuito comercial de abastecimento,
tanto para Minas Gerais quanto para a cidade do Rio de Janeiro; participação esta que
contribui para a reprodução do setor agroexportador.23 Essa participação, no século
XVIII, se dava principalmente por meio da produção de gêneros alimentícios como
feijão, milho, arroz, mandioca, arroz e café.
Em tal produção, sobressaía em importância do cultivo da farinha de mandioca
na capitania do Rio de Janeiro para o abastecimento do consumo local, também usada
como moeda de troca no comércio de cativos em Angola e para o abastecimento de
tropas na cidade (DEMETRIO, 2008, op. cit., p. 38 – 40).
Cabe-nos agora perceber a predominante concepção sobre a morte, na
mentalidade dos habitantes de Iguaçu e Jacutinga.
BEM MORRER
A arte do bem morrer é necessária e dificultosa. Necessária,
porque sendo o ponto da morte principio ou de hum bem, ou de hum
mal, que nunca terá fim; que arte se pode imaginar mais necessária
para o christão, que aquela, essa que se aprendem as verdadeiras
regras para evitar um mal eterno, & as máximas mais seguras par
alcançar hum bem que não tem nem terá termo? Dificultosa, pois
sendo que as mais artes se aprendem com o exercício continuado, e só
com os atos repetitivos se adquirem os hábitos dellas, nesta arte de
bem morrer não tem lugar a repetição dos atos, porque só huma vez se
morre‖ (BONUCCI, 1701, p. IX).
Com a Reforma Tridentina as atitudes diante da morte passaram a fazer parte de
um programa combativo ao perigo herético, monopolizou a questão dos sepultamentos,
22 Para o autor os artigos que faziam parte do circuito do comércio interno colonial foram: a farinha de
mandioca proveniente de regiões do interior do RJ, do sudeste da Bahia e de Santa Catarina; do charque
do Rio Grande do Sul; dos muares de São Paulo; dos porcos e reses de Minas Gerais (FRAGOSO, 1998,
p. 100 -105).
23 Aqui nos baseamos no conceito de acumulação endógena e mercado interno elaborado por João
Fragoso. Além disto, o autor afirma que: as grandes fazendas brasileiras se alimentavam de produções do
próprio espaço colonial (FRAGOSO, 1998, p. 26-27; 109).
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a intercessão pelos mortos e introduziu noções como: ―Purgatório‖, ―Juízo final‖ e
―Inferno‖, gerando temor perante a morte. A elaboração de uma pedagogia do medo
utilizou como métodos principalmente imagens, livrinhos e sermões (RODRIGUES,
2005, p. 39).
O medo de um destino incerto para a alma envolve a mentalidade dessa
sociedade, o que estimulou a existência de uma liturgia católica tendo por objetivo o
ensinamento dos procedimentos a serem tomados para o bem morrer. Cláudia Rodrigues
afirma que uma liturgia (literatura e imagens) foi criada pelo catolicismo para inculcar
nos indivíduos a importância de uma boa morte. (RODRIGUES, 2005, p. 39 – 63). A
epígrafe acima faz parte de um livro escrito pelo padre Antonio Maria Bonucci,
dedicado ao capitão Bento Pereira Ferraz, no início do século XVIII. Pertencente a tal
liturgia seu objetivo foi o ensino da arte do bem morrer a todos os cristãos,
especificamente aos moradores da Bahia, para que evitem o mal eterno (Inferno).
Em que consistiria tais ideias? Segundo Jacques Le Goff, o purgatório surge na
crença cristã ocidental entre os séculos XII e XIII, a geografia do além, de binária,
transforma-se em ternária (Inferno- Purgatório- Paraíso). O Purgatório é um lugar
intermédio onde os mortos sofrem provações para se purificar de seus pecados, uma
delas em forma de fogo e de gelo. A oração, o jejum, a esmola e sacramento do altar
(missa) são os quatro tipos de sacramento, dos quais só são beneficiados os mortos que
estão no purgatório sofrendo os respectivos castigos (LE GOFF, 1995, p. 18-21; 251269). A criação do Purgatório também foi uma luta anti-herética, uma resposta a novas
estruturas que foram postas a cristandade; contra os hereges, protestantes e gregos. Uma
cristianização de práticas pagãs (RODRIGUES, 2009, p. 444).
As orações, sufrágios, a prática da eucaristia pelos religiosos, sua suposta
intervenção a favor das almas, o sepultamento dentro de seus templos, todos esses
elementos asseguraram a Igreja o domínio sobre os vivos, expandindo seu poder em
uma sociedade que sofre constantes transformações, inclusive a contestação de seus
dogmas pelos protestantes. ―Através da morte e dos seus mortos os vivos aumentam seu
poder nesse mundo, os sufrágios passam a ser um empreendimento cada vez mais
ativo.‖(LE GOFF, 1995, p. 275). A nova configuração do mundo dos mortos avaliza a
Igreja Católica o poder sobre seus fiéis.
Receosos de seus destinos no além e comiserados das almas de familiares que
poderiam estar no Purgatório, muitos fregueses da Piedade do Iguaçu e Jacutinga deram
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esmolas, dízimos e pagaram missas, com isso muitos clérigos constituíram patrimônios
e bens. Alguns religiosos tinham apenas tais medidas como fonte de renda.
O Juízo final é um dos principais temores dos cristãos, quando o Pai, ao lado do
Filho irá julgar toda a humanidade; assim está descrito o dia do juízo em um trecho da
Bíblia, livro de fé e prática dos cristãos: “E vi os mortos, grandes e pequenos, que
estavam diante do trono, e abriram-se os livros. E abriu-se outro livro, que é o da vida.
E os mortos foram julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros, segundo as
suas obras.” (Bíblia Sagrada, 1995, p 1225). Assim, todos prestariam contas no tribunal
divino, todos seriam julgados segundo suas ações, nada poderia ser encoberto: “muito
puros, & perspicazes os olhos do juiz, que depois de nossa morte hão de examinar os
mais profundos segredos de nosso coração.” (BONUCCI, 1701, p. XII).
Na concepção dos dogmas católicos, o Inferno é destinado aos homens que
morrem sem expiarem seus pecados e pedirem perdão por suas faltas, 24 o que leva à
preocupação com os ritos que devem ser realizados para um cristão morrer justamente.
Podemos classificar a concepção de morte do período abordado como ―morte
domada‖, que para o autor Philippe Áries é a morte aceita, próxima, familiar, onde
ocorria uma cerimônia pública e organizada; ela sempre se fazia anunciar, sendo natural
o moribundo perceber os sinais que prenunciavam sua partida (ÀRIES, 1981, p. 34-35).
A morte repentina é o oposto da arte do bem morrer, segundo Cláudia
Rodrigues, a ―boa morte‖ ocorria quando havia a feitura do testamento, a realização dos
sacramentos e o ingresso em uma irmandade (RODRIGUES, 1997, p. 150- 151). Outro
elemento diferenciador poderá ser acrescentado, a mortalha, pano que envolve o corpo
do cadáver. Para o verdadeiro cristão estar bem aparelhado para a hora derradeira,
segundo Bonucci, três meios devem ser realizados: a oração, os sacramentos e o estudo
da lição espiritual e meditação dos novíssimos (BONUCCI, 1701, p. 39).
Sobre a realização dos testamentos, torna-se um instrumento fundamental para
expressar arrependimento e dispor dos bens para os respectivos herdeiros. Áries salienta
duas finalidades para os testamentos: a) passaporte para o céu, meio de salvação; b)
salvo conduto na terra para desfrute dos bens adquiridos na terra, podendo reverter
alguns em prêmio espiritual: esmolas, missas e preces. Aceitar a morte e estar contíguo
24 ―E aquele que não foi achado escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo.‖ (Bíblia Sagrada,
1995, p. 1225).
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aos lugares dos mortos não significavam uma despreocupação com os bens possuídos e
os familiares e amigos deixados, eram as faces da mesma moeda. Por isso, por meio
desse documento foi possível associar as riquezas à obra pessoal de salvação (ÀRIES,
2003, p. 115). O autor observa tais elementos pela análise dos testamentos na sociedade
francesa da Idade Média até o século XVIII. Em nossa pesquisa, com o exame dos
testamentos da Freguesia de Piedade do Iguaçu e Jacutinga, nota-se igualmente a
manifestação desses fatores.
Em geral, os testamentos seguem um modelo, como exemplifica o de Custódio
Pires Ribeiro, falecido no ano de 1787, sepultado na cova da irmandade do Rosário e
amortalhado no hábito de São Francisco.25 Na primeira parte reconhece-se a Trindade,
identifica-se o testador, o documento é datado, confirma-se o perfeito estado de saúde
mental e, por fim, se expressa o temor pela morte: ―Em nome da Santíssima Trindade
Padre, Filho, e Espírito Santo, três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro. (...)
estando de pé com saúde em meu perfeito juízo, e temendo-me da morte, que é natural a
todos, e desejando por mina alma no caminho da salvação (...)”.
No segundo momento encomenda sua alma, como é uma viagem incerta, faz se
imprescindível um pedido, um apelo à misericórdia divina para que sua alma seja
recebida no paraíso: “Primeiramente encomendo a minha alma a Santíssima Trindade e
ao anjo da minha guarda e ao santo do meu nome que a criou e rogo ao Padre eterno
pela morte, e paixão de seu Unigênito filho a queira receber como a sua (...)”.
Em seguida os testamenteiros (os responsáveis pelo cumprimento das clausulas
testamentárias) são nomeados; logo após, dispõe-se sobre as últimas vontades quanto à
realização do funeral, define-se a mortalha, a cova, o número de missas, tudo que irá
envolver o cerimonial, incluindo as seguintes disposições testamentárias. Após as
disposições, declara-se a naturalidade, todos os bens que se tem posse, as dívidas ativas
e passivas, legados, dotes e processos que se encontrem em aberto. São distribuídas
esmolas, alforrias, algumas vezes partilham-se os bens. Determinados testamentos têm,
após seu término, a translação da aprovação, ou um codicilo.
25 Livro de Óbitos de livres e forros (Freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu 1777-1798). f.
57.
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O forte caráter religioso está intrinsecamente ligado à preocupação com os
legados deixados; assim, os testamentos exprimem, além do medo da morte, o apego
pela vida e aos bens que serão deixados na terra.
Os sacramentos constituem o segundo elemento da arte do bem morrer, pois um
bom cristão durante a sua vida deve realizar os sete sacramentos: batismo, confirmação,
eucaristia, penitência, extrema-unção, ordem e matrimônio. Na maioria das vezes,
somente na hora derradeira, quando a doença já tomara conta do moribundo, acionavase o padre para realizar os últimos ritos católicos. Cláudia Rodrigues ordenou-os da
seguinte maneira: penitência (confissão e pedido de perdão pelos pecados), eucaristia
(comunhão com o corpo de cristo já ressuscitado) e extrema-unção (tentativa de
eliminação de toda a presença maligna, último ato cristão antes do fim do ciclo da vida)
(RODRIGUES, 1997, p. 176-177).
A referência encontrada sobre os sacramentos, dentro da liturgia que apregoa a
boa morte, afirma que a frequência principalmente da eucaristia e penitência tornam-se
importantes para a purgação da alma e a prevenção de se ―cair em novas culpas‖ ou
―cair em muitas ofensas contra a santa lei‖. Utiliza-se a imagem do juízo final (presença
do indivíduo frente ao juiz, que tudo sabe e tudo vê) para ratificar a importância de tais
ritos durante toda a vida Cristã, não somente nos últimos momentos, como se costuma
fazer; mas cotidianamente, conforme citado acima (BONUCCI, 701, p. XIII; 46-47).
Assim, Antonio Bonucci afirma: ―o verdadeiro aparelho para morte é o já estar
preparado na vida. O aparelho que se faz nos últimos períodos da vida, não é aparelho,
é embaraço, é confusão.” A preparação para morte deve ser constante, pois nenhuma
pessoa sabe o dia do fim de sua vida.
As irmandades faziam parte da preocupação com a morte antes do agravamento
da doença, ou dos prenúncios da morte. Por meio das associações em irmandades
observa-se a preocupação das pessoas com o bem morrer no dia-a-dia. Em Portugal tais
confrarias existem desde o século XIII. Com a formação de um Império ultramarino,
estas instituições foram trasladadas para as colônias sofrendo modificações a partir do
encontro de novos elementos, tais como a escravidão moderna e práticas ―pagãs‖.
Na colônia portuguesa, as irmandades eram associações corporativas fundadas
em hierarquias sociais, não políticas, havia formalmente, irmandades de brancos, pardos
e negros. Além disso, serviam como veículo transmissor do catolicismo popular, tendo
como principal objetivo o fornecimento de um funeral digno a seus associados. Na hora
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do sepultamento de um irmão da confraria, o cortejo reproduzia a sociedade de Antigo
Regime por meio dos reis, rainhas, princesas e outros personagens dramatizados pelos
irmãos (REIS, 1991, p. 48 – 72).
Para Russell-Wood, as irmandades representaram para as pessoas de cor uma
proteção contra uma sociedade competitiva e dominada pelos brancos, fossem escravos
ou libertos. Discute a possibilidade de tais instituições resguardarem alianças tribais,
danças, músicas, religião ou costumes das culturas africanas. Ao mesmo tempo, tornamse uma resposta a negligência sofrida por pessoas de cor no Brasil colonial (RUSSELLWOOD, 2005, p. 189-231). Todavia, não havia interdições intransponíveis, salvo em
certas irmandades de elite. Guardiões de tradições culturais ou não é inegável o papel
social que exerceram, principalmente para com escravos e libertos, sobretudo na
realização de sepultamentos.
De certo, para pessoas de parcas condições, de qualquer cor ou condição
jurídica, ser irmão em uma confraria era a garantia de uma cova, o que era importante,
pois morrer sem sepultura ou enterro constituía ―virar alma penada‖ (REIS, 1991, p.
171).
Resta-nos, doravante, através do estudo sobre a morte, analisar as hierarquias de
uma sociedade de Antigo Regime e escravista, manifestas nos elementos que compõem
a arte do bem morrer.
Hierarquias Sociais
Para abordar as hierarquias sociais de Piedade do Iguaçu, não serão analisadas
benesses reais, mas os elementos das pompas fúnebres e os as informações provenientes
dos testamentos que demonstram os privilégios e exclusivismos da sociedade
estamental. O local de sepultamento, participação em irmandade, as mortalhas, as
esmolas deixadas, alforrias, os sufrágios, nos dão a pista para alcançarmos este objetivo.
Comecemos pelos locais de sepultamento. Por meio dos óbitos constatamos a
existência dos seguintes locais de sepultamento na Freguesia de Piedade do Iguaçu e
Jacutinga: cova da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição, das Almas, de Nossa
Senhora da Piedade, do Rosário, do Santíssimo Sacramento, a cova de fábrica, covas
particulares (em geral capelas), as covas dentro da igreja, cemitério e convento.
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Àries, afirma que o termo capela tinha três sentidos: o altar onde eram
realizadas as missas previstas, a fundação destinada ao padre que as celebrava e o de
sepultura (ÀRIES, 1981, p. 306). No quadro 1, o que denominamos ―Particular‖ são as
capelas particulares, duas de outra freguesia. Tanto livres, quanto forros e escravos
foram enterrados em capelas, desde que houvesse vínculo de parentesco ou agregação
para com os donos das capelas.
Quadro 1- Local de sepultamentos de acordo com os grupos sociais. (Freguesia de
Iguaçu)
Livres
Local de sepultamento
Forros
Escravos
*
(%)
*
(%)
*
(%)
7
1,8
4
3,8
-
0
Irmandade de Nossa Senhora das Almas
41
11,0
1
1,0
-
0
Irmandade de Nossa Senhora da Piedade
2
0,6
-
-
2
1,4
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
25
6,6
25
24,0
19
12,8
Irmandade do Santíssimo Sacramento
47
12,5
-
-
3
2,0
Cova de Fábrica
138
36,8
31
29,8
1
0,7
Dentro da Igreja
27
7,2
2
2,0
15
10,1
Particular
4
1,1
3
2,8
2
1,3
No adro
15
4,0
2
2,0
86
58,1
Cemitério
32
8,5
31
29,8
-
0
Convento
2
0,6
-
-
1
0,7
Em outra freguesia
8
2,1
1
1,0
4
2,8
Vazia
27
7,2
4
3,8
15
10,1
Total
375
100
104
100
148
100
Irmandade
de
Nossa
Senhora
da
Conceição
* Em números. Foram excluídos os inocentes, devido sua sub-representatividade. Fonte: Arquivo da
Cúria Metropolitana de Nova Iguaçu, Livro analisados: Livro de Óbitos de livres e forros (Freguesia de
Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu 1777-1798); Livro de Óbitos de livres, forros e escravos (Freguesia
de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu 1723-1769); Livro de Óbitos de escravos (Freguesia de Nossa
Senhora da Piedade do Iguaçu 1757-1762).
Considerando a tabela, observa-se que a maioria dos sepultamentos em Iguaçu
dos livres foi realizada em cova de fábrica (cova da própria paróquia) (36,8% do total
dos livres). Por sua vez, os forros tiveram um número maior de sepultamentos
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igualmente na cova de fábrica e no cemitério (29,8% do total dos forros) e, por fim,
grande parte dos escravos (58,1%) foi enterrada no adro da igreja. Em uma sociedade
pré-industrial, onde a circulação monetária ainda era escassa e restrita, o grupo dos
livres possuía maior pecúlio em mãos, podendo assim adquirir uma cova de fábrica. O
autor Pizarro afirma que os valores pelas sepulturas são: 1$280; 2$reis e 4$reis;
conforme os seus lugares (ARAÚJO. op. cit., 1945. Página 60). Os forros, por sua vez,
também possuíam seus recursos para comprar covas, sobretudo por meio da venda e
troca de alimentos cultivados e do fabrico da farinha de mandioca.
Os escravos, no entanto, de forma peculiar foram os mais sepultados no adro da
igreja. Adro, segundo Bluteau: ―se entende cemitério, porque antigamente não se
enterravão os Christãos nas igrejas, nem ao pé dos Altares, por respeito ao Corpo, &
Sangue de Jesus Christo, que nos ditos lugares se Consagra; mas nos Adros das
Igrejas, a saber na entrada, & adiante da porta principal dellas se abrirão as
sepulturas.” (Bluteau, 1701, p. 136). De acordo com os dados, e com a definição de
Bluteau, conjecturamos que o adro referido na fonte seria então um cemitério próximo
da igreja (provavelmente atrás), cujas covas teriam um valor simbólico menor em
relação ao das irmandades ou de fábrica. De igual maneira, não era vedado aos escravos
o enterro cristão. Isto significa que nem todos os senhores desandavam do além-túmulo
de seus cativos, bem como a possibilidade de apropriação por parte dos escravos, em
sua maioria, africanos.
Sobre a participação nas irmandades observamos que a maioria dos forros e
escravos participou da Irmandade do Rosário dos Pretos. Certamente, buscavam o
amparo das irmandades para conseguir um local de sepultamento. Infelizmente não
temos o conhecimento da localização dos compromissos de tais irmandades, mas é
sabido que a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos volta-se para este
grupo, sem estatutos de pureza de sangue ou cobrança de anuais exorbitantes. Ao
contrário da Irmandade do Santíssimo Sacramento, a qual possuía a maioria dos irmãos
de condição jurídica livre, provavelmente havia medidas excludentes que geravam tal
fato: pureza de sangue, altas taxas anuais.
Àries demonstra que os sepultamentos dos antigos (até o século VI) não eram
realizados dentro da igreja ou no seu adro, pois temiam o regresso dos mortos, além de
serem considerados impuros, podendo acarretar a poluição dos vivos. Mas, a partir do
século VII há uma mudança de atitudes, já que a indiferença ou familiaridade passam a
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ser os traços característicos no tratamento com os mortos; deixam de fazer medo. O
cemitério, antes fora da cidade, é transferido para junto dos santos, perto da pia
batismal, próximo ao altar, dos penitentes, ou seja, dentro da igreja e no seu entorno.
(ÀRIES, 1981, p.39-43).
Em Iguaçu e Jacutinga, no que concerne às mortalhas, os corpos foram envoltos
em quatro tipos: panos de cor, hábitos sacerdotais, de santos ou lençóis. Os livres
tiveram um maior índice no uso dos hábitos de cor (18,8%), principalmente o branco,
seguido dos hábitos de santos (5,6%), sobretudo o franciscano, sendo os únicos a
utilizar as vestes sacerdotais. Vestes sacerdotais e de santos eram mais dispendiosos, o
seu uso representa um apelo aos santos para colocar a alma no caminho da salvação.
Apesar de não utilizarem nenhuma mortalha sacerdotal e uma pequena porcentagem do
uso de mortalha de santos (2,0%); os forros, em relação aos livres, foram os que mais
utilizam as mortalhas, 35,5%, e 25,0%, respectivamente. Na Freguesia de Iguaçu, no
caso dos escravos, não há menção de nenhum tipo de tecidos para envolver seus corpos.
Para além do possível esquecimento do pároco em registrar, podemos constatar o alto
custo destes panos.
Conclusão
No século XVIII, tal como exposto, os fregueses de Iguaçu e Jacutinga
concebiam a morte de forma próxima e familiar, vivos e mortos conviviam sem medo,
dentro da igreja, durante o velório, as missas. A liturgia do bem morrer católico, as
imagens e leituras, de certa maneira, cumpriu seus objetivos, ao menos a domesticação
da morte.
Inferno, Juízo Final e Purgatório introduzidos na visão escatológica aguçaram o
temor para com o destino da alma no além-túmulo, fez indivíduos de diversos grupos
sociais realizarem os rituais indicados pela religião oficial: sacramentos, mortalhas,
participação em irmandades, etc. Muitos também quiseram acompanhamento durante o
cortejo de seu funeral pelo maior número de pessoas, serem enterrados próximo aos
santos e fazer testamentos.
Tais informações expressaram a hierarquia social dessa sociedade de Antigo
Regime e escravista, cujos critérios não se restringem aos aspectos econômicos.
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Contudo, podemos afirmar que todos, de diferentes modos, mas igualmente temerosos,
encomendaram, quando puderam, suas almas para o além-túmulo.
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O PADROADO RÉGIO NA FORMAÇÃO DO IMPÉRIO
BRASILEIRO
Cezar Augusto Sales Uchôa Júnior
Resumo
Padroado, Igreja e Nação.
Neste artigo busca-se criticar as análises mecânicas e dicotômicas da relação Igreja e Estado na
formação da nação brasileira durante o Oitocentos, apontando para pesquisas posteriores sobre o
tema. Discute-se as perspectivas de estudo do Padroado que consideram unicamente o caminho
da secularização. Propõe-se, alternativamente, a análise da Igreja na organização do projeto de
nação que forneceu as bases de pertencimento à sociedade brasileira ainda não secularizada.
Constitui-se matéria importante do debate a noção de ―mentalidade cristã‖, segundo a qual o
súdito deveria ser antes um cristão (leia-se católico). Propõe-se, portanto, a reflexão da Igreja
Católica Brasileira como fonte ideológica para o desenvolvimento do projeto de nação no
Brasil, percebendo no exemplo do Padre Antônio Feijó uma figura emblemática para pensar as
inter-relações entre a esfera sagrada e a profana, relativizando este dualismo.
Introdução
O presente trabalho tem como motivação primeira a seguinte questão: Como e por que a
Igreja continuou vinculada ao Estado durante quase todo o século XIX, diante de tantas tensões?
Claro que dada amplitude deste debate, não será possível responder tal pergunta. No entanto é
possível restringir temporal e tematicamente este tema, buscando perceber como uma parte da
historiografia tem tratado tal relação – Igreja e Estado – nas primeiras décadas do século XIX,
buscando pensar a questão com uma determinada perspectiva relacional entre religião e política.
A História tem tentado estabelecer, dentre outras coisas, as causas das mudanças no
decorrer do tempo, por isso tem focado nos fatos, processos e em seus resultados. No caso da
questão Igreja-Estado no início século XIX, a historiográfica tem estudado este período com um
olhar de causalidade26. Ou seja, o foco não está no momento em análise, mas a lógica se baseia
no que aconteceu depois – a questão religiosa de 1872 e a separação da Igreja e do Estado na
República (Decreto 119-A de 7 de janeiro de 1890). Tanto a historiografia vinculada a Igreja,

Graduando em História – UFRRJ-IM
A exemplo de João Alfredo Montenegro que tende a enxergar as tensões Igreja-Estado com uma
perspectiva evolucionista, que resultaria na separação entre Igreja e Estado. Pois a Ideologia Liberal
condicionada ao processo histórico resultaria nisso. MONTENEGRO, João Alfredo. A Evolução do
Catolicismo no Brasil. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1972.
26
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SOBRE A RELIGIÃO
53
como historiografia laica, tendem a olhar as primeiras décadas do século XIX como uma causa
do que acontecerá na segunda metade, analisando, de forma mecânica a relação, sem considerar
o processo dentro da sua temporalidade.
Sendo assim, a temporalidade adotada é cronológica no sentido de restringir um
período especifico (1800 a 1837 – da Fundação do Seminário de Olinda ao fim do
governo do Regente Feijó). Neste período fatos importantes marcam tradicionalmente a
História do Brasil – como a transferência da Corte em 1808 e a Proclamação da
Independência em 1822, porém é um período em que a Igreja está se adaptando às
mudanças políticas, sociais e culturais e, muito mais que uma instituição da sociedade
em rumos da secularização, a Igreja está vinculada com o Estado. Trata-se, portanto, de
um elo entre a sociedade brasileira em formação e o aparelho estatal – o Império – em
organização. Nesta perspectiva, para entender a sociedade luso-brasileira do início do
dezenove, deve-se levar em consideração as questões dentro da temporalidade do
período. Melhor dizendo, deve-se tentar estabelecer os nexos lógicos da sociedade
daquele tempo, pois ninguém poderia saber quando a Igreja iria se separar do Estado e
muitos nem cogitavam esta possibilidade no início do século XIX.
Portanto, é possível começar a refletir nesse tema levantando uma discussão
historiográfica – conscientemente limitada – sobre a relação Igreja e Estado no início do
século XIX, focalizando a mentalidade cristã, como uma característica indissociável
desta sociedade; chamando a atenção para o surgimento de novas formas de fazer
política, como produto de tensões internas (influenciadas ou embasadas por idéias
externas); e pensando a Igreja como um elo entre o mundo institucional e as práticas
sociais, personificada na figura do padre-político. Juntando os temas, seria possível
levantar possibilidades de pesquisa, não para responder à motivação primeira para a
elaboração deste trabalho, mas talvez para aproximar a História da Igreja Católica à
História do Brasil. Pois enquanto a primeira tende a tratar de questões espirituais
internas, a segunda olha para a Igreja como um apêndice do Estado e, por isso, não
levaria em consideração a estreita relação, menos institucional e mais cultural, entre
religião e política. Nesta perspectiva Magda Ricci parece construir sua biografia sobre o
Padre Diogo Antônio Feijó, reavaliando biografias anteriores que separavam o Feijó
político do religioso.
“Se seus antigos biógrafos delimitavam a ação social de um padre político do estilo de Feijó
como que tendendo a levar a morte do padre em benefício do político, por outro lado e em certo
sentido, a intensa presença de Feijó nos debates parlamentares da primeira metade do século XIX
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também reforçava a idéia da morte do padre perante o político. No entanto, a forma pela qual
Feijó, ou melhor, Padre Diogo, chegou até mim impeliu-me a rever esta certeza historiográfica.
Desde a minha pesquisa sobre Itu, estive longe de demonstrar que havia uma profunda cisão entre
política e religião durante a primeira metade do século XIX. Foi isso que me fez perceber,
rapidamente, a tolice da separação inicial entre o Feijó político e aquele antigo padre atualmente
em Itu.” (RICCI, 2002, p.33)
Assim, a tentativa é equacionar o binômio Igreja-Estado, sem hierarquizá-los
em graus de dependência e/ou importância, mas pensar como as instituições unificadas
(com suas tensões e acordos) podem refletir, em certo grau, a sociedade brasileira em
formação, moldando os contornos dessa nacionalidade, onde o sagrado e o profano não
são necessariamente conceitos opostos entre si. Portanto, o presente trabalho pode
contribuir para uma leitura menos reducionista do que foi padroado régio no Brasil nas
quatro primeiras décadas do dezenove, além de reavaliar a ação dita secular da Igreja,
possibilitando leituras mais objetivadas na integração entre a esfera religiosa e política,
pois estas esferas estavam mais associadas do que se pode imaginar. Isso levaria,
também, a outras questões para se pensar: quem separou essas esferas, quando isso
ocorreu, por que e como? Resultando em mais estudos específicos não sobre igreja, ou
sobre política, mas sobre os dois ao mesmo tempo.
1. A Igreja Brasileira no Início do Século XIX (1800-1837)
A tendência da historiografia até a década de 1980 era ver o Brasil como uma
espécie de esponja que absorvia as idéias produzidas na Europa e na América do Norte.
No caso específico da Igreja no Império, as análises, como de João Alfredro
Montenegro tendem a dicotomizar o que ele entende como ideologia e conjuntura
histórico-social. Para o autor, a tensão entre o condicionamento histórico-social e a linha
ideologia, resultou em uma espécie de hibridismo entre o ―mundo feudal‖ e o mundo
moderno, pois o conceito de moderno e feudal está pautado em modelos europeus.
“São dois movimentos antípodas originários do mesmo centro. Um querendo prolongar o
medievalismo de fundo teocrático. Outro enclausurando-se na alienação. Indiferente e até
contrário a transformações econômico-sociais.[...]
Deste modo, cria-se um tenso confronto ideológico entre duas concepções de mundo: a da
Igreja desligada, e a do Estado a ingressar em nova fase de modernização. Caminham as duas
entidades como retas paralelas, sem nunca se encontrarem. Aquela julgando os acontecimentos
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chaves, as mudanças estruturais sob o ângulo de uma teologia e de documentos pontifícios
deslocados no tempo, aquém das conquistas meterias. Já o Estado empreende tarefa de
magnitude, esforçando-se por dar a ultima demão no seu aparelho institucional, autonomizando-o
naqueles países de cristalizadas tradições católicas, onde persistia o desfalque da soberania do
monarca em razão da concorrência da Igreja.” (MONTENEGRO, 1972, p.45)
1.1. “Cristãos e Brasileiros”
Apesar da distinção teórica entre ideologia e estrutura, Montenegro chama a
atenção para uma questão fundamental: a sociedade luso-brasileira é cristã. Uma
conclusão inegavelmente lógica, porém, o problema é: que tipo de sociedade cristã é
essa? E qual a amplitude dessa mentalidade nas relações sociais e no embasamento
ideológico dos posicionamentos? Aqui, é possível avaliar a relação institucional da
Igreja com o Estado, fundamentado não apenas em um jogo de interesses em acordo,
mas como uma expressão da sociedade de mentalidade cristã. Ou seja, a continuação do
Padroado é fruto da força da mentalidade cristã católica na sociedade brasileira. Por
isso, as ideologias européias não teriam sido deturpadas ou desconfiguradas, como
coloca Montenegro, mas elas teriam sido instrumentalizadas de acordo com os
interesses em questão na sociedade luso-brasileira. A questão é entender os mecanismos
de absorção das ideologias européias dentro da realidade local brasileira, considerando
sempre a base cristã como uma espécie de filtro ideológico que não faz uma distinção
relevante entre sagrado e profano.
É possível agora partir para uma tentativa de compreender a mentalidade lusobrasileira do início do dezenove. A data escolhida como referência inicial (1800) marca
a Criação do Seminário de Olinda, obra de José Joaquim da Cunha Azeredo de
Coutinho, reconhecidamente filho intelectual da elite Coimbrã. Cursou teologia na
Universidade, já reformada, na qual o seu tio Francisco de Lemos de Faria Pereira
Coutinho era reitor (1770-1779). Foi em Olinda que estudou a maioria dos idealizadores
da revolta de 1817, como Frei Caneca. – o que talvez explique porque a historiografia
veja tal instituição como foco dos ideais liberais no Brasil. No entanto, Villaça chama a
atenção para as intenções e o objetivo de tal ―escola‖.
“[...]O Seminário foi uma
escola secundária razoável. Não há nada nos estatutos de 1798 que pudesse perturbar
os status.[...]Os fins de Azeredo Coutinho foram modestamente pastorais e muito menos
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intelectuais ou revolucionários do que as épocas subseqüentes imaginaram.”
(VILLAÇA, 1975, p.30)
A questão que se colocaria aqui é: como um centro de instrução secundária teria
produzido a geração de1817 e de1824? Porém, para o objetivo do artigo, não convém
seguir nesta direção, mas demonstrar a existência de uma mudança ideológica,
representada na criação Seminário. Enquanto os jesuítas focalizavam seus estudos na
especulação filosófica tomista, a nova elite intelectual, fruto da Coimbra pombalina,
começava a interagir com a Igreja brasileira de uma forma mais ativa, buscando um
papel mais prático da Igreja nas questões da sociedade.
Esta ―teologia da ação‖, menos especulativa, resultou em padres-políticos, em
uma maior integração institucional entre a Igreja e o Estado e, também, em uma tensão
entre as duas esferas, principalmente devido a problemas de jurisdição – conflito entre
poder temporal e poder divino (eclesiástico). Até o século XVII não havia problemas
tão fortes entre a Igreja e o Estado – vale lembrar que a questão do padroado é vista em
duas vias, pelo lado da Coroa é um direito divino dado ao Rei de gerenciar os assuntos
religiosos, e pelo lado de Roma é uma concessão para a proclamação da fé católica.
David G. Vieira acrescenta que o padroado na versão pombalina de D José I, rompe um
pouco com a idéia de coexistência entre Igreja-Estado e apresenta uma certa supremacia
do Estado. É possível perceber que a discussão, em principio, não é em separar religião
e política, apesar de se ter consciência que as intenções ideológicas de cada grupo
apresentarem muitas discordâncias. Porém, a mentalidade religiosa cristã é a base
cultural da sociedade brasileira no início do século XVIII e fundamento de legitimação
de qualquer forma de governo e/ou ―dominação‖. Em uma analogia, pode-se dizer que o
cristianismo católico é a fôrma por onde se moldavam os posicionamentos e posturas
ideológicas. Portanto, desconsiderar a religião e a fé – ou atribuir-lhes um papel
secundário – na compreensão dos nuances da sociedade luso-brasileira é deixar de ver
um ponto determinante para a melhor compreensão do Padroado. Isso aponta para
indagações que podem ser aprofundadas, como: buscar entender que tipo de catolicismo
começa a ser vivido no Brasil, quando há uma certa ruptura com a perspectiva jesuíta?
Como a religião é capaz de se moldar às necessidades cotidianas (políticas, sociais,
culturais e econômicas)?
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1.2. Agência Civil da Coroa
Será que a Igreja pode ser simplificada, a uma agência da Coroa? A
historiografia mais ligada ao catolicismo, em sua maioria, responderia que sim. Como
pode ser verificado no livro: A História da Igreja no Brasil – segunda época século XIX:
“Não obstante o grande número de eclesiásticos revolucionários, bispos e padres, eram
representantes de uma religião de Estado, consciente de seu papel de funcionários constituindo a
segunda esfera administrativa do governo, ligada aos interesses dos grandes proprietários[...]
A consciência dos bispos não é adequada para dar-nos uma idéia da Igreja brasileira; eram
funcionários de uma religião de Estado agressivamente única, vindos de fora quase todos, sem
identificação com o povo que deviam reger e ensinar. Por parte das autoridades civis era tão
abrangente o conceito padroado que nem se pode falar de Igreja como instituição distinta do
poder absoluto do Estado, que absorvia a religião como uma de suas instituições fundamentais.”
((HAUCK, FRAGOSO, 1980, PP.14-15)
A questão não é tão simples como parece. A dicotomia mental entre poder
mundano e poder espiritual, naturalizada hoje, seria aberração, ou heresia, em
determinados círculos do início do Dezenove no Brasil. Mesmo que possa haver
aparente imposição do Estado sobre a Igreja na versão pombalina do padroado, isso não
significa, simplesmente, uma luta direta dessas esferas de poder. Antes, pode ser fruto
da mentalidade cristã, de união entre poder temporal e espiritual, resignificada para
atender às necessidades da época em questão.
A Igreja, desde a colonização assumiu um papel mais forte na esfera civil. Não
caberia aqui levantar as características da sociedade corporativa, mas somente chamar a
atenção para a ―ação civil‖ da Igreja. Isso incluía, desde a educação – lê-se catecismo,
cristianização – até registros civis de nascimentos, mortes, casamentos e testamentos,
passando pelo atendimento das necessidades assistencialistas dos mais pobres e
também, na realização dos sacramentos e rituais religiosos. É possível perceber, a
integração entre os sacramentos – religião – e ação civil da igreja – os registros. Ao
tempo que o pároco realizava o batismo, ele estava registrando o nascimento de mais
um cristão e súdito da Coroa, assim também nos casamentos e na extrema unção. Isso
mostra que a Igreja foi, e continuaria sendo, o elo entre a Coroa (Aparelho Estatal) e os
súditos (os fieis) – posteriormente os cidadãos. Portanto, é na ação ―civil-religiosa‖ da
Igreja que se verifica a base da inter-relação entre a esfera mundana e espiritual, de
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forma exemplar e emblemática. A Igreja foi também ―instrumentalizada‖, de forma
mais sistemática e institucional, como centro dos registros eleitorais e das eleições. E
com a estabilidade do Império, construída no Segundo Reinado, o Estado começaria a
se organizar na esfera civil, tirando aos poucos da Igreja o papel de ―agência civil da
Coroa‖. Porém, é possível relativizar e questionar a instrumentalização da Igreja pela
Coroa, pois pode parecer que a Igreja foi simplesmente manipulada como marionete nas
mãos do Império. O que se propõe é um repensar a Igreja e aprofundar a questão em
pesquisas mais específicas sobre a sua realidade, o Catolicismo e a sociedade brasileira
no início do XIX.
Além das instrumentalizações da Igreja pelo Estado, Montenegro chama a
atenção para a legitimação espiritual da Coroa. A religião teria ajudado a fundamentar a
mentalidade de obediência ao Imperador e, por conseqüência do Estado, construindo
uma figura mitificada do Imperador – construção sócio-cultural do Antigo regime. A
Igreja assumiria um papel de ―instrumento ideológico do Império‖. Além disso, ele
considera a religião como mecanismo para moralizar a sociedade, para consolidar a
ordem, com uma consciência religiosa mais materialista. Mais uma vez é possível ver a
dicotomia entre mundo religioso e mundo laico nessas abordagens, porém essas duas
esferas estão indissociáveis no período. Assim, ele afirma:
“De outro ângulo, a ausência de consciência religiosa distanciada das superstições e do
ritualismo, do devocionismo, do apego quase exclusivo à parte externa ou social do catolicismo,
concorre para a atonia da religião, para a sua quase nula disposição dinâmica dentro dos
quadros sócio-culturais. O que Pré-condiciona o domínio do materialismo e o assinalamento da
religião como força despojada de atributos sobrenaturais, e compondo funcionalmente uma moral
adestrada no regularizar os costumes e no consolidar a ordem. ( MONTENEGRO, 1972, p.174)
1.3. Conflitos “internos”
A Igreja longe de ser uma unidade, também refletia as mudanças da sociedade
de seu tempo, mas isso não quer dizer que no período em análise já haveria objetivos de
caminhar para um Estado laico. Assim, a proposta é perceber as mudanças dentro de seu
processo e de sua temporalidade. O primeiro conflito se dá é entre o tomismo e o
iluminismo da Universidade de Coimbra reformada, isso não quer dizer que a partir das
Reformas Pombalinas e a expulsão dos Jesuítas do Brasil, o clero brasileiro deixou de
ser tomista e passou a ser iluminista. Claro que depois de 40 anos a nova geração
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formada em Coimbra trouxe o ideário coimbrã ao Brasil NO entanto, os 300 anos de
mentalidade jesuítica não são simplesmente trocados, mas recondicionados, de acordo
com os interesses e necessidades de cada grupo. Como foi dito, não se questiona
diretamente a relação religião e política, mas como deve ser percebida a relação.
Outro ponto que se coloca é o fato do ideário liberal – no sentido do iluminismo
de Coimbra – só ter conseguido empolgar as elites, Como se pode notar:
“As indicações históricas do período [1832,33] parecem atestar que o liberalismo só
consegue empolgar as elites, principalmente a burocrática. A latifundiária ainda guarda laivos
densos da ideologia absolutista. Sabe-se da resistência sustentadora por régulos do Interior a
revoluções liberais, tidas por vários deles como conspirações contra sagrados direitos do
Imperador e contra os princípios da Santa Igreja Católica.”( MONTENEGRO, 1972, p.168)
Portanto, classificar como um conflito, primeiro, entre um catolicismo tradicional,
mais ligado ao Interior, contra um catolicismo ―liberal‖, mais ligado ao clero e a uma
elite burocrática urbana. Claro que isso é uma generalização, mas pode apontar para
outras pesquisas, buscando entender como dois tipos do ideário católico conviveram e
se aliaram em função da formação de um Estado Nacional? Porém isso não apagou a
questão em torno do padroado régio: jansenismo, galicanismo e ultramontanismo. Para
Montenegro:
“O jansenismo no Brasil haveria necessariamente de oferecer um tônus ideológico que
refletiria essa postura intelectual [de divinizar a figura do Imperador, portanto, do Estado], num
quadro sociológico a destacar a fragilidade do contexto nacional e a mínima integração social e
fazendo aflorar o mimetismo cultural, político e econômico. Nesse arcabouço, haveria de pensar
sem outra alternativa o absolutismo de Pedro I e o racionalismo católico de Pedro II” (
MONTENEGRO, 1972, pp.68--,68)
A maioria dos autores apontam que os problemas em torno do Padroado Régio
promoveram uma crise dentro da Igreja, porém isso se intensifica, somente na segunda
metade do dezenove, com o processo de romanização da Igreja Brasileira. No entanto,
o que foi mais discutido nos encontros eclesiásticos do inicio do Dezenove foram
questões de reforma interna da Igreja, que envolviam temas morais e intelectuais –
como o problema do celibato, várias vezes levantado pelo Padre Diogo Antônio Feijó.
Assim, somente a partir do Segundo Reinado, quando a relativa estabilidade do
Aparelho Estatal se consolidou, a Igreja começou a perder a participação política e
passou a ser mais podada pelo controle estatal (HAUCK, FRAGOSO, 1980). Portanto, a
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relação Igreja-Estado no dezenove não pode ser reduzida ao movimento de separação
Igreja e Estado, assim como, a generalização das especificidades, deixa de considerar
que até a década de 1830, os debates teriam sido mais pastorais e doutrinários do que
institucionais, levando em conta que Feijó com a sua proposta de Igreja Nacional foi
uma voz quase solitária. Pois, ao mesmo tempo que se pensava numa Igreja ligada aos
interesses nacionais, tradicionalmente ela ainda deveria ser Católica Apostólica
Romana.
2. Feijó: Uma Figura Emblemática
Fundamentalmente a ação pastoral da Igreja se entrelaçava à ação política e
vice-versa. Portanto, a dicotomia entre o padre e o político deve ser revista, como
propõe Magda Ricci, percebendo a incorporação das atitudes políticas não separadas da
pastoral, mas como parte dela. Assim, o púlpito não é apenas usado politicamente, mas
antes um espaço sagrado de se ouvir a Palavra de Deus; e o padre não é apenas
funcionário do governo, mas cidadão, homem e sacerdote; e a teologia não é
simplesmente construção teórica e ideológica, mas expressão e reflexão da vida
cotidiana que busca entender e satisfazer as necessidades concretas. Assim, o objetivo é
relacionar o sagrado e o mundano – o padre, o cidadão e o político – dentro do
pensamento da política cristã do Dezenove, considerando o Padre Diego Antônio Feijó
como figura emblemática. Apesar de seus posicionamentos beirarem a heresia, ele
continuou sendo padre, político e fazendeiro. Além disso, ficou conhecido por sua
trajetória política, alcançando o posto mais elevado da nação: Regente.
2.1. O Púlpito: espaço sagrado
“[...] a interpenetração do religioso e do profano fortalecia a influência do clero, que assim
participava ativamente da vida política e social, assumindo posições políticas que vão de um
radicalismo extremado, como o de Frei Caneca e dos padres revolucionários do Nordeste, a um
liberalismo teórico e inconseqüente. Em todas as manifestações do movimento revolucionário é
constante a presença de padres e frades, de 1789 a 1831, quando a revolução começa
descaracterizar-se, e a liderança política é assumida pelos bacharéis.
Cultivava-se o inconformismo nos conventos e seminários [...]Na principal atividade que se
destacava o clero, a oratória, a pregação dos grandes oradores sacros ocupava-se, de modo
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predominantemente, com temas políticos; nos púlpitos é que se iniciaram muitos movimentos,
inclusive o da Independência. Mas não faltaram também os pregadores da ordem e da
tranqüilidade, acusando de anárquicos os movimentos liberais.” ( HAUCK, FRAGOSO, 1980,
PP.14-15)
O ambiente religioso gozava de certa liberdade do discurso. Mais do que a figura
do pároco, o Templo representava materialmente o governo divino, o lugar era
literalmente sagrado, onde se acreditava, e ainda hoje se crê, que existe uma união
mística entre o fiel e Deus. Portanto, não se trata unicamente de representação da
mentalidade católica que vê o templo e o púlpito como Casa de Deus e o lugar onde Ele
fala. Então, quando se discursava da plataforma do templo, no mínimo os fieis
respeitavam e ouviam. Além disso, a capacidade dos párocos de relacionar os temas da
fé com a devoção local e às questões políticas levava a disseminação de novas
possibilidades de fazer política. Claro que não se pode menosprezar a inteligência dos
fieis, por isso deve ser levantado um perfil de quem era o ouvinte e não apenas que
idéias eles ouviam, possibilitando entender como cada grupo se apropriou das idéias
mais liberais ou absolutistas.
Além disso, o púlpito assumiu uma espécie de papel unificador e de
aperfeiçoamento da linguagem dos brasileiros. Dada as múltiplas influências culturais,
desde africanos, indígenas e europeus, a unidade cultural, essencial para a
nacionalidade, precisaria de força mais ativa para a formação de uma mentalidade
comum. Isso não quer dizer que se possa falar de aculturação, ou imposição ideológica
– pura e simplesmente – mas o púlpito serviu, de certa forma, para estabelecer padrões
comuns de linguagem e símbolos. Não se pode dizer, porém, que a sociedade brasileira
construiu sua unidade a partir do discurso, pois como foi dito, a religiosidade do início
do XIX se constituiu muito mais de prática do que teoria. Não significa, no entanto, ter
acontecido uma distância teórica entre o púlpito e a vida cotidiana, pelo contrário. Neste
momento, em que as tensões se colocam entre moderados, exaltados e caramurus, e as
elites intelectuais formam-se em Coimbra. Utilizavam-se os púlpitos como espaços de
debates, a exemplo dos jornais e dos teatros, mas com uma diferença, trata-se de um
espaço sagrado. E, é essa diferença que dever ser considerada no discurso pronunciado
dos púlpitos. Nesse sentido é possível estabelecer relações entre o discurso político e o
sermão, pensando a relação entre a religião e a política (Padroado), de “baixo para
cima”
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Outra questão colocada pela historiografia católica – mesmo considerando questionável
sua defesa pela romanização e autonomia da Igreja com relação ao Estado – é o fato de que a
ênfase política teria diminuído o ensino da fé. E, portanto, esse ensino teria ficado a cargo das
famílias e das ordens religiosas, transportando a esfera da devoção e da espiritualidade para fora
dos templos e para além dos párocos. No entanto, é possível se questionar até que ponto as
famílias e as ordens se relacionam com a Igreja e, qual é esse grau de autonomia delas? Essa
problemática leva a historiografia a fazer distinção entre o catolicismo popular – heterodoxo – e
o catolicismo institucional – ortodoxo. Porém, a religião católica nas terras da América
Portuguesa, não apenas sofreu influências das culturas indígenas, africanas, mas se adaptou a
conjuntura de ausência de controle eclesiástico – como propõe Luiz Roberto de Barros Mott – e
aos interesses locais, formou uma identidade específica em cada localidade. Assim também,
Ronaldo Vainfas coloca a mentalidade popular religiosa no Brasil como sendo uma mistura
entre o sagrado e o profano. Por fim, pode-se citar ainda Caio Boschi e Mariza Soares como
autores que percebem essa distância entre o Catolicismo e o que eles chamam de catolicismo
popular na América Portuguesa.
Essa ênfase política teria transformado o púlpito em um espaço, não só de
divulgação, mas de legitimação do ideário político e, dos projetos de nação em
construção e em debate. Assim, Montenegro chama a atenção, para caso do ideário
liberal, que não se sustentaria em uma sociedade de mentalidade fortemente marcada
pela religião. Pois o conceito e legitimação do Estado não se fundamentariam por si só,
ou seja, necessitariam de legitimação relevante para àquela sociedade – a legitimação
deveria ser então religiosa. Nesse sentido, o ideário liberal adaptou-se aos padrões de
uma Monarquia Católica, conhecido como mitigado liberalismo, em que as idéias
liberais embasavam-se em uma razão religiosa católica27. Portanto a religião é muito
mais que uma esfera da vida social, é base de sustentação e legitimidade de qualquer
projeto de nação em debate no Brasil no início do século XIX 28. Assim, o púlpito não
foi abandonado pelos padres, mas foi resignificado para atender necessidades
específicas do momento histórico de construção da nacionalidade, usando o espaço
religioso como lugar de para se discutir os projetos de nação. Agora permanece a
questão: como entender esta religião multifacetada, sem unidade de ação e com o
―clero secularizado‖, em certa perspectiva? Então, sem unidade e, em meio a disputas
entre o centralismo político e o quase federalismo, a Igreja tende a incorporar a
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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problemática cotidiana de seus fiéis, ou seja, busca uma ação pastoral mais ―material‖
do que ―espiritual‖, e assim, desenvolve uma teologia prática ou uma teologia “políticosocial”.
2.2 Teologia da ação: de Itu para o Rio
A vida e a devoção de Feijó se construiu em Itu, onde ele segue uma espécie de
―ordem religiosa‖ não convencional, chamada de padres patrocinistas. Esse grupo de
padres, assim chamados pela sua devoção a Nossa Senhora do Patrocínio e pela
construção da sua Igreja, foi pensado e dirigido por um frei mulato chamado Jesuíno do
Monte Carmelo. Pelo fato de ter sido um homem piedoso e dedicado, porém rejeitado
na ordem carmelita, resolveu criar por conta própria ―um arremedo de ordem. Juntou
padres seculares numa casa onde estudavam e discutiam teologia, faziam caridade
preces e jejuns.”(CALDEIRA, 1999:p.26). Com o sucesso dos patrocinistas e o
reconhecimento da população, houve certa rejeição por parte da alta hierarquia da Igreja
ao movimente, pois tinha idéias muito interessantes sobre a relação Sociedade-IgrejaEstado. O problema que se coloca é, também, a quebra da hierarquia, muito mais que as
idéias. Numa sociedade estamental, a ordem é primordial, pois a atitude e a amplitude
do movimento iniciado por Frei Jesuíno se confrontava com a hierarquia eclesiástica e
por isso começou a incomodar. Não que suas idéias levassem a igualdade social, mas
foi possivelmente a maneira que os chamados padres seculares encontraram de construir
seus espaços na religiosidade católica de São Paulo. Assim, a devoção e a ênfase
evangelizadora, aliado a moralidade forte e a consciência de dever nacionalista (ação
política). Abriu caminho para incorporação de padres como Diogo Feijó e o apoio de
setores ligados a elite econômica paulista. A incorporação entre o sagrado e profano
dessa comunidade, constituiu as bases da visão de Feijó da relação Igreja-Estado e,
proporcionalmente, do projeto de nação que ele ajuda a construir.
“Padre Diogo Feijó era um evangelizador patrocinista, seguidor de padre Jesuíno,
moralista, intriguista e um homem duro consigo mesmo e com seus companheiros, fossem eles
seus amigos ou inimigos. Era um padre que, como Jesuíno, ampliava seu campo de atuação em
nome da pregação e moralização do povo. [...]Sua habilidade era o discurso e, assim [...]havia se
tornado um patrocinista em uma dimensão mais ampla. Neste sentido, padre Diogo Feijó entrará
para a política sem nunca ter saído dela. (RICCI, 2002, p.254)
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Essa visão mais ampla da evangelização é que merece ser abordada em mais
detalhes. Para isso é
necessária uma análise das bases teológicas do grupo dos
patrocinistas. Entendendo por base teológica, não apenas influências de idéias e
doutrinas religiosas, mas como se deu a construção sócio cultural da reflexão da
realidade de vida daqueles homens. Pois teologia é relacionar a ―realidade material‖ e a
experiência, com pontos doutrinários de fé, constituída na experimentação e não só na
compreensão racional dos dogmas e/ou doutrinas. Portanto, para aceitar o termo
freqüentemente usado de ―padres seculares‖ pelo simples fato de não terem sido
formados em instituições formais, ou de seu conteúdo teórico ser limitado em relação às
idéias européias, não se pode qualificá-los com esse termo. O termo pode então ser
entendido como associação entre essas duas esferas da vida social desse período, como
um termo que sintetiza a interrelação entre Igreja e Estado, religião e política, sagrado e
profano. No entanto, se o olhar for mais teleológico e generalizante, menos atento às
especificidades, poderá ser visto um caminho de transição entre o mundo de bases
religiosas, configurado nas tradições absolutistas quase medievais (na relação IgrejaEstado) e o mundo que estaria por chegar – na Europa já tinha chegado – de bases
legalista na idéia de nação. Isso pode ser chamado de secularização – quando as bases
de legitimação da moral e das relações humanas deixam de ser religiosas e passam a ser
geridas por uma espécie de consciência própria de certo e errado. Porém, a
historiografia tem evitado grandes generalizações.
Voltando para a figura do padre Diogo, sua postura não é secularizante, pois
para ele a religião é peça fundamental para a formação da idéia de nação com uma
moralidade e respeito às coisas de Deus. O que na verdade ele questiona é, em certa
medida, a instituição: Igreja Católica Romana, a sua hierarquia e sua organização. Nesse
sentido, ele não pretende submeter religião ao Estado, mas, a Instituição ao Estado. A
confusão aqui colocada é devido à perspectiva de se enxergar a instituição como a
religião. Mesmo que o clero, de forma geral, veja a Igreja como a religião, na prática a
religiosidade é ―incorporativa e maleável, ou seja, híbrida e mutante. E, é nesse mundo
que Feijó construiu sua estrutura mental, relativizando a instituição, mas mantendo-se
fiel a sua devoção, acreditando que seria possível a construção de uma monarquia
constitucional cristã católica, sem necessariamente ser romana. Para isso, ele coloca-se
muito mais ligado a sua ―experiência provinciana‖ do que aos ideais importados da
Europa.
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A “sociedade civil”de padre Diogo Feijó, aquela para quem ele tanto trabalhava no Rio de
Janeiro, em São Paulo e em Itu, ganhava contornos mais claros quando era regida por muitas
outras forças, além das teorias e discursos liberais sobre a razão humana ou o regalismo que
sempre o caracterizaram em todas as outras biografias. Até mesmo para pensar o padre Diego
Feijó precisava juntar religião com razão. Ainda nas aulas de filosofia moral, em Itu havia sido
bastante claro em sua união entre céu e terra, a teologia e a razão:[...]
Se, por um lado, padre Diogo acreditava na superioridade de Deus diante dos homens, seus
Deus legislador e juiz que governava “constitucionalmente”, os homens homens relacionavam-se
entre si pela observância de leis e de cultos externos [...]ou internos. (RICCI, 2002, p.342-343)
Essa atividade provincial, religiosa e política, confere ao padre Diogo Feijó certa
singularidade em relação a outros colegas políticos. Ele tinha não só uma linha
ideológica dita liberal, mas possuía respaldo de uma pratica social local forte, que na
visão de Magda Ricci foi praticamente desconsiderada pelos seus biógrafos. É
justamente neste ponto que é possível chamar a atenção para a relação entre Itu e Rio de
Janeiro na trajetória político-religiosa de Feijó. Quando ele saiu de Itú (1821) para
representar a Província de São Paulo nas Cortes de Lisboa, ele não abandonou e muito
menos deixou de ser o Padre Diogo de Itu. Pelo contrário sua ênfase era marcadamente
provinciana, no sentido de defender os interesses locais. Quando assumiu a legislatura
de 1826, voltou para Itu, para as festas religiosas, devoções e debatas políticos locais.
Após 1831, participou ativamente da reorganização do Estado Imperial, naquele
momento como Ministro da Justiça, em 1835, torna-se Regente. Pode parecer um
caminho de sucesso – saindo de uma mentalidade provinciana para uma esfera nacional.
Mas, como chama a atenção Magda Ricci, a sua atitude política sempre considerava os
interesses locais, não por questões de defesa de uma ideologia liberal federalista e
descentralizadora, mas por uma construção política baseada na sua realidade provincial.
Nesse sentido, é possível questionar até que ponto o ideário importado da Europa
determinou os rumos do Império, além de ser possível relativizar a influencia da
chamada elite coimbrã. Isso é correto até certo ponto, pois o que a figura de Diogo
Antônio Feijó mostra é a construção de uma reflexão a partir da realidade local,
certamente
influenciada
por
idéias
européias,
mas
não
somente
e
nem
determinantemente. Portanto, longe de desconsiderar a influência de Coimbra, a
proposta é repensar a sua amplitude refletindo sobre como se deu a formação intelectual
do Brasil, no Brasil nas relações entre poder local e nacional no que se convencional
chamar de padroado. Mesmo que haja o problema da falta de sistematização das idéias,
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SOBRE A RELIGIÃO
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é possível levantar esse ideário brasileiro de base provincial, através de textos literários,
jornais e no caso específico – da relação Igreja-Estado – os sermões, cartas e
solicitações aos bispos e também testamentos.
CONCLUSÃO
A noção de Igreja, quase sempre remete à idéia de intermediação. No caso
analisado, além da intermediação entre Deus e os homens, a religião católica no Brasil
do inicio do século XIX é uma espécie de elo para a construção da idéia de nação,
aproximando a instituição Império da vida cotidiana. Levando em conta isso, é possível
caminhar para várias pesquisas, como foi apontado no decorrer do trabalho, mas
convém destacar – por opção – a análise do púlpito como espaço dessa aproximação
entre Estado e o povo – os cidadãos ativos e passivos. A possibilidade seria, pensar o
púlpito e a Igreja, como um espaço representativo, unificador das esferas institucionais
– Igreja e Estado – ligados à teia social. Em outras palavras, seria a representação da
costura entre instituição e realidade social. A partir daí se traçaria uma pesquisa, com
base em sermões, testamentos e solicitações aos Bispados de como esse espaço se
configuravam diante das tensões políticas da época. Percebendo, que a Igreja era muito
mais que uma agência, pois nela (o Espaço, formado pelas pessoas e o Templo)
percebe-se uma intercessão entre as esferas sagrada e profana. Assim, a figura de Feijó,
ajudaria a rever essa idéia evangelizadora da Igreja, não tão fechada ao catecismo,
porém mais ampla, como propunha os padres patrocinistas. Não esquecendo que se trata
de um caso, talvez isolado, mas que suscita indagação sobre, como tais idéias se
estabeleceram, a ponto de elevar um de seus seguidores ao cargo de Regente?
Por fim, provavelmente, seja possível pensar como tal sociedade produziu tal
personagem, e como se relacionava com suas idéias. Para isso, pode-se caminhar no
aprofundamento da análise das devoções regionais, associando-as com atitudes e
posturas políticas de região. Portanto, a proposta é associar o discurso religioso
pronunciado nos púlpitos às devoções regionais – entendidas como expressões de
religiosidade – e as relações com a Coroa. Assim, provavelmente, algumas projeções
postuladas poderão ser revistas, ou até mesmo abandonadas quando as pesquisa e
aprofundamentos maiores se iniciarem, no entanto, por hora é possível partir de um
ponto inicial para se entender a relação Igreja e Estado no século XIX a partir de
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relações locais de religiosidade e interesses políticos no. Para tal tarefa, é viável
analisar os códigos eclesiásticos – neste caso ―As Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia 1707‖ – confrontando-os com as solicitações de ereção de
capelas e as visitas pastorais – como as de Monsenhor Pizarro, do final do século XVIII
– buscando perceber se o que se impunha na relação de poder local (Igreja-Coroa e
súditos Cristãos) era a determinação legal (neste caso eclesiástica) ou as relações
construídas diante dos interesses locais?
BIBLIOGRAFIA
CALDEIRA, Jorge. Diego Antônio Feijó Coleção Formadores do Brasil. São Paulo:
Editora 34. 1999.
CARVALHO, José M. de. A construção da ordem: a elite política imperial. 4º ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira.2003.
HAUCK, João Fagundes; FRAGOSO, Hugo; et.al. A História da Igreja no Brasil:
ensaio de Iinterpretação a partir do povo Segunda Época – Século XIX. Petrópolis, RJ:
Editora Vozes. IIA1980.
MONTENEGRO, João Alfredo. A Evolução do Catolicismo no Brasil. Petrópolis, RJ:
Editora Vozes, 1972.
NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais - a cultura
política da Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan FAPERJ, 2003.
RICCI, Magda Maria de Oliveira. Assombrações de um padre regente(1784-1843).
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VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no
Brasil.ABrasília: Editora Universidade de Brasília. 1980. – cap. 2 Elementos em
conflito.
VILLAÇA, Antônio Carlos. O Pensamento Católico no Brasil. Rio de Janeiro:
ZaharEditores.1975.
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A DEFESA PELA LIBERDADE RELIGIOSA NA IMPRENSA EVANGELICA
(1864-1867)
Pedro H. C. de Medeiros29
Resumo: O Brasil oitocentista foi marcado por diversas agitações de cunho político,
social e religioso, que contribuíram para a formação da diversidade cultural brasileira. O
país até então permanecera distante das disputas religiosas que abalaram a Europa
durante três séculos. Com a chegada dos protestantes a partir do segundo reinado, as
ideias protestantes começam a serem divulgadas através da imprensa, até a fundação de
um periódico exclusivo dos protestantes presbiterianos denominado Imprensa
Evangélica. O jornal não só publicou artigos religiosos, mas também procurou manter
um diálogo com políticos liberais a fim de defender as liberdades civis que pudessem
favorecer a expansão do protestantismo no Brasil. No presente artigo é analisado de que
maneira ocorreu esse diálogo entre política e religião nas folhas da Imprensa
Evangélica.
Palavras-chave: Protestantismo, política, imprensa.
Introdução
No Brasil imperial, oficialmente, as religiões acatólicas eram apenas toleradas,
cheias de restrição, enquanto o catolicismo era a religião do governo, da política e do
povo. Todavia, tais restrições não impediram que os protestantes conseguissem
construir seus templos, fazer proselitismo, batizar brasileiros e até mesmo publicar um
jornal para divulgar suas ideias e criticar a religião católica, tudo aquilo que lhes era
proibido por lei.
Como objeto de nossa monografia defendida em 2011, O jornal Imprensa
Evangélica: o discurso protestante no Brasil imperial (1864-1867), investigamos a
inserção das ideias protestantes no contexto social, político e religioso do Brasil, no
período do Segundo Reinado. O objeto de nossa pesquisa, o diálogo do protestantismo
com a política brasileira, ainda é um tema muito pouco explorado pela historiografia.
29
Licenciado em História pela UFRRJ. Mestrando em História pelo Programa de Pós-graduação em
História da UFRRJ.
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Com o presente estudo, pretendemos contribuir para a compreensão da religiosidade
brasileira do século XIX, e principalmente a relação entre política e religião nesse
período.
Ao trabalharmos com a temática da inserção do protestantismo no Brasil
Império, destacamos algumas obras. Há o trabalho pioneiro, escrito na década de 1950
pelo francês Émile G. Léonard, O Protestantismo Brasileiro: Estudo de Eclesiologia e
História Social. Em sua obra, Léonard analisou o modo como o protestantismo se
inseriu na sociedade brasileira. Tomando como plano de fundo o protestantismo
europeu, mais especificamente, o francês, destacou as singularidades do caso brasileiro.
O autor analisou fontes diversas, tais como: jornais; documentos de arquivos públicos,
eclesiásticos
e
particulares.
Seu
intuito
era
se
afastar
da
história
denominacional/confessional, escrevendo uma História Social do protestantismo
brasileiro.
Como principais contribuições de seu trabalho, podemos destacar a importância
dada aos fatores sociais e políticos que favoreceram a inserção do protestantismo no
Brasil. Ressalte-se, também, que o autor procurou analisar os principais percalços pelos
quais o protestantismo atravessou no Brasil.
A partir da obra de Léonard, outras obras passaram a ser escritas tomando como
base essa matriz. É o caso do livro, publicado em 1973, de Boanerges Ribeiro,
Protestantismo no Brasil Monárquico. Podemos destacar como principais contribuições
de Ribeiro, o uso de documentos oficiais, leis, atas do legislativo e documentos da
Igreja Católica, como fontes. O autor defende que pelo menos em três setores:
legislativo, político e religioso; a sociedade brasileira já estava se preparando para a
aceitação do protestantismo, antes mesmo da chegada dos missionários. A ressalva que
temos de fazer sobre a sua obra é o fato dela beirar o triunfalismo protestante, dando
muito pouco destaque aos problemas enfrentados pelos protestantes quando chegaram
ao Brasil. A diferenciação entre instituição denominacional e material humano (os
missionários) é muito tênue no seu trabalho. Sua tese é a de que o sistema brasileiro
aceitou o protestantismo de forma ―consciente e deliberadamente‖ (RIBEIRO, 1973, p.
31), mas pouco se fala sobre as conversões ao protestantismo ou sobre a expansão real
do protestantismo, deixando diversas questões sem serem respondidas.
A primeira crítica que encontramos sobre o trabalho de Léonard foi feita por
Antônio Gouvêa Mendonça, ao escrever em 1990, em conjunto com Prócoro Velasques
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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Filho, a obra Introdução ao Protestantismo no Brasil. No capítulo ―A ‗questão
religiosa‘: conflito Igreja vs. Estado e expansão do protestantismo‖, o autor afirma que a
historiografia feita até então não havia feito uma análise mais profunda sobre a cultura
brasileira e a Igreja Católica, e diz que a obra de Léonard comete a mesma falha
(MENDONÇA, 1990, p. 61-62).
Podemos destacar como principais contribuições da obra de Mendonça e
Velasques Filho a atenção que é dada às mudanças de ordem social, teológica e
filosófica que atingiram tanto a sociedade brasileira quanto a sociedade norteamericana, de onde veio quase a totalidade de missionários que chegaram ao Brasil ao
longo do século XIX. A missão que se expandiu no Brasil teria como plano de fundo as
características culturais desses dois povos, adaptando-se e influenciando, formando aqui
um tipo de protestantismo muito singular, um protestantismo brasileiro.
Outra obra de Mendonça que merece destaque é O Celeste Porvir: A inserção do
protestantismo no Brasil, com primeira edição em 1984, fruto de sua tese de doutorado
defendida no Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Nesta obra o autor procurou
demonstrar como a mensagem missionária foi aceita pela sociedade brasileira. Pela
primeira vez, alguém se preocupou em analisar o protestantismo recebido por aqueles
que realmente se converteram à nova fé: o homem pobre da zona rural de São Paulo.
Tendo em vista que aquela camada da população brasileira, em sua maioria, era
analfabeta, o autor destacou a importância que o primeiro hinário protestante brasileiro Salmos e Hinos - teve na expansão da fé protestante em meio aos camponeses,
exercendo, principalmente, um papel pedagógico, substituindo, por vezes, o discurso
doutrinário do pastor, que visitava as comunidades camponesas raramente.
Sobre a aceitação da mensagem protestante pela sociedade brasileira, também
podemos destacar o trabalho de David Gueiros Vieira, O Protestantismo, a Maçonaria e
a Questão Religiosa no Brasil, publicado em 1980. Trata-se de um trabalho paralelo e
complementar ao de Ribeiro. Em sua obra, o autor procurou examinar outro campo que
possibilitou a inserção dos protestantes ao longo da segunda metade do século XIX, isto
é, a maçonaria, estopim da chamada ―questão religiosa‖, o ápice do conflito entre coroa
e altar. Vieira procurou demonstrar como os maçons estavam extremamente vinculados
aos protestantes, tanto os protegendo ante os clérigos ultramontanos, quanto os
apoiando na prática missionária. As próprias lojas maçônicas, por vezes, cederam
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espaço à liturgia protestante. Houve, também, jornais protestantes que transcreveram
artigos escritos por maçons. O estudo de David Gueiros Vieira possui grande valor por
ser extremamente denso na pesquisa de fontes. O autor baseia seus estudos em uma
teoria que ele próprio diz ter ―má reputação‖, isto é, a teoria da conspiração, que
defendia que forças maçônicas, republicanas, protestantes, liberais e outros grupos se
aliaram para destituírem o poder político que a Igreja Católica possuía naquele período
(VIEIRA, 1980, p. 12).
Sobre a atuação missionária de Robert Kalley, recentemente foi defendida como
dissertação de mestrado a obra de Sérgio Prates Lima, Peregrinos, missionários e
protestantismo: o caso de Robert Reid Kalley, defendida no Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, no ano de
2010. Prates Lima procurou estudar a atuação de Robert Kalley na evangelização da
Ilha da Madeira e do Brasil oitocentista. Baseando suas pesquisas na teoria de Bourdieu,
Prates Lima aponta que a atuação de Kalley ocorreu em uma época de crise aberta de
caráter social, econômico e religioso na sociedade madeirense (LIMA, 2010, p. 25). As
principais contribuições da dissertação de Prates Lima centram-se no fato de ter sido um
dos únicos autores até o momento a ter baseado suas pesquisas em teóricos da
sociologia da religião, demonstrando que o campo de estudo do protestantismo no
Brasil ainda está repleto de lacunas a serem preenchidas, com pesquisas baseadas em
novos enfoques teóricos.
Essa é uma parte da historiografia sobre a inserção do protestantismo no século
XIX, entendemos que não é a totalidade do que já tem sido produzido, mas para efeitos
deste artigo, cremos que seja o suficiente como um ponto de partida para o nosso
estudo. Algo que nos chama a atenção é o fato de que os discursos protestantes ainda
não tenham sido bem analisados. O propósito de nossa pesquisa é entender esses
discursos, por isso optamos em pesquisar a imprensa protestante, a fim de entender o
pensamento protestante no século XIX.
Entendemos que, ao longo de todo o período imperial, a imprensa foi o espaço
privilegiado para a propagação de diversas ideias de cunho político e religioso. A partir
da segunda metade do século XIX, as discussões de cunho religioso e político se tornam
ainda mais acirradas, devido a uma série de reformas pelas quais o país atravessava. Se
por um lado houve a reforma do clero a partir de 1844, tendo como apoio político as
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ideias conservadoras, por outro, havia os liberais que acolheram os protestantes como
―arautos do liberalismo e do progresso‖ (MENDONÇA, 1990, p. 74).
Desde a chegada do primeiro missionário protestante que a imprensa passou a
ser utilizada, também, como meio de divulgação da doutrina evangélica. Robert Kalley,
missionário escocês que desembarcou no Rio de Janeiro em 1855, publicou a obra O
Peregrino de John Bunyan, nas folhas do Correio Mercantil em 1856. Em 5 de
novembro de 1864, fundou-se o Imprensa Evangélica, de linha presbiteriana, tendo
como gestor Ashbel Green Simonton, missionário norte-americano que desembarcou no
Rio de Janeiro em 1859. Explicando a causa que teria levado Simonton a fundar o
jornal, David Gueiros Vieira assevera:
O missionário presbiteriano estava surpreso com o que lia nos
periódicos do Rio de Janeiro. Naquele momento não havia ataques
jornalísticos ao protestantismo, mas, por outro lado, havia uma
porção de insultos contra os ultramontanos, contra a Igreja Católica
e contra o „papismo‟, como ele dizia (VIEIRA, op. cit., p. 137).
Os objetivos específicos da presente pesquisa são: entender o discurso
protestante a respeito da liberdade religiosa e indicar os principais diálogos entre o
discurso protestante e o liberalismo da época.
A fonte que analisamos é o jornal Imprensa Evangélica. O periódico teve sua
primeira publicação em 5 de novembro de 1864, os principais redatores eram: Ashbel
Green Simonton, gestor do jornal até 1867; Alexander Blackford, cunhado de Simonton
e sucessor na gestão do jornal após a morte de Simonton em 1867; e José Manuel da
Conceição, primeiro padre brasileiro convertido ao protestantismo de que se tem
notícia. O jornal foi publicado entre os anos de 1864 até 1892, era quinzenal, saía aos
sábados e continha oito páginas em cada edição.
No presente artigo focaremos o discurso político-religioso sobre liberdade
religiosa produzido no jornal entre os anos de 1864-1867, a intenção é verificar quais
pressupostos eram defendidos pelos autores; além de apontar para possíveis inovações,
originadas no discurso do jornal, na linguagem política da época. Em seguida,
analisaremos os possíveis diálogos com políticos da época.
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Discursos político-religiosos em prol da liberdade religiosa
Este trabalho, não tendo em vistas senão os interesses exclusivamente
religiosos da sociedade em geral, como em particular do individuo,
estranho a toda e qualquer ingerência em política, a todos é
consagrado (PROSPECTO, Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v.
1, n. 01, 05 nov. 1864, p. 1). 30
A promessa feita na primeira edição, publicada em 5 de novembro de 1864, do
jornal Imprensa Evangélica, foi cumprida em parte. Seja citando ideias e pensadores, ou
se posicionando perante os principais debates da época, o jornal não se manteve
estranho a ingerência política.
Entre as datas de 5 de maio a 7 de julho de 1866, totalizando quatro números do
jornal, os artigos de primeira página tinham por título ―A liberdade religiosa no Brasil‖.
A intenção da redação era chamar a atenção para a necessidade de se discutir tal
assunto. Nestes artigos, o redator se propôs a analisar quatro obras sobre liberdade
religiosa que, segundo ele, eram as mais recentes publicações sobre o assunto no Brasil.
As duas primeiras obras analisadas foram: Doze Proposições sobre a Legitimidade
Religiosa da Verdadeira Tolerância dos Cultos, de autoria de Efraim; e, liberdade
religiosa no Brazil, estudo de direito constitucional, de autoria de Antonio Joaquim de
Macedo Soares; essas duas primeiras negavam que qualquer tipo de religião pudesse ser
portadora de uma verdade absoluta. A terceira representava as ideias do clero que não
aceitava a separação entre a Igreja e o Estado, além de não aceitar a liberdade religiosa,
entendendo-a como prejudicial à moral e aos bons costumes, tinha por título: Liberdade
religiosa segundo o Sr. Dr. A. J. de Macedo Soares, de autoria anônima. A quarta,
Exposição dos verdadeiros princípios sobre que se baseia a liberdade religiosa,
demonstrando ser a separação entre a Igreja e o Estado uma medida de direito
absoluto e de summa utilidade, assinada por Melasporos, essa obra defendia a
laicização do Estado (A QUESTÃO da liberdade religiosa no Brasil, Imprensa Evangelica,
Rio de Janeiro, v. 2, n. 09, 05 maio 1866, p. 65-66).31
Dos quatro autores, só o terceiro, totalmente anônimo, e que o jornal denominou
de Crítico do dr. Soares, não quis ver a
30
A partir desta citação em diante, atualizamos, sempre que possível, a ortografia dos textos.
Importa salientar que não obtivemos êxito em encontrar tais obras, com exceção de Doze Proposições
sobre a Legitimidade Religiosa da Verdadeira Tolerância dos Cultos de Efraim.
31
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... consagração moral e legal da mais ampla liberdade religiosa. (...)
Bem que a leitura de seu opúsculo é fácil e agradável, mas isto só
pode dizer-se em relação à forma ou à expressão de seu pensamento.
Ou é membro do clero ou um leigo que dele tem aproveitado as
instruções a tal ponto que o ordenar-se seria meramente uma
formalidade.
(...)
obrinha (...) com todos os lugares comuns e teorias velhas com que se
tem feito tanta confusão na mente de muita gente e nas relações atuais
entre a Igreja e o Estado.
De acordo com a redação, o Estado, sendo uma ―entidade imaginária‖, que não
possui alma, não podia afirmar que professava uma religião. A tese que afirma ter o
Estado uma religião serviria apenas para que a nação pagasse os emolumentos e as
despesas de um culto privilegiado e isso não tinha relação alguma com a ―salvação de
almas‖. Segundo os redatores, a prova disso é o fato de que se o governo pressionasse a
Igreja para melhor atender a cura de almas, o clero ficaria irado e repreenderia o
governo (Idem, Ibidem, loc. cit.). Esse pensamento, próprio do ultramontanismo,32 foi
totalmente desprezado pela Imprensa Evangélica.
Em 19 de maio do mesmo ano, a Imprensa Evangélica decide deixar de lado a
abordagem do Crítico do dr. Soares, com a justificativa de que o único propósito dele
era eternizar o conflito entre o Estado e a Igreja, em detrimento dos interesses reais de
ambos (A QUESTÃO da liberdade religiosa no Brazil (continuação da pag. 67),
Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, op. cit., v. 2, n. 10, 19 maio 1866, p. 73-74).
Ao abordar os artigos de Efraim e de Macedo Soares, a redação da Imprensa
Evangélica marca a diferença entre o seu argumento e as ideias desses autores. Para o
redator, havia duas abordagens diferentes no país quando se tratava de liberdade
religiosa: abordagem política, que via o que era melhor para política brasileira; e, a
abordagem religiosa, na qual os interesses da religião prevaleciam. Caso Efraim e
Macedo Soares formassem um partido político que tivesse como objetivo resolver a
questão da liberdade religiosa, assegurando igualdade de direitos e deveres políticos a
32
―Ultramontanismo foi um termo usado desde o século XI para descrever cristãos que buscavam a
liderança de Roma (‗do outro lado da montanha‘), ou que defendiam o ponto de vista dos papas, ou
davam apoio à política dos mesmos. Pelos idos do século XV, o mesmo veio a ser utilizado como
descrição daqueles que se opunham às pretensões da Igreja Galicana.‖ (VIEIRA, 1980, p. 32-33).
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cidadãos brasileiros e emigrados, o jornal se aliaria a eles. Em política, a solução para os
problemas que envolvem a questão seriam leis práticas, sem haver muita preocupação
com os princípios abstratos. Em matéria de consciência o que vale é a persuasão, pois a
fé seria filha da persuasão, e não da luta armada do poder civil, afirma o jornal.
Na análise dos redatores, o direito de padroado pressupunha a existência de dois
tipos de ―bispos‖, um ―exterior‖ e outro ―interior‖; o primeiro seria o governo civil,
temporal, e o outro o governo religioso submetido ao primeiro. Consequentemente, a
prática religiosa transitaria entre o ―fanatismo e a hipocrisia‖, tornando-se impossível
qualquer tipo de debate, pois qualquer discussão se tornaria um ―crime duplo de lesa
majestade‖ (Idem, Ibidem, p. 73). Havendo concordância entre esses ―bispos‖
ressurgiriam as fogueiras do Santo Ofício. No entanto, mesmo sem fogueiras, havia uma
violência moral contra quem aderia a uma religião divergente da oficial, pois, ficava
privado de servir ao país como deputado, e não tinha os mesmos direitos do casamento
reconhecido pelo Estado. Quem prezava pela liberdade não aceitava essa tolerância
restrita que vigorava no Império, pois, sentia a necessidade de gozar dos mesmos
direitos disponíveis aos católicos. Essa restrição influenciava até na vinda dos colonos
europeus que o governo pretendia trazer para trabalhar no Brasil. Para o jornal, com a
legislação em vigor na época, somente aceitariam vir para o Brasil as classes mais
insignificantes da Europa, ou seja, aqueles que trocariam os seus ―direitos de
consciência por um prato de feijão‖ (Idem, Ibidem, p. 74). Até esse ponto havia
concordância da Imprensa Evangélica com relação a Efraim e a Macedo Soares.
Contudo, a discordância que marcava as ideias do jornal e de tais autores transparecia
quando tais autores passavam a discutir a essência da religião e do cristianismo. Para o
jornal, havia bases muito mais sólidas e inexpugnáveis para defender a liberdade
religiosa do que teorias baseadas na discussão da essência religiosa (Idem, Ibidem, loc.
cit.).
Em 2 de junho de 1866, o jornal declara que queria analisar com mais
profundidade as ideias de Macedo Soares e de Efraim. O jornal começa afirmando que a
falha desses autores estaria centrada no fato deles tentarem defender a liberdade
religiosa baseados numa definição de religião, uma religião filosófica que abarcasse
todas as crenças e cultos. Conforme a Imprensa Evangélica, isso teria um custo alto, ou
seja, a indiferença religiosa (A QUESTÃO da liberdade religiosa no Brazil (continuação
da pag. 74), Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 11, 02 jun. 1866, p. 81-82).
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De acordo com o redator, a liberdade religiosa defendida por tais escritores era fruto de
um questionamento maior sobre se existe ou não uma verdade absoluta como a
professada pela Igreja. Para nenhum deles essa verdade existiria.
Em 16 de junho de 1866, a Imprensa Evangélica declara que foi pesaroso
criticar as obras de Efraim e de Macedo Soares. Entretanto, um jornal religioso não
poderia sacrificar seus princípios de fé por simpatia aos ditos autores. Além disso, as
ideias filosóficas deles acabariam por prejudicar a causa da liberdade de consciência e
de cultos (A QUESTÃO da liberdade religiosa no Brazil (continuação da pag. 82),
Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 12, 16 jun. 1866, p. 89-90).
Ainda, nesse número, o jornal analisa as ideias de Melasporos, pseudônimo de
Aureliano Cândido Tavares Bastos. Os princípios defendidos por Tavares Bastos, de
acordo com a Imprensa Evangélica, são os seguintes:
1º A supremacia da consciência individual em matéria de fé e de culto
à exclusão do emprego de força bruta ou de constrangimento físico
em prol de qualquer religião. (...)
2º Todo o poder constituído está sujeito a esta limitação de suas
atribuições. (...)
3º Uma fé no triunfo da verdade, tão calma e inabalável que ninguém
se receie de dar batalha ao erro em campo aberto, ou duvide recusar
com desconfiança e desdém toda a intervenção armada, ainda que
esta se lhe mostre favorável na aparência. (...)
4º O mais amplo desenvolvimento do espírito propagandista... (A
QUESTÃO da liberdade religiosa no Brazil (continuação da pag. 82),
1866, p. 90).
O redator diz que apóia as ideias defendidas por Tavares Bastos, pois sua tese
permitiria que crentes e descrentes vivessem em paz sob a égide do poder civil; e mais,
diz que essa liberdade estaria posta sobre os princípios morais e religiosos.
O último artigo desta série foi publicado em 7 de julho de 1866, quando,
finalmente, o redator esclarece qual é a sua argumentação em defesa da liberdade
religiosa. O jornal sustenta que a liberdade de consciência e de cultos deve ser dada, não
se baseando em ideias de filósofos iluministas, e sim na supremacia da consciência
individual, na iniciativa pessoal de indagar a verdade e professá-la livremente sem ser
constrangido pelo poder civil. O governo deveria abster-se de interferir em matéria de
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consciência, bastando apenas que a fé fosse propagada por associações voluntárias com
plena liberdade de ação. Assim, estaria encerrado o conflito entre Estado e Igreja,
podendo-se respeitar a fé alheia sem transgredir a própria. Essa teoria era a única que
poderia ser aceita por todas as crenças, defendia o jornal. Segundo a redação, a partir da
concessão de tal liberdade, poder-se-ia discutir a origem das crenças por meio da
persuasão; o recusar-se a participar do debate denotaria falta de fé no ―triunfo da
verdade‖.
O jornal afirma que os defensores da fé católica se eximiam dos debates sobre
liberdade religiosa, pois, toda vez que se viam ameaçados recorriam às armas políticas e
sociais como se a ―espada do Espirito, que é a Palavra de Deus‖, não tivesse mais
nenhum efeito (A QUESTÃO da Liberdade religiosa no Brasil (continuação da pag.
90), Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 2, nº 13, 07 jul. 1866, p. 97-98).
Ao longo do primeiro período do jornal, a Imprensa Evangélica defendeu em
seus artigos que a questão da liberdade religiosa tinha importância mundial. Além de
que a falta de liberdade religiosa no Brasil dificultava o progresso social e econômico
do país.
Em 17 de agosto de 1867, a Imprensa Evangélica publicou uma matéria sobre a
Câmara dos Deputados da Áustria. Em resposta a coroa austríaca, os deputados estavam
defendendo uma reforma na legislação e em toda a administração, o alvo era o
progresso material. As liberdades reclamadas eram direitos políticos: direitos de
associação, de reunião e de liberdade de imprensa. Era necessária uma mudança na
Constituição. Não queriam interferir na independência da Igreja, contudo, não
aceitavam que uma lei ou decreto papal viesse revogar direitos dos mais importantes
para a soberania de um Estado. Além disso, encaravam a Santa Sé como um poder
estrangeiro. Para a Imprensa Evangélica, a iniciativa dos deputados austríacos deveria
ter sido tomada antes, assim, seu país não teria sido expulso da confederação germânica
e nem estaria exercendo ―papel secundário na política da Europa‖ (A CAMARA dos
Deputados da Austria reclamando a liberdade religiosa, Imprensa Evangelica, Rio de
Janeiro, v. 3, n. 16, 17 ago. 1867, p. 127).
Em 7 de setembro de 1867, a redação afirmava que ―a liberdade religiosa é o
complemento e a garantia da liberdade política‖. Seria a partir da junção desses dois
direitos que os povos teriam conquistado a liberdade de consciência individual. Neste
artigo, a Áustria foi citada novamente como exemplo, pois naquele país, a Câmara dos
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SOBRE A RELIGIÃO
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Deputados havia votado a liberdade de cultos mesmo contra a vontade do Ministro dos
Negócios Eclesiásticos que só aceitava a liberdade de consciência. Segundo o jornal, os
deputados queriam ―curar os males políticos e sociais inseparáveis do regime teocrático
por que a Áustria até hoje se rege‖. E conclui dizendo que ―virá a vez do Brasil.
Aguardemos tranquilos o dia em que o povo se desenganará dos políticos retrógrados‖
(A LIBERDADE do culto votada pela Câmara dos Deputados na Austria, Imprensa
Evangelica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 17, 07 set. 1867, p. 136).
Ainda nesta edição, o jornal noticia a visita do sultão da Turquia, em 5 de agosto
de 1867, a Paris e a Londres. Na França, o imperador Napoleão III foi o anfitrião,
recebendo o Sultão com ―honras estrepitosas‖. A redação se pergunta sobre o que
pensariam os príncipes e cavalheiros das cruzadas se presenciassem esta cena. Para o
jornal, era bom dar essa recepção ao Sultão, pois, assim, ele veria as vantagens que
tinham um governo liberal-constitucional, e até mesmo poderia querer reformar as leis
de seu país na mesma direção (A VISITA do Sultão a Paris e a Londres, Imprensa
Evangelica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 17, 07 set. 1867, p. 136).
Nesse mesmo dia, o jornal transcreveu um artigo publicado no Jornal do
Commercio de 1º de setembro de 1867. O autor do artigo era o vigário da freguesia de
Sant‘Anna, Pedro de Mello Alcanforado que ao perceber que as igrejas dissidentes
estavam conquistando espaço na corte e principalmente em sua freguesia, procurou
convidar todos os fiéis a irem para a matriz a fim de receberem instrução das doutrinas e
do catecismo, uma iniciativa para recuperar o ―rebanho que porventura se tenha
desgarrado‖. O pároco reconhecia que estava negligenciando o ensino religioso
oferecido aos párocos. Os redatores afirmaram que isso era uma resposta àqueles que
acreditavam que a liberdade religiosa levava ao indiferentismo, pois, o vigário sentiu-se
estimulado ao cumprimento do seu dever ―pela existência e concorrência de uma igreja
evangélica. (...) Estes fatos se apresentam à proporção que a igreja evangélica se vai
propagando‖. A redação felicitou o vigário por sua iniciativa, e disse que de sua parte
faria o mesmo. ―A freguesia de Sant‘Anna demonstrará os benefícios que nunca se
deixa de colher do principio da liberdade fielmente observado e levado à prática‖ (O
VIGARIO da freguesia de Sant‘Anna estimulado a boas obras, Imprensa Evangelica,
Rio de Janeiro, v. 3, n. 17, 07 set. 1867, p. 136).
Em 2 de novembro de 1867, o jornal publica uma reportagem com uma estampa
sobre a Austrália, demonstrando os benefícios advindos da liberdade religiosa naquele
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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país. Para o jornal, essa colônia é um destaque pela importância de seu comércio e pelo
seu progresso, fruto da torrente de imigração. Os redatores afirmam que essa nação se
regia pela Bíblia e por Jesus Cristo, que seria o ―legislador‖ e o ―cabeça da Igreja‖ (A
AUSTRALIA, Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 21, 02 nov. 1867, p. 165).
As crianças desse país eram ensinadas a conservar a sua liberdade de
consciência, e, portanto, quando chegavam à idade adulta, sabiam ―mandar e obedecer‖.
Diferentemente da tradição da ―raça latina‖, na qual os superiores da família, da Igreja e
do governo privavam suas crianças da palavra direito (Idem, Ibidem, loc. cit.).
Ademais, não só a Igreja brasileira era problemática; mas, segundo os redatores,
o governo também, pois, era propenso a uma centralização excessiva, impedindo a
iniciativa individual. A política religiosa ficava restrita a uma luta estéril entre
progressitas, que nem sabiam ao certo o que queriam; e, retrógrados, que queriam
retornar ao tempo feudal. Por fim, a redação conclui que ―é preciso criar uma nova
geração imbuída nos princípios do Evangelho, a qual poderá conciliar a religião com a
liberdade e a liberdade com a religião‖ (Idem, Ibidem, loc. cit.).
Para os articulistas do jornal, a concessão da liberdade religiosa era crucial para
o desenvolvimento religioso, social e econômico do Brasil. Com essas considerações, o
jornal passou a participar do debate entre liberalismo e ultramontanismo, corroborando
as afirmações liberais. E, como se não bastasse usar a linguagem liberal para construir
seus argumentos, os redatores também endossaram, abertamente, os discursos de alguns
políticos da época.
Dialogando com as ideias liberais: relações entre os protestantes e Aureliano
Cândido Tavares Bastos
Segundo Pierre Bourdieu,
... o capital de autoridade propriamente religiosa de que dispõe uma
instância religiosa depende da força material e simbólica dos grupos
ou classes que ela pode mobilizar oferecendo-lhes bens e serviços
capazes de satisfazer seus interesses religiosos, sendo que a natureza
destes bens e serviços depende, por sua vez, do capital de autoridade
religiosa de que dispões levando-se em conta a mediação operada
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
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pela posição da instância produtora na estrutura do campo religioso
(BOURDIEU, 2004, p. 58).
Entendemos que a Imprensa Evangélica, como produtora de bens de salvação de
um tipo novo, procurou mobilizar forças liberais que defendiam os mesmos ideias de
liberdade religiosa. A seguir, analisaremos alguns artigos nos quais as ideias de
Aureliano Cândido Tavares Bastos foram debatidas no jornal.
Em 6 de abril de 1867, a Imprensa Evangélica transcreveu um artigo de Tavares
Bastos que havia sido publicado no Jornal do Commercio e tinha por título: ―reflexão
sobre a imigrarão‖.
Para os redatores do jornal, nenhum estadista duvidava mais da necessidade de
se garantir a liberdade religiosa em território brasileiro; necessitava-se apenas
―estabelecer as bases da liberdade religiosa‖. Isso era necessário para acalmar as
consciências das famílias imigrantes, que pretendiam residir e trabalhar no Império.
Tavares Bastos afirmava que se o art. 5º da Constituição fosse escrito em sua época, a
sua redação seria a seguinte: ―É permitido livremente e garantido com igualdade o
exercício de todas as religiões‖. Mencionava também o fato de que, em 1782, a
imperatriz Maria Tereza, da Áustria, havia convidado imigrantes para se instalarem no
Baixo-Danúbio, dando-lhes a concessão da liberdade religiosa. Ele constatava que essa
região tornara-se muito próspera, logo, aqueles que queriam restringir a liberdade
religiosa eram ―retrógrados‖, opositores do progresso. Finalizando o artigo, o redator
diz que nos Estados Unidos, a liberdade religiosa foi uma das primeiras reformas
Constitucionais votadas no Congresso norte-americano dos Estados Unidos em 1789.
Para o redator, não havia país com maior atividade religiosa (REFLEXÕES sobre a
liberdade religiosa, pelo Sr. A. C. Tavares Bastos, Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro,
v. 3, nº 7, 06 abr. 1867, p. 54).
Em 3 de agosto de 1867, Tavares Bastos novamente é citado no jornal. Desta
vez, o jornal destacou a proposta de casamento civil que o deputado havia apresentado à
Câmara dos Deputados; entretanto, afirmava o jornal, que mesmo com maioria liberal, o
projeto não tinha previsão de ser votado pelos deputados; o presidente do Conselho,
Zacarias de Góis e Vasconcelos, não apadrinhava a medida e a Câmara o apoiava. Para
a redação, ―todos estes fatos denunciam a pouca fé que existe nos princípios da
liberdade religiosa‖ (UM PROJETO sobre o casamento civil, Imprensa Evangelica, Rio
de Janeiro, v. 3, n. 15, 03 ago. 1867, p. 116).
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David Gueiros Vieira dedica um capítulo de seu livro para falar a respeito de
Tavares Bastos. Primeiramente, afirma que esse político, acima de qualquer outro,
―tinha um amor e uma admiração absolutamente irrestritos pelos Estados Unidos da
América e pelas coisas americanas‖ e ―amava o ‗progresso‘‖ (VIEIRA, op. cit., p. 95).
Ele também defendia quaisquer que fossem as medidas que facilitassem as imigrações,
ou seja, era um defensor do casamento civil e da liberdade de culto. Com a chegada dos
missionários protestantes, ele também teria se tornado um grande defensor da causa
evangélica. É digna de nota a defesa promovida por ele em prol da liberação de folhetos
evangélicos encomendados por Robert Kalley, presos na Alfândega do porto do Rio de
Janeiro em 1861.
Em 1861, após ser demitido do cargo de oficial da Secretaria do Ministério dos
Negócios Navais, Tavares Bastos começa a publicar uma série de cartas no Correio
Mercantil, sob o pseudônimo de ―Solitário‖.
Para Tavares Bastos, o Brasil precisava se espelhar e se aproximar dos Estados
Unidos para poder se regenerar em prol do progresso. Os Estados Unidos seriam um
exemplo de país desenvolvido a ser seguido. Além disso, ele destaca que o motivo de
tanto desenvolvimento era devido à colonização empreendida por seitas protestantes
independentes e não por padres católicos (TAVARES BASTOS, 1938, passim).
Tavares Bastos tomou atitudes para ajudar a inserção dos protestantes em solo
brasileiro. Em 1863, ele assessorou os ministros presbiterianos quanto ao procedimento
para se registrarem legalmente como ministros protestantes, conforme artigo 52 do
Decreto nº 3.069, de 17 de abril de 1863 e, também, quanto ao procedimento para
organizar legalmente a Igreja (VIEIRA, op. cit., p. 159-160).
Em suma, a fim de se estabelecerem no Brasil, os protestantes procuraram se
aliar aos liberais reformistas José Thomaz Nabuco de Araújo e Aureliano Cândido
Tavares Bastos - devido à exigüidade de espaço pudemos destacar apenas o apoio dado
às teses de Aureliano Cândido Tavares Bastos - pois, eles se constituíam em elementos
de contestação contra a religião dominante.
Analisamos os discursos de cunho político-religioso contidos na Imprensa
Evangélica. Verificamos as influências recebidas; as teses apoiadas; e, as teorias
confrontadas. Logo, concluímos que o jornal era defensor das ideias liberais
reformistas; mas, contrário ao liberalismo cientificista, que negava a fé. Embora, em sua
primeira edição, os redatores declarassem que o jornal estaria alheio a ingerência
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SOBRE A RELIGIÃO
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política, eles se contradisseram ao longo das publicações. Os redatores abriram mão
dessa promessa a fim de apoiarem todos os projetos e iniciativas políticas que
apoiassem a inserção do protestantismo no Brasil.
BIBLIOGRAFIA
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2004.
LÉONARD, Émile G. O protestantismo brasileiro. São Paulo: ASTE, 2006.
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Brasil. 3ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
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SOBRE A RELIGIÃO
83
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TRACTADO de amizade Commercio e Navegação entre sua Magestade Britannica, e S.
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SOBRE A RELIGIÃO
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O PSEUDOCRISTIANISMO E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA HISTÓRIA
Fábio Fernando de Azevedo Pereira33
Resumo: Esse artigo objetiva comparar o desenvolvimento da igreja cristã antes e
depois de Constantino e analisar se o objetivo de seu idealizador era, de fato, fundar
uma religião ou estabelecer um estilo de vida. A comunidade cristã primitiva foi se
estabelecendo em bases onde as concepções de templos vivos, partilha de bens, vida
comunitária e sacerdócio de todos os santos foram fundamentais para sua estruturação.
Após Constantino os templos voltam a ser de pedra, os recursos se destinam à
manutenção institucional, o clero é restabelecido e o deus retirado dentre os homens. A
instituição Igreja e não mais o homem se torna o representante divino na terra.
Palavras-chave: cristianismo primitivo; Constantino; Igreja.
“Mas o Imperador está nu!” Disse o garotinho. ”Falou a voz da
inocência!” Exclamou o pai; e cochichou para outro o que a criança
dissera. “Ele está nu!” Correu de boca em boca. “Ele está nu!”
Bradou finalmente o povo. O Imperador ficou envergonhado porque
sabia que estavam certos; mas refletiu: “O cortejo precisa
prosseguir!” Aprumou ainda mais o corpo, e os camareiros, solenes,
continuaram fingindo segurar o manto real que não existia. – Hans
Christian Andersen –
Por centenas de anos atribui-se ao Cristianismo muitos feitos sangrentos e horrores
indivisíveis cometidos em nome de Deus ou da fé cristã. No entanto, pouco se aborda
sobre o período onde esse modelo de fato imperou e prosperou a ponto de incomodar o
império romano a suscitar inúmeras perseguições aos cristãos genuínos. A seita que
abarcou mais gentios do que propriamente judeus espalhou-se rapidamente por todo o
império, onde seus seguidores primaram por seguir ao estilo de vida estabelecido pelo
principal líder. Depois da destruição de Jerusalém no ano 70 dC, o cristianismo judaico
minguou em número e em poder. O cristianismo gentílico dominava, e a nova fé
33 Graduando em História - UFRRJ
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SOBRE A RELIGIÃO
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começou a absorver a filosofia e os rituais Greco-romanos. O cristianismo judaico
sobreviveu ainda por cinco séculos no pequeno grupo de cristãos siríacos, chamado
Ebionitas. Mas sua influência não foi muito difundida (Will Durant, Caesar to Christ,
1950, p. 577). Ao contrário do que se praticava nos rituais judaicos e pagãos, onde a
divindade era cultuada nos templos erguidos para esse propósito, os primeiros cristãos
absorveram a ideia de serem templos vivos de um Deus que, acima de tudo,
materializava-se como o Amor, de sorte que a redistribuição de renda e a preocupação
com os pobres e necessitados se fazia presente em todo o processo de crescimento da
seita. Segundo Soren Kierkegaard (Attack on Christendom, ET 1946, PP.59ff., 117,
150ff., 209ff) o cristianismo moderno é essencialmente falsificado. Ao contrário do que
se praticava nos três primeiros séculos, hoje a religião cristã aplicada consegue ser, em
sua essência, oposta aos princípios que o Cristo estabeleceu. Ao longo desses dois
milênios algo colaborou para desestabilizar as estruturas de uma cristandade de ideias
reacionárias e revolucionárias que traziam uma autonomia ao homem no acesso às
questões transcendentais, tornando-o um instrumento de dominação e desapropriando o
ser humano daquilo que se considerava o maior bem conquistado: a condição de ser
habitação do deus que passaram a servir. O Cristianismo Primitivo conseguiu ser um
modelo ―sui generis‖, diferente de tudo que existia e se entendia como misticismos e
religiões. Não havia mais intermediadores para conduzir o homem ao deus que serviam,
sem clero e sem liturgias. Consideravam todos os que criam como sendo sacerdotes e
formadores do corpo de Cristo que, sendo ele próprio ―o Cabeça‖, aniquilava-se a
condição de alguém subjugar ou dominar seus semelhantes dizendo-se representante
dele. A presença do Cristo dentro do ser se torna o próprio ―religare‖. Por vezes
reuniam-se em assembleias caseiras e dividiam seus bens e seus alimentos de sorte a
não haver quem passasse necessidade. Porém, segundo Paulo F. Bradshaw, o
cristianismo do século IV, absorveu ideias e práticas religiosas pagãs, vendo-se como
cumprimento das metas das religiões anteriores (The search for Origins of Christian
worship, new York: Oxford University Press, 1992, p. 65). Aos poucos os princípios
fundamentais deixados pelo líder da comunidade cristã aos poucos foram se
transformando em liturgias, rituais, ou seja, o que começou de forma simples, para ser
apenas um estilo de vida onde cada um consideraria o outro superior a si, amaria e
perdoaria um ao próximo, servindo aos mais necessitados transformou-se numa religião.
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SOBRE A RELIGIÃO
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A Igreja Primitiva não teve NT, nem teologia elaborada, nem
tradição estereotipada. Os homens que levaram o cristianismo ao
mundo gentílico não tiveram nenhum treinamento especial, tiveram
apenas uma grande experiência – na qual „todas as máximas e
filosofias foram reduzidas à simples tarefa de caminhar na luz, pois a
luz havia chegado‟. – B.H. Streeter –
Religião ou Estilo de Vida?
No afã de substituir antigas religiões o cristianismo tornou-se
uma religião. - Alexander Schmemann -
Durante alguns milhares de anos o povo judeu viveu sob a égide da lei mosaica, cujos
principais mandamentos consistiam em amar a Deus sobre todas as coisas (Dt 6:5) e
amar ao próximo como a si mesmo (Lv 19:18). De repente, em meio aos judeus, surge
um novo ―Rabi‖ intitulando-se o ―Cristo‖, que pregava que o reino de Deus havia
chegado, e que o mesmo poderia se encontrar dentro do homem, conforme expressa
Tomé, um de seus apótolos: Jesus disse: “Se aqueles que vos guiam disserem, „Olhem,
o reino está no céu!, então os pássaros do céu vos precederão, se vos disserem que está
no mar, então, os peixes vos precederão. Pois bem, o reino está dentro de vós, e também
em vosso exterior (Evangelho
de Tomé, capítulo 1, versículo 3). Após anos de
ensinamentos pautados no amor ao próximo, Cristo entrega sua vida pelos demais, não
sem antes ensiná-los a fazer o mesmo pelos outros. Com isso ele institui um novo
mandamento descrito no Evangelho de João capítulo 11, versículo 26 dizendo que seus
discípulos deveriam amar seus semelhantes como ele (Cristo) os teria amado, ou seja,
também entregando a vida deles aos demais. Esse foi o fundamento que revolucionou os
seguidores do primeiro século. Homens e mulheres passaram a viver o dia a dia
deixando de lado seus interesses pessoais e buscando sempre o interesse de seu
próximo. Cada um enxergava dentro do outro a presença do deus que criam e, por isso,
o bem realizado às pessoas da comunidade era a principal forma de adoração a esse
deus. Apesar das várias influências judaicas e pagãs da época, a comunidade por mais
de um século manteve a questão da redistribuição de renda, conforme mostra a carta
escrita por Justino: E aqueles que possuem em abundância e por desejo, conforme a
preferência de cada um, dê o que deseja e aquilo que for coletado será depositado junto
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ao representante e ele socorrerá os órfãos e as viúvas, e aqueles que por doença ou por
qualquer outro motivo são privados de algo, a aqueles que estão em cadeias e a
aqueles que são estrangeiros hóspedes, numa palavra a todos os que estão em
necessidade ele lhes será um protetor (Ed. E. J. Goodspeed, - Die Altesten Apologeten,
Göttingen 1915- Corpus Apologetarum Christanorum seculi secundi. Jena, 1876 sqq.).
Muitos outros escritos da época reafirmam a ideia dos homens como templos vivos e da
não necessidade de clero e de santuários para adoração e, quem sabe, não foram essas as
razões dos mesmos terem sido considerados apócrifos. Apesar das muitas heresias
surgidas no período e das várias correntes filosóficas, todas discutiam temas
transcendentais sobre o Cristo ser deus ou não, sobre a trindade ou sobre o
monofisismo, porém, nenhuma delas impediu a comunidade cristã de adotar um estilo
de vida parecido com de seu líder, ao ponto de, na cidade de Antioquia, os seguidores
serem chamados de cristãos, ou seja, ―pequenos cristos‖ (Livro de Atos, capítulo 11,
versículo 26). A comunidade se reunia nas casas, comiam juntos, estudavam a doutrina
apostólica (possivelmente a Didaqué) e ninguém passava por necessidade, pois tudo
lhes era suprido através da partilha. Aos poucos, esse estilo de vida foi se ritualizando,
os dogmas sendo formados e a igreja se institucionalizando. As casas deram lugar aos
templos, o sacerdócio de todos os santos ao clero e as contribuições arrecadadas
passaram a ter outras finalidades do que o socorro e a beneficência. De acordo com
Frank Senn, ―Os cristãos dos primeiros séculos evitaram a publicidade dos cultos
pagãos. Eles não tinham quaisquer santuários, templos, estátuas, ou sacrifícios. Eles
não organizavam nenhum festival público, danças, performances musicais, nem
peregrinações. O ritual central deles envolvia uma refeição de caráter doméstico e uma
composição herdada do judaísmo. Realmente, os cristãos dos primeiros três séculos
normalmente se encontravam em residências privadas convertidas em espaços de
ajuntamento satisfatório para a comunidade cristã... Isto indica que a crueza ritual da
adoração cristã primitiva não deve ser interpretada como um sinal de atraso, mas sim
como um modo de enfatizar o caráter espiritual da adoração cristã” (Christian Liturgy,
p. 53). Em relação ao poder aquisitivo da comunidade, que permitia com que fossem
supridos os necessitados, L. Michael White (Building god‘s House in the Roman World,
PP.142-143)
pontua
que
os
cristãos
primitivos
tiveram
acesso
a
estratos
socioeconômicos mais elevados. Além disso, o ambiente greco-romano dos séculos II
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SOBRE A RELIGIÃO
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III estava totalmente aberto a muitos grupos que adaptavam edifícios privados para uso
comunal e religioso.
Que cristãos na era Apostólica erigiram casas especiais de culto, isso
está fora de cogitação... O Salvador do mundo nasceu em um estábulo
e subiu aos céus desde um monte. Seus Apóstolos e sucessores até o
século III pregaram nas ruas, mercados, montes, barcos, sepulcro,
cavernas, desertos e nas casas dos seus convertidos. Contudo,
milhares de igrejas e capelas caras foram e continuam sendo
construídas em todo mundo para honrar o Redentor crucificado que
nos dias de sua humilhação não possuiu nenhum lugar onde repousar
a cabeça! – Philip Schaff –
O pseudocristianismo e suas consequências na história
Se todos aqueles que tiveram acesso ao mandamento que por mais dois séculos foi a
pedra fundamental da comunidade cristã que era amar ao próximo como Jesus os teria
amado, jamais o cristianismo de hoje seria tão desigual à essência original. A mesma
discussão que começou entre os apóstolos sobre quem seria maior (entenda-se, quem
teria autoridade sobre os demais) não demorou a surgir entre Clemente e Donato quando
houve a expansão da seita. Essa discussão foi abandonada pelos apóstolos quando
entenderam que não se estava estabelecendo uma religião, ou um sistema de poder
hierárquico, pois o reino que se estava prometendo não possuía bases políticoadministrativas, nem plano de cargos, muito menos esferas de poder, porém, o mesmo
não ocorreu tempos depois. Após a intervenção do imperador Constantino, cuja essência
pagã nunca se apartou de seus preceitos religiosos, todos os integrantes da comunidade
cristã que eram sacerdotes e templos vivos do deus que serviam, ou seja, sem a
necessidade de mediadores, são destituídos desta condição, pois os templos são erguidos
e o clero é restabelecido. A chamada Igreja se torna uma poderosa instituição e nem
mesmo Reforma Protestante consegue mudá-la, visto que a própria reforma em si
também não possuía em suas bases o fundamento cristão primitivo. Sobre Martinho
Lutero e o termo igreja abordou Emil Brunner: ―De todos os grandes mestres do
Cristianismo, Martinho Lutero foi o que mais claramente percebeu a diferença entre a
Ekklesia do NT e a igreja institucional, e reagiu fortemente contra o „quid pro quo‟ que
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SOBRE A RELIGIÃO
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as identificavam. Tanto que meramente recusou tolerar a palavra „igreja‟: termo que
ele descreveu como ambíguo e obscuro. Em sua tradução da Bíblia, traduziu ecclesia
como „congregação‟. Ele se deu conta de que a Ekklesia do NT não é „algo‟, nem uma
„coisa‟, ou uma „constituição‟, mas um conjunto de pessoas, um povo, uma comunhão...
Foi tão forte a aversão de Lutero à palavra „igreja‟ que os fatos históricos são
comprovadamente mais fortes... O uso linguístico da Reforma e da era pós-reforma teve
que chegar a um acordo com o poderoso desenvolvimento da ideia de igreja.
Consequentemente, toda confusão provocada pelo uso „obscuramente ambíguo‟ dessa
palavra penetrou na teologia da Reforma. Era impossível voltar um milênio e meio no
relógio. A concepção „igreja‟ permaneceu irrevogavelmente moldada por seu processo
histórico de 1500 anos” (The Misunderstanding of the Church, London: Lutterworth
Press, 1952, PP. 15-16). Ainda assim, hoje, tanto a igreja romana como as protestantes
se mantiveram no foco contrário ao desejo principal de seu idealizador. Com isso,
deixam manchas indeléveis na linha histórica da humanidade, que podem ser apagadas
apenas pelas lembranças do que um dia foi, fez e contribuiu para a humanização dos
homens e a busca de uma sociedade justa e equânime. Mas o estilo de vida criado pelo
Cristo e por tantos cristos que como ele têm vivido nessa sociedade humana,
distribuindo suas vidas por uma causa maior contínua latente dentro de cada um que
acredita em um mundo melhor para todos os homens. A esse modelo religioso onde os
homens necessitem de sacerdotes que os conduzam a deus, de construções de pedra e
tijolo para servirem como moradia desse deus, da destinação dos recursos arrecadados
às necessidades institucionais e, principalmente onde existe uma concepção particular
de amor onde a necessidade pessoal está acima da coletividade não pode, de forma
alguma, ser denominado de Cristianismo, mas sim de 34Constantianismo.
Referências Bibliográficas
Bradshaw, P. F. The search for Origins of Christian worship, New York: Oxford
University Press, 1992, p. 65
34 Constantianismo: conceito que denomina o modelo religioso assumido pela comunidade cristã
primitiva após a intervenção do imperador Constantino.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
90
Brunner, E. The Misunderstanding of the Church, London: Lutterworth Press, 1952,
PP. 15-16
Durant, W. Caesar to Christ, 1950, p. 577
Ed. E. J. Goodspeed, - Die Altesten Apologeten, Göttingen 1915-
Corpus
Apologetarum Christanorum seculi secundi. Jena, 1876sqq.
Kierkegaard, S. Attack on Christendom, ET 1946, PP.59ff., 117, 150ff., 209ff
Senn, F. Christian Liturgy, p. 53
White, L. M. Building god‘s House in the Roman World, PP.142-143
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
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GRUPO 3: RELIGIÃO NA CONTEMPORANEIDADE
AS TÉCNICAS XAMANICAS E O CASO DE XAMANISMO DE TIA
NEIVA NO VALE DO AMANHECER.
Cleiton Machado Maia35
O processo histórico de formação do Vale do Amanhecer
Entender a formação do Vale do Amanhecer é importante para destacar a
história da comunidade, de sua líder fundadora, como também alguns aspectos
relevantes para esse trabalho. A vida religiosa do Vale do Amanhecer vai ser iniciada
muito antes de sua fundação em Brasília, assim como o início da vida espiritual da
fundadora.
Com o nome de batismo Neiva Chaves Zelaya, a futura fundadora do Vale,
nasceu em Propriá, pequena cidade de Sergipe em 30/10/1925. Devota fervorosa do
catolicismo, criou sua família dentro da religião, onde se casou e batizou quatro filhos:
Raul, Gilberto, Carmem Lúcia, Oscar e Vera Lucia. Ficou viúva bem cedo e teve que
começar a trabalhar para sustentar sua família, tornando-se a primeira caminhoneira
licenciada do Brasil36,isso com apenas o primário completo.
No ano de 1957, começou a manifestar suas primeiras experiências mediúnicas,
onde, segundo estudos, recebeu do mundo etéreo a mensagem cristã de Jesus para o
terceiro milênio, sendo assim escolhida por ―Pai Seta Branca‖ – entidade maior do Vale
do Amanhecer – para essa missão. Como era católica fervorosa, demorou a entender e
aceitar a missão para qual tinha sido escolhida. Neste momento é preciso destacar a
figura de Dona Neném, que teria ajudado-a a conhecer e desenvolver sua mediunidade.
Muitos devotos do Vale destacam a não confirmação da pessoa física de Dona Neném,
o que sustenta a sua figura como uma entidade que ajudou Tia Neiva a formar o que
seria um dia a doutrina do Vale do Amanhecer e sua vida mediúnica37.
Percebendo as boas oportunidades de emprego na construção de Brasília nos
anos de 1905, muda-se para Alêxania, em Goiânia, e funda em 1959 a União
35
Mestrando em Ciências Sociais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
ÁLVARES, Bálsamo. Tia Neiva – Autobiografia missionária. Brasília: [do autor], 1992.
37
ÁLVARES, Bálsamo. Tia Neiva – Autobiografia missionária.Brasília: [do autor], 1992.
36
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SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
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Espiritualista Seta Branca (UESB). Segundo Tia Neiva, era uma ―emergência
espiritual‖, que iria ajudar os pacientes com dificuldades espirituais. Por ordens astrais,
mudou-se para a Serra do Ouro que se localiza no quilômetro 73 da rodovia Brasília –
Anápolis, onde continuaram os trabalhos, mantendo a serralheria, a fábrica de farinha e
fundando um orfanato, uma farmácia, uma plantação de amendoim e uma pensão para
os pacientes de curas espirituais e físicas38.
Assim, no ano de 1964, a história do Vale do Amanhecer começa a se formar de
maneira mais concreta. Tia Neiva se separa definitivamente de Dona Neném - nunca
mais tendo contato e nem a encontrando – fundando sozinha em Taguatinga um galpão
para seus atendimentos de clarividência e cultos. Nessa época, conhece Mario Sassi,
aquele que seria seu braço direito na formação da doutrina e futuras estruturas do Vale
do Amanhecer. Mario Sassi, que era paulista e trabalhava como assessor de Relações
Públicas na Universidade Federal de Brasília (UnB), abandonou tudo para engatar no
trabalho como médium e auxiliar de Tia Neiva no Vale, sendo o grande responsável por
registrar a obra de Neiva em filmagens, fitas e livros, permanecendo no Vale enquanto
Neiva esteve viva.
Em 1969, depois de quatro anos em Taguatinga,Tia Neiva perde o direito de
posse na terra em que viviam e começa a procurar local para uma nova instalação onde
acham um terreno a seis quilômetros de Planaltina, fixando-se ali, onde está localizada
até hoje. Segundo Mestre Sebastião39,no momento que Neiva e demais médiuns
passaram pelo local, Pai Seta Branca teria dito a ela que aquele era o local escolhido
para a construção da primeira cidade mediúnica (grifo meu).
Nos anos seguintes começaram a ser construídos os templos e locais de
trabalhos, onde em 1971 iniciou-se a construção da Casa Grande; local de moradia de
Tia Neiva, seus filhos e seu companheiro Mario Sassi (destaco a Casa Grande não só
como local de moradia, mas sim como um templo também, já que nele existiam
38
ÁLVARES, Bálsamo. Mensagens de Pai Seta Branca. Brasília: [do autor], 1991.
Mestre Sebastião é o responsável pela recepção do Vale do Amanhecer, adepto da doutrina a mais de
35 anos, vindo de seu estado natal MG, foi ao Vale procurar cura para um filho seu que havia nascido
com uma séria doença. Iria ficar uma semana, mas acabou se fixando na cidade até hoje, ganhando
prestígio e conhecimento após viver 25 anos com Neiva (de quem fala com carinho e muita intimidade,
ao ponto de ter sido um dos últimos a ver Neiva viva em seu quarto, poucos minutos antes de morrer).
Reformado da Aeronáutica criou três filhos (no qual o que era especial faleceu anos depois de entrar para
a doutrina) e hoje vive exclusivamente para o trabalho doutrinário. Foi Mestre Sebastião que me acolheu
nos períodos que estive em campo no Templo Mãe do Vale do Amanhecer em Brasília, durante dois
períodos de um mês estive guiado por ele andando, entrevistando membros, conhecendo a doutrina e a
vida em comunidade.
39
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trabalhos e algumas experiências mediúnicas da clarividente que serão de grande
importância para nossa análise do xamanismo de Tia Neiva) e o novo orfanato.
No ano da morte de Tia Neiva, em 1985, o vale já estava com sua estrutura física
totalmente completa e sua doutrina estruturada e organizada em cargos hierárquicos
numa série de rituais complexos, onde Tia Neiva levou em conta o crescimento em
número de adeptos, onde cada médium passou a ter sua ordem religiosa hierárquica e
mediúnica até hoje.
Após sua morte, os médiuns que haviam sido escolhidos por Neiva tomaram a
liderança e continuação dos ensinamentos e doutrina da fundadora. Segundo mestre
Werner40 não existe atualmente um líder carismático, ou com carisma o suficiente para
convocar um trabalho de proporções iguais ao da tia Neiva.Um dos grandes incômodos
dos médiuns do Vale do Amanhecer nesse momento é a falta de um líder que se
responsabilize pelos trabalhos.
Enquadramento dentro dos novos movimentos religiosos brasileiros (N.M.R.Br)
Todos os grupos religiosos são novos frente às correntes religiosas ditas
tradicionais – grupo religioso formal - que se estabeleceram no Brasil. Podemos incluir
neste grupo aquelas religiões que apresentam técnicas de dimensão espiritual diferente
ou que busquem divergência com os grupos religiosos tradicionais. Seriam estas as
religiões encontradas no terceiro grupo, distintas em relação ao catolicismo e ao
protestantismo. Apesar de, desde o início do século XX, haver uma frequente mudança
nesse terceiro grupo no Brasil, não chegou a ocorrer uma perda dos antigos grupos, mas
sim um surgimento de novos movimentos. As antigas religiões do terceiro grupo
continuaram inalteradas, recebendo novas religiões junto delas.
Uma das grandes dificuldades para se estabelecer e entender esse surgimento de
novos grupos religiosos é o dualismo, dupla definição ou religiosidades ocultas. Esses
fenômenos acontecem muito por medo que um grupo tem de assumir uma nova religião
ou até mesmo quando uma dessas novas religiões não exige de seus adeptos que a
assumam como religião ou como única religião.
40
Mestre Werner conheceu a doutrina do Vale em sua cidade natal em Minas e hoje é o responsávelpelo
transporte dentro da comunidade, ele quem fez meu transporte dentro do Vale. Era umbandista no início
de sua vida e conheceu Tia Neiva, e também conheceu as diferenças das duas formas de mediunidades, a
do Vale e da umbanda. Foi Mestre Werner que fez meu transporte durante o período que estive no
Templo Mãe em Brasília.
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Nos Estados Unidos e na Europa esse tipo de interesse pelos novos movimentos
religiosos já tem um grande espaço na área cientifica como a CESNUR (Centro de
Estudos Sobre Novas Religiões); que vem tentando encontrar os limites, fronteiras e
diferenças entre esses movimentos, gerando assim uma diversidade de trabalhos que
definem um corte para as ―novas‖ religiões das religiões tradicionais, já que essas novas
religiões seriam de forma pejorativa uma afronta as antigas religiões que estavam
responsáveis pelas normas de ética e moral.
Existem varias controvérsias em relação ao titulo de movimentos religiosos, pois
varias organizações incluídas nesse rótulo não se auto-definem seguidores de princípios
espirituais ou rejeitam a organização formal normalmente associada à religião. Seriam
seguidores de princípios filosóficos; além do problema de nomear uma revitalização ou
adaptação de um movimento religioso tradicional, como acontece com o hinduísmo e o
islamismo desde o final do século XVIII, como novo movimento. Seria muito vago e
generalizador, servindo como um grande guarda-chuva que acolheria todas as religiões
– ambiguidade de metáforas - que se distanciam das tradicionais (Amaral, 2000, 191).
No Brasil ainda se tem a singularidade das religiões como a Umbanda e o
Kardecismo, que são do século XX, mas estão enraizadas na nossa cultura e sociedade,
onde dificilmente seriam nomeadas como algo diferente de tradicional, dentro dos
nossos parâmetros sociais e culturais, considerando o processo de formação da nossa
identidade histórica como nação41.
Deparamo-nos então com a existência de duas grandes tendências: em primeiro
lugar as fundamentalistas e separatistas, com forte influencia do que Weber (Weber,
1974, 187) chamou de via ética, procurando resposta aos erros encontrados na
sociedade através de uma forte conduta ética. E a outra, não menos importante, são os
grupos voltados para o relativismo e as buscas individuais (religiosidades paralelas e
não institucionais), onde ganha destaque a autonomia do sujeito, constelação dos autos,
autoconhecimento e elevação espiritual.
Mostra-se como relevante, a salvação do individuo de forma mística (Weber,
1974, 187), sem a separação do corpo e espírito, mas sim uma evolução e bem estar de
ambos com um bem estar geral, viabilizando a religião através determos científicos e
41
GUERREIRO, Silas. Novos Movimentos Religiosos – um quadro brasileiro. São Paulo: Paulinas,
2006.
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fazendo referencia as religiões tradicionais, e um passado distante, o que permite maior
aceitação de diversos grupos sociais42.
Sendo assim, podemos entender que o Vale do Amanhecer se encaixa no modelo
histórico de N.M.R. com seu surgimento iniciando-se por meados da década de 60, além
de ter em seu discurso, essa busca de autoconhecimento e evolução do individuo, como
características de orientalismo.
O que é xamanismo?
O xamanismo esteve negativamente associado à figura do feiticeiro ou sacerdote
de uma tribo ou comunidade, prática antiga da humanidade segundo o antropólogo Paul
Devereaux (Devereaux, 1993, 19). Segundo esse autor, a prática surgiu junto ao
universo mágico - espiritual do animismo, mentalidade religiosa associada aos
caçadores, nômades e coletores do paleolítico e mesolítico que percebiam a natureza
sobre um viés antropomorfizante, e também do totemismo que teria evoluído do
animismo onde via uma espécie de animal ou ser natural como sagrada e a relacionava a
um clã particular, em alguns casos crendo ser um ancestral em comum.
Detectados em diversos lugares e culturas do mundo, levou a autores como M.
Eliade (Eliade, 2002, 16) a crer que (os xamãs43) surgiram em períodos concomitantes,
correspondendo a uma necessidade arquetípica do ser humano as práticas xamânicas,
estendendo arquétipo ao sentido junguiano, como elemento estrutural do consciente
coletivo. Outra explicação encontrada e bem aceita é a de transmissão por contatos
culturais das civilizações antigas por meio de migração, essa ideia é defendida por C.
Guinsburg (Guinsburg, 1991, 13) em seu livro Histórias noturnas do Sabá: decifrando
o Sabá. No caso de Walsh (Walsh, 1993, 20-22) é a entrada no EAC - estado alterado
de consciência - em beneficio da comunidade que define o êxtase xamânico, pois este
tem como diferencial primordial o vôo da alma em viagem a outros mundos.
Em todos os autores que citarei, o EAC - estado alterado de consciência - é fator
necessário e essencial para um xamã. Pois isso irá contribuir para a mística e complexa
segunda realidade ou clarividência, isso por meio de uma soma de ritos, símbolos,
crenças e a própria manifestação do êxtase. Essa segunda realidade seria uma superação
42
43
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
Acrescentado e grifado por mim.
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da ―primeira realidade‖, que nada mais é que o nível biológico e real, de onde todos têm
total conhecimento.
A obtenção do êxtase xamânico se dá por meio de um combinado, não
obrigatório de elementos como: o desgaste físico, o consumo de alucinógenos, as
técnicas de concentração, o canto, a dança e outros mais. Assim ele atinge o êxtase que
o possibilita atender a sua comunidade em seções de cura, falar com espíritos, viajar a
outros mundos e planetas. Esse êxtase tem que ser aceito pelos adeptos da comunidade
para que assim o xamã seja respeitado, assim os demais têm que participar pelo menos
um pouco dessa atmosfera lúdica e dramática das seções xamãnicas, onde sons,
figurinos, cheiros e cores proporcionam uma sensação de vertigem e o teatro atinge a
sua função de fazer os adeptos sentirem ao menos um percentual mínimo dessa viagem,
onde no Vale podemos perceber esses elementos bem claramente.
O percurso do xamã e herói
Campbell (Campbell, 1996, 103) em seu livro O herói de mil faces, faz uma
comparação entre o xamã e o herói, assim como Walsh (Walsh, 1993, p.33), dizendo
que os xamãs são os heróis da humanidade, pessoas que triunfam e ultrapassam a
natureza humana.
São os guerreiros, regentes, curandeiros, santos e sábios que se inspiraram
protegeram, serviram e iluminaram, e cujas vidas funcionam como monumentos
em homenagem ao potencial ainda desconhecido de cada um de nós. Suas vidas
foram imortalizadas em mitos, lendas e biografias. Os mortais comuns pensam a
respeitos deles e espantam-se com suas façanhas, veneram-nos e até mesmo
idolatram-nos e, muitas vezes, acreditam que devem ser mais do que somente
humanos, mesmo quando os próprios heróis afirmam que não (WLASH, 1993:33).
Nesse caso a partida e o rito de separação se equivalem, pois a iniciação do herói
normalmente ocorre quando ele se distancia do mundo para um lugar afastado onde só
tem contato com seu mestre e o mundo sobrenatural, daí o rito de marginalidade. E por
ultimo o retorno que está diretamente ligado ao rito de agregação, tempo onde o herói
consagrado volta para a sua comunidade trazendo benefícios e conhecimento para ela.
Eliade (Eliade, 2002, 154) em sua consagrada obra O xamânismo e as técnicas
arcaicas do êxtase apresenta as três fases expostas acima e caracteriza alguns tópicos
existentes na generalidade das técnicas xamânicas. Segundo ele antes da partida do
xamã ele tem que passar por uma fase chamada recrutamento, onde por meio de sonhos
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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iniciáticos ou doenças inexplicáveis, o xamã é recrutado e percebe sua excentricidade.A
partir deste momento, ele entra na fase conhecida como partida onde se marginalizará
da sua comunidade e viverá com seu chefe espiritual e os espíritos. Nesta etapa, sua
iniciação começa a ocorrer, com a obtenção de seus poderes xamânicos, seus símbolos,
indumentárias, curas mágicas e principalmente o que Eliade (Eliade, 2002, 184) chama
de ascensões celestes e descida ao inferno; onde o xamã faz o pacto com as divindades
celestes e do inferno, impondo limites e mostrando-se como um dominador dos poderes
mágicos, um ser sagrado e controlador do sagrado. Seria o momento único e máximo da
iniciação do xamã; terminando aqui seu treinamento.
Ao final deste percurso, o xamã pode fazer o seu retorno, para a sua
comunidade, sendo ele agora o manipulador do sagrado, o líder que faz a ligação entre o
mundo etéreo e o físico. Com sua volta, inicia-se uma fase que tem seu apoio, mas não é
promovida somente por ele, onde a comunidade, reconhecendo sua volta, começa a
admirá-lo e formar em torno dele a cosmologia do xamã, a doutrina religiosa, os
símbolos, os mitos e os ritos paralelos.
A partida do xamã.
Assim como o herói, o xamã se diferencia dos homens normais pela forma de
recrutamento que tem características únicas e especificas. Normalmente os métodos de
seleção são feitos de forma hereditária, por vocação espontânea, auto eleição ou escolha
pelo clã (comunidade). Esse escolhido entra em uma crise iniciática onde o xamã entra
em desequilíbrio e chega a perder sua identidade, mas essa crise e sofrimento são
necessários como uma condição para o herói e xamã. Através dessa crise, sofrimento e
dor ele sobe de status, adquirindo o nível de sagrado, a consagração que o leva a
segunda realidade.
Tia Neiva teve as primeiras experiências com aparição de espíritos numa fase de
normalidade em sua vida, e ela sofreu para aceitar essa nova missão:
Minha vida seguia o curso normal de uma mulher viúva aos 32 anos, quando
começaram os primeiros fenômenos de minha clarividência. Começavam também
as indecisões, e tudo que havia planejado em toda a minha vida se transformava
sem que eu percebesse, sentia apenas que tudo mudava (...). Foi o mais terrível
martírio, pela brusca transformação de toda a minha vida. Meus filhos, Gilberto.
Raul, Oscar, Carmen Lucia e Vera Lucia estavam na critica idade de estudos e
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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desenvolvimento. Renunciei a tudo porque somente uma lei passou a existir: O
DOUTRINADOR!(ALVARES, 1991:34.).
A iniciação do xamã.
Após a efetivação no cargo, o xamã/herói passa a receber instruções, as quais lhe
serão úteis na compreensão da cosmologia e atuação do mundo do sagrado e do
profano. Com um mestre que lhe é designado, aprende a teoria e a prática dos mitos, a
estruturação do universo, os rituais e as técnicas de êxtase. Dá-se assim, a sua iniciação.
Detentor do poder da cura e conhecedor de uma possível linguagem secreta,
proferida durante os rituais, o xamã, através da indução dos EAC seria, sobretudo capaz
de viajar pelos diversos planos astrais, de se comunicar e de dominar espíritos. Estes,
por sua vez, podem aparecer em sonhos, devaneios ou visões. Por esta razão, grande
parte do treinamento xamânico consiste em cultivar os EAC como forma de entrar no
mesmo plano vibracional do espírito para buscar auxílio ou obter conhecimentos.
Constata-se, desta forma, a função mediadora do xamã, interferindo na estrutura
bipolar e assimétrica da cultura que, de acordo com Bystrina (Bystrina, 1995, p.7)
resulta na separação entre o mundo dos espíritos (positivo) e a vida material (negativo),
onde o xamã atua como elemento ambivalente, possibilitando a comunicação entre as
duas esferas, na medida em que busca em determinado plano uma ajuda ou
conhecimento que irá aplicar em outro.
Há inúmeros relatos de adeptos do Vale que relatam os supostos contatos de Tia
Neiva com os espíritos. Nessas narrativas, podem-se observado nítido controle sobre a
maioria deles, que, no caso, seriam enquadrados na categoria de espíritos auxiliares.
Ocupando diversas posições hierárquicas, alguns dos espíritos e entidades do Vale do
Amanhecer incorporariam em Tia Neiva quando ela assim o permitisse. Nesse caso,
mais uma vez, o comportamento da clarividente corresponde ao de um xamã. Para os
fiéis, Tia Neiva era o que se poderia chamar de um médium universal. Embora
desempenhasse a função de apará (médium que no Vale é responsável pela
incorporação), ela também doutrinaria os espíritos. Ela os traria dos planos inferiores e
os mandaria para o Astral Superior.
Segundo o adepto Mário Sassi (Sassi, 1977, p. 149), certa vez, Tia Neiva
queixou-se de sua ignorância ao Pai Seta Branca. Ele, então, teria lhe prometido um
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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mestre para que, com ele, aprendesse novos fundamentos da doutrina. Sendo assim,
Neiva, um dia ao adormecer, supostamente saiu de seu corpo e se deslocou até o Tibete.
Quando deu por si, estava diante de um monge de olhos puxados e barba rala que, para
sua surpresa, falava em português. De acordo com entrevista com o médium Vladimir,
de Humahã pouco se sabe. Apenas que ele teria vivido recluso em um mosteiro de
Lhasa e, durante cinco anos, ministrado um curso para Tia Neiva.
Os ensinamentos de Humanhã e as constantes viagens extracorpóreas que Tia
Neiva afirmou ter feito até o Tibete revelam o processo de iniciação da clarividente.
Fica claro, também aqui, o ―rito de marginalidade‖ do xamã, citado por Bystrina
(Bystrina, 1995, p.7). Tia Neiva, para receber instruções de seu mestre, precisaria sair
do convívio de seus amigos e de seus familiares. Em espírito, viajaria para um local
distante, retirado de seu local de origem.Tia Neiva teria realizado algumas viagens ao
planeta Capela na intenção de consolidar seu aprendizado. Em estado etéreo, viajaria
sozinha ou em disco voadores – também conhecidos como chalanas – guiados por
capelinos. No livro 2000 -a conjunção de dois planos, um desses encontros é narrado
pelo adepto Márcio Sassi:
No mesmo instante ela sentiu-se transportada para o interior de uma nave, muito
parecida com aquela em que estivera antes. Na complicada cabine havia outro
capelino que lhe foi apresentado por Johnson com o nome de Eris. Enquanto
falavam, os dois manipulavam alavancas e botões. Abriu-se então uma enorme
comporta e Neiva se extasiou com o que viu. Ali bem perto, como se estivesse ao
alcance de suas mãos, estava Capela (...). Neiva, fascinada, continuava olhando
Capela, observando cada detalhe. Cada vez mais maravilhada com o jogo de
luzes, Johnson continuou:- A missão fundamental de Capela, no momento, é
presidir a transição do segundo para o terceiro milênio da fase atual da Terra.
Haverá uma grande mortalidade e, ao mesmo tempo, será lançada uma nova
civilização que irá fazer jus à evolução alcançada por esse planeta ( ...) ( SASSI,
1977, p. 99 ).
A suposta viagem ao planeta Capela – localizada no Astral Superior – segue ao
trajeto oposto ao da experiência que Tia Neiva teria tido ao penetrar nos Planos
Cavernosos. Por instrução de Pai Seta Branca, a clarividente deveria fazer as pazes com
os inimigos para que pudesse dar continuidade ao plano iniciático. Outro trecho do livro
autobiográfico descreve tal passagem:
Então, já no terceiro ano de conhecimentos, ao lado de Humahã, segui até as
cavernas a pedir paz e amor aos reis nos submundos (... )Entrei num suntuoso
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
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castelo, tudo era riqueza e não me foi difícil saber que estava diante do trono de
um suntuoso rei, Exu Sete Flechas ( ... ) Dois grandes homens com pequenos
chifres me seguraram pelo braço num gesto deprimente, enquanto o rei vociferava
( ... )E virando-se para mim foi dizendo: “Sua pretensão é muito grande em querer
acordo quando não tem nem mesmo um povo para defender!” ( ...) “ Já sei muito
bem de suas intenções”, disse ele, “ eu me comprometo de não penetrar em sua
área, para lhe fazer sentir a minha força” ( apud ÁLVARES, 1992, p.85).
O processo de inversão, identificado por Bystrina (Bystrina, 1995, p.9) como um
dos Padrões de Solução para a assimetria da cultura, aparece como uma constante na
Doutrina do Amanhecer. Como se pode confirmar na citação acima, Tia Neiva, a rude
caminhoneira, em uma de suas encarnações, é tida, pelos adeptos do Vale, como
Cleópatra, rainha do Egito. Tal inversão também se dá no mundo das entidades. Pai Seta
Branca, retratado com um índio que fala espanhol, diferencia-se, em sua linguagem
cármica, dos outros espíritos. De acordo com os adeptos, na última encarnação, o
mesmo foi São Francisco de Assis. Quanto aos fies, estes garantem que foram
guerreiros, príncipes e magos.
As viagens em estados extáticos de Tia Neiva podem ser identificadas com a
passagem pelo limiar do herói. Comumente associada a uma espécie de morte
provisória, a vivência do êxtase propicia ao xamã o contato com o desconhecido, com o
obscuro e, em seguida, o seu renascimento. Com a iniciação, o xamã geralmente recebe
um novo nome. Tal situação é também uma metáfora da morte simbólica. O xamã
morre para uma vida anterior e adquire outra denominação, uma nova identidade.
Depois de uma série de pretensas viagens a diferentes planetas e mundos
espirituais, ocorridas durante os cinco anos de curso ministrado por Humahã, Tia Neiva,
conforme relatos, foi consagrada com o nome de Koatay 108, no dia 30 de dezembro de
1972. Fala-se entre os adeptos que o número 108 diz respeito aos 108 mantras recebidos
por Tia Neiva dos planos espirituais. Esse número sugere, ainda, a imagem de 108
diamantes luminosos cravejados em uma coroa invisível aos olhos comuns, posta sobre
a cabeça de Tia Neiva, a partir daquele momento, segundo os fies44.
44
ÁLVARES, Bálsamo. Tia Neiva – Autobiografia missionária. Brasília: [do autor], 1992.
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O retorno do xamã.
O xamã após passar por todas as fazes e provas necessárias, assume e obtém o
reconhecimento e regressa para o seu povo, como diz Campbell (Campbell, 1996,
p.195):
Terminada a busca do herói (...) o aventureiro deve ainda retornar com seu
troféu transmutado da vida. O circulo completo, a norma do monomito, requer
que o herói inicie agora o trabalho de trazer os símbolos da sabedoria, o
Velocino de Ouro, ou a princesa adormecida, de volta ao reino humano, onde a
bênção alcançada pode servir à renovação da comunidade, da noção, do
planeta ou dos dez mil mundos.(CAMPBELL, 1996:195)
Assim começa o rito de agregação, onde o xamã retorna ao seu grupo, ou
comunidade de origem, trazendo conhecimentos diversos que servirão de benefícios
para a comunidade. É aí que ele assume uma natureza com duas essências, humana e
divina, fazendo as graças e favores esperados.
Tia Neiva após sua iniciação e viagens em todos os planos espirituais reuniu
todos os conhecimentos e informações necessárias para ser o xamã do Vale. Ela tornouse indiscutivelmente a figura central no Vale, todos encontravam na clarividente cura,
explicações, consolo para os males da vida. Conquistando assim perdão pelas faltas
dessa vida e das reencarnações passadas, além de promessa de salvação e o advento do
terceiro milênio. Com isso a esperança e paz em dias melhores num futuro bem próximo
era o maior beneficio que Tia Neiva conseguia plantar no coração dos adeptos do Vale
do Amanhecer.
O espaço sagrado.
O líder xamânico precisa de um espaço próprio para fazer seus rituais, onde esse
local receberá características especiais e sacramentais para receber o sagrado:
(...) há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência “forte”, significativo, e
há outros espaços não sagrados, e por consequência sem estrutura nem
consistência, em suma, amorfos. Mais ainda: para o homem religioso essa não
homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre o
espaço sagrado – o único que é real, que existe realmente – e todo o resto, a
extensão informe que o cerca (ELIADE, 1992:91).
Na história do Vale encontrei uma característica diferente, pois na escolha do
terreno, Tia Neiva teria recebido do próprio Pai Seta Branca a localização, pois segundo
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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o Vale, assim como o Planalto Central, está situado em um local extremamente
energizado e místico, isso por uma profecia de Dom Bosco que é um padre da igreja
católica, em que dizia que o mundo inteiro como limiar, o Planalto Central é o umbigo
da terra45.
Essa profecia é contada e recontada diariamente dentro do Vale, e valendo-se
dela os adeptos de Tia Neiva constroem uma atmosfera de misticismo. Os adeptos
adotaram essa profecia com muita facilidade, pois acreditam ser o inicio de uma
civilização sem dor ou sem sofrimento, segundo eles o Vale é o local escolhido para a
chegada do terceiro milênio, por isso o mais próximo do paraíso.
Eliade (Eliade, 1992, 26) relaciona claramente essa ideia de espaço da
comunidade como centro do mundo com o sagrado, onde os locais sagrados são sempre
identificados como centro do mundo, reveladores de outra realidade e por isso
hierofânicos, realizando a ligação de níveis cósmicos: mundo divino, mundo dos vivos e
mundo dos mortos. E no Vale do Amanhecer existe essa divisão, pois os adeptos
acreditam que nos espaços coletivos (templos) esses três espaços se comunicam através
de trabalhos feitos pela grande xamã (Tia Neiva) e seus adeptos.
Os adeptos do Vale acreditam que o universo é formado por vários mundos que
são habitados por vários espíritos encarnados ou desencarnados, em diferentes estágios
de evolução. O planeta terra seria um plano intermediário entre os planos superiores
(astral superior) e o plano inferior (planos cavernosos e astral inferior).
A antropóloga Galinkin (Galinkin, 1997, 26) classificou esses planos da doutrina
do amanhecer, organizados por Tia Neiva, na seguinte estrutura: o astral superior é
dividido em quatro planos conhecidos como: Estrela Manhante (habitam os espíritos
mais evoluídos), Pedra Branca (local onde todo espírito passaria sete dias após uma
encarnação), Canal Vermelho (mais parecido com a terra) e Capela (planeta onde vivem
os espíritos encarnados e mais adiantados no estado evolutivo).
Além desses quatro principais existem outras divisões que devem ser citadas
como o Hospital da Recuperação, uma espécie de plano de partida para a Capela e o
Vale das Sombras (no astral inferior) onde estariam situados espíritos sofredores.
Eliade (Eliade, 2002, 34) fala nos arquétipos celestiais de territórios, onde
“muitos povos construíram suas cidades e templos baseados em modelos celestiais, o
que por si só já seria um reflexo da estruturação social humana em classes, em castas e
45
SASSI, Mário. 2000 – A conjunção de Dois Planos. Brasília: [do autor], 1977.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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espaços definidos”. No Vale essa transposição é real; segundo os adeptos a divisão
espacial do templo elíptico (Templo do Amanhecer) seguiria modelos dos mundos
espirituais, os castelos e salas representariam as encarnações passadas pelos adeptos
como a Cruz do Caminho que é uma lembrança da encarnação egípcia e o Oráculo do
Pai Seta Branca (destinado a incorporação dessa entidade) remete a encarnação inca.
Canto sagrado.
Existe um consenso entre a maioria dos antropólogos que estudam o xamanismo
de que o canto é a forma de comunicação do xamã e seus auxiliares, onde ocorre a
transmissão de palavras para outro plano. A oração do xamã é usada para produzir o
êxtase e promover as comunicações com os planos espirituais e por isso estão presentes
em quase todas as sessões xamânicas, sendo indispensáveis para os rituais do Vale do
Amanhecer. Por isso Tia Neiva escrevia todos os mantras do Vale, usados até hoje, em
todos os rituais.
Cada médium do Vale, ao fechar ou abrir trabalho, deve proferir a sua emissão.
Essa emissão serve como uma identificação ao mundo espiritual, pois nela se encontra
todas as vidas passadas do adepto e também todos os cargos conquistados por ele aqui.
A oração de Tia Neiva é a mais destacada dos demais, ela lembra muito uma oração
católica.
O gestual.
O xamã é o ponto intermediário entre o divino e os homens, por isso faz de seu
corpo uma representação entre o físico e o espiritual. Para fazer valer isso, ele segue um
conjunto de regras que irá dirigir seus gestos e movimentos, com finalidade de
demonstrar e assegurar ao máximo esse contato.
Sabendo da existência de inúmeros rituais e incorporações existentes no Vale
durante seu dia – a – dia, podemos destacar algumas dessas incorporações e as formas
de gestos e estereótipos que Tia Neiva usava e que são reproduzidos até hoje por seus
adeptos quando incorporados.
Ela movimentava-se de acordo com o espírito incorporado, lembrando que
algumas entidades têm características em comum com as da umbanda. Quando estava
incorporada com um espírito aflito ela retorcia os dedos das mãos e apresentava uma
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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voz aflita e grave. Quando incorporada por um preto velho tinha um semblante tranquilo
e sereno, com voz e gestos carinhosos. E quando incorporada de um caboclo,
apresentava gestos fortes e agressivos, com tapas no peito e voz forte e alta46.
A indumentária.
O antropólogo André Leroi-Gourhan (Leroi-Gourhan, 1990, 166) destaca que o
vestuário e os acessórios decorativos são os primeiros graus de reconhecimento social,
onde nele tem que estar representado toda a solenidade que aquela pessoa deve mostrar.
No caso de um traje para um líder religioso, no nosso caso um xamã, esse traje tem de
ser o prolongamento do templo, inspirado nas formas e majestade dele, demonstrando
assim o domínio do xamã sobre o ambiente e todo o ritual que ocorre ali dentro. Assim,
o xamã é parte do templo, sem ele nada acontece, ele é o manipulador da energia e
própria fonte de energia.
O traje é sagrado e rompe, opõe e se destaca com a realidade profana que o
cerca; interagindo com os gestos do líder formando uma identidade única, servindo para
lembrar dos mitos e ritos. As vestes do xamã exercem de alguma forma um poder sobre
a sociedade, seja através do medo, respeito, fascínio ou outro sentimento. Pode-se
observar que Tia Neiva sabia disso, pois no Vale existem uniformes diversos para cada
tipo de trabalho, e é seguida uma hierarquia existente na doutrina. Todas as jóias
presentes nas vestes também mostravam uma força, onde as mesmas eram
encomendadas por Tia Neiva ao ourives e adepto da doutrina eram recebidas por ele de
forma mediúnica, sempre representando um símbolo ou representando algo existente no
Vale ou nos templos.
BIBLIOGRAFIA.
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46
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MEMÓRIA DO SAMBA E NEGRAS RELIGIÕES –
MUSICALIDADE E IDENTIDADE
Anderson Leon Almeida de Araújo47
Leila Dupret48
Resumo: A Música nas religiões de matriz afrobrasileira ocupa privilegiado destaque
em seu rito e conjunto de mitos, exerce mais que uma função de fundo no rito, ocupa
destacado fator primordial a realização deste - porta o axé, conduz os orixás, marca as
tarefas diárias e a vida do religioso - e, deixa marcas no grupo de fiéis. O Samba, uma
entre tantas manifestações culturais influenciadas pela tradição africana no Brasil,
compartilha de vários referenciais característicos da musicalidade dos terreiros, dos
instrumentos em comum à formação em roda. Sambistas, macumbeiros ou não, trazem
na memória influências ofertadas pela convivência afroreligiosa, seus relatos contam os
passos das festas, os ritmos dos atabaques, e a fé naqueles que os protegem no trajeto
aos palcos.
Palavras-Chave: Pós-Abolição; Cultura Afrobrasileira; Diálogos.
Introdução – Religião e Aparato Musical:
As religiões afrobrasileiras representam exatamente a manifestação de
uma cultura que chegou ao Brasil, através, e todo mundo sabe disso,
do processo de escravidão. E a única fuga dos representantes dessa
religião (...) foi essa manifestação, que eles sabiam que tinham como
se confortar, lembrando da terra, trazendo essa lembrança da terra
deles, uma maneira de esquecer de todo esse sofrimento que eles
passavam aqui, nesse período de opressão, que é o período de
escravidão, esse período de ausência, de dor, de morte, de uma série
de injustiças que todo mundo soube que houve nesse período. Então a
religião sempre foi, independente até de ser afro, a religião foi o meio
de você se encontrar mais forte, e essa a maneira que eles tinham pra
esquecer a dor deles: relembrar os ritos que eles desenvolviam que os
47
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq/UFRRJ;
Discente concluinte do curso Licenciatura em História, vinculado ao Departamento de História e
Economia do Instituto Multidisciplinar/ Campus Nova Iguaçu - UFRRJ.
E-mail: [email protected]; Telefone: 21-9236-6451;
48
Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, lotada no
Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar, no campus de Nova Iguaçu, sendo
professora do curso de História. É membro do Laboratório de Estudos Afrobrasileiros – LEAFRO.
E-mail: [email protected]; Telefone: 21-9400-6529;
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aproximava a pátria que eles largaram, largaram não, tiraram deles, e
aqui eles usaram, para se aproximar da raiz deles, que é a pátria.
(Entrevista do sambista Paulo Roberto, o Professor, a esta pesquisa em
17 de março de 2012).
De etnias distintas, de tribos diversas, durante centenas de anos, milhares de
mulheres e homens africanos foram trazidos à América, em um processo bordado de
lágrimas e sangue, ficando conhecido como um dos capítulos mais dolorosos da recente
história do ocidente: a escravidão na era moderna. Raptados de seu cotidiano por um
cruel sistema de trocas entre europeus, americanos e africanos, esses indivíduos viramse despojados de sua terra, habitação e família, lesados em sua condição humana, e
torturados pelas lembranças do passado e pelas incertezas do futuro. Estes homens e
mulheres, usurpados e escravizados, cruzaram a contragosto o oceano, e muitos, em
portos brasileiros desembarcaram. O processo de escravidão, não termina no porto, mas
perdura, movido a ideologias e chibatas, e quando finda legalmente a escravidão no
Brasil, o negro e sua cor, ideologicamente, são vistos como os sinônimos de atraso das
gentes desta nação.
Embarcados à revelia, adquiridos como objetos, propriedades do mercado,
os africanos que aqui chegaram desnudos de vestes e posses materiais, trouxeram, não
apenas retratos de um passado, como em imagens que se desgastam com o tempo, mas
um conjunto incomensurável de saberes, valores e tradições. Estes bens imateriais, em
processo de lutas e hibridações, marcaram de preto a cultura brasileira, engrossando o
caldo das manifestações culturais e artísticas, transbordando valores e tradições e
metamorfoseando símbolos e significados. Eis o paradoxo do fenômeno da diáspora: em
um trajeto de sofrimento, as cores e sons das cidades e campos africanos, fundaram em
mescla a civilização brasileira. Em artimanha de Exu, pelo mesmo caminho, os
ancestrais divinizados das etnias daquele continente, aportaram nos terreiros e oris de
diversos cantos das Américas.
Ancestrais, temperos, palavras e sons, dançaram em um jogo de lutas
sociais, onde ao lado das senzalas e quilombos, os terreiros de cultos afrobrasileiros
ocuparam importante destaque como espaços de convivência e solidariedade. Em
diversas localidades do país, esses terreiros, para além da função religiosa, congregaram
diversas ações de sociabilidade, e deram origem ou viram surgir em seu entorno, ou
entre os seus membros, diversas manifestações artísticas e profanas, como o maracatu, o
jongo, o samba. Para além, as tradições afroreligiosas serviram de inspiração e temática
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para inúmeros artistas, incluindo dezenas de músicos, que utilizaram as questões
cotidianas que cercam os cultos, como também sua estética, para a execução de suas
obras. Este trabalho, especialmente se envereda pelo trilho da música, embalado pelas
trilhas de samba.
Da festa religiosa em que o mito é revivido à encenação festiva de um
enredo de carnaval, ou cortejo de maracatu, transpassa a musicalidade negra. E são nas
festas religiosas e profanas, que se podem observar com destaque a imprescindível
musicalidade negra. Tinhorão (2008) analisa várias fontes que traçam a história dos
‗Sons dos Negros no Brasil‘, onde, em relatos de brancos, os negros se reúnem em seus
‗batuques‘, festejos baseados nos toques das percussões e movimentos lascivos dos
corpos, com motivos religiosos ou profanos. Da mesma forma, argumenta que as
palavras calundus e lundus designavam tanto as reuniões religiosas negras, quanto as
festas por estes realizadas. Nina Rodrigues (1935) também articula semelhante debate
quanto à expressão candomblé, quando define que este termo é válido para designar
―todas grandes festas do culto iorubano, qualquer que seja a sua causa‖ (p.141).
Amaral & Silva (1992) exploram o cenário musical estabelecido nos
terreiros, expondo os sons deste universo: das festividades públicas, como os ‗toques‘ e
‗saídas de iaô‘; passando pelas questões que cercam a estrutura musical, como os
instrumentos utilizados, a importância dos alabês, e os ritmos e repertórios empregados
por distintas tradições; até a importância ritual da música, como elemento ordenador do
culto e que marca a identidade do fiel. Concluí-se que o som revestido de ritmo está
presente em todos os momentos da vida ritual, do cotidiano em comunidade às
festividades abertas, entoado de palmas, atabaques, agogôs, cabaças, chocalhos e adjás,
marca as atividades diárias, o processo de iniciação, denota hierarquias, transporta axé e
conduz os orixás e suas danças ao chão do terreiro.
Em trabalhos semelhantes, Amaral & Silva (2006) e Araújo & Dupret
(2012), foram expostas desde questões musicais presentes no terreiros de candomblés,
até a consequente influência desta linguagem musical-religiosa em muitas das
manifestações musicais profanas dos grupos negros: desde suas reuniões festivas
durante a escravidão, presentes em escassos vestígios do passado musical colonial, até o
surgimento da gravação de Long Players e o fenômeno radiofônico no Brasil, quando
compositores e intérpretes, ‗macumbeiros‘ ou não, fizeram sucesso com letras que
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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remetem à tradição negro-religiosa. Sobre o samba em específico Amaral & Silva
(2006), completam:
No caso do samba — bom exemplo por sua relevância e presença
como um dos elementos constitutivos do gosto nacional e da
identidade brasileira —, sabe-se que sua origem está ligada à
religiosidade dos grupos bantu trazidos para o Brasil. Esse ritmo,
tocado sobretudo em terreiros de candomblé de angola (que enfatizam
uma identidade de origem bantu) e, posteriormente, na umbanda,
constitui um dos principais elementos de identidade de ambas as
religiões. Sendo música religiosa, o samba enredou-se, apesar disso,
nos espaços profanos, num intenso fluxo de trocas simbólicas entre as
religiões afro-brasileiras e a sociedade. No Rio de Janeiro este
entrelaçamento é perceptível pelo menos desde as primeiras décadas
do século XX, quando dos núcleos religiosos surgiram compositores
que consolidaram esse estilo musical e o disseminaram entre o grande
público.
Papo de Terreiros – Sobre o Nascimento do Samba:
Deste sistema de trocas entre o universo sagrado e profano que ocorria, e
ainda ocorre, segundo relatos de Monique Augras (1998) e Rita Amaral (2005), nos
terreiros das tradições negro religiosas, presenciamos o surgimento da roda de samba,
manifestação cultural e artística da população pobre fluminense, e junto com a roda,
inúmeros artistas, homens e mulheres, iniciaram suas carreiras como músicos
profissionais: como percursionistas, outros como letristas, e alguns como interpretes. De
certa forma que, ao percorrer alguns pontos da história dessa manifestação musical,
facilmente constatamos a influência de um aparato religioso presente nos sons e letras.
Podemos observar, aqui em pequenos flashes, a influente participação de
compositores como Donga, João da Bahiana, Sinhô ―O Rei do Samba‖, J. B. de
Carvalho, Candeia, Romildo Bastos, Toninho Nascimento, Martinho da Vila, e
interpretes como Jovelina Pérola Negra, Clara Nunes e Zeca Pagodinho. Estes são
alguns poucos dentre tantos da velha guarda e das novas gerações que, atravessados
pelo viés religioso, representam as tradições culturais africanas presentes nos terreiros
brasileiros, no cenário midiático, onde estes grupos não adentraram senão nas notícias
recorrentemente vinculadas ao caderno policial dos jornais até as primeiras décadas do
novecentos.
A batida sincopada, característica particular dos ritmos negros, e que vai
transformar o cenário musical do novo continente, a muito havia conquistado os corpos
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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dos brasileiros, que já haviam se entregado a outros gêneros musicais afrobrasileiros,
como o lundu, o fado, o maxixe49. Mas o samba, por uma série de questões políticas, foi
elencado como um dos símbolos de identidade nacional, sendo patrocinado e divulgado,
em sintonia com os ideais de afirmação da mestiçagem em voga na primeira metade do
século XX. Desta maneira, inúmeros símbolos da antes tão reprimida religiosidade
negra, estavam presentes nas mais tocadas músicas, dos discos mais vendidos.
Em ―Pelo Telephone‖, samba com fortes influências do maxixe, de
composição de Mário de Almeida e Donga, interpretado por Bahiano em 1917, e
lançado pelas Casas Edison, abordam-se as temáticas da festa carnavalesca embebida de
samba e folia, mas também em uma de suas estrofes a questão do ―feitiço‖ de amor,
notadamente em referências a práticas cotidianas de cunho religioso daquele grupo.
Questão religiosa que extravasa em ―Yaô‖ de Pixinguinha50 e Gastão Viana,
interpretado por Patrício Teixeira em 1938:
Aqui có no terreiro/ Pelú adié/ Faz inveja pra gente/ Que não ten
mulher// No jacutá de preto velho/ Há uma festa de Yaô// Ôi tem nêga
de Ogum/ De Oxalá, de Iemanjá/ Mucama de Oxóssi é caçador/ Ora
viva Nanã/ Nanã borocô// Yô yôo/ Yô yôo/ No terreiro de preto velho
iaiá/ Vamos saravá (a quem meu pai)/ Xangô (Yaô Africano de
Pixinguinha e Gastão Viana)
De certo modo, estes primeiros sambistas de sucesso – Donga, Sinhô,
Bahiano, Pixinguinha e João da Baiana – eram crias das casas das velhas baianas que na
capital brasileira se estabeleceram, e fundaram em cortiços, suas casas de culto. Fica
clara a influência religiosa neste primeiro grupo de sambistas, que compunham suas
canções dentro do ambiente festivo e sagrado dos terreiros dessas mães de santo, e
porque não, do samba.
Alguns coetâneos historiadores, como Tiago de Melo Gomes (2003),
questionam o mérito recebido pela comunidade baiana, principalmente vinculada a
imagem de Tia Ciata D‘Oxum, pelo nascimento do Samba, visto que a historiografia
sobre o samba fora influenciada pelo processo político envolvido na busca de uma
identidade brasileira mestiça, onde procurou-se um elo de pureza africana nas
comunidades afroreligiosas, principalmente as nagôs, e na consequente ligação das
49
Ver mais em: TINHORÃO, José Ramos. Os Sons dos Negros no Brasil – Cantos, Danças, Folguedos:
Origens. São Paulo, Editora 34, 2008.
50
Para ver mais sobre Pixinguinha: BESSA, Virgínia de Almeida. Imagens da Escuta: Traduções
Sonoras de Pixinguinha. In: História e Música no Brasil. SALIBA, Elias Thomé & MORAES, José
Geraldo Vinci de (Orgs.). São Paulo, Alameda, 2010, p. 163 -216.
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raízes desta tradição com as figuras do Baiano e da Baiana. Esse autor afirma a total
participação nos movimentos culturais cariocas, dos negros migrantes das decadentes
zonas cafeeiras e mineiras do interior do estado do Rio de Janeiro e Minas Gerais, dessa
forma, não podemos negligenciar a memória de tantas outras tradições que também
organizavam seus encontros religiosos e festas profanas, vide movimentos como a folia
de reis, o caxambu, o jongo, a congada, etc.
Não podemos perder de vista neste capítulo inicial da formação do samba, a
própria etimologia da palavra, que é corruptela de semba, expressão ligada às tradições
religiosas da nação Angola. De origem Bantu, o samba, que antes de alcançar as rádios,
era praticado na zona rural, estava vinculado a prática da umbigada, característica
perdida no lundu e no maxixe, ambos ritmos negros, mas que perderam muito de sua
‗bárbara‘ característica ao serem adotados como trilha sonora dos bailes e festejos
brancos. Para além destes dados musicais, outra influência bantu está na presença da
Roda, princípio motriz da música em comunidade51. Com a constante migração para o
meio urbano da capital, tanto os baianos, quanto mineiros e fluminenses,
compartilharam os locais por negros frequentados: os cortiços, arrabaldes, morros e
favelas. Para além de suas moradias, estes grupos negros realizavam seus encontros em
momentos de festa, como o carnaval e a festa da Penha.
Podemos finalmente considerar, que o samba surge de um contexto
complexo, onde trocas culturais eram realizadas e, disputas políticas travadas, porém, de
raízes angolanas ou iorubanas, fica patente as influências religiosas em sua gestação,
influência esta, que não irá se perder no desenvolvimento junto a mídia, que se seguirá.
A contribuição dada pela vida religiosa na formação de instrumentistas –
alabês – e interpretes, contribuiu para o desenvolvimento de inúmeras formas musicais,
como já vimos antes, da mesma maneira que interferiu no desenvolvimento do samba.
A vida na comunidade de terreiro também proporciona reuniões festivas, espaços de
lazer, momentos de certeiro desenvolvimento musical. Em última instância os membros
da comunidade do terreiro se identificam com as canções de samba, e consomem seus
produtos, deste modo, a existência de temáticas afroreligiosas em muitas letras não é
apenas uma questão de identidade do artista, mas também, um assunto que envolve o
mercado.
51
Mais informações sobre a Roda e sua importância para o grupo dos sambistas, consultar: MOURA,
Roberto M. No Princípio, era a Roda: Um Estudo sobre Samba, Partido-Alto e outros Pagodes. Rio de
Janeiro, Rocco, 2004.
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Alguns artistas produziram seus discos em função ao público das casas de
umbanda e candomblé, caso de J. B. de Carvalho, que compôs e gravou ‗macumba‘,
‗estilo musical‘ notadamente religioso, onde as letras estavam voltadas para o ritual de
umbanda, e onde muitas de suas músicas estavam compostas em ritmos de samba. Com
uma carreira de 40 anos dedicada ao rádio, J. B. ao lado de sambistas do nipe de
Herivelton Martins compôs dezenas de pontos de macumba, além de se dedicar a
programas de rádio voltados ao público dos terreiros. Estas canções ainda hoje fazem
parte do repertório de inúmeras casas de umbanda no Rio de Janeiro e Baixada
Fluminense, sendo certo o consumo destas obras por parte do grupo religioso
afrobrasileiro.
Para além dos dados já apresentados aqui quanto a algumas questões que
denunciam o enlace entre o sagrado e o profano do mundo dos terreiros – de samba e
candomblé – muitas foram as formas em que as tradições afroreligiosas serviram como
fontes de aparato artístico-cultural, nesse sentido, as composições musicais são
diretamente influenciadas. Instrumentos, letras, melodias, a influência religiosa
extravasa as relações envolvidas coma origem do gênero musical ‗samba‘, neste caso,
percebemos o quão íntimo é o entrosamento entre as práticas sagradas com e nos
movimentos musicais profanos.
Papo de Terreiros – Letras, Composições e Interpretes:
O Rum, Rumpi e Lé, sacralizados nos candomblés, e outros instrumentos de
percussão utilizados nestas manifestações, são símbolos da musicalidade africana, que
tem na síncope a sua característica principal. Já foi dito em capítulo introdutório a
importância da musicalidade no cotidiano da comunidade religiosa, bem como em seus
ritos, seus instrumentos são portadores de axé, conduzem através de suas batidas os
orixás ao mundo dos humanos, ao xirê. Estes mesmos instrumentos, acompanhados do
aparato melódico da viola, serão marcas fundamentais na prática do samba. Algumas
vezes, dado o caráter religioso da canção, as percussões usuais – Reco-Reco, Pandeiro,
Tan-Tan – serão substituídos pelo sagrado compasso dos atabaques, este é o caso das
composições ―Nanaê Nanã Naiana‖ de Sydnei da Conceição e, ―Cabocla Jurema‖ e
―Sindorerê‖ do genial compositor Candeia.
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Iansã cadê Ogum?/ Foi pro mar// Mas Iansã penteia seus cabelos
macios/ Quando a luz da lua cheia/ Clareia as águas do rio/ Ogum
sonhava/ Com a filha de Nanã/ E pensava que as estrelas/ Eram os
olhos de Iansã// Mas Iansã, cadê Ogum?/ Foi pro mar// Na terra dos
orixás/ O mar se dividia/ Entre um Deus que era de paz/ E outro Deus
que combatia/ Como a luta só termina/ Quando existe um vencedor/
Iansã virou rainha/ Da coroa de Xangô// Mas Iansã, cadê Ogum?/ Foi
pro mar. (A Deusa dos Orixás de Romildo Bastos e Toninho
Nascimento)
A letra citada acima, de autoria de Romildo Bastos e Toninho Nascimento é
uma entre tantas composições com a temática afroreligiosa presente no trabalho de
ambos compositores que por muito tempo se dedicaram em letras que alcançaram amplo
sucesso na voz de Clara Nunes, neste caso, ―A Deusa dos Orixás‖ é uma canção que
revive um mito iorubá, onde reinam os conflitos que envolvem amor e tristeza. Na lista
de sucessos da dupla de sambistas encontram-se ainda ―Conto de Areia‖, ―Menino
Velho‖, ―Fuzuê‖, ―Senhora das Candeias‖, ―Congada‖, todas interpretadas por Clara
Nunes; ―Aroeira‖ gravada na voz de Elizete Cardoso; e com outros parceiros, Romildo
gravou ―São Jorge da Costa da Mina‖, canção já citada no início deste texto, composta
em dupla com Sérgio Fonseca, e ―Batuque de Semba‖ com Alex e Paulinho Rezende,
estas duas últimas gravadas por Agepê.
Outro sambista que se caracterizou por compor canções de temática negroreligiosa fora Candeia52, portelense, é dele o samba enredo ―As Seis Datas Magnas‖,
famoso campeonato da agremiação de Oswaldo Cruz e Madureira. Dentre seu acervo
musical, enumeram-se grandes sucessos, entre eles: ―Saudação a Toco Preto‖, ―Cabocla
Jurema‖, e ―Sindorerê‖, este último gravado por Clara Nunes. Candeia lutou em sua
vida para que o samba reencontra-se as raízes que, segundo ele, haviam se perdido com
o processo de comercialização passado pelas escolas de samba, fundando assim, em
contraponto, o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo
(GRANES Quilombo). Dentre as belas letras do poeta da Portela, encontra-se uma
pérola, ―Cabocla Jurema‖, uma autêntica saudação aos caboclos da umbanda, letra que
trata de um amor não correspondido, mal resolvido, entre a cabocla e um jovem
violeiro, que por ela se apaixona, tendo sonhos e vertigens em que a mata é o cenário, e
a cabocla é o motivo.
52
Para saber mais: VARGENS, João Baptista M. Candeia: Luz da Inspiração. Rio de Janeiro, Almádena,
2008.
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Outro grande compositor que explora o campo religioso em sua expressão
musical é Martinho da Vila, que para além de todo seu engajamento em levar a África e
o africano ao centro das atenções – desde seus primeiros discos com canções do folclore
angolano, até aos enredos carnavalescos da agremiação a qual faz parte, a Vila Isabel,
onde o maior exemplo foi o genial enredo ―Kizomba – A festa da raça‖, campeão dos
desfiles cariocas de 1988 – dedicou uma faixa do seu disco ―Canta, Canta Minha Gente‖
de 1974 à um pot-pourri de pontos de umbanda, intitulado com toda a propriedade de
―Festa de Umbanda‖, onde cantou-se de Tranca-Rua à Sete Flechas, em um verdadeiro
xirê de sons e batuque. Para além desta, gravou outras duas festas: ―Festa de
Candomblé‖, com direito a paó saudando oxalá, e ―Festa de Caboclo‖, outro pot-pourri
de pontos de terreiro, exclusivamente dedicados aos caboclos. Martinho ainda compôs
outras várias canções que remetem à questão do negro e de sua cultura, principalmente
remetendo a sua recorrente Angola, como é o caso do ―Semba dos Ancestrais‖, uma
parceria com Rosinha de Valença:
Se teu corpo se arrepiar/ Se sentires também o sangue ferver/ E a
cabeça viajar/ E mesmo assim estiveres num grande astral/ Se ao pisar
no solo o teu coração disparar/ Se entrares em transe sem ser da
religião/ Se comeres fungi quisaca e mufete de carapau/ Se Luanda te
encheres de emoção/ Se o povo te impressionar demais// É porque são
de lá os teus ancestrais/ Podes crer no axé dos teus ancestrais/ Podes
crer no axé dos teus ancestrais/ Ô ô ô ô ô ô ô ô/ Podes crer no axé dos
teus ancestrais. (Semba dos Ancestrais de Martinho da Vila e Rosinha
Valença).
Clara Nunes foi com certeza a grande interprete dos sambas com motivos
religiosos provenientes das roças e barracões de candomblé, sendo a grande interprete
de Toninho e Romildo, como de tantos outros sambistas que se enveredaram por este
caminho. São vários os textos e artigos53 que tratam dessa jovem cantora que faleceu
cedo ainda em 1983, com 39 anos. A mineira guerreira dedicou grande parte de sua
carreira ao samba, principalmente aquele com temática afro-religiosa, sendo ela mesma
seguidora dessas tradições religiosas, levou suas interpretações ao grande cenário
musical nacional, ao ser a primeira mulher a vender cem mil discos. Além das músicas
de sucesso escolhidas a dedo, suas roupas características, seus colares e fios de contas,
53
Sobre Clara Nunes: BAKKE, Rachel R. B. Tem Orixá no Samba: Clara Nunes e a presença do
Candomblé e da Umbanda na Música Popular Brasileira. Religião e Sociedade, vol. 27, nº 2, Rio de
Janeiro, ISER, 2007, p. 85-113.
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torso, pano da costa, e cabelos encrespados, enfeitados por conchas e flores, foram suas
marcas características.
Jovelina Pérola Negra, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Serginho Miriti,
Mauro Diniz, Almir Guineto e Jorge Aragão, entre outros pagodeiros, crias das rodas de
samba do Cacique de Ramos, compõe uma nova geração que desponta para o sucesso
na década de 1980. Sambistas, pagodeiros, letristas e intérpretes, que sob a sombra da
tamarineira, compuseram verdadeiras obras de arte, entre elas ―Águas de Cachoeira‖ de
autoria de Jovelina, Labre e Carlito Cavalcanti:
Lá na pedreira/ Rola da cachoeira/ Uma água forte/ Pra me banhar//
Ela me enche de fé/ Me dando um banho de paz/ Bebo dela no coité/
E vejo o bem que me faz/ Água de beber/ Água de molhar/ Água de
benzer/ Água de rezar// Lá na pedreira/ Rola da cachoeira/ Uma água
forte/ Pra me banhar// Na boca da mata/ Tem chave de ouro/ Tem
pedras de prata/ E aves de agouro/ Tem um doce mistério/ Que eu não
sei contar/ Eu só sei dizer pra você/ Que meu pai mora lá. (Águas de
Cachoeira de Jovelina Pérola Negra, Labre e Carlito Cavalcanti).
E a recente música de Dudu Nobre e Zeca Pagodinho ―Vou botar teu nome
na Macumba‖, perpetua uma longa tradição que envolve toda a música afrobrasileira, e
principalmente o samba, o aparato religioso:
Eu vou botar!/ Eu vou botar teu nome na macumba/ Vou procurar uma
feiticeira/ Fazer uma quizumba/ Pra te derrubar/ Oi, Iaiá!/ Você me
jogou um feitiço/ Quase que eu morri/ Só eu sei o que eu sofri/ Deus
me perdoe/ Mas vou me vingar// Eu vou botar teu retrato/ Num prato
com pimenta/ Quero ver se você "guenta"/A mandinga que eu vou te
jogar/ Raspa de chifre de bode/ Pedaço de rabo de jumenta/ Tu vai
botar fogo pela venta/ Comigo não vai mais brincar. (Vou botar teu
nome na Macumba de Dudu Nobre e Zeca Pagodinho).
Metodologias – Batucadas e Conversas:
No que diz respeito às tradições culturais africanas, temos por conhecido a
importância da oralidade para aqueles que compartilham seus símbolos e valores. O
conhecimento é transmitido, no seio de uma comunidade afroreligiosa, através da
convivência e da comunicação oral – conversas, narração de mitos, e músicas.
Objetivando compreender alguns laços tecidos entre afroreligiosidade e vivência
artístico-musical
dos
sambistas,
a
pesquisa
―Samba
e
Aparato
Religioso
54
Afrobrasileiro‖ , adotou como método as indicações presentes nos escritos de Fernando
González Rey (2005), autor que sistematiza a pesquisa científica a partir de uma
54
Pesquisa a qual atualmente este artigo está submetido, sendo financiada pela Capes/CNPq.
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Epistemologia Qualitativa, que tem se alicerce principal no pensamento desenvolvido
por Lev Semenovich Vigotsky.
A Epistemologia Qualitativa, nessa perspectiva, se caracteriza em três
pontos principais: o ―caráter construtivo-interpretativo do conhecimento‖ nas ciências
Antropossociais (GONZÁLEZ REY, 2005, p.5), onde o pesquisador torna-se também
sujeito de sua pesquisa, sendo o responsável pela construção de conhecimento a partir
das suas análises sobre o real, deste modo legitima-se o conhecimento não por sua
linearidade com a realidade, mas pela possibilidade que esse conhecimento proporciona
para a construção de novos modelos de inteligibilidade sobre o objeto estudado; a
―legitimação do singular como instância do procedimento científico‖ (GONZÁLEZ
REY, 2005, p.10), onde dá-se a importância a informação singular na construção
teórica, sendo essa legítima para o processo de desenvolvimento da pesquisa qualitativa
com base na complexidade; e o ―ato de compreender a pesquisa, nas ciências
antropossociais, como um processo de comunicação, um processo dialógico‖
(GONZÁLEZ REY, 2005, p. 13) entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados, onde a
subjetividade do pesquisador e o caráter construtivo-interpretativo da pesquisa, fazem
com que o cientista seja também sujeito de seu trabalho.
Seguindo a conceitualização de História do Imaginário segundo José
D‘Assunção Barros (2010), problematizamos a questão do imaginário afroreligioso
presente em todo processo artístico deste grupo social. E é em busca de informações
sobre este Imaginário, que recorremos à metodologia empregada por González Rey
(2005), crendo na perspectiva de que é um proveitoso método para construção de uma
interpretação acerca da subjetividade do grupo estudado. Sabendo que os nossos
sujeitos, os sambistas, partilham de um convívio afroreligioso que ressalta a oralidade, a
pesquisa então se realiza através da ―Dinâmica Conversacional‖55.
A Dinâmica Conversacional como um instrumento interativo entre o
pesquisador e o sujeito investigado, possibilita que em vez da relação pergunta-resposta,
se estabeleçam uma relação de conversa, onde o sujeito estará livre para dialogar. O que
nos interessa nesse método não é diretamente a expressão intencional do sujeito, mas as
expressões subjetivas contidas nas respostas, cabendo ao pesquisador interpretar os
dados colhidos. A conversa inicia-se a partir de uma questão deflagradora, ―Qual o
significado das religiões afrobrasileiras pra você?‖, pergunta aberta que proporciona
55
Proposta metodológica atribuída a Fernando González Rey, 2005, p.126.
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inúmeras possibilidades de diálogo. A partir da interpretação das respostas podemos
construir configurações da subjetividade, estas agrupadas darão forma às Unidades de
Sentido. Estas últimas serão modelos de inteligibilidade sobre o problema proposto na
pesquisa.
Foram vinte os sujeitos entrevistados em dois momentos distintos, todos
sambistas, de 30 a 70 anos, homens e mulheres. As entrevistas se deram no intervalo
entre rodas de sambas, com compositores e músicos. Com a dinâmica aplicada, não
existe para nós, cientistas, a ‗má resposta‘. As respostas fazem parte da construção
desenvolvida pelo instrumento, aparado pelo método, ou seja, também são de
responsabilidade do pesquisador nessa perspectiva. Sendo assim, todas as respostas são
válidas, todas expressam subjetividades. Além, o pesquisador que caminha amparado
por esta visão epistemológica de ciência – Qualitativa e Complexa – dirige-se ao campo
sem hipóteses, da mesma forma, não conduz o instrumento – e sua análise – ao
resultado por ele almejado. Os resultados da pesquisa são construídos, desta maneira, no
decorrer do processo dialógico entre o cientista e seus sujeitos, o que não desmerece em
rigor o trabalho acadêmico-científico.
Musicalidade e Religiosidade em Relatos:
A pesquisa em questão ainda está decorrendo, agora em terceira fase: a
análise das entrevistas segundo os referenciais teóricos. Trazemos então aqui alguns
relatos, e iniciais considerações.
Naquela época o rigor contra o negro, contra as tias baianas, contra o
pessoal do samba, era muito forte, então pra se fazer uma festa numa
casa, fazer uma sessão de samba, realizar um batizado, até um
batizado ou um casamento, tinha que ter a permissão da chefatura de
polícia, entendeu? Era um rigor tremendo. Eles sofreram muito mais
na carne o racismo contra o samba, contra as religiões de candomblé.
Eu, quando garoto, ainda assisti muito e muito a polícia fechar vários
terreiros... o samba também, cheguei a assistir a pessoa não poder
levar violão, não poder levar pandeiro, não poder levar nada, não
poder andar com isso no meio da rua, porque a polícia chegava e
prendia.
O primeiro relato exposto fora construído no final do ano de 2011, com um
dos membros da velha guarda portelense David de Araújo, mais conhecido por seu
nome artístico, David do Pandeiro, então com 65 anos de idade. Depois de muita
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conversa e muitas histórias de seu tempo de menino, sobre o samba e a Portela, o
pandeirista nos revelou esta passagem citada acima, nela, para além do já exposto até
aqui, o entrevistado nos traz uma informação nova, que se conjuga em uma das
configurações de pesquisa: A violência sofrida tanto pelas religiões negras quanto pelo
samba, era elo que marcava ambos os grupos. Deste modo, na análise complexa,
podemos dizer que a violência a qual foram expostos gerou em certa medida, laços de
solidariedade entre os grupos. Neste caso, inúmeros fatores estão envolvidos,
sintetizados para a melhor compreensão da seguinte forma: o preconceito racial ao
negro no pós-abolição e às suas práticas de grupo, religião, música, festividade, onde
portar um instrumento de negro era a denúncia ao ato criminoso, um pandeiro seria
prova, a arma do crime.
Paulo Roberto, o Professor, de 57 anos, a qual lemos um trecho da dinâmica
no início deste texto, relaciona o samba a prática das religiões afrobrasileiras através de
manifestações festivas utilizadas para romper com os paradigmas de inferioridade
colocados pela escravidão. Para ele, religiões e samba tem em comum a festa, para
espantar a tristeza56, os sons dos atabaques e ganzás era, e é o melhor remédio, desde a
escravidão:
Elas estão interligadas (samba e religiões negras), o samba esta
interligado, porque, se você buscar a raiz do samba: Samba é Semba, e
Semba é manifestação africana, e a partir dessa manifestação africana,
de semba, que é uma reunião para comemorar, de algumas pessoas
ligadas diretamente a esse grupo de indivíduos, que eram
descendentes de escravos que se reuniam pra comemorar essa
opressão, ou seja, comemorar a opressão? Me desculpa – corrigindose – comemorar esse processo de reunir as pessoas que sofriam a
opressão, essa manifestação deles derivou essa vertente do samba, e o
samba esta exatamente intimamente ligado a religião.
Outro entrevistado, o compositor José Mauro Diniz, ou apenas Mauro Diniz,
revela que já frequentou umbanda e candomblé, mas que não iria poder nos ajudar na
pesquisa porque ele agora era evangélico, esquivando-se, disse que não sabia muito
sobre essas religiões de matriz afrobrasileira. O que não impediu o prosseguimento da
dinâmica e pesquisa, e minutos depois relatou:
56
Para ver mais: FILÉ, Valter. O Que Espanta Miséria é Festa – Puxando Conversa: Narrativas e
Memórias nas Redes Educativas do Samba. Tese (doutorado em Educação) UERJ, Rio de Janeiro, 2006.
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O samba está muito ligado a essa cultura (Religiosa afrobrasileira), o
samba, na minha opinião ele é místico, haja visto que na Bahia, a
gente tem o samba de roda. A própria batucada que existe dentro dos
terreiros de macumba, se você observar e cantar um samba ali em
cima, ele dá certo. Essa batida lembra muito o samba, mas o canto é
diferente. Agora, o samba mais antigo, porque os sambas de alguns
compositores mais contemporâneos eles já fogem um pouco dessa
característica.
O entrevistado construiu em palavras a relação entre samba e cultura
afroreligiosa através da música, da batucada, e do misticismo. Mas alertou, ao fim, e em
tom profético, que essa concordância entre batuques de samba e de candomblé é
característica comum de sambas do passado – talvez da época em que ele se dedicava às
religiões afro – mas que atualmente, os compositores contemporâneos ‗fogem‘ dessa
relação.
Rosangela da Silva Azevedo ou Tia Rosa, retoma uma questão muito cara
quando tratamos da religiosidade dos negros no Brasil, a ancestralidade. Ao exclamar
que a relação entre religiosidade negra e arte negra está ligada à ancestralidade,
inicialmente escrava, depois africana, ou seja, às origens. Para ela as tradições culturais
negras em geral estão em sintonia quando expressam para ela as raízes de sua identidade
negra:
A nossa ancestralidade também nos acompanha, então na verdade
quando você canta um samba, com aquele ritmo de tambores ele toca
fundo dentro da gente, toca fundo, então quer dizer, aonde se explora
muito mais a coisa boa de nossa cultura.
Quase todos os entrevistados se identificaram como seguidores de alguma
religião afrobrasileira, quando não isso, diziam respeitar, e citavam passagens de sua
vida onde foram interferidos pela questão religiosa dos negros. O objetivo desta
pesquisa nunca foi entrevistar religiosos sambistas, ou sambistas e religiosos.
Interessou-nos desde o início focar nos sambistas, e perceber nesse grupo as suas
afinidades religiosas e procurar entender se eles enxergavam alguma relação entre sua
prática cultural-artística-musical com o candomblé e umbanda.
Primeiras Considerações – O Povo de Santo e Samba:
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Terminamos por trazer ‗primeiras considerações‘ sobre o processo de
pesquisa, antes que resultados ou conclusões, estes mais concisos, na forma das
Unidades de Sentido, ainda não foram obtidos, visto a posição em que se encontra a
pesquisa. Mas de imediato, traçamos alguns pontos que levam ao questionamento, à
revisão de ideias e concepções. Afirmamos a qualidade metodológica sugerida por
González Rey (2005), tanto quanto a escolha do campo e uso dos instrumentos, quanto
a análise metodológica das informações obtidas.
E como concebemos que os processos sociais desenrolam-se em um
contexto complexo, com a história não poderia ser diferente. São várias as interferências
da religiosidade negra na prática musical do samba: da origem, da ancestralidade, da
identidade negra, da musicalidade, da festa, da violência. A cada entrevista e análise um
dado novo surge, uma nova configuração, futuramente agrupadas em zonas de
integibilidade do espaço proposto em pesquisa.
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In: História e Música no Brasil. SALIBA, Elias Thomé & MORAES, José Geraldo
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2008.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
122
FAVELA, EXÉRCITO E RELIGIÃO
Tensões e aproximações na ocupação militar do Complexo do Alemão
Vinicius Esperança Lopes57
O Complexo do alemão é um conjunto de treze comunidades, situadas na cidade
do Rio de Janeiro, e considerada, desde a década de 1980, uma das regiões mais
perigosas e violentas da cidade. O Complexo se situa numa área de cerca de 300
hectares e aproximadamente 80.000 moradores58 e 22.000 domicílios.
A mais conhecida das comunidades é o Morro do Alemão, que se trata de um
bairro oficial, erguido sobre a Serra da Misericórdia. O nome da comunidade se refere
ao imigrante polonês Leonard Kaczmarkiewicz, que, na década de 1920, comprou estas
terras que, antes, eram uma área rural da Zona da Leopoldina. A região se valoriza a
partir da construção da Avenida Brasil, na década de 1940, quando a área em torno da
imensa avenida se transformou no principal polo industrial do então Distrito Federal. A
ocupação, entretanto, começa na década de 1950, quando Leonard dividiu o terreno para
vendê-lo em lotes.
Alguns eventos ocorridos no local foram noticiados em todo o país e
contribuíram para a reputação de violência do Complexo.
Em 1994, o assassinato de Orlando Jogador, um dos fundadores da facção
criminosa Comando Vermelho, pelo seu rival Uê, líder da facção Terceiro Comando, à
época preso no Presídio de Bangu. Orlando teria sido emboscado pelos homens de Uê,
que se apresentaram como pertencentes ao BOPE59 e exigiram um resgate de 60 mil
dólares. Quando os homens de Orlando chegaram com o dinheiro foram mortos. O
corpo de Orlando foi deixado no bairro próximo de Maria de Graça. O ato gerou
violenta represália de outros dois importantes líderes do tráfico, Fernandinho Beira-mar
e Marcinho VP, a fim de retomar o poder de controle do tráfico na região. A guerra pela
57
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e ISER
58 Dados do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
59 Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, conhecida por sua eficiência e
violência. Ficou famosa internacionalmente com a repercussão do filme Tropa de Elite , dirigido por José
Padilha, em 2007, e premiado no Festival de Berlim, além de grande bilheteria nacional.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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retomada deixou dezenas de mortos e culminou numa rebelião no presídio de Bangu e a
morte de Uê.
Em 2002, meses após ter recebido o prêmio Esso de jornalismo por uma
reportagem que denunciava o tráfico de drogas a céu aberto na região, o jornalista
Arcanjo Antonino Lopes do Nascimento, conhecido como Tim Lopes, foi pego na
tentativa de realização de uma reportagem que denunciaria a venda de drogas e a
exploração sexual de menores de idade em bailes funk da região, ―julgado‖, torturado e
assassinado por ordem do traficante Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, um dos
líderes do Comando Vermelho. A fim de ocultar o cadáver, foi usado aquilo que
recebeu o apelido de ―microondas‖, quando o corpo é esquartejado e queimado. Seu
corpo, entretanto, foi identificado por DNA e os supostos responsáveis foram presos
após forte repercussão midiática e da opinião pública.
Em dezembro de 2008, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, visitou a região,
área de atuação do PAC-Programa de Aceleração do Crescimento, e lançou o projeto
―Territórios de Paz‖.
A região voltou a ser centro dos noticiários nacionais e internacionais em
novembro de 2010, quando, no dia 25, o BOPE, o CORE60 e o Corpo de Fuzileiros
Navais da Marinha do Brasil, em verdadeira operação de guerra, com cerca de 500
homens, ―retomou‖61 o controle da Vila Cruzeiro, então sob controle do Comando
Vermelho. Os narcotraficantes fugiram, então, para o Complexo do Alemão, e
pressionados à rendição por outra operação nesta localidade, a partir do dia 27 de
Novembro. Desta vez, devido a maior complexidade e tamanho da região, o BOPE teve
auxílio de um maior número de instituições, que compunham a chamada Força de
Segurança Nacional62, que em menos de duas horas ocupou o Complexo, prendendo
cerca de trinta traficantes e apreendendo armas e drogas. Ficou marcada a
impressionante cena, noticiada ao vivo pela imprensa, de dezenas de traficantes fugindo
60 Coordenadoria de Recursos Especias da Polícia Civil do Rio de Janeiro.
61 Termo usado em situações de conflito bélico e estratégias de guerra pelas Forças Armadas e
largamente usado pelas autoridades à época do conflito. Por exemplo, palavras do Governador do Estado
Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, em entrevista ao Jornal Nacional, que foi ao ar em 26 de Novembro
de 2010: ―Eu posso garantir à população que nós estamos atentos, que é um ato de desespero, de
desarticulação desses criminosos que estão perdendo território e que estão vendo o enfraquecimento não
só territorial, mas de seus negócios ilícitos. Nós vamos continuar com a mesma política de retomada de
territórios.”
62 Além das já citadas instituições, era também composto por policiais federais, o Batalhão de Polícia
Florestal e o exército, através da Brigada Paraquedista.
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pela mata impunemente. Desde então, a região foi ocupada pelo Exército Brasileiro, que
deve permanecer, segundo expectativas noticiadas publicamente, na região até junho de
2012, quando será instalada uma unidade das chamadas UPP's, Unidades de Polícia
Pacificadoras.
A operação foi considerada um sucesso pelo poder público e imprensa, pela
rapidez, eficiência e poucas vítimas. Todavia, diversas fontes, entre moradores, líderes
de ONG's e associações e jornalistas, confirmaram o rumor de que houve um número
bem maior de mortes durante a ocupação. Algumas testemunhas relataram que cerca de
130 corpos foram ocultados e que os bandidos que se renderam foram todos executados.
O chamado ―dia da invasão‖ tem se mostrado um tema relevante que estará sendo
aprofundado na pesquisa. Relatos dramáticos de invasões de domicílios, roubos,
torturas, assassinatos brutais e a ausência da imprensa e de mediadores é um tema
comum. O chamado ―aquele dia‖63 se apresenta como um típico Estado de Exceção,
levado às últimas consequências pelas forças de Segurança.
O objetivo deste artigo é refletir, introdutoriamente, sobre os impactos sociais de
toda esta operação e sua continuidade através da ocupação militar do Complexo do
Alemão pelo Exército Brasileiro, sua saída e a chegada da Polícia Militar. A relação
entre os atores principais deste momento histórico, em princípio o Exército Brasileiro e
os moradores, durante o período de ocupação, depois a polícia na forma das UPP's,
quando implantada, é o tema de interesse da pesquisa. Várias instituições poderiam ter
sido escolhidas a fim de viabilizar este estudo. Por exemplo, o comércio64, a família, o
Exército em si, as Associações e ONG's que prestam serviços sociais à comunidade,
entre outras. Acreditamos, todavia, que a religião, como ponto de partida, é um canal de
acesso privilegiado para se compreender o processo, pelas razões que serão exploradas
no corpo deste trabalho. A principal delas está na escolha explícita do Exército das
lideranças religiosas para o diálogo, motivado em grande parte pela desconfiança para
com as lideranças não-religiosas que, segundo escutei em diversos relatos, teria ou
algum tipo de ligação com o tráfico ou alguma escusa intenção de lucro político. As
63 No relato dos moradores fala-se sobre a ―invasão do Complexo‖, enquanto do lado dos agentes da
segurança pública fala-se sobre ―ocupação/retomada do Complexo‖.
64 Houve um aquecimento do comércio na região, inclusive com a inauguração de novos
estabelecimentos. Fontes nos informaram, entretanto, que um banco instalado na região precisa contribuir
mensalmente, de forma extraoficial com lideranças ligadas ao tráfico. Outras fontes informaram que
certos estabelecimentos, todavia, que tinham como clientes o tráfico, foram prejudicados.
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lideranças não-religiosas que foram ―aceitas‖ passaram pela mediação e crivo dos
religiosos.
O pesquisador está realizando trabalho de campo no Complexo de Alemão,
tendo contato com moradores, lideranças religiosas cristãs e não-cristãs, organizações
não-governamentais que atuam na região, autoridades militares, soldados e capelães do
Exército. As fontes, em sua maior parte, permanecerão anônimas por motivos de
segurança e por parte delas estarem vinculadas a instituições cujas posições oficiais e
―extraoficiais‖ nem sempre se coadunam com as opiniões profissionais e pessoais destes
atores em relação a diversas situações, especialmente as de conflito. Assim, fica
evidente que além dos seus posicionamentos institucionais estes atores jamais se
furtaram de refletir além da questão e expor, nas entrevistas e conversas informais,
informações e retratos que não passavam pelas vias da instituição.
Entendemos, assim, que a religião atua, como bem frisou Geertz (GEERTZ:
2000, 152), como portadora de ―Sentido‖, definidora de ―Identidades‖ ou ―Poder‖.
Muito mais do que mera devoção individual, intimista e subjetiva, consideramos
aqueles que entrevistamos como atores sociais que se afirmam em termos religiosos.
Também não nos limitamos à religião expressa e organizada institucionalmente, mas
também aqueles processos sociais e sistemas de representações que se afirmam
ritualisticamente. Concordamos com Durkheim (DURKHEIM: 1912, 38) em que a
religião é coisa eminentemente social e que os ritos e os processos rituais servem para
manter, suscitar ou fazer ressurgir certos estados mentais do coletivo.
A religião, no escopo deste trabalho, não é um fim em si mesmo, mas uma janela
que se abre para outros processos sociais. Assim, por exemplo, a fonte religiosa pode
exercer contribuição na compreensão de conflitos entre o Exército e certos grupos da
comunidade e na forma como é construída a relação entre o indivíduo uniformizado,
armado, que representa uma instituição que necessita do uso e da demonstração da força
a fim de cumprir seus objetivos, e o morador, civil, que vê sua rua agora ocupada por
este desconhecido.
Uma das primeiras bases operacionais do Exército Brasileiro foi numa igreja
protestante, o CIOM-Centro Internacional de Adoração e Missões, um braço da
Primeira Igreja Batista de Inhaúma, situada na antiga fábrica da Pepsi, e com uma vasta
área. A presença dos soldados e seu comportamento, como fumar e flertar com as
mulheres da igreja, levaram a direção desta a pedir sua retirada.
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O Exército não tardou a perceber a importância que a religião poderia ocupar na
mediação das tensas relações entre soldados e moradores e começou a promover
reuniões com a liderança religiosa local. Estas reuniões começaram em agosto de 2011,
em princípio, separadas entre católicos e protestantes65, mas, logo, as reuniões passaram
a ser em conjunto. Nelas, capelães do Exército, pastores, padres e outras lideranças
religiosas discutiam temas locais e apresentavam demandas dos moradores e suas
próprias demandas. Com uma frequência média de vinte pessoas, constituída de padres
e pastores quase sempre em igual número66, conduzida pelo Padre Lindenberg, consistia
basicamente de uma reunião devocional, com orações, cânticos, mensagem e momento
de abertura para demandas e discussões, onde todos podiam se pronunciar livremente. O
Padre sempre enfatizava a importância dos presentes para o sucesso da missão e que a
obra que faziam, inclusive a ocupação, era obra de Deus. Alguns presentes contaram
que a ocupação era resposta de oração de suas igrejas e, no geral, mostravam-se bastante
satisfeitos com o rumo que a comunidade vem tomando, apesar de todos reconhecerem
que há muito a ser realizado e melhorado. As reuniões costumavam ser amistosas e
relativamente informais, apesar da presença dos militares fardados e do fato de ocorrer
dentro da base das forças de ocupação, num local chamado ―rancho‖, que funcionava
como refeitório.
Eram reuniões verdadeiramente ecumênicas, embora a palavra pouco tenha sido
usada. Numa ocasião, ao perguntar a um pastor o que achava do ecumenismo, ele foi
veemente contra. Afinal, como já observou Mendonça (1995) em sua obra sobre a
inserção do protestantismo no Brasil67, o protestantismo brasileiro tem como uma de
suas principais marcas a polêmica contra a Igreja Católica. O caráter anti-ecumênico do
protestantismo brasileiro e sua aparente supressão neste momento específico parece
ecoar de forma muito enriquecedora a seguinte análise de Rubem Alves:
65 Começarei utilizando o termo genérico ―Protestante‖, mais fácil e preciso historicamente, mas a
alcunha ―Evangélico‖ funciona melhor como autodefinição e na forma como a comunidade e as outras
religiões os enxergam. Assim, um pastor da Assembleia de Deus e outro da Igreja Batista se veem como
pertencentes ao mesmo grupo maior de ―evangélicos‖, que os distinguem dos católicos, mas quando
olham para dentro do grande grupo de ―evangélicos‖, não se consideram iguais, o que vem a gerar vários
outros subgrupos, os quais não pretendemos analisar no momento.
66 A liderança feminina costumava ser representada por uma missionária protestante, somente.
67 MENDONCA, Antonio Gouvêa. O Celeste Porvir: a Inserção do Protestantismo no Brasil. ASTE: São
Paulo, 1995.
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Se o protestantismo atual continua a ser antiecumênico,devem os católicos se lembrar do fato de
que esta foi sua criação. Ainda que não o deseje, o protestantismo brasileiro é um filho do
Catolicismo. A perseguição e a polêmica inibiram o desenvolvimento das instituições mais
criativas do
protestantismo, tornando-o um simples anticatolicismo. Note-se, por exemplo,
que tantos católicos quanto protestantes estão absolutamente de acordo acerca das regras básicas
do jogo. Eles lutam porque concordam acerca da natureza do problema básico em questão.
Ambos estão de acordo em que a religião é o fundamento da sociedade. Tanto um quanto o outro
veem os problemas sociais como um subproduto da fé religiosa que se adota. Em ambos os
casos, portanto, a questão da ética social se reduz e se resolve na fidelidade à fé que cada um dos
grupos professa. E, com isso as análises de natureza sociológica, econômica, histórica e política
se tornam desnecessárias. (ALVES, 1975, p. 279)
Dois eventos merecem ser considerados. Durante a última reunião feita no mês
de novembro, um pouco diferente das outras por haver mais tempo para expressões
devocionais, no momento em que o Padre Lindenberg pediu que aqueles que estivessem
presentes pela primeira vez se apresentassem, um pastor pentecostal se apresentou de
forma curiosa. Primeiro, ressaltou a alegria de estar naquele lugar e depois enfatizou a
questão da autoridade, insistindo que todos ali eram autoridades da mesma forma
porque foram chamados por Deus e são ministros de Deus. Logo, sua fala
compreensível era interrompida por manifestações de línguas extáticas que eram
traduzidas por ele mesmo e versavam sobre o fato de Deus estar à frente e que tudo
ocorreria bem, dirigindo-se especialmente ao Padre dirigente, como se fosse o próprio
Deus falando.
Na reunião do dia 07 de dezembro, entretanto, algo curioso aconteceu. O Padre
Lindenberg fez um discurso inflamado sobre esta oportunidade que classificou como
histórica e única no Cristianismo de vivência de um ecumenismo prático, além das
teorizações e teologia. Ninguém comentou nada, mas à saída, os pastores insistiam
serem contra o Ecumenismo e que aquilo que faziam em conjunto não era Ecumenismo.
Estas reuniões forneciam um interessante painel da ocupação e do tipo de
relação estabelecida entre os moradores e o Exército. Também se percebe que algumas
das demandas são de caráter muito específico, mas também muito enriquecedoras. Por
exemplo, um pastor reclama da altura do som que seus vizinhos escutam durante os
cultos dominicais de sua igreja. As músicas, de funk, segundo o pastor, conteriam
mensagens sexuais explícitas, palavrões e eram usadas para afrontar os membros da sua
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comunidade. Tendo avisado ao Exército, uma patrulha teria ido ao local e solicitado que
o volume fosse diminuído, mas tão logo ela deixou o local o volume teria sido elevado a
uma altura ainda maior. Este pastor, cobrava, apoiado por parte da liderança protestante,
uma ação mais enérgica e um papel coercitivo mais contundente do Exército nesse tipo
de caso. Não bastaria, segundo ele, o pedido formal e educado da autoridade, mas uma
ação que se utilizasse da força a fim de solucionar definitivamente a questão.
Assim, o uso da força coercitiva se torna um dos temas fundamentais para o
debate.
O Exército é uma instituição fundamentada no uso da Força para cumprimento
de seu propósito de guerra e defesa do território de uma Nação. Ele é uma instituição
integrante das chamadas Forças Armadas e o significado do termo já diz o bastante. Ele
é uma força, ou seja, dotado de poder e do uso legal da violência para sua existência.
Sua subordinação é ao Ministério da Defesa, já chamado de Ministério da Guerra.
Enquanto uma nação não está em guerra ou não tem seus territórios ameaçados, a
sociedade civil espera algum tipo de ação destas instituições que favoreça a comunidade
e justifique todo investimento público nelas. Assim, as Forças Armadas envolvem-se
em diversos projetos e ações em prol da comunidade e que sejam do interesse da
segurança nacional.
Especialmente, após a redemocratização do país, as Forças Armadas,
destacadamente o Exército, padecem de uma crise de imagem pública. Não se pode
dizer, de uma forma geral, que a população seja, naturalmente, simpática a estas
instituições. E, jovens em torno de vinte anos, com pouca formação social e
educacional, que é o perfil do soldado brasileiro, não são, propriamente, versados em
diplomacia diante de conflitos.68 O soldado distancia-se da realidade do morador, que
está acostumado a encontrar dois tipos de autoridade, que representam duas diferentes
instituições.
O primeiro é o policial, civil ou militar, o representante de uma
68 Há uma clara distinção de origem entre os integrantes das Forças Armadas. Dificilmente, no Brasil,
são alistados quando completam dezoito anos jovens de classe média ou alta, mas esse espaço parece
estar reservado a jovens de origem social mais humilde que veem aqueles poucos anos apoiados por esta
instituição como uma oportunidade. As carreiras para oficiais, que exigem concurso público, parecem
reservadas, em grande parte, àqueles que podem pagar um curso preparatório ou tiveram acesso a uma
boa formação. Assim, nas Forças Armadas, o tipo ideal do soldado é o jovem de origem pobre ou
modesta, com pouca formação escolar, e do oficial, o adulto bem formado advindo da classe média ou
classe média alta, já que, no geral, as classes mais abastadas não se interessam pela carreira militar.
Reconhecemos, todavia, que esta é uma generalização e há variações em determinadas regiões do país.
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instituição que possui a pior imagem possível para um morador desta comunidade. O
policial é corrupto, violento e não o respeita em sua dignidade. Quase todo jovem ou
adolescente do Complexo do Alemão, que não tem nenhum envolvimento com a
criminalidade, parece ter algum caso que levou uma ―dura‖ de policiais, tendo sido
humilhado e agredido. Sua autoridade é exercida sempre de forma arbitrária e violenta.
O policial, mesmo para quem não se envolve no tráfico, é o inimigo, o outro levado ao
extremo, aquele que invade o morro e mata inocentes.
O segundo é o traficante, a outra instância de autoridade. Este também é o
representante de uma instituição com diferentes e complexos graus de poder e
subordinação. Se, entretanto, a visão romântica do traficante como bandido bom que
ajuda a comunidade, espécie de Robin Hood da favela, não se sustenta mais, a diferença
fundamental dele para o policial é que ele é ―cria‖ da comunidade, ou seja, foi criado
naquele lugar.69 Este traficante conhece a comunidade e seus moradores e só usa do
poder da violência contra a polícia ou contra aqueles que transgridem as normas que o
tráfico impõe a comunidade. Mesmo que seu uso da violência seja verdadeiramente
temido, o morador ainda espera da parte do traficante respeito e consideração.
No Complexo há basicamente três coisas que trazem respeito ao morador.
Primeiro, ser morador antigo da comunidade ou ter sido ―criado‖ com algum
traficante70. Segundo, jogar bem futebol. Terceiro, saber se calar e se recolher na hora
certa.71
Uma possível terceira instância de autoridade é a do pastor evangélico. De uma
forma geral, gozam de considerável autonomia em sua atuação religiosa e mantém
relações quase sempre amistosas com os traficantes. Por vezes, são capazes de intervir e
impedir a execução de pessoas condenadas à morte pelo tráfico, assim como são
chamados para fazer orações em situações de guerra, como invasões, e abençoar bailes e
outras festividades. Em contrapartida, havia uma rede de doações de cestas básicas que
eram distribuídas a muitas igrejas evangélicas da comunidade.
69 Em sua grande maioria, os soldados do tráfico são recrutados na própria comunidade a que pertencem.
70 Quando se diz que alguém é ―cria‖ de algum traficante é porque cresceram juntos.
71 O destino dos chamados ―x9‖ (informantes) é sofrer uma morte violenta e dramática imputada pelos
traficantes.
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O soldado é o outro que ainda não tem um lugar bem definido, nem uma coisa,
nem outra, o estrangeiro. O viajante potencial de Simmel, aquele que embora não tenha
partido, ainda não superou completamente a liberdade de ir e vir.
Mas sua posição no grupo é determinada, essencialmente, pelo fato de não ter
pertencido a ele desde o começo, pelo fato de ter introduzido qualidades que não se
originaram nem poderiam se originar no próprio grupo. (SIMMEL, in ―O Estrangeiro‖,
182)72
O soldado não é ―cria‖ de ninguém. É o elemento externo que, se não traz
consigo o peso de negatividade da imagem do policial, representa uma imposição de
ordem heterônoma por um Estado que se alienou da realidade do morador e das
condições sociais mínimas para a comunidade. Ele está na comunidade uniformizado e
fortemente armado e representa de forma mais próxima o mesmo Estado que se
ausentou e se apresentou diversas vezes como o policial violento.
Esta questão nos traz outra consideração, que é o tipo de ordem estabelecida por
estes três tipos.
A ordem estabelecida pela polícia é intermitente, porque é estabelecida
brutalmente através de incursões por vezes sorrateiras, a fim de conseguir propina por
parte dos traficantes, por vezes violentas e terrivelmente eficientes em termos bélicos
quando coordenada pelo temido BOPE que, ao contrário da popularização como
Destacamento eficiente e honesto e da produção do ícone da ficção, o Capitão
Nascimento, interpretado no cinema pelo ator Wagner Moura no filme Tropa de Elite
(2007), é acusado pelos moradores de assassinatos, espancamentos e torturas de
traficantes e inocentes. É uma ordem violenta imposta por um Estado ausente que só se
faz presente através da demonstração da força contra o tráfico de drogas. É uma ordem
que não usa da diplomacia no trato com os moradores, apelando para a intimidação, a
humilhação e a agressão. Numa entrevista, um morador, em torno dos trinta anos, pai de
família e que jamais se envolveu com o tráfico me disse: ―A coisa mais comum para um
jovem aqui é levar 'dura' da polícia‖.
A ordem estabelecida pelo tráfico é curiosamente legalista em alguns aspectos.
Por exemplo, não admite que haja furtos, extorsões ou violência sexual sob seu
domínio. Leva em consideração o status do morador na comunidade, sua habilidade no
72 Coleção Grandes Cientistas Sociais. Ed; Ática,1983.
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futebol, sua respeitabilidade. Funciona como um tribunal de mão única para tratar de
disputas e demandas entre os moradores. Entretanto, não se impõe como uma ordem
comportamental. Sua autoridade se fundamenta no uso da força e, principalmente, pela
imposição do medo gerado pelos ritos de morte impostos aos transgressores da ordem,
os chamados ―Suplícios‖, a morte antecedida por uma interminável sessão de torturas e
crueldades a fim de dramatizar o castigo. Quanto mais terríveis forem os suplícios, mais
temidos eles são, mais respeitada é a ordem imposta.
A ordem estabelecida pelo Exército durante o período de ocupação é uma ordem
nova, distante de ser um meio-termo entre as duas ordens que já haviam se estabelecido
como cultura da comunidade. Por um lado, é legalista como a ordem do tráfico, mas
também é comportamental. Houve tentativas de se implantar toque de recolher à noite,
que não duraram muito tempo e há repressão à venda de cigarros e bebidas alcoólicas a
menores de idade, assim como ao desrespeito às leis sobre poluição sonora e uso de
serviços ilegais no uso da luz elétrica, água e serviços de internet e TV a cabo73. Se a
ordem é imposta pelo uso da força, certamente seu uso é mais brando do que o uso pelo
traficante e pelo policial, mesmo que haja denúncias de abuso e violência por parte de
moradores contra soldados. A ordem estabelecida pelo Exército é uma clara
demonstração de poder por parte do Estado numa região que, por muitos anos, foi
dominada pelo crime organizado. Como afirmado anteriormente, entretanto, este Estado
é o outro que estava ausente e que era identificado como a Polícia, portanto é inevitável
que esta nova ordem produza incontáveis tensões e incompreensões de ambos os lados
quanto à abrangência do uso da força e da extensão desta ordem.
Um evento que não foi noticiado pela imprensa ilustra bem a tensão. Não se sabe
com certeza o que precisamente ocorreu. Pode ter sido abuso de autoridade por parte de
um soldado contra uma criança, pode ter sido a interpretação equivocada de
testemunhas alcoolizadas, ou até uma terceira coisa. Um soldado foi repreender uma
criança, em torno de seus sete anos, que foi ao bar comprar cigarro e cerveja para
alguém. Os fatos são: uma criança chorando de medo, duas garrafas de cerveja
quebradas no chão, e pessoas alcoolizadas intervindo na questão. Este evento gerou um
tumulto com dezenas de pessoas, que se transformou numa multidão descontrolada
73 Este apelidado pelos moradores de ―Gatonet‖.
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contra um grupo de soldados acuados, que teve que usar spray de pimenta contra quem
estivesse ali, incluindo mulheres e crianças.
Por vezes, essa tensão explode. Este não foi o primeiro, mas apenas mais um
dentre muitos eventos parecidos. A tensão não existe somente na relação entre esses
atores sociais, mas neles mesmos. Existe uma área do Complexo chamada de Canitar,
onde há um campo de futebol, e que tem sido palco de muitas tensões. Tiros sendo
disparados contra os soldados, sem que se saiba de onde vêm. A tensão é tanta que um
dos soldados que atuou na área cometeu suicídio quando voltou à base e outro foi
afastado com sintomas de estresse. Em relação aos moradores, um deles me
confidenciou em entrevista: ―Tenho muita violência dentro de mim (…) se não fosse a
igreja eu não estaria aqui hoje. Eu preciso da igreja todo dia (...)‖. Percebe-se que esta
pacificação não é tão pacífica quanto aparenta.
As demonstrações públicas de poder bélico do tráfico e suas ―bocas‖ fixas se
foram, todavia o tráfico continua ocorrendo na região, mas de uma forma diferenciada.
As ―bocas‖ não são mais fixas, mas itinerantes. E as armas ainda são portadas pelos
traficantes. Na terceira semana do mês de novembro de 2011, a notícia de que havia
traficantes portando fuzil em determinada região levou uma patrulha a realizar a
verificação da informação. Esta patrulha foi emboscada por traficantes, após confronto,
e foi obrigada a pedir reforço. Na última semana de novembro, na região da Penha, a
viatura do general responsável pela ocupação foi atacada com tiros de fuzil. Um soldado
foi atingido de raspão e o evento não se tornou uma carnificina porque os traficantes
que atiraram se esconderam em um bar repleto de clientes, o que levou os soldados a
não revidar.
Diante de tamanha tensão, o Exército Brasileiro entendeu que a religião seria o
melhor caminho para alcançar e se tornar mais simpático à população da comunidade.
Esta escolha não deixa de ser complexa e produzir outras tensões. A pesquisa se propõe
a ser uma etnografia deste processo e suas tensões.
O projeto do Exército, liderado pela sua Capelania, se desenvolveu no seguinte
tripé:
Encontros semanais com a liderança religiosa cristã;
Eventos gospel, com músicos conhecidos;
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Desenvolvimento de um curso de preparação para a liderança local com
o intuito de preparar ―líderes da paz‖74
Entre os temas do curso, destacamos: Cultura de paz, direitos humanos,
mediação de conflitos, gestão e captação de recursos para projetos sociais, fé bíblica e
ética social. A duração seria de seis meses, gratuitos, de janeiro a junho de 2012, época
programada para a retirada das Forças de Pacificação e implantação da UPP. Os
formados integrariam os ―comitês de pacificação‖, que funcionariam um no Alemão e
outro na Penha, e os ―núcleos de paz‖ de cada uma das treze comunidades do Complexo
e da Penha. O curso, entretanto, não aconteceu, o que provocou grande insatisfação por
parte de muitos líderes, que já o haviam anunciado em suas igrejas.
O grande ponto de interrogação de todos estes atores sociais neste momento era
o seguinte: até que ponto estes comitês serão realmente ―empoderados‖ e não
reprimidos ou pelo poder das UPP's ou pelo poder paralelo do tráfico? Algumas notícias
ruins a respeito das UPP's já traziam certa ansiedade aos moradores da região. Muitos
pastores e outras lideranças religiosas locais buscaram não se envolver em nada neste
processo já que o medo de represálias do tráfico é um fantasma sempre presente. Um
pastor, que participa das reuniões, conta que recebeu, vez ou outra, pessoas ligadas ao
tráfico nos cultos da sua igreja para, segundo ele, sondar e colher algum tipo de
informação privilegiada sobre as reuniões realizadas entre religiosos e o Exército.
Entretanto, no mês de dezembro de 2011, o relativo fracasso75 dos eventos
promovidos em parceria do Exército com estes líderes religiosos culminou numa tensa
reunião, na qual se fez presente o General Rêgo Barros, responsável pela Força de
Pacificação neste período. Na semana anterior, este mesmo General em reunião comigo
e o 1o. Tenente Vinicius me solicitou duas coisas: a produção, a partir da pesquisa já
realizada, de um documento que apontasse as demandas sociais do Complexo do
Alemão, incluindo possíveis formas de aproximação da instituição com a comunidade; a
74 Uma cópia do cartaz de divulgação se encontra no ANEXO 1.
75 As principais reclamações estavam no não cumprimento da divulgação dos eventos, a não realização
do curso prometido, a falta de comunicação e a forma pouco participativa com que os eventos religiosos
eram propostos. Por fim, a troca de comando levou a um recomeço das reuniões, o que provocou mais
reclamações, desta vez sobre a falta de continuidade. Um pastor, assessor de deputado estadual, presente a
todas as reuniões e principal divulgador das mesmas tornou-se o principal crítico da atuação da capelania.
Suas críticas abertas e públicas durante as reuniões provocaram muitos desconfortos e tensões e podem
ter sido umas das causas da saída do Padre Lindenberg. Em uma destas reuniões, um coronel ameaçou
prender o pastor por desacato.
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ação interlocutória na ação do Exército para a possível execução destas questões. Um
dos fatores que levou o General a escolha de um pesquisador para este papel foi,
conforme suas palavras, sua decepção com a liderança comunitária não-religiosa e a
necessidade de ampliar o projeto ―religioso‖, que não havia funcionado como deveria.
Assim, o ―fracasso‖ do projeto religioso se torna parte do desenvolvimento do tema, que
permite a abertura de novas janelas e possibilidades no estudo das relações locais.
No dia 01 de dezembro de 2012, muitas questões como estas foram discutidas
numa audiência pública realizada no auditório do Colégio Estadual Jornalista Tim
Lopes, em Inhaúma. A direção e convocação foram feitas pela Comissão de Direitos
Humanos da ALERJ, presidida pelo Deputado Marcelo Freixo. Estavam representadas
Associações de Moradores da região, ONG's que atuam no Complexo, a OAB, a Polícia
Militar, a Câmara de Vereadores e a Casa Civil. O Exército Brasileiro também foi
convocado, mas não enviou nenhum representante, o que foi duramente criticado por
Freixo, que considerou a ausência descaso. O deputado reconheceu o mérito da saída do
tráfico armado, mas enfatizou que havia possível violação aos direitos humanos pelas
Forças de Ocupação.
Rafael Dias, representante da ONG Justiça Global, denunciou que, na ocupação
de novembro de 2010 houve violação de domicílios, agressões e furtos. Criticou o
processo de militarização da segurança pública e, principalmente, a criminalização dos
moradores pelo crime de desacato. Segundo ele, houve de janeiro a julho de 2010, antes
da ocupação, registro de 333 prisões no Complexo. No mesmo período do ano de 2011,
porém, já durante a ocupação, 499 prisões. O motivo seria o elevado número de prisões
por desacato e a ilegalidade em prender e julgar moradores com base no Código Penal
Militar. Haveria, também, pouca habilidade diplomática do Exército na mediação de
conflitos76.
O advogado Aderson Bussinger Carvalho, da Comissão de Direitos Humanos da
OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), em sua fala, destacou a inconstitucionalidade
da presença do Exército Brasileiro, que não deve executar papel de polícia, já que além
de inconstitucional, não é de sua natureza, o que o leva a prática de assédio e
constrangimento aos moradores.
76 Os militares, por sua vez, se queixam do desrespeito aos soldados por parte dos moradores. Um
capelão observou que grande parte dos conflitos desse gênero envolveram moradores alcoolizados.
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Alan Brum, representante da ONG Instituto Raízes em Movimento, com sede da
região, foi ovacionado pelos moradores ao criticar: a aplicação dos recursos públicos; a
ilegalidade do uso de mandados de busca e apreensão coletivos, que ―permitiam‖ a
entrada na cada de qualquer morador; o fechamento de pontos comerciais que não
possuíam alvará de autorização para o funcionamento; a construção do teleférico, que
beneficiaria poucos moradores; e o esquecimento dos principais objetivos do PAC para
a região.
As representantes da Casa Civil, Amanda Cerqueira e Fernanda Barbosa, por
sua vez, visivelmente constrangidas, não contribuíram para os assuntos discutidos e
declararam não ser de sua competência responder as questões apresentadas. Limitaramse a uma apresentação em Power Point que mostrava aquilo que tinha sido executado na
região.
O presidente da Associação de Moradores da Grota, Vágner, cobrou os
investimentos sociais, reconheceu a paz e denunciou que o Censo 2010 não atingiu a
todos os moradores. Outras falas parecidas aconteceram.
O Tenente-Coronel da Policia Militar Carlos Eduardo, representante da
Secretaria de Segurança Publica, enfatizou a contínua busca de sua corporação no
respeito integral aos direitos humanos do cidadão.
Ricardo Moura, do Comitê de Desenvolvimento Local da Serra da Misericórdia,
criticou a fala da Casa Civil, denunciou escombros abandonados pelas obras do PAC e
alertou para uma possível epidemia de dengue no Complexo.
No dia 29 de dezembro de 2011, entreguei ao Exército Brasileiro, na pessoa do
General, um ensaio chamado ―Favela, Exército e Religião‖, um esboço introdutório da
dissertação que está sendo produzida e o documento ―Demandas Sociais do Complexo
do Alemão‖. O documento foi amplamente discutido numa reunião com o General e
serviu de base para o projeto do Exército Brasileiro em se aproximar da comunidade.
Entretanto, a troca de comando, ocorrida poucas semanas depois, levou toda a questão à
estaca zero e não houve continuidade ao trabalho do comando anterior.
Diante de todas estas múltiplas vozes, em um trabalho de campo em pleno
andamento, algumas observações já podem ser feitas.
Primeiro, houve, no início da ocupação, realmente, diminuição da violência na
região e não se encontraram mais demonstrações públicas, por parte do tráfico, de
poderio e desafio às autoridades. O Exército atuava firmemente quando recebia
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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denúncias e não evitava o confronto, quando este se fazia necessário. A ocupação,
relativamente pacífica, não significou que não houve resistência e a pacificação se deu
pelo uso contínuo da força pelas tropas de ocupação. Num segundo momento,
especialmente nos últimos três meses da ocupação pelo Exército e antes da chegada do
BOPE houve uma intensificação dos confrontos e das demonstrações, por parte do
tráfico, de sua presença ainda no local.
Segundo, a relação do Exército com os moradores foi tensa produziu diversos
conflitos, ocasionados por falta de habilidade diplomática de ambos os lados. Houve
uma tentativa de aproximação com a comunidade, através de sua equipe de capelania,
com os líderes religiosos cristãos da comunidade. Por outro lado, o lado mais sombrio
dessa relação esteve no grande número de prisões por desacato e seu tratamento através
do Código Penal Militar. Um dado importante é o aumento em mais de 40% das prisões
no período de pacificação em comparação à época em que a região era dominada por
narcotraficantes armados. Esse dado demonstra a pouca habilidade diplomática do
Exército Brasileiro em situações de conflito e sua histórica dificuldade em publicizar
suas ações ao público de forma transparente. Sua ausência na audiência pública
fortalece este argumento.
Terceiro, a solução apresentada para o problema da segurança não trata a
questão de forma estrutural e os outros investimentos sociais necessários para o
desenvolvimento da região foram mal começados. O questionado teleférico é um
símbolo da forma como o dinheiro público tem sido utilizado, sem priorizar as
necessidades e demandas mais urgentes dos moradores.
Quarto, o tráfico não foi abolido da região, mas seu modus operandi foi
adaptado à nova situação e o seu contínuo fortalecimento após duro golpe tem sido
constante, ocasionado um progressivo retorno do medo e dos conflitos armados com
vítimas na região.
Quinto, apenas parte do que acontece na região do Complexo é divulgada,
restando às testemunhas oculares o relato de alguns acontecimentos graves envolvendo
soldados, os moradores e os traficantes.
Por fim, há uma ansiedade por parte dos moradores, das representações da
sociedade civil e até mesmo do Exército quanto ao futuro da pacificação após a
implantação das Unidades de Polícia Pacificadora.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
137
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SOBRE A RELIGIÃO
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SOBRE A RELIGIÃO
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ENSAIO SOBRE GEOGRAFIA DA RELIGIÃO NA CONTEMPORANEIDADE,
CONTRIBUIÇÕES PARA OS ESTUDOS SÓCIO-HISTÓRICOS DA
RELIGIÃO.
Marcelo Loura de Morais77
RESUMO: Este ensaio apresenta possibilidades de análise por parte da geografia
humana especificamente a geografia cultural sobre a religiosidade no mundo atual,
observando como os conceitos ligados a geografia enriquecem os estudos sobre a
religião, com o intuito de promover uma possível interação entre grandes eixos das
ciências
sociais
como
a
geografia,
a
antropologia,
a
sociologia
e
etc.
Palavras-chave: Geografia da religião, Cultura, Simbolismo.
Introdução
Ao longo do tempo notamos certa omissão por parte da geografia no âmbito dos
estudos relacionados à religião, a herança positivista dos séculos XVIII e XIX na
geografia perdurou por muito tempo, impossibilitando que estudos dotados de caráter
mais subjetivistas e fenomenológicos pudessem ser desenvolvidos e discutidos.
A geografia cultural resgata estes aspectos tangíveis a religião, sua subdivisão, a
"geografia da religião" trata de conceitos que são de suma importância para
entendermos a religião no mundo atual, sempre buscando essa inter-relação entre espaço
e religião, nas palavras de Gil Filho, professor da UFPR (2007, p.208): "A geografia da
religião é uma subdisciplina da geografia humana que tem por objeto o fenômeno
religioso visto como um espaço de relações objetivas e subjetivas consubstanciadas em
formas simbólicas mediadas pela religião." A princípio precisamos esclarecer que as
formas religiosas são em sua maioria formas essencialmente espaciais, ou seja, as
manifestações espaciais de fenômenos religiosos podem ser estudadas a partir de formas
religiosas já impressas na paisagem.
Ao pensarmos o território sob o aspecto cultural que para Rogério Haesbert
consiste no aspecto que priorizava a dimensão simbólica e subjetiva do território, é
visto, sobretudo, como produto da apropriação simbólica de um grupo em relação ao
77
Graduando em Geografia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
140
espaço vivido, lembrando que o ―aspecto cultural‖ do território sempre estará vinculado
ao seu aspecto político, podemos então, inserir facilmente a religião no eixo das
discussões territoriais, sugerimos por exemplo, os seguintes temas para estudo mais
detalhados: a história da expansão geográfica dos Estados Unidos que sempre pensaram
a unidade territorial e a conquista de novas terras pautadas num suposto "destino
divino", outro exemplo a ser explorado em possíveis discussões: estados
contemporâneos fundamentados exclusivamente em leis divinas, definindo inclusive
suas fronteiras políticas por estes preceitos religiosos, podemos incitar também a
discussão no eixo das grandes migrações de caráter religioso que marcam a historia da
humanidade em tempos atuais, migrações essas que independente de serem temporárias
ou definitivas marcam profundamente os espaços de origem e de destino, sendo assim,
detectamos que este caráter "espacial" da religião não pode ser ignorado, pelo contrario,
pensar a religião junto a concepções espaciais modernas como a multiterritorialidade e
hibridização cultural, contribui muito para os estudos sociais.
Ao longo deste ensaio mostraremos um breve histórico dos estudos da geografia
da religião, situados dentro da geografia cultural, prosseguindo para a fundamentação
teórica, comprovando a inter-relação entre estas áreas de estudos, para por fim,
apresentar possibilidades de pesquisa e discussão da religião dentro da geografia,
sempre dialogando com outras áreas do conhecimento, diálogo este que se mostra tão
sugestivo, e não tão bem explorado.
A abordagem da cultura pela geografia
A geografia como saber científico compartimentado e institucionalizado entre o
final do século XIX e inicio do século XX tem forte relação com o caráter imperialista e
etnocêntrico das potências européias, grandes protagonistas deste período histórico, seus
conhecimentos sobre o território eram utilizados para a conquista e posterior
legitimidade de novos lugares, principalmente na África e Ásia, esta geografia
conhecida como clássica caracterizava-se pelo viés naturalista e determinista, sempre
colocando ―o homem‖ como sendo exclusivamente guiado pelos processos naturais,
podemos definir que esta ―herança‖ é advinda da ciência social predominantemente
positivista da época, tempo que os cientistas sociais consideravam que as regras
biológicas deveriam ser incorporadas para construir uma ciência ―neutra e objetiva‖
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
141
Esta abordagem positivista pela geografia e pelas demais ciências sociais sofre
uma denúncia por parte dos pesquisadores que preferem adotar uma postura ―crítica‖ ao
diferenciarem o conhecimento entre ―nomotético e ideográfico‖, comprovam que a
diferenciação entre as ciências ditas naturais e as humanas é, além de notória,
fundamental para melhor compreensão da realidade entretanto, ainda assim, a
abordagem crítica da geografia de cunho marxista ignorava a importância dos estudos
culturais, pois considerava alienação qualquer relação afetiva entre a natureza e o
homem. Precisamos relatar, que durante este período os estudos relacionados à cultura e
a religião por parte da geografia não foram completamente ignorados, contudo, eram
estudos que consideravam a cultura apenas resultado da interação entre a paisagem e o
homem, não adentrando especificamente no caráter subjetivista que estes estudos
propõem. Nas palavras de Zanatta: (2008, p.255)
Até a década de 1940, o interesse da Geografia cultural atinha-se,
principalmente, às marcas que a cultura imprimia na paisagem ou à
noção de gênero de vida. Ainda que sob diferentes formas, ambas
abordagens acentuavam a cultura material (artefatos, técnicas,
utensílios, habitat e instrumentos de trabalho), não acompanhando a
evolução dos estudos antropológicos que já davam destaque à cultura
mental, aos aspectos psicológicos das sociedades.
Ao continuarmos nosso avanço cronológico pela história do pensamento
geográfico encontraremos por fim um grande avanço dos estudos culturais por parte da
geografia na pós-modernidade, ao surgirem estudos que priorizam a abordagem
hermenêutica do fenômeno, novos campos e possibilidades de estudos se abrem,
permitindo uma grande colaboração da geografia no campo dos estudos culturais, por
conseqüência, um avanço nos estudos da religião por parte dos geógrafos, para Zanatta
(2007, p. 205 apud MCDOWELL, 1996, p.159);
A geografia cultural é atualmente uma das mais excitantes áreas de
trabalho geográfico. Abrangendo desde as análises de objetos do
cotidiano, representação da natureza na arte e em filmes até estudos do
significado das paisagens e a construção social de identidades
baseadas em lugares, ela cobre numerosas questões. Seu foco inclui a
investigação da cultura material, costumes sociais e significados
simbólicos, abordados a partir de uma série de perspectivas teóricas.
A abordagem da religião pela geografia
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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142
Ao realizarmos uma comparação com outros temas recorrentes a geografia como
o rural-urbano, indústria, política, economia ,entre outros, percebemos que o tema da
religião não é tão bem explorado, como já citado anteriormente fator preponderante a
este fato é a própria lógica do desenvolvimento das ciências sociais, que demora a
romper a barreira do ―positivismo‖ herdado das ciências naturais, contudo alguns
estudos pertinentes a religião na geografia foram publicados esporadicamente neste
período ―clássico‖, para entender as raízes da abordagem da religião na geografia é de
vital importância resgatar os seguintes autores e suas obras que ofereceram enormes
contribuições para o estudo da geografia da religião: Pierre Deffontains com a obra
―Géographie et religions” (1948), que investiga em sua obra as relações entre as
culturas e suas representações no espaço, Maximilien Sorre em ―Rencontres de la
géographie et de la sociologie‖ (1957), evidenciando elementos religiosos em textos
geográficos e também David Sopher com ―Geographie of religions” (1967), analisando
os fenômenos religiosos e abordando a interação espacial destes com uma dada cultura e
seu ambiente terrestre complexo entre diferentes culturas.
Podemos definir com o marco dos estudos geográficos sobre religião no Brasil o
ano de 197278, na cidade de São Paulo é publicado aquele que seria o primeiro trabalho
que aborda o tema; Maria Cecília França publica sua tese de doutorado em geografia na
USP chamada ―Pequenos Centros Paulistas de Função Religiosa‖. O autor Santos
(2002, p.24) em seu artigo ―Introdução a Geografia das religiões‖ ao analisar o
trabalho de Maria Cecília afirma:
A tese de FRANÇA é um estudo geográfico da devoção a Bom Jesus
da Cana Verde nos pequenos centros paulistas de Iguape, Tremembé,
Perdões e Pirapora. Trata-se de um estudo religioso-geográfico a
respeito do catolicismo no Brasil. A autora analisa a organização do
espaço em decorrência dos fluxos de peregrinação dos fiéis, nos
quatro pequenos municípios mencionados. A abordagem geográfica
da autora insere-se na concepção da Geografia Tradicional.
Em contrapartida podemos citar também o trabalho de Gualberto Gouveia, ―A
cidadania dos despossuídos: segregação e pentecostalismo”(1993) que aborda a
religião na geografia, entretanto, sob uma perspectiva metodológica bem diferente, um
cunho notadamente marxista, para SANTOS, 2002: “O autor faz uma análise
geográfica do pentecostalismo no espaço urbano de São Paulo, tendo como delimitação
78
―Introdução a Geografia das religiões‖ de Alberto Pereira dos Santos, pág. 24, 2002. - GEOUSP _
Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 11.
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espacial o bairro da Freguesia do Ó e defende que esse sistema religioso produz uma
cidadania às avessas, isto é, um tipo de segregação sócio-espacial.”
Por fim não podemos deixar de ressaltar o trabalho de ZENY Rosendahl: ―Espaço
e Religião: uma abordagem geográfica” (1996), em um artigo que relaciona muito bem
os temas da geografia e da religião, apresentando autores clássicos da geografia da
religião e até sugerindo novos eixos temáticos a serem explorados dentro dessa área do
conhecimento.
Logo, observamos que as publicações de estudos envolvendo a geografia da
religião vêm com o tempo adquirindo maior importância e relevância a partir dos
últimos anos, seguindo uma própria tendência dos estudos geográficos de enfatizar a
dimensão cultural, simbólica, fenomenológica do território. Os conceitos clássicos da
geografia que explicavam o território sob uma ótica cartesiana e imutável se tornam
defasados ao percebemos a lógica complexa e emaranhada da contemporaneidade, nas
palavras de Claval (1999): ―houve uma significativa mudança na forma de conceber o
fenômeno religioso em Geografia depois de um diálogo maior com as Ciências da
Religião de base fenomenológico. Desse modo foi possível estudar o fenômeno religioso
além da manifestação concreta na paisagem.” A partir de então a religião perde o
caráter de materialidade imediata, tornando-se indissociável dos estudos que tenham a
pretensão de explorar a territorialidade por completo atualmente.
Fundamentação Teórica
Depois de toda a contextualização da abordagem cultural na geografia e do
histórico dos estudos religiosos na geografia podemos definir alguns conceitos
importantes, primeiramente definimos a geografia da religião como um eixo temático da
geografia humana, tema este que vem sempre à tona ao realizarmos estudos culturais na
geografia, sua área de estudo seria de forma geral, temas que associem as formas
religiosas a estruturas geográficas, na definição dada por Gil Filho (2007, p. 208):
A Geografia da Religião circunscrita a uma interpretação espacial da
prática religiosa ou do conjunto de objetos religiosos da paisagem é
limitada. Todavia, em seu sentido amplo, a prática religiosa se
apresenta como um fenômeno da cultura humana inspirada na busca
da transcendência ou imanência. A materialidade imediata da prática
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religiosa não é um fim em si mesmo, mas um meio inicial de
compreensão da dimensão religiosa. Neste contexto a Geografia da
Religião é uma subdisciplina da Geografia Humana que tem por
objeto o fenômeno religioso visto como um espaço de relações
objetivas e subjetivas consubstanciadas em formas simbólicas
mediadas pela religião.
Portanto podemos concluir que a religião possui uma dimensão geográfica, na
medida em que envolve na sua dinâmica categorias geográficas, como: a população, o
território, a paisagem, entre outros, sua responsabilidade é investigar o espaço da
religião como parte integrante do espaço social.
Após definir qual sua área de estudo e como ela colabora para a geografia, esta
que se realiza através de uma intersecção entre religião e espaço, vamos adentrar um
pouco mais nos conceitos da geografia da religião, o primeiro conceito pertinente que
abordaremos é o simbolismo, este que é considerado superação da vida biológica
através desta ―aculturação‖ de hábitos comuns a todas as espécies, entendemos que o
homem não vive somente no mundo dos fatos, mas principalmente no universo
simbólico, e a religião é parte deste mundo abstrato, a atividade simbólica modela o
mundo em dimensões de experiências, estas formas simbólicas se fazem presente nas
artes, na linguagem e em diversos fatores da vida social.
Compreendendo como o universo simbólico é importante para a geografia da
religião partiremos para outro conceito vital ligado a essa disciplina; o ―Espaço
sagrado‖ este espaço ocupa uma posição mediadora entre o espaço concreto e o espaço
abstrato, Gil Filho (2007, p. 210-211) projeta três espacialidades possíveis de se captar
para o espaço sagrado:
(i) A espacialidade inicial em um espaço de expressões como
dimensão objetivada de sua empiricidade imediata. Neste contexto o
espaço sagrado se apresenta como palco privilegiado das práticas
religiosas.
(ii) Na segunda espacialidade, o espaço sagrado é apresentado no
plano da linguagem na medida em que as percepções religiosas são
conformadas a partir da sensibilidade nas formas tempo e espaço.
Neste sentido as coisas religiosas da expressão empírica são
configuradas como formas da intuição explicitadas em um processo de
desenvolvimento rumo às representações. Trata-se da saída do mundo
das sensações e a entrada no mundo da intuição que através do espaço,
tempo e número compõem a síntese lógica da linguagem.
(iii) A terceira espacialidade é uma desconstrução heurística do espaço
das expressões empíricas e o espaço das representações simbólicas.
Trata-se de um espaço propositivo e sintético que articula o plano
sensível ao das representações galvanizada pelo conhecimento
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SOBRE A RELIGIÃO
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religioso. Compreende as formas do conhecimento edificado e
manifesto pelo homem religioso em um complexo de convicções
hierarquizadas relacionadas à tradição e ao sentimento religioso. As
crenças edificam um senso de sacralidade instrumentalizada pela
herança de arranjos institucionais que denotam determinadas visões de
mundo. O espaço sagrado, como espacialidade social do
conhecimento, incorpora a idéia unificadora do pensamento religioso
no conceito da Divindade. No momento em que o pensamento
religioso alterna-se no objetivo e no subjetivo, ultrapassa e liberta-se
dos ditames funcionais da linguagem e atinge o plano da
transcendência.‖
A seguir algumas contribuições teóricas para as ciências sociais advindas do
estudo da religião por parte da geografia.
Algumas contribuições para os estudos religiosos por parte da geografia
Ao pensarmos os estudos geográficos sobre a religião talvez o que vem a mente
primeiramente sejam as diásporas e migrações, estes provavelmente são os temas que
mais saltam aos olhos à contribuição da geografia para esses estudos. Para os
deslocamentos provocados pelas religiões Rosendahl ofereceu enormes contribuições,
definindo centros de convergência e irradiação, em seu estudo discorreu sobre as
migrações de caráter global; definindo Londres e Roma como os maiores centros de
convergência do mundo católico, por exemplo, enquanto a Meca é o principal destino
de migração islâmica, Benares o centro sagrado dos hindus, relata ainda que este caráter
migratório possa ser reforçado por um revestimento turístico dado pelo governo além de
outras considerações no caráter regional menciona um curioso estudo sobre Munquem
cidade localizada no estado de Goiás que possui cerca de 200 habitantes e atraem em
determinada festa religiosa um contingente de 60 mi pessoas, ou seja, como podemos
ignorar o impacto deste fluxo populacional na dinâmica territorial?
Outros estudos importantes foram aqueles que definiram uma correlação entre
religião e territorialidade, lembrando que a territorialidade remete a ação e controle do
território e das pessoas territorializadas, partindo disso Sopher79 classificou as religiões
em dois grandes grupos de acordo com sua relação com o território: religiões étnicas e
religiões universalizantes, sendo que as primeiras estão associadas a um grupo
específico de pessoas e normalmente estão vinculadas a um lugar especifico, enquanto
79
Sopher, D. Geography of Religions, op. cit
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que as universalizantes rompem os laços com seu lugar específico de origem para
disseminar sua mensagem. Em seu estudo ele ainda aprofunda em como a igreja católica
romana desenvolveu ao longo do tempo seu domínio à exemplos claros de
territorialidade. Ainda seguindo os estudos de Sopher as religiões universalizantes
criariam em seus domínios três expressões de territorialidade: coexistência pacifica,
instabilidade e competição e intolerância e exclusão.
Para finalizar podemos citar também como contribuição o autor Alberto Pereira
dos Santos que em seu artigo ―Introdução a geografia das religiões”, traz várias
considerações sobre a formação religiosa do Brasil, resgatando na história a influência
da ocupação portuguesa na dispersão do catolicismo em nosso território e do
sincretismo característico brasileiro oriundo do contato entre povos de diversas culturas
em um mesmo espaço
Considerações Finais
Neste ensaio o principal objetivo era emergir o assunto da religião para a
geografia, que apesar dos consideráveis avanços tanto qualitativos como quantitativos
nesta área do conhecimento, ainda apresenta por parte dos geógrafos certa relutância na
participação em suas discussões. Ao percorrer de maneira breve a história da abordagem
do tema religião e cultura pela geografia e mostrar as suas importantes contribuições
pretendemos desmitificar o assunto, e mostrar tanto para aqueles que são oriundos da
ciência geográfica como de outras ciências sociais que a geografia deve se inserir nestas
discussões e colaborar junto com a história, a antropologia entre outras, para um melhor
entendimento não só da religiosidade como de todas as manifestações culturais em
geral.
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CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
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CASA DE CONVIVÊNCIA E ALQUIMIA ESPIRITUAL –
O Sagrado, a New Age e a Ayahuasca.
Anderson Leon Almeida de Araújo;
Diego Hajime; Rainie Vieira Mendes;
Rodrigo Sampaio Pinto; Vanessa Moreno80
Resumo: O presente trabalho buscou problematizar os novos movimentos religiosos
que fazem parte do cotidiano da sociedade. Deste modo, escolhemos o templo
espiritualista Casa de Convivência e Alquimia Espiritual para entender como esses
indivíduos, a fim de alcançar uma elevação espiritual, interagem com a sociedade e
agem entre si. O grupo ali instalado desenvolve trabalhos de ajuda pessoal e espiritual
unindo uma grande diversidade de crenças, símbolos e ritos, atendendo, em grande
medida, indivíduos advindos de camadas mais abastadas da sociedade. Sendo assim,
buscamos pensar nas transformações no campo religioso, a não religiosidade - capaz de
agregar todas as religiões, a própria questão universalista, os sincretismos, além das
questões emocionais que perpassam a modernidade religiosa, entre outros.
Palavras-chaves: Universalismo, Ayhuasca, Sagrado
Objetivos e Justificativa:
A pesquisa solicitada como avaliação para a disciplina optativa Sociologia
da Religião, ministrada pela docente Silvia Fernandes no segundo semestre de 2011,
busca problematizar movimentos e fenômenos religiosos que atravessam o cotidiano da
sociedade fluminense. Desta forma, foi escolhida pelo grupo em questão, um templo
espiritualista, a Casa de Convivência e Alquimia Espiritual.
A Casa – um sobrado na Rua Soriano de Souza, 47, Tijuca – oferece
diversos serviços espirituais para aqueles que buscam um atendimento espiritual
diferenciado. É diferenciado o atendimento neste templo, pois como relatado, a maioria
dos sensitivos do grupo são graduados em psicologia. Para além das consultas
80
Graduandos em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
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espirituais, a casa dispõe de sessões de acupuntura, yoga, massagem de relaxamento
visando o equilíbrio dos chacras, sessões de umbanda e santo daime.
A Pesquisa Qualitativa intitulada ―Casa de Convivência e Alquimia
Espiritual – O Sagrado, a New Age e a Ayahuasca‖ visa questionar e esclarecer alguns
pontos pertinentes a uma comunidade espiritualista. A partir da entrevista proposta,
buscou-se discutir alguns pontos importantes, como a relação dos membros com a casa,
as atividades da mesma, a relação destes com o sagrado, e com o uso da ayahuasca.
Cada uma das questões estará sendo discutida nos capítulos a seguir.
Compreender este fenômeno religioso ascendente mostrou-se o maior
desafio para os pesquisadores. Por não se tratar de um grande movimento religioso a
qual estamos habituados, tudo parecia estranho e inovador. O espaço físico e a
quantidade de símbolos diversos distribuídos pelo ambiente, a variedade dos serviços
prestados pela casa, com origens diversas, da popular umbanda às leituras de Ramatis, e
as concepções de Sagrado expressas pelos praticantes nas entrevistas, nos proporcionou
material rico para o início de uma percepção e compreensão deste fenômeno religioso
em questão.
Metodologias de Pesquisa:
Ao recebermos a notícia de que poderíamos visitar e conhecer a Casa de
Convivência e Alquimia Espiritual, mos preparamos para colocar em prática métodos
pertencentes à metodologia qualitativa, a observação participante81 e entrevista aberta
com os membros da casa.
Visto os problemas logísticos que uma observação participante impõe, referentes
a uma rotina e participação nos afazeres do grupo, optamos por dois momentos na
pesquisa. O primeiro seria uma visita para conhecer o grupo, na tentativa de participar
de alguma sessão religiosa, estabelecendo assim um mínimo contato entre o pesquisador
81
Visto que a observação participante leva tempo para ser adequadamente realizada, e que não teríamos a
disposição este tempo. Procuramos desenvolver nossa atividade minimamente baseada em conceitos da
observação participante apresentados por Licia Valladares em artigo à Revista Brasileira de Ciências
Sociais, intitulado Os Dez Mandamentos da Observação Participante. Disponível em novembro de 2011
no site http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-69092007000100012&script=sci_arttext. Neste
artigo, a autora apresenta uma discussão dos clássicos da sociologia e antropologia que discutem o
método qualitativo em questão.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
150
e os sujeitos da pesquisa. O segundo consistia na tentativa de uma maior aproximação
com os indivíduos que frequentavam a casa através de uma entrevista.
Após um primeiro contato marcamos uma visita ao local e participarmos de uma sessão aberta,
a consulta espiritual. Durante a consulta, fomos convidados a sentar junto aos médiuns, e ouvir
junto com eles os problemas daqueles que ali buscavam amparo.
Depois disso, em um terceiro momento, fizemos a entrevista proposta. Realizada de modo
descontraído, com questões elaboradas pelo grupo, com colaboração da docente, a entrevista
realizou-se em um dia que não havia trabalhos espirituais, ou seja, os médiuns que dela
participaram se dirigiram ao templo apenas para este fim. Seguem as questões:
1. Que aspectos você destacaria como motivadores para a sua busca a Casa de Convivência e
Alquimia Espiritual?
2. A participação na Casa tem relevância em sua vida pessoal e espiritual? Por que?
3. No cotidiano da Casa, existe alguma atividade especial para você? Qual? por que?
4. Você acha que há uma manifestação do sagrado em sua vida? Como define o sagrado?
5. Qual a sua relação espiritual com o uso do Daime?
As questões visavam problematizar a participação do médium naquele grupo, ao
invés de casas espíritas tradicionais, ou mesmo em igrejas de Daime ou em terreiros de
umbanda; A relação entre o médium e o sagrado, buscando saber como o membro deste grupo
observa o sagrado, e como ele se manifesta em sua vida espiritual; As relações entre o médium e
as atividades na casa, e seu convívio com o grupo; e, por fim, a relação espiritual com o uso do
Daime, sua justificativa e proposta.
As entrevistas foram devidamente autorizadas e se encontram gravadas. Foram
duas as entrevistadas, uma senhora, de 56 anos, graduada em Psicologia que chamaremos de
entrevistada A, e uma jovem de 25 anos também graduada, em pedagogia, a quem chamaremos
de entrevistada B.
A entrevista, como dito, transcorreu de maneira descontraída numa sala de espera
da casa, sentados em sofás, com pés descalços, conversamos em roda, assim como visto na
mesa. As questões abertas levaram ao que intitula Fernando Rey82, a uma dinâmica
conversacional83. As entrevistadas muito contribuíram para a pesquisa, respondendo com
atenção a todas as questões, analisadas em seguida à luz dos teóricos escolhidos.
Introdução – Observando uma consulta espiritual aberta ao público:
82
GONZÁLES REY, Fernando. Pesquisa Qualitativa e Subjetividade: Os Processos de Construção da
Informação. São Paulo: Cengage Learning, 2010.
83
GONZÁLES REY, 2010, P.126.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
151
A Casa de convivência e Alquimia Espiritual é um templo espírita universalista que
congrega diversas atividades religiosas em um só lugar, Daime, Umbanda, Kardecismo. É
constituído por médiuns liderados pelo chefe da casa, Alexandre, estes são de várias faixas
etárias, e se revezam nas tantas atividades da casa. Para conhecer de modo superficial o grupo,
basta visitar seu blog: http://casadeconvivencia.blogspot.com/2008/12/quem-somos-ns.html,
onde assim eles se apresentam:
Somos um grupo estudioso do mistério da vida em suas diferentes
manifestações. Para nós há sempre um encanto na forma como tudo
acontece, pois por mais que soframos, somos aos poucos obrigados a
nos render as evidências do Poder Criador. O Sol, a Lua, as Estrelas,
todo Firmamento nos convidam a cada dia a render essa profunda
homenagem a esse Poder.
Visto a impossibilidade da participação em rituais fechados da casa, o que seria
consequência apenas a um longo período de pesquisa e interação ao grupo, seguimos a uma
sessão de atendimento espiritual aberta ao público, que ocorre sempre às quartas feiras a
partidas 14:00 horas da tarde. E após a retirada de nossos calçados e uma breve conversa sobre a
pesquisa com um dos membros da casa, e visto que estes já sabiam da nossa visita, fomos
encaminhados à sala onde ocorriam os atendimentos. Após uma sessão de passe espiritual84, nos
posicionamos em uma parte da sala de forma distanciada da mesa. Quando os cânticos iniciais
provenientes de hinários do culto Santo Daime, entoados ao som de Maracás, iniciaram, fomos
convidados a participar, cantando as canções de abertura da sessão.
As consultas começam após as orações de Pai Nosso e Virgem Maria, e logo
percebemos a vital importância do líder da casa, um senhor de óculos, roupa branca, cabelos
pintados e encaracolados, que se posicionava na extremidade da longa mesa que deveria ter uns
4 metros de comprimento. Ele liderava a consulta, respondendo às aflições daqueles que
procuravam a casa, e dando lições espirituais baseadas em ensinamentos deixados por outros
líderes religiosos85.
Após alguns atendimentos, fomos chamados a sentar nas cadeiras em volta da
mesa, intercalados ao lado dos médiuns. Neste lugar podíamos ter uma interação maior com os
outros médiuns que estavam ao nosso lado, e também poderíamos observar diretamente o líder.
Nesta dinâmica, ouvíamos atentamente os problemas daqueles que buscavam o atendimento.
Dentre os vários motivos que levavam os visitantes à consulta têm a depressão, o
divórcio e a aposentadoria como os principais queixumes. Problemas familiares eram colocados
84
Elemento presente nas sessões espíritas kardecistas, visa limpar espiritualmente o atendido, para que
este possa participar de forma mais profunda da sessão espiritual.
85
Cita-se neste caso as figuras recorrentes na fala do líder: Mestre Jesus, Mahatma Gandhi, Sai Baba,
Ramatis, Caboclos e Pretos Velhos, Dalai Lama, Chico Xavier, entre outros.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
152
à mesa. Em um momento, um casal se apresenta, e na frente de todos, começam a expor seus
problemas envoltos em palavrões e lágrimas. Todos observam com atenção, sem fazer nenhuma
crítica. O líder convoca os médiuns para uma concentração em torno do problema e após dá o
seu diagnóstico, e a receita para uma relação mais saudável, tendo como principais
medicamentos: a paciência e a alegria.
A maioria dos que estavam buscando atendimento nos parecera fazer parte de uma
classe média local, isto estava explícito em suas falas, ao citar o ‗apartamento em Copacabana‘,
‗as baixelas de prata da minha avó‘, ‗o meu restaurante que fechei após a depressão‘, ou ‗eu era
gerente de tráfego aéreo da agência nacional de aviação civil‘.
Quanto à faixa etária dos médiuns e dos que procuravam solucionar os seus
problemas, percebia-se uma maioria de pessoas de meia idade, quando se colocou o problema
do o que fazer quando chega a aposentadoria, dois dos médiuns disseram que começaram a se
dedicar a esta vida espiritual após a aposentadoria em seus respectivos empregos.
Alguns jovens médiuns também participavam dos trabalhos na mesa, ao qual nos
chamou a atenção um rapaz com a aparência de 25 anos, com todo o corpo tatuado, brincos e
piercings por toda a orelha e rosto, longa barba, mas vestido com a farda azul padrão de todos os
médiuns, calça branca, rosário azul no pescoço, e que durante as cinco horas em que
acompanhamos a sessão, permaneceu sempre de olhos fechados, em posição de concentração,
sentado na cadeira, com as mãos espalmadas para cima sobre os joelhos.
O líder carismático, falava usando metáforas explicativas, mas em um linguajar
coloquial, usando gírias e palavrões. Contava histórias de sua própria vida, de sua juventude, o
que levava algumas vezes, aos demais médiuns a também contarem suas histórias de vida em
meio às consultas.
O espaço físico da sala era bem interessante, e mostrava um misto de várias
crenças ocidentais e orientais em um único lugar. Sobre a mesa coberta de branco, pedras,
cristais, flores, fontes de água artificiais, luzes, velas de plástico e neon, rosários, hinários, jarras
e copos d‘água. Nas paredes, quadros e imagens, citamos o quadro do Mestre Jesus sorrindo, de
Ramatis, quadros e imagens de divindades hindus, imagem de Buda, de Caboclos, Pretos
Velhos, Santos católicos sincretizados na umbanda, Saint German, cruzes cristãs, o símbolo
confusionista yin yang, uma imagem da pomba que representa o Divino Espírito Santo. Tudo
isto cercado de muitos elementos do culto Santo Daime: uma grande imagem de Nossa Senhora
da Conceição envolta pelas fotografias do mestre daimista Raimundo Irineu Serra, a Cruz de
Caravaca, Maracás, Sol e Lua nas paredes, beija-flores e rosários, além da própria Ayahuasca, a
bebida sagrada para os daimistas, estocada em uma garrafa azul, cercada por velas de plástico e
neon.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
153
A sessão de consultas espirituais terminou, dando lugar a uma reunião de
concentração e estudo para a realização do caminho de Santiago de Compostela, um próximo
projeto dos médiuns da casa.
O Fenômeno do Pluralismo:
Ao conhecermos, participarmos de um momento da Casa de Convivência e
Alquimia Espiritual e entrevistarmos duas membros da casa, pudemos observar muitas
características do pluralismo, da modernidade e da tradição como transformações no campo
religioso, como sugere o título da obra de Carlos Alberto Steil86.
Steil em ―Pluralismo, Modernidade e Tradição – Transformações no Campo
Religioso‖ afirma que ―Na medida em que a religião deixa de ser fundante do social, enquanto
sua base ou forma de organização, ela permite a emergência de diferentes grupos religiosos que
irão atuar no nível de cultura e do conhecimento‖87. Na fala da entrevistada A, pudemos notar
essa questão quando ela afirma ―(...) é uma casa, e tem assim, uma tendência muito forte ao
estudo e isso me atrai muito.‖ Ao sermos recebidos em uma salinha da casa, pudemos notar que
havia uma estante com livros de doutrinas religiosas das mais variadas. Em nosso primeiro
contato com a Casa, em que participamos de um encontro, onde havia uma mesa branca e as
pessoas sentavam ao redor e iam expondo os seus problemas, suas dificuldades e angústias,
após tal ato, o líder do grupo, de nome Alexandre, muitas vezes, aconselhava a leitura de livros,
que existiam nessa Casa, onde eram emprestados para quem quisesse. O líder do grupo, ao
aplicar o seu ensinamento após o problema exposto, muitas vezes fazia uso de metáforas e de
fatos históricos, sempre mostrando um intelecto apurado.
Outra visão que tivemos da Casa e que podemos fundamentar em Steil é:
Justamente por não ser religiosa (a sociedade moderna) torna-se capaz
de abrigar todas as religiões, sejam elas institucionais, como o
catolicismo, o protestantismo, o budismo, o islamismo, sejam sistemas
de crenças sem uma referência institucional definida ou visível88.
A todo momento da nossa visitação e entrevista, percebemos a presença de muitas
imagens, e além dos livros das mais variadas e diferentes doutrinas, pudemos notar os avisos
dos quadros, onde constava o dia dedicado a umbanda, o dia da visitação a floresta.
A entrevistada A nos afirma que antes de conhecer a casa, era da doutrina
Kardecista, no entanto, sentia que faltava algo, pois considerava o Kardecismo muito rígido, por
86
STEIL, Carlos Alberto. Pluralismo, Modernidade e Tradição, Transformações do Campo Religioso. IN
Ciências Sociais e Religião. Porto Alegre: ano 3, n.3, oct. 2001. p. 115-129.
87
STEIL, 2001, p.116.
88
Idem.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
154
algumas proibições, como o uso de imagens, de velas ou ainda por encontrar casas com
excessos de rituais. Ela nos afirma:
Aqui você não tem muitos rituais, mas você pode usar incenso se você
quiser, eu posso fazer um culto na minha casa com incenso, com
flores, tudo é válido. Porque aqui é uma casa, não é uma casa espírita,
é uma casa universalista.
Steil, ao abordar a pluralidade e a fragmentação religiosa, os denomina como
próprios da dinâmica moderna. Tais características para ele são próprias das sociedades latinoamericanas nesse final de milênio, que se apresentam com o campo religioso transformado e
reordenado. Elas convivem no contexto de um pluralismo aparentemente sem limites à
diversidade. O autor aborda que para autores como Eliade e Sallnow, ―o universalismo é, em
última análise, constituído não por uma unificação de discursos, mas ao invés, pela sua
capacidade de incorporar e responder à pluralidade das demandas religiosas que são trazidas
para os santuários‖.
Ao abordar as atividades presentes na casa, a entrevistada A cita o dia da
Umbanda, nos afirma que esta, é uma atividade recente e que passou a existir no cotidiano na
casa devido a uma mensagem que os sensitivos receberam, e nos explica como se dá a
constituição dessa atividade nesse espaço:
Tem o trabalho da umbanda que é um trabalho onde a gente tá, e é
interessante porque não é uma umbanda como a gente tá acostumado a
ver nos centros de umbanda, que são muito interessantes, mas eles são
muito... eles seguem toda aquela linha tradicional de oferenda. A
gente não tem isso, mas tem uma eficiência que as pessoas que vêm,
dão retorno. É muito interessante.
Steil ao trabalhar a tolerância religiosa que caracteriza a sociedade moderna diz que
uma de suas características é permitir que rituais e crenças tradicionais e/ou individualizadas,
que eram abafadas pelo sistema dominante possam ser revitalizadas.
Oro89 enfatiza que o traço da identificação da privatização da religião é ―a ação dos
indivíduos no sentido de moldar a sua própria religião, apropriando-se de fragmentos e de
elementos provenientes de diversos sistemas religiosos‖. Steil, no entanto, enfatiza que esse
fenômeno não se trata de uma tendência da sociedade moderna, já que tal fato já é recorrente na
história do cristianismo. O autor cita ainda os trabalhos de campos realizados com estudos do
catolicismo, visando enfatizar a existência de reinvenção de cultos aos santos, afirmando:
As possibilidades de organização num universo de representação
simbólica a partir de elementos provenientes de diferentes sistemas
89
STEIL, 2001. Apud ORO, 1997.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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155
religiosos não se constitui num drama de consciência para os devotos
do catolicismo popular tradicional.
Steil afirma que o fenômeno de revitalização religiosa não é fruto simplesmente da
sociedade moderna, já que ele de uma forma ou de outra, sempre se fez presente.
Ari Pedro Oro irá abordar ainda a presença do trânsito religioso, típico da religião
na modernidade. ―deslocamento dos atores religiosos por diversos espaços sagrados e/ou
crenças religiosas e na prática simultânea de diferentes religiões‖90
Segundo Jean Séguy91, nessa sociedade moderna irá existir a presença, como
denomina o autor, de ―religiões analógicas ou metafóricas‖, de orientação econômica,
terapêutica, espiritual, ecológica. Tais orientações têm uma presença muito forte na Casa de
Convivência e Terapia espiritual.
No nosso primeiro contato com a Casa, no dia destinado (quarta feira) para as
pessoas exporem seus conflitos, angustias, denominado trabalho de mesa ou consulta espiritual,
as questões expostas eram as mais variadas, como problemas conjugais, o momento correto de
consolidar a aposentadoria, problemas espirituais, com a família, trabalho, sensação de vazio,
carência de afeto. As pessoas presentes, expunham seus problemas, onde os demais ouviam, o
líder propunha que todos os sensitivos buscassem ‗enxergar‘ a causa das angústias expostas,
usando a expressão ―firmar‖ para tal momento. Após tal ritual, cada sensitivo comunicava o que
viu/sentiu. Logo após, quem tivesse uma mensagem a respeito do problema exposto para o
outro, estava livre para comunicar. O líder também comentava, fazendo uso de metáforas ou
não, no entanto, sempre com uma abordagem fundamentada em algum acontecimento histórico,
em algum líder religioso, podendo ser ligados as mais variadas manifestações, como o
Xamanismo, o Budismo, o Catolicismo, forças da natureza, entre outros, além da citação de
filósofos. Podemos fazer alusão de tal fato ao que Jacques Maítre92 chamou de ―nebulosa das
heterodoxias‖, que seria essa mixagem de gêneros entre religião, filosofia, medicina, psicologia,
ecologia. Em nossa presença na casa, pudemos notar essa forte presença de um caráter
terapêutico. Visão que percebemos também na fala das entrevistadas.
A entrevistada B nos afirma: ―Em certo momento da vida, é, aqueles momentos
que a gente tá desesperada. A gente sempre procura uma ajuda e eu senti um acolhimento‖, e a
entrevistada A:
Sabe quando você tá precisando de um colo? A casa tem esse colo pra
oferecer pras pessoas e ela recebe muitas pessoas com muitas
carências, muitos tipos de carência. E tem uma outra característica da
90
STEIL, 2001 Apud ORO, 1997.
STEIL, 2001 Apud SÉGUY.
92
STEIL, 2001 Apud MAITRE, 1987.
91
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
156
casa, que a maioria dos sensitivos daqui ou são psicólogos ou tem
formação em psicologia, e isso dá uma característica, assim muito
diferencial na casa. É... nós usamos nas quartas feiras, os trabalhos
com mesa como vocês viram, né? Com a mesa e os sensitivos e, as
pessoas vêem, elas falam exatamente porque tão aqui, é perguntado
isso a elas e elas falam da dor que tão sentindo por determinado
assunto qualquer da vida delas e aí todos ouvem, ouvem porque é
sentido, é como se fosse uma terapia com o espiritual.
Françoise Champion e Danièle Hervieu-Lèger93 enfatizam ―a religião emocional
passa a ser um dos sinônimos da modernidade religiosa‖. Logo Steil enfatiza que ―o tradicional
e o pós-moderno religiosos têm em comum o fato de privilegiarem mais o pólo sensorial na
produção de sentidos do que o pólo ideológico‖94.
Pierre Sanchis95 trabalha a ideia de que
o cultivo sustentando por emoções cambiantes que vem caracterizando o ato religioso, ou social
contemporâneo, Segundo o autor, a procura contemporânea do sentido religioso da vida, é
pautada mais em emoção ―que tenha som da verdade‖ e menos em ―verdade objetiva‖. Sanchis
enfatiza: ―há a primazia da emoção sobre a razão raciocinante ou científica.‖
Steil ao trabalhar o ―re-encantamento‖ do mundo, enfatiza que não se trata de uma
volta ao sagrado fundante do social, seria a recriação de um mundo que é autônomo em sua base
estrutural, no entanto, está habitado por deuses, forças, energias, mistérios, magias.
Identificamos tal abordagem de Steil ao vivenciarmos e conhecermos um pouco do dia a dia da
casa. Cada membro tem suas particularidades, maneiras próprias de manifestarem sua
espiritualidade. Tudo é válido e tem sua significação. Uns se identificam com tais atividades,
alguns com outras, no entanto, todas as atividades são válidas. Ensinamentos de deuses e líderes
espirituais, forças da natureza, mistérios de outra dimensão, energização... Steil afirma que
perpassando pela experiência moderna no Ocidente, há uma nova relação, esta estabelecida
entre a razão e o coração, que nesse caso, andam juntos. É a busca pela autenticidade afetiva,
sendo as vivências espirituais parte das trajetórias pessoais. A maior demanda atualmente se
expressa na tentativa de eliminar vazios deixados pelo estado de insatisfação, típicos da
sociedade moderna.
Observamos no cotidiano da Casa de Convivência e Alquimia Espiritual, diversas
manifestações de espiritualidade. Cada um estava livre para optar pela que mais se identificava.
Não há uma única crença como válida nessa Casa. Notamos imagens de diferentes doutrinas,
93
STEIL, 2001 Apud CHAMPION; & HERVIEU-LÉGER.
STEIL, 2001.
95
SANCHIS, Pierre. Religiões, Religião... Alguns Problemas do Sincretismo no Campo Religioso
Brasileiro. IN: Fiéis & Cidadãos. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001.
94
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
157
organizadas em um mesmo espaço. Como afirma Sanchis: ‖sincretismo‖ é parte das mais
antigas tradições e, ao mesmo tempo, das emergências da mais atual ―modernidade‖.
O Sagrado para os frequentadores da Casa de Convivência e Alquimia Espiritual:
Falemos agora da questão do sagrado e como as duas entrevistadas e
frequentadoras da casa concebem o sagrado em suas vidas, e como conceituam o mesmo.
Começaremos com um relato da entrevistada B que nos chamou muita atenção, e a partir desse
relato poderemos fazer a aproximação do conceito de sagrado e entender um pouco sobre a
espiritualidade nos indivíduos, na Casa de Convivência e Alquimia Espiritual.
Eu sou uma faltosa né? Eu falto mais do que venho. Mas, exatamente
por isso, eu sinto uma falta de estar aqui. Pra mim ainda é muito
necessário a presença aqui pra fazer uma renovação, sabe, eu não
tenho a minha espiritualidade, ela não é consolidada, muito bem
estruturada, assim... E ai, eu sempre... É claro que toda vez que eu
tenho um enfrentamento, por exemplo, agora eu comecei a trabalhar,
eu sempre retorno a esse lugar como um lugar que eu sei que eu vou
vir, vou buscar força pra dar continuidade. E sempre funciona sabe...
É uma coisa... É incrível mesmo, porque te fortalece, mas você não é
só humano, você é espiritual. E aqui a gente descobre... Eu descobri
pelo menos que essa coisa de errar, eu posso.
No trecho acima retirado da entrevistada B, podemos observar a necessidade que
ela possui de estar em contato com a Casa para ter a sua espiritualidade fortalecida. Da mesma
forma, vemos como ela considera importante essa prática para as suas realizações e sua vida em
sociedade. Dessa forma, Émile Durkheim96 relata a convivência entre religião e sociedade, onde
liga a ideia de religião ao sagrado. Entendemos que os conceitos de religião, sagrado e
sociedade em Durkheim se encaixam nessa fala da entrevistada, uma vez que ela está levando
uma vida em sociedade seguindo os aspectos religiosos do sagrado.
Outra constatação interessante nesse relato, é que ela dá valor a presença na casa
espiritual para se sentir bem em sociedade, além disso, ao relatar que é uma faltosa, e que por
isso sente falta de estar na casa, percebemos como ela depende da presença no ato religioso para
sentir o sagrado. Logo, trazemos novamente para a discussão teórica as ideias de Émile
96
DURKHEIM, Émile. Conclusão In: As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins
Fontes, 1996, p. 455-498.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
158
Durkheim. Porém, utilizaremos seu comentador Pierre Sanchis97 que descreve as grandes
contribuições de Durkheim. Sanchis, ao relatar sobre como Durkheim concebia o sagrado, relata
sobre a importância atribuída ao rito, sendo esse um recriador do estado de efervescência do
sagrado. Dessa forma o rito traria o homem de volta ao sentido sagrado uma vez que o cotidiano
o afaste. O rito com suas repetições do sagrado recria sua efervescência, fortalece o sagrado,
porém tem estado dual, podendo recriar algo novo. Nesse sentido, a religião seria a mantedora
do sagrado.
Ainda sobre os ideais de Émile Durkheim, discorremos sobre a relação que o autor
faz entre religião e sociedade, que será de muito proveito para o entendimento e continuidade do
trabalho. Ao fazer uma grande análise sobre a relação religião x sociedade, Durkheim relata que
a partir da religião é possível compreender a sociedade, sendo assim elas possuem uma relação
de troca e reflexo, uma ante a outra. Levemos então esse pensamento para o sagrado, que seria
para Durkheim aquilo que a religião necessita fortalecer a partir de verdades concebidas em
sociedade. Logo, teremos no sagrado um elemento central na discussão religião x sociedade.
Vejamos o relato da entrevistada A sobre o sagrado:
Toda dia quando a gente acorda, a gente já se põe diante do sagrado.
Porque o sagrado é a vida, a vida é o sagrado, o sagrado está em mim,
em você, em todos nós. Então se a gente olhar a vida como uma
manifestação do sagrado, tudo muda...
A relação que a entrevistada faz entre o sagrado e a vida cotidiana é muito
interessante, pois desta forma, o sagrado se põe como elemento central na vida de uma pessoa,
não apenas um elemento central da religião. Veremos mais a frente, o que a mesma entrevistada
relata sobre a questão da religião e igreja no conceito de sagrado na vida. Pensemos também no
relato desta, na questão comunitária que Durkheim inclui em seus estudos, em que os indivíduos
unidos em comunidade elevam o sagrado ao seu estado de efervescência. A entrevistada
concebe essa força do sagrado no interior de cada indivíduo. Para Durkheim, a religião interage
diretamente com a sociedade e possibilita ao indivíduo viver em laços comunitários, podendo a
partir de objetos do sagrado ritualizar e recriarem o sagrado.
Vamos passar novamente ao relato da entrevistada B, para observarmos a forma
como ela enxerga o sagrado em sua vida, e desta maneira detalhar ou comparar com maior
riqueza de detalhes como cada uma concebe a força do sagrado na vida:
Tá aí, né? Tá no dia a dia, quando você acorda e vê o passarinho
cantando, o sol sobe... Toda essa força que é da natureza, ela é divina,
97
SANCHIS, Pierre. A contribuição de Émile Durkheim. In: Faustino TEIXEIRA (Org.). Sociologia da
religião: enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 36-66.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
159
só que a gente está tão acostumada a viver com ela que a gente
naturaliza e tira a dimensão espiritual de tudo isso.
Interessante notar que esta entrevistada vai além da relação entre indivíduo e
sociedade. Ela atribui a força do sagrado às noções naturais, forças da natureza. O dia a dia vem
ligado não só ao cotidiano como também aos fenômenos naturais que a rodeiam. Dessa maneira,
a entrevistada afirma que o cotidiano separa o homem de perceber essa força natural e conceber
o sagrado, o divino e a espiritualidade existente. Porém quando vai tentar definir um conceito
para o sagrado em sua vida, a mesma entrevistada relata que:
Acho que não saberia definir. Existia uma relação que é muito
ampla... De uma força, de uma crença que não tem como você
enquadrar.
A afirmação acima pode ser novamente ligada aos estudos de Émile Durkheim. A
força relatada por esta, se encaixa na questão da criação e afirmação do sagrado a partir da
religião, tendo o rito como instrumento de repetição. Uma vez que esse conjunto de relações
está estruturado por uma verdade criada em sociedade, o sagrado passa a existir mesmo sem a
necessidade de sua materialização.
Apresentaremos agora um relato que pode também ser compreendido como um
desabafo. A entrevistada A, quando ainda discorria sobre a ação do sagrado no dia a dia acaba
por se colocar da seguinte maneira:
Se a gente vê as sociedades onde o sagrado era muito vivo no dia a
dia, como os egípcios, os incas, os maias. Eles tinham uma
aproximação do sagrado na vida, a vida era tão sagrada que eles não
precisavam pensar no sagrado, porque eles viviam o sagrado... Hoje
em dia o que a gente vê? É uma violência com o sagrado. As pessoas
resolveram abolir o sagrado de suas vidas. E isso tem um custo,
porque essas coisas que a gente vê, assim, dessa violência, dessas
coisas que nos deixam estarrecidas, isso é coisa de violência com o
sagrado. E se o sagrado com sua vivência assim... O mundo hoje,
assim em uma visão minha, está em uma falta com o sagrado. Não é
falta de religião, religião é uma coisa muito fácil de se ter... E muita
gente fala ‗Eu tenho uma religião‘, é porque vai à igreja, faz aquelas
coisas, ora, não sei o que, e acabou, como se o sagrado acabasse ali,
estivesse circunscrita na igreja, e não é isso. O sagrado é na vida... E
você não precisa ter religião nenhuma pra vivenciar o sagrado...
Procuremos entender parte por parte o relato da entrevistada A. Em um primeiro
momento ela relata sobre a relação das antigas sociedades com o sagrado, afirmando que essas
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
160
possuíam sagrado bem próximo de suas vidas, havia uma junção entre vida, individuo em
comunidade, sociedade e sagrado. Podemos entender que ela possui essa maneira de conceber o
sagrado como o ideal para a sociedade. Vejamos novamente essa parte:
Se a gente vê as sociedades onde o sagrado, ele era muito vivo no dia
a dia, como os egípcios, os incas, os maias. Eles tinham uma
aproximação do sagrado na vida, a vida era tão sagrada que eles não
precisavam pensar no sagrado, porque eles viviam o sagrado...
Após isso, ela começa a fazer uma denúncia em forma de desabafo sobre como a
sociedade atual deturpa o sagrado, separam totalmente o sagrado da vida. Para ela, é nesse
momento de separação que se dá o estímulo para a ocorrência de brutalidades. Desta forma, faz
uma evidente separação entre o sagrado e o profano. Lembremos que Durkheim considera que a
definição do que é sagrado e o seu conceito só é possível a partir do momento em que existir o
profano. Mais à frente é relatado que a falta do sagrado tornou o mundo no que ele é hoje.
Vejamos essa passagem:
Hoje em dia o que a gente vê... É uma violência com o sagrado. As
pessoas resolveram abolir o sagrado de suas vidas. E isso tem um
custo, porque essas coisas que a gente vê, assim, dessa violência,
dessas coisas que nos deixam estarrecidas, isso é coisa de violência
com o sagrado. E se o sagrado com sua vivência assim... O mundo
hoje, assim em uma visão minha, está em uma falta com o sagrado.
Por fim esta continua relatando que o sagrado se prende no indivíduo e não na
igreja. A igreja pode até participar da relação, mas não somente ela. Deve ser uma relação muito
mais com a vivência do indivíduo, com a vida em seu cotidiano, do que com a igreja.
Enfatizando novamente que ‗o sagrado é a vida‘.
Não é falta de religião, religião é uma coisa muito fácil de se ter... E
muita gente fala ‗Eu tenho uma religião‘, é porque vai à igreja, faz
aquelas coisas, ora, não sei o que, e acabou como se o sagrado
acabasse ali, estivesse circunscrita a igreja, e não é isso. O sagrado é
na vida... E você não precisa ter religião nenhuma pra vivenciar o
sagrado...
Ayahuasca e Seu uso Religioso:
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
161
Sobre a doutrina do Daime, todos os ensinamentos vêm através de hinos.
Você canta o hino e ali tá toda a doutrina. Porque o Daime, ele nasceu na
floresta...98
A Ayahuasca é a denominação para um chá preparado a partir de um cipó, o
Banisteriposis caapi, e outras folhas com princípio ativo DMT, que seria responsável pelos
efeitos alucinógenos da bebida, mais conhecida como daime. Tal efeito seria procurado devido
sua capacidade de alterar a consciência e a percepção humanas99.
Apesar de ser comum na tradição indígena nacional e de alguns países da América
do Sul, somente no Brasil surgiram religiões não indígenas e urbanas que fazem uso de tal
substância durante seus ritos e/ou cerimônias100.
A partir dos anos setenta, grupos religiosos que surgiram no norte do país
começaram a se expandir chegando a grandes metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo e
ganhando adeptos de classe média.
Para os adeptos dos cultos religiosos a ayahuasca é uma bebida sagrada,
relacionada por estes membros à constituição de um ―conjunto simbólico, ritualístico e
cosmológico etc, associando-se, de certa forma, a noção de sacramento‖101.
A primeira religião conhecida foi o Santo Daime, criada por Raimundo Irineu Serra
– o mestre Irineu – no início dos anos trinta. Daniel Pereira de Mattos – mestre Daniel – cria em
1945 a barquinha102, ambas no Acre. Em 1961 surge a terceira vertente, a UDV (Centro Espírita
Beneficente União do Vegetal). As duas primeiras tratavam da bebida pela denominação Daime,
enquanto a última passou a chamá-la Vegetal.
Aqui podemos perceber o surgimento de diferentes linhas de uma mesma tradição
religiosa se inserindo em um campo religioso. Para tanto, utilizaremos a definição de campo de
Bourdieu103.
As três linhas cresceram e com o passar do tempo e as mortes de seus respectivos
criadores, inicia-se um processo de fragmentação e rupturas, gerando novas crenças e práticas a
98
Parte do depoimento da entrevistada A.
GOULART, Sandra Lucia. A construção de fronteiras religiosas através do consumo e um psicoativo:
as religiões da ayahuasca e o tema das drogas. Comunicação apresentada em Congresso: V Reunião de
Antropologia do Mercosul (RAM), Florianópolis, dezembro, 2003.
100
Idem.
101
Idem. p. 2.
102
O nome barquinha (de barca) associa-se à missão dos adeptos de Mestre Daniel, ex-piloto fluvial:
navegar ―nas ondas do mar sagrado‖, associado ao próprio chá daime. GOLART, 2003, p.4 Apud SENA
ARAÚJO, 1999, p. 75-84.
103
Um espaço onde aconteceria algo como um jogo, em que o poder e as regras deste estariam em
questão. GOULART, 2003, p.4.
99
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
162
partir do uso do daime. A partir disso, esses grupos deixam o norte do país para habitarem os
centros urbanos nacionais104.
Sandra Lucia divide essa separação em duas fases. Sendo, em um primeiro
momento, a relação da ayahuasca em contraposição à sociedade de uma maneira geral; e as
disputas e conflitos internos gerados posteriormente. No início, esses grupos eram vistos como
―macumbeiros‖, ―feiticeiros‖, ligados a magia. Com o passar do tempo, no entanto, este tipo de
denominação passou a ser utilizada pelos próprios adeptos dos movimentos a fim de denominar
os outros grupos que não o dele, alegando serem estes, ―charlatões‖, ―feiticeiros‖.
Atualmente, um problema que afeta a reputação desses grupos está ligado à
utilização do chá em seus rituais e a visão da população deste como uma droga.
Pertencer a uma religião significa modificar sua postura não apenas
com relação ao mundo religioso, mas também ao não religioso,
―mundano‖, do qual o adepto faz parte, e é certo supor que suas
atitudes nas outras esferas da vida poderão ser afetadas pela conversão
religiosa105.
A disseminação das religiões, que tinham como base o uso do daime, possibilitou o
surgimento de espaços de oração, acolhimento e reflexão como a Casa de Convivência e
Alquimia Espiritual. Em espaços como este, o daime não mais seria a base da crença, mas um
caminho para se chegar mais perto de uma evolução espiritual. É o que podemos observar nessa
fala da entrevistada A:
Eu demorei muito a experimentar o daime. Eu tava sendo
extremamente preconceituosa. Muito pela minha formação que vinha
do Kardecismo. Porque é assim, aquilo que eu falei pra vocês, o daime
não é servido a todas as pessoas. Então, eu fui frequentando... Aí um
dia me perguntaram se eu tinha vontade, e eu resolvi que eu tinha que
ir trabalhando esse meu preconceito. Até que eu disse: Ai, eu quero
experimentar. E foi uma coisa muito interessante, porque, primeiro eu
desmistifiquei tudo isso que falam. O daime me ajudou muito, vou
falar por mim, não sei, porque é uma vivência muito particular pra
cada pessoa. O daime me ajudou muito a acelerar o meu processo de
autoconhecimento e... A gente toma o daime numa coisa... Como uma
104
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Dossiê Religiões no Brasil – Fronteira da fé – alguns sistemas de
sentido, crenças e religiões no Brasil de hoje. Estud. Av., vol.18, n.52. São Paulo: Sept./Dec. 2004.
105
BOMFIM , Juarez Duarte. A Construção do Self entre Seguidores da Doutrina do Santo Daime:
Percepções e imagens dos novos adeptos urbanos e a sua relação com a nova consciência religiosa. IN:
http://www.aguiadourada.com/pdf/a_construcao_do_self.pdf, acessado em Novembro de 2011.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
163
bebida sagrada, mas assim, como uma coisa que me ajuda a abrir os
meus canais... Mas isso não quer dizer que eu dependo dele pra fazer o
meu trabalho espiritual comigo mesma e com as outras pessoas... Aqui
na casa tem esse pensamento, tanto que… a gente só tem daime na
quarta e no dia da concentração que é uma coisa nossa. Mas assim, me
ajudou a me ver, a chegar em lugares de mim mesma que eu nunca
tinha conseguido chegar antes, sabe? Eu consegui ver até algumas
vivências minhas em vidas anteriores. Eu consegui ver sombras mais
profundas de mim mesma, aquela que a gente não tem a menor
consciência, sabe? Eu sou muito agradecida ao daime, mas eu não
tenho essa referência do daime como as igrejas daimistas tem, aqui na
casa não é assim. A gente toma o daime, agradece profundamente pela
ajuda, mas a gente vê o daime aqui na casa como uma ferramenta de
trabalho, sabe? A gente procura não ficar em muitos viajões, a gente
chama de viajão, o que muita gente faz com o daime. A gente vai lá,
toma o daime, vê o que tem que ser visto e... ―pum‖, vamos ao
trabalho consigo mesmo.
E a entrevistada B:
É... Eu penso muito parecido, assim, pra mim foi uma ferramenta
mesmo pra conhecer coisas de mim que... Talvez eu negasse... E até
mesmo despertar dores que pra mim tavam mortas, mas que quando...
No trabalho elas surgiram e... Eu tive a possibilidade de aprofundar
essa dor e conhecer melhor e saber conviver com ela. Mas eu ainda
fujo do daime exatamente por conta disso. Porque você acaba vendo
coisas que talvez... Assim... Quando a gente busca... Não adianta ir,
fazer o trabalho e... vi... E deixa pra lá... Se eu vejo, o que eu vejo de
errado e de ruim em mim é pra ser trabalhado... E muitas vezes é... É
melhor num vê, né? (risos).
Seguindo as mudanças do último século, como já foi citado ao longo do trabalho,
com a aproximação das práticas orientais, indígenas e uma maior abertura das crenças, tal casa,
auto intitulada como universalista se utiliza de diversas práticas, símbolos e ritos como
caminhos para viver melhor e evoluir enquanto espírito. Os membros deste local se utilizam do
daime como um dos meios de trilhar este caminho.
Como podemos ver nos trechos transcritos acima da entrevista realizada em uma
das visitas a casa, a relação que este espaço possui com o daime é muito interessante para
pensarmos uma série de questões.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
164
Segundo Weber, a religião conforma um modelo de vida e forma modelos de
compreender e agir no mundo106. Embora eles não se considerem uma religião, foi possível
perceber ao longo de toda a pesquisa que eles estabelecem, ainda que sem grande
institucionalização e ritos fechados, um modo de vida que acaba sendo compartilhado. As
buscas vão por caminhos parecidos e o Daime é um bom exemplo para entender as cerimônias e
rituais existentes nesta esfera religiosa.
A utilização do daime não acontece a qualquer momento e de maneira desregrada.
Existem momentos específicos para sua utilização não fazendo parte, o Daime, do restante das
atividades da casa. Toma-se o chá uma vez por semana e na segunda sexta-feira de cada mês.
Primeiro fazendo uso desta, como instrumento que possibilite ajudar outras pessoas e no
segundo momento para autoajuda, diz a entrevistada B:
Porque você não vai tomar o daime pelo daime, entendeu? Você tem
que tomar o daime como um agente que vá te ajudar a se transformar,
você toma o daime pra se ver, e no que você se vê, você tem que sair
dali, daquele lugar, daquela vivência para a sua transformação. E isso
ajuda muito porque, assim, quando você sofre alguma coisa, se você
não tem a visão espiritual, isso... E, independe do daime, mas, assim,
se eu sofro alguma coisa, algum processo na minha vida que me cause
muita dor e se eu ficar naquele lugar de dor, eu vou ficar num lugar de
sofredor... E não vou me transformar e posso correr o risco de ficar
chapadão ali na coisa do sofredor e passar uma vida sofrendo, quando
na verdade, quando você tem uma visão espiritual você pega a dor é
pra transformar, é pra crescer... Senão, não tinha sentido. Deus, assim,
botar uma dor na minha vida, pra eu ficar sofrendo dela a minha vida
inteira. É nisso, o Daime ajuda muito.
O daime na Casa de Convivência seria utilizado, como cita a entrevistada como
uma ―ferramenta de trabalho‖, ele não é o fim. Ele seria um instrumento para ajudar no
autoconhecimento e no crescimento de cada indivíduo. Através dele, seus apreciadores
conseguiriam ter acesso a vidas passadas e a problemas de seu passado e presente na vida atual
terrena. Através do Daime a percepção de si ficaria mais apurada. As coisas boas e ruins se
tornariam acessíveis, possibilitando aproveitar melhor as coisas boas e transformar o que estaria
ruim. A entrevistada A completa sobre o calendário de uso do Daime na Casa:
Quarta feira a gente tem um trabalho que abre pra gente uma e meia
porque a gente faz uso do daime... Então os sensitivos entram, e
algumas pessoas que já participaram de uma concentração que a gente
106
Idem.
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SOBRE A RELIGIÃO
165
tem mensal também são convidados a entrar. As outras pessoas a
gente não fala, a gente não fala pras pessoas que a gente usa do Daime
porque o Daime normalmente ele é usado nas igrejas de Daime e... Só
quem toma o daime pode participar. Aqui não, porque como a gente
quer que as pessoas usufruam da sua espiritualidade sem impor nada,
todo mundo pode vir, aqui é uma casa aberta para tudo. Então quem
usa o daime, quem não usa daime. (…) então a gente chega às uma e
meia, toma o daime, canta os hinos agradecendo ao daime.
Na segunda sexta-feira a gente chama de concentração que é um
alinhamento do trabalho de todos os sensitivos da casa e das pessoas
que frequentam e que usam o daime. Que tem muita gente das igrejas
de daime que vem pra cá, aí tem essa concentração que começa sete e
meia e termina por volta de uma hora, duas horas da manhã... É um
trabalho com cada um, a gente não atende ao público. É fechada a
casa, a gente toma daime, canta os hinos e rola o trabalho.
Segundo Benny Shanon107, durante a utilização da ayahuasca, as visualizações
estariam em torno de animais como jaguares, cobras, demônios e deidades, cidades e paisagens.
Também se encontram, segundo seu relato, visões relativas à solução de crimes, vôos da alma e
experiências de clarividência. Tais visualizações seriam pensadas por Shanon como:
Reflexo de repositórios de informações inconscientes distintos
daqueles postulados pela literatura psicológica padrão. Ou eles
sugerem, talvez, a existência de outras dimensões da realidade, de tipo
platônico, e que não dependem da psicologia pessoal do indivíduo108.
Dispomos tais questões apenas para gerar um pouco mais de dúvidas a respeito de
um tema tão delicado. Já que Shanon não obteve respostas conclusivas, embora não acreditasse
tanto na segunda opção. Pensar nos efeitos ayahuasca como parte de tudo que já existe dentro de
nós é interessante se olharmos para os depoimentos acima citados, já que as próprias
entrevistadas que haviam consumido o chá acreditavam que as experiências vividas já estavam
dentro delas ou faziam parte delas de alguma maneira, ainda que em outras vidas. De qualquer
maneira, o Daime aqui é sempre visto como um caminho para transformação e ajuda de si.
Outro ponto interessante é quando uma das entrevistadas comenta o fato de alguns
representantes da Igreja do Daime comparecerem aos encontros em que o chá é servido já que,
segundo Goulart é muito comum as diferentes representações religiosas que fazem uso do daime
107
SHANON, Benny. Os conteúdos das visões da ayahuasca. IN: Mana, vol.9 no.2. Rio de
Janeiro, Oct. 2003.
108
SHANON, 2003, p.144.
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SOBRE A RELIGIÃO
166
não se frequentarem e até se difamarem. Segundo a autora, eles utilizam termos com
―impureza‖ e ―mistura‖ alegando que outros grupos não preparam o chá de maneira correta,
com produtos puros e utilizando-se de plantas de qualidade e resultado duvidosos. Além disso,
tais denominações podem estar ainda relacionadas às práticas utilizadas na preparação. Para
muitos desses grupos, o que diferenciaria a bebida seria a doutrina que o grupo fornece à ela109.
Mais uma boa questão é a aceitação de práticas como essa em ambientes de
pessoas de classe média e em boa medida com certo grau de escolaridade e conhecimento. Tais
práticas parecem atingir estes setores das sociedades que passam por grandes crises existenciais
e precisam de um conforto nesses espaços de convivência que abram suas portas e ouvidos a fim
de recebê-los. Essa busca incessante, como lembra Brandão, atrai as mazelas desses indivíduos,
buscando respostas para os males e adversidades do mundo a fim de, se não sarar, pelo menos e,
talvez mais ainda, encontrar explicações que lhe acalmem a alma.
Para tanto, segundo Bomfim, se faz muito importante a construção do self entre os
adeptos do movimento. Utilizando-se de Geertz para tratar da religião como um sistema cultural
que atua como um modelo de referência para as ações dos indivíduos, Bomfim usa o ethos, ―(...)
aqui entendido como um estilo de vida, implicando preferências morais e estéticas
características de cada religião‖, como uma maneira de se alcançar o self. ―O ethos religioso
estará idealmente adaptado a um certo ―estado de coisas‖circunscrito pela visão de mundo. Já a
visão de mundo se traduz na imagem que se faz do real. O ethos é formado pela religião e
reforçado ou justificado pela visão de mundo‖.
A partir desta concepção de self conseguimos entender a importância do Daime
para se chegar a este conhecimento próprio, que pode ser para os participantes um longo
caminho, percorrido, em sua maior parte, sem a ajuda do Daime.
Além disso, um tema que atravessou a bibliografia e indiretamente podemos
perceber nas falas das entrevistas é a relação desses grupos com o uso de drogas.
Goulart cita que o surgimento de grupos que fazem uso de uma substância psicoativa nos
centros urbanos fez nascer novos modos de pensar com relação ao consumo de substâncias que
alteram a percepção do mundo, sobretudo as classificadas como ilícitas.
Para estes grupos, a bebida tem caráter sagrado. No entanto, diversas esferas da sociedade e
mesmo alguns grupos entre si tratam da problemática do uso irregular desta substância e da
incorporação de outras nos rituais. Estes grupos parecem se mostrar preocupados em não ligar
seus nomes à ideia do uso de drogas, mas a própria ayahuasca, segunda a autora chegou a ser
proibida durante um tempo, sendo liberada depois para o uso ritualístico.
109
GOULART, 2003.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
167
No entanto, boatos a respeito de grupos que passaram a misturar outras substâncias
na produção do chá são comuns. A própria Cannabis Sativa, vulgarmente conhecida como
maconha, teria sido usada por fragmentações do Santo Daime como a CEFLURIS. Este tipo de
conduta torna o clima a respeito deste tema bastante conturbado. Podemos perceber isso, mais
uma vez, nas falas acima. A entrevistada faz questão de deixar bem claro que eles não usam o
daime para todos os fins e ritos. Isso mostra a necessidade de demonstrar que eles não vivem em
função da utilização do daime e não o utilizam como meio obtenção de prazeres mundanos. Ela
faz questão de ressaltar também a diferença de usar o daime somente no ritual do mesmo, como
a casa prega. Podemos perceber seu empenho em quebrar com os preconceitos e mitos que se
criam a partir disto.
No entanto, este é um tema bastante complexo, porque, como lembra Goulart, a
permanência dessas religiões na sociedade brasileira representa se não, uma exceção no
tratamento as substâncias psicoativas, pelo menos uma brecha na legislação relativa ao seu uso.
De qualquer forma este campo religioso poderá sofrer constantes ameaças e intervenções
jurídicas por se utilizar de algo tão delicado.
Sendo assim poderíamos entender a utilização da ayahuasca para este grupo
religioso como uma ―ferramenta de trabalho‖ e que, como tal, serve para auxiliar na busca de
um objetivo maior. Encontramos inicialmente, um pouco de receio por parte do grupo para
tratar desta questão, mas que acabaram com o desenrolar da pesquisa. E, embora os momentos
dentro daquele espaço trouxessem um pouco de estranhamento, o uso a ayahuasca não esteve
ligada em nenhum momento a marginalização ou ao uso indevido apenas para a possível
obtenção em vão de mudanças no comportamento psicológico.
Conclusão:
O espiritualismo universalista é uma corrente filosófica que baseado nos estudos
históricos de diversos textos sagrados pretende incentivar cada indivíduo a buscar respostas para
suas questões espirituais por intermédio de uma síntese pessoal de diversas correntes religiosas,
não sendo necessário aderir exclusivamente a nenhuma destas correntes110. Com o movimento
de globalização do mundo contemporâneo que interfere em diversos aspectos da vida do
homem, tem aumentado o número de pessoas que buscam respostas por intermédio de correntes
de pensamento universalistas em relação às religiões.
110
CAES, André Luís. A Orientalização do ocidente: elementos reflexivos para compreensão da interação
e integração entre valores religiosos orientais e ocidentais. IN: Revista Mosaico. Volume 2; Numero 2.
Julho/Dezembro, 2009. p.154-164.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
168
Devido a esta oportunidade de interação entre diversas culturas, provenientes de
uma busca pelo entendimento das religiões de maneira geral, o universalismo religioso tem se
mostrado para muitos indivíduos que antes carregavam dúvidas a respeito de sua concepção
religiosa uma forma de obter respostas para diversas questões, uma vez que trabalhando nesta
realidade universalista, o indivíduo pode buscar um entendimento de sua fé livre da maioria dos
dogmas.
Muito desta possibilidade de interação entre diferentes religiões nasce no momento
em que o ocidente tenta desvendar os ―mistérios‖ das religiões orientais por intermédio do
estudo do Karma, da filosofia indiana, o budismo, etc. Este contato com a cultura oriental, seja
com as religiões, seja com a filosofia, acaba por alterar a visão de mundo ocidental em relação
ao caminho a ser tomado em diversos dilemas éticos.
Essa orientalização do ocidente acaba por proporcionar uma visão imanente de
Deus e não transcendente como no costume ocidental, uma vez que a figura do místico
contemplativo (aquele que promove uma fuga do mundo em busca de uma reflexão ou
purificação) é muito forte nas religiões orientais, o que ocasiona uma maior capacidade de
reflexão dos indivíduos em relação aos dualismos impostos pela nossa sociedade (como o de
bem e mal, certo e errado, etc), o que pode gerar uma insatisfação para com as explicações
tradicionais e por consequência a busca por explicações mais plausíveis, saciando em parte a
necessidade de respostas. Embora os ocidentais não se transformem em orientais, os ocidentais
redimensionam sua visão de mundo integrando valores e práticas religiosas tanto orientais
quanto ocidentais.
Em certo momento durante a entrevista feita pelo grupo na Casa de Convivência e
Alquimia Espiritual, quando questionado sobre o porquê de ter começado a frequentar o local, a
entrevistada A diz:
Estou no caminho da espiritualidade algum tempo, comecei pelo
Kardecismo, freqüentei duas casas kardecistas, aprendi muitas coisas,
foi muito válido, mas tinha alguma coisa que ficava faltando. Eu fui
vendo que no Kardecismo você aprende muito, porém ele é muito
rígido com algumas coisas, e tinham coisas que eu achava que faziam
parte, e que o Kardecismo não adota, como por exemplo, uma vela
acesa, o fato de não poder fazer uso de imagens de maneira alguma,
não poder usar incensos, é só a força da oração o que eu concordo
também, só que tem alguma coisa a mais, e por outro lado, outras
casas que eu procurei tinham rituais demais e eu precisava de um
‗negócio‘ que tivesse um meio termo...
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
169
Este trecho da entrevista deixa bem claro a necessidade de novas explicações que
saciem dúvidas de um mundo contemporâneo em que as diversas religiões passaram a interagir,
o que acaba por criar novos questionamentos, tornando muito mais complexo o caminho a ser
tomado durante uma caminhada espiritual, uma vez que visivelmente apenas uma interpretação
desta realidade, seja através da espiritualidade ou de uma filosofia de vida, não se faz suficiente
para esclarecer as diversas facetas que este mundo contemporâneo multicultural apresenta aos
indivíduos.
Uma corrente de pensamento única e linear não mais se faz capaz de corresponder
as expectativas de quem busca respostas para a pluralidade de acontecimentos de um mundo que
vive uma constante troca de elementos culturais.
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SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
171
RITUAL EUCARÍSTICO: A DEVOÇÃO E A FÉ DOS FIÉIS NA
COMUNIDADE PAROQUIAL DE SANTO ANTÔNIO DA PRATA
Alice Faria Signes111
Daiane Estevam Azeredo112
Elizabeth Santos de Souza113
Resumo: O presente trabalho propõe-se a fazer uma análise da vivência da religião
apresentada pelos fiéis com relação ao sacramento da Eucaristia. Dessa maneira,
notamos que a religião tem desempenhado um importante papel para a vida do
indivíduo em sociedade. Através de pesquisa realizada, concluímos que o ritual
eucarístico constitui-se como canal que permite o acesso do homem com a esfera do
sagrado. E como tal, funciona como receptor de uma crença que impele os indivíduos a
superarem as adversidades seculares. Esta pesquisa foi desenvolvida a partir de
observações de campo e entrevistas coletadas entre os fiéis de uma comunidade
paroquial da diocese de Nova Iguaçu, no período de agosto a novembro de 2011.
Palavras-chave: Discurso; Sacramento da Eucaristia; Modernidade.
Introdução
Este artigo tem por objetivo compreender o relacionamento do indivíduo com a
religião na contemporaneidade114. Dessa forma, delimitamos nossa análise ao estudo da
devoção apresentada pelo fiel em relação ao sacramento da Eucaristia. No tocante à
sociedade contemporânea, variados são os estudos que apontam à coexistência
paradoxal dos seguintes processos: secularização e dessecularização 115. Por essa forma,
podemos mencionar que a emancipação dos indivíduos proporcionada pelos ares da
modernidade também acarretou a necessidade intrínseca aos mesmos de suprirem,
parcialmente, as debilidades com relação aos laços comunais – que se tornaram cada
vez mais fragilizados.
111
Graduanda em História pela UFRRJ/IM, bolsista PIBIC/CNPq.
Graduanda em História pela UFRRJ/IM, bolsista FAPERJ.
113
Graduanda em História pela UFRRJ/IM, bolsista PIBIC/CNPq.
114
Este artigo é resultante do trabalho final da disciplina ―Sociologia da Religião‖ lecionada pela Prof.ª
Dr.ª Sílvia Regina Alves Fernandes.
115
Debateremos sobre essa temática mais adiante.
112
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
172
Entender o mecanismo de relacionamento dos fiéis com um canal de vínculo com
o sagrado116, permite compreender o papel desempenhado pela religião na vida do
indivíduo. O presente estudo refere-se à análise qualitativa de 11 entrevistas realizadas
com fiéis da diocese de Nova Iguaçu, especificamente a comunidade paroquial de Santo
Antônio da Prata.
Em relação ao perfil social dos entrevistados, seis pessoas são do gênero feminino
e cinco são do gênero masculino. A faixa etária dos entrevistados varia de 12 a 60 anos,
sendo dois de 12 a 14 anos, três de 18 a 22 anos, quatro de 30 a 40 anos e dois maiores
de 40 anos. O nível de escolaridade dos entrevistados é divergente, pois apenas um
tinha o ensino superior completo, cinco participantes tinham o ensino médio em curso
ou já concluído e, por fim, outros cinco indivíduos apresentavam o ensino fundamental
incompleto ou em curso.
Este estudo encontra-se dividido em quatro partes principais, nas quais serão
abordadas respectivamente: primeiro, o significado do sacramento eucarístico para os
eclesiásticos; segundo, a secularização e a dessecularização no mundo dos fiéis
entrevistados; terceiro, o processo de ressignificação do ritual eucarístico para os fiéis e,
por fim, analisaremos o posicionamento de asceta e místico perante o sacramento da
eucaristia.
1.
O sacramento da Eucaristia: definições teológicas
De acordo com os documentos eclesiásticos, a Santa Ceia refere-se ao processo
que instiga os fiéis a relembrarem as cenas da crucificação. Tal atitude permite que o
indivíduo tenha conhecimento da demonstração de amor realizada através da entrega do
primogênito filho de Deus. Dessa forma, o mundo teria a prova do imenso amor através
do sacrifício de uma vida inocente. O ritual eucarístico representa esse momento do
Cristo crucificado, o vinho e o pão são dados como representantes do seu sangue e
corpo. No tocante à Igreja, podemos mencionar que a Santa Ceia é compreendida como
116
Em consonância com a concepção durkheimiana, o sagrado refere-se a uma representação coletiva,
corresponde a uma criação de um grupo de indivíduos. Assim como as forças sociais dão existência a
essa categoria, elas também exercem papel peculiar para que o crente não duvide e respeite o sagrado. Os
indivíduos ou objetos recebem o título de sagrado por ser considerados depositários de uma espécie de
poder que os tornam dignos de separá-los do domínio profano (DURKHEIM, 1996).
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
173
o canal de salvação, pois entender a importância desta refere-se assumir sua posição de
inferioridade em relação ao sagrado.
Podemos mencionar que existe uma relação de cumplicidade entre a Igreja e a
Eucaristia, ambas coexistem de forma mútua. Segundo o Editorial da Revista
Perspectiva Teológica117 (2005), a Eucaristia constitui a Igreja e a Igreja constitui a
Eucaristia. A celebração eucarística é um rito tradicional da Igreja Católica que, apesar
das variações de sua prática ao longo do tempo, permanece como fundamental devido à
representação do ato memorável da morte e ressurreição de Cristo. Os teólogos
compreendem que a participação da eucaristia deve ser realizada em comunhão – esse
momento deve ser vivenciado inúmeras vezes porque representa a relação da Igreja com
Cristo.
Anteriormente ao Concílio Vaticano II, o movimento litúrgico alegava a
imutabilidade do ritual eucarístico diante da modernidade – momento dado como
período de embate entre a Igreja e os novos elementos da secularização. Entretanto, o
Concílio Vaticano II posicionou-se de forma distinta, apontando a necessidade deste
sacramento se adaptar à cultura dos diversos povos. No entanto, a implementação desta
realidade possui um longo caminho a seguir. Nessa perspectiva, a celebração da
Eucaristia caminha entre duas exigências, são elas: ―[...] comunhão com a tradição que a
precede e a constitui, e necessidade de se re-expressar e reformular, ou seja, fidelidade à
fé de sempre e fidelidade ao mandato do Senhor de manter viva a memória do seu gesto
no hoje da história [...]‖ (Persp. Teol.: 2005, pp. 169-170).
A renovação litúrgica proposta pelo Vaticano II suscitou crises um tanto intensas,
cuja resolução indicava duas possibilidades: acompanhar as experiências de
enculturação pelos bispos diocesanos ou extinguir toda forma de experimentação.
Embora emblemática, a primeira possibilidade permite uma renovação litúrgica que se
articula com o verdadeiro sentido da celebração. Entretanto, apesar de estável, o
segundo caminho enfraquece o movimento de transformação do mundo. Contudo, cada
comunidade paroquial soluciona essa questão de maneira divergente, tendo a premissa
de uma das resoluções. Desse modo, o mais importante não é o conhecimento sobre as
variações das diretrizes, pelo contrário, cabe a cada comunidade se questionar sobre
―[...] que imagem da Igreja nossa eucaristia oferece?‖ (Persp. Teol.: 2005, p. 171).
117
Doravante a Revista Perspectiva Teológica será designada de ―Persp.Teol.‖.
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SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
174
Considerando as palavras do papa João Paulo II (2003), em Carta Encíclica
direcionada ao corpo de fiéis e clérigos da Igreja Católica, além de proporcionar a
vivência da fé diária, a eucaristia faz relembrar a promessa da presença constante de
Cristo na vida dos que comungam e a lembrança da Igreja que caminha para uma terra
celestial. Sendo assim, a ―Igreja vive da eucaristia‖ (JOÃO PAULO II, 2003, p. 1), pois
é através da mesma que a vida espiritual é consolidada. Então, cabe a toda comunidade,
no período de celebração da santa missa, transportar-se simbolicamente para o dia e as
últimas horas antes da crucificação de Cristo. Para fins de exemplificação, segue abaixo
um trecho da Carta Encíclica:
Quando se celebra a Eucaristia na basílica do Santo Sepulcro, em
Jerusalém, volta-se de modo quase palpável à ―hora‖ de Jesus, a hora
da cruz e da glorificação. Até àquele lugar e àquela hora se deixa
transportar em espírito cada presbítero ao celebrar a Santa Missa,
juntamente com a comunidade cristã que nela participa. (PAULO II:
2003, p. 2)
E quais são as ressalvas para a administração e participação do ritual eucarístico?
A celebração do Santíssimo Sacramento vincula-se ao cumprimento de algumas
normas, são elas: a celebração só é permitida na presença de um sacerdote ordenado; os
católicos devem participar somente da Eucaristia distribuída nas comunidades eclesiais;
a consagração da eucaristia é realizada apenas por um presbítero ou bispo; o presbítero
jamais pode ser substituído por leigo, exceto na celebração de algumas atividades;
devido à escassez de sacerdote, eventualmente, a paróquia pode ser confiada ao cuidado
de um fiel, mas na paróquia haverá fome de eucaristia118; a confissão dos pecados é
imprescindível para participar da comunhão; o indivíduo necessita estar de acordo com
a verdade de Cristo e ser batizado; por fim, o fiel não pode receber o sacramento da
eucaristia em uma casa que falta o sacramento da Ordem, salvo pequenas ressalvas.
O culto eucarístico após a consagração e a celebração da missa também é
notificado por João Paulo II como necessário para o recebimento de força, conforto e
apoio. A adoração à presença de Cristo na hóstia consagrada é essencial para a vida da
Igreja, ―compete aos Pastores, inclusive pelo testemunho pessoal, estimular o culto
eucarístico, de modo particular as exposições do Santíssimo Sacramento e também as
118
A falta da hóstia refere-se à necessidade da mesma ser consagrada somente pelo padre ou bispo.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
175
visitas de adoração a Cristo presente sob as espécies eucarísticas‖ (JOÃO PAULO II:
2003 p. 13).
Em suma, aferimos que, segundo os eclesiásticos, a eucaristia é o próprio
sacrifício do corpo e do sangue de Cristo, instituído por este para perpetuar o sacrifício
da cruz no decorrer dos séculos até a sua vinda dos céus. É um sacramento que enfatiza
a unidade e a caridade da Igreja que através da comunhão dos fiéis no banquete pascal
recebe o Cristo – assim, a alma se enche de graça e adquire a garantia da vida eterna.
2. Secularização e Religiosidade
O mundo contemporâneo é constantemente caracterizado pelo processo de
secularização, estudos versam por esse caminho. Compreendemos a secularização como
a perda crescente do domínio das instituições e símbolos religiosos sobre as diversas
esferas da sociedade. No caso brasileiro, esse processo tem início oficialmente em 1891,
quando o Estado se eximiu de atribuir privilégio a uma determinada religião.
Em análise da sociedade ocidental moderna, enquanto Max Weber (1982)
procurava destacar que o protestantismo de forma não intencional propiciou a
racionalização do meio, Peter Berger (1985) se debruçou no objetivo de comprovar que
não somente o protestantismo, mas o próprio cristianismo serviu ao processo de
secularização. Na ausência de pretensão em problematizar a gênese da secularização,
seguiremos na discussão de definição do termo.
Segundo Max Weber, a sociedade ocidental passou por processos de
racionalização e burocratização que permitiram a desmagificação do mundo, ou seja, os
homens adotaram outra postura em relação aos acontecimentos na sociedade, deixando
de atribuir suas ações às interferências divinas (HERVIEU-LÉGER; WILLAINE,
2009). Todavia, o processo de secularização não anula a presença da religião na
sociedade, o estudioso Ari Pedro Oro (2005) menciona que secularização e
dessecularização são processos que coexistem na sociedade. Ressaltamos que, às vezes,
um único indivíduo pode pautar suas ações nesses dois sentidos, ora tomando decisões
por sua capacidade intelectual, ora alegando o poder divino como norteador das suas
decisões. Isto é, a consciência individual não é integralmente secularizada.
Este trabalho parte do princípio que na sociedade declarada racionalizada é
possível identificar entre os indivíduos a necessidade de pertencer a uma comunidade
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SOBRE A RELIGIÃO
176
religiosa - a fraternidade é uma alternativa aos homens deste mundo contemporâneo. Na
perspectiva durkheimiana, a religião desempenha um papel na existência da sociedade.
Para Jean Delumeau (1997), ―as diversas religiões do mundo, cada qual na sua
linguagem, exaltam a sabedoria e a compaixão, a sinceridade e a humanidade, a
santidade e a humildade: preciosos valores comuns cujo desaparecimento ninguém
poderá desejar‖ (p. 17). Dessa forma, analisaremos os discursos dos fiéis com o intuito
de mapear a autonomia desses na maneira de viver no mundo e direcionar suas vidas.
Nos discursos, percebemos que mesmo entre os fiéis ligados diretamente a uma
comunidade religiosa - Igreja Católica - ainda é possível encontrar certa autonomia
desses no que tange à vida pessoal. Sendo assim, acreditar no poder divino não inibiu os
indivíduos de realizarem escolhas pessoais,
afirmando o seu poder de decisão.
Podemos dialogar com Peter Berger quando este destaca a secularização da consciência,
que entendemos como a perda do domínio da religião sobre a vida e o entendimento do
indivíduo. Isto é, o homem passa a pautar suas ações nas próprias vontades, não sendo
direcionado integralmente pelo âmbito do sagrado.
Nos relatos dos fiéis entrevistados, notamos o apontamento de muitos para algo
que aqui chamamos de ―autonomia supervisionada‖, pois ao mesmo tempo em que se
portavam como autores de suas ações, não deixavam de demonstrar respeito pela
intervenção divina que retificava os seus atos. Vejamos: ―tive livramento quando tava
para vir para a Igreja, falando que ia vir para a Igreja de São Sebastião e indo para a Rua
da Lama, e um carro quase me atropelou no Casado, em frente ao Hospital das Clínicas
de... em frente ao Hospital‖ (André119, 30 anos).
No fragmento do discurso do entrevistado André, identificamos a decisão deste
indivíduo sendo remodelada segundo os preceitos de Deus. Esse modelo faz parte do
discurso dos entrevistados, pois quando estão fora da vontade de Deus, esse se
encarrega de novamente fazê-los encontrar a direção correta. Para o entrevistado André
(30 anos), apesar de omitir e faltar com a verdade sobre o local do seu destino, Deus o
fez se lembrar de seus feitos errôneos quando quase teria sido atropelado. Isto é, ao
decidir seguir para a Rua da Lama120 em vez de ir para a Igreja, a autonomia em relação
ao divino significou o poder de escolha entre os desejos pessoais e a vontade divina. No
entanto, essa autonomia é retida na medida em que o indivíduo passa atribuir alguns
119
120
Os nomes adotados são fictícios.
Local conhecido no centro de Nova Iguaçu pelos seus diversos bares e danceterias.
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acontecimentos à intervenção de Deus devido à recusa dos seus atos particulares. Os
acontecimentos terrenos passam a ser ressignificados à luz da concepção de sagrado.
Para Émile Durkheim (1996), o sagrado corresponde uma criação de um grupo de
indivíduos. Os indivíduos ou objetos recebem o título de sagrado por ser considerados
depositários de uma espécie de poder que os tornam dignos de separá-los do domínio
profano.
Podemos questionar a desmagificação do mundo desses indivíduos que
compartilham uma fase na qual a secularização também ocorre no nível da
subjetividade. Não somente nos aparelhos sociais e culturais, mas o próprio indivíduo
mantém em coexistência elementos da secularização e da dessecularização.
Concomitantemente o indivíduo apresenta autonomia sobre suas ações se desvinculando
do mundo encantado e suas ações estão passíveis a aprovação ou reprovação pelo
divino. Isso demonstra que o processo de secularização apesar de inibir cada vez mais a
atuação da religião na sociedade, não impede que a mesma continue sendo mantida no
âmbito individual. O processo de secularização na sociedade não apresenta o mesmo
ritmo da secularização da consciência.
Entre os onze entrevistados, oito mencionaram que quando não participam do
ritual eucarístico sofrem algum tipo de dano - material ou espiritual - diversos fatores
apareceram, como: perda financeira, violência, problemas conjugais, sentimento de
culpa e outros. Isto é, os indivíduos continuam a pautar e manter uma religiosidade que
o acusa quando em prática não condizente com o querer divino.
É, eu me, eu me... eu convivi com uma pessoa que era... que não era
religiosa, era uma pessoa que participava... não era uma religião, que
participava de centro de macumba, né, e estragou muito a minha vida
e danificou um pouco e arranhou um pouco a... (Alexandre, 60 anos)
[...] eu até tava pensando, eu tô essa semana pensando, que
aconteceu... aconteceu comigo na semana passada, ih eu tava até
pensando dentro da igreja o que aconteceu, eu tive muitas perdas
financeiras na minha vida, né. E meu esposo ficou muito... parece com
um troço ruim dentro dele, né. Então, ele maltratava muito eu e a
minha filha, né. Era coisas de violência, aquela coisa toda. (Maria, 38
anos)
Eu sempre venho, todo domingo, às vezes eu chego tarde, eu adoro
dormir, mas eu sempre estou aqui. [...] às vezes você acha, você se
sente um pouco mal de não ter vindo, de ter ficado dormindo e não ter
vindo. É mais assim. (Angelina, 12 anos)
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Notamos que independente da faixa etária, oito fiéis relacionaram os
acontecimentos de várias esferas da vida particular como provenientes do divino. Para a
perspectiva durkheimiana, a eucaristia é sacralizada coletivamente, por isso, todos
acreditam que tal sacramento emana uma energia superior que penetra no homem e o
faz agir e repetir seus atos pautados no sagrado. É através da eucaristia que os
entrevistados recebem o Santíssimo Sacramento, permitindo-o atuar nas vidas dos fiéis
e os conduzirem ao caminho reto, ao caminho sem penalidades.
Participar do sacramento da eucaristia é uma forma de relacionar-se com o
sagrado e obter força para superar as intempéries do cotidiano. Embora, os entrevistados
digam que têm alguma perda quando não estão em perfeita sintonia com este
sacramento, os mesmos admitem que, mesmo assim, uma dádiva os alcança, dando-os
força para enfrentar os desafios terrenos. A comunhão com o sacramento da eucaristia
apresenta um significado maior que o consumo da hóstia e do cálice, é uma
religiosidade que deve ser praticada não somente naquele momento específico da missa.
Como disse João, um dos entrevistados, de 38 anos, ―[...] quem não pode no corpo e no
sangue por alguma razão, pode através do espírito [...]‖.
Evidenciamos que em análise dos discursos dos fiéis adeptos do catolicismo, a
magia e a idealização estão presentes nas várias esferas da vida. Segundo Peter Berger,
o cristianismo em sua forma católica barrou os traços da secularização ética, mas não o
traço histórico. Dessa forma, notamos que na esfera da consciência do indivíduo, esse
processo se apresenta com elementos da racionalização e com elementos da magificação
do mundo. São indivíduos que não se desvinculam por completo da religião, mas que
transitam pelas veredas da racionalidade.
3. Rito Eucarístico: significação e ressignificação dos fiéis
Na sociedade contemporânea, a aceleração do tempo e a otimização das atividades
seculares retirou o sagrado do convívio com o homem no cotidiano. Dessa forma, tornase necessário o retorno do contato com elementos que manifestam importância
espiritual na vida do indivíduo. O sacramento da Eucaristia possibilita a aproximação
dos indivíduos com o sagrado.
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Como afirma um dos fiéis, ―a finalidade da eucaristia para mim é presenciar o
cristo ressuscitado, o corpo e o sangue de cristo vivo na minha vida, e em todos os
momentos de fé e de graça‖ (Benedito, 35 anos). Assim, por meio desse rito é possível
recriar ou retornar ao estado de efervescência e de emergência do sagrado, como sugere
Émile Durkheim. Desse modo, além de representar uma ordenança doutrinária, a
repetição do ritual eucarístico possibilita a comunidade paroquial vivenciar o sagrado e
fazer reviver a efervescência inicial que se esvaia no dia-a-dia.
Observamos que diante dos problemas corriqueiros da vida, a crença no sagrado
impele o indivíduo a superar suas limitações devido acreditar que uma força
sobrenatural o sustenta. Para fins de exemplificação, destacamos o caso de uma
entrevistada que alegava ter encontrado no sacramento da eucaristia a força para
continuar a vida após o falecimento do cônjuge:
Pra mim é como um renovar. A palavra ela fortalece, ela te mostra
caminhos e eu falo assim que hoje né eu tô de pé. As minhas filhas
estão onde estão pela palavra [muito emocionada], principalmente
pela Eucaristia. [...] todo mundo tem desafio, cada um tem uma
situação diferente né, cada coisa, um é doença, outro é desemprego, o
outro é perda da família, outro é desentendimento, falta de diálogo e é
nesse momento que a gente pede ao nosso Deus na presença da
eucaristia e fala Senhor aumenta a minha fé [...].‖ (Ana, 49 anos)
De maneira geral, nesta pesquisa qualitativa, a maioria dos fiéis (oito
entrevistados) atribuiu o recebimento de graças materiais ou graças espirituais ao
sacramento eucarístico. Dádivas como o cuidado de Deus, a paz interior, o envio para o
ministério, ajuda financeira e conjugal são ressaltadas pelas testemunhas. Isto contribui
para pensarmos na relação entre o rito e as bênçãos concedidas. Em relação aos
entrevistados, oito indivíduos responderam que a eucaristia lhe concede um
fortalecimento espiritual e força para superar os problemas em suas vidas, dois fiéis
mencionaram que não recebem benefícios por participar da Eucaristia e uma fiel não
teve a possibilidade de responder essa questão. Enfatizamos que as dádivas materiais
são mencionadas em segundo plano em alguns casos, ou seja, os benefícios espirituais
são os mais citados em decorrência do ritual eucarístico.
Desse modo, a vida espiritual demonstra ser zelosamente prezada pelos
indivíduos. A crença no poder de algo superior as forças humanas coexiste com
elementos da secularização na sociedade contemporânea. Embora as necessidades
físicas incentivem a participação na Santa Ceia, é notória a preocupação em relação à
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
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vida espiritual dos fiéis. A importância delegada à Eucaristia permite uma experiência
religiosa por parte dos indivíduos que reatualizam o rito a cada participação. Segundo
João (38 anos – entrevistado), este sacramento ―é um renovar das suas forças também
porque ele vem como alimento para nos fortalecer e nos reavivar. Ali você encontra um
momento de fortalecimento também e de outros como... a palavra eucaristia é de ações
de graça‖.
No entanto, o quantitativo das dádivas matérias não é desprezível, pois
aparentemente as graças espirituais e materiais caminham mutualmente. Sendo assim, a
Eucaristia contempla duas tipologias de dádivas, mas as espirituais são constantemente
enfatizadas. De acordo com o discurso de um fiel, a participação da Eucaristia
previamente anuncia a experiência de uma vida celestial futura, veja a seguir:
Santa Terezinha falava assim, eu quero passar o céu na terra, então eu
já estou... é como se eu estivesse ensaiando, já vivendo. Vivendo
verdadeiramente, concretamente, e é. Não é à toa que o Senhor pediu
em sua palavra: ―fazei isso em memória de mim, é meu corpo e meu
sangue‖. Isto é, isto não parece, é interessante né, é bonito a gente
viver isso. (João, 38 anos)
Com tamanho benefício, a consciência do fiel também apresenta reprovação
quando não participa deste sacramento. Embora três pessoas tenham alegado que não
sofrem consequências, oito disserem vivenciar danos quando na ausência do sacramento
– causas de cunho espiritual, financeiro, conjugal e de saúde física apareceram nas
respostas. Segundo o entrevistado Fernando (18 anos), ―[...] ninguém sofre algo por não
participar, mas quando não participo me sinto culpado de alguma forma‖.
O rito eucarístico apresenta-se como canal de renovação do fiel com o sagrado,
possibilitando a crença de usufruir de um sistema de força que contribui no
enfrentamento de obstáculos terrenos - pois ―o fiel que se pôs em contato com seu deus
não é apenas um homem que percebe verdades novas que o descrente ignora, é um
homem que pode mais.‖ (DURKHEIM, 1996: p. 459). No instante da ministração da
Eucaristia, a significação é de recriação e/ou retorno ao estado de efervescência e de
emergência do sagrado. Tal interpretação é perceptível nos discursos dos fiéis que
frisam o ato da celebração eucarística como a ocasião de revive o sacrifício de Jesus
Cristo e ―relembrar os últimos momentos de Cristo ao lado dos Apóstolos‖ (Fernando,
18anos).
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SOBRE A RELIGIÃO
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4. Os leigos: asceta e místico
Em pesquisa realizada pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais
(CERIS), o acolhimento da comunidade religiosa é um dos principais elementos que
permite o indivíduo migrar ou permanecer na Igreja Católica. Desse modo, a sensação
de acolhida usufruída pelo fiel corresponde intrinsecamente à decisão de continuar
numa comunidade religiosa (FERNANDES, 2004).
Não obstante, apesar do estudo do CERIS possuir objetivos divergentes da nossa
proposta, percebemos que o fator do acolhimento também foi notório na pesquisa
realizada na comunidade paroquial de Santo Antônio da Prata. Tal interpretação
embasasse no fato de quatro entrevistados citarem o ato devocional dos fiéis121 como o
mais instigante no rito eucarístico, através da reunião de celebração e/ou participação da
Eucaristia. Sendo assim, identificamos que a devoção ao Santíssimo Sacramento
encontra-se articulada com o instante da adoração. A reunião dos fiéis no momento de
adoração da Eucaristia expressa o elo social originário da religião, este instante oferece
uma sensação de proteção do indivíduo na Igreja.
Nas entrevistas, verificamos a designação dos fiéis como instrumentos do divino
no mundo. Adotando uma postura ativa que permite controlar os impulsos naturais e
influenciar a sociedade através da conduta de vida diferenciada. De acordo com a
metodologia weberiana, parte dos fiéis entrevistados é classificada como asceta, pois
pauta sua vivência nos desígnios divinos. Essa postura de ação não ocorre somente no
trabalho na pastoral da Igreja - pelo contrário, os discursos dos fiéis demonstram a
necessidade de ajudar seu irmão, em Cristo, dentro ou fora do templo.
A missa é missão, e a nossa missão começa depois da missa né, vá em
missão e a gente não sabe né, acabou a missa, mas não
necessariamente. É só você entender o que é missão, e a missão a
gente só vai entender se nós participarmos do rito eucarístico, porque
se não você não consegue né. Como você vai falar daquilo que você
não vive, que você não sente. (Ana, 49 anos)
Essa postura está interligada com a crença de seguir os preceitos de Cristo,
servindo e amando o próximo. No entanto, no instante em que o católico recebe a
Eucaristia, o corpo e o sangue de Cristo, verificamos que o praticante desta religião
121
Por ato devocional entendemos a adoração aos elementos da Ceia, como o joelhar-se no momento da
consagração da hóstia.
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vivencia um momento de místico. Isto é, neste ato o fiel desenvolve uma postura
contemplativa, em que se apresenta como receptáculo de Deus. Sendo assim, o fiel se
desvincula das coisas terrenas e focaliza a atenção para o sagrado - um momento de
intimidade entre Deus e o fiel participante da Ceia do Senhor, revivendo o sacrifício
deste pelos homens.
A finalidade da eucaristia... é porque a finalidade é um encontro com
Deus, sempre. E é um renovar das suas forças também porque ele vem
como alimento para nos fortalecer e nos reavivar [...] De intimidade,
onde o próprio corpo do Senhor se uni ao nosso, e o sangue, não só o
corpo, mas o sangue. O sangue do Senhor se uni ao nosso. (João,
38anos)
Conclusão
O processo de secularização não impossibilitou a existência do vínculo do homem
com o sagrado. Atualmente, a permanência desta relação está articulada às demandas
dos fiéis que acreditam necessitar da força proveniente do sagrado para lidar com as
dificuldades terrenas. Em suma, notamos que o sacramento da eucaristia permite
elaborarmos alguns posicionamentos do homem contemporâneo em relação ao âmbito
sagrado.
No desenvolvimento desta pesquisa também concluímos que o significado
teológico da eucaristia é notório na representação cotidiana das missas e nos discursos
dos fiéis. Isto é, não ocorre uma discrepância acentuada entre a vivência do ritual
eucarístico e as teorias sobre o mesmo. No entanto, como essa relação não se constituía
a pedra basilar desta pesquisa, essa questão carece de maiores esclarecimentos. Por
derradeiro, aferimos que o sacramento da eucaristia estabelece o vínculo do homem
com o sagrado, assim como permite a vivência da religião pelos indivíduos. De acordo
com o sociólogo Émile Durkheim (1996), a religião exerce uma funcionalidade na
sociedade, para aboli-la se torna necessária a substituição por uma moral revestida de
aurora religiosa, pois a religião existe para fazer viver os homens.
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ÉTICA DA LIBERTAÇÃO:
A DESCOBERTA DE UM MUNDO PERIFÉRICO
Rodrigo Costa Silva122
RESUMO: Este trabalho visa fazer uma contextualização histórico-filosófica do
surgimento da Teologia e Filosofia da Libertação Latino-Americana, apontando o
arcabouço teórico dessa corrente e sua relação com a tradição judaico-cristã, de onde
toma os conceitos de Reino, liberdade e pobre. Abordaremos também as consequências
éticas que surgem desse sistema, que se coloca com a responsabilidade de elaboração de
uma nova ―práxis‖ ante ao fracasso do desenvolvimentismo e do capitalismo em crise
estrutural. A ética da libertação se propõe então a repensar os problemas morais a partir
da perspectiva e das exigências da responsabilidade pelo pobre, que está situado
concretamente nos processos históricos.
Palavras-chave: Ética da libertação, Alteridade, Cristianismo.
1. Introdução
O Concílio Vaticano II foi um divisor de águas no sentido de ter possibilitado
uma abertura da Igreja Católica para que esta pudesse olhar o mundo novamente e
escutar os clamores da humanidade em constante transformação. A Teologia da
libertação é impulsionada pelas decisões do Concílio, já que nele a Igreja LatinoAmericana foi desafiada a assumir o compromisso de ser uma ―Igreja dos Pobres‖
diante da realidade econômica, social e cultural, caracterizada pela desigualdade social,
pobreza e miséria, e dependência dos países latino-americanos das potências de
economia capitalista.
Pode-se dizer que foi na Conferência Episcopal de Medellín (1968) que se deu o
marco inicial para o nascimento de uma teologia bastante singular, posteriormente
denominada Teologia da Libertação. A preocupação da teologia nascente foi desde seus
inícios, descobrir o lugar do pobre, pensando sempre na contribuição que o
Cristianismo poderia dar para a transformação da sociedade latino-americana. A
122
Graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora
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reflexão teológica procurou então, debruçar-se sobre a realidade social e política dos
povos latino-americanos, estabelecendo um compromisso em favor da libertação desses
povos.
A Filosofia da Libertação Latino-americana tem também seus desdobramentos
durante a década de 60, a partir da obra ―Sociologia de la liberácion‖ de Fals Borda e do
estudo ―Existe una filosofia em América Latina?‖ de Augusto Salazar Bondy, que
apontaram entre outras coisas, para uma relação de dependência entre as antigas
colônias e metrópoles até mesmo no campo da reflexão filosófica. A Filosofia da
Libertação tem como ponto central de sua reflexão descobrir os mecanismos de
dominação, no qual sujeitos se tornam senhores de outros sujeitos nos mais diversos
planos.
Porque a experiência inicial da Filosofia da Libertação consiste em
descobrir o ―fato‖ opressivo de dominação, em que sujeitos se
constituem ―senhores‖ de outros sujeitos, no plano mundial (desde o
inicio da expansão europeia em 1492); fato constitutivo que deu
origem a ―Modernidade‖); Centro-Periferia; no plano nacional (elitesmassas, burguesia nacional-classe operaria e povo); no plano erótico
(homem-mulher); no plano pedagógico (cultura imperial, elitista,
versus cultura periférica, popular etc.); no plano religioso (o
fetichismo em todos os níveis) etc... (DUSSEL, 1995, p.18)
A Filosofia da Libertação utiliza da categoria o Outro, mas o Outro entendido
como o pobre. A partir daí a Filosofia da Libertação buscará nomear esse Outro, tido
como pobre e situado num espaço e tempo histórico concretos. O pobre é o índio
subjugado pelo dominador europeu; o negro transformado em escravo, o africano e o
asiático dominado pelas potências imperialistas dos séculos XIX e XX; o judeu dos
campos de concentração nazi-fascistas da 2º Guerra Mundial; a mulher considerada
objeto sexual; a criança e a juventude vulneráveis aos mecanismos de manipulação
ideológica. Esse Outro pobre e oprimido, grita clamando por justiça. É a partir desse
fato que a Teologia e Filosofia da Libertação buscaram formular um sistema ético que
restitua o lugar do pobre, estabelecendo a justiça, a liberdade. A ética da libertação quer
ser uma teoria antecedida por uma práxis.
A Ética da libertação se opõe a ética tradicional fundada na noção de totalidade.
A partir da descoberta do Outro pela experiência da Alteridade, só podemos enxergá-lo
como sendo o Outro distinto, e não como sendo o diferente como é entendido pelo
sistema da totalidade fechada e tradicional construída ao longo da história do
pensamento ocidental. O filósofo argentino Enrique Dussel procura situar e nomear
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concretamente o Outro, apresentando-o como aquele que é dominado, oprimido, o
pobre, e que deve ser tratado com amor-de-justiça, ponto de partida para o novo sistema
ético.
2. Os principais conteúdos filosóficos e teológicos em chave libertadora
Para entendermos a metodologia empregada pela Teologia e Filosofia da
Libertação é necessário debruçarmos sobre alguns elementos centrais de onde parte toda
a reflexão no novo horizonte filosófico e teológico. Esses elementos tomados da
tradição filosófica e da tradição judaico-cristã constituíram a chave hermenêutica para a
formação do novo sistema ético.
A figura do pobre como vimos anteriormente, é o ponto de partida para a
reflexão da Teologia e Filosofia da libertação. O pobre é o lugar a partir do qual se
inicia a práxis cristã da ética comunitária da libertação. A reflexão teológica reconhece
no pobre a figura de Cristo, ou seja, o caminho que nos permite descobrir e chegar a
Deus. Mas para situar o pobre de forma concreta é preciso antes, interrogar-se para
saber quem ele é; como chegou a ser pobre. O pobre é aquele que foi expropriado de
sua exterioridade, ou seja, despojado de seus direitos e de sua dignidade, e transformado
em mero instrumento a serviço de um sistema opressor e de uma classe dominante.
Diante do grito do pobre que clama por justiça surge uma consciência ética, em que se
faz necessário dar uma resposta responsável ao grito do pobre.
O termo libertação também é amplamente utilizado pelas duas vertentes e possui
uma significação bastante ampla, pois pode se tratar tanto do desejo de libertação das
classes oprimidas, passando pela busca da construção de uma nova sociedade
fundamentada no homem novo, e por fim o anseio pela libertação da situação de pecado,
portanto o termo libertação pode ser entendido num sentido sócio-econômico e político,
antropológico e teológico. O reconhecimento da liberdade inalienável do outro, que é o
elemento que o permite humanizar-se a si mesmo e o seu mundo será o ponto central da
reflexão teológica e filosófica. A libertação integral do homem possibilitará uma
abertura para descobrir os múltiplos rostos do outro latino-americano.
A perspectiva do Reino será também largamente utilizada, juntamente com as
categorias pobre e libertação. A ideia do ―Reino‖ como realização plena e total do ser
humano, comunidade final, possibilidade de encontro e partilha para todos aqueles que
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187
desejam a libertação de todas as ―negatividades‖ da atualidade, o capitalismo em crise
estrutural no plano social; o machismo no plano erótico; a dominação ideológica no
plano pedagógico; e o fetichismo idolátrico em todos os níveis. Na perspectiva da
libertação, o Reino já começa aqui e agora, situado concretamente na história, mas o
Reino é também horizonte escatológico, ou seja, está sempre mais além, sempre
indicando que há ainda muito a se fazer, por isso a perspectiva do Reino aponta para
uma prática e um horizonte crítico, denunciando a injustiça e o egoísmo da ordem
econômica e social vigente.
3. A descoberta do Outro e as consequências éticas da libertação
Somente com a superação da modernidade123, da ontologia do sujeito e da noção
de totalidade fechada124, poderemos falar então da Alteridade, pois agora é possível
pensar o Outro como distinto, sem recorremos a um o Mesmo, que é idêntico, origem e
âmbito de toda diferença. Na Totalidade mundana, o último horizonte, o ser, é o
ontológico, portanto, com o surgimento da possibilidade da alteridade é preciso
encontrar algo que está além do ontológico: trata-se do nível metafísico, em que o Outro
está situado no além, na exterioridade do sistema, de o Mesmo. É a experiência da
alteridade que possibilitará pensar num novo sistema ético.
Para falar da Alteridade em seu sentido mais originário e primeiro, Dussel
recorre a uma outra tradição, diferente das outras tradições citadas anteriormente, pois
estas estiveram a serviço da legitimação de um sistema de dominação e opressão:
―vontade de poder‖. Trata-se da cultura semito-hebreia. Embora Dussel utilize de
exemplos tirados dessa tradição para descrever a experiência da alteridade, ele esclarece
que o tema tratado é estritamente filosófico. Como esses exemplos foram descartados ao
longo da história como sendo dados da revelação, o pensamento europeu e latinoamericano ficou sem um ponto de apoio, uma base, abrindo caminho para que a
experiência grega e moderna do ―ser‖ se tornasse a única filosoficamente pensável.
123
Modernidade é o conceito utilizado por Dussel para falar da história de dominação e opressão iniciada
a partir da descoberta da América em 1492, que teve como consequência o encobrimento do outro
(Dussel, 1998, p.8).
124
Dussel chama de ―Totalidade fechada‖ a filosofia clássica, pois esta sempre fundamentou a ontologia
da totalidade e buscou legitimar os projetos de dominação e opressão (DANKE, 1995, p.45)
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188
3.1 O Outro revelado através do “face-a-face”
Dussel aponta para o fato de que na tradição hebraico-cristã encontramos o
relato de que ―Deus falava com Moisés face-a-face como o homem que fala com seu
íntimo‖ (Ex 33, 11). O face-a-face (panín el-panín) é um termo do hebraico que
significa o máximo de comparação, o supremo. Significa proximidade, o imediato, ―o
rosto frente ao outro na abertura ou na exposição de uma pessoa diante da outra‖, o
primeiro encontro entre duas pessoas. É somente pela experiência do face-a-face que
reconheço o Outro, como aquele que está além de meu horizonte ontológico. Esta
experiência originária é o ponto de partida pelo qual se abre meu mundo, a ordem
ontológica. Existem ainda, expressões mais significativas da intimidade nesta tradição:
―Eu lhe falei boca-a-boca‖ (Nm 12, 8), em hebraico peh-el-peh, significa a imediação
pelo beijo, a intimidade primeira, mais profunda de uma relação (DUSSEL, 1977,
p.114).
O face-a-face, boca-a-boca, expressam então, o amor alterativo, intimidade,
encontro. O rosto é o meio pelo qual reconheço e experimento o Outro como sendo o
Outro. E quando o reconhecemos, o Outro já não é coisa. O rosto do Outro é o âmbito
onde começa todo mistério, toda ação termina aí, é o limite de meu mundo. Não vejo ou
consigo ter acesso ao Outro através da inteligência. O que vejo é somente aquilo que me
aparece. Seu projeto, seu mundo, e suas possibilidades não se abrem a mim, é por isso
que lhe perguntamos: quem és?; onde nasceu?; o que fez em sua vida?; como está?; e
qual é o seu projeto?. Jamais poderemos dizer: já compreendi, já abarquei, já conheci o
Outro, pois ele permanecerá sempre um mistério, incompreensível e exterior a meu
mundo.
Recorrendo ainda à tradição semito-hebreia, Dussel chama atenção para o fato
de que embora nada possamos saber do Outro, podemos encontrá-lo numa relação cujo
fundamento é ato de amor: ―Bem-aventurados os de coração puro‖ (hoi katharoi têi
kardíai), porque eles estarão face-a-face com Deus‖ (Mt 5,8). O coração é o órgão que
simbolicamente estabelece a relação entre as exterioridades, assim como o agápe, isto é,
aquele amor que vai além de si mesmo, em outras palavras, além da totalidade, que é
ato essencialmente criativo, diferente do éros platônico, que caracteriza aquele amor do
mesmo pelo mesmo. Encerrado egoísticamente em si mesmo. Somente quando amamos
o Outro como Outro, aquele que é distinto, e que está além da Totalidade de meu
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189
mundo, é que poderemos confiar em sua palavra e considerá-la fidedigna. É bemaventurado aquele coração que se abre ao Outro, que escuta atentamente.
Enrique Dussel nos alerta que quando concebemos o Outro como mediação,
como instrumento, por exemplo: o soldado para o general, o empregado do correio para
aquele que compra o selo, o chofer de ônibus para o passageiro, então introjetamos o
Outro em nosso mundo, em nossa Totalidade de sentido. O face-a-face pelo contrário,
representa o choque entre duas exterioridades convergentes que se encontram, ou seja, é
o limite da minha liberdade, de meu âmbito, e estabelece a proximidade.
Nosso mundo, nossa compreensão, nossa totalidade de sentido é aberta a partir
da Alteridade, pois o ser humano desde antes de seu nascimento, já no útero, começou o
diálogo com o primeiro Outro: sua mãe. O ser humano nasce de alguém, se alimenta de
alguém, mama. Essa relação como o Outro humano é anterior a qualquer compreensão e
conhecimento do mundo. Nosso mundo é alterativo por sua própria natureza. Aos
poucos, o Outro, na figura do pai, mãe, irmãos e mestres realizaram a tarefa de
introduzir-nos em nosso próprio mundo, em nossa Totalidade de sentido. Pode-se dizer
que o nosso mundo é alterativo por natureza, pois o Outro é a origem primeira e o
destinatário último de nosso ser- no-mundo. O face-a-face diz respeito à experiência
primeira, o encontro do inusitado, do desconhecido, é entrar realmente em contato com
o ser, que se revela na abertura e exposição, é abertura que nos permite receber a
novidade que somente o Outro pode trazer.
Desde seu nascimento, como geração intra-uterina, o homem é um
pólo de liberdade dis-tinto, aparecimento no mundo dos Outros, ex
nihilo, de uma nova exterioridade, negatividade; alguém que exige
justiça, que tem seus direitos; um ser ético, meta-físico. Desde seu
nascimento é um resto, uma extremidade, um ser escatológico: ―o
Outro‖ para sempre e até o fim. Desde a origem, desde sempre, foi
dito sobre sua essência: ―Não é bom que o homem esteja só (Gênesis
2, 18)‖. Portanto, pólo dis-tinto, e, contudo essencialmente alterativo
(DUSSEL, 1977, p. 120).
Quando o homem está diante das coisas reais inanimadas ou de qualquer outro
ser vivo vivente, mas não humano, exerce sobre todas estas coisas uma relação de
dominação, imprime em cada uma delas suas características, pois todas as coisas reais
não-humanas são meios para a realização de seu projeto histórico. Diferentemente,
quando o homem encontra-se diante de outros homens, através do face-a-face, se não os
transforma em coisas ou meios, deve colocar-se numa atitude de abertura em relação ao
Outro, distinto e incompreensível.
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190
3.2 O surgimento do “ethos dramático e histórico”; a antropologia da palavra; e a
figura do profeta.
A liberdade do Outro faz surgir o novo. A novidade se instaura em meu mundo,
de forma gratuita e imprevisível. No face-a-face acontece uma relação que supera o
fazer e o compreender, transformando-se em criação. A Criação aqui não significa a
criação artística, pois esta é sempre fabricação, invenção e descoberta, mas sim, aquela
que acontece pela atuação do Outro livre e autônomo em meu mundo, trazendo-me
como dom aquilo que eu não tinha como possibilidade. A Alteridade criadora consiste
então, em acolher o novo que vem do Outro, e para que isso possa se realizar é preciso
saber ouvir, escutar sua palavra que é sempre o inesperado para mim.
A partir desta constatação, Dussel analisa a diferença entre o ethos trágico e o
ethos dramático e histórico. O primeiro está fundamentado na filosofia socrática e
aristotélica, em que se ensina e se conhece sempre o Mesmo: o conhecimento por
reminiscência, a filosofia como maiêutica. Para essa perspectiva, o homem perfeito é
sempre o sábio, o herói dominador. Pelo contrário, no ethos dramático e histórico, não o
do Prometeu acorrentado, mas o do Adão tentado, acontece uma história de abertura e
imprevisibilidade, pois o Outro revela o novo pela primeira vez; o homem perfeito nesta
visão é aquele que se dirige ao Outro com amor-de-justiça, é o profeta pobre e
oprimido, cuja vocação fundamental é o serviço e não o domínio. É o profeta quem
rompe com a Totalidade fechada e permite que ela se abra, pois ele é capaz de escutar o
Outro, não olhando somente para si próprio. No ethos dramático não pode haver uma
totalidade que abarque o Outro de modo absoluto, como pessoa, pois aqui temos o
respeito a exterioridade do outro.
Podemos dizer ainda, que a Alteridade criadora instaura uma nova antropologia:
a antropologia da palavra. O Outro não aparece somente, mas também é uma epifania,
pois como foi dito acima, no face-a-face temos a manifestação do Outro através do
rosto que se apresenta diante de mim. Se o Outro não me dirigir sua fala, se ficar calado,
não poderei jamais conhecer ou entrar em seu mistério, por mais que insista e que lhe
peça, não poderei conhecer seu mistério em profundidade, e mesmo que ele me fale,
nunca terei certeza sobre a veracidade de suas palavras.
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191
A experiência do face-a-face é também uma pergunta, mas que apresenta
também uma resposta, pois quando interpelo o Outro, quando ele me responde, me
permite conhecer algo de seu mistério. Quando o Outro me fala, sua palavra encontra
em mim não um olho, mas é acolhida pelo ouvido. No pensar grego e moderno, tudo se
encontra sobre o âmbito da luz, a visão é amplamente valorizada; aquilo que é
inteligível é também o iluminado. A palavra do Outro me interpela, posso ouví-la ou
não. E essa palavra, localiza-se no além da luz, ou seja, na obscuridade, portanto, cria-se
a partir daí uma nova antropologia, não mais a do olho e da luz, mas a da palavra que
implica na postura e valorização da escuta. Dussel nos esclarece que o Outro, livre e
autônomo, está além do logos e da totalidade, e sua palavra aparece de repente em meu
mundo, interpelando-me e revelando-me o incompreensível e sua suprema negatividade.
Na Alteridade temos o diálogo entre o Mesmo e o Outro, o rompimento do monólogo de
―o mesmo‖, e a abertura à máxima novidade.
4. Desafios da contemporaneidade para a Ética da Libertação
Será preciso apontar alguns desafios que serão enfrentados pela Filosofia e
Teologia da Libertação e consequentemente por sua reflexão ética a partir da década de
90, com a derrocada do socialismo, o retorno do discurso conservador da sociedade
neoliberal e as mudanças provocadas pelo crescente processo de globalização que afeta
a vida das pessoas deste tempo em maior ou menor grau. Num mundo marcado pelos
progressos da ciência e da tecnologia em ritmo sempre crescente, como também pelo
encurtamento das distâncias pelos modernos meios de comunicação, persistem ainda
algumas indagações incômodas surgidas a partir das contradições geradas pelo sistema
capitalista. É possível que em meio aos progressos da ciência e da técnica, muitos ainda
sejam vítimas da fome e não tenham acesso aos recursos médicos básicos? É possível
que na sociedade da comunicação e da informação muitos ainda sejam analfabetos?
Existem ainda pessoas que não tenham uma casa para morar numa sociedade da
prosperidade econômica?
A economia liberal parece triunfar radicalizando a economia de mercado e
impondo-a aos países periféricos. Nesta sociedade a divisão entre ricos e pobres se torna
ainda mais acentuada, já que não se escuta mais o grito dos pobres, o grito daqueles que
foram excluídos do sistema. Essa indiferença da sociedade capitalista mostra de forma
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192
mais evidente a separação entre ética e economia. Diante do agravamento da situação de
pobreza, amplia-se o conceito de pobre, substituído pelo termo ―excluído‖, que abarca
ainda mais a grande quantidade de seres humanos que sofrem algum tipo de exclusão
social e econômica. Na sociedade neoliberal, o mundo do trabalho se torna cada vez
mais seletivo e competitivo, excluindo grande parcela da mão-de-obra ativa seja ela
especializada ou bruta. Vemos também o crescimento dos conflitos étnicos e políticos,
causa do deslocamento de inúmeros refugiados para outros países, sofrendo constantes
ameaças xenófobas, dependendo muitas vezes das organizações humanitárias. Soma-se
também o problema dos sem-terra e dos trabalhadores do campo que ainda não
encontrou uma solução, vítimas das estruturas latifundiárias. Pode-se falar ainda no
problema dos povos indígenas, daqueles que não possuem assistência médica, das
vítimas das diversas enfermidades somadas ao preconceito e a discriminação, como é
caso dos portadores da AIDS e dos dependentes químicos. As maiores vítimas desta
sociedade seram certamente, as crianças, os jovens, as mulheres, os idosos, os
deficientes físicos ou mentais (SILVA, 2003, p. 45).
Mesmo que as condições políticas, econômicas e sociais tenham sofrido
diferentes transformações, o problema da pobreza e da exclusão sempre crescentes
ainda não mudou. Encontramos ainda aqui, a necessidade de continuar a pensar o
problema da pobreza e da marginalização, suscitado pela reflexão teológico-filosófica
da libertação, e consequentemente o retorno da práxis libertadora, que se torna mais
necessária do que nunca. Caberá à reflexão teológica e filosófica escutar as experiências
passadas e a partir daí, retomar a importância de uma ética da solidariedade no contexto
fortemente individualista da pós-modernidade.
5. Considerações finais
A Ética da libertação inaugura uma nova perspectiva que nos permite enxergar
mais além, ou seja, descobrir um novo mundo que é exterior ao nosso, um mundo
periférico. Nesse mundo periférico encontramos então, o rosto do outro, do pobre, que
nos interpela e grita por justiça. O contanto com o mundo do outro permite um
alargamento dos nossos horizontes e nos instiga a reconhecer o outro em sua distinção.
A Ética da libertação surge então como uma alternativa diante do fracasso do
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193
desenvolvimentismo na América Latina, tentando elaborar uma práxis a partir da
reflexão teológica e filosófica.
A proposta ética apresentada por Dussel é bastante abrangente e atual,
oferecendo inclusive, propostas concretas para a implementação de um sistema ético
pautado na solidariedade e fundamentada na experiência da alteridade. De fato, o
exercício da alteridade propicia a criação de uma nova forma de pensar, aquela que
rompe com a mesmidade e instaura o novo. Ao nomear o Outro, situá-lo em um espaço
e tempo histórico próprios, identificando-o com o pobre, o excluído, podemos assumir
uma postura e uma ação mais concreta no encontro com o Outro.
A Teologia e Filosofia da Libertação tornaram-se conhecidas em todo o mundo
por sua originalidade e vitalidade, pois pela primeira vez buscou-se pensar a partir da
periferia. Essa nova forma de pensar caracterizou-se por um movimento duplo entre
reflexão e práxis, na tentativa de oferecer uma resposta para o problema da desigualdade
social no continente latino-americano.
A era da globalização nos apresenta um cenário de mundo que não difere muito
do contexto do surgimento da Teologia e Filosofia da Libertação, no que se refere ao
quadro de exclusão social. Apesar de grandes progressos na ciência e na tecnologia,
ainda estamos diante das mesmas imagens que impulsionaram a reflexão filosóficoteológica da libertação. Faz-se necessário o retorno desta reflexão diante dos desafios e
das questões emergentes da contemporaneidade diante do horizonte dos pobres,
daqueles que são excluídos a cada dia, deixados à margem desta sociedade.
Referências Bibliográficas
DANKE, Ilda Righi. O processo do conhecimento na pedagogia da libertação: as
ideias de Freire, Fiori e Dussel. Petrópolis: Vozes, 1995
DUSSEL, Enrique, Para uma filosofia da libertação latino-americana: acesso ao
ponto de partida da ética. São Paulo: Edições Loyola, 1977. v.1
________, Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis:
Vozes, 2000
________, Filosofia da Libertação: crítica à ideologia da exclusão. Tradução
Georges L. Maissiat. São Paulo: Paulus, 1995.
________, 1492: o Encobrimento do Outro: a origem do mito da modernidade:
Conferências de Frankfurt. Tradução Jaime A. Classen. Petrópolis: Vozes, 1993.
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SOBRE A RELIGIÃO
194
MATOS, H. A. Uma introdução à Filosofia da Libertação latino-americana de
Enrique Dussel. Livro eletrônico gerado a partir do Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado à Universidade Metodista de São Paulo, sob a orientação de Daniel
Pansarelli.
São
Paulo,
2008.
Disponível
em:<http://hamatos.files.wordpress.com/2011/03/hugo-allan-matos.pdf>
Acesso em: 22 fev. 2012.
SILVA, João Justino de Medeiros. Pneumatologia e Mariologia no horizonte
teológico latino-americano. Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 2003.
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SOBRE A RELIGIÃO
195
A CONSTRUÇÃO E A CONCEPÇÃO DE EVANGELIZAÇÃO DA DIOCESE
DE NOVA IGUAÇU
Gabriel do Nascimento Silva125
Resumo: O presente trabalho aborda a concepção de evangelização predominante
na Diocese de Nova Iguaçu a partir da sua fundação em 1960. Através da
análise do Planejamento Pastoral, observou-se como a inserção de novos
agentes
pastorais
questões
sacras
Fluminense
provocou
e
terrenas.
apresentou
a
superação
Em
mudanças
da
decorrência,
dicotomia
o
significativas
religiosa
catolicismo
na
na
forma
entre
Baixada
de
se
relacionar com a realidade social e política da região.
Palavras-chaves: Religião, política e Classes Populares.
Introdução
O sequestro de um Bispo de periferia muito facilmente poderia ser atribuído a
problemas pontuais e locais. Contudo, pegar seu carro e explodi-lo em frente à
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), parece deixar uma mensagem clara
de afronta, se não à Igreja como um todo, com certeza, a um determinado grupo do qual
o referido Bispo era representativo. Acrescente-se agora um atentado a bomba ao altar
da Igreja Matriz da cidade, seguida de pichações aludindo um suposto envolvimento de
católicos ao comunismo. Estes fatos aconteceram na Diocese de Nova Iguaçu. No
primeiro caso, Dom Adriano Hipólito foi sequestrado no dia 22 de setembro 1976 e teve
seu carro detonado em frente à sede da CNBB, além de ter sido levado para longe da
cidade, espancado, largado nu e pintado de vermelho. No segundo caso, o ocorrido se
deu no dia 20 de dezembro de 1979. Por estar próximo ao natal, havia um presépio
construído no altar, o que evidentemente ficou destruído. Era agora a maior figura
simbólica da fé católica que havia sido atingida: Jesus Cristo. Estava claro que a Igreja,
ou ao menos parte dela, vinha incomodando bastante algum setor social. E a julgar pelo
momento histórico do Brasil que passava por uma Ditadura Militar (1964-1985), boas
suposições podem ser feitas. Mas, deixando a leviandade de lado, não se pode chegar a
125
Licenciado em História, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
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uma conclusão definitiva dos autores dos atentados. Contudo, isto não impede a
constatação do incomodo que algum setor social vinha sentindo na forma da Igreja
conduzir sua missão: a evangelização.
O presente artigo traça alguns argumentos sobre a concepção de evangelização
predominante na Diocese de Nova Iguaçu ao longo da década de 1960 e 1970.
Compreender o que significava a disseminação da mensagem de fé na vida concreta da
população é estratégico para se apreender, ao menos em parte, o papel social e político
do catolicismo na região. Sem esta perspectiva, ao analisar-se os crimes citados e a
ligação que a Igreja teve com as classes populares na década de 1970, seriam feitas
simplificações que atribuiriam a Diocese características de um partido político.
É oportuno citar neste ponto, ao menos, um exemplo para ilustrar a relação entre
Igreja e classes populares. O de maior destaque no período na Baixada Fluminense da
segunda metade da década de 1970, foi o movimento associativo de bairros, comumente
chamado de Movimento de Amigos do Bairro (MAB). Este movimento social
promoveu uma nova forma das classes populares pleitearem suas demandas, e
consequentemente, modificou a relação das camadas subalternas com a política
(SILVA, 1994).
O que mais vale argumentar é que esse movimento surge a partir da ação
pastoral da Diocese na área de saúde. O que, já, muito contradiz qualquer idéia que
pense em ações pastorais sempre desvinculadas da realidade material. Contudo, por
mais que pudessem se envolver com o poder político, essas atividades não tinham o
objetivo de chegar a ele. E justamente por isso que se tem o nascimento de movimentos
sociais. Se a Igreja tivesse os mesmo atributos de um partido político, não haveria a
necessidade de alguns membros partirem para a organização popular. Então, de uma
atividade religiosa, surge um movimento que põe em questão a forma como a elite
política local vinha conduzindo sua perpetuação no poder público.
Mas como, concretamente, uma atividade religiosa pode resultar na formação de
movimentos sociais? Uma pista já foi enunciada: as ações pastorais da Diocese de Nova
Iguaçu na década de 1970 não se limitavam a reproduzir simples mensagens de fé
desvinculadas da realidade material, social e política dos fieis. Entretanto, isso não
responde por que a Igreja estabeleceu laços estreitos justamente com as camadas
desfavorecidas economicamente da Baixada Fluminense.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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A resolução destas questões parece estar na compreensão da concepção de
evangelização que norteou o projeto de Igreja para a Diocese de Nova Iguaçu. E por
mais que as consequências estejam nítidas nos acontecimentos da segunda metade da
década de 1970, é preciso retornar a década anterior para se observar o momento de sua
elaboração. É importante também contextualizar a Diocese de Nova Iguaçu em um
período de mudanças de paradigmas para o catolicismo mundial. São tempos de
renovação do Concílio Vaticano II (1959-1965) mergulhando a Igreja em um amplo
debate sobre seu papel frente ao mundo moderno.
Feito este percurso, espera-se entender melhor o caráter político da fé católica da
Diocese de Nova Iguaçu. Entretanto, deve-se enfatizar que as reflexões expostas aqui
são resultados preliminares de uma pesquisa que teve seu início no trabalho de
conclusão de curso durante a graduação do autor na Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ), e que prossegue neste momento dentro do Programa de Pósgraduação em História Política (PPGH) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ).
A Diocese de Nova Iguaçu
A Igreja Católica Apostólica Romana sempre teve grande influência na Baixada
Fluminense. Mas na década de 1950, vislumbrou-se um descompasso entre
desenvolvimento religioso e social. A população cresceu e se diversificou
aceleradamente em consequência da crise da citricultura e do processo de loteamentos
das antigas chácaras (SOUZA, 1992). Por estar vinculada a distante Diocese de Barra
do Piraí, a Igreja tinha dificuldades para seguir o mesmo ritmo. Era necessário um
projeto evangelização que pressupunha aparatos institucionais de uma Diocese
efetivamente presente no cotidiano dos fieis. Dessa perspectiva nasce a idéia de se criar
uma Diocese para a Baixada Fluminense. Então, vem a primeira comissão pró-diocese
em 1953, nomeada pelo Bispo José André Coimbra, e presidida pelo Mons. João
Musch. Ainda houve uma segunda comissão em 1957, nomeada e presida pelo Bispo
Dom Agnelo Rossi, antes da emissão da bula Quandoquidem Verbis emitida pelo Papa
João XXIII em 26 de marco de 1960, criando a Diocese de Nova Iguaçu com seu
primeiro Bispo Dom Walmor Battú Wichrowski. Por questões de saúde, este
permaneceu pouco mais de um ano, apenas, na condução da nova Diocese, sendo
substituído por Dom Honorato Piazera. Não se pode menosprezar evidentemente o
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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trabalho feito pelo segundo Bispo que ao chegar encontrou a Diocese com 34 sacerdotes
e 4 comunidades religiosas, e ao sair deixou 65 padres e 11 comunidades (PASSOS,
1970)
Mas é na figura de Dom Adriano Hipólito que toma posse em 1966, que se tem o
salto qualitativo na elaboração daquele projeto de Igreja. Enquanto os dois primeiros
Bispos se preocuparam em proliferar o corpo religioso e clerical, Dom Adriano centrou
seus esforços iniciais na organização e sistematização do trabalho pastoral. Tanto que
convoca uma reunião com padres, religiosas e alguns leigos em janeiro de 1968 para a
elaboração do primeiro planejamento pastoral126. Desta reunião surge um documento
que serviria de norte para toda a Diocese de Nova Iguaçu e que foi publicado pela
editora VOZES em março do mesmo ano. Vale ressaltar que este documento foi
produzido a partir de discussões coletivas que, mesmo não evidenciando a pluralidade
de pensamentos possíveis de terem existido nas reuniões de sua elaboração, não deixou
de demonstrar uma reflexão dos atores a respeito do que ocorria dentro e fora dos muros
da Igreja. Por outras palavras, o planejamento visava construir uma orientação para o
futuro, mas era também um resultado equacionado do que o grupo pesava e praticava
anteriormente.
O planejamento Pastoral foi sistematizado em duas partes. Na primeira, consta
uma ―Introdução Geral‖, aonde se encontram informações sobre o que a Diocese
entendia sobre diferentes conceitos como Pastoral, Caridade, Missão da Igreja. Há
também análises conjunturais da Igreja e suas diretrizes, da realidade religiosa e social
de seus fieis. Na segunda parte estão os programas planejados para o ano, subdivido em
quatro tópicos: levantamentos e Pesquisa, Formação e Atualização, Ação pastoral e
serviços. Em cada parte há uma explicação prévia do objetivo do tópico, depois uma
avaliação do ano anterior e, por fim, os planos para o ano.
É na observação do método de produção deste documento, aliado a análise de
seu conteúdo, que se percebe a necessidade de relativizar o papel de Dom Adriano.
Diversos trabalhos acadêmicos tendem caracteriza-lo indistintamente no tempo sob
alguns rótulos permanentes, como, por exemplo, um Bispo progressista. Evidente que
ao pensarmos na sua atuação do final da década de 1970, que se envolveu em quase
todos os problemas sociais da região, e difícil negar o adjetivo. Mesmo assim, o que se
126
Este é o principal documento analisado para a construção deste artigo. Teve seu primeiro exemplar
publicado no mesmo ano de 1968, prosseguindo suas edições de forma anual.
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SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
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quer argumentar é a necessidade de se perceber duas coisas. A primeira, que a Diocese
não é reflexo direto e acabado da ação e do pensamento isolado de seu líder. O caráter
coletivo do planejamento pastoral evidencia tal premissa. A segunda, que, a julgar pelo
tempo em que exerce o cargo, quase trinta anos, a atuação de Dom Adriano não foi
sempre da mesma forma. Ela foi se moldando em relação constante com as condições
que lhe eram colocadas pela conjuntura social e da Igreja em si.
São pelas razões expostas até aqui, que se pensa em uma concepção de
evangelização da Diocese, e não de um determinado grupo. Mesmo admitindo a
pluralidade de metodologias que coexistiram, houve um direcionamento claro das
perspectivas que deveriam concentrar os esforços institucionais da Diocese127. Afinal, a
primeira função do planejamento pastoral era integrar ações pastorais dispersas em um
programa unitário, sistematizado e organizado sob diretrizes nacionais (Plano Pastoral
de Conjunto 1966-1970) e internacionais (Concílio Vaticano II). Por outras palavras, era
para elaborar um projeto que adaptasse à realidade da região as reformas litúrgicas,
doutrinais e sacramentais que os novos ares de Concílio Vaticano II levou para o mundo
inteiro.
O Concílio Vaticano II
A Igreja até a década de sessenta tinha seu rosto moldado pelo Concílio de
Trento, que havia sido realizado no século XVI. Segundo José Beozzo (BEOZZO,
2001), este concílio reafirmou doutrinas e liturgias que perduraram até a convocação do
Vaticano II pelo Papa João XXIII em 1959 e encerrado pelo Papa Paulo VI em 1965. A
participação brasileira foi sem precedentes na história da Igreja. Foi tanto a
possibilidade de colocar o Brasil no centro da teia de relações em Roma e na América
Latina, como a oportunidade de definir mais concretamente uma identidade para o
catolicismo no país.
O Plano Pastoral de Conjunto 1966-1970 (PCC) teve uma importância grande no
sentido de orientar as ações da Igreja. Este documento, elaborado pela CNBB, surge no
apagar das luzes do Concílio em 1965 com o objetivo de projetar as questões do
127
Para citar apenas um exemplo de coexistência de metodologias de evangelização distintas na Baixada
Fluminense, tem-se a Renovação Carismática Católica (RCCs) e as Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs). Para uma boa compreensão desse diálogo, ver em ASSIS, João Marcos Figueiredo. Negociações
para o convívio no catolicismo na Diocese de Nova Iguaçu- RJ Tese de Doutorado, Centro de Ciências
sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. UERJ. Rio de Janeiro. 2008.
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SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
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encontro à realidade brasileira no período de 1966 a 1970. Por consequência, mergulhou
as Dioceses em um amplo debate sobre seu trabalho pastoral, uma vez que elas tinham
agora um ponto de referência nacional para se orientar. É deste ponto que se percebe
que o PCC contribui muito mais para a construção de identidade da Igreja do que a
própria criação da CNBB em 1952. Afinal, havia agora uma diretriz a ser pensada sobre
as diferentes localidades.
Para a relação entre leigos e clero, o concílio Vaticano II foi um divisor de
águas. Representou uma nova forma de relação entre esses agentes. Dessa forma, os
leigos foram participando mais ativamente da vida religiosa como sujeitos, e não meros
espectadores. Isto acarreta, entre outras coisas, na mudança de foco da própria missa,
que passa a ser rezada em língua vernácula e não mais de costas para o público,
propiciando um novo tipo de relação entre os atores clericais. Fato é que o Concílio
propiciou aos diferentes setores da vida religiosa repensarem seus papeis frente ao
trabalho de evangelização.
Era, pois, a necessidade de expandir a mensagem de fé da Igreja que fez toda a
instituição se reformar. E dentro destes parâmetros foram se estabelecendo diversas
perspectivas que visavam a proliferação da influência religiosa pelo mundo moderno.
Assim sendo, já se pode imaginar como está muito coerentemente pensado o
estabelecimento da Diocese de Nova Iguaçu em 1960, decretado pelo Papa João XXIII.
Ainda mais se junto a isto, acrescentar-se a necessidade da própria região, que vinha
crescendo e se dinamizando em ritmo acelerado como já foi mencionado.
A Concepção de Evangelização
Logo em 1968 a Diocese estabelece em seu primeiro planejamento pastoral as
Comunidades Eclesiais como forma de organização básica. Mas essa simples
constatação não dá conta dos motivos que levaram sua adoção, e nem tão pouco do seu
caráter. É preciso mencionar a análise conjuntural que a Igreja fez tanto de seus fiéis
como de seus agentes pastorais. É preciso entender, também, quais eram os objetivos
primordiais da evangelização a serem realizadas na Baixada Fluminense. E talvez o
mais importante, é preciso entender qual foi o entendimento da Diocese de Nova Iguaçu
sobre o homem e sua vida espiritual e terrena.
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SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
201
No primeiro planejamento pastoral se percebe uma ideia de evangelização que
visava à salvação total de todos os homens. Esse pensamento é a peça chave para a
compreensão do que norteou todo o trabalho pastoral elaborado a partir da Diocese de
Nova Iguaçu. A definição dessa concepção de evangelização foi mais bem elaborada no
terceiro Plano de 1970. O homem face aos tipos de diálogos que pode estabelecer em
vida, possui, em decorrência, diferentes esferas que determinam sua totalidade: na
medida em que dialoga com Deus, tem sua faixa sacral; quando dialoga com os outros
homens, sua esfera social; e quando dialoga consigo mesmo, sua faixa existencial.
Dessa forma é pensada a totalidade do homem constituído de três esferas em
decorrência de três tipos de diálogos. É a junção definitiva entre corpo e alma, pois
nenhum trabalho pastoral que vise a salvação total do homem pode negligenciar
qualquer uma daquelas esferas. Todas elas se interligam e se relacionam para formar a
complexidade do homem segundo a visão da Igreja.
Quando o planejamento pastoral se refere à salvação de todos os homens, podese compreender a ideia de Comunidade pensada para o trabalho evangélico nesse
primeiro momento da década de 1960. Na exata medida de sua responsabilidade e de
acordo com seu grau de inserção em cada uma daquelas esferas (sacral, existencial ou
social), compete a todos aqueles que foram batizados não só o direito, como o dever de
realizar o anúncio da vida de Cristo. Dentro deste parâmetro todos os homens são
chamados a se inserirem dentro do trabalho religioso, mesmo em graus diferenciados de
responsabilidade e dedicação. Então, mesmo admitindo a possibilidade de o homem se
colocar diretamente em contato com Deus, ele só realiza toda a plenitude da missão
salvífica quando se insere dentro de uma Comunidade que pense e trabalhe sob todas as
faixas sociais do homem. Somente dessa forma o ser humano sai de seu isolamento para
a promoção de todas as suas faixas: sacral, existencial e social. É como Comunidade
que se coloca toda a Igreja para a salvação total do homem.
Em resumo, a ideia da totalidade do homem está atrelada a superação da
disjunção entre questões temporais e espirituais, assim com a inserção de todos os
homens no trabalho pleno de evangelização. Estes pontos parecem ter alcançado uma
delimitação clara para Diocese em 1970, pois no ano seguinte o planejamento pastoral
já vem sem a introdução geral que se justificava como um esclarecimento dessas ideias.
A partir de 1971 o Plano passa a constar apenas com as explicações prévias de cada
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SOBRE A RELIGIÃO
202
programa, as análises qualitativas das atividades do ano anterior e o planejamento do
ano posterior.
Tendo descrito o que era para a Diocese seu envolvimento em todas as faixas do
homem e sua noção de Comunidade, agora melhor se pode compreender o caráter da
missão primordial da Igreja que é salvar e libertar o homem. Esse objetivo, que já se
enuncia logo nas primeiras páginas do planejamento de 1968, requer um conjunto de
atividades muito bem programadas e estruturadas. Se nenhuma questão da vida humana
pode ser desconsiderada na evangelização, o trabalho pastoral, entendido como o
conjunto de serviços prestados pela Igreja, deve ser integral, surgindo assim o conceito
de Pastoral Integral. É integral quanto ao sujeito, pois compete a todos os homens, de
acordo com seu grau de comprometimento. É integral quanto ao objeto, porque se
destina a todos os homens em sua totalidade sacral, social e existencial. E por último é
integral quanto ao âmbito de atuação, porque envolve todas as iniciativas da Igreja,
sejam aquelas mais voltadas aos aspectos terrenos ou espirituais.
As Comunidades Eclesiais
O resultado de todo esse processo é a identificação da Diocese com todas as
questões sociais que envolviam a população da Baixada Fluminense. Mas, para a
realização plena dos objetivos almejados esbarrou-se em problemas práticos. A análise
conjuntural que a Diocese fez tanto dos agentes pastorais como da realidade religiosa da
Baixada Fluminense enfatiza dois aspectos: a pouca disponibilidade e a dispersão das
iniciativas pastorais, e má formação religiosa tanto dos agentes como dos próprios fiéis.
Por tanto, os poucos envolvidos na evangelização se encontravam sobrecarregados. E
para a resolução desse problema era preciso a obtenção de novos quadros capazes de
fomentar o trabalho pastoral. A primeira barreira que se encontra é a impossibilidade de
requerer esses quadros no corpo clerical, tendo em vista seu reduzido número. Não que
não tenha havido esforços para importar padres e religiosas de outros cantos, inclusive
de fora do país. Contudo, por seu tamanho, o território contemplado pela Diocese
necessitava de outras estratégias. É do laicato que veio a alternativa mais adequada,
porém esta trazia consigo outro problema. Os leigos eram mal preparados e, além disso,
os sacramentos possuíam poucos significados em suas vidas concretas. Criou-se, então,
a ideia de se formarem lideranças capazes não só de darem conta do trabalho pastoral,
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mas, sobretudo, de possibilitarem uma nova significação da religiosidade na vida
concreta de cada fiel.
Surge, então, a liderança pessoal e as lideranças comunitárias. A primeira se
refere aos indivíduos conscientes e engajados em qualquer linha da Igreja para o
anúncio da Boa-nova. Podem ser eles, religiosas, padres ou leigos, desde que estejam no
dia-a-dia da realidade de sua área de atuação ou com os problemas de sua Comunidade.
Entretanto, os mais notáveis são as lideranças comunitárias, pois sua compreensão
reavalia a ideia de Comunidade Eclesial de Base (CEBs). Para a década de 1960, as
CEBs ainda não tinham uma conceituação exata do que eram, e por isso mesmo,
possibilitou sua enorme pluralidade em termos práticos, pois eram as necessidades de
cada Comunidade que ditavam seus procedimentos e reflexões. Dessa forma as
Comunidades em Nova Iguaçu foram pensadas enquanto formação de lideranças, onde
um grupo se engaja em determinada ação pastoral. A formação deste grupo é ditada
pelo ―(…) entrelaçamento ininterrupto de relações primárias entre os seus
componentes‖ (DIOCESE DE NOVA IGUAÇU, 1969, 27). Relembrando a totalidade
do homem, não seria surpresa a prioridade que foi atribuída à formação de lideranças
comunitárias.
Há duas interpretações possíveis das ideias expostas até aqui, as quais
constituem um fato novo que aproxima a Diocese da realidade social da Baixada
Fluminense. A primeira delas gira em torno da superação da dicotomia entre corpo e
alma, pois questões espirituais e terrenas foram vistas como indissociáveis. Tal premissa
ajuda a compreender porque a Diocese elaborou ações pastorais que não se restringiram
a reprodução da mensagem de fé simplesmente. A segunda é que toda essa organização
de lideranças surge do laicato e de dentro da Igreja como estratégia de evangelização.
Neste ponto avalia-se a possibilidade de encontro da Igreja com as classes populares.
Foram nesse momento que se legitimaram trabalhos antes vistos como
incoerentes com as práticas religiosas propriamente ditas. Tudo isso foi possibilitado
por uma conjunção de fatores da realidade macro e micro, os quais demonstram a
progressiva inserção dos leigos como agentes na vida religiosa. O Concílio Vaticano II
propiciou certa liberdade de organização que possibilitava uma limitada democratização
das estruturas diocesanas. Afinal, não seria viável a formação de lideranças
comunitárias caso não houvesse nenhuma margem de liberdade para estes pensarem
suas próprias atividades. E a Diocese de Nova Iguaçu, percebendo sua debilidade
CADERNO DE ANAIS, 2012.
SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
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estrutural para expandir de si própria a evangelização, buscou inserir os leigos nas ações
pastorais. Os dois vetores, macro e micro, rumaram para a integração dinâmica do
laicato na condução de sua própria evangelização.
Considerações finais
Todo isso foi bem caracterizado no primeiro planejamento pastoral da Diocese
de 1968, que demonstra uma primeira perspectiva de se organizar e criar uma unicidade
entre iniciativas desencontradas. Foi, simultaneamente, a primeira tentativa de
sistematização das atividades e a busca pela inserção e formação dos leigos nessas
mesmas atividades. Assim sendo, observou-se, também, uma democratização da vida
religiosa, o que comungava com princípios elaborados pelo Concílio Vaticano II. Para
darmos um exemplo disso, criaram-se em Nova Iguaçu diversos conselhos de
participação coletiva, como o conselho presbiteral, presidido pelo Bispo com a
participação de mais 14 membros entre efetivos e suplentes. Importante salientar que tal
fato não significou em nenhum momento uma quebra de hierarquia, até porque, em tese,
ela não é vista em contradição com a democracia.
Contudo, a organização que realmente modificou toda a forma da Diocese se
relacionar com seus fieis foi as Comunidades Eclesiais de Base. O seu estabelecimento,
a principio, foi uma estratégia para formarem lideranças capazes de prover mais
apropriadamente a evangelização. É deste ponto que se elaborou a ideia de criar um
Centro de Formação de Lideranças, o qual ficou completamente acabado em 1973.
Importante mencionar que a formação de liderança não era para atividades políticas em
sentido formal, mas sim para criar agentes capazes de realizar a ação pastoral de acordo
com o clima de renovação do período. Portanto, mostra-se um equívoco afirmar que as
CEBs dariam consequência direta à movimentos sociais em Nova Iguaçu. Antes disso, é
imprescindível compreender como era fomentada a ação pastoral e as concepções que
norteavam a Diocese de Nova Iguaçu. Foram estas questões que deram fundamentação
às CEBs para que elas, no futuro, viessem a se tornar espaços de discussões sociais.
A missão que se coloca para a Igreja como um todo é a salvação e a libertação
de todos os homens e do homem todo. Esta missão é cumprida através de um serviço de
caridade. E por meio deste serviço de caridade que a Diocese exerce sua função
primordial de evangelização. A caridade não pode ser simplificada a uma mera
assistência social, ela é também religiosa, pois o homem é visto em sua totalidade,
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corpo e alma. Em suma, este serviço que é caracterizado como ação pastoral. E a busca
por significações mais adequadas dos sacramentos religiosos para a vida humana
perpassa pelo entendimento que todo aquele batizado tem o dever de se apresentar para
o trabalho de anunciação da vida de Jesus Cristo, de acordo com seu grau de
responsabilidade lhe atribuído. Assim, todos os homens são convocados a terem uma
ação religiosa que se envolva em todas as esferas do homem social, existencial e sacral.
Estes são os aspectos da concepção de evangelização que podem ser mais bem
sintetizados se afirmamos que a salvação do homem não mais está circunscrita
exclusivamente de questões religiosas. Melhor dizendo, esta perspectiva de
evangelização, de todos os homens e do homem todo, tentava superar com a dicotomia
entre o corpo e a alma. Portanto, não só as CEBs, mas todos os serviços da Igreja, sejam
eles, teoricamente, mais voltados a uma esfera ou outra, engajavam-se nessa
perspectiva. A Pastoral Integral deveria se comprometer com todas as áreas da vida
humana. Foi assim que se possibilitou a ressignificação dos diferentes sacramentos, que
não mais podiam se resumir puramente em si mesmos.
Por tanto, Não bastava à Diocese instituir simploriamente as CEBs como
unidades privilegiadas de ação pastoral, pois, se assim fosse, poderiam ser
caracterizadas apenas como a menor circunscrição da Paróquia. O que não possibilitaria
os desdobramentos sociais e políticos que a história demonstrou nelas. Antes, era uma
concepção de evangelização que não se esquivava de discutir questões terrenas, que
definiu, concretamente, uma metodologia de evangelização para as CEBs. O que, por
sua vez, culminou em outros tipos de mobilizações sociais. Estas, sim, deram origem
aos movimentos sociais que surgiram ao longo da década de 1970, como o exemplo já
citado, o Movimento de Associação de Bairros (MAB).
Importante frisar mais claramente que todo esse processo fundamentou uma
doutrina social para Igreja não apenas em Nova Iguaçu, mas, sobretudo, para o Brasil e
a América Latina. Haveria muito ainda o que argumentar se percorrêssemos por esse
caminho que leva em direção a Teologia da Libertação (BOFF, 1986). Mas, para nos
atermos ao nosso tema, cabe mencionar, pelo menos, alguns argumentos que nos levam
de volta aos atentados descritos no início do texto.
O papel da Igreja frente a sociedade não estava claro até pelo menos meados da
década de 1970. Por isso que parece não ter havido grandes conflitos entre Igreja e
Estado durante os períodos mais repressores da Ditadura Militar, tal qual diz Márcio
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
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Moreira Alves (ALVES, 1979). Assume-se a dificuldade de afirmar se os problemas
entre repressão e clero, antes da metade da década de 1970, eram realmente
circunstanciais e restritos ao segundo escalão da Igreja, coforme argumenta o autor em
questão. Mas, o estudo de Kenneth Serbim sobre a comissão tripartite, organizada no
Governo de Médici (1969-73), também sinaliza para busca de conciliação de ambas as
instituições, justamente no período mais repressor do Estado com os movimentos
sociais (SERBIM, 2001).
Contudo, seria forçoso não relacionar aqueles atentados que sofreu a Diocese de
Nova Iguaçu em 1976 e 1979 com a tomada consciente de seu papel social e político
frente às classes populares. À medida que a doutrina social da Igreja foi ganhando
contornos práticos no cotidiano dos católicos, setores contrários a mobilização popular
foram reavaliando a atuação da Diocese. Os atentados são as evidencias mais clara que
se poderia mencionar, mas não únicas. O problema, na verdade, surge da conjunção de
dois fatores: a concepção que via a importância da política para a plena realização da
evangelização e a ligação dessa Igreja com as classes populares. As CEBs foram se
desenvolvendo a partir do final da década de 1960, até culminar na equação desses
fatores na segunda metade da década de 1970. O que vai progressivamente
conscientizando o povo da necessidade de organização popular, no sentido de uma
reconfiguração da política vivenciada até então. Entretanto, coforme essa mobilização ia
em direção, não mais apenas, da reconfiguração da relação política, mas sim, da
elaboração de estratégias para chegar a ela, tem-se o surgimento de movimentos sociais
distintos das organizações religiosas.
Referências bibliográficas
Fontes:
DIOCESE DE NOVA IGUAÇU. Plano Pastoral da Diocese de Nova Iguaçu para
1968. In: Cadernos de Nova Iguaçu I. Petrópolis: Vozes, 1968. Arquivo da Cúria
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In: Cadernos de Nova Iguaçu 2. Petrópolis: Vozes, 1969. Arquivo da Cúria Diocesana.
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SOBRE A RELIGIÃO
207
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2ª ed. Documentos da CNBB n.77. São Paulo: Paulinas, 2004
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O Repórter, Nova Iguaçu, Dezembro de 1976.
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Brasiliense, 1979
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Diocese de Nova Iguaçu- RJ Tese de Doutorado, Centro de Ciências sociais do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas. UERJ. Rio de Janeiro. 2008.
BEOZZO, José Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: participação e
prosopografia 1959-1965. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, USP. São Paulo, 2001
BOFF, Clodovis; BOFF, Leonardo. Como fazer Teologia da Libertação. Petrópolis:
Vozes,1986.
PASSOS, Pe. Dinarte Duarte. Nova Iguaçu Dez Anos de Diocese 1960-1970. In:
Cadernos de Nova Iguaçu 4. Petrópolis: Vozes, 1970. Arquivo da Cúria Diocesana.
SERBIN, Kenneth P. Diálogos na Sombra: Bispos e Militares, tortura e justiça social
na Ditadura. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2001.
SILVA, Percival Tavares Da. Origem e Trajetória do Movimento Amigos de Bairros em
Nova Iguaçu (MAB 1974 / 1992). Dissertação de Mestrado, Instituto de Estudos
Avançados em Educação. Fundação Getúlio Vargas. Rio de janeiro, 1994
SOUZA, Sonali Maria de. Da Laranja ao Lote: Transformações sociais em Nova
Iguaçu. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Antropologia social,
Museu Nacional. UFRRJ. Rio de janeiro 1992.
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SOBRE A RELIGIÃO
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A IGREJA CATÓLICA E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO: O IMPACTO DAS
NOVAS TECNOLOGIAS
Olga Djamila dos Santos Chiapim1;
Mayara Celestino de Souza2
Silvia Regina Alves Fernandes3
Resumo: Nesse trabalho desenvolve-se uma pesquisa sobre como a Igreja Católica vem
se apropriando das novas tecnologias e porque tem interesse em fazê-lo. Destaca os
principais objetivos da Instituição diante desse panorama do desenvolvimento da
informação e da comunicação sem deixar de ressaltar seus preceitos básicos, uma vez
que são justamente estes que constituem sua postura nesse ambiente em constante
expansão. A pesquisa salienta ainda, o lugar primordial que os dispositivos mediáticos
ocupam não só no caso de experiências individuais e coletivas de interação, mas
também na questão da fundamentalização e legitimação das ações e discursos.
Palavras-chave: novos media, diálogo, autenticidade.
Material e Métodos
A pesquisa, que está em fase inicial, constitui-se de análise de websites, artigos e
livros que tenham conteúdo relacionado direta ou indiretamente com o uso dos novos
media pela Igreja Católica. Dentre os sites estão sites de natureza informativa, sites de
entretenimento, sites criados e monitorados pela própria Igreja ou, sites de redes de
relacionamento. A partir destes é observada a participação que a Igreja e seus
representantes têm, ou seja, a finalidade com que utilizam estes sites e o comportamento
que adotam nesses ambientes de interação.
Resultado e Discussão
Através da pesquisa foi possível ver uma grande preocupação por parte da Igreja
Católica em se posicionar sobre o uso desses novos media, não só para comunicar a sua
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fé, como também para que haja maior interação com os fiéis ou até mesmo aqueles que
estão à margem da Igreja.
Também são pontos de destaque no ambiente cibernético a questão contínua da
preservação da família, o compromisso com a dignidade humana, a autenticidade nas
relações, a busca de oportunidades para comunhão, a missão de passar adiante a palavra
de Deus e, a preservação do contato primordial na evangelização, mesmo que os
instrumentos disponibilizados pelas novas tecnologias sejam essenciais para um diálogo
mais abrangente.
Na pauta de discussão cabe ainda o questionamento de como e porque essa
preocupação por parte da Instituição se tornou tão acentuada e vem ganhando
proporções cada vez maiores desde o século XX. Importa destacar que em uma
sociedade que atravessa constantes mudanças faz-se necessário uma adequação contínua
às exigências do público alvo e, consequentemente as instituições religiosas podem
fazer uso de ferramentas que facilitam a interação com o público alvo (KATER FILHO,
1996). Ressalte-se que os meios de comunicação servem de marketing (KATER
FILHO, 1996) da mensagem religiosa e funciona estrategicamente como instrumento
que propicia a preservação da fé. Este "marketing" não deixa de ser uma motivação para
aqueles que são atingidos pelas mensagens transmitidas, além de proporcionar uma
maior proximidade entre clero e leigos. Percebe-se que ambos aparecem nos sites como
agentes importantes na produção da mensagem religiosa.
Conclusão
Nesta pesquisa observou-se que, ao contrário do que possa parecer , a Igreja
Católica não condena a utilização dos novos media, mas ressalta que este instrumento
de comunicação pode ser usado de maneira positiva ou negativa. Apresenta, então, o
discurso de que o uso desses meios é uma questão de escolha e condena aqueles que o
utilizam de forma superficial ou transmitem informações falsas que não condizem com
seu verdadeiro perfil.
Ainda no que diz respeito às relações que estabelecemos no mundo virtual, os
representantes da Instituição discutem sobre como a tecnologia da informação e
comunicação passou de instrumento para ambiente que define e modela o que se faz. Ou
seja, diz respeito a grande influência que as redes sociais e a Internet como um todo,
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SOBRE A RELIGIÃO
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têm nas relações comportamentais de grande parte da população, principalmente a
população mais jovem. Por isso, a Igreja se vê na obrigação de habitar esse espaço para
transmitir suas concepções, assim como, para transmitir o evangelho, pois enxerga no
ambiente cibernético a oportunidade de alcançar um número maior de pessoas e
estabelecer uma comunicação mais eficaz com os indivíduos que nele estão disponíveis.
A questão das práticas e discursos têm, por sua vez, como pano de fundo, uma lógica
mercadológica (GUERRA, 2003), já que, com o pluralismo do campo religioso torna-se
necessário que o "produto" oferecido seja eficiente no que diz respeito aos anseios dos
fiéis e seja condizente com aquilo que a Igreja prega, lançando assim, um desafio de
conciliação.
Referências Bibliográficas
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SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS
SOBRE A RELIGIÃO
211
TRADIÇÃO E MODERNIDADE: UM ESTUDO DE CASO DA RELAÇÃO
ENTRE A IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO E SÃO
BENEDITO DOS HOMENS PRETOS E A MISSA DE CURA E LIBERTAÇÃO.
(RIO DE JANEIRO-2011)
Carla Juliana Delecrode.128
Laís Medeiros.
Larissa Bernardes.
Maria Lúcia B. S. Alexandre.
Monalisa Silva.
Samanta Mourão de Oliveira.
Resumo: Esse trabalho tem como objetivo analisar a relação entre tradição e
modernidade no campo religioso, tendo como objeto de estudo a Igreja Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos no Rio de Janeiro. Para analisar a
coexistência de tradição e modernidade, foi necessário observar a Missa de cura e
Libertação e a Missa compromissal que acontece regularmente na instituição. O
resultado dessa análise foi relacionado com a produção de diversos autores da
sociologia da religião, realizando assim, um diálogo entre teoria e prática.
Palavras-chave: Irmandade, Tradição, Modernidade.
O estudo das manifestações do religioso permite compreender economias,
políticas, hierarquias e laços sociais em diferentes sociedades e contextos históricos
específicos. As irmandades tiveram um papel histórico que ultrapassou os limites da
religião, tendo função essencial na promoção da fé católica. Isso se deu por meio das
festas em torno dos santos de devoção, com agentes atuantes na construção de capelas e
igrejas, assim como no cuidado com a liturgia que envolvia os enterros. Além disso,
exerceram função de ajuda a gentes em penúria econômica ou de saúde, sendo
importantes instituições de assistencialismo. Elas foram à máxima de um catolicismo
que se dava por meio do associativismo129. Com isso, nossa pesquisa tem como tema a
Irmandade Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, na qual nos
propomos a observar o sentido desta instituição na atualidade, uma vez que, no passado
128
Alunas de graduação do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro.
129 Apud, NASCIMENTO, Mara Regina. Pág.122. 2009
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esse grupo foi usado como forma de inserção para excluídos na estrutura social, como
escravos, pardos e libertos, reproduzindo em sua organização a hierarquia social vigente
no período colonial.
Hoje, sob um contexto de secularização, no qual a Igreja perdeu o monopólio da
fé e da plausibilidade e no qual se apresenta um cenário de pluralismo religioso, o
sentido destas instituições é colocado em questão. A linha tênue entre tradição e a
modernidade sob este contexto plural também é colocada em discussão. No Brasil,
conforme Carlos Alberto Steil aponta, as religiões passaram a ser marcadas por um
apelo mais emocional e estão como assinalou Peter Berger, sob um cenário em que se
estabelece uma competitividade entre elas. A disputa no ―mercado da fé‖ exige que elas
se diferenciem entre si, em meio a um cenário que tende à padronização. Para perceber
essas mudanças e a relação entre tradição e modernidade, analisamos também a missa
de cura e de libertação, que é mantida regularmente às quintas-feiras na Igreja Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, que também abriga um dos
símbolos mais antigos da tradição católica, a irmandade Nossa Senhora do Rosário e de
São Benedito dos Homens Pretos.
O objeto de estudo: Irmandade Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos
Homens Pretos no Rio de Janeiro.
Emile Durkheim entende a religião como uma construção social, que tem a
função de motivar o homem a agir e a viver. O homem religioso experimenta um poder
que não se encontra na vida comum. Ele é um homem que pode mais. O autor define a
religião como crenças e práticas, um sistema solidário formado por coisas sagradas, que
mantém relação coordenada e subordinada, que é formada pelo sagrado, por dogmas e
por cerimônias. A igreja é a comunidade moral onde ela é professada. Uma das funções
dela é criar coesão e as condições de conhecer o laço social. As irmandades durante
séculos tiveram o papel social de integração de excluídos a um convívio social,
estabelecendo laços e hierarquias paralelas à sociedade, tanto que serviram de inserção
de escravos e libertos à lógica da sociedade desde a época da colonização no Brasil.
Neste sentido, elas consistem em um objeto vasto de observação acerca da construção
dos laços sociais de um grupo, assim como para entender a importância deste grupo
para a religião e o sentido que os membros lhes atribuem no tempo.
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O objeto de estudo desta pesquisa é a Irmandade Nossa Senhora do Rosário e de
São Benedito dos Homens Pretos, que foi fundada em 1640, em devoção à Nossa
Senhora do Rosário, trazida pelos Portugueses para o Brasil. Segundo informativos da
própria instituição, São Benedito também foi adotado nela como advogado celestial dos
homens de cor. Em 1700, a Senhora Francisca de Pontes doou trinta e duas braças de
terreno à confraria de Nossa Senhora do Rosário, para a Construção da igreja e
cemitério dos cativos. De acordo com o atual provedor-presidente da irmandade, Carlos
Alberto, a igreja foi fundada com a ajuda de escravos e irmãos da irmandade, por meio
de doações, sendo criada para que os escravos pudessem praticar seus rituais próprios.
A igreja foi inaugurada em 1737 e serviu de cenário para grandes acontecimentos da
história da cidade do Rio de Janeiro. Em 26 de março de 1967, porém, a bela igreja de
mais de 240 anos foi quase completamente destruída por um incêndio e parte de sua
história foi consumida pelo fogo. A secular Irmandade, com o apoio dos devotos,
empreendeu sua reconstrução, ainda não concluída, mas, cuja restauração está sendo
negociada, com o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Diante de sua longa história, a irmandade tenta guardar suas tradições e segue
um Estatuto, com direitos e deveres de seus membros. Para pertencer a Irmandade, é
necessário ser católico, batizado, ter mais de 18 anos, possuir idoneidade, moralidade e
seguir os bons costumes. O método de inserção é marcado por etapas: quem aspira ao
ingresso deve passar por curso de formação de filiação definitiva, de duração de seis
meses, sendo aprovado torna-se membro do grupo. Com isso, o futuro membro deve
pagar uma taxa de cerca de R$ 1000,00 (mil reais) para obter a carteirinha de membro.
Segundo o estatuto da irmandade, os irmãos têm direito a vestimentas oficiais,
distintivos e gozam de alguns benefícios. De acordo com o provedor-presidente, o valor
da taxa de ingresso subiu nos últimos anos na tentativa de selecionar quem entra na
Irmandade. ―Prezamos por qualidade e não por quantidade.‖ Os membros da irmandade,
em torno de duas mil pessoas, também pagam uma mensalidade, com a finalidade de
manter a instituição, que também tem outros meios de obter renda, como pelo cemitério
Jardim da Saudade, e outros imóveis. Além disso, os membros devem cumprir as
deliberações do Estatuto da Irmandade, assistir e participar dos atos religiosos e
festividades.
Os irmãos têm direito de ocupar lugares reservados nos atos e festividades
religiosas. Uma diferenciação que ficou bem clara na missa compromissal, em que o
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grupo participou. Todos os membros da irmandade são obrigados a comparecer a missa
compromissal, que acontece todo primeiro domingo do mês, no qual existe uma
separação entre os fiéis e os membros da Irmandade, revelando uma hierarquia no culto
e privilégio dos membros em relação aos demais fieis. A irmandade é composta pelos
seguintes cargos: o juiz provedor ou provedor-presidente, que atualmente é ocupado
por Carlos Alberto, responsável por administrar a instituição,o procurador geral a
representa judicialmente dentro e fora do Brasil, o procurador de caridade deve ter o
conhecimento de tudo que constitui o patrimônio da instituição; escrivão: Organiza e
fiscaliza a escrituração dos livros; o tesoureiro é responsável por receber e ter sob sua
guarda as receitas em espécie. Existe ainda em sua estrutura o conselho, as irmãs
zeladoras e os juízes. Segundo o provedor Carlos Alberto, os cargos são instituídos por
eleições, que são registradas em cartório.
A manutenção da tradição católica é um dos objetivos da irmandade e por isso o
provedor explica que se tentou manter ao máximo a fidelidade aos ritos antigos, como
as congadas130, que não acontece mais, pois alguns com o tempo se diluíram. Ele
esclareceu que as principais mudanças que ocorreram na irmandade foram quanto a
troca de provedor, quanto questões administrativas. Carlos Alberto é provedor há oito
anos e tenta organizar juridicamente a irmandade. Em sua ―gestão‖, a irmandade ganhou
um estatuto atualizado, em 2006, teve o museu do negro registrado e passou por
auditorias. Entre as tradições preservadas pela irmandade está o vestuário dos membros,
que serve de símbolo de diferenciação entre os membros e os fiéis. O uso das roupas nas
reuniões da Irmandade e na missa compromissal é obrigatório e de suma importância
para manter a tradição, tanto que, em uma das missas assistidas pelo grupo, os membros
do conselho distribuíram um informativo, que alertava os membros sobre a
obrigatoriedade do uso das vestimentas, o que evidenciava que alguns não estavam
cumprindo o costume.
Um aspecto observado é a certa autonomia que a irmandade mantém diante da
diocese do Rio de Janeiro, a escolha do padre é um exemplo disso. O padre é indicado
pela diocese, porém, o provedor é que dá a palavra final da escolha, tanto que o atual
130
O congado é uma manifestação cultural e religiosa de influência africana celebrada em algumas
regiões do Brasil. Trata basicamente de três temas em seu enredo: a vida de São Benedito, o encontro de
Nossa Senhora do Rosário submergida nas águas, e a representação da luta de Carlos Magno contra as
invasões mouras.
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padre foi uma escolha do provedor e, segundo ele, o sacerdote não tem nenhuma relação
nem com a irmandade, nem com a igreja. A Irmandade apenas paga o padre para
realizar as missas. Cabe destacar que esse ano já houve uma mudança de padre na
igreja, já que alguns membros da irmandade não estavam de acordo com o padre
anterior.
De acordo com o Estatuto da Irmandade, o objetivo da instituição é fortalecer a
fé e propagar a devoção a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito dos homens
pretos, assim como promover auxílio a pessoas carentes e auxílio material, além disso,
visa a estimular a entrada de novos membros na Irmandade. Apesar disso, a percepção
do grupo é de que a Irmandade deseja manter suas tradições e manter um exclusivismo
e seleção dos membros, uma vez que participar dela é uma questão de status social
perante a sociedade ou, para alguns membros, a irmandade é um meio de autoafirmação do negro que participa e que deseja reafirmar sua importância social através
da irmandade. Isso fica evidente na fala da autora Mara Regina quando a mesma diz que
nas festas públicas, como nas outras celebrações religiosas, a comunidade livre ou a de
escravos (agregados em irmandades) pretendiam maravilhar pessoas, causar assombro e
defender uma posição social. A autora aponta após analisar documentos de irmandades,
que mostram os gastos com festas, mostram as inúmeras vezes que os irmãos lapidavam
suas economias com objetivos de reiterarem esta ostentação e pompa das procissões,
tanto das associações de pardos ou de negros.
Esta segunda constatação pode ser concluída a partir de falas do vice-presidente
do conselho, Joaquim, que se declara negro e que em todo tempo se afirmava como uma
pessoa importante, seja por sua posição dentro da irmandade, seja por relações de
parentesco com políticos ou por contato com pessoas influentes da cidade. A família é
sagrada para a irmandade, por isso defendem a importância do homem formar família e
zelar pela manutenção dela. Alguns objetos também são sagrados: a bandeira da
Irmandade, o distintivo, o anel, o broche em formato de Cruz.
Foram feitas seis entrevistas com membros da irmandade, a fim de traçar um
perfil de fiel que participa do grupo, seus significado e motivações para participar. De
modo geral, a irmandade é composta por mais mulheres que homens, sendo que os
homens são maioria na detenção de cargos altos na irmandade. A média de idade dos
membros varia de 55 a 90 anos, sendo a maioria dos entrevistados, negra, solteira, com
filhos. Todos os entrevistados participam da irmandade há mais de 20 anos e residem de
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diferentes locais da cidade. O motivo que os fizeram participar da irmandade foi por
convite e por devoção à fé católica ou a algum santo. Todos têm freqüência regular,
principalmente, na missa compromissal, que é obrigatória a presença.
Na fala dos membros, é possível perceber a separação que eles estabelecem entre
a irmandade e a igreja. Quando questionados sobre a renovação presente na igreja, com
a missa de cura e libertação, eles disseram ser importante a renovação na Igreja e não na
irmandade, onde vigoram as tradições. Para todos, o fato de pertencer a irmandade
melhora a vida, sendo os motivos citados para prosseguir na irmandade prosseguir na fé
católica, perpetuar a tradição e devoção a algum santo. A maioria dos entrevistados não
conhece a história da irmandade ou sabe pouco. Nem todos têm familiares participando
do grupo. Sobre a missa da cura, todos já participaram de alguma missa e gostaram, mas
reafirmaram que a renovação foi só para a Igreja não para a irmandade.
Missa da cura e da libertação da Igreja Nossa Senhora do Rosário, modernidade
em meio à tradição.
Uma novidade que veio com a modernidade e com os tempos de secularização
foi a missa de cura e libertação na Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Uma resposta ao
contexto plural religioso que atualidade apresenta e serviu de saída para atrair fieis para
a igreja nos últimos anos. A concorrida missa consegue lotar o templo de capacidade de
cerca de 300 pessoas em plena hora do almoço, entre 12h e 14h30, todas as quintasfeiras. O público é bem heterogêneo, idosos, jovens, estudantes, homens engravatados,
pessoas mais humildes, mulheres bem vestidas. Todos buscando uma benção, a
resolução de um problema, seja desemprego, problemas de saúde, dificuldades
financeiras. A missa é o ponto alto da igreja que somente às quintas-feiras o templo fica
lotado, bem diferente das missas compromissais que são basicamente freqüentadas
pelos membros da irmandade.
Questionado sobre o motivo da ―renovação‖ na
irmandade com a realização da missa carismática e o provedor foi bem claro quanto aos
objetivos que motivaram a inserção da novidade: a dificuldade financeira da igreja.
A missa de cura e libertação conta com a presença de poucos membros da
irmandade. Ele contou que há algum tempo as missas e os eventos da igreja não
estavam mais sendo freqüentada pelos fiéis e que a igreja estava passando por
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momentos difíceis, que poderiam até fechá-la, mas motivado pelo segurança da igreja,
que é evangélico, ele decidiu criar a missa, já que na igreja do funcionário os cultos de
cura e libertação eram muito freqüentados e poderia dar certo na Igreja do Rosário. E,
deu certo. Hoje o culto atrai muitos fiéis a igreja e boas ofertas para a igreja. A missa da
cura e da libertação existe há oito anos e conta com a presença de pessoas de várias
localidades que vem de longe só para participar da missa. Segundo o provedor, a
maioria dos membros da irmandade não concordou com essa renovação na igreja, mas
viu nessa missa uma ―solução‖ para manter a igreja.
A missa é marcada por uma esfera de fé diferenciada. Os fiéis choram e clamam
pela solução de seus problemas, pedem a cura e a libertação de suas vidas, acendem
velas, cantam de mãos dadas. O padre estimula as orações e a fé dos fiéis de que Deus é
a fonte de solução de seus problemas. Ele estimula a oração pelos que estão doentes, e
diz que o fiel sairá daquele lugar com sua benção, com a solução do desemprego, e com
a cura de enfermidades. As orações ocorrem ao som de músicas que falam de cura:
―Levanta em nome de Jesus‖ e ―Eu tomo posse da graça de Deus; tomo posse da cura‖,
cantavam os jovens no altar. As pessoas acreditam que a água benta cura e que vão
receber o milagre. Os fiéis seguram nas mãos símbolos da benção que almejam como
chaves, carteira de trabalho, contas, fotos de familiares e crêem que se encostarem esses
símbolos no Santíssimo e nas imagens dos santos, principalmente na de Nossa Senhora
Desatadora dos Nós a benção será alcançada. O padre ora pela libertação daqueles que
estão ali ou por parentes ou pessoas que precisem de libertação de vícios e pela quebra
de maldição e de feitiçarias. A oração é direcionada a cura para que os fiéis coloquem as
mãos na cabeça e em locais onde existir alguma dor ou doença. Após essas orações, eles
cantam uma música de celebração para celebração para festejar sua libertação e após
esse momento o padre pede doações para igreja e recolhe ofertas.
Um dos momentos mais importantes da missa é a tomada das hóstias e a
passagem do Santíssimo por entre os fieis, esta é a oportunidade que eles têm de tocar
no que, para eles, é como se fosse o próprio Jesus personificado na hóstia. Conforme o
Santíssimo passava pela Igreja, as pessoas iam acompanhando com as mãos erguidas
em direção a ele, como se ele fosse santo e como se realmente Jesus estivesse naquele
objeto. Eles atribuem poder ao Santíssimo e fazem questão de tocá-lo com as mãos e
com os objetos que simbolizam as bênçãos que buscam. Ao final, o padre consagra os
objetos representativos, como carteira de trabalho, chaves e fotos, levados pelos fieis.
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Em uma das missas observadas, foi distribuído um lenço de Nossa Senhora Desatadora
dos Nós, que era benzido com água benta e por isso era tratado como um objeto que
possuía poder para solucionar os problemas dos fieis.
O padre estimulava as pessoas a levarem o lenço para casa, a colocarem sobre
seu travesseiro, a esfregarem-no onde doesse e a levá-lo para quem precisasse de cura
ou libertação, mas além do lenço tocar no Santíssimo também era um ―requisito‖ para
se alcançar a benção. O momento em que o Santíssimo passa por entre os fiéis é um
momento muito esperado e disputado. Eles acreditam que dele sai o poder de solucionar
seus problemas, um pode transferível para quem os toca. Um exemplo observado pelo
grupo evidenciou essa crença: um homem tentava com ansiedade tocar a carteira de
trabalho no Santíssimo, mas o padre passou e ele não conseguiu. Uma fiel comovida
pelo desapontamento dele foi até o padre, tocou com as mãos no Santíssimo e voltou até
o homem, oferecendo suas mãos para que ele esfregasse a carteira. Ele entendeu e
prontamente respondeu a oferta e esfregou a carteira nas mãos dela. Em entrevista, uma
das freqüentadoras da missa carismática falou sobre o que achava da missa e dos
motivos que a trouxeram à igreja. Dona Irene, de 65 anos, é freqüentadora assídua da
missa de cura e libertação há três anos. Ela mora no Leblon, mas não se importa de vir
até o Centro só por causa da missa, pois, para ela, vale muito à pena. Ela diz que sente
Deus falando com ela nessa missa, e que a vida dela melhorou muito depois que passou
a participar. Ela disse que é impossível alguém entrar desanimado e sair do mesmo
jeito, por que a missa renova a nossa força. ―É muito bom. Ser católico é uma benção‖,
disse a aposentada. Segundo ela, qualquer problema pode ser resolvido nessa missa e
afirmou que o padre (novo) é maravilhoso, que sabe dar a palavra bem descontraída e de
fé. Ela aprovou as mudanças que ocorreram de uns tempos para cá na igreja católica.
Ela gosta muito desta missa e disse que ela é importante, aproxima mais as pessoas de
Deus.
Esta missa é bem diferente da missa compromissal da irmandade e das missas de
celebração de domingo. A esfera de fé, apelo emocional e demonstrações de fé são
maiores, assim como o apelo à cura e a libertação. Outros aspectos distinguem-na das
reuniões e celebrações da irmandade, como a separação entre o padre, a Irmandade e os
fiéis. Nesta missa, todos os fiéis compartilham de igual modo o templo. A estrutura da
missa também é bem diferente da missa compromissal, realizada todo primeiro
domingo do mês. Na missa de cura e libertação, como já foi mencionado, existe um
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grupo de músicos — contratados — no altar que cantam enquanto a congregação ora e
clama, ajudando a tornar o ambiente mais emocional.
O padre não segue uma ordem da missa impressa no boletim, a missa é mais
espontânea. As pessoas batem palmas, cantam, se ajoelham, choram, levantam as mãos,
clamam e oram espontaneamente. A palavra do padre é mais descontraída, menos
formal, tanto que em uma das missas observadas, o padre levou anúncios de jornais para
o altar e comentou sobre propagandas de outras religiões ironicamente, como
candomblé, umbanda, pessoas que jogam tarô, búzios. Os irmãos da irmandade não
estavam presentes nas missas de cura observadas, apenas a irmã juíza Francisca,
tesoureira da irmandade, e outra irmã.
Tradição e modernidade coexistem na Irmandade Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito dos Homens Pretos
Como se pode ver, na Irmandade Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito
dos Homens Pretos convivem aspectos da tradição e da modernidade. Ariane dos
Santos Lima e Áurea Paz Pinheiro procuram demonstrar, no texto ―Sentidos da
Tradição: a experiência religiosa em Oeiras (1959 / 2008)‖, que até hoje algumas
religiões mantém características tradicionais do rito e que podem atestar uma
continuidade da relação com sagrado. As autoras apontam que o estudo das práticas
tradicionais atinge um sentido amplo, que vai além da busca de transmissão de valores
de geração a geração, mas de uma compreensão que estabelece diálogos com o
contemporâneo. A tradição pode ser entendida como um vínculo forte por meio do qual
a sociedade de hoje estabelece diálogo com as sociedades anteriores de natureza
complexa. Esta relação constrói um movimento que comporta continuidades e rupturas.
Neste sentido, a irmandade Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens
Pretos expõe essa continuidade com o passado, mantendo aspectos que atravessaram
séculos de tradição, um exemplo disso são as roupas obrigatórias na missa
compromissal e os pré- requisitos para pertencer a irmandade. Esses critérios são
renovados via ritos, reafirmando os laços entre os irmãos. Nesta linha, Sanchis aponta
para um novo conceito de sincretismo, como algo próprio da natureza humana, é uma
compreensão inerente. É algo universal que não se restringe à esfera religiosa. A
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religião dos brasileiros é um campo que está em constante mudança, pois com o passar
dos anos a própria religião perde sentidos tradicionais e antigas funções e ao mesmo
tempo adquire novos.
Assim mesmo mantendo as tradições, em meio a um contexto de secularização,
que é definido por Peter Berger como um momento de perda do monopólio da religião e
do estabelecimento de um pluralismo religioso, se apresenta na irmandade uma resposta
a essa condição de competitividade entre as religiões sob um contexto plural: a missa de
cura e libertação, que pode ser vista como resposta ao contexto de secularização. Essa
dinâmica só postula a possibilidade da mudança na religião. A missa pode ser vista
como resposta a uma ―moda‖ no ―mercado religioso‖ de cultos de cura e libertação, mas
na Igreja Católica, o que tem trazido as respostas esperadas pelos introdutores da missa
na igreja. Isso é o que Berger chama atenção como uma tentativa de diferenciação em
meio a um campo religioso que tende a padronização. Sanchis contribui neste sentido,
pois descreve o campo religioso atual composto por muitas religiões, durante séculos a
sociedade que se denominou como católica era praticamente hegemônica. Esse cenário
se modificou, pois hoje o cristianismo se tornou plural. A missa de cura e de libertação
de certa forma pode ser vista como reflexo desta tendência a renovação atual, no
entanto, mantendo a separação quanto à irmandade, cujos membros e juízes fazem
questão de manter uma distinção e prezam por suas tradições, o que pode ser visto com
uma tentativa de manter seu ―status‖ diferenciado dentro da igreja.
Mara Regina do Nascimento chama atenção que o catolicismo definido pelo
Concílio de Trento propunha uma religião mais subjetiva, livre das superstições pagãs.
Esse catolicismo, regido por uma sólida e antiga tradição, acabou incorporando os
significantes do catolicismo oficial e empreendeu-lhe novos significados. As afirmações
ditas acima corroboram quando Durkheim nos aponta o rito como sendo um tipo de
gesto social que constitui uma coleção de meios pelos quais a fé se cria e recria
periodicamente. A religião é fato social, ou seja, ela emerge do social. O rito é um meio
para a sociedade se dizer de si mesma. A sociedade também se faz e se refaz
periodicamente enquanto sociedade. O fenômeno religioso é social. Ambas têm essa
dupla sociogênese da religião pelo sagrado e do social pela consciência coletiva. Assim,
a sociedade tida como um fenômeno religioso, ou seja, os mesmo mecanismos que a
religião usa para se criar e manter a sociedade também usa e faz. A igreja surge a partir
da necessidade de se repetir o rito, a fim de se recriar o sagrado e reviver a
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efervescência inicial. Esse acesso repetitivo ao sagrado deve ser regulado e se canalizar
a energia coletiva liberada. A religião tem um caráter dinamogênico e a missa de cura
permite observar a efervescência que gera a canalização do sentido sagrado, a partir
deste caráter termodinâmico que o social gera. O homem religioso experimenta um
poder diferente da vida comum, que não se sente em si mesmo quando não se encontra
em estado religioso. Ele pensa participar de uma força que o domina e ao mesmo tempo
o sustenta. Ele acha que apoiado nela enfrenta as dificuldades.
As condições para se estabeleça o caráter sagrado de algo, é a termodinâmica
sociológica, baseada em forças que se desentranham dos homens unidos. Os indivíduos
juntos liberam uma energia e se eleva a um grau de efervescência que caracterizam o
mundo do sagrado. Na missa de cura, essa separação entre sagrado e profano pode ser
percebida na consagração do pão azimo em hóstia, no qual após a consagração ele
ganha um sentido sagrado e na consagração do lenço, que ganhou um sentido de
sagrado após a benção do padre que atribuía certo poder ao lenço.
Quanto ao contexto atual, Steil aborda o campo religioso na América Latina,
como algo dinâmico, plural, diverso e secular, que se apresenta sob um texto plural,
sobre o qual se pode estabelecer uma relação entre tradição e modernidade com o objeto
de estudo desta pesquisa. Steil trabalha a questão do alargamento das fronteiras da
religião para setores ate então impermeáveis ou avessos a ela. Ele apresenta algumas
dimensões, que são comuns às‖ novas formas de crer‖ e às religiões populares.
―Procuramos destacar que ao mesmo tempo em que aspectos da tradição são
reinventados no moderno, aspectos da modernidade são reincorporados e reavaliados
pelo popular e a tradição‖ (STEIL, 2001, p. 122) Neste sentido, pode-se estabelecer
uma relação com a missa de cura cuja qual pode ser vista como um aspecto de
incorporação de novidades da modernidade na igreja católica e, ao mesmo tempo já se
tornou uma tradição para alguns adeptos, que não deixam de ir, já que a missa há oito
anos sendo celebrada na igreja. Neste sentido, os ritos da missa continuam os mesmo,
mas com a inserção de algo moderno como o víeis emocional e louvores que estimulam
a temática da cura e da libertação. O autor defende em sua análise o campo religioso
atual como um processo ativo de produção de significados e de recomposição de suas
forças internas. Ele reconhece na atualidade a importância da experiência religiosa e
destaca que não há contraste entre moderno e tradicional, mas sim os arranjos e
acomodações entre ambos como constituinte das experiências religiosas atuais. Antony
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Giddens aponta que ao longo do tempo a modernidade reconstruiu a tradição, enquanto
a dissolvia. O autor aponta que, a fim de compreender o significado de viver em uma
ordem pós-tradicional deve-se questionar: o que é a tradição e quais são as
características genéricas de uma ―sociedade tradicional‖.
A tradição é definida pelo autor como uma orientação para o passado, que tem
uma pesada influencia ou que é constituído para ter influencia sobre o presente, ao
mesmo tempo, a tradição estabelece relação com o futuro, pois as práticas estabelecidas
são utilizadas como uma maneira de se organizar o tempo futuro. É possível perceber a
permanência da tradição na irmandade, já que a instituição mantém, mesmo no século
XXI, esse caráter de distinção social, assistencialismo e mantém uma ligação com a sua
historicidade relacionada à escravidão. Giddens assinala que a tradição em geral
envolve um ritual, com isso seria possível propor que o ritual é parte das estruturas
sociais que conferem integralidade às tradições. O ritual é uma forma de se garantir a
preservação, conforme também apontou Durkheim. Todas as tradições, para Giddens,
têm um conteúdo normativo ou moral que lhes proporciona um caráter de vinculação,
ou seja, sua natureza moral está intimamente relacionada aos processos interpretativos
por meios dos quais o passado e o presente são conectados. ―Tradição é repetição, e
pressupõe uma espécie de verdade que é a antítese da ―indagação racional‖
(GIDDENS,1997, p. 85)
O autor também diz que a tradição é impensável sem guardiões, porque estes
têm um acesso privilegiado à verdade. Essa verdade, implícita na tradição, não pode ser
demonstrada, salvo na medida em que se manifesta nas interpretações e praticas dos
guardiões. Além disso, o autor aponta que a tradição sempre diferencia ―iniciado‖ e o
―outro‖, porque a participação no ritual e a aceitação da verdade formular são condições
para sua existência e o ―outro‖ é visto como todo e qualquer um que esteja de fora.
Pode-se dizer que as tradições praticamente exigem que haja uma separação dos demais.
Pode-se notar isso na separação entre membros da irmandade e a assembléia na missa
compromissal. Outras ―grandes tradições‖, mais especialmente ―as religiões
exemplares‖, tinham mais zonas indistintas de inclusão e exclusão. Mas a relação entre
a tradição e a identidade sempre tornou as categorias de amigo e estranhos (não
necessariamente inimigo) extremas e distintas. Neste sentido os membros da Irmandade
são vistos como repositórios dessa herança histórica, através de elementos como ritos,
símbolos, devoção aos santos, assistencialismo e da própria reprodução da fé católica.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
223
Além disto, a modernidade trouxe novidades a igreja na figura da missa de cura e
libertação o que não anulou o necessariamente renovou a mesma. Isto prova que a
tradição e a modernidade não são necessariamente antagônicas.
Considerações finais
As Irmandades ao longo da história tiveram um papel de inserção dos grupos
excluídos na lógica da estrutura social do Brasil, em uma época, em que a religião se
constituía em um importante instrumento de hegemonia política e social. Em especial as
Irmandades dos Negros, no qual se encontra a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
e São Benedito dos Homens Pretos do Rio de Janeiro, cuja qual carrega consigo uma
herança histórica associada à inserção do negro.
Esta Irmandade permaneceu mesmo em contexto de pluralismo religioso e
secularização por meio de suas tradições. Conforme foi apresentado a Irmandade sofreu
adaptações e atualizações ao contexto da modernidade, porém mantiveram um vinculo
com o passado ainda muito vivo. Essa conexão com o passado pode ser percebida pelos
seus símbolos, vestuários, ritos, missas compromissais, estandartes, além de certa
autonomia em relação à igreja, realizando a missa de consciência negra e assim
reafirmando sua tradição. Ao mesmo tempo esse espaço religioso que preza por suas
tradições, tenta dialogar com o contexto da modernidade que se apresenta, na qual o
sensível e o corporal têm mais importância, que os dogmas e as verdades religiosas.
Nesta lógica se insere a missa de cura e libertação dentro dessa igreja que é fortemente
marcada por esse hanso de tradição.
Sendo assim percebemos que não existe uma renovação no quadro de
participantes da Irmandade e nem em suas tradições, uma vez que seus integrantes
afirmaram que existe uma separação entre esta missa carismática e a irmandade, porém
ambos podem conviver na mesma igreja, sem que um anule o outro ou que gerem
conflitos. Pelo contrário, na verdade a missa se insere na lógica da irmandade com a
finalidade de atrair fiéis e arrecadar fundos para manutenção do templo.
Assim o estudo de caso evidenciou a possibilidade da convivência entre tradição
e modernidade mostrando que isto pode ser visto como conseqüência de um contexto de
pluralidade religiosa de quebra do monopólio da igreja, visto que essa situação de
tradição é modernidade é algo do novo, do atual.
CADERNO DE ANAIS, 2012.
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SOBRE A RELIGIÃO
224
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INSERÇÃO DA RELIGIÃO NA EDUCAÇÃO PÚBLICA E OS OLHARES DE
DIFERENTES SEGMENTOS RELIGIOSOS
Allan do Carmo Silva131
Resumo: O presente trabalho analisa os posicionamentos de diferentes grupos
religiosos quanto à inserção da religião no espaço público e em especial no campo
educacional. É problematizado o suposto consenso sobre o tema. Citam-se as obras de
Blancarte (2008), Fischmann (2008), Bobbio (2002), quanto à laicidade do Estado, e De
Swann (1988) quanto às estratégias dos grupos religiosos diante do poder público,
classificando três tipos de estratégias: a maximalista, a pluralista e a minimalista. Diante
de uma pesquisa documental com levantamento de declarações de confissões religiosas
foi constatada a falta de consenso em torno do tema e que os embates no campo
religioso se refletem na formulação de políticas públicas sendo freqüentemente
desconsiderados os princípios da laicidade do Estado e da liberdade de crença religiosa
no Brasil.
Palavras-chave: confissões religiosas; laicidade do Estado; escola pública.
Introdução
O presente trabalho tem como principal objetivo analisar os posicionamentos
de diferentes grupos religiosos quanto à inserção da religião no espaço público e em
especial no campo educacional brasileiro, considerando o direito à liberdade de
pensamento, consciência e religião e o princípio de laicidade do Estado.
É problematizada a maneira como alguns segmentos religiosos se inserem na
educação pública de
modo
a propagar
seus
ideais,
desconsiderando a
heterogeneidade religiosa dos sujeitos no ambiente público mantido pelo Estado.
Também se questiona o argumento de que haja um consenso entre os religiosos
quanto à temática.
Assim são propostos os seguintes objetivos específicos:
131
Mestrando em Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
de Janeiro - PPGE-UFRJ - e-mail: [email protected]
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SOBRE A RELIGIÃO

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Elencar e classificar os posicionamentos de diversas confissões religiosas no
Brasil quanto à atuação na educação pública.

Discutir a relação entre o crescimento ou queda no número de adeptos destas
religiões e as estratégias adotadas quanto à inserção no espaço público.

Refletir sobre a neutralidade do Estado frente às religiões numa sociedade
democrática e sobre os desafios diante das diferentes formas de crer e de não
crer que emergem na atualidade.
1. Laicidade do Estado e Estratégias de Grupos Religiosos
Muitos autores analisam os Estados Democráticos de Direito e a relação destes com a
religião: Blancarte (2008), mostra que o termo laicidade caracteriza principalmente a
forma como a esfera política legitima sua atuação por meio da soberania popular e não
pelo poder religioso; Fischmann (2008), alerta quanto aos perigos de grupos religiosos
tentarem garantir a hegemonia para si nas decisões públicas, gerando muitos conflitos
com os que resistem a esta hegemonia; Bobbio (2002) distingue a laicidade de uma
atitude anticlerical, ressalta o caráter neutro do Estado e mostra a importância da
tolerância e da liberdade religiosa; De Swann (1988) afirma que desde a fundação dos
Estados Nacionais as confissões religiosas assumem diferentes estratégias diante da
possibilidade de atuação junto à educação pública. Estas estratégias são a maximalista, a
minimalista e a pluralista.
Na estratégia maximalista o grupo religioso percebe-se forte o suficiente para
manter seu monopólio educacional, numa rede nacional unificada. Esta posição
necessita sempre de um forte apoio estatal. Assim a confissão assume o monopólio da
educação, legitimada pelo Estado, controlando toda educação elementar. São excluídos
todos os credos diferentes do hegemônico e uma religião oficial dirige o setor
educacional do país.
Na estratégia minimalista os grupos religiosos religiosos não se percebem com
apoio do Estado para assegurar o monopólio na educação e lutam contra os demais
segmentos que poderiam fazer proselitismo em suas áreas de influência, optando por se
retirar da esfera pública, com total abstinência na educação estatal, apoiando-se apenas
nas elites locais.
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Na estratégia pluralista as denominações reivindicam apoio do Estado, obtendo
privilégios sobre as demais. Nesta posição o Estado apóia as igrejas seguindo alguma
regra para distribuição de subsídios no campo educacional. Os credos disputam espaço
junto ao poder estatal, havendo sempre a tendência dos grupos de maior poder se
sobressaírem e obterem certa liderança, causando insatisfações por parte dos
minoritários.
Esta classificação, aliada ao referencial teórico sobre a laicidade do Estado, ajuda a
compreender os desafios à democracia na atualidade e os diferentes interesses dos
religiosos em relação à educação pública.
2. Os Grupos Religiosos e a Educação Pública no Brasil
A população brasileira não se mostra homogênea em termos religiosos. Um
estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV, 2011) intitulado Novo Mapa das Religiões,
atesta que nos últimos anos ocorreu uma queda no número de católicos, aumento de
número de evangélicos, de pessoas sem religião e também de pessoas de religiões não
cristãs e orientais.
Estes dados mostram que religiões anteriormente dominantes perdem espaço,
alterando estratégias a fim de manterem seu status. Outras que antes eram minoritárias
ganham vasto crescimento e assumem estratégias para ampliarem sua influência.
A presente análise propõe uma pesquisa documental com um levantamento de
documentos (declarações de fé, doutrinas, estatutos, etc.) e declarações de
representantes de confissões religiosas de forma a classificá-los de acordo com a
estratégia exposta. O levantamento realizado no período de agosto de 2011 a março de
2012 tem como principal meio de acesso a busca em endereços eletrônicos na internet.
Para a busca foram usadas as nomenclaturas encontradas no Novo Mapa das Religiões
(FGV,2011). Os resultados seguem conforme a classificação abaixo:

Estratégia Maximalista: Igreja Católica Apostólica Romana;

Estratégia Minimalista: Espírita Kardecista; Religiões afro-brasileiras;
Tradições indígenas; Igreja Evangélica Batista; Igreja Evangélica Metodista;

Estratégia Pluralista:Igreja Evangélica Assembléia de Deus; Igreja Luterana;
Religião Judaica; Igreja Congregacional; Religião Islâmica; Igreja Católica
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Apostólica Brasileira; Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias; Igreja
Universal do Reino de Deus.
Percebe-se que os posicionamentos não são fechados e únicos mesmo dentro das
confissões religiosas. Muitas destas confissões tendem a alterar suas estratégias
conforme o contexto político e também os interesses próprios.
2.1. Estratégia Maximalista
A Igreja Católica Apostólica Romana traz um histórico de atuação
maximalista, estando por quatro séculos aliada ao Estado Brasileiro, monopolizando a
educação pública. Esta denominação continua mostrando-se como a maior interessada
na presença da religião na escola e tende a uma estratégia pluralista diante de sua perda
de status junto ao Estado e também das mudanças no perfil religioso da população.
Ainda assim lidera os demais segmentos nas disputas pela inserção da religião na escola
pública.
Sua reivindicação principal é a manutenção da legalidade da disciplina ensino
religioso nas escolas públicas do país. Recentemente, em 2008 o Brasil assinou a
Concordata Brasil Vaticano, que no artigo 11º defende de forma clara este ensino:
Artigo 11 – A República Federativa do Brasil, em observância ao
direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade
confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em
vista da formação integral da pessoa.
Parágrafo 1º – O ensino religioso, católico e de outras confissões
religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários
normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o
respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, [...] sem qualquer
forma de discriminação.
A crítica a este documento, exposta de maneira contundente por Cunha (2009),
mostra que o privilégio concedido por este documento fere o princípio da igualdade
entre as religiões. Ressalta-se que a Igreja Católica Romana tem conseguido muitas
vitórias ao se articular através do Fórum Permanente de Ensino Religioso (FONAPER)
onde se mostra diretiva diante das demais religiões cristãs e influencia o campo político
na formulação das políticas púbicas sobre o ensino religioso.
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É notável a estratégia maximalista, mesmo com tendência pluralista, numa época
onde ocorre o declínio dos que se declaram católicos. Com a perda de adeptos, a
inserção e a permanência na educação são buscadas de maneira a alcançar as massas
com valores desta denominação religiosa.
2.2. Estratégia Minimalista
O Espiritismo Kardecista tem clara posição minimalista expressa numa
recomendação oficial da Federação Espírita Brasileira, por deliberação de seu Conselho
Federativo Nacional, elaborada em novembro de 1998. Neste documento há uma crítica
à legislação sobre o ensino religioso por considerá-la inconstitucional, sendo solicitada
junto à Ordem dos Advogados do Brasil uma argüição de inconstitucionalidade. A
Federação Espírita aguarda providências e recomenda aos espíritas que não matriculem
seus filhos nas aulas de ensino religioso. Assim a posição dos espíritas é abertamente
contrária à presença da religião nas escolas públicas, tendo uma clareza rara entre os
segmentos pesquisados.
Quanto às Religiões Afro-Brasileiras registra-se poucas entidades formais e
institucionalizadas. Ainda assim, a Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro
(FENACAB) institui um Código Nacional de Ética e Disciplina Litúrgica da Religião
Afro-Brasileira, sendo possível verificar a tendência a uma estratégia minimalista.
Neste documento, no artigo 41 encontra-se a defesa de um ―Estado democrático laico de
direito‖. O entendimento aqui é uma aparente separação entre a instituição religiosa e o
Estado. Também a Confederação Internacional União das Tradições da Cultura Afro
Brasileira (FIUTCAB) atesta em seu código de ética o resgate aos princípios de
liberdade de consciência e crença ditados pela Constituição Nacional. Nota-se que os
segmentos religiosos representados por estas entidades têm pouco ou mesmo nenhum
espaço nos debates acerca da laicidade da educação. Ainda numa audiência pública no
Estado de São Paulo, no ano de 2002, o Conselho da Comunidade Negra do Estado de
São Paulo e Instituições de Religiões Afro Brasileira é registrado o posicionamento
contrário à implantação da disciplina, sugerindo a alteração do texto legal.
Também não se encontra documentos oficiais de Religiões Indígenas sobre a
presença religiosa na educação. Ainda assim existe o registro de um pronunciamento de
um representante na audiência pública sobre o Ensino Religioso no Estado de São
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Paulo. O representante do Comitê Inter-tribal e Nações Indígenas / Aldeia Jaraguá (SP)
deu um pronunciamento onde alerta para o fato do ensino religioso servir para ―limpar a
religião‖ de modo que o índio ―esqueça sua religião, sua cultura, a sua língua e toda sua
identidade‖. Assim este representante se mostra temeroso com o fato de se retornar a
um erro antigo no Brasil, com o desrespeito as religiões dos povos indígenas e
imposição de uma cultura hegemônica. Aqui temos a posição minimalista deste grupo
de nações indígenas, que historicamente passaram por ampla ofensiva de dominação
ideológica por parte dos colonizadores e que ainda hoje, sofrem com pouca
representação política.
Quanto à Igreja Evangélica Batista, em seus documentos oficiais, a abordagem
é notadamente minimalista, defendendo um Estado laico, onde Igreja e Estado agem de
forma separada. Das seis denominações batistas listadas na pesquisa da FGV, registramse documentos da Convenção Batista Brasileira e da Convenção Batista Nacional,
ambas ligadas à Aliança Batista Mundial. O documento denominado ‗Princípios
Batistas‘ afirma como ―inalienável a liberdade de consciência e a plena liberdade de
religião de todas as pessoas‖ e que Igreja e Estado ―devem permanecer separados, mas
igualmente manter a devida relação entre si e para com Deus‖. Esta compreensão,
reafirmada em outros documentos, defende a separação mas deixa brechas para algum
tipo de proximidade, diante da relação do Estado ―para com Deus‖. Em artigo publicado
no Jornal Batista em 2008, Oswaldo Luiz Ribeiro, professor do Seminário Batista do
Sul do Brasil, apóia o Estado Laico de Direito e diz que ―Nossa pátria é a República.
Nosso espírito, a Democracia. Não é por outra razão que os batistas carregam, em seu
DNA, o cromossomo da separação entre Estado e Igreja‖. Ainda assim, na audiência
pública no Estado de São Paulo o representante dos batistas prestou a seguinte
afirmação:
Pensamos que o ensino deveria ser laico, como laica é nossa
Constituição e o Estado Brasileiro, mas diante das
circunstancias, entendemos que o ensino deve ser trabalhado
não a partir da idéia de catequização, nem da discriminação [...]
O Ensino Religioso deve ser trabalhado com o objetivo da
formação da cidadania que envolve valores morais e valores
éticos.
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231
Com esta declaração a posição batista oscila entre a defesa de uma laicidade que
signifique separação entre igreja e Estado (minimalista) e uma possibilidade de
abordagem pluralista quanto à atuação no espaço público.
Ao pesquisar a Igreja Metodista Wesleyana, percebe-se que esta denominação
vem mostrando uma tendência mais minimalista em relação à sua atuação na esfera
pública. Prova disso é que diante da Concordata Brasil Vaticano (2008), o Colégio
Episcopal da Igreja Metodista emitiu um documento onde afirma o seguinte:
―Proclamamos a importância constitucional do Estado laico, ou seja, levando-se em
consideração a liberdade de escolha religiosa. Igualmente, defendemos a separação
entre o Estado e a Igreja‖. Também ao se pronunciar, em dezembro de 2010, sobre o
Plano Nacional de Direitos Humanos, no documento intitulado Pronunciamento do
Colégio Episcopal sobre o PNDH-3, esta denominação afirma que
a Igreja Metodista respeita outras tradições religiosas que coexistem
em uma sociedade plural, como a brasileira. Nesse sentido, a
valorização da laicidade do Estado é fundamental, como garantia
de que todos e todas, perante o Estado, recebam igual
consideração quanto à sua cidadania plena e inalienável.
Este grupo limitando-se assim às instituições confessionais e comunitárias. Porém
nos ―Cânones da Igreja Metodista‖ (2007/2011) há uma seção que cita as escolas
oficiais do Estado e universidades como campo de atuação da igreja metodista. Abre-se
assim um espaço para atuação no ensino público, tendo uma abordagem oscilando entre
minimalista e pluralista.
2.3. Estratégia Pluralista
A Igreja Evangélica Assembléia de Deus assume uma postura pluralista
exposta no documento denominado Diretrizes e Bases Normativas do Conselho de
Educação e Cultura da Convenção Geral das Assembléias de Deus do Brasil, de 25 de
fevereiro de 2011. O 7º artigo deste documento diz que a educação religiosa se realiza,
dentre outros espaços, ―nas Escolas Públicas”. Mais adiante no artigo 127, que trata
especificamente sobre o ensino religioso nas escolas públicas, a orientação para as
instituições eclesiásticas é que ―utilizem os seus direitos oferecidos pela Constituição
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Brasileira e pela Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Fundamental e Médio, para levar o
Ensino Religioso às Escolas Públicas‖. Desta forma se percebe o valor dado a atuação
na escola pública, levantando a bandeira do apoio e incentivando seus fiéis a valerem-se
do direito outorgado em lei. Deve-se considerar o impacto desta posição oficial visto
que esta denominação se encontra como a maior denominação evangélica, com 5,77%
da população.
De igual modo a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (ICLB)
traz uma posição favorável que reflete a possibilidade de atuar no campo político,
assumindo a estratégia pluralista. No documento intitulado Diretrizes da Política
Educacional da ICLB, de novembro de 2003, o ensino religioso é tido como
―compromisso fundamental da igreja‖, com responsabilidade desta igreja no
―acompanhamento e a inserção nos espaços de discussão, implantação e implementação
das políticas públicas educacionais, e principalmente o envolvimento com aquelas que
tratam da dimensão religiosa do ser humano‖. Abre assim o campo de atuação junto ao
Estado e estimula a participação em prol de políticas que se relacionem com a dimensão
religiosa.
Quanto à Religião Judaica, na ausência de documentos oficiais disponíveis, citase o pronunciamento do vice-presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de
Janeiro durante a sanção da lei sobre o ensino religioso em escolas públicas do rio de
Janeiro (2011), que expressou uma posição mais pluralista ao afirmar que: ―— Essa lei
representa o respeito religioso. Em um estado onde existe democracia é essencial que
todas as religiões tenham voz‖. Porém também se registra a seguinte declaração do
Rabino Henri Sobel, da Federação Israelita de São Paulo/Congregação Israelita Paulista,
numa audiência pública no Estado de São Paulo (2002):
Sou categoricamente contra o Ensino Religioso nas escolas
públicas [...]. Ao tornar o Ensino Religioso obrigatório nas
escolas públicas e permitir a alguns alunos não assistirem às sentirão
estigmatizadas, diferentes das demais, justamente numa fase da
vida em que é tão importante para a criança sentir-se integrada ao
grupo.
Percebe-se que a estratégia deste segmento religioso depende da representação
regional, oscilando entre a pluralista e a minimalista.
Outra denominação a adotar uma estratégia pluralista é a Igreja Congregacional
do Brasil que não traz qualquer documento quanto à atuação em escolas públicas mas
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em seu Estatuto abre o espaço para receber recursos do Estado. Numa estratégia
pluralista, é previsto que o patrimônio da igreja seja composto por ―subvenções e
doações públicas ou privadas‖ e remunerações ―por parte de entidades públicas ou
privadas, que aceitem subsidiar ou patrocinar a realização das respectivas atividades‖.
Esta Igreja deixa a possibilidade de ser subsidiada pelo Estado, afinando-se com as
propostas de inserção de religiosos em entidades públicas, permitindo que as demais
confissões também alcancem tais privilégios.
Nos sites oficiais de representantes da Religião Islâmica também não são
expostas posições sobre o tema. No entanto as declarações dos líderes regionais dão
pistas de que adotam a estratégia pluralista. O presidente da Federação Muçulmana do
Rio de Janeiro, Sheik Ahamad, durante a sessão pública que sancionou a lei sobre o
ensino religioso no município do Rio de Janeiro (2011) declara o seguinte: ―Desde o
inicio, a Federação Muçulmana apoiou esse processo. Acho que acima da tolerância
religiosa deve haver um respeito religioso. E trazer esses ideais de respeito, de
pluralidade, para o ambiente escolar é sempre muito importante‖. Desta forma atuam
junto ao Estado e permitem a atuação de outros grupos.
Quanto à Igreja Católica Apostólica Brasileira percebe-se que a denominação
―Igreja Católica‖ tem algumas variáveis, não se restringindo à Católica Apostólica
Romana. A pesquisa da FGV já classifica oito denominações diferentes que utilizam a
nomenclatura de ―Católica‖. Assim a Igreja Católica Brasileira traz em seu site o
Estatuto da Igreja, que traz no artigo 4º a finalidade acessória de ―promover serviços
educacionais em todos os níveis e modalidades, especialmente o ensino religioso
cristão‖. Mais à frente, no artigo 28, é previsto no patrimônio da igreja que haja
―doações, dízimos, legados e subvenções públicas ou privadas‖, deixando a
possibilidade de contato com subvenções públicas a esta igreja, tendendo assim à uma
estratégia pluralista.
Quanto ao posicionamento da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos
Dias, um e-mail de um de seus representantes afirma o seguinte:
A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias não se opõe de
forma alguma ao ensino religioso nas escolas. [...]. Nós respeitamos e
somos extremamente amigáveis com todos, apenas não mudamos
nossas crenças por causa do ensino. Temos nossa própria forma de
adorar a Deus, mas não ha problema algum de recebermos esse
ensino na escola [...].A respeito de política, a Igreja não tem nenhum
posicionamento [...].
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Assim a posição aparenta ser pluralista, visto que não se opõem à prática do
ensino religioso. A ausência de posicionamentos políticos claros não chega a denotar
uma posição minimalista, visto que não se manifesta contrária a entrada da religião no
espaço público via outras denominações.
A Igreja Universal do Reino de Deus não deixa claro em sua página na internet
quanto ao seu posicionamento sobre a atuação na educação pública. Porém em matéria
de 11 de março de 2012, disponível no site oficial do Jornal Folha Universal, é
mostrada a importância da participação política dos fiéis desta denominação. Na matéria
encontramos a seguinte declaração:
Os políticos vinculados ao Partido Republicano Brasileiro
(PRB) seguem os preceitos que norteiam a atuação da Igreja
Universal e lutam pela aprovação de leis que beneficiam a
população.
Lei das Religiões: A bancada do PRB teve atuação decisiva na
aprovação do Projeto de Lei 5.598, denominado de Lei Geral
das Religiões, que estende a todos os grupos religiosos
existentes no País os privilégios legais concedidos à Igreja
Católica e a seus Institutos Eclesiásticos, tais como imunidade
tributária, "blindagem" trabalhista, inserção de ensino religioso
confessional, obrigatoriedade da reserva de espaços públicos
para fins religiosos, preservação dos patrimônios das Igrejas
financiada pelo Estado, entre outros.
Desta forma percebe-se que a atuação desta denominação no meio político é
forte, inclusive articulando religião e partido político. Nota-se também o forte interesses
em se obter os mesmos privilégios que tem a Igreja Católica. Assim a estratégia
pluralista é usada na disputa por espaço junto ao poder Estatal.
Alguns dos posicionamentos observados trazem indefinições, não podendo ser
classificados quanto à sua atuação junto ao Estado, como o caso da Testemunha de
Jeová, da Igreja Messiânica Mundial, da Seicho-no-ie, entre outras, que não
apresentam posições claras disponibilizadas ao público. Também não há posições
definidas da Igreja Presbiteriana do Brasil e do Colegiado Buddhista Brasileiro
cujos representantes afirmam, via e-mail, não haver conhecimento de posições oficiais
sobre o tema.
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SOBRE A RELIGIÃO
235
Conclusões
Nota-se o interesse de alguns segmentos, principalmente os que historicamente
têm maior influência no país, em se inserir ou se manter no espaço público e conservar
privilégios junto ao Estado. Também se percebe que os grupos religiosos minoritários
tendem a obter pouca voz na cena política, sendo abafados por discursos hegemônicos e
totalizantes. Tais discursos desconsideram as posições minimalistas de muitos.
Percebe-se que os defensores de um Estado Laico não têm visto a laicidade
como a busca por uma sociedade anti-religiosa. Pelo contrário, a laicidade é tida como
respeito a todas as formas de crença ou não crença, de modo que o Estado democrático
governe de forma igualitária e justa. Aos religiosos são garantidas as liberdades de
crença, culto e expressão. Porém esta liberdade refere-se ao âmbito privado, sem que se
misture a religião com a esfera pública do Estado. A postura do Estado e de seus
servidores é a neutralidade em matéria religiosa, sem privilegiar qualquer segmento,
visto que todos têm liberdade de escolha religiosa num Estado Democrático de Direito.
Porém, como constatado pela presente pesquisa, a escola continua sendo
almejada como meio de inserção junto ao poder público, visto que é uma instituição de
alcance massificado no Brasil. As disputas por este espaço culminam com a legislação
acerca do oferecimento da disciplina ensino religioso nas escolas públicas brasileiras.
Constata-se que mesmo sobre este ponto persiste uma falta de consenso entre os
próprios religiosos. Fica assim os desafios de alcançar a igualdade de tratamento de
todas as religiões diante do Estado e também de defender a liberdade de escolha
religiosa, sem que haja imposições ou discriminações diante desta escolha.
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SOBRE A RELIGIÃO
239
ACOLHER E/OU DISCRIMINAR: A CARTA DA CONGREGAÇÃO DA FÉ
SOBRE HOMOSSEXUALIDADE E A REALIDADE DAS TRAVESTIS NA
BAIXADA FLUMINENSE
Luciano Marques da Silva132
Palavras-chave: Travestismo; Diversidade Sexual; Religiosidade;
Resumo: Este trabalho analisa a ―Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o
Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais‖ da Congregação para Doutrina da Fé
sob a luz do cotidiano de Karine, uma travesti da Baixada Fluminense. Apoiamo-nos em
escritos sobre sexualidade humana de Michel Foucault e nos estudos sobre a
similaridade entre o cérebro de mulheres heterossexuais e homens homossexuais
desenvolvidos no Departamento de Neurociência do Instituto Karolinska (Estocolmo,
Suécia), de autoria de Ivanka Savic e de Per Lindström. Nosso objetivo é entender o
comportamento das travestis já que é justamente no dia-a-dia deste grupo social que
encontramos os níveis mais absurdos de preconceito, desrespeito e injustiças. Trazendo
assim para o debate uma re-interpretação da carta aos bispos e da orientação sexual
humana.
Introdução
A homossexualidade é um tabu e ainda é vista por muitos como uma doença.
Tratar deste tema complexo é sustentar um debate onde o respeito às diferenças deve ser
princípio norteador.
Nas últimas eleições presidenciais estes dois temas configuraram um debate
sensível no seio de nossa sociedade. A mídia, as igrejas cristãs e o movimento LGBT
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) travaram um debate que
resultaram em um posicionamento autoritário por parte da presidenta eleita. Foi
cancelado o programa em que seria distribuído nas escolas públicas do ensino médio o
―kit anti-homofobia‖. Acabaram, por motivos egoístas e infundados, com anos de
trabalho que culminariam com o debate nas escolas públicas e o início de um programa
maior pela criminalização da homofobia e o fim das violências contra homossexuais a
partir da educação e da publicidade.
132
Discente UFRRJ-IM: Letras: Português/ Literaturas/ Espanhol; Bolsista do Programa de Educação
Tutorial e Conexões de Saberes do MEC/Sisu; e Pesquisador de Diversidade Sexual e Religiosidade.
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240
O presente trabalho foi estruturado de uma forma em que possamos efetivar um
discurso de sensibilização e respeito às diferenças. É necessário primeiramente
apreender o discurso da Igreja Católica. Para tanto analisaremos os escritos desta para
os bispos de sua igreja através do documento intitulado “Carta aos Bispos da Igreja
Católica sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais”.
A trajetória do jovem André de Lima Rocha que nasceu em 16 de maio 1986 que
sai
de
casa
na
Baixada
Fluminense
e
vai
para
Itália.
Configurando uma travesti que, às custas da prostituição luta para alcançar uma
identidade motivo de reflexão neste estudo. Os escritos de Michel Foucault sobre
sexualidade e as últimas pesquisas do Instituto Karolinska sobre a similaridade entre os
cérebros de uma mulher heterossexual e o homem homossexual completam o debate
presente neste trabalho.
Religiosidade e o Discurso da Congregação da Fé sobre Homossexualidade
Na Enciclopédia Britânica de 1974, Antônio Xavier Teles, catedrático de
Filosofia do Colégio Pedro II, diz que religiosidade é:
uma das mais antigas manifestações do homem. Sua essência consiste
num ato ou atitude de propiciação e conciliação dos poderes divinos,
que o homem acredita capazes de dirigir e controlar o curso da
natureza e da vida humana. Esses poderes sobrenaturais sempre
causaram medo e um sentimento de reverência à consciência
primitiva. O homem, cercado por uma natureza selvagem e
desconhecida, criou essas entidades que, para ele, dirigiam cada
fenômeno do universo. Para aplacá-las, ofereciam-lhes orações e
sacrifícios ou veneravam-nas com rituais mágicos. Com isto,
estabeleceu o homem dois planos: o da natureza e o do sobrenatural, o
sagrado. O sagrado é, pois, o objeto da religião. (AXT, 1974, 449)
A palavra religião tem sua origem latina (relegio e religare) e configura-se o ato
de religar o homem à divindade. Um fenômeno que é próprio do homem, independente
da orientação sexual. Mas, é visível o posicionamento de determinadas religiões que se
calam principalmente quando o assunto é homossexualidade. Como um fenômeno
construído é preciso repensar as religiões na pós-modernidade. Um novo sujeito
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241
travestido e que não opta pela prostituição povoa nossa realidade. Como acolhê-los no
seio as comunidades eclesiais? Até quando vamos alimentar nosso discurso excludente?
O Vaticano posicionou-se em relação ao tema escrevendo uma “Carta aos
Bispos da Igreja Católica sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais”
em que esclarece que a Igreja acolhe e respeito o homossexual, mas condena a prática
dos atos homossexuais “levando em consideração a distinção feita comumente entre a
condição ou tendência homossexual, de um lado, e, do outro, os atos”133. Ao
analisarmos o documento percebemos que a Congregação para a Doutrina da Fé se
baseia em textos bíblicos (Levítico 18,22 e 20,13; Gn 19,1-11; I Cor 6,9; Rm 1,18-32; 1
Tm 1,10) para entender que “particular inclinação da pessoa homossexual, embora não
seja em si mesma um pecado, constitui, no entanto, uma tendência, mais ou menos
acentuada, para um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral. Por
este motivo, a própria inclinação deve ser considerada como objetivamente
desordenada”134.
A Igreja vê uma desarmonia nas relações homossexuais, dizendo que no
sacramento do matrimônio, desígnio divino da união do homem e da mulher, é união de
amor e capaz de dar a vida. Somente na relação conjugal o uso da faculdade sexual pode
ser moralmente reto. Podemos entender a posição do ponto de vista externo
estereotipado. No relacionamento homoafetivo o que se vê é a união entre iguais. Para a
Igreja uma pessoa que se comporta deste modo age imoralmente. O que dizer dos casais
gays que se estabelecem num a relação de respeito e dignidade? Como dizer para uma
travesti que ela está errada ao se identificar com uma mulher sendo homem? Quais
seriam as bases capazes de permitir homossexuais se unirem? Embora a igreja condene
os atos, faz um apelo diante da violência a que esta população está sujeita dizendo que
“as pessoas homossexuais são objetos de expressões malévolas e de ações violentas.
Semelhantes comportamentos merecem a condenação dos pastores da Igreja onde quer
que aconteçam. Eles revelam uma falta de respeito pelos outros”.135
Para a Igreja a tendência homossexual, em certos casos, não é fruto de uma
opção deliberada e que a pessoa homossexual não tem outra alternativa, sendo obrigada
133
“Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais” § 3.
“Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais” §3.
135
“Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais” §
10.
134
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SOBRE A RELIGIÃO
242
a se comportar de modo homossexual. Por conseguinte, afirma que, em tais casos, ela
agiria sem culpa, não sendo realmente livre.
A partir deste posicionamento podemos indicar uma diferença clara sobre a
origem da homossexualidade que estaria entre opção de ser e a percepção de ser. A
orientação sexual é uma construção social, mas não está livre das formatações
essenciais e constitutivas geneticamente.
É estranho que não se tenha percebido o mundo que existe entre esse
termo, ―sexualidade‖, em todo lugar em que ele começa em que
simplesmente começa a adquirir uma substância biológica – e eu o
farei observar que, se há um lugar em que podemos começar a
perceber o sentido que isso tem, é, sobretudo do lado das bactérias – o
mundo que existe entre isso e o que Freud enuncia sobre a relações
reveladas pelo inconsciente. Quais quer que possam ter sido os
tropeços a que ele mesmo sucumbiu nesse campo, o que Freud revelou
do funcionamento do inconsciente nada tem biológico. Não tem
direito de ser chamado de sexualidade senão pelo que chamamos de
relação sexual. E isso é completamente legítimo, aliás, até o momento
em que nos servimos do termo ―sexualidade para designar uma outra
coisa, a saber, aquilo que se estuda em biologia: o cromossomo e sua
combinação XY ou XX, ou XX, XY. Isso não tem absolutamente nada
a ver com aquilo de que se trata, e que tem um nome perfeitamente
enunciável: as relações entre homem e mulher. Talvez vocês saibam
que o transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito
energético de passar, seja por que meio for, para o sexo oposto, nem
que seja submetendo-se a uma operação, quando se está do lado
masculino. (LACAN, 2009, 30)
Não podemos precisar que homossexual optou, ou qual homossexual realmente
apresenta em si a essência e a construção social de ser gay. É evidente que as travestis,
por apresentarem uma carga acentuada de feminilidade a que um homem poderia
conter, são visivelmente homossexuais no mais alto perfil gay.
Há
outras
identidades
gays.
Peter
Fry
em
seu
livro
―O
que
é
Homossexualidade?‖ nos situa neste universo:
Um homem de Belém, por exemplo, pode tranquilamente manter
relações sexuais com uma pessoa que considere uma bicha. Para ele,
não tem nada de diferente nesta atividade. Nem por isso ele é menos
homem. Até poderia se considerar mais macho do que nunca. Dá
mesma forma, um jovem rapaz na cidade de São Paulo poderia manter
uma relação sexual com um senhor mais velho em troca de alguns
cruzeiros. Como nosso amigo paraense não é menos homem por isso e
jamais se pensaria como homossexual. Na mesma cidade de São
Paulo, um homem universitário, militante do movimento
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SOBRE A RELIGIÃO
243
homossexual, pode descordar com o jovem prostituto e afirmar que
ele é um homossexual, só que não sabe, não tem consciência. Este
mesmo rapaz poderia chegar a dizer que todos os homens tem ‖porção
mulher‖ e que todo mundo tem um lado homossexual mesmo se
latente e escondido. Esta mesma opinião poderia ser emitida por uma
psicanalista ―progressista‖. Outro psicoterapeuta ―conservador‖,
poderia dizer que quem pratica o homossexualismo é um doente
mental e que é capaz de ser curado. Se este terapeuta fosse de
tendência behavioristas, poderia receitar terapia de aversão. O
―paciente‖ seria sujeito a náusea quimicamente induzida ao mesmo
tempo que vê numa tela a fotografia de um homem nu. Ao se
recuperar da náusea e ao se sentir mais tranquilo e contente, aparecia
uma fotografia de uma bela mulher. Nesta mesma cidade de São
Paulo, poderíamos encontrar um espírita que acredita que os
homossexuais masculinos são o resultado da encarnação de um
espírito feminino num corpo masculino, enquanto um candoblezeiro
poderia pensar que era homossexual por ser filho da orixá feminina
Iansã. Um delegado de polícia poderia pensar que os homossexuais
são uma ameaça a ordem pública e instaurar uma operação limpeza no
centro da cidade, atemorizando os homossexuais na rua com prisões e
violências ilegais. Outro advogado poderia gastar tempo e energia de
graça para libertar essas pessoas partindo da firme convicção de que
homossexuais não são mais perigosos que quaisquer outra pessoa. O
nosso amigo militante poderia achar que gay ―is beautifull‖ é tão
absolutamente simpático e ―normal‖ quanto qualquer outra pessoa e
passear na avenida Ipiranga de mãos dadas com seu amante. Outra
pessoa poderia sentir a mais abjeta vergonha da sua vontade de ter
relações sexuais com outros do mesmo sexo e restringir sua atividade
sexual à escuridão do cinema ou anonimato de um banheiro público
ou a nada. Como saber o que é a homossexualidade quando nesta
sociedade brasileira existem tantas opiniões contraditórias e malencontradas a respeito do assunto? Aonde começar? Em quem
acreditar? (FRY e MACRAE, 1985,8)
Karine ou Andre: um caso de Travestismo na Baixada Fluminense
André de Lima Rocha nasceu em 16 de maio de 1986. Nome que está na
certidão de nascimento de Karine, mais uma travesti assassinada na Baixada
Fluminense. Nasceu e morreu em Itaguaí, mas foi na Itália onde ele realmente nasceu como ―mulher‖. Não se sabe em que momento ele se percebeu diferente e lutou para
construir sua identidade feminina. Não chegou a fazer a cirurgia de troca de sexo, mas
ao voltar ao Brasil, apresentava-se como Karine.
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244
Há relatos que já na infância André dançava caipira vestido de noiva. A mãe e a
companheira declararam seguir o menino até a apresentação que seria em um bairro
próximo ao que viviam. Ao perguntarem pelo menino, todos não hesitavam em dizer
que a noiva era ele. Ambas ficaram estarrecidas. Mas é curioso perceber como duas
mulheres lésbicas não conseguem entender a homossexualidade dos filhos. Ambas
tiveram filhos homens e os dois meninos declararam-se homossexuais. André, diferente
de William (que morava com os avós maternos) saiu de casa. Apareceu meses depois
dizendo a todos que iria para Itália. Não se sabe em que circunstâncias financeiras, mas
ele tinha esse sonho de ver-se como ―mulher‖. Até coragem de fazer a cirurgia de troca
de sexo afirmava ter.
A madrasta apresenta uma circunstância do que seria a primeira relação
homossexual de Andre. Diz que certa madrugada o menino tinha chegado tarde a casa.
Foi ao banheiro e depois direito para a cama. Ela foi então ao banheiro ver se
encontrava algo e viu uma cueca suja de sangue. A partir dali travaram uma guerra e
nunca mais se deram bem. Uma vez longe de casa não se sabe como André ganhava a
vida. Certa vez encontrei com uma amiga dele que me disse que ele se prostituía na
avenida Brasil, próximo ao bairro Santa Cruz, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro.
Percebo, a partir dessas entrevistas e relatos, que o menino tinha se transformado
em uma travesti e que se prostituía. Também que já lutava com toda audácia possível no
meio de uma profissão tão desmerecida pela nossa sociedade. É evidente que a partir
destes contatos com o mundo da prostituição que André conseguiu chegar á Itália e de
lá fugir com seu namorado, anos depois. Ao voltar ao Brasil instalou-se na casa da mãe.
Alugou uma casa com o dinheiro que mãe do namorado, Satini, mandava todo mês.
Fizeram uma festa de casamento e tempos depois, decidiram morar em São Paulo,
Paraguai e voltando depois para o Rio de Janeiro se instalando em Itaguaí, onde o pai de
André morava com sua outra família e os filhos deste relacionamento. Há informações
que Satini não trabalhava. Vivia com a ajuda dos pais italianos e de pensão do governo
paraguaio. Não há confirmações destes dados, mas o que se vê é um desgaste no
relacionamento entre Karine e Satini. Ela se prostituía e provavelmente a cidade que a
viu nascer foi a mesma que a viu sofrer e morrer. Uma criança para a sexualidade
humana: 25 anos! A certidão de óbito datada de 20 de junho de 2011, quase um mês
depois de ser enterrada traz a causa da morte: asfixia mecânica por sufocação indireta,
local de falecimento: rua Landolfo Alves, no centro da cidade de Itaguaí.
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É interessante trazer para o debate uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto
Karolinska. Neste estudo os pesquisadores Ivanka Savic e Per Lindström descobriram
que o cérebro de um homem homossexual, no caso o cérebro de André, funciona como
o de uma mulher heterossexual.
O cérebro de homossexuais é similar ao de pessoas do sexo oposto. O
cérebro de um gay é parecido com o de uma mulher, enquanto o de
uma lésbica apresenta características semelhantes às de um homem
hetero, revelou um estudo publicado Constataram que o formato de
algumas áreas de ativação do cérebro estariam relacionado à
orientação sexual. Nos homens hetero e nas mulheres homossexuais, o
hemisfério direito é maior que o esquerdo. Essa discrepância não
ocorre entre os cérebros de homens gays e mulheres hetero, cujos
hemisférios seriam mais proporcionais. A decisão de trabalhar com
esse tipo de parâmetro tinha por objetivo obter dados já determinados
no nascimento, ou seja, que não teriam influência de fatores
culturais.(O GLOBO, 17/06/2008, 32)
A pesquisa ajuda-nos a entender os mecanismos pelos quais estão inseridos os
gays efeminado e de alto grau de feminilidade. Karine era uma mulher. Tinha o cérebro
de mulher num corpo de homem. É isso que se reduz a homossexualidade: homem
mulher. Mas é difícil, do ponto de vista de quem ver, entender as raízes cerebrais do
comportamento, do desejo, o jeito de olhar, de falar e de andar a que estão imbricados
nos gays. Elas estão sempre em busca de um príncipe que nunca vem. É através da rua e
da prostituição que vão conseguir dinheiro para fazer nos seus corpos aquilo que é as
suas mentes desejam – serem reconhecidas como mulheres. É difícil perceber quão
necessário construir um perfil feminino. Como uma força da natureza, ondas fortes,
correnteza dos rios que te levam sem ter onde segurar.
Figuras 1 a 4: 1- Certidão de Nascimento. 2 - André. 3 - Óbito. 4 - Eliete, Karine e Satine. Arquivo
Familiar.
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Conclusões
Jesus Cristo trouxe-nos uma mensagem de fraternidade. Ser cristão é ser mais
que tudo acolhedor. Virar as costas ao progresso e continuar excluindo cidadãos por
desconhecimento acerca da verdade presente na orientação sexual de homossexuais não
condiz com a mensagem evangélica. A Bíblia é bem clara ao descrever a abominação
que é um homem deitar-se com outro como se fosse uma mulher. É preciso frisar que a
abominação se dá entre dois homens heterossexuais, já que no caso dos homossexuais,
que de acordo com a pesquisa de Ivanka Savic e Per Lindström, gays são mulheres
sexualmente. O cérebro comanda o encontro entre dois homossexuais, resultado de um
enlace entre o físico masculino e a psique feminina.
Negar acolhimento para os casais homossexuais, assim como para as travestis,
transexs e transgêneros é uma tentativa preconceituosa. A religiosidade é própria do
homem e da mulher não importando sua orientação sexual. Um homem pode ser
fisicamente homem, mas apresentar uma particularidade feminina em termos de
sexualidade, orientação e identidade. É o caso de Karine que lutou a vida inteira pela
sua identidade e quando esta se tornou uma realidade viu-se isolada num mundo onde o
diferente ainda é excluído e incompreendido. Sem um convívio social sadio é obrigada a
se prostituir, mesmo ―casada". A que ponto chega o conservadorismo do brasileiro e do
homem pós-moderno? No Carnaval louva a máscara e o travestismo, mas no cotidiano
se recusa a entender que algumas pessoas nascem mulheres no corpo de um homem e
nem por isso devem conviver ao longo de suas vidas na infelicidade de não se
reconhecerem. A identidade é um direito e o respeito às diferenças um dever. Quando
vamos entender que todos ganham com a valorização e a inclusão de todos,
independente de credo, cor, raça ou sexo? É através do acolhimento dessas pessoas
marginalizadas que vamos torná-las melhores e mais felizes. Só o convívio social traz
realização humana. Realizemos-nos!
Referências
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber; tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de
Janeiro: Graal, 1988.
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Juventude e Religião: estudos de ontem e de hoje
Carlos Eduardo da Silva Moraes Cardozo136
No Brasil, nos últimos anos, o tema juventude tem ganhado grande importância
em muitos campos de discussão, principalmente no meio acadêmico. Como afirmam
Alpizar e Bernal (2002, p.21): ―foi no meio acadêmico que se desenvolveu o
conhecimento ‗científico‘ assegurado como conhecimento válido e supostamente neutro
e que tem servido geralmente para legitimar práticas e mecanismos de controle das
pessoas jovens.‖
Apesar dessa suposta validade exata do conhecimento científico, é preciso
verificar que os vários conceitos sobre os jovens também sofreram influência da
sociedade através das concepções políticas, econômicas, culturais e sociais que muitas
vezes acabam por legitimar as normas, práticas e conceitos pré-estabelecidos.
Devido a grande importância da discussão do tema juventude e das várias
abordagens e estudos já empreendidos, quero analisar o tema ao longo da história, no
Brasil. O conjunto dos trabalhos que vem formando o campo de estudos de ―juventude‖
e ―religião‖ que este trabalho se objetiva a analisar se situa nas clivagens teóricas do
campo acadêmico de análise da juventude em geral, polarizado, por um lado, pela
ênfase nos marcos geracionais e, de outro, na pluralidade nas formas de ―ser jovem‖.
Importante a identificação, também, esta área de estudos, principalmente, em ciências
sociais, questões cruciais do campo e estudos da religião: como a do papel da religião na
contemporaneidade e no Brasil, a da secularização, da bricolagem religiosa, e do
trânsito religioso com todo seu corolário.
A invenção da juventude
Podemos nos perguntar neste momento em que período histórico a juventude foi
definida enquanto categoria social? Sempre houve na história da humanidade
juventude? A invenção da juventude é uma questão que intriga nos faz olhar a história
136 Mestrando em Ciências Sociais – PPGCS-UFRRJ.
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dos jovens de maneira diferente. Devemos lançar um olhar sobre o conceito e a palavra
de juventude ao longo da história.
A introdução de Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt à História dos Jovens137
chama a atenção ao fato de a juventude ser um tema que percorre as décadas de 1970 e
de 1980, mas que não tem merecido uma síntese histórico-cultural. ―temos a ambição‖,
dizem eles, ―de pôr em evidência a especificidade da juventude, sem contentar-nos em
concebê-la como uma idade igual às outras‖138. Perguntam-se, por isso, o que é, de fato,
a juventude? A resposta deles lança-nos uma reflexão importante: ―como as demais
épocas da vida, ela é uma construção social e cultural‖. Situa-se entre a dependência
infantil e a autonomia da vida adulta, naquela idade de pura mudança e de inquietude
―em que se realizam as promessas da adolescência, entre a imaturidade sexual e a
maturidade social, entre a falta e a aquisição de autoridade e de poder‖.
Enquanto apresentam uma ―história dos jovens‖, os autores arriscam-se afirmar
que ―a história da juventude se configura como um terreno privilegiado de
experimentação historiográfica‖ (Ibid v.1. p.10), isto é, apresentam histórias que
concernem a jovens adotando múltiplas perspectivas, múltiplos olhares.
Da sociedade antiga à compreensão contemporânea
Olhando esta questão do ponto de vista histórico, Lutte139 afirma primeiramente
que na Roma Antiga não existia um período a que pudéssemos chamar de adolescência
ou juventude. O que se festejava com a torga viril, era o fim da puberdade fisiológica.
Mais adiante, contudo, o mesmo autor reconhece que a juventude ―nasceria‖, em Roma,
pelo ano 193 a.C., com a ―ata de nascimento de um novo grupo social‖, instituindo-se
uma ação penal contra quem tivesse abusado da inexperiência de um jovem inferior a 25
anos num negócio jurídico. Assim, a madurez social, em Roma, estaria nos 25 anos.
Lembrando que Sócrates morreu porque corrompia a juventude.
137 LEVI, Giovanni e SCHMITT, Jean-Claude. História dos Jovens, dois volumes: 1. Da Antiguidadeà
Era Moderna; 2. A época contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
138 Ibid., v.1, p.8
139 Gérard LUTTE autor de uma obra intitulada Liberar La adolescencia, levando como subtítulo La
psicologia de los jóvenes de hoy, publicada em 1991, vai ajudar-nos numa primeira aproxima;cão desse
tema. Embora o autor não seja propriamente historiador, mas essa obra, apresenta de maneira lúcida e
didática a questão. Considero, também, como bibliografia de suporte para esta reflexão outras obras e
autores (LEVI, SCHMITT, 1996; SANDOVAL, 2002; DICK, 2003 e SAVAGE, 2009).
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Na Roma antiga, segundo Levi e Schmitt, era-se puer até os 15 anos; a
adolescência ia dos 15 aos 30 anos; a juventude se estendia dos 30 aos 45 anos. Até os
12 anos meninos e meninas estudavam juntos, depois só os meninos continuavam
estudando, Não se pode esquecer que em Roma existia a deusa Juventas (= juventude),
havia, no governo de Augusto, os ―príncipes da juventude‖. Em todo caso, aos 16 anos,
com a envergadura da Torga viril, começava, para os rapazes, a preparação para a vida
pública.
Na Idade Média, segundo DICK (2003 p. 20), por volta do século VI e VII,
delimitações começavam a assumir características etárias, definidas como: infância (de
0 a 7 anos), puberdade (de 8 a 13 anos), adolescência (de 14 a 21 anos) e juventude (de
22 a 30anos). Uma consideração importante trata do fato de que, apenas aos 40 anos, os
homens podiam participar dos cargos políticos, porque esta idade representava o fim da
idade dos perigos. Quem dava o ―atestado‖ da maturidade era a herança e o casamento.
A partir do século XVIII, com J. J. Rousseau, começa a surgir, então, uma visão
mais sociológica da juventude, e a principal característica atribuída aos jovens, neste
período, é, segundo Ortega y Gasset (1987), identificada em uma figura que somente
executa as velhas idéias implantadas pelos adultos, afirmando não ―(...) a sua juventude,
mas princípios recebidos‖ (p.119).
Somente ao fim do século XIX, surge, nas classes burguesas o termo
adolescência, como o resultado de uma sociedade capitalista e industrializada, com a
intenção de demarcar o início da segunda infância, definindo a idade para além dos 13
anos. Esta sociedade caracterizou uma juventude que almeja a maturidade precoce,
chegando a envergonhar-se de sua condição juvenil.
Já imersos na realidade contemporânea, encontra-se em G. Stanley Hall (1904),
com a obra ―Adolescence‖, o primeiro autor a abordar este tema como uma fase de
importância singular no desenvolvimento humano. Para tanto, Hall considerava que a
emancipação e o sucesso da vida adulta seria o resultado de uma boa acolhida, com
cuidados especiais, dedicada à fase da adolescência. Referindo-se à adolescência afirma
que: ―nenhuma idade é tão sensível aos melhores e mais sábios esforços dos adultos.
Não há um único solo em que as sementes, tanto as boas como as más, atinjam raízes
tão profundas, cresçam de forma tão viçosa ou produzam frutos com tanta rapidez e
regularidade‖ (Hall apud Sprinthall e Collins, 2003, p. 15).
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Avançando na retrospectiva, no século XX, a partir de LEVI e SCHMITT,
podemos evidenciar alguns elementos importantes que nos chegam de herança: a
juventude como construção social. A juventude vai além do biológico e do jurídico.
―Sempre e em todos os lugares ela é investida de outros símbolos e de outros valores, de
outras funções‖ (LEVI e SCHMITT. Op.Cit v.1. p. 32). A diferença dos sexos, se
constitui como um outro elemento importante na constituição dos sujeitos jovens, no
século XX, salienta os autores. ―A diferença cultural entre rapazes e moças, já
acentuada na socialização infantil, é institucionalizada na juventude. Tudo leva a
menina a ser esposa e mãe.‖140 (Ibid p. 33) Ainda, outro elemento que se destaca, é a
ideia dos jovens como atores sociais. Os jovens são o primeiro sujeito ativo na história.
Citam, por isso, a ligação natural entre juventude e nação, afirmada pelo Romantismo; a
adesão dos jovens burgueses europeus do século XIX às ideias da revolução; as
associações juvenis das igrejas; o enquadramento dos jovens nas organizações facistas e
nazistas; as revoltas estudantis dos campos universitários americanos e as barricadas do
maio parisiense de 1968 (cf. Ibid. v.2).
Pode-se sintetizar as principais características relacionadas à juventude, com a
intenção de expor os pontos convergentes que definem e especificam um melhor
entendimento do termo utilizado, que segundo Dick (2003) no século XX, no Brasil,
tem-se:
Principais características e
representações dos jovens ao longo do
Século XX no Brasil.
Anos 40
Jovens marcados pelas experiências chocantes vividas durante a
Segunda Guerra Mundial e com as bombas atômicas no Japão.
140 Hoje, com as reflexões acerca do gênero e da liberdade da mulher com sua entrada no mercado de
trabalho e autonomia em relação ao homem no que tange ao prazer e à reprodução parece que este
elemento está desatualizado. Mas, isso se verifica, sobretudo, com um olhar social sobre a incidência dos
casos de homofobia. Segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB) que em 2011 divulga o Relatório Anual de
Assassinato de Homossexuais de 2010. Foram documentados 260 assassinatos de gays, travestis e
lésbicas no Brasil no ano passado, 62 a mais que em 2009 (198 mortes), um aumento 113% nos últimos
cinco
anos
(122
em
2007).
Ver
em
http://www.ggb.org.br/Assassinatos%20de%20homossexuais%20no%20Brasil%20relatorio%20geral%2
0completo.html
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Anos 50
―Anos Dourados‖ - jovens mais autônomos.
Anos 60
Década onde o tema JUVENTUDE foi mais explorado, expansão do
Movimento hippie como uma ameaça à ordem social.
Anos 70
―Anos de ressaca‖ - juventude insatisfeita, buscando mudanças para
sair de uma sociedade estagnada, apática e viciada.
Anos 80
Defesa do protagonismo juvenil através da ―Pastoral Juvenil‖ e
redução dos avanços da liberdade sexual através da difusão da AIDS;
jovens sem ideologia, individualistas, consumistas e conservadores.
Anos 90
Transição de uma geração que valorizava a organização, a
articulação, a lógica e o raciocínio, para uma geração que valoriza o
corpo, o prazer, o fragmentado e o individual. Surge a ―geração
zapping‖(em constante mudança).
Fonte: DICK, 2003. Elaboração do autor.
Atualmente, é lugar comum nos estudos sobre juventude dizer que este termo
não designa um grupo homogêneo (CARMO, 2001; DAYREL, 2005; ABRAMO, 1997
e 2005; CARRANO, 2000), mas que se trata de uma noção que pode variar bastante de
acordo com o critério pelo qual ela for delimitada: faixa etária, geração, papel social,
identidade auto-atribuída, entre outros. Sendo tema de interesse público e civil, a
condição juvenil deve ser tratada sem estereótipos e a consagração dos direitos dos/das
jovens precisa partir da própria diversidade que caracteriza a(s) juventude(s).
Assim, a definição de juventude pode ser desenvolvida por uma série de pontos
de partida: como uma faixa etária, um período da vida, um contingente populacional,
uma categoria social, uma geração... Mas todas essas definições se vinculam, de algum
modo, à dimensão de construção sócio-histórica. Há, portanto, uma correspondência
com a faixa de idade, mesmo que os limites etários não possam ser definidos
rigidamente; é a partir dessa dimensão também que ganha sentido a proposição de um
recorte de referências etárias no conjunto da população, para análises demográficas. Do
mesmo modo, a noção de geração remete à ideia de similaridade de experiências e
questões dos indivíduos que nasceram num mesmo momento histórico, e que vivem os
processos das diferentes fases do ciclo de vida sob os mesmos condicionantes das
conjunturas históricas. É esta singularidade que pode também fazer com que a
juventude se torne visível e produza interferências como uma categoria social.
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2. Juventude e Religião
O incremento da abordagem compreensiva nos estudos sobre a juventude,
propiciando e estimulando o interesse por novas facetas desse universo, não configura,
evidentemente, a única perspectiva de investigação disponível. No entanto, não
podemos negar que ela configura o perfil do conjunto das pesquisas sobre juventude
nesses últimos anos. Enfim, ―o momento atual pode ser caracterizado pela pluralidade
de perspectivas, delineando um cenário de pluralismo teórico e metodológico‖, indica
Tavares e Camurça (2009, p. 31).
Os estudos sobre religião e juventude se inserem na dinâmica da pluralidade
desses estudos sobre juventude. Essa reorientação metodológica e teórica tem
estimulado essa diversidade141, produzindo novos recortes, problematizando fronteiras,
flexibilizando critérios rígidos de adesão e pertencimento (Novaes, 2001). Camurça e
Tavares (2009) marcam os anos de 1990, a investigação das interfaces de juventude e
religião, inicialmente, o universo da juventude estudantil. Pouco a pouco, no entanto,
observa-se uma diversificação empírica (diferentes segmentos juvenis) e metodológica
(surveys e pesquisas qualitativas).
2.1 As primeiras pesquisas no Brasil
Tavares e Camurça (2009, p.32) inscrevem a Regina Novaes como a pioneira, no
universo acadêmico, nos estudos de juventude e religião. Pioneira porque sistematizou,
em termos acadêmicos, um debate em torno da temática. Sua publicação ―Religião e
Política: sincretismos entre alunos de Ciências Sociais‖, publicado em Comunicações
do Iser em 1994 gerou desdobramentos posteriores a partir de seu modelo teórico e
metodológico. Neste artigo, Novaes não se ateve em realizar uma tipologia das
tendências religiosas, ou mesmo, pertenças e vínculos religiosos entre os universitários
141 Esse fenômeno é verificado nas conclusões do IV Simpósio Internacional da Juventude Brasileira (IV
JUBRA) em Belo Horizonte, em 2010, onde estive na comissão organizadora. O Simpósio teve como
tema ―Juventudes contemporâneas, um mosaico de possibilidade‖ e se revelou como um lugar de
encontro de pesquisadores diversos e de diversas áreas com pesquisa em juventude. Inclusive de áreas, até
então sem ínfima relação com o tema, pesquisadores provenientes da arquitetura, geografia, do direito etc.
Isso chamou a atenção da comissão organizadora local.
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pesquisados e relacioná-los no grande campo das religiões no Brasil. A ênfase desse
trabalho se concentrou na questão das hibridizações culturais contemporâneas, sob a
formulação do sincretismo142.
―Para além de buscar inferências mais ―coladas‖ no resultado formal
dos dados (porcentagem dos estudantes por religião, índice de
freqüência aos cultos, grau de adesão às religiões escolhidas ou
herdadas), Novaes especula na perspectiva do sincretismo, preferindo
ver os índices percentuais dessas pertenças, adesões religiosas, não
‗congelados‘ em cada quesito, mas no transcurso de trajetórias e
itinerários (captados nos relatos dos estudantes religiosos e
contrastados com os dados do survey), o que implica alternâncias,
mudanças, combinações‖. (TAVARES, CAMURÇA, 2009, p.33)
Em ―Juventude e Religião: marcos geracionais e novas modalidades
sincréticas‖ publicado em Fiéis e Cidadãos: percursos de Sincretismo no Brasil, em
2001, a autora, tendo-se articulado a uma pesquisa coordenada pelo NER da UFRGS
que envolveu várias universidades brasileiras visando dar seguimento aquela sua
iniciativa de 1994, retoma o tema juventude e religião através da categoria do
sincretismo.
Neste segundo trabalho, nota-se uma ampliação no horizonte de reflexão por
agregar neste binômio conceitual a ideia de marcos geracionais, a partir dos quais uma
literatura especializada busca conceituar com mais rigor a categoria ―juventude‖143. Essa
preocupação mais analítica com o específico da ―juventude‖ por parte da autora, em
relação ao texto anterior, se dá em meio a um crescente envolvimento teórico e de
intervenção junto a ONGs e igrejas na formação de lideranças.
Assim, neste segundo texto, Novaes retoma o tema do sincretismo a partir dos
marcos geracionais. Assim, combinadas, ambas as categorias ajudam a perceber como
os jovens, a partir da referência de uma alteridade (outros jovens) e de contextos sócio-
142 Importante ressaltar que os estudos sobre sincretismo no Brasil datam bem anteriormente ao artigo da
Novaes. Encontramos um definição de sincretismo já em 1969, por Herskovits (1969, p. 376) onde define
sincretismo como uma forma de reinterpretação, que assinala aspectos da mudança cultural com
transformações de valores que ocorrem entre as gerações e apresenta exemplos relacionados com as
religiões afro-brasileiras. Cf. HERSKOVITS, Melville J. Antropologia Cultural. São Paulo: Ed. Mestre
Jou, 1969.
143 Destaca-se aqui, neste momento, os trabalhos e reflexões de Abramo e Spósito na conceituação da
categoria juventude.
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culturais disponíveis, elaboram classificações singulares de crenças e religiosidades que,
mesmo provisoriamente, lhes fornecem identidades.
Um grande empreendimento nos estudos de juventude foi o Projeto Juventude
capitaneado pelo Instituto Cidadania. Este projeto, realizado de 2003 a inícios de 2004,
reuniu análises de distintos instrumentos, acoplando a mais abrangente pesquisa
quantitativa nacional realizada sobre o tema. Novaes esteve a frente da organização do
primeiro material, intitulado ―Juventude e Sociedade: trabalho, educação, cultura e
participação‖. Para ampliar o debate, o Instituto Cidadania convidou diversos
pesquisadores para elaborar reflexões sobre diversos temas sobre a juventude brasileira.
Novaes novamente entra no cenário para aprofundar o tema sobre a juventude e religião,
publicando o artigo: ―Juventude, percepções e comportamentos: a religião faz a
diferença?‖.
Neste terceiro trabalho, Novaes revela a maturidade da reflexão ao longo desses
quase 10 anos de reflexão sobre o tema. Articula as categorias de juventude, religião,
sob a ótica dos marcos geracionais e, aprofunda ainda, ao tocar em temas importantes ao
se tratar da realidade juvenil. Faz uma importante caracterização, lendo os dados da
pesquisa, das diferentes agregações dos jovens: católicos, protestantes, mediúnicos e
pertencentes a outras religiões. Sem dúvidas, é um trabalho referencial nos estudos de
juventude e religião no país.
2.2 Importantes contribuições de estudo
Há ainda no circuito acadêmico, outras vozes profundamente significativas nos
estudos articulando o tema de Juventude e Religião que no contexto brasileiro vem
ganhando relevo.
Em 2003, é publicado ―Gritos silenciados, mas evidentes: jovens construindo
juventude na História‖ de Hilário Dick. Este trabalho não se trata propriamente da
análise da juventude a partir da religião, no entanto, é notável seu olhar ao traçar uma
história da juventude este tema tangencia sua obra. Uma perspectiva importante do livro
é olhar a história do ponto de vista do protagonismo juvenil. Ao longo da história,
inclusive história brasileira, Dick vai revelando eventos que traçam e articulam os
gostos, os modos de ser jovem e se configurar como juventude ao longo dos tempos. Ao
ler a história dos jovens no Brasil, Dick ressalta a importância da Igreja Católica na
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construção da representação e na formação do conceito da juventude no Brasil 144. Parte
da Ação Católica até as ações da Pastoral da Juventude na década de 1990 e como a
pertença dos jovens nesse movimento construíram participações políticas e sociais no
intento da construção de uma sociedade melhor.
Em São Paulo, Jorge Cláudio Ribeiro, coordena uma pesquisa importante no ano
de 2000 e coleta reflexões importantes no livro: ―Religiosidade Jovem: pesquisa entre
universitários‖ em 2009.
Neste livro, ele lê o envolvimento da juventude na incursão na religião a partir
do conceito de religiosidade, fundamentado em Simmel. Com isso, possibilitou ao
Ribeiro intersecções com sentido da existência, fé, religiões e rituais, representações do
transcendente e alteridade. Aprofunda com uma rica reflexão sobre a constituição da
juventude na contemporaneidade.
No Rio de Janeiro, se destaca as pesquisas da professora Silvia Regina
Fernandes que em 2010 publica: ―Jovens religiosos e o catolicismo: escolhas, desafios e
subjetividades‖. Este trabalho é fruto de suas pesquisas na pós-graduação (doutorado)
onde realizou uma pesquisa entre noviços e noviças de diversas congregações religiosas
da Igreja Católica. Neste trabalho, Fernandes amplia a reflexão adicionando o recorte de
gênero ao olhar tendências e percepções dos jovens candidatos à vida religiosa. Este
trabalho é o fruto de reflexões que extrapolam a pesquisa e ganha contornos em outras
pesquisas coordenadas pela autora.
Camurça, professor em Juiz de Fora-MG, tem nos oferecido importante balanço
referente ao tema Juventude e Religião. No livro ―Ser Jovem em Minas Gerais: religião,
cultura e política‖, Camurça e Tavares apresenta, no primeiro capítulo, ―Juventudes e
Religião no Brasil: uma revisão bibliográfica‖ um rico aprofundamento das literaturas
existentes no Brasil com nosso tema.
3. À guisa de conclusão
144 Ressalto este livro, mas DICK tem diversos trabalhos produzidos na década de 1990 refletindo sobre
protagonismo juvenil, formação política da juventude, pastoral da juventude e teologia da juventude.
Assim, a obra ―Gritos silenciados, mas evidentes‖ é fruto de engajamento e inserção no meio dos jovens
por vias acadêmicas (como professor na Unisinos) ou pela sua militância na pastoral da juventude.
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Evidentemente, percebemos que a pesquisa sobre Juventude e Religião começa a
ganhar contornos mais profundos, mesmo que de maneira incipiente. Isso porque a
escassa bibliografia revela uma escassez de pesquisas, relacionando estas duas
categorias conceituais: religião e juventude. Está identificação foi explicitada pela
pesquisa da Sposito (2009), que mapeou e realizou um balanço da produção de
conhecimentos discentes nos programas de pós-graduação em torno da temática da
juventude, de 1999 até 2006, nas áreas de Educação, Ciências Sociais (Antropologia,
Ciência Política e Sociologia) e Serviço Social. Nesse período estudado, localizou
apenas 17 teses e dissertações relacionadas ao tema juventude e religião, o que significa
1,19% do total de 1427 trabalhos encontrados. Destes, apenas 8 são oriundos da área
das Ciências Sociais.
Chama a atenção os poucos trabalhos e estudos sobre juventude e religião,
principalmente quando se percebe que a religião é cada vez mais estruturante enquanto
práticas sociais, onde assume cada vez mais um significado ímpar na vida de tantas
juventudes.
O segmento da juventude pesquisada ao longo desses anos no Brasil, revela as
pesquisas, não é indiferente à religião e sabe o que está falando quando fala sobre esse
tema. Há uma consciência religiosa clara e bem definida que se apresenta na forma de
uma identificação com a religiosidade, embora ser religioso, ter confissão religiosa, e
crer em símbolos religiosos não se localizam no mesmo ―lugar‖ no campo de reflexão
teórica.
Indescritivelmente, Juventude e Religião se configura como um quadro rico e
heurístico que precisa ser entendido e interpretado. Este trabalho não finaliza aqui, mas
revela o quanto é necessário que se caminhe na trilha desses estudos.
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