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SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 22 a 23 de maio de 2012 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Instituto Multidisciplinar CADERNO DE ANAIS SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 2 Seminário Olhares Sócio-Históricos sobre a Religião (1.: 2012: Nova Iguaçu, RJ) Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião: Caderno de Anais do Seminário Olhares Sócio-Históricos sobre a Religião. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Maio 22 – 23, 2012. / Autor: Comissão Organizadora do Seminário Olhares SócioHistóricos sobre a Religião / Organizado por Sílvia Regina Alves Fernandes. Nova Iguaçu: UFRRJ/IM, 2012. 258 p. ISSN: 2317-1278 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 3 EXPEDIENTE Realização Grupo de pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião Coordenação Geral Profª. Drª. Sílvia Regina Alves Fernandes Comitê Científico Prof. Dr. Ítalo Domingos Santirocchi Prof. Dr. Marcos José de Araújo Caldas Profª. Drª. Sílvia Regina Alves Fernandes Comissão Organizadora Anderson Leon Almeida de Araújo Bruno Marinho dos Santos Loura Carla Juliana Delecrode do N. Pires Elizabeth Santos de Souza Laís de Almeida Medeiros Larissa Oliveira Lindalva Trajano Maria Lúcia Alexandre Olga Djmila dos Santos Chiapim Editoração, Capa e Design Elizabeth Santos de Souza CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 4 APRESENTAÇÃO Este Seminário é fruto do acúmulo de reflexão acadêmica que vem sendo realizada no Instituto Multidisciplinar sobre a temática Religião. Desde o ano de 2007, quando da instalação do grupo de pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CNPq), sob a liderança da professora Sílvia Regina Alves Fernandes, a inserção de alunos do curso de História nos projetos de pesquisa desenvolvidos no grupo e o diálogo interdisciplinar realizado em sala de aula - sobretudo na disciplina Sociologia da Religião -, resultaram na proposta deste seminário. Objetivo Ampliar o conhecimento sobre os estudos em andamento ou concluídos de alunos e professores da UFRRJ que têm a Religião como foco de interesse acadêmico. Pretende-se ainda divulgar as atividades do grupo e delinear novas possibilidades de pesquisa nas áreas de Sociologia, Antropologia e História da Religião em níveis de graduação e Pós-graduação. Público Alvo: Alunos de Graduação e Pós na UFRRJ CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 5 SUMÁRIO PROGRAMAÇÃO .............................................................................................. 8 COMUNICAÇÕES ............................................................................................. 9 GRUPO 1: RELIGIÃO NA ANTIGUIDADE........................................... 10 Eduardo Belleza Abdala Miranda Apostasia solar: Juliano (361 – 363) e a retomada do culto solar ................... 10 GRUPO 2: RELIGIÃO NO MEDIEVO E NA MODERNIDADE.............. 14 Tatiane Santos de Souza Conversões forçadas e o discurso de resistência na obra de Maimônides (1135 – 1204) ............................................................................................................. 14 Marcelo Inácio de Oliveira Alves Escravidão africana e Igreja Católica: legitimação do cativeiro e a teoria cristã no governo dos escravos no Brasil colonial ..................................................... 26 Ana Paula de Souza Rodrigues O bem morrer no recôncavo da Guanabara. Freguesias de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu e Santo Antônio de Jacuntiga (Século XVIII) .................... 37 Cezar Augusto Sales Uchoa Júnior O padroado régio no formação do Império brasileiro ...................................... 52 Pedro Henrique Carvalho de Medeiros A defesa pela liberdade religiosa na Imprensa Evangélica (1864 – 1867)....... 68 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 6 Fernando de Azevedo Pereira O pseudocristianismo e suas conseqüências na História ................................ 84 GRUPO 3: RELIGIÃO NA CONTEMPORANEIDADE.......................... 91 Cleiton Machado Maia As técnicas xamânicas e o caso de xamanismo de tia Neiva do Vale do Amanhecer........................................................................................................ 91 Anderson Leon Almeida de Araújo e Leila Dupret Memória do samba e negras religiões – Musicalidade e Identidade ............. 106 Vinicius Esperança Lopes Favela, Exército e Religião: tensões e aproximações na ocupação militar do Complexo do Alemão ..................................................................................... 122 Marcelo Loura de Morais Ensaio sobre a Geografia da Religião na Contemporaneidade, Contribuições para os estudos sócio-históricos da Religião ................................................. 139 Anderson Leon A. de Araújo, Diego Hajime, Rainie V. Mendes, Rodrigo S. Pinto e Vanessa Moreno Casa de Convivência e Alquimia Espiritual – O Sagrado, a New Age e a Ayahuasca ..................................................................................................... 148 Alice F. Signes, Daiane E. Azeredo e Elizabeth S. de Souza Ritual Eucarístico: A devoção e a fé dos fiéis na comunidade paroquial de Santo Antônio da Prata .................................................................................. 171 Rodrigo Costa Silva Ética da Libertação: a descoberta de um mundo periférico ........................... 184 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 7 Gabriel do Nascimento Silva A construção e a concepção de evangelização da diocese de Nova Iguaçu. 195 Olga D. dos Santos Chiapim, Mayara C. de Souza e Silvia R. A. Fernandes A Igreja Católica e os meios de comunicação: o impacto das novas tecnologias ........................................................................................................................ 208 Carla Juliana Delecrode, Laís Medeiros, Larissa Bernardes, Maria Lúcia B. S. Alexandre, Monalisa Silva e Samanta Mourão de Oliveira Tradição e Modernidade: Um estudo de caso da relação entre a Irmandade de Nossa Senhor do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos e a Missa de Cura e Libertação. (Rio de Janeiro – 2011).................................................... 211 Allan do Carmo Silva Inserção da Religião na educação pública e os olhares de diferentes segmentos religiosos...................................................................................... 225 Luciano Marques da Silva Acolher e/ou Discriminar: A carta da congregação da fé sobre homossexualidade e a realidade das travestis na Baixado Fluminense........ 239 Carlos Eduardo da Silva Moraes Cardozo Juventude e Religião estudos de ontem e de hoje......................................... 248 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 8 PROGRAMAÇÃO Dia 22/05/2012 HORA: 17 às 18 h: Conferência de abertura Profª Drª. Eloisa Martín (UFRJ) HORA: 18:30 às 21:00 GT: Religião na Antiguidade sala 301– Bloco Multimídia Coordenação: Profº Drº Marcos Caldas (UFRRJ) GT: Religião na Contemporaneidade Sala 309 -Bloco Multimídia Coordenação: Profª Drª Sílvia Fernandes (UFRRJ) Dia 23/05/2012 HORA: 17h às 19h30 GT: Religião no Medievo e na Modernidade Sala 303 - Bloco Multimídia Coordenação: Profº. Drº Ítalo Santirocchi GT: Religião na Contemporaneidade Sala 309 -Bloco Multimídia Coordenação: Profª Drª Sílvia Fernandes (UFRRJ) HORA: 20:00 h - Mesa de encerramento. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 9 COMUNICAÇÕES Os artigos a seguir estão organizados de acordo com a ordem de apresentação dos trabalhos durante as sessões de comunicação. A revisão dos textos é de responsabilidade dos autores. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 10 GRUPO 1: RELIGIÃO NA ANTIGUIDADE APOSTASIA SOLAR: JULIANO (361–363) E A RETOMADA DO CULTO SOLAR Eduardo Belleza Abdala Miranda1 O presente trabalho tem por objetivo analisar o Culto Solar oriental em Roma no período do Imperador Juliano, mostrando como o Imperador recebe essa religião, e quais os objetivos dele retomando o Culto pagão após a tolerância cedida ao cristianismo pelo Imperador Constantino. O trabalho tem como fonte um hino de Juliano em reverencia ao deus Sol e uma fábula sobre o Imperador Constantino contada por Juliano, que estão presentes no livro ―The works of Emperor Julian‖ do autor Wilmer C. Wright. traduzido do grego para o inglês. É importante compreender como o Culto Solar chega a Roma e porque ele é adotado pelo império e como os romanos se adaptam ao Culto. Essas religiões orientais penetram no Império Romano através da: propagação de fiéis, comerciantes que entram em Roma, escravos levados a Roma de regiões como o Egito, por exemplo. As religiões do oriente, como o Culto Solar, ganham força no Império Romano devido à preferência da população por elas e principalmente pela primazia do Imperador. Tal preferência existe devido aos mistérios que os romanos vêem nesses cultos, além de transmitirem um amplo conhecimento, não apenas a nível religioso, mas o conhecimento de mundo, e também por essas crenças transmitirem uma relação mais direta com os deuses. Segundo a autora Paloma Aguado García, em seu livro ―Religión y Plítica Religiosa Del Emperador Caracalla‖ os sincretismos (ou seja, essa fusão entre as doutrinas religiosas) que ocorreram entre os romanos e as religiões orientais, fez com que os deuses representantes dessas crenças orientais fossem inseridos no Panteão romano. Em alguns casos o nome do deus se modifica para o latim e em outros o deus se adapta ao Panteão romano e permanece com a mesma titulação. Dessa forma os cultos vão se modificando para os rituais romanos Segundo essa mesma autora o Culto Solar foi adotado por alguns Imperadores antes de Juliano e antes da permissão resignada ao cristianismo. O culto ao deus Sol já 1 Graduando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 11 aparece em Roma desde os Imperadores Trajano e Adriano (século II d.C). mas se intensifica mesmo no Império de Cómodo (180 – 192) onde o Imperador inicia a criação de moedas com a imagem do deus Sol. O Império de Séptimo Severo (193 – 211) também é marcado pelo Culto, já que é Severo quem apresenta o deus Sol como o criador da luz, o deus inventor de todas as coisas, dando-lhe o apelido de Invictus. No entanto, o Culto Solar só foi livremente exercido a partir do Imperador Caracalla ( Marco Aurélio Antonino – 211 - 217). Nesse momento o culto ao deus Sol aparece com muita força na região oriental do Império. Caracalla teria sido o primeiro Imperador a realizar uma consagração oficial do Culto Solar, permitindo que fosse realizado. É Constantino o ultimo Imperador a elaborar moedas com a imagem do deus Invictus, e é Constantino quem tolera o cristianismo no Império, o que não acaba com os cultos pagãos, todavia fará com que os cultos orientais se enfraqueçam no decorrer do Império. É importante compreender que Juliano, pertencente à dinastia constantiniana, e com grande formação intelectual dedicou seu Império a retomar os cultos pagãos, por isso foi denominado mais tarde como o Apostata, ou seja, aquele que abriu mão de sua fé anterior. Sobre influencia de Imperadores anteriores ele procura retomar o Culto Solar que estava em declínio desde Constantino. Podemos perceber a grande adoração de Juliano ao deus Sol a partir de um hino elaborado pelo próprio Imperador, como já vimos. Nele o Imperador descreve o deus Sol como pai da humanidade, o criador, relatando que o deus se encontra no centro do universo movimentando o cosmos, é o que se chama de principio da autoridade. Juliano descreve o deus Sol como o ser mais importante do universo, e que todos devem realizar oferendas a esse deus, como, por exemplo, sacrifício de animais. Os outros deuses possuem suas funções, mas o poder de Invictus é superior. Em uma passagem do hino, Juliano mostra que o deus Sol é divino, e que o divino não se pode tocar, não tem cheiro e é invisível, mas é uma força que está presente. Todavia relata que o deus Sol possui uma forma visível, o disco solar, e ele menciona que é mais fácil acreditar no que é visível, por isso a supremacia de Invictus. Juliano apresenta cinco grandes características do deus: 1ª – O poder que ele tem de aperfeiçoar a luz, tornando visíveis os objetos do universo. 2ª – O poder de conduzir o universo, criando e o transformando. 3ª – ―O poder de unir todas as coisas em um todo, através da simetria dos movimentos para um único objeto‖. 4ª – Possui uma CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 12 posição central no universo. 5ª – É considerado um rei entre os deuses devido sua posição central. O Imperador Juliano adota esse culto devido ao atrativo social que essa religião possui para a população romana, como a purificação e a salvação. Para oferecer o culto ao deus, não é necessário ser um iniciado na religião, qualquer um pode oferecer o culto, isso facilita a atração de fiéis. Esses fiéis estão presentes nos campos, onde se encontram os pagãos, já que nas cidades o cristianismo está em grande crescimento. Juliano procura realizar melhorias na administração do Estado acabando com as negligencias, procura melhorar as condições de vida diminuindo a fome, e sua principal ideologia que era restaurar o culto solar no Império Romano, que como já vimos estava em decadência desde Constantino. Esses feitos é o que ele chama de ―reparação dos tempos felizes‖ (Felicium Temporum Reparatio). Para que se tenha uma analise mais profunda sobre a importância do culto o trabalho retoma o período do Faraó Akenaton (1351 – 1334 a.C.), já que seu reinado, apesar dos poucos estudos sobre ele, foi marcado por sua adoração a um único deus, Aton, o deus do disco solar, desafiando uma tradição religiosa milenar ao tentar estabelecer uma única divindade aos egípcios. Os estudos sobre Akenaton são recentes, e novas teorias sobre seus feitos estão sendo elaboradas, de acordo com a mais recente teoria a adoção de um único deus não tem um caráter religioso mais sim político. O que este Faraó pretendia era acabar com o culto a Amo, a deidade mais importante desse período, fazendo com que o corpo sacerdotal desse deus perdesse o poder sobre o império. Segundo novas teorias o que Akenaton pretendia era restaurar um período em que os Faraós eram considerados divinos, sem sofrer qualquer questionamento, dessa forma ele seria considerado o representante do deus Aton, a única deidade na terra, seria o próprio deus na forma humana, o que daria a ele um poder absoluto, como ocorria em tempos anteriores. Ele chega a criar uma cidade religiosa denominada Aketaton (horizonte de Aton), esta era uma cidade política e cultural, e um templo de devoção ao deus Aton. O que se pretende com essas descrições do período de Amenófis IV (Akenaton), não é relacionar o que acontece no Egito durante seu reinado com o que aconteceu no Império Romano no período de Juliano, mas sim mostrar quem em ambos os casos o culto a uma divindade solar tem grande importância na política, na economia, na cultura. Nem todos os acontecimentos se equivalem, Juliano não cria uma cidade CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 13 religiosa, o mais próximo foi dar a cidade de Antióquia um caráter cultural e religioso. Juliano também não impõe a religião no Império como faz Akenaton no Egito. Sendo assim o presente trabalho foi elaborado pensando uma hipótese, a de que Juliano estaria buscando transformar o Império em uma monarquia. Juliano estaria pretendendo ser cultuado como um deus, o que lhe colocaria como um soberano, características de uma monarquia divina, mas não buscando um ideal religioso, e sim político, centralizando o poder do Império nas mãos dele. Quando se apresenta neste trabalho as características do reinado de Akenaton, não há pretensão de compará-lo ao Império de Juliano, mas sim demonstrar que Juliano não teria sido, hipoteticamente falando, o primeiro a buscar o poder político por meio do Culto Solar, ou seja, chegar ao poder político, através do poder religioso. Referencias Bibliográficas BASLEZ, Marie-France. “Juliano, a esperança dos pagãos”. Arquivos História Viva, volumen 5: os melhores artigos sobre Roma / Liliana Pinheiro. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. GARCÍA, Paloma A. “Religión y Política Religiosa Del Emperador Caracalla”. Espanha. Universidad Complutense.2003 JACQ, Christian. “Nefertiti e Akhenaton: o casal solar”. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p.238. REEVES, Nicholas. “Akenaton, o renegado filho do sol”. BBC Revista História. Egito e outras civilizações antigas. edição nº 8, 2010. p.30-33. SHAFER, Byron E. “As religiões no Egito antigo: deuses, mitos e rituais domésticos”. São Paulo: Nova Alexandria, 2002. WRIGHT, Wilmer C. “The Works of the Emperor Julian” London: Willian Heinemann. New York: The Macmillan CO. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 14 GRUPO 2: RELIGIÃO NO MEDIEVO E NA MODERNIDADE CONVERSÕES FORÇADAS E O DISCURSO DE RESISTÊNCIA NA OBRA DE MAIMÔNIDES (1135-1204). Tatiane Santos de Souza2 Resumo: Este trabalho busca viabilizar uma maior reflexão quanto aos conflitos religiosos e sociais entre judeus e muçulmanos no medievo. As Epístolas de Rabi Moshe ben Maimon (Maimônides), escritas entre 1167 e 1204, são fontes históricas que até hoje não se tornaram alvo de análises mais profundas pela historiografia medievalista, referente a temática das conversões. Neste trabalho, me proponho a analisar o discurso rabínico sobre a intolerância religiosa contra os judeus a partir do século XII, num período de estreitamento e transformações político-sociais nos territórios de domínio muçulmano. Palavras-chaves: Maimônides – Resistência – Discurso Entre os extensos conjuntos textuais rabínicos produzidos na Idade Média, a “Epístola do Iêmem”3 representa um dos pilares da literatura sefaradí sobre a temática da conversão. Nesta documentação epistolar redigida por Maimônides é um conjunto de proposições a judeus aflitos perante a série de medidas radicais de um novo governo muçulmano: almôadas e os almorávidas. Ao longo do século XII, o poder islâmico dos almôadas (1130-1269), cuja dominação incluiu Marrocos, Argélia, Tunísia e Espanha Muçulmana realizou diversas políticas de conversão forçada de judeus. 2 Graduanda em História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ, ICHS, DHIS. Bolsista de Iniciação Científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa do estado do Rio de Janeiro - FAPERJ. 3 Para esta análise fizemos uso da edição brasileira, traduzida por Alice Frank. MAIMÔNIDES, Moses. A Epístola do Iêmen. São Paulo: Maayanot, 1996. p.5. Esta epístola encontra-se também publicada, em inglês, no mesmo volume do ―Tratado sobre o Extermínio‖. MAIMONIDES. EPISTLES OF MAIMONIDES: CRISIS AND LEADERSHIP. Philadelphia: Jewish Publication Society of America, 1985. Discussions by David Hartman. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 15 Diante das adversidades, muitos judeus abriram mão de confortos pessoais, propriedades e bens, e escaparam às perseguições. Outros se submeteram aos juramentos de fidelidade a Maomé e passaram a externar, ainda que de forma precária, a fé na religião dominante, mantendo secretamente a fé judaica. Ao escrever esta epistola, Rabi Moshe ben Maimon, mais conhecido como Rambam4, não se preocupou apenas com questões filosóficas ou legislativas. Ele se engajou de maneira profunda, na batalha pela sobrevivência das comunidades judaicas ameaçadas de desaparecimento, fazendo um projeto discursivo de definição dos grandes alicerces da religião e crenças judaicas, a fim de oferecer aos seus contemporâneos judeus os meios necessários para resistir aos excessos populares e permanecerem crentes em sua fé. Escrita originalmente em árabe, língua de seus destinatários, exceto pela breve introdução em hebraico, esta carta disserta sobre um possível antigo ódio ao Povo Judeu e os motivos, creditados pelo rabino, de várias perseguições sofridas, a eternidade e a peculiaridade de Israel e os fundamentos da fé. Tudo isto a fim de recolher e apresentar formas de resistência ao líder islâmico. Proporcionando palavras de consolo, Rambam, se aproxima de seus irmãos de fé, ao dizer que o mesmo que está acontecendo no Iêmen, ocorreu nas terras no Marrocos, que o obrigou a fugir, e exilar em terras longínquas. Esta atitude do líder islâmico assustou e atemorizou toda a comunidade judaica. Rabi Moshe ben Maimon, Musa Ibn Maimun ou Maimônides, nascido em Córdoba, em 1135, viveu junto a sua família parte desse momento de estreitamento das relações sociais da nova politica rigorista muçulmana, tendo que fugir de Córdoba para outros territórios muçulmanos onde ainda existia a politica de proteção aos dhimmis e tal movimento rigorista não imperava. Para verticalizar esta temática buscaram-se teorias que esclarecem, direta ou indiretamente, as bases da formação cultural da Espanha visigoda, de forma a identificar elementos que sustentassem o estabelecimento de mudança, como a entrada dos muçulmanos nesse território, e como posteriormente com os almorávidas e almôadas, 4 Entre alguns círculos rabínicos medievais, Maimônides foi conhecido como Rambam, um acrograma de ‗Rabi ‗M‘oshe ‗B‘en (filho de) ‗M‘aimon. Ao passo que universalmente ele é chamado de ―Maimônides‖, a forma grega de ―o filho de Maimon‖. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 16 isto foi reorganizado. Desse modo, devido à chegada dos muçulmanos à península ibérica visigoda, as novas formas políticas, principalmente com aqueles que pertenciam a outros grupamentos sociorreligiosos, tornaram este lugar um espaço incomum e de situação singular, segundo historiadores. E de fato a sociedade hispânica nos séculos de dominação muçulmana fora singular, em relação às construções discursivas, errôneas, que acreditavam na existência uma sociedade cristã europeia homogênea e monolítica. A simples possibilidade de indivíduos de religiões monoteístas diferentes poderem habitar um mesmo espaço sem conflitos fora algo diferenciado naquele contexto, onde o mundo externo vivia tempos cruzadísticos e indivíduos das três religiões, das três culturas se enfrentavam, lutavam, matavam e morriam em conflitos sangrentos em outras regiões. Talvez justamente por esta questão externa, na discussão historiográfica – principalmente segundo Claudio Sanchez Albornoz5- a Espanha emerge como um enigma histórico, um local onde é possível uma convivência religiosa, uma troca de experiências e cultura de forma receptiva, servindo de exemplo para a posteridade. Pela formação de uma sociedade diversa, multicultural e plurirreligiosa, generalizou-se a ideia de uma Espanha - ou Al-Andaluz como ficara conhecida entre os muçulmanos- homogênea e integracionista. Entretanto ao identificarmos esta sociedade incomum devemos nos dispor da crença superficial de harmonia, e atentarmos para as problemáticas desta convivência cultural, social e religiosa. Não podemos negar que a primeira vista existiram processos históricos que justificam, até certo ponto, a ideia de uma coexistência pacifica entre os distintos grupos religiosos dentro de um mesmo marco sociopolítico, processos estes utilizados para forjar a imagem de uma sociedade tolerante, nos moldes que temos hoje por tolerância. Segundo Francisco Garcia Fitz, (FITZ,2003. p. 13-56.) em muitas ocasiões tais processos históricos foram interpretados como sinais de aceitação e integração das minorias sociorreligiosas, fomentando teses que insistem em afirmar a concretude de uma Espanha aberta e flexível que reconhecia e aceitava a diferença. 5 Sobre Claudio Sanchez Albornoz, um dos mais notáveis historiadores espanhóis. A obra de Quesada promove uma releitura das teses de Claudio Sanchez Albornoz. Apud: ― Es todavia España um enigma histórico?. QUESADA, Miguel Angel Ladero . Lecturas sobre La España Histórica. Madrid : Real Academia de la Historia, 1998. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 17 Os vestígios que nos permitem estudar as características das relações entre muçulmanos, judeus e cristãos – como as cartas de Maimônides- não nos confirmam a imagem cristalizada de uma sociedade integracionista e pacifista. Os comportamentos que foram interpretados como indícios de harmonia e respeito apenas representam realidades fragmentadas e desconexas oferecendo uma visão distorcida de tais momentos históricos. Portanto nessa compreensão (FITZ,2003. p. 13-56.) seria correto afirmar que a visão de uma Espanha ou Andaluzia medieval tolerante e igualitária sobretudo, tornar-se-ia utópica, e porque não dizer, mitológica. Um fator inicial que pode ser considerado fundamental para os que defendem o mito da tolerância seriam as atitudes políticas e econômicas adotadas pelos governantes muçulmanos. De acordo com preceitos islâmicos, a Sha‟aryia6, garantia aos povos monoteístas proteção territorial interna e externa. Assim os dhimmis7 (―povos do livro‖) como eram chamados, poderiam circular socialmente sem sofrerem perseguições. Sendo árabes muçulmanos e berberes islamizados a minoria na população andaluza seria proveitoso manter viva a força econômica das populações já residentes. Esta dita tolerância não comportou uma mistura ou assimilação das religiões. Aparentemente, pelas prescrições legais aos dhimmis judeus e cristãos puderam viver, trabalhar e ainda manter suas práticas religiosas secretamente sob domínio islâmico. Contudo essa convivência era tolhida por restrições no aspecto politico, econômico e religioso. Tanto cristãos como judeus encontravam-se de diversas formas subjugados, e estas restrições os conduziam à condição de excluídos e inferiorizados. As complicadas estruturas jurídicas e sociais dessa difícil convivência ofereciam uma ampla superfície para conflitos de todo tipo. A tolerância, mesmo sendo pautada em lei corânica, não se fundamentava nas premissas do moderno conceito de tolerância. A tolerância religiosa tem hoje em dia seu fundamento, seja na indiferença 6 Conjunto de princípios, leis e preceitos morais estabelecidos por governantes e pensadores do Islã, segundo Albert Hourani. 7 Transliterando do árabe ahl al-ḏimmah / dhimmah, "o povo da dhimma" . Ser um Dhimmi é estar num contrato teórico estabelecido com base numa doutrina islâmica que concede direitos e responsabilidades limitadas aos seguidores do Judaísmo, Cristianismo ("Povos do Livro") . Permitindo a estes indivíduos o direito de residência em território islâmico, em troca do pagamento de determinadas taxas. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 18 religiosa, seja no respeito à dignidade e à liberdade da pessoa humana; ambos esses, conceitos alheios a uma visão medieval do mundo. Na Espanha medieval houve uma tolerância política que nunca foi ditada por reverência às outras religiões ou por respeito à liberdade do outro, mas, simplesmente, pela necessidade de integrar dentro do sistema político uma realidade social fática. Desse modo, por bastante tempo na Espanha, em Andaluzia, as relações entre dhimmis e muçulmanos transcorriam, mesmo com todas as restrições, com certa fluidez em questão da ausência de exigência de apostasia ou exilio. Todavia estas relações sociais não devem ser tomadas como sinônimos de relações harmônicas e igualitárias, e sim relações de coexistência diferenciada, pois a segregação que existia nos territórios muçulmanos era considerada branda se compararmos a segregação tida como comum nos territórios da cristandade ocidental. Com o passar do tempo, durante as épocas de dominação almôada e almorávida na península, as relações com os dhimmis se estreitaram. O movimento de invasões almôadas e almorávidas, aos territórios muçulmanos antes em poder da dinastia Omíada8, mudaram o status dos dhimmis, que de protegidos passaram a perseguidos. (SANCHEZ, 1994.) Os judeus e cristãos antes protegidos do exílio e autorizados a permanecer em sua fé, foram submetidos desde finas do século XI a uma pressão até então desconhecida. Os almorávidas entraram na península ibérica em 1040, sendo estes originariamente uns monges-soldados saídos de grupos nómadas provenientes do Saara, estabeleceram-se e governaram até 1147. Insatisfeitos com a forma em que se organizava o Islã neste território, as almorávida obtinham uma politica rigorista do Islã. Posteriormente, insatisfeitos com a tentativa almorávida, por volta de 1125 um novo poder estava a surgir no Magrebe, o dos Almôadas, surgidos da tribo dos Zanatas, que conseguiram com um novo espírito de aplicação rigorosa da lei islâmica, já relaxados os costumes dos Almorávidas, impor-se ao poderio almorávida após a queda da sua capital Marrakesh em 1147. (COLLINS, 1986.) Com a pretensão de reestabelecer o islã no verdadeiro caminho e inaugurar o reino dos céus na terra, os muçulmanos, segundo Albert Hourani (HOURANI, 2006.), 8Os Omíadas foram uma dinastia de califas conhecida como Califado Omíada. Em Córdoba (929-1131) CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 19 em sua maioria de origem berbere, não toleravam nenhum desvio de sua versão própria do islã. Para este movimento messiânico e milenarista, a presença de judeus e cristãos em territórios muçulmanos estaria influenciando os costumes mais ínfimos dos fiéis do islã, consequentemente isso se desdobraria numa infração a religião e distorção, pois para eles, mesmos com todas as restrições e condição inferiorizadas, os dhimmis representavam uma ameaça ao islã justamente pelos fiéis estarem em contato a todo o momento com aqueles que negavam o verdadeiro Deus e a verdadeira religião, era inaceitável dividir território com aqueles que desprezavam Deus e seu Profeta. Os muçulmanos insubmissos eram implacavelmente expurgados ao passo que aos judeus e cristãos negava-se a tolerância recomendada pela Sharia e os impunha uma escolha: a conversão ou exílio. Desse modo foi a partir da identificação dessas relações sociais, políticas e religiosas, de acordo com a nova etapa 1140 de dominação muçulmana de origem berbere - dominação almôada - que fora feita a seleção das cartas. Esta baseada em princípios de referência temática: conversões forçadas e as medidas de resistências. Tal análise funcionou em duas etapas, de acordo com a metodologia sugerida por Durval Muniz de Albuquerque (ALBUQUERQUE, In: PINSKY, 2011, p 223- 249), análise externa e análise interna, da produção discursiva. A análise externa implicou nas relações com as condições históricas que possibilitaram a produção daquele discurso, ou seja, o questionamento sobre o contexto daquela fala, as relações sociais, econômicas e políticas. Já a análise interna tratou de considerar os discursos pertencentes a uma dada ordem discursiva, historicamente datada, e que possuem suas próprias regras de constituição e produção, ou seja, possuem sua própria “(...) estrutura interna que precisa ser analisada”.(ALBUQUERQUE, 2011, p. 247) Como já mencionado, Maimônides recebeu apelos de diversas comunidades judaicas submetidas à conversão ao Islã, solicitando seus conselhos sobre sua situação religiosa, deveriam resistir, deveriam fugir ou deveriam aceitar a fé islâmica? Com a ameaça de conversão forçada, surgem problemas que aparentemente parecem apenas religiosos, mas são também problemas sociais. A partir daí nota-se o pensamento racionalista na epístola de Maimônides, que procura resolver o problema da conversão através da fuga. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 20 [Aqueles que estão sendo forçados à conversão] devem fugir e continuar a ser fiéis a Hashem. Devem se refugiar-se no deserto e esconder-se em lugares desabitados. Eles não devem pensar na separação da família e dos amigos ou ficar preocupados com a perda de rendimentos. Isto significapreservar a Torá em sua totalidade. (...) Com certeza quando um judeu é impedido de seguir a Torá e a fé divina ele deve fugir para um outro lugar. (MAIMÔNIDES, 1996, p.21) Permanecer no lugar onde a apostasia tornar-se-ia inevitável seria o mesmo que transgredir aos preceitos da fé judaica. No texto, Maimônides não aborda explicitamente a questão da judaização, apenas recorre à ideia de que mesmo um convertido que se veja impossibilitado de sair do local da perseguição, não estaria livre para pecar. Um converso não seria, por assim dizer, isento de punições por transgressões religiosas que venha a cometer contra o Judaísmo. Indiretamente, a todos aqueles que permaneceriam nas regiões onde a conversão fosse aplicada, o Rabino solicita a prática da judaização da melhor forma possível. Judaizar não representaria apenas uma estratégia de resistência, mas, sobretudo, uma obrigação do judeu perseguido e convertido à força. Nesta mesma epístola, Maimônides num discurso inflamado hostiliza outras religiões e enaltece a sobrevivência do Judaísmo a diversos domínios políticos opressores que tentaram extirpar o povo judeu, e recorrendo a episódios históricos, constrói um cronograma de reinos e dinastias que haveriam tentado destruí-los, e que por efeito da providência divina, foram, nas palavras do rabino, “decadentes e infelizes” (MAIMÔNIDES, 1996, p.9). Maimônides entendia que o Judaísmo, enquanto perseguido, constituía-se inabalável. Amalek, Sisera, Sancheriv, Nabucodonosor, Tito, Adriano e muitos outros semelhantes tentaram derrubar a nossa religião pela força, pela violência, e pela espada. (...) O segundo grupo consiste nos mais inteligentes e mais educados entre as nações, como os romanos, persas e gregos. Eles também tentaram derrubar a nossa religião e erradicar a nossa Torá, mas eles fazem por meio de argumentos e perguntas que imaginam. Eles tentam destruir a Torá e apagar seus vestígios com os CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 21 seus escritos. Os tiranos tentaram fazer assim com suas guerras.( MAIMÔNIDES, 1996, p.8) Ao difundir o ideal de que qualquer política dominadora que visasse aniquilar o povo judeu seria destituída pelo divino, podemos notar que o discurso de Maimônides é forjado numa lógica determinista, onde o pensamento escatológico e fatalista seriam uma constante. E para criar essa trajetória determinante de sucessivas vitórias, entre Oriente e Ocidente, Maimônides se valeu de diferentes eventos de ―subjugo‖ e ―resistência‖ vivenciados em diferentes épocas por comunidades judaicas diversas. Nenhuma dessas estratégias terá sucesso. Hashem declarou através do profeta Isaías que Ele destruíra todos os armamentos de qualquer déspota ou opressor que tenha a intenção de destruir a nossa Torá e erradicar a nossa religião por meio de armas de guerra. Da mesma maneira, quando um disputante vier contestar com o propósito de enfraquecer a nossa religião, ele perderá a discussão. A sua teoria será demolida e refutada. (...) Eles somente estão aumentando sua labuta e esforço, enquanto a estrutura permanece tão forte como nunca. (MAIMÔNIDES, 1996, p.9) Notamos então a intenção desta retórica, sendo seu objetivo relembrar a estes judeus, que estavam vivendo situações de subordinação com sob supostos riscos de vida, que teria havido outros que passaram por situações semelhantes, e não teriam abandonado a sua fé. Através de uma narrativa comparativa e retórica baseada na dicotomia de um resgaste de um passado heroico, de judeus resistentes que sofreram com governantes opressores, e de uma positividade do sofrimento, como se o sofrimento fosse princípio para uma exaltação posterior - para que possa existir e prevalecer uma trajetória vitoriosa-, o ponto culminante é fortalecer a fé destes judeus, estimula-los a resistir em tempos considerados pelo rabino, difíceis. ―Queridos irmãos sejam fortes e corajosos. Depositem sua confiança nessas Escrituras verdadeiras. Não se deixem desencorajar pelas perseguições que continuadamente acontecem a vocês. Não se assustem pela força do seu inimigo e a fraqueza do nosso povo.‖ (MAIMÔNIDES, 1996, p.7) A todo o momento durante a leitura da fonte, das cartas nesse caso, percebese que Maimônides deixa claro seu desgosto e descontentamento com as atitudes do CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 22 almôadas e almorávidas, se reportando ao período emiral Omíada onde os judeus não eram obrigados a conversão. Você escreve que o líder revolucionário no Iêmen forçou os judeus a se converterem ao Islão. Ele obrigou os habitantes das regiões sob seu controle a abandonarem sua religião. Isto é exatamente como fez o líder árabe nas terras de Marrocos. Esta notícia nos assustou e fez toda a nossa comunidade estremecer e ficar indignada. Com motivo, porque são realmente péssimas as noticias e farão tinir ambos os ouvidos de quem as ouça. Sim, os nossos corações estão fracos e nossas mentes confusas por causa destas terríveis calamidades que trouxeram conversão forçada ao nosso povo, alcançando duas extremidades do mundo, o ocidente e oriente. O povo judeu está no centro e sob ataque de ambos os lados. (MAIMÔNIDES, 1996, p.1) O tom de denúncia em sua escrita e o discurso inflamado é de grande relevância, justamente por ser uma epístola a circulação desta documentação previa um destino, e este destino era coletivo, pois o rabino fora solicitado por outros rabinos que se reportariam a suas comunidades. Portanto para enfrentar o problema da conversão e resistir, seria necessário criar um sentimento de unidade, e Maimônides utilizara a retórica a favor de seus objetivos, da exaltação da predestinação do povo judeu a sobreposição de sofrimentos, e ao mesmo tempo também constrói um discurso denunciador contra o povo opressor. D-us nos distinguiu do resto da humanidade quando nos deu Sua Torá por Moisés. Isto não aconteceu porque merecemos, mas sim, foi um ato de bondade Divina, porque nossos pais reconheceram Hashem e O veneraram. (...) Hashem nos fez especiais por suas leis e mandamentos. As outras nações reconhecem a nossa superioridade porque somos guiados pelos Seus princípios e estatutos. Como resultado as nações do mundo ficaram com muita inveja. Por causa da Torá todos os reis da terra desencadearam o ódio e a inveja contra nós. A sua verdadeira intenção é guerrear contra Hashem, mas ninguém pode se opor ao Todo-Poderoso. Desde os tempos da outorga da Torá, todo rei idólatra, não importa como tenha chegado ao poder, colocou CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 23 como seu principal objetivo a destruição da Torá. (MAIMÔNIDES, 1996, p.8) De um modo ideológico combativo, o Rambam, se propõe a esclarecer argumentos errôneos da parte dos muçulmanos que procuram usar a própria Torá para afirmar a legitimidade da existência superior de seu profeta. Para ele, Mesmo convertidos, os judeus não só poderiam como deveriam retornar ao Judaísmo, sem que tais conversões fossem interpretadas como apostasia ou idolatria. A situação tornava-se ainda mais iminente quando se tratava de processos de conversão forçada. Para Maimônides, o Rambam, estes argumentos não passam de distorções forjadas para trazer duvida ao seio da comunidade judaica. Ele ridiculariza os argumentos, identificando resposta para todos os argumentos, a luz da Torá, afirmando que os muçulmanos por não terem encontrado nenhuma alusão a Maomé na Torá, usaram um fraco argumento: de que os judeus teriam alterado a Torá. Essa discussão se dá em torno do curioso relato de Gênesis 17:20, os muçulmanos alegam que a Torá afirma a legitimidade de Maomé por descendência de Ismael, entretanto, Maimônides explica que Isaac era o herdeiro legítimo, afirmando, portanto, a superioridade do povo judeu descendente de Isaac, enquanto a Ismael, mesmo sendo abençoado fecundamente, não seria reconhecido e proclamados pelas suas qualidades de retidão e perfeição humana. Toda essa retórica apoiada nas Escrituras da Torá é para engrandecer e fortificar a fé dessas comunidades judaicas, e desacreditar qualquer argumento antijudaico. Hashem que é a Verdade, zomba e os ridiculariza, porque com sua inteligência fraca tentam atingir uma meta inalcançável. (...) Somente uma criança que não sabe nada dessas religiões poderia comparar a nossa fé dada por D‘us, a teorias fabricadas pelo homem. (...) As outras religiões que são parecidas com a nossa não tem um significado profundo, são histórias e contos imaginários nos quais seu fundador tenta se glorificar. Os sábios percebem a farsa. (MAIMÔNIDES, 1996, p.11) Na relação saber-poder que ora percebemos, as posições política e religiosa de Maimônides como mestre de corte e rabino, por si mesmas, já representariam instrumentos de legitimação de seu lugar discursivo, creditado pelas comunidades CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 24 justamente por ostentar uma titulação, onde seu saber era reconhecido. Este saber lhe concede o exercício de poder para atuar na vida dessas comunidades através de códigos talmúdicas de conduta9 e epístolas, sendo estas construídas num discurso apologético, apoiado numa hostilização do povo opressor e em favor de uma resistência judaica. Através da análise do corpus documental epistolar de Maimônides, fica evidente que este pretendeu orientar e dar assistência religiosa e social a essas comunidades judaicas iemenitas – que, pelo teor do discurso rabínico se mostravam aflitas e atônitas, colocando-se de forma crítica e voraz contra o uso da religião como instrumento de opressão, de violência e dominação sobre os outros. Portanto, a Halachá que orientou as reflexões rabínicas em todo o Ocidente preservaria também, no Judaísmo Ibérico Medieval, os princípios da livre crítica e do questionamento sobre as ordens políticas. O converso, à luz desta mesma literatura, constitui-se de fato num problema religioso para as nações que o criaram, comprovando a insolubilidade da questão judaica no medievo. Referência Bibliográfica: Fonte: MAIMÔNIDES, Moses. 1135-1204. A epístola do Iêmen /Maimônides. Tradução Alice Frank - São Paulo :Maayanot, 1996 Obras: COLLINS, Roger. España en La alta edad media. Barcelona: Editorial Crítica, 1986. FITZ, Francisco García. Las minorias religiosas y la tolerância em la Edad Media hispânica: ¿ Mito o realidade ? In: SANJUAN, Alejandro Garcia. III Jornadas de cultura islâmica: Tolerancia y convivência étnico-religiosa em La península ibérica durante la Edad Media. Huelva: Universidade de Huelva Publicaciones, 2003. HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. São Paulo: Companhia da Letras, 2006. 9 Tais códigos de conduta são compreendidos através de Halachá, escritos rabínicos e talmúdicos relacionados aos costumes e tradições, servindo como guia do modo de viver judaico. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 25 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A dimensão retórica da historiografia. Discursos e Pronunciamentos. In: Carla Bassanezi Pinsky (Org.) et. Aliae. O historiador e suas Fontes. São Paulo: Editora Contexto, 2011. p.223-249. LEWIS, Bernard. Judeus do Islã. Rio de Janeiro: Xenon Editora, 1990. QUESADA, Miguel Angel Ladero. Lecturas sobre La España Histórica. Madrid : Real Academia de la Historia, 1998. SANCHES, Maria Guadalupe Pedrero. Os judeus na Espanha. São Paulo: Editora Giordano, 1994. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 26 ESCRAVIDÃO AFRICANA E IGREJA CATÓLICA: LEGITIMAÇÃO DO CATIVEIRO E A TEORIA CRISTÃ NO GOVERNO DOS ESCRAVOS NO BRASIL COLONIAL Marcelo Inácio de Oliveira Alves10 Resumo: Os objetivos desse trabalho são, primeiro, discutir a visão da Igreja Católica sobre a escravidão africana no Brasil Colonial no tocante ao seu discurso de legitimação do cativeiro africano e aos instrumentos de inserção subordinada do (ex)escravo na sociedade colonial brasileira. Segundo, analisar a Teoria Cristã dos senhores no governo dos escravos, postulada pelos jesuítas setecentistas Antonil e Benci, na qual constam as obrigações que o senhor tem para com o servo: panis, et disciplina, et opus servo. O pão ao servo para que não desfaleça, panis, ne succumbat; o ensino, para que não erre, disciplina, ne erret; e o trabalho para que não se faça insolente, opus, ne insolescat. E atentando que tal discurso consta na Bíblia (Eclesiásticos, 33, 25-33). Eis a base da legitimação da escravidão africana e da dominação senhorial através do viés religioso. Palavra-chave: Escravidão; Igreja Católica; Teoria cristã no governo dos escravos. Introdução: a sociedade de Antigo Regime nos Trópicos Ao longo desse artigo buscaremos atentar para os fatores de legitimação da escravidão africana os quais se relacionam com o discurso proposto pela igreja católica na América portuguesa. A expansão do império português é acompanhada pelo sistema de Cristandade: um conjunto de relações entre Estado e Igreja pelas quais ambos se legitimam no interior de uma sociedade (Oliveira, 2007, p. 356). E como a escravidão era fundamental para a lógica de seu funcionamento, logo, a Igreja teria de legitimar o regime escravista o tornando, então, um componente do processo de construção de tal Cristandade colonial. 10 Mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPHR/UFRRJ). CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 27 Entender os valores da sociedade do Antigo Regime colonial e a concepção de mundo é fundamental. Na América lusa, ―as populações eram ordenadas pelos preceitos da segunda escolástica, com as suas idéias de monarquia católica, autogoverno, sociedade corporativa e de casa.‖ (Fragoso, 2010, p. 80) Tal vertente foi fundamental para o funcionamento ideológico da sociedade de Antigo Regime, cujos códigos cognitivos e as relações pessoais são calcados pela religião católica (Hespanha & Xavier, 1993). Esse pensamento de matriz católica, através do qual pessoas pensavam a si próprias e formavam a concepção de mundo, imperava no século XVIII fluminense. Importante perceber que, mesmo sendo uma sociedade predominantemente de iletrados, não era necessário saber o que significa segunda escolástica, bastava compreender a visão de mundo da época. A sociedade de Antigo Regime do Império português era polissinodal e corporativa, ou seja, hierarquizada em todos os segmentos – inclusive dentro da escravaria – cujas diferenças são resguardadas pelos participantes. Todos compartilham essa visão de uma ordem natural perpétua com uma lógica divina. A partir dessas diferenças o mundo era ordenado (Hespanha, 2010). De acordo com o pensamento medieval, na realização do destino cósmico11, cada parte do todo tem sua função diferente e cada um coopera de maneira diversa. Logo, todos os órgãos da sociedade eram indispensáveis. A criação é ordenada visando o fim comum. Ligando-se a isso está, então, o impedimento de um poder político único: se a sociedade caminha repartida e hierarquizada em que cada um tem sua função no destino cósmico, assim o é o poder político. Desse modo, Hespanha faz alusão às monarquias católicas, corporativistas no sentido de que a cabeça é o rei, de onde emana a vontade e as ordens que passam por todo o reino, ou seja, o corpo. Cada órgão é possuidor de sua autonomia, autoregulação e função específica, mas também o são as instituições do reino. Em suma, as ordens vêm do rei, mas as instituições – religiosas, públicas, familiares, comunitárias e grupos profissionais – têm autonomia para cumprilas ou adaptá-las. O rei (a cabeça) não pode impor-se ou limitar as prerrogativas ou 11 O pensamento político e social medieval é sobranceado pela idéia de existência de um ―cosmos‖, de uma ordem universal que abarca os homens e o mundo, guiando cada um dos seres criados para um objetivo último, e o pensamento cristão o identificava como o próprio Criador. Então, sem tomar como referência a essa causa última, derradeira, a esse fim que os transcendia, os mundos humano e físico não seriam inteligíveis. (HESPANHA, A. M. & XAVIER, A. B., 1993, p. 32) CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 28 funções dessas instituições – órgãos do corpo –, e funciona como representação da sociedade. Assim configuram-se as monarquias católicas de Antigo Regime, cujo autogoverno expressa-se, no âmbito holístico, através da representação corporativa da sociedade e do poder; na prática, segundo Hespanha e Xavier, o poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem governada, esta partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-juridica (iurisdictio) dos corpos sociais, embora esta autonomia não devesse destruir a sua articulação natural (cohaerentia, ordo, dispositio naturae) – entre a cabeça e a mão deve existir o ombro e o braço, entre o soberano e os oficiais executivos devem existir instâncias intermédias. A função da cabeça (caput) não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio propria), mas a de, por um lado, representar externamente a unidade do corpo e, por outro, manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio (ius suum cuique tribuendi), garantindo a cada qual o seu estatuto (‗foro‘, ‗direito‘, ‗privilégio‘); numa palavra, realizando a justiça. E assim é que a realização da justiça – finalidade que os juristas e politólogos tardomedievais e primomodernos consideram como o primeiro ou até o único fim do poder político – se acaba por confundir com a manutenção da ordem social e política objectivamente estabelecida. (Hespanha & Xavier, 1993, p. 32). Evidentemente, em meio a essas concepções, ―a autoridade dos senhores sobre os escravos, forros, lavradores livres – os moradores dos engenhos e de suas cercanias – foi construída,‖ (Fragoso, 2010, p. 80), pois: os negros ou os ameríndios eram como que meninos, a carecer de direcção, de educação. Os trabalhos que teriam que prestar aos seus senhores eram como que pagas graciosas da protecção e direcção recebidas; tal como os serviços obsequiosos dos filhos a seus pais. E, nesse sentido, do que se trata [...] de uma dependência doméstica‖. Essa ―é a teoria da casa e das relações domésticas. (Hespanha, 2010, p. 202). A visão de senhor na sociedade de Antigo Regime colonial é a do pai da casa, não (só) no sentido familiar, mas político. E a idéia de casa não concerne à estrutura física e concreta de moradia, e sim organismo político no qual o senhor/pai assume a função – de acordo com os costumes (Alfonso X, Disponível em: http://Rebeliones.4shared.com. Acessado em: 15/07/2011) e posturas honestamente ocupadas dentro de suas respectivas CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 29 posições na ordenação hierárquica do mundo12 – da cabeça que rege a organização parental e política de sua casa, ou seja, de sua linhagem, de seu sangue; buscando legitimar e ascender de acordo com seu poder e referendado pela sociedade colonial segundo os costumes da comunidade. De acordo com as noções patriarcais de Antigo Regime, o senhor é visto como o patria potesta no sentido de possuir o poder de mando em sua casa perante não só aos filhos, mas também sobre os escravos. Eles devem ao senhor reverência e sujeição. E o patria tem como atribuição exercer as punições com intuito de buscar o mantenimento da ordenação social e política, em consonância com os bons costumes, expondo sua ascendência moral sobre os subalternos, leia-se, parentes consanguíneos e escravos, dentro do seu senhorio.13 Resumindo, partindo da noção da naturalidade da desigualdade, do poder de uns sobre outros, tidos como inferiores, subalternos, não seria pejorativo escravizar, pelo contrário, há justificativas religiosas que torna a escravidão africana plausível e com funcionalidade para a época. Igreja e a legitimação da Escravidão Africana Quais os motivos para escravizar africanos e não outros povos? E o que torna tal prática legitima para a época? ―As principais justificativas para escravidão dos negros africanos estavam relacionados à religião. Descendentes de Caim ou de Cam, os negros teriam seu destino determinado pelos erros de seus antepassados.‖ (Campos, 1999, p. 26) Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; e serei fugitivo e vagabundo na terra, e será que todo aquele que me achar, me matará. O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse. E saiu Caim de diante da face do Senhor. (Gênesis 4:14-16) 12 ―A idéia de ordem nesta sociedade tradicional faz do mundo o reino da diversidade, um enorme conjunto de coisas infinitamente diferentes entre si e, em virtude dessas diferenças, hierarquizadas (ordo autem in disparitate consistit – de facto, a ordem consiste na desigualdade das coisas).‖ (HESPANHA, 2010. p. 54) 13 ―A veces se toma esta palabra potestas por ligamiento de reverencia, y de sujeción y de castigamiento que debe tener el padre sobre su hijo y de esta postrimera manera hablan las leyes de este título.‖ (Alfonso X El Sabio. Las Siete Partidas. Primeira Cuarta, Titulo 17, Ley 3.) CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 30 Caim, filho de Adão e Eva, teria assassinado seu irmão mais novo, Abel, pois estava cego de inveja e ciúmes pelo amor de Deus dispensado ao caçula. Como punição, Deus o expulsa de suas vistas. Mas Caim, com medo de ser morto por ser um desgraçado caminhando pelo mundo, recebe na carne uma marca de Deus como um sinal, a qual seria transmitida os seus descendentes. ―Na crença popular, alimentada pelo clero, a cor negra dos africanos era a marca da punição de Caim.‖ (Campos, 1999, p. 26) Na segunda maldição, os africanos seriam descendentes de Cam, filho de Noé, que havia zombado do pai quando este estava nu e embriagado. E bebeu do vinho, e embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tenda. E viu Cam, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo saber a ambos seus irmãos no lado de fora. E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor lhe fizera. E disse: Maldito seja Canaã; que ele seja o último dos escravos de seus irmãos! E acrescentou: Bendito seja o Senhor Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por escravo. Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã por escravo (Gênesis 9:21-27) Noé pune, então, Cam e seu descendente, Canaã, a ser o ―último‖ dos escravos, o que significa, literalmente, o escravo dos escravos. ―Eram os africanos, segundo a concepção vigente, os legítimos descendentes de Cam, filho amaldiçoado por Noé por ter zombado de sua nudez. Como Noé representava a honestidade num mundo de corrupção, Cam e seus descendentes foram identificados à negatividade ética e à tentação diabólica de destruir o plano divino.‖ (Oliveira, 2007, p. 360) Consoante com essa interpretação bíblica, a África era vista pelos membros do clero como terra da infidelidade (falta de fé) e do pecado. A travessia do Atlântico e a chegada à América eram tidas, assim, como uma espécie de milagre de Deus. Batizados aos milhares antes de embarcar nos navios negreiros, os africanos eram encaminhados às terras coloniais para desempenhar trabalhos humilhantes e desumanos, vivendo amontoados em senzalas e sendo vitimas de toda sorte de violências. Segundo essa concepção religiosa, o Brasil seria o purgatório dos negros, e as injustiças da escravidão, o instrumento da justiça divina em favor da salvação eterna. (Campos, 1999, p. 26) CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 31 A partir dessas concepções, o cativeiro dos africanos era perfeitamente compreensível já que eram marcados pelo pecado e inferioridade ética. ―Essa era a função dos africanos e seus descendentes nas sociedades que se formavam no Novo Mundo. Herdeiros do pecado de Cam, sua posição social estava, previamente determinada, segundo a vontade do criador. O cativeiro africano, portanto, era tomando como pedra basilar para o funcionamento harmônico do corpo social.‖ (Oliveira, 2007, p. 361) Conversão de africanos e seus descendentes no Brasil colonial Como vimos, há todo um discurso religioso de origem pecaminosa do africano que o torna espiritual e eticamente inferior. E a escravidão é a ―chance‖ dada pelos cristãos de purificação desses africanos, os tirando do espaço do pecado (África) e os levando para o purgatório (Brasil colônia), dando-os a possibilidade de salvação. Não obstante, mesmo de forma subalterna, os africanos seriam catequizados e inseridos no Império português. Mas de que forma? A estrutura social, ―fundada nas diferenças e hierarquias, exigia um projeto especifico de cristianização dos africanos e seus descendentes‖, ainda mais a partir do século XVII em que africanos e seus descendentes eram a maioria populacional na América portuguesa. (Oliveira, 2007, p. 361) A Igreja católica, com o papel de manter uma estrutura social excludente, ―multiplicou suas ações ao longo do setecentos na tarefa de inserção dos chamados ‗homens de cor‘ no interior da Cristandade. A multiplicação dessas ações se desdobraria também na promoção de santos pretos que deveriam funcionar como exemplos de virtudes cristãs para os africanos e seus descendentes.‖ (Oliveira, 2007, p. 362) A questão da cor, pois, assumia nesse discurso um papel predominante ao distinguir os segmentos sociais e expressar uma concepção hierárquica da sociedade colonial. A cor, no contexto do Império português, no século XVIII, não traduz nenhuma perspectiva racial e/ou racista entendida à luz do campo discursivo das teorias cientifico - raciais do século XIX. Numa primeira perspectiva deve-se entender esse sistema de cores dentro de um campo cultural que se definiu em Portugal e em toda Europa Ocidental desde a Idade Média. [...] Perspectiva sócio-cultural difundida em Portugal e na CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 32 sociedade colonial brasileira, onde a cor designava lugar social. (Oliveira, 2007, p. 380-382) No caso dos africanos, preto/negro são cores que eram vistas como castigos impostos aos pecadores. Logo, houve um acidente espiritual ou são negros devido a um pecado original. Mas os africanos poderiam atenuar, superar essa inferioridade com uma vida virtuosa na fé cristã. Vide e espelhem-se nos santos negros exortados pela Igreja Católica para esse fim: santo Elesbão e Santa Efigênia. Teoria Cristã no Governo dos Escravos no Brasil Colonial Para o asno, forragem, chicote e carga; para o escravo, pão, castigo e trabalho. Faz trabalhar o teu escravo com disciplina, e encontrarás sossego. Deixa-o com as mãos livres, e ele procurará a liberdade. Jugo e rédea dobram o pescoço; torturas e interrogatório dobram o mau escravo. Manda-o trabalhar, para que não fique ocioso, porque a ociosidade ensina muitos males. Obriga-o ao trabalho que lhe compete; e, se não obedecer, prende-o com correntes. Entretanto, não cometas excessos com ninguém, e não pratiques nada contra a justiça. Se só tens um escravo, trata-o como a ti mesmo, pois compraste-o a preço de sangue. Se só tens um escravo, trata-o como irmão, porque precisas dele, como de ti mesmo. Se o maltratares, ele fugirá, e por qual caminho irás procurá-lo? (Eclesiástico, 33, 25-33) A teoria Cristã no governo dos escravos visava adestrar os senhores dentro de um viés religioso, cuja moral humanitária seria a mais importante. Essa teoria ―buscou ordenar a prática do governo dos escravos com base em preceitos cristãos.‖ Os religiosos denunciavam a inaptidão dos senhores ao controlar os escravos, ―a mensagem básica dos textos jesuíticos era a de que os proprietários da América portuguesa eram incapazes de governar corretamente seus escravos, pois haviam se afastado dos CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 33 preceitos da moralidade católica‖ (Marquese, 2004, p. 172). Nesse sentido, o senhor deveria preocupar-se com a conversão dos escravos, dar-lhes razoáveis condições de vida para que assim pudessem (sobre)viver bem e não revoltarem-se. Como um arquiteto do engenho açucareiro, Antonil vai descreve sua confecção, ordenamento, funcionamento e manutenção, inclusive da mão de obra escrava. Sobre isso, postula Antonil, que ―no Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a saber, pau, pão e pano.‖ (Antonil, 1982, p. 91). O castigo é imprescindível, pois ele regula e regra o escravo, porém o pão material e principalmente espiritual não lhe deve ser negado, assim como a roupa limpa e seca. Em troca o escravo presta obediência e gratidão ao seu senhor. Esse tipo de acordo assimétrico é expresso através da chamada ―Economia Cristã: isto é, regra, norma e modelo, por onde se devem governar os senhores Cristãos para satisfazerem as obrigações de verdadeiros senhores‖, como postulava, no século XVIII, o padre Benci. ―Mas que obrigações pode dever o senhor ao servo? [...] Em que se trata da primeira obrigação dos senhores para com os servos [...] é o Pão: panis. Deve o senhor ao servo o pão, para que não desfaleça: panis, ne succumbat. E debaixo deste nome de pão,‖ o qual possui variado sentido temporal e espiritual, ―se compreende primeiramente tudo aquilo que conduz para a conservação da vida humana, ou seja o sustento, ou o vestido, ou os medicamentos no tempo da enfermidade.‖ (Benci, 1977, p. 53-81) Entretanto, ―não só deve o senhor dar-lhes o sustento corporal para que não pereçam seus corpos, mas também o espiritual para que não desfaleçam suas almas, panis, ne succumbat.‖ Daí os sacramentos, os ensinamentos da doutrina e o próprio exemplo do senhor como bom cristão. Tratava-se da ―segunda obrigação dos senhores para com os servos.‖ (Benci, 1977, p. 83-111) A terceira ―obrigação dos senhores é dar ao escravo o castigo, para que se não acostume a errar, vendo que seus erros passam sem castigo: Disciplina, ne erret‖, pois, ―para trazer bem domados e disciplinados os escravos é necessário que o senhor lhes não falte com o castigo, quando eles se desmandam e fazem por onde o merecem.[...] Deixar o senhor viver o escravo à sua vontade, e por mais desordens que faça, dar tudo por em feito ou (quando muito) passar com uma repreensão; é dar-lhe atrevimento, para que se arroje a todo o gênero de pecados.” Ou seja, ausência do castigo é uma falha irrepreensível do senhor. Logo, ―merecendo o escravo o castigo, não deve deixar de lho CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 34 dar o senhor; porque não só não é crueldade castigar os servos, quando merecem por seus delitos ser castigados, mas antes é uma das sete obras de misericórdia, que manda castigar aos que erram.‖ Não obstante, ―no castigo dos servos não devem usar os senhores de sevícia.‖ (Benci, 1977, p. 125-128 e 152). Do contrário, ―o castigo for freqüente e excessivo, ou se irão embora, fugindo para o mato, ou se matarão per si, como costumam, tomando a respiração ou enforcando-se, ou procurarão tirar a vida aos que lha dão tão má, recorrendo (se for necessário) a artes diabólicas.‖ (Antonil, 1982, p. 91). A quarta e última obrigação dos senhores é dar o trabalho aos servos, para que com o ócio se não façam insolentes: opus, ne insolescat. Há senhores, que nisto pecam por defeito; porém os mais pecam por excesso. Pecam por defeito os que os deixam viver à larga sem ocupação nem, trabalho. Pecam por excesso os que os oprimem com trabalhos superiores a suas forças, ou por excessivos ou por demasiadamente continuados. E porque ser o trabalho demasiadamente pouco ou demasiadamente muito, tudo é meu e danoso para o servo; por isso [...] os senhores não devem deixar estar ociosos os escravos, mas ocupálos; e depois [...] que devem guardar no trabalho que lhes dão. (Benci, 1977, p. 171) Alimento, cuidados, a Palavra, trabalho moderado e o castigo justo eram as obrigações que os senhores deviam ao escravo. Em contrapartida, o cativo lhe devia obediência, gratidão e serviços. E ―a razão disto é porque senhor e servo são de tal sorte correlativos, que assim como o servo está obrigado ao senhor, assim o senhor está obrigado ao servo.‖ Esta é a mútua e recíproca correspondência de obrigações entre os senhores e os servos [...]. E por isso, depois de intimar aos servos que se sujeitem em tudo e obedeçam a seus senhores com simplicidade de coração. [...] A diversidade, que há entre o senhor e o servo, não consiste em que o servo esteja obrigado ao senhor e não o senhor ao servo; mas na diversidade das obrigações, que recìprocamente devem um ao outro. (Benci, 1977, p. 49-50) Assim pensa, também, o jesuíta setecentista Antonil, a ponto de sustentar que certo é que, se o senhor se houver com os escravos como pai, dando-lhes o necessário para o sustento e vestido, e algum descanso no trabalho, se poderá também depois haver como senhor, e não estranharão, sendo convencidos das culpas que cometeram, de receberem com misericórdia o justo e merecido castigo. (Antonil, 1982, p. 92) CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 35 Portanto, Antonil estabeleceu alguns critérios importantes para que o senhor chegue à tal posição. Primeiro é haver-se como pai – dentro da perspectiva política vista até aqui. E nesse sentido ser o protetor da casa, estabelecendo seus direitos e deveres recíprocos com os subalternos através dos quais construirá seu poder e, podendo então, após, haver-se como senhor. Conclusão Nesse artigo visamos demonstrar a relação entre Igreja Católica e Escravidão no contexto do Antigo Regime colonial. Ou seja, fugindo do anacronismo, a escravidão era legitimada pela Igreja como um método de conversão dos africanos, originariamente pecaminosos, cuja purificação seria necessária para a possibilidade dos negros chegarem à salvação. E os santos negros eram um grande instrumento de comprovação para os africanos de que tal missão era possível. Enfim, pensamos que tal tema de pesquisa é mister para elucidar as razões, e mais, os argumentos de legitimação da escravidão africana, sem fugir da contextualização com a mentalidade da época. Referências Bibliográficas ANTONIL, A. J. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982. BENCI, J. 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SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 37 O BEM MORRER NO RECÔNCAVO DA GUANABARA. FREGUESIAS DE NOSSA SENHORA DA PIEDADE DO IGUAÇU E SANTO ANTÔNIO DE JACUTINGA (SÉCULO XVIII) Ana Paula Souza Rodrigues14 Resumo: O trabalho analisa concepções de morte na Freguesia de Piedade do Iguaçu e Santo Antonio de Jacutinga, situadas ao fundo do Recôncavo da Guanabara, no século XVIII. O objetivo da comunicação a ser apresentada é discutir o bem morrer, fruto da visão escatológica do catolicismo, construída a partir da Reforma Tridentina. Primeiro, analisaremos os elementos que caracterizam a boa morte (sacramentos, feitura dos testamentos, mortalhas, local de sepultamento, dentre outros), em seguida, os elementos que compõem os ritos e costumes para ―guiar a alma no caminho da salvação‖, os quais expressam as hierarquias de uma sociedade pré-industrial, escravista e hierarquizada. Palavras-Chaves: Freguesias Rurais, Bem Morrer e Hierarquia. O que era Iguaçu e Jacutinga? A resposta ficará mais completa ao longo do texto, contudo, deixemos claro que se trata de duas freguesias rurais do Rio de Janeiro, situadas na região que hoje denominamos como Baixada Fluminense, outrora conhecida como fundo do Recôncavo da Guanabara15. Em um estudo sobre o quadro espacial português, Ana Cristina Nogueira e Antonio Manuel Hespanha afirmam que “o espaço é uma realidade construída e não uma extensão bruta e objetiva”. Ademais, em sociedades como as de Antigo Regime, hierarquizadas, o espaço era visto de forma diferente por cada indivíduo ou grupo, de acordo com o papel social que figurava. Daí, ―a coexistência (por vezes conflituoso) de vários discursos sobre o espaço e de diversas práticas de apropriação espacial” (NOGUEIRA; HESPANHA, 1993, p.35). Desta maneira, a análise sobre o espaço deve 14 Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 15 Em 1793, Monsenhor Pizarro utilizou o termo Recôncavo da Guanabara para denominar toda a região do entorno da Baía da Guanabara. (PEDROZA, 2008, p. 9). Ver mapa no anexo 1. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 38 ultrapassar o simples exame de demarcações e limites geográficos, e levar em conta como os indivíduos o criavam, concebiam e transformavam. Em uma sociedade católica, era a partir do espaço eclesiástico que os indivíduos referenciavam os diferentes territórios do Recôncavo da Guanabara, sobretudo por meio do estabelecimento de freguesias. Freguesia era a unidade espacial mínima do domínio da Igreja; o pároco, ou cura das almas, exerciam a função religiosa interferindo na vida individual e coletiva 16. Não obstante a dificuldade da análise de espaços geográficos, é importante apreender de que forma essas freguesias rurais surgem. Obviamente o fator religioso interfere diretamente no estabelecimento dessas freguesias, já que as pessoas tinham a preocupação de participar de todos os rituais católicos. Contudo, outros elementos permeavam o estabelecimento de uma freguesia, para além do âmbito religioso de fé e devoção. Antes de tudo é preciso lembrar que a iniciativa particular fora imprescindível para o projeto colonial. De acordo com Freyre “foi a iniciativa particular que, concorrendo às sesmarias, dispôs-se a vir povoar e defender militarmente, como era exigência real, as muitas léguas de terra em bruto que o trabalho negro fecundaria” (FREYRE, Gilberto, 1980, p. 18-19). Relacionado a esta constatação, o primeiro elemento que permeia as fundações de freguesias rurais é o fato de todas as freguesias do Recôncavo da Guanabara iniciarem suas atividades como capela curada, ou seja, uma capela em terras de um particular, dirigida em caráter permanente por um pároco ou cura.17. Assim foi o caso de Iguaçu, quando, em 1699, o povo construiu uma simples capela de taipa, em terras do Alferes José Dias de Araújo Em Jacutinga, a primeira capela curada fora instituída em lugar denominado Jambuí, em 16 De acordo com Cristina Nogueira e Hespanha ―a freguesia foi, durante o Antigo Regime, uma circunscrição territorial decisiva no enquadramento político do espaço (...) é, também, um fator de dispersão política do espaço.‖ Ibidem, p. 38. Uma outra definição de Freguesia: ―Circunscrição eclesiástica que forma a paróquia; sede de uma igreja paroquial, que servia também, para a administração civil; categoria oficial institucionalmente reconhecida a que era elevado um povoado quando nele houvesse uma capela curada ou paróquia na qual pudesse manter um padre à custa destes paroquianos, pagando a ele a côngrua anual; fração territorial em que se dividem as dioceses; designação portuguesa de paróquia‖. A definição desta e outras áreas estão publicadas no site da SEADE (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados/ Estado de São Paulo). Disponível em: http://www.seade.gov.br/produtos/500anos/index. php?tip=defi# def2. 17 SEADE (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados/ Estado de São Paulo). Disponível em: http://www.seade.gov.br/produtos/500anos/index. php?tip=defi# def2. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 39 1657 (ARAÚJO, 1945, p. 84-85; 142-143). Essas primeiras construções eram simples, de taipa e, por isso, logo careciam de reparos. O aumento do número de fiéis e/ou a ruína das capelas geravam a construção da primeira igreja matriz, a qual recebia o nome de um Santo, e este é o segundo elemento. Pizarro identifica o ano em que, pela primeira vez, a capela curada surge então como freguesia. Santo Antonio de Jacutinga surge como freguesia em 1686. Iguaçu foi fundada como freguesia em 1719, quando ocorreu a separação com a freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Serapuhy (que na década de 1710 será anexa a Santo Antonio de Jacutinga). A partir das memórias históricas sobre a fundação de Iguaçu, constatamos um terceiro elemento que marca o estabelecimento dessas freguesias: não só o aumento do número de habitantes, mas a ação de senhores de terras dessas localidades. Muitos destes senhores adquiriram estas terras por meio da concessão de sesmaria.18 Como exposto, o primeiro local de reunião dos paroquianos de Iguaçu fora em uma capela construída nas terras de José Dias de Araújo. Por ter obtido o título de Alferes, pertencia à hierarquia militar. Por ter doado terras para os fiéis construírem a dita capela 19, era senhor de terras. Adiante veremos que possuir terras e exercer funções militares era para poucos, apenas para aqueles pertencentes à elite, além de constituírem elementos de distinção em uma sociedade hierarquizada. Um último elemento que gostaríamos de analisar, de grande importância para que freguesias rurais surgissem ou desfrutassem de crescimento econômico e populacional, é a descoberta do ouro nas Minas Gerais. Graças ao boom aurífero, estradas foram criadas para que o ouro fosse escoado ao Porto do Rio de Janeiro e daí para a Metrópole e outras paragens. Tais estradas entrecortavam diversas Freguesias do Recôncavo da Guanabara. 18 O Recôncavo da Guanabara começou a ser povoado durante o século XVI por meio da doação de sesmarias, logo após a fundação da cidade de São Sebastião, em 1565, pelo Capitão-Mor Estácio de Sá. Todavia, atentemos para um fato, tal concessão de terras foi realizada de forma desigual, pois foram feitas principalmente aos que prestaram algum tipo de serviço a El-Rei. Portanto, desde o século XVI há registros de indivíduos que obtiveram sesmarias na área do fundo do Recôncavo fluminense, com base no seguinte argumento: o uso de seus próprios bens, parentes e escravos no processo de conquista da terra. 19 A capela era uma pequena igreja com um só altar, erigido por nobres ou senhores de terras, muitas das quais se converteram depois em paróquias e igrejas principais, podendo ser pública ou privada. Disponível em: http://www.seade.gov.br/produtos/500anos/index.php?tip=defi# def2 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 40 A estrada então existente para se chegar às minas era denominada Caminho do Paraty, posteriormente ―Caminho Velho‖. A viagem por essa via era longa e dispendiosa. Deste modo, com o objetivo de ter um controle mais eficaz e um transporte mais rápido das mercadorias, a Coroa portuguesa incentivou a abertura de novos caminhos por particulares em troca de títulos e privilégios. O Caminho Novo, aberto por Garcia Rodrigues Paes em 1698, próximo às margens do Parahiabana, hoje parte integrante de Pati do Alferes, até o Rio de Janeiro, tornou-se a principal rota utilizada pelos viajantes. Durante o século XVIII, as áreas entrecortadas por esse caminhos foram amplamente beneficiadas. Outras paróquias foram povoadas e elevadas à categoria de vilas: Pati do Alferes, Vassouras e Paraíba (FORTE, 1933, p. 56). 20 Com as tropas que transitavam por esses caminhos, o comércio local se favoreceu com armazenamento e transporte de mercadorias, aluguéis de escravos, venda de produtos locais (BEZERRA, 2008, p. 26). Além disso, muitos viajantes precisavam descansar, assim como repor provisões de mantimentos e alimentar os animais, estendendo sua estadia por alguns dias na freguesia que estivesse mais próxima. Deste modo, Iguaçu e Jacutinga podem ser caracterizadas como uma área de trânsito, pois entrecortada pelos caminhos do Ouro, recebiam viajantes de todas as partes Reino com seus escravos e manufaturas em busca das minas auríferas, e paralelamente acolhia aos transportadores do ouro que partiam em direção ao litoral. Além destes caminhos a rede fluvial fora muito utilizada para o escoamento das mercadorias, pois perpassava as freguesias rurais e desembocava na Baía de Guanabara, o que significa um meio direto de comunicação com o litoral; por isso, mais que a utilização das tropas, canoas e barcos eram o principal meio de transporte utilizado para o trânsito de pessoas e mercadorias21. Sobre as atividades econômicas realizadas nestas freguesias podemos afirmar que foram muito mais exímias na produção de alimentos do que de açúcar ou aguardente. 20 ―Ao longo desses caminhos foram surgindo fazendas, capelas, freguesias. Enquanto isso a parte litorânea relativa ao recôncavo é inteiramente ocupada e fragmentada, diversas freguesias são instaladas, muitos engenhos são erguidos e aldeias são estabelecidas.‖ (ATLAS FUNDIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 1991, p. 17). 21 Nielson Bezerra afirma que o entorno do Guanabara possuía uma rica malha hidrográfica, ―com a suma importância estratégica para o dinamismo econômico da região, pois exerceu a função de ‘estradas‘, servindo para o escoamento de mercadorias, circulação de pessoas e informações etc.‖ (BEZERRA, 2008, p. 25). CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 41 Alimentos como mandioca, farinha de mandioca, milho, feijão, charque e carne de porco foram artigos comerciados no mercado interno da colônia portuguesa.22 Assim, pois, tais freguesias estavam inseridas dentro do circuito comercial de abastecimento, tanto para Minas Gerais quanto para a cidade do Rio de Janeiro; participação esta que contribui para a reprodução do setor agroexportador.23 Essa participação, no século XVIII, se dava principalmente por meio da produção de gêneros alimentícios como feijão, milho, arroz, mandioca, arroz e café. Em tal produção, sobressaía em importância do cultivo da farinha de mandioca na capitania do Rio de Janeiro para o abastecimento do consumo local, também usada como moeda de troca no comércio de cativos em Angola e para o abastecimento de tropas na cidade (DEMETRIO, 2008, op. cit., p. 38 – 40). Cabe-nos agora perceber a predominante concepção sobre a morte, na mentalidade dos habitantes de Iguaçu e Jacutinga. BEM MORRER A arte do bem morrer é necessária e dificultosa. Necessária, porque sendo o ponto da morte principio ou de hum bem, ou de hum mal, que nunca terá fim; que arte se pode imaginar mais necessária para o christão, que aquela, essa que se aprendem as verdadeiras regras para evitar um mal eterno, & as máximas mais seguras par alcançar hum bem que não tem nem terá termo? Dificultosa, pois sendo que as mais artes se aprendem com o exercício continuado, e só com os atos repetitivos se adquirem os hábitos dellas, nesta arte de bem morrer não tem lugar a repetição dos atos, porque só huma vez se morre‖ (BONUCCI, 1701, p. IX). Com a Reforma Tridentina as atitudes diante da morte passaram a fazer parte de um programa combativo ao perigo herético, monopolizou a questão dos sepultamentos, 22 Para o autor os artigos que faziam parte do circuito do comércio interno colonial foram: a farinha de mandioca proveniente de regiões do interior do RJ, do sudeste da Bahia e de Santa Catarina; do charque do Rio Grande do Sul; dos muares de São Paulo; dos porcos e reses de Minas Gerais (FRAGOSO, 1998, p. 100 -105). 23 Aqui nos baseamos no conceito de acumulação endógena e mercado interno elaborado por João Fragoso. Além disto, o autor afirma que: as grandes fazendas brasileiras se alimentavam de produções do próprio espaço colonial (FRAGOSO, 1998, p. 26-27; 109). CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 42 a intercessão pelos mortos e introduziu noções como: ―Purgatório‖, ―Juízo final‖ e ―Inferno‖, gerando temor perante a morte. A elaboração de uma pedagogia do medo utilizou como métodos principalmente imagens, livrinhos e sermões (RODRIGUES, 2005, p. 39). O medo de um destino incerto para a alma envolve a mentalidade dessa sociedade, o que estimulou a existência de uma liturgia católica tendo por objetivo o ensinamento dos procedimentos a serem tomados para o bem morrer. Cláudia Rodrigues afirma que uma liturgia (literatura e imagens) foi criada pelo catolicismo para inculcar nos indivíduos a importância de uma boa morte. (RODRIGUES, 2005, p. 39 – 63). A epígrafe acima faz parte de um livro escrito pelo padre Antonio Maria Bonucci, dedicado ao capitão Bento Pereira Ferraz, no início do século XVIII. Pertencente a tal liturgia seu objetivo foi o ensino da arte do bem morrer a todos os cristãos, especificamente aos moradores da Bahia, para que evitem o mal eterno (Inferno). Em que consistiria tais ideias? Segundo Jacques Le Goff, o purgatório surge na crença cristã ocidental entre os séculos XII e XIII, a geografia do além, de binária, transforma-se em ternária (Inferno- Purgatório- Paraíso). O Purgatório é um lugar intermédio onde os mortos sofrem provações para se purificar de seus pecados, uma delas em forma de fogo e de gelo. A oração, o jejum, a esmola e sacramento do altar (missa) são os quatro tipos de sacramento, dos quais só são beneficiados os mortos que estão no purgatório sofrendo os respectivos castigos (LE GOFF, 1995, p. 18-21; 251269). A criação do Purgatório também foi uma luta anti-herética, uma resposta a novas estruturas que foram postas a cristandade; contra os hereges, protestantes e gregos. Uma cristianização de práticas pagãs (RODRIGUES, 2009, p. 444). As orações, sufrágios, a prática da eucaristia pelos religiosos, sua suposta intervenção a favor das almas, o sepultamento dentro de seus templos, todos esses elementos asseguraram a Igreja o domínio sobre os vivos, expandindo seu poder em uma sociedade que sofre constantes transformações, inclusive a contestação de seus dogmas pelos protestantes. ―Através da morte e dos seus mortos os vivos aumentam seu poder nesse mundo, os sufrágios passam a ser um empreendimento cada vez mais ativo.‖(LE GOFF, 1995, p. 275). A nova configuração do mundo dos mortos avaliza a Igreja Católica o poder sobre seus fiéis. Receosos de seus destinos no além e comiserados das almas de familiares que poderiam estar no Purgatório, muitos fregueses da Piedade do Iguaçu e Jacutinga deram CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 43 esmolas, dízimos e pagaram missas, com isso muitos clérigos constituíram patrimônios e bens. Alguns religiosos tinham apenas tais medidas como fonte de renda. O Juízo final é um dos principais temores dos cristãos, quando o Pai, ao lado do Filho irá julgar toda a humanidade; assim está descrito o dia do juízo em um trecho da Bíblia, livro de fé e prática dos cristãos: “E vi os mortos, grandes e pequenos, que estavam diante do trono, e abriram-se os livros. E abriu-se outro livro, que é o da vida. E os mortos foram julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros, segundo as suas obras.” (Bíblia Sagrada, 1995, p 1225). Assim, todos prestariam contas no tribunal divino, todos seriam julgados segundo suas ações, nada poderia ser encoberto: “muito puros, & perspicazes os olhos do juiz, que depois de nossa morte hão de examinar os mais profundos segredos de nosso coração.” (BONUCCI, 1701, p. XII). Na concepção dos dogmas católicos, o Inferno é destinado aos homens que morrem sem expiarem seus pecados e pedirem perdão por suas faltas, 24 o que leva à preocupação com os ritos que devem ser realizados para um cristão morrer justamente. Podemos classificar a concepção de morte do período abordado como ―morte domada‖, que para o autor Philippe Áries é a morte aceita, próxima, familiar, onde ocorria uma cerimônia pública e organizada; ela sempre se fazia anunciar, sendo natural o moribundo perceber os sinais que prenunciavam sua partida (ÀRIES, 1981, p. 34-35). A morte repentina é o oposto da arte do bem morrer, segundo Cláudia Rodrigues, a ―boa morte‖ ocorria quando havia a feitura do testamento, a realização dos sacramentos e o ingresso em uma irmandade (RODRIGUES, 1997, p. 150- 151). Outro elemento diferenciador poderá ser acrescentado, a mortalha, pano que envolve o corpo do cadáver. Para o verdadeiro cristão estar bem aparelhado para a hora derradeira, segundo Bonucci, três meios devem ser realizados: a oração, os sacramentos e o estudo da lição espiritual e meditação dos novíssimos (BONUCCI, 1701, p. 39). Sobre a realização dos testamentos, torna-se um instrumento fundamental para expressar arrependimento e dispor dos bens para os respectivos herdeiros. Áries salienta duas finalidades para os testamentos: a) passaporte para o céu, meio de salvação; b) salvo conduto na terra para desfrute dos bens adquiridos na terra, podendo reverter alguns em prêmio espiritual: esmolas, missas e preces. Aceitar a morte e estar contíguo 24 ―E aquele que não foi achado escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo.‖ (Bíblia Sagrada, 1995, p. 1225). CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 44 aos lugares dos mortos não significavam uma despreocupação com os bens possuídos e os familiares e amigos deixados, eram as faces da mesma moeda. Por isso, por meio desse documento foi possível associar as riquezas à obra pessoal de salvação (ÀRIES, 2003, p. 115). O autor observa tais elementos pela análise dos testamentos na sociedade francesa da Idade Média até o século XVIII. Em nossa pesquisa, com o exame dos testamentos da Freguesia de Piedade do Iguaçu e Jacutinga, nota-se igualmente a manifestação desses fatores. Em geral, os testamentos seguem um modelo, como exemplifica o de Custódio Pires Ribeiro, falecido no ano de 1787, sepultado na cova da irmandade do Rosário e amortalhado no hábito de São Francisco.25 Na primeira parte reconhece-se a Trindade, identifica-se o testador, o documento é datado, confirma-se o perfeito estado de saúde mental e, por fim, se expressa o temor pela morte: ―Em nome da Santíssima Trindade Padre, Filho, e Espírito Santo, três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro. (...) estando de pé com saúde em meu perfeito juízo, e temendo-me da morte, que é natural a todos, e desejando por mina alma no caminho da salvação (...)”. No segundo momento encomenda sua alma, como é uma viagem incerta, faz se imprescindível um pedido, um apelo à misericórdia divina para que sua alma seja recebida no paraíso: “Primeiramente encomendo a minha alma a Santíssima Trindade e ao anjo da minha guarda e ao santo do meu nome que a criou e rogo ao Padre eterno pela morte, e paixão de seu Unigênito filho a queira receber como a sua (...)”. Em seguida os testamenteiros (os responsáveis pelo cumprimento das clausulas testamentárias) são nomeados; logo após, dispõe-se sobre as últimas vontades quanto à realização do funeral, define-se a mortalha, a cova, o número de missas, tudo que irá envolver o cerimonial, incluindo as seguintes disposições testamentárias. Após as disposições, declara-se a naturalidade, todos os bens que se tem posse, as dívidas ativas e passivas, legados, dotes e processos que se encontrem em aberto. São distribuídas esmolas, alforrias, algumas vezes partilham-se os bens. Determinados testamentos têm, após seu término, a translação da aprovação, ou um codicilo. 25 Livro de Óbitos de livres e forros (Freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu 1777-1798). f. 57. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 45 O forte caráter religioso está intrinsecamente ligado à preocupação com os legados deixados; assim, os testamentos exprimem, além do medo da morte, o apego pela vida e aos bens que serão deixados na terra. Os sacramentos constituem o segundo elemento da arte do bem morrer, pois um bom cristão durante a sua vida deve realizar os sete sacramentos: batismo, confirmação, eucaristia, penitência, extrema-unção, ordem e matrimônio. Na maioria das vezes, somente na hora derradeira, quando a doença já tomara conta do moribundo, acionavase o padre para realizar os últimos ritos católicos. Cláudia Rodrigues ordenou-os da seguinte maneira: penitência (confissão e pedido de perdão pelos pecados), eucaristia (comunhão com o corpo de cristo já ressuscitado) e extrema-unção (tentativa de eliminação de toda a presença maligna, último ato cristão antes do fim do ciclo da vida) (RODRIGUES, 1997, p. 176-177). A referência encontrada sobre os sacramentos, dentro da liturgia que apregoa a boa morte, afirma que a frequência principalmente da eucaristia e penitência tornam-se importantes para a purgação da alma e a prevenção de se ―cair em novas culpas‖ ou ―cair em muitas ofensas contra a santa lei‖. Utiliza-se a imagem do juízo final (presença do indivíduo frente ao juiz, que tudo sabe e tudo vê) para ratificar a importância de tais ritos durante toda a vida Cristã, não somente nos últimos momentos, como se costuma fazer; mas cotidianamente, conforme citado acima (BONUCCI, 701, p. XIII; 46-47). Assim, Antonio Bonucci afirma: ―o verdadeiro aparelho para morte é o já estar preparado na vida. O aparelho que se faz nos últimos períodos da vida, não é aparelho, é embaraço, é confusão.” A preparação para morte deve ser constante, pois nenhuma pessoa sabe o dia do fim de sua vida. As irmandades faziam parte da preocupação com a morte antes do agravamento da doença, ou dos prenúncios da morte. Por meio das associações em irmandades observa-se a preocupação das pessoas com o bem morrer no dia-a-dia. Em Portugal tais confrarias existem desde o século XIII. Com a formação de um Império ultramarino, estas instituições foram trasladadas para as colônias sofrendo modificações a partir do encontro de novos elementos, tais como a escravidão moderna e práticas ―pagãs‖. Na colônia portuguesa, as irmandades eram associações corporativas fundadas em hierarquias sociais, não políticas, havia formalmente, irmandades de brancos, pardos e negros. Além disso, serviam como veículo transmissor do catolicismo popular, tendo como principal objetivo o fornecimento de um funeral digno a seus associados. Na hora CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 46 do sepultamento de um irmão da confraria, o cortejo reproduzia a sociedade de Antigo Regime por meio dos reis, rainhas, princesas e outros personagens dramatizados pelos irmãos (REIS, 1991, p. 48 – 72). Para Russell-Wood, as irmandades representaram para as pessoas de cor uma proteção contra uma sociedade competitiva e dominada pelos brancos, fossem escravos ou libertos. Discute a possibilidade de tais instituições resguardarem alianças tribais, danças, músicas, religião ou costumes das culturas africanas. Ao mesmo tempo, tornamse uma resposta a negligência sofrida por pessoas de cor no Brasil colonial (RUSSELLWOOD, 2005, p. 189-231). Todavia, não havia interdições intransponíveis, salvo em certas irmandades de elite. Guardiões de tradições culturais ou não é inegável o papel social que exerceram, principalmente para com escravos e libertos, sobretudo na realização de sepultamentos. De certo, para pessoas de parcas condições, de qualquer cor ou condição jurídica, ser irmão em uma confraria era a garantia de uma cova, o que era importante, pois morrer sem sepultura ou enterro constituía ―virar alma penada‖ (REIS, 1991, p. 171). Resta-nos, doravante, através do estudo sobre a morte, analisar as hierarquias de uma sociedade de Antigo Regime e escravista, manifestas nos elementos que compõem a arte do bem morrer. Hierarquias Sociais Para abordar as hierarquias sociais de Piedade do Iguaçu, não serão analisadas benesses reais, mas os elementos das pompas fúnebres e os as informações provenientes dos testamentos que demonstram os privilégios e exclusivismos da sociedade estamental. O local de sepultamento, participação em irmandade, as mortalhas, as esmolas deixadas, alforrias, os sufrágios, nos dão a pista para alcançarmos este objetivo. Comecemos pelos locais de sepultamento. Por meio dos óbitos constatamos a existência dos seguintes locais de sepultamento na Freguesia de Piedade do Iguaçu e Jacutinga: cova da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição, das Almas, de Nossa Senhora da Piedade, do Rosário, do Santíssimo Sacramento, a cova de fábrica, covas particulares (em geral capelas), as covas dentro da igreja, cemitério e convento. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 47 Àries, afirma que o termo capela tinha três sentidos: o altar onde eram realizadas as missas previstas, a fundação destinada ao padre que as celebrava e o de sepultura (ÀRIES, 1981, p. 306). No quadro 1, o que denominamos ―Particular‖ são as capelas particulares, duas de outra freguesia. Tanto livres, quanto forros e escravos foram enterrados em capelas, desde que houvesse vínculo de parentesco ou agregação para com os donos das capelas. Quadro 1- Local de sepultamentos de acordo com os grupos sociais. (Freguesia de Iguaçu) Livres Local de sepultamento Forros Escravos * (%) * (%) * (%) 7 1,8 4 3,8 - 0 Irmandade de Nossa Senhora das Almas 41 11,0 1 1,0 - 0 Irmandade de Nossa Senhora da Piedade 2 0,6 - - 2 1,4 Irmandade de Nossa Senhora do Rosário 25 6,6 25 24,0 19 12,8 Irmandade do Santíssimo Sacramento 47 12,5 - - 3 2,0 Cova de Fábrica 138 36,8 31 29,8 1 0,7 Dentro da Igreja 27 7,2 2 2,0 15 10,1 Particular 4 1,1 3 2,8 2 1,3 No adro 15 4,0 2 2,0 86 58,1 Cemitério 32 8,5 31 29,8 - 0 Convento 2 0,6 - - 1 0,7 Em outra freguesia 8 2,1 1 1,0 4 2,8 Vazia 27 7,2 4 3,8 15 10,1 Total 375 100 104 100 148 100 Irmandade de Nossa Senhora da Conceição * Em números. Foram excluídos os inocentes, devido sua sub-representatividade. Fonte: Arquivo da Cúria Metropolitana de Nova Iguaçu, Livro analisados: Livro de Óbitos de livres e forros (Freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu 1777-1798); Livro de Óbitos de livres, forros e escravos (Freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu 1723-1769); Livro de Óbitos de escravos (Freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu 1757-1762). Considerando a tabela, observa-se que a maioria dos sepultamentos em Iguaçu dos livres foi realizada em cova de fábrica (cova da própria paróquia) (36,8% do total dos livres). Por sua vez, os forros tiveram um número maior de sepultamentos CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 48 igualmente na cova de fábrica e no cemitério (29,8% do total dos forros) e, por fim, grande parte dos escravos (58,1%) foi enterrada no adro da igreja. Em uma sociedade pré-industrial, onde a circulação monetária ainda era escassa e restrita, o grupo dos livres possuía maior pecúlio em mãos, podendo assim adquirir uma cova de fábrica. O autor Pizarro afirma que os valores pelas sepulturas são: 1$280; 2$reis e 4$reis; conforme os seus lugares (ARAÚJO. op. cit., 1945. Página 60). Os forros, por sua vez, também possuíam seus recursos para comprar covas, sobretudo por meio da venda e troca de alimentos cultivados e do fabrico da farinha de mandioca. Os escravos, no entanto, de forma peculiar foram os mais sepultados no adro da igreja. Adro, segundo Bluteau: ―se entende cemitério, porque antigamente não se enterravão os Christãos nas igrejas, nem ao pé dos Altares, por respeito ao Corpo, & Sangue de Jesus Christo, que nos ditos lugares se Consagra; mas nos Adros das Igrejas, a saber na entrada, & adiante da porta principal dellas se abrirão as sepulturas.” (Bluteau, 1701, p. 136). De acordo com os dados, e com a definição de Bluteau, conjecturamos que o adro referido na fonte seria então um cemitério próximo da igreja (provavelmente atrás), cujas covas teriam um valor simbólico menor em relação ao das irmandades ou de fábrica. De igual maneira, não era vedado aos escravos o enterro cristão. Isto significa que nem todos os senhores desandavam do além-túmulo de seus cativos, bem como a possibilidade de apropriação por parte dos escravos, em sua maioria, africanos. Sobre a participação nas irmandades observamos que a maioria dos forros e escravos participou da Irmandade do Rosário dos Pretos. Certamente, buscavam o amparo das irmandades para conseguir um local de sepultamento. Infelizmente não temos o conhecimento da localização dos compromissos de tais irmandades, mas é sabido que a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos volta-se para este grupo, sem estatutos de pureza de sangue ou cobrança de anuais exorbitantes. Ao contrário da Irmandade do Santíssimo Sacramento, a qual possuía a maioria dos irmãos de condição jurídica livre, provavelmente havia medidas excludentes que geravam tal fato: pureza de sangue, altas taxas anuais. Àries demonstra que os sepultamentos dos antigos (até o século VI) não eram realizados dentro da igreja ou no seu adro, pois temiam o regresso dos mortos, além de serem considerados impuros, podendo acarretar a poluição dos vivos. Mas, a partir do século VII há uma mudança de atitudes, já que a indiferença ou familiaridade passam a CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 49 ser os traços característicos no tratamento com os mortos; deixam de fazer medo. O cemitério, antes fora da cidade, é transferido para junto dos santos, perto da pia batismal, próximo ao altar, dos penitentes, ou seja, dentro da igreja e no seu entorno. (ÀRIES, 1981, p.39-43). Em Iguaçu e Jacutinga, no que concerne às mortalhas, os corpos foram envoltos em quatro tipos: panos de cor, hábitos sacerdotais, de santos ou lençóis. Os livres tiveram um maior índice no uso dos hábitos de cor (18,8%), principalmente o branco, seguido dos hábitos de santos (5,6%), sobretudo o franciscano, sendo os únicos a utilizar as vestes sacerdotais. Vestes sacerdotais e de santos eram mais dispendiosos, o seu uso representa um apelo aos santos para colocar a alma no caminho da salvação. Apesar de não utilizarem nenhuma mortalha sacerdotal e uma pequena porcentagem do uso de mortalha de santos (2,0%); os forros, em relação aos livres, foram os que mais utilizam as mortalhas, 35,5%, e 25,0%, respectivamente. Na Freguesia de Iguaçu, no caso dos escravos, não há menção de nenhum tipo de tecidos para envolver seus corpos. Para além do possível esquecimento do pároco em registrar, podemos constatar o alto custo destes panos. Conclusão No século XVIII, tal como exposto, os fregueses de Iguaçu e Jacutinga concebiam a morte de forma próxima e familiar, vivos e mortos conviviam sem medo, dentro da igreja, durante o velório, as missas. A liturgia do bem morrer católico, as imagens e leituras, de certa maneira, cumpriu seus objetivos, ao menos a domesticação da morte. Inferno, Juízo Final e Purgatório introduzidos na visão escatológica aguçaram o temor para com o destino da alma no além-túmulo, fez indivíduos de diversos grupos sociais realizarem os rituais indicados pela religião oficial: sacramentos, mortalhas, participação em irmandades, etc. Muitos também quiseram acompanhamento durante o cortejo de seu funeral pelo maior número de pessoas, serem enterrados próximo aos santos e fazer testamentos. Tais informações expressaram a hierarquia social dessa sociedade de Antigo Regime e escravista, cujos critérios não se restringem aos aspectos econômicos. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 50 Contudo, podemos afirmar que todos, de diferentes modos, mas igualmente temerosos, encomendaram, quando puderam, suas almas para o além-túmulo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÀRIES, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981._____________. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. ARAÚJO, José de Souza A. Pizarro. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. v.4. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945. ________________. (1753-1830). Visitas pastorais na Baixada Fluminense feitas pelo Monsenhor Pizarro no ano de 1794. Mandada imprimir pela prefeitura da Cidade de Nilópolis através da secretaria municipal de cultura. Nilópolis: Shaovan, 2000. Atlas Fundiário do Rio de Janeiro./ S E A F. Rio de Janeiro: 1991. BEZERRA, Nielson Rosa. As chaves da liberdade: confluências da escravidão no Recôncavo do Rio de Janeiro. Niterói: EdUFF, 2008. Bíblia Sagrada. 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Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p. 150; 151 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 52 O PADROADO RÉGIO NA FORMAÇÃO DO IMPÉRIO BRASILEIRO Cezar Augusto Sales Uchôa Júnior Resumo Padroado, Igreja e Nação. Neste artigo busca-se criticar as análises mecânicas e dicotômicas da relação Igreja e Estado na formação da nação brasileira durante o Oitocentos, apontando para pesquisas posteriores sobre o tema. Discute-se as perspectivas de estudo do Padroado que consideram unicamente o caminho da secularização. Propõe-se, alternativamente, a análise da Igreja na organização do projeto de nação que forneceu as bases de pertencimento à sociedade brasileira ainda não secularizada. Constitui-se matéria importante do debate a noção de ―mentalidade cristã‖, segundo a qual o súdito deveria ser antes um cristão (leia-se católico). Propõe-se, portanto, a reflexão da Igreja Católica Brasileira como fonte ideológica para o desenvolvimento do projeto de nação no Brasil, percebendo no exemplo do Padre Antônio Feijó uma figura emblemática para pensar as inter-relações entre a esfera sagrada e a profana, relativizando este dualismo. Introdução O presente trabalho tem como motivação primeira a seguinte questão: Como e por que a Igreja continuou vinculada ao Estado durante quase todo o século XIX, diante de tantas tensões? Claro que dada amplitude deste debate, não será possível responder tal pergunta. No entanto é possível restringir temporal e tematicamente este tema, buscando perceber como uma parte da historiografia tem tratado tal relação – Igreja e Estado – nas primeiras décadas do século XIX, buscando pensar a questão com uma determinada perspectiva relacional entre religião e política. A História tem tentado estabelecer, dentre outras coisas, as causas das mudanças no decorrer do tempo, por isso tem focado nos fatos, processos e em seus resultados. No caso da questão Igreja-Estado no início século XIX, a historiográfica tem estudado este período com um olhar de causalidade26. Ou seja, o foco não está no momento em análise, mas a lógica se baseia no que aconteceu depois – a questão religiosa de 1872 e a separação da Igreja e do Estado na República (Decreto 119-A de 7 de janeiro de 1890). Tanto a historiografia vinculada a Igreja, Graduando em História – UFRRJ-IM A exemplo de João Alfredo Montenegro que tende a enxergar as tensões Igreja-Estado com uma perspectiva evolucionista, que resultaria na separação entre Igreja e Estado. Pois a Ideologia Liberal condicionada ao processo histórico resultaria nisso. MONTENEGRO, João Alfredo. A Evolução do Catolicismo no Brasil. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1972. 26 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 53 como historiografia laica, tendem a olhar as primeiras décadas do século XIX como uma causa do que acontecerá na segunda metade, analisando, de forma mecânica a relação, sem considerar o processo dentro da sua temporalidade. Sendo assim, a temporalidade adotada é cronológica no sentido de restringir um período especifico (1800 a 1837 – da Fundação do Seminário de Olinda ao fim do governo do Regente Feijó). Neste período fatos importantes marcam tradicionalmente a História do Brasil – como a transferência da Corte em 1808 e a Proclamação da Independência em 1822, porém é um período em que a Igreja está se adaptando às mudanças políticas, sociais e culturais e, muito mais que uma instituição da sociedade em rumos da secularização, a Igreja está vinculada com o Estado. Trata-se, portanto, de um elo entre a sociedade brasileira em formação e o aparelho estatal – o Império – em organização. Nesta perspectiva, para entender a sociedade luso-brasileira do início do dezenove, deve-se levar em consideração as questões dentro da temporalidade do período. Melhor dizendo, deve-se tentar estabelecer os nexos lógicos da sociedade daquele tempo, pois ninguém poderia saber quando a Igreja iria se separar do Estado e muitos nem cogitavam esta possibilidade no início do século XIX. Portanto, é possível começar a refletir nesse tema levantando uma discussão historiográfica – conscientemente limitada – sobre a relação Igreja e Estado no início do século XIX, focalizando a mentalidade cristã, como uma característica indissociável desta sociedade; chamando a atenção para o surgimento de novas formas de fazer política, como produto de tensões internas (influenciadas ou embasadas por idéias externas); e pensando a Igreja como um elo entre o mundo institucional e as práticas sociais, personificada na figura do padre-político. Juntando os temas, seria possível levantar possibilidades de pesquisa, não para responder à motivação primeira para a elaboração deste trabalho, mas talvez para aproximar a História da Igreja Católica à História do Brasil. Pois enquanto a primeira tende a tratar de questões espirituais internas, a segunda olha para a Igreja como um apêndice do Estado e, por isso, não levaria em consideração a estreita relação, menos institucional e mais cultural, entre religião e política. Nesta perspectiva Magda Ricci parece construir sua biografia sobre o Padre Diogo Antônio Feijó, reavaliando biografias anteriores que separavam o Feijó político do religioso. “Se seus antigos biógrafos delimitavam a ação social de um padre político do estilo de Feijó como que tendendo a levar a morte do padre em benefício do político, por outro lado e em certo sentido, a intensa presença de Feijó nos debates parlamentares da primeira metade do século XIX CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 54 também reforçava a idéia da morte do padre perante o político. No entanto, a forma pela qual Feijó, ou melhor, Padre Diogo, chegou até mim impeliu-me a rever esta certeza historiográfica. Desde a minha pesquisa sobre Itu, estive longe de demonstrar que havia uma profunda cisão entre política e religião durante a primeira metade do século XIX. Foi isso que me fez perceber, rapidamente, a tolice da separação inicial entre o Feijó político e aquele antigo padre atualmente em Itu.” (RICCI, 2002, p.33) Assim, a tentativa é equacionar o binômio Igreja-Estado, sem hierarquizá-los em graus de dependência e/ou importância, mas pensar como as instituições unificadas (com suas tensões e acordos) podem refletir, em certo grau, a sociedade brasileira em formação, moldando os contornos dessa nacionalidade, onde o sagrado e o profano não são necessariamente conceitos opostos entre si. Portanto, o presente trabalho pode contribuir para uma leitura menos reducionista do que foi padroado régio no Brasil nas quatro primeiras décadas do dezenove, além de reavaliar a ação dita secular da Igreja, possibilitando leituras mais objetivadas na integração entre a esfera religiosa e política, pois estas esferas estavam mais associadas do que se pode imaginar. Isso levaria, também, a outras questões para se pensar: quem separou essas esferas, quando isso ocorreu, por que e como? Resultando em mais estudos específicos não sobre igreja, ou sobre política, mas sobre os dois ao mesmo tempo. 1. A Igreja Brasileira no Início do Século XIX (1800-1837) A tendência da historiografia até a década de 1980 era ver o Brasil como uma espécie de esponja que absorvia as idéias produzidas na Europa e na América do Norte. No caso específico da Igreja no Império, as análises, como de João Alfredro Montenegro tendem a dicotomizar o que ele entende como ideologia e conjuntura histórico-social. Para o autor, a tensão entre o condicionamento histórico-social e a linha ideologia, resultou em uma espécie de hibridismo entre o ―mundo feudal‖ e o mundo moderno, pois o conceito de moderno e feudal está pautado em modelos europeus. “São dois movimentos antípodas originários do mesmo centro. Um querendo prolongar o medievalismo de fundo teocrático. Outro enclausurando-se na alienação. Indiferente e até contrário a transformações econômico-sociais.[...] Deste modo, cria-se um tenso confronto ideológico entre duas concepções de mundo: a da Igreja desligada, e a do Estado a ingressar em nova fase de modernização. Caminham as duas entidades como retas paralelas, sem nunca se encontrarem. Aquela julgando os acontecimentos CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 55 chaves, as mudanças estruturais sob o ângulo de uma teologia e de documentos pontifícios deslocados no tempo, aquém das conquistas meterias. Já o Estado empreende tarefa de magnitude, esforçando-se por dar a ultima demão no seu aparelho institucional, autonomizando-o naqueles países de cristalizadas tradições católicas, onde persistia o desfalque da soberania do monarca em razão da concorrência da Igreja.” (MONTENEGRO, 1972, p.45) 1.1. “Cristãos e Brasileiros” Apesar da distinção teórica entre ideologia e estrutura, Montenegro chama a atenção para uma questão fundamental: a sociedade luso-brasileira é cristã. Uma conclusão inegavelmente lógica, porém, o problema é: que tipo de sociedade cristã é essa? E qual a amplitude dessa mentalidade nas relações sociais e no embasamento ideológico dos posicionamentos? Aqui, é possível avaliar a relação institucional da Igreja com o Estado, fundamentado não apenas em um jogo de interesses em acordo, mas como uma expressão da sociedade de mentalidade cristã. Ou seja, a continuação do Padroado é fruto da força da mentalidade cristã católica na sociedade brasileira. Por isso, as ideologias européias não teriam sido deturpadas ou desconfiguradas, como coloca Montenegro, mas elas teriam sido instrumentalizadas de acordo com os interesses em questão na sociedade luso-brasileira. A questão é entender os mecanismos de absorção das ideologias européias dentro da realidade local brasileira, considerando sempre a base cristã como uma espécie de filtro ideológico que não faz uma distinção relevante entre sagrado e profano. É possível agora partir para uma tentativa de compreender a mentalidade lusobrasileira do início do dezenove. A data escolhida como referência inicial (1800) marca a Criação do Seminário de Olinda, obra de José Joaquim da Cunha Azeredo de Coutinho, reconhecidamente filho intelectual da elite Coimbrã. Cursou teologia na Universidade, já reformada, na qual o seu tio Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho era reitor (1770-1779). Foi em Olinda que estudou a maioria dos idealizadores da revolta de 1817, como Frei Caneca. – o que talvez explique porque a historiografia veja tal instituição como foco dos ideais liberais no Brasil. No entanto, Villaça chama a atenção para as intenções e o objetivo de tal ―escola‖. “[...]O Seminário foi uma escola secundária razoável. Não há nada nos estatutos de 1798 que pudesse perturbar os status.[...]Os fins de Azeredo Coutinho foram modestamente pastorais e muito menos CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 56 intelectuais ou revolucionários do que as épocas subseqüentes imaginaram.” (VILLAÇA, 1975, p.30) A questão que se colocaria aqui é: como um centro de instrução secundária teria produzido a geração de1817 e de1824? Porém, para o objetivo do artigo, não convém seguir nesta direção, mas demonstrar a existência de uma mudança ideológica, representada na criação Seminário. Enquanto os jesuítas focalizavam seus estudos na especulação filosófica tomista, a nova elite intelectual, fruto da Coimbra pombalina, começava a interagir com a Igreja brasileira de uma forma mais ativa, buscando um papel mais prático da Igreja nas questões da sociedade. Esta ―teologia da ação‖, menos especulativa, resultou em padres-políticos, em uma maior integração institucional entre a Igreja e o Estado e, também, em uma tensão entre as duas esferas, principalmente devido a problemas de jurisdição – conflito entre poder temporal e poder divino (eclesiástico). Até o século XVII não havia problemas tão fortes entre a Igreja e o Estado – vale lembrar que a questão do padroado é vista em duas vias, pelo lado da Coroa é um direito divino dado ao Rei de gerenciar os assuntos religiosos, e pelo lado de Roma é uma concessão para a proclamação da fé católica. David G. Vieira acrescenta que o padroado na versão pombalina de D José I, rompe um pouco com a idéia de coexistência entre Igreja-Estado e apresenta uma certa supremacia do Estado. É possível perceber que a discussão, em principio, não é em separar religião e política, apesar de se ter consciência que as intenções ideológicas de cada grupo apresentarem muitas discordâncias. Porém, a mentalidade religiosa cristã é a base cultural da sociedade brasileira no início do século XVIII e fundamento de legitimação de qualquer forma de governo e/ou ―dominação‖. Em uma analogia, pode-se dizer que o cristianismo católico é a fôrma por onde se moldavam os posicionamentos e posturas ideológicas. Portanto, desconsiderar a religião e a fé – ou atribuir-lhes um papel secundário – na compreensão dos nuances da sociedade luso-brasileira é deixar de ver um ponto determinante para a melhor compreensão do Padroado. Isso aponta para indagações que podem ser aprofundadas, como: buscar entender que tipo de catolicismo começa a ser vivido no Brasil, quando há uma certa ruptura com a perspectiva jesuíta? Como a religião é capaz de se moldar às necessidades cotidianas (políticas, sociais, culturais e econômicas)? CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 57 1.2. Agência Civil da Coroa Será que a Igreja pode ser simplificada, a uma agência da Coroa? A historiografia mais ligada ao catolicismo, em sua maioria, responderia que sim. Como pode ser verificado no livro: A História da Igreja no Brasil – segunda época século XIX: “Não obstante o grande número de eclesiásticos revolucionários, bispos e padres, eram representantes de uma religião de Estado, consciente de seu papel de funcionários constituindo a segunda esfera administrativa do governo, ligada aos interesses dos grandes proprietários[...] A consciência dos bispos não é adequada para dar-nos uma idéia da Igreja brasileira; eram funcionários de uma religião de Estado agressivamente única, vindos de fora quase todos, sem identificação com o povo que deviam reger e ensinar. Por parte das autoridades civis era tão abrangente o conceito padroado que nem se pode falar de Igreja como instituição distinta do poder absoluto do Estado, que absorvia a religião como uma de suas instituições fundamentais.” ((HAUCK, FRAGOSO, 1980, PP.14-15) A questão não é tão simples como parece. A dicotomia mental entre poder mundano e poder espiritual, naturalizada hoje, seria aberração, ou heresia, em determinados círculos do início do Dezenove no Brasil. Mesmo que possa haver aparente imposição do Estado sobre a Igreja na versão pombalina do padroado, isso não significa, simplesmente, uma luta direta dessas esferas de poder. Antes, pode ser fruto da mentalidade cristã, de união entre poder temporal e espiritual, resignificada para atender às necessidades da época em questão. A Igreja, desde a colonização assumiu um papel mais forte na esfera civil. Não caberia aqui levantar as características da sociedade corporativa, mas somente chamar a atenção para a ―ação civil‖ da Igreja. Isso incluía, desde a educação – lê-se catecismo, cristianização – até registros civis de nascimentos, mortes, casamentos e testamentos, passando pelo atendimento das necessidades assistencialistas dos mais pobres e também, na realização dos sacramentos e rituais religiosos. É possível perceber, a integração entre os sacramentos – religião – e ação civil da igreja – os registros. Ao tempo que o pároco realizava o batismo, ele estava registrando o nascimento de mais um cristão e súdito da Coroa, assim também nos casamentos e na extrema unção. Isso mostra que a Igreja foi, e continuaria sendo, o elo entre a Coroa (Aparelho Estatal) e os súditos (os fieis) – posteriormente os cidadãos. Portanto, é na ação ―civil-religiosa‖ da Igreja que se verifica a base da inter-relação entre a esfera mundana e espiritual, de CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 58 forma exemplar e emblemática. A Igreja foi também ―instrumentalizada‖, de forma mais sistemática e institucional, como centro dos registros eleitorais e das eleições. E com a estabilidade do Império, construída no Segundo Reinado, o Estado começaria a se organizar na esfera civil, tirando aos poucos da Igreja o papel de ―agência civil da Coroa‖. Porém, é possível relativizar e questionar a instrumentalização da Igreja pela Coroa, pois pode parecer que a Igreja foi simplesmente manipulada como marionete nas mãos do Império. O que se propõe é um repensar a Igreja e aprofundar a questão em pesquisas mais específicas sobre a sua realidade, o Catolicismo e a sociedade brasileira no início do XIX. Além das instrumentalizações da Igreja pelo Estado, Montenegro chama a atenção para a legitimação espiritual da Coroa. A religião teria ajudado a fundamentar a mentalidade de obediência ao Imperador e, por conseqüência do Estado, construindo uma figura mitificada do Imperador – construção sócio-cultural do Antigo regime. A Igreja assumiria um papel de ―instrumento ideológico do Império‖. Além disso, ele considera a religião como mecanismo para moralizar a sociedade, para consolidar a ordem, com uma consciência religiosa mais materialista. Mais uma vez é possível ver a dicotomia entre mundo religioso e mundo laico nessas abordagens, porém essas duas esferas estão indissociáveis no período. Assim, ele afirma: “De outro ângulo, a ausência de consciência religiosa distanciada das superstições e do ritualismo, do devocionismo, do apego quase exclusivo à parte externa ou social do catolicismo, concorre para a atonia da religião, para a sua quase nula disposição dinâmica dentro dos quadros sócio-culturais. O que Pré-condiciona o domínio do materialismo e o assinalamento da religião como força despojada de atributos sobrenaturais, e compondo funcionalmente uma moral adestrada no regularizar os costumes e no consolidar a ordem. ( MONTENEGRO, 1972, p.174) 1.3. Conflitos “internos” A Igreja longe de ser uma unidade, também refletia as mudanças da sociedade de seu tempo, mas isso não quer dizer que no período em análise já haveria objetivos de caminhar para um Estado laico. Assim, a proposta é perceber as mudanças dentro de seu processo e de sua temporalidade. O primeiro conflito se dá é entre o tomismo e o iluminismo da Universidade de Coimbra reformada, isso não quer dizer que a partir das Reformas Pombalinas e a expulsão dos Jesuítas do Brasil, o clero brasileiro deixou de ser tomista e passou a ser iluminista. Claro que depois de 40 anos a nova geração CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 59 formada em Coimbra trouxe o ideário coimbrã ao Brasil NO entanto, os 300 anos de mentalidade jesuítica não são simplesmente trocados, mas recondicionados, de acordo com os interesses e necessidades de cada grupo. Como foi dito, não se questiona diretamente a relação religião e política, mas como deve ser percebida a relação. Outro ponto que se coloca é o fato do ideário liberal – no sentido do iluminismo de Coimbra – só ter conseguido empolgar as elites, Como se pode notar: “As indicações históricas do período [1832,33] parecem atestar que o liberalismo só consegue empolgar as elites, principalmente a burocrática. A latifundiária ainda guarda laivos densos da ideologia absolutista. Sabe-se da resistência sustentadora por régulos do Interior a revoluções liberais, tidas por vários deles como conspirações contra sagrados direitos do Imperador e contra os princípios da Santa Igreja Católica.”( MONTENEGRO, 1972, p.168) Portanto, classificar como um conflito, primeiro, entre um catolicismo tradicional, mais ligado ao Interior, contra um catolicismo ―liberal‖, mais ligado ao clero e a uma elite burocrática urbana. Claro que isso é uma generalização, mas pode apontar para outras pesquisas, buscando entender como dois tipos do ideário católico conviveram e se aliaram em função da formação de um Estado Nacional? Porém isso não apagou a questão em torno do padroado régio: jansenismo, galicanismo e ultramontanismo. Para Montenegro: “O jansenismo no Brasil haveria necessariamente de oferecer um tônus ideológico que refletiria essa postura intelectual [de divinizar a figura do Imperador, portanto, do Estado], num quadro sociológico a destacar a fragilidade do contexto nacional e a mínima integração social e fazendo aflorar o mimetismo cultural, político e econômico. Nesse arcabouço, haveria de pensar sem outra alternativa o absolutismo de Pedro I e o racionalismo católico de Pedro II” ( MONTENEGRO, 1972, pp.68--,68) A maioria dos autores apontam que os problemas em torno do Padroado Régio promoveram uma crise dentro da Igreja, porém isso se intensifica, somente na segunda metade do dezenove, com o processo de romanização da Igreja Brasileira. No entanto, o que foi mais discutido nos encontros eclesiásticos do inicio do Dezenove foram questões de reforma interna da Igreja, que envolviam temas morais e intelectuais – como o problema do celibato, várias vezes levantado pelo Padre Diogo Antônio Feijó. Assim, somente a partir do Segundo Reinado, quando a relativa estabilidade do Aparelho Estatal se consolidou, a Igreja começou a perder a participação política e passou a ser mais podada pelo controle estatal (HAUCK, FRAGOSO, 1980). Portanto, a CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 60 relação Igreja-Estado no dezenove não pode ser reduzida ao movimento de separação Igreja e Estado, assim como, a generalização das especificidades, deixa de considerar que até a década de 1830, os debates teriam sido mais pastorais e doutrinários do que institucionais, levando em conta que Feijó com a sua proposta de Igreja Nacional foi uma voz quase solitária. Pois, ao mesmo tempo que se pensava numa Igreja ligada aos interesses nacionais, tradicionalmente ela ainda deveria ser Católica Apostólica Romana. 2. Feijó: Uma Figura Emblemática Fundamentalmente a ação pastoral da Igreja se entrelaçava à ação política e vice-versa. Portanto, a dicotomia entre o padre e o político deve ser revista, como propõe Magda Ricci, percebendo a incorporação das atitudes políticas não separadas da pastoral, mas como parte dela. Assim, o púlpito não é apenas usado politicamente, mas antes um espaço sagrado de se ouvir a Palavra de Deus; e o padre não é apenas funcionário do governo, mas cidadão, homem e sacerdote; e a teologia não é simplesmente construção teórica e ideológica, mas expressão e reflexão da vida cotidiana que busca entender e satisfazer as necessidades concretas. Assim, o objetivo é relacionar o sagrado e o mundano – o padre, o cidadão e o político – dentro do pensamento da política cristã do Dezenove, considerando o Padre Diego Antônio Feijó como figura emblemática. Apesar de seus posicionamentos beirarem a heresia, ele continuou sendo padre, político e fazendeiro. Além disso, ficou conhecido por sua trajetória política, alcançando o posto mais elevado da nação: Regente. 2.1. O Púlpito: espaço sagrado “[...] a interpenetração do religioso e do profano fortalecia a influência do clero, que assim participava ativamente da vida política e social, assumindo posições políticas que vão de um radicalismo extremado, como o de Frei Caneca e dos padres revolucionários do Nordeste, a um liberalismo teórico e inconseqüente. Em todas as manifestações do movimento revolucionário é constante a presença de padres e frades, de 1789 a 1831, quando a revolução começa descaracterizar-se, e a liderança política é assumida pelos bacharéis. Cultivava-se o inconformismo nos conventos e seminários [...]Na principal atividade que se destacava o clero, a oratória, a pregação dos grandes oradores sacros ocupava-se, de modo CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 61 predominantemente, com temas políticos; nos púlpitos é que se iniciaram muitos movimentos, inclusive o da Independência. Mas não faltaram também os pregadores da ordem e da tranqüilidade, acusando de anárquicos os movimentos liberais.” ( HAUCK, FRAGOSO, 1980, PP.14-15) O ambiente religioso gozava de certa liberdade do discurso. Mais do que a figura do pároco, o Templo representava materialmente o governo divino, o lugar era literalmente sagrado, onde se acreditava, e ainda hoje se crê, que existe uma união mística entre o fiel e Deus. Portanto, não se trata unicamente de representação da mentalidade católica que vê o templo e o púlpito como Casa de Deus e o lugar onde Ele fala. Então, quando se discursava da plataforma do templo, no mínimo os fieis respeitavam e ouviam. Além disso, a capacidade dos párocos de relacionar os temas da fé com a devoção local e às questões políticas levava a disseminação de novas possibilidades de fazer política. Claro que não se pode menosprezar a inteligência dos fieis, por isso deve ser levantado um perfil de quem era o ouvinte e não apenas que idéias eles ouviam, possibilitando entender como cada grupo se apropriou das idéias mais liberais ou absolutistas. Além disso, o púlpito assumiu uma espécie de papel unificador e de aperfeiçoamento da linguagem dos brasileiros. Dada as múltiplas influências culturais, desde africanos, indígenas e europeus, a unidade cultural, essencial para a nacionalidade, precisaria de força mais ativa para a formação de uma mentalidade comum. Isso não quer dizer que se possa falar de aculturação, ou imposição ideológica – pura e simplesmente – mas o púlpito serviu, de certa forma, para estabelecer padrões comuns de linguagem e símbolos. Não se pode dizer, porém, que a sociedade brasileira construiu sua unidade a partir do discurso, pois como foi dito, a religiosidade do início do XIX se constituiu muito mais de prática do que teoria. Não significa, no entanto, ter acontecido uma distância teórica entre o púlpito e a vida cotidiana, pelo contrário. Neste momento, em que as tensões se colocam entre moderados, exaltados e caramurus, e as elites intelectuais formam-se em Coimbra. Utilizavam-se os púlpitos como espaços de debates, a exemplo dos jornais e dos teatros, mas com uma diferença, trata-se de um espaço sagrado. E, é essa diferença que dever ser considerada no discurso pronunciado dos púlpitos. Nesse sentido é possível estabelecer relações entre o discurso político e o sermão, pensando a relação entre a religião e a política (Padroado), de “baixo para cima” CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 62 Outra questão colocada pela historiografia católica – mesmo considerando questionável sua defesa pela romanização e autonomia da Igreja com relação ao Estado – é o fato de que a ênfase política teria diminuído o ensino da fé. E, portanto, esse ensino teria ficado a cargo das famílias e das ordens religiosas, transportando a esfera da devoção e da espiritualidade para fora dos templos e para além dos párocos. No entanto, é possível se questionar até que ponto as famílias e as ordens se relacionam com a Igreja e, qual é esse grau de autonomia delas? Essa problemática leva a historiografia a fazer distinção entre o catolicismo popular – heterodoxo – e o catolicismo institucional – ortodoxo. Porém, a religião católica nas terras da América Portuguesa, não apenas sofreu influências das culturas indígenas, africanas, mas se adaptou a conjuntura de ausência de controle eclesiástico – como propõe Luiz Roberto de Barros Mott – e aos interesses locais, formou uma identidade específica em cada localidade. Assim também, Ronaldo Vainfas coloca a mentalidade popular religiosa no Brasil como sendo uma mistura entre o sagrado e o profano. Por fim, pode-se citar ainda Caio Boschi e Mariza Soares como autores que percebem essa distância entre o Catolicismo e o que eles chamam de catolicismo popular na América Portuguesa. Essa ênfase política teria transformado o púlpito em um espaço, não só de divulgação, mas de legitimação do ideário político e, dos projetos de nação em construção e em debate. Assim, Montenegro chama a atenção, para caso do ideário liberal, que não se sustentaria em uma sociedade de mentalidade fortemente marcada pela religião. Pois o conceito e legitimação do Estado não se fundamentariam por si só, ou seja, necessitariam de legitimação relevante para àquela sociedade – a legitimação deveria ser então religiosa. Nesse sentido, o ideário liberal adaptou-se aos padrões de uma Monarquia Católica, conhecido como mitigado liberalismo, em que as idéias liberais embasavam-se em uma razão religiosa católica27. Portanto a religião é muito mais que uma esfera da vida social, é base de sustentação e legitimidade de qualquer projeto de nação em debate no Brasil no início do século XIX 28. Assim, o púlpito não foi abandonado pelos padres, mas foi resignificado para atender necessidades específicas do momento histórico de construção da nacionalidade, usando o espaço religioso como lugar de para se discutir os projetos de nação. Agora permanece a questão: como entender esta religião multifacetada, sem unidade de ação e com o ―clero secularizado‖, em certa perspectiva? Então, sem unidade e, em meio a disputas entre o centralismo político e o quase federalismo, a Igreja tende a incorporar a CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 63 problemática cotidiana de seus fiéis, ou seja, busca uma ação pastoral mais ―material‖ do que ―espiritual‖, e assim, desenvolve uma teologia prática ou uma teologia “políticosocial”. 2.2 Teologia da ação: de Itu para o Rio A vida e a devoção de Feijó se construiu em Itu, onde ele segue uma espécie de ―ordem religiosa‖ não convencional, chamada de padres patrocinistas. Esse grupo de padres, assim chamados pela sua devoção a Nossa Senhora do Patrocínio e pela construção da sua Igreja, foi pensado e dirigido por um frei mulato chamado Jesuíno do Monte Carmelo. Pelo fato de ter sido um homem piedoso e dedicado, porém rejeitado na ordem carmelita, resolveu criar por conta própria ―um arremedo de ordem. Juntou padres seculares numa casa onde estudavam e discutiam teologia, faziam caridade preces e jejuns.”(CALDEIRA, 1999:p.26). Com o sucesso dos patrocinistas e o reconhecimento da população, houve certa rejeição por parte da alta hierarquia da Igreja ao movimente, pois tinha idéias muito interessantes sobre a relação Sociedade-IgrejaEstado. O problema que se coloca é, também, a quebra da hierarquia, muito mais que as idéias. Numa sociedade estamental, a ordem é primordial, pois a atitude e a amplitude do movimento iniciado por Frei Jesuíno se confrontava com a hierarquia eclesiástica e por isso começou a incomodar. Não que suas idéias levassem a igualdade social, mas foi possivelmente a maneira que os chamados padres seculares encontraram de construir seus espaços na religiosidade católica de São Paulo. Assim, a devoção e a ênfase evangelizadora, aliado a moralidade forte e a consciência de dever nacionalista (ação política). Abriu caminho para incorporação de padres como Diogo Feijó e o apoio de setores ligados a elite econômica paulista. A incorporação entre o sagrado e profano dessa comunidade, constituiu as bases da visão de Feijó da relação Igreja-Estado e, proporcionalmente, do projeto de nação que ele ajuda a construir. “Padre Diogo Feijó era um evangelizador patrocinista, seguidor de padre Jesuíno, moralista, intriguista e um homem duro consigo mesmo e com seus companheiros, fossem eles seus amigos ou inimigos. Era um padre que, como Jesuíno, ampliava seu campo de atuação em nome da pregação e moralização do povo. [...]Sua habilidade era o discurso e, assim [...]havia se tornado um patrocinista em uma dimensão mais ampla. Neste sentido, padre Diogo Feijó entrará para a política sem nunca ter saído dela. (RICCI, 2002, p.254) CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 64 Essa visão mais ampla da evangelização é que merece ser abordada em mais detalhes. Para isso é necessária uma análise das bases teológicas do grupo dos patrocinistas. Entendendo por base teológica, não apenas influências de idéias e doutrinas religiosas, mas como se deu a construção sócio cultural da reflexão da realidade de vida daqueles homens. Pois teologia é relacionar a ―realidade material‖ e a experiência, com pontos doutrinários de fé, constituída na experimentação e não só na compreensão racional dos dogmas e/ou doutrinas. Portanto, para aceitar o termo freqüentemente usado de ―padres seculares‖ pelo simples fato de não terem sido formados em instituições formais, ou de seu conteúdo teórico ser limitado em relação às idéias européias, não se pode qualificá-los com esse termo. O termo pode então ser entendido como associação entre essas duas esferas da vida social desse período, como um termo que sintetiza a interrelação entre Igreja e Estado, religião e política, sagrado e profano. No entanto, se o olhar for mais teleológico e generalizante, menos atento às especificidades, poderá ser visto um caminho de transição entre o mundo de bases religiosas, configurado nas tradições absolutistas quase medievais (na relação IgrejaEstado) e o mundo que estaria por chegar – na Europa já tinha chegado – de bases legalista na idéia de nação. Isso pode ser chamado de secularização – quando as bases de legitimação da moral e das relações humanas deixam de ser religiosas e passam a ser geridas por uma espécie de consciência própria de certo e errado. Porém, a historiografia tem evitado grandes generalizações. Voltando para a figura do padre Diogo, sua postura não é secularizante, pois para ele a religião é peça fundamental para a formação da idéia de nação com uma moralidade e respeito às coisas de Deus. O que na verdade ele questiona é, em certa medida, a instituição: Igreja Católica Romana, a sua hierarquia e sua organização. Nesse sentido, ele não pretende submeter religião ao Estado, mas, a Instituição ao Estado. A confusão aqui colocada é devido à perspectiva de se enxergar a instituição como a religião. Mesmo que o clero, de forma geral, veja a Igreja como a religião, na prática a religiosidade é ―incorporativa e maleável, ou seja, híbrida e mutante. E, é nesse mundo que Feijó construiu sua estrutura mental, relativizando a instituição, mas mantendo-se fiel a sua devoção, acreditando que seria possível a construção de uma monarquia constitucional cristã católica, sem necessariamente ser romana. Para isso, ele coloca-se muito mais ligado a sua ―experiência provinciana‖ do que aos ideais importados da Europa. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 65 A “sociedade civil”de padre Diogo Feijó, aquela para quem ele tanto trabalhava no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Itu, ganhava contornos mais claros quando era regida por muitas outras forças, além das teorias e discursos liberais sobre a razão humana ou o regalismo que sempre o caracterizaram em todas as outras biografias. Até mesmo para pensar o padre Diego Feijó precisava juntar religião com razão. Ainda nas aulas de filosofia moral, em Itu havia sido bastante claro em sua união entre céu e terra, a teologia e a razão:[...] Se, por um lado, padre Diogo acreditava na superioridade de Deus diante dos homens, seus Deus legislador e juiz que governava “constitucionalmente”, os homens homens relacionavam-se entre si pela observância de leis e de cultos externos [...]ou internos. (RICCI, 2002, p.342-343) Essa atividade provincial, religiosa e política, confere ao padre Diogo Feijó certa singularidade em relação a outros colegas políticos. Ele tinha não só uma linha ideológica dita liberal, mas possuía respaldo de uma pratica social local forte, que na visão de Magda Ricci foi praticamente desconsiderada pelos seus biógrafos. É justamente neste ponto que é possível chamar a atenção para a relação entre Itu e Rio de Janeiro na trajetória político-religiosa de Feijó. Quando ele saiu de Itú (1821) para representar a Província de São Paulo nas Cortes de Lisboa, ele não abandonou e muito menos deixou de ser o Padre Diogo de Itu. Pelo contrário sua ênfase era marcadamente provinciana, no sentido de defender os interesses locais. Quando assumiu a legislatura de 1826, voltou para Itu, para as festas religiosas, devoções e debatas políticos locais. Após 1831, participou ativamente da reorganização do Estado Imperial, naquele momento como Ministro da Justiça, em 1835, torna-se Regente. Pode parecer um caminho de sucesso – saindo de uma mentalidade provinciana para uma esfera nacional. Mas, como chama a atenção Magda Ricci, a sua atitude política sempre considerava os interesses locais, não por questões de defesa de uma ideologia liberal federalista e descentralizadora, mas por uma construção política baseada na sua realidade provincial. Nesse sentido, é possível questionar até que ponto o ideário importado da Europa determinou os rumos do Império, além de ser possível relativizar a influencia da chamada elite coimbrã. Isso é correto até certo ponto, pois o que a figura de Diogo Antônio Feijó mostra é a construção de uma reflexão a partir da realidade local, certamente influenciada por idéias européias, mas não somente e nem determinantemente. Portanto, longe de desconsiderar a influência de Coimbra, a proposta é repensar a sua amplitude refletindo sobre como se deu a formação intelectual do Brasil, no Brasil nas relações entre poder local e nacional no que se convencional chamar de padroado. Mesmo que haja o problema da falta de sistematização das idéias, CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 66 é possível levantar esse ideário brasileiro de base provincial, através de textos literários, jornais e no caso específico – da relação Igreja-Estado – os sermões, cartas e solicitações aos bispos e também testamentos. CONCLUSÃO A noção de Igreja, quase sempre remete à idéia de intermediação. No caso analisado, além da intermediação entre Deus e os homens, a religião católica no Brasil do inicio do século XIX é uma espécie de elo para a construção da idéia de nação, aproximando a instituição Império da vida cotidiana. Levando em conta isso, é possível caminhar para várias pesquisas, como foi apontado no decorrer do trabalho, mas convém destacar – por opção – a análise do púlpito como espaço dessa aproximação entre Estado e o povo – os cidadãos ativos e passivos. A possibilidade seria, pensar o púlpito e a Igreja, como um espaço representativo, unificador das esferas institucionais – Igreja e Estado – ligados à teia social. Em outras palavras, seria a representação da costura entre instituição e realidade social. A partir daí se traçaria uma pesquisa, com base em sermões, testamentos e solicitações aos Bispados de como esse espaço se configuravam diante das tensões políticas da época. Percebendo, que a Igreja era muito mais que uma agência, pois nela (o Espaço, formado pelas pessoas e o Templo) percebe-se uma intercessão entre as esferas sagrada e profana. Assim, a figura de Feijó, ajudaria a rever essa idéia evangelizadora da Igreja, não tão fechada ao catecismo, porém mais ampla, como propunha os padres patrocinistas. Não esquecendo que se trata de um caso, talvez isolado, mas que suscita indagação sobre, como tais idéias se estabeleceram, a ponto de elevar um de seus seguidores ao cargo de Regente? Por fim, provavelmente, seja possível pensar como tal sociedade produziu tal personagem, e como se relacionava com suas idéias. Para isso, pode-se caminhar no aprofundamento da análise das devoções regionais, associando-as com atitudes e posturas políticas de região. Portanto, a proposta é associar o discurso religioso pronunciado nos púlpitos às devoções regionais – entendidas como expressões de religiosidade – e as relações com a Coroa. Assim, provavelmente, algumas projeções postuladas poderão ser revistas, ou até mesmo abandonadas quando as pesquisa e aprofundamentos maiores se iniciarem, no entanto, por hora é possível partir de um ponto inicial para se entender a relação Igreja e Estado no século XIX a partir de CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 67 relações locais de religiosidade e interesses políticos no. Para tal tarefa, é viável analisar os códigos eclesiásticos – neste caso ―As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia 1707‖ – confrontando-os com as solicitações de ereção de capelas e as visitas pastorais – como as de Monsenhor Pizarro, do final do século XVIII – buscando perceber se o que se impunha na relação de poder local (Igreja-Coroa e súditos Cristãos) era a determinação legal (neste caso eclesiástica) ou as relações construídas diante dos interesses locais? BIBLIOGRAFIA CALDEIRA, Jorge. Diego Antônio Feijó Coleção Formadores do Brasil. São Paulo: Editora 34. 1999. CARVALHO, José M. de. A construção da ordem: a elite política imperial. 4º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.2003. HAUCK, João Fagundes; FRAGOSO, Hugo; et.al. A História da Igreja no Brasil: ensaio de Iinterpretação a partir do povo Segunda Época – Século XIX. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. IIA1980. MONTENEGRO, João Alfredo. A Evolução do Catolicismo no Brasil. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1972. NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais - a cultura política da Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan FAPERJ, 2003. RICCI, Magda Maria de Oliveira. Assombrações de um padre regente(1784-1843). Campinas, Editora UNICAMP, CECULT-IFCH, 2002 VAINFAS, Ronaldo. Moralidades Brasílicas. IN ―MELO E SOUZA, Laura (org). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Volume I. VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil.ABrasília: Editora Universidade de Brasília. 1980. – cap. 2 Elementos em conflito. VILLAÇA, Antônio Carlos. O Pensamento Católico no Brasil. Rio de Janeiro: ZaharEditores.1975. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 68 A DEFESA PELA LIBERDADE RELIGIOSA NA IMPRENSA EVANGELICA (1864-1867) Pedro H. C. de Medeiros29 Resumo: O Brasil oitocentista foi marcado por diversas agitações de cunho político, social e religioso, que contribuíram para a formação da diversidade cultural brasileira. O país até então permanecera distante das disputas religiosas que abalaram a Europa durante três séculos. Com a chegada dos protestantes a partir do segundo reinado, as ideias protestantes começam a serem divulgadas através da imprensa, até a fundação de um periódico exclusivo dos protestantes presbiterianos denominado Imprensa Evangélica. O jornal não só publicou artigos religiosos, mas também procurou manter um diálogo com políticos liberais a fim de defender as liberdades civis que pudessem favorecer a expansão do protestantismo no Brasil. No presente artigo é analisado de que maneira ocorreu esse diálogo entre política e religião nas folhas da Imprensa Evangélica. Palavras-chave: Protestantismo, política, imprensa. Introdução No Brasil imperial, oficialmente, as religiões acatólicas eram apenas toleradas, cheias de restrição, enquanto o catolicismo era a religião do governo, da política e do povo. Todavia, tais restrições não impediram que os protestantes conseguissem construir seus templos, fazer proselitismo, batizar brasileiros e até mesmo publicar um jornal para divulgar suas ideias e criticar a religião católica, tudo aquilo que lhes era proibido por lei. Como objeto de nossa monografia defendida em 2011, O jornal Imprensa Evangélica: o discurso protestante no Brasil imperial (1864-1867), investigamos a inserção das ideias protestantes no contexto social, político e religioso do Brasil, no período do Segundo Reinado. O objeto de nossa pesquisa, o diálogo do protestantismo com a política brasileira, ainda é um tema muito pouco explorado pela historiografia. 29 Licenciado em História pela UFRRJ. Mestrando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da UFRRJ. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 69 Com o presente estudo, pretendemos contribuir para a compreensão da religiosidade brasileira do século XIX, e principalmente a relação entre política e religião nesse período. Ao trabalharmos com a temática da inserção do protestantismo no Brasil Império, destacamos algumas obras. Há o trabalho pioneiro, escrito na década de 1950 pelo francês Émile G. Léonard, O Protestantismo Brasileiro: Estudo de Eclesiologia e História Social. Em sua obra, Léonard analisou o modo como o protestantismo se inseriu na sociedade brasileira. Tomando como plano de fundo o protestantismo europeu, mais especificamente, o francês, destacou as singularidades do caso brasileiro. O autor analisou fontes diversas, tais como: jornais; documentos de arquivos públicos, eclesiásticos e particulares. Seu intuito era se afastar da história denominacional/confessional, escrevendo uma História Social do protestantismo brasileiro. Como principais contribuições de seu trabalho, podemos destacar a importância dada aos fatores sociais e políticos que favoreceram a inserção do protestantismo no Brasil. Ressalte-se, também, que o autor procurou analisar os principais percalços pelos quais o protestantismo atravessou no Brasil. A partir da obra de Léonard, outras obras passaram a ser escritas tomando como base essa matriz. É o caso do livro, publicado em 1973, de Boanerges Ribeiro, Protestantismo no Brasil Monárquico. Podemos destacar como principais contribuições de Ribeiro, o uso de documentos oficiais, leis, atas do legislativo e documentos da Igreja Católica, como fontes. O autor defende que pelo menos em três setores: legislativo, político e religioso; a sociedade brasileira já estava se preparando para a aceitação do protestantismo, antes mesmo da chegada dos missionários. A ressalva que temos de fazer sobre a sua obra é o fato dela beirar o triunfalismo protestante, dando muito pouco destaque aos problemas enfrentados pelos protestantes quando chegaram ao Brasil. A diferenciação entre instituição denominacional e material humano (os missionários) é muito tênue no seu trabalho. Sua tese é a de que o sistema brasileiro aceitou o protestantismo de forma ―consciente e deliberadamente‖ (RIBEIRO, 1973, p. 31), mas pouco se fala sobre as conversões ao protestantismo ou sobre a expansão real do protestantismo, deixando diversas questões sem serem respondidas. A primeira crítica que encontramos sobre o trabalho de Léonard foi feita por Antônio Gouvêa Mendonça, ao escrever em 1990, em conjunto com Prócoro Velasques CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 70 Filho, a obra Introdução ao Protestantismo no Brasil. No capítulo ―A ‗questão religiosa‘: conflito Igreja vs. Estado e expansão do protestantismo‖, o autor afirma que a historiografia feita até então não havia feito uma análise mais profunda sobre a cultura brasileira e a Igreja Católica, e diz que a obra de Léonard comete a mesma falha (MENDONÇA, 1990, p. 61-62). Podemos destacar como principais contribuições da obra de Mendonça e Velasques Filho a atenção que é dada às mudanças de ordem social, teológica e filosófica que atingiram tanto a sociedade brasileira quanto a sociedade norteamericana, de onde veio quase a totalidade de missionários que chegaram ao Brasil ao longo do século XIX. A missão que se expandiu no Brasil teria como plano de fundo as características culturais desses dois povos, adaptando-se e influenciando, formando aqui um tipo de protestantismo muito singular, um protestantismo brasileiro. Outra obra de Mendonça que merece destaque é O Celeste Porvir: A inserção do protestantismo no Brasil, com primeira edição em 1984, fruto de sua tese de doutorado defendida no Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Nesta obra o autor procurou demonstrar como a mensagem missionária foi aceita pela sociedade brasileira. Pela primeira vez, alguém se preocupou em analisar o protestantismo recebido por aqueles que realmente se converteram à nova fé: o homem pobre da zona rural de São Paulo. Tendo em vista que aquela camada da população brasileira, em sua maioria, era analfabeta, o autor destacou a importância que o primeiro hinário protestante brasileiro Salmos e Hinos - teve na expansão da fé protestante em meio aos camponeses, exercendo, principalmente, um papel pedagógico, substituindo, por vezes, o discurso doutrinário do pastor, que visitava as comunidades camponesas raramente. Sobre a aceitação da mensagem protestante pela sociedade brasileira, também podemos destacar o trabalho de David Gueiros Vieira, O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil, publicado em 1980. Trata-se de um trabalho paralelo e complementar ao de Ribeiro. Em sua obra, o autor procurou examinar outro campo que possibilitou a inserção dos protestantes ao longo da segunda metade do século XIX, isto é, a maçonaria, estopim da chamada ―questão religiosa‖, o ápice do conflito entre coroa e altar. Vieira procurou demonstrar como os maçons estavam extremamente vinculados aos protestantes, tanto os protegendo ante os clérigos ultramontanos, quanto os apoiando na prática missionária. As próprias lojas maçônicas, por vezes, cederam CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 71 espaço à liturgia protestante. Houve, também, jornais protestantes que transcreveram artigos escritos por maçons. O estudo de David Gueiros Vieira possui grande valor por ser extremamente denso na pesquisa de fontes. O autor baseia seus estudos em uma teoria que ele próprio diz ter ―má reputação‖, isto é, a teoria da conspiração, que defendia que forças maçônicas, republicanas, protestantes, liberais e outros grupos se aliaram para destituírem o poder político que a Igreja Católica possuía naquele período (VIEIRA, 1980, p. 12). Sobre a atuação missionária de Robert Kalley, recentemente foi defendida como dissertação de mestrado a obra de Sérgio Prates Lima, Peregrinos, missionários e protestantismo: o caso de Robert Reid Kalley, defendida no Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, no ano de 2010. Prates Lima procurou estudar a atuação de Robert Kalley na evangelização da Ilha da Madeira e do Brasil oitocentista. Baseando suas pesquisas na teoria de Bourdieu, Prates Lima aponta que a atuação de Kalley ocorreu em uma época de crise aberta de caráter social, econômico e religioso na sociedade madeirense (LIMA, 2010, p. 25). As principais contribuições da dissertação de Prates Lima centram-se no fato de ter sido um dos únicos autores até o momento a ter baseado suas pesquisas em teóricos da sociologia da religião, demonstrando que o campo de estudo do protestantismo no Brasil ainda está repleto de lacunas a serem preenchidas, com pesquisas baseadas em novos enfoques teóricos. Essa é uma parte da historiografia sobre a inserção do protestantismo no século XIX, entendemos que não é a totalidade do que já tem sido produzido, mas para efeitos deste artigo, cremos que seja o suficiente como um ponto de partida para o nosso estudo. Algo que nos chama a atenção é o fato de que os discursos protestantes ainda não tenham sido bem analisados. O propósito de nossa pesquisa é entender esses discursos, por isso optamos em pesquisar a imprensa protestante, a fim de entender o pensamento protestante no século XIX. Entendemos que, ao longo de todo o período imperial, a imprensa foi o espaço privilegiado para a propagação de diversas ideias de cunho político e religioso. A partir da segunda metade do século XIX, as discussões de cunho religioso e político se tornam ainda mais acirradas, devido a uma série de reformas pelas quais o país atravessava. Se por um lado houve a reforma do clero a partir de 1844, tendo como apoio político as CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 72 ideias conservadoras, por outro, havia os liberais que acolheram os protestantes como ―arautos do liberalismo e do progresso‖ (MENDONÇA, 1990, p. 74). Desde a chegada do primeiro missionário protestante que a imprensa passou a ser utilizada, também, como meio de divulgação da doutrina evangélica. Robert Kalley, missionário escocês que desembarcou no Rio de Janeiro em 1855, publicou a obra O Peregrino de John Bunyan, nas folhas do Correio Mercantil em 1856. Em 5 de novembro de 1864, fundou-se o Imprensa Evangélica, de linha presbiteriana, tendo como gestor Ashbel Green Simonton, missionário norte-americano que desembarcou no Rio de Janeiro em 1859. Explicando a causa que teria levado Simonton a fundar o jornal, David Gueiros Vieira assevera: O missionário presbiteriano estava surpreso com o que lia nos periódicos do Rio de Janeiro. Naquele momento não havia ataques jornalísticos ao protestantismo, mas, por outro lado, havia uma porção de insultos contra os ultramontanos, contra a Igreja Católica e contra o „papismo‟, como ele dizia (VIEIRA, op. cit., p. 137). Os objetivos específicos da presente pesquisa são: entender o discurso protestante a respeito da liberdade religiosa e indicar os principais diálogos entre o discurso protestante e o liberalismo da época. A fonte que analisamos é o jornal Imprensa Evangélica. O periódico teve sua primeira publicação em 5 de novembro de 1864, os principais redatores eram: Ashbel Green Simonton, gestor do jornal até 1867; Alexander Blackford, cunhado de Simonton e sucessor na gestão do jornal após a morte de Simonton em 1867; e José Manuel da Conceição, primeiro padre brasileiro convertido ao protestantismo de que se tem notícia. O jornal foi publicado entre os anos de 1864 até 1892, era quinzenal, saía aos sábados e continha oito páginas em cada edição. No presente artigo focaremos o discurso político-religioso sobre liberdade religiosa produzido no jornal entre os anos de 1864-1867, a intenção é verificar quais pressupostos eram defendidos pelos autores; além de apontar para possíveis inovações, originadas no discurso do jornal, na linguagem política da época. Em seguida, analisaremos os possíveis diálogos com políticos da época. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 73 Discursos político-religiosos em prol da liberdade religiosa Este trabalho, não tendo em vistas senão os interesses exclusivamente religiosos da sociedade em geral, como em particular do individuo, estranho a toda e qualquer ingerência em política, a todos é consagrado (PROSPECTO, Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 1, n. 01, 05 nov. 1864, p. 1). 30 A promessa feita na primeira edição, publicada em 5 de novembro de 1864, do jornal Imprensa Evangélica, foi cumprida em parte. Seja citando ideias e pensadores, ou se posicionando perante os principais debates da época, o jornal não se manteve estranho a ingerência política. Entre as datas de 5 de maio a 7 de julho de 1866, totalizando quatro números do jornal, os artigos de primeira página tinham por título ―A liberdade religiosa no Brasil‖. A intenção da redação era chamar a atenção para a necessidade de se discutir tal assunto. Nestes artigos, o redator se propôs a analisar quatro obras sobre liberdade religiosa que, segundo ele, eram as mais recentes publicações sobre o assunto no Brasil. As duas primeiras obras analisadas foram: Doze Proposições sobre a Legitimidade Religiosa da Verdadeira Tolerância dos Cultos, de autoria de Efraim; e, liberdade religiosa no Brazil, estudo de direito constitucional, de autoria de Antonio Joaquim de Macedo Soares; essas duas primeiras negavam que qualquer tipo de religião pudesse ser portadora de uma verdade absoluta. A terceira representava as ideias do clero que não aceitava a separação entre a Igreja e o Estado, além de não aceitar a liberdade religiosa, entendendo-a como prejudicial à moral e aos bons costumes, tinha por título: Liberdade religiosa segundo o Sr. Dr. A. J. de Macedo Soares, de autoria anônima. A quarta, Exposição dos verdadeiros princípios sobre que se baseia a liberdade religiosa, demonstrando ser a separação entre a Igreja e o Estado uma medida de direito absoluto e de summa utilidade, assinada por Melasporos, essa obra defendia a laicização do Estado (A QUESTÃO da liberdade religiosa no Brasil, Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 09, 05 maio 1866, p. 65-66).31 Dos quatro autores, só o terceiro, totalmente anônimo, e que o jornal denominou de Crítico do dr. Soares, não quis ver a 30 A partir desta citação em diante, atualizamos, sempre que possível, a ortografia dos textos. Importa salientar que não obtivemos êxito em encontrar tais obras, com exceção de Doze Proposições sobre a Legitimidade Religiosa da Verdadeira Tolerância dos Cultos de Efraim. 31 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 74 ... consagração moral e legal da mais ampla liberdade religiosa. (...) Bem que a leitura de seu opúsculo é fácil e agradável, mas isto só pode dizer-se em relação à forma ou à expressão de seu pensamento. Ou é membro do clero ou um leigo que dele tem aproveitado as instruções a tal ponto que o ordenar-se seria meramente uma formalidade. (...) obrinha (...) com todos os lugares comuns e teorias velhas com que se tem feito tanta confusão na mente de muita gente e nas relações atuais entre a Igreja e o Estado. De acordo com a redação, o Estado, sendo uma ―entidade imaginária‖, que não possui alma, não podia afirmar que professava uma religião. A tese que afirma ter o Estado uma religião serviria apenas para que a nação pagasse os emolumentos e as despesas de um culto privilegiado e isso não tinha relação alguma com a ―salvação de almas‖. Segundo os redatores, a prova disso é o fato de que se o governo pressionasse a Igreja para melhor atender a cura de almas, o clero ficaria irado e repreenderia o governo (Idem, Ibidem, loc. cit.). Esse pensamento, próprio do ultramontanismo,32 foi totalmente desprezado pela Imprensa Evangélica. Em 19 de maio do mesmo ano, a Imprensa Evangélica decide deixar de lado a abordagem do Crítico do dr. Soares, com a justificativa de que o único propósito dele era eternizar o conflito entre o Estado e a Igreja, em detrimento dos interesses reais de ambos (A QUESTÃO da liberdade religiosa no Brazil (continuação da pag. 67), Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, op. cit., v. 2, n. 10, 19 maio 1866, p. 73-74). Ao abordar os artigos de Efraim e de Macedo Soares, a redação da Imprensa Evangélica marca a diferença entre o seu argumento e as ideias desses autores. Para o redator, havia duas abordagens diferentes no país quando se tratava de liberdade religiosa: abordagem política, que via o que era melhor para política brasileira; e, a abordagem religiosa, na qual os interesses da religião prevaleciam. Caso Efraim e Macedo Soares formassem um partido político que tivesse como objetivo resolver a questão da liberdade religiosa, assegurando igualdade de direitos e deveres políticos a 32 ―Ultramontanismo foi um termo usado desde o século XI para descrever cristãos que buscavam a liderança de Roma (‗do outro lado da montanha‘), ou que defendiam o ponto de vista dos papas, ou davam apoio à política dos mesmos. Pelos idos do século XV, o mesmo veio a ser utilizado como descrição daqueles que se opunham às pretensões da Igreja Galicana.‖ (VIEIRA, 1980, p. 32-33). CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 75 cidadãos brasileiros e emigrados, o jornal se aliaria a eles. Em política, a solução para os problemas que envolvem a questão seriam leis práticas, sem haver muita preocupação com os princípios abstratos. Em matéria de consciência o que vale é a persuasão, pois a fé seria filha da persuasão, e não da luta armada do poder civil, afirma o jornal. Na análise dos redatores, o direito de padroado pressupunha a existência de dois tipos de ―bispos‖, um ―exterior‖ e outro ―interior‖; o primeiro seria o governo civil, temporal, e o outro o governo religioso submetido ao primeiro. Consequentemente, a prática religiosa transitaria entre o ―fanatismo e a hipocrisia‖, tornando-se impossível qualquer tipo de debate, pois qualquer discussão se tornaria um ―crime duplo de lesa majestade‖ (Idem, Ibidem, p. 73). Havendo concordância entre esses ―bispos‖ ressurgiriam as fogueiras do Santo Ofício. No entanto, mesmo sem fogueiras, havia uma violência moral contra quem aderia a uma religião divergente da oficial, pois, ficava privado de servir ao país como deputado, e não tinha os mesmos direitos do casamento reconhecido pelo Estado. Quem prezava pela liberdade não aceitava essa tolerância restrita que vigorava no Império, pois, sentia a necessidade de gozar dos mesmos direitos disponíveis aos católicos. Essa restrição influenciava até na vinda dos colonos europeus que o governo pretendia trazer para trabalhar no Brasil. Para o jornal, com a legislação em vigor na época, somente aceitariam vir para o Brasil as classes mais insignificantes da Europa, ou seja, aqueles que trocariam os seus ―direitos de consciência por um prato de feijão‖ (Idem, Ibidem, p. 74). Até esse ponto havia concordância da Imprensa Evangélica com relação a Efraim e a Macedo Soares. Contudo, a discordância que marcava as ideias do jornal e de tais autores transparecia quando tais autores passavam a discutir a essência da religião e do cristianismo. Para o jornal, havia bases muito mais sólidas e inexpugnáveis para defender a liberdade religiosa do que teorias baseadas na discussão da essência religiosa (Idem, Ibidem, loc. cit.). Em 2 de junho de 1866, o jornal declara que queria analisar com mais profundidade as ideias de Macedo Soares e de Efraim. O jornal começa afirmando que a falha desses autores estaria centrada no fato deles tentarem defender a liberdade religiosa baseados numa definição de religião, uma religião filosófica que abarcasse todas as crenças e cultos. Conforme a Imprensa Evangélica, isso teria um custo alto, ou seja, a indiferença religiosa (A QUESTÃO da liberdade religiosa no Brazil (continuação da pag. 74), Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 11, 02 jun. 1866, p. 81-82). CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 76 De acordo com o redator, a liberdade religiosa defendida por tais escritores era fruto de um questionamento maior sobre se existe ou não uma verdade absoluta como a professada pela Igreja. Para nenhum deles essa verdade existiria. Em 16 de junho de 1866, a Imprensa Evangélica declara que foi pesaroso criticar as obras de Efraim e de Macedo Soares. Entretanto, um jornal religioso não poderia sacrificar seus princípios de fé por simpatia aos ditos autores. Além disso, as ideias filosóficas deles acabariam por prejudicar a causa da liberdade de consciência e de cultos (A QUESTÃO da liberdade religiosa no Brazil (continuação da pag. 82), Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 12, 16 jun. 1866, p. 89-90). Ainda, nesse número, o jornal analisa as ideias de Melasporos, pseudônimo de Aureliano Cândido Tavares Bastos. Os princípios defendidos por Tavares Bastos, de acordo com a Imprensa Evangélica, são os seguintes: 1º A supremacia da consciência individual em matéria de fé e de culto à exclusão do emprego de força bruta ou de constrangimento físico em prol de qualquer religião. (...) 2º Todo o poder constituído está sujeito a esta limitação de suas atribuições. (...) 3º Uma fé no triunfo da verdade, tão calma e inabalável que ninguém se receie de dar batalha ao erro em campo aberto, ou duvide recusar com desconfiança e desdém toda a intervenção armada, ainda que esta se lhe mostre favorável na aparência. (...) 4º O mais amplo desenvolvimento do espírito propagandista... (A QUESTÃO da liberdade religiosa no Brazil (continuação da pag. 82), 1866, p. 90). O redator diz que apóia as ideias defendidas por Tavares Bastos, pois sua tese permitiria que crentes e descrentes vivessem em paz sob a égide do poder civil; e mais, diz que essa liberdade estaria posta sobre os princípios morais e religiosos. O último artigo desta série foi publicado em 7 de julho de 1866, quando, finalmente, o redator esclarece qual é a sua argumentação em defesa da liberdade religiosa. O jornal sustenta que a liberdade de consciência e de cultos deve ser dada, não se baseando em ideias de filósofos iluministas, e sim na supremacia da consciência individual, na iniciativa pessoal de indagar a verdade e professá-la livremente sem ser constrangido pelo poder civil. O governo deveria abster-se de interferir em matéria de CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 77 consciência, bastando apenas que a fé fosse propagada por associações voluntárias com plena liberdade de ação. Assim, estaria encerrado o conflito entre Estado e Igreja, podendo-se respeitar a fé alheia sem transgredir a própria. Essa teoria era a única que poderia ser aceita por todas as crenças, defendia o jornal. Segundo a redação, a partir da concessão de tal liberdade, poder-se-ia discutir a origem das crenças por meio da persuasão; o recusar-se a participar do debate denotaria falta de fé no ―triunfo da verdade‖. O jornal afirma que os defensores da fé católica se eximiam dos debates sobre liberdade religiosa, pois, toda vez que se viam ameaçados recorriam às armas políticas e sociais como se a ―espada do Espirito, que é a Palavra de Deus‖, não tivesse mais nenhum efeito (A QUESTÃO da Liberdade religiosa no Brasil (continuação da pag. 90), Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 2, nº 13, 07 jul. 1866, p. 97-98). Ao longo do primeiro período do jornal, a Imprensa Evangélica defendeu em seus artigos que a questão da liberdade religiosa tinha importância mundial. Além de que a falta de liberdade religiosa no Brasil dificultava o progresso social e econômico do país. Em 17 de agosto de 1867, a Imprensa Evangélica publicou uma matéria sobre a Câmara dos Deputados da Áustria. Em resposta a coroa austríaca, os deputados estavam defendendo uma reforma na legislação e em toda a administração, o alvo era o progresso material. As liberdades reclamadas eram direitos políticos: direitos de associação, de reunião e de liberdade de imprensa. Era necessária uma mudança na Constituição. Não queriam interferir na independência da Igreja, contudo, não aceitavam que uma lei ou decreto papal viesse revogar direitos dos mais importantes para a soberania de um Estado. Além disso, encaravam a Santa Sé como um poder estrangeiro. Para a Imprensa Evangélica, a iniciativa dos deputados austríacos deveria ter sido tomada antes, assim, seu país não teria sido expulso da confederação germânica e nem estaria exercendo ―papel secundário na política da Europa‖ (A CAMARA dos Deputados da Austria reclamando a liberdade religiosa, Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 16, 17 ago. 1867, p. 127). Em 7 de setembro de 1867, a redação afirmava que ―a liberdade religiosa é o complemento e a garantia da liberdade política‖. Seria a partir da junção desses dois direitos que os povos teriam conquistado a liberdade de consciência individual. Neste artigo, a Áustria foi citada novamente como exemplo, pois naquele país, a Câmara dos CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 78 Deputados havia votado a liberdade de cultos mesmo contra a vontade do Ministro dos Negócios Eclesiásticos que só aceitava a liberdade de consciência. Segundo o jornal, os deputados queriam ―curar os males políticos e sociais inseparáveis do regime teocrático por que a Áustria até hoje se rege‖. E conclui dizendo que ―virá a vez do Brasil. Aguardemos tranquilos o dia em que o povo se desenganará dos políticos retrógrados‖ (A LIBERDADE do culto votada pela Câmara dos Deputados na Austria, Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 17, 07 set. 1867, p. 136). Ainda nesta edição, o jornal noticia a visita do sultão da Turquia, em 5 de agosto de 1867, a Paris e a Londres. Na França, o imperador Napoleão III foi o anfitrião, recebendo o Sultão com ―honras estrepitosas‖. A redação se pergunta sobre o que pensariam os príncipes e cavalheiros das cruzadas se presenciassem esta cena. Para o jornal, era bom dar essa recepção ao Sultão, pois, assim, ele veria as vantagens que tinham um governo liberal-constitucional, e até mesmo poderia querer reformar as leis de seu país na mesma direção (A VISITA do Sultão a Paris e a Londres, Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 17, 07 set. 1867, p. 136). Nesse mesmo dia, o jornal transcreveu um artigo publicado no Jornal do Commercio de 1º de setembro de 1867. O autor do artigo era o vigário da freguesia de Sant‘Anna, Pedro de Mello Alcanforado que ao perceber que as igrejas dissidentes estavam conquistando espaço na corte e principalmente em sua freguesia, procurou convidar todos os fiéis a irem para a matriz a fim de receberem instrução das doutrinas e do catecismo, uma iniciativa para recuperar o ―rebanho que porventura se tenha desgarrado‖. O pároco reconhecia que estava negligenciando o ensino religioso oferecido aos párocos. Os redatores afirmaram que isso era uma resposta àqueles que acreditavam que a liberdade religiosa levava ao indiferentismo, pois, o vigário sentiu-se estimulado ao cumprimento do seu dever ―pela existência e concorrência de uma igreja evangélica. (...) Estes fatos se apresentam à proporção que a igreja evangélica se vai propagando‖. A redação felicitou o vigário por sua iniciativa, e disse que de sua parte faria o mesmo. ―A freguesia de Sant‘Anna demonstrará os benefícios que nunca se deixa de colher do principio da liberdade fielmente observado e levado à prática‖ (O VIGARIO da freguesia de Sant‘Anna estimulado a boas obras, Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 17, 07 set. 1867, p. 136). Em 2 de novembro de 1867, o jornal publica uma reportagem com uma estampa sobre a Austrália, demonstrando os benefícios advindos da liberdade religiosa naquele CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 79 país. Para o jornal, essa colônia é um destaque pela importância de seu comércio e pelo seu progresso, fruto da torrente de imigração. Os redatores afirmam que essa nação se regia pela Bíblia e por Jesus Cristo, que seria o ―legislador‖ e o ―cabeça da Igreja‖ (A AUSTRALIA, Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 21, 02 nov. 1867, p. 165). As crianças desse país eram ensinadas a conservar a sua liberdade de consciência, e, portanto, quando chegavam à idade adulta, sabiam ―mandar e obedecer‖. Diferentemente da tradição da ―raça latina‖, na qual os superiores da família, da Igreja e do governo privavam suas crianças da palavra direito (Idem, Ibidem, loc. cit.). Ademais, não só a Igreja brasileira era problemática; mas, segundo os redatores, o governo também, pois, era propenso a uma centralização excessiva, impedindo a iniciativa individual. A política religiosa ficava restrita a uma luta estéril entre progressitas, que nem sabiam ao certo o que queriam; e, retrógrados, que queriam retornar ao tempo feudal. Por fim, a redação conclui que ―é preciso criar uma nova geração imbuída nos princípios do Evangelho, a qual poderá conciliar a religião com a liberdade e a liberdade com a religião‖ (Idem, Ibidem, loc. cit.). Para os articulistas do jornal, a concessão da liberdade religiosa era crucial para o desenvolvimento religioso, social e econômico do Brasil. Com essas considerações, o jornal passou a participar do debate entre liberalismo e ultramontanismo, corroborando as afirmações liberais. E, como se não bastasse usar a linguagem liberal para construir seus argumentos, os redatores também endossaram, abertamente, os discursos de alguns políticos da época. Dialogando com as ideias liberais: relações entre os protestantes e Aureliano Cândido Tavares Bastos Segundo Pierre Bourdieu, ... o capital de autoridade propriamente religiosa de que dispõe uma instância religiosa depende da força material e simbólica dos grupos ou classes que ela pode mobilizar oferecendo-lhes bens e serviços capazes de satisfazer seus interesses religiosos, sendo que a natureza destes bens e serviços depende, por sua vez, do capital de autoridade religiosa de que dispões levando-se em conta a mediação operada CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 80 pela posição da instância produtora na estrutura do campo religioso (BOURDIEU, 2004, p. 58). Entendemos que a Imprensa Evangélica, como produtora de bens de salvação de um tipo novo, procurou mobilizar forças liberais que defendiam os mesmos ideias de liberdade religiosa. A seguir, analisaremos alguns artigos nos quais as ideias de Aureliano Cândido Tavares Bastos foram debatidas no jornal. Em 6 de abril de 1867, a Imprensa Evangélica transcreveu um artigo de Tavares Bastos que havia sido publicado no Jornal do Commercio e tinha por título: ―reflexão sobre a imigrarão‖. Para os redatores do jornal, nenhum estadista duvidava mais da necessidade de se garantir a liberdade religiosa em território brasileiro; necessitava-se apenas ―estabelecer as bases da liberdade religiosa‖. Isso era necessário para acalmar as consciências das famílias imigrantes, que pretendiam residir e trabalhar no Império. Tavares Bastos afirmava que se o art. 5º da Constituição fosse escrito em sua época, a sua redação seria a seguinte: ―É permitido livremente e garantido com igualdade o exercício de todas as religiões‖. Mencionava também o fato de que, em 1782, a imperatriz Maria Tereza, da Áustria, havia convidado imigrantes para se instalarem no Baixo-Danúbio, dando-lhes a concessão da liberdade religiosa. Ele constatava que essa região tornara-se muito próspera, logo, aqueles que queriam restringir a liberdade religiosa eram ―retrógrados‖, opositores do progresso. Finalizando o artigo, o redator diz que nos Estados Unidos, a liberdade religiosa foi uma das primeiras reformas Constitucionais votadas no Congresso norte-americano dos Estados Unidos em 1789. Para o redator, não havia país com maior atividade religiosa (REFLEXÕES sobre a liberdade religiosa, pelo Sr. A. C. Tavares Bastos, Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 3, nº 7, 06 abr. 1867, p. 54). Em 3 de agosto de 1867, Tavares Bastos novamente é citado no jornal. Desta vez, o jornal destacou a proposta de casamento civil que o deputado havia apresentado à Câmara dos Deputados; entretanto, afirmava o jornal, que mesmo com maioria liberal, o projeto não tinha previsão de ser votado pelos deputados; o presidente do Conselho, Zacarias de Góis e Vasconcelos, não apadrinhava a medida e a Câmara o apoiava. Para a redação, ―todos estes fatos denunciam a pouca fé que existe nos princípios da liberdade religiosa‖ (UM PROJETO sobre o casamento civil, Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 15, 03 ago. 1867, p. 116). CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 81 David Gueiros Vieira dedica um capítulo de seu livro para falar a respeito de Tavares Bastos. Primeiramente, afirma que esse político, acima de qualquer outro, ―tinha um amor e uma admiração absolutamente irrestritos pelos Estados Unidos da América e pelas coisas americanas‖ e ―amava o ‗progresso‘‖ (VIEIRA, op. cit., p. 95). Ele também defendia quaisquer que fossem as medidas que facilitassem as imigrações, ou seja, era um defensor do casamento civil e da liberdade de culto. Com a chegada dos missionários protestantes, ele também teria se tornado um grande defensor da causa evangélica. É digna de nota a defesa promovida por ele em prol da liberação de folhetos evangélicos encomendados por Robert Kalley, presos na Alfândega do porto do Rio de Janeiro em 1861. Em 1861, após ser demitido do cargo de oficial da Secretaria do Ministério dos Negócios Navais, Tavares Bastos começa a publicar uma série de cartas no Correio Mercantil, sob o pseudônimo de ―Solitário‖. Para Tavares Bastos, o Brasil precisava se espelhar e se aproximar dos Estados Unidos para poder se regenerar em prol do progresso. Os Estados Unidos seriam um exemplo de país desenvolvido a ser seguido. Além disso, ele destaca que o motivo de tanto desenvolvimento era devido à colonização empreendida por seitas protestantes independentes e não por padres católicos (TAVARES BASTOS, 1938, passim). Tavares Bastos tomou atitudes para ajudar a inserção dos protestantes em solo brasileiro. Em 1863, ele assessorou os ministros presbiterianos quanto ao procedimento para se registrarem legalmente como ministros protestantes, conforme artigo 52 do Decreto nº 3.069, de 17 de abril de 1863 e, também, quanto ao procedimento para organizar legalmente a Igreja (VIEIRA, op. cit., p. 159-160). Em suma, a fim de se estabelecerem no Brasil, os protestantes procuraram se aliar aos liberais reformistas José Thomaz Nabuco de Araújo e Aureliano Cândido Tavares Bastos - devido à exigüidade de espaço pudemos destacar apenas o apoio dado às teses de Aureliano Cândido Tavares Bastos - pois, eles se constituíam em elementos de contestação contra a religião dominante. Analisamos os discursos de cunho político-religioso contidos na Imprensa Evangélica. Verificamos as influências recebidas; as teses apoiadas; e, as teorias confrontadas. Logo, concluímos que o jornal era defensor das ideias liberais reformistas; mas, contrário ao liberalismo cientificista, que negava a fé. Embora, em sua primeira edição, os redatores declarassem que o jornal estaria alheio a ingerência CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 82 política, eles se contradisseram ao longo das publicações. Os redatores abriram mão dessa promessa a fim de apoiarem todos os projetos e iniciativas políticas que apoiassem a inserção do protestantismo no Brasil. BIBLIOGRAFIA BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. LÉONARD, Émile G. O protestantismo brasileiro. São Paulo: ASTE, 2006. LIMA, Sergio Prates. Peregrinos, missionários e protestantismo: o caso de Robert Reid Kalley. 2010. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica. MENDONÇA, Antônio Gouvêa. O Celeste Porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. MENDONÇA, Antônio Gouvêa; VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1990, p. 74. MEDEIROS, Pedro H. C. de. O jornal Imprensa Evangélica: o discurso protestante no Brasil imperial (1864-1867). 2011. Monografia (Licenciatura em História) Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto Multidisciplinar em Nova Iguaçu. RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Brasil Monárquico, 1822-1888: aspectos culturais de aceitação do protestantismo no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1973. VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 137. FONTES BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1824). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 08 nov. 2011. BRASIL. Decreto nº 3069 (17 de abril de 1863). Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=58145&norma=739 98>. Acesso em: 17 nov. 2011. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 83 IMPRENSA EVANGELICA. Rio de Janeiro, 1864-1867, BN PR-SOR 03254 [1-5]. SIMONTON, Ashbel Green. O Diário de Simonton. 2ª ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002. TAVARES BASTOS, Aureliano Cândido. Cartas do Solitário. 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. TRACTADO de amizade Commercio e Navegação entre sua Magestade Britannica, e S. A. o Principe Regente de Portugal. Correio Braziliense. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/bbd/bitstream/handle/1918/060000-027/060000027_COMPLETO.pdf>. Acesso em: 09 nov. 2011. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 84 O PSEUDOCRISTIANISMO E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA HISTÓRIA Fábio Fernando de Azevedo Pereira33 Resumo: Esse artigo objetiva comparar o desenvolvimento da igreja cristã antes e depois de Constantino e analisar se o objetivo de seu idealizador era, de fato, fundar uma religião ou estabelecer um estilo de vida. A comunidade cristã primitiva foi se estabelecendo em bases onde as concepções de templos vivos, partilha de bens, vida comunitária e sacerdócio de todos os santos foram fundamentais para sua estruturação. Após Constantino os templos voltam a ser de pedra, os recursos se destinam à manutenção institucional, o clero é restabelecido e o deus retirado dentre os homens. A instituição Igreja e não mais o homem se torna o representante divino na terra. Palavras-chave: cristianismo primitivo; Constantino; Igreja. “Mas o Imperador está nu!” Disse o garotinho. ”Falou a voz da inocência!” Exclamou o pai; e cochichou para outro o que a criança dissera. “Ele está nu!” Correu de boca em boca. “Ele está nu!” Bradou finalmente o povo. O Imperador ficou envergonhado porque sabia que estavam certos; mas refletiu: “O cortejo precisa prosseguir!” Aprumou ainda mais o corpo, e os camareiros, solenes, continuaram fingindo segurar o manto real que não existia. – Hans Christian Andersen – Por centenas de anos atribui-se ao Cristianismo muitos feitos sangrentos e horrores indivisíveis cometidos em nome de Deus ou da fé cristã. No entanto, pouco se aborda sobre o período onde esse modelo de fato imperou e prosperou a ponto de incomodar o império romano a suscitar inúmeras perseguições aos cristãos genuínos. A seita que abarcou mais gentios do que propriamente judeus espalhou-se rapidamente por todo o império, onde seus seguidores primaram por seguir ao estilo de vida estabelecido pelo principal líder. Depois da destruição de Jerusalém no ano 70 dC, o cristianismo judaico minguou em número e em poder. O cristianismo gentílico dominava, e a nova fé 33 Graduando em História - UFRRJ CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 85 começou a absorver a filosofia e os rituais Greco-romanos. O cristianismo judaico sobreviveu ainda por cinco séculos no pequeno grupo de cristãos siríacos, chamado Ebionitas. Mas sua influência não foi muito difundida (Will Durant, Caesar to Christ, 1950, p. 577). Ao contrário do que se praticava nos rituais judaicos e pagãos, onde a divindade era cultuada nos templos erguidos para esse propósito, os primeiros cristãos absorveram a ideia de serem templos vivos de um Deus que, acima de tudo, materializava-se como o Amor, de sorte que a redistribuição de renda e a preocupação com os pobres e necessitados se fazia presente em todo o processo de crescimento da seita. Segundo Soren Kierkegaard (Attack on Christendom, ET 1946, PP.59ff., 117, 150ff., 209ff) o cristianismo moderno é essencialmente falsificado. Ao contrário do que se praticava nos três primeiros séculos, hoje a religião cristã aplicada consegue ser, em sua essência, oposta aos princípios que o Cristo estabeleceu. Ao longo desses dois milênios algo colaborou para desestabilizar as estruturas de uma cristandade de ideias reacionárias e revolucionárias que traziam uma autonomia ao homem no acesso às questões transcendentais, tornando-o um instrumento de dominação e desapropriando o ser humano daquilo que se considerava o maior bem conquistado: a condição de ser habitação do deus que passaram a servir. O Cristianismo Primitivo conseguiu ser um modelo ―sui generis‖, diferente de tudo que existia e se entendia como misticismos e religiões. Não havia mais intermediadores para conduzir o homem ao deus que serviam, sem clero e sem liturgias. Consideravam todos os que criam como sendo sacerdotes e formadores do corpo de Cristo que, sendo ele próprio ―o Cabeça‖, aniquilava-se a condição de alguém subjugar ou dominar seus semelhantes dizendo-se representante dele. A presença do Cristo dentro do ser se torna o próprio ―religare‖. Por vezes reuniam-se em assembleias caseiras e dividiam seus bens e seus alimentos de sorte a não haver quem passasse necessidade. Porém, segundo Paulo F. Bradshaw, o cristianismo do século IV, absorveu ideias e práticas religiosas pagãs, vendo-se como cumprimento das metas das religiões anteriores (The search for Origins of Christian worship, new York: Oxford University Press, 1992, p. 65). Aos poucos os princípios fundamentais deixados pelo líder da comunidade cristã aos poucos foram se transformando em liturgias, rituais, ou seja, o que começou de forma simples, para ser apenas um estilo de vida onde cada um consideraria o outro superior a si, amaria e perdoaria um ao próximo, servindo aos mais necessitados transformou-se numa religião. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 86 A Igreja Primitiva não teve NT, nem teologia elaborada, nem tradição estereotipada. Os homens que levaram o cristianismo ao mundo gentílico não tiveram nenhum treinamento especial, tiveram apenas uma grande experiência – na qual „todas as máximas e filosofias foram reduzidas à simples tarefa de caminhar na luz, pois a luz havia chegado‟. – B.H. Streeter – Religião ou Estilo de Vida? No afã de substituir antigas religiões o cristianismo tornou-se uma religião. - Alexander Schmemann - Durante alguns milhares de anos o povo judeu viveu sob a égide da lei mosaica, cujos principais mandamentos consistiam em amar a Deus sobre todas as coisas (Dt 6:5) e amar ao próximo como a si mesmo (Lv 19:18). De repente, em meio aos judeus, surge um novo ―Rabi‖ intitulando-se o ―Cristo‖, que pregava que o reino de Deus havia chegado, e que o mesmo poderia se encontrar dentro do homem, conforme expressa Tomé, um de seus apótolos: Jesus disse: “Se aqueles que vos guiam disserem, „Olhem, o reino está no céu!, então os pássaros do céu vos precederão, se vos disserem que está no mar, então, os peixes vos precederão. Pois bem, o reino está dentro de vós, e também em vosso exterior (Evangelho de Tomé, capítulo 1, versículo 3). Após anos de ensinamentos pautados no amor ao próximo, Cristo entrega sua vida pelos demais, não sem antes ensiná-los a fazer o mesmo pelos outros. Com isso ele institui um novo mandamento descrito no Evangelho de João capítulo 11, versículo 26 dizendo que seus discípulos deveriam amar seus semelhantes como ele (Cristo) os teria amado, ou seja, também entregando a vida deles aos demais. Esse foi o fundamento que revolucionou os seguidores do primeiro século. Homens e mulheres passaram a viver o dia a dia deixando de lado seus interesses pessoais e buscando sempre o interesse de seu próximo. Cada um enxergava dentro do outro a presença do deus que criam e, por isso, o bem realizado às pessoas da comunidade era a principal forma de adoração a esse deus. Apesar das várias influências judaicas e pagãs da época, a comunidade por mais de um século manteve a questão da redistribuição de renda, conforme mostra a carta escrita por Justino: E aqueles que possuem em abundância e por desejo, conforme a preferência de cada um, dê o que deseja e aquilo que for coletado será depositado junto CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 87 ao representante e ele socorrerá os órfãos e as viúvas, e aqueles que por doença ou por qualquer outro motivo são privados de algo, a aqueles que estão em cadeias e a aqueles que são estrangeiros hóspedes, numa palavra a todos os que estão em necessidade ele lhes será um protetor (Ed. E. J. Goodspeed, - Die Altesten Apologeten, Göttingen 1915- Corpus Apologetarum Christanorum seculi secundi. Jena, 1876 sqq.). Muitos outros escritos da época reafirmam a ideia dos homens como templos vivos e da não necessidade de clero e de santuários para adoração e, quem sabe, não foram essas as razões dos mesmos terem sido considerados apócrifos. Apesar das muitas heresias surgidas no período e das várias correntes filosóficas, todas discutiam temas transcendentais sobre o Cristo ser deus ou não, sobre a trindade ou sobre o monofisismo, porém, nenhuma delas impediu a comunidade cristã de adotar um estilo de vida parecido com de seu líder, ao ponto de, na cidade de Antioquia, os seguidores serem chamados de cristãos, ou seja, ―pequenos cristos‖ (Livro de Atos, capítulo 11, versículo 26). A comunidade se reunia nas casas, comiam juntos, estudavam a doutrina apostólica (possivelmente a Didaqué) e ninguém passava por necessidade, pois tudo lhes era suprido através da partilha. Aos poucos, esse estilo de vida foi se ritualizando, os dogmas sendo formados e a igreja se institucionalizando. As casas deram lugar aos templos, o sacerdócio de todos os santos ao clero e as contribuições arrecadadas passaram a ter outras finalidades do que o socorro e a beneficência. De acordo com Frank Senn, ―Os cristãos dos primeiros séculos evitaram a publicidade dos cultos pagãos. Eles não tinham quaisquer santuários, templos, estátuas, ou sacrifícios. Eles não organizavam nenhum festival público, danças, performances musicais, nem peregrinações. O ritual central deles envolvia uma refeição de caráter doméstico e uma composição herdada do judaísmo. Realmente, os cristãos dos primeiros três séculos normalmente se encontravam em residências privadas convertidas em espaços de ajuntamento satisfatório para a comunidade cristã... Isto indica que a crueza ritual da adoração cristã primitiva não deve ser interpretada como um sinal de atraso, mas sim como um modo de enfatizar o caráter espiritual da adoração cristã” (Christian Liturgy, p. 53). Em relação ao poder aquisitivo da comunidade, que permitia com que fossem supridos os necessitados, L. Michael White (Building god‘s House in the Roman World, PP.142-143) pontua que os cristãos primitivos tiveram acesso a estratos socioeconômicos mais elevados. Além disso, o ambiente greco-romano dos séculos II CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 88 III estava totalmente aberto a muitos grupos que adaptavam edifícios privados para uso comunal e religioso. Que cristãos na era Apostólica erigiram casas especiais de culto, isso está fora de cogitação... O Salvador do mundo nasceu em um estábulo e subiu aos céus desde um monte. Seus Apóstolos e sucessores até o século III pregaram nas ruas, mercados, montes, barcos, sepulcro, cavernas, desertos e nas casas dos seus convertidos. Contudo, milhares de igrejas e capelas caras foram e continuam sendo construídas em todo mundo para honrar o Redentor crucificado que nos dias de sua humilhação não possuiu nenhum lugar onde repousar a cabeça! – Philip Schaff – O pseudocristianismo e suas consequências na história Se todos aqueles que tiveram acesso ao mandamento que por mais dois séculos foi a pedra fundamental da comunidade cristã que era amar ao próximo como Jesus os teria amado, jamais o cristianismo de hoje seria tão desigual à essência original. A mesma discussão que começou entre os apóstolos sobre quem seria maior (entenda-se, quem teria autoridade sobre os demais) não demorou a surgir entre Clemente e Donato quando houve a expansão da seita. Essa discussão foi abandonada pelos apóstolos quando entenderam que não se estava estabelecendo uma religião, ou um sistema de poder hierárquico, pois o reino que se estava prometendo não possuía bases políticoadministrativas, nem plano de cargos, muito menos esferas de poder, porém, o mesmo não ocorreu tempos depois. Após a intervenção do imperador Constantino, cuja essência pagã nunca se apartou de seus preceitos religiosos, todos os integrantes da comunidade cristã que eram sacerdotes e templos vivos do deus que serviam, ou seja, sem a necessidade de mediadores, são destituídos desta condição, pois os templos são erguidos e o clero é restabelecido. A chamada Igreja se torna uma poderosa instituição e nem mesmo Reforma Protestante consegue mudá-la, visto que a própria reforma em si também não possuía em suas bases o fundamento cristão primitivo. Sobre Martinho Lutero e o termo igreja abordou Emil Brunner: ―De todos os grandes mestres do Cristianismo, Martinho Lutero foi o que mais claramente percebeu a diferença entre a Ekklesia do NT e a igreja institucional, e reagiu fortemente contra o „quid pro quo‟ que CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 89 as identificavam. Tanto que meramente recusou tolerar a palavra „igreja‟: termo que ele descreveu como ambíguo e obscuro. Em sua tradução da Bíblia, traduziu ecclesia como „congregação‟. Ele se deu conta de que a Ekklesia do NT não é „algo‟, nem uma „coisa‟, ou uma „constituição‟, mas um conjunto de pessoas, um povo, uma comunhão... Foi tão forte a aversão de Lutero à palavra „igreja‟ que os fatos históricos são comprovadamente mais fortes... O uso linguístico da Reforma e da era pós-reforma teve que chegar a um acordo com o poderoso desenvolvimento da ideia de igreja. Consequentemente, toda confusão provocada pelo uso „obscuramente ambíguo‟ dessa palavra penetrou na teologia da Reforma. Era impossível voltar um milênio e meio no relógio. A concepção „igreja‟ permaneceu irrevogavelmente moldada por seu processo histórico de 1500 anos” (The Misunderstanding of the Church, London: Lutterworth Press, 1952, PP. 15-16). Ainda assim, hoje, tanto a igreja romana como as protestantes se mantiveram no foco contrário ao desejo principal de seu idealizador. Com isso, deixam manchas indeléveis na linha histórica da humanidade, que podem ser apagadas apenas pelas lembranças do que um dia foi, fez e contribuiu para a humanização dos homens e a busca de uma sociedade justa e equânime. Mas o estilo de vida criado pelo Cristo e por tantos cristos que como ele têm vivido nessa sociedade humana, distribuindo suas vidas por uma causa maior contínua latente dentro de cada um que acredita em um mundo melhor para todos os homens. A esse modelo religioso onde os homens necessitem de sacerdotes que os conduzam a deus, de construções de pedra e tijolo para servirem como moradia desse deus, da destinação dos recursos arrecadados às necessidades institucionais e, principalmente onde existe uma concepção particular de amor onde a necessidade pessoal está acima da coletividade não pode, de forma alguma, ser denominado de Cristianismo, mas sim de 34Constantianismo. Referências Bibliográficas Bradshaw, P. F. The search for Origins of Christian worship, New York: Oxford University Press, 1992, p. 65 34 Constantianismo: conceito que denomina o modelo religioso assumido pela comunidade cristã primitiva após a intervenção do imperador Constantino. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 90 Brunner, E. The Misunderstanding of the Church, London: Lutterworth Press, 1952, PP. 15-16 Durant, W. Caesar to Christ, 1950, p. 577 Ed. E. J. Goodspeed, - Die Altesten Apologeten, Göttingen 1915- Corpus Apologetarum Christanorum seculi secundi. Jena, 1876sqq. Kierkegaard, S. Attack on Christendom, ET 1946, PP.59ff., 117, 150ff., 209ff Senn, F. Christian Liturgy, p. 53 White, L. M. Building god‘s House in the Roman World, PP.142-143 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 91 GRUPO 3: RELIGIÃO NA CONTEMPORANEIDADE AS TÉCNICAS XAMANICAS E O CASO DE XAMANISMO DE TIA NEIVA NO VALE DO AMANHECER. Cleiton Machado Maia35 O processo histórico de formação do Vale do Amanhecer Entender a formação do Vale do Amanhecer é importante para destacar a história da comunidade, de sua líder fundadora, como também alguns aspectos relevantes para esse trabalho. A vida religiosa do Vale do Amanhecer vai ser iniciada muito antes de sua fundação em Brasília, assim como o início da vida espiritual da fundadora. Com o nome de batismo Neiva Chaves Zelaya, a futura fundadora do Vale, nasceu em Propriá, pequena cidade de Sergipe em 30/10/1925. Devota fervorosa do catolicismo, criou sua família dentro da religião, onde se casou e batizou quatro filhos: Raul, Gilberto, Carmem Lúcia, Oscar e Vera Lucia. Ficou viúva bem cedo e teve que começar a trabalhar para sustentar sua família, tornando-se a primeira caminhoneira licenciada do Brasil36,isso com apenas o primário completo. No ano de 1957, começou a manifestar suas primeiras experiências mediúnicas, onde, segundo estudos, recebeu do mundo etéreo a mensagem cristã de Jesus para o terceiro milênio, sendo assim escolhida por ―Pai Seta Branca‖ – entidade maior do Vale do Amanhecer – para essa missão. Como era católica fervorosa, demorou a entender e aceitar a missão para qual tinha sido escolhida. Neste momento é preciso destacar a figura de Dona Neném, que teria ajudado-a a conhecer e desenvolver sua mediunidade. Muitos devotos do Vale destacam a não confirmação da pessoa física de Dona Neném, o que sustenta a sua figura como uma entidade que ajudou Tia Neiva a formar o que seria um dia a doutrina do Vale do Amanhecer e sua vida mediúnica37. Percebendo as boas oportunidades de emprego na construção de Brasília nos anos de 1905, muda-se para Alêxania, em Goiânia, e funda em 1959 a União 35 Mestrando em Ciências Sociais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. ÁLVARES, Bálsamo. Tia Neiva – Autobiografia missionária. Brasília: [do autor], 1992. 37 ÁLVARES, Bálsamo. Tia Neiva – Autobiografia missionária.Brasília: [do autor], 1992. 36 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 92 Espiritualista Seta Branca (UESB). Segundo Tia Neiva, era uma ―emergência espiritual‖, que iria ajudar os pacientes com dificuldades espirituais. Por ordens astrais, mudou-se para a Serra do Ouro que se localiza no quilômetro 73 da rodovia Brasília – Anápolis, onde continuaram os trabalhos, mantendo a serralheria, a fábrica de farinha e fundando um orfanato, uma farmácia, uma plantação de amendoim e uma pensão para os pacientes de curas espirituais e físicas38. Assim, no ano de 1964, a história do Vale do Amanhecer começa a se formar de maneira mais concreta. Tia Neiva se separa definitivamente de Dona Neném - nunca mais tendo contato e nem a encontrando – fundando sozinha em Taguatinga um galpão para seus atendimentos de clarividência e cultos. Nessa época, conhece Mario Sassi, aquele que seria seu braço direito na formação da doutrina e futuras estruturas do Vale do Amanhecer. Mario Sassi, que era paulista e trabalhava como assessor de Relações Públicas na Universidade Federal de Brasília (UnB), abandonou tudo para engatar no trabalho como médium e auxiliar de Tia Neiva no Vale, sendo o grande responsável por registrar a obra de Neiva em filmagens, fitas e livros, permanecendo no Vale enquanto Neiva esteve viva. Em 1969, depois de quatro anos em Taguatinga,Tia Neiva perde o direito de posse na terra em que viviam e começa a procurar local para uma nova instalação onde acham um terreno a seis quilômetros de Planaltina, fixando-se ali, onde está localizada até hoje. Segundo Mestre Sebastião39,no momento que Neiva e demais médiuns passaram pelo local, Pai Seta Branca teria dito a ela que aquele era o local escolhido para a construção da primeira cidade mediúnica (grifo meu). Nos anos seguintes começaram a ser construídos os templos e locais de trabalhos, onde em 1971 iniciou-se a construção da Casa Grande; local de moradia de Tia Neiva, seus filhos e seu companheiro Mario Sassi (destaco a Casa Grande não só como local de moradia, mas sim como um templo também, já que nele existiam 38 ÁLVARES, Bálsamo. Mensagens de Pai Seta Branca. Brasília: [do autor], 1991. Mestre Sebastião é o responsável pela recepção do Vale do Amanhecer, adepto da doutrina a mais de 35 anos, vindo de seu estado natal MG, foi ao Vale procurar cura para um filho seu que havia nascido com uma séria doença. Iria ficar uma semana, mas acabou se fixando na cidade até hoje, ganhando prestígio e conhecimento após viver 25 anos com Neiva (de quem fala com carinho e muita intimidade, ao ponto de ter sido um dos últimos a ver Neiva viva em seu quarto, poucos minutos antes de morrer). Reformado da Aeronáutica criou três filhos (no qual o que era especial faleceu anos depois de entrar para a doutrina) e hoje vive exclusivamente para o trabalho doutrinário. Foi Mestre Sebastião que me acolheu nos períodos que estive em campo no Templo Mãe do Vale do Amanhecer em Brasília, durante dois períodos de um mês estive guiado por ele andando, entrevistando membros, conhecendo a doutrina e a vida em comunidade. 39 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 93 trabalhos e algumas experiências mediúnicas da clarividente que serão de grande importância para nossa análise do xamanismo de Tia Neiva) e o novo orfanato. No ano da morte de Tia Neiva, em 1985, o vale já estava com sua estrutura física totalmente completa e sua doutrina estruturada e organizada em cargos hierárquicos numa série de rituais complexos, onde Tia Neiva levou em conta o crescimento em número de adeptos, onde cada médium passou a ter sua ordem religiosa hierárquica e mediúnica até hoje. Após sua morte, os médiuns que haviam sido escolhidos por Neiva tomaram a liderança e continuação dos ensinamentos e doutrina da fundadora. Segundo mestre Werner40 não existe atualmente um líder carismático, ou com carisma o suficiente para convocar um trabalho de proporções iguais ao da tia Neiva.Um dos grandes incômodos dos médiuns do Vale do Amanhecer nesse momento é a falta de um líder que se responsabilize pelos trabalhos. Enquadramento dentro dos novos movimentos religiosos brasileiros (N.M.R.Br) Todos os grupos religiosos são novos frente às correntes religiosas ditas tradicionais – grupo religioso formal - que se estabeleceram no Brasil. Podemos incluir neste grupo aquelas religiões que apresentam técnicas de dimensão espiritual diferente ou que busquem divergência com os grupos religiosos tradicionais. Seriam estas as religiões encontradas no terceiro grupo, distintas em relação ao catolicismo e ao protestantismo. Apesar de, desde o início do século XX, haver uma frequente mudança nesse terceiro grupo no Brasil, não chegou a ocorrer uma perda dos antigos grupos, mas sim um surgimento de novos movimentos. As antigas religiões do terceiro grupo continuaram inalteradas, recebendo novas religiões junto delas. Uma das grandes dificuldades para se estabelecer e entender esse surgimento de novos grupos religiosos é o dualismo, dupla definição ou religiosidades ocultas. Esses fenômenos acontecem muito por medo que um grupo tem de assumir uma nova religião ou até mesmo quando uma dessas novas religiões não exige de seus adeptos que a assumam como religião ou como única religião. 40 Mestre Werner conheceu a doutrina do Vale em sua cidade natal em Minas e hoje é o responsávelpelo transporte dentro da comunidade, ele quem fez meu transporte dentro do Vale. Era umbandista no início de sua vida e conheceu Tia Neiva, e também conheceu as diferenças das duas formas de mediunidades, a do Vale e da umbanda. Foi Mestre Werner que fez meu transporte durante o período que estive no Templo Mãe em Brasília. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 94 Nos Estados Unidos e na Europa esse tipo de interesse pelos novos movimentos religiosos já tem um grande espaço na área cientifica como a CESNUR (Centro de Estudos Sobre Novas Religiões); que vem tentando encontrar os limites, fronteiras e diferenças entre esses movimentos, gerando assim uma diversidade de trabalhos que definem um corte para as ―novas‖ religiões das religiões tradicionais, já que essas novas religiões seriam de forma pejorativa uma afronta as antigas religiões que estavam responsáveis pelas normas de ética e moral. Existem varias controvérsias em relação ao titulo de movimentos religiosos, pois varias organizações incluídas nesse rótulo não se auto-definem seguidores de princípios espirituais ou rejeitam a organização formal normalmente associada à religião. Seriam seguidores de princípios filosóficos; além do problema de nomear uma revitalização ou adaptação de um movimento religioso tradicional, como acontece com o hinduísmo e o islamismo desde o final do século XVIII, como novo movimento. Seria muito vago e generalizador, servindo como um grande guarda-chuva que acolheria todas as religiões – ambiguidade de metáforas - que se distanciam das tradicionais (Amaral, 2000, 191). No Brasil ainda se tem a singularidade das religiões como a Umbanda e o Kardecismo, que são do século XX, mas estão enraizadas na nossa cultura e sociedade, onde dificilmente seriam nomeadas como algo diferente de tradicional, dentro dos nossos parâmetros sociais e culturais, considerando o processo de formação da nossa identidade histórica como nação41. Deparamo-nos então com a existência de duas grandes tendências: em primeiro lugar as fundamentalistas e separatistas, com forte influencia do que Weber (Weber, 1974, 187) chamou de via ética, procurando resposta aos erros encontrados na sociedade através de uma forte conduta ética. E a outra, não menos importante, são os grupos voltados para o relativismo e as buscas individuais (religiosidades paralelas e não institucionais), onde ganha destaque a autonomia do sujeito, constelação dos autos, autoconhecimento e elevação espiritual. Mostra-se como relevante, a salvação do individuo de forma mística (Weber, 1974, 187), sem a separação do corpo e espírito, mas sim uma evolução e bem estar de ambos com um bem estar geral, viabilizando a religião através determos científicos e 41 GUERREIRO, Silas. Novos Movimentos Religiosos – um quadro brasileiro. São Paulo: Paulinas, 2006. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 95 fazendo referencia as religiões tradicionais, e um passado distante, o que permite maior aceitação de diversos grupos sociais42. Sendo assim, podemos entender que o Vale do Amanhecer se encaixa no modelo histórico de N.M.R. com seu surgimento iniciando-se por meados da década de 60, além de ter em seu discurso, essa busca de autoconhecimento e evolução do individuo, como características de orientalismo. O que é xamanismo? O xamanismo esteve negativamente associado à figura do feiticeiro ou sacerdote de uma tribo ou comunidade, prática antiga da humanidade segundo o antropólogo Paul Devereaux (Devereaux, 1993, 19). Segundo esse autor, a prática surgiu junto ao universo mágico - espiritual do animismo, mentalidade religiosa associada aos caçadores, nômades e coletores do paleolítico e mesolítico que percebiam a natureza sobre um viés antropomorfizante, e também do totemismo que teria evoluído do animismo onde via uma espécie de animal ou ser natural como sagrada e a relacionava a um clã particular, em alguns casos crendo ser um ancestral em comum. Detectados em diversos lugares e culturas do mundo, levou a autores como M. Eliade (Eliade, 2002, 16) a crer que (os xamãs43) surgiram em períodos concomitantes, correspondendo a uma necessidade arquetípica do ser humano as práticas xamânicas, estendendo arquétipo ao sentido junguiano, como elemento estrutural do consciente coletivo. Outra explicação encontrada e bem aceita é a de transmissão por contatos culturais das civilizações antigas por meio de migração, essa ideia é defendida por C. Guinsburg (Guinsburg, 1991, 13) em seu livro Histórias noturnas do Sabá: decifrando o Sabá. No caso de Walsh (Walsh, 1993, 20-22) é a entrada no EAC - estado alterado de consciência - em beneficio da comunidade que define o êxtase xamânico, pois este tem como diferencial primordial o vôo da alma em viagem a outros mundos. Em todos os autores que citarei, o EAC - estado alterado de consciência - é fator necessário e essencial para um xamã. Pois isso irá contribuir para a mística e complexa segunda realidade ou clarividência, isso por meio de uma soma de ritos, símbolos, crenças e a própria manifestação do êxtase. Essa segunda realidade seria uma superação 42 43 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. Acrescentado e grifado por mim. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 96 da ―primeira realidade‖, que nada mais é que o nível biológico e real, de onde todos têm total conhecimento. A obtenção do êxtase xamânico se dá por meio de um combinado, não obrigatório de elementos como: o desgaste físico, o consumo de alucinógenos, as técnicas de concentração, o canto, a dança e outros mais. Assim ele atinge o êxtase que o possibilita atender a sua comunidade em seções de cura, falar com espíritos, viajar a outros mundos e planetas. Esse êxtase tem que ser aceito pelos adeptos da comunidade para que assim o xamã seja respeitado, assim os demais têm que participar pelo menos um pouco dessa atmosfera lúdica e dramática das seções xamãnicas, onde sons, figurinos, cheiros e cores proporcionam uma sensação de vertigem e o teatro atinge a sua função de fazer os adeptos sentirem ao menos um percentual mínimo dessa viagem, onde no Vale podemos perceber esses elementos bem claramente. O percurso do xamã e herói Campbell (Campbell, 1996, 103) em seu livro O herói de mil faces, faz uma comparação entre o xamã e o herói, assim como Walsh (Walsh, 1993, p.33), dizendo que os xamãs são os heróis da humanidade, pessoas que triunfam e ultrapassam a natureza humana. São os guerreiros, regentes, curandeiros, santos e sábios que se inspiraram protegeram, serviram e iluminaram, e cujas vidas funcionam como monumentos em homenagem ao potencial ainda desconhecido de cada um de nós. Suas vidas foram imortalizadas em mitos, lendas e biografias. Os mortais comuns pensam a respeitos deles e espantam-se com suas façanhas, veneram-nos e até mesmo idolatram-nos e, muitas vezes, acreditam que devem ser mais do que somente humanos, mesmo quando os próprios heróis afirmam que não (WLASH, 1993:33). Nesse caso a partida e o rito de separação se equivalem, pois a iniciação do herói normalmente ocorre quando ele se distancia do mundo para um lugar afastado onde só tem contato com seu mestre e o mundo sobrenatural, daí o rito de marginalidade. E por ultimo o retorno que está diretamente ligado ao rito de agregação, tempo onde o herói consagrado volta para a sua comunidade trazendo benefícios e conhecimento para ela. Eliade (Eliade, 2002, 154) em sua consagrada obra O xamânismo e as técnicas arcaicas do êxtase apresenta as três fases expostas acima e caracteriza alguns tópicos existentes na generalidade das técnicas xamânicas. Segundo ele antes da partida do xamã ele tem que passar por uma fase chamada recrutamento, onde por meio de sonhos CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 97 iniciáticos ou doenças inexplicáveis, o xamã é recrutado e percebe sua excentricidade.A partir deste momento, ele entra na fase conhecida como partida onde se marginalizará da sua comunidade e viverá com seu chefe espiritual e os espíritos. Nesta etapa, sua iniciação começa a ocorrer, com a obtenção de seus poderes xamânicos, seus símbolos, indumentárias, curas mágicas e principalmente o que Eliade (Eliade, 2002, 184) chama de ascensões celestes e descida ao inferno; onde o xamã faz o pacto com as divindades celestes e do inferno, impondo limites e mostrando-se como um dominador dos poderes mágicos, um ser sagrado e controlador do sagrado. Seria o momento único e máximo da iniciação do xamã; terminando aqui seu treinamento. Ao final deste percurso, o xamã pode fazer o seu retorno, para a sua comunidade, sendo ele agora o manipulador do sagrado, o líder que faz a ligação entre o mundo etéreo e o físico. Com sua volta, inicia-se uma fase que tem seu apoio, mas não é promovida somente por ele, onde a comunidade, reconhecendo sua volta, começa a admirá-lo e formar em torno dele a cosmologia do xamã, a doutrina religiosa, os símbolos, os mitos e os ritos paralelos. A partida do xamã. Assim como o herói, o xamã se diferencia dos homens normais pela forma de recrutamento que tem características únicas e especificas. Normalmente os métodos de seleção são feitos de forma hereditária, por vocação espontânea, auto eleição ou escolha pelo clã (comunidade). Esse escolhido entra em uma crise iniciática onde o xamã entra em desequilíbrio e chega a perder sua identidade, mas essa crise e sofrimento são necessários como uma condição para o herói e xamã. Através dessa crise, sofrimento e dor ele sobe de status, adquirindo o nível de sagrado, a consagração que o leva a segunda realidade. Tia Neiva teve as primeiras experiências com aparição de espíritos numa fase de normalidade em sua vida, e ela sofreu para aceitar essa nova missão: Minha vida seguia o curso normal de uma mulher viúva aos 32 anos, quando começaram os primeiros fenômenos de minha clarividência. Começavam também as indecisões, e tudo que havia planejado em toda a minha vida se transformava sem que eu percebesse, sentia apenas que tudo mudava (...). Foi o mais terrível martírio, pela brusca transformação de toda a minha vida. Meus filhos, Gilberto. Raul, Oscar, Carmen Lucia e Vera Lucia estavam na critica idade de estudos e CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 98 desenvolvimento. Renunciei a tudo porque somente uma lei passou a existir: O DOUTRINADOR!(ALVARES, 1991:34.). A iniciação do xamã. Após a efetivação no cargo, o xamã/herói passa a receber instruções, as quais lhe serão úteis na compreensão da cosmologia e atuação do mundo do sagrado e do profano. Com um mestre que lhe é designado, aprende a teoria e a prática dos mitos, a estruturação do universo, os rituais e as técnicas de êxtase. Dá-se assim, a sua iniciação. Detentor do poder da cura e conhecedor de uma possível linguagem secreta, proferida durante os rituais, o xamã, através da indução dos EAC seria, sobretudo capaz de viajar pelos diversos planos astrais, de se comunicar e de dominar espíritos. Estes, por sua vez, podem aparecer em sonhos, devaneios ou visões. Por esta razão, grande parte do treinamento xamânico consiste em cultivar os EAC como forma de entrar no mesmo plano vibracional do espírito para buscar auxílio ou obter conhecimentos. Constata-se, desta forma, a função mediadora do xamã, interferindo na estrutura bipolar e assimétrica da cultura que, de acordo com Bystrina (Bystrina, 1995, p.7) resulta na separação entre o mundo dos espíritos (positivo) e a vida material (negativo), onde o xamã atua como elemento ambivalente, possibilitando a comunicação entre as duas esferas, na medida em que busca em determinado plano uma ajuda ou conhecimento que irá aplicar em outro. Há inúmeros relatos de adeptos do Vale que relatam os supostos contatos de Tia Neiva com os espíritos. Nessas narrativas, podem-se observado nítido controle sobre a maioria deles, que, no caso, seriam enquadrados na categoria de espíritos auxiliares. Ocupando diversas posições hierárquicas, alguns dos espíritos e entidades do Vale do Amanhecer incorporariam em Tia Neiva quando ela assim o permitisse. Nesse caso, mais uma vez, o comportamento da clarividente corresponde ao de um xamã. Para os fiéis, Tia Neiva era o que se poderia chamar de um médium universal. Embora desempenhasse a função de apará (médium que no Vale é responsável pela incorporação), ela também doutrinaria os espíritos. Ela os traria dos planos inferiores e os mandaria para o Astral Superior. Segundo o adepto Mário Sassi (Sassi, 1977, p. 149), certa vez, Tia Neiva queixou-se de sua ignorância ao Pai Seta Branca. Ele, então, teria lhe prometido um CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 99 mestre para que, com ele, aprendesse novos fundamentos da doutrina. Sendo assim, Neiva, um dia ao adormecer, supostamente saiu de seu corpo e se deslocou até o Tibete. Quando deu por si, estava diante de um monge de olhos puxados e barba rala que, para sua surpresa, falava em português. De acordo com entrevista com o médium Vladimir, de Humahã pouco se sabe. Apenas que ele teria vivido recluso em um mosteiro de Lhasa e, durante cinco anos, ministrado um curso para Tia Neiva. Os ensinamentos de Humanhã e as constantes viagens extracorpóreas que Tia Neiva afirmou ter feito até o Tibete revelam o processo de iniciação da clarividente. Fica claro, também aqui, o ―rito de marginalidade‖ do xamã, citado por Bystrina (Bystrina, 1995, p.7). Tia Neiva, para receber instruções de seu mestre, precisaria sair do convívio de seus amigos e de seus familiares. Em espírito, viajaria para um local distante, retirado de seu local de origem.Tia Neiva teria realizado algumas viagens ao planeta Capela na intenção de consolidar seu aprendizado. Em estado etéreo, viajaria sozinha ou em disco voadores – também conhecidos como chalanas – guiados por capelinos. No livro 2000 -a conjunção de dois planos, um desses encontros é narrado pelo adepto Márcio Sassi: No mesmo instante ela sentiu-se transportada para o interior de uma nave, muito parecida com aquela em que estivera antes. Na complicada cabine havia outro capelino que lhe foi apresentado por Johnson com o nome de Eris. Enquanto falavam, os dois manipulavam alavancas e botões. Abriu-se então uma enorme comporta e Neiva se extasiou com o que viu. Ali bem perto, como se estivesse ao alcance de suas mãos, estava Capela (...). Neiva, fascinada, continuava olhando Capela, observando cada detalhe. Cada vez mais maravilhada com o jogo de luzes, Johnson continuou:- A missão fundamental de Capela, no momento, é presidir a transição do segundo para o terceiro milênio da fase atual da Terra. Haverá uma grande mortalidade e, ao mesmo tempo, será lançada uma nova civilização que irá fazer jus à evolução alcançada por esse planeta ( ...) ( SASSI, 1977, p. 99 ). A suposta viagem ao planeta Capela – localizada no Astral Superior – segue ao trajeto oposto ao da experiência que Tia Neiva teria tido ao penetrar nos Planos Cavernosos. Por instrução de Pai Seta Branca, a clarividente deveria fazer as pazes com os inimigos para que pudesse dar continuidade ao plano iniciático. Outro trecho do livro autobiográfico descreve tal passagem: Então, já no terceiro ano de conhecimentos, ao lado de Humahã, segui até as cavernas a pedir paz e amor aos reis nos submundos (... )Entrei num suntuoso CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 100 castelo, tudo era riqueza e não me foi difícil saber que estava diante do trono de um suntuoso rei, Exu Sete Flechas ( ... ) Dois grandes homens com pequenos chifres me seguraram pelo braço num gesto deprimente, enquanto o rei vociferava ( ... )E virando-se para mim foi dizendo: “Sua pretensão é muito grande em querer acordo quando não tem nem mesmo um povo para defender!” ( ...) “ Já sei muito bem de suas intenções”, disse ele, “ eu me comprometo de não penetrar em sua área, para lhe fazer sentir a minha força” ( apud ÁLVARES, 1992, p.85). O processo de inversão, identificado por Bystrina (Bystrina, 1995, p.9) como um dos Padrões de Solução para a assimetria da cultura, aparece como uma constante na Doutrina do Amanhecer. Como se pode confirmar na citação acima, Tia Neiva, a rude caminhoneira, em uma de suas encarnações, é tida, pelos adeptos do Vale, como Cleópatra, rainha do Egito. Tal inversão também se dá no mundo das entidades. Pai Seta Branca, retratado com um índio que fala espanhol, diferencia-se, em sua linguagem cármica, dos outros espíritos. De acordo com os adeptos, na última encarnação, o mesmo foi São Francisco de Assis. Quanto aos fies, estes garantem que foram guerreiros, príncipes e magos. As viagens em estados extáticos de Tia Neiva podem ser identificadas com a passagem pelo limiar do herói. Comumente associada a uma espécie de morte provisória, a vivência do êxtase propicia ao xamã o contato com o desconhecido, com o obscuro e, em seguida, o seu renascimento. Com a iniciação, o xamã geralmente recebe um novo nome. Tal situação é também uma metáfora da morte simbólica. O xamã morre para uma vida anterior e adquire outra denominação, uma nova identidade. Depois de uma série de pretensas viagens a diferentes planetas e mundos espirituais, ocorridas durante os cinco anos de curso ministrado por Humahã, Tia Neiva, conforme relatos, foi consagrada com o nome de Koatay 108, no dia 30 de dezembro de 1972. Fala-se entre os adeptos que o número 108 diz respeito aos 108 mantras recebidos por Tia Neiva dos planos espirituais. Esse número sugere, ainda, a imagem de 108 diamantes luminosos cravejados em uma coroa invisível aos olhos comuns, posta sobre a cabeça de Tia Neiva, a partir daquele momento, segundo os fies44. 44 ÁLVARES, Bálsamo. Tia Neiva – Autobiografia missionária. Brasília: [do autor], 1992. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 101 O retorno do xamã. O xamã após passar por todas as fazes e provas necessárias, assume e obtém o reconhecimento e regressa para o seu povo, como diz Campbell (Campbell, 1996, p.195): Terminada a busca do herói (...) o aventureiro deve ainda retornar com seu troféu transmutado da vida. O circulo completo, a norma do monomito, requer que o herói inicie agora o trabalho de trazer os símbolos da sabedoria, o Velocino de Ouro, ou a princesa adormecida, de volta ao reino humano, onde a bênção alcançada pode servir à renovação da comunidade, da noção, do planeta ou dos dez mil mundos.(CAMPBELL, 1996:195) Assim começa o rito de agregação, onde o xamã retorna ao seu grupo, ou comunidade de origem, trazendo conhecimentos diversos que servirão de benefícios para a comunidade. É aí que ele assume uma natureza com duas essências, humana e divina, fazendo as graças e favores esperados. Tia Neiva após sua iniciação e viagens em todos os planos espirituais reuniu todos os conhecimentos e informações necessárias para ser o xamã do Vale. Ela tornouse indiscutivelmente a figura central no Vale, todos encontravam na clarividente cura, explicações, consolo para os males da vida. Conquistando assim perdão pelas faltas dessa vida e das reencarnações passadas, além de promessa de salvação e o advento do terceiro milênio. Com isso a esperança e paz em dias melhores num futuro bem próximo era o maior beneficio que Tia Neiva conseguia plantar no coração dos adeptos do Vale do Amanhecer. O espaço sagrado. O líder xamânico precisa de um espaço próprio para fazer seus rituais, onde esse local receberá características especiais e sacramentais para receber o sagrado: (...) há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência “forte”, significativo, e há outros espaços não sagrados, e por consequência sem estrutura nem consistência, em suma, amorfos. Mais ainda: para o homem religioso essa não homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre o espaço sagrado – o único que é real, que existe realmente – e todo o resto, a extensão informe que o cerca (ELIADE, 1992:91). Na história do Vale encontrei uma característica diferente, pois na escolha do terreno, Tia Neiva teria recebido do próprio Pai Seta Branca a localização, pois segundo CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 102 o Vale, assim como o Planalto Central, está situado em um local extremamente energizado e místico, isso por uma profecia de Dom Bosco que é um padre da igreja católica, em que dizia que o mundo inteiro como limiar, o Planalto Central é o umbigo da terra45. Essa profecia é contada e recontada diariamente dentro do Vale, e valendo-se dela os adeptos de Tia Neiva constroem uma atmosfera de misticismo. Os adeptos adotaram essa profecia com muita facilidade, pois acreditam ser o inicio de uma civilização sem dor ou sem sofrimento, segundo eles o Vale é o local escolhido para a chegada do terceiro milênio, por isso o mais próximo do paraíso. Eliade (Eliade, 1992, 26) relaciona claramente essa ideia de espaço da comunidade como centro do mundo com o sagrado, onde os locais sagrados são sempre identificados como centro do mundo, reveladores de outra realidade e por isso hierofânicos, realizando a ligação de níveis cósmicos: mundo divino, mundo dos vivos e mundo dos mortos. E no Vale do Amanhecer existe essa divisão, pois os adeptos acreditam que nos espaços coletivos (templos) esses três espaços se comunicam através de trabalhos feitos pela grande xamã (Tia Neiva) e seus adeptos. Os adeptos do Vale acreditam que o universo é formado por vários mundos que são habitados por vários espíritos encarnados ou desencarnados, em diferentes estágios de evolução. O planeta terra seria um plano intermediário entre os planos superiores (astral superior) e o plano inferior (planos cavernosos e astral inferior). A antropóloga Galinkin (Galinkin, 1997, 26) classificou esses planos da doutrina do amanhecer, organizados por Tia Neiva, na seguinte estrutura: o astral superior é dividido em quatro planos conhecidos como: Estrela Manhante (habitam os espíritos mais evoluídos), Pedra Branca (local onde todo espírito passaria sete dias após uma encarnação), Canal Vermelho (mais parecido com a terra) e Capela (planeta onde vivem os espíritos encarnados e mais adiantados no estado evolutivo). Além desses quatro principais existem outras divisões que devem ser citadas como o Hospital da Recuperação, uma espécie de plano de partida para a Capela e o Vale das Sombras (no astral inferior) onde estariam situados espíritos sofredores. Eliade (Eliade, 2002, 34) fala nos arquétipos celestiais de territórios, onde “muitos povos construíram suas cidades e templos baseados em modelos celestiais, o que por si só já seria um reflexo da estruturação social humana em classes, em castas e 45 SASSI, Mário. 2000 – A conjunção de Dois Planos. Brasília: [do autor], 1977. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 103 espaços definidos”. No Vale essa transposição é real; segundo os adeptos a divisão espacial do templo elíptico (Templo do Amanhecer) seguiria modelos dos mundos espirituais, os castelos e salas representariam as encarnações passadas pelos adeptos como a Cruz do Caminho que é uma lembrança da encarnação egípcia e o Oráculo do Pai Seta Branca (destinado a incorporação dessa entidade) remete a encarnação inca. Canto sagrado. Existe um consenso entre a maioria dos antropólogos que estudam o xamanismo de que o canto é a forma de comunicação do xamã e seus auxiliares, onde ocorre a transmissão de palavras para outro plano. A oração do xamã é usada para produzir o êxtase e promover as comunicações com os planos espirituais e por isso estão presentes em quase todas as sessões xamânicas, sendo indispensáveis para os rituais do Vale do Amanhecer. Por isso Tia Neiva escrevia todos os mantras do Vale, usados até hoje, em todos os rituais. Cada médium do Vale, ao fechar ou abrir trabalho, deve proferir a sua emissão. Essa emissão serve como uma identificação ao mundo espiritual, pois nela se encontra todas as vidas passadas do adepto e também todos os cargos conquistados por ele aqui. A oração de Tia Neiva é a mais destacada dos demais, ela lembra muito uma oração católica. O gestual. O xamã é o ponto intermediário entre o divino e os homens, por isso faz de seu corpo uma representação entre o físico e o espiritual. Para fazer valer isso, ele segue um conjunto de regras que irá dirigir seus gestos e movimentos, com finalidade de demonstrar e assegurar ao máximo esse contato. Sabendo da existência de inúmeros rituais e incorporações existentes no Vale durante seu dia – a – dia, podemos destacar algumas dessas incorporações e as formas de gestos e estereótipos que Tia Neiva usava e que são reproduzidos até hoje por seus adeptos quando incorporados. Ela movimentava-se de acordo com o espírito incorporado, lembrando que algumas entidades têm características em comum com as da umbanda. Quando estava incorporada com um espírito aflito ela retorcia os dedos das mãos e apresentava uma CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 104 voz aflita e grave. Quando incorporada por um preto velho tinha um semblante tranquilo e sereno, com voz e gestos carinhosos. E quando incorporada de um caboclo, apresentava gestos fortes e agressivos, com tapas no peito e voz forte e alta46. A indumentária. O antropólogo André Leroi-Gourhan (Leroi-Gourhan, 1990, 166) destaca que o vestuário e os acessórios decorativos são os primeiros graus de reconhecimento social, onde nele tem que estar representado toda a solenidade que aquela pessoa deve mostrar. No caso de um traje para um líder religioso, no nosso caso um xamã, esse traje tem de ser o prolongamento do templo, inspirado nas formas e majestade dele, demonstrando assim o domínio do xamã sobre o ambiente e todo o ritual que ocorre ali dentro. Assim, o xamã é parte do templo, sem ele nada acontece, ele é o manipulador da energia e própria fonte de energia. O traje é sagrado e rompe, opõe e se destaca com a realidade profana que o cerca; interagindo com os gestos do líder formando uma identidade única, servindo para lembrar dos mitos e ritos. As vestes do xamã exercem de alguma forma um poder sobre a sociedade, seja através do medo, respeito, fascínio ou outro sentimento. Pode-se observar que Tia Neiva sabia disso, pois no Vale existem uniformes diversos para cada tipo de trabalho, e é seguida uma hierarquia existente na doutrina. Todas as jóias presentes nas vestes também mostravam uma força, onde as mesmas eram encomendadas por Tia Neiva ao ourives e adepto da doutrina eram recebidas por ele de forma mediúnica, sempre representando um símbolo ou representando algo existente no Vale ou nos templos. BIBLIOGRAFIA. ÁLVARES, Bálsamo. Mensagens de Pai Seta Branca. Brasília: [do auto], 1991. AMARAL, Leila. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo na Nova Era. São Paulo: Vozes, 2000. BYSTRINA, Ivan. Tópicos da semiótica da cultura. 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O Samba, uma entre tantas manifestações culturais influenciadas pela tradição africana no Brasil, compartilha de vários referenciais característicos da musicalidade dos terreiros, dos instrumentos em comum à formação em roda. Sambistas, macumbeiros ou não, trazem na memória influências ofertadas pela convivência afroreligiosa, seus relatos contam os passos das festas, os ritmos dos atabaques, e a fé naqueles que os protegem no trajeto aos palcos. Palavras-Chave: Pós-Abolição; Cultura Afrobrasileira; Diálogos. Introdução – Religião e Aparato Musical: As religiões afrobrasileiras representam exatamente a manifestação de uma cultura que chegou ao Brasil, através, e todo mundo sabe disso, do processo de escravidão. E a única fuga dos representantes dessa religião (...) foi essa manifestação, que eles sabiam que tinham como se confortar, lembrando da terra, trazendo essa lembrança da terra deles, uma maneira de esquecer de todo esse sofrimento que eles passavam aqui, nesse período de opressão, que é o período de escravidão, esse período de ausência, de dor, de morte, de uma série de injustiças que todo mundo soube que houve nesse período. Então a religião sempre foi, independente até de ser afro, a religião foi o meio de você se encontrar mais forte, e essa a maneira que eles tinham pra esquecer a dor deles: relembrar os ritos que eles desenvolviam que os 47 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq/UFRRJ; Discente concluinte do curso Licenciatura em História, vinculado ao Departamento de História e Economia do Instituto Multidisciplinar/ Campus Nova Iguaçu - UFRRJ. E-mail: [email protected]; Telefone: 21-9236-6451; 48 Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, lotada no Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar, no campus de Nova Iguaçu, sendo professora do curso de História. É membro do Laboratório de Estudos Afrobrasileiros – LEAFRO. E-mail: [email protected]; Telefone: 21-9400-6529; CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 107 aproximava a pátria que eles largaram, largaram não, tiraram deles, e aqui eles usaram, para se aproximar da raiz deles, que é a pátria. (Entrevista do sambista Paulo Roberto, o Professor, a esta pesquisa em 17 de março de 2012). De etnias distintas, de tribos diversas, durante centenas de anos, milhares de mulheres e homens africanos foram trazidos à América, em um processo bordado de lágrimas e sangue, ficando conhecido como um dos capítulos mais dolorosos da recente história do ocidente: a escravidão na era moderna. Raptados de seu cotidiano por um cruel sistema de trocas entre europeus, americanos e africanos, esses indivíduos viramse despojados de sua terra, habitação e família, lesados em sua condição humana, e torturados pelas lembranças do passado e pelas incertezas do futuro. Estes homens e mulheres, usurpados e escravizados, cruzaram a contragosto o oceano, e muitos, em portos brasileiros desembarcaram. O processo de escravidão, não termina no porto, mas perdura, movido a ideologias e chibatas, e quando finda legalmente a escravidão no Brasil, o negro e sua cor, ideologicamente, são vistos como os sinônimos de atraso das gentes desta nação. Embarcados à revelia, adquiridos como objetos, propriedades do mercado, os africanos que aqui chegaram desnudos de vestes e posses materiais, trouxeram, não apenas retratos de um passado, como em imagens que se desgastam com o tempo, mas um conjunto incomensurável de saberes, valores e tradições. Estes bens imateriais, em processo de lutas e hibridações, marcaram de preto a cultura brasileira, engrossando o caldo das manifestações culturais e artísticas, transbordando valores e tradições e metamorfoseando símbolos e significados. Eis o paradoxo do fenômeno da diáspora: em um trajeto de sofrimento, as cores e sons das cidades e campos africanos, fundaram em mescla a civilização brasileira. Em artimanha de Exu, pelo mesmo caminho, os ancestrais divinizados das etnias daquele continente, aportaram nos terreiros e oris de diversos cantos das Américas. Ancestrais, temperos, palavras e sons, dançaram em um jogo de lutas sociais, onde ao lado das senzalas e quilombos, os terreiros de cultos afrobrasileiros ocuparam importante destaque como espaços de convivência e solidariedade. Em diversas localidades do país, esses terreiros, para além da função religiosa, congregaram diversas ações de sociabilidade, e deram origem ou viram surgir em seu entorno, ou entre os seus membros, diversas manifestações artísticas e profanas, como o maracatu, o jongo, o samba. Para além, as tradições afroreligiosas serviram de inspiração e temática CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 108 para inúmeros artistas, incluindo dezenas de músicos, que utilizaram as questões cotidianas que cercam os cultos, como também sua estética, para a execução de suas obras. Este trabalho, especialmente se envereda pelo trilho da música, embalado pelas trilhas de samba. Da festa religiosa em que o mito é revivido à encenação festiva de um enredo de carnaval, ou cortejo de maracatu, transpassa a musicalidade negra. E são nas festas religiosas e profanas, que se podem observar com destaque a imprescindível musicalidade negra. Tinhorão (2008) analisa várias fontes que traçam a história dos ‗Sons dos Negros no Brasil‘, onde, em relatos de brancos, os negros se reúnem em seus ‗batuques‘, festejos baseados nos toques das percussões e movimentos lascivos dos corpos, com motivos religiosos ou profanos. Da mesma forma, argumenta que as palavras calundus e lundus designavam tanto as reuniões religiosas negras, quanto as festas por estes realizadas. Nina Rodrigues (1935) também articula semelhante debate quanto à expressão candomblé, quando define que este termo é válido para designar ―todas grandes festas do culto iorubano, qualquer que seja a sua causa‖ (p.141). Amaral & Silva (1992) exploram o cenário musical estabelecido nos terreiros, expondo os sons deste universo: das festividades públicas, como os ‗toques‘ e ‗saídas de iaô‘; passando pelas questões que cercam a estrutura musical, como os instrumentos utilizados, a importância dos alabês, e os ritmos e repertórios empregados por distintas tradições; até a importância ritual da música, como elemento ordenador do culto e que marca a identidade do fiel. Concluí-se que o som revestido de ritmo está presente em todos os momentos da vida ritual, do cotidiano em comunidade às festividades abertas, entoado de palmas, atabaques, agogôs, cabaças, chocalhos e adjás, marca as atividades diárias, o processo de iniciação, denota hierarquias, transporta axé e conduz os orixás e suas danças ao chão do terreiro. Em trabalhos semelhantes, Amaral & Silva (2006) e Araújo & Dupret (2012), foram expostas desde questões musicais presentes no terreiros de candomblés, até a consequente influência desta linguagem musical-religiosa em muitas das manifestações musicais profanas dos grupos negros: desde suas reuniões festivas durante a escravidão, presentes em escassos vestígios do passado musical colonial, até o surgimento da gravação de Long Players e o fenômeno radiofônico no Brasil, quando compositores e intérpretes, ‗macumbeiros‘ ou não, fizeram sucesso com letras que CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 109 remetem à tradição negro-religiosa. Sobre o samba em específico Amaral & Silva (2006), completam: No caso do samba — bom exemplo por sua relevância e presença como um dos elementos constitutivos do gosto nacional e da identidade brasileira —, sabe-se que sua origem está ligada à religiosidade dos grupos bantu trazidos para o Brasil. Esse ritmo, tocado sobretudo em terreiros de candomblé de angola (que enfatizam uma identidade de origem bantu) e, posteriormente, na umbanda, constitui um dos principais elementos de identidade de ambas as religiões. Sendo música religiosa, o samba enredou-se, apesar disso, nos espaços profanos, num intenso fluxo de trocas simbólicas entre as religiões afro-brasileiras e a sociedade. No Rio de Janeiro este entrelaçamento é perceptível pelo menos desde as primeiras décadas do século XX, quando dos núcleos religiosos surgiram compositores que consolidaram esse estilo musical e o disseminaram entre o grande público. Papo de Terreiros – Sobre o Nascimento do Samba: Deste sistema de trocas entre o universo sagrado e profano que ocorria, e ainda ocorre, segundo relatos de Monique Augras (1998) e Rita Amaral (2005), nos terreiros das tradições negro religiosas, presenciamos o surgimento da roda de samba, manifestação cultural e artística da população pobre fluminense, e junto com a roda, inúmeros artistas, homens e mulheres, iniciaram suas carreiras como músicos profissionais: como percursionistas, outros como letristas, e alguns como interpretes. De certa forma que, ao percorrer alguns pontos da história dessa manifestação musical, facilmente constatamos a influência de um aparato religioso presente nos sons e letras. Podemos observar, aqui em pequenos flashes, a influente participação de compositores como Donga, João da Bahiana, Sinhô ―O Rei do Samba‖, J. B. de Carvalho, Candeia, Romildo Bastos, Toninho Nascimento, Martinho da Vila, e interpretes como Jovelina Pérola Negra, Clara Nunes e Zeca Pagodinho. Estes são alguns poucos dentre tantos da velha guarda e das novas gerações que, atravessados pelo viés religioso, representam as tradições culturais africanas presentes nos terreiros brasileiros, no cenário midiático, onde estes grupos não adentraram senão nas notícias recorrentemente vinculadas ao caderno policial dos jornais até as primeiras décadas do novecentos. A batida sincopada, característica particular dos ritmos negros, e que vai transformar o cenário musical do novo continente, a muito havia conquistado os corpos CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 110 dos brasileiros, que já haviam se entregado a outros gêneros musicais afrobrasileiros, como o lundu, o fado, o maxixe49. Mas o samba, por uma série de questões políticas, foi elencado como um dos símbolos de identidade nacional, sendo patrocinado e divulgado, em sintonia com os ideais de afirmação da mestiçagem em voga na primeira metade do século XX. Desta maneira, inúmeros símbolos da antes tão reprimida religiosidade negra, estavam presentes nas mais tocadas músicas, dos discos mais vendidos. Em ―Pelo Telephone‖, samba com fortes influências do maxixe, de composição de Mário de Almeida e Donga, interpretado por Bahiano em 1917, e lançado pelas Casas Edison, abordam-se as temáticas da festa carnavalesca embebida de samba e folia, mas também em uma de suas estrofes a questão do ―feitiço‖ de amor, notadamente em referências a práticas cotidianas de cunho religioso daquele grupo. Questão religiosa que extravasa em ―Yaô‖ de Pixinguinha50 e Gastão Viana, interpretado por Patrício Teixeira em 1938: Aqui có no terreiro/ Pelú adié/ Faz inveja pra gente/ Que não ten mulher// No jacutá de preto velho/ Há uma festa de Yaô// Ôi tem nêga de Ogum/ De Oxalá, de Iemanjá/ Mucama de Oxóssi é caçador/ Ora viva Nanã/ Nanã borocô// Yô yôo/ Yô yôo/ No terreiro de preto velho iaiá/ Vamos saravá (a quem meu pai)/ Xangô (Yaô Africano de Pixinguinha e Gastão Viana) De certo modo, estes primeiros sambistas de sucesso – Donga, Sinhô, Bahiano, Pixinguinha e João da Baiana – eram crias das casas das velhas baianas que na capital brasileira se estabeleceram, e fundaram em cortiços, suas casas de culto. Fica clara a influência religiosa neste primeiro grupo de sambistas, que compunham suas canções dentro do ambiente festivo e sagrado dos terreiros dessas mães de santo, e porque não, do samba. Alguns coetâneos historiadores, como Tiago de Melo Gomes (2003), questionam o mérito recebido pela comunidade baiana, principalmente vinculada a imagem de Tia Ciata D‘Oxum, pelo nascimento do Samba, visto que a historiografia sobre o samba fora influenciada pelo processo político envolvido na busca de uma identidade brasileira mestiça, onde procurou-se um elo de pureza africana nas comunidades afroreligiosas, principalmente as nagôs, e na consequente ligação das 49 Ver mais em: TINHORÃO, José Ramos. Os Sons dos Negros no Brasil – Cantos, Danças, Folguedos: Origens. São Paulo, Editora 34, 2008. 50 Para ver mais sobre Pixinguinha: BESSA, Virgínia de Almeida. Imagens da Escuta: Traduções Sonoras de Pixinguinha. In: História e Música no Brasil. SALIBA, Elias Thomé & MORAES, José Geraldo Vinci de (Orgs.). São Paulo, Alameda, 2010, p. 163 -216. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 111 raízes desta tradição com as figuras do Baiano e da Baiana. Esse autor afirma a total participação nos movimentos culturais cariocas, dos negros migrantes das decadentes zonas cafeeiras e mineiras do interior do estado do Rio de Janeiro e Minas Gerais, dessa forma, não podemos negligenciar a memória de tantas outras tradições que também organizavam seus encontros religiosos e festas profanas, vide movimentos como a folia de reis, o caxambu, o jongo, a congada, etc. Não podemos perder de vista neste capítulo inicial da formação do samba, a própria etimologia da palavra, que é corruptela de semba, expressão ligada às tradições religiosas da nação Angola. De origem Bantu, o samba, que antes de alcançar as rádios, era praticado na zona rural, estava vinculado a prática da umbigada, característica perdida no lundu e no maxixe, ambos ritmos negros, mas que perderam muito de sua ‗bárbara‘ característica ao serem adotados como trilha sonora dos bailes e festejos brancos. Para além destes dados musicais, outra influência bantu está na presença da Roda, princípio motriz da música em comunidade51. Com a constante migração para o meio urbano da capital, tanto os baianos, quanto mineiros e fluminenses, compartilharam os locais por negros frequentados: os cortiços, arrabaldes, morros e favelas. Para além de suas moradias, estes grupos negros realizavam seus encontros em momentos de festa, como o carnaval e a festa da Penha. Podemos finalmente considerar, que o samba surge de um contexto complexo, onde trocas culturais eram realizadas e, disputas políticas travadas, porém, de raízes angolanas ou iorubanas, fica patente as influências religiosas em sua gestação, influência esta, que não irá se perder no desenvolvimento junto a mídia, que se seguirá. A contribuição dada pela vida religiosa na formação de instrumentistas – alabês – e interpretes, contribuiu para o desenvolvimento de inúmeras formas musicais, como já vimos antes, da mesma maneira que interferiu no desenvolvimento do samba. A vida na comunidade de terreiro também proporciona reuniões festivas, espaços de lazer, momentos de certeiro desenvolvimento musical. Em última instância os membros da comunidade do terreiro se identificam com as canções de samba, e consomem seus produtos, deste modo, a existência de temáticas afroreligiosas em muitas letras não é apenas uma questão de identidade do artista, mas também, um assunto que envolve o mercado. 51 Mais informações sobre a Roda e sua importância para o grupo dos sambistas, consultar: MOURA, Roberto M. No Princípio, era a Roda: Um Estudo sobre Samba, Partido-Alto e outros Pagodes. Rio de Janeiro, Rocco, 2004. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 112 Alguns artistas produziram seus discos em função ao público das casas de umbanda e candomblé, caso de J. B. de Carvalho, que compôs e gravou ‗macumba‘, ‗estilo musical‘ notadamente religioso, onde as letras estavam voltadas para o ritual de umbanda, e onde muitas de suas músicas estavam compostas em ritmos de samba. Com uma carreira de 40 anos dedicada ao rádio, J. B. ao lado de sambistas do nipe de Herivelton Martins compôs dezenas de pontos de macumba, além de se dedicar a programas de rádio voltados ao público dos terreiros. Estas canções ainda hoje fazem parte do repertório de inúmeras casas de umbanda no Rio de Janeiro e Baixada Fluminense, sendo certo o consumo destas obras por parte do grupo religioso afrobrasileiro. Para além dos dados já apresentados aqui quanto a algumas questões que denunciam o enlace entre o sagrado e o profano do mundo dos terreiros – de samba e candomblé – muitas foram as formas em que as tradições afroreligiosas serviram como fontes de aparato artístico-cultural, nesse sentido, as composições musicais são diretamente influenciadas. Instrumentos, letras, melodias, a influência religiosa extravasa as relações envolvidas coma origem do gênero musical ‗samba‘, neste caso, percebemos o quão íntimo é o entrosamento entre as práticas sagradas com e nos movimentos musicais profanos. Papo de Terreiros – Letras, Composições e Interpretes: O Rum, Rumpi e Lé, sacralizados nos candomblés, e outros instrumentos de percussão utilizados nestas manifestações, são símbolos da musicalidade africana, que tem na síncope a sua característica principal. Já foi dito em capítulo introdutório a importância da musicalidade no cotidiano da comunidade religiosa, bem como em seus ritos, seus instrumentos são portadores de axé, conduzem através de suas batidas os orixás ao mundo dos humanos, ao xirê. Estes mesmos instrumentos, acompanhados do aparato melódico da viola, serão marcas fundamentais na prática do samba. Algumas vezes, dado o caráter religioso da canção, as percussões usuais – Reco-Reco, Pandeiro, Tan-Tan – serão substituídos pelo sagrado compasso dos atabaques, este é o caso das composições ―Nanaê Nanã Naiana‖ de Sydnei da Conceição e, ―Cabocla Jurema‖ e ―Sindorerê‖ do genial compositor Candeia. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 113 Iansã cadê Ogum?/ Foi pro mar// Mas Iansã penteia seus cabelos macios/ Quando a luz da lua cheia/ Clareia as águas do rio/ Ogum sonhava/ Com a filha de Nanã/ E pensava que as estrelas/ Eram os olhos de Iansã// Mas Iansã, cadê Ogum?/ Foi pro mar// Na terra dos orixás/ O mar se dividia/ Entre um Deus que era de paz/ E outro Deus que combatia/ Como a luta só termina/ Quando existe um vencedor/ Iansã virou rainha/ Da coroa de Xangô// Mas Iansã, cadê Ogum?/ Foi pro mar. (A Deusa dos Orixás de Romildo Bastos e Toninho Nascimento) A letra citada acima, de autoria de Romildo Bastos e Toninho Nascimento é uma entre tantas composições com a temática afroreligiosa presente no trabalho de ambos compositores que por muito tempo se dedicaram em letras que alcançaram amplo sucesso na voz de Clara Nunes, neste caso, ―A Deusa dos Orixás‖ é uma canção que revive um mito iorubá, onde reinam os conflitos que envolvem amor e tristeza. Na lista de sucessos da dupla de sambistas encontram-se ainda ―Conto de Areia‖, ―Menino Velho‖, ―Fuzuê‖, ―Senhora das Candeias‖, ―Congada‖, todas interpretadas por Clara Nunes; ―Aroeira‖ gravada na voz de Elizete Cardoso; e com outros parceiros, Romildo gravou ―São Jorge da Costa da Mina‖, canção já citada no início deste texto, composta em dupla com Sérgio Fonseca, e ―Batuque de Semba‖ com Alex e Paulinho Rezende, estas duas últimas gravadas por Agepê. Outro sambista que se caracterizou por compor canções de temática negroreligiosa fora Candeia52, portelense, é dele o samba enredo ―As Seis Datas Magnas‖, famoso campeonato da agremiação de Oswaldo Cruz e Madureira. Dentre seu acervo musical, enumeram-se grandes sucessos, entre eles: ―Saudação a Toco Preto‖, ―Cabocla Jurema‖, e ―Sindorerê‖, este último gravado por Clara Nunes. Candeia lutou em sua vida para que o samba reencontra-se as raízes que, segundo ele, haviam se perdido com o processo de comercialização passado pelas escolas de samba, fundando assim, em contraponto, o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo (GRANES Quilombo). Dentre as belas letras do poeta da Portela, encontra-se uma pérola, ―Cabocla Jurema‖, uma autêntica saudação aos caboclos da umbanda, letra que trata de um amor não correspondido, mal resolvido, entre a cabocla e um jovem violeiro, que por ela se apaixona, tendo sonhos e vertigens em que a mata é o cenário, e a cabocla é o motivo. 52 Para saber mais: VARGENS, João Baptista M. Candeia: Luz da Inspiração. Rio de Janeiro, Almádena, 2008. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 114 Outro grande compositor que explora o campo religioso em sua expressão musical é Martinho da Vila, que para além de todo seu engajamento em levar a África e o africano ao centro das atenções – desde seus primeiros discos com canções do folclore angolano, até aos enredos carnavalescos da agremiação a qual faz parte, a Vila Isabel, onde o maior exemplo foi o genial enredo ―Kizomba – A festa da raça‖, campeão dos desfiles cariocas de 1988 – dedicou uma faixa do seu disco ―Canta, Canta Minha Gente‖ de 1974 à um pot-pourri de pontos de umbanda, intitulado com toda a propriedade de ―Festa de Umbanda‖, onde cantou-se de Tranca-Rua à Sete Flechas, em um verdadeiro xirê de sons e batuque. Para além desta, gravou outras duas festas: ―Festa de Candomblé‖, com direito a paó saudando oxalá, e ―Festa de Caboclo‖, outro pot-pourri de pontos de terreiro, exclusivamente dedicados aos caboclos. Martinho ainda compôs outras várias canções que remetem à questão do negro e de sua cultura, principalmente remetendo a sua recorrente Angola, como é o caso do ―Semba dos Ancestrais‖, uma parceria com Rosinha de Valença: Se teu corpo se arrepiar/ Se sentires também o sangue ferver/ E a cabeça viajar/ E mesmo assim estiveres num grande astral/ Se ao pisar no solo o teu coração disparar/ Se entrares em transe sem ser da religião/ Se comeres fungi quisaca e mufete de carapau/ Se Luanda te encheres de emoção/ Se o povo te impressionar demais// É porque são de lá os teus ancestrais/ Podes crer no axé dos teus ancestrais/ Podes crer no axé dos teus ancestrais/ Ô ô ô ô ô ô ô ô/ Podes crer no axé dos teus ancestrais. (Semba dos Ancestrais de Martinho da Vila e Rosinha Valença). Clara Nunes foi com certeza a grande interprete dos sambas com motivos religiosos provenientes das roças e barracões de candomblé, sendo a grande interprete de Toninho e Romildo, como de tantos outros sambistas que se enveredaram por este caminho. São vários os textos e artigos53 que tratam dessa jovem cantora que faleceu cedo ainda em 1983, com 39 anos. A mineira guerreira dedicou grande parte de sua carreira ao samba, principalmente aquele com temática afro-religiosa, sendo ela mesma seguidora dessas tradições religiosas, levou suas interpretações ao grande cenário musical nacional, ao ser a primeira mulher a vender cem mil discos. Além das músicas de sucesso escolhidas a dedo, suas roupas características, seus colares e fios de contas, 53 Sobre Clara Nunes: BAKKE, Rachel R. B. Tem Orixá no Samba: Clara Nunes e a presença do Candomblé e da Umbanda na Música Popular Brasileira. Religião e Sociedade, vol. 27, nº 2, Rio de Janeiro, ISER, 2007, p. 85-113. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 115 torso, pano da costa, e cabelos encrespados, enfeitados por conchas e flores, foram suas marcas características. Jovelina Pérola Negra, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Serginho Miriti, Mauro Diniz, Almir Guineto e Jorge Aragão, entre outros pagodeiros, crias das rodas de samba do Cacique de Ramos, compõe uma nova geração que desponta para o sucesso na década de 1980. Sambistas, pagodeiros, letristas e intérpretes, que sob a sombra da tamarineira, compuseram verdadeiras obras de arte, entre elas ―Águas de Cachoeira‖ de autoria de Jovelina, Labre e Carlito Cavalcanti: Lá na pedreira/ Rola da cachoeira/ Uma água forte/ Pra me banhar// Ela me enche de fé/ Me dando um banho de paz/ Bebo dela no coité/ E vejo o bem que me faz/ Água de beber/ Água de molhar/ Água de benzer/ Água de rezar// Lá na pedreira/ Rola da cachoeira/ Uma água forte/ Pra me banhar// Na boca da mata/ Tem chave de ouro/ Tem pedras de prata/ E aves de agouro/ Tem um doce mistério/ Que eu não sei contar/ Eu só sei dizer pra você/ Que meu pai mora lá. (Águas de Cachoeira de Jovelina Pérola Negra, Labre e Carlito Cavalcanti). E a recente música de Dudu Nobre e Zeca Pagodinho ―Vou botar teu nome na Macumba‖, perpetua uma longa tradição que envolve toda a música afrobrasileira, e principalmente o samba, o aparato religioso: Eu vou botar!/ Eu vou botar teu nome na macumba/ Vou procurar uma feiticeira/ Fazer uma quizumba/ Pra te derrubar/ Oi, Iaiá!/ Você me jogou um feitiço/ Quase que eu morri/ Só eu sei o que eu sofri/ Deus me perdoe/ Mas vou me vingar// Eu vou botar teu retrato/ Num prato com pimenta/ Quero ver se você "guenta"/A mandinga que eu vou te jogar/ Raspa de chifre de bode/ Pedaço de rabo de jumenta/ Tu vai botar fogo pela venta/ Comigo não vai mais brincar. (Vou botar teu nome na Macumba de Dudu Nobre e Zeca Pagodinho). Metodologias – Batucadas e Conversas: No que diz respeito às tradições culturais africanas, temos por conhecido a importância da oralidade para aqueles que compartilham seus símbolos e valores. O conhecimento é transmitido, no seio de uma comunidade afroreligiosa, através da convivência e da comunicação oral – conversas, narração de mitos, e músicas. Objetivando compreender alguns laços tecidos entre afroreligiosidade e vivência artístico-musical dos sambistas, a pesquisa ―Samba e Aparato Religioso 54 Afrobrasileiro‖ , adotou como método as indicações presentes nos escritos de Fernando González Rey (2005), autor que sistematiza a pesquisa científica a partir de uma 54 Pesquisa a qual atualmente este artigo está submetido, sendo financiada pela Capes/CNPq. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 116 Epistemologia Qualitativa, que tem se alicerce principal no pensamento desenvolvido por Lev Semenovich Vigotsky. A Epistemologia Qualitativa, nessa perspectiva, se caracteriza em três pontos principais: o ―caráter construtivo-interpretativo do conhecimento‖ nas ciências Antropossociais (GONZÁLEZ REY, 2005, p.5), onde o pesquisador torna-se também sujeito de sua pesquisa, sendo o responsável pela construção de conhecimento a partir das suas análises sobre o real, deste modo legitima-se o conhecimento não por sua linearidade com a realidade, mas pela possibilidade que esse conhecimento proporciona para a construção de novos modelos de inteligibilidade sobre o objeto estudado; a ―legitimação do singular como instância do procedimento científico‖ (GONZÁLEZ REY, 2005, p.10), onde dá-se a importância a informação singular na construção teórica, sendo essa legítima para o processo de desenvolvimento da pesquisa qualitativa com base na complexidade; e o ―ato de compreender a pesquisa, nas ciências antropossociais, como um processo de comunicação, um processo dialógico‖ (GONZÁLEZ REY, 2005, p. 13) entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados, onde a subjetividade do pesquisador e o caráter construtivo-interpretativo da pesquisa, fazem com que o cientista seja também sujeito de seu trabalho. Seguindo a conceitualização de História do Imaginário segundo José D‘Assunção Barros (2010), problematizamos a questão do imaginário afroreligioso presente em todo processo artístico deste grupo social. E é em busca de informações sobre este Imaginário, que recorremos à metodologia empregada por González Rey (2005), crendo na perspectiva de que é um proveitoso método para construção de uma interpretação acerca da subjetividade do grupo estudado. Sabendo que os nossos sujeitos, os sambistas, partilham de um convívio afroreligioso que ressalta a oralidade, a pesquisa então se realiza através da ―Dinâmica Conversacional‖55. A Dinâmica Conversacional como um instrumento interativo entre o pesquisador e o sujeito investigado, possibilita que em vez da relação pergunta-resposta, se estabeleçam uma relação de conversa, onde o sujeito estará livre para dialogar. O que nos interessa nesse método não é diretamente a expressão intencional do sujeito, mas as expressões subjetivas contidas nas respostas, cabendo ao pesquisador interpretar os dados colhidos. A conversa inicia-se a partir de uma questão deflagradora, ―Qual o significado das religiões afrobrasileiras pra você?‖, pergunta aberta que proporciona 55 Proposta metodológica atribuída a Fernando González Rey, 2005, p.126. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 117 inúmeras possibilidades de diálogo. A partir da interpretação das respostas podemos construir configurações da subjetividade, estas agrupadas darão forma às Unidades de Sentido. Estas últimas serão modelos de inteligibilidade sobre o problema proposto na pesquisa. Foram vinte os sujeitos entrevistados em dois momentos distintos, todos sambistas, de 30 a 70 anos, homens e mulheres. As entrevistas se deram no intervalo entre rodas de sambas, com compositores e músicos. Com a dinâmica aplicada, não existe para nós, cientistas, a ‗má resposta‘. As respostas fazem parte da construção desenvolvida pelo instrumento, aparado pelo método, ou seja, também são de responsabilidade do pesquisador nessa perspectiva. Sendo assim, todas as respostas são válidas, todas expressam subjetividades. Além, o pesquisador que caminha amparado por esta visão epistemológica de ciência – Qualitativa e Complexa – dirige-se ao campo sem hipóteses, da mesma forma, não conduz o instrumento – e sua análise – ao resultado por ele almejado. Os resultados da pesquisa são construídos, desta maneira, no decorrer do processo dialógico entre o cientista e seus sujeitos, o que não desmerece em rigor o trabalho acadêmico-científico. Musicalidade e Religiosidade em Relatos: A pesquisa em questão ainda está decorrendo, agora em terceira fase: a análise das entrevistas segundo os referenciais teóricos. Trazemos então aqui alguns relatos, e iniciais considerações. Naquela época o rigor contra o negro, contra as tias baianas, contra o pessoal do samba, era muito forte, então pra se fazer uma festa numa casa, fazer uma sessão de samba, realizar um batizado, até um batizado ou um casamento, tinha que ter a permissão da chefatura de polícia, entendeu? Era um rigor tremendo. Eles sofreram muito mais na carne o racismo contra o samba, contra as religiões de candomblé. Eu, quando garoto, ainda assisti muito e muito a polícia fechar vários terreiros... o samba também, cheguei a assistir a pessoa não poder levar violão, não poder levar pandeiro, não poder levar nada, não poder andar com isso no meio da rua, porque a polícia chegava e prendia. O primeiro relato exposto fora construído no final do ano de 2011, com um dos membros da velha guarda portelense David de Araújo, mais conhecido por seu nome artístico, David do Pandeiro, então com 65 anos de idade. Depois de muita CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 118 conversa e muitas histórias de seu tempo de menino, sobre o samba e a Portela, o pandeirista nos revelou esta passagem citada acima, nela, para além do já exposto até aqui, o entrevistado nos traz uma informação nova, que se conjuga em uma das configurações de pesquisa: A violência sofrida tanto pelas religiões negras quanto pelo samba, era elo que marcava ambos os grupos. Deste modo, na análise complexa, podemos dizer que a violência a qual foram expostos gerou em certa medida, laços de solidariedade entre os grupos. Neste caso, inúmeros fatores estão envolvidos, sintetizados para a melhor compreensão da seguinte forma: o preconceito racial ao negro no pós-abolição e às suas práticas de grupo, religião, música, festividade, onde portar um instrumento de negro era a denúncia ao ato criminoso, um pandeiro seria prova, a arma do crime. Paulo Roberto, o Professor, de 57 anos, a qual lemos um trecho da dinâmica no início deste texto, relaciona o samba a prática das religiões afrobrasileiras através de manifestações festivas utilizadas para romper com os paradigmas de inferioridade colocados pela escravidão. Para ele, religiões e samba tem em comum a festa, para espantar a tristeza56, os sons dos atabaques e ganzás era, e é o melhor remédio, desde a escravidão: Elas estão interligadas (samba e religiões negras), o samba esta interligado, porque, se você buscar a raiz do samba: Samba é Semba, e Semba é manifestação africana, e a partir dessa manifestação africana, de semba, que é uma reunião para comemorar, de algumas pessoas ligadas diretamente a esse grupo de indivíduos, que eram descendentes de escravos que se reuniam pra comemorar essa opressão, ou seja, comemorar a opressão? Me desculpa – corrigindose – comemorar esse processo de reunir as pessoas que sofriam a opressão, essa manifestação deles derivou essa vertente do samba, e o samba esta exatamente intimamente ligado a religião. Outro entrevistado, o compositor José Mauro Diniz, ou apenas Mauro Diniz, revela que já frequentou umbanda e candomblé, mas que não iria poder nos ajudar na pesquisa porque ele agora era evangélico, esquivando-se, disse que não sabia muito sobre essas religiões de matriz afrobrasileira. O que não impediu o prosseguimento da dinâmica e pesquisa, e minutos depois relatou: 56 Para ver mais: FILÉ, Valter. O Que Espanta Miséria é Festa – Puxando Conversa: Narrativas e Memórias nas Redes Educativas do Samba. Tese (doutorado em Educação) UERJ, Rio de Janeiro, 2006. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 119 O samba está muito ligado a essa cultura (Religiosa afrobrasileira), o samba, na minha opinião ele é místico, haja visto que na Bahia, a gente tem o samba de roda. A própria batucada que existe dentro dos terreiros de macumba, se você observar e cantar um samba ali em cima, ele dá certo. Essa batida lembra muito o samba, mas o canto é diferente. Agora, o samba mais antigo, porque os sambas de alguns compositores mais contemporâneos eles já fogem um pouco dessa característica. O entrevistado construiu em palavras a relação entre samba e cultura afroreligiosa através da música, da batucada, e do misticismo. Mas alertou, ao fim, e em tom profético, que essa concordância entre batuques de samba e de candomblé é característica comum de sambas do passado – talvez da época em que ele se dedicava às religiões afro – mas que atualmente, os compositores contemporâneos ‗fogem‘ dessa relação. Rosangela da Silva Azevedo ou Tia Rosa, retoma uma questão muito cara quando tratamos da religiosidade dos negros no Brasil, a ancestralidade. Ao exclamar que a relação entre religiosidade negra e arte negra está ligada à ancestralidade, inicialmente escrava, depois africana, ou seja, às origens. Para ela as tradições culturais negras em geral estão em sintonia quando expressam para ela as raízes de sua identidade negra: A nossa ancestralidade também nos acompanha, então na verdade quando você canta um samba, com aquele ritmo de tambores ele toca fundo dentro da gente, toca fundo, então quer dizer, aonde se explora muito mais a coisa boa de nossa cultura. Quase todos os entrevistados se identificaram como seguidores de alguma religião afrobrasileira, quando não isso, diziam respeitar, e citavam passagens de sua vida onde foram interferidos pela questão religiosa dos negros. O objetivo desta pesquisa nunca foi entrevistar religiosos sambistas, ou sambistas e religiosos. Interessou-nos desde o início focar nos sambistas, e perceber nesse grupo as suas afinidades religiosas e procurar entender se eles enxergavam alguma relação entre sua prática cultural-artística-musical com o candomblé e umbanda. Primeiras Considerações – O Povo de Santo e Samba: CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 120 Terminamos por trazer ‗primeiras considerações‘ sobre o processo de pesquisa, antes que resultados ou conclusões, estes mais concisos, na forma das Unidades de Sentido, ainda não foram obtidos, visto a posição em que se encontra a pesquisa. Mas de imediato, traçamos alguns pontos que levam ao questionamento, à revisão de ideias e concepções. Afirmamos a qualidade metodológica sugerida por González Rey (2005), tanto quanto a escolha do campo e uso dos instrumentos, quanto a análise metodológica das informações obtidas. E como concebemos que os processos sociais desenrolam-se em um contexto complexo, com a história não poderia ser diferente. São várias as interferências da religiosidade negra na prática musical do samba: da origem, da ancestralidade, da identidade negra, da musicalidade, da festa, da violência. A cada entrevista e análise um dado novo surge, uma nova configuração, futuramente agrupadas em zonas de integibilidade do espaço proposto em pesquisa. Referências Bibliográficas AMARAL, Rita. Xirê! O modo de crer e de viver no candomblé. Rio de Janeiro, Pallas; São Paulo, EDUC, 2005. AMARAL, Rita & SILVA, Vagner Gonçalves da. Foi Conta Para Todo Canto – As Religiões Afrobrasileiras nas Letras do Repertório Musical Popular Brasileiro. In: AfroÁsia, vol. 34. Salvador, UFBA, 2006, p.189-235. AMARAL, Rita & SILVA, Vagner Gonçalves da. Cantar Para Subir – Um Estudo Antropológico Sobre a Musicalidade Ritual no Candomblé de São Paulo. Fora lido no banco de artigos do Núcleo de Antropologia Urbana da USP ―NAU‖, link http://www.n-a-u.org/Amaral&Silva1.html, em março de 2012; publicado inicialmente na Revista Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, ISER, 1992. AUGRAS, Monique. O Brasil do Samba Enredo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. ARAÚJO, Anderson Leon A. de & DUPRET, Leila. Entre Atabaques, Sambas e Orixás. In: Revista Brasileira de Estudos da Canção, n.1, v.1. Natal, UFRN, 2012. Revista eletrônica: http://rbec.ect.ufrn.br/index.php/RBEC_n.1_v.1_jan-jun_2012. BAKKE, Rachel R. B. Tem Orixá no Samba: Clara Nunes e a presença do Candomblé e da Umbanda na Música Popular Brasileira. Religião e Sociedade, vol. 27, nº 2, Rio de Janeiro, ISER, 2007, p. 85-113. BARROS, José D‘Assunção. O Campo da História – Especialidades e Abordagens. Petrópolis, Vozes, 2010. BESSA, Virgínia de Almeida. Imagens da Escuta: Traduções Sonoras de Pixinguinha. In: História e Música no Brasil. SALIBA, Elias Thomé & MORAES, José Geraldo Vinci de (Orgs.). São Paulo, Alameda, 2010, p. 163 -216. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 121 FILÉ, Valter. O Que Espanta Miséria é Festa – Puxando Conversa: Narrativas e Memórias nas Redes Educativas do Samba. Tese (doutorado em Educação) UERJ, Rio de Janeiro, 2006. GOMES, Tiago de Melo. Para Além Da Casa Da Tia Ciata: Outras Experiências No Universo Cultural Carioca, 1830-1930. Afro-Ásia vol. 29/30. Salvador, UFBA, 2003, p.175-198. GONZÁLEZ REY, Fernando. Pesquisa Qualitativa e Subjetividade: Os Processos de Construção da Informação. São Paulo, Cengage Learning, 2005. MOURA, Roberto M. No Princípio, era a Roda: Um Estudo sobre Samba, Partido-Alto e outros Pagodes. Rio de Janeiro, Rocco, 2004. RODRIGUES, Raimundo Nina. O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1935. TINHORÃO, José Ramos. Os Sons dos Negros no Brasil – Cantos, Danças, Folguedos: Origens. São Paulo, Editora 34, 2008. VARGENS, João Baptista M. Candeia: Luz da Inspiração. Rio de Janeiro, Almádena, 2008. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 122 FAVELA, EXÉRCITO E RELIGIÃO Tensões e aproximações na ocupação militar do Complexo do Alemão Vinicius Esperança Lopes57 O Complexo do alemão é um conjunto de treze comunidades, situadas na cidade do Rio de Janeiro, e considerada, desde a década de 1980, uma das regiões mais perigosas e violentas da cidade. O Complexo se situa numa área de cerca de 300 hectares e aproximadamente 80.000 moradores58 e 22.000 domicílios. A mais conhecida das comunidades é o Morro do Alemão, que se trata de um bairro oficial, erguido sobre a Serra da Misericórdia. O nome da comunidade se refere ao imigrante polonês Leonard Kaczmarkiewicz, que, na década de 1920, comprou estas terras que, antes, eram uma área rural da Zona da Leopoldina. A região se valoriza a partir da construção da Avenida Brasil, na década de 1940, quando a área em torno da imensa avenida se transformou no principal polo industrial do então Distrito Federal. A ocupação, entretanto, começa na década de 1950, quando Leonard dividiu o terreno para vendê-lo em lotes. Alguns eventos ocorridos no local foram noticiados em todo o país e contribuíram para a reputação de violência do Complexo. Em 1994, o assassinato de Orlando Jogador, um dos fundadores da facção criminosa Comando Vermelho, pelo seu rival Uê, líder da facção Terceiro Comando, à época preso no Presídio de Bangu. Orlando teria sido emboscado pelos homens de Uê, que se apresentaram como pertencentes ao BOPE59 e exigiram um resgate de 60 mil dólares. Quando os homens de Orlando chegaram com o dinheiro foram mortos. O corpo de Orlando foi deixado no bairro próximo de Maria de Graça. O ato gerou violenta represália de outros dois importantes líderes do tráfico, Fernandinho Beira-mar e Marcinho VP, a fim de retomar o poder de controle do tráfico na região. A guerra pela 57 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e ISER 58 Dados do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). 59 Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, conhecida por sua eficiência e violência. Ficou famosa internacionalmente com a repercussão do filme Tropa de Elite , dirigido por José Padilha, em 2007, e premiado no Festival de Berlim, além de grande bilheteria nacional. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 123 retomada deixou dezenas de mortos e culminou numa rebelião no presídio de Bangu e a morte de Uê. Em 2002, meses após ter recebido o prêmio Esso de jornalismo por uma reportagem que denunciava o tráfico de drogas a céu aberto na região, o jornalista Arcanjo Antonino Lopes do Nascimento, conhecido como Tim Lopes, foi pego na tentativa de realização de uma reportagem que denunciaria a venda de drogas e a exploração sexual de menores de idade em bailes funk da região, ―julgado‖, torturado e assassinado por ordem do traficante Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, um dos líderes do Comando Vermelho. A fim de ocultar o cadáver, foi usado aquilo que recebeu o apelido de ―microondas‖, quando o corpo é esquartejado e queimado. Seu corpo, entretanto, foi identificado por DNA e os supostos responsáveis foram presos após forte repercussão midiática e da opinião pública. Em dezembro de 2008, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, visitou a região, área de atuação do PAC-Programa de Aceleração do Crescimento, e lançou o projeto ―Territórios de Paz‖. A região voltou a ser centro dos noticiários nacionais e internacionais em novembro de 2010, quando, no dia 25, o BOPE, o CORE60 e o Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil, em verdadeira operação de guerra, com cerca de 500 homens, ―retomou‖61 o controle da Vila Cruzeiro, então sob controle do Comando Vermelho. Os narcotraficantes fugiram, então, para o Complexo do Alemão, e pressionados à rendição por outra operação nesta localidade, a partir do dia 27 de Novembro. Desta vez, devido a maior complexidade e tamanho da região, o BOPE teve auxílio de um maior número de instituições, que compunham a chamada Força de Segurança Nacional62, que em menos de duas horas ocupou o Complexo, prendendo cerca de trinta traficantes e apreendendo armas e drogas. Ficou marcada a impressionante cena, noticiada ao vivo pela imprensa, de dezenas de traficantes fugindo 60 Coordenadoria de Recursos Especias da Polícia Civil do Rio de Janeiro. 61 Termo usado em situações de conflito bélico e estratégias de guerra pelas Forças Armadas e largamente usado pelas autoridades à época do conflito. Por exemplo, palavras do Governador do Estado Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, em entrevista ao Jornal Nacional, que foi ao ar em 26 de Novembro de 2010: ―Eu posso garantir à população que nós estamos atentos, que é um ato de desespero, de desarticulação desses criminosos que estão perdendo território e que estão vendo o enfraquecimento não só territorial, mas de seus negócios ilícitos. Nós vamos continuar com a mesma política de retomada de territórios.” 62 Além das já citadas instituições, era também composto por policiais federais, o Batalhão de Polícia Florestal e o exército, através da Brigada Paraquedista. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 124 pela mata impunemente. Desde então, a região foi ocupada pelo Exército Brasileiro, que deve permanecer, segundo expectativas noticiadas publicamente, na região até junho de 2012, quando será instalada uma unidade das chamadas UPP's, Unidades de Polícia Pacificadoras. A operação foi considerada um sucesso pelo poder público e imprensa, pela rapidez, eficiência e poucas vítimas. Todavia, diversas fontes, entre moradores, líderes de ONG's e associações e jornalistas, confirmaram o rumor de que houve um número bem maior de mortes durante a ocupação. Algumas testemunhas relataram que cerca de 130 corpos foram ocultados e que os bandidos que se renderam foram todos executados. O chamado ―dia da invasão‖ tem se mostrado um tema relevante que estará sendo aprofundado na pesquisa. Relatos dramáticos de invasões de domicílios, roubos, torturas, assassinatos brutais e a ausência da imprensa e de mediadores é um tema comum. O chamado ―aquele dia‖63 se apresenta como um típico Estado de Exceção, levado às últimas consequências pelas forças de Segurança. O objetivo deste artigo é refletir, introdutoriamente, sobre os impactos sociais de toda esta operação e sua continuidade através da ocupação militar do Complexo do Alemão pelo Exército Brasileiro, sua saída e a chegada da Polícia Militar. A relação entre os atores principais deste momento histórico, em princípio o Exército Brasileiro e os moradores, durante o período de ocupação, depois a polícia na forma das UPP's, quando implantada, é o tema de interesse da pesquisa. Várias instituições poderiam ter sido escolhidas a fim de viabilizar este estudo. Por exemplo, o comércio64, a família, o Exército em si, as Associações e ONG's que prestam serviços sociais à comunidade, entre outras. Acreditamos, todavia, que a religião, como ponto de partida, é um canal de acesso privilegiado para se compreender o processo, pelas razões que serão exploradas no corpo deste trabalho. A principal delas está na escolha explícita do Exército das lideranças religiosas para o diálogo, motivado em grande parte pela desconfiança para com as lideranças não-religiosas que, segundo escutei em diversos relatos, teria ou algum tipo de ligação com o tráfico ou alguma escusa intenção de lucro político. As 63 No relato dos moradores fala-se sobre a ―invasão do Complexo‖, enquanto do lado dos agentes da segurança pública fala-se sobre ―ocupação/retomada do Complexo‖. 64 Houve um aquecimento do comércio na região, inclusive com a inauguração de novos estabelecimentos. Fontes nos informaram, entretanto, que um banco instalado na região precisa contribuir mensalmente, de forma extraoficial com lideranças ligadas ao tráfico. Outras fontes informaram que certos estabelecimentos, todavia, que tinham como clientes o tráfico, foram prejudicados. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 125 lideranças não-religiosas que foram ―aceitas‖ passaram pela mediação e crivo dos religiosos. O pesquisador está realizando trabalho de campo no Complexo de Alemão, tendo contato com moradores, lideranças religiosas cristãs e não-cristãs, organizações não-governamentais que atuam na região, autoridades militares, soldados e capelães do Exército. As fontes, em sua maior parte, permanecerão anônimas por motivos de segurança e por parte delas estarem vinculadas a instituições cujas posições oficiais e ―extraoficiais‖ nem sempre se coadunam com as opiniões profissionais e pessoais destes atores em relação a diversas situações, especialmente as de conflito. Assim, fica evidente que além dos seus posicionamentos institucionais estes atores jamais se furtaram de refletir além da questão e expor, nas entrevistas e conversas informais, informações e retratos que não passavam pelas vias da instituição. Entendemos, assim, que a religião atua, como bem frisou Geertz (GEERTZ: 2000, 152), como portadora de ―Sentido‖, definidora de ―Identidades‖ ou ―Poder‖. Muito mais do que mera devoção individual, intimista e subjetiva, consideramos aqueles que entrevistamos como atores sociais que se afirmam em termos religiosos. Também não nos limitamos à religião expressa e organizada institucionalmente, mas também aqueles processos sociais e sistemas de representações que se afirmam ritualisticamente. Concordamos com Durkheim (DURKHEIM: 1912, 38) em que a religião é coisa eminentemente social e que os ritos e os processos rituais servem para manter, suscitar ou fazer ressurgir certos estados mentais do coletivo. A religião, no escopo deste trabalho, não é um fim em si mesmo, mas uma janela que se abre para outros processos sociais. Assim, por exemplo, a fonte religiosa pode exercer contribuição na compreensão de conflitos entre o Exército e certos grupos da comunidade e na forma como é construída a relação entre o indivíduo uniformizado, armado, que representa uma instituição que necessita do uso e da demonstração da força a fim de cumprir seus objetivos, e o morador, civil, que vê sua rua agora ocupada por este desconhecido. Uma das primeiras bases operacionais do Exército Brasileiro foi numa igreja protestante, o CIOM-Centro Internacional de Adoração e Missões, um braço da Primeira Igreja Batista de Inhaúma, situada na antiga fábrica da Pepsi, e com uma vasta área. A presença dos soldados e seu comportamento, como fumar e flertar com as mulheres da igreja, levaram a direção desta a pedir sua retirada. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 126 O Exército não tardou a perceber a importância que a religião poderia ocupar na mediação das tensas relações entre soldados e moradores e começou a promover reuniões com a liderança religiosa local. Estas reuniões começaram em agosto de 2011, em princípio, separadas entre católicos e protestantes65, mas, logo, as reuniões passaram a ser em conjunto. Nelas, capelães do Exército, pastores, padres e outras lideranças religiosas discutiam temas locais e apresentavam demandas dos moradores e suas próprias demandas. Com uma frequência média de vinte pessoas, constituída de padres e pastores quase sempre em igual número66, conduzida pelo Padre Lindenberg, consistia basicamente de uma reunião devocional, com orações, cânticos, mensagem e momento de abertura para demandas e discussões, onde todos podiam se pronunciar livremente. O Padre sempre enfatizava a importância dos presentes para o sucesso da missão e que a obra que faziam, inclusive a ocupação, era obra de Deus. Alguns presentes contaram que a ocupação era resposta de oração de suas igrejas e, no geral, mostravam-se bastante satisfeitos com o rumo que a comunidade vem tomando, apesar de todos reconhecerem que há muito a ser realizado e melhorado. As reuniões costumavam ser amistosas e relativamente informais, apesar da presença dos militares fardados e do fato de ocorrer dentro da base das forças de ocupação, num local chamado ―rancho‖, que funcionava como refeitório. Eram reuniões verdadeiramente ecumênicas, embora a palavra pouco tenha sido usada. Numa ocasião, ao perguntar a um pastor o que achava do ecumenismo, ele foi veemente contra. Afinal, como já observou Mendonça (1995) em sua obra sobre a inserção do protestantismo no Brasil67, o protestantismo brasileiro tem como uma de suas principais marcas a polêmica contra a Igreja Católica. O caráter anti-ecumênico do protestantismo brasileiro e sua aparente supressão neste momento específico parece ecoar de forma muito enriquecedora a seguinte análise de Rubem Alves: 65 Começarei utilizando o termo genérico ―Protestante‖, mais fácil e preciso historicamente, mas a alcunha ―Evangélico‖ funciona melhor como autodefinição e na forma como a comunidade e as outras religiões os enxergam. Assim, um pastor da Assembleia de Deus e outro da Igreja Batista se veem como pertencentes ao mesmo grupo maior de ―evangélicos‖, que os distinguem dos católicos, mas quando olham para dentro do grande grupo de ―evangélicos‖, não se consideram iguais, o que vem a gerar vários outros subgrupos, os quais não pretendemos analisar no momento. 66 A liderança feminina costumava ser representada por uma missionária protestante, somente. 67 MENDONCA, Antonio Gouvêa. O Celeste Porvir: a Inserção do Protestantismo no Brasil. ASTE: São Paulo, 1995. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 127 Se o protestantismo atual continua a ser antiecumênico,devem os católicos se lembrar do fato de que esta foi sua criação. Ainda que não o deseje, o protestantismo brasileiro é um filho do Catolicismo. A perseguição e a polêmica inibiram o desenvolvimento das instituições mais criativas do protestantismo, tornando-o um simples anticatolicismo. Note-se, por exemplo, que tantos católicos quanto protestantes estão absolutamente de acordo acerca das regras básicas do jogo. Eles lutam porque concordam acerca da natureza do problema básico em questão. Ambos estão de acordo em que a religião é o fundamento da sociedade. Tanto um quanto o outro veem os problemas sociais como um subproduto da fé religiosa que se adota. Em ambos os casos, portanto, a questão da ética social se reduz e se resolve na fidelidade à fé que cada um dos grupos professa. E, com isso as análises de natureza sociológica, econômica, histórica e política se tornam desnecessárias. (ALVES, 1975, p. 279) Dois eventos merecem ser considerados. Durante a última reunião feita no mês de novembro, um pouco diferente das outras por haver mais tempo para expressões devocionais, no momento em que o Padre Lindenberg pediu que aqueles que estivessem presentes pela primeira vez se apresentassem, um pastor pentecostal se apresentou de forma curiosa. Primeiro, ressaltou a alegria de estar naquele lugar e depois enfatizou a questão da autoridade, insistindo que todos ali eram autoridades da mesma forma porque foram chamados por Deus e são ministros de Deus. Logo, sua fala compreensível era interrompida por manifestações de línguas extáticas que eram traduzidas por ele mesmo e versavam sobre o fato de Deus estar à frente e que tudo ocorreria bem, dirigindo-se especialmente ao Padre dirigente, como se fosse o próprio Deus falando. Na reunião do dia 07 de dezembro, entretanto, algo curioso aconteceu. O Padre Lindenberg fez um discurso inflamado sobre esta oportunidade que classificou como histórica e única no Cristianismo de vivência de um ecumenismo prático, além das teorizações e teologia. Ninguém comentou nada, mas à saída, os pastores insistiam serem contra o Ecumenismo e que aquilo que faziam em conjunto não era Ecumenismo. Estas reuniões forneciam um interessante painel da ocupação e do tipo de relação estabelecida entre os moradores e o Exército. Também se percebe que algumas das demandas são de caráter muito específico, mas também muito enriquecedoras. Por exemplo, um pastor reclama da altura do som que seus vizinhos escutam durante os cultos dominicais de sua igreja. As músicas, de funk, segundo o pastor, conteriam mensagens sexuais explícitas, palavrões e eram usadas para afrontar os membros da sua CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 128 comunidade. Tendo avisado ao Exército, uma patrulha teria ido ao local e solicitado que o volume fosse diminuído, mas tão logo ela deixou o local o volume teria sido elevado a uma altura ainda maior. Este pastor, cobrava, apoiado por parte da liderança protestante, uma ação mais enérgica e um papel coercitivo mais contundente do Exército nesse tipo de caso. Não bastaria, segundo ele, o pedido formal e educado da autoridade, mas uma ação que se utilizasse da força a fim de solucionar definitivamente a questão. Assim, o uso da força coercitiva se torna um dos temas fundamentais para o debate. O Exército é uma instituição fundamentada no uso da Força para cumprimento de seu propósito de guerra e defesa do território de uma Nação. Ele é uma instituição integrante das chamadas Forças Armadas e o significado do termo já diz o bastante. Ele é uma força, ou seja, dotado de poder e do uso legal da violência para sua existência. Sua subordinação é ao Ministério da Defesa, já chamado de Ministério da Guerra. Enquanto uma nação não está em guerra ou não tem seus territórios ameaçados, a sociedade civil espera algum tipo de ação destas instituições que favoreça a comunidade e justifique todo investimento público nelas. Assim, as Forças Armadas envolvem-se em diversos projetos e ações em prol da comunidade e que sejam do interesse da segurança nacional. Especialmente, após a redemocratização do país, as Forças Armadas, destacadamente o Exército, padecem de uma crise de imagem pública. Não se pode dizer, de uma forma geral, que a população seja, naturalmente, simpática a estas instituições. E, jovens em torno de vinte anos, com pouca formação social e educacional, que é o perfil do soldado brasileiro, não são, propriamente, versados em diplomacia diante de conflitos.68 O soldado distancia-se da realidade do morador, que está acostumado a encontrar dois tipos de autoridade, que representam duas diferentes instituições. O primeiro é o policial, civil ou militar, o representante de uma 68 Há uma clara distinção de origem entre os integrantes das Forças Armadas. Dificilmente, no Brasil, são alistados quando completam dezoito anos jovens de classe média ou alta, mas esse espaço parece estar reservado a jovens de origem social mais humilde que veem aqueles poucos anos apoiados por esta instituição como uma oportunidade. As carreiras para oficiais, que exigem concurso público, parecem reservadas, em grande parte, àqueles que podem pagar um curso preparatório ou tiveram acesso a uma boa formação. Assim, nas Forças Armadas, o tipo ideal do soldado é o jovem de origem pobre ou modesta, com pouca formação escolar, e do oficial, o adulto bem formado advindo da classe média ou classe média alta, já que, no geral, as classes mais abastadas não se interessam pela carreira militar. Reconhecemos, todavia, que esta é uma generalização e há variações em determinadas regiões do país. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 129 instituição que possui a pior imagem possível para um morador desta comunidade. O policial é corrupto, violento e não o respeita em sua dignidade. Quase todo jovem ou adolescente do Complexo do Alemão, que não tem nenhum envolvimento com a criminalidade, parece ter algum caso que levou uma ―dura‖ de policiais, tendo sido humilhado e agredido. Sua autoridade é exercida sempre de forma arbitrária e violenta. O policial, mesmo para quem não se envolve no tráfico, é o inimigo, o outro levado ao extremo, aquele que invade o morro e mata inocentes. O segundo é o traficante, a outra instância de autoridade. Este também é o representante de uma instituição com diferentes e complexos graus de poder e subordinação. Se, entretanto, a visão romântica do traficante como bandido bom que ajuda a comunidade, espécie de Robin Hood da favela, não se sustenta mais, a diferença fundamental dele para o policial é que ele é ―cria‖ da comunidade, ou seja, foi criado naquele lugar.69 Este traficante conhece a comunidade e seus moradores e só usa do poder da violência contra a polícia ou contra aqueles que transgridem as normas que o tráfico impõe a comunidade. Mesmo que seu uso da violência seja verdadeiramente temido, o morador ainda espera da parte do traficante respeito e consideração. No Complexo há basicamente três coisas que trazem respeito ao morador. Primeiro, ser morador antigo da comunidade ou ter sido ―criado‖ com algum traficante70. Segundo, jogar bem futebol. Terceiro, saber se calar e se recolher na hora certa.71 Uma possível terceira instância de autoridade é a do pastor evangélico. De uma forma geral, gozam de considerável autonomia em sua atuação religiosa e mantém relações quase sempre amistosas com os traficantes. Por vezes, são capazes de intervir e impedir a execução de pessoas condenadas à morte pelo tráfico, assim como são chamados para fazer orações em situações de guerra, como invasões, e abençoar bailes e outras festividades. Em contrapartida, havia uma rede de doações de cestas básicas que eram distribuídas a muitas igrejas evangélicas da comunidade. 69 Em sua grande maioria, os soldados do tráfico são recrutados na própria comunidade a que pertencem. 70 Quando se diz que alguém é ―cria‖ de algum traficante é porque cresceram juntos. 71 O destino dos chamados ―x9‖ (informantes) é sofrer uma morte violenta e dramática imputada pelos traficantes. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 130 O soldado é o outro que ainda não tem um lugar bem definido, nem uma coisa, nem outra, o estrangeiro. O viajante potencial de Simmel, aquele que embora não tenha partido, ainda não superou completamente a liberdade de ir e vir. Mas sua posição no grupo é determinada, essencialmente, pelo fato de não ter pertencido a ele desde o começo, pelo fato de ter introduzido qualidades que não se originaram nem poderiam se originar no próprio grupo. (SIMMEL, in ―O Estrangeiro‖, 182)72 O soldado não é ―cria‖ de ninguém. É o elemento externo que, se não traz consigo o peso de negatividade da imagem do policial, representa uma imposição de ordem heterônoma por um Estado que se alienou da realidade do morador e das condições sociais mínimas para a comunidade. Ele está na comunidade uniformizado e fortemente armado e representa de forma mais próxima o mesmo Estado que se ausentou e se apresentou diversas vezes como o policial violento. Esta questão nos traz outra consideração, que é o tipo de ordem estabelecida por estes três tipos. A ordem estabelecida pela polícia é intermitente, porque é estabelecida brutalmente através de incursões por vezes sorrateiras, a fim de conseguir propina por parte dos traficantes, por vezes violentas e terrivelmente eficientes em termos bélicos quando coordenada pelo temido BOPE que, ao contrário da popularização como Destacamento eficiente e honesto e da produção do ícone da ficção, o Capitão Nascimento, interpretado no cinema pelo ator Wagner Moura no filme Tropa de Elite (2007), é acusado pelos moradores de assassinatos, espancamentos e torturas de traficantes e inocentes. É uma ordem violenta imposta por um Estado ausente que só se faz presente através da demonstração da força contra o tráfico de drogas. É uma ordem que não usa da diplomacia no trato com os moradores, apelando para a intimidação, a humilhação e a agressão. Numa entrevista, um morador, em torno dos trinta anos, pai de família e que jamais se envolveu com o tráfico me disse: ―A coisa mais comum para um jovem aqui é levar 'dura' da polícia‖. A ordem estabelecida pelo tráfico é curiosamente legalista em alguns aspectos. Por exemplo, não admite que haja furtos, extorsões ou violência sexual sob seu domínio. Leva em consideração o status do morador na comunidade, sua habilidade no 72 Coleção Grandes Cientistas Sociais. Ed; Ática,1983. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 131 futebol, sua respeitabilidade. Funciona como um tribunal de mão única para tratar de disputas e demandas entre os moradores. Entretanto, não se impõe como uma ordem comportamental. Sua autoridade se fundamenta no uso da força e, principalmente, pela imposição do medo gerado pelos ritos de morte impostos aos transgressores da ordem, os chamados ―Suplícios‖, a morte antecedida por uma interminável sessão de torturas e crueldades a fim de dramatizar o castigo. Quanto mais terríveis forem os suplícios, mais temidos eles são, mais respeitada é a ordem imposta. A ordem estabelecida pelo Exército durante o período de ocupação é uma ordem nova, distante de ser um meio-termo entre as duas ordens que já haviam se estabelecido como cultura da comunidade. Por um lado, é legalista como a ordem do tráfico, mas também é comportamental. Houve tentativas de se implantar toque de recolher à noite, que não duraram muito tempo e há repressão à venda de cigarros e bebidas alcoólicas a menores de idade, assim como ao desrespeito às leis sobre poluição sonora e uso de serviços ilegais no uso da luz elétrica, água e serviços de internet e TV a cabo73. Se a ordem é imposta pelo uso da força, certamente seu uso é mais brando do que o uso pelo traficante e pelo policial, mesmo que haja denúncias de abuso e violência por parte de moradores contra soldados. A ordem estabelecida pelo Exército é uma clara demonstração de poder por parte do Estado numa região que, por muitos anos, foi dominada pelo crime organizado. Como afirmado anteriormente, entretanto, este Estado é o outro que estava ausente e que era identificado como a Polícia, portanto é inevitável que esta nova ordem produza incontáveis tensões e incompreensões de ambos os lados quanto à abrangência do uso da força e da extensão desta ordem. Um evento que não foi noticiado pela imprensa ilustra bem a tensão. Não se sabe com certeza o que precisamente ocorreu. Pode ter sido abuso de autoridade por parte de um soldado contra uma criança, pode ter sido a interpretação equivocada de testemunhas alcoolizadas, ou até uma terceira coisa. Um soldado foi repreender uma criança, em torno de seus sete anos, que foi ao bar comprar cigarro e cerveja para alguém. Os fatos são: uma criança chorando de medo, duas garrafas de cerveja quebradas no chão, e pessoas alcoolizadas intervindo na questão. Este evento gerou um tumulto com dezenas de pessoas, que se transformou numa multidão descontrolada 73 Este apelidado pelos moradores de ―Gatonet‖. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 132 contra um grupo de soldados acuados, que teve que usar spray de pimenta contra quem estivesse ali, incluindo mulheres e crianças. Por vezes, essa tensão explode. Este não foi o primeiro, mas apenas mais um dentre muitos eventos parecidos. A tensão não existe somente na relação entre esses atores sociais, mas neles mesmos. Existe uma área do Complexo chamada de Canitar, onde há um campo de futebol, e que tem sido palco de muitas tensões. Tiros sendo disparados contra os soldados, sem que se saiba de onde vêm. A tensão é tanta que um dos soldados que atuou na área cometeu suicídio quando voltou à base e outro foi afastado com sintomas de estresse. Em relação aos moradores, um deles me confidenciou em entrevista: ―Tenho muita violência dentro de mim (…) se não fosse a igreja eu não estaria aqui hoje. Eu preciso da igreja todo dia (...)‖. Percebe-se que esta pacificação não é tão pacífica quanto aparenta. As demonstrações públicas de poder bélico do tráfico e suas ―bocas‖ fixas se foram, todavia o tráfico continua ocorrendo na região, mas de uma forma diferenciada. As ―bocas‖ não são mais fixas, mas itinerantes. E as armas ainda são portadas pelos traficantes. Na terceira semana do mês de novembro de 2011, a notícia de que havia traficantes portando fuzil em determinada região levou uma patrulha a realizar a verificação da informação. Esta patrulha foi emboscada por traficantes, após confronto, e foi obrigada a pedir reforço. Na última semana de novembro, na região da Penha, a viatura do general responsável pela ocupação foi atacada com tiros de fuzil. Um soldado foi atingido de raspão e o evento não se tornou uma carnificina porque os traficantes que atiraram se esconderam em um bar repleto de clientes, o que levou os soldados a não revidar. Diante de tamanha tensão, o Exército Brasileiro entendeu que a religião seria o melhor caminho para alcançar e se tornar mais simpático à população da comunidade. Esta escolha não deixa de ser complexa e produzir outras tensões. A pesquisa se propõe a ser uma etnografia deste processo e suas tensões. O projeto do Exército, liderado pela sua Capelania, se desenvolveu no seguinte tripé: Encontros semanais com a liderança religiosa cristã; Eventos gospel, com músicos conhecidos; CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 133 Desenvolvimento de um curso de preparação para a liderança local com o intuito de preparar ―líderes da paz‖74 Entre os temas do curso, destacamos: Cultura de paz, direitos humanos, mediação de conflitos, gestão e captação de recursos para projetos sociais, fé bíblica e ética social. A duração seria de seis meses, gratuitos, de janeiro a junho de 2012, época programada para a retirada das Forças de Pacificação e implantação da UPP. Os formados integrariam os ―comitês de pacificação‖, que funcionariam um no Alemão e outro na Penha, e os ―núcleos de paz‖ de cada uma das treze comunidades do Complexo e da Penha. O curso, entretanto, não aconteceu, o que provocou grande insatisfação por parte de muitos líderes, que já o haviam anunciado em suas igrejas. O grande ponto de interrogação de todos estes atores sociais neste momento era o seguinte: até que ponto estes comitês serão realmente ―empoderados‖ e não reprimidos ou pelo poder das UPP's ou pelo poder paralelo do tráfico? Algumas notícias ruins a respeito das UPP's já traziam certa ansiedade aos moradores da região. Muitos pastores e outras lideranças religiosas locais buscaram não se envolver em nada neste processo já que o medo de represálias do tráfico é um fantasma sempre presente. Um pastor, que participa das reuniões, conta que recebeu, vez ou outra, pessoas ligadas ao tráfico nos cultos da sua igreja para, segundo ele, sondar e colher algum tipo de informação privilegiada sobre as reuniões realizadas entre religiosos e o Exército. Entretanto, no mês de dezembro de 2011, o relativo fracasso75 dos eventos promovidos em parceria do Exército com estes líderes religiosos culminou numa tensa reunião, na qual se fez presente o General Rêgo Barros, responsável pela Força de Pacificação neste período. Na semana anterior, este mesmo General em reunião comigo e o 1o. Tenente Vinicius me solicitou duas coisas: a produção, a partir da pesquisa já realizada, de um documento que apontasse as demandas sociais do Complexo do Alemão, incluindo possíveis formas de aproximação da instituição com a comunidade; a 74 Uma cópia do cartaz de divulgação se encontra no ANEXO 1. 75 As principais reclamações estavam no não cumprimento da divulgação dos eventos, a não realização do curso prometido, a falta de comunicação e a forma pouco participativa com que os eventos religiosos eram propostos. Por fim, a troca de comando levou a um recomeço das reuniões, o que provocou mais reclamações, desta vez sobre a falta de continuidade. Um pastor, assessor de deputado estadual, presente a todas as reuniões e principal divulgador das mesmas tornou-se o principal crítico da atuação da capelania. Suas críticas abertas e públicas durante as reuniões provocaram muitos desconfortos e tensões e podem ter sido umas das causas da saída do Padre Lindenberg. Em uma destas reuniões, um coronel ameaçou prender o pastor por desacato. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 134 ação interlocutória na ação do Exército para a possível execução destas questões. Um dos fatores que levou o General a escolha de um pesquisador para este papel foi, conforme suas palavras, sua decepção com a liderança comunitária não-religiosa e a necessidade de ampliar o projeto ―religioso‖, que não havia funcionado como deveria. Assim, o ―fracasso‖ do projeto religioso se torna parte do desenvolvimento do tema, que permite a abertura de novas janelas e possibilidades no estudo das relações locais. No dia 01 de dezembro de 2012, muitas questões como estas foram discutidas numa audiência pública realizada no auditório do Colégio Estadual Jornalista Tim Lopes, em Inhaúma. A direção e convocação foram feitas pela Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, presidida pelo Deputado Marcelo Freixo. Estavam representadas Associações de Moradores da região, ONG's que atuam no Complexo, a OAB, a Polícia Militar, a Câmara de Vereadores e a Casa Civil. O Exército Brasileiro também foi convocado, mas não enviou nenhum representante, o que foi duramente criticado por Freixo, que considerou a ausência descaso. O deputado reconheceu o mérito da saída do tráfico armado, mas enfatizou que havia possível violação aos direitos humanos pelas Forças de Ocupação. Rafael Dias, representante da ONG Justiça Global, denunciou que, na ocupação de novembro de 2010 houve violação de domicílios, agressões e furtos. Criticou o processo de militarização da segurança pública e, principalmente, a criminalização dos moradores pelo crime de desacato. Segundo ele, houve de janeiro a julho de 2010, antes da ocupação, registro de 333 prisões no Complexo. No mesmo período do ano de 2011, porém, já durante a ocupação, 499 prisões. O motivo seria o elevado número de prisões por desacato e a ilegalidade em prender e julgar moradores com base no Código Penal Militar. Haveria, também, pouca habilidade diplomática do Exército na mediação de conflitos76. O advogado Aderson Bussinger Carvalho, da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), em sua fala, destacou a inconstitucionalidade da presença do Exército Brasileiro, que não deve executar papel de polícia, já que além de inconstitucional, não é de sua natureza, o que o leva a prática de assédio e constrangimento aos moradores. 76 Os militares, por sua vez, se queixam do desrespeito aos soldados por parte dos moradores. Um capelão observou que grande parte dos conflitos desse gênero envolveram moradores alcoolizados. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 135 Alan Brum, representante da ONG Instituto Raízes em Movimento, com sede da região, foi ovacionado pelos moradores ao criticar: a aplicação dos recursos públicos; a ilegalidade do uso de mandados de busca e apreensão coletivos, que ―permitiam‖ a entrada na cada de qualquer morador; o fechamento de pontos comerciais que não possuíam alvará de autorização para o funcionamento; a construção do teleférico, que beneficiaria poucos moradores; e o esquecimento dos principais objetivos do PAC para a região. As representantes da Casa Civil, Amanda Cerqueira e Fernanda Barbosa, por sua vez, visivelmente constrangidas, não contribuíram para os assuntos discutidos e declararam não ser de sua competência responder as questões apresentadas. Limitaramse a uma apresentação em Power Point que mostrava aquilo que tinha sido executado na região. O presidente da Associação de Moradores da Grota, Vágner, cobrou os investimentos sociais, reconheceu a paz e denunciou que o Censo 2010 não atingiu a todos os moradores. Outras falas parecidas aconteceram. O Tenente-Coronel da Policia Militar Carlos Eduardo, representante da Secretaria de Segurança Publica, enfatizou a contínua busca de sua corporação no respeito integral aos direitos humanos do cidadão. Ricardo Moura, do Comitê de Desenvolvimento Local da Serra da Misericórdia, criticou a fala da Casa Civil, denunciou escombros abandonados pelas obras do PAC e alertou para uma possível epidemia de dengue no Complexo. No dia 29 de dezembro de 2011, entreguei ao Exército Brasileiro, na pessoa do General, um ensaio chamado ―Favela, Exército e Religião‖, um esboço introdutório da dissertação que está sendo produzida e o documento ―Demandas Sociais do Complexo do Alemão‖. O documento foi amplamente discutido numa reunião com o General e serviu de base para o projeto do Exército Brasileiro em se aproximar da comunidade. Entretanto, a troca de comando, ocorrida poucas semanas depois, levou toda a questão à estaca zero e não houve continuidade ao trabalho do comando anterior. Diante de todas estas múltiplas vozes, em um trabalho de campo em pleno andamento, algumas observações já podem ser feitas. Primeiro, houve, no início da ocupação, realmente, diminuição da violência na região e não se encontraram mais demonstrações públicas, por parte do tráfico, de poderio e desafio às autoridades. O Exército atuava firmemente quando recebia CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 136 denúncias e não evitava o confronto, quando este se fazia necessário. A ocupação, relativamente pacífica, não significou que não houve resistência e a pacificação se deu pelo uso contínuo da força pelas tropas de ocupação. Num segundo momento, especialmente nos últimos três meses da ocupação pelo Exército e antes da chegada do BOPE houve uma intensificação dos confrontos e das demonstrações, por parte do tráfico, de sua presença ainda no local. Segundo, a relação do Exército com os moradores foi tensa produziu diversos conflitos, ocasionados por falta de habilidade diplomática de ambos os lados. Houve uma tentativa de aproximação com a comunidade, através de sua equipe de capelania, com os líderes religiosos cristãos da comunidade. Por outro lado, o lado mais sombrio dessa relação esteve no grande número de prisões por desacato e seu tratamento através do Código Penal Militar. Um dado importante é o aumento em mais de 40% das prisões no período de pacificação em comparação à época em que a região era dominada por narcotraficantes armados. Esse dado demonstra a pouca habilidade diplomática do Exército Brasileiro em situações de conflito e sua histórica dificuldade em publicizar suas ações ao público de forma transparente. Sua ausência na audiência pública fortalece este argumento. Terceiro, a solução apresentada para o problema da segurança não trata a questão de forma estrutural e os outros investimentos sociais necessários para o desenvolvimento da região foram mal começados. O questionado teleférico é um símbolo da forma como o dinheiro público tem sido utilizado, sem priorizar as necessidades e demandas mais urgentes dos moradores. Quarto, o tráfico não foi abolido da região, mas seu modus operandi foi adaptado à nova situação e o seu contínuo fortalecimento após duro golpe tem sido constante, ocasionado um progressivo retorno do medo e dos conflitos armados com vítimas na região. Quinto, apenas parte do que acontece na região do Complexo é divulgada, restando às testemunhas oculares o relato de alguns acontecimentos graves envolvendo soldados, os moradores e os traficantes. Por fim, há uma ansiedade por parte dos moradores, das representações da sociedade civil e até mesmo do Exército quanto ao futuro da pacificação após a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 137 Referências Bibliográficas ALVES, Rubem. Religião e Repressão. Edições Loyola: São Paulo, 2005. ALVITO, Marcos. As Cores de Acari- Uma favela Carioca. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. AMORIM, Carlos. Comando Vermelho: A História Secreta do Crime Organizado. Rio de Janeiro: Record, 1993. CASTRO, Celso. O Espírito Militar: Um Antropólogo na Caserna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa (O Sistema Totêmico na Austrália). Tradução: João Pereira Neto. 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Introdução Ao longo do tempo notamos certa omissão por parte da geografia no âmbito dos estudos relacionados à religião, a herança positivista dos séculos XVIII e XIX na geografia perdurou por muito tempo, impossibilitando que estudos dotados de caráter mais subjetivistas e fenomenológicos pudessem ser desenvolvidos e discutidos. A geografia cultural resgata estes aspectos tangíveis a religião, sua subdivisão, a "geografia da religião" trata de conceitos que são de suma importância para entendermos a religião no mundo atual, sempre buscando essa inter-relação entre espaço e religião, nas palavras de Gil Filho, professor da UFPR (2007, p.208): "A geografia da religião é uma subdisciplina da geografia humana que tem por objeto o fenômeno religioso visto como um espaço de relações objetivas e subjetivas consubstanciadas em formas simbólicas mediadas pela religião." A princípio precisamos esclarecer que as formas religiosas são em sua maioria formas essencialmente espaciais, ou seja, as manifestações espaciais de fenômenos religiosos podem ser estudadas a partir de formas religiosas já impressas na paisagem. Ao pensarmos o território sob o aspecto cultural que para Rogério Haesbert consiste no aspecto que priorizava a dimensão simbólica e subjetiva do território, é visto, sobretudo, como produto da apropriação simbólica de um grupo em relação ao 77 Graduando em Geografia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 140 espaço vivido, lembrando que o ―aspecto cultural‖ do território sempre estará vinculado ao seu aspecto político, podemos então, inserir facilmente a religião no eixo das discussões territoriais, sugerimos por exemplo, os seguintes temas para estudo mais detalhados: a história da expansão geográfica dos Estados Unidos que sempre pensaram a unidade territorial e a conquista de novas terras pautadas num suposto "destino divino", outro exemplo a ser explorado em possíveis discussões: estados contemporâneos fundamentados exclusivamente em leis divinas, definindo inclusive suas fronteiras políticas por estes preceitos religiosos, podemos incitar também a discussão no eixo das grandes migrações de caráter religioso que marcam a historia da humanidade em tempos atuais, migrações essas que independente de serem temporárias ou definitivas marcam profundamente os espaços de origem e de destino, sendo assim, detectamos que este caráter "espacial" da religião não pode ser ignorado, pelo contrario, pensar a religião junto a concepções espaciais modernas como a multiterritorialidade e hibridização cultural, contribui muito para os estudos sociais. Ao longo deste ensaio mostraremos um breve histórico dos estudos da geografia da religião, situados dentro da geografia cultural, prosseguindo para a fundamentação teórica, comprovando a inter-relação entre estas áreas de estudos, para por fim, apresentar possibilidades de pesquisa e discussão da religião dentro da geografia, sempre dialogando com outras áreas do conhecimento, diálogo este que se mostra tão sugestivo, e não tão bem explorado. A abordagem da cultura pela geografia A geografia como saber científico compartimentado e institucionalizado entre o final do século XIX e inicio do século XX tem forte relação com o caráter imperialista e etnocêntrico das potências européias, grandes protagonistas deste período histórico, seus conhecimentos sobre o território eram utilizados para a conquista e posterior legitimidade de novos lugares, principalmente na África e Ásia, esta geografia conhecida como clássica caracterizava-se pelo viés naturalista e determinista, sempre colocando ―o homem‖ como sendo exclusivamente guiado pelos processos naturais, podemos definir que esta ―herança‖ é advinda da ciência social predominantemente positivista da época, tempo que os cientistas sociais consideravam que as regras biológicas deveriam ser incorporadas para construir uma ciência ―neutra e objetiva‖ CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 141 Esta abordagem positivista pela geografia e pelas demais ciências sociais sofre uma denúncia por parte dos pesquisadores que preferem adotar uma postura ―crítica‖ ao diferenciarem o conhecimento entre ―nomotético e ideográfico‖, comprovam que a diferenciação entre as ciências ditas naturais e as humanas é, além de notória, fundamental para melhor compreensão da realidade entretanto, ainda assim, a abordagem crítica da geografia de cunho marxista ignorava a importância dos estudos culturais, pois considerava alienação qualquer relação afetiva entre a natureza e o homem. Precisamos relatar, que durante este período os estudos relacionados à cultura e a religião por parte da geografia não foram completamente ignorados, contudo, eram estudos que consideravam a cultura apenas resultado da interação entre a paisagem e o homem, não adentrando especificamente no caráter subjetivista que estes estudos propõem. Nas palavras de Zanatta: (2008, p.255) Até a década de 1940, o interesse da Geografia cultural atinha-se, principalmente, às marcas que a cultura imprimia na paisagem ou à noção de gênero de vida. Ainda que sob diferentes formas, ambas abordagens acentuavam a cultura material (artefatos, técnicas, utensílios, habitat e instrumentos de trabalho), não acompanhando a evolução dos estudos antropológicos que já davam destaque à cultura mental, aos aspectos psicológicos das sociedades. Ao continuarmos nosso avanço cronológico pela história do pensamento geográfico encontraremos por fim um grande avanço dos estudos culturais por parte da geografia na pós-modernidade, ao surgirem estudos que priorizam a abordagem hermenêutica do fenômeno, novos campos e possibilidades de estudos se abrem, permitindo uma grande colaboração da geografia no campo dos estudos culturais, por conseqüência, um avanço nos estudos da religião por parte dos geógrafos, para Zanatta (2007, p. 205 apud MCDOWELL, 1996, p.159); A geografia cultural é atualmente uma das mais excitantes áreas de trabalho geográfico. Abrangendo desde as análises de objetos do cotidiano, representação da natureza na arte e em filmes até estudos do significado das paisagens e a construção social de identidades baseadas em lugares, ela cobre numerosas questões. Seu foco inclui a investigação da cultura material, costumes sociais e significados simbólicos, abordados a partir de uma série de perspectivas teóricas. A abordagem da religião pela geografia CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 142 Ao realizarmos uma comparação com outros temas recorrentes a geografia como o rural-urbano, indústria, política, economia ,entre outros, percebemos que o tema da religião não é tão bem explorado, como já citado anteriormente fator preponderante a este fato é a própria lógica do desenvolvimento das ciências sociais, que demora a romper a barreira do ―positivismo‖ herdado das ciências naturais, contudo alguns estudos pertinentes a religião na geografia foram publicados esporadicamente neste período ―clássico‖, para entender as raízes da abordagem da religião na geografia é de vital importância resgatar os seguintes autores e suas obras que ofereceram enormes contribuições para o estudo da geografia da religião: Pierre Deffontains com a obra ―Géographie et religions” (1948), que investiga em sua obra as relações entre as culturas e suas representações no espaço, Maximilien Sorre em ―Rencontres de la géographie et de la sociologie‖ (1957), evidenciando elementos religiosos em textos geográficos e também David Sopher com ―Geographie of religions” (1967), analisando os fenômenos religiosos e abordando a interação espacial destes com uma dada cultura e seu ambiente terrestre complexo entre diferentes culturas. Podemos definir com o marco dos estudos geográficos sobre religião no Brasil o ano de 197278, na cidade de São Paulo é publicado aquele que seria o primeiro trabalho que aborda o tema; Maria Cecília França publica sua tese de doutorado em geografia na USP chamada ―Pequenos Centros Paulistas de Função Religiosa‖. O autor Santos (2002, p.24) em seu artigo ―Introdução a Geografia das religiões‖ ao analisar o trabalho de Maria Cecília afirma: A tese de FRANÇA é um estudo geográfico da devoção a Bom Jesus da Cana Verde nos pequenos centros paulistas de Iguape, Tremembé, Perdões e Pirapora. Trata-se de um estudo religioso-geográfico a respeito do catolicismo no Brasil. A autora analisa a organização do espaço em decorrência dos fluxos de peregrinação dos fiéis, nos quatro pequenos municípios mencionados. A abordagem geográfica da autora insere-se na concepção da Geografia Tradicional. Em contrapartida podemos citar também o trabalho de Gualberto Gouveia, ―A cidadania dos despossuídos: segregação e pentecostalismo”(1993) que aborda a religião na geografia, entretanto, sob uma perspectiva metodológica bem diferente, um cunho notadamente marxista, para SANTOS, 2002: “O autor faz uma análise geográfica do pentecostalismo no espaço urbano de São Paulo, tendo como delimitação 78 ―Introdução a Geografia das religiões‖ de Alberto Pereira dos Santos, pág. 24, 2002. - GEOUSP _ Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 11. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 143 espacial o bairro da Freguesia do Ó e defende que esse sistema religioso produz uma cidadania às avessas, isto é, um tipo de segregação sócio-espacial.” Por fim não podemos deixar de ressaltar o trabalho de ZENY Rosendahl: ―Espaço e Religião: uma abordagem geográfica” (1996), em um artigo que relaciona muito bem os temas da geografia e da religião, apresentando autores clássicos da geografia da religião e até sugerindo novos eixos temáticos a serem explorados dentro dessa área do conhecimento. Logo, observamos que as publicações de estudos envolvendo a geografia da religião vêm com o tempo adquirindo maior importância e relevância a partir dos últimos anos, seguindo uma própria tendência dos estudos geográficos de enfatizar a dimensão cultural, simbólica, fenomenológica do território. Os conceitos clássicos da geografia que explicavam o território sob uma ótica cartesiana e imutável se tornam defasados ao percebemos a lógica complexa e emaranhada da contemporaneidade, nas palavras de Claval (1999): ―houve uma significativa mudança na forma de conceber o fenômeno religioso em Geografia depois de um diálogo maior com as Ciências da Religião de base fenomenológico. Desse modo foi possível estudar o fenômeno religioso além da manifestação concreta na paisagem.” A partir de então a religião perde o caráter de materialidade imediata, tornando-se indissociável dos estudos que tenham a pretensão de explorar a territorialidade por completo atualmente. Fundamentação Teórica Depois de toda a contextualização da abordagem cultural na geografia e do histórico dos estudos religiosos na geografia podemos definir alguns conceitos importantes, primeiramente definimos a geografia da religião como um eixo temático da geografia humana, tema este que vem sempre à tona ao realizarmos estudos culturais na geografia, sua área de estudo seria de forma geral, temas que associem as formas religiosas a estruturas geográficas, na definição dada por Gil Filho (2007, p. 208): A Geografia da Religião circunscrita a uma interpretação espacial da prática religiosa ou do conjunto de objetos religiosos da paisagem é limitada. Todavia, em seu sentido amplo, a prática religiosa se apresenta como um fenômeno da cultura humana inspirada na busca da transcendência ou imanência. A materialidade imediata da prática CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 144 religiosa não é um fim em si mesmo, mas um meio inicial de compreensão da dimensão religiosa. Neste contexto a Geografia da Religião é uma subdisciplina da Geografia Humana que tem por objeto o fenômeno religioso visto como um espaço de relações objetivas e subjetivas consubstanciadas em formas simbólicas mediadas pela religião. Portanto podemos concluir que a religião possui uma dimensão geográfica, na medida em que envolve na sua dinâmica categorias geográficas, como: a população, o território, a paisagem, entre outros, sua responsabilidade é investigar o espaço da religião como parte integrante do espaço social. Após definir qual sua área de estudo e como ela colabora para a geografia, esta que se realiza através de uma intersecção entre religião e espaço, vamos adentrar um pouco mais nos conceitos da geografia da religião, o primeiro conceito pertinente que abordaremos é o simbolismo, este que é considerado superação da vida biológica através desta ―aculturação‖ de hábitos comuns a todas as espécies, entendemos que o homem não vive somente no mundo dos fatos, mas principalmente no universo simbólico, e a religião é parte deste mundo abstrato, a atividade simbólica modela o mundo em dimensões de experiências, estas formas simbólicas se fazem presente nas artes, na linguagem e em diversos fatores da vida social. Compreendendo como o universo simbólico é importante para a geografia da religião partiremos para outro conceito vital ligado a essa disciplina; o ―Espaço sagrado‖ este espaço ocupa uma posição mediadora entre o espaço concreto e o espaço abstrato, Gil Filho (2007, p. 210-211) projeta três espacialidades possíveis de se captar para o espaço sagrado: (i) A espacialidade inicial em um espaço de expressões como dimensão objetivada de sua empiricidade imediata. Neste contexto o espaço sagrado se apresenta como palco privilegiado das práticas religiosas. (ii) Na segunda espacialidade, o espaço sagrado é apresentado no plano da linguagem na medida em que as percepções religiosas são conformadas a partir da sensibilidade nas formas tempo e espaço. Neste sentido as coisas religiosas da expressão empírica são configuradas como formas da intuição explicitadas em um processo de desenvolvimento rumo às representações. Trata-se da saída do mundo das sensações e a entrada no mundo da intuição que através do espaço, tempo e número compõem a síntese lógica da linguagem. (iii) A terceira espacialidade é uma desconstrução heurística do espaço das expressões empíricas e o espaço das representações simbólicas. Trata-se de um espaço propositivo e sintético que articula o plano sensível ao das representações galvanizada pelo conhecimento CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 145 religioso. Compreende as formas do conhecimento edificado e manifesto pelo homem religioso em um complexo de convicções hierarquizadas relacionadas à tradição e ao sentimento religioso. As crenças edificam um senso de sacralidade instrumentalizada pela herança de arranjos institucionais que denotam determinadas visões de mundo. O espaço sagrado, como espacialidade social do conhecimento, incorpora a idéia unificadora do pensamento religioso no conceito da Divindade. No momento em que o pensamento religioso alterna-se no objetivo e no subjetivo, ultrapassa e liberta-se dos ditames funcionais da linguagem e atinge o plano da transcendência.‖ A seguir algumas contribuições teóricas para as ciências sociais advindas do estudo da religião por parte da geografia. Algumas contribuições para os estudos religiosos por parte da geografia Ao pensarmos os estudos geográficos sobre a religião talvez o que vem a mente primeiramente sejam as diásporas e migrações, estes provavelmente são os temas que mais saltam aos olhos à contribuição da geografia para esses estudos. Para os deslocamentos provocados pelas religiões Rosendahl ofereceu enormes contribuições, definindo centros de convergência e irradiação, em seu estudo discorreu sobre as migrações de caráter global; definindo Londres e Roma como os maiores centros de convergência do mundo católico, por exemplo, enquanto a Meca é o principal destino de migração islâmica, Benares o centro sagrado dos hindus, relata ainda que este caráter migratório possa ser reforçado por um revestimento turístico dado pelo governo além de outras considerações no caráter regional menciona um curioso estudo sobre Munquem cidade localizada no estado de Goiás que possui cerca de 200 habitantes e atraem em determinada festa religiosa um contingente de 60 mi pessoas, ou seja, como podemos ignorar o impacto deste fluxo populacional na dinâmica territorial? Outros estudos importantes foram aqueles que definiram uma correlação entre religião e territorialidade, lembrando que a territorialidade remete a ação e controle do território e das pessoas territorializadas, partindo disso Sopher79 classificou as religiões em dois grandes grupos de acordo com sua relação com o território: religiões étnicas e religiões universalizantes, sendo que as primeiras estão associadas a um grupo específico de pessoas e normalmente estão vinculadas a um lugar especifico, enquanto 79 Sopher, D. Geography of Religions, op. cit CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 146 que as universalizantes rompem os laços com seu lugar específico de origem para disseminar sua mensagem. Em seu estudo ele ainda aprofunda em como a igreja católica romana desenvolveu ao longo do tempo seu domínio à exemplos claros de territorialidade. Ainda seguindo os estudos de Sopher as religiões universalizantes criariam em seus domínios três expressões de territorialidade: coexistência pacifica, instabilidade e competição e intolerância e exclusão. Para finalizar podemos citar também como contribuição o autor Alberto Pereira dos Santos que em seu artigo ―Introdução a geografia das religiões”, traz várias considerações sobre a formação religiosa do Brasil, resgatando na história a influência da ocupação portuguesa na dispersão do catolicismo em nosso território e do sincretismo característico brasileiro oriundo do contato entre povos de diversas culturas em um mesmo espaço Considerações Finais Neste ensaio o principal objetivo era emergir o assunto da religião para a geografia, que apesar dos consideráveis avanços tanto qualitativos como quantitativos nesta área do conhecimento, ainda apresenta por parte dos geógrafos certa relutância na participação em suas discussões. Ao percorrer de maneira breve a história da abordagem do tema religião e cultura pela geografia e mostrar as suas importantes contribuições pretendemos desmitificar o assunto, e mostrar tanto para aqueles que são oriundos da ciência geográfica como de outras ciências sociais que a geografia deve se inserir nestas discussões e colaborar junto com a história, a antropologia entre outras, para um melhor entendimento não só da religiosidade como de todas as manifestações culturais em geral. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS CLAVAL, P. - “O Tema da Religião nos Estudos Geográficos‖, Espaço e Cultura, UERJ, Rio de Janeiro, 1999. FRANÇA, M.C. – “Pequenos Centros Paulistas de Função Religiosa”. Tese de Doutorado. São Paulo, USP, Depto. de Geografia, 1972. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 147 GIL FILHO, S.F. – ―Geografia da Religião: Reconstruções Teóricas sob o Idealismo Crítico.” In: KOZEL, S.; SILVA, J.S.; GIL FILHO S.F. (Org.). Da percepção e cognição à representação reconstruções teóricas da geografia cultural e humanista, 1ª ed. São Paulo: Terceira Margem - Edufro, 2007. HAESBERT, R. – ―Des-caminhos e perspectivas do território”, In: RIBAS, A.D.; SPOSITO, E.S.; SAQUET, M.A. (org) Território e Desenvolvimento: Diferentes Abordagens. Francisco Beltrão. Unioeste, 2004. HOLZER, W. - “A geografia cultural e a história: Uma leitura a partir da obra de David Lowenthal”, Espaço e Cultura, UERJ, Rio de Janeiro, 2005. ROSENDAHL, Z. – “Geografia e Religião: uma proposta‖ Espaço e Cultura, UERJ, Rio de Janeiro, 1995. SANTOS, A.P. – “Introdução a geografia das religiões‖, Revista GEOUSP Espaço e Tempo, São Paulo, 2002. SILVA, A.S. e GIL FILHO, S.F. - “Geografia da Religião a Partir das Formas Simbólicas em Ernst Cassirer: Um Estudo da Igreja Internacional da Graça de Deus no Brasil” Revista Estudos da Religião, Curitiba, 2009. ZANATTA, B. A. – “A abordagem cultural na geografia”, Revista Temporis(ação)UEG, Goiás, 2008. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 148 CASA DE CONVIVÊNCIA E ALQUIMIA ESPIRITUAL – O Sagrado, a New Age e a Ayahuasca. Anderson Leon Almeida de Araújo; Diego Hajime; Rainie Vieira Mendes; Rodrigo Sampaio Pinto; Vanessa Moreno80 Resumo: O presente trabalho buscou problematizar os novos movimentos religiosos que fazem parte do cotidiano da sociedade. Deste modo, escolhemos o templo espiritualista Casa de Convivência e Alquimia Espiritual para entender como esses indivíduos, a fim de alcançar uma elevação espiritual, interagem com a sociedade e agem entre si. O grupo ali instalado desenvolve trabalhos de ajuda pessoal e espiritual unindo uma grande diversidade de crenças, símbolos e ritos, atendendo, em grande medida, indivíduos advindos de camadas mais abastadas da sociedade. Sendo assim, buscamos pensar nas transformações no campo religioso, a não religiosidade - capaz de agregar todas as religiões, a própria questão universalista, os sincretismos, além das questões emocionais que perpassam a modernidade religiosa, entre outros. Palavras-chaves: Universalismo, Ayhuasca, Sagrado Objetivos e Justificativa: A pesquisa solicitada como avaliação para a disciplina optativa Sociologia da Religião, ministrada pela docente Silvia Fernandes no segundo semestre de 2011, busca problematizar movimentos e fenômenos religiosos que atravessam o cotidiano da sociedade fluminense. Desta forma, foi escolhida pelo grupo em questão, um templo espiritualista, a Casa de Convivência e Alquimia Espiritual. A Casa – um sobrado na Rua Soriano de Souza, 47, Tijuca – oferece diversos serviços espirituais para aqueles que buscam um atendimento espiritual diferenciado. É diferenciado o atendimento neste templo, pois como relatado, a maioria dos sensitivos do grupo são graduados em psicologia. Para além das consultas 80 Graduandos em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 149 espirituais, a casa dispõe de sessões de acupuntura, yoga, massagem de relaxamento visando o equilíbrio dos chacras, sessões de umbanda e santo daime. A Pesquisa Qualitativa intitulada ―Casa de Convivência e Alquimia Espiritual – O Sagrado, a New Age e a Ayahuasca‖ visa questionar e esclarecer alguns pontos pertinentes a uma comunidade espiritualista. A partir da entrevista proposta, buscou-se discutir alguns pontos importantes, como a relação dos membros com a casa, as atividades da mesma, a relação destes com o sagrado, e com o uso da ayahuasca. Cada uma das questões estará sendo discutida nos capítulos a seguir. Compreender este fenômeno religioso ascendente mostrou-se o maior desafio para os pesquisadores. Por não se tratar de um grande movimento religioso a qual estamos habituados, tudo parecia estranho e inovador. O espaço físico e a quantidade de símbolos diversos distribuídos pelo ambiente, a variedade dos serviços prestados pela casa, com origens diversas, da popular umbanda às leituras de Ramatis, e as concepções de Sagrado expressas pelos praticantes nas entrevistas, nos proporcionou material rico para o início de uma percepção e compreensão deste fenômeno religioso em questão. Metodologias de Pesquisa: Ao recebermos a notícia de que poderíamos visitar e conhecer a Casa de Convivência e Alquimia Espiritual, mos preparamos para colocar em prática métodos pertencentes à metodologia qualitativa, a observação participante81 e entrevista aberta com os membros da casa. Visto os problemas logísticos que uma observação participante impõe, referentes a uma rotina e participação nos afazeres do grupo, optamos por dois momentos na pesquisa. O primeiro seria uma visita para conhecer o grupo, na tentativa de participar de alguma sessão religiosa, estabelecendo assim um mínimo contato entre o pesquisador 81 Visto que a observação participante leva tempo para ser adequadamente realizada, e que não teríamos a disposição este tempo. Procuramos desenvolver nossa atividade minimamente baseada em conceitos da observação participante apresentados por Licia Valladares em artigo à Revista Brasileira de Ciências Sociais, intitulado Os Dez Mandamentos da Observação Participante. Disponível em novembro de 2011 no site http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-69092007000100012&script=sci_arttext. Neste artigo, a autora apresenta uma discussão dos clássicos da sociologia e antropologia que discutem o método qualitativo em questão. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 150 e os sujeitos da pesquisa. O segundo consistia na tentativa de uma maior aproximação com os indivíduos que frequentavam a casa através de uma entrevista. Após um primeiro contato marcamos uma visita ao local e participarmos de uma sessão aberta, a consulta espiritual. Durante a consulta, fomos convidados a sentar junto aos médiuns, e ouvir junto com eles os problemas daqueles que ali buscavam amparo. Depois disso, em um terceiro momento, fizemos a entrevista proposta. Realizada de modo descontraído, com questões elaboradas pelo grupo, com colaboração da docente, a entrevista realizou-se em um dia que não havia trabalhos espirituais, ou seja, os médiuns que dela participaram se dirigiram ao templo apenas para este fim. Seguem as questões: 1. Que aspectos você destacaria como motivadores para a sua busca a Casa de Convivência e Alquimia Espiritual? 2. A participação na Casa tem relevância em sua vida pessoal e espiritual? Por que? 3. No cotidiano da Casa, existe alguma atividade especial para você? Qual? por que? 4. Você acha que há uma manifestação do sagrado em sua vida? Como define o sagrado? 5. Qual a sua relação espiritual com o uso do Daime? As questões visavam problematizar a participação do médium naquele grupo, ao invés de casas espíritas tradicionais, ou mesmo em igrejas de Daime ou em terreiros de umbanda; A relação entre o médium e o sagrado, buscando saber como o membro deste grupo observa o sagrado, e como ele se manifesta em sua vida espiritual; As relações entre o médium e as atividades na casa, e seu convívio com o grupo; e, por fim, a relação espiritual com o uso do Daime, sua justificativa e proposta. As entrevistas foram devidamente autorizadas e se encontram gravadas. Foram duas as entrevistadas, uma senhora, de 56 anos, graduada em Psicologia que chamaremos de entrevistada A, e uma jovem de 25 anos também graduada, em pedagogia, a quem chamaremos de entrevistada B. A entrevista, como dito, transcorreu de maneira descontraída numa sala de espera da casa, sentados em sofás, com pés descalços, conversamos em roda, assim como visto na mesa. As questões abertas levaram ao que intitula Fernando Rey82, a uma dinâmica conversacional83. As entrevistadas muito contribuíram para a pesquisa, respondendo com atenção a todas as questões, analisadas em seguida à luz dos teóricos escolhidos. Introdução – Observando uma consulta espiritual aberta ao público: 82 GONZÁLES REY, Fernando. Pesquisa Qualitativa e Subjetividade: Os Processos de Construção da Informação. São Paulo: Cengage Learning, 2010. 83 GONZÁLES REY, 2010, P.126. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 151 A Casa de convivência e Alquimia Espiritual é um templo espírita universalista que congrega diversas atividades religiosas em um só lugar, Daime, Umbanda, Kardecismo. É constituído por médiuns liderados pelo chefe da casa, Alexandre, estes são de várias faixas etárias, e se revezam nas tantas atividades da casa. Para conhecer de modo superficial o grupo, basta visitar seu blog: http://casadeconvivencia.blogspot.com/2008/12/quem-somos-ns.html, onde assim eles se apresentam: Somos um grupo estudioso do mistério da vida em suas diferentes manifestações. Para nós há sempre um encanto na forma como tudo acontece, pois por mais que soframos, somos aos poucos obrigados a nos render as evidências do Poder Criador. O Sol, a Lua, as Estrelas, todo Firmamento nos convidam a cada dia a render essa profunda homenagem a esse Poder. Visto a impossibilidade da participação em rituais fechados da casa, o que seria consequência apenas a um longo período de pesquisa e interação ao grupo, seguimos a uma sessão de atendimento espiritual aberta ao público, que ocorre sempre às quartas feiras a partidas 14:00 horas da tarde. E após a retirada de nossos calçados e uma breve conversa sobre a pesquisa com um dos membros da casa, e visto que estes já sabiam da nossa visita, fomos encaminhados à sala onde ocorriam os atendimentos. Após uma sessão de passe espiritual84, nos posicionamos em uma parte da sala de forma distanciada da mesa. Quando os cânticos iniciais provenientes de hinários do culto Santo Daime, entoados ao som de Maracás, iniciaram, fomos convidados a participar, cantando as canções de abertura da sessão. As consultas começam após as orações de Pai Nosso e Virgem Maria, e logo percebemos a vital importância do líder da casa, um senhor de óculos, roupa branca, cabelos pintados e encaracolados, que se posicionava na extremidade da longa mesa que deveria ter uns 4 metros de comprimento. Ele liderava a consulta, respondendo às aflições daqueles que procuravam a casa, e dando lições espirituais baseadas em ensinamentos deixados por outros líderes religiosos85. Após alguns atendimentos, fomos chamados a sentar nas cadeiras em volta da mesa, intercalados ao lado dos médiuns. Neste lugar podíamos ter uma interação maior com os outros médiuns que estavam ao nosso lado, e também poderíamos observar diretamente o líder. Nesta dinâmica, ouvíamos atentamente os problemas daqueles que buscavam o atendimento. Dentre os vários motivos que levavam os visitantes à consulta têm a depressão, o divórcio e a aposentadoria como os principais queixumes. Problemas familiares eram colocados 84 Elemento presente nas sessões espíritas kardecistas, visa limpar espiritualmente o atendido, para que este possa participar de forma mais profunda da sessão espiritual. 85 Cita-se neste caso as figuras recorrentes na fala do líder: Mestre Jesus, Mahatma Gandhi, Sai Baba, Ramatis, Caboclos e Pretos Velhos, Dalai Lama, Chico Xavier, entre outros. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 152 à mesa. Em um momento, um casal se apresenta, e na frente de todos, começam a expor seus problemas envoltos em palavrões e lágrimas. Todos observam com atenção, sem fazer nenhuma crítica. O líder convoca os médiuns para uma concentração em torno do problema e após dá o seu diagnóstico, e a receita para uma relação mais saudável, tendo como principais medicamentos: a paciência e a alegria. A maioria dos que estavam buscando atendimento nos parecera fazer parte de uma classe média local, isto estava explícito em suas falas, ao citar o ‗apartamento em Copacabana‘, ‗as baixelas de prata da minha avó‘, ‗o meu restaurante que fechei após a depressão‘, ou ‗eu era gerente de tráfego aéreo da agência nacional de aviação civil‘. Quanto à faixa etária dos médiuns e dos que procuravam solucionar os seus problemas, percebia-se uma maioria de pessoas de meia idade, quando se colocou o problema do o que fazer quando chega a aposentadoria, dois dos médiuns disseram que começaram a se dedicar a esta vida espiritual após a aposentadoria em seus respectivos empregos. Alguns jovens médiuns também participavam dos trabalhos na mesa, ao qual nos chamou a atenção um rapaz com a aparência de 25 anos, com todo o corpo tatuado, brincos e piercings por toda a orelha e rosto, longa barba, mas vestido com a farda azul padrão de todos os médiuns, calça branca, rosário azul no pescoço, e que durante as cinco horas em que acompanhamos a sessão, permaneceu sempre de olhos fechados, em posição de concentração, sentado na cadeira, com as mãos espalmadas para cima sobre os joelhos. O líder carismático, falava usando metáforas explicativas, mas em um linguajar coloquial, usando gírias e palavrões. Contava histórias de sua própria vida, de sua juventude, o que levava algumas vezes, aos demais médiuns a também contarem suas histórias de vida em meio às consultas. O espaço físico da sala era bem interessante, e mostrava um misto de várias crenças ocidentais e orientais em um único lugar. Sobre a mesa coberta de branco, pedras, cristais, flores, fontes de água artificiais, luzes, velas de plástico e neon, rosários, hinários, jarras e copos d‘água. Nas paredes, quadros e imagens, citamos o quadro do Mestre Jesus sorrindo, de Ramatis, quadros e imagens de divindades hindus, imagem de Buda, de Caboclos, Pretos Velhos, Santos católicos sincretizados na umbanda, Saint German, cruzes cristãs, o símbolo confusionista yin yang, uma imagem da pomba que representa o Divino Espírito Santo. Tudo isto cercado de muitos elementos do culto Santo Daime: uma grande imagem de Nossa Senhora da Conceição envolta pelas fotografias do mestre daimista Raimundo Irineu Serra, a Cruz de Caravaca, Maracás, Sol e Lua nas paredes, beija-flores e rosários, além da própria Ayahuasca, a bebida sagrada para os daimistas, estocada em uma garrafa azul, cercada por velas de plástico e neon. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 153 A sessão de consultas espirituais terminou, dando lugar a uma reunião de concentração e estudo para a realização do caminho de Santiago de Compostela, um próximo projeto dos médiuns da casa. O Fenômeno do Pluralismo: Ao conhecermos, participarmos de um momento da Casa de Convivência e Alquimia Espiritual e entrevistarmos duas membros da casa, pudemos observar muitas características do pluralismo, da modernidade e da tradição como transformações no campo religioso, como sugere o título da obra de Carlos Alberto Steil86. Steil em ―Pluralismo, Modernidade e Tradição – Transformações no Campo Religioso‖ afirma que ―Na medida em que a religião deixa de ser fundante do social, enquanto sua base ou forma de organização, ela permite a emergência de diferentes grupos religiosos que irão atuar no nível de cultura e do conhecimento‖87. Na fala da entrevistada A, pudemos notar essa questão quando ela afirma ―(...) é uma casa, e tem assim, uma tendência muito forte ao estudo e isso me atrai muito.‖ Ao sermos recebidos em uma salinha da casa, pudemos notar que havia uma estante com livros de doutrinas religiosas das mais variadas. Em nosso primeiro contato com a Casa, em que participamos de um encontro, onde havia uma mesa branca e as pessoas sentavam ao redor e iam expondo os seus problemas, suas dificuldades e angústias, após tal ato, o líder do grupo, de nome Alexandre, muitas vezes, aconselhava a leitura de livros, que existiam nessa Casa, onde eram emprestados para quem quisesse. O líder do grupo, ao aplicar o seu ensinamento após o problema exposto, muitas vezes fazia uso de metáforas e de fatos históricos, sempre mostrando um intelecto apurado. Outra visão que tivemos da Casa e que podemos fundamentar em Steil é: Justamente por não ser religiosa (a sociedade moderna) torna-se capaz de abrigar todas as religiões, sejam elas institucionais, como o catolicismo, o protestantismo, o budismo, o islamismo, sejam sistemas de crenças sem uma referência institucional definida ou visível88. A todo momento da nossa visitação e entrevista, percebemos a presença de muitas imagens, e além dos livros das mais variadas e diferentes doutrinas, pudemos notar os avisos dos quadros, onde constava o dia dedicado a umbanda, o dia da visitação a floresta. A entrevistada A nos afirma que antes de conhecer a casa, era da doutrina Kardecista, no entanto, sentia que faltava algo, pois considerava o Kardecismo muito rígido, por 86 STEIL, Carlos Alberto. Pluralismo, Modernidade e Tradição, Transformações do Campo Religioso. IN Ciências Sociais e Religião. Porto Alegre: ano 3, n.3, oct. 2001. p. 115-129. 87 STEIL, 2001, p.116. 88 Idem. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 154 algumas proibições, como o uso de imagens, de velas ou ainda por encontrar casas com excessos de rituais. Ela nos afirma: Aqui você não tem muitos rituais, mas você pode usar incenso se você quiser, eu posso fazer um culto na minha casa com incenso, com flores, tudo é válido. Porque aqui é uma casa, não é uma casa espírita, é uma casa universalista. Steil, ao abordar a pluralidade e a fragmentação religiosa, os denomina como próprios da dinâmica moderna. Tais características para ele são próprias das sociedades latinoamericanas nesse final de milênio, que se apresentam com o campo religioso transformado e reordenado. Elas convivem no contexto de um pluralismo aparentemente sem limites à diversidade. O autor aborda que para autores como Eliade e Sallnow, ―o universalismo é, em última análise, constituído não por uma unificação de discursos, mas ao invés, pela sua capacidade de incorporar e responder à pluralidade das demandas religiosas que são trazidas para os santuários‖. Ao abordar as atividades presentes na casa, a entrevistada A cita o dia da Umbanda, nos afirma que esta, é uma atividade recente e que passou a existir no cotidiano na casa devido a uma mensagem que os sensitivos receberam, e nos explica como se dá a constituição dessa atividade nesse espaço: Tem o trabalho da umbanda que é um trabalho onde a gente tá, e é interessante porque não é uma umbanda como a gente tá acostumado a ver nos centros de umbanda, que são muito interessantes, mas eles são muito... eles seguem toda aquela linha tradicional de oferenda. A gente não tem isso, mas tem uma eficiência que as pessoas que vêm, dão retorno. É muito interessante. Steil ao trabalhar a tolerância religiosa que caracteriza a sociedade moderna diz que uma de suas características é permitir que rituais e crenças tradicionais e/ou individualizadas, que eram abafadas pelo sistema dominante possam ser revitalizadas. Oro89 enfatiza que o traço da identificação da privatização da religião é ―a ação dos indivíduos no sentido de moldar a sua própria religião, apropriando-se de fragmentos e de elementos provenientes de diversos sistemas religiosos‖. Steil, no entanto, enfatiza que esse fenômeno não se trata de uma tendência da sociedade moderna, já que tal fato já é recorrente na história do cristianismo. O autor cita ainda os trabalhos de campos realizados com estudos do catolicismo, visando enfatizar a existência de reinvenção de cultos aos santos, afirmando: As possibilidades de organização num universo de representação simbólica a partir de elementos provenientes de diferentes sistemas 89 STEIL, 2001. Apud ORO, 1997. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 155 religiosos não se constitui num drama de consciência para os devotos do catolicismo popular tradicional. Steil afirma que o fenômeno de revitalização religiosa não é fruto simplesmente da sociedade moderna, já que ele de uma forma ou de outra, sempre se fez presente. Ari Pedro Oro irá abordar ainda a presença do trânsito religioso, típico da religião na modernidade. ―deslocamento dos atores religiosos por diversos espaços sagrados e/ou crenças religiosas e na prática simultânea de diferentes religiões‖90 Segundo Jean Séguy91, nessa sociedade moderna irá existir a presença, como denomina o autor, de ―religiões analógicas ou metafóricas‖, de orientação econômica, terapêutica, espiritual, ecológica. Tais orientações têm uma presença muito forte na Casa de Convivência e Terapia espiritual. No nosso primeiro contato com a Casa, no dia destinado (quarta feira) para as pessoas exporem seus conflitos, angustias, denominado trabalho de mesa ou consulta espiritual, as questões expostas eram as mais variadas, como problemas conjugais, o momento correto de consolidar a aposentadoria, problemas espirituais, com a família, trabalho, sensação de vazio, carência de afeto. As pessoas presentes, expunham seus problemas, onde os demais ouviam, o líder propunha que todos os sensitivos buscassem ‗enxergar‘ a causa das angústias expostas, usando a expressão ―firmar‖ para tal momento. Após tal ritual, cada sensitivo comunicava o que viu/sentiu. Logo após, quem tivesse uma mensagem a respeito do problema exposto para o outro, estava livre para comunicar. O líder também comentava, fazendo uso de metáforas ou não, no entanto, sempre com uma abordagem fundamentada em algum acontecimento histórico, em algum líder religioso, podendo ser ligados as mais variadas manifestações, como o Xamanismo, o Budismo, o Catolicismo, forças da natureza, entre outros, além da citação de filósofos. Podemos fazer alusão de tal fato ao que Jacques Maítre92 chamou de ―nebulosa das heterodoxias‖, que seria essa mixagem de gêneros entre religião, filosofia, medicina, psicologia, ecologia. Em nossa presença na casa, pudemos notar essa forte presença de um caráter terapêutico. Visão que percebemos também na fala das entrevistadas. A entrevistada B nos afirma: ―Em certo momento da vida, é, aqueles momentos que a gente tá desesperada. A gente sempre procura uma ajuda e eu senti um acolhimento‖, e a entrevistada A: Sabe quando você tá precisando de um colo? A casa tem esse colo pra oferecer pras pessoas e ela recebe muitas pessoas com muitas carências, muitos tipos de carência. E tem uma outra característica da 90 STEIL, 2001 Apud ORO, 1997. STEIL, 2001 Apud SÉGUY. 92 STEIL, 2001 Apud MAITRE, 1987. 91 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 156 casa, que a maioria dos sensitivos daqui ou são psicólogos ou tem formação em psicologia, e isso dá uma característica, assim muito diferencial na casa. É... nós usamos nas quartas feiras, os trabalhos com mesa como vocês viram, né? Com a mesa e os sensitivos e, as pessoas vêem, elas falam exatamente porque tão aqui, é perguntado isso a elas e elas falam da dor que tão sentindo por determinado assunto qualquer da vida delas e aí todos ouvem, ouvem porque é sentido, é como se fosse uma terapia com o espiritual. Françoise Champion e Danièle Hervieu-Lèger93 enfatizam ―a religião emocional passa a ser um dos sinônimos da modernidade religiosa‖. Logo Steil enfatiza que ―o tradicional e o pós-moderno religiosos têm em comum o fato de privilegiarem mais o pólo sensorial na produção de sentidos do que o pólo ideológico‖94. Pierre Sanchis95 trabalha a ideia de que o cultivo sustentando por emoções cambiantes que vem caracterizando o ato religioso, ou social contemporâneo, Segundo o autor, a procura contemporânea do sentido religioso da vida, é pautada mais em emoção ―que tenha som da verdade‖ e menos em ―verdade objetiva‖. Sanchis enfatiza: ―há a primazia da emoção sobre a razão raciocinante ou científica.‖ Steil ao trabalhar o ―re-encantamento‖ do mundo, enfatiza que não se trata de uma volta ao sagrado fundante do social, seria a recriação de um mundo que é autônomo em sua base estrutural, no entanto, está habitado por deuses, forças, energias, mistérios, magias. Identificamos tal abordagem de Steil ao vivenciarmos e conhecermos um pouco do dia a dia da casa. Cada membro tem suas particularidades, maneiras próprias de manifestarem sua espiritualidade. Tudo é válido e tem sua significação. Uns se identificam com tais atividades, alguns com outras, no entanto, todas as atividades são válidas. Ensinamentos de deuses e líderes espirituais, forças da natureza, mistérios de outra dimensão, energização... Steil afirma que perpassando pela experiência moderna no Ocidente, há uma nova relação, esta estabelecida entre a razão e o coração, que nesse caso, andam juntos. É a busca pela autenticidade afetiva, sendo as vivências espirituais parte das trajetórias pessoais. A maior demanda atualmente se expressa na tentativa de eliminar vazios deixados pelo estado de insatisfação, típicos da sociedade moderna. Observamos no cotidiano da Casa de Convivência e Alquimia Espiritual, diversas manifestações de espiritualidade. Cada um estava livre para optar pela que mais se identificava. Não há uma única crença como válida nessa Casa. Notamos imagens de diferentes doutrinas, 93 STEIL, 2001 Apud CHAMPION; & HERVIEU-LÉGER. STEIL, 2001. 95 SANCHIS, Pierre. Religiões, Religião... Alguns Problemas do Sincretismo no Campo Religioso Brasileiro. IN: Fiéis & Cidadãos. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001. 94 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 157 organizadas em um mesmo espaço. Como afirma Sanchis: ‖sincretismo‖ é parte das mais antigas tradições e, ao mesmo tempo, das emergências da mais atual ―modernidade‖. O Sagrado para os frequentadores da Casa de Convivência e Alquimia Espiritual: Falemos agora da questão do sagrado e como as duas entrevistadas e frequentadoras da casa concebem o sagrado em suas vidas, e como conceituam o mesmo. Começaremos com um relato da entrevistada B que nos chamou muita atenção, e a partir desse relato poderemos fazer a aproximação do conceito de sagrado e entender um pouco sobre a espiritualidade nos indivíduos, na Casa de Convivência e Alquimia Espiritual. Eu sou uma faltosa né? Eu falto mais do que venho. Mas, exatamente por isso, eu sinto uma falta de estar aqui. Pra mim ainda é muito necessário a presença aqui pra fazer uma renovação, sabe, eu não tenho a minha espiritualidade, ela não é consolidada, muito bem estruturada, assim... E ai, eu sempre... É claro que toda vez que eu tenho um enfrentamento, por exemplo, agora eu comecei a trabalhar, eu sempre retorno a esse lugar como um lugar que eu sei que eu vou vir, vou buscar força pra dar continuidade. E sempre funciona sabe... É uma coisa... É incrível mesmo, porque te fortalece, mas você não é só humano, você é espiritual. E aqui a gente descobre... Eu descobri pelo menos que essa coisa de errar, eu posso. No trecho acima retirado da entrevistada B, podemos observar a necessidade que ela possui de estar em contato com a Casa para ter a sua espiritualidade fortalecida. Da mesma forma, vemos como ela considera importante essa prática para as suas realizações e sua vida em sociedade. Dessa forma, Émile Durkheim96 relata a convivência entre religião e sociedade, onde liga a ideia de religião ao sagrado. Entendemos que os conceitos de religião, sagrado e sociedade em Durkheim se encaixam nessa fala da entrevistada, uma vez que ela está levando uma vida em sociedade seguindo os aspectos religiosos do sagrado. Outra constatação interessante nesse relato, é que ela dá valor a presença na casa espiritual para se sentir bem em sociedade, além disso, ao relatar que é uma faltosa, e que por isso sente falta de estar na casa, percebemos como ela depende da presença no ato religioso para sentir o sagrado. Logo, trazemos novamente para a discussão teórica as ideias de Émile 96 DURKHEIM, Émile. Conclusão In: As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 455-498. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 158 Durkheim. Porém, utilizaremos seu comentador Pierre Sanchis97 que descreve as grandes contribuições de Durkheim. Sanchis, ao relatar sobre como Durkheim concebia o sagrado, relata sobre a importância atribuída ao rito, sendo esse um recriador do estado de efervescência do sagrado. Dessa forma o rito traria o homem de volta ao sentido sagrado uma vez que o cotidiano o afaste. O rito com suas repetições do sagrado recria sua efervescência, fortalece o sagrado, porém tem estado dual, podendo recriar algo novo. Nesse sentido, a religião seria a mantedora do sagrado. Ainda sobre os ideais de Émile Durkheim, discorremos sobre a relação que o autor faz entre religião e sociedade, que será de muito proveito para o entendimento e continuidade do trabalho. Ao fazer uma grande análise sobre a relação religião x sociedade, Durkheim relata que a partir da religião é possível compreender a sociedade, sendo assim elas possuem uma relação de troca e reflexo, uma ante a outra. Levemos então esse pensamento para o sagrado, que seria para Durkheim aquilo que a religião necessita fortalecer a partir de verdades concebidas em sociedade. Logo, teremos no sagrado um elemento central na discussão religião x sociedade. Vejamos o relato da entrevistada A sobre o sagrado: Toda dia quando a gente acorda, a gente já se põe diante do sagrado. Porque o sagrado é a vida, a vida é o sagrado, o sagrado está em mim, em você, em todos nós. Então se a gente olhar a vida como uma manifestação do sagrado, tudo muda... A relação que a entrevistada faz entre o sagrado e a vida cotidiana é muito interessante, pois desta forma, o sagrado se põe como elemento central na vida de uma pessoa, não apenas um elemento central da religião. Veremos mais a frente, o que a mesma entrevistada relata sobre a questão da religião e igreja no conceito de sagrado na vida. Pensemos também no relato desta, na questão comunitária que Durkheim inclui em seus estudos, em que os indivíduos unidos em comunidade elevam o sagrado ao seu estado de efervescência. A entrevistada concebe essa força do sagrado no interior de cada indivíduo. Para Durkheim, a religião interage diretamente com a sociedade e possibilita ao indivíduo viver em laços comunitários, podendo a partir de objetos do sagrado ritualizar e recriarem o sagrado. Vamos passar novamente ao relato da entrevistada B, para observarmos a forma como ela enxerga o sagrado em sua vida, e desta maneira detalhar ou comparar com maior riqueza de detalhes como cada uma concebe a força do sagrado na vida: Tá aí, né? Tá no dia a dia, quando você acorda e vê o passarinho cantando, o sol sobe... Toda essa força que é da natureza, ela é divina, 97 SANCHIS, Pierre. A contribuição de Émile Durkheim. In: Faustino TEIXEIRA (Org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 36-66. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 159 só que a gente está tão acostumada a viver com ela que a gente naturaliza e tira a dimensão espiritual de tudo isso. Interessante notar que esta entrevistada vai além da relação entre indivíduo e sociedade. Ela atribui a força do sagrado às noções naturais, forças da natureza. O dia a dia vem ligado não só ao cotidiano como também aos fenômenos naturais que a rodeiam. Dessa maneira, a entrevistada afirma que o cotidiano separa o homem de perceber essa força natural e conceber o sagrado, o divino e a espiritualidade existente. Porém quando vai tentar definir um conceito para o sagrado em sua vida, a mesma entrevistada relata que: Acho que não saberia definir. Existia uma relação que é muito ampla... De uma força, de uma crença que não tem como você enquadrar. A afirmação acima pode ser novamente ligada aos estudos de Émile Durkheim. A força relatada por esta, se encaixa na questão da criação e afirmação do sagrado a partir da religião, tendo o rito como instrumento de repetição. Uma vez que esse conjunto de relações está estruturado por uma verdade criada em sociedade, o sagrado passa a existir mesmo sem a necessidade de sua materialização. Apresentaremos agora um relato que pode também ser compreendido como um desabafo. A entrevistada A, quando ainda discorria sobre a ação do sagrado no dia a dia acaba por se colocar da seguinte maneira: Se a gente vê as sociedades onde o sagrado era muito vivo no dia a dia, como os egípcios, os incas, os maias. Eles tinham uma aproximação do sagrado na vida, a vida era tão sagrada que eles não precisavam pensar no sagrado, porque eles viviam o sagrado... Hoje em dia o que a gente vê? É uma violência com o sagrado. As pessoas resolveram abolir o sagrado de suas vidas. E isso tem um custo, porque essas coisas que a gente vê, assim, dessa violência, dessas coisas que nos deixam estarrecidas, isso é coisa de violência com o sagrado. E se o sagrado com sua vivência assim... O mundo hoje, assim em uma visão minha, está em uma falta com o sagrado. Não é falta de religião, religião é uma coisa muito fácil de se ter... E muita gente fala ‗Eu tenho uma religião‘, é porque vai à igreja, faz aquelas coisas, ora, não sei o que, e acabou, como se o sagrado acabasse ali, estivesse circunscrita na igreja, e não é isso. O sagrado é na vida... E você não precisa ter religião nenhuma pra vivenciar o sagrado... Procuremos entender parte por parte o relato da entrevistada A. Em um primeiro momento ela relata sobre a relação das antigas sociedades com o sagrado, afirmando que essas CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 160 possuíam sagrado bem próximo de suas vidas, havia uma junção entre vida, individuo em comunidade, sociedade e sagrado. Podemos entender que ela possui essa maneira de conceber o sagrado como o ideal para a sociedade. Vejamos novamente essa parte: Se a gente vê as sociedades onde o sagrado, ele era muito vivo no dia a dia, como os egípcios, os incas, os maias. Eles tinham uma aproximação do sagrado na vida, a vida era tão sagrada que eles não precisavam pensar no sagrado, porque eles viviam o sagrado... Após isso, ela começa a fazer uma denúncia em forma de desabafo sobre como a sociedade atual deturpa o sagrado, separam totalmente o sagrado da vida. Para ela, é nesse momento de separação que se dá o estímulo para a ocorrência de brutalidades. Desta forma, faz uma evidente separação entre o sagrado e o profano. Lembremos que Durkheim considera que a definição do que é sagrado e o seu conceito só é possível a partir do momento em que existir o profano. Mais à frente é relatado que a falta do sagrado tornou o mundo no que ele é hoje. Vejamos essa passagem: Hoje em dia o que a gente vê... É uma violência com o sagrado. As pessoas resolveram abolir o sagrado de suas vidas. E isso tem um custo, porque essas coisas que a gente vê, assim, dessa violência, dessas coisas que nos deixam estarrecidas, isso é coisa de violência com o sagrado. E se o sagrado com sua vivência assim... O mundo hoje, assim em uma visão minha, está em uma falta com o sagrado. Por fim esta continua relatando que o sagrado se prende no indivíduo e não na igreja. A igreja pode até participar da relação, mas não somente ela. Deve ser uma relação muito mais com a vivência do indivíduo, com a vida em seu cotidiano, do que com a igreja. Enfatizando novamente que ‗o sagrado é a vida‘. Não é falta de religião, religião é uma coisa muito fácil de se ter... E muita gente fala ‗Eu tenho uma religião‘, é porque vai à igreja, faz aquelas coisas, ora, não sei o que, e acabou como se o sagrado acabasse ali, estivesse circunscrita a igreja, e não é isso. O sagrado é na vida... E você não precisa ter religião nenhuma pra vivenciar o sagrado... Ayahuasca e Seu uso Religioso: CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 161 Sobre a doutrina do Daime, todos os ensinamentos vêm através de hinos. Você canta o hino e ali tá toda a doutrina. Porque o Daime, ele nasceu na floresta...98 A Ayahuasca é a denominação para um chá preparado a partir de um cipó, o Banisteriposis caapi, e outras folhas com princípio ativo DMT, que seria responsável pelos efeitos alucinógenos da bebida, mais conhecida como daime. Tal efeito seria procurado devido sua capacidade de alterar a consciência e a percepção humanas99. Apesar de ser comum na tradição indígena nacional e de alguns países da América do Sul, somente no Brasil surgiram religiões não indígenas e urbanas que fazem uso de tal substância durante seus ritos e/ou cerimônias100. A partir dos anos setenta, grupos religiosos que surgiram no norte do país começaram a se expandir chegando a grandes metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo e ganhando adeptos de classe média. Para os adeptos dos cultos religiosos a ayahuasca é uma bebida sagrada, relacionada por estes membros à constituição de um ―conjunto simbólico, ritualístico e cosmológico etc, associando-se, de certa forma, a noção de sacramento‖101. A primeira religião conhecida foi o Santo Daime, criada por Raimundo Irineu Serra – o mestre Irineu – no início dos anos trinta. Daniel Pereira de Mattos – mestre Daniel – cria em 1945 a barquinha102, ambas no Acre. Em 1961 surge a terceira vertente, a UDV (Centro Espírita Beneficente União do Vegetal). As duas primeiras tratavam da bebida pela denominação Daime, enquanto a última passou a chamá-la Vegetal. Aqui podemos perceber o surgimento de diferentes linhas de uma mesma tradição religiosa se inserindo em um campo religioso. Para tanto, utilizaremos a definição de campo de Bourdieu103. As três linhas cresceram e com o passar do tempo e as mortes de seus respectivos criadores, inicia-se um processo de fragmentação e rupturas, gerando novas crenças e práticas a 98 Parte do depoimento da entrevistada A. GOULART, Sandra Lucia. A construção de fronteiras religiosas através do consumo e um psicoativo: as religiões da ayahuasca e o tema das drogas. Comunicação apresentada em Congresso: V Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), Florianópolis, dezembro, 2003. 100 Idem. 101 Idem. p. 2. 102 O nome barquinha (de barca) associa-se à missão dos adeptos de Mestre Daniel, ex-piloto fluvial: navegar ―nas ondas do mar sagrado‖, associado ao próprio chá daime. GOLART, 2003, p.4 Apud SENA ARAÚJO, 1999, p. 75-84. 103 Um espaço onde aconteceria algo como um jogo, em que o poder e as regras deste estariam em questão. GOULART, 2003, p.4. 99 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 162 partir do uso do daime. A partir disso, esses grupos deixam o norte do país para habitarem os centros urbanos nacionais104. Sandra Lucia divide essa separação em duas fases. Sendo, em um primeiro momento, a relação da ayahuasca em contraposição à sociedade de uma maneira geral; e as disputas e conflitos internos gerados posteriormente. No início, esses grupos eram vistos como ―macumbeiros‖, ―feiticeiros‖, ligados a magia. Com o passar do tempo, no entanto, este tipo de denominação passou a ser utilizada pelos próprios adeptos dos movimentos a fim de denominar os outros grupos que não o dele, alegando serem estes, ―charlatões‖, ―feiticeiros‖. Atualmente, um problema que afeta a reputação desses grupos está ligado à utilização do chá em seus rituais e a visão da população deste como uma droga. Pertencer a uma religião significa modificar sua postura não apenas com relação ao mundo religioso, mas também ao não religioso, ―mundano‖, do qual o adepto faz parte, e é certo supor que suas atitudes nas outras esferas da vida poderão ser afetadas pela conversão religiosa105. A disseminação das religiões, que tinham como base o uso do daime, possibilitou o surgimento de espaços de oração, acolhimento e reflexão como a Casa de Convivência e Alquimia Espiritual. Em espaços como este, o daime não mais seria a base da crença, mas um caminho para se chegar mais perto de uma evolução espiritual. É o que podemos observar nessa fala da entrevistada A: Eu demorei muito a experimentar o daime. Eu tava sendo extremamente preconceituosa. Muito pela minha formação que vinha do Kardecismo. Porque é assim, aquilo que eu falei pra vocês, o daime não é servido a todas as pessoas. Então, eu fui frequentando... Aí um dia me perguntaram se eu tinha vontade, e eu resolvi que eu tinha que ir trabalhando esse meu preconceito. Até que eu disse: Ai, eu quero experimentar. E foi uma coisa muito interessante, porque, primeiro eu desmistifiquei tudo isso que falam. O daime me ajudou muito, vou falar por mim, não sei, porque é uma vivência muito particular pra cada pessoa. O daime me ajudou muito a acelerar o meu processo de autoconhecimento e... A gente toma o daime numa coisa... Como uma 104 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Dossiê Religiões no Brasil – Fronteira da fé – alguns sistemas de sentido, crenças e religiões no Brasil de hoje. Estud. Av., vol.18, n.52. São Paulo: Sept./Dec. 2004. 105 BOMFIM , Juarez Duarte. A Construção do Self entre Seguidores da Doutrina do Santo Daime: Percepções e imagens dos novos adeptos urbanos e a sua relação com a nova consciência religiosa. IN: http://www.aguiadourada.com/pdf/a_construcao_do_self.pdf, acessado em Novembro de 2011. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 163 bebida sagrada, mas assim, como uma coisa que me ajuda a abrir os meus canais... Mas isso não quer dizer que eu dependo dele pra fazer o meu trabalho espiritual comigo mesma e com as outras pessoas... Aqui na casa tem esse pensamento, tanto que… a gente só tem daime na quarta e no dia da concentração que é uma coisa nossa. Mas assim, me ajudou a me ver, a chegar em lugares de mim mesma que eu nunca tinha conseguido chegar antes, sabe? Eu consegui ver até algumas vivências minhas em vidas anteriores. Eu consegui ver sombras mais profundas de mim mesma, aquela que a gente não tem a menor consciência, sabe? Eu sou muito agradecida ao daime, mas eu não tenho essa referência do daime como as igrejas daimistas tem, aqui na casa não é assim. A gente toma o daime, agradece profundamente pela ajuda, mas a gente vê o daime aqui na casa como uma ferramenta de trabalho, sabe? A gente procura não ficar em muitos viajões, a gente chama de viajão, o que muita gente faz com o daime. A gente vai lá, toma o daime, vê o que tem que ser visto e... ―pum‖, vamos ao trabalho consigo mesmo. E a entrevistada B: É... Eu penso muito parecido, assim, pra mim foi uma ferramenta mesmo pra conhecer coisas de mim que... Talvez eu negasse... E até mesmo despertar dores que pra mim tavam mortas, mas que quando... No trabalho elas surgiram e... Eu tive a possibilidade de aprofundar essa dor e conhecer melhor e saber conviver com ela. Mas eu ainda fujo do daime exatamente por conta disso. Porque você acaba vendo coisas que talvez... Assim... Quando a gente busca... Não adianta ir, fazer o trabalho e... vi... E deixa pra lá... Se eu vejo, o que eu vejo de errado e de ruim em mim é pra ser trabalhado... E muitas vezes é... É melhor num vê, né? (risos). Seguindo as mudanças do último século, como já foi citado ao longo do trabalho, com a aproximação das práticas orientais, indígenas e uma maior abertura das crenças, tal casa, auto intitulada como universalista se utiliza de diversas práticas, símbolos e ritos como caminhos para viver melhor e evoluir enquanto espírito. Os membros deste local se utilizam do daime como um dos meios de trilhar este caminho. Como podemos ver nos trechos transcritos acima da entrevista realizada em uma das visitas a casa, a relação que este espaço possui com o daime é muito interessante para pensarmos uma série de questões. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 164 Segundo Weber, a religião conforma um modelo de vida e forma modelos de compreender e agir no mundo106. Embora eles não se considerem uma religião, foi possível perceber ao longo de toda a pesquisa que eles estabelecem, ainda que sem grande institucionalização e ritos fechados, um modo de vida que acaba sendo compartilhado. As buscas vão por caminhos parecidos e o Daime é um bom exemplo para entender as cerimônias e rituais existentes nesta esfera religiosa. A utilização do daime não acontece a qualquer momento e de maneira desregrada. Existem momentos específicos para sua utilização não fazendo parte, o Daime, do restante das atividades da casa. Toma-se o chá uma vez por semana e na segunda sexta-feira de cada mês. Primeiro fazendo uso desta, como instrumento que possibilite ajudar outras pessoas e no segundo momento para autoajuda, diz a entrevistada B: Porque você não vai tomar o daime pelo daime, entendeu? Você tem que tomar o daime como um agente que vá te ajudar a se transformar, você toma o daime pra se ver, e no que você se vê, você tem que sair dali, daquele lugar, daquela vivência para a sua transformação. E isso ajuda muito porque, assim, quando você sofre alguma coisa, se você não tem a visão espiritual, isso... E, independe do daime, mas, assim, se eu sofro alguma coisa, algum processo na minha vida que me cause muita dor e se eu ficar naquele lugar de dor, eu vou ficar num lugar de sofredor... E não vou me transformar e posso correr o risco de ficar chapadão ali na coisa do sofredor e passar uma vida sofrendo, quando na verdade, quando você tem uma visão espiritual você pega a dor é pra transformar, é pra crescer... Senão, não tinha sentido. Deus, assim, botar uma dor na minha vida, pra eu ficar sofrendo dela a minha vida inteira. É nisso, o Daime ajuda muito. O daime na Casa de Convivência seria utilizado, como cita a entrevistada como uma ―ferramenta de trabalho‖, ele não é o fim. Ele seria um instrumento para ajudar no autoconhecimento e no crescimento de cada indivíduo. Através dele, seus apreciadores conseguiriam ter acesso a vidas passadas e a problemas de seu passado e presente na vida atual terrena. Através do Daime a percepção de si ficaria mais apurada. As coisas boas e ruins se tornariam acessíveis, possibilitando aproveitar melhor as coisas boas e transformar o que estaria ruim. A entrevistada A completa sobre o calendário de uso do Daime na Casa: Quarta feira a gente tem um trabalho que abre pra gente uma e meia porque a gente faz uso do daime... Então os sensitivos entram, e algumas pessoas que já participaram de uma concentração que a gente 106 Idem. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 165 tem mensal também são convidados a entrar. As outras pessoas a gente não fala, a gente não fala pras pessoas que a gente usa do Daime porque o Daime normalmente ele é usado nas igrejas de Daime e... Só quem toma o daime pode participar. Aqui não, porque como a gente quer que as pessoas usufruam da sua espiritualidade sem impor nada, todo mundo pode vir, aqui é uma casa aberta para tudo. Então quem usa o daime, quem não usa daime. (…) então a gente chega às uma e meia, toma o daime, canta os hinos agradecendo ao daime. Na segunda sexta-feira a gente chama de concentração que é um alinhamento do trabalho de todos os sensitivos da casa e das pessoas que frequentam e que usam o daime. Que tem muita gente das igrejas de daime que vem pra cá, aí tem essa concentração que começa sete e meia e termina por volta de uma hora, duas horas da manhã... É um trabalho com cada um, a gente não atende ao público. É fechada a casa, a gente toma daime, canta os hinos e rola o trabalho. Segundo Benny Shanon107, durante a utilização da ayahuasca, as visualizações estariam em torno de animais como jaguares, cobras, demônios e deidades, cidades e paisagens. Também se encontram, segundo seu relato, visões relativas à solução de crimes, vôos da alma e experiências de clarividência. Tais visualizações seriam pensadas por Shanon como: Reflexo de repositórios de informações inconscientes distintos daqueles postulados pela literatura psicológica padrão. Ou eles sugerem, talvez, a existência de outras dimensões da realidade, de tipo platônico, e que não dependem da psicologia pessoal do indivíduo108. Dispomos tais questões apenas para gerar um pouco mais de dúvidas a respeito de um tema tão delicado. Já que Shanon não obteve respostas conclusivas, embora não acreditasse tanto na segunda opção. Pensar nos efeitos ayahuasca como parte de tudo que já existe dentro de nós é interessante se olharmos para os depoimentos acima citados, já que as próprias entrevistadas que haviam consumido o chá acreditavam que as experiências vividas já estavam dentro delas ou faziam parte delas de alguma maneira, ainda que em outras vidas. De qualquer maneira, o Daime aqui é sempre visto como um caminho para transformação e ajuda de si. Outro ponto interessante é quando uma das entrevistadas comenta o fato de alguns representantes da Igreja do Daime comparecerem aos encontros em que o chá é servido já que, segundo Goulart é muito comum as diferentes representações religiosas que fazem uso do daime 107 SHANON, Benny. Os conteúdos das visões da ayahuasca. IN: Mana, vol.9 no.2. Rio de Janeiro, Oct. 2003. 108 SHANON, 2003, p.144. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 166 não se frequentarem e até se difamarem. Segundo a autora, eles utilizam termos com ―impureza‖ e ―mistura‖ alegando que outros grupos não preparam o chá de maneira correta, com produtos puros e utilizando-se de plantas de qualidade e resultado duvidosos. Além disso, tais denominações podem estar ainda relacionadas às práticas utilizadas na preparação. Para muitos desses grupos, o que diferenciaria a bebida seria a doutrina que o grupo fornece à ela109. Mais uma boa questão é a aceitação de práticas como essa em ambientes de pessoas de classe média e em boa medida com certo grau de escolaridade e conhecimento. Tais práticas parecem atingir estes setores das sociedades que passam por grandes crises existenciais e precisam de um conforto nesses espaços de convivência que abram suas portas e ouvidos a fim de recebê-los. Essa busca incessante, como lembra Brandão, atrai as mazelas desses indivíduos, buscando respostas para os males e adversidades do mundo a fim de, se não sarar, pelo menos e, talvez mais ainda, encontrar explicações que lhe acalmem a alma. Para tanto, segundo Bomfim, se faz muito importante a construção do self entre os adeptos do movimento. Utilizando-se de Geertz para tratar da religião como um sistema cultural que atua como um modelo de referência para as ações dos indivíduos, Bomfim usa o ethos, ―(...) aqui entendido como um estilo de vida, implicando preferências morais e estéticas características de cada religião‖, como uma maneira de se alcançar o self. ―O ethos religioso estará idealmente adaptado a um certo ―estado de coisas‖circunscrito pela visão de mundo. Já a visão de mundo se traduz na imagem que se faz do real. O ethos é formado pela religião e reforçado ou justificado pela visão de mundo‖. A partir desta concepção de self conseguimos entender a importância do Daime para se chegar a este conhecimento próprio, que pode ser para os participantes um longo caminho, percorrido, em sua maior parte, sem a ajuda do Daime. Além disso, um tema que atravessou a bibliografia e indiretamente podemos perceber nas falas das entrevistas é a relação desses grupos com o uso de drogas. Goulart cita que o surgimento de grupos que fazem uso de uma substância psicoativa nos centros urbanos fez nascer novos modos de pensar com relação ao consumo de substâncias que alteram a percepção do mundo, sobretudo as classificadas como ilícitas. Para estes grupos, a bebida tem caráter sagrado. No entanto, diversas esferas da sociedade e mesmo alguns grupos entre si tratam da problemática do uso irregular desta substância e da incorporação de outras nos rituais. Estes grupos parecem se mostrar preocupados em não ligar seus nomes à ideia do uso de drogas, mas a própria ayahuasca, segunda a autora chegou a ser proibida durante um tempo, sendo liberada depois para o uso ritualístico. 109 GOULART, 2003. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 167 No entanto, boatos a respeito de grupos que passaram a misturar outras substâncias na produção do chá são comuns. A própria Cannabis Sativa, vulgarmente conhecida como maconha, teria sido usada por fragmentações do Santo Daime como a CEFLURIS. Este tipo de conduta torna o clima a respeito deste tema bastante conturbado. Podemos perceber isso, mais uma vez, nas falas acima. A entrevistada faz questão de deixar bem claro que eles não usam o daime para todos os fins e ritos. Isso mostra a necessidade de demonstrar que eles não vivem em função da utilização do daime e não o utilizam como meio obtenção de prazeres mundanos. Ela faz questão de ressaltar também a diferença de usar o daime somente no ritual do mesmo, como a casa prega. Podemos perceber seu empenho em quebrar com os preconceitos e mitos que se criam a partir disto. No entanto, este é um tema bastante complexo, porque, como lembra Goulart, a permanência dessas religiões na sociedade brasileira representa se não, uma exceção no tratamento as substâncias psicoativas, pelo menos uma brecha na legislação relativa ao seu uso. De qualquer forma este campo religioso poderá sofrer constantes ameaças e intervenções jurídicas por se utilizar de algo tão delicado. Sendo assim poderíamos entender a utilização da ayahuasca para este grupo religioso como uma ―ferramenta de trabalho‖ e que, como tal, serve para auxiliar na busca de um objetivo maior. Encontramos inicialmente, um pouco de receio por parte do grupo para tratar desta questão, mas que acabaram com o desenrolar da pesquisa. E, embora os momentos dentro daquele espaço trouxessem um pouco de estranhamento, o uso a ayahuasca não esteve ligada em nenhum momento a marginalização ou ao uso indevido apenas para a possível obtenção em vão de mudanças no comportamento psicológico. Conclusão: O espiritualismo universalista é uma corrente filosófica que baseado nos estudos históricos de diversos textos sagrados pretende incentivar cada indivíduo a buscar respostas para suas questões espirituais por intermédio de uma síntese pessoal de diversas correntes religiosas, não sendo necessário aderir exclusivamente a nenhuma destas correntes110. Com o movimento de globalização do mundo contemporâneo que interfere em diversos aspectos da vida do homem, tem aumentado o número de pessoas que buscam respostas por intermédio de correntes de pensamento universalistas em relação às religiões. 110 CAES, André Luís. A Orientalização do ocidente: elementos reflexivos para compreensão da interação e integração entre valores religiosos orientais e ocidentais. IN: Revista Mosaico. Volume 2; Numero 2. Julho/Dezembro, 2009. p.154-164. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 168 Devido a esta oportunidade de interação entre diversas culturas, provenientes de uma busca pelo entendimento das religiões de maneira geral, o universalismo religioso tem se mostrado para muitos indivíduos que antes carregavam dúvidas a respeito de sua concepção religiosa uma forma de obter respostas para diversas questões, uma vez que trabalhando nesta realidade universalista, o indivíduo pode buscar um entendimento de sua fé livre da maioria dos dogmas. Muito desta possibilidade de interação entre diferentes religiões nasce no momento em que o ocidente tenta desvendar os ―mistérios‖ das religiões orientais por intermédio do estudo do Karma, da filosofia indiana, o budismo, etc. Este contato com a cultura oriental, seja com as religiões, seja com a filosofia, acaba por alterar a visão de mundo ocidental em relação ao caminho a ser tomado em diversos dilemas éticos. Essa orientalização do ocidente acaba por proporcionar uma visão imanente de Deus e não transcendente como no costume ocidental, uma vez que a figura do místico contemplativo (aquele que promove uma fuga do mundo em busca de uma reflexão ou purificação) é muito forte nas religiões orientais, o que ocasiona uma maior capacidade de reflexão dos indivíduos em relação aos dualismos impostos pela nossa sociedade (como o de bem e mal, certo e errado, etc), o que pode gerar uma insatisfação para com as explicações tradicionais e por consequência a busca por explicações mais plausíveis, saciando em parte a necessidade de respostas. Embora os ocidentais não se transformem em orientais, os ocidentais redimensionam sua visão de mundo integrando valores e práticas religiosas tanto orientais quanto ocidentais. Em certo momento durante a entrevista feita pelo grupo na Casa de Convivência e Alquimia Espiritual, quando questionado sobre o porquê de ter começado a frequentar o local, a entrevistada A diz: Estou no caminho da espiritualidade algum tempo, comecei pelo Kardecismo, freqüentei duas casas kardecistas, aprendi muitas coisas, foi muito válido, mas tinha alguma coisa que ficava faltando. Eu fui vendo que no Kardecismo você aprende muito, porém ele é muito rígido com algumas coisas, e tinham coisas que eu achava que faziam parte, e que o Kardecismo não adota, como por exemplo, uma vela acesa, o fato de não poder fazer uso de imagens de maneira alguma, não poder usar incensos, é só a força da oração o que eu concordo também, só que tem alguma coisa a mais, e por outro lado, outras casas que eu procurei tinham rituais demais e eu precisava de um ‗negócio‘ que tivesse um meio termo... CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 169 Este trecho da entrevista deixa bem claro a necessidade de novas explicações que saciem dúvidas de um mundo contemporâneo em que as diversas religiões passaram a interagir, o que acaba por criar novos questionamentos, tornando muito mais complexo o caminho a ser tomado durante uma caminhada espiritual, uma vez que visivelmente apenas uma interpretação desta realidade, seja através da espiritualidade ou de uma filosofia de vida, não se faz suficiente para esclarecer as diversas facetas que este mundo contemporâneo multicultural apresenta aos indivíduos. Uma corrente de pensamento única e linear não mais se faz capaz de corresponder as expectativas de quem busca respostas para a pluralidade de acontecimentos de um mundo que vive uma constante troca de elementos culturais. Referências Bibliográficas: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. 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E como tal, funciona como receptor de uma crença que impele os indivíduos a superarem as adversidades seculares. Esta pesquisa foi desenvolvida a partir de observações de campo e entrevistas coletadas entre os fiéis de uma comunidade paroquial da diocese de Nova Iguaçu, no período de agosto a novembro de 2011. Palavras-chave: Discurso; Sacramento da Eucaristia; Modernidade. Introdução Este artigo tem por objetivo compreender o relacionamento do indivíduo com a religião na contemporaneidade114. Dessa forma, delimitamos nossa análise ao estudo da devoção apresentada pelo fiel em relação ao sacramento da Eucaristia. No tocante à sociedade contemporânea, variados são os estudos que apontam à coexistência paradoxal dos seguintes processos: secularização e dessecularização 115. Por essa forma, podemos mencionar que a emancipação dos indivíduos proporcionada pelos ares da modernidade também acarretou a necessidade intrínseca aos mesmos de suprirem, parcialmente, as debilidades com relação aos laços comunais – que se tornaram cada vez mais fragilizados. 111 Graduanda em História pela UFRRJ/IM, bolsista PIBIC/CNPq. Graduanda em História pela UFRRJ/IM, bolsista FAPERJ. 113 Graduanda em História pela UFRRJ/IM, bolsista PIBIC/CNPq. 114 Este artigo é resultante do trabalho final da disciplina ―Sociologia da Religião‖ lecionada pela Prof.ª Dr.ª Sílvia Regina Alves Fernandes. 115 Debateremos sobre essa temática mais adiante. 112 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 172 Entender o mecanismo de relacionamento dos fiéis com um canal de vínculo com o sagrado116, permite compreender o papel desempenhado pela religião na vida do indivíduo. O presente estudo refere-se à análise qualitativa de 11 entrevistas realizadas com fiéis da diocese de Nova Iguaçu, especificamente a comunidade paroquial de Santo Antônio da Prata. Em relação ao perfil social dos entrevistados, seis pessoas são do gênero feminino e cinco são do gênero masculino. A faixa etária dos entrevistados varia de 12 a 60 anos, sendo dois de 12 a 14 anos, três de 18 a 22 anos, quatro de 30 a 40 anos e dois maiores de 40 anos. O nível de escolaridade dos entrevistados é divergente, pois apenas um tinha o ensino superior completo, cinco participantes tinham o ensino médio em curso ou já concluído e, por fim, outros cinco indivíduos apresentavam o ensino fundamental incompleto ou em curso. Este estudo encontra-se dividido em quatro partes principais, nas quais serão abordadas respectivamente: primeiro, o significado do sacramento eucarístico para os eclesiásticos; segundo, a secularização e a dessecularização no mundo dos fiéis entrevistados; terceiro, o processo de ressignificação do ritual eucarístico para os fiéis e, por fim, analisaremos o posicionamento de asceta e místico perante o sacramento da eucaristia. 1. O sacramento da Eucaristia: definições teológicas De acordo com os documentos eclesiásticos, a Santa Ceia refere-se ao processo que instiga os fiéis a relembrarem as cenas da crucificação. Tal atitude permite que o indivíduo tenha conhecimento da demonstração de amor realizada através da entrega do primogênito filho de Deus. Dessa forma, o mundo teria a prova do imenso amor através do sacrifício de uma vida inocente. O ritual eucarístico representa esse momento do Cristo crucificado, o vinho e o pão são dados como representantes do seu sangue e corpo. No tocante à Igreja, podemos mencionar que a Santa Ceia é compreendida como 116 Em consonância com a concepção durkheimiana, o sagrado refere-se a uma representação coletiva, corresponde a uma criação de um grupo de indivíduos. Assim como as forças sociais dão existência a essa categoria, elas também exercem papel peculiar para que o crente não duvide e respeite o sagrado. Os indivíduos ou objetos recebem o título de sagrado por ser considerados depositários de uma espécie de poder que os tornam dignos de separá-los do domínio profano (DURKHEIM, 1996). CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 173 o canal de salvação, pois entender a importância desta refere-se assumir sua posição de inferioridade em relação ao sagrado. Podemos mencionar que existe uma relação de cumplicidade entre a Igreja e a Eucaristia, ambas coexistem de forma mútua. Segundo o Editorial da Revista Perspectiva Teológica117 (2005), a Eucaristia constitui a Igreja e a Igreja constitui a Eucaristia. A celebração eucarística é um rito tradicional da Igreja Católica que, apesar das variações de sua prática ao longo do tempo, permanece como fundamental devido à representação do ato memorável da morte e ressurreição de Cristo. Os teólogos compreendem que a participação da eucaristia deve ser realizada em comunhão – esse momento deve ser vivenciado inúmeras vezes porque representa a relação da Igreja com Cristo. Anteriormente ao Concílio Vaticano II, o movimento litúrgico alegava a imutabilidade do ritual eucarístico diante da modernidade – momento dado como período de embate entre a Igreja e os novos elementos da secularização. Entretanto, o Concílio Vaticano II posicionou-se de forma distinta, apontando a necessidade deste sacramento se adaptar à cultura dos diversos povos. No entanto, a implementação desta realidade possui um longo caminho a seguir. Nessa perspectiva, a celebração da Eucaristia caminha entre duas exigências, são elas: ―[...] comunhão com a tradição que a precede e a constitui, e necessidade de se re-expressar e reformular, ou seja, fidelidade à fé de sempre e fidelidade ao mandato do Senhor de manter viva a memória do seu gesto no hoje da história [...]‖ (Persp. Teol.: 2005, pp. 169-170). A renovação litúrgica proposta pelo Vaticano II suscitou crises um tanto intensas, cuja resolução indicava duas possibilidades: acompanhar as experiências de enculturação pelos bispos diocesanos ou extinguir toda forma de experimentação. Embora emblemática, a primeira possibilidade permite uma renovação litúrgica que se articula com o verdadeiro sentido da celebração. Entretanto, apesar de estável, o segundo caminho enfraquece o movimento de transformação do mundo. Contudo, cada comunidade paroquial soluciona essa questão de maneira divergente, tendo a premissa de uma das resoluções. Desse modo, o mais importante não é o conhecimento sobre as variações das diretrizes, pelo contrário, cabe a cada comunidade se questionar sobre ―[...] que imagem da Igreja nossa eucaristia oferece?‖ (Persp. Teol.: 2005, p. 171). 117 Doravante a Revista Perspectiva Teológica será designada de ―Persp.Teol.‖. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 174 Considerando as palavras do papa João Paulo II (2003), em Carta Encíclica direcionada ao corpo de fiéis e clérigos da Igreja Católica, além de proporcionar a vivência da fé diária, a eucaristia faz relembrar a promessa da presença constante de Cristo na vida dos que comungam e a lembrança da Igreja que caminha para uma terra celestial. Sendo assim, a ―Igreja vive da eucaristia‖ (JOÃO PAULO II, 2003, p. 1), pois é através da mesma que a vida espiritual é consolidada. Então, cabe a toda comunidade, no período de celebração da santa missa, transportar-se simbolicamente para o dia e as últimas horas antes da crucificação de Cristo. Para fins de exemplificação, segue abaixo um trecho da Carta Encíclica: Quando se celebra a Eucaristia na basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, volta-se de modo quase palpável à ―hora‖ de Jesus, a hora da cruz e da glorificação. Até àquele lugar e àquela hora se deixa transportar em espírito cada presbítero ao celebrar a Santa Missa, juntamente com a comunidade cristã que nela participa. (PAULO II: 2003, p. 2) E quais são as ressalvas para a administração e participação do ritual eucarístico? A celebração do Santíssimo Sacramento vincula-se ao cumprimento de algumas normas, são elas: a celebração só é permitida na presença de um sacerdote ordenado; os católicos devem participar somente da Eucaristia distribuída nas comunidades eclesiais; a consagração da eucaristia é realizada apenas por um presbítero ou bispo; o presbítero jamais pode ser substituído por leigo, exceto na celebração de algumas atividades; devido à escassez de sacerdote, eventualmente, a paróquia pode ser confiada ao cuidado de um fiel, mas na paróquia haverá fome de eucaristia118; a confissão dos pecados é imprescindível para participar da comunhão; o indivíduo necessita estar de acordo com a verdade de Cristo e ser batizado; por fim, o fiel não pode receber o sacramento da eucaristia em uma casa que falta o sacramento da Ordem, salvo pequenas ressalvas. O culto eucarístico após a consagração e a celebração da missa também é notificado por João Paulo II como necessário para o recebimento de força, conforto e apoio. A adoração à presença de Cristo na hóstia consagrada é essencial para a vida da Igreja, ―compete aos Pastores, inclusive pelo testemunho pessoal, estimular o culto eucarístico, de modo particular as exposições do Santíssimo Sacramento e também as 118 A falta da hóstia refere-se à necessidade da mesma ser consagrada somente pelo padre ou bispo. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 175 visitas de adoração a Cristo presente sob as espécies eucarísticas‖ (JOÃO PAULO II: 2003 p. 13). Em suma, aferimos que, segundo os eclesiásticos, a eucaristia é o próprio sacrifício do corpo e do sangue de Cristo, instituído por este para perpetuar o sacrifício da cruz no decorrer dos séculos até a sua vinda dos céus. É um sacramento que enfatiza a unidade e a caridade da Igreja que através da comunhão dos fiéis no banquete pascal recebe o Cristo – assim, a alma se enche de graça e adquire a garantia da vida eterna. 2. Secularização e Religiosidade O mundo contemporâneo é constantemente caracterizado pelo processo de secularização, estudos versam por esse caminho. Compreendemos a secularização como a perda crescente do domínio das instituições e símbolos religiosos sobre as diversas esferas da sociedade. No caso brasileiro, esse processo tem início oficialmente em 1891, quando o Estado se eximiu de atribuir privilégio a uma determinada religião. Em análise da sociedade ocidental moderna, enquanto Max Weber (1982) procurava destacar que o protestantismo de forma não intencional propiciou a racionalização do meio, Peter Berger (1985) se debruçou no objetivo de comprovar que não somente o protestantismo, mas o próprio cristianismo serviu ao processo de secularização. Na ausência de pretensão em problematizar a gênese da secularização, seguiremos na discussão de definição do termo. Segundo Max Weber, a sociedade ocidental passou por processos de racionalização e burocratização que permitiram a desmagificação do mundo, ou seja, os homens adotaram outra postura em relação aos acontecimentos na sociedade, deixando de atribuir suas ações às interferências divinas (HERVIEU-LÉGER; WILLAINE, 2009). Todavia, o processo de secularização não anula a presença da religião na sociedade, o estudioso Ari Pedro Oro (2005) menciona que secularização e dessecularização são processos que coexistem na sociedade. Ressaltamos que, às vezes, um único indivíduo pode pautar suas ações nesses dois sentidos, ora tomando decisões por sua capacidade intelectual, ora alegando o poder divino como norteador das suas decisões. Isto é, a consciência individual não é integralmente secularizada. Este trabalho parte do princípio que na sociedade declarada racionalizada é possível identificar entre os indivíduos a necessidade de pertencer a uma comunidade CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 176 religiosa - a fraternidade é uma alternativa aos homens deste mundo contemporâneo. Na perspectiva durkheimiana, a religião desempenha um papel na existência da sociedade. Para Jean Delumeau (1997), ―as diversas religiões do mundo, cada qual na sua linguagem, exaltam a sabedoria e a compaixão, a sinceridade e a humanidade, a santidade e a humildade: preciosos valores comuns cujo desaparecimento ninguém poderá desejar‖ (p. 17). Dessa forma, analisaremos os discursos dos fiéis com o intuito de mapear a autonomia desses na maneira de viver no mundo e direcionar suas vidas. Nos discursos, percebemos que mesmo entre os fiéis ligados diretamente a uma comunidade religiosa - Igreja Católica - ainda é possível encontrar certa autonomia desses no que tange à vida pessoal. Sendo assim, acreditar no poder divino não inibiu os indivíduos de realizarem escolhas pessoais, afirmando o seu poder de decisão. Podemos dialogar com Peter Berger quando este destaca a secularização da consciência, que entendemos como a perda do domínio da religião sobre a vida e o entendimento do indivíduo. Isto é, o homem passa a pautar suas ações nas próprias vontades, não sendo direcionado integralmente pelo âmbito do sagrado. Nos relatos dos fiéis entrevistados, notamos o apontamento de muitos para algo que aqui chamamos de ―autonomia supervisionada‖, pois ao mesmo tempo em que se portavam como autores de suas ações, não deixavam de demonstrar respeito pela intervenção divina que retificava os seus atos. Vejamos: ―tive livramento quando tava para vir para a Igreja, falando que ia vir para a Igreja de São Sebastião e indo para a Rua da Lama, e um carro quase me atropelou no Casado, em frente ao Hospital das Clínicas de... em frente ao Hospital‖ (André119, 30 anos). No fragmento do discurso do entrevistado André, identificamos a decisão deste indivíduo sendo remodelada segundo os preceitos de Deus. Esse modelo faz parte do discurso dos entrevistados, pois quando estão fora da vontade de Deus, esse se encarrega de novamente fazê-los encontrar a direção correta. Para o entrevistado André (30 anos), apesar de omitir e faltar com a verdade sobre o local do seu destino, Deus o fez se lembrar de seus feitos errôneos quando quase teria sido atropelado. Isto é, ao decidir seguir para a Rua da Lama120 em vez de ir para a Igreja, a autonomia em relação ao divino significou o poder de escolha entre os desejos pessoais e a vontade divina. No entanto, essa autonomia é retida na medida em que o indivíduo passa atribuir alguns 119 120 Os nomes adotados são fictícios. Local conhecido no centro de Nova Iguaçu pelos seus diversos bares e danceterias. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 177 acontecimentos à intervenção de Deus devido à recusa dos seus atos particulares. Os acontecimentos terrenos passam a ser ressignificados à luz da concepção de sagrado. Para Émile Durkheim (1996), o sagrado corresponde uma criação de um grupo de indivíduos. Os indivíduos ou objetos recebem o título de sagrado por ser considerados depositários de uma espécie de poder que os tornam dignos de separá-los do domínio profano. Podemos questionar a desmagificação do mundo desses indivíduos que compartilham uma fase na qual a secularização também ocorre no nível da subjetividade. Não somente nos aparelhos sociais e culturais, mas o próprio indivíduo mantém em coexistência elementos da secularização e da dessecularização. Concomitantemente o indivíduo apresenta autonomia sobre suas ações se desvinculando do mundo encantado e suas ações estão passíveis a aprovação ou reprovação pelo divino. Isso demonstra que o processo de secularização apesar de inibir cada vez mais a atuação da religião na sociedade, não impede que a mesma continue sendo mantida no âmbito individual. O processo de secularização na sociedade não apresenta o mesmo ritmo da secularização da consciência. Entre os onze entrevistados, oito mencionaram que quando não participam do ritual eucarístico sofrem algum tipo de dano - material ou espiritual - diversos fatores apareceram, como: perda financeira, violência, problemas conjugais, sentimento de culpa e outros. Isto é, os indivíduos continuam a pautar e manter uma religiosidade que o acusa quando em prática não condizente com o querer divino. É, eu me, eu me... eu convivi com uma pessoa que era... que não era religiosa, era uma pessoa que participava... não era uma religião, que participava de centro de macumba, né, e estragou muito a minha vida e danificou um pouco e arranhou um pouco a... (Alexandre, 60 anos) [...] eu até tava pensando, eu tô essa semana pensando, que aconteceu... aconteceu comigo na semana passada, ih eu tava até pensando dentro da igreja o que aconteceu, eu tive muitas perdas financeiras na minha vida, né. E meu esposo ficou muito... parece com um troço ruim dentro dele, né. Então, ele maltratava muito eu e a minha filha, né. Era coisas de violência, aquela coisa toda. (Maria, 38 anos) Eu sempre venho, todo domingo, às vezes eu chego tarde, eu adoro dormir, mas eu sempre estou aqui. [...] às vezes você acha, você se sente um pouco mal de não ter vindo, de ter ficado dormindo e não ter vindo. É mais assim. (Angelina, 12 anos) CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 178 Notamos que independente da faixa etária, oito fiéis relacionaram os acontecimentos de várias esferas da vida particular como provenientes do divino. Para a perspectiva durkheimiana, a eucaristia é sacralizada coletivamente, por isso, todos acreditam que tal sacramento emana uma energia superior que penetra no homem e o faz agir e repetir seus atos pautados no sagrado. É através da eucaristia que os entrevistados recebem o Santíssimo Sacramento, permitindo-o atuar nas vidas dos fiéis e os conduzirem ao caminho reto, ao caminho sem penalidades. Participar do sacramento da eucaristia é uma forma de relacionar-se com o sagrado e obter força para superar as intempéries do cotidiano. Embora, os entrevistados digam que têm alguma perda quando não estão em perfeita sintonia com este sacramento, os mesmos admitem que, mesmo assim, uma dádiva os alcança, dando-os força para enfrentar os desafios terrenos. A comunhão com o sacramento da eucaristia apresenta um significado maior que o consumo da hóstia e do cálice, é uma religiosidade que deve ser praticada não somente naquele momento específico da missa. Como disse João, um dos entrevistados, de 38 anos, ―[...] quem não pode no corpo e no sangue por alguma razão, pode através do espírito [...]‖. Evidenciamos que em análise dos discursos dos fiéis adeptos do catolicismo, a magia e a idealização estão presentes nas várias esferas da vida. Segundo Peter Berger, o cristianismo em sua forma católica barrou os traços da secularização ética, mas não o traço histórico. Dessa forma, notamos que na esfera da consciência do indivíduo, esse processo se apresenta com elementos da racionalização e com elementos da magificação do mundo. São indivíduos que não se desvinculam por completo da religião, mas que transitam pelas veredas da racionalidade. 3. Rito Eucarístico: significação e ressignificação dos fiéis Na sociedade contemporânea, a aceleração do tempo e a otimização das atividades seculares retirou o sagrado do convívio com o homem no cotidiano. Dessa forma, tornase necessário o retorno do contato com elementos que manifestam importância espiritual na vida do indivíduo. O sacramento da Eucaristia possibilita a aproximação dos indivíduos com o sagrado. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 179 Como afirma um dos fiéis, ―a finalidade da eucaristia para mim é presenciar o cristo ressuscitado, o corpo e o sangue de cristo vivo na minha vida, e em todos os momentos de fé e de graça‖ (Benedito, 35 anos). Assim, por meio desse rito é possível recriar ou retornar ao estado de efervescência e de emergência do sagrado, como sugere Émile Durkheim. Desse modo, além de representar uma ordenança doutrinária, a repetição do ritual eucarístico possibilita a comunidade paroquial vivenciar o sagrado e fazer reviver a efervescência inicial que se esvaia no dia-a-dia. Observamos que diante dos problemas corriqueiros da vida, a crença no sagrado impele o indivíduo a superar suas limitações devido acreditar que uma força sobrenatural o sustenta. Para fins de exemplificação, destacamos o caso de uma entrevistada que alegava ter encontrado no sacramento da eucaristia a força para continuar a vida após o falecimento do cônjuge: Pra mim é como um renovar. A palavra ela fortalece, ela te mostra caminhos e eu falo assim que hoje né eu tô de pé. As minhas filhas estão onde estão pela palavra [muito emocionada], principalmente pela Eucaristia. [...] todo mundo tem desafio, cada um tem uma situação diferente né, cada coisa, um é doença, outro é desemprego, o outro é perda da família, outro é desentendimento, falta de diálogo e é nesse momento que a gente pede ao nosso Deus na presença da eucaristia e fala Senhor aumenta a minha fé [...].‖ (Ana, 49 anos) De maneira geral, nesta pesquisa qualitativa, a maioria dos fiéis (oito entrevistados) atribuiu o recebimento de graças materiais ou graças espirituais ao sacramento eucarístico. Dádivas como o cuidado de Deus, a paz interior, o envio para o ministério, ajuda financeira e conjugal são ressaltadas pelas testemunhas. Isto contribui para pensarmos na relação entre o rito e as bênçãos concedidas. Em relação aos entrevistados, oito indivíduos responderam que a eucaristia lhe concede um fortalecimento espiritual e força para superar os problemas em suas vidas, dois fiéis mencionaram que não recebem benefícios por participar da Eucaristia e uma fiel não teve a possibilidade de responder essa questão. Enfatizamos que as dádivas materiais são mencionadas em segundo plano em alguns casos, ou seja, os benefícios espirituais são os mais citados em decorrência do ritual eucarístico. Desse modo, a vida espiritual demonstra ser zelosamente prezada pelos indivíduos. A crença no poder de algo superior as forças humanas coexiste com elementos da secularização na sociedade contemporânea. Embora as necessidades físicas incentivem a participação na Santa Ceia, é notória a preocupação em relação à CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 180 vida espiritual dos fiéis. A importância delegada à Eucaristia permite uma experiência religiosa por parte dos indivíduos que reatualizam o rito a cada participação. Segundo João (38 anos – entrevistado), este sacramento ―é um renovar das suas forças também porque ele vem como alimento para nos fortalecer e nos reavivar. Ali você encontra um momento de fortalecimento também e de outros como... a palavra eucaristia é de ações de graça‖. No entanto, o quantitativo das dádivas matérias não é desprezível, pois aparentemente as graças espirituais e materiais caminham mutualmente. Sendo assim, a Eucaristia contempla duas tipologias de dádivas, mas as espirituais são constantemente enfatizadas. De acordo com o discurso de um fiel, a participação da Eucaristia previamente anuncia a experiência de uma vida celestial futura, veja a seguir: Santa Terezinha falava assim, eu quero passar o céu na terra, então eu já estou... é como se eu estivesse ensaiando, já vivendo. Vivendo verdadeiramente, concretamente, e é. Não é à toa que o Senhor pediu em sua palavra: ―fazei isso em memória de mim, é meu corpo e meu sangue‖. Isto é, isto não parece, é interessante né, é bonito a gente viver isso. (João, 38 anos) Com tamanho benefício, a consciência do fiel também apresenta reprovação quando não participa deste sacramento. Embora três pessoas tenham alegado que não sofrem consequências, oito disserem vivenciar danos quando na ausência do sacramento – causas de cunho espiritual, financeiro, conjugal e de saúde física apareceram nas respostas. Segundo o entrevistado Fernando (18 anos), ―[...] ninguém sofre algo por não participar, mas quando não participo me sinto culpado de alguma forma‖. O rito eucarístico apresenta-se como canal de renovação do fiel com o sagrado, possibilitando a crença de usufruir de um sistema de força que contribui no enfrentamento de obstáculos terrenos - pois ―o fiel que se pôs em contato com seu deus não é apenas um homem que percebe verdades novas que o descrente ignora, é um homem que pode mais.‖ (DURKHEIM, 1996: p. 459). No instante da ministração da Eucaristia, a significação é de recriação e/ou retorno ao estado de efervescência e de emergência do sagrado. Tal interpretação é perceptível nos discursos dos fiéis que frisam o ato da celebração eucarística como a ocasião de revive o sacrifício de Jesus Cristo e ―relembrar os últimos momentos de Cristo ao lado dos Apóstolos‖ (Fernando, 18anos). CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 181 4. Os leigos: asceta e místico Em pesquisa realizada pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS), o acolhimento da comunidade religiosa é um dos principais elementos que permite o indivíduo migrar ou permanecer na Igreja Católica. Desse modo, a sensação de acolhida usufruída pelo fiel corresponde intrinsecamente à decisão de continuar numa comunidade religiosa (FERNANDES, 2004). Não obstante, apesar do estudo do CERIS possuir objetivos divergentes da nossa proposta, percebemos que o fator do acolhimento também foi notório na pesquisa realizada na comunidade paroquial de Santo Antônio da Prata. Tal interpretação embasasse no fato de quatro entrevistados citarem o ato devocional dos fiéis121 como o mais instigante no rito eucarístico, através da reunião de celebração e/ou participação da Eucaristia. Sendo assim, identificamos que a devoção ao Santíssimo Sacramento encontra-se articulada com o instante da adoração. A reunião dos fiéis no momento de adoração da Eucaristia expressa o elo social originário da religião, este instante oferece uma sensação de proteção do indivíduo na Igreja. Nas entrevistas, verificamos a designação dos fiéis como instrumentos do divino no mundo. Adotando uma postura ativa que permite controlar os impulsos naturais e influenciar a sociedade através da conduta de vida diferenciada. De acordo com a metodologia weberiana, parte dos fiéis entrevistados é classificada como asceta, pois pauta sua vivência nos desígnios divinos. Essa postura de ação não ocorre somente no trabalho na pastoral da Igreja - pelo contrário, os discursos dos fiéis demonstram a necessidade de ajudar seu irmão, em Cristo, dentro ou fora do templo. A missa é missão, e a nossa missão começa depois da missa né, vá em missão e a gente não sabe né, acabou a missa, mas não necessariamente. É só você entender o que é missão, e a missão a gente só vai entender se nós participarmos do rito eucarístico, porque se não você não consegue né. Como você vai falar daquilo que você não vive, que você não sente. (Ana, 49 anos) Essa postura está interligada com a crença de seguir os preceitos de Cristo, servindo e amando o próximo. No entanto, no instante em que o católico recebe a Eucaristia, o corpo e o sangue de Cristo, verificamos que o praticante desta religião 121 Por ato devocional entendemos a adoração aos elementos da Ceia, como o joelhar-se no momento da consagração da hóstia. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 182 vivencia um momento de místico. Isto é, neste ato o fiel desenvolve uma postura contemplativa, em que se apresenta como receptáculo de Deus. Sendo assim, o fiel se desvincula das coisas terrenas e focaliza a atenção para o sagrado - um momento de intimidade entre Deus e o fiel participante da Ceia do Senhor, revivendo o sacrifício deste pelos homens. A finalidade da eucaristia... é porque a finalidade é um encontro com Deus, sempre. E é um renovar das suas forças também porque ele vem como alimento para nos fortalecer e nos reavivar [...] De intimidade, onde o próprio corpo do Senhor se uni ao nosso, e o sangue, não só o corpo, mas o sangue. O sangue do Senhor se uni ao nosso. (João, 38anos) Conclusão O processo de secularização não impossibilitou a existência do vínculo do homem com o sagrado. Atualmente, a permanência desta relação está articulada às demandas dos fiéis que acreditam necessitar da força proveniente do sagrado para lidar com as dificuldades terrenas. Em suma, notamos que o sacramento da eucaristia permite elaborarmos alguns posicionamentos do homem contemporâneo em relação ao âmbito sagrado. No desenvolvimento desta pesquisa também concluímos que o significado teológico da eucaristia é notório na representação cotidiana das missas e nos discursos dos fiéis. Isto é, não ocorre uma discrepância acentuada entre a vivência do ritual eucarístico e as teorias sobre o mesmo. No entanto, como essa relação não se constituía a pedra basilar desta pesquisa, essa questão carece de maiores esclarecimentos. Por derradeiro, aferimos que o sacramento da eucaristia estabelece o vínculo do homem com o sagrado, assim como permite a vivência da religião pelos indivíduos. De acordo com o sociólogo Émile Durkheim (1996), a religião exerce uma funcionalidade na sociedade, para aboli-la se torna necessária a substituição por uma moral revestida de aurora religiosa, pois a religião existe para fazer viver os homens. Referências bibliográficas BERGER, Peter Ludwig. ―A secularização e o problema da Plausibilidade‖ IN: O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. 2º Ed. São Paulo: Paulus, 1985, pp. 139 – 164. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 183 ____________________. ―O processo de secularização‖ IN: O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. 2º Ed. São Paulo: Paulus, 1985, pp. 117 – 138. Catecismo da Igreja Católica – Compêndio. Localizado em: http://www.vatican.va/archive/compendium_ccc/documents/archive_2005_compendiu mccc_po.html#OS%20SACRAMENTOS%20DA%20INICIA%C3%87%C3%83O%20 CRIST%C3%83. Acesso em 29/11/2011. DELUMEAU, Jean. As grandes religiões do mundo. Lisboa: Presença, 1997. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Editorial. “Eucaristia imagem da Igreja‖ In: Perspectiva Teológica. Vol. 37, n° 102, 2005. FERNANDES, Sílvia R. Alves (org.). Mudança de religião no Brasil. Rio de Janeiro: Salesiana, 2003. HERVIEU-LÉGER, Danièle; WILLAIME, Jean-Paul. ―Émile Durkheim (1858-1917)‖ In: Sociologia e religião: abordagens clássicas. São Paulo: Idéias & Letras, 2009, p. 163 – 213. Notas e comentários. ―Eucaristia e transformação da sociedade‖ In: Perspectiva Teológica . Vol. 38, n° 106 2006. ORO, Ari Pedro. ―Considerações sobre a liberdade religiosa no Brasil‖. In: Revista Ciência e Letras. Porto Alegre, n. 37. jan./ jun. 2005, pp. 433 - 447. PAULO II, João. Carta Encíclica, 2003. SANCHIS, Pierre. ―A Contribuição de Emile Durkheim‖ IN: Faustino Teixeira (org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. 2° ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p. 3666. WEBER, Max. ―Rejeições religiosas do mundo e suas direções‖. In: Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982, p. 226 – 247. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 184 ÉTICA DA LIBERTAÇÃO: A DESCOBERTA DE UM MUNDO PERIFÉRICO Rodrigo Costa Silva122 RESUMO: Este trabalho visa fazer uma contextualização histórico-filosófica do surgimento da Teologia e Filosofia da Libertação Latino-Americana, apontando o arcabouço teórico dessa corrente e sua relação com a tradição judaico-cristã, de onde toma os conceitos de Reino, liberdade e pobre. Abordaremos também as consequências éticas que surgem desse sistema, que se coloca com a responsabilidade de elaboração de uma nova ―práxis‖ ante ao fracasso do desenvolvimentismo e do capitalismo em crise estrutural. A ética da libertação se propõe então a repensar os problemas morais a partir da perspectiva e das exigências da responsabilidade pelo pobre, que está situado concretamente nos processos históricos. Palavras-chave: Ética da libertação, Alteridade, Cristianismo. 1. Introdução O Concílio Vaticano II foi um divisor de águas no sentido de ter possibilitado uma abertura da Igreja Católica para que esta pudesse olhar o mundo novamente e escutar os clamores da humanidade em constante transformação. A Teologia da libertação é impulsionada pelas decisões do Concílio, já que nele a Igreja LatinoAmericana foi desafiada a assumir o compromisso de ser uma ―Igreja dos Pobres‖ diante da realidade econômica, social e cultural, caracterizada pela desigualdade social, pobreza e miséria, e dependência dos países latino-americanos das potências de economia capitalista. Pode-se dizer que foi na Conferência Episcopal de Medellín (1968) que se deu o marco inicial para o nascimento de uma teologia bastante singular, posteriormente denominada Teologia da Libertação. A preocupação da teologia nascente foi desde seus inícios, descobrir o lugar do pobre, pensando sempre na contribuição que o Cristianismo poderia dar para a transformação da sociedade latino-americana. A 122 Graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 185 reflexão teológica procurou então, debruçar-se sobre a realidade social e política dos povos latino-americanos, estabelecendo um compromisso em favor da libertação desses povos. A Filosofia da Libertação Latino-americana tem também seus desdobramentos durante a década de 60, a partir da obra ―Sociologia de la liberácion‖ de Fals Borda e do estudo ―Existe una filosofia em América Latina?‖ de Augusto Salazar Bondy, que apontaram entre outras coisas, para uma relação de dependência entre as antigas colônias e metrópoles até mesmo no campo da reflexão filosófica. A Filosofia da Libertação tem como ponto central de sua reflexão descobrir os mecanismos de dominação, no qual sujeitos se tornam senhores de outros sujeitos nos mais diversos planos. Porque a experiência inicial da Filosofia da Libertação consiste em descobrir o ―fato‖ opressivo de dominação, em que sujeitos se constituem ―senhores‖ de outros sujeitos, no plano mundial (desde o inicio da expansão europeia em 1492); fato constitutivo que deu origem a ―Modernidade‖); Centro-Periferia; no plano nacional (elitesmassas, burguesia nacional-classe operaria e povo); no plano erótico (homem-mulher); no plano pedagógico (cultura imperial, elitista, versus cultura periférica, popular etc.); no plano religioso (o fetichismo em todos os níveis) etc... (DUSSEL, 1995, p.18) A Filosofia da Libertação utiliza da categoria o Outro, mas o Outro entendido como o pobre. A partir daí a Filosofia da Libertação buscará nomear esse Outro, tido como pobre e situado num espaço e tempo histórico concretos. O pobre é o índio subjugado pelo dominador europeu; o negro transformado em escravo, o africano e o asiático dominado pelas potências imperialistas dos séculos XIX e XX; o judeu dos campos de concentração nazi-fascistas da 2º Guerra Mundial; a mulher considerada objeto sexual; a criança e a juventude vulneráveis aos mecanismos de manipulação ideológica. Esse Outro pobre e oprimido, grita clamando por justiça. É a partir desse fato que a Teologia e Filosofia da Libertação buscaram formular um sistema ético que restitua o lugar do pobre, estabelecendo a justiça, a liberdade. A ética da libertação quer ser uma teoria antecedida por uma práxis. A Ética da libertação se opõe a ética tradicional fundada na noção de totalidade. A partir da descoberta do Outro pela experiência da Alteridade, só podemos enxergá-lo como sendo o Outro distinto, e não como sendo o diferente como é entendido pelo sistema da totalidade fechada e tradicional construída ao longo da história do pensamento ocidental. O filósofo argentino Enrique Dussel procura situar e nomear CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 186 concretamente o Outro, apresentando-o como aquele que é dominado, oprimido, o pobre, e que deve ser tratado com amor-de-justiça, ponto de partida para o novo sistema ético. 2. Os principais conteúdos filosóficos e teológicos em chave libertadora Para entendermos a metodologia empregada pela Teologia e Filosofia da Libertação é necessário debruçarmos sobre alguns elementos centrais de onde parte toda a reflexão no novo horizonte filosófico e teológico. Esses elementos tomados da tradição filosófica e da tradição judaico-cristã constituíram a chave hermenêutica para a formação do novo sistema ético. A figura do pobre como vimos anteriormente, é o ponto de partida para a reflexão da Teologia e Filosofia da libertação. O pobre é o lugar a partir do qual se inicia a práxis cristã da ética comunitária da libertação. A reflexão teológica reconhece no pobre a figura de Cristo, ou seja, o caminho que nos permite descobrir e chegar a Deus. Mas para situar o pobre de forma concreta é preciso antes, interrogar-se para saber quem ele é; como chegou a ser pobre. O pobre é aquele que foi expropriado de sua exterioridade, ou seja, despojado de seus direitos e de sua dignidade, e transformado em mero instrumento a serviço de um sistema opressor e de uma classe dominante. Diante do grito do pobre que clama por justiça surge uma consciência ética, em que se faz necessário dar uma resposta responsável ao grito do pobre. O termo libertação também é amplamente utilizado pelas duas vertentes e possui uma significação bastante ampla, pois pode se tratar tanto do desejo de libertação das classes oprimidas, passando pela busca da construção de uma nova sociedade fundamentada no homem novo, e por fim o anseio pela libertação da situação de pecado, portanto o termo libertação pode ser entendido num sentido sócio-econômico e político, antropológico e teológico. O reconhecimento da liberdade inalienável do outro, que é o elemento que o permite humanizar-se a si mesmo e o seu mundo será o ponto central da reflexão teológica e filosófica. A libertação integral do homem possibilitará uma abertura para descobrir os múltiplos rostos do outro latino-americano. A perspectiva do Reino será também largamente utilizada, juntamente com as categorias pobre e libertação. A ideia do ―Reino‖ como realização plena e total do ser humano, comunidade final, possibilidade de encontro e partilha para todos aqueles que CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 187 desejam a libertação de todas as ―negatividades‖ da atualidade, o capitalismo em crise estrutural no plano social; o machismo no plano erótico; a dominação ideológica no plano pedagógico; e o fetichismo idolátrico em todos os níveis. Na perspectiva da libertação, o Reino já começa aqui e agora, situado concretamente na história, mas o Reino é também horizonte escatológico, ou seja, está sempre mais além, sempre indicando que há ainda muito a se fazer, por isso a perspectiva do Reino aponta para uma prática e um horizonte crítico, denunciando a injustiça e o egoísmo da ordem econômica e social vigente. 3. A descoberta do Outro e as consequências éticas da libertação Somente com a superação da modernidade123, da ontologia do sujeito e da noção de totalidade fechada124, poderemos falar então da Alteridade, pois agora é possível pensar o Outro como distinto, sem recorremos a um o Mesmo, que é idêntico, origem e âmbito de toda diferença. Na Totalidade mundana, o último horizonte, o ser, é o ontológico, portanto, com o surgimento da possibilidade da alteridade é preciso encontrar algo que está além do ontológico: trata-se do nível metafísico, em que o Outro está situado no além, na exterioridade do sistema, de o Mesmo. É a experiência da alteridade que possibilitará pensar num novo sistema ético. Para falar da Alteridade em seu sentido mais originário e primeiro, Dussel recorre a uma outra tradição, diferente das outras tradições citadas anteriormente, pois estas estiveram a serviço da legitimação de um sistema de dominação e opressão: ―vontade de poder‖. Trata-se da cultura semito-hebreia. Embora Dussel utilize de exemplos tirados dessa tradição para descrever a experiência da alteridade, ele esclarece que o tema tratado é estritamente filosófico. Como esses exemplos foram descartados ao longo da história como sendo dados da revelação, o pensamento europeu e latinoamericano ficou sem um ponto de apoio, uma base, abrindo caminho para que a experiência grega e moderna do ―ser‖ se tornasse a única filosoficamente pensável. 123 Modernidade é o conceito utilizado por Dussel para falar da história de dominação e opressão iniciada a partir da descoberta da América em 1492, que teve como consequência o encobrimento do outro (Dussel, 1998, p.8). 124 Dussel chama de ―Totalidade fechada‖ a filosofia clássica, pois esta sempre fundamentou a ontologia da totalidade e buscou legitimar os projetos de dominação e opressão (DANKE, 1995, p.45) CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 188 3.1 O Outro revelado através do “face-a-face” Dussel aponta para o fato de que na tradição hebraico-cristã encontramos o relato de que ―Deus falava com Moisés face-a-face como o homem que fala com seu íntimo‖ (Ex 33, 11). O face-a-face (panín el-panín) é um termo do hebraico que significa o máximo de comparação, o supremo. Significa proximidade, o imediato, ―o rosto frente ao outro na abertura ou na exposição de uma pessoa diante da outra‖, o primeiro encontro entre duas pessoas. É somente pela experiência do face-a-face que reconheço o Outro, como aquele que está além de meu horizonte ontológico. Esta experiência originária é o ponto de partida pelo qual se abre meu mundo, a ordem ontológica. Existem ainda, expressões mais significativas da intimidade nesta tradição: ―Eu lhe falei boca-a-boca‖ (Nm 12, 8), em hebraico peh-el-peh, significa a imediação pelo beijo, a intimidade primeira, mais profunda de uma relação (DUSSEL, 1977, p.114). O face-a-face, boca-a-boca, expressam então, o amor alterativo, intimidade, encontro. O rosto é o meio pelo qual reconheço e experimento o Outro como sendo o Outro. E quando o reconhecemos, o Outro já não é coisa. O rosto do Outro é o âmbito onde começa todo mistério, toda ação termina aí, é o limite de meu mundo. Não vejo ou consigo ter acesso ao Outro através da inteligência. O que vejo é somente aquilo que me aparece. Seu projeto, seu mundo, e suas possibilidades não se abrem a mim, é por isso que lhe perguntamos: quem és?; onde nasceu?; o que fez em sua vida?; como está?; e qual é o seu projeto?. Jamais poderemos dizer: já compreendi, já abarquei, já conheci o Outro, pois ele permanecerá sempre um mistério, incompreensível e exterior a meu mundo. Recorrendo ainda à tradição semito-hebreia, Dussel chama atenção para o fato de que embora nada possamos saber do Outro, podemos encontrá-lo numa relação cujo fundamento é ato de amor: ―Bem-aventurados os de coração puro‖ (hoi katharoi têi kardíai), porque eles estarão face-a-face com Deus‖ (Mt 5,8). O coração é o órgão que simbolicamente estabelece a relação entre as exterioridades, assim como o agápe, isto é, aquele amor que vai além de si mesmo, em outras palavras, além da totalidade, que é ato essencialmente criativo, diferente do éros platônico, que caracteriza aquele amor do mesmo pelo mesmo. Encerrado egoísticamente em si mesmo. Somente quando amamos o Outro como Outro, aquele que é distinto, e que está além da Totalidade de meu CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 189 mundo, é que poderemos confiar em sua palavra e considerá-la fidedigna. É bemaventurado aquele coração que se abre ao Outro, que escuta atentamente. Enrique Dussel nos alerta que quando concebemos o Outro como mediação, como instrumento, por exemplo: o soldado para o general, o empregado do correio para aquele que compra o selo, o chofer de ônibus para o passageiro, então introjetamos o Outro em nosso mundo, em nossa Totalidade de sentido. O face-a-face pelo contrário, representa o choque entre duas exterioridades convergentes que se encontram, ou seja, é o limite da minha liberdade, de meu âmbito, e estabelece a proximidade. Nosso mundo, nossa compreensão, nossa totalidade de sentido é aberta a partir da Alteridade, pois o ser humano desde antes de seu nascimento, já no útero, começou o diálogo com o primeiro Outro: sua mãe. O ser humano nasce de alguém, se alimenta de alguém, mama. Essa relação como o Outro humano é anterior a qualquer compreensão e conhecimento do mundo. Nosso mundo é alterativo por sua própria natureza. Aos poucos, o Outro, na figura do pai, mãe, irmãos e mestres realizaram a tarefa de introduzir-nos em nosso próprio mundo, em nossa Totalidade de sentido. Pode-se dizer que o nosso mundo é alterativo por natureza, pois o Outro é a origem primeira e o destinatário último de nosso ser- no-mundo. O face-a-face diz respeito à experiência primeira, o encontro do inusitado, do desconhecido, é entrar realmente em contato com o ser, que se revela na abertura e exposição, é abertura que nos permite receber a novidade que somente o Outro pode trazer. Desde seu nascimento, como geração intra-uterina, o homem é um pólo de liberdade dis-tinto, aparecimento no mundo dos Outros, ex nihilo, de uma nova exterioridade, negatividade; alguém que exige justiça, que tem seus direitos; um ser ético, meta-físico. Desde seu nascimento é um resto, uma extremidade, um ser escatológico: ―o Outro‖ para sempre e até o fim. Desde a origem, desde sempre, foi dito sobre sua essência: ―Não é bom que o homem esteja só (Gênesis 2, 18)‖. Portanto, pólo dis-tinto, e, contudo essencialmente alterativo (DUSSEL, 1977, p. 120). Quando o homem está diante das coisas reais inanimadas ou de qualquer outro ser vivo vivente, mas não humano, exerce sobre todas estas coisas uma relação de dominação, imprime em cada uma delas suas características, pois todas as coisas reais não-humanas são meios para a realização de seu projeto histórico. Diferentemente, quando o homem encontra-se diante de outros homens, através do face-a-face, se não os transforma em coisas ou meios, deve colocar-se numa atitude de abertura em relação ao Outro, distinto e incompreensível. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 190 3.2 O surgimento do “ethos dramático e histórico”; a antropologia da palavra; e a figura do profeta. A liberdade do Outro faz surgir o novo. A novidade se instaura em meu mundo, de forma gratuita e imprevisível. No face-a-face acontece uma relação que supera o fazer e o compreender, transformando-se em criação. A Criação aqui não significa a criação artística, pois esta é sempre fabricação, invenção e descoberta, mas sim, aquela que acontece pela atuação do Outro livre e autônomo em meu mundo, trazendo-me como dom aquilo que eu não tinha como possibilidade. A Alteridade criadora consiste então, em acolher o novo que vem do Outro, e para que isso possa se realizar é preciso saber ouvir, escutar sua palavra que é sempre o inesperado para mim. A partir desta constatação, Dussel analisa a diferença entre o ethos trágico e o ethos dramático e histórico. O primeiro está fundamentado na filosofia socrática e aristotélica, em que se ensina e se conhece sempre o Mesmo: o conhecimento por reminiscência, a filosofia como maiêutica. Para essa perspectiva, o homem perfeito é sempre o sábio, o herói dominador. Pelo contrário, no ethos dramático e histórico, não o do Prometeu acorrentado, mas o do Adão tentado, acontece uma história de abertura e imprevisibilidade, pois o Outro revela o novo pela primeira vez; o homem perfeito nesta visão é aquele que se dirige ao Outro com amor-de-justiça, é o profeta pobre e oprimido, cuja vocação fundamental é o serviço e não o domínio. É o profeta quem rompe com a Totalidade fechada e permite que ela se abra, pois ele é capaz de escutar o Outro, não olhando somente para si próprio. No ethos dramático não pode haver uma totalidade que abarque o Outro de modo absoluto, como pessoa, pois aqui temos o respeito a exterioridade do outro. Podemos dizer ainda, que a Alteridade criadora instaura uma nova antropologia: a antropologia da palavra. O Outro não aparece somente, mas também é uma epifania, pois como foi dito acima, no face-a-face temos a manifestação do Outro através do rosto que se apresenta diante de mim. Se o Outro não me dirigir sua fala, se ficar calado, não poderei jamais conhecer ou entrar em seu mistério, por mais que insista e que lhe peça, não poderei conhecer seu mistério em profundidade, e mesmo que ele me fale, nunca terei certeza sobre a veracidade de suas palavras. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 191 A experiência do face-a-face é também uma pergunta, mas que apresenta também uma resposta, pois quando interpelo o Outro, quando ele me responde, me permite conhecer algo de seu mistério. Quando o Outro me fala, sua palavra encontra em mim não um olho, mas é acolhida pelo ouvido. No pensar grego e moderno, tudo se encontra sobre o âmbito da luz, a visão é amplamente valorizada; aquilo que é inteligível é também o iluminado. A palavra do Outro me interpela, posso ouví-la ou não. E essa palavra, localiza-se no além da luz, ou seja, na obscuridade, portanto, cria-se a partir daí uma nova antropologia, não mais a do olho e da luz, mas a da palavra que implica na postura e valorização da escuta. Dussel nos esclarece que o Outro, livre e autônomo, está além do logos e da totalidade, e sua palavra aparece de repente em meu mundo, interpelando-me e revelando-me o incompreensível e sua suprema negatividade. Na Alteridade temos o diálogo entre o Mesmo e o Outro, o rompimento do monólogo de ―o mesmo‖, e a abertura à máxima novidade. 4. Desafios da contemporaneidade para a Ética da Libertação Será preciso apontar alguns desafios que serão enfrentados pela Filosofia e Teologia da Libertação e consequentemente por sua reflexão ética a partir da década de 90, com a derrocada do socialismo, o retorno do discurso conservador da sociedade neoliberal e as mudanças provocadas pelo crescente processo de globalização que afeta a vida das pessoas deste tempo em maior ou menor grau. Num mundo marcado pelos progressos da ciência e da tecnologia em ritmo sempre crescente, como também pelo encurtamento das distâncias pelos modernos meios de comunicação, persistem ainda algumas indagações incômodas surgidas a partir das contradições geradas pelo sistema capitalista. É possível que em meio aos progressos da ciência e da técnica, muitos ainda sejam vítimas da fome e não tenham acesso aos recursos médicos básicos? É possível que na sociedade da comunicação e da informação muitos ainda sejam analfabetos? Existem ainda pessoas que não tenham uma casa para morar numa sociedade da prosperidade econômica? A economia liberal parece triunfar radicalizando a economia de mercado e impondo-a aos países periféricos. Nesta sociedade a divisão entre ricos e pobres se torna ainda mais acentuada, já que não se escuta mais o grito dos pobres, o grito daqueles que foram excluídos do sistema. Essa indiferença da sociedade capitalista mostra de forma CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 192 mais evidente a separação entre ética e economia. Diante do agravamento da situação de pobreza, amplia-se o conceito de pobre, substituído pelo termo ―excluído‖, que abarca ainda mais a grande quantidade de seres humanos que sofrem algum tipo de exclusão social e econômica. Na sociedade neoliberal, o mundo do trabalho se torna cada vez mais seletivo e competitivo, excluindo grande parcela da mão-de-obra ativa seja ela especializada ou bruta. Vemos também o crescimento dos conflitos étnicos e políticos, causa do deslocamento de inúmeros refugiados para outros países, sofrendo constantes ameaças xenófobas, dependendo muitas vezes das organizações humanitárias. Soma-se também o problema dos sem-terra e dos trabalhadores do campo que ainda não encontrou uma solução, vítimas das estruturas latifundiárias. Pode-se falar ainda no problema dos povos indígenas, daqueles que não possuem assistência médica, das vítimas das diversas enfermidades somadas ao preconceito e a discriminação, como é caso dos portadores da AIDS e dos dependentes químicos. As maiores vítimas desta sociedade seram certamente, as crianças, os jovens, as mulheres, os idosos, os deficientes físicos ou mentais (SILVA, 2003, p. 45). Mesmo que as condições políticas, econômicas e sociais tenham sofrido diferentes transformações, o problema da pobreza e da exclusão sempre crescentes ainda não mudou. Encontramos ainda aqui, a necessidade de continuar a pensar o problema da pobreza e da marginalização, suscitado pela reflexão teológico-filosófica da libertação, e consequentemente o retorno da práxis libertadora, que se torna mais necessária do que nunca. Caberá à reflexão teológica e filosófica escutar as experiências passadas e a partir daí, retomar a importância de uma ética da solidariedade no contexto fortemente individualista da pós-modernidade. 5. Considerações finais A Ética da libertação inaugura uma nova perspectiva que nos permite enxergar mais além, ou seja, descobrir um novo mundo que é exterior ao nosso, um mundo periférico. Nesse mundo periférico encontramos então, o rosto do outro, do pobre, que nos interpela e grita por justiça. O contanto com o mundo do outro permite um alargamento dos nossos horizontes e nos instiga a reconhecer o outro em sua distinção. A Ética da libertação surge então como uma alternativa diante do fracasso do CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 193 desenvolvimentismo na América Latina, tentando elaborar uma práxis a partir da reflexão teológica e filosófica. A proposta ética apresentada por Dussel é bastante abrangente e atual, oferecendo inclusive, propostas concretas para a implementação de um sistema ético pautado na solidariedade e fundamentada na experiência da alteridade. De fato, o exercício da alteridade propicia a criação de uma nova forma de pensar, aquela que rompe com a mesmidade e instaura o novo. Ao nomear o Outro, situá-lo em um espaço e tempo histórico próprios, identificando-o com o pobre, o excluído, podemos assumir uma postura e uma ação mais concreta no encontro com o Outro. A Teologia e Filosofia da Libertação tornaram-se conhecidas em todo o mundo por sua originalidade e vitalidade, pois pela primeira vez buscou-se pensar a partir da periferia. Essa nova forma de pensar caracterizou-se por um movimento duplo entre reflexão e práxis, na tentativa de oferecer uma resposta para o problema da desigualdade social no continente latino-americano. A era da globalização nos apresenta um cenário de mundo que não difere muito do contexto do surgimento da Teologia e Filosofia da Libertação, no que se refere ao quadro de exclusão social. Apesar de grandes progressos na ciência e na tecnologia, ainda estamos diante das mesmas imagens que impulsionaram a reflexão filosóficoteológica da libertação. Faz-se necessário o retorno desta reflexão diante dos desafios e das questões emergentes da contemporaneidade diante do horizonte dos pobres, daqueles que são excluídos a cada dia, deixados à margem desta sociedade. Referências Bibliográficas DANKE, Ilda Righi. O processo do conhecimento na pedagogia da libertação: as ideias de Freire, Fiori e Dussel. Petrópolis: Vozes, 1995 DUSSEL, Enrique, Para uma filosofia da libertação latino-americana: acesso ao ponto de partida da ética. São Paulo: Edições Loyola, 1977. v.1 ________, Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000 ________, Filosofia da Libertação: crítica à ideologia da exclusão. Tradução Georges L. Maissiat. São Paulo: Paulus, 1995. ________, 1492: o Encobrimento do Outro: a origem do mito da modernidade: Conferências de Frankfurt. Tradução Jaime A. Classen. Petrópolis: Vozes, 1993. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 194 MATOS, H. A. Uma introdução à Filosofia da Libertação latino-americana de Enrique Dussel. Livro eletrônico gerado a partir do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Metodista de São Paulo, sob a orientação de Daniel Pansarelli. São Paulo, 2008. Disponível em:<http://hamatos.files.wordpress.com/2011/03/hugo-allan-matos.pdf> Acesso em: 22 fev. 2012. SILVA, João Justino de Medeiros. Pneumatologia e Mariologia no horizonte teológico latino-americano. Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 2003. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 195 A CONSTRUÇÃO E A CONCEPÇÃO DE EVANGELIZAÇÃO DA DIOCESE DE NOVA IGUAÇU Gabriel do Nascimento Silva125 Resumo: O presente trabalho aborda a concepção de evangelização predominante na Diocese de Nova Iguaçu a partir da sua fundação em 1960. Através da análise do Planejamento Pastoral, observou-se como a inserção de novos agentes pastorais questões sacras Fluminense provocou e terrenas. apresentou a superação Em mudanças da decorrência, dicotomia o significativas religiosa catolicismo na na forma entre Baixada de se relacionar com a realidade social e política da região. Palavras-chaves: Religião, política e Classes Populares. Introdução O sequestro de um Bispo de periferia muito facilmente poderia ser atribuído a problemas pontuais e locais. Contudo, pegar seu carro e explodi-lo em frente à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), parece deixar uma mensagem clara de afronta, se não à Igreja como um todo, com certeza, a um determinado grupo do qual o referido Bispo era representativo. Acrescente-se agora um atentado a bomba ao altar da Igreja Matriz da cidade, seguida de pichações aludindo um suposto envolvimento de católicos ao comunismo. Estes fatos aconteceram na Diocese de Nova Iguaçu. No primeiro caso, Dom Adriano Hipólito foi sequestrado no dia 22 de setembro 1976 e teve seu carro detonado em frente à sede da CNBB, além de ter sido levado para longe da cidade, espancado, largado nu e pintado de vermelho. No segundo caso, o ocorrido se deu no dia 20 de dezembro de 1979. Por estar próximo ao natal, havia um presépio construído no altar, o que evidentemente ficou destruído. Era agora a maior figura simbólica da fé católica que havia sido atingida: Jesus Cristo. Estava claro que a Igreja, ou ao menos parte dela, vinha incomodando bastante algum setor social. E a julgar pelo momento histórico do Brasil que passava por uma Ditadura Militar (1964-1985), boas suposições podem ser feitas. Mas, deixando a leviandade de lado, não se pode chegar a 125 Licenciado em História, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 196 uma conclusão definitiva dos autores dos atentados. Contudo, isto não impede a constatação do incomodo que algum setor social vinha sentindo na forma da Igreja conduzir sua missão: a evangelização. O presente artigo traça alguns argumentos sobre a concepção de evangelização predominante na Diocese de Nova Iguaçu ao longo da década de 1960 e 1970. Compreender o que significava a disseminação da mensagem de fé na vida concreta da população é estratégico para se apreender, ao menos em parte, o papel social e político do catolicismo na região. Sem esta perspectiva, ao analisar-se os crimes citados e a ligação que a Igreja teve com as classes populares na década de 1970, seriam feitas simplificações que atribuiriam a Diocese características de um partido político. É oportuno citar neste ponto, ao menos, um exemplo para ilustrar a relação entre Igreja e classes populares. O de maior destaque no período na Baixada Fluminense da segunda metade da década de 1970, foi o movimento associativo de bairros, comumente chamado de Movimento de Amigos do Bairro (MAB). Este movimento social promoveu uma nova forma das classes populares pleitearem suas demandas, e consequentemente, modificou a relação das camadas subalternas com a política (SILVA, 1994). O que mais vale argumentar é que esse movimento surge a partir da ação pastoral da Diocese na área de saúde. O que, já, muito contradiz qualquer idéia que pense em ações pastorais sempre desvinculadas da realidade material. Contudo, por mais que pudessem se envolver com o poder político, essas atividades não tinham o objetivo de chegar a ele. E justamente por isso que se tem o nascimento de movimentos sociais. Se a Igreja tivesse os mesmo atributos de um partido político, não haveria a necessidade de alguns membros partirem para a organização popular. Então, de uma atividade religiosa, surge um movimento que põe em questão a forma como a elite política local vinha conduzindo sua perpetuação no poder público. Mas como, concretamente, uma atividade religiosa pode resultar na formação de movimentos sociais? Uma pista já foi enunciada: as ações pastorais da Diocese de Nova Iguaçu na década de 1970 não se limitavam a reproduzir simples mensagens de fé desvinculadas da realidade material, social e política dos fieis. Entretanto, isso não responde por que a Igreja estabeleceu laços estreitos justamente com as camadas desfavorecidas economicamente da Baixada Fluminense. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 197 A resolução destas questões parece estar na compreensão da concepção de evangelização que norteou o projeto de Igreja para a Diocese de Nova Iguaçu. E por mais que as consequências estejam nítidas nos acontecimentos da segunda metade da década de 1970, é preciso retornar a década anterior para se observar o momento de sua elaboração. É importante também contextualizar a Diocese de Nova Iguaçu em um período de mudanças de paradigmas para o catolicismo mundial. São tempos de renovação do Concílio Vaticano II (1959-1965) mergulhando a Igreja em um amplo debate sobre seu papel frente ao mundo moderno. Feito este percurso, espera-se entender melhor o caráter político da fé católica da Diocese de Nova Iguaçu. Entretanto, deve-se enfatizar que as reflexões expostas aqui são resultados preliminares de uma pesquisa que teve seu início no trabalho de conclusão de curso durante a graduação do autor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e que prossegue neste momento dentro do Programa de Pósgraduação em História Política (PPGH) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). A Diocese de Nova Iguaçu A Igreja Católica Apostólica Romana sempre teve grande influência na Baixada Fluminense. Mas na década de 1950, vislumbrou-se um descompasso entre desenvolvimento religioso e social. A população cresceu e se diversificou aceleradamente em consequência da crise da citricultura e do processo de loteamentos das antigas chácaras (SOUZA, 1992). Por estar vinculada a distante Diocese de Barra do Piraí, a Igreja tinha dificuldades para seguir o mesmo ritmo. Era necessário um projeto evangelização que pressupunha aparatos institucionais de uma Diocese efetivamente presente no cotidiano dos fieis. Dessa perspectiva nasce a idéia de se criar uma Diocese para a Baixada Fluminense. Então, vem a primeira comissão pró-diocese em 1953, nomeada pelo Bispo José André Coimbra, e presidida pelo Mons. João Musch. Ainda houve uma segunda comissão em 1957, nomeada e presida pelo Bispo Dom Agnelo Rossi, antes da emissão da bula Quandoquidem Verbis emitida pelo Papa João XXIII em 26 de marco de 1960, criando a Diocese de Nova Iguaçu com seu primeiro Bispo Dom Walmor Battú Wichrowski. Por questões de saúde, este permaneceu pouco mais de um ano, apenas, na condução da nova Diocese, sendo substituído por Dom Honorato Piazera. Não se pode menosprezar evidentemente o CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 198 trabalho feito pelo segundo Bispo que ao chegar encontrou a Diocese com 34 sacerdotes e 4 comunidades religiosas, e ao sair deixou 65 padres e 11 comunidades (PASSOS, 1970) Mas é na figura de Dom Adriano Hipólito que toma posse em 1966, que se tem o salto qualitativo na elaboração daquele projeto de Igreja. Enquanto os dois primeiros Bispos se preocuparam em proliferar o corpo religioso e clerical, Dom Adriano centrou seus esforços iniciais na organização e sistematização do trabalho pastoral. Tanto que convoca uma reunião com padres, religiosas e alguns leigos em janeiro de 1968 para a elaboração do primeiro planejamento pastoral126. Desta reunião surge um documento que serviria de norte para toda a Diocese de Nova Iguaçu e que foi publicado pela editora VOZES em março do mesmo ano. Vale ressaltar que este documento foi produzido a partir de discussões coletivas que, mesmo não evidenciando a pluralidade de pensamentos possíveis de terem existido nas reuniões de sua elaboração, não deixou de demonstrar uma reflexão dos atores a respeito do que ocorria dentro e fora dos muros da Igreja. Por outras palavras, o planejamento visava construir uma orientação para o futuro, mas era também um resultado equacionado do que o grupo pesava e praticava anteriormente. O planejamento Pastoral foi sistematizado em duas partes. Na primeira, consta uma ―Introdução Geral‖, aonde se encontram informações sobre o que a Diocese entendia sobre diferentes conceitos como Pastoral, Caridade, Missão da Igreja. Há também análises conjunturais da Igreja e suas diretrizes, da realidade religiosa e social de seus fieis. Na segunda parte estão os programas planejados para o ano, subdivido em quatro tópicos: levantamentos e Pesquisa, Formação e Atualização, Ação pastoral e serviços. Em cada parte há uma explicação prévia do objetivo do tópico, depois uma avaliação do ano anterior e, por fim, os planos para o ano. É na observação do método de produção deste documento, aliado a análise de seu conteúdo, que se percebe a necessidade de relativizar o papel de Dom Adriano. Diversos trabalhos acadêmicos tendem caracteriza-lo indistintamente no tempo sob alguns rótulos permanentes, como, por exemplo, um Bispo progressista. Evidente que ao pensarmos na sua atuação do final da década de 1970, que se envolveu em quase todos os problemas sociais da região, e difícil negar o adjetivo. Mesmo assim, o que se 126 Este é o principal documento analisado para a construção deste artigo. Teve seu primeiro exemplar publicado no mesmo ano de 1968, prosseguindo suas edições de forma anual. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 199 quer argumentar é a necessidade de se perceber duas coisas. A primeira, que a Diocese não é reflexo direto e acabado da ação e do pensamento isolado de seu líder. O caráter coletivo do planejamento pastoral evidencia tal premissa. A segunda, que, a julgar pelo tempo em que exerce o cargo, quase trinta anos, a atuação de Dom Adriano não foi sempre da mesma forma. Ela foi se moldando em relação constante com as condições que lhe eram colocadas pela conjuntura social e da Igreja em si. São pelas razões expostas até aqui, que se pensa em uma concepção de evangelização da Diocese, e não de um determinado grupo. Mesmo admitindo a pluralidade de metodologias que coexistiram, houve um direcionamento claro das perspectivas que deveriam concentrar os esforços institucionais da Diocese127. Afinal, a primeira função do planejamento pastoral era integrar ações pastorais dispersas em um programa unitário, sistematizado e organizado sob diretrizes nacionais (Plano Pastoral de Conjunto 1966-1970) e internacionais (Concílio Vaticano II). Por outras palavras, era para elaborar um projeto que adaptasse à realidade da região as reformas litúrgicas, doutrinais e sacramentais que os novos ares de Concílio Vaticano II levou para o mundo inteiro. O Concílio Vaticano II A Igreja até a década de sessenta tinha seu rosto moldado pelo Concílio de Trento, que havia sido realizado no século XVI. Segundo José Beozzo (BEOZZO, 2001), este concílio reafirmou doutrinas e liturgias que perduraram até a convocação do Vaticano II pelo Papa João XXIII em 1959 e encerrado pelo Papa Paulo VI em 1965. A participação brasileira foi sem precedentes na história da Igreja. Foi tanto a possibilidade de colocar o Brasil no centro da teia de relações em Roma e na América Latina, como a oportunidade de definir mais concretamente uma identidade para o catolicismo no país. O Plano Pastoral de Conjunto 1966-1970 (PCC) teve uma importância grande no sentido de orientar as ações da Igreja. Este documento, elaborado pela CNBB, surge no apagar das luzes do Concílio em 1965 com o objetivo de projetar as questões do 127 Para citar apenas um exemplo de coexistência de metodologias de evangelização distintas na Baixada Fluminense, tem-se a Renovação Carismática Católica (RCCs) e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Para uma boa compreensão desse diálogo, ver em ASSIS, João Marcos Figueiredo. Negociações para o convívio no catolicismo na Diocese de Nova Iguaçu- RJ Tese de Doutorado, Centro de Ciências sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. UERJ. Rio de Janeiro. 2008. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 200 encontro à realidade brasileira no período de 1966 a 1970. Por consequência, mergulhou as Dioceses em um amplo debate sobre seu trabalho pastoral, uma vez que elas tinham agora um ponto de referência nacional para se orientar. É deste ponto que se percebe que o PCC contribui muito mais para a construção de identidade da Igreja do que a própria criação da CNBB em 1952. Afinal, havia agora uma diretriz a ser pensada sobre as diferentes localidades. Para a relação entre leigos e clero, o concílio Vaticano II foi um divisor de águas. Representou uma nova forma de relação entre esses agentes. Dessa forma, os leigos foram participando mais ativamente da vida religiosa como sujeitos, e não meros espectadores. Isto acarreta, entre outras coisas, na mudança de foco da própria missa, que passa a ser rezada em língua vernácula e não mais de costas para o público, propiciando um novo tipo de relação entre os atores clericais. Fato é que o Concílio propiciou aos diferentes setores da vida religiosa repensarem seus papeis frente ao trabalho de evangelização. Era, pois, a necessidade de expandir a mensagem de fé da Igreja que fez toda a instituição se reformar. E dentro destes parâmetros foram se estabelecendo diversas perspectivas que visavam a proliferação da influência religiosa pelo mundo moderno. Assim sendo, já se pode imaginar como está muito coerentemente pensado o estabelecimento da Diocese de Nova Iguaçu em 1960, decretado pelo Papa João XXIII. Ainda mais se junto a isto, acrescentar-se a necessidade da própria região, que vinha crescendo e se dinamizando em ritmo acelerado como já foi mencionado. A Concepção de Evangelização Logo em 1968 a Diocese estabelece em seu primeiro planejamento pastoral as Comunidades Eclesiais como forma de organização básica. Mas essa simples constatação não dá conta dos motivos que levaram sua adoção, e nem tão pouco do seu caráter. É preciso mencionar a análise conjuntural que a Igreja fez tanto de seus fiéis como de seus agentes pastorais. É preciso entender, também, quais eram os objetivos primordiais da evangelização a serem realizadas na Baixada Fluminense. E talvez o mais importante, é preciso entender qual foi o entendimento da Diocese de Nova Iguaçu sobre o homem e sua vida espiritual e terrena. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 201 No primeiro planejamento pastoral se percebe uma ideia de evangelização que visava à salvação total de todos os homens. Esse pensamento é a peça chave para a compreensão do que norteou todo o trabalho pastoral elaborado a partir da Diocese de Nova Iguaçu. A definição dessa concepção de evangelização foi mais bem elaborada no terceiro Plano de 1970. O homem face aos tipos de diálogos que pode estabelecer em vida, possui, em decorrência, diferentes esferas que determinam sua totalidade: na medida em que dialoga com Deus, tem sua faixa sacral; quando dialoga com os outros homens, sua esfera social; e quando dialoga consigo mesmo, sua faixa existencial. Dessa forma é pensada a totalidade do homem constituído de três esferas em decorrência de três tipos de diálogos. É a junção definitiva entre corpo e alma, pois nenhum trabalho pastoral que vise a salvação total do homem pode negligenciar qualquer uma daquelas esferas. Todas elas se interligam e se relacionam para formar a complexidade do homem segundo a visão da Igreja. Quando o planejamento pastoral se refere à salvação de todos os homens, podese compreender a ideia de Comunidade pensada para o trabalho evangélico nesse primeiro momento da década de 1960. Na exata medida de sua responsabilidade e de acordo com seu grau de inserção em cada uma daquelas esferas (sacral, existencial ou social), compete a todos aqueles que foram batizados não só o direito, como o dever de realizar o anúncio da vida de Cristo. Dentro deste parâmetro todos os homens são chamados a se inserirem dentro do trabalho religioso, mesmo em graus diferenciados de responsabilidade e dedicação. Então, mesmo admitindo a possibilidade de o homem se colocar diretamente em contato com Deus, ele só realiza toda a plenitude da missão salvífica quando se insere dentro de uma Comunidade que pense e trabalhe sob todas as faixas sociais do homem. Somente dessa forma o ser humano sai de seu isolamento para a promoção de todas as suas faixas: sacral, existencial e social. É como Comunidade que se coloca toda a Igreja para a salvação total do homem. Em resumo, a ideia da totalidade do homem está atrelada a superação da disjunção entre questões temporais e espirituais, assim com a inserção de todos os homens no trabalho pleno de evangelização. Estes pontos parecem ter alcançado uma delimitação clara para Diocese em 1970, pois no ano seguinte o planejamento pastoral já vem sem a introdução geral que se justificava como um esclarecimento dessas ideias. A partir de 1971 o Plano passa a constar apenas com as explicações prévias de cada CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 202 programa, as análises qualitativas das atividades do ano anterior e o planejamento do ano posterior. Tendo descrito o que era para a Diocese seu envolvimento em todas as faixas do homem e sua noção de Comunidade, agora melhor se pode compreender o caráter da missão primordial da Igreja que é salvar e libertar o homem. Esse objetivo, que já se enuncia logo nas primeiras páginas do planejamento de 1968, requer um conjunto de atividades muito bem programadas e estruturadas. Se nenhuma questão da vida humana pode ser desconsiderada na evangelização, o trabalho pastoral, entendido como o conjunto de serviços prestados pela Igreja, deve ser integral, surgindo assim o conceito de Pastoral Integral. É integral quanto ao sujeito, pois compete a todos os homens, de acordo com seu grau de comprometimento. É integral quanto ao objeto, porque se destina a todos os homens em sua totalidade sacral, social e existencial. E por último é integral quanto ao âmbito de atuação, porque envolve todas as iniciativas da Igreja, sejam aquelas mais voltadas aos aspectos terrenos ou espirituais. As Comunidades Eclesiais O resultado de todo esse processo é a identificação da Diocese com todas as questões sociais que envolviam a população da Baixada Fluminense. Mas, para a realização plena dos objetivos almejados esbarrou-se em problemas práticos. A análise conjuntural que a Diocese fez tanto dos agentes pastorais como da realidade religiosa da Baixada Fluminense enfatiza dois aspectos: a pouca disponibilidade e a dispersão das iniciativas pastorais, e má formação religiosa tanto dos agentes como dos próprios fiéis. Por tanto, os poucos envolvidos na evangelização se encontravam sobrecarregados. E para a resolução desse problema era preciso a obtenção de novos quadros capazes de fomentar o trabalho pastoral. A primeira barreira que se encontra é a impossibilidade de requerer esses quadros no corpo clerical, tendo em vista seu reduzido número. Não que não tenha havido esforços para importar padres e religiosas de outros cantos, inclusive de fora do país. Contudo, por seu tamanho, o território contemplado pela Diocese necessitava de outras estratégias. É do laicato que veio a alternativa mais adequada, porém esta trazia consigo outro problema. Os leigos eram mal preparados e, além disso, os sacramentos possuíam poucos significados em suas vidas concretas. Criou-se, então, a ideia de se formarem lideranças capazes não só de darem conta do trabalho pastoral, CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 203 mas, sobretudo, de possibilitarem uma nova significação da religiosidade na vida concreta de cada fiel. Surge, então, a liderança pessoal e as lideranças comunitárias. A primeira se refere aos indivíduos conscientes e engajados em qualquer linha da Igreja para o anúncio da Boa-nova. Podem ser eles, religiosas, padres ou leigos, desde que estejam no dia-a-dia da realidade de sua área de atuação ou com os problemas de sua Comunidade. Entretanto, os mais notáveis são as lideranças comunitárias, pois sua compreensão reavalia a ideia de Comunidade Eclesial de Base (CEBs). Para a década de 1960, as CEBs ainda não tinham uma conceituação exata do que eram, e por isso mesmo, possibilitou sua enorme pluralidade em termos práticos, pois eram as necessidades de cada Comunidade que ditavam seus procedimentos e reflexões. Dessa forma as Comunidades em Nova Iguaçu foram pensadas enquanto formação de lideranças, onde um grupo se engaja em determinada ação pastoral. A formação deste grupo é ditada pelo ―(…) entrelaçamento ininterrupto de relações primárias entre os seus componentes‖ (DIOCESE DE NOVA IGUAÇU, 1969, 27). Relembrando a totalidade do homem, não seria surpresa a prioridade que foi atribuída à formação de lideranças comunitárias. Há duas interpretações possíveis das ideias expostas até aqui, as quais constituem um fato novo que aproxima a Diocese da realidade social da Baixada Fluminense. A primeira delas gira em torno da superação da dicotomia entre corpo e alma, pois questões espirituais e terrenas foram vistas como indissociáveis. Tal premissa ajuda a compreender porque a Diocese elaborou ações pastorais que não se restringiram a reprodução da mensagem de fé simplesmente. A segunda é que toda essa organização de lideranças surge do laicato e de dentro da Igreja como estratégia de evangelização. Neste ponto avalia-se a possibilidade de encontro da Igreja com as classes populares. Foram nesse momento que se legitimaram trabalhos antes vistos como incoerentes com as práticas religiosas propriamente ditas. Tudo isso foi possibilitado por uma conjunção de fatores da realidade macro e micro, os quais demonstram a progressiva inserção dos leigos como agentes na vida religiosa. O Concílio Vaticano II propiciou certa liberdade de organização que possibilitava uma limitada democratização das estruturas diocesanas. Afinal, não seria viável a formação de lideranças comunitárias caso não houvesse nenhuma margem de liberdade para estes pensarem suas próprias atividades. E a Diocese de Nova Iguaçu, percebendo sua debilidade CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 204 estrutural para expandir de si própria a evangelização, buscou inserir os leigos nas ações pastorais. Os dois vetores, macro e micro, rumaram para a integração dinâmica do laicato na condução de sua própria evangelização. Considerações finais Todo isso foi bem caracterizado no primeiro planejamento pastoral da Diocese de 1968, que demonstra uma primeira perspectiva de se organizar e criar uma unicidade entre iniciativas desencontradas. Foi, simultaneamente, a primeira tentativa de sistematização das atividades e a busca pela inserção e formação dos leigos nessas mesmas atividades. Assim sendo, observou-se, também, uma democratização da vida religiosa, o que comungava com princípios elaborados pelo Concílio Vaticano II. Para darmos um exemplo disso, criaram-se em Nova Iguaçu diversos conselhos de participação coletiva, como o conselho presbiteral, presidido pelo Bispo com a participação de mais 14 membros entre efetivos e suplentes. Importante salientar que tal fato não significou em nenhum momento uma quebra de hierarquia, até porque, em tese, ela não é vista em contradição com a democracia. Contudo, a organização que realmente modificou toda a forma da Diocese se relacionar com seus fieis foi as Comunidades Eclesiais de Base. O seu estabelecimento, a principio, foi uma estratégia para formarem lideranças capazes de prover mais apropriadamente a evangelização. É deste ponto que se elaborou a ideia de criar um Centro de Formação de Lideranças, o qual ficou completamente acabado em 1973. Importante mencionar que a formação de liderança não era para atividades políticas em sentido formal, mas sim para criar agentes capazes de realizar a ação pastoral de acordo com o clima de renovação do período. Portanto, mostra-se um equívoco afirmar que as CEBs dariam consequência direta à movimentos sociais em Nova Iguaçu. Antes disso, é imprescindível compreender como era fomentada a ação pastoral e as concepções que norteavam a Diocese de Nova Iguaçu. Foram estas questões que deram fundamentação às CEBs para que elas, no futuro, viessem a se tornar espaços de discussões sociais. A missão que se coloca para a Igreja como um todo é a salvação e a libertação de todos os homens e do homem todo. Esta missão é cumprida através de um serviço de caridade. E por meio deste serviço de caridade que a Diocese exerce sua função primordial de evangelização. A caridade não pode ser simplificada a uma mera assistência social, ela é também religiosa, pois o homem é visto em sua totalidade, CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 205 corpo e alma. Em suma, este serviço que é caracterizado como ação pastoral. E a busca por significações mais adequadas dos sacramentos religiosos para a vida humana perpassa pelo entendimento que todo aquele batizado tem o dever de se apresentar para o trabalho de anunciação da vida de Jesus Cristo, de acordo com seu grau de responsabilidade lhe atribuído. Assim, todos os homens são convocados a terem uma ação religiosa que se envolva em todas as esferas do homem social, existencial e sacral. Estes são os aspectos da concepção de evangelização que podem ser mais bem sintetizados se afirmamos que a salvação do homem não mais está circunscrita exclusivamente de questões religiosas. Melhor dizendo, esta perspectiva de evangelização, de todos os homens e do homem todo, tentava superar com a dicotomia entre o corpo e a alma. Portanto, não só as CEBs, mas todos os serviços da Igreja, sejam eles, teoricamente, mais voltados a uma esfera ou outra, engajavam-se nessa perspectiva. A Pastoral Integral deveria se comprometer com todas as áreas da vida humana. Foi assim que se possibilitou a ressignificação dos diferentes sacramentos, que não mais podiam se resumir puramente em si mesmos. Por tanto, Não bastava à Diocese instituir simploriamente as CEBs como unidades privilegiadas de ação pastoral, pois, se assim fosse, poderiam ser caracterizadas apenas como a menor circunscrição da Paróquia. O que não possibilitaria os desdobramentos sociais e políticos que a história demonstrou nelas. Antes, era uma concepção de evangelização que não se esquivava de discutir questões terrenas, que definiu, concretamente, uma metodologia de evangelização para as CEBs. O que, por sua vez, culminou em outros tipos de mobilizações sociais. Estas, sim, deram origem aos movimentos sociais que surgiram ao longo da década de 1970, como o exemplo já citado, o Movimento de Associação de Bairros (MAB). Importante frisar mais claramente que todo esse processo fundamentou uma doutrina social para Igreja não apenas em Nova Iguaçu, mas, sobretudo, para o Brasil e a América Latina. Haveria muito ainda o que argumentar se percorrêssemos por esse caminho que leva em direção a Teologia da Libertação (BOFF, 1986). Mas, para nos atermos ao nosso tema, cabe mencionar, pelo menos, alguns argumentos que nos levam de volta aos atentados descritos no início do texto. O papel da Igreja frente a sociedade não estava claro até pelo menos meados da década de 1970. Por isso que parece não ter havido grandes conflitos entre Igreja e Estado durante os períodos mais repressores da Ditadura Militar, tal qual diz Márcio CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 206 Moreira Alves (ALVES, 1979). Assume-se a dificuldade de afirmar se os problemas entre repressão e clero, antes da metade da década de 1970, eram realmente circunstanciais e restritos ao segundo escalão da Igreja, coforme argumenta o autor em questão. Mas, o estudo de Kenneth Serbim sobre a comissão tripartite, organizada no Governo de Médici (1969-73), também sinaliza para busca de conciliação de ambas as instituições, justamente no período mais repressor do Estado com os movimentos sociais (SERBIM, 2001). Contudo, seria forçoso não relacionar aqueles atentados que sofreu a Diocese de Nova Iguaçu em 1976 e 1979 com a tomada consciente de seu papel social e político frente às classes populares. À medida que a doutrina social da Igreja foi ganhando contornos práticos no cotidiano dos católicos, setores contrários a mobilização popular foram reavaliando a atuação da Diocese. Os atentados são as evidencias mais clara que se poderia mencionar, mas não únicas. O problema, na verdade, surge da conjunção de dois fatores: a concepção que via a importância da política para a plena realização da evangelização e a ligação dessa Igreja com as classes populares. As CEBs foram se desenvolvendo a partir do final da década de 1960, até culminar na equação desses fatores na segunda metade da década de 1970. O que vai progressivamente conscientizando o povo da necessidade de organização popular, no sentido de uma reconfiguração da política vivenciada até então. Entretanto, coforme essa mobilização ia em direção, não mais apenas, da reconfiguração da relação política, mas sim, da elaboração de estratégias para chegar a ela, tem-se o surgimento de movimentos sociais distintos das organizações religiosas. Referências bibliográficas Fontes: DIOCESE DE NOVA IGUAÇU. Plano Pastoral da Diocese de Nova Iguaçu para 1968. In: Cadernos de Nova Iguaçu I. Petrópolis: Vozes, 1968. Arquivo da Cúria Diocesana. _________________________. Plano Pastoral da Diocese de Nova Iguaçu para 1969. In: Cadernos de Nova Iguaçu 2. Petrópolis: Vozes, 1969. Arquivo da Cúria Diocesana. _________________________. Plano Pastoral da Diocese de Nova Iguaçu para 1970. In: Cadernos de Nova Iguaçu 3. Petrópolis: Vozes, 1970. Arquivo da Cúria Diocesana. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 207 CONFERÊCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Plano Pastoral de Conjunto. 2ª ed. Documentos da CNBB n.77. São Paulo: Paulinas, 2004 Jornal de Hoje, Nova Iguaçu, 10 de novembro de 1979. O Repórter, Nova Iguaçu, Dezembro de 1976. Bibliografia: ALVES, Márcio Moreira. A Igreja e a política no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979 ASSIS, João Marcos Figueiredo. Negociações para o convívio no catolicismo na Diocese de Nova Iguaçu- RJ Tese de Doutorado, Centro de Ciências sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. UERJ. Rio de Janeiro. 2008. BEOZZO, José Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: participação e prosopografia 1959-1965. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. São Paulo, 2001 BOFF, Clodovis; BOFF, Leonardo. Como fazer Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes,1986. PASSOS, Pe. Dinarte Duarte. Nova Iguaçu Dez Anos de Diocese 1960-1970. In: Cadernos de Nova Iguaçu 4. Petrópolis: Vozes, 1970. Arquivo da Cúria Diocesana. SERBIN, Kenneth P. Diálogos na Sombra: Bispos e Militares, tortura e justiça social na Ditadura. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2001. SILVA, Percival Tavares Da. Origem e Trajetória do Movimento Amigos de Bairros em Nova Iguaçu (MAB 1974 / 1992). Dissertação de Mestrado, Instituto de Estudos Avançados em Educação. Fundação Getúlio Vargas. Rio de janeiro, 1994 SOUZA, Sonali Maria de. Da Laranja ao Lote: Transformações sociais em Nova Iguaçu. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Antropologia social, Museu Nacional. UFRRJ. Rio de janeiro 1992. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 208 A IGREJA CATÓLICA E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO: O IMPACTO DAS NOVAS TECNOLOGIAS Olga Djamila dos Santos Chiapim1; Mayara Celestino de Souza2 Silvia Regina Alves Fernandes3 Resumo: Nesse trabalho desenvolve-se uma pesquisa sobre como a Igreja Católica vem se apropriando das novas tecnologias e porque tem interesse em fazê-lo. Destaca os principais objetivos da Instituição diante desse panorama do desenvolvimento da informação e da comunicação sem deixar de ressaltar seus preceitos básicos, uma vez que são justamente estes que constituem sua postura nesse ambiente em constante expansão. A pesquisa salienta ainda, o lugar primordial que os dispositivos mediáticos ocupam não só no caso de experiências individuais e coletivas de interação, mas também na questão da fundamentalização e legitimação das ações e discursos. Palavras-chave: novos media, diálogo, autenticidade. Material e Métodos A pesquisa, que está em fase inicial, constitui-se de análise de websites, artigos e livros que tenham conteúdo relacionado direta ou indiretamente com o uso dos novos media pela Igreja Católica. Dentre os sites estão sites de natureza informativa, sites de entretenimento, sites criados e monitorados pela própria Igreja ou, sites de redes de relacionamento. A partir destes é observada a participação que a Igreja e seus representantes têm, ou seja, a finalidade com que utilizam estes sites e o comportamento que adotam nesses ambientes de interação. Resultado e Discussão Através da pesquisa foi possível ver uma grande preocupação por parte da Igreja Católica em se posicionar sobre o uso desses novos media, não só para comunicar a sua CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 209 fé, como também para que haja maior interação com os fiéis ou até mesmo aqueles que estão à margem da Igreja. Também são pontos de destaque no ambiente cibernético a questão contínua da preservação da família, o compromisso com a dignidade humana, a autenticidade nas relações, a busca de oportunidades para comunhão, a missão de passar adiante a palavra de Deus e, a preservação do contato primordial na evangelização, mesmo que os instrumentos disponibilizados pelas novas tecnologias sejam essenciais para um diálogo mais abrangente. Na pauta de discussão cabe ainda o questionamento de como e porque essa preocupação por parte da Instituição se tornou tão acentuada e vem ganhando proporções cada vez maiores desde o século XX. Importa destacar que em uma sociedade que atravessa constantes mudanças faz-se necessário uma adequação contínua às exigências do público alvo e, consequentemente as instituições religiosas podem fazer uso de ferramentas que facilitam a interação com o público alvo (KATER FILHO, 1996). Ressalte-se que os meios de comunicação servem de marketing (KATER FILHO, 1996) da mensagem religiosa e funciona estrategicamente como instrumento que propicia a preservação da fé. Este "marketing" não deixa de ser uma motivação para aqueles que são atingidos pelas mensagens transmitidas, além de proporcionar uma maior proximidade entre clero e leigos. Percebe-se que ambos aparecem nos sites como agentes importantes na produção da mensagem religiosa. Conclusão Nesta pesquisa observou-se que, ao contrário do que possa parecer , a Igreja Católica não condena a utilização dos novos media, mas ressalta que este instrumento de comunicação pode ser usado de maneira positiva ou negativa. Apresenta, então, o discurso de que o uso desses meios é uma questão de escolha e condena aqueles que o utilizam de forma superficial ou transmitem informações falsas que não condizem com seu verdadeiro perfil. Ainda no que diz respeito às relações que estabelecemos no mundo virtual, os representantes da Instituição discutem sobre como a tecnologia da informação e comunicação passou de instrumento para ambiente que define e modela o que se faz. Ou seja, diz respeito a grande influência que as redes sociais e a Internet como um todo, CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 210 têm nas relações comportamentais de grande parte da população, principalmente a população mais jovem. Por isso, a Igreja se vê na obrigação de habitar esse espaço para transmitir suas concepções, assim como, para transmitir o evangelho, pois enxerga no ambiente cibernético a oportunidade de alcançar um número maior de pessoas e estabelecer uma comunicação mais eficaz com os indivíduos que nele estão disponíveis. A questão das práticas e discursos têm, por sua vez, como pano de fundo, uma lógica mercadológica (GUERRA, 2003), já que, com o pluralismo do campo religioso torna-se necessário que o "produto" oferecido seja eficiente no que diz respeito aos anseios dos fiéis e seja condizente com aquilo que a Igreja prega, lançando assim, um desafio de conciliação. Referências Bibliográficas AGÊNCIA ECCLESIA. Internet: Redes sociais preparam face a face. Lisboa, mai. 2011. Disponível em: <http:// http://www.agencia.ecclesia.pt/cgiin/noticia.pl?&id=85902 > Acesso em 10 de Jul. 2011. AGÊNCIA ECCLESIA. Media: Igreja Católica sem medo da era digital. Lisboa, jun. 2011. Disponível em: <http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?&id=85902 > Acesso em 10 de jul. 2011. CANÇÃO NOVA. Novas tecnologias são analisadas por bispos e comunicadores. Rio de Janeiro, jul. 2011. Disponível em: <http://noticias.cancaonova.com/noticia.php?id=282618> Acesso em 10 de jul. 2011. DN PORTUGAL. Padres recrutam crentes através do Facebook. Portugal, jun. 2011. Disponível em: <http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?&id=85902> Acesso em 10 de jul. 2011. GOMES, P. G. Decifra-me ou te devoro: Sobre a evangelização e a mídia do ponto de vista da comunicação. Perspectiva Teológica, vol. 42, n. 119. 2011. Disponível em: <http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/viewFile/608/1031> Acesso em 25 de ago. 2011. GUERRA, L. As Influências da lógica mercadológica sobre as recentes transformações na Igreja Católica. Revista de Estudos da Religião, PUC - São Paulo, ano 3, n. 2. 2003. Disponível em: <http://www.pucsp.br/rever/rv2_2003/p_guerra.pdf > Acesso em 25 de ago. 2011. KATER FILHO, A.M. O Marketing Aplicado à Igreja Católica. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1996. 11-16 p. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 211 TRADIÇÃO E MODERNIDADE: UM ESTUDO DE CASO DA RELAÇÃO ENTRE A IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO E SÃO BENEDITO DOS HOMENS PRETOS E A MISSA DE CURA E LIBERTAÇÃO. (RIO DE JANEIRO-2011) Carla Juliana Delecrode.128 Laís Medeiros. Larissa Bernardes. Maria Lúcia B. S. Alexandre. Monalisa Silva. Samanta Mourão de Oliveira. Resumo: Esse trabalho tem como objetivo analisar a relação entre tradição e modernidade no campo religioso, tendo como objeto de estudo a Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos no Rio de Janeiro. Para analisar a coexistência de tradição e modernidade, foi necessário observar a Missa de cura e Libertação e a Missa compromissal que acontece regularmente na instituição. O resultado dessa análise foi relacionado com a produção de diversos autores da sociologia da religião, realizando assim, um diálogo entre teoria e prática. Palavras-chave: Irmandade, Tradição, Modernidade. O estudo das manifestações do religioso permite compreender economias, políticas, hierarquias e laços sociais em diferentes sociedades e contextos históricos específicos. As irmandades tiveram um papel histórico que ultrapassou os limites da religião, tendo função essencial na promoção da fé católica. Isso se deu por meio das festas em torno dos santos de devoção, com agentes atuantes na construção de capelas e igrejas, assim como no cuidado com a liturgia que envolvia os enterros. Além disso, exerceram função de ajuda a gentes em penúria econômica ou de saúde, sendo importantes instituições de assistencialismo. Elas foram à máxima de um catolicismo que se dava por meio do associativismo129. Com isso, nossa pesquisa tem como tema a Irmandade Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, na qual nos propomos a observar o sentido desta instituição na atualidade, uma vez que, no passado 128 Alunas de graduação do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 129 Apud, NASCIMENTO, Mara Regina. Pág.122. 2009 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 212 esse grupo foi usado como forma de inserção para excluídos na estrutura social, como escravos, pardos e libertos, reproduzindo em sua organização a hierarquia social vigente no período colonial. Hoje, sob um contexto de secularização, no qual a Igreja perdeu o monopólio da fé e da plausibilidade e no qual se apresenta um cenário de pluralismo religioso, o sentido destas instituições é colocado em questão. A linha tênue entre tradição e a modernidade sob este contexto plural também é colocada em discussão. No Brasil, conforme Carlos Alberto Steil aponta, as religiões passaram a ser marcadas por um apelo mais emocional e estão como assinalou Peter Berger, sob um cenário em que se estabelece uma competitividade entre elas. A disputa no ―mercado da fé‖ exige que elas se diferenciem entre si, em meio a um cenário que tende à padronização. Para perceber essas mudanças e a relação entre tradição e modernidade, analisamos também a missa de cura e de libertação, que é mantida regularmente às quintas-feiras na Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, que também abriga um dos símbolos mais antigos da tradição católica, a irmandade Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos. O objeto de estudo: Irmandade Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos no Rio de Janeiro. Emile Durkheim entende a religião como uma construção social, que tem a função de motivar o homem a agir e a viver. O homem religioso experimenta um poder que não se encontra na vida comum. Ele é um homem que pode mais. O autor define a religião como crenças e práticas, um sistema solidário formado por coisas sagradas, que mantém relação coordenada e subordinada, que é formada pelo sagrado, por dogmas e por cerimônias. A igreja é a comunidade moral onde ela é professada. Uma das funções dela é criar coesão e as condições de conhecer o laço social. As irmandades durante séculos tiveram o papel social de integração de excluídos a um convívio social, estabelecendo laços e hierarquias paralelas à sociedade, tanto que serviram de inserção de escravos e libertos à lógica da sociedade desde a época da colonização no Brasil. Neste sentido, elas consistem em um objeto vasto de observação acerca da construção dos laços sociais de um grupo, assim como para entender a importância deste grupo para a religião e o sentido que os membros lhes atribuem no tempo. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 213 O objeto de estudo desta pesquisa é a Irmandade Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos, que foi fundada em 1640, em devoção à Nossa Senhora do Rosário, trazida pelos Portugueses para o Brasil. Segundo informativos da própria instituição, São Benedito também foi adotado nela como advogado celestial dos homens de cor. Em 1700, a Senhora Francisca de Pontes doou trinta e duas braças de terreno à confraria de Nossa Senhora do Rosário, para a Construção da igreja e cemitério dos cativos. De acordo com o atual provedor-presidente da irmandade, Carlos Alberto, a igreja foi fundada com a ajuda de escravos e irmãos da irmandade, por meio de doações, sendo criada para que os escravos pudessem praticar seus rituais próprios. A igreja foi inaugurada em 1737 e serviu de cenário para grandes acontecimentos da história da cidade do Rio de Janeiro. Em 26 de março de 1967, porém, a bela igreja de mais de 240 anos foi quase completamente destruída por um incêndio e parte de sua história foi consumida pelo fogo. A secular Irmandade, com o apoio dos devotos, empreendeu sua reconstrução, ainda não concluída, mas, cuja restauração está sendo negociada, com o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Diante de sua longa história, a irmandade tenta guardar suas tradições e segue um Estatuto, com direitos e deveres de seus membros. Para pertencer a Irmandade, é necessário ser católico, batizado, ter mais de 18 anos, possuir idoneidade, moralidade e seguir os bons costumes. O método de inserção é marcado por etapas: quem aspira ao ingresso deve passar por curso de formação de filiação definitiva, de duração de seis meses, sendo aprovado torna-se membro do grupo. Com isso, o futuro membro deve pagar uma taxa de cerca de R$ 1000,00 (mil reais) para obter a carteirinha de membro. Segundo o estatuto da irmandade, os irmãos têm direito a vestimentas oficiais, distintivos e gozam de alguns benefícios. De acordo com o provedor-presidente, o valor da taxa de ingresso subiu nos últimos anos na tentativa de selecionar quem entra na Irmandade. ―Prezamos por qualidade e não por quantidade.‖ Os membros da irmandade, em torno de duas mil pessoas, também pagam uma mensalidade, com a finalidade de manter a instituição, que também tem outros meios de obter renda, como pelo cemitério Jardim da Saudade, e outros imóveis. Além disso, os membros devem cumprir as deliberações do Estatuto da Irmandade, assistir e participar dos atos religiosos e festividades. Os irmãos têm direito de ocupar lugares reservados nos atos e festividades religiosas. Uma diferenciação que ficou bem clara na missa compromissal, em que o CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 214 grupo participou. Todos os membros da irmandade são obrigados a comparecer a missa compromissal, que acontece todo primeiro domingo do mês, no qual existe uma separação entre os fiéis e os membros da Irmandade, revelando uma hierarquia no culto e privilégio dos membros em relação aos demais fieis. A irmandade é composta pelos seguintes cargos: o juiz provedor ou provedor-presidente, que atualmente é ocupado por Carlos Alberto, responsável por administrar a instituição,o procurador geral a representa judicialmente dentro e fora do Brasil, o procurador de caridade deve ter o conhecimento de tudo que constitui o patrimônio da instituição; escrivão: Organiza e fiscaliza a escrituração dos livros; o tesoureiro é responsável por receber e ter sob sua guarda as receitas em espécie. Existe ainda em sua estrutura o conselho, as irmãs zeladoras e os juízes. Segundo o provedor Carlos Alberto, os cargos são instituídos por eleições, que são registradas em cartório. A manutenção da tradição católica é um dos objetivos da irmandade e por isso o provedor explica que se tentou manter ao máximo a fidelidade aos ritos antigos, como as congadas130, que não acontece mais, pois alguns com o tempo se diluíram. Ele esclareceu que as principais mudanças que ocorreram na irmandade foram quanto a troca de provedor, quanto questões administrativas. Carlos Alberto é provedor há oito anos e tenta organizar juridicamente a irmandade. Em sua ―gestão‖, a irmandade ganhou um estatuto atualizado, em 2006, teve o museu do negro registrado e passou por auditorias. Entre as tradições preservadas pela irmandade está o vestuário dos membros, que serve de símbolo de diferenciação entre os membros e os fiéis. O uso das roupas nas reuniões da Irmandade e na missa compromissal é obrigatório e de suma importância para manter a tradição, tanto que, em uma das missas assistidas pelo grupo, os membros do conselho distribuíram um informativo, que alertava os membros sobre a obrigatoriedade do uso das vestimentas, o que evidenciava que alguns não estavam cumprindo o costume. Um aspecto observado é a certa autonomia que a irmandade mantém diante da diocese do Rio de Janeiro, a escolha do padre é um exemplo disso. O padre é indicado pela diocese, porém, o provedor é que dá a palavra final da escolha, tanto que o atual 130 O congado é uma manifestação cultural e religiosa de influência africana celebrada em algumas regiões do Brasil. Trata basicamente de três temas em seu enredo: a vida de São Benedito, o encontro de Nossa Senhora do Rosário submergida nas águas, e a representação da luta de Carlos Magno contra as invasões mouras. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 215 padre foi uma escolha do provedor e, segundo ele, o sacerdote não tem nenhuma relação nem com a irmandade, nem com a igreja. A Irmandade apenas paga o padre para realizar as missas. Cabe destacar que esse ano já houve uma mudança de padre na igreja, já que alguns membros da irmandade não estavam de acordo com o padre anterior. De acordo com o Estatuto da Irmandade, o objetivo da instituição é fortalecer a fé e propagar a devoção a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito dos homens pretos, assim como promover auxílio a pessoas carentes e auxílio material, além disso, visa a estimular a entrada de novos membros na Irmandade. Apesar disso, a percepção do grupo é de que a Irmandade deseja manter suas tradições e manter um exclusivismo e seleção dos membros, uma vez que participar dela é uma questão de status social perante a sociedade ou, para alguns membros, a irmandade é um meio de autoafirmação do negro que participa e que deseja reafirmar sua importância social através da irmandade. Isso fica evidente na fala da autora Mara Regina quando a mesma diz que nas festas públicas, como nas outras celebrações religiosas, a comunidade livre ou a de escravos (agregados em irmandades) pretendiam maravilhar pessoas, causar assombro e defender uma posição social. A autora aponta após analisar documentos de irmandades, que mostram os gastos com festas, mostram as inúmeras vezes que os irmãos lapidavam suas economias com objetivos de reiterarem esta ostentação e pompa das procissões, tanto das associações de pardos ou de negros. Esta segunda constatação pode ser concluída a partir de falas do vice-presidente do conselho, Joaquim, que se declara negro e que em todo tempo se afirmava como uma pessoa importante, seja por sua posição dentro da irmandade, seja por relações de parentesco com políticos ou por contato com pessoas influentes da cidade. A família é sagrada para a irmandade, por isso defendem a importância do homem formar família e zelar pela manutenção dela. Alguns objetos também são sagrados: a bandeira da Irmandade, o distintivo, o anel, o broche em formato de Cruz. Foram feitas seis entrevistas com membros da irmandade, a fim de traçar um perfil de fiel que participa do grupo, seus significado e motivações para participar. De modo geral, a irmandade é composta por mais mulheres que homens, sendo que os homens são maioria na detenção de cargos altos na irmandade. A média de idade dos membros varia de 55 a 90 anos, sendo a maioria dos entrevistados, negra, solteira, com filhos. Todos os entrevistados participam da irmandade há mais de 20 anos e residem de CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 216 diferentes locais da cidade. O motivo que os fizeram participar da irmandade foi por convite e por devoção à fé católica ou a algum santo. Todos têm freqüência regular, principalmente, na missa compromissal, que é obrigatória a presença. Na fala dos membros, é possível perceber a separação que eles estabelecem entre a irmandade e a igreja. Quando questionados sobre a renovação presente na igreja, com a missa de cura e libertação, eles disseram ser importante a renovação na Igreja e não na irmandade, onde vigoram as tradições. Para todos, o fato de pertencer a irmandade melhora a vida, sendo os motivos citados para prosseguir na irmandade prosseguir na fé católica, perpetuar a tradição e devoção a algum santo. A maioria dos entrevistados não conhece a história da irmandade ou sabe pouco. Nem todos têm familiares participando do grupo. Sobre a missa da cura, todos já participaram de alguma missa e gostaram, mas reafirmaram que a renovação foi só para a Igreja não para a irmandade. Missa da cura e da libertação da Igreja Nossa Senhora do Rosário, modernidade em meio à tradição. Uma novidade que veio com a modernidade e com os tempos de secularização foi a missa de cura e libertação na Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Uma resposta ao contexto plural religioso que atualidade apresenta e serviu de saída para atrair fieis para a igreja nos últimos anos. A concorrida missa consegue lotar o templo de capacidade de cerca de 300 pessoas em plena hora do almoço, entre 12h e 14h30, todas as quintasfeiras. O público é bem heterogêneo, idosos, jovens, estudantes, homens engravatados, pessoas mais humildes, mulheres bem vestidas. Todos buscando uma benção, a resolução de um problema, seja desemprego, problemas de saúde, dificuldades financeiras. A missa é o ponto alto da igreja que somente às quintas-feiras o templo fica lotado, bem diferente das missas compromissais que são basicamente freqüentadas pelos membros da irmandade. Questionado sobre o motivo da ―renovação‖ na irmandade com a realização da missa carismática e o provedor foi bem claro quanto aos objetivos que motivaram a inserção da novidade: a dificuldade financeira da igreja. A missa de cura e libertação conta com a presença de poucos membros da irmandade. Ele contou que há algum tempo as missas e os eventos da igreja não estavam mais sendo freqüentada pelos fiéis e que a igreja estava passando por CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 217 momentos difíceis, que poderiam até fechá-la, mas motivado pelo segurança da igreja, que é evangélico, ele decidiu criar a missa, já que na igreja do funcionário os cultos de cura e libertação eram muito freqüentados e poderia dar certo na Igreja do Rosário. E, deu certo. Hoje o culto atrai muitos fiéis a igreja e boas ofertas para a igreja. A missa da cura e da libertação existe há oito anos e conta com a presença de pessoas de várias localidades que vem de longe só para participar da missa. Segundo o provedor, a maioria dos membros da irmandade não concordou com essa renovação na igreja, mas viu nessa missa uma ―solução‖ para manter a igreja. A missa é marcada por uma esfera de fé diferenciada. Os fiéis choram e clamam pela solução de seus problemas, pedem a cura e a libertação de suas vidas, acendem velas, cantam de mãos dadas. O padre estimula as orações e a fé dos fiéis de que Deus é a fonte de solução de seus problemas. Ele estimula a oração pelos que estão doentes, e diz que o fiel sairá daquele lugar com sua benção, com a solução do desemprego, e com a cura de enfermidades. As orações ocorrem ao som de músicas que falam de cura: ―Levanta em nome de Jesus‖ e ―Eu tomo posse da graça de Deus; tomo posse da cura‖, cantavam os jovens no altar. As pessoas acreditam que a água benta cura e que vão receber o milagre. Os fiéis seguram nas mãos símbolos da benção que almejam como chaves, carteira de trabalho, contas, fotos de familiares e crêem que se encostarem esses símbolos no Santíssimo e nas imagens dos santos, principalmente na de Nossa Senhora Desatadora dos Nós a benção será alcançada. O padre ora pela libertação daqueles que estão ali ou por parentes ou pessoas que precisem de libertação de vícios e pela quebra de maldição e de feitiçarias. A oração é direcionada a cura para que os fiéis coloquem as mãos na cabeça e em locais onde existir alguma dor ou doença. Após essas orações, eles cantam uma música de celebração para celebração para festejar sua libertação e após esse momento o padre pede doações para igreja e recolhe ofertas. Um dos momentos mais importantes da missa é a tomada das hóstias e a passagem do Santíssimo por entre os fieis, esta é a oportunidade que eles têm de tocar no que, para eles, é como se fosse o próprio Jesus personificado na hóstia. Conforme o Santíssimo passava pela Igreja, as pessoas iam acompanhando com as mãos erguidas em direção a ele, como se ele fosse santo e como se realmente Jesus estivesse naquele objeto. Eles atribuem poder ao Santíssimo e fazem questão de tocá-lo com as mãos e com os objetos que simbolizam as bênçãos que buscam. Ao final, o padre consagra os objetos representativos, como carteira de trabalho, chaves e fotos, levados pelos fieis. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 218 Em uma das missas observadas, foi distribuído um lenço de Nossa Senhora Desatadora dos Nós, que era benzido com água benta e por isso era tratado como um objeto que possuía poder para solucionar os problemas dos fieis. O padre estimulava as pessoas a levarem o lenço para casa, a colocarem sobre seu travesseiro, a esfregarem-no onde doesse e a levá-lo para quem precisasse de cura ou libertação, mas além do lenço tocar no Santíssimo também era um ―requisito‖ para se alcançar a benção. O momento em que o Santíssimo passa por entre os fiéis é um momento muito esperado e disputado. Eles acreditam que dele sai o poder de solucionar seus problemas, um pode transferível para quem os toca. Um exemplo observado pelo grupo evidenciou essa crença: um homem tentava com ansiedade tocar a carteira de trabalho no Santíssimo, mas o padre passou e ele não conseguiu. Uma fiel comovida pelo desapontamento dele foi até o padre, tocou com as mãos no Santíssimo e voltou até o homem, oferecendo suas mãos para que ele esfregasse a carteira. Ele entendeu e prontamente respondeu a oferta e esfregou a carteira nas mãos dela. Em entrevista, uma das freqüentadoras da missa carismática falou sobre o que achava da missa e dos motivos que a trouxeram à igreja. Dona Irene, de 65 anos, é freqüentadora assídua da missa de cura e libertação há três anos. Ela mora no Leblon, mas não se importa de vir até o Centro só por causa da missa, pois, para ela, vale muito à pena. Ela diz que sente Deus falando com ela nessa missa, e que a vida dela melhorou muito depois que passou a participar. Ela disse que é impossível alguém entrar desanimado e sair do mesmo jeito, por que a missa renova a nossa força. ―É muito bom. Ser católico é uma benção‖, disse a aposentada. Segundo ela, qualquer problema pode ser resolvido nessa missa e afirmou que o padre (novo) é maravilhoso, que sabe dar a palavra bem descontraída e de fé. Ela aprovou as mudanças que ocorreram de uns tempos para cá na igreja católica. Ela gosta muito desta missa e disse que ela é importante, aproxima mais as pessoas de Deus. Esta missa é bem diferente da missa compromissal da irmandade e das missas de celebração de domingo. A esfera de fé, apelo emocional e demonstrações de fé são maiores, assim como o apelo à cura e a libertação. Outros aspectos distinguem-na das reuniões e celebrações da irmandade, como a separação entre o padre, a Irmandade e os fiéis. Nesta missa, todos os fiéis compartilham de igual modo o templo. A estrutura da missa também é bem diferente da missa compromissal, realizada todo primeiro domingo do mês. Na missa de cura e libertação, como já foi mencionado, existe um CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 219 grupo de músicos — contratados — no altar que cantam enquanto a congregação ora e clama, ajudando a tornar o ambiente mais emocional. O padre não segue uma ordem da missa impressa no boletim, a missa é mais espontânea. As pessoas batem palmas, cantam, se ajoelham, choram, levantam as mãos, clamam e oram espontaneamente. A palavra do padre é mais descontraída, menos formal, tanto que em uma das missas observadas, o padre levou anúncios de jornais para o altar e comentou sobre propagandas de outras religiões ironicamente, como candomblé, umbanda, pessoas que jogam tarô, búzios. Os irmãos da irmandade não estavam presentes nas missas de cura observadas, apenas a irmã juíza Francisca, tesoureira da irmandade, e outra irmã. Tradição e modernidade coexistem na Irmandade Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos Como se pode ver, na Irmandade Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos convivem aspectos da tradição e da modernidade. Ariane dos Santos Lima e Áurea Paz Pinheiro procuram demonstrar, no texto ―Sentidos da Tradição: a experiência religiosa em Oeiras (1959 / 2008)‖, que até hoje algumas religiões mantém características tradicionais do rito e que podem atestar uma continuidade da relação com sagrado. As autoras apontam que o estudo das práticas tradicionais atinge um sentido amplo, que vai além da busca de transmissão de valores de geração a geração, mas de uma compreensão que estabelece diálogos com o contemporâneo. A tradição pode ser entendida como um vínculo forte por meio do qual a sociedade de hoje estabelece diálogo com as sociedades anteriores de natureza complexa. Esta relação constrói um movimento que comporta continuidades e rupturas. Neste sentido, a irmandade Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos expõe essa continuidade com o passado, mantendo aspectos que atravessaram séculos de tradição, um exemplo disso são as roupas obrigatórias na missa compromissal e os pré- requisitos para pertencer a irmandade. Esses critérios são renovados via ritos, reafirmando os laços entre os irmãos. Nesta linha, Sanchis aponta para um novo conceito de sincretismo, como algo próprio da natureza humana, é uma compreensão inerente. É algo universal que não se restringe à esfera religiosa. A CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 220 religião dos brasileiros é um campo que está em constante mudança, pois com o passar dos anos a própria religião perde sentidos tradicionais e antigas funções e ao mesmo tempo adquire novos. Assim mesmo mantendo as tradições, em meio a um contexto de secularização, que é definido por Peter Berger como um momento de perda do monopólio da religião e do estabelecimento de um pluralismo religioso, se apresenta na irmandade uma resposta a essa condição de competitividade entre as religiões sob um contexto plural: a missa de cura e libertação, que pode ser vista como resposta ao contexto de secularização. Essa dinâmica só postula a possibilidade da mudança na religião. A missa pode ser vista como resposta a uma ―moda‖ no ―mercado religioso‖ de cultos de cura e libertação, mas na Igreja Católica, o que tem trazido as respostas esperadas pelos introdutores da missa na igreja. Isso é o que Berger chama atenção como uma tentativa de diferenciação em meio a um campo religioso que tende a padronização. Sanchis contribui neste sentido, pois descreve o campo religioso atual composto por muitas religiões, durante séculos a sociedade que se denominou como católica era praticamente hegemônica. Esse cenário se modificou, pois hoje o cristianismo se tornou plural. A missa de cura e de libertação de certa forma pode ser vista como reflexo desta tendência a renovação atual, no entanto, mantendo a separação quanto à irmandade, cujos membros e juízes fazem questão de manter uma distinção e prezam por suas tradições, o que pode ser visto com uma tentativa de manter seu ―status‖ diferenciado dentro da igreja. Mara Regina do Nascimento chama atenção que o catolicismo definido pelo Concílio de Trento propunha uma religião mais subjetiva, livre das superstições pagãs. Esse catolicismo, regido por uma sólida e antiga tradição, acabou incorporando os significantes do catolicismo oficial e empreendeu-lhe novos significados. As afirmações ditas acima corroboram quando Durkheim nos aponta o rito como sendo um tipo de gesto social que constitui uma coleção de meios pelos quais a fé se cria e recria periodicamente. A religião é fato social, ou seja, ela emerge do social. O rito é um meio para a sociedade se dizer de si mesma. A sociedade também se faz e se refaz periodicamente enquanto sociedade. O fenômeno religioso é social. Ambas têm essa dupla sociogênese da religião pelo sagrado e do social pela consciência coletiva. Assim, a sociedade tida como um fenômeno religioso, ou seja, os mesmo mecanismos que a religião usa para se criar e manter a sociedade também usa e faz. A igreja surge a partir da necessidade de se repetir o rito, a fim de se recriar o sagrado e reviver a CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 221 efervescência inicial. Esse acesso repetitivo ao sagrado deve ser regulado e se canalizar a energia coletiva liberada. A religião tem um caráter dinamogênico e a missa de cura permite observar a efervescência que gera a canalização do sentido sagrado, a partir deste caráter termodinâmico que o social gera. O homem religioso experimenta um poder diferente da vida comum, que não se sente em si mesmo quando não se encontra em estado religioso. Ele pensa participar de uma força que o domina e ao mesmo tempo o sustenta. Ele acha que apoiado nela enfrenta as dificuldades. As condições para se estabeleça o caráter sagrado de algo, é a termodinâmica sociológica, baseada em forças que se desentranham dos homens unidos. Os indivíduos juntos liberam uma energia e se eleva a um grau de efervescência que caracterizam o mundo do sagrado. Na missa de cura, essa separação entre sagrado e profano pode ser percebida na consagração do pão azimo em hóstia, no qual após a consagração ele ganha um sentido sagrado e na consagração do lenço, que ganhou um sentido de sagrado após a benção do padre que atribuía certo poder ao lenço. Quanto ao contexto atual, Steil aborda o campo religioso na América Latina, como algo dinâmico, plural, diverso e secular, que se apresenta sob um texto plural, sobre o qual se pode estabelecer uma relação entre tradição e modernidade com o objeto de estudo desta pesquisa. Steil trabalha a questão do alargamento das fronteiras da religião para setores ate então impermeáveis ou avessos a ela. Ele apresenta algumas dimensões, que são comuns às‖ novas formas de crer‖ e às religiões populares. ―Procuramos destacar que ao mesmo tempo em que aspectos da tradição são reinventados no moderno, aspectos da modernidade são reincorporados e reavaliados pelo popular e a tradição‖ (STEIL, 2001, p. 122) Neste sentido, pode-se estabelecer uma relação com a missa de cura cuja qual pode ser vista como um aspecto de incorporação de novidades da modernidade na igreja católica e, ao mesmo tempo já se tornou uma tradição para alguns adeptos, que não deixam de ir, já que a missa há oito anos sendo celebrada na igreja. Neste sentido, os ritos da missa continuam os mesmo, mas com a inserção de algo moderno como o víeis emocional e louvores que estimulam a temática da cura e da libertação. O autor defende em sua análise o campo religioso atual como um processo ativo de produção de significados e de recomposição de suas forças internas. Ele reconhece na atualidade a importância da experiência religiosa e destaca que não há contraste entre moderno e tradicional, mas sim os arranjos e acomodações entre ambos como constituinte das experiências religiosas atuais. Antony CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 222 Giddens aponta que ao longo do tempo a modernidade reconstruiu a tradição, enquanto a dissolvia. O autor aponta que, a fim de compreender o significado de viver em uma ordem pós-tradicional deve-se questionar: o que é a tradição e quais são as características genéricas de uma ―sociedade tradicional‖. A tradição é definida pelo autor como uma orientação para o passado, que tem uma pesada influencia ou que é constituído para ter influencia sobre o presente, ao mesmo tempo, a tradição estabelece relação com o futuro, pois as práticas estabelecidas são utilizadas como uma maneira de se organizar o tempo futuro. É possível perceber a permanência da tradição na irmandade, já que a instituição mantém, mesmo no século XXI, esse caráter de distinção social, assistencialismo e mantém uma ligação com a sua historicidade relacionada à escravidão. Giddens assinala que a tradição em geral envolve um ritual, com isso seria possível propor que o ritual é parte das estruturas sociais que conferem integralidade às tradições. O ritual é uma forma de se garantir a preservação, conforme também apontou Durkheim. Todas as tradições, para Giddens, têm um conteúdo normativo ou moral que lhes proporciona um caráter de vinculação, ou seja, sua natureza moral está intimamente relacionada aos processos interpretativos por meios dos quais o passado e o presente são conectados. ―Tradição é repetição, e pressupõe uma espécie de verdade que é a antítese da ―indagação racional‖ (GIDDENS,1997, p. 85) O autor também diz que a tradição é impensável sem guardiões, porque estes têm um acesso privilegiado à verdade. Essa verdade, implícita na tradição, não pode ser demonstrada, salvo na medida em que se manifesta nas interpretações e praticas dos guardiões. Além disso, o autor aponta que a tradição sempre diferencia ―iniciado‖ e o ―outro‖, porque a participação no ritual e a aceitação da verdade formular são condições para sua existência e o ―outro‖ é visto como todo e qualquer um que esteja de fora. Pode-se dizer que as tradições praticamente exigem que haja uma separação dos demais. Pode-se notar isso na separação entre membros da irmandade e a assembléia na missa compromissal. Outras ―grandes tradições‖, mais especialmente ―as religiões exemplares‖, tinham mais zonas indistintas de inclusão e exclusão. Mas a relação entre a tradição e a identidade sempre tornou as categorias de amigo e estranhos (não necessariamente inimigo) extremas e distintas. Neste sentido os membros da Irmandade são vistos como repositórios dessa herança histórica, através de elementos como ritos, símbolos, devoção aos santos, assistencialismo e da própria reprodução da fé católica. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 223 Além disto, a modernidade trouxe novidades a igreja na figura da missa de cura e libertação o que não anulou o necessariamente renovou a mesma. Isto prova que a tradição e a modernidade não são necessariamente antagônicas. Considerações finais As Irmandades ao longo da história tiveram um papel de inserção dos grupos excluídos na lógica da estrutura social do Brasil, em uma época, em que a religião se constituía em um importante instrumento de hegemonia política e social. Em especial as Irmandades dos Negros, no qual se encontra a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio de Janeiro, cuja qual carrega consigo uma herança histórica associada à inserção do negro. Esta Irmandade permaneceu mesmo em contexto de pluralismo religioso e secularização por meio de suas tradições. Conforme foi apresentado a Irmandade sofreu adaptações e atualizações ao contexto da modernidade, porém mantiveram um vinculo com o passado ainda muito vivo. Essa conexão com o passado pode ser percebida pelos seus símbolos, vestuários, ritos, missas compromissais, estandartes, além de certa autonomia em relação à igreja, realizando a missa de consciência negra e assim reafirmando sua tradição. Ao mesmo tempo esse espaço religioso que preza por suas tradições, tenta dialogar com o contexto da modernidade que se apresenta, na qual o sensível e o corporal têm mais importância, que os dogmas e as verdades religiosas. Nesta lógica se insere a missa de cura e libertação dentro dessa igreja que é fortemente marcada por esse hanso de tradição. Sendo assim percebemos que não existe uma renovação no quadro de participantes da Irmandade e nem em suas tradições, uma vez que seus integrantes afirmaram que existe uma separação entre esta missa carismática e a irmandade, porém ambos podem conviver na mesma igreja, sem que um anule o outro ou que gerem conflitos. Pelo contrário, na verdade a missa se insere na lógica da irmandade com a finalidade de atrair fiéis e arrecadar fundos para manutenção do templo. Assim o estudo de caso evidenciou a possibilidade da convivência entre tradição e modernidade mostrando que isto pode ser visto como conseqüência de um contexto de pluralidade religiosa de quebra do monopólio da igreja, visto que essa situação de tradição é modernidade é algo do novo, do atual. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 224 Referências Bibliográficas ABREU, Martha. Os Casos do Divino. In: O império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830 – 1900. 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Citam-se as obras de Blancarte (2008), Fischmann (2008), Bobbio (2002), quanto à laicidade do Estado, e De Swann (1988) quanto às estratégias dos grupos religiosos diante do poder público, classificando três tipos de estratégias: a maximalista, a pluralista e a minimalista. Diante de uma pesquisa documental com levantamento de declarações de confissões religiosas foi constatada a falta de consenso em torno do tema e que os embates no campo religioso se refletem na formulação de políticas públicas sendo freqüentemente desconsiderados os princípios da laicidade do Estado e da liberdade de crença religiosa no Brasil. Palavras-chave: confissões religiosas; laicidade do Estado; escola pública. Introdução O presente trabalho tem como principal objetivo analisar os posicionamentos de diferentes grupos religiosos quanto à inserção da religião no espaço público e em especial no campo educacional brasileiro, considerando o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião e o princípio de laicidade do Estado. É problematizada a maneira como alguns segmentos religiosos se inserem na educação pública de modo a propagar seus ideais, desconsiderando a heterogeneidade religiosa dos sujeitos no ambiente público mantido pelo Estado. Também se questiona o argumento de que haja um consenso entre os religiosos quanto à temática. Assim são propostos os seguintes objetivos específicos: 131 Mestrando em Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - PPGE-UFRJ - e-mail: [email protected] CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 226 Elencar e classificar os posicionamentos de diversas confissões religiosas no Brasil quanto à atuação na educação pública. Discutir a relação entre o crescimento ou queda no número de adeptos destas religiões e as estratégias adotadas quanto à inserção no espaço público. Refletir sobre a neutralidade do Estado frente às religiões numa sociedade democrática e sobre os desafios diante das diferentes formas de crer e de não crer que emergem na atualidade. 1. Laicidade do Estado e Estratégias de Grupos Religiosos Muitos autores analisam os Estados Democráticos de Direito e a relação destes com a religião: Blancarte (2008), mostra que o termo laicidade caracteriza principalmente a forma como a esfera política legitima sua atuação por meio da soberania popular e não pelo poder religioso; Fischmann (2008), alerta quanto aos perigos de grupos religiosos tentarem garantir a hegemonia para si nas decisões públicas, gerando muitos conflitos com os que resistem a esta hegemonia; Bobbio (2002) distingue a laicidade de uma atitude anticlerical, ressalta o caráter neutro do Estado e mostra a importância da tolerância e da liberdade religiosa; De Swann (1988) afirma que desde a fundação dos Estados Nacionais as confissões religiosas assumem diferentes estratégias diante da possibilidade de atuação junto à educação pública. Estas estratégias são a maximalista, a minimalista e a pluralista. Na estratégia maximalista o grupo religioso percebe-se forte o suficiente para manter seu monopólio educacional, numa rede nacional unificada. Esta posição necessita sempre de um forte apoio estatal. Assim a confissão assume o monopólio da educação, legitimada pelo Estado, controlando toda educação elementar. São excluídos todos os credos diferentes do hegemônico e uma religião oficial dirige o setor educacional do país. Na estratégia minimalista os grupos religiosos religiosos não se percebem com apoio do Estado para assegurar o monopólio na educação e lutam contra os demais segmentos que poderiam fazer proselitismo em suas áreas de influência, optando por se retirar da esfera pública, com total abstinência na educação estatal, apoiando-se apenas nas elites locais. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 227 Na estratégia pluralista as denominações reivindicam apoio do Estado, obtendo privilégios sobre as demais. Nesta posição o Estado apóia as igrejas seguindo alguma regra para distribuição de subsídios no campo educacional. Os credos disputam espaço junto ao poder estatal, havendo sempre a tendência dos grupos de maior poder se sobressaírem e obterem certa liderança, causando insatisfações por parte dos minoritários. Esta classificação, aliada ao referencial teórico sobre a laicidade do Estado, ajuda a compreender os desafios à democracia na atualidade e os diferentes interesses dos religiosos em relação à educação pública. 2. Os Grupos Religiosos e a Educação Pública no Brasil A população brasileira não se mostra homogênea em termos religiosos. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV, 2011) intitulado Novo Mapa das Religiões, atesta que nos últimos anos ocorreu uma queda no número de católicos, aumento de número de evangélicos, de pessoas sem religião e também de pessoas de religiões não cristãs e orientais. Estes dados mostram que religiões anteriormente dominantes perdem espaço, alterando estratégias a fim de manterem seu status. Outras que antes eram minoritárias ganham vasto crescimento e assumem estratégias para ampliarem sua influência. A presente análise propõe uma pesquisa documental com um levantamento de documentos (declarações de fé, doutrinas, estatutos, etc.) e declarações de representantes de confissões religiosas de forma a classificá-los de acordo com a estratégia exposta. O levantamento realizado no período de agosto de 2011 a março de 2012 tem como principal meio de acesso a busca em endereços eletrônicos na internet. Para a busca foram usadas as nomenclaturas encontradas no Novo Mapa das Religiões (FGV,2011). Os resultados seguem conforme a classificação abaixo: Estratégia Maximalista: Igreja Católica Apostólica Romana; Estratégia Minimalista: Espírita Kardecista; Religiões afro-brasileiras; Tradições indígenas; Igreja Evangélica Batista; Igreja Evangélica Metodista; Estratégia Pluralista:Igreja Evangélica Assembléia de Deus; Igreja Luterana; Religião Judaica; Igreja Congregacional; Religião Islâmica; Igreja Católica CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 228 Apostólica Brasileira; Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias; Igreja Universal do Reino de Deus. Percebe-se que os posicionamentos não são fechados e únicos mesmo dentro das confissões religiosas. Muitas destas confissões tendem a alterar suas estratégias conforme o contexto político e também os interesses próprios. 2.1. Estratégia Maximalista A Igreja Católica Apostólica Romana traz um histórico de atuação maximalista, estando por quatro séculos aliada ao Estado Brasileiro, monopolizando a educação pública. Esta denominação continua mostrando-se como a maior interessada na presença da religião na escola e tende a uma estratégia pluralista diante de sua perda de status junto ao Estado e também das mudanças no perfil religioso da população. Ainda assim lidera os demais segmentos nas disputas pela inserção da religião na escola pública. Sua reivindicação principal é a manutenção da legalidade da disciplina ensino religioso nas escolas públicas do país. Recentemente, em 2008 o Brasil assinou a Concordata Brasil Vaticano, que no artigo 11º defende de forma clara este ensino: Artigo 11 – A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa. Parágrafo 1º – O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, [...] sem qualquer forma de discriminação. A crítica a este documento, exposta de maneira contundente por Cunha (2009), mostra que o privilégio concedido por este documento fere o princípio da igualdade entre as religiões. Ressalta-se que a Igreja Católica Romana tem conseguido muitas vitórias ao se articular através do Fórum Permanente de Ensino Religioso (FONAPER) onde se mostra diretiva diante das demais religiões cristãs e influencia o campo político na formulação das políticas púbicas sobre o ensino religioso. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 229 É notável a estratégia maximalista, mesmo com tendência pluralista, numa época onde ocorre o declínio dos que se declaram católicos. Com a perda de adeptos, a inserção e a permanência na educação são buscadas de maneira a alcançar as massas com valores desta denominação religiosa. 2.2. Estratégia Minimalista O Espiritismo Kardecista tem clara posição minimalista expressa numa recomendação oficial da Federação Espírita Brasileira, por deliberação de seu Conselho Federativo Nacional, elaborada em novembro de 1998. Neste documento há uma crítica à legislação sobre o ensino religioso por considerá-la inconstitucional, sendo solicitada junto à Ordem dos Advogados do Brasil uma argüição de inconstitucionalidade. A Federação Espírita aguarda providências e recomenda aos espíritas que não matriculem seus filhos nas aulas de ensino religioso. Assim a posição dos espíritas é abertamente contrária à presença da religião nas escolas públicas, tendo uma clareza rara entre os segmentos pesquisados. Quanto às Religiões Afro-Brasileiras registra-se poucas entidades formais e institucionalizadas. Ainda assim, a Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro (FENACAB) institui um Código Nacional de Ética e Disciplina Litúrgica da Religião Afro-Brasileira, sendo possível verificar a tendência a uma estratégia minimalista. Neste documento, no artigo 41 encontra-se a defesa de um ―Estado democrático laico de direito‖. O entendimento aqui é uma aparente separação entre a instituição religiosa e o Estado. Também a Confederação Internacional União das Tradições da Cultura Afro Brasileira (FIUTCAB) atesta em seu código de ética o resgate aos princípios de liberdade de consciência e crença ditados pela Constituição Nacional. Nota-se que os segmentos religiosos representados por estas entidades têm pouco ou mesmo nenhum espaço nos debates acerca da laicidade da educação. Ainda numa audiência pública no Estado de São Paulo, no ano de 2002, o Conselho da Comunidade Negra do Estado de São Paulo e Instituições de Religiões Afro Brasileira é registrado o posicionamento contrário à implantação da disciplina, sugerindo a alteração do texto legal. Também não se encontra documentos oficiais de Religiões Indígenas sobre a presença religiosa na educação. Ainda assim existe o registro de um pronunciamento de um representante na audiência pública sobre o Ensino Religioso no Estado de São CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 230 Paulo. O representante do Comitê Inter-tribal e Nações Indígenas / Aldeia Jaraguá (SP) deu um pronunciamento onde alerta para o fato do ensino religioso servir para ―limpar a religião‖ de modo que o índio ―esqueça sua religião, sua cultura, a sua língua e toda sua identidade‖. Assim este representante se mostra temeroso com o fato de se retornar a um erro antigo no Brasil, com o desrespeito as religiões dos povos indígenas e imposição de uma cultura hegemônica. Aqui temos a posição minimalista deste grupo de nações indígenas, que historicamente passaram por ampla ofensiva de dominação ideológica por parte dos colonizadores e que ainda hoje, sofrem com pouca representação política. Quanto à Igreja Evangélica Batista, em seus documentos oficiais, a abordagem é notadamente minimalista, defendendo um Estado laico, onde Igreja e Estado agem de forma separada. Das seis denominações batistas listadas na pesquisa da FGV, registramse documentos da Convenção Batista Brasileira e da Convenção Batista Nacional, ambas ligadas à Aliança Batista Mundial. O documento denominado ‗Princípios Batistas‘ afirma como ―inalienável a liberdade de consciência e a plena liberdade de religião de todas as pessoas‖ e que Igreja e Estado ―devem permanecer separados, mas igualmente manter a devida relação entre si e para com Deus‖. Esta compreensão, reafirmada em outros documentos, defende a separação mas deixa brechas para algum tipo de proximidade, diante da relação do Estado ―para com Deus‖. Em artigo publicado no Jornal Batista em 2008, Oswaldo Luiz Ribeiro, professor do Seminário Batista do Sul do Brasil, apóia o Estado Laico de Direito e diz que ―Nossa pátria é a República. Nosso espírito, a Democracia. Não é por outra razão que os batistas carregam, em seu DNA, o cromossomo da separação entre Estado e Igreja‖. Ainda assim, na audiência pública no Estado de São Paulo o representante dos batistas prestou a seguinte afirmação: Pensamos que o ensino deveria ser laico, como laica é nossa Constituição e o Estado Brasileiro, mas diante das circunstancias, entendemos que o ensino deve ser trabalhado não a partir da idéia de catequização, nem da discriminação [...] O Ensino Religioso deve ser trabalhado com o objetivo da formação da cidadania que envolve valores morais e valores éticos. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 231 Com esta declaração a posição batista oscila entre a defesa de uma laicidade que signifique separação entre igreja e Estado (minimalista) e uma possibilidade de abordagem pluralista quanto à atuação no espaço público. Ao pesquisar a Igreja Metodista Wesleyana, percebe-se que esta denominação vem mostrando uma tendência mais minimalista em relação à sua atuação na esfera pública. Prova disso é que diante da Concordata Brasil Vaticano (2008), o Colégio Episcopal da Igreja Metodista emitiu um documento onde afirma o seguinte: ―Proclamamos a importância constitucional do Estado laico, ou seja, levando-se em consideração a liberdade de escolha religiosa. Igualmente, defendemos a separação entre o Estado e a Igreja‖. Também ao se pronunciar, em dezembro de 2010, sobre o Plano Nacional de Direitos Humanos, no documento intitulado Pronunciamento do Colégio Episcopal sobre o PNDH-3, esta denominação afirma que a Igreja Metodista respeita outras tradições religiosas que coexistem em uma sociedade plural, como a brasileira. Nesse sentido, a valorização da laicidade do Estado é fundamental, como garantia de que todos e todas, perante o Estado, recebam igual consideração quanto à sua cidadania plena e inalienável. Este grupo limitando-se assim às instituições confessionais e comunitárias. Porém nos ―Cânones da Igreja Metodista‖ (2007/2011) há uma seção que cita as escolas oficiais do Estado e universidades como campo de atuação da igreja metodista. Abre-se assim um espaço para atuação no ensino público, tendo uma abordagem oscilando entre minimalista e pluralista. 2.3. Estratégia Pluralista A Igreja Evangélica Assembléia de Deus assume uma postura pluralista exposta no documento denominado Diretrizes e Bases Normativas do Conselho de Educação e Cultura da Convenção Geral das Assembléias de Deus do Brasil, de 25 de fevereiro de 2011. O 7º artigo deste documento diz que a educação religiosa se realiza, dentre outros espaços, ―nas Escolas Públicas”. Mais adiante no artigo 127, que trata especificamente sobre o ensino religioso nas escolas públicas, a orientação para as instituições eclesiásticas é que ―utilizem os seus direitos oferecidos pela Constituição CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 232 Brasileira e pela Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Fundamental e Médio, para levar o Ensino Religioso às Escolas Públicas‖. Desta forma se percebe o valor dado a atuação na escola pública, levantando a bandeira do apoio e incentivando seus fiéis a valerem-se do direito outorgado em lei. Deve-se considerar o impacto desta posição oficial visto que esta denominação se encontra como a maior denominação evangélica, com 5,77% da população. De igual modo a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (ICLB) traz uma posição favorável que reflete a possibilidade de atuar no campo político, assumindo a estratégia pluralista. No documento intitulado Diretrizes da Política Educacional da ICLB, de novembro de 2003, o ensino religioso é tido como ―compromisso fundamental da igreja‖, com responsabilidade desta igreja no ―acompanhamento e a inserção nos espaços de discussão, implantação e implementação das políticas públicas educacionais, e principalmente o envolvimento com aquelas que tratam da dimensão religiosa do ser humano‖. Abre assim o campo de atuação junto ao Estado e estimula a participação em prol de políticas que se relacionem com a dimensão religiosa. Quanto à Religião Judaica, na ausência de documentos oficiais disponíveis, citase o pronunciamento do vice-presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro durante a sanção da lei sobre o ensino religioso em escolas públicas do rio de Janeiro (2011), que expressou uma posição mais pluralista ao afirmar que: ―— Essa lei representa o respeito religioso. Em um estado onde existe democracia é essencial que todas as religiões tenham voz‖. Porém também se registra a seguinte declaração do Rabino Henri Sobel, da Federação Israelita de São Paulo/Congregação Israelita Paulista, numa audiência pública no Estado de São Paulo (2002): Sou categoricamente contra o Ensino Religioso nas escolas públicas [...]. Ao tornar o Ensino Religioso obrigatório nas escolas públicas e permitir a alguns alunos não assistirem às sentirão estigmatizadas, diferentes das demais, justamente numa fase da vida em que é tão importante para a criança sentir-se integrada ao grupo. Percebe-se que a estratégia deste segmento religioso depende da representação regional, oscilando entre a pluralista e a minimalista. Outra denominação a adotar uma estratégia pluralista é a Igreja Congregacional do Brasil que não traz qualquer documento quanto à atuação em escolas públicas mas CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 233 em seu Estatuto abre o espaço para receber recursos do Estado. Numa estratégia pluralista, é previsto que o patrimônio da igreja seja composto por ―subvenções e doações públicas ou privadas‖ e remunerações ―por parte de entidades públicas ou privadas, que aceitem subsidiar ou patrocinar a realização das respectivas atividades‖. Esta Igreja deixa a possibilidade de ser subsidiada pelo Estado, afinando-se com as propostas de inserção de religiosos em entidades públicas, permitindo que as demais confissões também alcancem tais privilégios. Nos sites oficiais de representantes da Religião Islâmica também não são expostas posições sobre o tema. No entanto as declarações dos líderes regionais dão pistas de que adotam a estratégia pluralista. O presidente da Federação Muçulmana do Rio de Janeiro, Sheik Ahamad, durante a sessão pública que sancionou a lei sobre o ensino religioso no município do Rio de Janeiro (2011) declara o seguinte: ―Desde o inicio, a Federação Muçulmana apoiou esse processo. Acho que acima da tolerância religiosa deve haver um respeito religioso. E trazer esses ideais de respeito, de pluralidade, para o ambiente escolar é sempre muito importante‖. Desta forma atuam junto ao Estado e permitem a atuação de outros grupos. Quanto à Igreja Católica Apostólica Brasileira percebe-se que a denominação ―Igreja Católica‖ tem algumas variáveis, não se restringindo à Católica Apostólica Romana. A pesquisa da FGV já classifica oito denominações diferentes que utilizam a nomenclatura de ―Católica‖. Assim a Igreja Católica Brasileira traz em seu site o Estatuto da Igreja, que traz no artigo 4º a finalidade acessória de ―promover serviços educacionais em todos os níveis e modalidades, especialmente o ensino religioso cristão‖. Mais à frente, no artigo 28, é previsto no patrimônio da igreja que haja ―doações, dízimos, legados e subvenções públicas ou privadas‖, deixando a possibilidade de contato com subvenções públicas a esta igreja, tendendo assim à uma estratégia pluralista. Quanto ao posicionamento da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, um e-mail de um de seus representantes afirma o seguinte: A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias não se opõe de forma alguma ao ensino religioso nas escolas. [...]. Nós respeitamos e somos extremamente amigáveis com todos, apenas não mudamos nossas crenças por causa do ensino. Temos nossa própria forma de adorar a Deus, mas não ha problema algum de recebermos esse ensino na escola [...].A respeito de política, a Igreja não tem nenhum posicionamento [...]. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 234 Assim a posição aparenta ser pluralista, visto que não se opõem à prática do ensino religioso. A ausência de posicionamentos políticos claros não chega a denotar uma posição minimalista, visto que não se manifesta contrária a entrada da religião no espaço público via outras denominações. A Igreja Universal do Reino de Deus não deixa claro em sua página na internet quanto ao seu posicionamento sobre a atuação na educação pública. Porém em matéria de 11 de março de 2012, disponível no site oficial do Jornal Folha Universal, é mostrada a importância da participação política dos fiéis desta denominação. Na matéria encontramos a seguinte declaração: Os políticos vinculados ao Partido Republicano Brasileiro (PRB) seguem os preceitos que norteiam a atuação da Igreja Universal e lutam pela aprovação de leis que beneficiam a população. Lei das Religiões: A bancada do PRB teve atuação decisiva na aprovação do Projeto de Lei 5.598, denominado de Lei Geral das Religiões, que estende a todos os grupos religiosos existentes no País os privilégios legais concedidos à Igreja Católica e a seus Institutos Eclesiásticos, tais como imunidade tributária, "blindagem" trabalhista, inserção de ensino religioso confessional, obrigatoriedade da reserva de espaços públicos para fins religiosos, preservação dos patrimônios das Igrejas financiada pelo Estado, entre outros. Desta forma percebe-se que a atuação desta denominação no meio político é forte, inclusive articulando religião e partido político. Nota-se também o forte interesses em se obter os mesmos privilégios que tem a Igreja Católica. Assim a estratégia pluralista é usada na disputa por espaço junto ao poder Estatal. Alguns dos posicionamentos observados trazem indefinições, não podendo ser classificados quanto à sua atuação junto ao Estado, como o caso da Testemunha de Jeová, da Igreja Messiânica Mundial, da Seicho-no-ie, entre outras, que não apresentam posições claras disponibilizadas ao público. Também não há posições definidas da Igreja Presbiteriana do Brasil e do Colegiado Buddhista Brasileiro cujos representantes afirmam, via e-mail, não haver conhecimento de posições oficiais sobre o tema. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 235 Conclusões Nota-se o interesse de alguns segmentos, principalmente os que historicamente têm maior influência no país, em se inserir ou se manter no espaço público e conservar privilégios junto ao Estado. Também se percebe que os grupos religiosos minoritários tendem a obter pouca voz na cena política, sendo abafados por discursos hegemônicos e totalizantes. Tais discursos desconsideram as posições minimalistas de muitos. Percebe-se que os defensores de um Estado Laico não têm visto a laicidade como a busca por uma sociedade anti-religiosa. Pelo contrário, a laicidade é tida como respeito a todas as formas de crença ou não crença, de modo que o Estado democrático governe de forma igualitária e justa. Aos religiosos são garantidas as liberdades de crença, culto e expressão. Porém esta liberdade refere-se ao âmbito privado, sem que se misture a religião com a esfera pública do Estado. A postura do Estado e de seus servidores é a neutralidade em matéria religiosa, sem privilegiar qualquer segmento, visto que todos têm liberdade de escolha religiosa num Estado Democrático de Direito. Porém, como constatado pela presente pesquisa, a escola continua sendo almejada como meio de inserção junto ao poder público, visto que é uma instituição de alcance massificado no Brasil. As disputas por este espaço culminam com a legislação acerca do oferecimento da disciplina ensino religioso nas escolas públicas brasileiras. Constata-se que mesmo sobre este ponto persiste uma falta de consenso entre os próprios religiosos. Fica assim os desafios de alcançar a igualdade de tratamento de todas as religiões diante do Estado e também de defender a liberdade de escolha religiosa, sem que haja imposições ou discriminações diante desta escolha. Referências Bibliográficas BLANCARTE, Roberto. (Coord.). Los retos de la laicidad y la secularización en el mundo contemporáneo. México, D. F.: El Colegio de México, 2008. BOBBIO, Norberto. Cultura Laica e Laicismo. In: Diário El Mundo, Espanha:17.11.1999. CUNHA, Luiz Antônio. A EDUCAÇÃO NA CONCORDATA BRASILVATICANO. Revista Educ. Soc., Campinas: vol. 30, n. 106, p. 263-280, jan./abr. 2009. DE SWANN, Abram. In Care of the State: health care, education and Welfare in Europe and the USA in the modern era. London: Polity Press, 1988. 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SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 239 ACOLHER E/OU DISCRIMINAR: A CARTA DA CONGREGAÇÃO DA FÉ SOBRE HOMOSSEXUALIDADE E A REALIDADE DAS TRAVESTIS NA BAIXADA FLUMINENSE Luciano Marques da Silva132 Palavras-chave: Travestismo; Diversidade Sexual; Religiosidade; Resumo: Este trabalho analisa a ―Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais‖ da Congregação para Doutrina da Fé sob a luz do cotidiano de Karine, uma travesti da Baixada Fluminense. Apoiamo-nos em escritos sobre sexualidade humana de Michel Foucault e nos estudos sobre a similaridade entre o cérebro de mulheres heterossexuais e homens homossexuais desenvolvidos no Departamento de Neurociência do Instituto Karolinska (Estocolmo, Suécia), de autoria de Ivanka Savic e de Per Lindström. Nosso objetivo é entender o comportamento das travestis já que é justamente no dia-a-dia deste grupo social que encontramos os níveis mais absurdos de preconceito, desrespeito e injustiças. Trazendo assim para o debate uma re-interpretação da carta aos bispos e da orientação sexual humana. Introdução A homossexualidade é um tabu e ainda é vista por muitos como uma doença. Tratar deste tema complexo é sustentar um debate onde o respeito às diferenças deve ser princípio norteador. Nas últimas eleições presidenciais estes dois temas configuraram um debate sensível no seio de nossa sociedade. A mídia, as igrejas cristãs e o movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) travaram um debate que resultaram em um posicionamento autoritário por parte da presidenta eleita. Foi cancelado o programa em que seria distribuído nas escolas públicas do ensino médio o ―kit anti-homofobia‖. Acabaram, por motivos egoístas e infundados, com anos de trabalho que culminariam com o debate nas escolas públicas e o início de um programa maior pela criminalização da homofobia e o fim das violências contra homossexuais a partir da educação e da publicidade. 132 Discente UFRRJ-IM: Letras: Português/ Literaturas/ Espanhol; Bolsista do Programa de Educação Tutorial e Conexões de Saberes do MEC/Sisu; e Pesquisador de Diversidade Sexual e Religiosidade. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 240 O presente trabalho foi estruturado de uma forma em que possamos efetivar um discurso de sensibilização e respeito às diferenças. É necessário primeiramente apreender o discurso da Igreja Católica. Para tanto analisaremos os escritos desta para os bispos de sua igreja através do documento intitulado “Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais”. A trajetória do jovem André de Lima Rocha que nasceu em 16 de maio 1986 que sai de casa na Baixada Fluminense e vai para Itália. Configurando uma travesti que, às custas da prostituição luta para alcançar uma identidade motivo de reflexão neste estudo. Os escritos de Michel Foucault sobre sexualidade e as últimas pesquisas do Instituto Karolinska sobre a similaridade entre os cérebros de uma mulher heterossexual e o homem homossexual completam o debate presente neste trabalho. Religiosidade e o Discurso da Congregação da Fé sobre Homossexualidade Na Enciclopédia Britânica de 1974, Antônio Xavier Teles, catedrático de Filosofia do Colégio Pedro II, diz que religiosidade é: uma das mais antigas manifestações do homem. Sua essência consiste num ato ou atitude de propiciação e conciliação dos poderes divinos, que o homem acredita capazes de dirigir e controlar o curso da natureza e da vida humana. Esses poderes sobrenaturais sempre causaram medo e um sentimento de reverência à consciência primitiva. O homem, cercado por uma natureza selvagem e desconhecida, criou essas entidades que, para ele, dirigiam cada fenômeno do universo. Para aplacá-las, ofereciam-lhes orações e sacrifícios ou veneravam-nas com rituais mágicos. Com isto, estabeleceu o homem dois planos: o da natureza e o do sobrenatural, o sagrado. O sagrado é, pois, o objeto da religião. (AXT, 1974, 449) A palavra religião tem sua origem latina (relegio e religare) e configura-se o ato de religar o homem à divindade. Um fenômeno que é próprio do homem, independente da orientação sexual. Mas, é visível o posicionamento de determinadas religiões que se calam principalmente quando o assunto é homossexualidade. Como um fenômeno construído é preciso repensar as religiões na pós-modernidade. Um novo sujeito CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 241 travestido e que não opta pela prostituição povoa nossa realidade. Como acolhê-los no seio as comunidades eclesiais? Até quando vamos alimentar nosso discurso excludente? O Vaticano posicionou-se em relação ao tema escrevendo uma “Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais” em que esclarece que a Igreja acolhe e respeito o homossexual, mas condena a prática dos atos homossexuais “levando em consideração a distinção feita comumente entre a condição ou tendência homossexual, de um lado, e, do outro, os atos”133. Ao analisarmos o documento percebemos que a Congregação para a Doutrina da Fé se baseia em textos bíblicos (Levítico 18,22 e 20,13; Gn 19,1-11; I Cor 6,9; Rm 1,18-32; 1 Tm 1,10) para entender que “particular inclinação da pessoa homossexual, embora não seja em si mesma um pecado, constitui, no entanto, uma tendência, mais ou menos acentuada, para um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral. Por este motivo, a própria inclinação deve ser considerada como objetivamente desordenada”134. A Igreja vê uma desarmonia nas relações homossexuais, dizendo que no sacramento do matrimônio, desígnio divino da união do homem e da mulher, é união de amor e capaz de dar a vida. Somente na relação conjugal o uso da faculdade sexual pode ser moralmente reto. Podemos entender a posição do ponto de vista externo estereotipado. No relacionamento homoafetivo o que se vê é a união entre iguais. Para a Igreja uma pessoa que se comporta deste modo age imoralmente. O que dizer dos casais gays que se estabelecem num a relação de respeito e dignidade? Como dizer para uma travesti que ela está errada ao se identificar com uma mulher sendo homem? Quais seriam as bases capazes de permitir homossexuais se unirem? Embora a igreja condene os atos, faz um apelo diante da violência a que esta população está sujeita dizendo que “as pessoas homossexuais são objetos de expressões malévolas e de ações violentas. Semelhantes comportamentos merecem a condenação dos pastores da Igreja onde quer que aconteçam. Eles revelam uma falta de respeito pelos outros”.135 Para a Igreja a tendência homossexual, em certos casos, não é fruto de uma opção deliberada e que a pessoa homossexual não tem outra alternativa, sendo obrigada 133 “Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais” § 3. “Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais” §3. 135 “Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais” § 10. 134 CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 242 a se comportar de modo homossexual. Por conseguinte, afirma que, em tais casos, ela agiria sem culpa, não sendo realmente livre. A partir deste posicionamento podemos indicar uma diferença clara sobre a origem da homossexualidade que estaria entre opção de ser e a percepção de ser. A orientação sexual é uma construção social, mas não está livre das formatações essenciais e constitutivas geneticamente. É estranho que não se tenha percebido o mundo que existe entre esse termo, ―sexualidade‖, em todo lugar em que ele começa em que simplesmente começa a adquirir uma substância biológica – e eu o farei observar que, se há um lugar em que podemos começar a perceber o sentido que isso tem, é, sobretudo do lado das bactérias – o mundo que existe entre isso e o que Freud enuncia sobre a relações reveladas pelo inconsciente. Quais quer que possam ter sido os tropeços a que ele mesmo sucumbiu nesse campo, o que Freud revelou do funcionamento do inconsciente nada tem biológico. Não tem direito de ser chamado de sexualidade senão pelo que chamamos de relação sexual. E isso é completamente legítimo, aliás, até o momento em que nos servimos do termo ―sexualidade para designar uma outra coisa, a saber, aquilo que se estuda em biologia: o cromossomo e sua combinação XY ou XX, ou XX, XY. Isso não tem absolutamente nada a ver com aquilo de que se trata, e que tem um nome perfeitamente enunciável: as relações entre homem e mulher. Talvez vocês saibam que o transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito energético de passar, seja por que meio for, para o sexo oposto, nem que seja submetendo-se a uma operação, quando se está do lado masculino. (LACAN, 2009, 30) Não podemos precisar que homossexual optou, ou qual homossexual realmente apresenta em si a essência e a construção social de ser gay. É evidente que as travestis, por apresentarem uma carga acentuada de feminilidade a que um homem poderia conter, são visivelmente homossexuais no mais alto perfil gay. Há outras identidades gays. Peter Fry em seu livro ―O que é Homossexualidade?‖ nos situa neste universo: Um homem de Belém, por exemplo, pode tranquilamente manter relações sexuais com uma pessoa que considere uma bicha. Para ele, não tem nada de diferente nesta atividade. Nem por isso ele é menos homem. Até poderia se considerar mais macho do que nunca. Dá mesma forma, um jovem rapaz na cidade de São Paulo poderia manter uma relação sexual com um senhor mais velho em troca de alguns cruzeiros. Como nosso amigo paraense não é menos homem por isso e jamais se pensaria como homossexual. Na mesma cidade de São Paulo, um homem universitário, militante do movimento CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 243 homossexual, pode descordar com o jovem prostituto e afirmar que ele é um homossexual, só que não sabe, não tem consciência. Este mesmo rapaz poderia chegar a dizer que todos os homens tem ‖porção mulher‖ e que todo mundo tem um lado homossexual mesmo se latente e escondido. Esta mesma opinião poderia ser emitida por uma psicanalista ―progressista‖. Outro psicoterapeuta ―conservador‖, poderia dizer que quem pratica o homossexualismo é um doente mental e que é capaz de ser curado. Se este terapeuta fosse de tendência behavioristas, poderia receitar terapia de aversão. O ―paciente‖ seria sujeito a náusea quimicamente induzida ao mesmo tempo que vê numa tela a fotografia de um homem nu. Ao se recuperar da náusea e ao se sentir mais tranquilo e contente, aparecia uma fotografia de uma bela mulher. Nesta mesma cidade de São Paulo, poderíamos encontrar um espírita que acredita que os homossexuais masculinos são o resultado da encarnação de um espírito feminino num corpo masculino, enquanto um candoblezeiro poderia pensar que era homossexual por ser filho da orixá feminina Iansã. Um delegado de polícia poderia pensar que os homossexuais são uma ameaça a ordem pública e instaurar uma operação limpeza no centro da cidade, atemorizando os homossexuais na rua com prisões e violências ilegais. Outro advogado poderia gastar tempo e energia de graça para libertar essas pessoas partindo da firme convicção de que homossexuais não são mais perigosos que quaisquer outra pessoa. O nosso amigo militante poderia achar que gay ―is beautifull‖ é tão absolutamente simpático e ―normal‖ quanto qualquer outra pessoa e passear na avenida Ipiranga de mãos dadas com seu amante. Outra pessoa poderia sentir a mais abjeta vergonha da sua vontade de ter relações sexuais com outros do mesmo sexo e restringir sua atividade sexual à escuridão do cinema ou anonimato de um banheiro público ou a nada. Como saber o que é a homossexualidade quando nesta sociedade brasileira existem tantas opiniões contraditórias e malencontradas a respeito do assunto? Aonde começar? Em quem acreditar? (FRY e MACRAE, 1985,8) Karine ou Andre: um caso de Travestismo na Baixada Fluminense André de Lima Rocha nasceu em 16 de maio de 1986. Nome que está na certidão de nascimento de Karine, mais uma travesti assassinada na Baixada Fluminense. Nasceu e morreu em Itaguaí, mas foi na Itália onde ele realmente nasceu como ―mulher‖. Não se sabe em que momento ele se percebeu diferente e lutou para construir sua identidade feminina. Não chegou a fazer a cirurgia de troca de sexo, mas ao voltar ao Brasil, apresentava-se como Karine. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 244 Há relatos que já na infância André dançava caipira vestido de noiva. A mãe e a companheira declararam seguir o menino até a apresentação que seria em um bairro próximo ao que viviam. Ao perguntarem pelo menino, todos não hesitavam em dizer que a noiva era ele. Ambas ficaram estarrecidas. Mas é curioso perceber como duas mulheres lésbicas não conseguem entender a homossexualidade dos filhos. Ambas tiveram filhos homens e os dois meninos declararam-se homossexuais. André, diferente de William (que morava com os avós maternos) saiu de casa. Apareceu meses depois dizendo a todos que iria para Itália. Não se sabe em que circunstâncias financeiras, mas ele tinha esse sonho de ver-se como ―mulher‖. Até coragem de fazer a cirurgia de troca de sexo afirmava ter. A madrasta apresenta uma circunstância do que seria a primeira relação homossexual de Andre. Diz que certa madrugada o menino tinha chegado tarde a casa. Foi ao banheiro e depois direito para a cama. Ela foi então ao banheiro ver se encontrava algo e viu uma cueca suja de sangue. A partir dali travaram uma guerra e nunca mais se deram bem. Uma vez longe de casa não se sabe como André ganhava a vida. Certa vez encontrei com uma amiga dele que me disse que ele se prostituía na avenida Brasil, próximo ao bairro Santa Cruz, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Percebo, a partir dessas entrevistas e relatos, que o menino tinha se transformado em uma travesti e que se prostituía. Também que já lutava com toda audácia possível no meio de uma profissão tão desmerecida pela nossa sociedade. É evidente que a partir destes contatos com o mundo da prostituição que André conseguiu chegar á Itália e de lá fugir com seu namorado, anos depois. Ao voltar ao Brasil instalou-se na casa da mãe. Alugou uma casa com o dinheiro que mãe do namorado, Satini, mandava todo mês. Fizeram uma festa de casamento e tempos depois, decidiram morar em São Paulo, Paraguai e voltando depois para o Rio de Janeiro se instalando em Itaguaí, onde o pai de André morava com sua outra família e os filhos deste relacionamento. Há informações que Satini não trabalhava. Vivia com a ajuda dos pais italianos e de pensão do governo paraguaio. Não há confirmações destes dados, mas o que se vê é um desgaste no relacionamento entre Karine e Satini. Ela se prostituía e provavelmente a cidade que a viu nascer foi a mesma que a viu sofrer e morrer. Uma criança para a sexualidade humana: 25 anos! A certidão de óbito datada de 20 de junho de 2011, quase um mês depois de ser enterrada traz a causa da morte: asfixia mecânica por sufocação indireta, local de falecimento: rua Landolfo Alves, no centro da cidade de Itaguaí. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 245 É interessante trazer para o debate uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto Karolinska. Neste estudo os pesquisadores Ivanka Savic e Per Lindström descobriram que o cérebro de um homem homossexual, no caso o cérebro de André, funciona como o de uma mulher heterossexual. O cérebro de homossexuais é similar ao de pessoas do sexo oposto. O cérebro de um gay é parecido com o de uma mulher, enquanto o de uma lésbica apresenta características semelhantes às de um homem hetero, revelou um estudo publicado Constataram que o formato de algumas áreas de ativação do cérebro estariam relacionado à orientação sexual. Nos homens hetero e nas mulheres homossexuais, o hemisfério direito é maior que o esquerdo. Essa discrepância não ocorre entre os cérebros de homens gays e mulheres hetero, cujos hemisférios seriam mais proporcionais. A decisão de trabalhar com esse tipo de parâmetro tinha por objetivo obter dados já determinados no nascimento, ou seja, que não teriam influência de fatores culturais.(O GLOBO, 17/06/2008, 32) A pesquisa ajuda-nos a entender os mecanismos pelos quais estão inseridos os gays efeminado e de alto grau de feminilidade. Karine era uma mulher. Tinha o cérebro de mulher num corpo de homem. É isso que se reduz a homossexualidade: homem mulher. Mas é difícil, do ponto de vista de quem ver, entender as raízes cerebrais do comportamento, do desejo, o jeito de olhar, de falar e de andar a que estão imbricados nos gays. Elas estão sempre em busca de um príncipe que nunca vem. É através da rua e da prostituição que vão conseguir dinheiro para fazer nos seus corpos aquilo que é as suas mentes desejam – serem reconhecidas como mulheres. É difícil perceber quão necessário construir um perfil feminino. Como uma força da natureza, ondas fortes, correnteza dos rios que te levam sem ter onde segurar. Figuras 1 a 4: 1- Certidão de Nascimento. 2 - André. 3 - Óbito. 4 - Eliete, Karine e Satine. Arquivo Familiar. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 246 Conclusões Jesus Cristo trouxe-nos uma mensagem de fraternidade. Ser cristão é ser mais que tudo acolhedor. Virar as costas ao progresso e continuar excluindo cidadãos por desconhecimento acerca da verdade presente na orientação sexual de homossexuais não condiz com a mensagem evangélica. A Bíblia é bem clara ao descrever a abominação que é um homem deitar-se com outro como se fosse uma mulher. É preciso frisar que a abominação se dá entre dois homens heterossexuais, já que no caso dos homossexuais, que de acordo com a pesquisa de Ivanka Savic e Per Lindström, gays são mulheres sexualmente. O cérebro comanda o encontro entre dois homossexuais, resultado de um enlace entre o físico masculino e a psique feminina. Negar acolhimento para os casais homossexuais, assim como para as travestis, transexs e transgêneros é uma tentativa preconceituosa. A religiosidade é própria do homem e da mulher não importando sua orientação sexual. Um homem pode ser fisicamente homem, mas apresentar uma particularidade feminina em termos de sexualidade, orientação e identidade. É o caso de Karine que lutou a vida inteira pela sua identidade e quando esta se tornou uma realidade viu-se isolada num mundo onde o diferente ainda é excluído e incompreendido. Sem um convívio social sadio é obrigada a se prostituir, mesmo ―casada". A que ponto chega o conservadorismo do brasileiro e do homem pós-moderno? No Carnaval louva a máscara e o travestismo, mas no cotidiano se recusa a entender que algumas pessoas nascem mulheres no corpo de um homem e nem por isso devem conviver ao longo de suas vidas na infelicidade de não se reconhecerem. A identidade é um direito e o respeito às diferenças um dever. Quando vamos entender que todos ganham com a valorização e a inclusão de todos, independente de credo, cor, raça ou sexo? É através do acolhimento dessas pessoas marginalizadas que vamos torná-las melhores e mais felizes. Só o convívio social traz realização humana. Realizemos-nos! Referências FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber; tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 247 FRY, Peter & MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1985. HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais; organização Liv. Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. _______. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: D. P. & A. Editora, 1ª Ed., 1992. LACAN, Jacques. Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante, texto Jacques-Alain Miller; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. O GLOBO (2008), “Biologia da Homossexualidade”, 17 de Junho de 2008, p. 32. VATICANO. Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais. De 10/01/1986. Site vatican.va Disponível em http://www.doctrinafidei.va/documents/rc_con_cfaith_doc_19861001_homosexualpersons_po.html CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 248 Juventude e Religião: estudos de ontem e de hoje Carlos Eduardo da Silva Moraes Cardozo136 No Brasil, nos últimos anos, o tema juventude tem ganhado grande importância em muitos campos de discussão, principalmente no meio acadêmico. Como afirmam Alpizar e Bernal (2002, p.21): ―foi no meio acadêmico que se desenvolveu o conhecimento ‗científico‘ assegurado como conhecimento válido e supostamente neutro e que tem servido geralmente para legitimar práticas e mecanismos de controle das pessoas jovens.‖ Apesar dessa suposta validade exata do conhecimento científico, é preciso verificar que os vários conceitos sobre os jovens também sofreram influência da sociedade através das concepções políticas, econômicas, culturais e sociais que muitas vezes acabam por legitimar as normas, práticas e conceitos pré-estabelecidos. Devido a grande importância da discussão do tema juventude e das várias abordagens e estudos já empreendidos, quero analisar o tema ao longo da história, no Brasil. O conjunto dos trabalhos que vem formando o campo de estudos de ―juventude‖ e ―religião‖ que este trabalho se objetiva a analisar se situa nas clivagens teóricas do campo acadêmico de análise da juventude em geral, polarizado, por um lado, pela ênfase nos marcos geracionais e, de outro, na pluralidade nas formas de ―ser jovem‖. Importante a identificação, também, esta área de estudos, principalmente, em ciências sociais, questões cruciais do campo e estudos da religião: como a do papel da religião na contemporaneidade e no Brasil, a da secularização, da bricolagem religiosa, e do trânsito religioso com todo seu corolário. A invenção da juventude Podemos nos perguntar neste momento em que período histórico a juventude foi definida enquanto categoria social? Sempre houve na história da humanidade juventude? A invenção da juventude é uma questão que intriga nos faz olhar a história 136 Mestrando em Ciências Sociais – PPGCS-UFRRJ. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 249 dos jovens de maneira diferente. Devemos lançar um olhar sobre o conceito e a palavra de juventude ao longo da história. A introdução de Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt à História dos Jovens137 chama a atenção ao fato de a juventude ser um tema que percorre as décadas de 1970 e de 1980, mas que não tem merecido uma síntese histórico-cultural. ―temos a ambição‖, dizem eles, ―de pôr em evidência a especificidade da juventude, sem contentar-nos em concebê-la como uma idade igual às outras‖138. Perguntam-se, por isso, o que é, de fato, a juventude? A resposta deles lança-nos uma reflexão importante: ―como as demais épocas da vida, ela é uma construção social e cultural‖. Situa-se entre a dependência infantil e a autonomia da vida adulta, naquela idade de pura mudança e de inquietude ―em que se realizam as promessas da adolescência, entre a imaturidade sexual e a maturidade social, entre a falta e a aquisição de autoridade e de poder‖. Enquanto apresentam uma ―história dos jovens‖, os autores arriscam-se afirmar que ―a história da juventude se configura como um terreno privilegiado de experimentação historiográfica‖ (Ibid v.1. p.10), isto é, apresentam histórias que concernem a jovens adotando múltiplas perspectivas, múltiplos olhares. Da sociedade antiga à compreensão contemporânea Olhando esta questão do ponto de vista histórico, Lutte139 afirma primeiramente que na Roma Antiga não existia um período a que pudéssemos chamar de adolescência ou juventude. O que se festejava com a torga viril, era o fim da puberdade fisiológica. Mais adiante, contudo, o mesmo autor reconhece que a juventude ―nasceria‖, em Roma, pelo ano 193 a.C., com a ―ata de nascimento de um novo grupo social‖, instituindo-se uma ação penal contra quem tivesse abusado da inexperiência de um jovem inferior a 25 anos num negócio jurídico. Assim, a madurez social, em Roma, estaria nos 25 anos. Lembrando que Sócrates morreu porque corrompia a juventude. 137 LEVI, Giovanni e SCHMITT, Jean-Claude. História dos Jovens, dois volumes: 1. Da Antiguidadeà Era Moderna; 2. A época contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 138 Ibid., v.1, p.8 139 Gérard LUTTE autor de uma obra intitulada Liberar La adolescencia, levando como subtítulo La psicologia de los jóvenes de hoy, publicada em 1991, vai ajudar-nos numa primeira aproxima;cão desse tema. Embora o autor não seja propriamente historiador, mas essa obra, apresenta de maneira lúcida e didática a questão. Considero, também, como bibliografia de suporte para esta reflexão outras obras e autores (LEVI, SCHMITT, 1996; SANDOVAL, 2002; DICK, 2003 e SAVAGE, 2009). CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 250 Na Roma antiga, segundo Levi e Schmitt, era-se puer até os 15 anos; a adolescência ia dos 15 aos 30 anos; a juventude se estendia dos 30 aos 45 anos. Até os 12 anos meninos e meninas estudavam juntos, depois só os meninos continuavam estudando, Não se pode esquecer que em Roma existia a deusa Juventas (= juventude), havia, no governo de Augusto, os ―príncipes da juventude‖. Em todo caso, aos 16 anos, com a envergadura da Torga viril, começava, para os rapazes, a preparação para a vida pública. Na Idade Média, segundo DICK (2003 p. 20), por volta do século VI e VII, delimitações começavam a assumir características etárias, definidas como: infância (de 0 a 7 anos), puberdade (de 8 a 13 anos), adolescência (de 14 a 21 anos) e juventude (de 22 a 30anos). Uma consideração importante trata do fato de que, apenas aos 40 anos, os homens podiam participar dos cargos políticos, porque esta idade representava o fim da idade dos perigos. Quem dava o ―atestado‖ da maturidade era a herança e o casamento. A partir do século XVIII, com J. J. Rousseau, começa a surgir, então, uma visão mais sociológica da juventude, e a principal característica atribuída aos jovens, neste período, é, segundo Ortega y Gasset (1987), identificada em uma figura que somente executa as velhas idéias implantadas pelos adultos, afirmando não ―(...) a sua juventude, mas princípios recebidos‖ (p.119). Somente ao fim do século XIX, surge, nas classes burguesas o termo adolescência, como o resultado de uma sociedade capitalista e industrializada, com a intenção de demarcar o início da segunda infância, definindo a idade para além dos 13 anos. Esta sociedade caracterizou uma juventude que almeja a maturidade precoce, chegando a envergonhar-se de sua condição juvenil. Já imersos na realidade contemporânea, encontra-se em G. Stanley Hall (1904), com a obra ―Adolescence‖, o primeiro autor a abordar este tema como uma fase de importância singular no desenvolvimento humano. Para tanto, Hall considerava que a emancipação e o sucesso da vida adulta seria o resultado de uma boa acolhida, com cuidados especiais, dedicada à fase da adolescência. Referindo-se à adolescência afirma que: ―nenhuma idade é tão sensível aos melhores e mais sábios esforços dos adultos. Não há um único solo em que as sementes, tanto as boas como as más, atinjam raízes tão profundas, cresçam de forma tão viçosa ou produzam frutos com tanta rapidez e regularidade‖ (Hall apud Sprinthall e Collins, 2003, p. 15). CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 251 Avançando na retrospectiva, no século XX, a partir de LEVI e SCHMITT, podemos evidenciar alguns elementos importantes que nos chegam de herança: a juventude como construção social. A juventude vai além do biológico e do jurídico. ―Sempre e em todos os lugares ela é investida de outros símbolos e de outros valores, de outras funções‖ (LEVI e SCHMITT. Op.Cit v.1. p. 32). A diferença dos sexos, se constitui como um outro elemento importante na constituição dos sujeitos jovens, no século XX, salienta os autores. ―A diferença cultural entre rapazes e moças, já acentuada na socialização infantil, é institucionalizada na juventude. Tudo leva a menina a ser esposa e mãe.‖140 (Ibid p. 33) Ainda, outro elemento que se destaca, é a ideia dos jovens como atores sociais. Os jovens são o primeiro sujeito ativo na história. Citam, por isso, a ligação natural entre juventude e nação, afirmada pelo Romantismo; a adesão dos jovens burgueses europeus do século XIX às ideias da revolução; as associações juvenis das igrejas; o enquadramento dos jovens nas organizações facistas e nazistas; as revoltas estudantis dos campos universitários americanos e as barricadas do maio parisiense de 1968 (cf. Ibid. v.2). Pode-se sintetizar as principais características relacionadas à juventude, com a intenção de expor os pontos convergentes que definem e especificam um melhor entendimento do termo utilizado, que segundo Dick (2003) no século XX, no Brasil, tem-se: Principais características e representações dos jovens ao longo do Século XX no Brasil. Anos 40 Jovens marcados pelas experiências chocantes vividas durante a Segunda Guerra Mundial e com as bombas atômicas no Japão. 140 Hoje, com as reflexões acerca do gênero e da liberdade da mulher com sua entrada no mercado de trabalho e autonomia em relação ao homem no que tange ao prazer e à reprodução parece que este elemento está desatualizado. Mas, isso se verifica, sobretudo, com um olhar social sobre a incidência dos casos de homofobia. Segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB) que em 2011 divulga o Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais de 2010. Foram documentados 260 assassinatos de gays, travestis e lésbicas no Brasil no ano passado, 62 a mais que em 2009 (198 mortes), um aumento 113% nos últimos cinco anos (122 em 2007). Ver em http://www.ggb.org.br/Assassinatos%20de%20homossexuais%20no%20Brasil%20relatorio%20geral%2 0completo.html CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 252 Anos 50 ―Anos Dourados‖ - jovens mais autônomos. Anos 60 Década onde o tema JUVENTUDE foi mais explorado, expansão do Movimento hippie como uma ameaça à ordem social. Anos 70 ―Anos de ressaca‖ - juventude insatisfeita, buscando mudanças para sair de uma sociedade estagnada, apática e viciada. Anos 80 Defesa do protagonismo juvenil através da ―Pastoral Juvenil‖ e redução dos avanços da liberdade sexual através da difusão da AIDS; jovens sem ideologia, individualistas, consumistas e conservadores. Anos 90 Transição de uma geração que valorizava a organização, a articulação, a lógica e o raciocínio, para uma geração que valoriza o corpo, o prazer, o fragmentado e o individual. Surge a ―geração zapping‖(em constante mudança). Fonte: DICK, 2003. Elaboração do autor. Atualmente, é lugar comum nos estudos sobre juventude dizer que este termo não designa um grupo homogêneo (CARMO, 2001; DAYREL, 2005; ABRAMO, 1997 e 2005; CARRANO, 2000), mas que se trata de uma noção que pode variar bastante de acordo com o critério pelo qual ela for delimitada: faixa etária, geração, papel social, identidade auto-atribuída, entre outros. Sendo tema de interesse público e civil, a condição juvenil deve ser tratada sem estereótipos e a consagração dos direitos dos/das jovens precisa partir da própria diversidade que caracteriza a(s) juventude(s). Assim, a definição de juventude pode ser desenvolvida por uma série de pontos de partida: como uma faixa etária, um período da vida, um contingente populacional, uma categoria social, uma geração... Mas todas essas definições se vinculam, de algum modo, à dimensão de construção sócio-histórica. Há, portanto, uma correspondência com a faixa de idade, mesmo que os limites etários não possam ser definidos rigidamente; é a partir dessa dimensão também que ganha sentido a proposição de um recorte de referências etárias no conjunto da população, para análises demográficas. Do mesmo modo, a noção de geração remete à ideia de similaridade de experiências e questões dos indivíduos que nasceram num mesmo momento histórico, e que vivem os processos das diferentes fases do ciclo de vida sob os mesmos condicionantes das conjunturas históricas. É esta singularidade que pode também fazer com que a juventude se torne visível e produza interferências como uma categoria social. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 253 2. Juventude e Religião O incremento da abordagem compreensiva nos estudos sobre a juventude, propiciando e estimulando o interesse por novas facetas desse universo, não configura, evidentemente, a única perspectiva de investigação disponível. No entanto, não podemos negar que ela configura o perfil do conjunto das pesquisas sobre juventude nesses últimos anos. Enfim, ―o momento atual pode ser caracterizado pela pluralidade de perspectivas, delineando um cenário de pluralismo teórico e metodológico‖, indica Tavares e Camurça (2009, p. 31). Os estudos sobre religião e juventude se inserem na dinâmica da pluralidade desses estudos sobre juventude. Essa reorientação metodológica e teórica tem estimulado essa diversidade141, produzindo novos recortes, problematizando fronteiras, flexibilizando critérios rígidos de adesão e pertencimento (Novaes, 2001). Camurça e Tavares (2009) marcam os anos de 1990, a investigação das interfaces de juventude e religião, inicialmente, o universo da juventude estudantil. Pouco a pouco, no entanto, observa-se uma diversificação empírica (diferentes segmentos juvenis) e metodológica (surveys e pesquisas qualitativas). 2.1 As primeiras pesquisas no Brasil Tavares e Camurça (2009, p.32) inscrevem a Regina Novaes como a pioneira, no universo acadêmico, nos estudos de juventude e religião. Pioneira porque sistematizou, em termos acadêmicos, um debate em torno da temática. Sua publicação ―Religião e Política: sincretismos entre alunos de Ciências Sociais‖, publicado em Comunicações do Iser em 1994 gerou desdobramentos posteriores a partir de seu modelo teórico e metodológico. Neste artigo, Novaes não se ateve em realizar uma tipologia das tendências religiosas, ou mesmo, pertenças e vínculos religiosos entre os universitários 141 Esse fenômeno é verificado nas conclusões do IV Simpósio Internacional da Juventude Brasileira (IV JUBRA) em Belo Horizonte, em 2010, onde estive na comissão organizadora. O Simpósio teve como tema ―Juventudes contemporâneas, um mosaico de possibilidade‖ e se revelou como um lugar de encontro de pesquisadores diversos e de diversas áreas com pesquisa em juventude. Inclusive de áreas, até então sem ínfima relação com o tema, pesquisadores provenientes da arquitetura, geografia, do direito etc. Isso chamou a atenção da comissão organizadora local. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 254 pesquisados e relacioná-los no grande campo das religiões no Brasil. A ênfase desse trabalho se concentrou na questão das hibridizações culturais contemporâneas, sob a formulação do sincretismo142. ―Para além de buscar inferências mais ―coladas‖ no resultado formal dos dados (porcentagem dos estudantes por religião, índice de freqüência aos cultos, grau de adesão às religiões escolhidas ou herdadas), Novaes especula na perspectiva do sincretismo, preferindo ver os índices percentuais dessas pertenças, adesões religiosas, não ‗congelados‘ em cada quesito, mas no transcurso de trajetórias e itinerários (captados nos relatos dos estudantes religiosos e contrastados com os dados do survey), o que implica alternâncias, mudanças, combinações‖. (TAVARES, CAMURÇA, 2009, p.33) Em ―Juventude e Religião: marcos geracionais e novas modalidades sincréticas‖ publicado em Fiéis e Cidadãos: percursos de Sincretismo no Brasil, em 2001, a autora, tendo-se articulado a uma pesquisa coordenada pelo NER da UFRGS que envolveu várias universidades brasileiras visando dar seguimento aquela sua iniciativa de 1994, retoma o tema juventude e religião através da categoria do sincretismo. Neste segundo trabalho, nota-se uma ampliação no horizonte de reflexão por agregar neste binômio conceitual a ideia de marcos geracionais, a partir dos quais uma literatura especializada busca conceituar com mais rigor a categoria ―juventude‖143. Essa preocupação mais analítica com o específico da ―juventude‖ por parte da autora, em relação ao texto anterior, se dá em meio a um crescente envolvimento teórico e de intervenção junto a ONGs e igrejas na formação de lideranças. Assim, neste segundo texto, Novaes retoma o tema do sincretismo a partir dos marcos geracionais. Assim, combinadas, ambas as categorias ajudam a perceber como os jovens, a partir da referência de uma alteridade (outros jovens) e de contextos sócio- 142 Importante ressaltar que os estudos sobre sincretismo no Brasil datam bem anteriormente ao artigo da Novaes. Encontramos um definição de sincretismo já em 1969, por Herskovits (1969, p. 376) onde define sincretismo como uma forma de reinterpretação, que assinala aspectos da mudança cultural com transformações de valores que ocorrem entre as gerações e apresenta exemplos relacionados com as religiões afro-brasileiras. Cf. HERSKOVITS, Melville J. Antropologia Cultural. São Paulo: Ed. Mestre Jou, 1969. 143 Destaca-se aqui, neste momento, os trabalhos e reflexões de Abramo e Spósito na conceituação da categoria juventude. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 255 culturais disponíveis, elaboram classificações singulares de crenças e religiosidades que, mesmo provisoriamente, lhes fornecem identidades. Um grande empreendimento nos estudos de juventude foi o Projeto Juventude capitaneado pelo Instituto Cidadania. Este projeto, realizado de 2003 a inícios de 2004, reuniu análises de distintos instrumentos, acoplando a mais abrangente pesquisa quantitativa nacional realizada sobre o tema. Novaes esteve a frente da organização do primeiro material, intitulado ―Juventude e Sociedade: trabalho, educação, cultura e participação‖. Para ampliar o debate, o Instituto Cidadania convidou diversos pesquisadores para elaborar reflexões sobre diversos temas sobre a juventude brasileira. Novaes novamente entra no cenário para aprofundar o tema sobre a juventude e religião, publicando o artigo: ―Juventude, percepções e comportamentos: a religião faz a diferença?‖. Neste terceiro trabalho, Novaes revela a maturidade da reflexão ao longo desses quase 10 anos de reflexão sobre o tema. Articula as categorias de juventude, religião, sob a ótica dos marcos geracionais e, aprofunda ainda, ao tocar em temas importantes ao se tratar da realidade juvenil. Faz uma importante caracterização, lendo os dados da pesquisa, das diferentes agregações dos jovens: católicos, protestantes, mediúnicos e pertencentes a outras religiões. Sem dúvidas, é um trabalho referencial nos estudos de juventude e religião no país. 2.2 Importantes contribuições de estudo Há ainda no circuito acadêmico, outras vozes profundamente significativas nos estudos articulando o tema de Juventude e Religião que no contexto brasileiro vem ganhando relevo. Em 2003, é publicado ―Gritos silenciados, mas evidentes: jovens construindo juventude na História‖ de Hilário Dick. Este trabalho não se trata propriamente da análise da juventude a partir da religião, no entanto, é notável seu olhar ao traçar uma história da juventude este tema tangencia sua obra. Uma perspectiva importante do livro é olhar a história do ponto de vista do protagonismo juvenil. Ao longo da história, inclusive história brasileira, Dick vai revelando eventos que traçam e articulam os gostos, os modos de ser jovem e se configurar como juventude ao longo dos tempos. Ao ler a história dos jovens no Brasil, Dick ressalta a importância da Igreja Católica na CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 256 construção da representação e na formação do conceito da juventude no Brasil 144. Parte da Ação Católica até as ações da Pastoral da Juventude na década de 1990 e como a pertença dos jovens nesse movimento construíram participações políticas e sociais no intento da construção de uma sociedade melhor. Em São Paulo, Jorge Cláudio Ribeiro, coordena uma pesquisa importante no ano de 2000 e coleta reflexões importantes no livro: ―Religiosidade Jovem: pesquisa entre universitários‖ em 2009. Neste livro, ele lê o envolvimento da juventude na incursão na religião a partir do conceito de religiosidade, fundamentado em Simmel. Com isso, possibilitou ao Ribeiro intersecções com sentido da existência, fé, religiões e rituais, representações do transcendente e alteridade. Aprofunda com uma rica reflexão sobre a constituição da juventude na contemporaneidade. No Rio de Janeiro, se destaca as pesquisas da professora Silvia Regina Fernandes que em 2010 publica: ―Jovens religiosos e o catolicismo: escolhas, desafios e subjetividades‖. Este trabalho é fruto de suas pesquisas na pós-graduação (doutorado) onde realizou uma pesquisa entre noviços e noviças de diversas congregações religiosas da Igreja Católica. Neste trabalho, Fernandes amplia a reflexão adicionando o recorte de gênero ao olhar tendências e percepções dos jovens candidatos à vida religiosa. Este trabalho é o fruto de reflexões que extrapolam a pesquisa e ganha contornos em outras pesquisas coordenadas pela autora. Camurça, professor em Juiz de Fora-MG, tem nos oferecido importante balanço referente ao tema Juventude e Religião. No livro ―Ser Jovem em Minas Gerais: religião, cultura e política‖, Camurça e Tavares apresenta, no primeiro capítulo, ―Juventudes e Religião no Brasil: uma revisão bibliográfica‖ um rico aprofundamento das literaturas existentes no Brasil com nosso tema. 3. À guisa de conclusão 144 Ressalto este livro, mas DICK tem diversos trabalhos produzidos na década de 1990 refletindo sobre protagonismo juvenil, formação política da juventude, pastoral da juventude e teologia da juventude. Assim, a obra ―Gritos silenciados, mas evidentes‖ é fruto de engajamento e inserção no meio dos jovens por vias acadêmicas (como professor na Unisinos) ou pela sua militância na pastoral da juventude. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 257 Evidentemente, percebemos que a pesquisa sobre Juventude e Religião começa a ganhar contornos mais profundos, mesmo que de maneira incipiente. Isso porque a escassa bibliografia revela uma escassez de pesquisas, relacionando estas duas categorias conceituais: religião e juventude. Está identificação foi explicitada pela pesquisa da Sposito (2009), que mapeou e realizou um balanço da produção de conhecimentos discentes nos programas de pós-graduação em torno da temática da juventude, de 1999 até 2006, nas áreas de Educação, Ciências Sociais (Antropologia, Ciência Política e Sociologia) e Serviço Social. Nesse período estudado, localizou apenas 17 teses e dissertações relacionadas ao tema juventude e religião, o que significa 1,19% do total de 1427 trabalhos encontrados. Destes, apenas 8 são oriundos da área das Ciências Sociais. Chama a atenção os poucos trabalhos e estudos sobre juventude e religião, principalmente quando se percebe que a religião é cada vez mais estruturante enquanto práticas sociais, onde assume cada vez mais um significado ímpar na vida de tantas juventudes. O segmento da juventude pesquisada ao longo desses anos no Brasil, revela as pesquisas, não é indiferente à religião e sabe o que está falando quando fala sobre esse tema. Há uma consciência religiosa clara e bem definida que se apresenta na forma de uma identificação com a religiosidade, embora ser religioso, ter confissão religiosa, e crer em símbolos religiosos não se localizam no mesmo ―lugar‖ no campo de reflexão teórica. Indescritivelmente, Juventude e Religião se configura como um quadro rico e heurístico que precisa ser entendido e interpretado. Este trabalho não finaliza aqui, mas revela o quanto é necessário que se caminhe na trilha desses estudos. 4. Referências Bibliográficas 1. ABRAMO, Helena Wendel. Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 5 e n. 6, p. 25 – 36, maio/dez. 1997. 2. ABRAMO, Helena Wendel; FREITAS, Maria Virginia de; SPOSITO, Marilia Pontes (org.). Juventude em debate. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2002. CADERNO DE ANAIS, 2012. SEMINÁRIO OLHARES SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE A RELIGIÃO 3. 258 ABRAMO, Helena; BRANCO, Pedro Paulo Martim (orgs.). Retratos da juventude brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005. 4. ARIÈS, Phillipe. História social da criança e da família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981. 196 p. 5. DICK, Hilário. Gritos silenciados, mas evidentes: jovens construindo juventude na História. 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