Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesa
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Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesa
Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesa: Temas e Perspectivas Rio de Janeiro, 2011 Organização Ana Célia Castro Cristina de Albuquerque Possas Manuel Mira Godinho Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesa: Temas e Perspectivas Rio de Janeiro, 2011 © 2011 Ana Célia Castro, Cristina de Albuquerque Possas e Manuel Mira Godinho Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que não seja para venda ou qualquer fim comercial. A responsabilidade pelos direitos autorais de textos e imagens dessa obra é da área técnica. 1ª edição – 2011 Produção Editorial Capa, Projeto Gráfico e Diagramação: Fernanda Dias Almeida - Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde Revisão: Angela Gasperin Martinazzo - Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Impresso no Brasil / Printed in Brazil CIP-Brasil. Catalogação na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ ______________________________________________________________________________________ P958 Propriedade intelectual nos países de língua portuguesa : temas e perspectivas / organização Ana Célia Castro, Cristina de Albuquerque Possas, Manuel Mira Godinho. - Rio de Janeiro : E-papers, 2011. 231p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7650-323-1 1. Propriedade intelectual. I. Castro, Ana Célia. II. Possas, Cristina de Albuquerque. III. Godinho, Manuel Mira 11-7963. CDU: 347.77 ______________________________________________________________________________________ Títulos para indexação: Em inglês: Intellectual Property in the Portuguese Speaking Countries: Issues and Perspectives Em espanhol: Propiedad Intelectual en los Países de Lengua Portuguesa: Temas y Perspectivas S UMÁRIO Prefácio .................................................................................................................................................................................................... 7 Introdução ............................................................................................................................................................................................ 9 I. Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesa: Sinergias e Oportunidades.... 15 1. Propriedade intelectual - tendências globais ............................................................................................................17 Por João Paulo Remédio Marques 2. Propriedade intelectual: racional de utilização e desafios futuros em países de língua portuguesa ...........................................................................................................................................................................55 Por Manuel Mira Godinho II. Inovação, Propriedade Industrial e Acesso a Produtos de Saúde .......................................75 3. Patentes biotecnológicas e o acesso a produtos de saúde uma perspectiva europeia e luso-brasileira ......................................................................................................................77 Por João Paulo Remédio Marques 4. Políticas de saúde, aids e propriedade industrial em Moçambique..........................................................111 Por Eusebio Chaquisse 5. Acesso aos medicamentos antirretrovirais: desafios em propriedade intelectual para os países de língua portuguesa ........................................................................................................127 Por Cristina de Albuquerque Possas 6. As ciências de saúde em Moçambique: o papel da propriedade intelectual .....................................145 Por Maria Teresa Araújo III. Propriedade Intelectual na Agricultura e Conhecimentos Tradicionais .........................149 7. Propriedade intelectual na agricultura e conhecimentos correlatos em Moçambique...............151 Por Jorge Ferrão, Américo Uaciquete e Camilo Cuna 8. Educação para a inovação: ações do INPI no âmbito da agricultura ........................................................159 Por Rita Pinheiro-Machado 9. Regimes tecnológicos e propriedade intelectual na agricultura: o papel das novas instituições......173 Por Ana Célia Castro, Sérgio Paulino de Carvalho e Marcos Paulo Fuck IV. Direitos Autorais e Desenvolvimento ...................................................................................187 10. Inovação e propriedade intelectual na indústria de software na América Latina .........................189 Por Paulo Bastos Tigre e Felipe Silveira Marques 11. Dilemas da legislação autoral no Brasil .....................................................................................................................211 Por Allan Rocha de Souza P REFÁCIO Este livro aborda de forma inovadora um tema estratégico para a colaboração científica e tecnológica na comunidade dos países de língua portuguesa: a questão da propriedade intelectual, tratada de forma abrangente, em uma perspectiva transdisciplinar. Esse esforço colaborativo, possibilitado pela rede de pesquisa que se estabeleceu entre os países em torno do tema, certamente contribuirá para a identificação do estado da arte e de prioridades e lacunas na investigação nessa área, abrangendo questões diversas e complexas: inovação e acesso a produtos de saúde, cruciais para o enfrentamento da pandemia de aids e outros agravos; agricultura e conhecimentos tradicionais; direitos autorais e desenvolvimento. O fortalecimento dessa rede será certamente estratégico para a ampliação do esforço de investigação, informando as políticas públicas e as estratégias de apoio à ciência e tecnologia nos diferentes países. Dirceu B. Greco Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais Secretaria de Vigilância em Saúde Ministério da Saúde 7 I NTRODUÇÃO 1. Este livro é o produto da profícua rede de cooperação científica – Rede de Ensino e Pesquisa em Propriedade Intelectual (REPPI) – que se construiu, entre as principais instituições acadêmicas e de pesquisa dos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa com atuação nessa área. O objetivo da Rede é discutir uma agenda de interesse comum aos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em matérias relacionadas com os direitos de propriedade intelectual. Os temas abordados incluem: as flexibilidades do Acordo TRIPS; o direito à saúde; a singularidade da propriedade intelectual na agricultura e os conhecimentos tradicionais; os diferentes modelos de negócio em software; os direitos de autor; as indústrias criativas. A discussão sobre esses temas possibilitou um aprofundamento das questões envolvendo os direitos da propriedade intelectual, em uma moldura que destaca a sua dimensão pública, conectada com a inovação, o desenvolvimento e as mudanças institucionais. Os resultados desse esforço, aqui apresentados, apontam para o fato de que países com níveis diferenciados de desenvolvimento enfrentam, da mesma maneira, questões que estão na fronteira do conhecimento, e se deparam com conflitos que envolvem: a propriedade intelectual das inovações e as demandas crescentes da sociedade por acesso universal a insumos estratégicos de saúde pública, como medicamentos e vacinas; os processos de catching up na agricultura; e, finalmente, as questões estratégicas de direitos autorais em softwares e de acesso à cultura. 2. O livro encontra-se organizado em quatro seções, da forma que se detalha a seguir. A primeira seção – Propriedade intelectual nos países de língua portuguesa: sinergias e oportunidades – é composta de dois artigos. Remédio Marques, professor da Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal), realiza relevantes reflexões sobre as tendências mundiais da propriedade intelectual e sobre a influência da globalização no regime do direito de autor, bem como dos direitos conexos, discutindo o impacto dessas mudanças no regime das utilizações livres de direito de autor, em particular a cópia privada. Seu trabalho possibilita considerações sobre o regime da gestão coletiva dos direitos de autor, destacando a questão do direito de autor tecnológico e a proteção de criações técnico-funcionais, com importantes implicações sobre a CPLP. Manuel Mira Godinho, professor catedrático do ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão, da Universidade Técnica de Lisboa) discute, em profundidade, os fundamentos do sistema de propriedade intelectual e os desafios suscitados pela utilização da propriedade intelectual, do ponto de vista das estratégias privadas e das políticas públicas, em países de língua portuguesa. O trabalho concentra-se nos fundamentos 9 teóricos da propriedade intelectual, de patentes e marcas, e trata dos aspectos práticos da utilização e desenvolvimento do sistema de propriedade intelectual nas décadas mais recentes. Esse duplo enfoque, teórico e prático, permite extrair um conjunto de conclusões cruciais para entender os desafios que a propriedade intelectual coloca em países de língua portuguesa. Na segunda seção –, Inovação, propriedade industrial e acesso a produtos de saúde –, têm-se quatro artigos abordando aspectos distintos do tema. O segundo artigo de Remédio Marques, “Patentes biotecnológicas e o acesso a produtos de saúde – uma perspectiva europeia e luso-brasileira”, apresenta uma visão sobre as patentes de medicamentos nos países de língua portuguesa, destacando a influência do Acordo TRIPS na União Europeia e nos países de língua portuguesa. Aponta, neste trabalho, para as distintas configurações da patenteabilidade dos métodos terapêuticos, diagnósticos e cirúrgicos, visando a regulação pública da comercialização de medicamentos e o acesso da população aos medicamentos genéricos, destacando a questão das licenças compulsórias e da exportação de fármacos para os países com graves problemas de saúde pública. No artigo “Políticas de saúde, aids e propriedade industrial em Moçambique”, Eusébio Chaquisse, Coordenador do Núcleo Provincial de combate ao HIV em Nampula, Moçambique, o autor apresenta dados sobre a pandemia do HIV e aids no país e sobre os Planos Estratégicos e Políticas em curso para enfrentá-la, destacando a expansão do acesso e gratuidade do tratamento antirretroviral (TARV) e a delegação de tarefas no âmbito da TARV aos clínicos não médicos, aconselhamento e testagem voluntária e na comunidade, a formação de técnicos de medicina, a prevenção da transmissão vertical e a proteção de trabalhadores infectados no local de trabalho. Em seu artigo “Acesso aos medicamentos antirretrovirais: desafios em propriedade intelectual para os países de língua portuguesa”, Cristina de Albuquerque Possas, Chefe da Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde do Brasil, discute os desafios em propriedade intelectual frente às crescentes demandas por acesso aos antirretrovirais, intensificadas pela pandemia de HIV e aids. Apresenta, para cada um dos países da CPLP, uma síntese dos principais indicadores epidemiológicos e das condições de acesso ao tratamento antirretroviral, destacando a necessidade de fortalecimento da capacidade de produção local dos medicamentos ARV e da ampliação das condições de acesso a estes, por meio de um conjunto de políticas voltadas à redução dos preços: negociação de preços, ampliação da competição por genéricos, licenças compulsórias, pools de patentes e importação paralela. Em “As ciências de saúde em Moçambique: o papel da propriedade intelectual”, Maria Teresa Araújo, Diretora da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Lúrio, discute a questão da situação de desvantagem no âmbito da propriedade intelectual 10 envolvendo a cooperação internacional, que pôde observar ao longo dos anos na sua condição de funcionária da Organização Mundial da Saúde. Mostra que essa situação é extremamente lesiva para os pesquisadores e inovadores moçambicanos que, sem terem instrumentos legais de proteção da propriedade intelectual a que possam recorrer, veem prejudicados seus interesses e direitos pessoais e nacionais, decorrentes da apropriação indevida e abuso intelectual. Conclui observando que tal situação só será revertida por meio da aprovação de leis e respectivos regulamentos de aplicação que forneçam os instrumentos indispensáveis para a proteção dos direitos de propriedade intelectual. A terceira seção, Propriedade intelectual em agricultura e conhecimentos tradicionais, é composta de três artigos. O primeiro artigo, de Jorge Ferrão, Reitor da Universidade de Lúrio, Américo Uaicquete e Camilo Cuna, professores da mesma Universidade, sobre Propriedade intelectual na agricultura e conhecimentos correlatos em Moçambique, discute a praticabilidade do direito de propriedade intelectual na agricultura em Moçambique, apontado para as restrições impostas em sociedades em que a maioria das pessoas não possui escolaridade suficiente para aceitar qualquer lei que altere o seu modus vivendi. Os autores apontam para o principal desafio a ser superado: embora exista uma estratégia nacional sobre propriedade intelectual, sua implementação acaba se circunscrevendo a uma discussão mais teórica e institucional, já que, na prática, o ordenamento jurídico e as instituições do Estado não consagraram, ainda, os direitos de propriedade intelectual como instrumento de defesa dos interesses nacionais e dos respectivos detentores dessa propriedade. O segundo artigo, de Rita Pinheiro Machado, coordenadora de Pesquisa e Educação em Propriedade Intelectual, Inovação e Desenvolvimento do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) do Brasil, intitulado “Educação para a inovação: ações do INPI no âmbito da agricultura”, apresenta e discute a atuação e estratégias do INPI nessa área. Ressalta que, no contexto da nova política industrial, os desafios concentram-se no aumento da capacidade inovativa, no porte e no investimento em P&D pelas empresas brasileiras, destacando a suma importância do entendimento do sistema de propriedade intelectual, seus marcos legais e seus mecanismos pelos atores inovadores. Menciona os resultados do importante esforço conjunto, nessa direção, entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e o INPI, que fizeram convergir seus interesses, por meio de Acordo de Cooperação em vigor, no sentido de promover o entendimento sobre o sistema de propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida em patentes pelos pesquisadores e corpo técnico da Embrapa. O terceiro artigo, de Ana Célia Castro, Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Sérgio Paulino de Carvalho, Diretor de Articulação e 11 Informação Tecnológica do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, e Marcos Fuck, Professor do Centro de Engenharia da Universidade Federal do ABC, intitulado “Regimes tecnológicos e propriedade intelectual na agricultura: o papel das novas instituições”, examina as condições de formação de um novo regime tecnológico na agricultura. Discute também o processo de catching up do sistema brasileiro de pesquisa agrícola, destacando a nova institucionalidade em curso na pesquisa e na transferência das novas tecnologias geradas no processo de melhoramento vegetal. O novo regime tecnológico que emerge do processo de catching up revela uma diferente articulação entre os atores públicos e privados participantes desse processo, e principalmente novas instituições, entre as quais as formas de apropriabilidade do esforço inovativo decorrentes do fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual. Na quarta seção – Direitos autorais e desenvolvimento – têm-se dois artigos abordando aspectos distintos do tema. No primeiro desses artigos, “Inovação e propriedade intelectual em software, por Paulo Bastos Tigre, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Felipe Silveira Marques, Doutorando do IE/UFRJ, aponta-se para o fato de que, embora os direitos de propriedade intelectual constituam um instrumento de estímulo à inovação, podem também obstaculizar a difusão do conhecimento na economia. Os autores ilustram esse conflito apresentando o caso da área de software, em que a proteção de patentes é dificultada pelo fato de os ativos serem intangíveis e replicáveis praticamente sem custos. Discutem-se, também, as práticas de proteção à propriedade intelectual tomando por base o caso latino-americano, examinando-as à luz de sua eficácia enquanto instrumento de estímulo à inovação e difusão das tecnologias da informação. Conclui-se que é necessário harmonizar interesses conflitantes que transcendem o aspecto técnico, levando em consideração a necessidade de assegurar novos modelos de negócios e respeitar os acordos internacionais vigentes. Finalmente, o segundo artigo, de Allan Rocha, Professor e Pesquisador em Direitos Autorais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Instituto Nacional da Propriedade Industrial do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, intitulado “Legislação autoral no Brasil: conflitos e soluções”, aponta para o fato de que a atual legislação é insatisfatória e marcada pela assimetria e pelo desequilíbrio, permitindo uma expansão exacerbada dos interesses dos titulares em prejuízo dos interesses dos elos realmente essenciais: o criador e o público. Mostra que a excessiva concentração da titularidade em poucas entidades empresariais e o obsessivo controle dos usos – inclusive os não comerciais – por essas poucas entidades acabam conduzindo a um desvio funcional e estrutural injustificado do foco da proteção das obras artístico-culturais. O autor conclui o artigo apresentando diversas sugestões para o aperfeiçoamento do sistema nacional de proteção das obras artístico-culturais no Brasil. 12 3. Esta publicação, ao buscar refletir sobre questões relacionadas à inovação, essenciais ao desenvolvimento e situadas na fronteira do conhecimento, propõe transcender uma visão que tende a privilegiar apenas as dimensões assistencialistas no enfrentamento da exclusão social nos países da CPLP. Embora também relevante, tal visão não permite aproveitar e explorar de forma sistemática as oportunidades que se abrem aos países em consequência da introdução e difusão da inovação e dos conhecimentos economicamente relevantes. Tendo em conta essa perspectiva mais abrangente, pretendeu-se constituir uma rede de docentes e pesquisadores, que, além do ensino e da pesquisa, certamente poderá contribuir para o aperfeiçoamento das posições da CPLP nas negociações internacionais. Esse processo será favorecido pela afinidade linguística e cultural que une os países da Comunidade. O presente livro, que é o resultado do I Seminário, privilegia o tratamento interdisciplinar e intersetorial de diversas questões de política científica, tecnológica e industrial, contribuindo com informações estratégicas que poderão subsidiar as políticas governamentais voltadas ao desenvolvimento econômico e social nos países mencionados. Cabe destacar, finalmente, o caráter inovador das distintas abordagens teóricas e metodológicas que fundamentaram os artigos apresentados, e que constituem certamente uma importante contribuição ao tema. Com esse enfoque original, questões cruciais e complexas são tratadas de forma criativa, possibilitando a compreensão, em abordagens diversas, das novas articulações em curso entre política, economia e regulação, sob a ótica do desenvolvimento e do interesse público, nos países da comunidade da CPLP. Ana Célia Castro Cristina de Albuquerque Possas Manuel Mira Godinho 13 I NOS P ROPRIEDADE I NTELECTUAL P AÍSES DE L ÍNGUA POR TUGUESA : S INERGIAS E O POR TUNIDADES CAPÍTULO P ROPRIEDADE I NTELECTUAL – 1 TENDÊNCIAS GLOBAIS 1 João Paulo F. Remédio Marques 2 1 Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho de 2008, Rio de Janeiro, Brasil. 2 Professor da Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal), Mestre em Ciências Jurídico-Forenses, Doutor em Direito (Propriedade Intelectual). 1. I NTRODUÇÃO : PRERROGATIVAS RÉGIAS, PROPRIEDADE INTELECTUAL E INTERESSE PÚBLICO O atual direito de propriedade intelectual teve as suas primícias, como todos sabem, nos finais da Idade Média, nos séculos XIV e XV, quando os soberanos começaram a usar o seu poder para criar privilégios de diferente jaez. O uso dessas prerrogativas soberanas régias no sentido da criação de exclusivos comerciais, industriais e, no século XVI, de exclusivos destinados à impressão de livros, tornou-se uma prática muito divulgada em toda a Europa do final da Idade Média e inícios do Renascimento. Com o renascimento das cidades no sul e no norte da Europa (Bruges, Hamburgo, Lisboa, Barcelona, etc.) e com o centralismo régio, tanto os soberanos quanto os poderes autônomos do governo dessas cidades “descobriram” que uma forma de introduzir novas tecnologias, de atrair recursos laborais e de controlar a liberdade de expressão, então sob o controle dos editores, consistia na concessão de privilégios de comercialização, de introdução de novas manufaturas ou indústrias e de impressão de livros em série. Se, inicialmente, esse poder era exercido discricionariamente pelos soberanos ou pelos príncipes, gradativamente ele foi sendo enquadrado nas novas funções do poder legislativo, na medida em que se surpreendeu uma eminente função de prossecução do interesse público no exercício dessas prerrogativas de autoridade. O Estatuto dos Monopólios britânico, de 1604, constituiu um claro exemplo desse movimento. Mas, por outro lado, a concessão das patentes por parte do soberano era já circunscrita ao território do respectivo Estado: o princípio da territorialidade permanece ainda hoje um elemento fundamental dos vários subsistemas da propriedade intelectual (direito de autor e direitos conexos, e direitos de propriedade industrial). A articulação entre as patentes e o interesse público já é claramente assumida por James Madison, nos Federalist Papers (1787-1788), nos então recém-nascidos Estados Unidos da América, segundo o qual o bem comum deve coincidir com as pretensões dos indivíduos, ideal normativo que se encontra consagrado no artigo 1, Seção 8, Cláusula 8ª, da Constituição dos E.U.A., no sentido da “promotion of progress in science and the useful arts”. Da mesma sorte, a mudança ocorrida na Inglaterra, em 1716, pela qual passou a ser requerida a descrição do invento e a forma de o atuar, traduz o reconhecimento da tutela do interesse público (na divulgação da tecnologia e da execução do invento) por ocasião da concessão de direitos de patente. Por outro lado, a modelação desse subsistema das patentes (e dos modelos de utilidade) foi efetuada de uma forma plenamente instrumental à medida dos objetivos político-econômicos dos Estados soberanos: basta atentar para a forma como, a partir de finais do século XIX, a Alemanha, a Suíça, a França e o Reino Unido modelaram 18 os respectivos regimes jurídicos em atenção à patenteabilidade dos produtos e dos processos utilizados na indústria química e, logo, em atenção à concentração empresarial e ao reforço do poder desses grupos econômicos. 2. A GLOBALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL Gradativamente, foi sendo erodida essa concepção soberana, territorialmente delimitada e imune a quaisquer movimentos de harmonização procedimental ou material do direito de patente, no seio das organizações internacionais. Esse movimento começou, como é sabido, com a Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial (mais conhecida por Convenção da União de Paris), em 20 de março de 1883, subscrita inicialmente por 11 países, entre eles Portugal e Brasil. O princípio do tratamento nacional e o direito de prioridade foram, provavelmente, os dois maiores compromissos aí assumidos. Essa Convenção da União de Paris, constitutiva de uma União para a proteção da propriedade industrial, já pretendia concretizar o sonho de um direito de patente substantivamente uniformizado no quadro das nações civilizadas - longe, porém, de o ter concretizado. Mais de 100 anos depois, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI/ WIPO) constatou, em 1988, que, dos então 98 Estados Contratantes dessa Convenção da União de Paris, 49 excluíam a patenteabilidade de fármacos; 45 proibiam a patenteabilidade das raças animais; 42 afastavam a outorga de patentes relativas aos métodos de terapia, cirúrgicos e de diagnóstico; 44 vedavam essa patenteação às variedades vegetais; 35 impediam a concessão de patentes sobre os alimentos; 32 proibiam a patenteabilidade das invenções respeitantes a programas de computador; e 22 Estados Contratantes não concediam patentes a invenções de produtos químicos3. Essa diversidade legiferante traduz a forma, não raras vezes, instrumental como os Estados contratantes da Convenção de Paris usam esse subsistema da propriedade industrial. Em alguns casos, inclusivamente, essa visão instrumentalista serviu prioritariamente a certos interesses públicos: basta ver as alterações da lei de patentes da União Indiana, ocorridas em 1970, no sentido da promoção do desenvolvimento econômico e, sobretudo, no sentido de prevenir o aumento do custo dos medicamentos para uso humano4, por meio, inter alia, da proibição da patenteabilidade dos medicamentos enquanto patentes de produto. 3 “Existence, scope and form of generally internationally accepted and applied standards/norms for the protection of intellectual property”, World Intellectual Property Organization, WO/INF/29 September 1988, GATT Document number MTN:GNG/NG11/ W/24/Rev.1. 4 RAMANNA, Anita, “Shifts in India’s Policy on Intellectual Property: The Role of Ideas, Coercion and Changing Interests”, in DRAHOS, Peter (ed.), Death of Patents, Queen Mary Intellectual Property Institute, Lawtext Publishing Limited, 2005, p. 175 ss. 19 Um outro exemplo é o controverso poder jurídico que, a partir de 2001, no Brasil, foi concedido à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para emitir um parecer vinculante (a “anuência prévia” 5) sobre a concessão de patentes às invenções de novos fármacos e processos farmacêuticos, enquanto proposta de resolução dirigida ao INPI brasileiro, que o vincula aos aspectos da invenção6 que a essa ANVISA cumpre apreciar - regime que, ao que parece, também vigora no Paraguai. A essa concepção soberana e territorial da regulamentação da propriedade industrial, maxime do direito de patente, opôs-se, já desde o Congresso de Viena de 1873, uma concepção universalista. À luz desse outro paradigma, ainda em finais do século XIX, os direitos naturais dos inventores formam a base jusnaturalista para a unificação ou a globalização do direito de patente. Embora as várias revisões da Convenção da União de Paris tenham sido importantes, essa globalização foi totalmente lograda com o Acordo TRIPS, a partir de 1995, por meio do qual foram estabelecidos padrões normativos mínimos quanto ao objeto da proteção, aos requisitos de proteção e às medidas de aplicação efetiva dos direitos de propriedade intelectual. Mas já antes, em 1970, com o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (Patent Cooperation Treaty: PCT), se havia alcançado alguma uniformização dos procedimentos de patenteabilidade entre os três maiores institutos de patentes (Instituto de Patentes e Marcas dos E.U.A., o Instituto Europeu de Patentes e o Instituto Japonês de Patentes), especialmente a partir das conferências trilaterais, que têm tido lugar desde 1983. À parte o Conselho do TRIPS, o certo é que desde 1983 a Organização Mundial da Propriedade Intelectual tem estado na senda da harmonização dos aspectos substantivos do direito de patente: a Conferência Diplomática da Haia, de 1991, aprovou uma proposta de Tratado sobre Direito de Patente. 5 6 Conforme preceitua o artigo 229º-C do Código da Propriedade Industrial brasileiro, na redação da Lei nº 10.196, de 2001. A rigor, parece-me que a competência da ANVISA, no que tange a essa proposta de resolução (parecer vinculante) fundada no pedido de patente, apenas deverá recair sobre a eficácia, a bioequivalência e a segurança (e, eventualmente, a violação da ordem pública e dos bons costumes no setor da saúde) do medicamento para que é pedida a constituição do direito de patente; essa competência (scilicet, competência vinculante para o INPI brasileiro) não deverá recair sobre os aspectos respeitantes à novidade, à industrialidade, à atividade inventiva, à suficiência da descrição ou ao objeto de proteção (v.g., admissibilidade de patentes do segundo e dos usos terapêuticos subsequentes de substâncias ativas já conhecidas; a admissibilidade da patenteabilidade dos polimorfos, etc.). 20 3. AS EXPRESSÕES REGIONAIS DA CONCEPÇÃO UNIVERSALISTA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL : A OPORTUNIDADE DO ENCONTRO DA LUSOFONIA NA PROPRIEDADE INTELECTUAL Essa concepção universalista da propriedade intelectual, et, pour cause, do direito de patente, teve importantes expressões regionais. Atualmente, existem cinco organizações regionais de propriedade intelectual e de direito de patente: • • • • • A Organização Africana de Propriedade Intelectual (OAPI: aglutinadora dos países de expressão linguística francesa). A Organização Regional Africana de Propriedade Intelectual (ARIPO, que aglutina os países de língua oficial inglesa). A Organização Eurasiana de Patentes. A Convenção sobre a Patente Europeia. O Instituto de Patentes do Conselho de Cooperação do Golfo. Talvez seja este o momento para propor a discussão da gênese de uma outra organização internacional regional: a Organização de Propriedade Intelectual dos Países de Expressão de Língua Oficial Portuguesa, destinada a estabelecer a promoção e a cooperação nesse domínio, maxime dos institutos nacionais de propriedade industrial, em matéria de objeto e critérios substanciais de proteção, bem como no quadro dos procedimentos administrativos de proteção (v.g., realização de exames, pelos institutos de outros Estados de expressão de língua portuguesa, a determinados tipos de pedidos de proteção, centralização de alguns procedimentos, troca de informações sobre o estado da técnica ou as divulgações anteriores, etc.) e na difusão e intercâmbio do conhecimento jurídico sobre a propriedade intelectual (v.g., acesso on line a bases de dados, para o efeito da pesquisa sobre o estado da técnica; realização de ações de formação). A sua gênese tanto poderia residir na formação de uma associação privada de propriedade intelectual provida de representantes desses países, como na criação de uma pessoa de direito público internacional a partir da celebração de um acordo internacional multilateral com os representantes dos respectivos Estados. As primícias poderão consistir apenas em um Protocolo por meio do qual se criam as condições para a partilha e a difusão dos conhecimentos em matéria de propriedade intelectual. Estará, provavelmente, longínquo o tempo em que virá a ser possível, mediante um (único) procedimento administrativo centralizado, peticionar e obter direitos de propriedade industrial unitários, vigentes simultaneamente em todos os Estados contratantes de expressão de língua portuguesa, e assim desligados do princípio da territorialidade e da independência dos direitos dessa natureza. 21 A mais importante e decisiva instância em matéria de direito de patente é, porém, a Convenção Sobre a Patente Europeia, a qual, por meio do seu Instituto Europeu de Patentes, prevê um procedimento administrativo centralizado de exame e de oposição à concessão, pelo qual se autoriza a dedução de um único pedido de patente que, quando concedido, se transforma em um feixe de múltiplas patentes nacionais (scilicet, a partir de 12 de dezembro de 2007, da totalidade dos Estados contratantes dessa organização internacional regional, ficando o titular livre de limitar posteriormente a proteção apenas a alguns deles). Todos os Estados-Membros da União Europeia são membros da Convenção sobre a Patente Europeia (doravante, CPE), mas o inverso (ainda) não é verdadeiro7. Isso significa que essas duas organizações internacionais regionais estão umbilicalmente ligadas em matéria de propriedade intelectual, o que foi notório por ocasião da aprovação da Diretiva nº 98/44/CE, sobre o regime jurídico das invenções biotecnológicas, a qual suscitou, de imediato, a alteração, em 1999, do Regulamento de Execução da CPE8. Essa integração dos regimes substantivos e procedimentais ainda não foi (totalmente) lograda. Na verdade, embora exista, desde 1975, uma proposta acerca da criação do regime jurídico da patente comunitária (subordinada ao princípio da unidade e dotada de eficácia extraterritorial, de jeito a vigorar simultaneamente em todos os ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros da União Europeia), está ainda em discussão a proposta de regulamento comunitário para a criação de uma patente comunitária, datada de 2003. A par dessa proposta, acha-se em acesa discussão a proposta de um Sistema Europeu de Resolução de Litígios em Matéria de Patentes, de 2004 (European Patent Litigation Agreement: EPLA) - sistema menos ambicioso que apenas visa a criação de uma jurisdição unitária susceptível de resolver litígios em matéria de infração de direitos de patentes e de pedidos de anulação de patentes (Tribunal Europeu de Patentes)9, que não de um sistema fundado no princípio da unidade e da extraterritorialidade dos direitos de patente adrede concedidos10. Neste último caso, muitos advogam a criação de uma estrutura jurisdicional unificada susceptível de resolver litígios em matéria de patentes europeias e da futura patente comunitária11, com base em um acordo internacional 7 A Noruega, a Suíça, a Islândia, o Lichtenstein, a Croácia e a Turquia não são membros da União Europeia, mas são Estados contratantes da CPE. Outros Estados europeus, que não são membros da União Europeia, nem da Convenção sobre a Patente Europeia (CPE), reconhecem nos respectivos territórios a validade e a eficácia das patentes europeias concedidas pelo Instituto Europeu de Patentes. É o caso da Albânia, da Bósnia-Herzegovina, da Sérvia e da antiga República Iugoslava da Macedônia. 8 Cfr. as Regras 23-b (definições), 23-c (invenções biotecnológicas patenteáveis), 23-d (exceções à patenteabilidade), 23-e (o corpo humano e os seus elementos destacáveis), 28 (depósito da matéria biológica) e 28-a (novo depósito de matérias biológicas), aprovadas pela Decisão do Conselho de Administração do Instituto Europeu de Patentes, de 16 de junho de 1999, com início de vigência em 1 de setembro de 1999, in http://www.epo.org/patents/law/legal-texts/decisions/ archives/16061999.html. 9 Provido de um tribunal de 1ª instância (com seções regionais sediadas nos Estados-Membros) e de um tribunal de recurso. 10 Cfr. a mais recente comunicação da Comissão Europeia ao Parlamento Europeu e ao Conselho, Bruxelas, Com(2007), 29-0307, intitulada “Enhancing the patent system in Europe”, pp. 9-11. 22 celebrado entre a União Europeia e a Convenção da Patente Europeia. As mais de 800.000 patentes europeias concedidas e em vigor em 2005 - a cujos litígios, após a fase da concessão e da oposição junto do Instituto Europeu de Patentes, se aplicam as variegadas regras materiais e processuais nacionais dos Estados contratantes da CPE (a maioria deles Estados-Membros da União Europeia) - reclamam a urgente criação de um sistema material e processual uniformizado, capaz de congregar o direito comunitário derivado e o direito dessa outra organização internacional regional: a Convenção da Patente Europeia. De todo modo, ainda não foram ultrapassados os vários problemas de integração das instituições criadas no seio dessas duas Organizações Internacionais regionais: a integração jurisdicional (criação de um tribunal comunitário dotado de competência para apreciar e julgar os pedidos de invalidação e de violação da patente comunitária e, eventualmente, de pedidos de indenização por perdas e danos), profissional (disciplina da atividade dos agentes da propriedade industrial não juristas) e linguística (desnecessidade de efetuar as traduções dos pedidos de patentes para as línguas oficiais dos Estados-Membros). Todavia, a propriedade intelectual tem-se integrado no nível dos acordos bilaterais, o que também propiciou a harmonização do seu regime jurídico material. Por exemplo, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) e o Mercosul contribuem, de várias formas, para a fixação de bitolas mínimas de proteção dos direitos de propriedade intelectual12. No nível bilateral, a União Europeia e, sobretudo, os E.U.A., têm vindo a usar a sua influência e peso negociais, de modo a estabelecer acordos bilaterais de livre comércio susceptíveis de elevar os níveis de proteção da propriedade intelectual a estalões até agora nunca experienciados (p. ex., a consagração da proibição da apresentação do pedido e a concessão de autorização administrativa de comercialização de medicamentos genéricos enquanto vigorarem os direitos de patente sobre os medicamentos de referência; obrigatoriedade da proteção das variedades vegetais por direito de patente, obrigatoriedade da proteção por direito de patente de produto das matérias biológicas meramente isoladas do seu ambiente natural, etc.). Mas é tudo menos certo que os E.U.A. e a União Europeia usem esse mecanismo dos acordos regionais de livre comércio para o efeito de promover a diversidade dos regimes do direito de patente. Em matéria de direito de patente, a experiência recente tem mostrado que o retorno ao bilateralismo - protagonizado pelos E.U.A. - visa alcançar os níveis mais elevados de 11 Essa estrutura incluiria tribunais de 1ª instância de competência especializada em matéria de patentes sediados nos EstadosMembros da União Europeia, cujas decisões, pautadas por regras materiais e procedimentos uniformes (eventualmente fundados no Regulamento (CE) nº 44/2001, sobre a competência dos tribunais em matérias civis e comerciais), seriam objeto de recurso para o Tribunal de 1ª instância da União Europeia e, ultima ratio, para o Tribunal de Justiça da União Europeia. 12 DRAHOS, Peter, “BIT’s and BIP’s – Bilateralism in Intellectual Property”, in Journal of World Intellectual Property, vol. 4, 2001, p. 791 ss. 23 proteção dos direitos de propriedade intelectual, não raras vezes ao arrepio dos interesses públicos e dos interesses gerais da coletividade. Em suma, caminha-se a passos largos para um sistema de direitos de patente mundialmente harmonizado, provido de elevados níveis de proteção - promovidos pelos lobbies das multinacionais europeias e estadunidenses13 - em desfavor das diversidades regionais de regimes jurídicos, a que não é estranha a globalização da regulação que a esse nível tem ocorrido: isso desde o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (Patent Cooperation Treaty), passando pelo Acordo TRIPS e pelo Tratado sobre Direito de Patente (Patent Law Treaty). E o mesmo ocorre, embora em menor medida, com os restantes “tipos” de propriedade intelectual (v.g., direitos de autor e direitos conexos, desenhos ou modelos industriais, direito de marca, topografias de produtos semicondutores). 4. A CONTRACORRENTE ( NA LUSOFONIA ) AO PARADIGMA UNIVERSALISTA DA PRO - PRIEDADE INTELECTUAL Perspectiva-se, contudo, uma estratégia alternativa em termos de contracorrente relativamente a esse paradigma universalista e maximalista da proteção da propriedade intelectual, em particular no quadro do direito de patente e nos países cuja fauna e flora encerra uma enorme diversidade biológica, como acontece com a maioria dos países de expressão de língua oficial portuguesa. É, na verdade, possível perseguir uma política legislativa agressiva na proteção de invenções por direito de patente e, ao mesmo tempo, assegurar a proteção dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais das populações, relativamente à sua localização, identificação, manipulação e preparação. Todos estes nossos países unidos pela língua portuguesa podem (e devem) reforçar a sua posição no que tange ao domínio dos recursos biológicos informacionais. O Brasil tem-no feito, desde 2000 (rectius, desde a Medida Provisória nº 2.052, de 20 de junho de 200014). Portugal instituiu, desde 2002, um regime jurídico de proteção, algo complexo, dos recursos genéticos vegetais autóctones e dos conhecimentos tradicionais associados, pelo qual podem ser criados direitos sui generis de propriedade industrial - bem como pode ser efetuada uma espécie de apropriação estadual pública do acesso 13 14 DRAHOS, Peter; BRAITHWAITE, John. Global Business Regulation, Cambridge, Cambridge University Press, 2000, p. 27. Cfr. GÖTTING, Horst-Peter, “Biodiversität und Patentrecht”, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, Internationaler Teil, 2004, p. 371 ss., p. 735; SILVA, Marina, “Medida Descabida”, in CARNEIRO, Fernanda / EMERICK, Maria Celeste (eds.), Limites: A ética e o Debate Jurídico sobre o Acesso e Uso do Genoma Humano, Rio de Janeiro, dezembro de 2000, p. 209 ss.; FIORILLO, Celso / DIAFÉRIA, Adriana, Biodiversidade e Património Genético no Direito Ambiental Brasileiro, São Paulo, Max Limonad, 1999, p. 371 ss.; CARNEIRO, Ana Cláudia Mamede, “Acesso a Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais Associados e Repartição de Benefícios”, in Revista da ABPI, n. 88, maio / junho 2007, p. 3 ss.; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. II, Obtenções Vegetais, Conhecimentos Tradicionais, Sinais Distintivos, Bioinformática e Bases de Dados, Direito da Concorrência, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 334-344. 24 a tais recursos, a mais da precípua criação de uma base de dados dos recursos genéticos que forem sendo objeto da proteção - e assegurada a partilha dos benefícios econômicos obtidos por meio do acesso e da manipulação de tais recursos biológicos15. Ora, isso permite, a um tempo, sindicar mais rigorosamente o requisito da novidade dos inventos obtidos a partir de tais recursos genéticos, corpóreos ou incorpóreos, constituir um acervo de informações juridicamente coisificáveis e, por consequência, um acervo apto a poder ser objeto de negócios (v.g., contratos de partilha de proveitos resultantes da exploração econômica das invenções obtidas a partir de tais recursos). Estratégias, essas, que, ao rejeitarem a ideia de que esses conhecimentos e recursos são uma espécie de “patrimônio comum da Humanidade”, livremente fruíveis por todos, privilegiam, uno actu, a construção de quadros legais dirigidos à proteção elevada desses direitos subjetivos privados de propriedade industrial e à exaustiva documentação e proteção dos recursos genéticos e dos conhecimentos associados em favor das comunidades locais, ainda que personificadas nos municípios ou em outras autarquias ou pessoas coletivas locais, públicas ou privadas, sem finalidades lucrativas. Por outro lado, detectam-se aqui e ali expressões da resistência à hiperproteção de certas inovações pelos direitos de propriedade intelectual ou expressões dirigidas à manutenção, à outrance, dos exclusivos já concedidos e dos monopólios de fato que por meio deles são exercidos. Os dispositivos do TRIPS-Plus negociados entre os E.U.A. e os Estados com quem têm vindo a celebrar Acordos de Livre Comércio são o resultado dessa hiper-proteção, maxime no setor farmacêutico, quais sejam, por exemplo16: • O prolongamento ou a extensão dos direitos de patente para além do prazo de 20 anos (que sucedeu ao tradicional prazo de 4 ou de 15 anos, o qual durou até ao advento do TRIPS). • A existência de um condicionamento preclusivo entre a vigência de uma patente respeitante a um medicamento de referência e a aprovação e registro de um genérico desse medicamento de referência. • A proteção dos dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos comunicados às entidades sanitárias, para efeitos de emissão da autorização de comercialização do genérico do medicamento de referência. • A abolição das restrições à patenteabilidade. • A restrição da concessão de licenças compulsórias por motivos de falta de exploração do invento no país ou por razões de interesse público. 15 Cfr. o Decreto-Lei nº 118/2002, de 20 de abril. Veja-se, para mais desenvolvimentos, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. II, cit., 2007, pp. 620-680. 16 Veja-se, na doutrina brasileira, CHAVES, Gabriela Costa / OLIVEIRA, Maria Auxiliadora / HASENCLEVER, Lia / DE MELO, Luiz Martins, “A evolução do sistema internacional de propriedade intelectual: proteção patentária para o setor farmacêutico e acesso a medicamentos”, in Cadernos de Saúde Pública (Rio de Janeiro), vol. 32, nº 2, 2007, p. 257 ss., p. 264 ss. 25 No Brasil, temos o caso das denominadas patentes pipeline e da repercussão no Brasil da extensão dessas patentes no país de origem. E temos também a questão do exercício negativo da “anuência prévia”, por parte da ANVISA17, maxime em relação à concessão de patentes para as segundas e subsequentes indicações terapêuticas propiciadas por substâncias químicas já divulgadas. Isso já para não falar da proibição da patenteabilidade dos seres vivos, no todo ou em parte, exceto os micro-organismos geneticamente manipulados (artigo 18, inciso III, do Código da Propriedade Industrial – CPI brasileiro de 1996)18. Em Portugal e em muitos outros países, assistimos a tentativas de estabelecer uma ligação preclusiva ou condicionadora entre a vigência dos direitos de patente sobre os ingredientes ativos de medicamentos e o início do procedimento administrativo de registro de medicamentos genéricos e de aprovação do seu preço máximo de venda ao público - medicamentos bioequivalentes porque incorporam a mesma substância ativa junto à autoridade sanitária portuguesa competente (o INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento)19. 5. A AXIOLOGIA DA CONCEPÇÃO UNIVERSALISTA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL : JUSNATURALISMO E PERSONALISMO VERSUS EFICIÊNCIA Todavia, se se perguntar quais são os fundamentos axiológico-jurídicos dessa concepção universalista dos direitos de propriedade intelectual, ficamos apenas com a algo amarga sensação de que tais soluções arrancam dos paradigmas neoliberais baseados na eficiência e na maximização da riqueza. Que as concepções jusnaturalistas, personalistas ou de justiça distributiva estão apartadas dessa legitimidade-legitimação da atual propriedade intelectual, parece assim ser um dado adquirido. 17 Veja-se, recentemente, JANNUZI, Anna Haydée / VASCONCELLOS, Alexandre / DE SOUZA, Cristina Gomes, “Especificidades do patenteamento no setor farmacêutico: modalidades e aspectos da proteção intelectual”, in Cadernos de Saúde Pública (Rio de Janeiro), vol. 26, nº 6, 2008, p. 1.205 ss., p. 1208. 18 Lembre-se, todavia, que, para efeitos de patenteabilidade, é estreito o alcance da expressão “micro-organismo transgênico”, visto que o § único desse artigo 18º preceitua que tais microrganismos são “organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais”. Assim se vê que no Brasil, diferentemente do que acontece na União Europeia, no E.U.A., no quadro dos outros Estados Contratantes da CPE, na Austrália, na Nova Zelândia ou no Japão, não são patenteáveis, em termos de patente de produto, as matérias biológicas (v.g., sequências genéticas, aminoácidos, bactérias, vírus, péptidos, células, etc.) meramente isoladas do seu ambiente natural por meio de um processo técnico, nem as que, tendo sido geneticamente manipuladas, mimetizam as propriedades ou as características das suas congéneres preexistentes na Natureza. 19 Sobre essa problemática, cfr. agora, J. P. REMÉDIO MARQUES, Medicamentos Versus Patentes – Estudos de Propriedade Industrial, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 14 ss. 26 Parecem, ao invés, prevalecer os argumentos de índole funcional ou instrumental, baseados na eficiência econômica20. Como explicar, de fato, a patenteabilidade de sequências genéticas, de células geneticamente manipuladas, de péptidos, de invenções de programas de computador, de métodos de fazer negócios ou, na Europa, como legitimar a proteção das bases de dados (a extração e/ou a reutilização de partes substanciais dessas bases de dados), mediante a constituição de um “direito especial” do fabricante dessas bases de dados senão mediante a necessidade de remunerar o investimento econômico efetuado pelas empresas? Repare-se que, nessas eventualidades, já não está tanto em causa a remuneração do trabalho intelectual dos criadores, mas antes a expansão do universo dos quia susceptíveis de proteção pelos diferentes “tipos” ou “categorias” de propriedade intelectual, pois somente assim se percepcionam os incentivos para o investimento. Só que essa hiperinflação patenteária - essa “corrida às patentes” -, e a proliferação global do patentear de todas e quaisquer realidades propiciadas pela enorme expansão do objeto de proteção do direito de patente, gerará provavelmente a diminuição do valor mercadológico dessas mesmas patentes, visto que é mínimo o nível inventivo atualmente exigido como requisito de proteção. Além disso, poderá ocorrer uma espécie de “tragédia” dos antibaldios (anti-commons)21, onde os titulares dos direitos podem vir a suportar “custos de transação” inultrapassáveis, na eventualidade de o legislador ou os tribunais (com o auxílio da doutrina jurídica) não procederem à adequada limitação do âmbito de proteção dessas patentes ao real contributo técnico que efetivamente o titular alcançou em face do teor das reivindicações e da descrição dos inventos. Se assim for, os níveis de inovação (mesmo a inovação meramente incremental) tenderão a diminuir e os agentes irão preferir regressar a um tempo em que era elevada a distância entre o estado da técnica e a solução técnica concretamente reivindicada (nível inventivo) a partir do qual podiam ser concedidos direitos de patente. Isso se os agentes não seguirem uma outra estratégia, segundo a qual é preferível ser um poderoso titular de uma patente “fraca”22, especialmente se puder ser dotado de um poder econômico bastante para desfrutar de uma posição dominante no mercado. 20 STERCKX, Sigrid, “The Ethics of Patenting – Uneasy Justifications”, in DRAHOS, Peter (ed.), Death of Patents, Queen Mary Intellectual Property Institute, University of London, Lawtext Publishing Limited, 2005, p. 175 ss., p. 193 ss. 21 ARAÚJO, Fernando, A Tragédia dos Baldios e dos Anti-Baldios – O Problema Económico do Nível Óptimo de Apropriação, Coimbra, Almedina, 2008, p. 191 ss., p. 215 ss. (sobre os remédios para os antibaldios). 22 DRAHOS, Peter, “Death of a Patent System – Introduction”, in DRAHOS, Peter (ed.), Death of Patents, cit., 2005, p. 1 ss., p. 10. 27 6. A ATUAL CONSTELAÇÃO DOS INTERESSES EM JOGO: GLOBALIZAÇÃO VERSUS A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL VERSUS O REFORÇO DOS NÍVEIS DE PROTEÇÃO Surpreendem-se, no entanto, movimentos contestatários aos atuais modelos de desenvolvimento econômico, expressão dos movimentos de antiglobalização econômica, os quais têm vindo a marcar valiosos pontos na edificação das soluções jurídico-políticas internacionais sobre a regulação do acesso, da utilização e da preservação da diversidade biológica. Desde logo, têm sido colocadas sérias objeções quanto à patenteabilidade das invenções de plantas, animais e microrganismos enquanto matérias preexistentes na natureza e geradoras de meras descobertas enquanto tal e, por isso, não patenteáveis. Movimentos, estes, que tentam alterar o disposto no artigo 27º/3 do Acordo TRIPS, ao arrepio do bloco formado pelos E.U.A., União Europeia, Suíça, Japão e os interesses da maioria das empresas multinacionais farmacêuticas23. Estamos, pois, no campo da normatividade negociada construída em vários aerópagos internacionais: na “Comissão sobre os Recursos Genéticos Vegetais para a Alimentação e Agricultura”, no seio da F.A.O., na Organização Mundial do Comércio, na Conferência das Partes no quadro da Convenção sobre a Diversidade Biológica e na Organização Mundial da Propriedade Intelectual. As visões dos céticos da propriedade intelectual confrontam-se permanentemente com as posições assumidas pelos corifeus do movimento que advoga o reforço do licere ou das faculdades jurídicas inerentes aos direitos de propriedade intelectual. Descortinam-se, no entanto, tentativas de imprimir maior pluralismo na ação dos atores mundiais da propriedade intelectual. Nota-se o trânsito dessas questões no âmbito da própria Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em particular, na “Subcomissão para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos”, a qual adotou, em agosto de 2000, uma resolução, desprovida embora de vinculatividade jurídica, intitulada “Intellectual Property Rights and Human Rights”. Essa resolução sinalizou vários problemas, tais como: 1. Os obstáculos resultantes da aplicação dos direitos de propriedade intelectual em matéria de transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento. 2. As consequências emergentes da concessão de direitos de obtentor de variedades vegetais e de direitos de patentes relativamente a organismos geneticamente manipulados, em matéria de exercício e proteção do direito à alimentação. 23 PUGATCH, Meir Perez, The International Political Economy of Intellectual Property, Edward Elgar, Cheltenham, Northampton, 2004, pp. 162-163. 28 3. A (in)desejável redução dos poderes jurídicos das populações e comunidades locais relativos à participação procedimental nos mecanismos de alocação dos recursos genéticos e dos objetos culturais. 4. A restrição do acesso aos medicamentos patenteados, o preço (elevado) desses fármacos e a influência desse regime no gozo do direito à saúde24. Vemos, assim, que o objeto e o âmbito de proteção dos direitos de propriedade intelectual se confrontam com a consideração dos direitos humanos enquanto posições jurídicas fundamentais limitativas da constituição dos exclusivos industriais e do respectivo âmbito de proteção. Discute-se, hoje, a interferência dos direitos humanos no contexto da propriedade intelectual. A questão já foi colocada no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos - no caso, ITP SA v. Coflexip Stena Offshore Lts (2004) -, a propósito de uma ação interposta, nesse tribunal, pelo titular de uma patente que fora revogada com base no fato de não dispor (seja no Estado da sede, o Reino Unido, seja junto ao Instituto Europeu de Patentes) de mecanismos de impugnação de decisões tomadas pelas Câmaras Técnicas de Recurso do Instituto Europeu de Patentes, o que ofenderia o direito a um julgamento justo (artigo 6º/1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos). Esse tipo de discussões relança a um primeiro plano a importância do direitoliberdade geral de agir (in casu, a liberdade de iniciativa econômica privada, a liberdade de pesquisa, de informação e de comunicação), a crença na economia de mercado, a crença de que as pessoas não são mônadas, que apenas perseguem interesses egoísticos, e a necessidade de serem devidamente sopesados os interesses gerais da coletividade. O que significa que, embora os direitos de propriedade intelectual (pelo menos o direito de autor e o direito de patente) possam constituir direitos fundamentais de natureza análoga ou, inclusivamente, direitos constitucionais fundamentais25, creio que o reconhecimento ou a constituição dessas situações jurídicas subjetivas devem ser havidas como exceções à regra26. E a regra é a liberdade, a liberdade de iniciativa econômica privada; a liberdade de referência; a liberdade de citação, etc. No mínimo, parece razoável sustentar que há outros valores e interesses providos de um idêntico estalão (o valor da liberdade de expressão e de comunicação, o interesse em imitar as prestações de outrem, o valor da sã e leal concorrência). 24 J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 54-46; KUR, Anette, “A new framework for intellectual property rights – horizontal issues”, in International Review of Industrial Property and Copyright Law, 2004, p. 1 ss. (a autora salienta, também, a necessidade de, perante esses desafios, estabelecer redes de pesquisa research networks - constituídas não apenas por juristas, mas por pessoas oriundas de outras disciplinas científicas). 25 J. J. GOMES CANOTILHO, “Liberdade e Exclusivo na constituição”, in Direito Industrial, Almedina, Coimbra, p. 57 ss., pp. 62-63. 26 CORNISH, William, Intellectual Property, Omnipresent, Distracting, Irrelevant?, Oxford University Press, 2004, pp. 113-114; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., p. 47. 29 Ora, vistas assim as coisas, o regime jurídico correspondente a cada um dos direitos de propriedade intelectual deve ser o adequado e o necessário e, portanto, deve ser o proporcional à prossecução dos objetivos que cada um dos exclusivos intelectuais ou industriais visa realizar nos casos concretos27. Devem, assim, ser tomados em devida conta os interesses paramétricos dos consumidores, dos concorrentes e da população em geral, não apenas por ocasião da constituição ou do reconhecimento em concreto de um direito de propriedade intelectual, mas também por ocasião da delimitação desse âmbito de proteção. 7. A INFLUÊNCIA DA GLOBALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL QUANTO AO ALARGAMENTO DAS REALIDADES QUE PODEM SER PROTEGIDAS POR DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL E QUANTO AO ÂMBITO DE PROTEÇÃO DESSES DIREITOS Ocorreu (e ocorre) todo um movimento de contestação, muitas vezes não institucionalizada e dotada, não raras vezes, de expedientes de ação direta, aos processos de globalização da propriedade intelectual. Essa contestação marca muitos pontos a seu favor. De fato, os direitos de propriedade intelectual foram, de alguma maneira, instrumentalizados para proteger os espectaculares avanços logrados nas tecnologias da informação e nas biotecnologias aplicadas ao setor das indústrias químicas e farmacêuticas. Se esses avanços foram, muitas vezes, alcançados por meio de financiamentos oriundos de empresas privadas em parcerias com institutos e universidades públicas (parcerias público-privadas), à luz dessa lógica era necessário evitar a todo o custo o fenômeno dos “passageiros clandestinos” (free riders) e a reprodução não autorizada das obras, das ideias inventivas industriais ou das prestações empresariais protegidas pelos direitos de propriedade intelectual. Essa aparente vulnerabilidade perante o perigo da imitação ou da reprodução conduziu à concentração empresarial e a um movimento de pressão a favor do aumento dos níveis de proteção do subsistema jurídico da propriedade intelectual. E o Acordo TRIPS mais não fez do que, ao harmonizar planetariamente o regime dos vários “tipos” ou “categorias” de propriedade intelectual, enfocar a preocupação sobre os objetos ou as realidades a proteger e a atribuição da titularidade28. 27 No plano oposto, sobre os requisitos das leis restritivas de direitos de autor, GOMES CANOTILHO, José Joaquim, “Liberdade e Exclusivo na Constituição”, cit., 2005, pp. 66-67. 28 MAY, Cristopher, A Global Political Economy of Intellectual Property Rights, The new enclosures?, Routledge, London, 2000, reimpressão, 2002, p. 73. 30 Veja-se a diretriz constante do artigo 8º do TRIPS: embora os Estados Contratantes possam adotar medidas adequadas à proteção da saúde pública, da nutrição e da promoção do interesse público, o certo é que essa tutela dos interesses públicos somente pode ser licitamente atuada se e quando for compatível com o disposto nas restantes regras e regimes jurídicos previstos nesse mesmo Acordo (v.g., a regra da não discriminação da patenteabilidade em função dos setores da tecnologia; os princípios do tratamento nacional e da nação mais favorecida; a inversão do ônus da prova nas patentes de processo; a proteção das informações clínicas não divulgadas; a existência de processos eficazes de aplicação efetiva dos direitos de propriedade intelectual contra quaisquer atos de infração, etc.) Essa globalização do regime da denominada propriedade intelectual também se fez sentir, como referi, na expansão do acervo de objetos ou de realidades passíveis de proteção por esses direitos de exclusivo. Vejamos apenas alguns exemplos: Desde logo, a proteção por direito de patente das invenções que implicam programas de computador. Na União Europeia e no seio da CPC (Comunity Patent Convention), isso foi conseguido a partir de meados dos anos oitenta do século passado29 por mor de uma interpretação restritiva das exclusões à patenteabilidade previstas no artigo 52º/2 e 3 da CPE (maxime a expressão “programas de computador como tal”; e a expressão programas de computador “sem qualquer contributo”, constante do artigo 52º/1, alínea d), do Código da Propriedade Industrial - CPI português de 2003). Depois, a possibilidade de reivindicar e patentear o segundo e os subsequentes usos ou aplicações terapêuticas de uma substância química já conhecida. No Brasil, essa prática vem sendo rejeitada pela ANVISA30, sendo porém admitida à luz do CPI brasileiro e das diretrizes para exame no setor biotecnológico e farmacêutico31 emitidas pelo próprio 29 A partir da decisão T 208/84, de uma das Câmaras Técnicas de Recurso do Instituto Europeu de Patentes, no caso VICO (in Official Journal of the European Patent Office, 1987, p. 14 = http://www.epo.org). Essa evolução pode ver-se desenvolvidamente em J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. II, 2007, cit., pp. 706-736; BERESFORD, Keith, Patenting Software Under the European Patent Convention, Sweet & Maxwell, London, 2000, p. 47 ss.; MISSOTTEN, Stephanie, “La brevetabilité du logiciel et des méthodes commerciales”, in Droits Intellectuels: à la recontre d’une stratégie pour l’enterprise, Bruylant, Bruxelles, 2002, p. 101 ss., p. 106 ss. 30 Sobre isso, cfr. DE SOUZA, Marcela Trigo, “Should Brazil Allow Patents on Second Medical Uses?”, in Revista da ABPI, n. 93, março/abril 2008, p. 53 ss., p. 61 ss. (contra a recusa da ANVISA em conceder a “anuência prévia” desse tipo de patentes, regime que também existe, ao que parece, no Paraguai – CHAVES, Gabriela Costa / OLIVEIRA, Maria Auxiliadora / HASENCLEVER, Lia / DE MELO, Luiz Martins, “A evolução do sistema internacional de propriedade intelectual: proteção patentária para o setor farmacêutico e acesso a medicamentos”, in Cadernos de Saúde Pública (Rio de Janeiro), vol. 23, n. 2, 2007, p. 257 ss., p.264); tb. BARBOSA, Denis Borges, Uma Introdução à Propriedade Intelectual, Lúmen Iuris, 2ª edição, 2003, p. 442 (pronunciando-se contra a atribuição à ANVISA, ou a qualquer outra entidade pública, de um poder discricionário relativamente ao exercício do direito de requerer uma patente e ao direito de esta ser concedida, uma vez respeitados os requisitos objetivamente plasmados na lei, quais sejam, a novidade, a atividade inventiva, a industrialidade, etc.). 31 INPI, Diretrizes Para Exame no Sector Biotecnológico e Farmacêutico, §§ 2.39.2.3. e 2.39.2.4 (aplicáveis aos pedidos efetuados a partir de 31/12/2004). 31 INPI brasileiro32, bem como agora, de modo expresso, no CPI português de 2003 (artigo 54º/1, alíneas a) e b), na redação do Decreto-Lei nº 143/2008, de 25 de julho). Em terceiro lugar, no quadro da União Europeia e da CPE, a patenteabilidade de animais e de vegetais, se e quando a exequibilidade técnica do invento não se limitar a uma única variedade vegetal ou raça animal, abertura que também se verifica nos E.U.A. e na Austrália, bem como em todos os Estados com quem os E.U.A. celebraram Acordos de Livre Comércio no âmbito do TRIPS plus (Panamá, México, Colômbia, Marrocos, Jordânia, etc.); outrossim, a patenteabilidade das matérias biológicas meramente isoladas do seu ambiente natural, incluindo os genes (humanos ou de outra origem biológica) ou as sequências de genes. Em quarto lugar, o regime dos desenhos ou modelos industriais permite agora a proteção das características da aparência dos produtos artesanais33. Em quinto lugar, o exclusivo conferido pelo direito de marca pode abarcar domínios ultramerceológicos para os quais o sinal não fora registrado, como acontece no caso das marcas renomadas ou de grande prestígio; e, por vezes, é conferida proteção às marcas olfativas, o que parece infringir o princípio da capacidade distintiva34 e torna excepcionalmente difícil, incerta ou mesmo impossível a determinação do círculo de proteção do direito relativamente a outras marcas susceptíveis de serem julgadas iguais ou semelhantes. Quanto ao âmbito de proteção desses direitos de exclusivo, cabe referir, desde já, a possibilidade aberta, na União Europeia, nos E.U.A. e também no Brasil - embora aqui de forma vaga, genérica e, por isso, potencialmente “perigosa” e incerta para os agentes econômicos interessados (artigo 41º, § 1 do CPI brasileiro) - no sentido de sancionar a violação indireta do direito de patente, expediente que tem sido utilizado, igualmente, no subsistema do direito de autor. 32 No quadro da CPE, a proteção da segunda e das subsequentes aplicações terapêuticas de substâncias já conhecidas é admitida desde a decisão T 182/82, in Official Journal of the European Patent Office, 1984, p. 164; GÓMEZ SEGADE, José Antonio, “La patenteabilidad de la segunda indicación médica de un producto farmacéutico”, in Actas de Derecho Industrial, Tomo IX, 1983, p. 241 ss.; SZABO, George, “Second medical and non-medical indication – The relevance of indications to novel subjectmatter”, in Zehn Jahre Rechtsprechung der Groβen Beschwerdekammer, Carl Heymanns Verlag, Köln, Berlin, Bonn, München, 1996, p. 11 ss. Na Europa, hoje discute-se, a mais disso, a questão da patenteabilidade da segunda ou das subsequentes utilizações para a mesma aplicação terapêutica de uma substância já conhecida, respeitantes a novas formas de apresentação ou de dosagem. Cfr. o caso G 2/08, para efeitos de uniformização de jurisprudência, atualmente pendente na Grande-Câmara de Recurso do Instituto Europeu de Patentes, suscitado pela decisão T 1319/04, de 22/04/2008 (in http://www.epo.org.): patenteabilidade do uso de uma substância ativa já conhecida em uma nova e inventiva terapia aplicada à mesma doença, onde o nível inventivo e a novidade da invenção (de uso) podem residir na dosagem dessa substância. 33 Artigo 3º, alínea b), do Regulamento (CE) nº 6/2002, do Conselho, de 12/12/2001, sobre o regime dos desenhos ou modelos comunitários; artigo 174º/1 do CPI português de 2003. 34 GONÇALVES, Luís Couto, “Marca olfativa e o requisito de representação gráfica”, in Cadernos de Direito Privado, n. 1, 2003, p. 14 ss.; TRIGONA, Riccardo, Il marchio, la ditta, l’insegna – Recenti sviluppi legislativi e giurisprudenziale, Cedam, Padova, 2002, pp. 35-36. 32 Trata-se, em suma, daquelas situações em que o titular goza da faculdade jurídica de impedir que, no Estado da proteção, terceiros coloquem no comércio ou comercializem os meios respeitantes a elementos essenciais da invenção, tal como fora reivindicada, para a por em prática por parte de pessoas não autorizadas a fazê-lo, quando esses terceiros sabem ou não podem desconhecer que, de acordo com as circunstâncias, esses meios são aptos a por em prática a invenção protegida. Inúmeras legislações contêm previsões desse tipo35. Nessas eventualidades, a fabricação, a importação ou a venda de um produto - normalmente um componente de uma máquina, de um sistema informático ou uma matéria biológica que não tenha sido objeto de uma reivindicação independente - não infringe, por si só, a patente, mas pode ser usado pelo adquirente desses meios para a violar36. É o caso, por exemplo, da exportação para a China de componentes de um sistema informático patenteado na Alemanha ou em Portugal, para o efeito de aí serem montados e, de seguida, serem importados para o território dos Estados (europeus) da proteção. 35 Por exemplo, o § 10(1) da Patentgesetz alemã de 1981; a Seção 60(2) do Patent Act do Reino Unido, de 1977; a Secção 117 do Patent Act australiano, de 1990; o art. L 613-4 do Code de la propriété intellectuelle francês, de 1992; o artigo 51, nº 1, da Ley de Patentes espanhola, de 1986. O artigo 41, § 1 do Código de Propriedade Industrial – CPI brasileiro, laconicamente, limita-se a determinar que: “Ao titular da patente é assegurado ainda o direito de impedir que terceiros contribuam para que outros pratiquem os atos referidos neste artigo”. Em Portugal, o CPI de 2003 não contém expressamente esse tipo de ilícito, à semelhança dos Códigos anteriores (de 1940 e de 1995). Porém, a recente transposição da Diretiva nº 2004/48/CE, relativa à aplicação efetiva dos direitos de propriedade intelectual (in Jornal Oficial da União Europeia, nº L 157, de 30/04/2004, p. 45 ss.), efetuada por meio da Lei nº 16/2008, de 1° de abril, permite surpreender a previsão de alguns resquícios desse tipo de ilícito. Não deixa, porém, de ser uma violação direta. É o caso do novo artigo 338º-D, nº 2, do CPI português de 2003, o qual autoriza as medidas judiciárias de preservação da prova a incluir “a apreensão efetiva dos bens que se suspeite violarem direitos de propriedade industrial e, sempre que adequado, dos materiais e instrumentos utilizados na produção ou distribuição desses bens, assim como dos documentos a eles referentes” - o itálico é meu. De resto, o novo artigo 338º-I do mesmo Código determina que as providências cautelares destinadas a inibir qualquer violação iminente ou a proibir a continuação da violação “podem também ser decretadas contra intermediários cujos serviços estejam a ser utilizados por terceiros para violar direitos de propriedade industrial” - o itálico é meu. É, como se vê, exigível a eminência ou a atual verificação de uma violação direta, o que afasta, a despeito disso, a consagração, entre nós, desse ilícito da violação indireta, já que este dispensa a alegação e prova da atualidade ou da eminência da violação direta da patente. 36 Sobre essa forma de violação do direito de patente, cfr. J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 851-854; HÖLDER, Niels / SCHMIDT, Josef, “Indirect Infringement: Late Developments in Germany”, in European Intellectual Property Review, 2006, p. 480 ss.; KRAβER, Rudolf, Patentrecht – Ein Lehr- und Handbuch, 5 Auflage, Verlag C. H. Beck, München, 2004, p. 830 ss.; KEUKENSCHRIJVER, Alfred, in BUSSE, Patentgesetz, Kommentar, 6 auflage, De Gruyter, Berlin, 2003, § 10, anotação à margem 6 ss., pp. 312-313; POLLAUD-DULIAN, Frédéric, Droit de la propriété industrielle, Montchrestien, Paris, 1999, p. 162; BENTLY, Lionel / SHERMAN, Brad, Intellectual Property Law, 2ª edição, Oxford University Press, 2004, p. 531; BENYAMINI, Amiran, Patent Infringement in the European Community, VCH, Weiheim, 1992, p. 173 ss.; agora, J. P. REMÉDIO MARQUES, “Contributory Infringement – Case Law and Comparative View”, texto apresentado no Congresso Challenges for IP Protection and Enforcement, Union of European Practitioners in Intellectual Property, Porto, 29th – 30 may 2008, disponível, para já, em http://www.lexmedicinae.pt. = O Direito, ano 140º, 2008, III. 33 Trata-se de um ilícito autônomo e independente. Pode-se demandar o contrafator indireto, independentemente da demanda do contrafator direto ou da ocorrência de uma violação direta da patente. São, desse modo, sancionados os atos facilitadores da violação direta ainda antes de esta ocorrer ou de sua verificação estar eminente. Notese, na verdade, que, na União Europeia, essa violação indireta não está condicionada à alegação e prova da eminência, da ameaça ou da efetiva violação direta da patente37. Além disso, quer a oferta, quer o fornecimento dos meios, quer o local da utilização do invento protegido devem ocorrer (ou refletir-se diretamente) no Estado da proteção, o que exclui a ilicitude dos atos de fornecimento, no estrangeiro, de meios por parte de terceiros à pessoa que comete a violação direta da patente no Estado onde a proteção vigora38, bem como afasta a ilicitude do fornecimento, nesse Estado, de meios para fabricar o produto ou utilizar o processo no estrangeiro. Mas já haverá violação indireta se alguns elementos ou componentes essenciais do invento protegido forem exportados para, sendo montados no estrangeiro (v.g., em um país do sudoeste asiático) sob a iniciativa de outros terceiros, serem, de seguida, importados para o Estado de origem onde a patente está em vigor, e onde a invenção é usada39. Já no ordenamento dos E.U.A., a verificação desse contributory infringement encontrase dependente da simultânea ocorrência de uma violação direta da patente, embora se defenda que esta última violação pode ser predicada do fato de um determinado dispositivo não ter outro efeito ou aplicação senão aquele que viola a patente40. Não se exige, assim, a prova direta da ocorrência de uma violação direta da patente (id est, a armazenagem, o transporte, a venda, a importação, etc., do produto patenteado ou dos produtos resultantes do processo patenteado). 37 BENYAMINI, Amiran, Patent Infringement, cit., 1992, p. 181. 38 Por exemplo, a decisão do Tribunal de Grande Instance (TGI) de Paris, de 27/06/1997, in Propriété Intellectuelle, Bulletin Documentaire, 1997, III, p. 581; e, no Reino Unido, o caso Kalman v. PLC Packaging (UK), in Fleet Street Reports, 1982, p. 406 ss., pp. 420-424. 39 Cfr., nesse sentido, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal alemão (Bundesgerichtshof), de 30/01/2007, no caso “Funkuhr II” / “Relógio-rádio II”, proc. nº X ZR 553/04, in http://www.bundesgerichtshof.de, = Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, 2007, p. 313, orientação que já havia sido seguida anteriormente, pelo mesmo Supremo Tribunal, em 26/02/2002, no caso “Funkuhr I”, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, 2002, p. 599. É ainda necessário que o fornecimento para o estrangeiro de alguns meios essenciais para pôr em prática o invento tenha sido efetuado sob a intenção de a invenção ser efetivamente usada, mais tarde, no país exportador e onde a proteção esteja em vigor. Cfr., ainda, THORLEY, Simon / MILLER, Richard / BURKILL, Guy / BIRSS, Colin / CAMPBELL, Douglas, TERREL On the Law of Patents, 16ª edição, Sweet & Maxwell, London, 2006, p. 316; CORNISH, William / LLEWELYN, David, Intellectual Property, 5ª edição, Sweet & Maxwell, London, 2003, pp. 252-253; JESTAEDT, Bernhardt, in BENKARD Europäisches Patentübereinkommen, C. H. Beck, München, 2002, art. 64, anotação à margem n. 15, p. 648. 40 HARMON, Robert, Patents and the Federal Circuit, 4ª edição, The Bureau of National Affairs, Washington D.C., BNA Books, 1998, p. 308. 34 Seja como for, a vigência do Acordo TRIPS culminou um movimento de afirmação do poder privado das estruturas do conhecimento científico e tecnológico e da esfera privada da detenção e da titularidade desse conhecimento. Isso, em detrimento da esfera pública (onde estará, por princípio, sempre garantido o livre acesso e a partilha dessas informações e conhecimentos). Mas o subsistema normativo formal da propriedade intelectual vê-se, hoje, confrontado e assolado por propostas da “sociedade civil” que abalaram a sua quietude e a lógica dos tempos passados; os tempos em que a assimetria de poder e de informação permitia que apenas os juristas e alguns representantes dos interesses econômicos hegemônicos participassem no processo legislativo destinado à conformação do regime jurídico desses direitos de propriedade intelectual. Agora, a crítica e a (des)construção do subsistema normativo da propriedade intelectual tende a “democratizar-se”. Essa crítica e (des)construção acha-se, hoje, aberta a propostas que eram impensáveis ou inexequíveis há alguns anos: p. ex., a menção, nos pedidos de patente, da origem geográfica de certos recursos biológicos; o consentimento informado e o regime da partilha dos benefícios entre o titular da patente e as populações locais detentoras de conhecimentos acerca da localização e manipulação desses recursos biológicos (benefícios, esses, resultantes da exploração comercial das invenções obtidas a partir de tais conhecimentos, sob cominação de o pedido de patente ser recusado ou, nas versões mais radicais, sob ameaça de o direito de patente ser posteriormente anulado)41; e a concessão de licenças compulsórias para fabrico e exportação de fármacos a preços bem mais baixos, destinados aos países com graves problemas de saúde pública. 41 Sobre a menção da origem dos recursos e a prestação do consentimento das populações autóctones (ou dos seus representantes) no quadro do regime das concessão do direito de patente, cfr. J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. II, 2007, cit., pp. 533-589; CORREA, Carlos M., Establishing a disclosure of Origin Obligation in the TRIPS Agreement, Occasional Paper 12, Quaker United Nations Office, Buenos Aires, 2003, p. 2 ss., in http://www.geneva.quono. info/pdf/disclosure%2oOP%2012.pdf; GIRSBERGER, Martin A., “Disclosure of the Source of Genetic Resources and Traditional Knowledge in Patent Applications”, in International Expert Workshop on Access to Genetic Resources and Benefit Sharing, México, 24 a 27 de outubro de 2004, in http://www.canmexworkshop.com/papers.cfm; GOPALAKRISHNAN, N. S., “TRIPs and Protection of Traditional Knowledge of Genetic Resources: New Challenges to the Patent System”, in European Intellectual Property Review, 2005, pp. 12-13; JOSE MASSAGUER, “Algunos aspectos de la protección juridical de los conocimientos tradicionales asociados a recursos genéticos mediante el sistema de propriedad intelectual”, in Actas de Derecho Industrial, Tomo XXII, 2002, p. 197 ss.; BLUEMEL, “Substance Without Process: Analysing TRIPS Participatory Guarantees in the Light of Protected Indigenous rights”, in Journal of the Patent and Trademark Office Society, vol. 86, 2004, p. 700 ss.; CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent Rights, 2ª edição, Kluwer Law International, The Hague, London, 2005, pp. 259-303; ROBERTS, Tim, in European Intellectual Property Review, 2005, N-84-85; CORREA, Carlos M., in Resource Book on TRIPS and Development, UNCTAD-ICTSD, Cambridge University Press, 2005, pp. 448-459. 35 8. A INFLUÊNCIA DA GLOBALIZAÇÃO NO REGIME DO DIREITO DE AUTOR E DOS DI - REITOS CONEXOS : NOVAS “CATEGORIAS” DE PROPRIEDADE INTELECTUAL, EXPANSÃO DO OBJETO DE PROTEÇÃO DAS “CATEGORIAS” EXISTENTES. O REGIME DA PROTEÇÃO CONTRA AS NEUTRALIZAÇÕES DAS PROTEÇÕES TÉCNICAS No que tange ao direito de autor na atual Sociedade da Informação, a globalização da propriedade intelectual também se faz aqui sentir em uma dupla vertente: por um lado, com a criação de novos “tipos” ou “categorias” protetoras (v.g., o “direito especial” do fabricante de bases de dados não originais, em vigor nos Estados-Membros da União Europeia; o “direito ao espetáculo”; o regime especial do direito de autor sobre os programas de computador) e, por outro, com a ampliação das faculdades jurídicas exercitáveis pelos titulares dos “tipos” de direitos já existentes42. Depois, têm-se as regras de proteção jurídico-tecnológica do software43. A Diretiva (CEE) nº 91/250 do Conselho, de 14 de maio de 1991, relativa à proteção jurídica dos programas de computador, estabeleceu, desde logo, um acervo de proteções jurídicas contra quem coloque em circulação ou possua, para fins comerciais, uma cópia de um programa de computador, conhecendo ou não podendo ignorar o seu caráter ilícito, ou de meios cujo único objetivo seja o de facilitar a supressão não autorizada ou a neutralização de qualquer dispositivo técnico eventualmente usado na proteção do programa (artigo 7º dessa Diretiva). A própria lei portuguesa prevê a possibilidade de apreensão de dispositivos em comercialização que tenham por finalidade exclusiva facilitar a supressão não autorizada ou a neutralização de qualquer salvaguarda técnica colocada para proteger o programa de computador ou uma base de dados (artigo 13º do Decreto-Lei nº 252/94, de 20 de outubro, e o artigo 13º/2 do Decreto-Lei nº 122/2000, de 4 de julho). Quanto ao regime jurídico da proteção contra as neutralizações das proteções técnicas44, a Diretiva nº 2001/29/CE, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação45 - baseada, é certo, nos artigos 11º e 12º do Tratado da Organização Mundial da Propriedade Industrial (OMPI) - protege as medidas técnicas eficazes, nos casos em que, portanto, a obra ou o material protegido por direito de autor ou direito conexo seja detido pelos titulares dos direitos por meio de um controle de acesso ou de um processo de proteção, como, por exemplo, a codificação, a cifragem 42 Entre outros, GÓMEZ SEGADE, Jose Antonio, “A Mundialização da Propriedade Intelectual e o Direito de Autor”, in Studia Iuridica, 48, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 7 ss., p. 22. 43 Cfr., agora, PEREIRA, Alexandre Dias, Direito de Autor e Liberdade de Informação, Dissertação, existente no fundo bibliográfico da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 2007, p. 504 ss. 44 As quais, como se sabe, impedem a cópia da obra ou controlam o acesso a essa obra ou a qualquer outro material protegido. 45 36 In Jornal Oficial das Comunidades Europeias, n. L 167, de 22/06/2001, p. 10 ss. ou qualquer outra transformação da obra, ou um mecanismo de controle da cópia, que garanta a realização do objetivo da proteção (artigo 6º/3 dessa Diretiva). Além de que essa proteção jurídica aplica-se também contra o fabrico, a importação, a distribuição, a venda, o aluguel, a publicidade ou a posse para fins comerciais de todos esses dispositivos de contornamento de medidas de caráter tecnológico. 9. O IMPACTO DESSAS MUDANÇAS NO REGIME DAS UTILIZAÇÕES LIVRES DE DIREITO DE AUTOR, EM PARTICULAR A CÓPIA PRIVADA Mas poderá admitir-se que as utilizações livres (v.g., citação, paródia, comentário ou crítica, para fins de ensino, educação, de exposição em bibliotecas, etc.) de direito de autor possam ser suprimidas por meio desse regime jurídico das proteções técnicas? Na União Europeia e, em alguns casos, nos E.U.A., chegou-se ao ponto de as medidas eficazes de caráter tecnológico contra a neutralização ou o contornamento dos protocolos, dos algoritmos, dos formatos ou dos métodos de criptografia, de codificação ou de transformação poderem constituir um obstáculo ao exercício normal das utilizações livres pelos seus beneficiários. No ambiente digital, as medidas tecnológicas predispostas pelos titulares do direito de autor, e que impedem ou restringem o uso ou a fruição das utilizações livres por parte de quem tenha legalmente acesso ao bem protegido, são lícitas nos casos em que as obras ou as prestações ou produções protegidas são disponibilizadas ao público na sequência de contratos celebrados entre os titulares e os utilizadores, de tal forma que a pessoa possa aceder a elas a partir de um local e em um momento por ela escolhido (v.g., acessos on line a conteúdos protegidos: programas de televisão, músicas, retransmissões de eventos previamente gravadas e disponibilizadas na Internet, etc.)46. Nos outros casos, fica assegurado que os beneficiários das utilizações livres delas possam tirar partido mesmo contra medidas técnicas de proteção utilizadas pelos titulares dos direitos47. Logo, não há uma imperatividade das utilizações livres (ou não existe uma imperatividade das “exceções” ao direito de autor, como alguns preferem). Daqui decorre que os limites à liberdade contratual não operam no ambiente digital, nas eventualidades em que o utilizador pode aceder às obras ou às prestações protegidas a partir de um local e em um momento por ele escolhido. Isto é grave, pois se cria uma espécie de lock-up digital em favor do titular dos direitos de exploração econômica, na medida em que os utilizadores finais são normalmente levados a subscrever licenças de utilização (End User 46 Cfr. o artigo 222º do Código do Direito de Autor português, na sequência da transposição da citada Diretiva nº 2001/29/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade de informação, transposição que foi efetuada por meio da Lei nº 50/2004, de 24 de agosto. 37 Licence Agreements: EULA48), predispostas unilateralmente pelo titular da propriedade intelectual, cujas cláusulas são inalteráveis por esse titular49. E, ultima ratio, faz-se então mister recorrer ao regime das cláusulas contratuais (conquanto em ações populares), para o efeito de fazer apreciar e julgar a invalidade desse tipo de cláusulas50. Pelo contrário, nos E.U.A., há um forte movimento que se pronuncia contra a neutralização dos limites do copyright mediante o direito dos contratos ou de meios tecnológicos apropriados. O fair use é aí visto como um limite à liberdade contratual51. Não obstante, a lei portuguesa e as demais leis dos Estados-Membros da União Europeia vão no sentido de conferir prevalência à liberdade de cópia privada sobre as cláusulas contratuais gerais em sentido contrário (artigo 75º/1 a 3 do Código do Direito de Autor): a lei comina a nulidade de certas cláusulas, embora permita que as partes acordem as formas do seu exercício, maxime no que respeita aos montantes das remunerações equitativas. E é, ainda, duvidosa a licitude da cópia privada na modalidade de on-line storage52. Já quanto à realização de cópias de segurança, essa conduta é lícita no quadro do direito de autor sobre programas de computador. Mas já é uma atividade ilícita no quadro do regime do “direito especial” de extração e/ou de reutilização de partes substanciais da 47 Nesse caso, o Código do Direito de Autor português estabeleceu, no seu artigo 221º, um procedimento especial, de jeito a que as medidas técnicas não impeçam o exercício normal de um lato acervo de utilizações livres (as previstas essencialmente no artigo 75º/2 do mesmo Código), por parte dos seus beneficiários. Assim, todo aquele que pretenda efetuar uma utilização livre (v.g., uma Universidade que deseje incluir um hiperlink na sua página da Web para determinados manuais ou artigos, que se encontram no acervo de uma base de dados) deverá procurar celebrar um acordo com o titular dos direitos de autor ou direitos conexos. Se não o conseguir, poderá recorrer à Comissão de Mediação e Arbitragem, criada pela Lei nº 83/2001, de 3 de agosto, de cujas decisões, sujeitas a eventuais sanções pecuniárias compulsórias, cabe recurso para o Tribunal de 2ª instância territorialmente competente (o Tribunal da Relação). Sobre isso, cfr. PEREIRA, Alexandre Dias, Direito de Autor e Liberdade de Informação, 2007, cit., p. 528 ss. Todavia, como a obra protegida está no acervo de uma base de dados on line de acesso condicionado (idem, para os demais ordenamentos europeus), o titular do direito de autor pode impedir, de iure, esse acesso, à luz do disposto na citada diretiva comunitária e do artigo 222º do referido Código do Direito de Autor. Nessa eventualidade, não se aplicam as normas imperativas que garantem “sempre” as referidas utilizações contra as medidas técnicas predispostas pelo titular. 48 BURKE, John A., “Reinventing Contract”, in Murdoch University Electronic Journal of Law, vol. 10, n. 2, 2003, p. 18 ss., = http:// www.murdoch.edu.au/elaw/issues/v10n2/burke102_text.html. 49 CORREA, Carlos M., “Fair Use in the Digital Era”, in International Review of Industrial Property and Copyright Law, 2002, p. 570 ss.; FOGED, T., “US v. EU anti Circumvention Legislation: Preserving the Public’s Privileges in the Digital Age”, in European Intellectual Property Review, 2002, p. 525 ss.; BURREL, Robert / COLEMAN, Allison, Copyright Exceptions – The Digital Impact, Cambridge University Press, Cambridge, New York, etc., 2005, 3ª reimpressão, 2006, pp. 67-69; LUCCHI, Nicola, Digital Media & Intellectual Property, 2006, cit., pp. 102-113. 50 BURREL, Robert / COLEMAN, Allison, Copyright Exceptions, 2006, cit., pp. 306-309; LUCCHI, Nicola, Digital Media & Intellectual Property, 2006, cit., p. 99 ss., p. 118 ss. 51 Por exemplo, McMANNIS, Charles, “The Privatization (or ‘Shrink-wrapping’) of American Copyright Law”, in California Law Review, 1999, p. 173 ss.; BURREL, Robert / COLEMAN, Allison, Copyright Exceptions – The Digital Impact, 2006, cit., p. 73. 38 base, o qual beneficia o fabricante de bases de dados eletrônicas (artigos 6º/2, alínea a), e 9º da Diretiva nº 96/9/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março, relativa à proteção jurídica das bases de dados). Assim, o regime das proteções técnicas, o das licenças de utilização e o da proteção antineutralização tornam quase obsoleta a proteção pelo direito de autor quando essa tutela é aplicada ao ambiente digital: o titular da obra ou da prestação empresarial protegida tende a usar, doravante, o direito dos contratos e o regime da responsabilidade civil para o efeito de permitir a utilização ou o “consumo” da sua obra ou prestação53. Atenta a enorme facilidade e frequência de reprodução não autorizada de obras e à sua “distribuição digital”, o titular dos direitos de exploração econômica tenderá a mobilizar um acervo de proteções técnicas e de medidas antineutralização em vez das medidas repressivas decorrentes da titularidade do direito patrimonial de autor e dos aspectos também patrimoniais dos direitos conexos. Mas isso extravasa as preocupações do regime jurídico estrito do direito de autor. De resto, também a interoperabilidade passa a estar limitada, pois, diferentemente do que acontece nos E.U.A. (com o Digital Millenium Copyright Act, de 1999), na União Europeia não ficou ressalvada a liberdade de pesquisa de software para fins de desenvolvimento de criptografia. A cópia privada está, de igual modo, limitada: o titular dos direitos de autor ou de direitos conexos pode utilizar medidas eficazes de caráter tecnológico para condicionar o número de reproduções não autorizadas relativas ao uso privado (artigo 221º/8 do Código do Direito de autor português). O novo regime jurídico europeu instituiu expressamente uma remuneração compensatória pela reprodução para uso privado, remuneração que é predisposta em benefício dos titulares dos direitos; no ambiente analógico, essa remuneração é estabelecida em favor dos editores. Note-se, porém, que essa compensação econômica só se dá se o titular dos direitos não utilizar medidas de caráter tecnológico destinadas a impedir a reprodução da obra. Assim, a reprodução para uso privado deixou de ser uma utilização livre de direitos de autor, já que ao titular é atribuída uma pretensão compensatória54. No ambiente digital, os titulares são normalmente as empresas de conteúdos, que prestam serviços na Internet, e a reprodução de obras ou outros materiais protegidos para uso privado integra o direito de reprodução (artigo 75º/1 do Código do Direito de Autor português). 52 Em sentido afirmativo, PEREIRA, Joel Timóteo Ramos, Compêndio Jurídico da Sociedade da Informação, Lisboa, Quid Iuris, 2004, pp. 768-769. Sobre isto, PEREIRA, Alexandre Dias, Direitos de Autor e Liberdade de Informação, 2007, cit., p. 559 ss. 53 BECHTOLD, Stefan, “Digital Rights Management: Destruction or Protection of the Commons?”, in Juridische aspekten van Internet / Juridisch Tijdschrift voor Internet en E-business, 2003, p. 162 ss., pp. 162-165. 39 A lei portuguesa e a dos restantes Estados-Membros da União Europeia passaram a consagrar o direito de controlar o acesso à obra no conteúdo dos direitos de autor enquanto meio de proteção dos direitos dos autores - e não uma nova faculdade de cariz patrimonial55 -, mesmo que o seja sob a condição de a sua exploração ser efetuada com o recurso a proteções técnicas. Chega-se ao ponto de incluir o consumidor final no círculo de oponibilidade, contra quem os titulares dos direitos de propriedade intelectual podem reagir, nos termos da Diretiva nº 2004/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 200456, sobre a aplicação efetiva dos direitos de propriedade intelectual, transposta para o direito português por meio da Lei nº 16/2008, de 1 de abril57 (artigo 2º dessa lei, a qual aditou o artigo 210º-F ao Código do Direito de Autor: o nº 2 desse artigo passou a determinar que a obrigação de prestação de informações sobre a origem e as redes de distribuição dos bens ou serviços em que se materializa a violação do direito de autor ou de direitos conexos pode recair sobre quem tenha sido encontrado na posse dos bens - o que pode abranger os consumidores ou utilizadores finais das obras ou dos conteúdos protegidos - ou esteja a utilizar ou prestar os serviços, em escala comercial, que se suspeite violarem tais exclusivos, bem como quem tenha sido indicado pelas pessoas atrás mencionadas). Não é, por isso, estultice apontar uma espécie de requiem aos direitos de autor no ambiente digital e salientar a emergência do direito dos contratos enquanto forma de (limitar o) acesso e de utilização, caso a caso, das obras ou de outros materiais protegidos (v.g., partes substanciais do conteúdo de bases de dados não originais). 10. O REGIME DA GESTÃO COLETIVA DO DIREITO DE AUTOR No que tange à gestão coletiva das obras ou prestações, a lei atribui poderes de representação dos direitos dos titulares a determinadas pessoas (p. ex., aos produtores de obras cinematográficas: artigo 126º/3 do Código do Direito de Autor português; às pessoas autorizadas a divulgar obra anônima), mesmo que de uma forma obrigatória (no caso do direito de retransmissão por cabo (artigos 7º e 8º do Decreto-Lei nº 33/97, na sequência da Diretiva nº 93/83/CEE, do Conselho, de 27/09/1993, relativa à coordenação de determinadas disposições em matéria de direito de autor e direitos conexos aplicáveis à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo). 54 Desenvolvidamente, PEREIRA, Alexandre Dias, Direitos de Autor e Liberdade de Informação, 2007, cit., p. 583. 55 VICENTE, Moura, “Direito de Autor e Medidas Tecnológicas de Protecção”, in Direito Comparado, Perspectivas Luso-Americanas, vol. I, Fundação Luso-Americana, Coimbra, Almedina, 2006, p. 161 ss., p. 176; OLIVEIRA ASCENSÃO, “Propriedade Intelectual e Internet”, in Direito da Sociedade da Informação, vol. VI, Coimbra, Coimbra Editora, 145 ss., p. 156; TRABUCO, Cláudia, O Direito de Reprodução de Obras Literárias e Artísticas no Ambiente Digital, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 728. 56 In Jornal Oficial da União Europeia, n. L 157, de 30/04/2004, p. 45 ss; PEREIRA, Alexandre Dias, Direitos de Autor e Liberdade de Informação, 2007, cit., p. 550-554. 40 Assim, o direito de autor degrada-se praticamente a um mero direito de remuneração por meio da gestão que é confiada a um terceiro, sendo duvidoso se o titular dos direitos pode reservar a não atribuição de certos poderes jurídicos à entidade de gestão coletiva. No ambiente digital, as empresas de conteúdos têm, ainda, todo o interesse em confiar a gestão dos seus direitos a essas entidades, visto que elas desempenham melhor a tarefa de “policiar” a rede. De todo modo, há que intuir e estar alerta para o poder econômico exercido, na Europa, por essas entidades de gestão coletiva. Todavia, essa gestão coletiva está sujeita ao controle do direito nacional e comunitário da concorrência. 11. A GESTÃO COLETIVA DO DIREITO DE AUTOR E O PROCESSAMENTO DE “INFORMAÇÕES SENSÍVEIS” DOS UTILIZADORES Há, ainda, que considerar o problema da proteção das informações para a gestão (coletiva) de direitos, no sentido da prevenção da retirada ou da alteração das informações, bem como a distribuição, a importação para distribuição, a radiodifusão, a comunicação ao público ou colocação à sua disposição de obras ou outro material protegido por todo aquele que sabe ou deverá razoavelmente saber que, ao fazê-lo, está a provocar, permitir, facilitar ou a dissimular a violação de um direito de autor ou de direitos conexos (artigo 87º/1 da citada Diretiva nº 2001/29/CE; artigo 223º/1 a 3 do Código do Direito de Autor português). É o caso, por exemplo, das entidades que, gerindo certas páginas da Internet, suprimem as informações que constam de certas fotografias ou imagens pelas quais os utilizadores que a elas acedem on line ficariam a saber que se tratava de obras ou de material protegido. Mas essa proteção das informações pode conduzir a um outro extremo reprovável: o do processamento de informações para a gestão dos direitos, que, pela sua concepção, possa processar simultaneamente dados pessoais sobre os hábitos de consumo do material protegido por parte dos particulares e detectar comportamentos on line, violando, destarte, o direito à intimidade ou à reserva da vida privada. É o que tem acontecido com a monitorização respeitante a cópias privadas no ambiente digital, a qual tem implicado, por vezes, o acesso eletrônico ao computador pessoal dos utilizadores em busca de cópias ilícitas. Trata-se de uma atividade ilícita não coberta, naturalmente, pelos direitos de autor. 12. O REPÚDIO DO DETERMINISMO TECNOLÓGICO NO AMBIENTE DIGITAL : ALGU - MAS SOLUÇÕES De tudo isso, decorre um conjunto de perplexidades evidenciadas pelo ocaso do direito de autor no ambiente digital, pelo determinismo tecnológico agora erigido por 41 mor do direito dos contratos58 (p. ex., licenças shrink-wrap) e pelo recuo da consagração de regime imperativo das utilizações livres (ou “exceções”) de direito de autor e direitos conexos. Doravante, a informação, as prestações empresariais e as obras podem passar a ser protegidas, não por serem originais, mas antes por estarem codificadas, sendo tal proteção alvo de um regime jurídico específico de acesso condicionado ao pagamento, caso a caso (serviço a serviço), de uma quantia predeterminada, e à sua utilização individualmente controlável. Eis um paradigma em que seriam bem mais baixos os “custos de transação”. Mas essa nova realidade - que está a dar os seus passos nos E.U.A. e na Europa - deverá ser planetariamente contrariada por meio de um conjunto de medidas. Vejamos. Necessita-se de mais interoperabilidade informática, não apenas nas interfaces equipamentos versus programas e programas versus programas, mas também no que respeita ao modelo das próprias redes e ao reforço da interatividade dos dados e das informações que circulam por essas redes informáticas. Depois, far-se-á mister reduzir a influência do regime do direito de autor na sedimentação da tutela dos serviços remunerados de acesso condicional, imunes ao princípio do esgotamento dos direitos. Pois, caso contrário, corremos já hoje o sério risco de codificar o princípio da onerosidade de cada ato de desfrute individual de uma obra ou prestação - como se fosse mais justo pagarmos um preço de cada vez que (re)lemos um livro acessível on line, ou todas as vezes em que assistimos a um filme ou ouvimos uma música no ambiente digital. Em breve, as proclamadas autoestradas da informação, por meio das quais deveriam fluir correntes de cultura, de entretenimento e de inovação, transformar-se-ão em estradas pejadas de pedágios e, por conseguinte, atravessadas ou visitadas por um número cada vez menor de utilizadores. Pelo contrário, o direito de autor deverá estar na base de um novo modelo econômico da sociedade da informação: a informação deverá ser livre, e o financiamento, efetuado por meio da publicidade no seio das comunidades virtuais. Todavia, importa não descurar a exigência de remuneração do investimento na criação, interesse que é tanto mais relevante quanto mais intensa é a possibilidade de este ser logrado, atentas as modernas técnicas digitais de reprodução. Assim, embora essas tecnologias impeçam que o utilizador proceda à sua retransmissão ou ao carregamento descendente (download) 57 Isso é conseguido mediante a previsão de um acervo de obrigações de informação que impedem sobre qualquer pessoa que “tenha sido encontrada na posse dos bens ou a utilizar ou prestar os serviços, à escala comercial, que se suspeite violarem direitos de propriedade intelectual” (artigo 210 - F/2, alínea a), do Código do Direito de Autor, na redação da citada Lei nº 16/2008, de 1º de abril), bem como as informações sobre “as quantidades produzidas, fabricadas, entregues, recebidas ou encomendadas, bem como sobre o preço obtido” e sobre “os nomes e os endereços dos produtores, fabricantes, distribuidores, fornecedores ou outros possuidores anteriores desses bens ou serviços” (artigo 210º-F/1, alíneas a) e b), do mesmo Código), obrigação que também beneficia os titulares de direitos de propriedade industrial. 42 e ao armazenamento no disco duro do seu computador pessoal (v.g., de escritos, imagens, sons, etc.), elas também permitem reduzir os custos marginais de produção dessas obras ou prestações empresariais e, consequentemente, criam condições para oferecer os produtos culturais, a informação e o entretenimento a preços mais baixos. Em terceiro lugar, o direito de autor deverá posicionar-se como um instrumento de promoção da concorrência no mercado da informação digital. Para isso, haverá que alargar a doutrina estadunidense do fair use no seio das utilizações livres previstas nos Códigos do Direito de Autor da União Europeia, de jeito a que as obras derivadas não estejam sempre sujeitas à autorização do titular do direito de autor sobre a obra originária - o que se revestirá do maior interesse em sede de aperfeiçoamento de motores de busca, de sistemas de navegação e de hiperlinks, impondo, também, o alargarmento do direito de cópia ou de reprodução para fins criativos, independentemente de autorização do titular (v.g., o movimento open source). Em quarto lugar, deverá resistir-se a criar novas formas ou “tipos” de propriedade intelectual sobre o conteúdo de bases de dados ou compilações, tal como ocorreu na União Europeia com a Diretiva nº 96/9/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março, relativa à proteção jurídica das bases de dados, cujo regime jurídico monstruoso impede, na prática, a livre extração ou reutilização desse conteúdo, bem como, nas bases de dados eletrônicas, a mera transferência não autorizada desse conteúdo para o “disco duro” do computador de todo aquele que não tenha sido autorizado pelo titular desses direitos sui generis. Assim, na União Europeia, o acesso a certos conteúdos de uma biblioteca digital on line, cujos direitos sui generis são titulados por empresas sediadas nesse espaço geográfico, fica dependente de autorização, não ocorrendo, tão pouco, o esgotamento desse direito de propriedade intelectual. Em quinto lugar, o princípio democrático e o direito-liberdade de expressão e de informação parecem exigir que a reprodução, a comunicação ao público ou a colocação à disposição do público de artigos de atualidade, de discussão econômica, política ou religiosa para fins de crítica sobre as ideias discutidas nessas obras não devem estar condicionadas à reserva ou à autorização do titular - o que ainda não acontece no direito português (artigo 75º/2, alínea m), do Código do Direito de Autor). Ademais, a tutela do patrimônio histórico e arquitetônico e da inerente herança cultural imporá a liberdade de reprodução, em formato eletrônico, de obras protegidas pelos direitos de autor, para fins de preservação e de arquivo, ainda que estas já estejam incluídas no acervo de materiais inseridos em uma base de dados eletrônica. Por último, o direito de autor e o regime sui generis da extração ou da reutilização do conteúdo de bases de dados não originais não devem ser utilizados para - sob o abrigo irrestrito do direito dos contratos e da sacrossanta liberdade contratual - impor uma proibição total da neutralização das barreiras técnicas (v.g., mediante protocolos, formatos, 43 algoritmos, métodos de criptografia ou de codificação) ao acesso a tais conteúdos. Se assim suceder, teremos um “super direito de autor” impeditivo de qualquer acesso à informação tecnicamente protegida. O direito de autor clássico corre o risco de claudicar, porque desnecessário, em favor do determinismo tecnológico apoiado na lei, no direito dos contratos e na responsabilidade civil. 13. O DIREITO DE AUTOR TECNOLÓGICO E A PROTEÇÃO DE CRIAÇÕES TÉCNICO -FUNCIONAIS A constatação de que o direito de autor oferece uma mais fácil e extensa tutela dos seus titulares tem levado o legislador e alguns intérpretes a recorrer ao direito de autor para lograr a proteção de certos resultados de ordem prático-funcional, tutela que outrora era apenas reservada ao direito de patente. Emergiu, destarte, um direito de autor tecnológico. Essa tendência manifesta-se, essencialmente, em duas direções. Por um lado, assistimos à crescente “invasão” do direito de autor relativamente a territórios que, no paradigma clássico, eram reservados ao direito de patente. Basta recordar a formidável blitz do direito de autor no campo do software59. Por outro lado, surpreendemos a pretensão do subsistema do direito de autor em tutelar certas realidades que o ordenamento havia excluído do universo do patenteável: é o caso da possibilidade de os mapas genéticos e das sequências genéticas (rectius, das sequências de nucleotídeos) serem objeto de proteção pelo direito de autor. Solução que me parece, liminarmente, de afastar60: as sequências de nucleotídeos não podem ser assimiladas a um programa, a uma compilação ou a uma base de dados, a uma obra derivada (maxime, a uma tradução), ou a uma carta geográfica: a forma mental não é, nesse caso, uma forma imaginativa; há apenas uma descrição, uma estruturação e uma representação técnicas de objetos, formas naturais ou formas extraídas e isoladas da natureza. Além disso, os constrangimentos técnico-funcionais não asseguram qualquer grau de liberdade ao “criador”, sob pena de as sequências genéticas assim “criadas” se revelarem completamente inúteis do ponto de vista prático-funcional. Mesmo que isso fosse legalmente possível, o âmbito de proteção reconhecido ao seu titular seria limitadíssimo: 58 CAHIR, John, “The Moral Preferences for DRM Ordered Markets in the Digitally Networked Environment”, in MACMILLAN, Fiona (ed.), New Directions in Copyright Law, Edward Elgar, Cheltenham, Northampton, 2005, p. 24 ss., pp. 46-48; LUCCHI, Nicola, Digital Media & Intellectual Property, Management of Rights and Consumer Protection in a Comparative Analysis, Springer, 2006, p. 99 ss. 59 GHIDINI, Gustavo, Aspectos actuales del Derecho industrial – Propriedad intelectual y competencia, Editorial Comares, Granada, 2002, p. 89. 44 ele não poderia impedir a utilização das mesmas sequências se estas resultassem de uma criação independente. De resto, bastaria efetuar pequenas alterações na forma da sequência de nucleotídeos, para o efeito de obter o mesmo resultado técnico: a expressão formal seria diferente. Por fim, a utilização de conceitos comunicacionais da linguagem informática (código genético, programa genético, informação genética, etc.) apenas desfruta de um valor heurístico susceptível de ser mais facilmente intuído pelos leigos; essa utilização da linguagem informática não traduz as complexidades biológicas ocorridas por ocasião da replicação do DNA e da produção de proteínas61. Em segundo lugar, sob a aparentemente correta justificação da “unidade da arte”, assistimos, em alguns ordenamentos - de que é exemplo o português (artigo 200º do CPI de 200362) -, à tutela autoral automática das características da aparência dos produtos industriais (v.g., linhas, contornos, formas, texturas, cores), tão logo elas sejam protegidas pelo regime dos desenhos ou modelos, independentemente de o legislador exigir expressamente a presença de uma criação artística; ou seja, independentemente da verificação dos requisitos específicos de proteção previstos no Código do Direito de Autor63 - o que constitui um enorme equívoco jurídico quanto aos objetos e aos requisitos de proteção. Em terceiro lugar, no quadro jurídico da União Europeia, a criação do “direito especial” do fabricante de bases de dados, previsto em Portugal no Decreto-Lei nº 122/2000, de 4 de julho, relativamente aos atos de extração ou de reutilização de partes substanciais dessas bases, constitui mais uma outra monstruosidade jurídica. Já que as apresentações de informações não podem ser objeto de direito de patente (artigo 52º/2, alínea d), da Convenção sobre a Patente Europeia; idem, artigo 52º/1, alínea e), do Código da Propriedade Industrial português de 2003), esse outro regime introduz a possibilidade da apropriação das meras informações enquanto tal ou outros materiais, independentemente de se revestirem de nível artístico ou desfrutarem de originalidade suficiente para poderem ser protegidas pelo direito de autor. Em vez de essa proteção ser efetuada à luz do regime da concorrência desleal, o legislador da União Europeia fez introduzir, nos ordenamentos jurídicos dos EstadosMembros, uma tutela dominial, de natureza absoluta – direito cujo reconhecimento e constituição está dependente da verificação de parâmetros meramente econômicoquantitativos, quais sejam, o ter havido um investimento substancial na obtenção, na 60 J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 143-156, p. 191 ss., p. 210 ss. 61 J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, cit., vol. I, 2007, pp. 195-200. 62 Que reza deste modo: “Qualquer desenho ou modelo registado beneficia, igualmente, da proteção conferida pela legislação em matéria de direito de autor, a partir da data em que o desenho ou modelo foi criado, ou definido, sob qualquer forma”. 45 seleção e na apresentação ou na disposição do acervo dessa base de dados. Direito, também, cuja violação está dependente do valor comercial dos dados ou informações extraídas ou reutilizadas. Tudo isso para remunerar o investimento em uma prestação empresarial realizada na obtenção, na seleção e na apresentação dessas informações, e não para remunerar a criação intelectual. Essa solução segue em contracorrente com a do resto do planeta – basta lembrar que nos E.U.A., no caso Feist, foi, apesar de tudo, salvaguardada a inapropriação da informação “pura” e dos dados enquanto tais. O direito de autor e os direitos conexos traduzem, assim, um “território redescoberto” pelas empresas que vêm ocupando posições dominantes no mercado. 14. A NOSTALGIA DO PASSADO, OS NOVOS RUMOS E A CONCERTAÇÃO DOS INTE - RESSES DIVERGENTES Vale a pena, apesar de tudo, perguntarmos a razão de ser dessa nostalgia do paradigma clássico do direito de autor, e se esses novos caminhos não são um sinal de vitalidade desse subsistema da propriedade intelectual. A resposta há-de residir na forma como o legislador estabelece (se estabelece) o equilíbrio entre os diferentes interesses antagônicos que aqui se digladiam. Lembremo-nos de que, em harmonia com esse paradigma clássico, vale o princípio da liberdade de iniciativa econômica e de gozo do patrimônio cultural intelectual. Apesar de a criação intelectual e os resultados dessa criação plasmados nos direitos de propriedade intelectual poderem ser perspectivados, em um certo sentido, como direitos fundamentais constitucionais64, a exceção é o exclusivo; a regra é a liberdade. Além disso, o elenco das faculdades jurídicas do titular há-de ser um elenco fechado. De resto, à luz desse paradigma clássico, há uma antinômica dicotomia entre as criações estéticas, 63 Para a crítica, desenvolvidamente, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 169-177. Nós entendemos que o legislador português não terá tido a absurda intenção de conferir uma tutela autoral, cumulativa, absoluta e automática a todo e qualquer desenho ou modelo registrado junto ao INPI. Propomos, assim, uma redução teleológica dessa norma. Cremos, pelo contrário, que as características da aparência dos produtos precipuamente registradas somente se beneficiam da tutela pelo direito de autor se e quando constituírem criações intelectuais, recte, quando tais características da aparência constituírem uma “criação artística” (artigo 2º/1, alínea i), do Código do Direito de Autor), à luz dos requisitos dessa outra codificação. De resto, foi esse o primevo sentido aplicado na França. Desde o seu início no dealbar do século XX, o princípio da unidade da arte nunca dispensou a presença do requisito da originalidade enquanto expressão de uma criação individualizante e, por isso, uma criação personalizada. A proteção por meio do regime do direito de autor exige uma criação artística, sendo que a proteção pela propriedade industrial é independente da primeira. Pelo que é errôneo pretender extrair do ordenamento francês qualquer arrimo que justifique uma proteção cumulativa absoluta e automática dessas características pelo direito de autor a todo o desenho ou modelo que reúna os requisitos constitutivos próprios do direito de propriedade industrial para que se pede proteção. Esses requisitos são, na União Europeia, a novidade e a singularidade das características da aparência. Tb. RIBEIRO, Bárbara Quintela, “A tutela jurídica da moda pelo regime dos desenhos ou modelos”, in Direito Industrial, vol. V, Coimbra, Almedina, 2008, p. 477 ss., p. 501 ss., p. 507 (propendendo, também, para o cúmulo relativo de tutelas: haverá uma tutela conjunta, desde que as características da aparência dos produtos preencham os pressupostos de aplicação do respectivo regime - haverá tutela pelo direito de autor se e quando tais características possam ser consideradas criações artísticas). 46 literárias e artísticas (protegidas pelo direito de autor) e as criações utilitárias, ou seja, as ideias inventivas industriais, susceptíveis de proteção pelo direito de patente. De um lado, temos os interesses dos autores, criadores intelectuais ou dos inventores, pessoas humanas; do outro, os interesses das empresas que financiam essas criações artísticas e inovações técnicas; enfim, também surpreendemos os interesses dos concorrentes: estes desejam minimizar ou anular os efeitos dos direitos de exclusivo; aqueles querem maximizá-los. Por outro lado, ainda, não podem menosprezar-se, hoje, os interesses dos consumidores (das soluções técnicas patenteáveis, ou das criações estéticas tuteladas por direito de autor), os quais são atraídos pela inovação e pelo preço reduzido dos bens. Temos, desse modo, uma economia caracterizada por uma situação acentuadamente monopolista ou oligopolista dos mercados em face do dever de prossecução do interesse público em manter uma fisionomia concorrencial dos mercados onde se faz e se vende a inovação estética e a tecnológica - mercados que devem ser aptos a manter uma concorrência e uma inovação razoavelmente efetivas. Há, por isso, que olhar para a forma como as tecnologias da informação se caracterizam. A resposta é a seguinte: elas materializam-se e atuam por meio de um sistema de redes, de conexões e de protocolos entre os diferentes utilizadores. O movimento open source, no quadro dos programas de computador e das obras ou outras criações artísticas (creative commons), é disso exemplo. E o lema propugnado por essa economia das redes é o seguinte: “o que é aberto é bom e o que é fechado é mau” (what is open is good, what is closed is bad). Daí que as próprias interfaces, que permitem a conexão entre os diferentes computadores e/ou entre os próprios programas informáticos, devem achar-se submetidas, se for o caso, a regimes de licenças compulsórias remuneradas, de jeito a prevenir ou a reprimir o abuso de posição dominante, de que foram exemplos, na União Europeia, o caso Magill (1995) e, recentemente, o caso Microsoft c. Comissão (setembro de 2007). Defende-se, desse modo, uma interpretação e uma visão pró-competitiva dos direitos de propriedade intelectual65, baseada, uno actu, no estímulo ao investimento em pesquisa e desenvolvimento e na repressão dos comportamentos objetivamente excludentes dos agentes econômicos e dos consumidores, bem como dos comportamentos nocivos para as indústrias das redes (network industries). 64 GOMES CANOTILHO, José Joaquim, “Liberdade e Exclusivo na Constituição”, in Direito Industrial, vol. IV, Almedina, Coimbra, p. 57 ss., p. 62 ss., p. 65 ss. 65 J. P. REMÉDIO MARQUES, “Propriedade Intelectual e Interesse público”, in Revista da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. 79, 2003, p. 293 ss., pp. 321-322, p. 350 47 Isso para evitar que a conformação dos atuais regimes jurídicos da propriedade intelectual não sirva apenas para tutelar privilegiadamente, e em escala mundial, os interesses dos atuais detentores da liderança tecnológica e das indústrias culturais. Que essa conformação do regime jurídico não venha a servir, afinal, para manter ou para reforçar as situações de exclusão, real ou potencial, da livre iniciativa econômica privada e da circulação e partilha das informações e dos conhecimentos, é um dos objetivos que cumpre perseguir. 48 R EFERÊNCIAS ARAÚJO, Fernando, A Tragédia dos Baldios e dos Anti-Baldios – O Problema Económico do Nível Óptimo de Apropriação, Coimbra, Almedina, 2008, p. 191 ss., p. 215 ss. Artigo 3º, alínea b), do Regulamento (CE) nº 6/2002, do Conselho, de 12/12/2001, sobre o regime dos desenhos ou modelos comunitários; artigo 174º/1 do CPI português de 2003. BARBOSA, Denis Borges, Uma Introdução à Propriedade Intelectual, Lúmen Iuris, 2ª edição, 2003, p. 442. BECHTOLD, Stefan, “Digital Rights Management: Destruction or Protection of the Commons?”, in Juridische aspekten van Internet / Juridisch Tijdschrift voor Internet en E-business, 2003, p. 162 ss., pp. 162-165. 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Em um primeiro momento, este trabalho concentra-se nos fundamentos teóricos da propriedade intelectual, designadamente de duas das suas principais modalidades, as patentes e as marcas. Em um segundo momento, o trabalho trata dos aspectos práticos da utilização e de desenvolvimento do sistema de propriedade intelectual nas décadas mais recentes. Esse duplo enfoque, teórico e prático, permite extrair um conjunto de conclusões vitais para perspectivar os desafios que a propriedade intelectual coloca em países de língua portuguesa. PROPRIEDADE I NTELECTUAL Entende-se por Propriedade Intelectual o conjunto de direitos privados, designados por direitos de propriedade intelectual, concedidos pelo Estado, cuja função é proteger criações intelectuais com potencial aplicação econômica. Essas “criações intelectuais” são bens intangíveis, obtidos por meio de atividades organizadas que envolvem esforço e criatividade. O produto dessas atividades é, em primeiro lugar, conhecimento novo ou substancialmente distinto de conhecimento previamente existente. Esse conhecimento é posteriormente materializado ou surge associado a obras, processos ou artefatos que se destinam a responder a necessidades econômicas e sociais. Os “direitos de propriedade intelectual” são concedidos pelo Estado a indivíduos ou organizações e, como tais, constituem uma intervenção do Estado na economia. Os agentes privados procuram beneficiar-se da proteção atribuída por esses direitos, afim de obter compensação pelo esforço realizado e pela criatividade existente nas suas obras intelectuais. Mesmo quando é possível solicitar esses direitos simultaneamente para diversos países, a respectiva legitimação ocorre geralmente no âmbito individual de cada país. As principais modalidades de direitos de propriedade intelectual são as patentes, as marcas comerciais, os desenhos ou modelos industriais e os direitos de autor. O principal argumento subjacente aos direitos de propriedade intelectual é que, na ausência da sua concessão, o potencial de oferta de novas criações intelectuais com interesse econômico seria deficitário. De acordo com essa linha de argumentação, esses direitos são necessários para que os indivíduos e organizações se empenhem na produção de criações intelectuais. Concretamente, argumenta-se que é a possibilidade de 56 obtenção de condições de monopólio, por via da concessão dos direitos de propriedade intelectual, que permite aos agentes criativos recuperar de forma compensatória os investimentos realizados na produção das suas obras intelectuais. FUNDAMENTAÇÃO ECONÔMICA DA CONCESSÃO DE PATENTES PARA INVENÇÕES TECNOLÓGICAS O argumento referido no parágrafo precedente foi formalizado pela teoria econômica, para o caso particular das patentes, há cerca de cinco décadas. O que os economistas afirmaram foi que na ausência de patentes se verificaria uma “falha de mercado”, isto é, o mercado a atuar por si só, livremente, não suscitaria uma oferta de novos conhecimentos tecnológicos correspondente à quantidade socialmente desejável (ARROW, 1962). Essa oferta deficitária de conhecimentos verificar-se-ia porque, na ausência da proteção atribuída pelas patentes, os imitadores teriam acesso sem restrições aos novos conhecimentos, podendo dessa forma usá-los abusivamente para fins comerciais próprios. A falha de mercado verificar-se-ia porque, na ausência da proteção concedida pela patente, nenhum agente econômico individual é incentivado a investir em pesquisa, dada a assimetria esperada entre os recursos investidos na invenção (privados) e o retorno desse investimento (socializado por via da exploração partilhada da inovação com os imitadores). Um primeiro corolário dessa argumentação é que é legítima e desejável a intervenção do Estado na economia mediante a atribuição de direitos privados, para permitir que a oferta de novos conhecimentos com aplicação econômica se situe no nível socialmente desejável. É a existência de patentes que cria a envolvente apropriada para o agente criativo ter a percepção de que poderá compensar de forma adequada o seu esforço. Um segundo corolário é que, no caso de novos conhecimentos sem aplicação econômica imediata, mas ainda assim com interesse para a sociedade no longo prazo, o Estado deve (em alternativa à atribuição de patentes) subsidiar a produção desses conhecimentos (NELSON, 1959). Esses dois corolários constituem a fundamentação econômica de duas instituições centrais nas atuais economias capitalistas: o sistema de patentes, por um lado, que estimula o desenvolvimento de conhecimentos tecnológicos, e o sistema de conselhos de pesquisa, por outro lado, que financiam o desenvolvimento de conhecimentos científicos. Arrow (1962) reconhece, no seu trabalho pioneiro, que, apesar de ter vantagens, o sistema de patentes é gerador de uma situação subótima em termos econômicos. Essa situação decorre de as patentes criarem um monopólio que restringe a difusão da inovação. Porém, essa restrição da difusão é limitada temporalmente (depois de 20 anos, o conteúdo da patente “cai” no domínio público) e é compensada pelo fato 57 de o conhecimento subjacente à patente ser necessariamente publicado em forma impressa no momento de concessão da patente. O monopólio que é criado, sendo uma circunstância por natureza indesejável, incide apenas na exploração para fins comerciais da inovação. Porém, com a publicação do conteúdo da patente, o novo conhecimento econômico fica automaticamente disponível para outros agentes inovadores se poderem nele inspirar e assim realizar novos avanços tecnológicos. Acresce que Arrow reconhece que, apesar de subótima, a situação criada pelas patentes é claramente preferível à possibilidade de o mercado ser deixado a atuar livremente, dado que, nesse caso, se correria o risco de os agentes inovadores não investirem no desenvolvimento de novas tecnologias por não percepcionarem incentivos para realizar esforços criativos. Foi nesse contexto de análise que Arrow analisou outras alternativas ao sistema de patentes, designadamente a atribuição de prêmios, mas concluiu, porém, serem inoperacionais essas alternativas. Na sequência do trabalho de Arrow (1962), desenvolveu-se uma significativa linha de pesquisa sobre a “análise econômica de patentes”. A questão fundamental dessa linha de pesquisa foi saber se o sistema de patentes, tal como ele existe atualmente, se encontra devidamente calibrado para equilibrar as necessidades contraditórias de oferta de proteção, necessária para estimular a inovação, e de permitir um amplo acesso dos utilizadores aos benefícios das inovações, necessário para maximizar o bem-estar social. Em termos sintéticos, essa questão consubstancia-se no problema da intensidade de proteção do sistema de patentes, sendo essa intensidade controlada por três parâmetros fundamentais (GODINHO, 2000). O primeiro desses parâmetros é a “extensão da patente”, ou seja, o tempo de duração da proteção. Esse assunto foi discutido por Nordhaus (1969, 1972) e Scherer (1972). O segundo parâmetro é a “largura da patente” e tem a ver com a maior ou menor facilidade de acesso a novas patentes por parte de invenções relativamente semelhantes a outras já patenteadas. Essa temática foi inicialmente investigada por Klemperer (1990), no âmbito de um modelo dedicado à análise do grau de diferenciação entre invenções patenteadas e outras candidatas à obtenção de novas patentes. O terceiro parâmetro é a “amplitude”do sistema de patentes, problemática relativa à extensão de áreas técnicas abrangidas pelo sistema de patentes. As discussões recentes sobre a patenteabilidade do software, de organismos vivos ou dos chamados métodos de negócio, têm precisamente a ver com essa dimensão da “amplitude” do sistema de patentes. Como se verá adiante, a discussão econômica sobre patentes progrediu, nas últimas décadas, da temática da “calibração” ótima, para questões mais amplas que têm a ver com a própria natureza da instituição “sistema de patentes”, tendo em conta a sua evolução histórica e a forma como se estruturou em alguns países a partir de meados do século XIX. 58 FUNDAMENTAÇÃO ECONÔMICA DA CONCESSÃO DE REGISTROS DE MARCAS COMERCIAIS As marcas comerciais são sinais distintivos que se destinam a identificar bens e serviços fornecidos por um determinado indivíduo ou empresa. Em contraste com as patentes, que têm uma duração limitada no tempo, as marcas comerciais não têm limitação temporal, desde que delas seja feito um bom uso e sejam pagas taxas de manutenção ao Estado. Também em contraste com as patentes, as marcas comerciais não se beneficiam de uma fundamentação teórica muito detalhada da ciência econômica. Em um dos poucos trabalhos existentes sobre essa matéria, Economides (1987) propõe uma análise custo-benefício para o investimento em marcas. A ideia, simples, é que uma empresa investirá em uma marca se o valor esperado do retorno, dado pelo produto da probabilidade de registro da marca vezes o fluxo de rendimentos que ela permitirá obter, exceder o somatório do custo de oportunidade de requerer o registro da marca e do valor atualizado das taxas de manutenção pagas ao Estado. Economides (1987) refere que as marcas comerciais são essenciais para garantir uma alocação eficiente de produtos nos mercados, devido ao fato de facilitarem a escolha dos consumidores em contextos, como os existentes nas economias atuais, de grande variedade de tipos e qualidade dos produtos. Porém, esse autor reconhece igualmente que o potencial de monopólio existente nessa modalidade de propriedade intelectual pode provocar ineficiências e distorções na alocação de recursos, sendo que os benefícios informacionais de que os consumidores dispõem são prejudicados por custos decorrentes de barreiras à entrada no mercado, impostas a potenciais novos concorrentes. A conjectura a propósito das marcas comerciais desenvolvida por Mendonça, Pereira e Godinho (2004), é que o fluxo de novas marcas que solicitam registro pode ser observado como um indicador de inovação. Naturalmente, nem todas as novas marcas podem ser observadas como destinadas a proteger inovações importantes. Sabe-se, designadamente, que é frequente serem pedidas marcas para produtos que não são substancialmente distintos de outros já existentes no mercado. Porém, admite-se que essa seja uma situação relativamente minoritária. Uma empresa apenas terá capacidade de recuperar o investimento associado a uma marca, materializado em publicidade para obtenção de notoriedade, taxas de registro e de manutenção, etc., se o produto ao qual a marca é associada dispuser de um significativo grau de diferenciação e vantagens em face dos produtos dos concorrentes. 59 A UTILIZAÇÃO PRÁTICA DAS PATENTES Em um trabalho pioneiro, resultante de uma pesquisa realizada em meados da década de 1980, Levin et al. (1987) demonstram que um grande número de setores de atividade dão prioridade a outros mecanismos de proteção da inovação que não as patentes. Concretamente, de acordo com o tipo de tecnologia empregada e as características do mercado em que atuam, é dada preferência ao segredo industrial, à reputação comercial ou à liderança sistemática em face dos rivais. A importância desses mecanismos alternativos foi posteriormente confirmada pelo estudo de Cohen et al. (2000) que evidencia o uso complementar de vários meios de proteção, entre os quais se contam as patentes. Oferecendo um panorama realista dos meios de proteção que as empresas inovadoras empregam, esses estudos contribuíram para desmistificar, de forma muito incisiva, a importância das patentes enquanto mecanismo único para proteger inovações. Esses estudos evidenciam uma significativa variância intersetorial no uso das patentes e na importância que a elas se atribui, para além do fato de que, na maior parte dos setores de atividade, dá-se prioridade a mecanismos alternativos de proteção. Em suma, a perspectiva aberta por esses estudos contribuiu para desmistificar a centralidade do sistema de patentes. Por outro lado, estudos mais recentes têm argumentado que muitas das patentes em vigor não se destinam a proteger a inovação. Um maior recurso a patentes com pouco valor tecnológico ou com pouco potencial de aplicação prática, verificado nos últimos anos, decorre de táticas premeditadas que visam a estabelecer vastos portfolios de ativos intangíveis. Esse tipo de estratégia destina-se a suscitar efeitos de reputação e valorização em bolsa, a criar muros protetores em torno de áreas tecnológicas vitais para a empresa, a oferecer moeda de troca quando há acusações comprovadas de infração de direitos de propriedade intelectual de terceiros, ou, ainda, a constituir base de licenciamento cruzado de tecnologias complementares (COHEN et al., 2000). Esse tipo de utilização estratégica de patentes, realizada em articulação com o emprego de outras modalidades de propriedade intelectual, tem reflexo na literatura acadêmica que se desenvolveu sobre corridas pela patente e outras abordagens baseadas no instrumental de teoria dos jogos, de que o trabalho de Scherer (1967) é um precursor longínquo. Para todos os efeitos, é claro que as motivações que atualmente conduzem muitas empresas a procurar obter patentes estão longe da função originalmente reconhecida à atribuição destas por parte dos Estados nacionais, que era, recorde-se, o estímulo à invenção e o favorecimento da subsequente exploração da inovação no mercado. Referenciando o caso americano, Jaffe e Lerner (2004) sugerem que um recurso crescente a patentes sem relevância econômica e social tem sido estimulado por 60 práticas forenses que privilegiam excessivamente os direitos dos detentores de patentes e por uma diminuição dos limiares de exigência por parte do instituto de patentes dos Estados Unidos (USPTO). A prática de estratégias agressivas e o uso excessivo de patentes estará, inclusive, a conduzir a uma situação em que o benefício econômico líquido das patentes é atualmente negativo, em virtude de os custos de contencioso estarem a aumentar exponencialmente (BESSEN; MEURER, 2008). Esse resultado foi verificado por um estudo detalhado dos proveitos e custos de contencioso com patentes entre 1984 e 1999 de empresas cotadas em bolsa nos Estados Unidos, verificando-se para a totalidade dos setores de atividade, com exceção da indústria farmacêutica. Os custos foram estimados por esse estudo tomando em conta os honorários dos advogados e a degradação que ocorre no valor das respectivas ações cada vez que as empresas têm de ir a tribunal por casos associados a patentes. Bessen e Meurer (2008) argumentam que as patentes não dispõem, com exceção de em áreas como a da química, da capacidade de identificar adequadamente as fronteiras do objeto de proteção, o que suscita a possibilidade de contestação em tribunal. Nesse sentido, esses autores propõem um aproximar das patentes aos direitos de autor, com a propriedade a incidir mais no objeto e menos no conhecimento. O agravamento do panorama de uso de patentes em anos recentes nos Estados Unidos é tal que, recentemente, têm-se verificado apelos, não apenas provenientes de perspectivas radicais, mas inclusive de economistas mainstream, para a abolição pura e simples do sistema de patentes (BOLDRIN; LEVINE, 2008). Esses autores afirmam que o monopólio proporcionado pelas patentes (e também pelo direito de autor) está a provocar mais prejuízos que benefícios. A LTERNATIVAS ÀS MODALIDADES INSTITUCIONALIZADAS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL Esse recente questionar do sistema de patentes, quanto à sua utilidade prática e quantos a vários aspectos perniciosos que decorrem da sua forma de funcionamento, tem levado a análise acadêmica a considerar ativamente não só possíveis linhas de reforma do sistema a serem adotadas, como também sistemas alternativos que possam substituir ou complementar o sistema de patentes. Curiosamente, no seu trabalho de 1962, Arrow comparou o sistema de patentes a outros sistemas alternativos de estímulo à inovação, ventilando três situações (analisadas em detalhe in Wright, 1983). A primeira dessas situações tem uma natureza essencialmente teórica, envolvendo a consideração de um “agente-central” (provavelmente, uma versão ampliada dos atuais institutos de patentes) que avaliaria em 61 termos econômicos cada invenção e proporia um “preço justo” a pagar ao inventor pela respectiva compra, disponibilizando-a posteriormente para uso livre. A segunda situação envolve a existência de contratos entre o Estado e inventores profissionais (empresas de pesquisa, etc.), para a produção de invenções em áreas de carência pré-identificadas. Finalmente, o terceiro caso baseia-se no anúncio de prêmios, em alternativa a contratos, a atribuir nas referidas áreas carentes de invenções. Arrow (1962) concluiu, com base em critérios de natureza prática, pela vantagem do sistema de patentes. Porém, de forma interessante, passadas mais de quatro décadas do seu trabalho, a terceira alternativa por ele ventilada tem vindo a atrair a atenção, designadamente por, em vários casos significativos recentes, se ter retornado ao sistema de prêmios que tinha já, historicamente, estado associado a algumas invenções de grande importância, como o cronômetro para medida de longitude em alto mar ou os recipientes para conservar alimentos. Na verdade, em anos recentes têm sido instituídos prêmios que variam entre significativas somas em dinheiro, como o atribuído ao primeiro voo privado suborbital (Ansari X-Prize, 10 milhões de dólares), até a prêmios de menor dimensão pecuniária, como os atribuídos por comunidades na Internet para a resolução de pequenos problemas de software (SAAR, 2006; STIGLITZ, 2006). Tão interessante como a recuperação do sistema de prêmios é, de um ponto de vista histórico, o retorno a mecanismos de desenvolvimento cumulativo da inovação por comunidades de inovadores. Nuvolari (2001) descreve precisamente a existência de comunidades desse tipo, durante a revolução industrial na Inglaterra. Os regimes designados por “open source” e “software livre” correspondem, atualmente, a versões atuais dessas comunidades. Esses regimes, apesar de diferenciados entre si, baseiam-se em mecanismos de desenvolvimento partilhado da inovação que reconhecem haver vantagem em as inovações se manterem acessíveis à comunidade de inovadores. Dessa forma, os múltiplos inovadores podem introduzir, de forma cumulativa, melhorias incrementais nas respectivas áreas tecnológicas. A manutenção dos conhecimentos em regime “aberto” contribui assim, de acordo com os apologistas dessas metodologias, para um progresso tecnológico global mais rápido que o possível no contexto do sistema de patentes. Nesses regimes, a partilha dos conhecimentos não é vista como contraditória da apropriação provada de benefícios. Essa apropriação não decorre, porém, da patente, mas essencialmente da reputação que o inovador adquire ao produzir inovações sucessivas em uma determinada área tecnológica. É o reconhecimento da competência tecnológica do inovador que contribui para que os seus serviços sejam requisitados por uma base de clientes progressivamente mais alargada. 62 Q UE DIZEM AS ESTATÍSTICAS De forma algo paradoxal, apesar da insatisfação crescente com o funcionamento do sistema de patentes e da tentativa de explorar regimes alternativos de incentivo ao desenvolvimento tecnológico, o número total de patentes solicitadas e concedidas, à escala global, tem vindo a aumentar significativamente nas últimas décadas. Na verdade, os dados da Figura 1 revelam essa tendência. Desde 1991, o número de pedidos de patentes realizados à escala mundial praticamente duplicou, atingindo em 2006 um valor de 1,7 milhões de pedidos. Há a referir que esse número diz respeito a atos individuais de pedidos e não a pedidos de direitos de proteção em diferentes países. Essa distinção tem a ver com o fato de um pedido individual de uma “patente internacional” (patentes PCT), ou de uma patente europeia (patentes concedidas pelo EPO), poder indicar em simultâneo até algumas dezenas de países em que procura proteção. Tendo em conta essa distinção, estima-se que existiam em 2006 cerca de 5,6 milhões de pedidos de direitos de proteção por patente à escala global (TRILATERAL, 2007). O muito significativo aumento de pedidos de patentes registrados no período mais recente, identificado por Granstrand (1999) como correspondendo à entrada da economia mundial em uma “época pró-patente”, deve-se fundamentalmente a quatro tipos de razões: (i) desenvolvimento de novas áreas tecnológicas com grande propensão a patentear (biotecnologia, tecnologias de informação, nanotecnologia...); (ii) desenvolvimento de um clima de proteção mais favorável; (iii) utilização estratégica de patentes por parte de grandes companhias à escala global; (iv) legislação que estimulou a entrada de novos atores nas atividades de obtenção de patentes (designadamente universidades). Figura 1 - Número total de pedidos de patentes, 1985-2006 Fonte: WIPO Statistics Database, 2008 Taxa de Crescimento (%) Pedidos de Patentes 1.800.000 1.600.000 1.200.000 1.000.000 10,1 800.000 2,6 1,7 0,4 8,7 6,4 6,2 4,8 0,1 3,3 2,6 0,9 8,3 6,0 5,6 2,9 5,2 4,9 600.000 -0,7 -1,1 400.000 200.000 -10,9 2006 2005 2004 2003 2002 2001 2000 1999 1998 1997 1996 1995 1994 1993 1992 1991 1990 1989 1988 1987 1986 0 1985 Número de Pedidos 1.400.000 63 A razão da flutuação registrada no gráfico da Figura 1 entre 1985 e 1995 prendese, fundamentalmente, ao colapso da União Soviética, que no seu auge gerava mais de 200 mil patentes. Como é visível na Figura 2, o número de pedidos com origem na Federação Russa é agora bastante inferior, situando-se abaixo dos 50 mil pedidos/ano. A Figura 2, apresentando informação para um período de 124 anos, de 1883 a 2006, mostra que atualmente os principais institutos de patentes à escala mundial, em termos de recepção de pedidos de patentes, são o norte-americano e o japonês, ambos com mais de 400 mil pedidos/ano em 2006. Os outros grandes institutos são, neste momento, e por essa ordem, em termos de volume de pedidos processados em 2006, o chinês, o sul coreano e o europeu (EPO). Há a notar que os dados constantes dos gráficos da Figura 2, relativos aos principais países em termos de recepção de pedidos de patentes, dizem respeito ao somatório de pedidos de entidades residentes com os de entidades não-residentes. Para todos os efeitos, a evolução recente dos pedidos na Coreia do Sul e, em particular, na China, é verdadeiramente notável. Figura 2 - Pedidos de patentes nos principais institutos de patentes: 1883-2006 Fonte: WIPO Statistics Database, 2008 Figura 2a E UA China European Patent Office Japão República da Coreia União Soviética Número de Pedidos 450.000 300.000 150.000 0 1883 1893 1903 1913 1923 1933 1943 1953 1963 1973 1983 1993 2003 64 Figura 2b Alemanha Federação Russa Reino Unido Canadá Austrália França Número de Pedidos 200.000 150.000 100.000 50.000 0 Nas Figuras 3 e 4, a ótica de observação é distinta, estando os dados contabilizados em ambas as figuras em termos de pedidos originários de diferentes países. Na primeira dessas duas figuras, tem-se a distribuição percentual dos pedidos de patentes, por países, em 2006. É visível que o Japão e os E.U.A. lideram a hierarquia, concentrando esses dois países mais de metade dos pedidos de patentes à escala global (com respectivamente, 29,1% e 22,1%). Os países da União Europeia, no seu conjunto, detêm também uma proporção considerável da procura global de patentes. Porém, individualmente, a Coreia do Sul surge em terceiro lugar, originando quase 10% dos pedidos globais, vindo a China em quinto, logo depois da Alemanha, com 7,3% dos pedidos em 2006. Há a notar que, para além desse top 10 constante na Figura 3, o grupo designado por “outros” concentra uma proporção de apenas 14,8% dos pedidos globais. Figura 3 - Distribuição percentual dos pedidos de patentes, por países, em 2006 Fonte: WIPO Statistics Database, 2008 Outros: Outros ;14,80% 14,80% China: China ;7,30% 7,30% Suíça: Suiça;1,40% 1,40% Holanda ;1,60% 1,60% Holanda: Reino Reino Unido: Unido ;2,30% 2,30% Japão ;29,10% 29,10% Japão: Federação Russa; Federação Russa: 2,50% 1,60% EUA: EUA;22,10% 22,10% França: ;2,50% França 2,50% República República da da Coreia: 9,80% Coreia; 9,80% Alemanha: Alemanha;7,40% 7,40% 65 Os dois gráficos que a Figura 4 contém também apresentam a informação em termos de pedidos originários de diferentes países, mas com os dados processados mediante um indicador que pondera o número de pedidos de patentes por milhão de habitantes. É visível a enorme vantagem do Japão e da Coreia do Sul, contando ambos os países com mais de 2.500 pedidos por milhão de habitantes. Note-se que Portugal surge com um valor, para esse indicador, inferior a 20 pedidos por milhão de habitantes, um pouco abaixo do Brasil. Figura 4 - Pedidos de patentes de residentes, por milhão de habitantes, 2000 e 2006 Fonte: WIPO Statistics Database and World Bank (World Development Indicators), 2008 Figura 4a 2000 ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 2400 ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 1600 ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 800 ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ China Cazaquistão Holanda Austrália Eslovenia Singapura Islândia Canadá Federação Russa Irelanda Suíça França Noruega Suécia Áustria Dinamarca Reino Unido Finlândia Nova Zelândia EUA Alemanha Japão 0 Coreia do Sul Pedidos de residentes por milhão de habitantes 2006 3200 Figura 4b 2000 66 ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 90 ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 60 ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 30 ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ Índia Arábia Saudita México Síria Taiândia Turquia Portugal Chile Brasil Hong Kong Estónia Chipre Eslováquia Israel Bélgica Lituânia Grécia Luxemburgo Polónia República Checa Croácia Hungria Espanha 0 Ucrânia Pedidos de residentes por milhão de habitantes 2006 120 Os Quadros 1 e 2 fornecem informação relativamente a um subconjunto dos dados analisados nos parágrafos precedentes, concentrando-se nas chamadas “patentes internacionais” (ou patentes PCT, de Patent Cooperation Treaty). Esse tipo de patente, que começou a ser concedido em 1978, permite a um residente em um dos países signatários do acordo PCT solicitar, por meio de um único pedido, uma proteção múltipla nos diferentes países signatários. Tipicamente, recorrem a esse tipo de pedido grandes companhias que atuam simultaneamente em diferentes mercados. É visível, por meio do Quadro 1, o predomínio nos pedidos de patentes PCT dos mesmos países assinalados anteriormente, os E.U.A. e o Japão, mas surgindo agora a Alemanha a uma menor distância relativa. Tendo em conta os dados para 2008, os pedidos de patentes PCT oriundos da China surgem já em 5º lugar, logo depois da Coreia do Sul e da França. A assinalável evolução da China nos anos 2000 nessa matéria é coroada, simbolicamente, pelo fato de uma companhia desse país (a Huawei Technologies CO., Ltd.) surgir, em 2008, como o principal requerente global de pedidos de patente PCT (ver Quadro 2). Referenciando os casos do Brasil e Portugal, o número de pedidos de patentes PCT oriundos de residentes em cada um desses países foi, em 2008, de 470 e 100, em face de valores em 2000 de, respectivamente, 178 e 21. Essa evolução indica um crescimento mais rápido que o registrado pelo número total de pedidos PCT entre 2000 e 2008, mas indica igualmente existir, em ambos os casos, um longo caminho a percorrer para se obter a convergência com as economias que lideram a utilização desse tipo de patente. Quadro 1 - Evolução dos pedidos PCT, principais países Fonte: WIPO Statistics Database, abril 2009 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 93.238 108.230 110.393 115.204 122.632 136.752 149.657 159.921 161.982 1801 2114 2260 2271 2104 2319 2572 2843 2886 China 784 1731 1018 1295 1706 2503 3927 5440 6094 França 4138 4707 5090 5171 5184 5748 6260 6559 6505 Total Canadá Alemanha 12582 14031 14326 14662 15214 15984 16732 17816 18669 Itália 1393 1623 1982 2163 2189 2348 2706 2944 2877 Japão 9567 11904 14063 17414 20264 24868 27024 27754 28783 Holanda 2928 3410 3977 4479 4284 4500 4544 4373 4309 Coreia do Sul 1580 2324 2520 2949 3558 4689 5946 7060 7910 Suécia 3091 3421 2990 2612 2851 2883 3333 3656 4114 Suíça 1989 2349 2755 2861 2899 3291 3612 3796 3849 CONTINUA 67 CONTINUAÇÃO Reino Unido 4795 5482 5376 5206 5027 5085 5085 5526 5492 E.U.A. 38007 43054 41296 41033 43352 46830 51246 54025 51351 Brasil 178 173 201 219 278 270 333 397 470 21 42 34 36 49 55 68 92 100 Portugal Quadro 2 - Principais requerentes de patentes PCT em 2008 Fonte: WIPO Statistics Database, 2009 HUAWEI TECHNOLOGIES CO., LTD. PANASONIC CORPORATION País de Origem Pedidos PCT publicados China 1.737 Japão 1.729 Holanda 1.551 Japão 1.364 ROBERT BOSCH GMBH Alemanha 1.273 SIEMENS AKTIENGESELLSCHAFT Alemanha 1.089 NOKIA CORPORATION Finlândia 1.005 LG ELECTRONICS INC. Coreia 992 TELEFONAB LM ERICSSON (PUBL) Suécia 984 FUJITSU LIMITED Japão 983 KONINKLIJKE PHILIPS ELECTRONICS N.V. TOYOTA JIDOSHA KABUSHIKI KAISHA Para finalizar esta seção, em que a análise se concentrou fundamentalmente na procura de patentes, faz sentido referenciar a procura pelo registro de marcas comerciais à escala global. Para essa modalidade, a Figura 5 ilustra um processo de crescimento idêntico ao verificado para as patentes, mas porventura mais pronunciado ainda. Na verdade, em 1985 verificava-se menos de 1 milhão de pedidos de marcas (953.190); em 2007, esse valor tinha bastante mais que triplicado (para 3.432.441). Desse total de pedidos de registro de marcas em 2007, estima-se que 23% são realizados na China, seguindo-se a esse país os Estados Unidos (8,9%), o Japão (4,2%) e, novamente, a Coreia do Sul (4,1%). Para além da liderança da China, o outro dado a reter é o fato de nessa modalidade surgirem na hierarquia, seguidamente, outros dois países em desenvolvimento, a Índia (com 3,3%) e o Brasil (com 3,1%). 68 O Quadro 3 fornece informação em uma ótica um pouco diferente, pois registra apenas os pedidos de marcas nacionais feitos no próprio país pelos respectivos residentes. Esse quadro permite verificar que as disparidades entre alguns países de desenvolvimento intermédio e os mais desenvolvidos é bastante menor nesse indicador que no indicador correspondente de patentes. Os valores identificados nesse quadro revelam, igualmente, uma intensidade de uso marcas comerciais em Portugal e Macau bastante elevada. Figura 5 – Pedidos totais de marcas, 1985-2007 Fonte: WIPO Statistics Database, 2008 Pedidos Totais de Marcas 3.750.000 3.250.000 2.750.000 2.250.000 1.750.000 1.250.000 750.000 1984 1988 1992 1996 2000 2004 2008 Quadro 3 – Pedidos de marcas nacionais por residentes, 2006, nos principais países e em territórios de língua portuguesa Fontes: WIPO Statistics Database, 2008; Human Development Report 2007/8 China Pedidos Pedidos por milhão de habitantes 669.276 509 E.U.A. 233.311 778 Japão 111.754 874 Coreia do Sul 105.544 2203 Brasil 76.827 411 Índia (2005) 73.308 65 Alemanha 68.810 832 CONTINUA 69 CONTINUAÇÃO França 66.501 1090 Argentina 60.777 1570 México 45.161 433 Macau 531 1062 Moçambique Portugal 553 27 11.902 1134 A ECONOMIA POLÍTICA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL As instituições da propriedade intelectual surgiram historicamente, em primeiro lugar, na Itália do Renascimento e se desenvolveram, posteriormente, na Inglaterra da Revolução Industrial, assumindo nesse país, durante o século XIX, boa parte das características que marcam o atual sistema de propriedade intelectual. Durante as últimas décadas do século XX esse sistema evoluiu para formas de proteção mais intensas, por via de extensão de prazos de proteção, de um sistema legal e jurídico robustecido, e por uma articulação crescente da propriedade intelectual com o comércio internacional, materializada fundamentalmente com o acordo TRIPS. Simultaneamente, os níveis de utilização das principais modalidades de propriedade intelectual têm aumentado de forma assinalável nos últimos anos. Devido a esse conjunto de desenvolvimentos, Granstrand (1999) argumentou que a economia mundial entrou em um período que ele designou por “capitalismo intelectual”. Como se verifica ao longo deste trabalho, a propriedade intelectual é uma temática altamente politizada. O reconhecimento da existência de uma “falha de mercado” significa que se aceita, de forma explícita e racionalizada, a intervenção do Estado, por via da política de atribuição de direitos de propriedade intelectual. Na análise que se seguiu a Arrow (1962), reconheceu-se que o Estado pode, de forma deliberada, gerir a intensidade de proteção atribuída, por via da extensão temporal, da largura da proteção e da amplitude de áreas técnicas consideradas. Em anos mais recentes, a análise acadêmica progrediu das questões de calibração ótima do sistema existente para questões de relevância prática, mais substanciais. Essa progressão verifica-se em consonância com a própria evolução da realidade, em que se registra a recuperação de sistemas de prêmios e de comunidades de inovadores, a par de uma contestação crescente, nos países em desenvolvimento mas também em setores diversificados dos países desenvolvidos, do sistema de propriedade intelectual institucionalizado. A situação que se vive atualmente é, pois, a diversos títulos, paradoxal. Existe um diagnóstico extenso dos problemas que afetam o sistema de propriedade intelectual, 70 mas verifica-se uma inércia institucional que entrava qualquer reforma profunda. A par do fortalecimento da proteção e da utilização mais intensiva das modalidades existentes, verificam-se experiências com mecanismos alternativos de incentivo à inovação, com grande relevância prática. Nesse quadro, impõe-se identificar estratégias eficazes no mundo de língua portuguesa. Tais estratégias têm, naturalmente, de ter em conta a diversidade de situações em termos de utilização relativa das diferentes modalidades, de desenvolvimento socioeconômico e de enquadramento geopolítico dos diversos territórios onde se fala português. Acresce que, mesmo no interior de cada um desses territórios, há uma variância significativa em termos de propensão a produzir criações intelectuais e inovação tecnológica, sendo a esse respeito o caso mais notável o Brasil. Essa diversidade de situações suscita, naturalmente, dificuldades na identificação de uma agenda comum sistemática que possa congregar agentes públicos e privados em todo o espaço lusófono. Existem, porém, alguns aspectos fundamentais nos quais pode haver cooperação produtiva entre as partes. A propriedade intelectual, além de altamente politizada, é atualmente uma temática de natureza global. É desejável que, nesse quadro, atuando nas organizações internacionais relevantes, incluindo a OMPI e a OMC, se procure identificar uma agenda mínima de reforma do sistema global de propriedade intelectual, de forma a reduzir os custos de acesso e, uma vez dentro do sistema, os custos operacionais (incluindo-se aqui os possíveis custos de litigação). A reforma de aspectos processuais é uma questão de natureza jurídica complexa, mas na qual valerá a pena investir para caminhar para uma utilização mais justa e equilibrada da propriedade intelectual. Um outro aspecto relevante tem a ver com a imposição do português como uma das línguas nucleares do sistema global de propriedade intelectual. A documentação associada aos direitos de propriedade intelectual veicula informação técnica e comercial de importância estratégica, pelo que a sua ampla disponibilização em língua portuguesa pode atuar como um veículo importante de difusão de novos conhecimentos. Finalmente, um domínio vital de atuação é o da partilha de recursos e conhecimentos na educação e informação sobre propriedade intelectual. Para obter-se benefício do sistema existente, seja pela absorção de informação ou pela obtenção de proteção, há necessidade de um conhecimento do enquadramento jurídico, das modalidades e dos aspectos técnicos associados ao seu emprego. Abrem-se aqui, pois, duas vertentes de atuação importantes: a formação de quadros para os organismos que determinam as políticas de propriedade intelectual e a gestão do sistema em cada um dos países; e a formação de técnicos especializados em propriedade intelectual nas organizações que produzem criações intelectuais com potencial aplicação econômica ou que pretendem utilizar a informação constante do sistema global de propriedade intelectual. 71 R EFERÊNCIAS ARROW, K. Economic welfare and the allocation of economic resources for invention. In: NATIONAL BUREAU OF ECONOMIC RESEARCH (Estados Unidos). The rate and direction of inventive activity: Economic and social factors. [Cambridge], 1962. p. 609-652. BOLDRIN, M.; LEVINE, D. Against intellectual monopoly. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. COHEN, W. M.; NELSON, R. R.; WASH, J. Appropriability conditions and why firms patent and why they do not in the American manufacturing sector. [S.l.: s.n., 1996?]. 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REMÉDIO MARQUES69 68 Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho de 2008, Rio de Janeiro, Brasil. 69 Professor da Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal), Meste em Ciências Jurídico-Forenses, Doutor em Direito (Propriedade Intelectual) 1. I NTRODUÇÃO. AS PATENTES NO SETOR DA SAÚDE HUMANA Ao iniciarmos este breve apontamento, há um ponto sobre o qual se faz mister afirmar uma primeva razão de ordem: as patentes biotecnológicas e, em geral, as patentes aplicadas no setor da saúde humana não devem estar sujeitas à mesma atenção e, logo, ao mesmíssimo regime jurídico das patentes relativas - digamos - a aspiradores, máquinas de torrar o pão ou a espremedores de sucos. Isso porque as patentes respeitantes a produtos, processos ou usos aplicados na prestação de cuidados de saúde atinem à vida humana e ao bem-estar físico, psíquico e social das pessoas, valores não exatamente assimiláveis aos valores mercadológicos dos produtos que incorporam as invenções materializadas nas referidas máquinas. Dado que às pessoas é reconhecido um núcleo infrangível de direitos fundamentais, aí onde se incluem o direito à vida, o direito à saúde e o direito à autodeterminação (v.g., autodeterminação informativa, no que tange ao cumprimento do dever de informar por ocasião da prestação do consentimento informado em matéria de administração de cuidados de saúde), é justo e razoável impor, aos titulares das patentes aplicadas no setor médico e farmacêutico, certos deveres de proteção e de atuação em função da aplicação última das soluções técnicas sobre as quais gozam e exercem os direitos de patente, quais sejam: a prevenção ou o restabelecimento do equilíbrio daquele bemestar. Isso não obstante esses titulares também serem inegavelmente titulares de faculdades jurídicas de exercício negativo (ius prohibendi), por isso mesmo veiculadas mediante autorizações e licenças contratuais. Serve isso para afirmar que devem ser proscritas todas as atividades materiais ou jurídicas que, direta ou indiretamente: • • • Visem retardar a colocação de medicamentos genéricos no mercado após a caducidade da patente do medicamento de referência. Visem impedir ou retardar injustificadamente a concessão de licenças obrigatórias. Conduzam à prática de condições discriminatórias no acesso aos medicamentos patenteados. 2. UMA VISÃO SOBRE AS PATENTES DE MEDICAMENTOS NOS PAÍSES DE EXPRESSÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA A atividade econômica do fabrico e venda de medicamentos para uso humano constitui um negócio que movimenta triliões de euros todos os anos. Na Europa, as maiores empresas farmacêuticas têm a sua sede na Alemanha, no Reino Unido, na França e na Suíça. Constata-se uma enorme concentração dessa atividade 78 econômica em um reduzido número de empresas societárias. Quer em Portugal, quer no Brasil, há um conjunto de empresas menores, dotadas de capitais nacionais e, não raras vezes, saídas dos meios universitários, que se envolveram na pesquisa e no desenvolvimento de novos produtos, maxime no setor das biotecnologias. De todo o jeito, a política legislativa portuguesa e brasileira em matéria de cuidados de saúde é coincidente: sob a reserva do possível, fazer chegar a todas as pessoas os cuidados de saúde, independentemente das possibilidades econômicas dos cidadãos. O dilema é o seguinte: como estimular suficientemente a indústria farmacêutica no sentido da inovação sob o horizonte de um universo de maximização do lucro e, uno actu, como manter os custos dos sistemas nacionais de saúde em um nível socialmente aceitável? De resto, mais na União Europeia e menos no Brasil ou nos outros países de expressão oficial em língua portuguesa, foi assumido o paradigma segundo o qual, na ausência de direitos de patente providos de um licere forte, a indústria farmacêutica provavelmente não sobreviveria; o desenvolvimento e a inovação não prosperariam; o desemprego aumentaria e a prestação de cuidados de saúde sairia a perder. Esse paradigma não está demonstrado, nem provavelmente será fácil provar a adequação das suas premissas. Seja qual for o cenário mais verossímil, o certo é que o regime do direito de patente influenciou tanto a atual configuração das indústrias farmacêuticas quanto o statu quo dessas indústrias, e os lobbies representativos dos seus interesses modelaram, em aspectos importantes, o concreto regime do direito de patente70 - basta, por exemplo, pensar no regime jurídico instituído no artigo 230º do Código da Propriedade Industrial brasileiro71 sobre as patentes pipeline, o que, como é sabido, não era tão pouco exigido pelo Acordo TRIPS. 70 VAVER, David / BASHEER, Shamnad, “Popping Patented Pills: Europe and a Decade’s Dose of TRIPs”, in European Intellectual Property Review, 2006, p. 282 ss., p. 282. 71 De acordo com essa disposição, permite-se “o depósito de pedido de patente relativo às substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou de modificação, por quem tenha proteção garantida em tratado ou convenção em vigor no Brasil, ficando assegurada a data do primeiro depósito no exterior, desde que o seu objeto não tenha sido colocado em qualquer mercado, por iniciativa direta do titular ou por terceiro com o seu consentimento, nem tenham sido realizados, por terceiros, no País, sérios e efetivos preparativos para a exploração do objeto do pedido ou da patente” - o itálico é meu. Por sua vez, o § 3 desse Código determina que “… uma vez atendidas as condições estabelecidas neste artigo e comprovada a concessão da patente no país onde foi depositado o primeiro pedido, será concedida a patente no Brasil, tal como concedida no país de origem”, mais dizendo o § 6 dessa norma que “fica assegurado à patente concedida com base neste artigo o prazo remanescente de proteção no país onde foi depositado o primeiro pedido, contado da data do depósito no Brasil e limitado ao prazo previsto no artigo 40º, não se aplicando o disposto no seu parágrafo único”. 79 Diga-se, desde já, que essa consagração das denominadas patentes de pipeline ou de revalidação encontra apoio no artigo 1º/4 da Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, de 1883: essa norma pretendeu fazer estender as disposições da referida Convenção aos direitos de patente, incluindo as patentes de importação. Como se intui, por outro lado, o regime jurídico dessas patentes pipeline, embora não decorra do disposto no artigo 70º do Acordo TRIPS, maxime dos seus nos 8 e 9, contém uma “solução paralela” à prevista nesse nº 9 (embora no artigo 230º do Código brasileiro não se exija que o pedido de patente ou a concessão sejam efetuadas no estrangeiro após o dia 1º de janeiro de 2005, data do início de vigência do TRIPS), e inspira-se na ideia de que poderá ser concedido um exclusivo comercial ou industrial no Brasil, ainda quando a invenção já tenha sido divulgada no estrangeiro, mas aí ou no Brasil ainda não tenha sido objeto de comercialização pelo titular (ou requerente da proteção) ou por um terceiro, com o seu consentimento. Há uma outra regra paralela no artigo 18º/1 da Convenção de Berna para a proteção das obras literárias e artísticas, de 1886 (aprovada, entre nós, para adesão pelo Decreto nº 73/78, de 26 de julho), ex vi do artigo 70º/2 do TRIPS, segundo a qual as obrigações relativas a obras preexistentes serão definidas nos termos do artigo 18º da referida Convenção, que é o mesmo que dizer que as obras preexistentes deverão ser protegidas a partir da data da entrada em vigor do TRIPS, desde que ainda não tenham caído no “domínio público”, ou seja, contanto que ainda não tenha expirado o seu prazo de proteção (o que suscitou uma conhecida polêmica entre os E.U.A. e o Japão - e, depois, a União Europeia - acerca da proteção das gravações efetuadas nos E.U.A. antes de 1972, data em que a lei interna estadunidense passou a proteger tais obras: os E.U.A. pretendiam que a proteção de tais obras (no Japão) fosse retroativa, com efeitos a partir de 1946, embora o ordenamento japonês somente protegesse tais obras a partir de 1971. Nesse caso, previsto no artigo 230º do Código da Propriedade Industrial brasileiro de 1996, a novidade intelectiva (e absoluta) da invenção cede o terreno à exigência e verificação de uma novidade apenas merceológica - baseada na ideia segundo a qual não deve o objeto da invenção ter sido colocado em qualquer mercado do planeta pelo titular ou por um terceiro com o seu consentimento, um pouco à semelhança do que ocorre no regime jurídico do direito de obtentor de variedade vegetal (artigo 6º/1, alínea b), da Convenção UPOV, na redação de 1978, a que o Brasil e Portugal se acham vinculados; artigo 10º/1 do Regulamento (CEE) nº 2.100/94, do Conselho, de 27 de julho de 1994, relativo ao direito de obtentor comunitário de variedades vegetais; e artigo 5º/1, alínea d), do Regulamento sobre a proteção das obtenções vegetais, aprovado pela Portaria nº 940/90, de 4 de outubro), o qual, como se sabe, prevê, no quadro do texto saído da revisão de 1991 da Convenção UPOV, a possibilidade de uma proteção cumulativa, seja pelo direito de patente, seja pelo regime das obtenções vegetais, na medida em que as plantas subsumíveis ao conceito de variedade vegetal também podem servir para resolver inúmeros problemas técnicos, de modo que os setores normativos de aplicação dos dois subsistemas da propriedade industrial e os respectivos “círculos de proibição”, não, de todo em todo, totalmente independentes (cfr., sobre essa aproximação dos dois subsistemas, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Industrial, vol. II, Obtenções Vegetais, Conhecimentos Tradicionais, Sinais Distintivos, Bioinformática e Bases de Dados, Direito da Concorrência, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 98-104) - e o ordenamento brasileiro passa a reconhecer as situações jurídicas de direito de patente já constituídas (ou em vias de constituição) no estrangeiro, na decorrência de pedidos de patente efetuados há mais de um ano (relativamente ao pedido de proteção efetuado no Brasil) ou de patentes já concedidas no estrangeiro. De acordo com essa norma do artigo 230º do citado Código, ocorre o reconhecimento, no Brasil, de situações jurídicas criadas no estrangeiro de conformidade com as normas do ordenamento estadual de que aquelas dependem (o país da data do primeiro depósito), de harmonia com os preceitos de uma legislação que a si própria se considere competente e que tire a sua competência de princípios universalmente válidos e legítimos (o que normalmente sucede, pois a lei aplicável é, nessas eventualidades, a lei do Estado cuja Administração competente concede o direito de patente). E mesmo que assim não sucedesse, dever-se-á, em regra, reconhecer as situações jurídicas multinacionais criadas sob o abrigo de leis estrangeiras, mesmo que eventualmente tais leis não sejam aplicáveis à luz dos critérios normais de atribuição de competência consagrados no direito de conflitos do foro (FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, I, com a colaboração de Luís Barreto Xavier, Almedina, Coimbra, 2000, p. 386, p. 391 ss., p. 397). Embora o Acordo TRIPS não densifique, na 1ª parte do nº 1 do seu artigo 27º, o conteúdo do requisito da novidade das invenções enquanto condição indefectível de constituição desse direito de propriedade industrial - remetendo essa densificação para o quadro da discricionariedade legislativa reconhecida aos Estados contratantes da Organização Mundial do Comércio, domínio onde os Estados são livres de consagrar um sistema de novidade cognoscitiva absoluta ou, pelo contrário, um sistema de novidade relativa como é, por exemplo, a novidade merceológica, nos termos previstos na legislação brasileira -, tem sido altamente discutível e controvertido o problema da constitucionalidade desse artigo 230º do Código da Propriedade Industrial brasileiro de 1996, em face do disposto no artigo 5º, XXIX, da Constituição Brasileira de 1988 e do princípio da independência dos direitos de patente consagrado no artigo 4º-bis da Convenção da União de Paris. Uma coisa também nos parece certa: o requisito da novidade das invenções pode ser entendido em termos flexíveis. E o princípio da proporcionalidade lato sensu permite sindicar até que ponto as soluções consagradas pelo legislador foram, ou não, excessivas, inadequadas ou desnecessárias relativamente aos fins que se pretendiam prosseguir e à defesa dos interesses contrapostos. Em primeiro lugar, foram salvaguardados em termos de cláusula de imunidade (ou de inoponibilidade d)os interesses de todos aqueles que já usavam, no Brasil, o objeto da invenção protegida no estrangeiro ou faziam preparativos sérios para aí a usar (uso prévio anterior). 80 Em segundo lugar, ainda quando a patente tenha sido concedida no estrangeiro sem a realização de um exame substancial, nada impede que a patente pipeline brasileira seja objeto de ação de nulidade perante os tribunais brasileiros, pois o reconhecimento dessa situação jurídica constituída no estrangeiro não remove a aplicação do princípio da territorialidade e o da independência do direito de patente. Basta também recordar que, por exemplo, vigora nos E.U.A. o período de graça de um ano após a divulgação da invenção, por qualquer meio (ou no estrangeiro, por escrito), que não destrói a novidade do invento e a regra da prioridade com a duração de um ano a contar da data do primeiro depósito do pedido de patente em qualquer país contratante da Convenção da União de Paris e da Organização Mundial do Comércio. Depois, a regra ínsita no artigo 70º/3 do Acordo TRIPS, que não obriga os Estados contratantes a restabelecer a proteção de invenções que, no dia 01/01/1996, tenham caído no “domínio público”, apenas se aplica às invenções divulgadas anteriormente no Estado cujo ordenamento não permitia a proteção de tais realidades ou cuja proteção já tenha expirado nesse Estado. São também conhecidos os regimes que vigoraram no passado respeitantes às patentes de importação de invenções já divulgadas e exploradas em países estrangeiros, o que sucedeu em muitos países (em Portugal; na Espanha: Estatuto de la Propriedad Industrial, de 1929; na Bélgica: lei de patentes, de 1854; na Argentina: Código da Propriedade Industrial, de 1864). Por último, não se deve defender que a consagração desse tipo de patentes (pipeline ou de revalidação) viole direitos adquiridos por terceiros ou pela comunidade, mesmo à luz da dogmática jurídica brasileira, visto que um direito adquirido constitui sempre um direito subjetivo ou uma posição jurídica subjetiva de natureza patrimonial, e o fato de as invenções já terem sido divulgadas fora do Brasil, eventualmente para além do prazo da prioridade unionista (um ano) não faz ingressar qualquer direito patrimonial na esfera jurídica subjetiva de cidadãos ou de entidades sujeitas ao ordenamento jurídico brasileiro. Não se esqueça que, como atrás referi, ficaram protegidos (scilicet, são oponíveis ao requerente da patente pipeline) os interesses de todos os terceiros (nacionais ou estrangeiros, à luz do princípio da igualdade) que, na data do pedido da patente pipeline, tenham efetuado preparativos sérios e efetivos com vista à exploração econômica do objeto dessa invenção no Brasil. Sobre isso, cfr. AHLERT, Ivan Bacelar / ANTUNES, Paulo de Bessa, “Pipeline e Constituição: de que inconstitucionalidade falamos”, in Revista da ABPI (Associação Brasileira de Propriedade Intelectual), n. 87, mar./abril 2007, p. 45 ss., p. 53 ss.; DI BLASSI, Gabril / GARCIA, Mário Sorensen / MENDES, Paulo Parente M., A Propriedade Industrial, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p. 124 (de acordo com os autores, a condição, absoluta ou relativa, da novidade deve ser definida por cada legislador ordinário); GOMES CANOTILHO / JÓNATAS MACHADO, A Questão da Constitucionalidade das Patentes Pipeline à Luz da Constituição Federal de 1988, (com a colaboração de Vera Lúcia Raposo), Almedina, Coimbra, 2008; BARBOSA, Denis Borges, “Inconstitucionalidade das Patentes Pipeline”, 2006, in http://denisbarbosa.addr.com/pipeline.pdf; BARBOSA, Denis Borges / BARBOSA, Pedro Marcos Nunes, “Algumas notas à intercessão do SPC e a patente pipeline”, in Revista da ABPI, n. 93, mar./abril 2008, p. 35 ss., p. 40; TIBURCIO, Carmen, “Patente de Revalidação (Pipeline), Extensão do Prazo de Proteção da Patente Originária no Exterior. Efeitos sobre a Patente Pipeline Nacional”, in Revista da ABPI, n. 92, janeiro/ abril 2008, p. 44 ss.; CLÉVE, Clémerson / BREKENFELD, Melina, “A repercussão, no regime da patente pipeline, da declaração de nulidade do privilégio originário”, in Revista da ABPI, n. 66, setembro /outubro 2003, p. 24. 81 Na Europa e, provavelmente, ainda no Brasil, os governos aceitam a retórica argumentativa das empresas farmacêuticas transnacionais, de harmonia com a qual é necessário ou imprescindível proteger, mediante o direito de patente, os medicamentos e os processos de obtenção ou fabricação de medicamentos enquanto forma de estimular a obtenção de medicamentos mais eficientes. Retórica argumentativa de acordo com a qual as faculdades jurídicas reconhecidas ao titular dessas patentes devem ser poderosas, no sentido de atribuir aos titulares o controle sobre a pesquisa, o desenvolvimento, a produção e a comercialização, nacional ou no estrangeiro, desses “novos” fármacos. Seja como for, a era pós-TRIPS - caracterizada pelo reforço da proteção dos titulares de patentes dessa natureza - chegou à União Europeia sob a veste da Diretiva nº 98/44/ CE, do Conselho e do Parlamento Europeu, de 6 de julho de 1998, relativa à proteção das invenções biotecnológicas72 . Os considerandos nºs 1, 2, 3, 11, 14, 17 e 18 dessa diretiva se posicionam, algo contraditoriamente, entre Scilla e Caribdis. De fato, ao mesmo tempo em que o legislador europeu almeja dotar a indústria farmacêutica de um acervo mais reforçado de faculdades jurídicas, ele visa também a promover a prestação dos cuidados de saúde nos países em desenvolvimento, por meio do direito de patente, bem como a exportação de fármacos e a regulação pública da comercialização dos medicamentos para uso humano. O certo é que, para a indústria farmacêutica, a instrumentalização dos seus objetivos opera por meio da influência nas políticas legislativas, mediante os lobbies e a litigância nos tribunais. Não é por acaso que, por força do Regulamento (CE) nº 726/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 200473, que estabeleceu o procedimento comunitário de autorização e fiscalização de medicamentos para uso humano e veterinário, e que instituiu a Agência Europeia do Medicamento, foi alcançado um sistema centralizado europeu de aprovação de medicamentos que incorporam inovações biotecnológicas, para efeitos de registro, junto à Agência Europeia do Medicamento74. É, na verdade, do interesse das empresas multinacionais farmacêuticas sofrer menores “custos de transação” no processo de aprovação desse tipo de medicamentos para uso humano. Já quanto aos procedimentos administrativos destinados a obter a fixação do preço máximo de venda ao público desses medicamentos, a estratégia é puramente nacional, que não europeia, pois mais vale “dividir para reinar”. 72 In Jornal Oficial das Comunidades Europeias, n. L 213, de 30 de julho de 1998. 73 In Jornal Oficial da União Europeia, n. L 136, de 30 de abril de 2004, p. 1 ss. 74 Esse regulamento somente atinge o procedimento administrativo centralizado destinado à aprovação e ao registro de medicamentos desenvolvidos por meio de: tecnologia do DNA recombinante; de métodos de hibridoma e anticorpos monoclonais e a expressão controlada da codificação de genes para proteínas biologicamente ativas em organismos procariotas e eucariotas. 82 Por exemplo, em 2005, o custo do fornecimento do medicamento comercializado sob a marca “Prozac” custou, por embalagem, cerca de 18,49 euros na Itália e 40,48 euros na Eslováquia. Isso porque os países da União Europeia, bem como os vários Estados da União, no Brasil, não estão dotados de uma agência centralizada de compras. 3. A INFLUÊNCIA DO ACORDO TRIPS NA UNIÃO EUROPEIA E NO QUADRO DA CPE Tanto a Convenção sobre a Patente Europeia (doravante, CPE), quanto a União Europeia, no que tange à transposição da diretriz sobre a proteção das inovações biotecnológicas, incorporaram o espírito e o corpo do TRIPS, em matéria de direito de patente. 3.1. A EXTENSÃO DO PATENTEÁVEL A TODOS OS SETORES DA TECNOLOGIA Desde logo, foi transposto o regime segundo o qual deve ser assegurada a patenteabilidade em todos os domínios ou setores da tecnologia (artigo 27º/1 do TRIPS). Por outro lado, a revisão da CPE, ocorrida em novembro de 2000 - com início de vigência em 13 de dezembro de 2007 - suavizou a aplicabilidade da cláusula da ordem pública ao direito de patente: se até aí os pedidos de patente podiam ser recusados por contrariedade aos bons costumes ou à ordem pública com base na mera publicação desse pedido de patente, doravante a recusa da concessão somente pode verificar-se se a exploração comercial for contrária à ordem pública ou aos bons costumes75. 3.2. A DIFERENTE CONFIGURAÇÃO DA PATENTEABILIDADE DOS MÉTODOS TERAPÊUTICOS, DE DIAGNÓSTICO E CIRÚRGICOS Uma outra alteração da CPE, na sequência da revisão de 2000, ocorreu em matéria de patenteabilidade dos métodos terapêuticos, de diagnóstico e cirúrgicos76. Agora, eles são susceptíveis de constituírem invenções, mas tais invenções não são agora patenteáveis, nos termos do artigo 53º, alínea c), da CPE, diferentemente do disposto no ordenamento brasileiro; nesse ordenamento jurídico, tais métodos não são susceptíveis de patenteabilidade por falta de industrialidade, como, de resto, era a solução que anteriormente constava do artigo 52º/4 da mesma CPE. Mas essas invenções não são, em geral e como referi, patenteáveis. A nova redação do artigo 53º/3, alínea c), do CPI de 2003 (doravante, CPI de 2003), na redação do Decreto-Lei nº 143/2008, de 25 de julho, 75 Essa alteração já aparece refletida no artigo 6º/1 da Diretiva nº 98/44/CE, sobre a proteção das invenções biotecnológicas. 76 Cfr. J. P. REMÉDIO MARQUES, “A patenteabilidade dos métodos de diagnóstico, terapêuticos e cirúrgicos: Questão (bio) ética ou questão técnica? - O estado do problema”, in Estudos de Direito da Bioética, vol. II, Associação Portuguesa de Direito Intelectual, Almedina, Coimbra, 2008, p. 211 ss., p. 217, p. 220, p. 243 ss. 83 determina que, a mais de outras invenções insusceptíveis de proteção, não podem ser objeto de patente “os métodos de tratamento cirúrgico ou terapêutico do corpo humano, e os métodos de diagnóstico aplicados ao corpo humano ou animal”. Quer isso dizer que essa exclusão da patenteabilidade é pautada por preocupações de política legislativa em matéria de saúde pública. Todavia, os tribunais dos Estados, que veem o exercício da medicina como uma simples atividade econômica lucrativa, sentirse-ão assim mais à vontade para restringir o alcance dessa proibição de patentear as invenções respeitantes aos referidos métodos. 3.3. A FALTA DE HARMONIZAÇÃO DAS SOLUÇÕES ( DENTRO DA U NIÃO EUROPEIA): O PROBLEMA DO ÂMBITO DE PROTEÇÃO DAS PATENTES DE SEQUÊNCIA GENÉTICAS ; A FALTA DE MENÇÃO DA ORI GEM GEOGRÁFICA DOS RECURSOS BIOLÓGICOS O dever de os Estados Contratantes do TRIPS assegurarem a patenteabilidade das invenções em todos os setores tecnológicos foi mais “levado a sério” na União Europeia com o advento da Diretiva nº 98/44/CE, sobre a proteção das invenções biotecnológicas, pese embora alguns Estados-Membros tivessem levantado sérias objeções quanto à patenteabilidade dos genes humanos e das matérias biológicas meramente isoladas do seu ambiente natural e dotadas da mesma estrutura. Porém, o Tribunal de Justiça da União Europeia rejeitou as ações de impugnação dirigidas contra essa Diretiva77, o que levou à rápida transposição do texto dessa Diretiva para o ordenamento dos Estados-Membros, ainda que sob cominação da ameaça, por vezes concretizada, da apresentação de queixa junto ao mesmo Tribunal por motivo da não implementação de legislação comunitária. De qualquer jeito, essa transposição ocorreu. Em Portugal, ela deu-se em 2003, com a entrada em vigor do novo Código da Propriedade Industrial (CPI de 2003). Só que a transposição do regime dessa Diretiva nº 98/44/CE foi tudo menos uma transposição da qual tenha resultado uma harmonização dos regimes jurídicos. Por exemplo, em matéria de delimitação do âmbito de proteção de uma patente sobre sequências de genes humanos, assiste-se a uma notável disparidade de soluções legislativas. De fato, contrariamente à visão tradicional segundo a qual a proteção de uma patente (maxime, de uma patente de produto) é uma proteção absoluta78 - que torna oponível o direito do titular relativamente a todas e quaisquer utilizações do objeto 77 Processo C-377/98, países Baixos c. Parlamento Europeu e Conselho, in Colectânea de Jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, 2001, I, p. 7079 (ação a que, depois, aderiram a Noruega e a Itália). 78 Sobre isto, desenvolvidamente, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, Direito de Autor, Direito de Patente e Modelo de Utilidade, Desenhos ou Modelos, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 878-919. 84 da invenção, que não possam ser excepcionadas pelo regime das denominadas utilizações livres -, alguns ordenamentos europeus (no caso, a França79 e a Alemanha80) determinaram que o âmbito das patentes relativas a genes humanos é limitado à específica função ou efeito técnico reivindicado e descrito no pedido de patente, e não a quaisquer outras funções ou efeitos técnicos81. O próprio Parlamento Europeu, em uma Resolução de 26/10/200582, entende que a Diretiva nº 98/44/CE fornece indicações claras no sentido da limitação do âmbito de proteção das patentes de genes às concretas funções indicadas no pedido de patente. Mas a Comissão Europeia83 sustenta, pelo contrário, que nesse setor das invenções biotecnológicas não existem motivos ponderosos e razões objetivas para instituir um regime jurídico diferente daquele que vigora para as restantes invenções químicas. A citada Diretiva nº 98/44/CE e os Códigos da Propriedade Industrial dos EstadosMembros da União Europeia84 determinam que o âmbito de proteção das patentes de matérias biológicas ou de processos que permitem a produção de matérias biológicas se estende a todas as matérias obtidas, direta ou indiretamente, por reprodução ou multiplicação, sob forma idêntica ou diferenciada, contanto que sejam dotadas das mesmas propriedades exibidas pelas matérias inicialmente patenteadas, ou as que resultaram diretamente do processo biotecnológico patenteado. 79 Veja-se a nova redação do art. L. 611-18, e do art. L. 613-2-1, do Code de la propriété intellectuelle, segundo a qual “os direitos conferidos pela patente relativa a uma sequência genética não podem ser invocados contra reivindicações posteriores respeitantes à mesma sequência genética, se essa reivindicação satisfizer as condições previstas no art. L. 611-18 e indicar uma outra aplicação específica dessa sequência”. 80 § 9a da lei de patentes alemã (PatG), em vigor desde o dia 28 de fevereiro de 2005 (Bundesgesetzblatt, n. 6, 2005, p. 46). De acordo com o parágrafo III desse artigo da lei de patentes alemã, as patentes que visam a proteção das sequências de ácidos nucleicos e de outras matérias, que incluem informação genética proveniente de seres humanos e de primatas, são vistas como patentes de produtos vinculadas ao específico uso do produto para que se destinam (“ … In das dieses Erzeugnis Eingang findet und in dem genetische Information enthalten ist und ihre Funktion erfüllt”) - o itálico é meu. Sobre isto, na doutrina alemã, cfr. KRAUβ, Jan, “Die Effekte der Umsetzung der Richtlinie über den rechtlichen Schutz biotechnologischer Erfindungen auf die deutsche Praxis im Bereich dieser erfindungen”, in Mitteilungen des deustchen Patentanwälte, 2005, p. 490 ss., pp. 491-492; ENSTHALER, Jürgen / ZECH, Herbert, “Stoffschutz bei gentechnischen Patenten – Rechtslage nach Erlass des Biopatentgesetzes und Auswirkung auf chemiepatente”, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, 2006, p. 529 ss., p. 534; FELDGES, J., “Ende des absoluten Stoffschutzes?, Zur Umsetzung der Biotechnologie-richtlinie”, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, 2005, p. 978 ss.; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 891-892. 81 O considerando nº 25 da Diretiva nº 98/44/CE, sobre a proteção das invenções biotecnológicas, reforça essa posição, visto que preceitua que: “para a interpretação dos direitos conferidos por uma patente, em caso de sobreposição de sequências [recte, sequências de genes] apenas nas partes que não são essenciais à invenção, cada sequência é considerada uma sequência autônoma para efeitos do direito de patente”. 82 Resolução do Parlamento Europeu sobre invenções relativas a invenções biotecnológicas, de 26 de outubro de 2005, Documento P6-TA-PROV(2005)0407, adotada por uma maioria de 338 votos a favor, 272 votos contra e 35 abstenções. 83 Relatório da Comissão Europeia ao Conselho e ao Parlamento Europeu, intitulado “Desenvolvimentos e Implicações do Direito de Patentes no Setor da Biotecnologia e da Engenharia Genética”, de 14 de julho de 2005, Documento COM(2005)312 final, in http://www.europa.eu. 84 Artigo 97º/3 e 4 do CPI português de 2003. 85 Isso já levou alguns setores da indústria a defender e a litigar (em alguns tribunais dos Estados-Membros da União Europeia), no sentido de que o titular da patente possa proibir a importação para a União Europeia - e a venda adentro desse espaço econômico - de alimentos obtidos a partir de cereais em cujo processo de reprodução foram usadas sementes geneticamente manipuladas (nas respectivas células e sequências de DNA) para resistir a certas pragas de insetos ou a pesticidas, ainda que os alimentos (o produto final) não exibam as células ou os genes precipuamente manipulados ou somente exibam resíduos insignificantes dessas substâncias. O mesmo tipo de litígios poderá emergir a propósito da importação e venda de vestuário ou calçado em cujo processo de obtenção ou fabricação se verificou, algures a montante, a intervenção de matérias biológicas patenteadas. E quem diz vestuário ou calçado diz medicamentos obtidos a partir de matérias biológicas patenteadas (v.g., vírus, bactérias, cosmídeos, plasmídeos, outros vetores de expressão de genes, etc.). Ou seja: será que o controle da patenteabilidade de uma determinada ferramenta biotecnológica faz depender do consentimento do titular dessa patente a obtenção, sob forma idêntica ou diferenciada, e o uso, para fins comerciais, de quaisquer outras matérias (biológicas ou não biológicas) obtidas a jusante, bastando, para esse efeito, que a matéria biológica protegida tenha estado na gênese mais ou menos longínqua dessas outras matérias ou produtos ou tenha sido utilizada no respectivo processo de produção? Creio que não. A resposta só pode ser a seguinte: o âmbito de proteção dessas patentes somente pode estender-se às matérias obtidas por reprodução ou multiplicação se estas últimas continuarem a exercer ou a exibir, a jusante, as propriedades ou as características precipuamente reivindicadas e descritas no pedido de patente, e desde que um perito na especialidade possa prever tais características ou propriedades com base na consulta e análise do fascículo da patente (na data do pedido de patente ou da prioridade), sem exercer atividade inventiva própria85. O âmbito (tecnológico) de proteção de um direito de patente nunca pode estender-se para além do acervo de regras técnicas novas e inventivas objetivamente reconhecíveis no fascículo da patente (nas reivindicações apoiadas pela descrição), na data do pedido de proteção (ou na data da prioridade), pelos peritos na especialidade. É, pois, importante salientar que as propriedades ou as características exibidas e reivindicadas pelo dispositivo acusado sejam as mesmas que hajam sido tomadas em consideração para resolver o problema técnico que objetivamente caracteriza a invenção biotecnológica protegida, ou seja, as propriedades ou as características que 85 Em sentido análogo, já o meu J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 10711073. 86 jamais poderiam ser alcançadas sem a consideração e a relevância das características ou das propriedades da invenção biotecnológica patenteada; dispositivo acusado este em que se constata, assim, a influência das regras técnicas que permitiram a execução do produto ou processo biotecnológico patenteado. Outro exemplo de soluções legiferantes díspares: se, no pedido de patente, faltar a menção da origem geográfica dos recursos biológicos que deram origem à invenção para que é pedida a patente, esse vício gera, em alguns ordenamentos, a invalidade da patente que vier a ser concedida (Bélgica, Itália); em outros, essa falta de menção não provoca qualquer efeito (v.g., Portugal, Espanha, França); em outros, ainda (p. ex., Dinamarca), essa omissão gera um ilícito não criminal, sancionado com o pagamento de uma multa, sempre que o requerente conheça ou não possa razoavelmente desconhecer essa origem geográfica. 4. A REGULAÇÃO PÚBLICA DA COMERCIALIZAÇÃO DE MEDICAMENTOS E O ACESSO DA POPULAÇÃO AOS MEDICAMENTOS GENÉRICOS Um outro tema intimamente conexo com o acesso aos cuidados de saúde e aos medicamentos é o do impacto do direito de patente sobre os medicamentos de referência e a regulação pública atinente à autorização administrativa para fins de comercialização de medicamentos genéricos e à fixação do preço máximo de venda desses medicamentos. A Diretiva nº 2004/27/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 200486 - que alterou a Diretiva nº 2001/83/CE, sobre o código comunitário respeitante aos medicamentos para uso humano -, a par do Código da Propriedade Industrial português de 2003, teve um importante impacto no exercício das faculdades jurídicas inerentes à titularidade de direitos de patente sobre os medicamentos para uso humano. Em primeiro lugar, essa Diretiva consagrou - tal como o CPI português de 2003 já o havia anteriormente feito no artigo 101º, alínea c) - a possibilidade de efetuar testes farmacológicos, pré-clínicos e clínicos durante a vigência do direito de patente do medicamento de referência, para efeitos de obtenção de autorização administrativa destinada a comercializar os medicamentos (maxime, os medicamentos biossimilares e não tanto os genéricos, cuja aprovação não carece, na Europa, da realização de tais testes). Isso corresponde à solução alcançada no Painel de resolução de litígios junto à Organização Mundial do Comércio, no conhecido caso Canada – Patent Protection of Pharmaceutical Products, de 17 de março de 200087. Nesse caso, decidiu-se que 86 In Jornal Oficial da União Europeia, nº L 136, de 30 de abril de 2004, p. 34 ss. 87 Documento WT/DS114/R, in http://www.wto.org. 87 era inválida uma disposição da lei de patentes do Canadá, segundo a qual terceiros ficavam autorizados a armazenar os medicamentos genéricos nos seis meses anteriores à caducidade da patente sobre os medicamentos de referência. Todavia, o dito Painel já considerou, conforme o Acordo TRIPS, uma outra disposição legal canadense que permitia efetuar os referidos testes exclusivamente para fins de obtenção de autorização administrativa de colocação dos medicamentos no mercado, independentemente do consentimento do titular da patente. Essa é a chamada exceção Bolar/Roche aos direitos de patente, a qual, de resto, já vinha sendo praticada nos E.U.A. desde 1984 (desde a lei Hatch-Waxman, ou seja, desde o Drug Price Competition and Patent Term Restoration Act) e na União Europeia, in casu, na Alemanha, pelo menos desde 1997, na sequência dos casos Clinical Trials I e II (este último, de 1998), decidido pelo Supremo Tribunal Federal alemão88. O artigo 43º, inciso VII, do Código da Propriedade Industrial brasileiro, também contém essa exceção aos direitos de patente, na sequência da redação introduzida pela Lei nº 10.196, de 2001. Mais: não somente a realização daqueles exames e testes ficou imune a qualquer interferência repressiva do titular da patente sobre o medicamento de referência, como também, ao que julgo, essa Diretiva nº 2004/27/CE, ao modificar o artigo 10º/6 da citada Diretiva nº 2001/83/CE, passou a prever que, para além da livre realização daqueles testes e ensaios, é dispensada a autorização do titular da patente relativamente à realização de outras atividades jurídicas posteriores, na medida em que tais atividades ou atos supervenientes reflitam as exigências práticas decorrentes da realização daqueles testes e ensaios. Assim, no meu entender, durante o período de vigência do direito de patente respeitante a um medicamento de referência, passaram a ser livres as atividades de importação e o armazenamento de amostras destinadas, razoável e exclusivamente, a ser usadas junto às entidades sanitárias competentes, para fins de registro dos medicamentos, bem como passou a ser livre o pedido de autorização administrativa de comercialização e, bem assim, os próprios atos administrativos autorizativos e de fixação do preço máximo de venda dos medicamentos ao público. Já em 1996, uma Resolução do Parlamento Europeu abriu esse caminho. 88 Sobre isso, cfr., desenvolvidamente, J. P. REMÉDIO MARQUES, Medicamentos versus Patentes – Estudos de Propriedade Industrial, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 11 ss., § 4.2. ss., § 5, p. 94 ss., p. 99 ss., p. 112 ss.; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 1147-1156; DOMEIJ, Benght, Pharmaceutical Patents in Europe, Kluwer Law International, Norstedts Juridik, The Hague, London, Boston, 2000, p. 293 ss.; CORNISH, William, “Experimental Use of Patented Inventions in European Community States”, in International Review of Industrial Property and Copyright Law, 1996, p. 735 ss.; BURSHTEIN, Sheldon, “Experimental use Exception to Patent Infringement”, in Intellectual Property, vol. XII (3), 2006, p. 744 ss.; COOK, Trevor, The Protection of Regulatory Data in the Pharmaceutical and Other Sectors, Sweet & Maxwell, London, 2000, p. 6 ss.; MADAWELA, Yvonne, “European Bolar Exemption Update”, in IP World – Bio Supplement, maio de 2007, p. 18 ss. 88 Na verdade, no parágrafo nº 17 da Resolução do Parlamento Europeu nº A4-0194/96(1), de 16 de abril de 1996, sobre a “Política Industrial para o Setor Farmacêutico”89 já se afirmava: “Entende que, para que a União Europeia possa ser competitiva nos mercados em expansão europeus e internacionais de produtos não protegidos, se devem adotar medidas que permitam que as empresas farmacêuticas iniciem, antes de a patente ou o certificado complementar de protecção expirarem, as experiências laboratoriais e os preparativos regulamentares necessários para o registro de medicamentos genéricos fabricados na União Europeia, de modo a poderem estar imediatamente disponíveis no mercado uma vez findo o prazo de validade de uma patente ou do certificado complementar de protecção para um produto com patente” - o itálico é meu. Trata-se, em suma, de exigências regulatórias públicas destinadas a aferir a segurança, a qualidade e a bioequivalência dos medicamentos que se pretendem comercializar relativamente aos medicamentos que (ainda) se encontram patenteados. Exigências que não importam a utilização mercadológica do objeto da invenção patenteada. São estas, antes, atividades e usos, quais “paper acts” cuja prática é estritamente necessária para colocar os medicamentos (genéricos) no mercado tão logo o direito de patente sobre os medicamentos de referência caducar, ou seja, antecipadamente invalidado. Se assim não se entender, o titular da patente desfrutará de um ilícito período de exclusivismo fático de comercialização dos medicamentos, mesmo para além e após a extinção das patentes ou dos períodos de extensão dessas patentes respeitantes aos medicamentos de referência (na Europa, por meio dos denominados certificados complementares de proteção de produtos farmacêuticos). Em Portugal, quanto ao preço de venda ao público dos medicamentos genéricos, o regime jurídico previsto no artigo 9º/1 e 2 do Decreto-Lei nº 65/2007, de 14 de março, determina que este deve ser inferior em 35% ao preço de venda ao público do medicamento de referência autorizado em Portugal, com igual dosagem e na mesma forma farmacêutica - exceto se o preço deste último for inferior a 10 euros, eventualidade em que o preço do genérico deverá ser inferior em 20% ao preço do primeiro. No Brasil, após o início de vigência da Lei nº 9.787, de 10 de fevereiro de 1999 (que dispôs sobre a vigilância sanitária, estabeleceu o medicamento genérico e dispôs sobre a utilização de nomes genéricos em produtos farmacêuticos), constata-se que os genéricos se apresentam 40% mais baratos do que os medicamentos de referência logo que entram no mercado, aumentando essa diferença de preços após alguns anos de permanência no mercado90. 89 In Jornal Oficial das Comunidades Europeias, nº C 141, de 13/05/1996, p, 63. 90 Veja-se VIEIRA, Fabiola Sulpino / ZUCCHI, Paola, “Diferenças de preços entre medicamentos genéricos e de referência no Brasil”, in Revista de Saúde Pública (São Paulo), vol. 40, n. 3, 2006, p. 444 ss., p. 448. 89 Revela-se, pois, um objetivo importante a criação de condições legiferantes claras e não ambíguas para que os medicamentos genéricos e os medicamentos biossimilares possam obter autorização administrativa de comercialização, de fixação do preço de venda e de (eventual) margem de comparticipação estadual no preço, ainda durante a vida do direito de patente ou do certificado complementar de proteção, independentemente do consentimento do titular desses direitos de propriedade industrial, de jeito a poderem ser imediatamente colocados no mercado após a extinção desses direitos de exclusivo91. 5. O PRAZO DE PROTEÇÃO DOS DADOS Em segundo lugar, essa Diretiva nº 2004/27/CE alterou o regime jurídico do prazo de proteção dos dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos comunicados às autoridades nacionais sanitárias, com vista à concessão de autorização administrativa de comercialização. Na sequência do disposto no artigo 39º/3 do Acordo TRIPS, foi estabelecido um prazo normal de proteção desses dados com a duração de 10 anos, que beneficia os titulares de autorizações de comercialização respeitantes a novos fármacos. A fórmula do legislador europeu, já transposta para os ordenamentos dos Estados-Membros, é a seguinte: 8 + 2+ 192, ou seja: (1) O requerente da autorização para um medicamento genérico está livre de apresentar o pedido de autorização administrativa de comercialização, uma vez decorrido o prazo de oito anos a contar da data da emissão da autorização administrativa respeitante ao medicamento de referência. Todavia, a autorização administrativa requerida nunca será concedida senão após o decurso do prazo de 10 anos a contar da autorização (ou do registro) do referido medicamento de referência. 91 Note-se, porém, que deverá depender do consentimento do titular desses exclusivos a promoção (maxime, a promoção publicitária) desses medicamentos, ainda quando esta for acompanhada da rigorosa e terminante advertência de que tais produtos somente serão colocados no mercado após a extinção dos direitos de patente ou dos certificados complementares de proteção. Tb., nesse sentido, a decisão do Supremo Tribunal Federal alemão (Bundesgerichtshof), de 5/12/2006, proc. X ZR 76/05, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, 2007, p. 221. É que, a mais de outras considerações, a promoção desses produtos em uma época em que os direitos de propriedade industrial ainda estão em vigor afeta injustificadamente o mercado e os interesses econômicos do respectivo titular: os potenciais adquirentes dos medicamentos tenderão a aguardar a colocação no mercado dos genéricos ou dos biossimilares, afectando assim o volume de vendas do titular da patente ou do certificado complementar no ocaso da vigência desses direitos de exclusivo. 92 Cfr. o artigo 19º/3, alíneas a) e b), do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de agosto, que transpôs para o ordenamento jurídico português a citada Diretiva nº 2004/27/CE. Veja-se, também, J. P. REMÉDIO MARQUES, Medicamentos versus Patentes – Estudos de Propriedade Industrial, 2008, cit., p. 30 ss., pp. 51-62. 90 (2) As empresas farmacêuticas podem obter um ano adicional de proteção dos dados comunicados à entidade sanitária competente (v.g., em Portugal: a Autoridade Nacional do Medicamento - INFARMED), na eventualidade de que, nos primeiros oito dos dez anos subsequentes à autorização inicial do medicamento de referência, o titular da autorização de comercialização desse medicamento tenha obtido uma outra autorização administrativa para uma ou mais indicações terapêuticas novas que, de acordo com a avaliação científica prévia, se considere traduzirem um benefício clínico significativo em face das terapias até aí existentes. 6. A EQUIPARAÇÃO DAS FORMAS FARMACÊUTICAS ORAIS DE LIBERAÇÃO IMEDIATA E DOS SAIS, ÉSTERES, ISÔMEROS E MISTURAS DE ISÔMEROS À SUBSTÂNCIA ATIVA PARA QUE FORA CONCEDIDA A INICIAL PROTEÇÃO DOS DADOS E O EXCLUSIVISMO MERCADOLÓGICO Em terceiro lugar, foi estancada uma vulgar estratégia usada pelas empresas farmacêuticas destinada a obter novas e sucessivas autorizações de comercialização para a “mesma” substância ativa. Curava-se do expediente traduzido na apresentação de pedidos de registro para os diferentes sais, ésteres, isômeros e misturas de isômeros, complexos ou derivados de uma substância ativa anteriormente autorizada na União Europeia, bem como da formulação de pedidos de registro relativamente às diferentes formas farmacêuticas orais de liberação imediata da substância ativa. Estratégia que, assim, visava primacialmente impedir as importações paralelas de medicamentos e prolongar o exclusivo após a caducidade da patente ou da extensão dessa patente com a vigência do certificado complementar de proteção: após a obtenção de um novo registro junto às entidades sanitárias competentes, a empresa peticionava então a emissão de um certificado complementar de proteção junto dos institutos de patentes dos Estados-Membros. Doravante, a autorização administrativa inicial para a colocação do fármaco no mercado cobre as diferentes formas farmacêuticas orais de liberação imediata e, outrossim, os diferentes sais, ésteres, isômeros e misturas de isômeros, na medida em que todas essas substâncias são consideradas a mesma substância ativa93. 93 Artigo 19º/4, alíneas a) e b), do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de agosto (Estatuto do Medicamento português). Isso só não será assim se e quando essas substâncias diferirem significativamente em propriedades relacionadas com a segurança ou a eficácia, hipóteses em que o requerente da autorização de comercialização tem de fornecer dados suplementares destinados a comprovar a segurança, a eficácia dos vários sais, ésteres ou derivados de uma substância ativa autorizada. 91 Por outro lado, na União Europeia, na sequência da citada Diretiva nº 2004/27/ CE, foi abolida a regra de harmonia segundo a qual somente era possível conceder uma autorização administrativa de comercialização de medicamentos genéricos94 se o medicamento de referência, que fora objeto da autorização inicial na União Europeia, ainda estivesse a ser comercializado no Estado-Membro para onde se requerera a autorização. Isso porque a manutenção dessa regra conduziu a abusos de posição dominante. Vejase o caso da sociedade AstraZeneca, que foi punida, em junho de 2005, pela Comissão Europeia com uma multa de 60 milhões de euros, por motivo de ter retirado do mercado dinamarquês o conhecido fármaco comercializado sob a marca “Losec” e, desse modo, impedir que a colocação no mercado do genérico desse medicamento de referência pudesse ser aí autorizada. 7. O DIREITO DE PRIORIDADE UNIONISTA, A CPE E A PATENTEABILIDADE DE FÁRMACOS NA E UROPA Como é sabido, os requerentes de patentes em um Estado contratante da referida Convenção de Paris, de 1883, beneficiam-se de um direito de prioridade, com a duração de um ano, a contar da data em que tenham efetuado um primeiro pedido de proteção, ficando salvos de efetuar, nesse ínterim, idêntico pedido de proteção em um outro Estado contratante da mesma Convenção de Paris (artigo 4º/C, nº 1, da referida Convenção). Ora, todos os Estados-Membros da União Europeia são membros da Convenção sobre a Patente Europeia, embora essa CPE - ou seja, o Instituto Europeu de Patentes e os seus órgãos jurisdicionais (in casu, as Divisões de Oposição, as Câmaras Técnicas de Recurso e a Grande-Câmara de Recurso) - nada tenha a ver com a União Europeia. Por outro lado, a própria União Europeia aderiu ao Acordo TRIPS, em finais de 1994. E todos os EstadosMembros da União Europeia são membros da Organização Mundial do Comércio, tendo subscrito, por conseguinte, o Acordo TRIPS. Só que isso não significa que a própria CPE esteja vinculada às disposições do Acordo TRIPS. Não está. E nem está a CPE vinculada à Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de 1950. É, porém, certo que todos os Estados-Membros da União Europeia (e outros Estados europeus) se acham obrigados pelo Acordo TRIPS. 94 Ou seja, de medicamentos com a mesma composição qualitativa e quantitativa em substâncias ativas, sob a mesma forma farmacêutica e para os quais, sempre que se revela necessário, foi demonstrada a bioequivalência com o medicamento de referência. 92 Daí que, até 13 de dezembro de 2007 - data do início de vigência da revisão da CPE -, a CPE não reconheceu qualquer prioridade aos pedidos de patente inicialmente depositados em países que não fazem parte da referida Convenção de Paris, de 188395. Esse status quo impediu que pudesse ser patenteada junto à CPE (dando logo origem a um feixe de patentes nos Estados europeus contratantes dessa Convenção) uma invenção respeitante a um fármaco, cuja patente havia sido inicialmente pedida na Índia, já que, ao tempo, esse país somente integrava a Organização Mundial do Comércio, e não a referida Convenção de Paris, de 188396. Resultado: esse fármaco pôde livremente ser comercializado nos Estados contratantes da CPE, uma vez obtida a autorização administrativa junto das entidades sanitárias competentes. Ou seja: enquanto até 13 de dezembro de 2007, os pedidos de patentes nacionais efetuados junto aos institutos dos Estados-Membros da CPE beneficiavam-se do direito de prioridade emergente de idênticos pedidos anteriormente efetuados junto a países-membros da Organização Mundial do Comércio - pois as obrigações do TRIPS a isso conduzem -, os mesmos pedidos de patentes feitos junto ao Instituto Europeu de Patentes não podem beneficiar-se dessa prioridade (a prioridade unionista). A situação foi, no entanto, corrigida após o dia 13 de dezembro de 2007. 8. O ACESSO AOS MEDICAMENTOS E AS LICENÇAS COMPULSÓRIAS O acesso aos cuidados de saúde é logrado, inter alia, por meio da administração de fármacos. Todavia, se os fármacos estão protegidos por direito de patente, o seu titular apenas tem o dever jurídico de explorar a invenção patenteada no território do Estado que lhe concedeu a patente. E mesmo assim, esse dever jurídico pode ser cumprido, em alguns países, mediante a prova da mera comercialização do fármaco nesse país. Não é exigido o fabrico do objeto da patente no território do Estado da proteção. Isso não acontece, felizmente, no Brasil, aí onde o dever de explorar o invento só se satisfaz com o fabrico do objeto da patente no Brasil, o que significa um estímulo para o desenvolvimento da indústria local, propiciando a comunicação do saber-fazer e as demais tecnologias não integralmente divulgadas na descrição que acompanha os pedidos de patente97. 95 Após a entrada em vigor da revisão da CPE, a nova redação do artigo 87º dessa Convenção permite reconhecer o direito de prioridade relativamente a pedidos de proteção inicialmente realizados em Estados contratantes da Organização Mundial do Comércio, mesmo que estes não tenham aderido à Convenção de Paris. 96 Nesse sentido, cfr. as decisões G 02/02 e G 03/02, tiradas na Grande-Câmara de Recurso do Instituto Europeu de Patentes, de 26 de abril de 2004. 97 Como é sabido, somente o ordenamento de patentes dos E.U.A. exige que o requerente da proteção descreva a melhor maneira de executar a invenção para que pede proteção (requisito do best mode). 93 A liberdade contratual é conatural do titular da patente e é por ele exercida em termos de modelar a oportunidade, o conteúdo e os efeitos jurídicos dos contratos pelos quais ele autoriza o exercício de todas ou de algumas das faculdades jurídicas inerentes ao direito (de patente) de que é titular: v.g., o fabrico, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a importação, etc. Em suma: essas autorizações são autorizações voluntárias. Se o titular da patente não quiser celebrar os contratos de licença, sibi imputet. E nem vale obtemperar dizendo que terceiros podem potestativamente usar o objeto da invenção e depois remunerar essa utilização, já que esse proceder constitui uma indesmentível violação do direito de patente, que, como se sabe, é um direito subjetivo privado absoluto de patrimonial. Contudo, da falta de celebração de contratos de licença de patentes (as licenças voluntárias) podem resultar prejuízos e danos gravíssimos para os destinatários dos cuidados de saúde e, inclusivamente, para os Governos dos Estados que prosseguem objetivos pautados pela melhoria dos cuidados de saúde. Se o titular da patente decidir não realizar contratos de licença de exploração da patente, é bem provável que a especulação provoque o aumento do preço que seria livremente negociável no mercado. Pense-se nas pandemias (maxime, a aids) e nas epidemias (v.g., a malária, a hepatite C, a tuberculose) que afetam os países em desenvolvimento e os países menos desenvolvidos. Pense-se, igualmente, na ameaça de certas epidemias de curta duração que podem afetar os países mais desenvolvidos, como tem sido a (constante) ameaça da gripe aviária. 8.1. AS LICENÇAS COMPULSÓRIAS E A EXPORTAÇÃO DE FÁRMACOS PARA OS PAÍSES COM GRAVES PROBLEMAS DE SAÚDE PÚBLICA ( AS FLEXIBILIDADES DO TRIPS) Os ordenamentos nacionais prevêem, há muito98, a possibilidade de emissão das denominadas licenças obrigatórias ou compulsórias de direitos de propriedade industrial, maxime, as licenças obrigatórias de direitos de patente. São licenças onerosas e, em princípio, são licenças não exclusivas, cuja remuneração é estipulada pela entidade administrativa competente ou por um tribunal. Coloca-se, todavia, um importante obstáculo à praticabilidade desse sistema. É que as licenças obrigatórias ou compulsórias de direito de patente visam apenas autorizar a 98 Em Portugal, essa possibilidade existe já desde o CPI de 1940 (artigo 30º), aplicável sempre que o titular não explorasse o invento, durante o prazo de três anos, a contar da concessão, ou não o fizesse de modo a ocorrer às necessidades nacionais, bem como nas eventualidades em que fosse exigível essa utilização por terceiros em indústrias com considerável importância para a economia nacional. O ato de concessão da licença obrigatória consistia, ao tempo, na prolação de uma sentença de natureza constitutiva, precedida de uma ação declarativa junto ao tribunal judicial competente. A partir do CPI português de 1995, a concessão de licença obrigatória passou a operar por meio da emissão de um ato administrativo por parte do INPI ou do Governo (no caso de serem invocados e estarem verificados motivos de interesse público: artigo 110º/4 do CPI de 2003). 94 utilização do objeto da invenção no território do Estado cuja administração constituiu ou concedeu o direito de propriedade industrial, independentemente do consentimento do titular da patente. O princípio da territorialidade dos direitos de propriedade industrial, et, pour cause, dos direitos de patente, impõe naturalmente essa solução. O próprio Acordo TRIPS permite o licenciamento compulsório “predominantemente para fornecimento do mercado interno do Membro que autorizou essa utilização” (artigo 31º, alínea f ), do TRIPS). Na verdade, com base nesse preceito, o INPI português ou o congênere brasileiro não podem autorizar a utilização do objeto da patente para o fim de efetuar a exportação de um fármaco carenciado em um país terceiro, em desenvolvimento ou menos desenvolvido. É certo que esse país terceiro, cujos habitantes carecem da administração desse fármaco, está salvo de conceder uma licença obrigatória para importação para o respectivo território nacional, com base em razões de saúde pública ou por outros motivos de interesse público (v.g., segurança nacional, desenvolvimento econômico e tecnológico do país). Todavia, o fármaco apenas poderá ser importado a partir de um país em cujo território não esteja em vigor a patente que protege essa invenção ou, estando aquela em vigor, o titular da patente autorize, nesse outro país, a fabricação e a subsequente exportação. 8.2. A DECLARAÇÃO DE DOHA E OS DESENVOLVIMENTOS POSTERIORES Essa dificuldade em obter fármacos patenteados a um preço razoavelmente acessível foi acentuada, em 2001, por ocasião das queixas apresentadas pelos E.U.A. contra os governos do Brasil99 e da África do Sul, junto da Organização Mundial do Comércio. Esse foi, de resto, o mote para a emissão da conhecida Declaração de Doha, sobre o Acordo TRIPS e a saúde pública, de 20 de novembro de 2001100, a qual visou agilizar o fabrico e a exportação de medicamentos genéricos (bioequivalentes, qualitativa e quantitativamente, aos medicamentos de referência), a preços inferiores, para países menos desenvolvidos. O parágrafo 6º da referida Declaração de Doha reconheceu que os países com escassa ou nula capacidade industrial instalada no setor farmacêutico são incapazes de utilizar eficazmente o mecanismo das licenças compulsórias existente nos respectivos ordenamentos jurídicos e solicitou que o Conselho do TRIPS procedesse à análise desse problema e recomendasse as soluções adequadas. 99 Como é sabido, a queixa dirigida contra o Brasil baseou-se no fato de o regime jurídico das licenças compulsórias poder atuar nos casos em que o objeto da patente não for fabricado no Brasil. Não basta a mera importação e comercialização, no Brasil, do objeto da patente; faz-se mister que o fabrico ocorra no Brasil, por óbvias razões de promoção e de estímulo da atividade industrial no país e da transferência de tecnologia para as indústrias brasileiras ou estrangeiras com filiais no Brasil. 100 Documento WT/MIN(01)DEC/2. 95 Em 30 de agosto de 2003, o Conselho do TRIPS, com a preciosa ajuda e mediação da União Europeia, acordou sobre a implementação do referido parágrafo 6º da Declaração de Doha, ainda que a título provisório, até que fosse alcançado um consenso alargado no que respeita à alteração do referido artigo 31º, alínea f ), do TRIPS. Assim, os Estados contratantes da Organização Mundial do Comércio - OMC passaram a poder ser dispensados do cumprimento das obrigações emergentes do TRIPS, para o efeito de adotarem as medidas julgadas necessárias em matéria de importação, exportação ou fabrico de fármacos, com vista a satisfazer os interesses da saúde pública101. Essa Decisão tornou, na prática, inaplicável o requisito previsto na alínea f) do artigo 30º do TRIPS, de harmonia com o qual as licenças compulsórias somente devem ser emitidas para fins de utilização do objeto da patente no mercado interno do Estado que autorizou essa utilização. Essa decisão permite, desse modo e pelo contrário, que os ordenamentos nacionais criem mecanismos pelos quais uma licença obrigatória pode ser concedida para fins de fabrico e exportação de determinado tipo de medicamentos102 destinados a países com específicas necessidades de utilização desses medicamentos. Assim, o Estado importador (Estado contratante do TRIPS) que pretenda usar esses fármacos deve notificar o Conselho do TRIPS e comunicar que não desfruta de capacidade industrial instalada ou ela é insuficiente (exceto se for um país menos desenvolvido). Se nesse Estado importador o medicamento estiver protegido por direito de patente, esse Estado deve declarar que já emitiu ou pretende emitir uma licença compulsória exceto se for um país menos desenvolvido, a quem o parágrafo 7º da Declaração de Doha autoriza não sancionar, no seu território, o exercício de direitos de patente. Esse Estado importador também deve identificar um potencial Estado exportador. Uma entidade desse Estado exportador deve, por sua vez, iniciar negociações para a celebração de um contrato de licença com o titular da patente, em termos comercialmente razoáveis, e por um período de tempo comercialmente razoável. Se a licença voluntária for recusada, o exportador potencial deverá solicitar uma licença compulsória junto ao seu próprio Governo, limitada a um único fornecimento. Por sua vez, o Estado exportador deverá notificar o Conselho do TRIPS dos termos da licença compulsória para exportação, incluindo o destino, as quantidades a fornecer e a duração da licença. 101 J. P. REMÉDIO MARQUES, “Propriedade Intelectual e Interesse público”, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. 79, 2003, p. 293 ss., p. 332-335 e nota 91; CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent Rights, 2ª edição, Kluwer Law International, The Hague, 2005, pp. 339-364. 102 O conceito de medicamento utilizado no §1, alínea a), dessa Decisão cobre os ingredientes ativos, os kits de diagnóstico e, ao que julgo, as vacinas. Tb. in ABOTT, Frederick, in Resource Book on TRIPS and Development, Cambridge University Press, 2005, p. 484. 96 O exportador deverá solicitar o registro do fármaco e demonstrar a bioequivalência e a biodisponibilidade deste, segundo as normas previstas no Estado importador. Prevê-se o pagamento de uma remuneração adequada, a fixar caso a caso, em favor do titular da patente. Os fármacos fornecidos sob o abrigo dessa licença devem estar identificados por meio de embalagens diferentes, de cores ou de outras características da aparência. Antes de iniciar a importação para o país carenciado, o titular da licença deverá publicitar as quantidades fornecidas e as características distintivas do produto. O exportador deve notificar o Conselho do TRIPS sobre a concessão da licença e o respectivo conteúdo. Depois, a Decisão de implementação da Declaração de Doha determina a obrigação de o Estado importador prevenir a reexportação dos mesmos fármacos para outros países, bem como o dever de qualquer Estado-Membro da OMC prevenir a importação para os respectivos países de fármacos fabricados e exportados sob o abrigo dessas licenças compulsórias. Essa medida visa prevenir que os produtos assim transacionados sejam distraídos para outros mercados de Estados que não se confrontam com problemas graves de saúde pública, bem como contornar as objeções postas por alguns Estados, que viram nesse esquema um astucioso expediente, passível de colidir, de modo injustificável, com a exploração normal dos direitos de patente (artigo 30º do TRIPS). No entanto, esse mecanismo instituído pela referida Decisão, de 30 de agosto de 2003, foi transformado em um instrumento jurídico permanente, incluído no corpo normativo do próprio TRIPS, por meio do aditamento do artigo 31º-bis ao TRIPS, efetuado em 8 de dezembro de 2005. A sua vigência enquanto instrumento jurídico inserido no Acordo TRIPS depende da adesão de dois terços dos Estados contratantes da OMC, e a data-limite de adesão a essa alteração termina em 31 de dezembro de 2009. 8.3. A REAÇÃO DA U NIÃO EUROPEIA E DE OUTROS E STADOS NÃO MEMBROS Alguns Estados não membros da União já procederam à densificação das condições de cuja verificação depende a emissão desse tipo de licenças para exportação. Fê-lo a Noruega103, o Canadá104, a Índia105 e a China. 103 Decreto Real de 14 de maio de 2004, o qual alterou os artigos 49º e 69º da lei de patentes norueguesa, de 15/12/1967 – http://www.dep.no/ud/engelsk. 104 Em maio de 2004, o legislador canadense alterou o Patent Act e o Food and Drugs Act e prescreveu uma lista de produtos dessa natureza “candidatos positivos” ao “benefício” da outorga de licenças obrigatórias. Cfr. ABOTT, Frederick, in Resource Book on TRIPS and Development, 2005, cit., p. 483. 105 A Índia procedeu à alteração da sua lei de patentes. 97 Os Estados-Membros da União Europeia não alteraram os respectivos regimes internos, na sequência dessa Decisão do Conselho do TRIPS, de 30 de agosto de 2003. Ao invés, a Comissão Europeia promoveu a harmonização vertical desse problema, por meio da emissão do Regulamento (CE) nº 816/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2006, relativo à concessão de licenças obrigatórias de direitos de patente e certificados complementares de proteção destinados ao fabrico de produtos farmacêuticos destinados à exportação para países com problemas de saúde pública. A Noruega e o Canadá também legislaram a esse respeito. Em todas essas hipóteses legiferantes, foi adotado o modelo da concessão de licenças compulsórias (de exportação) de jaez nacional, provido de mecanismos procedimentais complexos (notificações, embalagens, acondicionamento, rotulagem, oposição do titular da patente, etc.), em vez de ser criado um esquema de licenças de direito, de constituição mais rápida e sem efeito suspensivo após a dedução de oposição do titular da patente. Não se esqueça, ainda, que esse mecanismo deverá ser desencadeado tantas vezes quantos forem os lotes de medicamentos a serem exportados, caso a caso e pontualmente, para os países com graves problemas de saúde pública. Assim, os representantes do país importador, de organismos da ONU ou de uma organização não governamental que atue como a autoridade formal de um ou de vários importadores devem apresentar uma notificação às autoridades competentes do Estado-Membro em que produzam efeitos patentes ou certificados complementares de proteção e declarar que pretendem utilizar esse mecanismo para fazer face a problemas de saúde pública (artigo 5º, alíneas a) e b), artigo 6º/1 e 3, ambos do Regulamento (CE) nº 816/2006). A autoridade competente notifica imediatamente o titular dos direitos do pedido de licença obrigatória, dando-lhe a oportunidade de exercer o contraditório acerca do pedido e prestar informações relevantes. Não obstante, o requerente da licença no país exportador deve demonstrar, perante as autoridades competentes, que efetuou diligências para obter uma licença voluntária e que tais diligências não tiveram êxito (artigo 9º/1), exceto nas situações de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência. Se emitir a licença obrigatória, o Estado-Membro exportador deve notificar o Conselho do TRIPS, por meio da Comissão Europeia, informando-o das condições dessa licença (artigo 12º). Tais condições são, sumariamente, as seguintes: a licença obrigatória é, em princípio, intransmissível; é constituída ad tempus e deve limitar-se estritamente a todos os atos. A quantidade dos lotes a exportar não deve ultrapassar o necessário para satisfazer as necessidades do(s) país(es) importador(es) mencionado(s) no pedido, tendo em conta a quantidade do(s) produto(s) fabricado(s) sob o abrigo de outras licenças obrigatórias concedidas em qualquer outro lugar; os produtos fabricados sob o abrigo da licença devem ser claramente identificados por 98 meio de rotulagem e devem distinguir-se dos fabricados pelo titular da patente por meio de uma embalagem especial, com cor ou formas distintas, provida com indicação de que o produto está sujeito a uma licença obrigatória. A concessão da licença obrigatória para exportação é, obviamente, uma licença onerosa. Em situações de emergência nacional do país importador, a remuneração deve corresponder a 4%, no máximo, do preço total a pagar pelo país importador ou em nome desse país. Nos demais casos, a remuneração é determinada tendo em consideração o valor econômico da utilização que foi autorizada sob o abrigo da licença para o país importador em causa, bem como as circunstâncias humanitárias ou não comerciais relacionadas com a emissão da licença (artigo 9º, alíneas a) e b), do citado regulamento). Por outro lado, proíbe-se a importação, para a Comunidade, dos produtos fabricados sob o abrigo da licença obrigatória, bem como a reexportação, colocação sob um regime suspensivo ou colocação em uma zona franca. De fato, o esquema das licenças compulsórias instituído por esse regulamento comunitário pressupõe a intervenção procedimental do titular da patente, seja para fornecer informações relevantes, seja para propor a correção de erros, seja para impugnar a decisão; e a sua impugnação é efetuada sob o abrigo dos direitos nacionais, substantivos e processuais, dos Estados-Membros da União Europeia, podendo ter efeito suspensivo (artigo 17º/2º do referido regulamento), consoante a previsão nesses direitos nacionais106. Parece, inclusivamente, que esse complexo esquema procedimental serve apenas como instrumento de dissuasão, que será raramente posto em prática, na medida em que, como no-lo revela a experiência brasileira (com exceção da licença obrigatória concedida para exploração no Brasil do efavirenz, em maio de 2007) e da África do Sul (aí onde a autoridade da concorrência, após ter aplicado uma multa e haver considerado que a titular da patente efetuara uma prática restritiva da concorrência), esse titular da patente preferirá negociar a celebração de um contrato de licença do que sujeitarse a ver contra si concedida e efetivada uma licença compulsória, com o que esse ato implicará termos de “imagem” das empresas do grupo nas cadeias de distribuição dos produtos. 106 Por exemplo, no direito português, a concessão de uma licença compulsória pode ser objeto de recurso para o juízo de propriedade intelectual de Lisboa (artigo 40º/2, ex vi do artigo 112º/2, ambos do CPI de 2003, na redação da Lei nº 52/2008, de 28 de agosto); depois, o titular da patente pode recorrer ao tribunal de 2ª instância (tribunal da Relação de Lisboa) e, excepcionalmente, ao Supremo Tribunal de Justiça (artigo 46º/2 do mesmo Código). A decisão favorável à concessão só produz efeitos após o trânsito em julgado e depois de ter sido averbada no registro do INPI português (artigo 112º/4 do mesmo Código). 99 8.4. ALGUMAS DIFICULDADES DE IMPLEMENTAÇÃO DO R EGULAMENTO (CE) Nº 816/2006 E DA DECISÃO DO CONSELHO DO TRIPS, DE 30 DE AGOSTO DE 2003 Subsistem, ainda, dois outros problemas susceptíveis de dificultar a implementação e atuação efetiva do mecanismo das licenças obrigatórias. O primeiro tem a ver com a utilização dos dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos pela entidade sanitária no país importador, com vista a emitir a autorização administrativa de comercialização nesse país. É que essa utilização é normalmente efetuada ainda durante o prazo de proteção dos dados (na União Europeia a fórmula é, como referimos supra, 8 + 2 + 1). Ora de duas, uma: ou bem que é paga ao titular da patente uma remuneração global adequada no país exportador pela utilização desses dados no país importador, por isso mesmo susceptível de incorporar o valor dos dados e o valor econômico da utilização que for autorizada - pois só assim se respeita o disposto no artigo 39º/3 do TRIPS107 -, ou bem que a patente apenas abrange um dos ingredientes ativos de que o fármaco é composto. Nesse último caso, o titular da licença obrigatória deverá, ainda, obter no país importador uma autorização administrativa de comercialização108. A União Europeia resolveu parcialmente esse problema no artigo 18º/2 do citado Regulamento (CE) nº 816/2006, de 17 de maio de 2006, visto que se o pedido de licença compulsória for relativo a um genérico de um medicamento de referência, que seja ou tenha sido autorizado sob o abrigo do artigo 6º da Diretiva nº 2001/83/CE, e sob o abrigo da legislação interna dos Estados-Membros, são inaplicáveis os referidos períodos de proteção dos dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos, previstos no Regulamento (CE) nº 726/2004 e nos nos 1 a 5 da mencionada Diretiva nº 2001/83/CE. O segundo problema é gerado pela falsa premissa de que cada fármaco patenteado é atingido por uma única patente titulada por uma única pessoa (humana ou jurídica), o que não é verdade, especialmente nas patentes de biotecnologia: uma vacina geneticamente manipulada ou um antirretroviral são, não raras vezes, atingidos por patentes pertencentes a várias pessoas ou entidades. Assim, poderá ser necessário remunerar adequadamente duas ou mais pessoas ou entidades, nos termos do artigo 31º, alínea h), do Acordo TRIPS. E mesmo que apenas seja enfocado o produto ou o fármaco, que não a pessoa do titular da patente - como parece sugerir a redação do parágrafo 7 da Declaração de Doha -, pode suceder que o fármaco seja composto por vários ingredientes ativos patenteados e por um ou vários excipientes também objeto de patente, de sorte que 107 Nessa eventualidade, não existe a necessidade de emitir duas licenças obrigatórias - uma para fabricar e exportar o fármaco e outra para utilizar os dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos no país importador, com vista à emissão da autorização administrativa destinada a permitir a colocação desse fármaco no mercado do país importador. 108 100 Também, nesse sentido, CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent Rights, 2ª edição, 2005, cit., pp. 366-367. cada um dos ingredientes ativos e excipientes poderá ser considerado um produto diferente, relativamente ao qual terá que ser emitida a respectiva licença compulsória. Seja como for, a remuneração adequada é calculada com base no valor econômico da utilização que for autorizada sob o abrigo da licença para os países importadores (artigo 10º/9, alínea b), do Regulamento (CE) nº 816/2006), independentemente do número de licenças e de licenciantes compulsórios envolvidos: os royalties e as demais quantias entregues deverão ser repartidos entre todos, de acordo com os critérios estabelecidos pela entidade administrativa que conceder a licença obrigatória109. 9. OS ACORDOS BILATERAIS (O TRIPS-PLUS) EM MATÉRIA DE PATENTES E O MINGUAR DAS UTILIZAÇÕES LIVRES Os resultados do chamado bilateralismo no quadro do direito de patentes também têm espelhado a maneira como os Estados economicamente hegemônicos tentam transpor os seus regimes jurídicos para o quadro normativo dos Estados com quem celebram acordos comerciais. Fazem-no os E.U.A. e também a União Europeia, embora sejam os primeiros aqueles que assumem uma estratégia de plasmar nos Acordos de Livre Comércio o objetivo de elevação dos níveis de proteção dos direitos de propriedade intelectual. Não é por acaso que os maiores atores transnacionais do fabrico e do comércio de medicamentos têm a sua sede nos E.U.A. e na União Europeia. Aqui, o princípio do tratamento nacional (artigo 3º/1 do Acordo TRIPS) é a mola que impulsiona a elevação de novos patamares e níveis de proteção, visto que a celebração de um acordo bilateral entre um determinado Estado e os E.U.A. ou a União Europeia, provido de novos objetos de proteção ou de um âmbito de proteção mais alargado, obriga esse Estado a conceder o mesmo tratamento aos nacionais de outros Estados-Membros da OMC. Então, se esse novo patamar ou nível de proteção se tornar mais ou menos hegemônico, tanto os E.U.A. quanto a União Europeia tentam introduzi-lo no quadro das negociações do TRIPS110. Os Acordos de Livre Comércio celebrados ou projetados pelos E.U.A. seguem esse paradigma: se o universo dos objetos ou realidades patenteáveis se estende a qualquer setor tecnológico (artigo 27º/1 do TRIPS), é natural que se queira eliminar todas e quaisquer “exceções”, tais como a eliminação da proibição da patenteabilidade de uma miríade de matérias biológicas: sequências genéticas meramente isoladas do estado natural, células, plantas, animais, processos (micro)biológicos de obtenção de plantas ou animais. 109 Em sentido análogo, cfr. CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent Rights, 2ª edição, 2005, cit., p. 356. 110 VAVER, David / BASHEER, Shamnad, “Popping Patented Pills …”, 2006, cit., p. 288. 101 Outrossim, tem-se em vista a abolição da regra que veda a patentabilidade dos métodos de diagnóstico, terapêuticos e cirúrgicos aplicados diretamente ao corpo humano e a regra que permite a proibição da patenteabilidade das invenções que violam a ordem pública, o meio ambiente ou a saúde pública. Isso sem esquecer a introdução da regra de harmonia com a qual o Estado contratante de acordos bilaterais desse jaez se obriga a não receber nem apreciar os pedidos de registro de medicamentos genéricos enquanto não caducar a patente do medicamento de referência. Esse regime traduz o famoso linkage ou mecanismo de articulação entre a vigência do direito de patente e a aprovação e registro de medicamentos genéricos ou biossimilares por parte das entidades sanitárias competentes. Atente-se também para a regra de acordo com a qual, após a caducidade da patente pelo decurso do prazo, é possível estender a duração do exclusivo resultante de demoras não razoáveis para obter a aprovação dos fármacos. E, enfim, o dever jurídico de os Estados passarem a proteger as patentes de segundo e subsequentes usos terapêuticos de substâncias já conhecidas. Na União Europeia, o regime do certificado complementar de proteção para produtos farmacêuticos - que constitui um novo direito de propriedade industrial ligado à substância ativa autorizada pelas entidades sanitárias competentes e que fora protegida pela patente de base - permite adicionar um período máximo de cinco anos aos 20 anos de duração da patente. Isso na hipótese mais extrema de decorrer um prazo de 10 anos entre o depósito do pedido de patente e a data da aprovação do medicamento e a entrada nos circuitos comerciais: em qualquer caso, a duração efetiva do exclusivo comercial nunca pode durar mais de 15 anos111. O artigo 17.9.1. do Acordo de Livre Comércio celebrado entre os E.U.A. e o Chile é exemplo do recuar do contra legem em matéria de direito de patente. É, porém, certo que a maioria das exceções e impedimentos à patenteabilidade das invenções tiveram a sua origem na Convenção sobre a Patente Europeia, de 1973, e, antes dela, nos ordenamentos nacionais de alguns Estados europeus, em particular, na Alemanha, Reino Unido e França. Todavia, é comumente aceite que essas exceções ou impedimentos devem ser interpretados restritivamente, o que me parece uma inversão axiológico-metodológica: de fato, a regra é a da liberdade; a regra da liberdade de exercício de atividades econômicas e de iniciativa privada (artigo 61º/1 da Constituição da República Portuguesa), que apenas é limitada aí onde, por outras razões também elas ponderosas, o legislador resolva criar exclusivos comerciais ou industriais. 111 Artigo 13º do Regulamento (CEE) nº 1.768/92, do Conselho, de 18 de junho de 1992, relativo à criação de um certificado complementar de proteção para os medicamentos. 102 Ademais, mesmo no ordenamento europeu, aqui onde se determina a proibição da patenteabilidade dos métodos de diagnóstico praticados sobre o corpo humano vivo (artigo 52º/4 da CPE), a mais alta jurisprudência do Instituto Europeu de Patentes instituiu um regime de “exceção à exceção” da patenteabilidade dessas realidades, qual seja: os métodos de diagnóstico são, apesar de tudo, patenteáveis se a sua execução somente fornecer resultados intermédios (e não um diagnóstico final) - já que se estará apenas perante um método de obtenção de dados ou elementos informativos acerca do estado de (des)equilíbrio psico-físico do examinando - ou se for executado fora do corpo humano vivo (v.g., em amostras de matérias biológicas retiradas do corpo humano)112. Do mesmo modo, a proibição das patentes de métodos terapêuticos é de alguma forma “contornada” mediante a admissão, no artigo 54º/5 da CPE, da patenteabilidade do uso de uma substância para o fabrico de um medicamento para ser usado na execução de métodos de diagnóstico, terapêuticos ou cirúrgicos (segundo e subsequentes usos médicos de substâncias já conhecidas)113. No mesmo sentido navega agora o disposto no artigo 54º/1, alínea a) e b), do CPI de 2003, na redação do Decreto-Lei nº 143/2008, de 25 de julho. Diz-se, então, que esse tipo de reivindicação não atinge o método terapêutico, mas apenas as atividades preliminares de produção ou fabrico de um medicamento (a partir de uma substância química já conhecida) usado em uma nova aplicação terapêutica. A invenção parece estar no novo efeito técnico associado à segunda ou às subsequentes aplicações terapêuticas, efeito este que estaria, apesar de tudo, “escondido” do conhecimento dos peritos na especialidade quando essa mesma substância fora utilizada para outros propósitos114. É claro que, depois, a sindicação da novidade (e o nível inventivo) dessas invenções far-se-á à luz dos critérios das invenções de seleção de substâncias químicas integradas em compostos constituídos por centenas ou milhares de substâncias. Essas considerações não impedem que sejam, por vezes, concedidas patentes de uso relativas a aplicações médicas praticamente banais ou triviais. Foi o que, em minha opinião, terá acontecido na decisão T 1020/03, proferida por uma das Câmaras Técnicas 112 Decisão G 01/04, da Grande-Câmara de Recurso, de 16/12/2005, in http://www.epo.org.; agora, no mesmo sentido, decisão T 330/03, no caso ABOTT LABORATORIES/Multiplex sensor and method of use, de 7/02/2006, in http://www.epo.org. Cfr. J. P. REMÉDIO MARQUES, “A patenteabilidade dos métodos de diagnóstico, terapêuticos e cirúrgicos: Questão (bio)ética ou questão técnica? – O actual estado do problema”, in Estudos de Direito da Bioética, vol. II, Almedina, Coimbra, 2008, p. 211 ss., pp. 248 ss. = in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Medicina, n. 6, 2006, p. 73 ss., p. 95 ss. 113 Esse artigo 54º/5 da CPE traduz, assim, uma exceção à exceção prevista no artigo 52º/4, que, inter alia, veda a patenteabilidade dos métodos terapêuticos. 114 Sobre essas patentes do segundo e dos subsequentes usos médicos de substâncias já conhecidas, cfr. PATERSON, Gerald, The European Patent System, The Law and Practice of the European Patent Convention, 2ª edição, Sweet & Maxwell, London, 2001, pp. 518-530; PATERSON, Gerald, “The Novelty of Use Claims”, in International Review of Industrial Property and Copyright Law, 1996, p. 179 ss.; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 924-929. 103 de Recurso do Instituto Europeu de Patentes, no caso Method of Administration of IGF-1/Genentech, de 29/10/2004: as reivindicações incidiam sobre o “uso de um fator de crescimento do tipo insulina na preparação de um medicamento para ser administrado em mamíferos” e o tribunal aceitou que a novidade residia apenas na dose usada e na forma de aplicação dessa substância. Mas a situação é, por vezes, caricata: em certos países que adotaram o regime jurídico do TRIPS-Plus, as empresas europeias estão livres de patentear invenções cuja proteção lhes seria negada no quadro da Convenção da Patente Europeia e dos ordenamentos nacionais dos seus Estados contratantes. E a inversa também é verdadeira. Tudo isso não impede, porém, que os Estados contratantes da OMC e obrigados a cumprir o Acordo TRIPS utilizem todas as “proibições” da patenteabilidade previstas na CPE, mas sem abrir “exceções às exceções”. Podem assim tais Estados proibir a patenteabilidade das invenções respeitantes a plantas e a animais, bem como impedir a patenteação dos processos essencialmente biológicos ou microbiológicos de produção ou fabrico de outras matérias. De igual modo, podem tais Estados proibir a patenteabilidade das invenções contrárias à promoção da saúde pública, ao meio ambiente, à dignidade e à integridade dos seres humanos, ainda que no estado embrionário, ou que impliquem um sacrifício ou sofrimentos desmesurados aos animais não humanos em cujo organismo sejam executadas, etc. Outrossim, estão salvos de fazer depender a concessão da patente da menção da origem geográfica dos recursos biológicos com base nos quais foi, sem margem para dúvidas, obtida a invenção e/ou o consentimento informado das pessoas cujos conhecimentos serviram para a obter. Por outro lado, temos assistido ao minguar das chamadas utilizações livres do direito de patente, ou seja, todas aquelas situações em que terceiros estão livres para usar o objeto da invenção patenteada independentemente do consentimento do titular da patente. Isso é mais acentuado no caso das patentes biotecnológicas. De fato, na União Europeia (e nos E.U.A., embora não haja norma expressa nesse outro ordenamento jurídico), é limitadíssimo o alcance do princípio do esgotamento do direito de patente biotecnológica: mesmo quando aliena ou permite a alienação das primevas matérias biológicas patenteadas, o titular da patente pode sempre controlar, legal ou contratualmente, direta ou indiretamente, as subsequentes multiplicações ou reproduções e, por consequência, pode ele controlar as subsequentes alienações das matérias biológicas obtidas a partir das primeiras (artigo 103º/2 do CPI português de 2003, na sequência do disposto no artigo 10º da citada Diretiva nº 98/44/CE). O chamado privilégio do agricultor ou do criador pecuário somente o autorizam a utilizar, na respectiva exploração, as sementes, os materiais de reprodução animal ou os animais protegidos pela patente (artigo 11º da citada Diretiva nº 98/44/CE e artigo 97º/6 104 do CPI português de 2003)115. Por exemplo, esses agricultores ou criadores pecuários estão inibidos de, respectivamente e sem o consentimento do titular da patente, ceder gratuitamente sementes das colheitas dos anos anteriores aos agricultores vizinhos, ou ceder gratuitamente o material de reprodução animal ou os próprios animais protegidos. De igual sorte, os criadores pecuários não podem ceder ou vender os animais assim obtidos, com vista a uma atividade de reprodução com fins comerciais, mas apenas podem vendê-los para abate ou para outros fins (v.g., circos, animais de companhia). Aliás, os legisladores não falam em utilizações livres, mas sim em exceções ao direito de patente - veja-se, por exemplo, o disposto no artigo 30º do TRIPS. Esquece-se, todavia, que o subsistema jurídico da propriedade intelectual não contém apenas as pautas jurídicas dos titulares desses direitos; esse subsistema é condicionado por outros valores e interesses relevantes, especialmente os que são referidos nos artigos 7º e 8º do Acordo TRIPS e no considerando nº 16 da Diretiva nº 98/44/CE, sobre invenções biotecnológicas: • promoção e inovação tecnológica. • transferência de tecnologia. • bem estar social e econômico. • desenvolvimento socioeconômico e tecnológico. • conciliação entre direitos e obrigações. • proteção da saúde pública e da alimentação. • dignidade e integridade das pessoas humanas. Por conseguinte, quando desejarmos referir as utilizações livres no quadro dos direitos de patente, deveremos falar antes em direitos dos utilizadores, em vez de exceções aos direitos de patente. E esses direitos dos utilizadores ou direitos de utilização do objeto das patentes (biotecnológicas) são vários, a saber, no essencial116: • os atos praticados em um âmbito privado e sem fins comerciais. • os atos realizados exclusivamente para fins de ensaio ou experimentais. • os atos realizados para fins de ensino. • os atos praticados sobre o objeto da invenção para a testar ou aperfeiçoar. • os atos realizados exclusivamente para preparar e instruir procedimentos administrativos destinados a obter a aprovação dos produtos patenteados junto às entidades administrativas competentes, com vista à sua comercialização após a extinção dos direitos de patente. 115 J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. II, cit., 2007, pp. 174-180, pp. 209-213, pp. 221-223. 116 Sobre isso, desenvolvidamente, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 11371196. 105 • os atos praticados ou os preparativos sérios para a prática de atos de boa fé por terceiros, que tenham chegado por meios próprios ao conhecimento da invenção antes da data do pedido de proteção ou da data da prioridade. Pois só assim poderemos falar em um sistema de direito de patente equilibrado, que não seja pautado por uma racionalidade eminentemente política de programação e institucionalização de objetivos político-sociais dos utilizadores hegemônicos desse subsistema (as empresas transnacionais, o Governo dos E.U.A. e algumas instituições políticas da União Europeia). Só assim poderemos, de fato, construir e problematizar um sistema de patentes cujo regime jurídico permita lograr consequências jurídicas e soluções justas. 106 R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABOTT, Frederick. Resource book on TRIPS and development. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. AHLERT, Ivan Bacelar; ANTUNES, Paulo de Bessa. 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L ISTA DE ABREVIATURAS E ACRÔNIMOS 112 CD4 CÉLULAS DO SISTEMA IMUNOLÓGICO CONTENDO RECEPTORES EM SUA PARTE EXTERIOR QUE PERMITEM AO HIV LIGAR - SE A ELAS CNCS CONSELHO NACIONAL DE COMBATE AO SIDA CV CARGA VIRAL CVM CRUZ VERMELHA DE M OÇAMBIQUE DFC DANIDA FELLOWSHIP CENTRE DFG D ISCUSSÕES EM G RUPOS FOCAIS EP2 E NSINO PRIMÁRIO DO S EGUNDO G RAU EPP EPIDEMIOLOGICAL PROJECTION PACKAGE GATV G ABINETE DE ACONSELHAMENTO E TESTAGEM VOLUNTÁRIA HD H OSPITAL-D IA HIV VÍRUS DA I MUNODEFICIÊNCIA HUMANA INE I NSTITUTO N ACIONAL DE E STATÍSTICA ITS I NFECÇÃO DE TRANSMISSÃO S EXUAL MISAU M INISTÉRIO DA S AÚDE ONG O RGANIZAÇÕES N ÃO G OVERNAMENTAIS PEN PLANO NACIONAL E STRATÉGICO PMTCT PREVENÇÃO DA TRANSMISSÃO DA M ÃE PARA O FILHO PNPCS PROGRAMA N ACIONAL DE PREVENÇÃO E CONTROLE DE SIDA PVHA PESSOAS VIVENDO COM HIV E AIDS SAAJ S ERVIÇOS AMIGÁVEIS DE ADOLESCENTES E J OVENS SIDA (AIDS) S ÍNDROME DA I MUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA SNS S ISTEMA N ACIONAL DE S AÚDE SSRAJ S AÚDE S EXUAL E R EPRODUTIVA DO ADOLESCENTE E J OVEM TARV TERAPIA ANTIRRETROVIRAL UEM UNIVERSIDADE EDUARDO M ONDLANE UNAIDS PROGRAMA CONJUNTO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE O HIV E AIDS I. I NTRODUÇÃO O HIV/aids é um dos mais terríveis desafios à vida humana, constituindo uma emergência nacional em Moçambique devido aos seus efeitos devastadores em escala nacional e ao seu impacto negativo nos esforços realizados com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico e social e o bem-estar das famílias. A perda de membros economicamente ativos dos agregados familiares e o aumento do número de pessoas econômica e socialmente vulneráveis, como os órfãos e os idosos, condiciona o efetivo gozo dos direitos humanos (MOÇAMBIQUE, 2003). Moçambique possui uma população de cerca de 20 milhões de habitantes, dos quais 44,8% são menores de 15 anos. A população jovem, ou seja, entre 15 e 24 anos de idade, constitui 32,2% da população (PNUD, 2006). A pandemia do HIV/aids afeta todos os grupos populacionais, ricos e pobres, sem distinção de idade, sexo ou raça, e estima-se que, em 2007, 1,8 milhões de pessoas estavam infectadas pelo HIV, o que equivale a uma prevalência de 16%, ocorrendo por dia cerca de 500 novas infecções (MOÇAMBIQUE, 2007). As mulheres constituem o grupo populacional mais afetado e vulnerável à epidemia do HIV/aids, particularmente as moças, o que se reflete na diferença de prevalência da infecção no grupo etário de 15-24 anos, em que o sexo feminino está 3 vezes mais afetado que o masculino (MOÇAMBIQUE, 2007; MOÇAMBIQUE; INE, 2003). A desigualdade de gênero faz com que seja muito difícil para as mulheres terem a capacidade de negociar o “sexo seguro” e insistir em que os seus parceiros utilizem preservativos. As mulheres jovens são especialmente vulneráveis ao HIV devido ao sexo entre gerações e ao sexo transacional (CHAQUISSE, 2006). Adicionalmente, estima-se que 36,8% dos homens, 57% das mulheres e 6,2% das crianças vivem com o HIV/aids, com implicações severas sobre o seu bem-estar econômico e social (MOÇAMBIQUE, 2003). O peso dessa pandemia afeta desproporcionalmente as mulheres, que, pela natureza da evolução do processo de doença dos indivíduos infectados no respectivo agregado familiar, muitas vezes têm que cuidar dos doentes e ao mesmo tempo prover a alimentação da família, reduzindo assim a sua possibilidade de ingresso nas escolas e no trabalho e encarecendo, ainda, os custos dos cuidados domiciliares. A pobreza pode ser identificada como um dos fatores que contribuem para a rápida expansão da epidemia do HIV em Moçambique. Os pobres são mais vulneráveis à infecção, podendo-se apontar fatores que influenciam a sua vulnerabilidade, tais como a migração e prostituição, o que aumenta a probabilidade de terem múltiplos parceiros sexuais; as mulheres, além disso, enfrentam riscos adicionais ao envolveremse em atividades sexuais para subsistência, reduzindo o seu poder de negociação para o uso do preservativo, o que é agravado pelo pouco acesso e procura pelos cuidados de saúde após envolverem-se em atividades sexuais de risco (MOÇAMBIQUE, 2003; CHAQUISSE, 2006). 113 II. A EPIDEMIA DO HIV E AIDS EM M OÇAMBIQUE O primeiro caso de aids em Moçambique foi diagnosticado em 1986. A partir de março de 1987 e durante vários meses foi levado a cabo, em várias cidades do país, um inquérito sero-epidemiológico, um dos primeiros jamais realizados, que detectou infecções, sobretudo, pelo HIV-2 (taxa de prevalência de 2% na população estudada), mas também pelo HIV-1 (taxa de prevalência de 1,2% na população estudada). A cidade mais afetada foi Nampula, com taxas de prevalência de 2,8% para o HIV-2 e 2,2% para o HIV-1, logo seguida por Lichinga e Inhambane. Nesta última já predominava o HIV-1, do mesmo modo que em Chimoio, Quelimane e Pemba. As cidades menos afetadas foram Pemba e Xai-Xai. Entretanto, no decurso de 1987, foram notificados os primeiros 5 casos clínicos em cidadãos nacionais. No período que se seguiu, até 1989, o número de casos duplicou a cada ano, tendo em julho de 1989 chegado ao total de 41 casos. O grupo etário mais atingido era o dos 20 aos 29 anos, como sucede em outras partes do mundo, mas as crianças também figuravam de maneira significativa no total de casos arrolados, com 5 casos. Já se sabia, nessa altura, que tais números estavam longe de traduzir a situação real do país (CONSELHO NACIONAL DE COMBATE AO SIDA, 2004). A situação de guerra que o país viveu, para além de produzir um elevado número de vítimas mortais e casos de incapacidade por lesão permanente, levou ao deslocamento de povoações inteiras em busca de refúgio e segurança, quer para outras áreas do país, quer para países vizinhos. O conflito armado também causou danos materiais de vulto em todos os setores de atividade, incluindo as infraestruturas da Saúde. Assistiu-se, então, à drenagem da maior parte dos recursos disponíveis para o esforço de defesa. Por força dessas dificuldades conjunturais, o combate ao HIV/aids foi-se transformando, essencialmente, em responsabilidade do MISAU (CONSELHO NACIONAL DE COMBATE AO SIDA, 2004), cujo Programa Nacional de Prevenção e Controle do SIDA continuou a liderar o processo. De notar também que, naquela ocasião (finais da década de 80 e início dos anos 90), outros países africanos apresentavam taxas muito mais elevadas do que as que o inquérito de 1987 havia mostrado no nosso país, pelo que o interesse das organizações internacionais e das agências de desenvolvimento se concentrava nesses países, considerando-se Moçambique como um problema menor. No ano 2000, o MISAU criou 20 postos-sentinela para a vigilância epidemiológica no país, tendo-se chegado a 36 em 2001, número que se mantém até ao presente. Só a partir dos últimos anos é que se passou a ter a real noção da gravidade da situação. Entretanto, a partir de 2002, por meio dos órgãos de comunicação social, começase a passar a mensagem de que a degradação da situação era devida ao regresso maciço de populações que, em resultado do conflito armado, se tinham refugiado nos países vizinhos, onde as taxas de seroprevalência eram altas. Muito embora esse afluxo populacional tenha sido provavelmente um fator real de agravação da situação, a forma 114 como ele foi apresentado criou um certo espírito de tranquilidade, pois acreditava-se que, com o reassentamento dos regressados, tudo se iria normalizar. Não se insistiu suficientemente no fato de a infecção estar já bem instalada no país, com todas as condições para se desenvolver endogenamente. Os estudos sobre Conhecimentos, Atitudes e Práticas fazem-se no país desde 1988, mas, na sua maior parte, incidem sobre grupos populacionais específicos ou então estão circunscritos a áreas geográficas limitadas e à escala nacional. A propagação do HIV continua a ser uma realidade bastante preocupante em Moçambique, e ainda não há sinais que permitam visualizar a reversão desse quadro. Em 1999, a aids matou 41.000 pessoas no país, e as estimativas apontavam para uma tendência de crescimento nos anos subsequentes. O índice de seroprevalência em 2004 entre pessoas de 15 e 49 anos de idade atingia os 16,2% e, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o ano de 2005 registrou, muito provavelmente, mais de 225.000 novas infecções (PNUD, 2006). A estratégia de combate ao HIV/aids adotada pelo governo de Moçambique assenta na realização de campanhas de educação, informação e comunicação, na criação de condições para o aconselhamento e testagem voluntária, no tratamento das infecções oportunistas e na terapia antirretroviral, bem como na prevenção da transmissão vertical, ou seja, da mãe para o filho (CONSELHO NACIONAL DE COMBATE AO SIDA, 2004). III. EVOLUÇÃO DA PREVALÊNCIA DO HIV EM M OÇAMBIQUE As últimas rondas de vigilância epidemiológica, realizadas em 2004 e 2007, indicam que as regiões Sul e Centro do país apresentam as mais elevadas taxas de prevalência do HIV, havendo uma tendência crescente da epidemia na região Sul, onde as taxas observadas se situaram entre 23% e 27% na ronda de 2007, com exceção da província de Inhambane, que registrou a prevalência de 12%. As taxas de prevalência no Centro do país continuam a ser relativamente elevadas, situando-se entre 13-23% nas quatro províncias da região. No Norte, a prevalência continua a ser menor em comparação com o Centro e o Sul, sendo a prevalência regional estimada em 9%. Portanto, com a estimativa nacional de 16% para o ano de 2007, a prevalência verdadeira provavelmente está entre 14% e 17% (MOÇAMBIQUE, 2007). 115 Nas regiões Centro e Norte, a prevalência tende a estabilizar-se quando comparada com a do Sul (ver Tabela 1). Tabela 1 Comparação das taxas estimadas de prevalência do HIV provinciais, regionais e nacional, baseadas no Epidemiological Projection Package (EPP). Moçambique, 2001-2007 Província 2001 2002 2004 2007 Maputo Cidade 17% (12%-20%) 18% (13%-23%) 21% (16%-26%) 23% (18%-29%) Maputo Província 16% (10%-24%) 18% (12%-26%) 22% (15%-31%) 26% (18%-34%) Gaza 19% (12%-26%) 21% (14%-29%) 25% (17%-33%) 27% (18%-35%) Inhambane 8% (6%-14%) 9% 12% (7%-16%) Zambezia 16% (9%-23%) 17% (10%-25%) 18% (12%-28%) 19% (12%-29%) Sofala 25% (15%-31%) 24% (16%-32%) 24% (17%-33%) 23% (17%-33%) Manica 18% (10%-23%) 17% (10%-23%) 16% (10%-23%) 16% (10%-23%) Tete 16% (11%-21%) 15% (11%-21%) 14% (11%-21%) 13% (11%-21%) Niassa 6% (3%-11%) 7% (4%-12%) 8% (4%-14%) 8% (4%-14%) Nampula 8% (5%-10%) 9% (6%-11%) 9% (6%-12%) 8% (6%-12%) Cabo Delgado 8% (4%-12%) 9% (5%-13%) 9% (6%-14%) 10% (6%-14%) Região 2001 (6%-15%) 10% (7%-16%) 2002 2004 2007 Sul 15% (10%-17%) 16% (12%-18%) 19% (14%-21%) 21% (16%-23%) Centro 18% (16%-20%) 18% (17%-20%) 19% (17%-21%) 18% (17%-21%) Norte 7% (6%-8%) 9% (7%-10%) Nacional 2001 14% 8% (6%-9%) 2002 9% (7%-10%) 2004 (12%-14%) 15% (13%-15%) 16% (14%-16%) 2007 16% (14%-17%) Fonte: MISAU, Moçambique, 2007 Na região Sul observa-se uma tendência de crescimento consistente da prevalência nas últimas quatro rondas, variando de 15 a 21%. Em relação à região Centro, observase uma taxa entre 18 e 19% nas rondas de 2001 e 2007, respectivamente; essas taxas mostram um grau de consistência que revela uma epidemia mais antiga relativamente às outras regiões do país. Na região Norte, registrou-se um ligeiro aumento da prevalência entre as rondas de 2001 a 2004, situação que viria a alterar-se na ronda de 2007, em que se manteve a taxa estimada em 2004, situada em 9%; com base nos dados disponíveis sobre essa região, pode-se considerar que a prevalência tende a entrar na 116 fase de estabilização. Porém, a região Norte somente possui dados a partir do ano 2000, ao passo que, em outras regiões, foram considerados dados históricos mais antigos, isto é, a partir de 1994 para a região Centro e a partir de 1988 para a região Sul. Quanto à prevalência nacional, registrou-se um ligeiro crescimento de 2001 a 2004, e de 2004 a 2007 observa-se uma tendência de estabilização, chegando a uma prevalência de 16%. Isso significa que a taxa de prevalência estimada para o ano 2007 não difere muito da taxa estimada em 2004. É importante lembrar que a nova metodologia indica que a taxa nacional de prevalência nesse ano estaria entre 14 e 17%, sendo que em 2004 situava-se entre 14 e 16%. Qualquer diferença aparente devese à nova metodologia de estimativa e não a uma verdadeira queda na prevalência (MOÇAMBIQUE, 2007). IV. A RESPOSTA DE M OÇAMBIQUE À PANDEMIA DA AIDS A) ANTECEDENTES Como referido anteriormente, o primeiro caso de aids em Moçambique foi diagnosticado em 1988. Já em 1985, um Comitê de Especialistas da OMS, reunido em Banguí, tinha feito a definição de caso clínico de aids na África. A Organização Mundial da Saúde passou, então, a recomendar aos países-membros a constituição de comitês nacionais de luta contra a aids. Nesse quadro, foi criado em Moçambique, em agosto de 1986, o primeiro organismo de combate ao HIV/aids, com a designação de Comissão Nacional do SIDA. Em fevereiro de 1988, foram reorganizadas as estruturas de combate à aids, sendo formada no MISAU uma Comissão Nacional de Combate ao SIDA, com 39 membros. A maior parte dos integrantes da Comissão (21 membros) era do próprio MISAU, mas contava-se também com representantes de organizações democráticas de massas, de credos religiosos, da Cruz Vermelha (CVM), do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane (UEM) e também de 5 Ministérios (Defesa, Interior, Educação, Justiça e Informação). Presidia à Comissão o Diretor do INS. Na mesma ocasião, foi instituído, na Direção Nacional de Saúde do MISAU, um Programa Nacional de Prevenção e Controle do SIDA (PNPCS), de onde são provenientes muitos dos membros do MISAU na referida Comissão Nacional. A Comissão teve um início de atividades promissor, pois que representou, de fato, a primeira abordagem multi-setorial no combate à aids; porém, ao longo da sua existência, ela nunca conseguiu um real envolvimento dos outros setores no nível político e estratégico. 117 B) PLANOS ESTRATÉGICOS DE COMBATE À AIDS Em fins de 1999, o Governo da República de Moçambique criou o Plano Estratégico Nacional (PEN) para o combate das Infecções de Transmissão Sexual (ITS), incluindo o HIV e o SIDA, para o período de 2000 a 2002, o qual foi estendido até 2003. O PEN fornecia um quadro e definia as grandes estratégias adotadas pelo Governo na sua batalha contra a epidemia do HIV/aids. No plano estratégico, reconheceu-se que uma abordagem multissetorial ao problema seria a forma mais eficiente de combater o HIV/aids. Para a coordenação dessas intervenções multissetoriais no nível nacional, provincial e da comunidade, havia necessidade de um órgão coordenador no alto nível. A sua missão seria de dirigir a luta contra o HIV/aids por meio de: • • • • • Mobilização de liderança social e política de alto nível e comprometimento; Coordenação de uma resposta multissetorial envolvendo todos os membros da sociedade; Melhoria da qualidade e cobertura da prestação de serviços; Abordagem da epidemia do HIV/aids nas suas dimensões social, econômica, de saúde e desenvolvimento; e Resposta aos desafios especiais das pessoas que vivem com o HIV/aids. Assim, no ano 2000 foi criado, pelo Decreto Ministerial nº 10/2000, de 23 de maio, o Conselho Nacional de Combate ao SIDA (CNCS), que tinha o objetivo de coordenar as estratégias de combate ao HIV/aids em Moçambique. O CNCS é presidido pela Primeira-Ministra e tem como Vice-Presidente o Ministro da Saúde. Além do Ministério da Saúde, o CNCS integra os Ministérios dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, da Educação e Cultura, da Juventude e Desporto, da Mulher e Coordenação da Ação social, do Plano e Desenvolvimento e o Ministério das Finanças. O Decreto também estabelece um Secretariado para servir de organismo operacional para a coordenação da resposta nacional e principal força de advocacia da atenção à pandemia da aids. Também é sua responsabilidade levar a aids à arena da política nacional e de integrar as questões do HIV/aids no diálogo social e político em Moçambique. O segundo Plano Estratégico (PEN II) foi aprovado pelo conselho de Ministros em 2004 e cobre o período de 2005 a 2009. O PEN II é concebido como um plano de médio termo; porém, algumas das projeções que ele comporta estendem-se pelos próximos 10 anos. A sua perspectiva de abordagem é rigorosamente multissetorial, sendo considerados todos os atores que trabalham em prol da redução da propagação da epidemia e que trabalham com a população direta ou indiretamente afetada, além de todas as parcerias que podem ser mobilizadas, quer nacionais, quer internacionais. O 118 Plano identifica os grandes objetivos a atingir, define prioridades e propõe as estratégias necessárias para que os objetivos sejam atingidos (CHAQUISSE, 2006). Tanto na formulação de objetivos como na escolha das estratégias que se propõem, procurou-se sempre tirar lições de análise da situação efetuada e das relações causais entre um certo número de fatores e a probabilidade de facilitar a propagação da infecção pelo HIV/aids. Dessa forma, tanto a formulação de objetivos como a escolha das estratégias decorrem das causas básicas, subjacentes e imediatas que foram identificadas para essa propagação. Como a problemática do HIV/aids é, por excelência, um domínio multissetorial, fixaram-se responsabilidades para o CNCS e os seus Núcleos Provinciais, mas, igualmente, para os diversos setores que participam desse combate. O PEN II é consistente com o Programa Geral de Desenvolvimento do Governo, que se encontra descrito no Plano Quinquenal do Governo (2005-2009), e com o segundo Plano de Ação para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA II, 2006-2009). O PEN II compreende sete objetivos fundamentais, por áreas: 1. ÁREA DA PREVENÇÃO : Objetivo Geral: Reduzir o número de novas infecções do nível atual, de 500 por dia, para menos de 350 em 5 anos e menos de 150 em 10 anos; 2. ÁREA DA ADVOCACIA : Objetivo Geral: Transformar o combate ao HIV/aids em uma emergência nacional; 3. ÁREA DO E STIGMA E D ISCRIMINAÇÃO : Objetivo Geral: Reduzir o estigma e a discriminação ligados ao HIV/aids; 4. ÁREA DO TRATAMENTO : Objetivo Geral: Tratamento: prolongar e melhorar a qualidade de vida das pessoas infectadas pelo HIV e dos doentes de aids; 5. ÁREA DA M ITIGAÇÃO DAS CONSEQUÊNCIAS : Objetivo Geral: Mitigação das Consequências do HIV e Aids: reduzir as consequências do HIV/aids no nível dos indivíduos, das famílias, comunidades, empresas, considerando, ainda, os impactos globais; 119 6. ÁREA DA PESQUISA: Objetivo Geral: Aumentar o grau de conhecimento científico sobre o HIV/aids, suas consequências e as melhores práticas no seu combate; 7. ÁREA DA COORDENAÇÃO DA R ESPOSTA N ACIONAL Objetivo Geral: Desenvolver a capacidade de planificar e descentralizar os mecanismos de tomada de decisão e gestão de recursos, a fim de aumentar gradualmente a resposta nacional. Essa estratégia tem sido acompanhada por um incremento da alocação orçamental do Estado, que tem apoiado especificamente os diversos setores na mitigação do impacto do HIV/aids, particularmente em termos de capacidade humana e expansão da cobertura geográfica da resposta, sobretudo nas zonas menos privilegiadas, onde os serviços de prevenção e tratamento não estão disponíveis (MOÇAMBIQUE, 2003). Promover ações que reduzam o peso dos cuidados domiciliares sobre as mulheres e empreender ações de combate à feminização do HIV/aids são considerados fatores importantes para a redução do impacto da epidemia nas famílias e comunidades. No quadro do princípio dos “Três Uns” (Um Órgão de Coordenação da Resposta Nacional, Um Plano Estratégico de Combate ao HIV/Aids e Um Sistema de Monitoramento e Avaliação), o Secretariado Executivo do Conselho Nacional de Combate ao SIDA criou, em colaboração com parceiros nacionais e estrangeiros, um sistema único de Monitoria e Avaliação da Resposta Nacional de Combate ao HIV/SIDA, instrumento que fornece uma base conceitual e mecanismos operacionais para o desenvolvimento do processo de monitoramento e avaliação situacional e programática e do esforço nacional de combate ao HIV/aids em Moçambique. V. O RGANIZAÇÃO S AÚDE EM AIDS EM RESPOSTA ÀS ATRIBUIÇÕES PREVISTAS NO PEN II DO SISTEMA NACIONAL DE FACE DA EPIDEMIA DA Como foi referido atrás, desde o aparecimento do primeiro caso de aids em Moçambique em 1986 e em resposta à recomendação da OMS de 1985, o MISAU assumiu a dianteira nos esforços de descrição e controle da epidemia. Nesse sentido, o MISAU, no quadro das suas atribuições, em face da realidade da existência de pessoas necessitando do tratamento como consequência da epidemia do HIV/aids, estabeleceu novos serviços de Aconselhamento e Testagem Voluntária para a Saúde (ATS), abriu Hospitais-Dia (HD), Cuidados Domiciliares (CD) e Programas de Saúde Sexual e Reprodutiva do Adolescente e Jovens (SAARJ), bem como a sua massificação, e estabeleceu metas a alcançar visando mitigar os efeitos da epidemia da aids. 120 O acesso aos novos serviços ora criados é feito a partir de qualquer ponto de contato do paciente com os serviços de saúde, como, por exemplo, consultas externas nas Unidades Sanitárias (US) espalhadas pelo país, serviços de internação em Medicina, Cirurgia, Pediatria, consultas de ITS (Infecções de Transmissão Sexual), Saúde MaternoInfantil (SMI), ou então referência e encaminhamento a partir de serviços de laboratório e banco de sangue. A organização desses serviços traz consigo novos desafios para o Sistema Nacional de Saúde (SNS) em termos da captação de recursos humanos em quantidade e qualidade. Os serviços de laboratórios de Biologia Molecular para a medição da carga viral do CD4, bioquímica capaz de responder às necessidades da demanda dos novos serviços, constituiu prioridade para garantir a oferta de tratamento às pessoas em necessidade de acesso à terapia antirretroviral, bem como o monitoramento laboratorial dos pacientes em TARV. Com efeito, inicialmente foram providos os Hospitais Centrais de Maputo, Beira e Nampula, que fazem parte das regiões Sul, Centro e Norte, respectivamente, com equipamento capaz de dar resposta à demanda em exames laboratoriais para o monitoramento da Carga Viral (CV) e células linfocitárias T auxiliadoras (CD4). Atualmente, esses serviços estão a ser oferecidos nos Hospitais Provinciais, e, gradualmente, estarão disponíveis nos Hospitais Rurais e Distritais. Em termos de prestação de cuidados de saúde, a epidemia de HIV trouxe novos desafios na definição de políticas. Por um lado, devido às particularidades que a epidemia de aids arrasta consigo, as políticas de resposta do setor de saúde devem ser definidas com base na evidência da previsão das consequências e do seu impacto nos setores de desenvolvimento, familiar e comunitário. Por outro lado, outros fatores devem ser igualmente considerados, como, por exemplo, a disponibilidade de recursos, particularmente humanos, financeiros e materiais. Assim, ao longo do tempo, foram definidas políticas no setor de saúde para acomodar a nova realidade. Na área dos Recursos Humanos, o Ministério da Saúde (MISAU), assumindo os efeitos e o impacto previsível da epidemia de aids no país, estabeleceu, em 2006, o Plano Acelerado de Formação de Quadros para o setor, que consiste no aumento do número de cursos que anteriormente eram lecionados nas instituições de formação da saúde. Por seu turno, o Governo de Moçambique criou, também em 2006, a Universidade Lúrio, sediada em Nampula; esta priorizou a abertura da Faculdade de Ciências de Saúde, que lançou os primeiros cursos no ano de 2007. A formação de médicos generalistas e de outros técnicos superiores de saúde é de inquestionável importância para um país em que a cobertura da rede sanitária é considerada de 40%. Juntam-se a esses esforços o aumento do número de médicos graduados pelas Universidades Eduardo Mondlane (UEM), em Maputo, e Católica, na Cidade da Beira. 121 No âmbito do desenvolvimento de ações tendentes a reverter a situação do alastramento da infecção pelo HIV, o MISAU, em 1992, iniciou a notificação de casos de infecções de transmissão sexual pelas Unidades de Saúde (US), por meio do Sistema Nacional, como atividade de rotina, e definiu a abordagem sindrômica como a principal estratégia para o tratamento das ITS. Para fazer estimativas e projeções de HIV e aids, bem como prever seu impacto demográfico, o MISAU reforçou a extensão da rede de postos de vigilância epidemiológica no país, os Postos Sentinela (PS), que passaram de 4 em 1998 para 20 em 2000. Em 2001, esse número aumentou para 36. Do 1,8 milhão de pessoas vivendo com HIV em Moçambique, estima-se que cerca de 300.000 adultos necessitem de tratamento antirretroviral. Até julho de 2007, eram cerca de 60.000 adultos sob TARV em Moçambique, representando aproximadamente 20% de adultos em necessidade de tratamento. A redução dos preços dos medicamentos antirretrovirais foi um dos principais determinantes do aumento do número de pessoas beneficiadas. Quando o tratamento foi introduzido, seu custo anual ascendia a US$ 1,500. Atualmente, em média, o custo anual do regime de primeira linha é de US$ 274 ao ano (dado de 2007), enquanto que o do regime de segunda linha, considerado mais caro, é de US$ 2.804 ao ano. O tratamento de primeira linha usa diferentes combinações, de forma a acomodar as diferentes necessidades dos doentes antes de se passar para a segunda linha; contudo, a maior parte dos pacientes está ainda na primeira linha de tratamento com os ARV (MBOFANA et al., 2007). O acesso dos jovens e adolescentes aos serviços de aconselhamento e testagem voluntária foi alargado mediante a abertura, nas Unidades Sanitárias de quase todo o país, de clínicas com serviços de aconselhamento em saúde sexual e reprodutiva dos adolescentes e jovens. De 23 a 26 de março de 2006, o MISAU realizou uma reunião sobre HIV e aids na qual foi tomada a decisão de expandir a TARV, treinar os técnicos em medicina e colocar o medicamento mais próximo do doente. Na ocasião, foi também priorizada a formação em equipe dos técnicos de saúde lotados nas unidades sanitárias, bem como a indicação de coordenadores das grandes endemias no nível das direções provinciais, o que inclui o HIV, a tuberculose e a malária. VI. R ESULTADOS ALCANÇADOS Como resultado da criação de condições para o acesso dos cidadãos necessitando tratamento, o governo aprovou, em 2001, o Diploma Ministerial número 183-A/2001, de 18 de dezembro, que introduz o tratamento antirretroviral nas Unidades Sanitárias do Sistema Nacional de Saúde (SNS) e estabelece princípios orientadores para o acesso ao tratamento de pessoas com infecção pelo HIV e doentes de aids. O diploma também 122 define as linhas de tratamento a serem seguidas e as alternativas aos medicamentos, conforme as necessidades específicas de cada doente, além estabelecer que o acesso à TARV é gratuito no país (MOÇAMBIQUE, 2001). Os esforços para o aumento do acesso ao Aconselhamento e Testagem em Saúde (ATS), a oferta dos serviços que visam reduzir a transmissão vertical do HIV da mãe para o filho, a criação de condições para a expansão do tratamento antirretroviral até ao nível mais periférico e a oferta dos serviços de TARV (tratamento antirretroviral) em 211 Unidades Sanitárias do país têm mostrado resultados encorajadores. Com efeito, até abril de 2008, 101.163 pessoas estavam em TARV em todo o país; destas, cerca de 62% são do sexo feminino e 7% são crianças (MOÇAMBIQUE, 2008). A expansão da TARV para as unidades periféricas tem sido possível graças à política de delegação de tarefas a níveis inferiores ao do médico, como é o caso do treino de técnicos em medicina, iniciado em 2006. O programa de prevenção da transmissão vertical começou a ser expandido significativamente desde 2002 e, em 2006, cerca de 222 Unidades Sanitárias ofereciam serviços de prevenção da transmissão vertical. Em 2006, 46.784 mulheres grávidas soropositivas receberam profilaxia com antirretrovirais (MOÇAMBIQUE, 2008; ASSAN et al., 2008). Nos esforços para reduzir a estigmatização e dar a oportunidade para que os cidadãos infectados possam continuar a gozar os seus direitos fundamentais, a Assembleia da República aprovou a Lei nº 5/2002, de 5 fevereiro de 2002, que foi consequentemente promulgada pelo Presidente da República; essa lei protege as Pessoas Vivendo com HIV e Aids (PVHA) no local de trabalho e ao se candidatarem a emprego. Por outro lado, a nova Lei de Trabalho nº 23/2007, de 1º de agosto de 2007, enfatiza o que diz a Lei nº 5/2002, em termos do respeito e proteção de que o trabalhador deve gozar em caso de infecção pelo HIV e/ou agravo por aids. VII. CONCLUSÕES Desde o início da epidemia do HIV/aids, as políticas de saúde em Moçambique foram orientadas para responder às exigências da epidemia; contudo, a falta de recursos humanos, materiais e financeiros condicionou a sua aplicação. Desde o início da epidemia, a prevenção foi e continua a ser a prioridade nas estratégias de combate à aids. A expansão e integração dos serviços de aconselhamento e testagem em saúde, visando a oferta dos testes voluntários, também é prioritária para que os cidadãos tenham a oportunidade de conhecer o seu estado sorológico em relação ao HIV e usufruir dos atuais serviços disponíveis no sistema nacional de saúde. 123 Políticas relativas ao acesso à TARV, redução da transmissão do HIV da mãe para o filho, bem como a expansão desses serviços aos cidadãos são desenhadas tendo em conta a capacidade do setor de saúde de oferecer serviços de qualidade e sustentáveis. Os Recursos Humanos no setor de saúde continuam a ser a maior limitação para uma reposta efetiva à pandemia da aids. Houve sempre vontade política do Governo em instituir políticas que pudessem reduzir as consequências e o impacto da aids; contudo, as políticas que puderam ser implementadas mostraram uma resposta às necessidades reais das comunidades. Em Moçambique, a definição de políticas de saúde em relação às leis da Propriedade Intelectual para o acesso aos cuidados de saúde de pessoas infectadas pelo HIV e doentes de aids é feita acompanhando os desafios que a epidemia impõe. 124 R EFERÊNCIAS ASSAN, A. et al. Task shifting for scaling up HIV services in Mozambique. [S.l.: s.n., 2008?]. Abstract presented in HIV implementers’ meeting. Kampala, Uganda. 2008. CHAQUISSE, E. Porque alto risco de infecção pelo HIV nos Jovens dos 1519 anos de idade na cidade de Nampula e Distrito de Lalaua, Província de Nampula, Moçambique. [S.l.: s.n.], jun. 2006. Universidade Copenhaga. CONSELHO NACIONAL DE COMBATE AO HIV/SIDA (Moçambique). Plano Estratégico para o Combate ao HIV/SIDA 2005-2009. Maputo, 2004. MBOFANA, F. et al. Innovative financing methods for accelerated access to HIV/ AIDS care, treatment and prevention in Mozambique. Maputo, [s.n.], dezembro 2007. MOÇAMBIQUE. Governo. Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta 2006-2009. Maputo, 2003. MOÇAMBIQUE. Ministério da Saúde. Relatório sobre a revisão dos dados de vigilância epidemiológica do HIV: Ronda 2007. Maputo, 2007. _____. Diploma Ministerial nº 183-A/2001, BR nº 50, 4º Suplemento. Maputo, dezembro 2001. _____. Plano Estratégico do Sector da Saúde. Maputo, 2008. _____.; INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA (INE) (Moçambique). Impacto Demográfico do HIV/SIDA em Moçambique. Maputo: setembro 2008. PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD). Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano 2005: Alcançando os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. Maputo, 2006. 125 CAPÍTULO 5 A CESSO AOS M EDICAMENTOS A NTIRRETROVIRAIS : D ESAFIOS EM P ROPRIEDADE I NTELECTUAL PARA OS PAÍSES DE L ÍNGUA P OR TUGUESA Cristina de Albuquerque Possas119 119 Pesquisadora, Chefe da Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde, Brasil. I NTRODUÇÃO No cenário internacional, o debate sobre a propriedade intelectual (PI) de insumos essenciais à saúde pública e sobre o impacto dos monopólios temporários resultantes das patentes sobre os seus preços, limitando condições de acesso das populações dos países em desenvolvimento a esses insumos, vem ganhando crescente importância, sobretudo nos países mais afetados pela pandemia do HIV/aids, entre os quais se incluem, como se verá mais adiante, diversos países da CPLP. Esse debate vem-se realizando em um ambiente internacional bastante propício, marcado pela valorização dos diversos aspectos normativos e regulatórios da inovação na pesquisa farmacêutica, tais como, além da propriedade intelectual, as questões de bioética e de biossegurança envolvendo procedimentos de modificação genética. Destaca-se, nesse contexto, o gigantesco potencial econômico da pesquisa farmacêutica, tornando a questão da propriedade intelectual de suas aplicações um aspecto crucial da política científica e tecnológica em saúde nos países em desenvolvimento, em sua interface com a política pública em saúde. As controvérsias sobre PI nessa área intensificaram-se ao longo da última década, em decorrência do Acordo TRIPS na OMC, que introduziu a PI dos medicamentos na legislação internacional, vinculando-a às regras do comércio mundial (CORREA, 2002). Recentes acordos bilaterais entre países desenvolvidos (E.U.A., União Europeia) e alguns países em desenvolvimento, caracterizados como “TRIPS Plus”, contendo cláusulas ainda mais rígidas que as do Acordo TRIPS, vêm tornando esse cenário ainda mais complexo. Em tese, o processo de harmonização internacional da propriedade intelectual dos medicamentos e outros insumos em saúde, ao criar condições regulatórias e normativas compatíveis e compartilhadas por diferentes países, desenvolvidos e em desenvolvimento, possibilitaria assegurar a proteção dos direitos do cidadão e a melhoria da qualidade de vida das populações envolvidas. Além disso, argumenta-se que essa harmonização contribuiria, na crescente e acirrada competição internacional, a estimular, por meio do aperfeiçoamento do arcabouço regulatório no comércio mundial, o processo inovativo em redes colaborativas de pesquisa, favorecendo o estabelecimento de parcerias estratégicas entre os setores público e privado e assegurando, assim, a efetiva integração econômica e social. No entanto, há evidências de que o processo de harmonização em curso no âmbito do Acordo TRIPS da Organização Mundial de Comércio e dos acordos bilaterais de livrecomércio (FTAs), estabelecidos pelos Estados Unidos e a União Europeia com países em desenvolvimento, vem-se dando, em decorrência da implantação de procedimentos pouco flexíveis de propriedade intelectual, em direção oposta às intenções enunciadas. Ao contribuir para uma expressiva elevação dos preços dos medicamentos e ao restringir significativamente a possibilidade de competição por genéricos, esses acordos 128 vêm limitando consideravelmente, nesses países, o acesso das populações a insumos essenciais à saúde pública. Considerando essas dificuldades, os governos, as comunidades científicas e as distintas organizações da sociedade civil envolvidas vêm buscando conceber e implementar novas normas e procedimentos de propriedade intelectual, de modo a conciliar dois objetivos que têm sido apontados como antagônicos: de um lado, estimular a inovação, procurando harmonizar, no plano internacional, os diferentes sistemas de propriedade intelectual; de outro, criar flexibilidades que permitam uma efetiva negociação de preços, tais como a competição com medicamentos genéricos, a transferência de tecnologia e a produção local de insumos estratégicos para a saúde pública, buscando atender às especificidades e peculiaridades sociais dos países em desenvolvimento. Examinaremos aqui, com foco nas questões relacionadas à propriedade intelectual dos medicamentos antirretrovirais (ARV), as implicações dessas tendências regulatórias globais e seus efeitos para a cooperação internacional entre os membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). A nosso ver, uma maior clareza nas complexas questões que envolvem a PI dos medicamentos ARV no âmbito dos países da CPLP poderá certamente contribuir para o compartilhamento de experiências e para o compromisso político dos seus governos, no sentido do aperfeiçoamento do atual arcabouço legal internacional, reduzindo, com isso, o impacto da pandemia do HIV/aids sobre suas populações. A PANDEMIA DO HIV/AIDS No decorrer dos últimos 25 anos, a epidemia do HIV/aids se disseminou rapidamente em escala mundial, transformando-se em uma pandemia e criando graves problemas sociais e econômicos, sobretudo nas nações em desenvolvimento. Nesse período, cerca de 60 milhões de homens, mulheres e crianças foram infectados pelo HIV e quase 25 milhões de pessoas já morreram em decorrência da aids. Cerca de 33 milhões de pessoas vivem hoje no mundo com HIV/aids, das quais 70% no continente africano. A cada ano, ocorrem 2,5 milhões de novas infecções e 2 milhões de pessoas morrem de aids (WHO; UNAIDS, 2007). O HIV/aids tornou-se, portanto, uma das principais causas de mortalidade mundial, sendo hoje a principal causa de morte na África, sobretudo na região sul do continente, que concentra cerca de 35% dos casos e 32% dos óbitos por aids no mundo. As taxas de prevalência do HIV/aids nos países mais afetados alcançaram níveis antes impensáveis. Essa situação permite constatar que em nenhuma outra parte do mundo a pandemia do HIV/aids teve um impacto tão devastador sobre as populações afetadas. 129 Estudos baseados em modelagem matemática para a construção de cenários estimam que, se mantidas as atuais condições de acesso e tratamento ARV no continente africano, que tendem a agravar consideravelmente o quadro da epidemia, até 2025 terão morrido na África 67 milhões de pessoas com aids (UNAIDS, AIDS Africa Project, 2004), caracterizando uma situação catastrófica e sem precedentes em termos de saúde pública. A PANDEMIA NOS PAÍSES DA CPLP O dramático impacto da pandemia do HIV/aids, agravado pela exclusão da maioria das populações da possibilidade de acesso à terapia antirretroviral, é uma realidade sombria na maioria dos países que integram a CPLP, à exceção de Portugal e do Brasil, como se pode ver mais adiante. Cabe ressaltar, nesse contexto, a diversidade das epidemias e subepidemias no conjunto desses países. Ilustra bem esse quadro a grande variação entre as diferentes prevalências, chamando a atenção o contraste entre a baixíssima prevalência estimada para o Timor Leste, epidemias generalizadas como a de Moçambique e epidemias concentradas, como a do Brasil, nos grupos mais vulneráveis da população. Embora na maioria desses países a qualidade da informação epidemiológica ainda seja precária, caracterizada pela subnotificação, os dados epidemiológicos disponíveis nos permitem ter uma visão, ainda que limitada, da extensão e gravidade desse quadro. 1. PREVALÊNCIA ESTIMADA DO HIV/AIDS NA POPULAÇÃO DE 15 A 49 ANOS Moçambique – 16,2% Guiné-Bissau - 7,3% Angola - 2,5% São Tomé e Príncipe – 1% Cabo Verde – 0,5 a 1,5% Brasil - 0,6 % Timor Leste – 0,2 a 0,5% Portugal – 0,4% 2. NOVOS CASOS DE HIV/ AIDS POR ANO Moçambique - 100.000 ou mais Angola, Brasil - 10.000 a < 50.000 130 Guiné-Bissau - 1.000 a < 10.000 Portugal, Timor-Leste - <1.000 Cabo Verde, São Tomé e Príncipe - dados não disponíveis 3. I NCIDÊNCIA DO HIV/AIDS Moçambique - 1,00% a < 2,00% Angola - 0,2% a < 0,3% Guiné-Bissau - 0,10% a < 0,20% Brazil, Portugal, Timor Leste - < 0,10% Cabo Verde, São Tomé e Príncipe - dados não disponíveis Fontes: Para o Brasil, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde (2007). Para os demais países, Organização Mundial da Saúde/UNAIDS (2007) e Programas Nacionais de Aids, em UNAIDS/CPLP (2008). CONDIÇÕES DE ACESSO UNIVERSAL AO TRATAMENTO ARV Em 2006, os Estados-Membros da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre HIV/Aids (incluindo-se aqui os países-membros da CPLP) ratificaram o entendimento comum sobre o acesso universal. Este foi definido, em uma perspectiva multissetorial, como um esforço integrado no sentido de oferecer a toda a população, particularmente os grupos populacionais mais vulneráveis, as condições de acesso à informação de qualidade e cientificamente embasada e aos insumos de prevenção, em especial o preservativo; de acesso a aconselhamento e testagem; de acesso ao tratamento antirretroviral e de enfermidades oportunistas, além dos cuidados essenciais às pessoas vivendo com HIV/aids. Contrastando com esse entendimento, os dados epidemiológicos acima apresentados apontam para uma situação dramática, agravada pelas condições de exclusão social e extrema pobreza na maioria dos países em desenvolvimento que integram a CPLP. Eles evidenciam, à exceção do Brasil – onde o acesso das pessoas com indicação para o tratamento ARV (cerca de 30% das pessoas vivendo com o HIV/aids) é universal e gratuito – a exclusão, nesses países, da maioria da população vivendo com HIV/aids da possibilidade de acesso aos medicamentos ARV. Verificamos, na maioria dos países da CPLP, a inexistência de sistemas públicos de saúde, como o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, que possam assegurar a distribuição universal e gratuita dos ARV. Essa lacuna acaba obrigando os portadores do HIV/aids a dependerem de doações esporádicas de organizações internacionais e, em situações excepcionais, da compra privada individual (“out of pocket”) de medicamentos em farmácias. 131 Essa dependência, limitando e mesmo impedindo o acesso das populações aos medicamentos ARV, leva ao rápido agravamento da morbi-mortalidade pelo HIV/aids, com profundas implicações sociais, econômicas e culturais. Como o cidadão comum desses países não tem recursos para comprar medicamentos ARV do setor privado, esse quadro acabou levando à excessiva dependência externa de doadores internacionais, como, entre outros, o Plano de Emergência do Presidente dos E.U.A. para o Alívio da Aids (PEPFAR). Essa situação de dependência resultou em diversos impasses, a exemplo do boicote pelos E.U.A. à compra, com fundos doados pelo referido Plano, de ARV genéricos não aprovados pelo governo americano, limitando a possibilidade de aquisição, pelos países africanos, dos medicamentos mais baratos disponíveis. Destacam-se, ainda, problemas como a dificuldade de retenção dos pacientes nos programas de tratamento, o elevado número de pacientes que desconhecem sua condição sorológica ou que são diagnosticados muito tarde e morrem nos primeiros seis meses de tratamento. Esse quadro é particularmente agravado pela coinfecção com a tuberculose, que constitui uma das principais causas de morte de pessoas vivendo com HIV/aids no mundo e a primeira causa de morte entre os portadores do HIV que vivem na África. É necessário reconhecer que o ano de 2007 marcou, inegavelmente, uma etapa importante na história mundial da pandemia do HIV/aids e do acesso ao tratamento ARV. Nesse ano finalmente atingiu-se, com dois anos de atraso, a meta da “Iniciativa 3 por 5” de se chegar, em 2005, a cerca de 3 milhões de pessoas HIV-positivas em países em desenvolvimento recebendo a terapia antirretroviral, o que elevou significativamente a cobertura do tratamento (WHO; UNAIDS; UNICEF, 2008). Com efeito, essa estratégia possibilitou que muitas pessoas até então limitadas pela doença e vivendo em condições de pobreza passassem a ter, com a ampliação do acesso ao tratamento antirretroviral, a possibilidade de retornar à atividade econômica e à vida social. Esse aumento da cobertura tem sido atribuído à ampliação de iniciativas internacionais diversas e também ao esforço de alguns países em desenvolvimento no sentido de assegurarem a maior disponibilidade de medicamentos, pela redução de preços, o aumento da testagem e do diagnóstico – estimulando a demanda –, além da ampliação, simplificação e descentralização dos serviços e dos sistemas de dispensação dos medicamentos. No entanto, é importante destacar que, apesar desse esforço internacional, essa meta da Iniciativa 3 por 5 atingiu apenas 31% do número estimado de 9,7 milhões de pessoas nos países em desenvolvimento que necessitavam da terapia antirretroviral no final de 2007. Isso significa que cerca 74% das pessoas que necessitam do tratamento nesses países ainda estão distantes da possibilidade de acesso a medicamentos antirretrovirais que salvam vidas. 132 A gravidade desse quadro impõe a necessidade de ampliação do esforço colaborativo da comunidade internacional, em particular da CPLP, envolvendo os governos, o meio científico e as organizações da sociedade civil dessa comunidade, no sentido de tentar reverter a presente situação, o que exige um amplo conjunto de ações e de políticas mais flexíveis de propriedade intelectual (PI) dos medicamentos antirretrovirais e de outros insumos em saúde, propiciando a diminuição dos preços e facilitando o acesso de populações hoje excluídas do tratamento. A POLÍTICA BRASILEIRA DE ACESSO UNIVERSAL E GRATUITO AOS ARV No Brasil, o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde assegura, desde 1996, apoiado pela legislação em vigor, o acesso universal e gratuito ao tratamento antirretroviral. Em apenas seis anos, de 1996 a 2002, essa política resultou em um dramático declínio de 70% na mortalidade e 80% na morbidade, além de uma diminuição de 70% nas internações hospitalares e uma economia de U$ 2,2 bilhões no gasto público. No entanto, contrastando com esses resultados notáveis e muito positivos, a sustentabilidade dessa política de acesso universal permanece como uma questão crucial para o país. Apesar de importantes esforços na última década em direção ao desenvolvimento de medicamentos genéricos e negociações com empresas farmacêuticas multinacionais, os preços dos medicamentos ARV persistiram muito altos, particularmente para a segunda e terceira gerações de medicamentos. Por outro lado, como consequência de pressões internacionais e políticas tecnológicas e industriais locais pouco efetivas, o desenvolvimento e a produção local desses medicamentos por laboratórios públicos e empresas privadas nacionais permaneceram em níveis baixos. Na última década, a perspectiva de poder produzir localmente alguns dos medicamentos ARV de primeira geração e de importar princípios ativos da China e da Índia possibilitou ao Brasil negociar a redução de preços com as empresas farmacêuticas multinacionais. Ademais, a introdução de medicamentos genéricos no mercado brasileiro foi vista como uma estratégia para superar o problema dos altos preços do tratamento antirretroviral no país (ORSI et al., 2003). A diminuição do poder de compra governamental dos ARV, pelo rápido aumento nos preços, pelo declínio na produção local por empresas privadas nacionais e a tendência global no sentido de uma escassez de princípios ativos, resultante do rápido crescimento da demanda e estabilização do número de fornecedores, tornou evidente, no final de 2004, que a licença compulsória de alguns medicamentos ARV era urgente e não podia mais ser adiada. Os casos de países desenvolvidos, como os E.U.A. e o Canadá, nos quais a licença compulsória para medicamentos já havia sido usada com relativa frequência, forneciam o fundamento histórico para a adoção dessa medida. Portanto, em 2005, depois de uma decisão 133 política em favor da licença compulsória pelo Presidente do Brasil, um instrumento legal (Portaria) foi preparado pelo então Programa Nacional de DST e Aids, do Ministério da Saúde, para a licença compulsória de quatro medicamentos ARV: efavirenz (Merck, Sharp & Dome), nelfinavir (Roche), lopinavir/ritonavir (Abbott) e tenofovir (Gilead Sciences), os quais respondiam por cerca de 70% do orçamento do Ministério da Saúde para a terapia ARV (destinado a um total de 15 medicamentos ARV). No entanto, o Ministro da Saúde à época, que estava até então comprometido com a decisão do Presidente, desistiu no último minuto, de forma surpreendente, de assinar a licença compulsória desses quatro medicamentos. Vários argumentos foram trazidos à cena política para justificar a sua decisão, incluindo a alegação de falta de capacidade de produção pelas empresas privadas nacionais (contrariando avaliações anteriores do próprio Ministério da Saúde, feitas pelo então Programa Nacional de DST e Aids e posteriormente apoiadas por avaliações do PNUD, da REBRIP e da Fundação Clinton, confirmando a existência de capacidade nacional de produção). Diante de todos esses obstáculos e resistências, somente em maio de 2007 o novo Ministro da Saúde finalmente conseguiu emitir a licença compulsória de um medicamento (o efavirenz, da Merck), após mais de uma década de negociações e ameaças de competição de preços com a produção local de genéricos. Essa decisão ocasionou uma drástica redução de preço e resultará, como se verá mais adiante, em uma economia expressiva para o país. Esse longo processo político indica como pode ser difícil a utilização da flexibilidade do TRIPS por países em desenvolvimento. CONDIÇÕES DE ACESSO NOS DEMAIS PAÍSES DA CPLP Como se verá a seguir, na maioria dos países da CPLP as condições de acesso sustentável ao tratamento ARV são bastante precárias, à exceção de Portugal e Brasil, como mostram dados de fontes diversas: para Portugal, WHO, UNAIDS, UNICEF (2008), para o Brasil, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde (2007). Para os demais países, Organização Mundial da Saúde/UNAIDS (2007) e Programas Nacionais de Aids, em UNAIDS/CPLP (2008). PORTUGAL Em Portugal, como no Brasil, toda a população tem acesso aos serviços prestados pelo Serviço Nacional de Saúde. Com uma população estimada em 10,5 milhões de habitantes, o país possui uma elevada expectativa de vida (75 anos para homens e 82 para mulheres). À semelhança do Brasil, a epidemia em Portugal é concentrada nos grupos mais vulneráveis, no caso, os usuários de drogas injetáveis, homens que fazem 134 sexo com homens e a população confinada. Possui um total de 34.000 pessoas vivendo com HIV/aids nos diferentes estágios da doença, dos quais 14.195 casos de aids. Existem 18.679 pessoas em tratamento antirretroviral. M OÇAMBIQUE Em Moçambique, cerca de 78% da população, que é de cerca de 20 milhões de habitantes, vivem abaixo da linha de pobreza. É uma população muito jovem, com metade de seus habitantes menores de 18 anos. O acesso a serviços de saúde é muito limitado. Aproximadamente 1,6 milhões de pessoas estão infectadas pelo HIV, com cerca de 160 mil óbitos anuais. A prevalência estimada do HIV é altíssima, da ordem de 16,2% na população de 15 a 49 anos (2007). Apesar dos esforços governamentais no sentido da ampliação do tratamento, mais de 80% das pessoas que vivem com HIV/aids não têm acesso aos medicamentos ARV. Cerca de 260.000 pessoas necessitam atualmente de medicamentos ARV no país. Estima-se que, com o agravamento desse quadro, no ano de 2010 o número de pessoas infectadas pelo vírus poderá chegar a 1,9 milhões de pessoas, com grande impacto no desenvolvimento social e econômico do país. ANGOLA Em Angola, cerca de 42% da população vivem abaixo da linha de pobreza; a expectativa de vida é de 38 a 42 anos e a rede de saúde e educação é insuficiente para satisfazer as necessidades básicas da população, apesar dos esforços governamentais para aumento da cobertura e descentralização. A prevalência do HIV estimada na população de 15 a 49 anos é elevada (2,1%), embora, comparativamente, mais baixa que a dos demais países da África Austral. Com uma população de 16 milhões de habitantes, o país possui cerca de 183.000 pessoas vivendo com HIV/aids e cerca de 51.000 órfãos em decorrência da aids. Segundo o Programa Nacional de SIDA em Angola, apenas 6,5% das pessoas vivendo com HIV/aids têm acesso ao tratamento ARV e apenas 20% das pessoas com infecção avançada estão recebendo o tratamento. G UINÉ BISSAU Em Guiné Bissau, cerca de 70% da população vivem abaixo da linha de pobreza, com acesso muito restrito a serviços de saúde e educação. A prevalência do HIV é muito elevada, estimada em 7,3%. O país está em uma situação de epidemia generalizada e enfrenta o risco de expansão massiva da epidemia. Em uma população de 1,6 milhões de habitantes, há um número estimado de 16.300 pessoas vivendo com HIV/aids, e somente 28% das pessoas com infecção avançada estão recebendo o tratamento ARV. 135 CABO VERDE Cabo Verde é um país com cerca de 60% de sua população vivendo abaixo da linha de pobreza. Embora possua indicadores de saúde mais favoráveis que a maioria dos países da CPLP (expectativa de vida de 72 anos, melhores condições de acesso a serviços de saúde em uma rede descentralizada), possui ainda, apesar dos esforços governamentais, uma prevalência estimada do HIV entre 0,5 e 1,5%. Com uma população de cerca de 520 mil habitantes, o país tem cerca de 2.000 pessoas vivendo com HIV/aids, sendo o modo de transmissão predominantemente heterossexual (80%), marcado por crescente feminização da epidemia. O acesso à terapia antirretroviral ainda é relativamente restrito, pois apenas 28% das pessoas com infecção avançada recebem o tratamento ARV. TIMOR LESTE O Timor Leste é um dos países de população mais jovem do mundo. Entre seus habitantes, 41% vivem abaixo da linha de pobreza. Com uma população estimada de 1 milhão de pessoas, são muito restritas as condições de acesso aos serviços de saúde. A taxa de prevalência estimada é relativamente baixa, situando-se na faixa de 0,2 a 0,5%. Contudo, as condições muito precárias de vigilância da epidemia permitem supor que o número de pessoas infectadas é muito maior que o número de pessoas HIV positivas registradas. Não existem dados oficiais disponíveis sobre o número de pessoas em infecção avançada em tratamento ARV. Os medicamentos antirretrovirais foram providos pelo governo brasileiro mediante acordo de cooperação e os dados disponíveis informam que existem apenas 20 pessoas vivendo com HIV/aids em tratamento antirretroviral. S ÃO TOMÉ E PRÍNCIPE O arquipélago de São Tomé e Príncipe possui cerca de 50% de sua população abaixo da linha de pobreza. A expectativa de vida, embora baixa, em torno de 60 anos, é considerada elevada quando comparada com a de outros países da África Subsaariana. O acesso a serviços de saúde também é precário, porém melhor que o dos demais países da região. Com cerca de 155 mil habitantes, o país possui uma taxa de prevalência de 1%, com uma estabilização dos óbitos por aids. O modo de transmissão predominante do HIV é heterossexual (89,5%), com feminização da epidemia. Cerca de 300 pacientes necessitam atualmente de tratamento ARV no país; destes, porém, apenas cerca de 27% têm acesso aos medicamentos. 136 D EPENDÊNCIA EXTERNA NO ENFRENTAMENTO DA EPIDEMIA À exceção de Brasil e Portugal, os demais países da CPLP estão em uma situação de alta dependência externa no enfrentamento da epidemia. Em que pese os importantes esforços de iniciativas internacionais como os do Fundo Global de Luta contra a Aids, do Banco Mundial (Programa Multinacional contra a Aids e Programa de Aceleração do Tratamento), do Governo americano (PEPFAR), da Fundação Clinton e outras agências bi e multilaterais, a inexistência, nesses países, de sistemas de saúde estruturados capazes de assegurar a sustentabilidade a longo prazo do tratamento e a rápida elevação dos preços de medicamentos protegidos por patentes, agravada pelo acordo TRIPS, torna esse quadro bastante sombrio. PROPRIEDADE INTELECTUAL : PATENTES E PREÇOS DOS ARV A crítica situação epidemiológica aqui apontada e as atuais barreiras ao acesso, nos países que integram a CPLP, a insumos essenciais para o enfrentamento da pandemia do HIV/aids decorrem de um complexo conjunto de fatores econômicos, sociais, culturais e de saúde pública dos países em questão, que merecem análise em profundidade e que certamente não se limitam às questões de PI. No entanto, sem dúvida, a rigidez do atual regime internacional de PI no âmbito do Acordo TRIPS e dos acordos bilaterais “TRIPS Plus” entre os Estados Unidos, a União Europeia e países em desenvolvimento, incentivando regras ainda mais rígidas de PI no âmbito desses acordos, contribui de forma significativa para o agravamento desse quadro. Além disso, essa harmonização acrítica acaba criando uma camisa de força legal e impedindo a necessária adequação das regras de PI à peculiaridade das condições sociais, econômicas e de saúde pública desses países. Ao estimular monopólios temporários em áreas hiperendêmicas, como nos países do sul da África, esse regime acaba contribuindo para uma elevação expressiva dos preços dos medicamentos ARV, excluindo amplas parcelas da população portadora do HIV/aids da possibilidade de acesso ao tratamento. Como consequência, medicamentos mais recentes e eficazes de segunda linha, tais como os recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em suas diretrizes de tratamento, acabam ficando, pela rigidez da proteção patentária e pelas restrições à produção de genéricos e a competição de preços, excluídos dos serviços de saúde por serem muito mais caros que os remédios antigos, de primeira linha. Se a barreira da propriedade intelectual perdurar e a produção de medicamentos antirretrovirais no mundo continuar concentrada em poucas empresas farmacêuticas, inviabilizando a produção local de genéricos nos países em desenvolvimento, a situação 137 da pandemia do HIV/aids nesses países, em particular nos países da CPLP, tende a se agravar consideravelmente. Essa situação impõe, como se discutirá a seguir, a necessidade de ampla mobilização política, nos países em questão, em torno da necessidade de revisão dos atuais acordos internacionais relativos à propriedade intelectual, buscando-se a criação de novos arcabouços legais e institucionais que assegurem o respeito às condições específicas dos países cuja população está sendo dizimada pela pandemia. L ICENÇA COMPULSÓRIA: A BUSCA DE ESTRATÉGIAS ALTERNATIVAS DE INCENTIVO À INOVAÇÃO E DE COMPENSAÇÃO Um importante argumento exposto pelos defensores das atuais regras comerciais internacionais e sua aplicação a insumos de primeira necessidade, como os medicamentos antirretrovirais, é a existência do mecanismo de licença compulsória, uma “flexibilidade” do TRIPS, que pode ser aplicada a qualquer momento pelos países em desenvolvimento, em caso de situações de interesse público ou emergência. Com efeito, algumas experiências de licenças compulsórias, cujos resultados ainda estão sendo analisados, ocorreram recentemente em países da CPLP, como Moçambique e Brasil. Em abril de 2004, o Ministério da Indústria e Comércio de Moçambique emitiu a licença compulsória para as patentes da lamivudina, da estavudina e da nevirapina. A licença foi concedida à Pharco Moçambique Ltda, uma empresa local, para a manufatura desses antirretrovirais como uma dose fixa combinada, prevendo-se royalties de até 2% das vendas. No Brasil, apesar de diversas ameaças de licença compulsória de medicamentos ARV na última década por diferentes Ministros da Saúde, apenas recentemente, em maio de 2007, essa provisão legal foi aplicada com sucesso para um medicamento, o efavirenz, da empresa Merck, cuja produção está sendo iniciada por Far-Manguinhos, uma instituição pública, em parceria com a iniciativa privada. Segundo estimativas governamentais, essa versão genérica do medicamento poderá permitir ao país economizar cerca de US$ 240 milhões até 2012, quando a patente da Merck terá expirado. No entanto, em que pesem alguns avanços nessa área, a experiência de países em desenvolvimento, como o Brasil e Moçambique, mostra que, embora esta seja de fato uma importante flexibilidade, tendo sido buscada em diversas oportunidades por esses países, sua aplicação é bastante difícil. Na verdade, ela exige dos governos locais uma complexa negociação política interna e externa, além do enfrentamento de pressões comerciais e ameaças de retaliação por parte das empresas dos países detentores das patentes. 138 A constatação dessa dificuldade de aplicação do mecanismo de licença compulsória vem levando os países em desenvolvimento a uma crescente mobilização em torno da necessidade urgente de revisão do regime internacional de proteção da propriedade intelectual de medicamentos essenciais, como os medicamentos ARV. Essa revisão do regime de PI se orientaria para a definição de novos mecanismos, além de licenças compulsórias e voluntárias, que permitissem a adequada compensação de investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PDI) feitos por empresas privadas e públicas na área farmacêutica. Tais empresas poderiam, além disso, se beneficiar de incentivos alternativos, tais como incentivos fiscais e garantia de compra tecnológica antecipada (um bom exemplo é a Lei de Inovação brasileira, que permite a compra tecnológica de inovações isenta da exigência dos tradicionais processos licitatórios). Outros incentivos são os procedimentos de aprovação regulatória de insumos essenciais ao enfrentamento de pandemias (rápidos, mais ágeis, em sistema “fast-track”). Fundos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) têm sido propostos nos casos de licença compulsória, de forma a compensar os investimentos realizados em inovação. Tais fundos preveem um pagamento direto ao detentor da patente, sendo uma percentagem do próprio Fundo de P&D e uma participação do detentor da patente no Fundo (LOVE, 2005a; 2006). No Brasil, esse Fundo foi incorporado ao decreto anterior proposto (mas não assinado pelo então Ministro da Saúde) para a licença compulsória de medicamentos antirretrovirais, em 2005. Consórcios (pools) de patentes para licenças (LOVE, 2005b) podem ser criados como entidades não lucrativas, constituindo uma estratégia colaborativa para a gestão coletiva dos direitos de propriedade intelectual. Um bom exemplo é a recente proposta de um novo “patent pool” da UNITAID, um fundo multilateral para o financiamento sustentável de medicamentos ARV. Segundo a proposta em discussão, qualquer novo medicamento que surja sob o “pool” seria vendido de forma não lucrativa e os proprietários originais das patentes receberiam um “royalty” determinado pelos administradores do “patent pool” e apoiado pelo financiamento da UNITAID, prevendose uma entidade legal separada, constituída como uma Fundação, para administrar o “pool”. Finalmente, também se concebeu um novo sistema de remuneração para incentivo à inovação, o Medical Innovation Prize Fund, segundo o qual o mercado para produtos é separado do mercado para inovações, possibilitando que os produtos possam ser disponibilizados ao público a preços genéricos, enquanto os inovadores se beneficiam de um sistema separado (LOVE, 2005). De modo a mudar radicalmente a forma como os governos apoiam a P&D na área médica, a proposta de um novo Tratado foi assinada por 162 cientistas, especialistas em saúde pública, professores de direito, economistas, autoridades governamentais, 139 membros do Congresso e organizações da sociedade civil, apontando para o fato de que o atual arcabouço legal internacional para apoio à P&D na área médica possui distorções significativas e impõe elevados custos sociais. Os signatários da carta, apresentada em fevereiro de 2005 à OMS, na Assembleia Mundial da Saúde e à CIPIH (WHO Commission on IPR, Innovation and Health) apelavam para a necessidade de debates sobre um arcabouço legal global em P&D na área médica, para atender de forma mais adequada o objetivo de prover o “acesso a medicamentos para todos”. A PAR TICIPAÇÃO DA CPLP EM UMA AGENDA PARA O DESENVOLVIMENTO Como as estratégias alternativas aqui apresentadas só serão viáveis no longo prazo se forem incorporadas nos novos acordos comerciais internacionais, é fundamental a mobilização dos países em desenvolvimento, e em particular os da CPLP, em torno de uma agenda para o desenvolvimento. Com essa perspectiva, durante a 31ª Sessão da Organização Mundial de Propriedade Intelectual - OMPI (WIPO, sigla em inglês), realizada em Genebra, em 2004, as delegações de diversos países em desenvolvimento, inclusive do Brasil, apresentaram em conjunto uma proposta denominada “Friends of Development Group”. Em 2007, os países-membros da WIPO finalmente concordaram com o estabelecimento de uma agenda para o desenvolvimento a ser submetida à Assembleia da WIPO naquele ano. Eles também concordaram com um novo Comitê da WIPO em desenvolvimento e propriedade intelectual. Na agenda em HIV/aids, diversos países em desenvolvimento, com a participação do Brasil, criaram durante a Conferência Internacional de aids em 2004 em Bangcoc, uma rede de cooperação em insumos estratégicos (medicamentos ARV, vacinas, microbicidas, kits para monitoramento e diagnóstico e preservativos), firmando um compromisso com relação ao aprimoramento do arcabouço ético, regulatório e de propriedade intelectual. A ampliação da participação dos países da CPLP nessas diversas iniciativas de fortalecimento da cooperação Sul-Sul em torno de questões de prevenção, acesso e propriedade intelectual de insumos estratégicos em HIV/aids certamente contribuirá para a mobilização internacional necessária ao enfrentamento da pandemia. CONSIDERAÇÕES FINAIS Examinou-se aqui em que medida os países que integram a CPLP são afetados pela pandemia do HIV/aids e de que forma a atual legislação internacional de propriedade intelectual e os acordos bilaterais de livre comércio vêm contribuindo para dificultar a competição por genéricos e, em consequência, afetando os preços dos medicamentos 140 antirretrovirais. Tal situação vem tornando esses países cada vez mais dependentes da excepcionalidade do mecanismo de licença compulsória, que, pelas pressões políticas e comerciais, é bastante difícil de ser efetivamente implementado. Constatou-se que, embora os atuais obstáculos ao acesso a medicamentos ARV devam ser examinados em uma perspectiva mais ampla, considerando o complexo conjunto de questões econômicas, sociais, culturais e de saúde pública envolvidas, o aprimoramento do atual regime internacional de propriedade intelectual será decisivo para impulsionar a atividade científica e tecnológica na área farmacêutica, assegurando a proteção dos direitos humanos, o desenvolvimento social e a melhoria das condições de vida e de saúde das populações afetadas pela pandemia. As informações aqui apresentadas chamam a atenção para a necessidade urgente de revisão da legislação e dos procedimentos internacionais de propriedade intelectual, tornando-os menos restritivos e mais flexíveis, de modo a levar em conta as peculiaridades econômicas dos países em desenvolvimento, assegurando-lhes a necessária autonomia para fortalecimento de sua capacidade nacional de pesquisa, desenvolvimento e inovação, além da possibilidade de optarem pelas respostas mais adequadas às suas necessidades locais. Em síntese, a possibilidade de reversão do quadro epidemiológico e de acesso aos medicamentos ARV aqui apresentada para os países da CPLP exigiria uma estratégia integrada, em uma perspectiva macroestrutural, contemplando: 1. Novas estratégias de prevenção, com ações no nível dos comportamentos, atitudes e práticas sexuais e do consumo de drogas, estratégias de prevenção positiva e de intervenção comunitária. 2. Apoio à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico em DST/ HIV/aids, gerando novos conhecimentos, fortalecendo a capacidade de pesquisa, desenvolvimento e inovação de insumos estratégicos (medicamentos, kits para diagnóstico e monitoramento, preservativos e apoio ao desenvolvimento de vacinas anti-HIV) e subsidiando o processo decisório dos governos no enfrentamento da pandemia. 3. Busca de novos paradigmas para a propriedade intelectual nos países em desenvolvimento, em particular na CPLP, estimulando a produção local de medicamentos antirretrovirais, reduzindo preços e ampliando o acesso das pessoas vivendo com HIV/aids ao tratamento ARV. Aqui, é necessário lembrar que sistemas muito rígidos de propriedade intelectual, ao invés de estimular a inovação, acabam tendo o efeito inverso de a restringir, o que significa um obstáculo ao desenvolvimento econômico e social (Stiglitz, 2004). 141 4. Fortalecimento das estratégias de cooperação internacional entre países em desenvolvimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação em HIV/aids, bem como dos aspectos éticos e regulatórios relacionados. A cooperação internacional em ciência, tecnologia e inovação entre os países no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, destacando a propriedade intelectual e as demais questões éticas e regulatórias envolvidas, será crucial para viabilizar essa abordagem macroestrutural. Ela possibilitará a troca de experiências, a transferência de tecnologias e uma reflexão conjunta entre os diferentes atores envolvidos (governos, sociedade civil, doadores multilaterais e bilaterais e setor privado) sobre os possíveis cenários futuros para o desenvolvimento de novas intervenções, insumos e produtos no enfrentarmento da pandemia do HIV/aids, fundamentando a busca de soluções criativas e inovadoras nesse campo. 142 R EFERÊNCIAS CORREA, C.M. Implications of the Doha Declaration on the TRIPS Agreement and Public Health. Geneva: WHO, 2002. (Health economics and drugs series, n. 12). EDM/PAR/2002.3. GROUP FRIENDS OF DEVELOPMENT. Proposal to establish a development agenda for the World Intellectual Property Organization (WIPO): An elaboration of issues raised in document WO/GA/31/11, WIPO. Geneva, 2004. LOVE, J. Remuneration guidelines for non-voluntary use of a patent on medical technologies. Geneva: WHO, 2005a. (Health Economics and Drugs Series, n. 18). _____. Proposal for patent pool for essential medicines (PPEM), CPTECH, Addis Ababa. [S.l.: s.n.], 2005b. _____. Measures to enhance access to medical technologies and new methods of stimulating medical R & D. [S.l.: s.n.], 2006. Paper for the WIPO Open Forum on the draft Substantive Patent Law Treaty (SPLT). ORSI, F. et al. Intellectual Property Rights, Anti-AIDS Policy and Generic Drugs, Lessons from the Brazilian Public Health Program. In: MOATTI, J.P. et al. Economics of AIDS and access to HIV/AIDS care in developing countries: Issues and challenges. Paris: ANRS, 2003. (Collection Social Sciences and AIDS). STIGLITZ, J. Towards a Pro-Development and Balanced Intellectual Property Regime, Keynote address presented at the Ministerial Conference on Intellectual Property for Least Developed Countries, World Intellectual Property organization (WIPO)UNAIDS, AIDS Africa Project, Geneva, 2004). UNAIDS; COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA. Epidemia de VIH nos países de língua portuguesa: situação atual e perspectivas futuras rumo ao acesso universal à prevenção, tratamento e cuidados. Genebra: WHO/UNAIDS, 2006. Draft Report on WHO/UNAIDS Meeting on Forecasting ARV needs up to 2010. WHO; UNAIDS; UNICEF. Towards universal access: scaling up priority HIV/AIDS interventions in the health sector. Geneva, 2008. 143 CAPÍTULO A S C IÊNCIAS DE S AÚDE EM 6 M OÇAMBIQUE : O PAPEL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL 120 Maria Teresa Araújo 121 120 Comunicação apresentada no I Seminário Internacional: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, de 30 de junho a 2 de julho de 2008. 121 Médica Ginecologista-Obstetra, atual Diretora da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Lúrio. Em Moçambique, durante o período colonial, existia legislação que regia a questão da propriedade intelectual como um todo, não havendo, no entanto, procedimentos para a sua aplicação. Após a independência nacional, em 1975, o assunto não foi esquecido, mas, em face dos grandes desafios que se colocavam ao jovem país, essa não era a grande prioridade. Posteriormente, o Ministério da Ciência e Tecnologia produziu um documento preliminar sobre a “Estratégia da Propriedade Intelectual”. Nesse documento, os direitos de autor estão plasmados com pormenor, mas, no que respeita à área da saúde, apenas se afloram assuntos relacionados com a medicina tradicional e a pesquisa relativa a alguns produtos da ervanária (para a terapêutica ou cosmética), e pouco ou quase nada sobre outros aspectos. Mas mais uma vez, a grande dificuldade está em como aplicar qualquer que seja a legislação nesse sentido e em controlar aspectos relacionados com a fuga de ideias, informação e outros aspectos, sem que para tal se criem e aprovem os instrumentos reguladores e se definam, de forma clara, os conceitos e os direitos de todos os atores. Muitas vezes tive acesso a publicações em que o autor mencionado havia sido mais financiador e/ou promotor e não o executor, tendo-se limitado a alterar algumas palavras por sinônimos e a corrigir algumas vírgulas. Tive a oportunidade de conhecer, diretamente ou em reuniões internacionais, vários desses executores espoliados do seu trabalho intelectual, que deveria ser sua propriedade, mas que não tinham instrumentos que lhes permitissem defender os seus direitos. A minha experiência pessoal, tanto em Moçambique – em vários níveis do Serviço Nacional de Saúde e atualmente, na área da Educação, como diretora da Faculdade de Ciências de Saúde da Universidade Lúrio – quanto ao longo dos 18 anos na OMS, onde tive o privilégio de trabalhar, permite-me avançar com as reflexões que a seguir apresento: 1. Intencionalmente ou não, a cooperação com os países beneficia bastante o propositor da cooperação, individualmente: a. muitos dos que passaram por Moçambique e outros países ascenderam a postos importantes em organismos internacionais ou nos seus países de origem. A razão desse fato pode encontrar-se em: i. terem melhorado o seu currículo graças ao trabalho feito com a colaboração das equipes em que foram inseridos. ii. terem publicado trabalhos executados com quadros nacionais, os quais não são sequer mencionados. iii. terem “copiado” programas ou normas de Moçambique, aplicando-os em outras cooperações, sem mencionarem a origem. 146 Os fatos acima descritos são reprováveis em qualquer parte do mundo. Reprováveis porque quem os pratica sequer menciona, mesmo que a título de agradecimento, o nome das pessoas ou dos programas que realizaram o trabalho ou nele colaboraram. Reprováveis porque usam conhecimentos e mão de obra de pessoas a quem faltam meios e informação jurídica que lhes permitam fazer valer os seus direitos. 2. No nível político, a cooperação “convence” os decisores políticos que, por sua vez, “obrigam” os executores técnicos a seguirem linhas que não as mais apropriadas ou as mais ajustadas à realidade de Moçambique ou do país em questão. Isso se manifesta nomeadamente na transposição, linear e direta, de métodos ou formas que deram certo na realidade concreta do país ofertante da cooperação. Tal se observa, sobretudo, no reforço às instituições. 3. A pressão econômica é também um fator que leva à perda de propriedade intelectual, pois embora as ideias e protocolos tenham um determinado “nascimento”, acabam por pertencer a quem as financia e não a quem as elaborou e executou. Esse fator manifesta-se mais em projetos e programas de pesquisa. 4. Outro aspecto, não menos relevante, está relacionado com o fato de os superiores hierárquicos darem aos seus subordinados instruções de trabalho e de pesquisa muitas vezes irrelevantes para as funções ou responsabilidades que estes desempenham, e depois as publicarem em seu nome pessoal sem para isso nada terem feito e, mais uma vez, sem mencionarem os executores, com o agravante de os desviarem das suas funções e obrigações principais. Tudo isso resulta em uma situação extremamente lesiva para os pesquisadores e inovadores moçambicanos que, sem terem instrumentos legais a que possam recorrer, são colocados em uma situação de desvantagem lesiva para os seus interesses e direitos pessoais e para os interesses nacionais, e de abuso intelectual. Essas condições são propícias para: • Oportunismos individuais de pessoas que se aproveitam do trabalho e ideias alheias e ficam impunes; • Uso de mão de obra especializada para pesquisa e tratamento de dados, sem que seja reconhecido o direito de autor; • Apropriação de ideias e inovações, individuais ou coletivas, ficando os seus autores no anonimato total; • Apropriação de conceitos nacionais; 147 • • Imposição de ideias e de conceitos por meio do financiamento ou de políticas; Diminuição da autoestima e aumento do desinteresse dos quadros nacionais por não verem reconhecido o seu esforço ou trabalho nem a sua capacidade intelectual, o que leva à inibição mental e, muitas vezes, estimula a fuga de cérebros para outros locais onde “pensam” que terão algum reconhecimento. Tudo isso só será revertido mediante a aprovação de leis e respectivos regulamentos de aplicação que forneçam os instrumentos indispensáveis para a proteção dos direitos de propriedade intelectual. 148 III P ROPRIEDADE I NTELECTUAL NA A GRICULTURA E C ONHECIMENTOS TRADICIONAIS CAPÍTULO E 7 P ROPRIEDADE I NTECTUAL NA A GRICULTURA C ONHECIMENTOS C ORRELATOS EM M OÇAMBIQUE Jorge Ferrão122, Américo Uaciquete123 e Camilo Cuna124 122 Reitor da Univerisdade Lúrio (UNILÚRIO), Moçambique. 123 Professor de Biologia na Univerisdade Lúrio (UNILÚRIO), Moçambique, Doutorando na Universidade Witswatersrand, Joanesburgo, África do Sul. 124 Professor de Ética e Bioética na Univerisdade Lúrio (UNILÚRIO), Moçambique, PhD na Universidade de Roma, Itália. 1. I NTRODUÇÃO Se aceitarmos que propriedade significa um bem materialmente real, então a propriedade intelectual poderá ser entendida como a posse de ambos, o bem/produto ou capital e o conhecimento associado à aplicação do mesmo. Portanto, o saber aplicar o recurso, produto ou capital é ato humano e consciente. Nesse contexto, a propriedade se associa de forma indiferenciada ao recurso Homem. Aqui, propomo-nos a analisar o atual estágio do discurso sobre a propriedade intelectual, quer no nível global, quer, sobretudo, no contexto particular de Moçambique, com destaque para o âmbito da agricultura. 2. PROPRIEDADE INTELECTUAL NO CONTEXTO GLOBAL De acordo com Prado (2005), ao longo das últimas décadas tornou-se lugar comum afirmar-se que estamos vivendo em uma sociedade de informação e que o capitalismo contemporâneo estaria em uma nova fase, a chamada pós-grande indústria. Nessa fase, por consequência, a principal fonte de valorização deixa de ser o tempo de trabalho, passando a ocupar o seu lugar o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. A esse pressuposto Albagli (1998) designará como imperativo tecnológico, que coloca a ciência e a tecnologia em um novo patamar, ou seja, as suas relações com as estruturas de poder vigentes. Desse modo, ciência e tecnologia passam a constituir-se em bens mercantis e bens estratégicos, ao mesmo tempo protegidos e restritamente tornados disponíveis no mercado global, privatizados e comercializados pelos grandes agentes econômicos. A transformação em mercadoria das formas culturais e históricas da atividade intelectual reveste-se de contornos de expropriação. Desse modo, a evolução que acontece no mundo está extremamente distante do horizonte de países menos desenvolvidos, cuja preocupação ainda é eliminar a fome e outras carências. Ao refletirmos sobre a propriedade intelectual, julgamos imperioso questionar: de que modo as esferas públicas locais e regionais, mediante os blocos regionais e mesmo – convenhamos – a Organização Mundial do Comércio, por meio do TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Property), poderiam abandonar o foro tradicional das discussões sobre propriedade intelectual para acomodar o interesse dos países mais carenciados, porém detentores de uma potencial biodiversidade? Como esses países poderiam defender a sua propriedade intelectual, sem que esta fique diluída na propriedade industrial ou em outros domínios, no âmbito dos quais esses países não teriam condições técnicas, científicas e práticas de se autodefenderem? E qual seria, concretamente, o lugar da propriedade intelectual? 152 No nosso modo de entender, a importância dos sistemas de direito de propriedade intelectual reside, essencialmente, na promoção da inovação por intermédio de leis ou normas que encorajam o inovador a desvendar o seu conhecimento ao público e, por conseguinte, estimulam o progresso científico e artístico. Assim, o recurso Homem representa o aspecto mais preponderante em uma esfera global onde o conhecimento desempenha, cada vez mais, um papel de progresso tecnológico, industrial e, em suma, de desenvolvimento. Na verdade, a propriedade intelectual recai, em última instância, sobre quem quer que seja o responsável pela administração do recurso Homem, quer no espaço, quer no tempo. Em muitos casos, os responsáveis são os Estados. Nos moldes do desenvolvimento econômico moderno, a propriedade e, por conseguinte, o poderio econômico dos Estados assenta no conhecimento. Os recursos físicos ou materiais, como a terra, o mar, a flora e a fauna, representam apenas a matériaprima, cujo valor, na economia global, decresce cada vez mais. Novos recursos, tais como a Internet, o capital humano qualificado e os produtos transformados, vão tomando a essência do progresso econômico das pessoas, empresas, corporações, Estados e até de regiões estratégicas. O perfil do intelecto de um Estado, bem como a sua diversidade e organização, mostram-se cada vez mais importantes quando, por exemplo, se nota que, no nível do comércio global, a venda anual de bens culturais aumentou quatro vezes entre 1980 e 1998. Em muitos casos, esses bens representam o saber milenar dos povos, amalgamado em danças, vestes, traços na madeira, na pedra e até em composições de artefatos diversos como artigos de cestaria, sons musicais e instrumentos e, ainda, em composições de expressão linguística própria. No nível internacional, são duas as organizações com responsabilidade de implementar as leis internacionais de propriedade intelectual: A Organização Mundial de Propriedade Intelectual – OMPI (WIPO, sigla em inglês) e a Organização Mundial de Comércio – OMC (WTO, sigla em inglês), das quais Moçambique é membro, mediante as Resoluções Nºs. 12/96 e 31/94. 3. PROPRIEDADE INTELECTUAL NA AGRICULTURA EM M OÇAMBIQUE O reconhecimento dos direitos de propriedade intelectual, sem dúvida, galvaniza a inovação e competitividade em todas as esferas da vida. Neste trabalho, porém, pretendemos: (1) Elucidar o cenário da valorização da propriedade intelectual em Moçambique, na esfera da agricultura e aspectos a ela associados. Em outras palavras, analisaremos como o inovador na agricultura moçambicana vende seu produto ou sistema ao governo, em troca do monopólio da sua criatividade por um determinado 153 período, e, ademais, como o governo investe na promoção desse tipo de negócio, assumindo-o como relevante para o desenvolvimento acelerado da sua economia. Entenda-se agricultura no seu sentido lato, em que as plantas são combinadas com animais em benefício da vida humana, tanto no campo como nas zonas urbanas; (2) Analisar os nexos que se estabelecem entre a estratégia nacional de propriedade intelectual e a sua implementação em face dos acordos internacionais, particularmente os TRIPS, na atual conjuntura e condição socioeconômica de Moçambique. De salientar que este trabalho, pela sua natureza, resulta essencialmente do estudo sistemático de documentos e de alguma bibliografia sobre o tema. Até 2004, Moçambique aparecia registrado como participante de três acordos internacionais relacionados com a propriedade intelectual, designadamente: 1) o acordo de Madri sobre o registro internacional de marcas (Resolução Nº 20/97), 2) o acordo internacional sobre a classificação de bens e serviços para o registro de marcas (Resolução Nº 35/99) e 3) a União de Paris (Resolução Nº 21/97). Esses acordos obrigam os governos-membros a proteger o direito de propriedade intelectual nos seus territórios. No contexto da agricultura, isso significa referir-se à emergência de agropatentes protegidas por lei, tal como acontece nas indústrias gráfica e discográfica, por exemplo. Em Moçambique, o governo deu alguns passos significativos, convenhamos, nessa perspectiva, mediante a criação de bases institucionais e legislativas: o Decreto Nº 50/2003 cria e confere estatuto orgânico ao Instituto de Propriedade Industrial; o Decreto Nº 4/2006 versa sobre o código de propriedade industrial; o Decreto Nº 19/99 regula o funcionamento de agentes oficiais de propriedade industrial; e a Resolução Nº 34/99 dispõe sobre a adesão de Moçambique à legislação regional sobre o direito de propriedade intelectual (ARIPO). No contexto da agricultura, existe o Regulamento Nº 184/2001, que estabelece as normas para a produção, comercialização, controle de qualidade e certificação de germoplasma. Contrariamente ao que acontece em alguns países da região, como o Quênia, o Zimbábue e a Suazilândia, que já têm leis específicas sobre os direitos do melhorador de plantas, o regulamento acima referido não assegura direitos de propriedade para além do registro de autoria, no caso particular de variedades de espécies vegetais cultivadas. Ainda, a grande maioria dos intervenientes no processo desconhece não só a importância da propriedade intelectual, como também a legislação existente, inclusive os mecanismos à sua disposição para defender os seus interesses, fato que torna os avanços acima mencionados inexpressivos ou pouco relevantes. 154 Há uma consciência dos acontecimentos internacionais que inclui organizações/ sistemas como a União Internacional para a proteção de novas variedades de plantas (UPOV/1978). A aliança voluntária é limitada e, portanto, o instrumento não foi adotado por muitos países africanos, à exceção do Quênia e da África do Sul, essencialmente devido ao seu impacto sobre a livre e secular partilha de sementes pelos camponeses. Em 2002, a Organização da Unidade Africana, publicou uma lei modelo para a proteção dos direitos das comunidades locais, camponeses e melhoradores da África, no contexto do acesso aos recursos biológicos. Em Moçambique, essa lei ainda é pouco conhecida. É verdade que o direito de monopólio do conhecimento requer do governo o desenvolvimento de sistemas de tipificação e catalogação de tecnologias baseadas no conhecimento e essa missão cabe ao Instituto de Propriedade Industrial, criado pelo Decreto Nº 50/2003. Além disso, o governo de Moçambique já mostrou certo comprometimento na promoção do desenvolvimento por meio da inovação tecnológica, criando o chamado Fundo Competitivo Nacional para a Investigação FNI (Decreto nº 12/2005). Todavia, falta um aspecto preponderante, que é a proteção do direito de monopólio das criações resultantes por tempo determinado, sobretudo na área da agricultura. Em consequência disso, as ideias, marcas e produtos nacionais praticamente continuam a carecer de proteção e reconhecimento. Como agravante, as plantas nacionais que concorrem para o tratamento de diversas doenças continuam a ser exploradas até por estrangeiros, abusivamente, sem que as comunidades locais, que transmitem o conhecimento sobre o seu uso, se beneficiem de qualquer incentivo. É provavelmente importante levantar uma questão que afeta não apenas Moçambique. Se o monopólio da criação tem sido justificado internacionalmente com base nos investimentos realizados em prol dessa criação, como poderá ser justificado o monopólio quando a inovação provém de capitais públicos? A pesquisa privada em Moçambique é quase inexistente. Essa ideia é corroborada por outros analistas, como é o caso da Fundação Joaquim Chissano, segundo a qual a ciência e a tecnologia ainda são áreas de fraca divulgação no país. Mesmo o conhecimento básico existente reside mais nos estabelecimentos acadêmicos e de pesquisa científica, nos Ministérios e em diversas outras instituições, públicas e privadas. Esse conhecimento se encontra pouco disponível para o grande público, pouco contribuindo, portanto, para a solução dos problemas nacionais ligados ao desenvolvimento. Semelhante déficit de divulgação do conhecimento e tecnologia básicos deixa muitos produtores, sobretudo comunitários, completamente entregues às práticas de produção rudimentares que pouco concorrem para a produção rentável de bens e serviços. Os serviços de extensão que deveriam transmitir conhecimentos científicos básicos, incluindo resultados da pesquisa científica e promover a utilização de tecnologias apropriadas, são igualmente incipientes. Nesse cenário, parece coerente a alegação de que o espírito de monopólio é o impeditivo básico da implementação 155 da legislação de propriedade intelectual, ou seja, o monopólio do direito milenar dos povos e de recursos, quando o financiamento é público, em benefício de um indivíduo singular ou coletivo. Aliás, a cláusula UPOV91, que proíbe a partilha de sementes entre produtores no campo, é o exemplo típico disso. Nas sociedades em que a maioria das pessoas não possui escolarização suficiente para perceber o benefício das leis futuristas, qualquer norma que altere o seu modus vivendi é contra a ordem natural ou tradicional da sua existência, pelo que a rejeição daquela é a mais óbvia opção. Em resumo, a praticabilidade do direito de propriedade intelectual na agricultura em Moçambique poderá estar condicionada a três fatores, nomeadamente: (1) a fonte do financiamento da inovação; (2) a competência do estabelecimento dos limites entre uma criação e outra; e (3) a educação massiva da sociedade sobre as vantagens da substituição da lei tradicional da livre troca do conhecimento por uma lei de comercialização deste, na perspectiva de um rápido desenvolvimento econômico, evitando, assim, que os gigantes econômicos do mundo se apoderem do fosso tecnológico dos pobres. 4. CONCLUSÃO Embora exista uma estratégia nacional sobre propriedade intelectual, a sua implementação circunscreve-se mais a uma discussão teórica e institucional. Na prática, o ordenamento jurídico e as instituições do Estado não consagram, ainda, os direitos de propriedade intelectual como instrumento de defesa dos interesses nacionais e dos respectivos detentores dessa propriedade. A revisão constitucional ocorrida em 2004, no seu nº 02, do artigo 82, prevê a possibilidade de expropriação de direitos de propriedade por necessidade, utilidade e interesses públicos, mediante pagamento de justa indenização. Todavia, a abordagem histórica e sistemática na interpretação das normativas e decretos de vária ordem não favorece nem o Estado, nem os cidadãos nacionais e, muito menos, as regiões rurais, detentoras do “saber tradicional”. A estratégia nacional da propriedade intelectual nem por isso terá criado as condições reais para a implementação do acordo TRIPS, e nem é previsível que, fora da esfera institucional, o cidadão comum adote o acordo para a defesa dos seus interesses. Impõe-se, enfim, o desafio ao Estado e a todos os intervenientes no discurso sobre a propriedade intelectual na agricultura em Moçambique para que algo seja feito no sentido de melhorar o atual cenário, tão cedo quanto possível. 156 R EFERÊNCIAS ALBAGLI, Sarita. Geopolítica da biodiversidade. Brasília, DF: IBAMA, 1998. EXPERE, J. A. The African Model Law. Addis Ababa: Organization of African Unity, 2000. FUNDAÇÃO JOAQUIM CHISSANO. Desenvolvimento econômico e social. Disponível em: <http:www.jchissano.org.mz/conteudos/portugues/PA_desenvol%20 %20%econ%20%20social.pdf>. Acesso em: 17 maio 2008. KUYEK, D. Intellectual property rigths in African agriculture: implications for small scale farmers. Barcelona: GRAIN, Aug. 2002. MOÇAMBIQUE. Constituição da República. 2004. Disponível em:< http://www. mozambique.mz/pdf/constituicao.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2008. MOMOANE, Ana. Os desafios do financiamento da investigação e de desenvolvimento dos bens intangíveis da propriedade intelectual. Disponível em: <http/www.ipi.gov.mz/img/ppt/ipstrategy-mozambique>. Acesso em: 17 maio 2008. PRADO, Eleutério F.S. Desmedida do valor: crítica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã, 2005. WORLD TRADE ORGANIZATION. Agreement on trade related aspects of intellectual property rights: Nnex 1C of the Marrakech agreement establishing the World Trade Organization, signed in Marrakech, on April 15, 1994. Geneva, 1994. 157 CAPÍTULO E DUCAÇÃO 8 PARA A INOVAÇÃO : AÇÕES DO INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL - INPI NO ÂMBITO DA AGRICULTURA 125 R ITA P INHEIRO -M ACHADO 126 125 As opiniões expressas no texto são de responsabilidade da autora. Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho de 2008, Rio de Janeiro, Brasil. 126 Coordenadora Geral de Articulação Institucional e Difusão Regional ([email protected]). 1. I NTRODUÇÃO A institucionalização da ciência no Brasil teve início na década de 50 e se baseou na ideia da ciência como “fronteira sem fim”, em que todos os campos do conhecimento eram merecedores de financiamento, e todos os bons projetos deviam ser apoiados pelo governo. Na década de 70, a ciência como força produtiva e educação para formar pessoas qualificadas foram ideias incorporadas ao Programa de Metas e Bases do Governo (1970) como uma das doze conquistas essenciais a serem alcançadas. Isso deu grande impulso à ciência e permitiu ao Brasil dispor, hoje, de um parque científico que cobre grande parte das áreas do conhecimento. A partir da década de 80, o governo brasileiro esvaziou o programa oficial de financiamento à pesquisa, mas passou a fazer expressivos investimentos na formação de pessoal pós-graduado. Desde então, houve um aumento progressivo no total de bolsas de estudo concedidas no país, além de apoio crescente para o desenvolvimento da infraestrutura necessária aos cursos de pós-graduação credenciados – o que se distingue da estratégia utilizada por outros países em desenvolvimento, que enviam seus estudantes para centros de pesquisa estrangeiros. A Figura 1 mostra a evolução do número total de bolsas de estudo de mestrado e doutorado concedidas no país, no período de 1970 – 2009, indicando um forte crescimento tanto na formação de novos mestres quanto de novos doutores no país. Figura 1: Bolsas de mestrado e doutorado, 1970–2009. 45000 Total 40000 35000 30000 25000 Mestrado 20000 Doutorado 15000 10000 5000 0 1970 1975 Fonte: MCT, acesso setembro/10. 160 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 A Figura 2 apresenta a produção científica resultante dos investimentos governamentais realizados na área de ciência e tecnologia (C&T) em números absolutos (2A) e como percentual em relação a tudo o que é produzido anualmente no mundo e em comparação com a produção da América Latina (2B). O investimento realizado na pós-graduação traduziu-se em aumento da contribuição do Brasil em publicações técnicas e científicas em revistas indexadas. Em 1968, a participação brasileira na produção mundial representava apenas 0,015% (n = 53) do total publicado no ano (n = 364.723). Quatro décadas depois, passou para 2,63% (n = 30.415), um crescimento na participação de 175,3 vezes dentro do período (1968 - 2009), como mostra a Figura 2A. Esse crescimento ocorreu também como percentual do total produzido por países da América Latina (Figura 2B) que passou de 34,3% para 54,56% entre 1981 e 2008, um aumento de 59 vezes em 28 anos. Todo esse movimento tem relação direta com o investimento feito na pós-graduação e o consequente crescimento da comunidade científica, pois o aumento no número de pesquisadores ativos está relacionado com o total de recém-doutores que entram no sistema de C&T. Figura 2: (A) Total de publicações brasileiras em revistas indexadas e (B) Porcentagem das publicações brasileiras em relação ao total produzido no mundo e na América Latina, 1975–2009. 3.0 100 30000 27500 2.5 80 25000 % Mundial ( ) Total 20000 17500 15000 12500 2.0 60 1.5 40 1.0 10000 % América Latina ( ) 22500 7500 20 0.5 5000 2500 A 0 1975 1980 1985 1990 1995 Ano 2000 2005 2010 B 0.0 0 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 Ano Fonte: MCT, acesso setembro/2010. Esse conjunto de dados indica que, apesar dos períodos de instabilidade econômica, houve aumento dos recursos destinados ao treinamento de pessoal para C&T; além disso, apesar das flutuações nas verbas destinadas aos programas de pesquisa, o Brasil apresentava (e apresenta) uma ciência em processo de crescimento contínuo devido à 161 manutenção do programa de concessão de bolsas de estudo, principal componente da rubrica Ensino de Pós-Graduação. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta, como papel central das políticas públicas em ciência, tecnologia e inovação (C,T&I), alavancar o desenvolvimento econômico e social sustentável, por meio de investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), ampliação e qualificação de recursos humanos, aumento do capital social e recursos financeiros. Para tanto, as políticas públicas devem usar mecanismos diretos e indiretos, tais como promoção do capital de risco, juros baixos e redução de impostos, além de investimentos públicos na obtenção de ativos intangíveis (MCT/ABC). Nos anos 90, o cenário mudou drasticamente em relação à época em que o Brasil começou a caminhar no sentido de seu desenvolvimento científico e tecnológico. A política de abertura econômica e de inserção do país no mercado internacional modificou as condições de funcionamento da economia brasileira. Nesse novo ambiente, estruturaram-se programas de C&T voltados para fortalecer a competitividade do parque industrial do país. Apesar do contexto histórico de desbalanceamento nas ações de P&D e da falta de uma política integrada de desenvolvimento industrial e tecnológico, o Brasil sempre se posicionou pioneiramente na adoção de marcos reguladores de Propriedade Intelectual (PI), tendo sido um dos países a integrar o grupo de primeiros signatários da Convenção de Paris (1883). Entretanto, apenas em 1996 foi aprovada a atual Lei da Propriedade Industrial, em adequação a requisitos apresentados no Acordo TRIPS, bem antes do prazo máximo permitido pela atual OMC. Tais marcos legais apontam, principalmente, para duas situações: o tratamento isolado dado à matéria PI, desarticulado do contexto de esforços de desenvolvimento industrial e tecnológico; e a disponibilização de uma estrutura de base legal de “proteção”, não levando, necessariamente, a níveis elevados de inovação. Após mais de uma década de ausência de uma política industrial que propiciasse uma mudança no patamar competitivo da indústria nacional, o Governo Federal formulou e implementou, em 2004, a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior – PITCE, de longo prazo e direcionada para o futuro. A PITCE baseava-se em um conjunto articulado de medidas para fortalecer e expandir a base industrial por meio da melhoria da capacidade inovadora das empresas, tendo como objetivo o aumento da eficiência econômica e do desenvolvimento e a difusão de tecnologias com maior potencial de competição no comércio internacional. Ademais, foi aprovada a Lei de Inovação Tecnológica (Lei nº 10.973/2004), regulamentada pelo Decreto nº 5.563, de 2005. Com essas iniciativas, o governo brasileiro apresentou um conjunto de medidas para promover o desenvolvimento produtivo que geraram avanços, tais como: 162 • • • Fortalecimento do diálogo entre o setor público e o privado, com a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial – CNDI e da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI; Melhoramento no âmbito dos processos relacionados ao registro de propriedade industrial, por meio da reestruturação do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI; Criação de programas de financiamento específicos para setores estratégicos, como o de fármacos e de software. Entretanto, para além das conquistas já alcançadas pela PITCE, o momento atual da economia brasileira demanda apoio amplo e firme à formação de capital e à inovação, visando a sustentabilidade do crescimento em longo prazo. Para dar continuidade ao processo de desenvolvimento industrial, tornou-se necessário conferir potência à política industrial, ampliando sua abrangência, aprofundando as ações iniciadas e consolidando a capacidade de implementar e avaliar políticas públicas. É exatamente isso o que pretende a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), lançada em maio de 2008. A seguir, trataremos do INPI dentro do atual contexto de políticas públicas. 2. O INPI E O CONTEXTO NACIONAL O INPI é uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), responsável pela concessão de patentes de invenção e modelo de utilidade e por registros de marcas, programas de computador, topografia de circuitos, desenho industrial e indicações geográficas, além de averbação de contratos de transferência de tecnologia e de franquia empresarial, de acordo com a Lei da Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96) e da Lei de Software (Lei nº 9.609/98). Foi criado em dezembro de 1970, pela Lei nº 5.648, em uma época marcada pelo esforço de industrialização do país, pautando sua atuação em uma postura cartorial, limitando-se à concessão de ativos intangíveis e controlando a importação de novas tecnologias. Com as mudanças trazidas pela PITCE e com a modernização do país, o INPI foi reestruturado, a partir de 2004, com o objetivo de promover o uso do sistema como instrumento de capacitação e competitividade, condições fundamentais para alavancar o desenvolvimento tecnológico e econômico do país. A reestruturação envolveu a modernização tanto dos processos administrativos quanto das áreas fins, em especial as relacionadas às marcas e patentes. Ademais, foi criada, no mesmo ano, a Diretoria de Articulação e Informação Tecnológica (DART), que aprimorou a comunicação entre o Instituto e a sociedade, facilitando o acesso às informações tecnológicas disponíveis no INPI e disseminando a cultura da PI. No que tange 163 à cooperação institucional, o Instituto procura consolidar os laços com as instituições do Sistema Nacional de Inovação - associações empresariais, federações, universidades e agências de desenvolvimento, buscando a efetiva participação das empresas e universidades brasileiras nos programas de capacitação relacionados ao tema. Dentro desse novo contexto, a tímida participação dos principais atores nacionais de inovação no uso do sistema de PI apresenta-se como um reflexo da incapacidade de se criar um Sistema de Inovação equilibrado e eficiente. Do total de depósitos de patentes realizados no Brasil, uma média de 30% provêm de residentes, enquanto que, do total de concessões, apenas 20% destinam-se a estes. Ademais, 75% desses depósitos são feitos por pessoa física, fato que aponta para uma infraestrutura de inovação imatura. Somado à falta de procura dos atores residentes pelos mecanismos de proteção, ocorre o baixo uso da informação tecnológica disponível no INPI, e que se encontra nos bancos de patentes. Estes oferecem oportunidades estratégicas, tais como: 1) tecnologias que já estão em domínio público e podem ser usadas livremente; 2) tecnologias patenteadas em outros países que não foram depositadas no Brasil; 3) uso da informação para pesquisa; 4) uso da informação para monitorar a concorrência e apontar melhores rotas tecnológicas; e 5) uso da informação para estudos de prospecção tecnológica; entre outras. As ações que o INPI vem desempenhando se revestem de caráter estratégico no contexto das políticas de desenvolvimento. Para o que se quer ressaltar aqui, importa a criação de unidades no INPI voltadas à pesquisa e à educação, em particular, a criação da Coordenação de Pesquisa e Educação em Propriedade Intelectual, Inovação e Desenvolvimento (COPEPI), subordinada à DART, e que desde 2006 vem executando atividades de cunho acadêmico. Devido à sua missão de formar e treinar recursos humanos, a COPEPI vem realizando estudos e pesquisas sobre PI envolvendo universidades e outras instituições públicas e privadas. Desse modo, ela passa a desempenhar um papel ativo na articulação do Instituto com os demais agentes que compõem o Sistema Nacional de Inovação brasileiro, e firma a imagem deste como instituição produtora e disseminadora de conhecimentos em PI. A outra iniciativa do INPI é o Mestrado Profissional em PI e Inovação, que visa formar recursos humanos em nível de pós-graduação. Assim, espera-se vencer o desafio da disseminação da cultura da PI, por um lado, inserindo o tema nas grades curriculares das graduações e pós-graduações do sistema educacional brasileiro, priorizando uma abordagem multidisciplinar ao invés da tradicional abordagem jurídica à qual o tema tem sido relegado; por outro, oferecendo serviços educacionais pautados em uma qualificada apresentação do sistema de PI e de sua importância no mundo atual. Dentro desse enfoque, serão destacadas, a seguir, as ações desenvolvidas pelo Instituto desde 2005. 164 3. AÇÕES DO INPI: DISSEMINAÇÃO E CAPACITAÇÃO EM PI Tendo em vista o contexto da política governamental, que tem incentivado a promoção da inovação e do desenvolvimento tecnológico, vem crescendo o número de instituições públicas e privadas que se mostram interessadas em capacitar seus gestores, técnicos e pesquisadores no uso de mecanismos de proteção de PI, bem como no acesso e uso estratégico das informações contidas em bancos de patentes. Para enfrentar a grande demanda existente, o INPI, por intermédio da DART, vem estabelecendo, desde 2005, inúmeras parcerias, objetivando a disseminação e a capacitação em PI de agentes do Sistema Nacional de Inovação. Dessa forma, cursos para gestores de tecnologia vêm sendo articulados e realizados pela DART, totalizando 3.731 pessoas capacitadas nas cinco macrorregiões do país, alcançando 20 Estados, além do Distrito Federal. A Tabela 1 mostra o total dos cursos e oficinas realizados entre janeiro de 2005 e dezembro de 2008, divididos por região do país. Tabela 1: Cursos e oficinas de Propriedade Intelectual realizados entre janeiro de 2005 e dezembro de 2008, divididos por macrorregião do país. Região Total de cursos Pessoas capacitadas NORTE 10 221 CENTRO-OESTE 16 507 SUL 20 789 NORDESTE 25 784 SUDESTE 48 1.430 TOTAL 119 3.731 Fonte: INPI Atividades como a identificação de conhecimentos passíveis de patenteamento, o estabelecimento de acordos de licenciamento com o setor industrial, o apoio aos pesquisadores, a utilização da PI como fator estratégico para o aumento de valor agregado, a diferenciação competitiva e a entrada de royalties demandam a formação de expertise específica e complexa por parte dos gestores, envolvendo desafios nos campos da proteção de intangíveis, da negociação e estabelecimento de contratos, da valoração do intangível e da colocação das invenções no mercado. A realização de ações a cargo de profissionais com as habilidades acima referidas apresenta-se como fator importante para desempenhos satisfatórios por parte das diversas instituições que compõem o sistema de inovação brasileiro. Nesse contexto, apresenta165 se como medida importante a capacitação e o estabelecimento de metodologias que venham a dar o suporte necessário às unidades de apoio à gestão da PI. Com o intuito de capacitar os funcionários de Instituições Parceiras que tratam com Propriedade Intelectual, o INPI vem firmando Acordos de Cooperação que possibilitam, por exemplo, um programa de qualificação para que noções de PI sejam inseridas tanto no suporte a ser dado aos usuários do sistema, quanto no contexto da avaliação de financiamentos de tecnologia. Essa iniciativa foi estruturada com diversas instituições parceiras, como a Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP e a Petróleo Brasileiro S.A. – PETROBRAS, entre outras. No caso do setor de agropecuária, o INPI firmou Acordos de Cooperação com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA e com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa. O modelo de atendimento previu cursos voltados especificamente para os funcionários, visando mostrar a importância do uso estratégico do sistema de PI, os retornos que a proteção dos intangíveis pode trazer e a apresentação de casos de sucesso. A Tabela 2 mostra a capacitação de funcionários realizada entre 2005 e 2007, quando foram treinadas 135 pessoas ligadas ao dito setor. Tabela 2 – Capacitação de funcionários do setor de agroindústria, distribuídos por ano de realização (janeiro de 2005 a dezembro de 2007). Cursos 2005 Cursos 2006 Cursos 2007 Total de horas Pessoas - - 4 120 92 MAPA 10 9 - 440 43 Total 10 9 4 560 135 Instituição Parceira Embrapa Fonte: INPI 3.1. M INISTÉRIO DA AGRICULTURA , PECUÁRIA E ABASTECIMENTO – MAPA O Ministério tem como missão estimular o aumento da produção agropecuária e o desenvolvimento do agronegócio, para atender ao consumo interno e formar excedentes para exportação. Essa é a missão institucional que tem como consequência a geração de emprego e renda, a promoção da segurança alimentar, a inclusão social e a redução das desigualdades sociais. Para tanto, o MAPA formula e executa políticas para o desenvolvimento do setor, atuando na busca da sanidade animal e vegetal, na organização da cadeia produtiva do agronegócio, na modernização da política agrícola, no incentivo às exportações e no uso sustentável dos recursos naturais. 166 No que concerne aos ativos intangíveis, o MAPA tem ligação direta com: 1) A proteção de cultivares cuja primeira legislação, promulgada em 25 de abril de 1997, garantiu os direitos de obtentores de novas variedades de plantas (Lei nº 9.456, regulamentada pelo Decreto nº 2.366, de 5 de novembro de 1997) e criou, no Ministério, o Serviço Nacional de Proteção de Cultivares - SNPC, que tem como competência a proteção de cultivares no país. 2) O incentivo às Indicações Geográficas (IG), por meio da Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo/Departamento de Propriedade Intelectual e Tecnologia da Agropecuária (DEPTA), cujas atribuições norteiam ações que visam apoiar o desenvolvimento de estudos subsidiários e instrumentos de parcerias quanto ao reconhecimento de IG de produtos agropecuários. Dentro dessa perspectiva, o INPI firmou, em 2005, um primeiro acordo com o MAPA objetivando a cooperação técnica, mediante a reunião de esforços visando à implementação de atividades conjuntas na área de competência institucional e de conhecimento específico de cada partícipe, com ações voltadas à disseminação da cultura da PI. No âmbito do acordo citado, os agentes das Superintendências Estaduais do Ministério foram distribuídos pelos cursos para Gestores de Tecnologia, organizados pelo INPI em cidades próximas aos seus respectivos estados (ver Tabela 2). Além disso, foram realizados eventos para promoção de IG em Florianópolis/SC e em Salinas/MG, com a participação de 122 pessoas (Tabela 3). Tabela 3 – Eventos promovidos pelo INPI e pelo MAPA em parceria, no âmbito do primeiro Acordo de Cooperação (vigência: dezembro de 2005 a novembro de 2007). Eventos Cidade/Local Participantes 1. Oficina de Indicações Geográficas Florianópolis - SC 70 2. Seminário de lançamento da Indicação Geográfica Cachaça de Salinas Salinas - MG 52 Total de participantes nos eventos 122 Fonte: INPI, 2008. Atualmente, o INPI está articulando um novo acordo com o Ministério para ampliar a ação conjunta, apresentando as seguintes ações no plano de trabalho do referido acordo: 167 1. 2. 3. 4. 5. 6. Disponibilizar informações sobre o estágio de desenvolvimento da tecnologia agropecuária, promovendo a disseminação da cultura de PI e da inovação no setor do agronegócio; Capacitar técnicos, pesquisadores, empresários e produtores rurais em temas afetos aos participantes, com vistas a apoiar a implementação da Lei de Inovação; Fomentar o uso do sistema de PI e a inovação tecnológica no setor do agronegócio; Estimular a transferência de tecnologia e o uso do sistema de PI e da inovação tecnológica no setor agropecuário; Disseminar e fomentar a proteção de IG de produtos agropecuários; Promover estudos, diagnósticos e pesquisas em temas que envolvam o setor dentro do Observatório Tecnológico. 3.2. EMPRESA B RASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA - E MBRAPA A Embrapa foi criada em 26 de abril de 1973, e é uma empresa pública de direito privado, vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Sua missão é viabilizar soluções para o desenvolvimento sustentável do agronegócio por meio da geração, adaptação e transferência de conhecimentos e tecnologias, em benefício da sociedade. É considerada a maior e mais importante instituição de pesquisa agropecuária do país, sendo que, na esfera internacional, destaca-se como o principal centro de tecnologia agropecuária tropical do mundo. A Embrapa atua por intermédio de 38 Unidades de Pesquisa, três Unidades de Serviços e 13 Unidades Administrativas, desenvolvendo atividades em quase todos os estados da Federação. Está sob a sua coordenação o Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária - SNPA, constituído por instituições públicas federais e estaduais, universidades, empresas privadas e fundações, que, de forma cooperada, executam pesquisas nas diferentes áreas geográficas e campos do conhecimento científico. Para tornar-se uma das maiores instituições de pesquisa do mundo tropical, a Empresa investiu sobretudo em recursos humanos, possuindo atualmente 8.155 funcionários, dos quais 2.097 são pesquisadores (25% com mestrado e 66% com doutorado), operando um orçamento da ordem de R$ 1 bilhão. As tecnologias geradas pela Embrapa têm permitido a substituição de fertilizantes químicos por processos biológicos e a substituição de agrotóxicos por controle biológico. A inovação tecnológica contribui para o desenvolvimento econômico e social do país, uma vez que permite a otimização dos recursos, podendo modificar a estrutura produtiva e acelerar o crescimento. No que concerne às empresas, a inovação impacta o processo produtivo em seus aspectos econômicos, financeiros e gerenciais e 168 proporciona o aumento da competitividade. A tecnologia é um ativo econômico que, na Era do Conhecimento, apresenta-se como fator determinante de ganhos. Nesse contexto, a Propriedade Intelectual deve servir como um instrumento importante para a inovação tecnológica. Não obstante o relevante valor estratégico da PI, entidades nacionais geradoras de conhecimento desconhecem os benefícios relativos ao tema e, por conseguinte, a participação de nacionais no sistema de propriedade intelectual é proporcionalmente inferior ao potencial inventivo dos atores nacionais. No contexto da nova política industrial, os desafios concentram-se no aumento da inovatividade, no porte e investimento em P&D pelas empresas brasileiras. Dentre as linhas de ação dessa política, estão: a inovação e o desenvolvimento tecnológico, a modernização industrial, a capacidade e escala produtiva e a inserção internacional. Diante disso, torna-se necessário o estabelecimento de iniciativas que estimulem a participação de um número crescente de atores em atividades inovadoras, ao mesmo tempo em que se criem condições para que instituições de C&T implementem unidades de gerenciamento de tecnologia com foco especial em PI. Além disso, é importante que seja difundido o conhecimento acerca da Propriedade Intelectual e da transferência de tecnologia. Nesse novo contexto político, é de suma importância o fomento e o entendimento do sistema de propriedade industrial, seus marcos legais e seus mecanismos, no âmbito dos atores inovadores. Torna-se, portanto, de fundamental importância a capacitação dos funcionários da Embrapa, tanto para estratégias de proteção de PI quanto para o uso da informação tecnológica contida em patentes, que servem para subsidiar decisões de fomento à inovação. Nesse sentido, a Embrapa e o INPI convergiram seus interesses para disseminar o uso e o entendimento do sistema de PI, viabilizando ações de capacitação do corpo técnico da empresa. Isso foi feito por meio de um Acordo de Cooperação assinado em 2007, com vigência até 2010. As atividades já realizadas se encontram na Tabela 4. 169 Tabela 4 – Eventos promovidos pelo INPI e Embrapa em parceria no âmbito do primeiro Acordo de Cooperação (vigência: maio de 2007 a abril de 2010). Eventos Cidade/Local Participantes 1. Seminário de Sensibilização Distrito Federal - DF 193 – participação presencial 86 – por teleconferência 2. Curso Básico de Propriedade Intelectual Distrito Federal - DF 29 3. Curso Intermediário de Propriedade Intelectual Distrito Federal - DF 31 4. Curso Básico de Propriedade Intelectual São Paulo - SP 38 5. Curso Intermediário de Propriedade Intelectual São Paulo - SP 39 Fonte: INPI, 2008. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Brasil fez importantes investimentos para gerar uma capacidade científica que repercute expressivamente na produção científica mundial (2,0% do total mundial, em 2008). Entretanto, o sistema de PI não é utilizado adequadamente, mostrando que a carência está no conhecimento sobre o sistema. O Brasil se assemelha a outros países com sistema de inovação imaturo e comunidade científica estabelecida, mas que não conseguem estabelecer o link entre o conhecimento produzido e as inovações desenvolvidas no âmbito das empresas, universidades e centros de pesquisa. O papel do INPI, nesse aspecto, é fundamental para que possamos reverter o quadro atual e aumentar o número de nacionais utilizando o sistema em vigor, conforme determina a Política de Desenvolvimento Produtivo. No âmbito do Mestrado Profissional em Propriedade Intelectual e Inovação, linhas de pesquisa e disciplinas são direcionadas justamente para o estudo e reflexão em temas afetos ao agronegócio, como biocombustíveis e energias renováveis, além do estudo sobre as formas de proteção dentro de indústrias importantes, como a de canade-açúcar e soja, entre outros aspectos relevantes. O INPI, dessa forma, procura criar massa crítica para refletir temas importantes ligados ao sistema de PI e ao uso eficiente deste para o desenvolvimento tecnológico sustentável do país. 170 R EFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento: home page]. Disponível em: < http:// www.agricultura.gov.br/>. Acesso em: 2 jun. 2008. BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Informações aos usuários do SNPC. Disponível em: < http://www.agricultura.gov.br/pls/portal/ docs/PAGE/MAPA/SERVICOS/CULTIVARES/PROTECAO/MENU_LATERAL_PROTECAO/ INFORMA%C7%D5ES%20AOS%20USU%C1RIOS%20DO%20SNPC.PDF. Acesso em: 2 jun. 2008. BRASIL. Ministério da Ciência e da Tecnologia; ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS. Ciência, tecnologia e inovação: desafio para a sociedade brasileira - Livro Verde. Brasília, DF, 2001. 278 p. Coordenação: Cylon Gonçalves da Silva e Lúcia Carvalho Pinto de Melo. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Desenvolvimento produtivo: desafios. Disponível em: < http://www. desenvolvimento.gov.br/pdp/index.php/politica/desenvolvimentoProdutivo/ desafios>. Acesso em: 2 jun. 2008. EMBRAPA. [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária: home page]. Disponível em: <http://www.embrapa.br/a_embrapa/atuacao>. Acesso em: 2 jun. 2008. GUIMARÃES, R. FNDCT: uma nova missão. In: CIÊNCIA E TECNOLOGIA NO BRASIL: uma nova política para um mundo global. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / Escola de Administração de Empresas, 1993. SALLES-FILHO, S. (Org.). Ciência, tecnologia e inovação: a reorganização da pesquisa pública no Brasil. Campinas: Komedi, 2000. 416 p. TEITEL, S. Patents, R&D, country size and per-capita income: an international comparison. Scientometrics, Amsterdam, v. 29, n. 1, p. 137-159, 1994. 171 CAPÍTULO R EGIMES 9 TECNOLÓGICOS E PROPRIEDADE INTELECTUAL NA AGRICULTURA : O PAPEL DAS NOVAS INSTITUIÇÕES 127 ANA CÉLIA CASTRO 128, S ERGIO PAULINO DE CARVALHO129 E M ARCOS FUCK 130 127 Artigo que fundamenta a palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho de 2008, Rio de Janeiro, Brasil. 128 Professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. 129 Coordenador Geral de Articulação Institucional do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, INPI. 130 Professor Adjunto da Universidade Federal do ABC. 1. I NTRODUÇÃO O presente trabalho apresenta alguns dos principais elementos que estão afetando o processo de inovação nas atividades de melhoramento vegetal no Brasil. Notadamente a partir da segunda metade dos anos noventa, profundas transformações tecnológicas e institucionais impactaram a estrutura do mercado brasileiro de sementes e as estratégias dos principais agentes, públicos e privados, envolvidos nas atividades de pesquisa e comercialização desses materiais. Pretende-se contextualizar essas questões a partir da análise do processo de catching up do sistema brasileiro de pesquisa agrícola. Grosso modo, esse processo pode ser dividido em duas grandes fases. A primeira estaria concentrada no período que se estende do final dos anos 1940 até o final dos anos 1980, enquanto a segunda poderia ser datada de meados dos anos 1990 até o presente, e ainda se encontra em pleno curso. Dessa forma, o artigo pretende tratar da segunda fase do catching up do sistema brasileiro de pesquisa agrícola, com especial atenção às implicações da biotecnologia e da propriedade intelectual nas articulações entre alguns dos principais atores participantes dessa nova fase das pesquisas em melhoramento vegetal. 2. R EGIMES TECNOLÓGICOS E INSTITUIÇÕES A transformação produtiva do sistema de pesquisa agrícola no Brasil - que sugerimos dividir, para efeitos de análise, em duas grandes fases - faz parte de um processo mais amplo ocorrido na economia brasileira131, caracterizado como de emparelhamento tecnológico com países da fronteira do conhecimento agroindustrial. Mais do que isso, as origens desse processo na agricultura até mesmo pareciam coincidir com o ponto de partida dos processos que aconteciam na indústria, a partir da segunda metade dos anos 1940. Essa primeira fase de transformação produtiva está ainda assentada no chamado paradigma da Revolução Verde, cuja base é, de forma muito simplificada, a introdução de sementes de alto rendimento (em muitos casos sementes de híbridos) e de todo o pacote tecnológico que as acompanha - fertilizantes, defensivos, máquinas, equipamentos e irrigação. Do ponto de vista institucional, por outro lado, a difusão desse paradigma exigiu a montagem de um sólido sistema de pesquisa agropecuária132, constituído 131 O autor que assumidamente introduziu essa temática e interpretou o desenvolvimento industrial brasileiro como um processo de catching up foi Antonio Barros de Castro. O artigo “Renegade Development: Rise and Demise of State-led Development in Brazil”, in Smith, W. et all (Organizer), Miami: Transaction Publishers, 1993, é o ponto de partida de uma rica reflexão que se desdobra em outros trabalhos do mesmo autor. 132 O Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária teve suas bases nos Institutos Estaduais de Pesquisa (como o Instituto Agronômico de Campinas, o do Paraná e o de Pernambuco) que pré-existiam antes da constituição da Embrapa, em 1973. 174 basicamente de instituições públicas de pesquisa, articulado à assistência técnica e à extensão rural, sendo a extensão rural também de base pública (federal, estadual e municipal) e amparado por instrumentos de crédito ao produtor e à comercialização dos produtos. Esse tipo de desenvolvimento, que tendeu a ocorrer de forma bastante similar em países muito distintos, estava inserido em uma conjuntura marcada pela fome e escassez de alimentos, que acompanhou o período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, e correspondia a uma visão compatível com o desenvolvimentismo, baseada na ideia chave do aumento da produtividade agrícola com transferência de mão de obra do campo para as cidades. Pela ótica de regimes tecnológicos, poderíamos então dividir a transformação produtiva do sistema de pesquisa agrícola brasileiro em duas grandes fases, ou dois regimes tecnológicos. A primeira concentrar-se-ia no período que se estendeu do final dos anos 1940 até o final dos anos 1980, associada ao paradigma da Revolução Verde, enquanto a segunda poderia ser datada de meados dos anos 1990 até o presente, e ainda se encontra em pleno curso. Entende-se como emparelhamento ou equiparação tecnológica ao “estado das artes” internacional um processo que tende a ocorrer de forma concentrada em um período de tempo determinado, acompanhado de taxas expressivas de crescimento da economia, com elevação da produtividade e da competitividade internacional de setores e empresas. Entretanto, o consenso que emergiu da literatura consagrada (“clássica”) sobre os processos de emparelhamento tecnológico encontra-se presentemente em evolução, especialmente a partir dos resultados das pesquisas em curso na rede liderada pelos professores Richard Nelson e Franco Malerba (NELSON; MALERBA, 2008)133. A contínua aceleração da inovação tecnológica na última década, no plano internacional, especialmente nos campos da biotecnologia e das tecnologias de informação, com inegáveis impactos sobre o “agronegócio”, entre outros setores da economia, tem deslocado a fronteira tecnológica setorial. Na realidade, sugerimos que o regime tecnológico “baseado em ciência de segunda geração”, basicamente as novas biotecnologias (CORIAT; ORSI; WEINSTEIN, 2002), fecundou o sistema agroalimentar e transformou as instituições constitutivas do regime tecnológico da Revolução Verde. Nesse sentido, os regimes tecnológicos possuem uma dimensão dinâmica, e devem ter em conta o conjunto daquelas instituições constitutivas e de suas relações intersetoriais ou sistêmicas, ou seja, devem considerar a articulação do sistema agroalimentar em seu conjunto. 133 A rede PASTAS, liderada por Franco Malerba, propõe-se a estudar a dimensão setorial dos processos de catching up em uma perspectiva comparativa entre países. Os setores da rede são, em inglês: “pharmaceuticals, automobiles, software, telecomunication, agrifood and semiconductors”. Os países que fazem parte da perspectiva comparativa são, no caso do agronegócio, Brasil, China, Costa Rica, Nigéria e Vietnã. 175 Dessa forma, predominaram, no primeiro regime tecnológico, as instituições constitutivas da Revolução Verde (o já mencionado tripé pesquisa-extensão-crédito rural), difusoras de uma tecnologia intensiva em energia, insumos e máquinas. Na segunda fase, maior atenção é dada às questões de qualidade, “grades and standards” e requisitos de desenvolvimento sustentável. O objetivo passa a ser capturar o valor intangível incorporado nos produtos. Isso ocorre por meio das patentes, registro de cultivares, indicações geográficas e conhecimentos tradicionais, que são os alicerces da vantagem competitiva social e institucionalmente construída nos novos mercados. Esse novo modelo não é compatível com o anterior. Verifica-se a formação de um novo regime tecnológico baseado em novas tecnologias, como a biotecnologia, que não é compatível com as instituições anteriores. A assistência técnica, por exemplo, sofre profundas transformações, com o modelo tradicional fragmentando-se cada vez mais a partir dos anos noventa. As empresas fornecedoras de insumos químicos e biológicos passam a incorporar a assistência técnica. Além disso, o fortalecimento das instituições ligadas aos produtores rurais e os novos arranjos entre elas e as instituições públicas de pesquisa (principalmente a Embrapa, no caso brasileiro) passam a dar uma nova tônica ao processo de pesquisa e transferência de tecnologia agropecuária, configurando um novo modelo de assistência técnica. Ou seja, a mudança entre os dois períodos de catching up diz respeito não só ao conjunto das instituições, mas também às articulações entre elas. Enfatiza-se, portanto, neste trabalho, que o novo regime tecnológico do sistema de pesquisa agrícola brasileiro, baseado em ciência de segunda geração, tem outro arcabouço institucional distintivo. Esse arcabouço tem semelhanças com o que é descrito na literatura sobre o regime baseado em ciência de segunda geração, mas guarda também singularidades e especificidades nacionais. Entre elas, a presença da Embrapa, por meio da política de proteção de seus ativos intelectuais e de articulação com os demais atores participantes do processo de pesquisa e comercialização de cultivares, talvez seja a mais importante. É disso que tratam os itens a seguir. Antes, porém, interessante é observar o contexto de evolução da produção e da produtividade da agricultura nacional, embasada não somente na expansão da fronteira agrícola e do crédito rural, mas na incorporação de novas tecnologias e inovações no campo, exigindose, assim, um tratamento diferente de temas até então consolidados no mainstream e mesmo a incorporação de discussões que pouco faziam parte desse campo de estudo - como as interações entre os setores públicos e privados (especialmente no tocante ao desenvolvimento da pesquisa e da inovação) e, consequentemente, da repartição dos riscos e dos benefícios aí envolvidos. 176 3. MUDANÇA DA BASE TÉCNICA NOS ANOS NOVENTA A aceleração do crescimento da produção e da produtividade agrícola pode ser avaliada a partir dos dados que a seguir são apresentados, em que é visível a mudança na inclinação da curva (para cima) a partir dos anos 90. Como aponta o Gráfico 1, nas últimas três décadas a produção nacional cresceu de forma expressiva. A estimativa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) é de que, na safra 2008/09, a produção brasileira de grãos tenha alcançado 134,3 milhões de toneladas. Devido a problemas climáticos, houve recuo em relação à safra anterior, que havia sido de 144,1 milhões de toneladas, o maior volume já colhido no país. Se a análise é feita por cultura, notadamente sobre as cinco principais (soja, milho, arroz, feijão e trigo), observa-se que a soja e o milho contribuíram significativamente para essa evolução, enquanto o arroz e o feijão mantiveram um comportamento relativamente estável nas últimas décadas e o trigo oscilou em função da falta de incentivos específicos, entre outras razões. Como dito, na última safra houve recuo na produção nacional de grãos devido às condições climáticas adversas - estiagem nos estados da região Sul e Centro-Oeste, o que reduziu a produtividade de algumas lavouras, principalmente as de milho e soja. A redução na produção nacional na última safra é explicada também pela redução na área plantada com milho, em função dos preços de mercado considerados pouco atrativos pelos produtores e também pela estiagem, a qual impediu o próprio plantio deste em algumas áreas. Pela previsão da Conab, a soma das produções de soja e milho deve representar aproximadamente 80% da produção nacional de grãos. Esse número comprova a importância das duas culturas no agronegócio brasileiro. Com base nas expectativas com relação às próximas colheitas, a tendência é que a participação da soja e do milho na produção brasileira continue expressiva. em mil toneladas Gráfico 1. Evolução da produção brasileira de arroz, feijão, trigo, milho e soja, da colheita de 1976/77 à de 2008/09. *** ARROZ Fonte: Conab FEIJÃO MILHO ** SOJA TRIGO TOTAL 177 O aumento da produção brasileira de grãos, ainda que tenha se beneficiado pelo incremento da área plantada, deve-se, principalmente, ao aumento expressivo da produtividade, verificado ao longo das últimas décadas. A incorporação progressiva de novas áreas para a agricultura permitiu que se chegasse a uma área de 49 milhões de hectares cultivados com grãos no Brasil, na safra 2004/05. Na última safra, a área ficou em 47,7 milhões de hectares, a terceira maior área já cultivada no país. A ampliação da produtividade das plantações se deve, entre outros fatores, aos investimentos em pesquisa e desenvolvimento dirigidos à agricultura. Parte expressiva do aumento de produtividade “dentro da porteira” deve ser consagrada às instituições públicas e privadas de pesquisa dirigidas à agricultura, principalmente nos últimos anos, em que as investigações realizadas por essas instituições tiveram um papel central, possibilitando uma importante articulação entre as diferentes fontes de dinamismo tecnológico da agricultura (POSSAS et al., 1996). Conforme aponta o Gráfico 2, os números da Conab apontam para uma produtividade média nacional acima de 3 mil quilos por hectare na safra 2007/08. Mesmo com os problemas climáticos, a produtividade média nacional ficou em 2,8 mil toneladas por hectare na safra 2008/09. 60.000 3.500 50.000 3.000 2.500 40.000 2.000 30.000 1.500 20.000 1.000 10.000 Área Fonte: Conab 178 Produtividade 2008/09 2006/07 2004/05 2002/03 2000/01 1998/99 1996/97 1994/95 1992/93 1990/91 1988/89 1986/87 1984/85 1982/83 1980/81 1978/79 500 1976/77 0 - em quilos por hectare em mil hectares Gráfico 2. A evolução da área e da produtividade dos principais grãos cultivados no Brasil, nas colheitas de 1976/77 a 2008/09 4. O SISTEMA DE PROTEÇÃO DE CULTIVARES E DE INOVAÇÕES DA BIOTECNOLOGIA VEGETAL NO B RASIL Como apontado acima, a proteção à propriedade intelectual é um elemento central no novo regime tecnológico que vem sendo construído. Assim como ocorreu em outros setores, o potencial de maior apropriabilidade do esforço inovativo, na agricultura, atraiu maiores investimentos, notadamente das grandes empresas, e abriu novas oportunidades de articulações. Conforme discutido em Fuck & et al. (2007), o Brasil adotou como norma de proteção de sementes e mudas o sistema sui generis, referenciado pela União para a Proteção de Obtenções Vegetais (UPOV). A Lei de Proteção de Cultivares (LPC), de 1997, foi formulada agregando pontos das Atas da UPOV que foram considerados estratégicos para o país, como o reconhecimento dos direitos dos titulares de variedades que sejam utilizadas como fonte de variação para a obtenção de novas variedades (as variedades essencialmente derivadas); a consideração de que a proteção de cultivares é a única forma de proteção jurídica das inovações em plantas; a proibição da dupla proteção (que é a proteção simultânea por patentes e por registro de proteção de cultivares), entre outros aspectos. Como dito pelos mesmos autores, na prática, além da LPC, os obtentores/ melhoristas podem utilizar a legislação brasileira de propriedade industrial como forma de proteção à propriedade intelectual nas atividades de melhoramento vegetal (exceto patentes de plantas, o que não está previsto na legislação), embora essa legislação restrinja a proteção de genes e organismos geneticamente modificados (SALLES-FILHO et al., 2007). Essa restrição está expressa de duas formas na legislação: 1. 2. Ao não considerar como invenção ou modelo de utilidade do todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza ou dela isolados, incluindo, de forma expressa, o genoma ou germoplasma de qualquer natureza e os processos naturais (Art. 10, inciso IX); Ao não considerar como matéria patenteável o todo ou parte dos seres vivos, exceto os organismos geneticamente modificados para fins transgênicos que contemplem as exigências de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial (Art. 18). O parágrafo único desse artigo explicita que são considerados patenteáveis os micro-organismos transgênicos que tenham sofrido intervenção humana direta e cujas características não se encontrem na espécie em condições naturais. Com a formação de um novo ambiente institucional (a legislação de propriedade industrial também é da segunda metade dos anos noventa), novas formas de articulação 179 passaram a ser verificadas entre os principais atores participantes do processo de pesquisa e de comercialização de sementes. A Embrapa, a principal instituição de pesquisa agropecuária brasileira, passou a valorizar mais seus ativos, principalmente seus bancos de germoplasma, com o amparo da legislação nacional de propriedade intelectual e também a partir de políticas internas relacionadas às articulações com seus parceiros. 5. A POLÍTICA DE PROPRIEDADE INTELECTUAL DA E MBRAPA Com base em uma sólida estrutura de pesquisa, a Embrapa desenvolve diversas tecnologias aplicadas às atividades agrícolas. Para que essas tecnologias se tornem efetivamente disponíveis aos produtores rurais, a Embrapa faz parcerias com outros atores, públicos e privados, que estejam mais próximos aos produtores, como as empresas produtoras de sementes. A Embrapa adotou, em 1996, a Política Institucional para a Gestão da Propriedade Intelectual, segundo a qual a Instituição procura ativamente a proteção legal dos resultados de suas pesquisas e maximiza o uso de direitos de propriedade intelectual mediante a licença de processos e produtos, sem comprometer sua missão social. Essa Política passou a ser o principal marco regulador a sinalizar o relacionamento da Embrapa com seus parceiros externos. Em 2000, a Embrapa estabeleceu normas de observância obrigatória no conjunto de suas unidades de pesquisa, alinhadas aos princípios destacados na Política, que passaram a regular o seu relacionamento com seus parceiros públicos e privados. Nos quatro anos seguintes, muitas normas foram aprovadas, visando regular a transferência de tecnologias ao setor privado e “evitar a armadilha do favorecimento a empresas ou grupos de empresas” (CUNHA; BOTELHO FILHO, 2007, p. 4). Atualmente, a Embrapa possui 14 escritórios que coordenam a transferência de tecnologia para empresas do setor agropecuário em diferentes regiões do país (TAKAKI et al., 2008). A parceria da Embrapa com o setor privado é fortemente monitorada, segundo Carvalho et al. (2007). Isso porque a Embrapa editou normas estabelecendo que os parceiros envolvidos em programas de melhoramento genético por ela conduzidos não podem possuir programas próprios de pesquisa nessa área ou trabalhar em conjunto com organizações que tenham esses programas. A Embrapa também passou a não admitir a cotitularidade com parceiros privados. Essa postura foi importante em um momento em que as grandes empresas transnacionais estavam avançando no mercado brasileiro, a partir da aquisição de importantes empresas sementeiras nacionais. A partir dessa posição, a Embrapa teve maior controle sobre seu banco de germoplasma134. 134 Germoplasma, segundo Wilkinson & Castelli (2000), “é o conjunto de genes encontrados em uma população ou, de forma mais ampla, em um conjunto de populações”. 180 Outro acontecimento importante, ocorrido no período, diz respeito ao rompimento da parceria existente entre a Embrapa e a Fundação Mato Grosso. A Fundação Mato Grosso não aceitou se enquadrar na nova regulamentação imposta pela Embrapa quanto à titularidade e a divisão dos royalties e, em consequência dessas novas regras, decidiu criar seu próprio programa de melhoramento genético de soja e algodão (DE CARLI, 2005). Assim, se por um lado a política da Embrapa favorece as articulações com as fundações de produtores que não possuem programas próprios de pesquisa, por outro lado as parcerias com instituições de maior porte ficaram comprometidas. No geral, a Embrapa realiza parcerias com o setor privado nas fases finais de pesquisa e na colocação das tecnologias no mercado. Os acordos estabelecem que o parceiro privado aporte recursos na pesquisa e, em contrapartida, receba o direito de ser licenciado de forma exclusiva para explorar esses materiais. Essa exclusividade é relativa, na medida em que os parceiros em questão são as fundações de produtores de sementes, o que aumenta a amplitude de absorção dessa tecnologia (TEIXEIRA, 2008). A única forma de garantir a exclusividade ao parceiro privado é a proteção intelectual. De outra forma, a Embrapa não teria como garantir a exclusividade na utilização da cultivar por parte do parceiro privado. Esse modelo de parceria tem ampliado os recursos para as pesquisas da Embrapa devido ao aporte financeiro dado pelo setor privado, pelos ganhos com os royalties decorrentes da tecnologia que foi licenciada e pela venda da semente básica que foi desenvolvida pela Embrapa. Além da ampliação dos recursos, o desenvolvimento de novas cultivares é favorecido pelos pontos de testes ofertados pelos parceiros privados, o que representa um importante feedback em relação às diferentes regiões produtoras do país. Dessa forma, como se percebe, o caso da Embrapa revela que a propriedade intelectual pode ser utilizada como um instrumento essencial no processo de produção e transferência de tecnologias aos produtores rurais. Com base nessa percepção e com uma expressiva capacitação construída nas últimas décadas, a Embrapa destaca-se em relação às formas de proteção intelectual de seus ativos. Segundo Castelo Branco & Vieira (2008), entre os anos de 1996 a 2006 a empresa depositou no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) 190 pedidos de patentes, 191 marcas e 25 registros de software. No mesmo período, depositou no exterior 65 patentes e uma marca. Ainda segundo os autores, a Embrapa possui um portfólio tecnológico de 129 patentes concedidas, 168 marcas registradas e 30 softwares registrados. Em relação, especificamente, aos certificados de proteção de cultivares no Brasil, a situação de janeiro de 1998 a outubro de 2008135 era a seguinte: a Embrapa, como titular e cotitular, possuía cerca de 26% do total de 1.105 registros de proteção de cultivares, incluindo os certificados provisórios. Na sequência das principais instituições 135 Segundo o levantamento do Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC). 181 com cultivares protegidas estava a Monsoy (Monsanto), com 7%, e a Coodetec, com 4%. Entre as 46 espécies vegetais que possuíam cultivares protegidas até aquele momento, a soja era principal delas, com participação de 34% do total. Dados mais recentes confirmam a presença majoritária da soja em relação às demais culturas protegidas. Conforme descrito na Tabela 1, até julho de 2009 eram 426 certificados de proteção de cultivares de soja, incluindo cultivares geneticamente modificadas (GM). A propósito, vale destacar que atualmente existem dois mercados de sementes de soja: o de soja convencional e o de soja transgênica. No mercado de sementes convencionais, a Embrapa, individualmente e em parceria com outras organizações, é o principal player do mercado. Ela possui o maior número de sementes protegidas, muitas delas de grande sucesso comercial. A Monsanto é a maior empresa privada no mercado de soja convencional, o que conseguiu a partir da compra de importantes empresas sementeiras nacionais. Na sequência, aparecem a Coodetec (cooperativa de pesquisa ligada às cooperativas paranaenses) e a Naturale (empresa nacional). Tabela 1. Certificados de Proteção de Cultivares de Soja, de janeiro de 1998 a julho de 2009. Titulares EMBRAPA AGENCIARURAL/EMBRAPA EMBRAPA/EPAMIG EMBRAPA/EPAMIG/AGROP. BOA FÉ/COPAMIL/APSEMG CTPA/AGENCIARURAL/EMBRAPA EMBRAPA/EMATER-GO/AGROSEM EMBRAPA/FUNDAÇÃO-MT EMBRAPA/EPAMIG/CENTRO TECNOLÓGICO DO TRIÂNGULO E ALTO PARNAÍBA EMBRAPA/FUNDAÇÃO-MT/CTPA EMBRAPA/SEAGRO EMBRAPA/FEPAGRO EMATER-GO/AGROSEM/EMBRAPA CTPA/EMBRAPA/AGENCIARURAL EPAMIG/CENTRO TECNOLÓGICO DO TRIÂNGULO E ALTO PARNAÍBA/EMBRAPA EPAMIG/EMBRAPA MONSOY LTDA. COODETEC NATURALLE AGROMERCANTIL LTDA DUPONT DO BRASIL S/A - DIVISÃO PIONEER SEMENTES ANGLO NETHERLANDS GRAINS B.V. FTS SEMENTES S.A. UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA-UFV ASOCIADOS DON MARIO S.A. NIDERA S. A. FUNDAÇÃO MT FUNDAÇÃO MT/TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA/UNISOJA FUNDAÇÃO MT/UNISOJA UNISOJA/FUNDAÇÃO MT/TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA UNISOJA/TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA/FUNDAÇÃO MT TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA/UNISOJA/FUNDAÇÃO MT TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA/FUNDAÇÃO MT/UNISOJA FUNDAÇÃO CENTRO DE EXPERIMENTAÇÃO E PESQUISA - FUNDACEP FECOTRIGO FUNDACEP-FECOTRIGO/COODETEC SYNGENTA SEEDS LTDA CM SEMENTES BIOTECNOLOGIA E COMÉRCIO LTDA. PIONEER OVERSEAS CORPORATION GRANAR S/A AGENCIARURAL COOPERATIVA AGROPECUARIA DO ALTO PARNAIBA-COOPADAP UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA-UFU AGRO NORTE PESQUISA E SEMENTES LTDA. INSTITUTO MATO-GROSSENSE DO ALGODÃO-IMA TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA FUNDAÇÃO ESTADUAL DE PESQUISA AGROPECUARIA-FEPAGRO Total 182 Soja Convencional 80 7 5 4 4 3 2 1 1 1 1 1 1 1 39 22 22 7 11 10 13 8 1 1 1 3 1 5 7 7 2 4 2 2 2 1 283 Soja GM 23 1 1 1 41 9 9 4 3 11 9 4 3 2 1 2 1 5 3 6 3 1 143 Total 103 8 5 4 4 3 2 2 1 1 1 1 1 1 1 80 31 22 16 15 13 13 11 9 8 5 3 3 1 3 1 8 1 8 7 7 6 5 4 2 2 2 1 1 426 No mercado de soja GM, a situação é o oposto. Quem possui o maior número de cultivares protegidas é a Monsanto. A Embrapa ocupa o segundo lugar. A Coodetec e a Dupont possuem algumas cultivares protegidas também. Empresas argentinas (Don Mario e Nidera) e uma paraguaia (Granar) também passaram a proteger cultivares no Brasil (cultivares desenvolvidas inicialmente nos países vizinhos). As variedades de soja GM protegidas são as resistentes ao herbicida glifosato (soja RR – Roundup Ready). Como a Monsanto tem direitos sobre esse tipo de material (pela tecnologia de engenharia genética que “transforma” a soja), consegue cobrar “taxas tecnológicas” pela utilização de sua tecnologia. Por exemplo, em uma semente de soja RR da Embrapa, o produtor paga pela tecnologia da semente (para a Embrapa, com base na Lei de Proteção de Cultivares) e pela tecnologia RR (para a Monsanto). Além disso, o herbicida glifosato também é produzido, embora não exclusivamente, pela Monsanto. Percebe-se, então, que a Embrapa vem atuando no mercado de sementes convencionais e transgênicas. No primeiro caso, como dito, é a líder. No mercado de soja RR, ela não poderia ofertar esse tipo de material sem a parceria com a Monsanto. Optou-se pela parceria de modo a também participar desse mercado. Além da soja RR, outras variedades de soja transgênica estão em fase de pesquisa pela Embrapa. Uma delas é originada de acordo entre a Embrapa e a Basf. Trata-se de uma variedade de soja transgênica que está sendo desenvolvida no Brasil sob coordenação da Embrapa. Pelo acordo, a Basf forneceu o gene ahas, que foi aplicado a uma variedade de soja da Embrapa. A nova semente é resistente aos herbicidas da classe das imidazolinonas, que matam ervas daninhas. Essas sementes ainda estão em fase de testes. Quando forem liberadas para comercialização, devem ampliar a oferta de sementes de soja transgênica, aumentando a concorrência no mercado, sobretudo em relação às variedades resistentes ao glifosato. A Embrapa também está desenvolvendo uma variedade de soja GM com maior resistência ao estresse hídrico (seca) em parceria com o JIRCAS (Japan International Research Center for Agricultural Sciences). Esses dois exemplos colocam a Embrapa entre as principais organizações que pesquisam soja GM no mundo. 6. CONCLUSÃO As questões referentes à geração de novos conhecimentos na agricultura e aos direitos de propriedade intelectual ocupam um lugar de destaque nesse novo cenário da pesquisa agrícola, em especial em relação às atividades relacionadas ao melhoramento vegetal. O desenvolvimento de novas cultivares, que a partir da Revolução Verde assumiu um papel central na nova trajetória tecnológica então em curso, segue sendo o elemento central de um conjunto de tecnologias que constituem a base do chamado “agronegócio”. 183 Porém, diferentemente do que ocorria em momentos anteriores, novas questões estão influenciando a forma de fazer pesquisa e as relações que se estabelecem entre seus participantes. Se a inovação cerca de maneira cada vez mais profunda essas atividades, a propriedade intelectual passa a ser um tema estratégico na formação do arcabouço institucional do novo regime tecnológico e, por conseguinte, da dinâmica de inovação da agricultura. Nesse sentido, é responsável pela incorporação de novas tecnologias associadas a um padrão mais intensivo em ciência, que redefine o conjunto de investimentos dirigidos ao setor. As novas cultivares promovem uma reordenação do mercado de sementes, com o ingresso de novos atores e com a possibilidade de fortalecimento das instituições de pesquisa (o que necessariamente depende da forma como cada instituição passa a valorizar seus ativos). Em um momento de forte concentração no mercado de sementes e mudas (em 2008, a Monsanto adquiriu importantes empresas brasileiras de pesquisa genética de cana-de-açúcar e citros), somada à incerteza que sempre ronda o financiamento das atividades de pesquisa no país, verifica-se a necessidade de se ampliar a discussão sobre a forma como se organizam (e reorganizam) as instituições envolvidas com o processo de pesquisa. Essa necessidade fica evidente ao se considerar que a fronteira do conhecimento em agricultura se move de forma extremamente rápida, com forte impacto nas atividades de pesquisa em melhoramento vegetal. Caso o Brasil se distancie dessa fronteira, corre-se o risco de que a capacitação acumulada em pesquisa agrícola nos últimos 200 anos136 fique ameaçada. Esse novo ordenamento caminha ao lado da revisão dos marcos legais que se encontra em pleno curso e, de certa forma, exige um novo movimento de capacitação do conjunto dos atores envolvidos na inovação agrícola. Admitindo-se que o “novo” paradigma já esteja em pleno processo de implementação, está mais do que na hora de se refletir sobre esses assuntos. 136 O marco inicial da pesquisa agrícola no Brasil pode ser considerado a fundação do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, em 1808. 184 R EFERÊNCIAS CARVALHO, S.P.M.; SALLES-FILHO, S.M.; PAULINO, S.R. 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Entretanto, as opiniões, assim como eventuais erros e omissões, são de exclusiva responsabilidade dos autores e não representam as instituições a que eles estão vinculados. 137 Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho de 2008, Rio de Janeiro, Brasil. 138 Professor Titular, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ). 139 Economista do BNDES, Doutor em Economia pelo IE/UFRJ. I NTRODUÇÃO A relação entre inovação e direitos de propriedade intelectual sempre levantou controvérsias, dada a grande heterogeneidade existente nas formas de apropriação dos resultados de esforços de inovação tecnológica. Os direitos de propriedade intelectual constituem essencialmente um estímulo à inovação, recompensando o inovador em relação aos riscos inerentes à atividade. Por outro lado, podem representar um obstáculo à ampla difusão do conhecimento na economia, na medida em que conferem ao detentor de patentes o direito de excluir terceiros do acesso a inovações. Harmonizar o incentivo ao inovador com o amplo acesso à torrente de informação que brota da dinâmica tecnológica constitui um desafio que transcende o aspecto puramente técnico. Na área de software, a controvérsia sobre as formas de proteção da propriedade intelectual está associada à natureza única dos programas que desempenham funções técnicas por meio de algoritmos. Ao invés de enfatizar o meio físico, o software é intangível e pode ser replicado praticamente sem custos. O software é caro de produzir e barato de se reproduzir, ou seja, possui altos custos fixos e baixos custos marginais (Shapiro e Varian, 1999). Por isso, seu preço é fixado de acordo com o valor que o consumidor está disposto a pagar por ele, e não como função direta dos custos de produção. O título de propriedade intelectual atribuído internacionalmente ao software é o direito de autor140. Alguns países, entretanto, concedem patentes de invenções relativas a serviços financeiros, vendas eletrônicas, métodos de negócios e publicidade pela Internet que se expressam por meio de programas de computador. A demanda pelo patenteamento de software se deve ao fato de o direito de autor proteger apenas as “expressões literais” dos programas de computador. Como o valor do software não está apenas na sua forma, mas também nas “ideias” nele contidas, as patentes passam a ser uma forma de apropriação tecnológica mais forte. Elas protegem a funcionalidade do programa e não apenas a forma como este foi escrito. Em termos práticos, o direito de autor protege contra a pirataria, enquanto as patentes evitam a cópia por concorrentes. Um dos principais argumentos em favor das patentes de inovações implementadas por meio de software é que o conceito do programa precisa ser protegido para favorecer a atividade inventiva. Na medida em que o software interage com o hardware, oferecendo um conjunto de instruções que permitem que a máquina desempenhe uma determinada função, argumenta-se que ambos precisam ser protegidos. Por outro 140 Usaremos aqui direito de autor e copyright como sinônimos, embora haja diferenças entre os dois. O copyright, como o próprio nome diz, foi criado para proteger a cópia e, dessa forma, o editor. Já o direito autoral visa proteger o autor. A diferença básica entre as duas modalidades recai nos direitos morais. 190 lado, existe oposição ao patenteamento de software e modelos de negócios em função de suas implicações econômicas e sociais. Argumenta-se que a proteção por patentes pode inibir a competição em função das características da inovação em software. Ao contrário do que ocorre em áreas em que a inovação é centralizada, o desenvolvimento de software envolve, tipicamente, a cumulatividade, a inovação sequencial e o reuso de módulos em novos programas. Este artigo analisa as práticas de propriedade intelectual adotadas na indústria latino-americana de software. A principal questão discutida é a eficácia das patentes de software como instrumento de estímulo à inovação e difusão das tecnologias da informação e da comunicação (TIC). Como garantir os legítimos direitos de apropriação tecnológica sem reduzir o espaço para a diversidade e convivência de modelos de negócios distintos? A metodologia utilizada inclui análise do banco de dados de patentes (SIMPI) do Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Diante dos impasses atuais no debate sobre o regime de propriedade intelectual do software no âmbito do Acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) da Organização Mundial do Comércio, o aprofundamento do tema é importante para balizar as negociações bilaterais e multilaterais em curso envolvendo países latino-americanos. I. A INDÚSTRIA DE SOFTWARE E SERVIÇOS NA AMÉRICA L ATINA Para entender a importância dos direitos de propriedade intelectual na indústria latino-americana de software, precisamos inicialmente avaliar suas características, dinâmica e relevância na indústria global. A tabela abaixo apresenta os dados de vendas, exportações e emprego em oito países da América Latina141. Empresas de software e serviços de informática (SSI) instaladas nos principais mercados da região obtiveram um faturamento conjunto de US$ 17 bilhões, equivalentes a pouco menos de 3% do mercado mundial. Dentre eles, o Brasil constitui o principal mercado, com cerca de 60% do total. Cabe lembrar que o valor registrado das atividades de SSI é geralmente subestimado, já que parte das atividades não é contabilizada, por ser realizada internamente pelas empresas usuárias. Além disso, alguns serviços são executados de maneira informal, não aparecendo nas estimativas de faturamento. As empresas de SSI empregavam formalmente 371,2 mil pessoas nos oito países estudados, em 2005. No entanto, o número real de trabalhadores no setor pode ser 141 Os dados foram obtidos por consultores de um projeto da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe - CEPAL e apresentam algumas diferenças em relação aos da World Information Technology and Services Alliance - WITSA (2006), principalmente para a Colômbia, cuja estimativa não inclui empresas locais de serviços. Um dos motivos para tanto é que os dados são de produção de software e serviços e não de gasto. 191 substancialmente maior, devido não só ao desenvolvimento de software e serviços pelos próprios usuários, mas também por causa da prática, amplamente adotada no setor, de utilizar contratos informais de trabalho. Mochi e Hualde (2009, p. 188s) estimam, para o caso do México, que o número efetivo de trabalhadores em SSI é cinco vezes maior do que o registrado nas empresas especializadas. Tomando esse número como base, chegaríamos a 1,8 milhões de trabalhadores, o que equivale a 1,6% da força de trabalho total da região. Em contraste, nos países da OECD, que apresentam maior difusão de TI, a força de trabalho no setor corresponde a 3 a 4% do total, dado que confirma a coerência de tais estimativas (OCDE, 2006, p. 217). Ainda no tocante ao fator trabalho, verificamos que o perfil de empregos das nove principais empresas multinacionais que atuam na região varia significativamente em função do segmento de mercado visado. As subsidiárias de empresas dedicadas exclusivamente à prestação de serviços empregam, em média, 16,4 pessoas para cada milhão de dólares de vendas. Já as empresas que oferecem software produto, por trazerem soluções prontas do exterior, geram somente 2,6 empregos por milhão (TIGRE; MARQUES, 2007). Como não desenvolvem localmente, as subsidiárias de empresas de software-produto tampouco exportam. A dinâmica da indústria mundial de software é muito influenciada pelo feedback positivo que torna os padrões dominantes cada vez mais fortes (SHAPIRO; VARIAN, 1999), especialmente no segmento de “software-produto”. Poucas empresas dominam o mercado global de pacotes e sistemas operacionais, deixando pouco espaço para as empresas independentes de software. Mesmo em nichos específicos, o software-produto tende a se concentrar em poucos fornecedores globais. Tal monopólio foi consolidado com o surgimento do microcomputador e a subsequente guerra de padrões em sistemas operacionais. Diante da necessidade de garantir a compatibilidade e a comunicação entre programas aplicativos, o mercado acabou por selecionar um “padrão de fato” para sistema operacional que acabou por dominar praticamente todo o mercado. O fato de o padrão ser praticamente monopolizado tem gerado grandes assimetrias na rede de fornecedores de software. O acesso ao código-fonte, que permite o desenvolvimento de aplicativos por empresas independentes, tem sido dificultado por práticas de integração vertical por meio de pacotes. Ao embutir em um mesmo pacote uma ampla gama de aplicativos que, alternativamente, seriam fornecidos separadamente por empresas independentes, o proprietário do padrão unifica e concentra o mercado de software. Ao fornecer um pacote completo, ele evita que os clientes procurem outros fornecedores para complementar suas necessidades. Assim como os supermercados vendem “de tudo” para evitar a dispersão dos clientes, as grandes empresas de software formatam pacotes com uma ampla gama de aplicativos, visando criar barreiras para fornecedores de programas individuais. 192 A América Latina ainda não desempenha um papel na indústria mundial de software e serviços compatível com seu potencial. As exportações estão muito aquém do padrão da Índia, que concentra 85% das exportações mundiais de software pelo modelo de terceirização de serviços para outros países (offshore outsourcing) e representa um paradigma para outros países em desenvolvimento. Porém, segundo a World Information Technology and Services Alliance - WITSA (2006), o mercado latinoamericano de software e serviços (SSI) cresce mais do que a média mundial, e a indústria local vem aumentando sua participação nas vendas globais. A participação das empresas localizadas em 14 países142 latino-americanos nas vendas globais cresceu de 1,94%, em 2001, para 2,72%, em 2005 (TIGRE; MARQUES, 2009b, p. 251). As exportações de software e serviços da região são estimadas em cerca de US$ 1 bilhão. Em termos relativos, a Costa Rica, o Uruguai e a Argentina são os países que mais exportam em relação ao faturamento total, com 44,5%, 39,5% e 18,3%, respectivamente. Esses três países são, justamente, aqueles que apresentam os melhores indicadores educacionais no subcontinente, sugerindo que a qualificação da força de trabalho constitui um fator-chave nas exportações de software e serviços. Chile e México, com 5%, estão próximos à média da amostra, que é de 6%. O Equador (12%) está em situação intermediária. Já o Brasil e a Colômbia exportam apenas 3% do faturamento total. Tabela 1 - Faturamento, emprego e exportações de SSI em países selecionados, 2005. Argentina Faturamento (US$ milhões) Emprego/ setor (em mil pessoas) Exportações (US$ milhões) Faturamento/ PIB % do emprego total Exportação 1.342 32,0 245,1 0,74 0,20 18,3 a Brasil 10.347 219,3 314,0 1,30 0,25 3,0 Chile a 1.385 24,9 a 68,8 a 1,20 0,42 5,0 Colômbia 340a 31,7a 10,3a 0,28 0,16 3,0 b 44,5 Costa Rica 248 nd 110,3 1,28 nd a a 4,5 10,7 a 0,25 0,07 11,9 53,9 164,0 0,41 0,13 5,2 a 104,5 1,57 0,30 39,5 1.027,7 0,83 0,21 6,0 Equador 90 México 3.128 Uruguai 265 4,9 Total 17.145 371,2 a Dados de 2004. b nd: não disponível. Fonte: CAMTIC (2006, p. 3) para Costa Rica; Tigre e Marques (2008) para os demais países. 142 Além dos 7 países abordados em Tigre e Marques (2009a), há informações sobre a Bolívia, Costa Rica, Honduras, Jamaica, Panamá, Peru e Venezuela. 193 O Uruguai é o país em que o setor tem o maior peso relativo no PIB (1,57%), seguido pelo Brasil (1,30%), Costa Rica (1,28%) e Chile (1,20%). O software tem uma participação relativamente menor no México (0,41%), Colômbia (0,28%) e Equador (0,25%). A Argentina, com 0,74% encontra-se em situação intermediária, próxima à média dos oito países, que é de 0,83%. II. FORMAS DE PROTEÇÃO À PROPRIEDADE INTELECTUAL EM SOFTWARE Os mecanismos legais disponíveis para a proteção da propriedade intelectual são a patente e o direito autoral, também existindo, em um contexto mais restrito, a proteção de marcas e símbolos de negócio, mediante o seu registro. Além disso, são utilizadas formas técnicas de proteção, de forma a assegurar o segredo de negócio, como a autenticação digital, a criptografia, o controle de acesso, a segregação de funções e a auditoria de sistemas para proteger ativos. Frequentemente, um único produto utiliza mais de uma dessas formas de proteção. A indústria de software é naturalmente segmentada entre produtos e serviços, embora possa haver uma combinação entre as duas modalidades. O software-produto ou pacote de software é uma aplicação preparada previamente, que serve a um conjunto amplo de clientes. A competitividade nesse segmento é definida pela capacidade de desenvolvimento técnico e de comercialização de produtos em massa. Os investimentos necessários para desenvolver e lançar produtos são altos e o retorno depende de sua aceitação pelo mercado. O software-produto diferencia-se dos serviços de software em função de suas características concorrenciais, pois envolve ganhos crescentes de escala. Segundo Roselino (2006), o desenvolvimento de software-pacote envolve, de modo geral, uma menor interação entre a empresa de software e o potencial demandante, aumentando, assim, a necessidade de proteção legal. D IREITO DE AUTOR Tradicionalmente, o software é protegido por copyrights. O Acordo TRIPS, da Organização Mundial do Comércio (OMC), referendou essa interpretação em 1994, dispondo, no seu artigo 10, que “programas de computador, em código-fonte ou objeto, serão protegidos como obras literárias, segundo a Convenção de Berna”. O copyright é o regime de proteção conferido especificamente às criações literárias, artísticas e científicas. Para a obtenção de um registro de direito autoral, é necessário apenas que o autor declare que o objeto constitui uma criação original e independente, sem necessidade de exame. Esse registro confere ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir 194 e dispor da obra literária, artística ou científica, ou seja, basicamente, o de impedir que terceiros copiem o que foi criado, sem o seu consentimento. O registro do software é opcional, já que o direito do autor nasce com a obra e, consequentemente, não se aplica a uma concepção abstrata ou simples ideia, mas a algo escrito, pintado ou esculpido, expressando uma ideia, em uma forma concreta de criação. O registro de direito autoral protege tanto o código-fonte quanto o código-objeto (ou código-executável) relativo ao software. Tal proteção está relacionada à “forma de expressão da ideia” e não à “aplicação da ideia” que o software executa (ANDRADE et al., 2007). O copyright protege uma criação original de software, o que garante ao criador um controle exclusivo sobre este, incluindo o direito de vender e licenciar o trabalho e vedando a terceiros a apropriação, réplica ou venda do programa sem permissão. O sistema de proteção não exclui a possibilidade de outros agentes desenvolverem outros trabalhos semelhantes de forma independente, com base nas mesmas ideias ou propósitos. O titular original pode, também, manter controle sobre trabalhos derivados, tais como novas versões. O software é geralmente licenciado a qualquer usuário, mas a licença pode conter termos e condições arbitrárias de uso, pagamento e disseminação, incluindo prazos, abrangência da licença e formas de pagamento. No entanto, à medida que o software efetivamente comanda todo o sistema computacional, levando-o a realizar múltiplas funções, fica claro que ele representa muito mais do que é literalmente expresso pelo seu código. Sob esse argumento, as empresas de software incluíam, na solicitação de registro de direito autoral, aspectos relacionados às funções executadas pelo programa. A tutela de direito autoral, por estar relacionada às criações artísticas, científicas e literárias, é uma proteção de forma e de aspectos literais, não cabendo qualquer proteção a funcionalidades. Assim, tais artifícios foram negados judicialmente, posto que os aspectos funcionais não se enquadravam na categoria de direito autoral. Segundo o Manual Frascati (OCDE, 2002, p. 46), para um projeto de desenvolvimento de software ser classificado como Pesquisa e Desenvolvimento, sua consecução deve depender de avanços técnicos ou científicos ou o seu objetivo deve ser a resolução sistemática de uma incerteza científica ou tecnológica. O uso de um software para uma nova aplicação ou propósito não constitui necessariamente um avanço. Dessa forma, é difícil identificar o que é de fato uma inovação no setor. Valimaki (2005, p. 69) aponta que muitos programadores renomados não se reconhecem como inovadores, mas como autores. Estes comparam o desenvolvimento de um novo software à escrita e afirmam que um novo software não é “descoberto”, mas implementado. Nesse contexto, o direito de autor constitui a forma mais adequada de propriedade intelectual para o software. Na tradição do direito autoral, a lei protege a forma de expressão de um programa, e não a sua ideia ou utilidade. A interpretação corrente é de que as telas e relatórios de 195 um programa podem ser copiados sem violação dos direitos autorais; o que não pode ser copiado é seu código-fonte (VEIGA, 1998). Também não constitui ofensa aos direitos do titular a ocorrência de semelhanças de um programa a outro, quando esta se der por força das características funcionais da aplicação, da observância de preceitos normativos e técnicos ou de limitação de forma alternativa para a sua expressão. Existem, ainda, os casos de realização de uma única cópia de salvaguarda e de citação parcial para fins didáticos, que são explicitamente permitidos na lei. A lei exclui, também explicitamente, os direitos morais do autor, exceto o direito de reivindicar a paternidade do programa e de se opor a qualquer modificação que possa prejudicar sua honra ou reputação. Além disso, são reconhecidos como pertencentes exclusivamente ao empregador os direitos de propriedade de programas desenvolvidos sob vínculo empregatício. Para usufruto dos direitos de autor decorrentes do desenvolvimento de programas de computador, não há necessidade de nenhuma formalidade ou registro. PATENTES ENVOLVENDO SOFTWARE As patentes relacionadas aos sistemas de controle dedicado, definidos como “softwares embarcados”, sempre foram admitidas pelas instituições de registro de patentes. Programas de controle de equipamentos e sistemas como freio ABS em automóveis e programas embutidos em telefones celulares e máquinas de lavar não têm sido objeto de controvérsias relevantes. Porém, observa-se claramente que a maioria dos debates relativos à patenteabilidade das invenções implementadas por computador gira em torno do critério, escopo e forma de proteção segundo os quais devem ser concedidas patentes relacionadas a softwares cuja aplicação se destina a computadores de aplicações gerais, tais como o microcomputador pessoal (ANDRADE et al., 2007). Já as patentes de métodos de realização de negócios que habitualmente incorporam software aplicativo começaram a concedidas em 1998. Apesar de a exclusão de programas para computador em si da proteção por patente estar contemplada no art. 52 da European Patent Convention (EPC), bem como nas legislações nacionais, milhares de patentes têm sido concedidas pelo European Patent Office (EPO) e por alguns escritórios de Estados-Membros da União Europeia (UE). Nos Estados Unidos, a concessão de patentes tem sido ainda mais liberal, tanto no processo de análise quanto no escopo das inovações. As criações envolvendo programas de computador eram consideradas uma extensão do pensamento, atos puramente mentais, que não se enquadram como invenções. Porém, com o intuito de forçar uma proteção mais ampla, empresas de TIC passaram a submeter, sistematicamente, depósitos de pedidos de patente envolvendo 196 programas de computador. Tal ação rendeu frutos, posto que hoje em dia algumas instituições envolvidas em PI já admitem que os programas de computador atribuem um caráter técnico ao objeto, deixando este de ser considerado apenas um ato mental abstrato. As grandes empresas de software-produto, que vendem pacotes padronizados, são as que mais pressionam os escritórios de Propriedade Intelectual por uma proteção mais abrangente. Elas procuram criar novas condições técnicas e jurídicas para proteger seus produtos. Entretanto, os critérios de patenteabilidade para as invenções implementadas em computador não são claros e, em decorrência disso, vêm sendo interpretados de forma diferente nos diversos países, gerando problemas comerciais transfronteiriços. O advento da Internet facilitou ainda mais a distribuição e circulação do software, acentuando as características descritas por Lemos (2005) como res commune, isto é, bens de todos e, ao mesmo tempo, bens de ninguém. Evitar a circulação de cópias não autorizadas passou a ser mais difícil e a indústria de TIC tem-se preocupado em criar novas formas de proteger seus ativos intangíveis por meios jurídicos (patentes) e técnicos (proteções eletrônicas). A concessão de patentes de software pode resultar na concentração do mercado. O poder de inovação da pequena empresa é inibido pela patente, já que o seu alto custo de obtenção – que varia de € 10 mil nos E.U.A. a quase € 50 mil na Europa – aumenta o risco de serem excluídas do mercado, por não terem condições de arcar com esses custos. Outra consequência das patentes de software seria o aumento nos pedidos de patentes, e, consequentemente, no tempo que estas levam para serem concedidas, elevando, assim, a incerteza legal do sistema. As pequenas empresas não seriam capazes de competir em bases iguais com grandes corporações que possuem advogados especializados, podendo requisitar centenas ou milhares de patentes anualmente e iniciar processos legais indiscriminadamente, como medida de intimidação. Outro argumento contra o patenteamento é que produtos de software tendem a ser sistemas construídos a partir de vários subsistemas pré-existentes. Permitir a patente desses componentes poderia implicar o pagamento simultâneo de várias licenças, de forma a poder comercializar um dado produto, resultando em um custo maior para a sociedade. Dessa forma, as grandes empresas seriam favorecidas devido aos seus grandes portfólios de patentes e, consequentemente, poder de barganha para negociar licenças cruzadas entre si. Os opositores das patentes de software argumentam, ainda, que os bancos de dados utilizados pelos escritórios nacionais de patentes não contemplam grande parte do estado da técnica para softwares, dificultando significativamente o procedimento de exame de patente na aferição de novidade e não-obviedade. Em consequência, correse o risco de que softwares que já fazem parte do estado da técnica sejam apropriados indevidamente por meio de patentes (VALIMAKI, 2005). 197 FORMAS TÉCNICAS DE PROTEÇÃO Muitas empresas, principalmente de pequeno e médio porte, não utilizam meios jurídicos para proteger sua propriedade intelectual, preferindo recorrer a elementos tecnológicos. Os meios técnicos de proteção ao software incluem autenticação digital, criptografia, controle de acesso, auditoria de sistemas e segregação de funções. A eficácia desses procedimentos pode variar segundo a complexidade do software e o mercado ao qual ele se dirige. Empresas que desenvolvem produtos sob encomenda de usuários específicos não necessitam de registros de software, pois podem controlar o acesso de usuários e criptografar as comunicações que envolvem o programa. Já os provedores de produtos voltados para o grande público utilizam códigos e protocolos para dificultar a cópia ilegal e monitorar as ações dos usuários. Independentemente da questão legal, as formas técnicas de proteção estão ganhando crescente importância nas estratégias competitivas adotadas na indústria de software. III. I NOVAÇÃO E PROPRIEDADE I NTELECTUAL NA INDÚSTRIA DE SOFTWARE O conceito de software como um componente distinguível de um sistema computacional, segundo Mowery e Rosenberg (2005), nasceu nos anos 1950, com o advento da arquitetura de Von Neumann de computadores com programas armazenados. Porém, o software permaneceu intimamente ligado ao hardware e o desenvolvimento de uma indústria de software nos Estados Unidos só começou realmente quando os computadores passaram a ser produzidos em grandes quantidades. Ao final dos anos 60, os produtores de computadores começaram a “desembutir” suas ofertas, separando o preço e a distribuição do software, fato que estimulou a entrada de produtores independentes de programas aplicáveis a computadores de grande porte. A invenção do microprocessador pela Intel, em 1971, revolucionou a tecnologia de hardware ao integrar toda a Unidade Central de Processamento (CPU, na sigla em inglês) de um computador em um único chip. Com a maior integração de circuitos, a disponibilidade de memória deixou de ser um recurso escasso para se transformar em uma solução virtualmente ilimitada. Em consequência, multiplicou-se a oferta, a custos declinantes, da capacidade de armazenamento, processamento e transmissão da informação digitalizada, o que permitiu sustentar uma crescente expansão das aplicações de bens da informação. O crescimento do valor atribuído ao software na cadeia de valor resultou em um maior interesse por parte da indústria em proteger seus ativos intangíveis. O software passou a ser um produto à parte, cobrado separadamente do hardware, o que propiciou 198 o desenvolvimento de uma indústria independente. Tal indústria passou a reivindicar maior proteção legal, visando reaver os investimentos realizados no desenvolvimento de programas e impedir a circulação de cópias não autorizadas. Diante dessa nova situação, chegou-se a um consenso no âmbito da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) de que os programas de computador precisavam ser protegidos, dando origem a intensas discussões sobre o papel do regime de Propriedade Intelectual (WIPO, 2004, p. 436). O advento da Internet facilitou ainda mais a distribuição e circulação do software, acentuando suas características de intangibilidade e fácil distribuição. O valor de uma tecnologia geralmente depende das condições de apropriabilidade, ou seja, da possibilidade de se manter o controle monopolista sobre essa tecnologia por um determinado período de tempo. Tal controle é geralmente exercido por meio da propriedade intelectual sobre bens imateriais, principalmente por meio de patentes ou direitos autorais. Em alguns casos, a tecnologia não é patenteável e a proteção é mantida por segredo industrial. Uma tecnologia não protegida e facilmente imitável leva os rendimentos monopolistas de uma inovação a quase zero (DOSI et al., 2003). Por outro lado, uma apropriação exclusiva e prolongada de direitos sobre inovações pode restringir a difusão do conhecimento. Isso ocorre não apenas porque o monopólio resulta em maiores custos para os usuários, mas principalmente pela pouca transparência técnica oferecida. O software proprietário constitui uma “caixa preta” cujo código-fonte não está aberto a terceiros. Em consequência, há pouca troca de conhecimentos e insuficientes incentivos para o processo de aprendizado interativo. As tecnologias proprietárias, quando bem sucedidas, constituem um monopólio natural em função das economias de rede que geram para seus usuários (SHAPIRO; VARIAN, 1999). Diante da heterogeneidade existente na indústria de software com relação a tamanho de empresas, modelos de negócios, mercados e tecnologias utilizadas, observam-se acirrados conflitos quanto à forma de proteção a ser conferida ao softwareproduto. Tais conflitos foram evidenciados por ocasião das discussões, iniciadas no início da década de 2000 no Parlamento Europeu, sobre uma proposta de diretiva europeia para o patenteamento de software. Dois grupos podem ser identificados como polarizadores da discussão. O primeiro grupo é constituído pelas grandes empresas do setor de TIC, que exercem uma considerável pressão junto a organismos multilaterais e governos nacionais, não só pela manutenção do status quo como também pelo aumento da abrangência da patenteabilidade de invenções implementadas em computador. Na Europa, um grupo formado por Nokia, Philips, Siemens, Ericsson e Alcatel enviou um documento à União Europeia estimando um prejuízo de 15 a 18,5 bilhões de euros em seus gastos com pesquisa de desenvolvimento (P&D), caso não fossem permitidas patentes relacionadas a software (SILVA, 2007). 199 Outro argumento é que restrições às patentes de software irão ter implicações negativas na economia da Europa como um todo, onde acabarão por acarretar a perda de milhares de empregos de alta qualificação em pesquisa e desenvolvimento (P&D). As grandes empresas alegam que uma diretiva estabelecendo limites a patentes de software poderia induzir a fuga de especialistas e investimentos para os Estados Unidos e, portanto, o fortalecimento do regime de propriedade intelectual seria uma forma de defender a Europa da competição com os E.U.A. O segundo grupo, contrário ao fortalecimento do sistema de proteção à propriedade intelectual em software, é formado por um conjunto abrangente de atores, incluindo a comunidade de software livre e código aberto, instituições acadêmicas e associações de pequenas e médias empresas. Eles argumentam que as patentes relacionadas a software irão desestimular a inovação e farão com que os desenvolvedores de softwares corram o risco de serem processados por grandes empresas (ANDRADE et al., 2007). A exemplo de outros bens imateriais, o software se caracteriza como um bem não competitivo, ou seja, pode ser compartilhado por todos sem custos adicionais. O fato de uma pessoa utilizar um programa não priva ninguém mais da possibilidade de fazer o mesmo, em igualdade de condições (LEMOS, 2005). Por esse motivo, desde 1980, vêm surgindo modelos alternativos de produção e distribuição. Questionando a necessidade de licenças que, cada vez mais, restringiam a liberdade dos usuários, as comunidades de software livre adotam diferentes iniciativas como a criação de sistemas operacionais e aplicativos com código-fonte aberto e que são distribuídos gratuitamente mediante uma licença de uso específica. Os adeptos do software aberto defendem que um regime sem patentes, que estimule o acesso ao conhecimento e a competição entre empresas independentes, é uma forma preferível de incentivar a inovação no setor e garantir a interoperabilidade entre os programas, sistemas e redes. Eles argumentam que as patentes de software prejudicam o processo de padronização e aprisionam usuários em tecnologias proprietárias. O patenteamento de modelos de negócios é visto como um fator de distorção da competição no mercado, pois confere direitos exclusivos desproporcionais em relação aos investimentos realizados pelo detentor da patente. Tendo em vista o custo desproporcional imputado à sociedade pela concessão de direitos exclusivos, os métodos de negócios deveriam ser considerados de domínio publico, a exemplo das leis da natureza e dos princípios científicos. 200 IV. PROPRIEDADE I NTELECTUAL DE SOFTWARE NA AMÉRICA LATINA Em conformidade com a Convenção de Berna, os países latino-americanos conferem ao software a proteção autoral concedida às obras literárias. Vários países revisaram recentemente seu marco regulatório referente à propriedade intelectual, de forma a se adequar à legislação sugerida pelo acordo TRIPS. Hoje existem apenas diferenças pontuais nas políticas adotadas pelos países da região em relação a PI. Por exemplo, a Argentina, ao contrário do Brasil, do Chile e da Colômbia, não inclui obras de multimídia em sua lei de proteção ao software. Outra diferença se verifica, ainda, nos órgãos responsáveis pelo registro de software. Enquanto que no Brasil, no Chile, no Equador e no México o registro é feito pela instituição que concede também a patente, na Colômbia e no Uruguai este é realizado pela instituição que faz o registro de livros e outras obras, ao passo que na Argentina o mesmo é feito por uma associação do setor. Quadro 1: Legislação sobre proteção de software na América Latina País Lei Ano Forma de proteção Argentina 11.723 1998 Direito de autor Cámara de Empresas de Software (CESSI) Brasil 9.609 1998 Direito de autor Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) Chile 17.336 1970 Direito de autor Departamento de Derechos de la Propiedad Intelectual Colômbia 603 2000 Direito de autor Dirección Nacional de Derechos de Autor Equador 83 1998 Direito de autor Instituto Ecuatoriano de la Propiedad Intelectual (IEPI) México 122 1996 Direito de autor Instituto Mexicano de la Propiedad Intelectual Uruguai 17.616 2003 Direito de autor Consejo de Derechos de Autor Quem faz o registro Fonte: elaboração própria a partir de Chudnovsky, López e Melitsko (2001, p. 91-96) para a Argentina; Marques (2009a, p. 99s) para o Brasil; Alvarez e Lillo (2009, p. 130s) para o Chile; Rodríguez (2009) para a Colômbia; Mireles (2007, p. 64) para o Equador; Mochi e Hualde (2009, p. 195ss) para o México; e González (2009, p. 244) para o Uruguai. 201 Embora a legislação preveja a proteção por direito de autor, alguns países da região concedem patentes de software, registradas como patentes de invenção. No Chile, em 1991, houve apenas um pedido de patente; em 1998, oito; em 2004, 123; e em 2005, 140 (ALVAREZ; LILLO, 2009, p. 130s.). Devido ao alto custo – entre US$ 1,3 mil e US$ 3,7 mil – as empresas de capital chileno não costumam solicitar patentes de software. O CASO DAS PATENTES DE SOFTWARE NO BRASIL O caso do Brasil merece ser destacado pelo fato de o país ter um histórico de efetiva concessão de patentes de software e também por ser o principal mercado na região. Em 1998, foi aprovada a nova lei de software (ANDRADE et al., 2007). A política anterior já sofria pressões em função da inclusão do tema de propriedade intelectual na pauta de negociações da Rodada Uruguai do então General Agreement for Trade and Tariffs (GATT), que antecedeu a OMC. Desde 1994, quando foi criado o TRIPS Em consequência, o Brasil vinha discutindo a reformulação de sua legislação sobre direitos autorais, estabelecendo o direito autoral para programas de computador pelo prazo de cinquenta anos. Apesar de não incluir explicitamente patentes de software, esse tipo de proteção vem sendo efetivamente concedida, segundo a prática adotada na Europa e nos Estados Unidos. O software é geralmente patenteado como uma invenção implementada por computador. Para isso, os solicitantes argumentam que, conforme o acordo TRIPS (artigo 27.1), as patentes devem ser disponíveis para invenções em todos campos tecnológicos, devendo a proteção patentária, portanto, se estender também ao software. Em uma busca no sistema de patentes do Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (SINPI) realizada em março de 2007 por Antônio Carlos de Souza Abrantes, foram identificadas 590 patentes de software decididas (deferidas e indeferidas). A busca utilizou as seguintes palavras-chave: “Computador, microprocessador, microcontrolador, notebook, programa ou software”. Foram considerados apenas pedidos de patente de invenção (PI), que é a natureza adequada para os pedidos relacionados a programas de computador. Dos 590 pedidos decididos, 439 foram deferidos (74%) e 151 indeferidos (26%). As patentes de invenção concedidas são dos seguintes tipos: • • • • • • 202 Sistema operacional (SO) Interfaces de usuário (IU) Telecomunicações (TC) Processamento gráfico (PG) Controle de impressão (PR) Automação industrial (AU): controle de freios de trens e elevadores, controle automático de marchas de automóveis • • • • • Codificação de dados (ML) Distribuição e seleção de programas de televisão Processamento de linguagem com sistemas de reconhecimento de voz (PL) Controle de instalações elétricas (EE) Edição de texto (ET) A tabela abaixo mostra que, do total de 590 pedidos de patentes decididos, 512 foram solicitados por não residentes (87%) contra apenas 78 de residentes no país (13%). Das patentes solicitadas por não residentes, a maioria (83%) foi efetivamente concedida. Em contraste, apenas 18% dos pedidos feitos por residentes foram deferidos. Tais pedidos foram feitos principalmente por pessoas físicas e a maior parte dos indeferimentos foi atribuída à insuficiência descritiva. Já as patentes concedidas a não residentes foram solicitadas por empresas que, em sua grande maioria, já haviam obtido tal registro no exterior. Das 590 decisões, 457 já possuíam patente americana concedida pelo United States Patent and Trademark Office - USPTO, sendo que 388 (85%) acabaram sendo deferidas pelo INPI. Destas, 309 haviam obtido patente europeia, das quais 279 (90%) foram deferidas e apenas 30 (10%) indeferidas. Tabela 2. Pedidos de patentes relativas a programas de computador, INPI, Brasil, 2007. Origem Pedidos totais Patentes concedidas Não concedidas Residentes 78 (13%) 14 (18%) 64 (82%) Não residentes 512 (87%) 425 (83%) 87 (17%) Total 590 100% 439 (74%) 151 (26%) Fonte: SINPI (INPI) Podemos observar que apenas 14 patentes de software (3% do total) foram concedidas a residentes no país. Nenhuma empresa ou instituição brasileira detém mais de duas patentes de software, o que revela a pouca importância atribuída a esse mecanismo de apropriação no âmbito local. Questionada sobre esse fato, uma empresa nacional entrevistada revelou que, embora nunca tenha solicitado patente no país, já possui um título nos Estados Unidos. A patente foi obtida para evitar conflitos com eventuais detentores de direitos de propriedade intelectual nas exportações de software. 203 Os dados sugerem que as patentes de software, no Brasil, representam essencialmente uma extensão de direitos de propriedade já obtidos em outros países. O sistema local parece dar vigência e eficácia às patentes concedidas no exterior, sem representar um efetivo estímulo à atividade inventiva local. V. A QUESTÃO DA PIRATARIA Em uma economia crescentemente baseada na informação e no conhecimento, a apropriação de ativos intangíveis por meio de direitos de propriedade é um tema de crescente importância nas relações internacionais. Visando monitorar o movimento de cópias não autorizadas, conscientizar a opinião pública sobre ilegalidade e pressionar governos nacionais a combater a pirataria por meio de ações penais, empresas de software criaram associações em toda a América Latina. No plano político, além de angariar apoio local, tais associações contam com apoio tácito dos governos de seus países de origem. O governo norte-americano, em particular, criou a US Special 301 Priority Watch List com o objetivo de dar consistência legal a ações de retaliação comercial a países suspeitos de praticarem pirataria de software. Atualmente, o México é um dos países latino-americanos incluídos na lista. Um estudo da Business Software Association (IDC; BSA, 2005, p. 14) estima que a perda das empresas de software com as cópias não autorizadas na América Latina atingiu US$ 2 bilhões em 2005. Tal estimativa é feita com base na avaliação do número de cópias piratas em circulação multiplicado pelo preço da licença original. Comparativamente, a perda com a pirataria de software na América Latina seria, em linhas gerais, equivalente ao estimado para o Oriente Médio e África (US$ 1,6 bilhão) e para o Leste Europeu (US$ 3 bilhões). As perdas em países desenvolvidos seriam de US$ 6,9 bilhões nos Estados Unidos, US$ 3,2 bilhões na França, US$ 1,9 bilhão na Alemanha e US$ 1,8 bilhão no Reino Unido. Porém, como o mercado desses países é maior, as perdas estimadas nos países em desenvolvimento são mais significativas em termos relativos. O estudo avalia que a taxa de pirataria chega a 68% na América Latina contra 36% na União Europeia. Entretanto, tais estimativas de pirataria estão provavelmente superestimadas. (CORREA, 1999) critica os cálculos da BSA por partirem da hipótese de que as cópias piratas existentes em circulação seriam alternativamente compradas a preços de mercado. Para esse autor, uma estimativa mais realista deveria levar em conta as vendas que as empresas efetivamente deixaram de realizar em consequência da pirataria. Nesse sentido, é razoável supor que muitos consumidores que copiaram ou compraram softwares piratas a um preço inferior ao do original não estariam dispostos a pagar o preço cheio das licenças oficiais. Caso a pirataria fosse efetivamente controlada, muitos 204 usuários simplesmente deixariam de usar programas proprietários. Esse argumento, já levantado na literatura, sugere que as cópias não autorizadas ajudam a difundir padrões tecnológicos proprietários em países emergentes. Apesar de não gerarem receitas imediatas, o uso não autorizado dos programas contribui para o feedback positivo, gerando efeitos de rede essenciais para a consolidação de padrões no mercado. A pirataria afeta principalmente as empresas que vendem pacotes genéricos. Já as empresas que prestam serviços ou que customizam produtos para seus clientes estão menos preocupadas com cópias ilegais. Uma pesquisa conduzida por Chudnovsky, López e Melitsko (2001, p. 95), na Argentina, revelou que 60% das 39 empresas locais desenvolvedoras de software entrevistadas alegaram não serem afetadas por pirataria por parte dos usuários, enquanto que metade delas não temia a pirataria de competidores. Na medida em que seus programas precisam ser adaptados às necessidades dos clientes, o produto em si não tem valor de revenda para imitadores pouco qualificados tecnicamente. A principal alternativa para os usuários de software que não querem se submeter às condições de licenciamento e às restrições técnicas impostas pelos fornecedores de software proprietário é o software livre ou aberto. Os modelos de negócios baseados nesse tipo de licença partem do princípio de que o valor está no serviço e não no produto. Adotado inicialmente por pequenas empresas, vem ganhando adeptos entre âncoras da indústria, como a IBM e a Sun. Os programas são doados ou licenciados a preços simbólicos aos clientes em troca de contratos de prestação de serviços. Empresas usuárias não necessitam apenas do programa, mas principalmente de serviços técnicos e tecnológicos como o desenvolvimento e implementação de interfaces com sistemas legados, adaptação dos programas às características das empresas, serviços de manutenção, treinamento e consultoria. Assim, as receitas de royalties são substituídas por serviços ao cliente. VI. CONCLUSÕES A América Latina vem aumentando gradativamente sua participação na indústria global de software e serviços, graças à disponibilidade de recursos humanos qualificados a custos relativamente baixos e a um mercado interno em franco crescimento. A principal área de oportunidade para os países da região reside na prestação de serviços, já que os pacotes de software são monopolizados por poucas empresas globais (TIGRE; MARQUES, 2009b; MARQUES, 2009b). Por ser de produção cara e reprodução barata, o software-produto implica grande economia de escala e escopo. Além disso, o feedback positivo e os efeitos de rede conduzem à lógica do “vencedor leva tudo”. 205 O fortalecimento dos mecanismos de apropriação interessa essencialmente a empresas de pacotes que praticamente não produzem na América Latina. As grandes empresas multinacionais que efetivamente produzem e geram divisas na região são predominantemente voltadas à prestação de serviços de outsourcing, um ramo de negócios que tem pouca necessidade de proteção patentária. As empresas nacionais de software tampouco consideram as patentes importantes. Elas se utilizam essencialmente de procedimentos técnicos e somente julgam necessária a proteção por patente quando exportam para os Estados Unidos. Assim, levando em conta os interesses regionais, um regime de baixa apropriabilidade tecnológica é mais favorável à inovação, dado o caráter cumulativo e modular das soluções. Como o desenvolvimento de software se baseia no aproveitamento de componentes pré-existentes, a patente desses subsistemas inibe a inovação, seja pelo alto custo de licenciamento ou pela proibição da utilização de determinados componentes. O fato de as patentes inibirem a inovação em software, no entanto, não justifica o desrespeito a leis e acordos internacionais. Nesse aspecto, a maioria dos países latinoamericanos se enquadra nas orientações do acordo TRIPS de proteger os produtos contra a pirataria por meio de copyrights. Tais países alteraram suas legislações na década de 90 para se adaptar às exigências multilaterais e hoje se observa uma significativa homogeneidade nas legislações. Entretanto, o controle legal de cópias não autorizadas é difícil até mesmo em países desenvolvidos, fato que vem levando muitas empresas a adotarem formas técnicas de proteção como autenticação digital, criptografia, controle de acesso, segregação de funções e auditoria de sistemas para proteger seus ativos. Outra estratégia é adotar modelos de negócios mais apoiados em software livre e na prestação de serviços. Apesar do enquadramento às normas internacionais, os países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) vêm enfrentando crescentes pressões para aumentar a proteção aos direitos de propriedade de programas de computador (SHADLEN; SCHRANK; KURTZ, 2005). Tais pressões contribuem para uma maior liberalidade na concessão de patentes, principalmente no Brasil, que responde por mais da metade do mercado latino-americano de software. Outro aspecto importante na agenda comercial dos países latino-americanos é a questão das perdas na indústria de software, motivadas pela pirataria. As estimativas são superestimadas em função da metodologia adotada, mas, mesmo assim, servem de base para ameaças de retaliação comercial. Entretanto, isso não quer dizer que a pirataria não deva ser combatida. Assegurar os direitos de propriedade intelectual é uma obrigação do Estado e da Justiça. 206 Em síntese, a propriedade intelectual é um instrumento legal que busca garantir a apropriação tecnológica, diante dos riscos e dificuldades enfrentados pelos inovadores. A dinâmica do mercado de software é permanentemente afetada por inovações em rede que ampliam as interfaces, permitindo o surgimento de novas formas de produzir e compartilhar informação e conhecimento. Em consequência, o mercado se subdivide com a criação de novos segmentos, como o de software aberto, gerando modelos de negócios e padrões de competição significativamente distintos. Nesse contexto, os organismos encarregados da política industrial se defrontam com o desafio de harmonizar interesses conflitantes que transcendem o aspecto técnico. Por um lado, precisam atender à demanda das grandes empresas por maior proteção, segundo as legislações e os acordos internacionais vigentes. Por outro, é necessário levar em conta que as mudanças tecnológicas exigem a abertura de espaço no mercado para novas formas cooperativas de produção internacional de conhecimentos digitalmente codificados. Uma excessiva restrição à circulação de conhecimentos poderá dificultar essa missão. Os debates sobre o tema são ainda incipientes e necessitam ser reforçados por meio de uma agenda de pesquisa independente, que analise o impacto das patentes de software sobre o processo de inovação e as alternativas existentes para estimular as atividades inventivas no setor. 207 R EFERÊNCIAS ALVAREZ, V.; LILLO, C. Chile: desarrollo endógeno con proyecciones externas. In: TIGRE, P.; MARQUES, F. (ed.). Desafíos y oportunidades de la industria del software en América Latina. Colômbia: Mayol e CEPAL, 2009. Andrade, E.; Tigre, P.; Silva, L; Oliveira, R. ;Souza, A.; Silva, D.; (2007). Evolução e Perspectivas da Propriedade Intelectual em Software. Revista Brasileira de Inovação. 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Professor e Pesquisador de Dirieto Civil na UFRRJ/ITR. Professor e Pesquisador de Direitos Autorais na UFRJ/PPED. 1. EM BUSCA DO EQUILÍBRIO A proteção jurídica das obras artísticas abrange essencialmente duas ordens de interesses: os do criador e os da sociedade. Ao criador de uma expressão personalizada de conteúdo artístico, literário ou científico são constitucionalmente atribuídos direitos de utilização equiparados ao de propriedade, inclusive com relação à satisfação obrigatória de sua função social145. À sociedade e aos usuários são reconhecidos direitos igualmente constitucionais e fundamentais de usos essenciais à educação146, pesquisa147, cultura148 e comunicação149, todos essenciais para a interação sociocultural150 e para a própria formação da pessoa e construção de sua dignidade151. 145 Constituição Federal de 1988, art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá à sua função social; (...) XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas”. 146 Id., art. 6o:: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”; art. 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”; art. 206: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”. 147 Ibid., art. 218: “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas”. 148 Ibid., art. 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. (...) § 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção, promoção e difusão de bens culturais; (...) IV democratização do acesso aos bens de cultura”; art. 216: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais”. 149 Ibid., art. 221: “A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei”. 150 O reconhecimento do direito fundamental à cultura é inerente ao Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 1992, e parte indissociável do conjunto de direitos humanos fundamentais positivados no conjunto de instrumentos internacionais promulgados pela UNESCO. Seu valor se torna extremamente relevante quando consideramos os efeitos das interações culturais na construção das identidades e na coesão social, como expresso na Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, adotada na 31ª Conferência Geral da UNESCO, em novembro de 2001. 151 ONU. Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Preâmbulo: “Reconhecendo que esses direitos (à educação e cultura) decorrem da dignidade inerente à própria pessoa humana.” 212 Com a função de unir esses interesses, pode haver diversos intermediários, cujas atividades empresariais destinam-se ao lucro e justificam-se exclusivamente por este. Os intermediários desempenham uma gama variada de ações de cunho empresarial. Encarregam-se da tarefa de viabilizar a utilização comercial de grupos de obras artísticas, produzindo e circulando riqueza. São importantes no processo de divulgação e distribuição das obras artísticas de valor comercial para o seu mercado. Podem ser igualmente importantes na produção de certas obras, principalmente as de caráter complexo, devido ao necessário investimento na própria produção da obra152. Seus direitos não são direitos autorais, mas apenas equiparados, mutatis mutandis, aos direitos patrimoniais do autor. Suas ações têm cunho estritamente empresarial e seus interesses são estritamente econômicos, não se confundindo, portanto, com os interesses do autor, ainda que equivocadamente insistam alguns em falar pelos autores, sem, porém, substancialmente representá-los e até se contrapondo aos seus interesses153. Ao mesmo tempo, outros intermediários – porém com baixa representatividade política e poder econômico – ocupam-se da circulação não comercial e não concorrencial, promovendo e viabilizando a diversidade cultural154. Acertadamente, todos clamam por segurança jurídica, pois esta permite a construção de um ambiente propício ao desenvolvimento da economia e da cultura, favorencendo a robustez de nossa rica diversidade cultural. Há uma gama variada de conflitos entre as partes envolvidas e um grande número desses problemas encontra-se carente de solução ou insatisfatoriamente resolvido. A ausência de soluções legislativas satisfatórias para todos os interessados acaba por gerar forte tensão política, inúmeros conflitos sociais e grande demanda judicial, favorecendo, com o seu escalonamento, a posição estrutural, econômica e politicamente dominante das entidades empresariais, frente tanto aos criadores quanto aos usuários. Os dispositivos da atual legislação não estão suficientemente adequados à preservação nem da remuneração equitativa do autor nem do espaço essencial de liberdade de utilização e, em razão dessa assimetria, não conseguem garantir a segurança jurídica. Nesse sentido, a legislação não é satisfatória para ninguém. 152 Como o audiovisual, por exemplo, em que o produtor deve voltar a ser positivado como titular original, mas não autor, dos direitos de exploração econômica. 153 Interessante notar a posição e considerações dos sindicatos de músicos apresentadas nos Seminários promovidos pelo Ministério da Cultura (MinC) – em especial, aquele dedicado aos Autores e Artistas, realizado no Rio de Janeiro em 27 e 28 de outubro de 2008 – pois revelam alguns dos conflitos entre titulares empresariais e autores ou artistas da área musical, sempre em favor dos primeiros, em razão do próprio poder econômico. 154 Esse circuito não comercial abriga iniciativas como os cineclubes, que promovem a exibição pública de obras audiovisuais não disponíveis, com finalidade cultural e educativa, permitindo, como consequência essencial, uma rica interação sociocultural a partir da discussão sobre os sentidos da obra exibida. 213 A parte primária, nuclear, desse conjunto de relações é necessariamente o autor, pessoa humana criadora, que dá forma personalizada à expressão, que é de imediato protegida pelo Direito. A par dos elementos inerentes à personalidade do criador, inalienáveis, há a exclusividade de utilização econômica, objeto de cessão ou licenciamento de conteúdo patrimonial. Essa exclusividade de utilização comercial é o incentivo econômico para a produção de cultura material artística. Na outra ponta, temos toda a sociedade, que é fonte de referências para as novas criações e que, complementariamente, as incorpora como instrumentos essenciais para a interação sociocultural, educação e comunicação. Os cidadãos constituem, por isso, os destinatários das obras artísticas, que são igualmente culturais e cujas utilizações são intrínsecas ao próprio processo de formação. São bens essenciais e indispensáveis à própria formação sociocultural dos cidadãos e, em última instância, da nação e do país. Nunca se deve esquecer que a disponibilidade e utilização constitui a própria justificativa e função da exclusividade de exploração econômica atribuída ao autor155 – massivamente cedida aos empresários da cultura –, pois o objetivo final da proteção é aprimorar o espaço público, garantindo o enriquecimento cultural e elevação espiritual, e não só após o longuíssimo prazo de proteção, mas também durante o prazo de proteção, reservando suficientes usos incondicionados e livres. Os criadores, os destinatários e os empresários da cultura clamam, justificadamente, por segurança jurídica como condição para a ampla circulação dos bens culturais e maior densidade econômica da atividade. Contudo, a própria segurança jurídica, cara à atividade econômica, depende do equilíbrio na representação dos interesses, sob pena de ver-se deslegitimada e conscientemente desobedecida. Devem ser aperfeiçoados os instrumentos que ampliem a segurança jurídica156, sem que seja olvidado que em um Estado Democrático de Direito, como impõe a Constituição Federal, a almejada segurança jurídica somente será assegurada com uma representação justa dos diversos interesses legítimos no marco legal ordinário. A segurança jurídica, portanto, depende do equilíbrio dos interesses projetados na legislação. 155 Eduardo Vieira Manso, antes mesmo da CF/88, aponta que “o fundamento jurídico do Direito Autoral reside no interesse público de toda obra do engenho humano que, sendo original ou criativa, ou ambas, corresponda a uma parcela de manifestação da sociedade em que foi gerada. [...] O interesse público que há sobre e por toda obra intelectual é que fundamenta a extensão das prerrogativas próprias de seu autor. [...] Esse interesse público, de outro público, fundamenta e justifica as ressalvas, as exceções que se impõem aos autores quanto a determinados usos – inclusive para fins econômicos – de sua obra, para permitir e possibilitar que ela efetivamente cumpra o seu papel cultural e realize sua função social.” MANSO, Eduardo Vieira. Direito Autoral. São Paulo: José Bushatsky, 1980. p. 24-25. 156 214 Um exemplo é garantir ao produtor audiovisual a titularidade original dos direitos patrimoniais da obra resultante. A atual legislação, porém, contraria a história da matéria e confronta os mandamentos constitucionais fundamentais de proteção ampla à pessoa, suas expressões e sua formação (incluindo o acesso incondicionado aos bens essenciais à sua formação), permitindo uma expansão exacerbada dos interesses dos titulares em prejuízo dos interesses dos elos realmente essenciais: o criador e o público. O gritante desequilíbrio é a causa da ilegitimidade social dessa legislação e do amplo desrespeito às suas determinações. A excessiva concentração da titularidade em poucas entidades empresariais e o obsessivo controle dos usos – inclusive os não comerciais – que querem estas poucas entidades exercer conduzem a um desvio funcional e estrutural injustificado do foco da proteção das obras artístico-culturais. Os direitos de remuneração equitativa dos criadores, pessoas físicas, não é assegurado, deixando à liberdade negocial a tarefa de garantir a representatividade dos interesses. O desequilíbrio – econômico, jurídico e político – de forças é refletido nos contratos em que todos os direitos são cedidos sem razoável contraprestação. Sequer a garantia de ampla distribuição – dever legal e contratual, além de razão de existir dos intermediários – é assegurada. São muitas as manifestações dos autores sobre a assimetria das relações e suas consequências (baixa remuneração aos autores e altos lucros aos empresários da cultura), bem como sobre a necessidade de uma correção157. Ao mesmo tempo em que os autores e artistas são economicamente oprimidos, o livre exercício dos direitos transindividuais à educação e cultura é fortemente ameaçado pelo alcance que os titulares – majoritariamente não autores – querem atribuir à proteção patrimonial, apropriando-se de usos consagradamente livres158. Como a própria atividade de aprender, comunicar-se e interagir demanda acesso, cópia, reprodução, representação, a sua restrição ou impedimento carece de justificativa e ofende os valores constitucionais e humanos vigentes, gerando um forte sentimento de injustiça e uma resistência ao cerceamento de um direito fundamental, essencial à formação da própria pessoa como ser social159. 157 Ver, por exemplo, as apresentações nos Seminários do MinC, ocasião em que os autores puderam livremente expor suas dificuldades e carências. 158 Um interessante exemplo disso é a interpretação que se quer forçosamente atribuir ao art. 46 da Lei do Direito Autoral – LDA, que trata, junto com os artigos 47 e 48, dos limites da exclusividade privada. Pretendem os titulares que o artigo 46 seja interpretado restritivamente. Essa visão não coaduna com uma interpretação sistemática e teleológica do Direito, prendendose a uma perspectiva do positivismo novecentocentista de interpretação literal ou gramatical, na contramão dos movimentos de atualização já dominantes no Direito Contemporâneo. 159 A Organização Mundial de Saúde - OMS entende que o ser humano saudável é aquele que é física, mental e socialmente ajustado e, para tanto, é fundamental que possa participar incondicional e ativamente das relações socioculturais que desejar. Ver o conceito de saúde no documento de Constituição da OMS, disponível em http://www.who.int/governance/eb/who_ constitution_en.pdf 215 As omissões e inexatidões da legislação permitem ainda que, mediante beligerância e ameaça, as organizações de titulares utilizem o seu poder econômico, político e jurídico para construir, impor e efetivar uma verdadeira legislação privada, e, por meio desses métodos, ilegitimamente e injustificadamente expropriam direitos alheios, privatizando direitos fundamentais individuais e sociais. Essa apropriação privada se dá tanto com relação aos direitos patrimoniais dos criadores – ao impor-lhes condições contratuais abusivas, sob pena de exclusão do mercado cultural – como do público – ao constantemente ameaçá-lo com ações judiciais, aproveitando-se do desconhecimento específico do tema para impedir que os cidadãos legitimamente exerçam seus direitos à cultura e educação e utilizem os bens culturais ou tenham acesso ao seu conteúdo – conteúdo que, deve-se sempre lembrar, não é protegido pelos direitos autorais, que apenas protegem a expressão, ou seja, a forma extrínseca da criação. Na ausência de definição, regulação e atuação do Estado, cria-se um espaço fértil para o florescimento do condicionamento privado do comportamento e da definição particular das regras de convivência social, decorrentes do uso inapropriado e ilegítimo da força e ameaças – econômicas e jurídicas – por parte dos titulares ou pelas entidades de titulares160. Os desequilíbrios contidos na Lei nº 9.610/98 têm causado inúmeros conflitos sociais e jurídicos desde a sua promulgação, que se têm acentuado nos últimos tempos161. Resta claro que as demandas para uma atuação legislativa corretiva são fortes e sua urgência, imediata. Os desequilíbrios no sistema são gritantes e precisam ser logo corrigidos para que os problemas não se agravem. É necessário fortalecer os dois únicos interesses essenciais e fundamentais do sistema – autores e usuários – que se encontram ilegítima e abusivamente restringidos em prol dos interesses puramente mercantis dos empresários culturais ou das agências e associações de arrecadação de direitos. Para se alcançar o tão almejado equilíbrio, basta o reconhecimento da natureza fundamental desses direitos e sua inclusão na legislação ordinária que controla a circulação e usos das obras artístico-culturais. 160 Um paralelo disso se observa cotidianamente nos jornais, ao tratarem das milícias que dividem, com o tráfico de drogas e armas, o domínio de vastas regiões do Rio de Janeiro, em detrimento da segurança, da justiça e da própria legitimidade do Estado. A persistirem os desequilíbrios e a ausência do Estado na regulação do exercício justo dos direitos autorais, estamos condenados a vivenciar, ao lado da verdadeira pirataria – que é organizada, comercial e concorrencial –, o surgimento de novas milícias, comandadas pelas poderosas e autointeressadas associações de titulares, com o objetivo principal de impedir qualquer utilização social livre dos bens artístico-culturais e de cercear ao máximo a concretização dos direitos fundamentais à educação, cultura e conhecimento. 161 O crescente número de ações judiciais, o alto índice de inadimplência no pagamento de direitos e a articulação de entidades de defesa dos direitos dos usuários são todos exemplos dessa situação conflituosa que se vivencia. 216 2. FUNDAMENTOS JURÍDICOS DOS DIREITOS DA SOCIEDADE Os direitos à educação e cultura estão expressos na Constituição Federal do Brasil e nos tratados internacionais de direitos fundamentais, sendo seus efeitos sobre os direitos autorais, no plano internacional, limitados apenas pelo “teste dos três passos” da Convenção de Berna e do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio – ADPIC/TRIPS. Esses direitos fundamentais sociais – educação, cultura e comunicação – que condicionam e limitam os direitos econômicos dos titulares – autores ou não – de obras artístico-culturais estão positivados em nosso ordenamento, são de concretização contínua e obrigatória e são qualificados como preceitos máximos e inexpugnáveis do ordenamento, sendo de cumprimento compulsório. As restrições a esses direitos sociais – seja pelos direitos autorais ou por outros motivos – são igualmente limitadas, não podendo ser incompatíveis com sua natureza e devendo ser legislativamente expressas, com o objetivo único de favorecer o bem estar geral162. Além de constarem expressamente nos artigos 6º, 205, 206, 215, 216, 218 e 221 da Constituição Federal do Brasil, os direitos à educação e cultura são consequências inevitáveis da ampla proteção à pessoa, em todas as suas dimensões, em sua dignidade, que é um dos fundamentos essenciais da República, conforme positivado no art. 1º, inciso III, do mesmo ordenamento163. Além do mais, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária é um dos objetivos da República, o que, por si só, já impõe que as legislações ordinárias, como a Lei do Direito Autoral – LDA, reflitam e tenham por princípios tanto a liberdade como a justiça e solidariedade164. É primordial compreender que a própria liberdade individual só é possível mediante o respeito a esses direitos sociais165. A proteção total e integral à pessoa humana implica tanto a liberdade de expressão, inclusive artística, quanto a utilização e acesso aos bens essenciais à sua integridade físico-psico-social, dentre os quais os bens artístico-culturais. 162 Art. 4º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966): “Os Estados partes do presente Pacto reconhecem que, no exercício dos direitos assegurados em conformidade com o presente Pacto pelo Estado, este poderá submeter tais direitos unicamente às limitações estabelecidas em lei, somente na medida compatível com a natureza desses direitos e exclusivamente com o objetivo de favorecer o bem-estar geral em uma sociedade democrática”. 163 Constituição Federal do Brasil, art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana”. 164 Ibid., art. 3º: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária”. 165 Essa afirmação é premissa do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, deriva da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos e é ratificada no Pacto de São José da Costa Rica. 217 Encontram-se igualmente positivados nos principais tratados internacionais de direitos fundamentais, que recebem apreço especial em nosso ordenamento, por força dos §§ 2º166 e 3º167 da Constituição Federal do Brasil168, e cuja aplicação é imediata, por força do § 1º169. Dentre os tratados internacionais de direitos fundamentais ratificados pelo Brasil e de aplicação direta às questões aqui abordadas, podemos destacar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto de São José da Costa Rica. A Declaração Universal dos Direitos Humanos aborda no mesmo artigo tanto o direito à proteção quanto o direito de acesso, impondo sua conjunção170. O Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – ratificado pelo Decreto nº 591/1992 –, em seu preâmbulo, após reconhecer que esses direitos sociais derivam da própria dignidade humana171, afirma que o ideal de um homem livre não pode ser realizado sem que seja possível concretizar os direitos econômicos, sociais e culturais, bem como os civis e políticos172. Acrescenta ainda que todos – sem isentar nem autores nem, muito menos, titulares não autores – devem contribuir para a concretização desses direitos e da própria dignidade173. 166 “§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. 167 “§ 3º - Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. 168 Os §§ 3º e 4º do art. 5º foram acrescidos por força da Emenda Constitucional 45/04. 169 “§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. 170 “27.1.: Todo homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios. 27.2.: Todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor”. 171 “Reconhecendo que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana”. 172 “Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos.” 173 “Compreendendo que o indivíduo por ter deveres para com seus semelhantes e para com a coletividade a que pertence, tem a obrigação de lutar pela promoção e observância dos direitos reconhecidos no presente Pacto (...)” 218 Esse instrumento igualmente aponta os limites da restrição ao exercício desses direitos sociais174 e a essencialidade dos direitos fundamentais à educação175 e cultura176 para a completude da dignidade e do próprio exercício da liberdade, e seu caráter de obrigatoriedade é reforçado. O Pacto de São José da Costa Rica – documento internacional de Direitos Humanos das Américas – confirma, logo em seu preâmbulo, que o ideal de liberdade só poderá ser alcançado quando as condições permitirem que cada pessoa possa usufruir de seus direitos individuais e sociais177. Igualmente reafirmado é o direito de liberdade de expressão e da livre circulação de ideias e informações178. Concretiza a obrigatoriedade de sua efetivação progressiva, a ser alcançada por meio de diversos instrumentos, inclusive a utilização da via legislativa179. 174 “Art. 4º: Os Estados partes do presente Pacto reconhecem que, no exercício dos direitos assegurados em conformidade com o presente Pacto pelo Estado, este poderá submeter tais direitos unicamente às limitações estabelecidas em lei, somente na medida compatível com a natureza desses direitos e exclusivamente com o objetivo de favorecer o bem-estar geral em uma sociedade democrática”. 175 “Art. 13: Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz”. 176 “Art. 15, 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural; b) desfrutar o progresso científico e suas aplicações; c) beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que seja autor. 2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito aquelas necessárias à conservação, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura. 3. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa científica e à atividade criadora. 4. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura”. 177 Reiterando que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos. 178 “Art. 13 – Liberdade de Pensamento e Expressão: § 1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha. (...) § 5. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões”. 179 “Art 15: Os Estados-Membros comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados”. 219 A esses tratados devemos acrescer ainda as recentes Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural e Convenção para Promoção e Preservação da Diversidade Cultural. A Declaração, que foi aprovada na 31ª Assembleia Geral em novembro de 2001, antecedeu a Convenção propriamente dita. Seu principal efeito é a consolidação, no plano internacional, do direito fundamental à cultura180. Isso é obtido pelo reconhecimento internacional de sua relevância e encontra-se expresso nos seus termos, por meio dos quais as questões são apresentadas181. Traz também importante afirmação quanto à essencialidade e especialidade dos bens artístico-culturais, o que afeta como deve ser compreendida a proteção proprietária privada a esses bens concedida182. Informa ainda, como parte do plano de ação, o caráter fundamental do direito à cultura183 e insiste na necessidade de equilibrá-lo com os direitos autorais, preservando o máximo de ambos, como já demandara a Declaração Universal dos Direitos Humanos184. 180 “Art. 5º: Os direitos culturais são partes integrantes dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes. O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena realização dos direitos culturais, tal como os define o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e difundir suas obras na língua que deseje e, em partícular, na sua língua materna; toda pessoa tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que respeite plenamente sua identidade cultural; toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais”. 181 É de salutar leitura o preâmbulo, que sintetiza as razões e justificativas: “Reafirmando seu compromisso com a plena realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumentos universalmente reconhecidos, como os dois Pactos Internacionais de 1966 relativos respectivamente, aos direitos civis e políticos e aos direitos econômicos, sociais e culturais, Recordando que o Preâmbulo da Constituição da UNESCO afirma ‘(...) que a ampla difusão da cultura e da educação da humanidade para a justiça, a liberdade e a paz são indispensáveis para a dignidade do homem e constituem um dever sagrado que todas as nações devem cumprir com um espírito de responsabilidade e de ajuda mútua’, Recordando também seu Artigo primeiro, que designa à UNESCO, entre outros objetivos, o de recomendar ‘os acordos internacionais que se façam necessários para facilitar a livre circulação das ideias por meio da palavra e da imagem’, Referindo-se às disposições relativas à diversidade cultural e ao exercício dos direitos culturais que figuram nos instrumentos internacionais promulgados pela UNESCO, Reafirmando que a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças, Constatando que a cultura se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a identidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma economia fundada no saber, Afirmando que o respeito à diversidade das culturas, à tolerância, ao diálogo e à cooperação, em um clima de confiança e de entendimento mútuos, estão entre as melhores garantias da paz e da segurança internacionais, Aspirando a uma maior solidariedade fundada no reconhecimento da diversidade cultural, na consciência da unidade do gênero humano e no desenvolvimento dos intercâmbios culturais, Considerando que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução das novas tecnologias da informação e da comunicação, apesar de constituir um desafio para a diversidade cultural, cria condições de um diálogo renovado entre as culturas e as civilizações, Consciente do mandato específico confiado à UNESCO, no seio do sistema das Nações Unidas, de assegurar a preservação e a promoção da fecunda diversidade das culturas”. 182 “Art. 8º: Frente às mudanças econômicas e tecnológicas atuais, que abrem vastas perspectivas para a criação e a inovação, deve-se prestar uma particular atenção à diversidade da oferta criativa, ao justo reconhecimento dos direitos dos autores e artistas, assim como ao caráter específico dos bens e serviços culturais que, na medida em que são portadores de identidade, de valores e sentido, não devem ser considerados como mercadorias ou bens de consumo como os demais”. 183 “4. Avançar na compreensão e no esclarecimento do conteúdo dos direitos culturais, considerados como parte integrante dos direitos humanos”. 184 “16. Garantir a proteção dos direitos de autor e dos direitos conexos, de modo a fomentar o desenvolvimento da criatividade contemporânea e uma remuneração justa do trabalho criativo, defendendo, ao mesmo tempo, o direito público de acesso à cultura, conforme o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos”. 220 A qualificação desses tratados no ordenamento nacional passa por um processo de mudança, cujo marco político foi a Emenda Constitucional nº 45, de 2004. O marco judicial dessa transformação está sendo revisto a partir do Recurso Extraordinário nº 466.343. Esse julgamento é de extrema relevância também para os demais Poderes da República, no cumprimento do dever constitucional de realizar os direitos fundamentais até então não suficientemente considerados na proteção autoral. O Supremo Tribunal Federal, em síntese, coloca que sua interpretação sobre o papel dos direitos fundamentais originados dos tratados internacionais deve ser alterada e adequada a uma posição equitativa aos demais Direitos Fundamentais, significando que os tratados de direitos fundamentais devem passar a ter, então, uma posição intermediária, supralegal, entre a Constituição e as demais leis ordinárias185. Tal mudança resulta da “premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional”, que “torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre os direitos na ordem jurídica nacional”. Conclui-se que “diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico por meio de procedimento de ratificação previsto na Constituição tem o condão de paralisar a eficácia jurídica, de toda e qualquer disciplina infraconstitucional com ela conflitante”, complementando: “tendo em vista o caráter supra legal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com ele seja conflitante, também tem a sua eficácia paralisada. Isso ocorre também com toda legislação anterior” 186. Nesse sentido, todos os tratados internacionais, inclusive os que versam sobre os direitos fundamentais sociais – cultura, educação e informação – tornam-se imperiosos na nossa ordem jurídica, tanto quanto os direitos individuais, e os efeitos da concretização desses direitos sobre os direitos autorais deverão ser avaliados política e juridicamente, de forma a preservar o máximo de ambos na conformação dos limites de cada um desses conjuntos em face do outro. Essa decisão traz a superação de um suposto conflito, de uma dicotomia entre os direitos fundamentais individuais e sociais, permitindo a integração dos interesses que revolvem em torno da pessoa humana. 185 RE 466.343. Voto Gilmar Mendes, p 16: “Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana”. 186 Ibidem, p. 26 e ss. 221 Como apontado, os tratados internacionais que regulamentam a propriedade intelectual (e em especial os Direitos Autorais) preveem os critérios dentro dos quais os países podem estabelecer livremente os limites da proteção. Tanto a Convenção de Berna como o ADPIC/TRIPS estabelecem o “teste dos três passos” como o padrão de conformação dos limites da proteção, padrão este que os países se comprometem a respeitar. O acordo TRIPS define ainda, entre os seus objetivos, a necessidade – segundo alguns, a obrigatoriedade – de equilíbrio entre os direitos patrimoniais dos titulares de propriedade intelectual e os interesses da coletividade187. Quando se expõem os princípios que pautam a proteção, é reiterada a liberdade dos Estados-Membros de promover o interesse público e evitar o abuso dos titulares188. Portanto, desde que se obedeça aos limites impostos pelo “teste dos três passos”, podem e devem os Estados estabelecer o equilíbrio entre os interesses público e privado. Os citados três passos demandam que o estabelecimento de espaços de usos livres pelas legislações nacionais deve obedecer aos seguintes limites: (1) sejam casos especiais; (2) não prejudiquem a exploração normal da obra; e (3) não causem prejuízo injustificado ao titular. Obviamente, a interpretação desses limites internacionais impostos não pode ser tal que desvirtue do contexto sistêmico em que está inserido o “teste dos três passos” – pois o equilíbrio entre os interesses públicos e privados é essencial e indispensável, conforme positivado nos próprios tratados189. Por conseguinte, a interpretação do “teste dos três passos” deve ser direcionada a alcançar o equilíbrio entre os interesses econômicos do titular e os de acesso a bens essenciais da sociedade, sob pena de se desvirtuarem os seus objetivos primordiais. 187 “Art. 7º: A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social econômico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações”. 188 “Art. 8º: 1. Os Membros, ao formular ou emendar suas leis e regulamentos, podem adotar medidas necessárias para proteger a saúde e nutrição públicas e para promover o interesse público em setores de importância vital para seu desenvolvimento socioeconômico e tecnológico, desde que estas medidas sejam compatíveis com o disposto neste Acordo. 2. Desde que compatíveis com o disposto neste Acordo, poderão ser necessárias medidas apropriadas para evitar o abuso dos direitos de propriedade intelectual por seus titulares ou para evitar o recurso a práticas que limitem de maneira injustificável o comércio ou que afetem adversamente a transferência internacional de tecnologia”. 189 Nesse sentido, a “Declaração sobre o Teste dos Três Passos do Direito de Autor”, de autoria de Christophe Geiger, Jonathan Griffiths e Reto M. Hilty, elaborada em conjunto entre o Instituto Max Planck de Propriedade Intelectual e a Queen Mary University, é esclarecedora. Encontra-se disponível para assinatura no sítio eletrônico do Instituto Max Planck. 222 Recorde-se, ainda, que a Constituição Federal do Brasil demanda que qualquer propriedade atenda à sua função social190, sendo indiscutível a necessidade e obrigatoriedade de ampliação dos espaços de liberdade de utilização das obras artísticoculturais, de maneira que não se impeça ou dificulte o exercício e concretização dos direitos fundamentais à educação e cultura. Alcançar uma composição equilibrada entre os interesses fundamentais em jogo é o desafio mais urgente dos Poderes da República no que concerne à proteção jurídica dos direitos autorais. O fracasso em alcançar esse equilíbrio significará a redução injustificada dos direitos fundamentais dos cidadãos à educação e cultura e uma falha dos poderes em realizar suas obrigações constitucionais de progressiva concretização desses direitos. 3. OS USOS LIVRES FUNDAMENTAIS A legislação ordinária vigente mostra-se incapaz de harmonizar o conjunto de interesses que devem, obrigatoriamente, ser refletidos na lei ordinária. Esse processo de relativização das propriedades, imposto pela Carta Magna, deve ser consignado via legislação ordinária, que necessita obedecer ao princípio da proporcionalidade191. Uma interpretação literal, ou pouco informada, da legislação em vigor resultaria em uma desproporcionalidade gritante. A ostensiva difusão dessa visão pelos titulares e suas organizações configura uma forma de apropriação privada dos espaços públicos, para o qual utilizam argumentos de autoridade e ameaças visando impor privadamente os limites públicos que acharem convenientes. 190 Sobre esse aspecto, vale a reflexão do Ministro Gilmar Mendes, em seu voto no RE 466.343, p. 46 e ss.: “Sobre o direito de propriedade, pode-se afirmar que eventual redução legal das faculdades a ele inerentes pode ser vista sob uma dupla perspectiva: para o futuro, cuida-se de uma nova definição do direito de propriedade; em relação ao direito fundado no passado, tem-se uma nítida restrição. [...] Inexiste, todavia, um conceito constitucional fixo, estático, de propriedade, afigurandose, fundamentalmente, legítimas não só as novas definições de conteúdo como a fixação de limites destinados a garantir a sua função social. É que, embora não aberto, o conceito constitucional de propriedade há de ser necessariamente dinâmico. Nesse passo, deve-se reconhecer que a garantia constitucional da propriedade está submetida a um processo de relativização, sendo interpretada, fundamentalmente, de acordo com parâmetros fixados pela legislação ordinária. As disposições legais relativas ao conteúdo têm, portanto, inconfundível caráter constitutivo. Isso não significa, porém, que o legislador possa afastar os limites constitucionalmente estabelecidos. A definição desse conteúdo pelo legislador há de preservar o direito de propriedade enquanto garantia institucional. Ademais, as limitações impostas ou as novas conformações conferidas ao direito de propriedade hão de observar especialmente o princípio da proporcionalidade, que exige que as restrições legais sejam adequadas, necessárias e proporcionais. Como acentuado pelo Bundesverfassungsgericht, a faculdade confiada ao legislador de regular o direito de propriedade obriga-o a “compatibilizar o espaço de liberdade do indivíduo no âmbito da ordem de propriedade com o interesse da comunidade”. Essa necessidade de ponderação entre o interesse individual e o interesse da comunidade é, todavia, comum a todos os direitos fundamentais, não sendo uma especificidade do direito de propriedade. [...] Vê-se, pois, que o legislador dispõe de uma relativa liberdade na definição do conteúdo da propriedade e na imposição de restrições. Ele deve preservar, porém, o núcleo essencial (Wesensgehalt) do direito, constituído pela utilidade privada e, fundamentalmente, pelo poder de disposição. A vinculação social da propriedade, que legitima a imposição de restrições, não pode ir ao ponto de colocá-la, única e exclusivamente, a serviço do Estado ou da comunidade”. 191 Como exposto pelo atual Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, no RE 466.343, supracitado. 223 Isso ocorre, por exemplo, com relação à interpretação dos limites à proteção patrimonial dos direitos autorais, estabelecidos no art. 46 e seguintes da LDA, que insistem em dizer ser restritiva, quando a única solução juridicamente possível é a sua interpretação extensiva. Os diversos usos das obras artístico-culturais podem ser classificados em quatro grandes categorias, que são: (1) os usos patrimoniais reservados e privados, que dependem de autorização prévia do titular e pagamento; (2) os usos livres que independem de autorização, mas em que se deve compensar os autores e titulares, pois, pelo impacto comercial que causam, geram uma diminuição injustificada do potencial de rendimento econômico; (3) os usos livres que, sem finalidade lucrativa, e com objetivos de concretização de direitos fundamentais à educação e cultura, independem de remuneração ao autor ou titular; (4) os usos lícitos e incondicionais, inclusive para fins comerciais. Nesse campo têm-se as obras em domínio público. A nossa legislação prevê apenas três tipos de usos: patrimoniais privados e reservados; livres, mas restritos às finalidades de concretização de direitos fundamentais sociais (embora estes estejam insuficientemente previstos); e o das obras totalmente livres. Ainda não se encontra incorporada em nosso ordenamento a regulação das situações em que os usos devam ser livres, mas condicionados ao pagamento de direitos. Contudo, a preocupação principal desta exposição é com a indevida apropriação dos usos livres que objetivam a efetivação de direitos fundamentais essenciais e o relevante interesse público em jogo. É inadiável a construção e preservação desses espaços de liberdade, em que a própria cidadania cultural é construída. Ignorar o dever de construção destes espaços – inclusive jurídicos – de liberdade é ignorar os deveres constitucionamente impostos e relegar à inefetividade direitos fundamentais essenciais à própria formação da pessoa humana. Dentre as diversas dificuldades concernentes, destacam-se: (1) O ARQUIVAMENTO E PRESERVAÇÃO DO CONTEÚDO DA OBRA ARTÍSTICO - CULTURAL ORIGINAL, AINDA QUE COM FINALIDADE HISTÓRICA . Isso acontece atualmente, por exemplo, com a Biblioteca Nacional, cuja principal função legal de arquivamento e preservação encontra-se ameaçada e seus dirigentes e funcionários temem problemas jurídicos decorrentes do simples cumprimento de seu dever profissional. 224 De forma semelhante, mesmo o exercício dos direitos fundamentais básicos do consumidor, garantidos na Constituição Federal, estão ameaçados, como ocorre, por exemplo, com o simples arquivamento de obras ou a sua inserção em bancos de dados privados não disponibilizados publicamente, a exemplo da inclusão, em uma biblioteca virtual particular, das músicas de um CD adquirido legitimamente; ou, ainda, quando se quer ouvir música legitimamente adquirida em tocadores digitais de música (MP3, MP4 - dispositivos atuais equivalentes ao antigo walk-man); (2) OS USOS DIDÁTICOS DAS OBRAS PROTEGIDAS EM AMBIENTE DE ENSINO. Isso ocorre, por exemplo, com os livros de edição esgotada ou de difícil acesso, mas de uso essencial ao ensino ou pesquisa, condição para o aperfeiçoamento pessoal e profissional do cidadão e que não pode depender dos desejos dos titulares. Mesmo o uso de material audiovisual, por não estar expressamente previsto, é entendido pelos titulares como sendo não autorizado, ainda que seja contemplada a utilização de obras musicais e teatrais; (3) A PROMOÇÃO REGULAR E INCONDICIONAL DA VIDA SOCIOCULTURAL DA NAÇÃO, COM A NECES SÁRIA UTILIZAÇÃO – SEMPRE NÃO COMERCIAL - DAS OBRAS ESSENCIAIS À FORMAÇÃO CULTURAL BRASILEIRA E HUMANÍSTICA . A ocorrência de espaços de interação que possibilitem a participação de todos os cidadãos na vida sociocultural da nação é imperativa para que todos possam agir no processo de construção dos significados culturais. Essas atividades, que se desenrolam em espaços comunitários, preservam tradições, garantem a diversidade cultural, promovem novas formas de expressão e, mais importante, permitem a inclusão de cidadãos na construção social dos significados culturais que balizam as identidades. São promovidas, por exemplo, em cineclubes, grupos amadores de teatro, serestas informais, festejos culturais locais, espaços e centros comunitários, instituições de ensino e outros; (4) A ADAPTAÇÃO PLENA DONS BENS CULTURAIS PARA USO POR DEFICIENTES, SEJAM ELES AUDITIVOS, MOTORES OU MESMO VISUAIS ; Contemplando as obras cuja liberdade de uso é plena, podendo, por isso, serem utilizadas para qualquer finalidade – inclusive exploração econômica –, resta igualmente evidente a urgência de ampliar o rol das que compõem essa categoria, acrescentando ao domínio público as obras abandonadas ou órfãs ou as de titularidade desconhecida. 225 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Há, assim, uma clara necessidade de se prevenir conflitos, equilibrando a representação dos interesses na legislação, impedindo os abusos dos titulares e adequando a legislação à progressiva concretização do direito fundamental à educação e cultura. O próprio estabelecimento de usos livres é uma imposição que se justifica nos direitos fundamentais constitucionais e parte dos diversos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, com força vinculante, sendo hierarquicamente superiores às leis ordinárias, que com aqueles não podem conflitar, sejam anteriores ou posteriores aos Tratados ou à Constituição. A lei de direitos autorais, da maneira como se encontra, é especialmente afetada por essa posição, que a eiva de vícios e omissões e a inviabiliza. Os direitos autorais, como todos os direitos, são frutos de um processo histórico de construção e reconstituição dos institutos sociais – o que significa dizer que são e devem ser regularmente revisitados. Não há, portanto, nenhuma novidade na revisão da legislação. Nessa mais que necessária revisão, deve-se considerar que o país ainda está em desenvolvimento e não pode abrir mão da circulação das obras artístico-culturais para completar a formação social, cultural, política e histórica dos seus cidadãos, para que estes, aí sim, possam exercer plenamente a liberdade e assegurar sua dignidade. Além do mais, os direitos autorais pertencem ao gênero maior da propriedade intelectual, como as patentes, que estão funcionalizadas pela lei de propriedade industrial e são exemplos internacionais de liderança mundial exercida pelo Brasil. Podese e deve-se fazer o mesmo com os Direitos Autorais192. A inclusão de cláusulas gerais que busquem corrigir os desequilíbrios do sistema permitirá a abertura deste, tornando-o mais permeável às questões concretas que busca resolver e, portanto, mais eficiente para dirimir conflitos e para aplicação pelo judiciário193. A função social dos direitos autorais, que é constitucionalmente assegurada, pode ser garantida com algumas poucas alterações na legislação ordinária. 192 Não se deve esquecer que um substancial conjunto de usos livres cria demanda cultural e forma plateias, que, por sua vez, retroalimentam o próprio mercado de bens culturais, fechando o ciclo e favorecendo todos os atores. 193 A utilização dessa técnica legislativa foi muito bem sucedida com relação, por exemplo, ao Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o novo Código Civil Brasileiro. 226 Além de uma cláusula geral reafirmando o condicionamento constitucional, devese incluir – para fortalecer o equilíbrio dos interesses público e privado e a segurança jurídica – a referência direta ao mencionado “teste dos três passos” para guiar a interpretação sobre a extensão dos usos livres permitidos e a redefinição do artigo 46, apontando situações exemplificativas de usos livres. Dentre esses usos livres, devem ser especificadas as reproduções, apresentações, representações, execuções e exibições não concorrenciais para fins exclusivamente privados, educativos e culturais ou para a preservação da cultura e história material da sociedade e nação. Já as relações entre autores artistas e empresas titulares podem ser equilibradas com a o reconhecimento, via cláusula geral, do direito legal à remuneração equitativa pela exploração econômica de sua criação194, e através do fortalecimento da posição contratual dos autores. Muitos dos problemas carecem de uma instância de intermediação e regulação para que sejam encaminhadas soluções de forma ágil. Os conflitos atuais e futuros podem ser direcionados à resolução mediante a criação de um órgão administrativo, com funções consultivas e arbitrais, como ocorria com o extinto Conselho Nacional de Direitos Autorais – CNDA. Essas são algumas das sugestões para aperfeiçoamento do sistema nacional de proteção das obras artístico-culturais. 194 O direito de remuneração equitativa, reconhecido via cláusula geral, deve ser complementado para garantir a efetiva circulação da obra – dever contratual e legal do editor e do distribuidor – e o direito constitucional de fiscalização por parte do autor. Este último, obviamente, também deve receber prestação de contas correta, direta e regularmente por parte do editor, distribuidor ou entidade arrecadadora de direitos, independentemente do que estiver estabelecido em contrato. 227 R EFERÊNCIAS ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito de autor no ciberespaço. In: ________. Direito da internet e da sociedade da informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002. ________. Direito da internet na sociedade de informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002. ________. Direitos de autor e direitos conexos. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. BARROSO, Luís Roberto. 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