Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesa

Transcrição

Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesa
Propriedade Intelectual
nos Países de Língua Portuguesa:
Temas e Perspectivas
Rio de Janeiro, 2011
Organização
Ana Célia Castro
Cristina de Albuquerque Possas
Manuel Mira Godinho
Propriedade Intelectual
nos Países de Língua Portuguesa:
Temas e Perspectivas
Rio de Janeiro, 2011
© 2011 Ana Célia Castro, Cristina de Albuquerque Possas e Manuel Mira Godinho
Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte
e que não seja para venda ou qualquer fim comercial. A responsabilidade pelos direitos autorais de textos e
imagens dessa obra é da área técnica.
1ª edição – 2011
Produção Editorial
Capa, Projeto Gráfico e Diagramação: Fernanda Dias Almeida - Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais,
Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde
Revisão: Angela Gasperin Martinazzo - Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância
em Saúde, Ministério da Saúde.
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
CIP-Brasil. Catalogação na Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ
______________________________________________________________________________________
P958
Propriedade intelectual nos países de língua portuguesa : temas e perspectivas /
organização Ana Célia Castro, Cristina de Albuquerque Possas, Manuel Mira Godinho. - Rio de
Janeiro : E-papers, 2011.
231p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7650-323-1
1. Propriedade intelectual. I. Castro, Ana Célia. II. Possas, Cristina de Albuquerque. III. Godinho,
Manuel Mira
11-7963.
CDU: 347.77
______________________________________________________________________________________
Títulos para indexação:
Em inglês: Intellectual Property in the Portuguese Speaking Countries: Issues and Perspectives
Em espanhol: Propiedad Intelectual en los Países de Lengua Portuguesa: Temas y Perspectivas
S UMÁRIO
Prefácio .................................................................................................................................................................................................... 7
Introdução ............................................................................................................................................................................................ 9
I. Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesa: Sinergias e Oportunidades.... 15
1. Propriedade intelectual - tendências globais ............................................................................................................17
Por João Paulo Remédio Marques
2. Propriedade intelectual: racional de utilização e desafios futuros em países de
língua portuguesa ...........................................................................................................................................................................55
Por Manuel Mira Godinho
II. Inovação, Propriedade Industrial e Acesso a Produtos de Saúde .......................................75
3. Patentes biotecnológicas e o acesso a produtos de saúde uma perspectiva europeia e luso-brasileira ......................................................................................................................77
Por João Paulo Remédio Marques
4. Políticas de saúde, aids e propriedade industrial em Moçambique..........................................................111
Por Eusebio Chaquisse
5. Acesso aos medicamentos antirretrovirais: desafios em propriedade
intelectual para os países de língua portuguesa ........................................................................................................127
Por Cristina de Albuquerque Possas
6. As ciências de saúde em Moçambique: o papel da propriedade intelectual .....................................145
Por Maria Teresa Araújo
III. Propriedade Intelectual na Agricultura e Conhecimentos Tradicionais .........................149
7. Propriedade intelectual na agricultura e conhecimentos correlatos em Moçambique...............151
Por Jorge Ferrão, Américo Uaciquete e Camilo Cuna
8. Educação para a inovação: ações do INPI no âmbito da agricultura ........................................................159
Por Rita Pinheiro-Machado
9. Regimes tecnológicos e propriedade intelectual na agricultura: o papel das novas instituições......173
Por Ana Célia Castro, Sérgio Paulino de Carvalho e Marcos Paulo Fuck
IV. Direitos Autorais e Desenvolvimento ...................................................................................187
10. Inovação e propriedade intelectual na indústria de software na América Latina .........................189
Por Paulo Bastos Tigre e Felipe Silveira Marques
11. Dilemas da legislação autoral no Brasil .....................................................................................................................211
Por Allan Rocha de Souza
P REFÁCIO
Este livro aborda de forma inovadora um tema estratégico para a colaboração
científica e tecnológica na comunidade dos países de língua portuguesa: a questão
da propriedade intelectual, tratada de forma abrangente, em uma perspectiva
transdisciplinar.
Esse esforço colaborativo, possibilitado pela rede de pesquisa que se estabeleceu
entre os países em torno do tema, certamente contribuirá para a identificação do
estado da arte e de prioridades e lacunas na investigação nessa área, abrangendo
questões diversas e complexas: inovação e acesso a produtos de saúde, cruciais para
o enfrentamento da pandemia de aids e outros agravos; agricultura e conhecimentos
tradicionais; direitos autorais e desenvolvimento.
O fortalecimento dessa rede será certamente estratégico para a ampliação do
esforço de investigação, informando as políticas públicas e as estratégias de apoio à
ciência e tecnologia nos diferentes países.
Dirceu B. Greco
Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais
Secretaria de Vigilância em Saúde
Ministério da Saúde
7
I NTRODUÇÃO
1. Este livro é o produto da profícua rede de cooperação científica – Rede de Ensino
e Pesquisa em Propriedade Intelectual (REPPI) – que se construiu, entre as principais
instituições acadêmicas e de pesquisa dos países da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa com atuação nessa área.
O objetivo da Rede é discutir uma agenda de interesse comum aos países da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em matérias relacionadas com
os direitos de propriedade intelectual. Os temas abordados incluem: as flexibilidades do
Acordo TRIPS; o direito à saúde; a singularidade da propriedade intelectual na agricultura
e os conhecimentos tradicionais; os diferentes modelos de negócio em software; os
direitos de autor; as indústrias criativas. A discussão sobre esses temas possibilitou
um aprofundamento das questões envolvendo os direitos da propriedade intelectual,
em uma moldura que destaca a sua dimensão pública, conectada com a inovação, o
desenvolvimento e as mudanças institucionais.
Os resultados desse esforço, aqui apresentados, apontam para o fato de que países
com níveis diferenciados de desenvolvimento enfrentam, da mesma maneira, questões
que estão na fronteira do conhecimento, e se deparam com conflitos que envolvem:
a propriedade intelectual das inovações e as demandas crescentes da sociedade por
acesso universal a insumos estratégicos de saúde pública, como medicamentos e vacinas;
os processos de catching up na agricultura; e, finalmente, as questões estratégicas de
direitos autorais em softwares e de acesso à cultura.
2. O livro encontra-se organizado em quatro seções, da forma que se detalha a seguir.
A primeira seção – Propriedade intelectual nos países de língua portuguesa:
sinergias e oportunidades – é composta de dois artigos.
Remédio Marques, professor da Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal), realiza
relevantes reflexões sobre as tendências mundiais da propriedade intelectual e sobre
a influência da globalização no regime do direito de autor, bem como dos direitos
conexos, discutindo o impacto dessas mudanças no regime das utilizações livres de
direito de autor, em particular a cópia privada. Seu trabalho possibilita considerações
sobre o regime da gestão coletiva dos direitos de autor, destacando a questão do direito
de autor tecnológico e a proteção de criações técnico-funcionais, com importantes
implicações sobre a CPLP.
Manuel Mira Godinho, professor catedrático do ISEG (Instituto Superior de Economia
e Gestão, da Universidade Técnica de Lisboa) discute, em profundidade, os fundamentos
do sistema de propriedade intelectual e os desafios suscitados pela utilização da
propriedade intelectual, do ponto de vista das estratégias privadas e das políticas
públicas, em países de língua portuguesa. O trabalho concentra-se nos fundamentos
9
teóricos da propriedade intelectual, de patentes e marcas, e trata dos aspectos práticos
da utilização e desenvolvimento do sistema de propriedade intelectual nas décadas
mais recentes. Esse duplo enfoque, teórico e prático, permite extrair um conjunto de
conclusões cruciais para entender os desafios que a propriedade intelectual coloca em
países de língua portuguesa.
Na segunda seção –, Inovação, propriedade industrial e acesso a produtos de saúde
–, têm-se quatro artigos abordando aspectos distintos do tema.
O segundo artigo de Remédio Marques, “Patentes biotecnológicas e o acesso a
produtos de saúde – uma perspectiva europeia e luso-brasileira”, apresenta uma visão
sobre as patentes de medicamentos nos países de língua portuguesa, destacando a
influência do Acordo TRIPS na União Europeia e nos países de língua portuguesa.
Aponta, neste trabalho, para as distintas configurações da patenteabilidade dos métodos
terapêuticos, diagnósticos e cirúrgicos, visando a regulação pública da comercialização
de medicamentos e o acesso da população aos medicamentos genéricos, destacando
a questão das licenças compulsórias e da exportação de fármacos para os países com
graves problemas de saúde pública.
No artigo “Políticas de saúde, aids e propriedade industrial em Moçambique”,
Eusébio Chaquisse, Coordenador do Núcleo Provincial de combate ao HIV em Nampula,
Moçambique, o autor apresenta dados sobre a pandemia do HIV e aids no país e sobre
os Planos Estratégicos e Políticas em curso para enfrentá-la, destacando a expansão do
acesso e gratuidade do tratamento antirretroviral (TARV) e a delegação de tarefas no
âmbito da TARV aos clínicos não médicos, aconselhamento e testagem voluntária e na
comunidade, a formação de técnicos de medicina, a prevenção da transmissão vertical
e a proteção de trabalhadores infectados no local de trabalho.
Em seu artigo “Acesso aos medicamentos antirretrovirais: desafios em propriedade
intelectual para os países de língua portuguesa”, Cristina de Albuquerque Possas, Chefe
da Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Departamento de DST, Aids
e Hepatites Virais do Ministério da Saúde do Brasil, discute os desafios em propriedade
intelectual frente às crescentes demandas por acesso aos antirretrovirais, intensificadas
pela pandemia de HIV e aids. Apresenta, para cada um dos países da CPLP, uma síntese
dos principais indicadores epidemiológicos e das condições de acesso ao tratamento
antirretroviral, destacando a necessidade de fortalecimento da capacidade de produção
local dos medicamentos ARV e da ampliação das condições de acesso a estes, por meio
de um conjunto de políticas voltadas à redução dos preços: negociação de preços,
ampliação da competição por genéricos, licenças compulsórias, pools de patentes e
importação paralela.
Em “As ciências de saúde em Moçambique: o papel da propriedade intelectual”,
Maria Teresa Araújo, Diretora da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Lúrio,
discute a questão da situação de desvantagem no âmbito da propriedade intelectual
10
envolvendo a cooperação internacional, que pôde observar ao longo dos anos na sua
condição de funcionária da Organização Mundial da Saúde. Mostra que essa situação é
extremamente lesiva para os pesquisadores e inovadores moçambicanos que, sem terem
instrumentos legais de proteção da propriedade intelectual a que possam recorrer, veem
prejudicados seus interesses e direitos pessoais e nacionais, decorrentes da apropriação
indevida e abuso intelectual. Conclui observando que tal situação só será revertida por
meio da aprovação de leis e respectivos regulamentos de aplicação que forneçam os
instrumentos indispensáveis para a proteção dos direitos de propriedade intelectual.
A terceira seção, Propriedade intelectual em agricultura e conhecimentos
tradicionais, é composta de três artigos.
O primeiro artigo, de Jorge Ferrão, Reitor da Universidade de Lúrio, Américo
Uaicquete e Camilo Cuna, professores da mesma Universidade, sobre Propriedade
intelectual na agricultura e conhecimentos correlatos em Moçambique, discute a
praticabilidade do direito de propriedade intelectual na agricultura em Moçambique,
apontado para as restrições impostas em sociedades em que a maioria das pessoas não
possui escolaridade suficiente para aceitar qualquer lei que altere o seu modus vivendi. Os
autores apontam para o principal desafio a ser superado: embora exista uma estratégia
nacional sobre propriedade intelectual, sua implementação acaba se circunscrevendo a
uma discussão mais teórica e institucional, já que, na prática, o ordenamento jurídico e
as instituições do Estado não consagraram, ainda, os direitos de propriedade intelectual
como instrumento de defesa dos interesses nacionais e dos respectivos detentores
dessa propriedade.
O segundo artigo, de Rita Pinheiro Machado, coordenadora de Pesquisa e Educação
em Propriedade Intelectual, Inovação e Desenvolvimento do Instituto Nacional de
Propriedade Industrial (INPI) do Brasil, intitulado “Educação para a inovação: ações do
INPI no âmbito da agricultura”, apresenta e discute a atuação e estratégias do INPI nessa
área. Ressalta que, no contexto da nova política industrial, os desafios concentram-se no
aumento da capacidade inovativa, no porte e no investimento em P&D pelas empresas
brasileiras, destacando a suma importância do entendimento do sistema de propriedade
intelectual, seus marcos legais e seus mecanismos pelos atores inovadores. Menciona
os resultados do importante esforço conjunto, nessa direção, entre a Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento, e o INPI, que fizeram convergir seus interesses, por meio de Acordo
de Cooperação em vigor, no sentido de promover o entendimento sobre o sistema de
propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida em patentes pelos
pesquisadores e corpo técnico da Embrapa.
O terceiro artigo, de Ana Célia Castro, Professora Titular da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas,
Estratégias e Desenvolvimento, Sérgio Paulino de Carvalho, Diretor de Articulação e
11
Informação Tecnológica do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, e Marcos Fuck,
Professor do Centro de Engenharia da Universidade Federal do ABC, intitulado “Regimes
tecnológicos e propriedade intelectual na agricultura: o papel das novas instituições”,
examina as condições de formação de um novo regime tecnológico na agricultura.
Discute também o processo de catching up do sistema brasileiro de pesquisa agrícola,
destacando a nova institucionalidade em curso na pesquisa e na transferência das novas
tecnologias geradas no processo de melhoramento vegetal. O novo regime tecnológico
que emerge do processo de catching up revela uma diferente articulação entre os atores
públicos e privados participantes desse processo, e principalmente novas instituições,
entre as quais as formas de apropriabilidade do esforço inovativo decorrentes do
fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual.
Na quarta seção – Direitos autorais e desenvolvimento – têm-se dois artigos
abordando aspectos distintos do tema.
No primeiro desses artigos, “Inovação e propriedade intelectual em software, por
Paulo Bastos Tigre, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Felipe
Silveira Marques, Doutorando do IE/UFRJ, aponta-se para o fato de que, embora
os direitos de propriedade intelectual constituam um instrumento de estímulo à
inovação, podem também obstaculizar a difusão do conhecimento na economia. Os
autores ilustram esse conflito apresentando o caso da área de software, em que a
proteção de patentes é dificultada pelo fato de os ativos serem intangíveis e replicáveis
praticamente sem custos. Discutem-se, também, as práticas de proteção à propriedade
intelectual tomando por base o caso latino-americano, examinando-as à luz de sua
eficácia enquanto instrumento de estímulo à inovação e difusão das tecnologias
da informação. Conclui-se que é necessário harmonizar interesses conflitantes que
transcendem o aspecto técnico, levando em consideração a necessidade de assegurar
novos modelos de negócios e respeitar os acordos internacionais vigentes.
Finalmente, o segundo artigo, de Allan Rocha, Professor e Pesquisador em
Direitos Autorais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Instituto Nacional
da Propriedade Industrial do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, intitulado “Legislação autoral no Brasil: conflitos e soluções”, aponta
para o fato de que a atual legislação é insatisfatória e marcada pela assimetria e pelo
desequilíbrio, permitindo uma expansão exacerbada dos interesses dos titulares em
prejuízo dos interesses dos elos realmente essenciais: o criador e o público. Mostra
que a excessiva concentração da titularidade em poucas entidades empresariais
e o obsessivo controle dos usos – inclusive os não comerciais – por essas poucas
entidades acabam conduzindo a um desvio funcional e estrutural injustificado do
foco da proteção das obras artístico-culturais. O autor conclui o artigo apresentando
diversas sugestões para o aperfeiçoamento do sistema nacional de proteção das
obras artístico-culturais no Brasil.
12
3. Esta publicação, ao buscar refletir sobre questões relacionadas à inovação, essenciais
ao desenvolvimento e situadas na fronteira do conhecimento, propõe transcender uma
visão que tende a privilegiar apenas as dimensões assistencialistas no enfrentamento
da exclusão social nos países da CPLP. Embora também relevante, tal visão não
permite aproveitar e explorar de forma sistemática as oportunidades que se abrem aos
países em consequência da introdução e difusão da inovação e dos conhecimentos
economicamente relevantes.
Tendo em conta essa perspectiva mais abrangente, pretendeu-se constituir uma
rede de docentes e pesquisadores, que, além do ensino e da pesquisa, certamente
poderá contribuir para o aperfeiçoamento das posições da CPLP nas negociações
internacionais. Esse processo será favorecido pela afinidade linguística e cultural que
une os países da Comunidade.
O presente livro, que é o resultado do I Seminário, privilegia o tratamento
interdisciplinar e intersetorial de diversas questões de política científica, tecnológica
e industrial, contribuindo com informações estratégicas que poderão subsidiar as
políticas governamentais voltadas ao desenvolvimento econômico e social nos países
mencionados.
Cabe destacar, finalmente, o caráter inovador das distintas abordagens teóricas
e metodológicas que fundamentaram os artigos apresentados, e que constituem
certamente uma importante contribuição ao tema. Com esse enfoque original, questões
cruciais e complexas são tratadas de forma criativa, possibilitando a compreensão,
em abordagens diversas, das novas articulações em curso entre política, economia
e regulação, sob a ótica do desenvolvimento e do interesse público, nos países da
comunidade da CPLP.
Ana Célia Castro
Cristina de Albuquerque Possas
Manuel Mira Godinho
13
I
NOS
P ROPRIEDADE I NTELECTUAL
P AÍSES DE L ÍNGUA POR TUGUESA :
S INERGIAS E O POR TUNIDADES
CAPÍTULO
P ROPRIEDADE I NTELECTUAL –
1
TENDÊNCIAS GLOBAIS 1
João Paulo F. Remédio Marques 2
1
Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho
de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.
2
Professor da Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal), Mestre em Ciências Jurídico-Forenses, Doutor em Direito
(Propriedade Intelectual).
1. I NTRODUÇÃO :
PRERROGATIVAS RÉGIAS, PROPRIEDADE INTELECTUAL E INTERESSE
PÚBLICO
O atual direito de propriedade intelectual teve as suas primícias, como todos sabem,
nos finais da Idade Média, nos séculos XIV e XV, quando os soberanos começaram a usar
o seu poder para criar privilégios de diferente jaez. O uso dessas prerrogativas soberanas
régias no sentido da criação de exclusivos comerciais, industriais e, no século XVI, de
exclusivos destinados à impressão de livros, tornou-se uma prática muito divulgada em
toda a Europa do final da Idade Média e inícios do Renascimento.
Com o renascimento das cidades no sul e no norte da Europa (Bruges, Hamburgo,
Lisboa, Barcelona, etc.) e com o centralismo régio, tanto os soberanos quanto os poderes
autônomos do governo dessas cidades “descobriram” que uma forma de introduzir novas
tecnologias, de atrair recursos laborais e de controlar a liberdade de expressão, então
sob o controle dos editores, consistia na concessão de privilégios de comercialização, de
introdução de novas manufaturas ou indústrias e de impressão de livros em série.
Se, inicialmente, esse poder era exercido discricionariamente pelos soberanos ou
pelos príncipes, gradativamente ele foi sendo enquadrado nas novas funções do poder
legislativo, na medida em que se surpreendeu uma eminente função de prossecução
do interesse público no exercício dessas prerrogativas de autoridade. O Estatuto dos
Monopólios britânico, de 1604, constituiu um claro exemplo desse movimento.
Mas, por outro lado, a concessão das patentes por parte do soberano era já
circunscrita ao território do respectivo Estado: o princípio da territorialidade permanece
ainda hoje um elemento fundamental dos vários subsistemas da propriedade intelectual
(direito de autor e direitos conexos, e direitos de propriedade industrial).
A articulação entre as patentes e o interesse público já é claramente assumida por
James Madison, nos Federalist Papers (1787-1788), nos então recém-nascidos Estados
Unidos da América, segundo o qual o bem comum deve coincidir com as pretensões dos
indivíduos, ideal normativo que se encontra consagrado no artigo 1, Seção 8, Cláusula 8ª,
da Constituição dos E.U.A., no sentido da “promotion of progress in science and the useful
arts”. Da mesma sorte, a mudança ocorrida na Inglaterra, em 1716, pela qual passou a
ser requerida a descrição do invento e a forma de o atuar, traduz o reconhecimento da
tutela do interesse público (na divulgação da tecnologia e da execução do invento) por
ocasião da concessão de direitos de patente.
Por outro lado, a modelação desse subsistema das patentes (e dos modelos de
utilidade) foi efetuada de uma forma plenamente instrumental à medida dos objetivos
político-econômicos dos Estados soberanos: basta atentar para a forma como, a partir
de finais do século XIX, a Alemanha, a Suíça, a França e o Reino Unido modelaram
18
os respectivos regimes jurídicos em atenção à patenteabilidade dos produtos e dos
processos utilizados na indústria química e, logo, em atenção à concentração empresarial
e ao reforço do poder desses grupos econômicos.
2. A GLOBALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL
Gradativamente, foi sendo erodida essa concepção soberana, territorialmente
delimitada e imune a quaisquer movimentos de harmonização procedimental ou material
do direito de patente, no seio das organizações internacionais.
Esse movimento começou, como é sabido, com a Convenção de Paris para a
Proteção da Propriedade Industrial (mais conhecida por Convenção da União de Paris), em
20 de março de 1883, subscrita inicialmente por 11 países, entre eles Portugal e Brasil.
O princípio do tratamento nacional e o direito de prioridade foram, provavelmente, os
dois maiores compromissos aí assumidos. Essa Convenção da União de Paris, constitutiva
de uma União para a proteção da propriedade industrial, já pretendia concretizar o
sonho de um direito de patente substantivamente uniformizado no quadro das nações
civilizadas - longe, porém, de o ter concretizado.
Mais de 100 anos depois, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI/
WIPO) constatou, em 1988, que, dos então 98 Estados Contratantes dessa Convenção da
União de Paris, 49 excluíam a patenteabilidade de fármacos; 45 proibiam a patenteabilidade
das raças animais; 42 afastavam a outorga de patentes relativas aos métodos de terapia,
cirúrgicos e de diagnóstico; 44 vedavam essa patenteação às variedades vegetais; 35
impediam a concessão de patentes sobre os alimentos; 32 proibiam a patenteabilidade
das invenções respeitantes a programas de computador; e 22 Estados Contratantes não
concediam patentes a invenções de produtos químicos3.
Essa diversidade legiferante traduz a forma, não raras vezes, instrumental como os
Estados contratantes da Convenção de Paris usam esse subsistema da propriedade
industrial. Em alguns casos, inclusivamente, essa visão instrumentalista serviu
prioritariamente a certos interesses públicos: basta ver as alterações da lei de patentes
da União Indiana, ocorridas em 1970, no sentido da promoção do desenvolvimento
econômico e, sobretudo, no sentido de prevenir o aumento do custo dos medicamentos
para uso humano4, por meio, inter alia, da proibição da patenteabilidade dos
medicamentos enquanto patentes de produto.
3
“Existence, scope and form of generally internationally accepted and applied standards/norms for the protection of intellectual
property”, World Intellectual Property Organization, WO/INF/29 September 1988, GATT Document number MTN:GNG/NG11/
W/24/Rev.1.
4
RAMANNA, Anita, “Shifts in India’s Policy on Intellectual Property: The Role of Ideas, Coercion and Changing Interests”, in DRAHOS,
Peter (ed.), Death of Patents, Queen Mary Intellectual Property Institute, Lawtext Publishing Limited, 2005, p. 175 ss.
19
Um outro exemplo é o controverso poder jurídico que, a partir de 2001, no Brasil,
foi concedido à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para emitir um parecer
vinculante (a “anuência prévia” 5) sobre a concessão de patentes às invenções de novos
fármacos e processos farmacêuticos, enquanto proposta de resolução dirigida ao INPI
brasileiro, que o vincula aos aspectos da invenção6 que a essa ANVISA cumpre apreciar
- regime que, ao que parece, também vigora no Paraguai.
A essa concepção soberana e territorial da regulamentação da propriedade industrial,
maxime do direito de patente, opôs-se, já desde o Congresso de Viena de 1873, uma
concepção universalista. À luz desse outro paradigma, ainda em finais do século XIX,
os direitos naturais dos inventores formam a base jusnaturalista para a unificação ou a
globalização do direito de patente.
Embora as várias revisões da Convenção da União de Paris tenham sido importantes,
essa globalização foi totalmente lograda com o Acordo TRIPS, a partir de 1995, por meio
do qual foram estabelecidos padrões normativos mínimos quanto ao objeto da proteção,
aos requisitos de proteção e às medidas de aplicação efetiva dos direitos de propriedade
intelectual.
Mas já antes, em 1970, com o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (Patent
Cooperation Treaty: PCT), se havia alcançado alguma uniformização dos procedimentos
de patenteabilidade entre os três maiores institutos de patentes (Instituto de Patentes
e Marcas dos E.U.A., o Instituto Europeu de Patentes e o Instituto Japonês de Patentes),
especialmente a partir das conferências trilaterais, que têm tido lugar desde 1983.
À parte o Conselho do TRIPS, o certo é que desde 1983 a Organização Mundial da
Propriedade Intelectual tem estado na senda da harmonização dos aspectos substantivos
do direito de patente: a Conferência Diplomática da Haia, de 1991, aprovou uma
proposta de Tratado sobre Direito de Patente.
5
6
Conforme preceitua o artigo 229º-C do Código da Propriedade Industrial brasileiro, na redação da Lei nº 10.196, de 2001.
A rigor, parece-me que a competência da ANVISA, no que tange a essa proposta de resolução (parecer vinculante) fundada
no pedido de patente, apenas deverá recair sobre a eficácia, a bioequivalência e a segurança (e, eventualmente, a violação da
ordem pública e dos bons costumes no setor da saúde) do medicamento para que é pedida a constituição do direito de patente;
essa competência (scilicet, competência vinculante para o INPI brasileiro) não deverá recair sobre os aspectos respeitantes
à novidade, à industrialidade, à atividade inventiva, à suficiência da descrição ou ao objeto de proteção (v.g., admissibilidade
de patentes do segundo e dos usos terapêuticos subsequentes de substâncias ativas já conhecidas; a admissibilidade da
patenteabilidade dos polimorfos, etc.).
20
3. AS
EXPRESSÕES REGIONAIS DA CONCEPÇÃO UNIVERSALISTA DA PROPRIEDADE
INTELECTUAL : A OPORTUNIDADE DO ENCONTRO DA LUSOFONIA NA PROPRIEDADE
INTELECTUAL
Essa concepção universalista da propriedade intelectual, et, pour cause, do direito de
patente, teve importantes expressões regionais. Atualmente, existem cinco organizações
regionais de propriedade intelectual e de direito de patente:
•
•
•
•
•
A Organização Africana de Propriedade Intelectual (OAPI: aglutinadora dos países
de expressão linguística francesa).
A Organização Regional Africana de Propriedade Intelectual (ARIPO, que aglutina
os países de língua oficial inglesa).
A Organização Eurasiana de Patentes.
A Convenção sobre a Patente Europeia.
O Instituto de Patentes do Conselho de Cooperação do Golfo.
Talvez seja este o momento para propor a discussão da gênese de uma outra
organização internacional regional: a Organização de Propriedade Intelectual dos Países
de Expressão de Língua Oficial Portuguesa, destinada a estabelecer a promoção e a
cooperação nesse domínio, maxime dos institutos nacionais de propriedade industrial,
em matéria de objeto e critérios substanciais de proteção, bem como no quadro dos
procedimentos administrativos de proteção (v.g., realização de exames, pelos institutos de
outros Estados de expressão de língua portuguesa, a determinados tipos de pedidos
de proteção, centralização de alguns procedimentos, troca de informações sobre o
estado da técnica ou as divulgações anteriores, etc.) e na difusão e intercâmbio do
conhecimento jurídico sobre a propriedade intelectual (v.g., acesso on line a bases de
dados, para o efeito da pesquisa sobre o estado da técnica; realização de ações de
formação). A sua gênese tanto poderia residir na formação de uma associação privada
de propriedade intelectual provida de representantes desses países, como na criação
de uma pessoa de direito público internacional a partir da celebração de um acordo
internacional multilateral com os representantes dos respectivos Estados. As primícias
poderão consistir apenas em um Protocolo por meio do qual se criam as condições para
a partilha e a difusão dos conhecimentos em matéria de propriedade intelectual. Estará,
provavelmente, longínquo o tempo em que virá a ser possível, mediante um (único)
procedimento administrativo centralizado, peticionar e obter direitos de propriedade
industrial unitários, vigentes simultaneamente em todos os Estados contratantes de
expressão de língua portuguesa, e assim desligados do princípio da territorialidade e da
independência dos direitos dessa natureza.
21
A mais importante e decisiva instância em matéria de direito de patente é, porém,
a Convenção Sobre a Patente Europeia, a qual, por meio do seu Instituto Europeu de
Patentes, prevê um procedimento administrativo centralizado de exame e de oposição à
concessão, pelo qual se autoriza a dedução de um único pedido de patente que, quando
concedido, se transforma em um feixe de múltiplas patentes nacionais (scilicet, a partir
de 12 de dezembro de 2007, da totalidade dos Estados contratantes dessa organização
internacional regional, ficando o titular livre de limitar posteriormente a proteção apenas
a alguns deles).
Todos os Estados-Membros da União Europeia são membros da Convenção sobre a
Patente Europeia (doravante, CPE), mas o inverso (ainda) não é verdadeiro7. Isso significa
que essas duas organizações internacionais regionais estão umbilicalmente ligadas em
matéria de propriedade intelectual, o que foi notório por ocasião da aprovação da Diretiva
nº 98/44/CE, sobre o regime jurídico das invenções biotecnológicas, a qual suscitou, de
imediato, a alteração, em 1999, do Regulamento de Execução da CPE8. Essa integração
dos regimes substantivos e procedimentais ainda não foi (totalmente) lograda.
Na verdade, embora exista, desde 1975, uma proposta acerca da criação do regime
jurídico da patente comunitária (subordinada ao princípio da unidade e dotada de
eficácia extraterritorial, de jeito a vigorar simultaneamente em todos os ordenamentos
jurídicos dos Estados-Membros da União Europeia), está ainda em discussão a proposta
de regulamento comunitário para a criação de uma patente comunitária, datada de
2003. A par dessa proposta, acha-se em acesa discussão a proposta de um Sistema
Europeu de Resolução de Litígios em Matéria de Patentes, de 2004 (European Patent
Litigation Agreement: EPLA) - sistema menos ambicioso que apenas visa a criação de
uma jurisdição unitária susceptível de resolver litígios em matéria de infração de direitos
de patentes e de pedidos de anulação de patentes (Tribunal Europeu de Patentes)9, que
não de um sistema fundado no princípio da unidade e da extraterritorialidade dos direitos
de patente adrede concedidos10. Neste último caso, muitos advogam a criação de uma
estrutura jurisdicional unificada susceptível de resolver litígios em matéria de patentes
europeias e da futura patente comunitária11, com base em um acordo internacional
7
A Noruega, a Suíça, a Islândia, o Lichtenstein, a Croácia e a Turquia não são membros da União Europeia, mas são Estados
contratantes da CPE. Outros Estados europeus, que não são membros da União Europeia, nem da Convenção sobre a Patente
Europeia (CPE), reconhecem nos respectivos territórios a validade e a eficácia das patentes europeias concedidas pelo Instituto
Europeu de Patentes. É o caso da Albânia, da Bósnia-Herzegovina, da Sérvia e da antiga República Iugoslava da Macedônia.
8
Cfr. as Regras 23-b (definições), 23-c (invenções biotecnológicas patenteáveis), 23-d (exceções à patenteabilidade), 23-e
(o corpo humano e os seus elementos destacáveis), 28 (depósito da matéria biológica) e 28-a (novo depósito de matérias
biológicas), aprovadas pela Decisão do Conselho de Administração do Instituto Europeu de Patentes, de 16 de junho de
1999, com início de vigência em 1 de setembro de 1999, in http://www.epo.org/patents/law/legal-texts/decisions/
archives/16061999.html.
9
Provido de um tribunal de 1ª instância (com seções regionais sediadas nos Estados-Membros) e de um tribunal de recurso.
10
Cfr. a mais recente comunicação da Comissão Europeia ao Parlamento Europeu e ao Conselho, Bruxelas, Com(2007), 29-0307, intitulada “Enhancing the patent system in Europe”, pp. 9-11.
22
celebrado entre a União Europeia e a Convenção da Patente Europeia. As mais de
800.000 patentes europeias concedidas e em vigor em 2005 - a cujos litígios, após a
fase da concessão e da oposição junto do Instituto Europeu de Patentes, se aplicam as
variegadas regras materiais e processuais nacionais dos Estados contratantes da CPE (a
maioria deles Estados-Membros da União Europeia) - reclamam a urgente criação de
um sistema material e processual uniformizado, capaz de congregar o direito comunitário
derivado e o direito dessa outra organização internacional regional: a Convenção da
Patente Europeia.
De todo modo, ainda não foram ultrapassados os vários problemas de integração
das instituições criadas no seio dessas duas Organizações Internacionais regionais: a
integração jurisdicional (criação de um tribunal comunitário dotado de competência
para apreciar e julgar os pedidos de invalidação e de violação da patente comunitária
e, eventualmente, de pedidos de indenização por perdas e danos), profissional
(disciplina da atividade dos agentes da propriedade industrial não juristas) e linguística
(desnecessidade de efetuar as traduções dos pedidos de patentes para as línguas oficiais
dos Estados-Membros).
Todavia, a propriedade intelectual tem-se integrado no nível dos acordos bilaterais,
o que também propiciou a harmonização do seu regime jurídico material. Por exemplo,
o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) e o Mercosul contribuem, de
várias formas, para a fixação de bitolas mínimas de proteção dos direitos de propriedade
intelectual12.
No nível bilateral, a União Europeia e, sobretudo, os E.U.A., têm vindo a usar a sua
influência e peso negociais, de modo a estabelecer acordos bilaterais de livre comércio
susceptíveis de elevar os níveis de proteção da propriedade intelectual a estalões até
agora nunca experienciados (p. ex., a consagração da proibição da apresentação do
pedido e a concessão de autorização administrativa de comercialização de medicamentos
genéricos enquanto vigorarem os direitos de patente sobre os medicamentos de
referência; obrigatoriedade da proteção das variedades vegetais por direito de patente,
obrigatoriedade da proteção por direito de patente de produto das matérias biológicas
meramente isoladas do seu ambiente natural, etc.). Mas é tudo menos certo que os
E.U.A. e a União Europeia usem esse mecanismo dos acordos regionais de livre comércio
para o efeito de promover a diversidade dos regimes do direito de patente.
Em matéria de direito de patente, a experiência recente tem mostrado que o retorno
ao bilateralismo - protagonizado pelos E.U.A. - visa alcançar os níveis mais elevados de
11
Essa estrutura incluiria tribunais de 1ª instância de competência especializada em matéria de patentes sediados nos EstadosMembros da União Europeia, cujas decisões, pautadas por regras materiais e procedimentos uniformes (eventualmente
fundados no Regulamento (CE) nº 44/2001, sobre a competência dos tribunais em matérias civis e comerciais), seriam objeto
de recurso para o Tribunal de 1ª instância da União Europeia e, ultima ratio, para o Tribunal de Justiça da União Europeia.
12
DRAHOS, Peter, “BIT’s and BIP’s – Bilateralism in Intellectual Property”, in Journal of World Intellectual Property, vol. 4, 2001, p.
791 ss.
23
proteção dos direitos de propriedade intelectual, não raras vezes ao arrepio dos interesses
públicos e dos interesses gerais da coletividade.
Em suma, caminha-se a passos largos para um sistema de direitos de patente
mundialmente harmonizado, provido de elevados níveis de proteção - promovidos pelos
lobbies das multinacionais europeias e estadunidenses13 - em desfavor das diversidades
regionais de regimes jurídicos, a que não é estranha a globalização da regulação que a
esse nível tem ocorrido: isso desde o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (Patent
Cooperation Treaty), passando pelo Acordo TRIPS e pelo Tratado sobre Direito de Patente
(Patent Law Treaty). E o mesmo ocorre, embora em menor medida, com os restantes
“tipos” de propriedade intelectual (v.g., direitos de autor e direitos conexos, desenhos ou
modelos industriais, direito de marca, topografias de produtos semicondutores).
4. A
CONTRACORRENTE ( NA LUSOFONIA ) AO PARADIGMA UNIVERSALISTA DA PRO -
PRIEDADE INTELECTUAL
Perspectiva-se, contudo, uma estratégia alternativa em termos de contracorrente
relativamente a esse paradigma universalista e maximalista da proteção da propriedade
intelectual, em particular no quadro do direito de patente e nos países cuja fauna e flora
encerra uma enorme diversidade biológica, como acontece com a maioria dos países de
expressão de língua oficial portuguesa.
É, na verdade, possível perseguir uma política legislativa agressiva na proteção
de invenções por direito de patente e, ao mesmo tempo, assegurar a proteção dos
recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais das populações, relativamente à sua
localização, identificação, manipulação e preparação.
Todos estes nossos países unidos pela língua portuguesa podem (e devem) reforçar
a sua posição no que tange ao domínio dos recursos biológicos informacionais.
O Brasil tem-no feito, desde 2000 (rectius, desde a Medida Provisória nº 2.052, de 20
de junho de 200014). Portugal instituiu, desde 2002, um regime jurídico de proteção, algo
complexo, dos recursos genéticos vegetais autóctones e dos conhecimentos tradicionais
associados, pelo qual podem ser criados direitos sui generis de propriedade industrial
- bem como pode ser efetuada uma espécie de apropriação estadual pública do acesso
13
14
DRAHOS, Peter; BRAITHWAITE, John. Global Business Regulation, Cambridge, Cambridge University Press, 2000, p. 27.
Cfr. GÖTTING, Horst-Peter, “Biodiversität und Patentrecht”, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, Internationaler Teil,
2004, p. 371 ss., p. 735; SILVA, Marina, “Medida Descabida”, in CARNEIRO, Fernanda / EMERICK, Maria Celeste (eds.), Limites: A
ética e o Debate Jurídico sobre o Acesso e Uso do Genoma Humano, Rio de Janeiro, dezembro de 2000, p. 209 ss.; FIORILLO, Celso
/ DIAFÉRIA, Adriana, Biodiversidade e Património Genético no Direito Ambiental Brasileiro, São Paulo, Max Limonad, 1999, p. 371
ss.; CARNEIRO, Ana Cláudia Mamede, “Acesso a Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais Associados e Repartição
de Benefícios”, in Revista da ABPI, n. 88, maio / junho 2007, p. 3 ss.; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade
Intelectual, vol. II, Obtenções Vegetais, Conhecimentos Tradicionais, Sinais Distintivos, Bioinformática e Bases de Dados, Direito da
Concorrência, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 334-344.
24
a tais recursos, a mais da precípua criação de uma base de dados dos recursos genéticos
que forem sendo objeto da proteção - e assegurada a partilha dos benefícios econômicos
obtidos por meio do acesso e da manipulação de tais recursos biológicos15.
Ora, isso permite, a um tempo, sindicar mais rigorosamente o requisito da novidade
dos inventos obtidos a partir de tais recursos genéticos, corpóreos ou incorpóreos,
constituir um acervo de informações juridicamente coisificáveis e, por consequência,
um acervo apto a poder ser objeto de negócios (v.g., contratos de partilha de proveitos
resultantes da exploração econômica das invenções obtidas a partir de tais recursos).
Estratégias, essas, que, ao rejeitarem a ideia de que esses conhecimentos e
recursos são uma espécie de “patrimônio comum da Humanidade”, livremente fruíveis
por todos, privilegiam, uno actu, a construção de quadros legais dirigidos à proteção
elevada desses direitos subjetivos privados de propriedade industrial e à exaustiva
documentação e proteção dos recursos genéticos e dos conhecimentos associados em
favor das comunidades locais, ainda que personificadas nos municípios ou em outras
autarquias ou pessoas coletivas locais, públicas ou privadas, sem finalidades lucrativas.
Por outro lado, detectam-se aqui e ali expressões da resistência à hiperproteção
de certas inovações pelos direitos de propriedade intelectual ou expressões dirigidas à
manutenção, à outrance, dos exclusivos já concedidos e dos monopólios de fato que por
meio deles são exercidos.
Os dispositivos do TRIPS-Plus negociados entre os E.U.A. e os Estados com quem
têm vindo a celebrar Acordos de Livre Comércio são o resultado dessa hiper-proteção,
maxime no setor farmacêutico, quais sejam, por exemplo16:
•
O prolongamento ou a extensão dos direitos de patente para além do prazo
de 20 anos (que sucedeu ao tradicional prazo de 4 ou de 15 anos, o qual durou
até ao advento do TRIPS).
•
A existência de um condicionamento preclusivo entre a vigência de uma
patente respeitante a um medicamento de referência e a aprovação e registro
de um genérico desse medicamento de referência.
•
A proteção dos dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos comunicados às
entidades sanitárias, para efeitos de emissão da autorização de comercialização
do genérico do medicamento de referência.
•
A abolição das restrições à patenteabilidade.
•
A restrição da concessão de licenças compulsórias por motivos de falta de
exploração do invento no país ou por razões de interesse público.
15
Cfr. o Decreto-Lei nº 118/2002, de 20 de abril. Veja-se, para mais desenvolvimentos, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s)
e Propriedade Intelectual, vol. II, cit., 2007, pp. 620-680.
16
Veja-se, na doutrina brasileira, CHAVES, Gabriela Costa / OLIVEIRA, Maria Auxiliadora / HASENCLEVER, Lia / DE MELO, Luiz
Martins, “A evolução do sistema internacional de propriedade intelectual: proteção patentária para o setor farmacêutico e
acesso a medicamentos”, in Cadernos de Saúde Pública (Rio de Janeiro), vol. 32, nº 2, 2007, p. 257 ss., p. 264 ss.
25
No Brasil, temos o caso das denominadas patentes pipeline e da repercussão no
Brasil da extensão dessas patentes no país de origem. E temos também a questão do
exercício negativo da “anuência prévia”, por parte da ANVISA17, maxime em relação à
concessão de patentes para as segundas e subsequentes indicações terapêuticas
propiciadas por substâncias químicas já divulgadas. Isso já para não falar da proibição
da patenteabilidade dos seres vivos, no todo ou em parte, exceto os micro-organismos
geneticamente manipulados (artigo 18, inciso III, do Código da Propriedade Industrial –
CPI brasileiro de 1996)18.
Em Portugal e em muitos outros países, assistimos a tentativas de estabelecer uma
ligação preclusiva ou condicionadora entre a vigência dos direitos de patente sobre os
ingredientes ativos de medicamentos e o início do procedimento administrativo de
registro de medicamentos genéricos e de aprovação do seu preço máximo de venda ao
público - medicamentos bioequivalentes porque incorporam a mesma substância ativa junto à autoridade sanitária portuguesa competente (o INFARMED – Autoridade Nacional
do Medicamento)19.
5. A
AXIOLOGIA DA CONCEPÇÃO UNIVERSALISTA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL :
JUSNATURALISMO E PERSONALISMO VERSUS EFICIÊNCIA
Todavia, se se perguntar quais são os fundamentos axiológico-jurídicos dessa
concepção universalista dos direitos de propriedade intelectual, ficamos apenas com
a algo amarga sensação de que tais soluções arrancam dos paradigmas neoliberais
baseados na eficiência e na maximização da riqueza. Que as concepções jusnaturalistas,
personalistas ou de justiça distributiva estão apartadas dessa legitimidade-legitimação da
atual propriedade intelectual, parece assim ser um dado adquirido.
17
Veja-se, recentemente, JANNUZI, Anna Haydée / VASCONCELLOS, Alexandre / DE SOUZA, Cristina Gomes, “Especificidades
do patenteamento no setor farmacêutico: modalidades e aspectos da proteção intelectual”, in Cadernos de Saúde Pública (Rio
de Janeiro), vol. 26, nº 6, 2008, p. 1.205 ss., p. 1208.
18
Lembre-se, todavia, que, para efeitos de patenteabilidade, é estreito o alcance da expressão “micro-organismo transgênico”,
visto que o § único desse artigo 18º preceitua que tais microrganismos são “organismos, exceto o todo ou parte de plantas
ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição, uma característica normalmente não
alcançável pela espécie em condições naturais”.
Assim se vê que no Brasil, diferentemente do que acontece na União Europeia, no E.U.A., no quadro dos outros Estados
Contratantes da CPE, na Austrália, na Nova Zelândia ou no Japão, não são patenteáveis, em termos de patente de produto, as
matérias biológicas (v.g., sequências genéticas, aminoácidos, bactérias, vírus, péptidos, células, etc.) meramente isoladas do
seu ambiente natural por meio de um processo técnico, nem as que, tendo sido geneticamente manipuladas, mimetizam as
propriedades ou as características das suas congéneres preexistentes na Natureza.
19
Sobre essa problemática, cfr. agora, J. P. REMÉDIO MARQUES, Medicamentos Versus Patentes – Estudos de Propriedade Industrial,
Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 14 ss.
26
Parecem, ao invés, prevalecer os argumentos de índole funcional ou instrumental,
baseados na eficiência econômica20.
Como explicar, de fato, a patenteabilidade de sequências genéticas, de células
geneticamente manipuladas, de péptidos, de invenções de programas de computador,
de métodos de fazer negócios ou, na Europa, como legitimar a proteção das bases de
dados (a extração e/ou a reutilização de partes substanciais dessas bases de dados),
mediante a constituição de um “direito especial” do fabricante dessas bases de dados
senão mediante a necessidade de remunerar o investimento econômico efetuado pelas
empresas?
Repare-se que, nessas eventualidades, já não está tanto em causa a remuneração do
trabalho intelectual dos criadores, mas antes a expansão do universo dos quia susceptíveis
de proteção pelos diferentes “tipos” ou “categorias” de propriedade intelectual, pois
somente assim se percepcionam os incentivos para o investimento.
Só que essa hiperinflação patenteária - essa “corrida às patentes” -, e a proliferação
global do patentear de todas e quaisquer realidades propiciadas pela enorme expansão
do objeto de proteção do direito de patente, gerará provavelmente a diminuição do valor
mercadológico dessas mesmas patentes, visto que é mínimo o nível inventivo atualmente
exigido como requisito de proteção. Além disso, poderá ocorrer uma espécie de
“tragédia” dos antibaldios (anti-commons)21, onde os titulares dos direitos podem vir a
suportar “custos de transação” inultrapassáveis, na eventualidade de o legislador ou os
tribunais (com o auxílio da doutrina jurídica) não procederem à adequada limitação do
âmbito de proteção dessas patentes ao real contributo técnico que efetivamente o titular
alcançou em face do teor das reivindicações e da descrição dos inventos.
Se assim for, os níveis de inovação (mesmo a inovação meramente incremental)
tenderão a diminuir e os agentes irão preferir regressar a um tempo em que era elevada
a distância entre o estado da técnica e a solução técnica concretamente reivindicada (nível
inventivo) a partir do qual podiam ser concedidos direitos de patente. Isso se os agentes
não seguirem uma outra estratégia, segundo a qual é preferível ser um poderoso titular
de uma patente “fraca”22, especialmente se puder ser dotado de um poder econômico
bastante para desfrutar de uma posição dominante no mercado.
20
STERCKX, Sigrid, “The Ethics of Patenting – Uneasy Justifications”, in DRAHOS, Peter (ed.), Death of Patents, Queen Mary
Intellectual Property Institute, University of London, Lawtext Publishing Limited, 2005, p. 175 ss., p. 193 ss.
21
ARAÚJO, Fernando, A Tragédia dos Baldios e dos Anti-Baldios – O Problema Económico do Nível Óptimo de Apropriação, Coimbra,
Almedina, 2008, p. 191 ss., p. 215 ss. (sobre os remédios para os antibaldios).
22
DRAHOS, Peter, “Death of a Patent System – Introduction”, in DRAHOS, Peter (ed.), Death of Patents, cit., 2005, p. 1 ss., p. 10.
27
6. A ATUAL CONSTELAÇÃO DOS INTERESSES EM JOGO: GLOBALIZAÇÃO VERSUS A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL VERSUS O REFORÇO DOS NÍVEIS
DE PROTEÇÃO
Surpreendem-se, no entanto, movimentos contestatários aos atuais modelos
de desenvolvimento econômico, expressão dos movimentos de antiglobalização
econômica, os quais têm vindo a marcar valiosos pontos na edificação das soluções
jurídico-políticas internacionais sobre a regulação do acesso, da utilização e da
preservação da diversidade biológica.
Desde logo, têm sido colocadas sérias objeções quanto à patenteabilidade das
invenções de plantas, animais e microrganismos enquanto matérias preexistentes na
natureza e geradoras de meras descobertas enquanto tal e, por isso, não patenteáveis.
Movimentos, estes, que tentam alterar o disposto no artigo 27º/3 do Acordo TRIPS, ao
arrepio do bloco formado pelos E.U.A., União Europeia, Suíça, Japão e os interesses da
maioria das empresas multinacionais farmacêuticas23.
Estamos, pois, no campo da normatividade negociada construída em vários
aerópagos internacionais: na “Comissão sobre os Recursos Genéticos Vegetais para
a Alimentação e Agricultura”, no seio da F.A.O., na Organização Mundial do Comércio,
na Conferência das Partes no quadro da Convenção sobre a Diversidade Biológica e na
Organização Mundial da Propriedade Intelectual.
As visões dos céticos da propriedade intelectual confrontam-se permanentemente
com as posições assumidas pelos corifeus do movimento que advoga o reforço do licere
ou das faculdades jurídicas inerentes aos direitos de propriedade intelectual.
Descortinam-se, no entanto, tentativas de imprimir maior pluralismo na ação dos
atores mundiais da propriedade intelectual.
Nota-se o trânsito dessas questões no âmbito da própria Comissão dos Direitos
Humanos das Nações Unidas, em particular, na “Subcomissão para a Promoção e Proteção
dos Direitos Humanos”, a qual adotou, em agosto de 2000, uma resolução, desprovida
embora de vinculatividade jurídica, intitulada “Intellectual Property Rights and Human
Rights”.
Essa resolução sinalizou vários problemas, tais como:
1. Os obstáculos resultantes da aplicação dos direitos de propriedade
intelectual em matéria de transferência de tecnologia para os países em
desenvolvimento.
2. As consequências emergentes da concessão de direitos de obtentor de variedades
vegetais e de direitos de patentes relativamente a organismos geneticamente
manipulados, em matéria de exercício e proteção do direito à alimentação.
23
PUGATCH, Meir Perez, The International Political Economy of Intellectual Property, Edward Elgar, Cheltenham, Northampton,
2004, pp. 162-163.
28
3.
A (in)desejável redução dos poderes jurídicos das populações e comunidades
locais relativos à participação procedimental nos mecanismos de alocação dos
recursos genéticos e dos objetos culturais.
4. A restrição do acesso aos medicamentos patenteados, o preço (elevado) desses
fármacos e a influência desse regime no gozo do direito à saúde24.
Vemos, assim, que o objeto e o âmbito de proteção dos direitos de propriedade
intelectual se confrontam com a consideração dos direitos humanos enquanto posições
jurídicas fundamentais limitativas da constituição dos exclusivos industriais e do
respectivo âmbito de proteção.
Discute-se, hoje, a interferência dos direitos humanos no contexto da propriedade
intelectual. A questão já foi colocada no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos - no caso,
ITP SA v. Coflexip Stena Offshore Lts (2004) -, a propósito de uma ação interposta, nesse
tribunal, pelo titular de uma patente que fora revogada com base no fato de não dispor
(seja no Estado da sede, o Reino Unido, seja junto ao Instituto Europeu de Patentes) de
mecanismos de impugnação de decisões tomadas pelas Câmaras Técnicas de Recurso do
Instituto Europeu de Patentes, o que ofenderia o direito a um julgamento justo (artigo 6º/1
da Convenção Europeia dos Direitos Humanos).
Esse tipo de discussões relança a um primeiro plano a importância do direitoliberdade geral de agir (in casu, a liberdade de iniciativa econômica privada, a liberdade de
pesquisa, de informação e de comunicação), a crença na economia de mercado, a crença
de que as pessoas não são mônadas, que apenas perseguem interesses egoísticos, e a
necessidade de serem devidamente sopesados os interesses gerais da coletividade.
O que significa que, embora os direitos de propriedade intelectual (pelo menos
o direito de autor e o direito de patente) possam constituir direitos fundamentais de
natureza análoga ou, inclusivamente, direitos constitucionais fundamentais25, creio que
o reconhecimento ou a constituição dessas situações jurídicas subjetivas devem ser
havidas como exceções à regra26. E a regra é a liberdade, a liberdade de iniciativa econômica
privada; a liberdade de referência; a liberdade de citação, etc. No mínimo, parece razoável
sustentar que há outros valores e interesses providos de um idêntico estalão (o valor da
liberdade de expressão e de comunicação, o interesse em imitar as prestações de outrem,
o valor da sã e leal concorrência).
24
J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 54-46; KUR, Anette, “A
new framework for intellectual property rights – horizontal issues”, in International Review of Industrial Property and Copyright
Law, 2004, p. 1 ss. (a autora salienta, também, a necessidade de, perante esses desafios, estabelecer redes de pesquisa research networks - constituídas não apenas por juristas, mas por pessoas oriundas de outras disciplinas científicas).
25
J. J. GOMES CANOTILHO, “Liberdade e Exclusivo na constituição”, in Direito Industrial, Almedina, Coimbra, p. 57 ss., pp. 62-63.
26
CORNISH, William, Intellectual Property, Omnipresent, Distracting, Irrelevant?, Oxford University Press, 2004, pp. 113-114; J. P.
REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., p. 47.
29
Ora, vistas assim as coisas, o regime jurídico correspondente a cada um dos direitos
de propriedade intelectual deve ser o adequado e o necessário e, portanto, deve ser o
proporcional à prossecução dos objetivos que cada um dos exclusivos intelectuais ou
industriais visa realizar nos casos concretos27. Devem, assim, ser tomados em devida
conta os interesses paramétricos dos consumidores, dos concorrentes e da população em
geral, não apenas por ocasião da constituição ou do reconhecimento em concreto de
um direito de propriedade intelectual, mas também por ocasião da delimitação desse
âmbito de proteção.
7. A
INFLUÊNCIA DA GLOBALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL QUANTO AO
ALARGAMENTO DAS REALIDADES QUE PODEM SER PROTEGIDAS POR DIREITOS DE
PROPRIEDADE INTELECTUAL E QUANTO AO ÂMBITO DE PROTEÇÃO DESSES DIREITOS
Ocorreu (e ocorre) todo um movimento de contestação, muitas vezes não
institucionalizada e dotada, não raras vezes, de expedientes de ação direta, aos processos
de globalização da propriedade intelectual. Essa contestação marca muitos pontos a
seu favor.
De fato, os direitos de propriedade intelectual foram, de alguma maneira,
instrumentalizados para proteger os espectaculares avanços logrados nas tecnologias da
informação e nas biotecnologias aplicadas ao setor das indústrias químicas e farmacêuticas.
Se esses avanços foram, muitas vezes, alcançados por meio de financiamentos oriundos
de empresas privadas em parcerias com institutos e universidades públicas (parcerias
público-privadas), à luz dessa lógica era necessário evitar a todo o custo o fenômeno
dos “passageiros clandestinos” (free riders) e a reprodução não autorizada das obras, das
ideias inventivas industriais ou das prestações empresariais protegidas pelos direitos de
propriedade intelectual.
Essa aparente vulnerabilidade perante o perigo da imitação ou da reprodução
conduziu à concentração empresarial e a um movimento de pressão a favor do aumento
dos níveis de proteção do subsistema jurídico da propriedade intelectual. E o Acordo
TRIPS mais não fez do que, ao harmonizar planetariamente o regime dos vários “tipos”
ou “categorias” de propriedade intelectual, enfocar a preocupação sobre os objetos ou as
realidades a proteger e a atribuição da titularidade28.
27
No plano oposto, sobre os requisitos das leis restritivas de direitos de autor, GOMES CANOTILHO, José Joaquim, “Liberdade
e Exclusivo na Constituição”, cit., 2005, pp. 66-67.
28
MAY, Cristopher, A Global Political Economy of Intellectual Property Rights, The new enclosures?, Routledge, London, 2000,
reimpressão, 2002, p. 73.
30
Veja-se a diretriz constante do artigo 8º do TRIPS: embora os Estados Contratantes
possam adotar medidas adequadas à proteção da saúde pública, da nutrição e da
promoção do interesse público, o certo é que essa tutela dos interesses públicos
somente pode ser licitamente atuada se e quando for compatível com o disposto nas
restantes regras e regimes jurídicos previstos nesse mesmo Acordo (v.g., a regra da não
discriminação da patenteabilidade em função dos setores da tecnologia; os princípios
do tratamento nacional e da nação mais favorecida; a inversão do ônus da prova nas
patentes de processo; a proteção das informações clínicas não divulgadas; a existência
de processos eficazes de aplicação efetiva dos direitos de propriedade intelectual contra
quaisquer atos de infração, etc.)
Essa globalização do regime da denominada propriedade intelectual também se
fez sentir, como referi, na expansão do acervo de objetos ou de realidades passíveis de
proteção por esses direitos de exclusivo. Vejamos apenas alguns exemplos:
Desde logo, a proteção por direito de patente das invenções que implicam programas
de computador. Na União Europeia e no seio da CPC (Comunity Patent Convention), isso
foi conseguido a partir de meados dos anos oitenta do século passado29 por mor de
uma interpretação restritiva das exclusões à patenteabilidade previstas no artigo 52º/2
e 3 da CPE (maxime a expressão “programas de computador como tal”; e a expressão
programas de computador “sem qualquer contributo”, constante do artigo 52º/1, alínea
d), do Código da Propriedade Industrial - CPI português de 2003).
Depois, a possibilidade de reivindicar e patentear o segundo e os subsequentes
usos ou aplicações terapêuticas de uma substância química já conhecida. No Brasil, essa
prática vem sendo rejeitada pela ANVISA30, sendo porém admitida à luz do CPI brasileiro
e das diretrizes para exame no setor biotecnológico e farmacêutico31 emitidas pelo próprio
29
A partir da decisão T 208/84, de uma das Câmaras Técnicas de Recurso do Instituto Europeu de Patentes, no caso VICO (in
Official Journal of the European Patent Office, 1987, p. 14 = http://www.epo.org). Essa evolução pode ver-se desenvolvidamente
em J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. II, 2007, cit., pp. 706-736; BERESFORD, Keith,
Patenting Software Under the European Patent Convention, Sweet & Maxwell, London, 2000, p. 47 ss.; MISSOTTEN, Stephanie,
“La brevetabilité du logiciel et des méthodes commerciales”, in Droits Intellectuels: à la recontre d’une stratégie pour l’enterprise,
Bruylant, Bruxelles, 2002, p. 101 ss., p. 106 ss.
30
Sobre isso, cfr. DE SOUZA, Marcela Trigo, “Should Brazil Allow Patents on Second Medical Uses?”, in Revista da ABPI, n. 93,
março/abril 2008, p. 53 ss., p. 61 ss. (contra a recusa da ANVISA em conceder a “anuência prévia” desse tipo de patentes, regime
que também existe, ao que parece, no Paraguai – CHAVES, Gabriela Costa / OLIVEIRA, Maria Auxiliadora / HASENCLEVER, Lia
/ DE MELO, Luiz Martins, “A evolução do sistema internacional de propriedade intelectual: proteção patentária para o setor
farmacêutico e acesso a medicamentos”, in Cadernos de Saúde Pública (Rio de Janeiro), vol. 23, n. 2, 2007, p. 257 ss., p.264);
tb. BARBOSA, Denis Borges, Uma Introdução à Propriedade Intelectual, Lúmen Iuris, 2ª edição, 2003, p. 442 (pronunciando-se
contra a atribuição à ANVISA, ou a qualquer outra entidade pública, de um poder discricionário relativamente ao exercício
do direito de requerer uma patente e ao direito de esta ser concedida, uma vez respeitados os requisitos objetivamente
plasmados na lei, quais sejam, a novidade, a atividade inventiva, a industrialidade, etc.).
31
INPI, Diretrizes Para Exame no Sector Biotecnológico e Farmacêutico, §§ 2.39.2.3. e 2.39.2.4 (aplicáveis aos pedidos efetuados a
partir de 31/12/2004).
31
INPI brasileiro32, bem como agora, de modo expresso, no CPI português de 2003 (artigo
54º/1, alíneas a) e b), na redação do Decreto-Lei nº 143/2008, de 25 de julho).
Em terceiro lugar, no quadro da União Europeia e da CPE, a patenteabilidade de
animais e de vegetais, se e quando a exequibilidade técnica do invento não se limitar
a uma única variedade vegetal ou raça animal, abertura que também se verifica nos
E.U.A. e na Austrália, bem como em todos os Estados com quem os E.U.A. celebraram
Acordos de Livre Comércio no âmbito do TRIPS plus (Panamá, México, Colômbia, Marrocos,
Jordânia, etc.); outrossim, a patenteabilidade das matérias biológicas meramente isoladas
do seu ambiente natural, incluindo os genes (humanos ou de outra origem biológica)
ou as sequências de genes.
Em quarto lugar, o regime dos desenhos ou modelos industriais permite agora a
proteção das características da aparência dos produtos artesanais33.
Em quinto lugar, o exclusivo conferido pelo direito de marca pode abarcar domínios
ultramerceológicos para os quais o sinal não fora registrado, como acontece no caso
das marcas renomadas ou de grande prestígio; e, por vezes, é conferida proteção às
marcas olfativas, o que parece infringir o princípio da capacidade distintiva34 e torna
excepcionalmente difícil, incerta ou mesmo impossível a determinação do círculo de
proteção do direito relativamente a outras marcas susceptíveis de serem julgadas iguais
ou semelhantes.
Quanto ao âmbito de proteção desses direitos de exclusivo, cabe referir, desde já, a
possibilidade aberta, na União Europeia, nos E.U.A. e também no Brasil - embora aqui
de forma vaga, genérica e, por isso, potencialmente “perigosa” e incerta para os agentes
econômicos interessados (artigo 41º, § 1 do CPI brasileiro) - no sentido de sancionar a
violação indireta do direito de patente, expediente que tem sido utilizado, igualmente,
no subsistema do direito de autor.
32
No quadro da CPE, a proteção da segunda e das subsequentes aplicações terapêuticas de substâncias já conhecidas é
admitida desde a decisão T 182/82, in Official Journal of the European Patent Office, 1984, p. 164; GÓMEZ SEGADE, José Antonio,
“La patenteabilidad de la segunda indicación médica de un producto farmacéutico”, in Actas de Derecho Industrial, Tomo IX,
1983, p. 241 ss.; SZABO, George, “Second medical and non-medical indication – The relevance of indications to novel subjectmatter”, in Zehn Jahre Rechtsprechung der Groβen Beschwerdekammer, Carl Heymanns Verlag, Köln, Berlin, Bonn, München,
1996, p. 11 ss.
Na Europa, hoje discute-se, a mais disso, a questão da patenteabilidade da segunda ou das subsequentes utilizações para a
mesma aplicação terapêutica de uma substância já conhecida, respeitantes a novas formas de apresentação ou de dosagem.
Cfr. o caso G 2/08, para efeitos de uniformização de jurisprudência, atualmente pendente na Grande-Câmara de Recurso do
Instituto Europeu de Patentes, suscitado pela decisão T 1319/04, de 22/04/2008 (in http://www.epo.org.): patenteabilidade do
uso de uma substância ativa já conhecida em uma nova e inventiva terapia aplicada à mesma doença, onde o nível inventivo
e a novidade da invenção (de uso) podem residir na dosagem dessa substância.
33
Artigo 3º, alínea b), do Regulamento (CE) nº 6/2002, do Conselho, de 12/12/2001, sobre o regime dos desenhos ou modelos
comunitários; artigo 174º/1 do CPI português de 2003.
34
GONÇALVES, Luís Couto, “Marca olfativa e o requisito de representação gráfica”, in Cadernos de Direito Privado, n. 1, 2003, p.
14 ss.; TRIGONA, Riccardo, Il marchio, la ditta, l’insegna – Recenti sviluppi legislativi e giurisprudenziale, Cedam, Padova, 2002, pp.
35-36.
32
Trata-se, em suma, daquelas situações em que o titular goza da faculdade jurídica de
impedir que, no Estado da proteção, terceiros coloquem no comércio ou comercializem
os meios respeitantes a elementos essenciais da invenção, tal como fora reivindicada, para
a por em prática por parte de pessoas não autorizadas a fazê-lo, quando esses terceiros
sabem ou não podem desconhecer que, de acordo com as circunstâncias, esses meios
são aptos a por em prática a invenção protegida. Inúmeras legislações contêm previsões
desse tipo35. Nessas eventualidades, a fabricação, a importação ou a venda de um produto
- normalmente um componente de uma máquina, de um sistema informático ou uma
matéria biológica que não tenha sido objeto de uma reivindicação independente - não
infringe, por si só, a patente, mas pode ser usado pelo adquirente desses meios para
a violar36. É o caso, por exemplo, da exportação para a China de componentes de um
sistema informático patenteado na Alemanha ou em Portugal, para o efeito de aí serem
montados e, de seguida, serem importados para o território dos Estados (europeus) da
proteção.
35
Por exemplo, o § 10(1) da Patentgesetz alemã de 1981; a Seção 60(2) do Patent Act do Reino Unido, de 1977; a Secção 117
do Patent Act australiano, de 1990; o art. L 613-4 do Code de la propriété intellectuelle francês, de 1992; o artigo 51, nº 1, da Ley
de Patentes espanhola, de 1986.
O artigo 41, § 1 do Código de Propriedade Industrial – CPI brasileiro, laconicamente, limita-se a determinar que: “Ao titular da
patente é assegurado ainda o direito de impedir que terceiros contribuam para que outros pratiquem os atos referidos neste artigo”.
Em Portugal, o CPI de 2003 não contém expressamente esse tipo de ilícito, à semelhança dos Códigos anteriores (de 1940
e de 1995). Porém, a recente transposição da Diretiva nº 2004/48/CE, relativa à aplicação efetiva dos direitos de propriedade
intelectual (in Jornal Oficial da União Europeia, nº L 157, de 30/04/2004, p. 45 ss.), efetuada por meio da Lei nº 16/2008, de
1° de abril, permite surpreender a previsão de alguns resquícios desse tipo de ilícito. Não deixa, porém, de ser uma violação
direta. É o caso do novo artigo 338º-D, nº 2, do CPI português de 2003, o qual autoriza as medidas judiciárias de preservação
da prova a incluir “a apreensão efetiva dos bens que se suspeite violarem direitos de propriedade industrial e, sempre que
adequado, dos materiais e instrumentos utilizados na produção ou distribuição desses bens, assim como dos documentos a eles
referentes” - o itálico é meu.
De resto, o novo artigo 338º-I do mesmo Código determina que as providências cautelares destinadas a inibir qualquer violação
iminente ou a proibir a continuação da violação “podem também ser decretadas contra intermediários cujos serviços estejam
a ser utilizados por terceiros para violar direitos de propriedade industrial” - o itálico é meu. É, como se vê, exigível a eminência ou
a atual verificação de uma violação direta, o que afasta, a despeito disso, a consagração, entre nós, desse ilícito da violação
indireta, já que este dispensa a alegação e prova da atualidade ou da eminência da violação direta da patente.
36
Sobre essa forma de violação do direito de patente, cfr. J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol.
I, 2007, cit., pp. 851-854; HÖLDER, Niels / SCHMIDT, Josef, “Indirect Infringement: Late Developments in Germany”, in European
Intellectual Property Review, 2006, p. 480 ss.; KRAβER, Rudolf, Patentrecht – Ein Lehr- und Handbuch, 5 Auflage, Verlag C. H.
Beck, München, 2004, p. 830 ss.; KEUKENSCHRIJVER, Alfred, in BUSSE, Patentgesetz, Kommentar, 6 auflage, De Gruyter, Berlin,
2003, § 10, anotação à margem 6 ss., pp. 312-313; POLLAUD-DULIAN, Frédéric, Droit de la propriété industrielle, Montchrestien,
Paris, 1999, p. 162; BENTLY, Lionel / SHERMAN, Brad, Intellectual Property Law, 2ª edição, Oxford University Press, 2004, p. 531;
BENYAMINI, Amiran, Patent Infringement in the European Community, VCH, Weiheim, 1992, p. 173 ss.; agora, J. P. REMÉDIO
MARQUES, “Contributory Infringement – Case Law and Comparative View”, texto apresentado no Congresso Challenges for
IP Protection and Enforcement, Union of European Practitioners in Intellectual Property, Porto, 29th – 30 may 2008, disponível,
para já, em http://www.lexmedicinae.pt. = O Direito, ano 140º, 2008, III.
33
Trata-se de um ilícito autônomo e independente. Pode-se demandar o contrafator
indireto, independentemente da demanda do contrafator direto ou da ocorrência de
uma violação direta da patente. São, desse modo, sancionados os atos facilitadores da
violação direta ainda antes de esta ocorrer ou de sua verificação estar eminente. Notese, na verdade, que, na União Europeia, essa violação indireta não está condicionada à
alegação e prova da eminência, da ameaça ou da efetiva violação direta da patente37.
Além disso, quer a oferta, quer o fornecimento dos meios, quer o local da utilização
do invento protegido devem ocorrer (ou refletir-se diretamente) no Estado da proteção,
o que exclui a ilicitude dos atos de fornecimento, no estrangeiro, de meios por parte de
terceiros à pessoa que comete a violação direta da patente no Estado onde a proteção
vigora38, bem como afasta a ilicitude do fornecimento, nesse Estado, de meios para
fabricar o produto ou utilizar o processo no estrangeiro. Mas já haverá violação indireta
se alguns elementos ou componentes essenciais do invento protegido forem exportados
para, sendo montados no estrangeiro (v.g., em um país do sudoeste asiático) sob a
iniciativa de outros terceiros, serem, de seguida, importados para o Estado de origem
onde a patente está em vigor, e onde a invenção é usada39.
Já no ordenamento dos E.U.A., a verificação desse contributory infringement encontrase dependente da simultânea ocorrência de uma violação direta da patente, embora
se defenda que esta última violação pode ser predicada do fato de um determinado
dispositivo não ter outro efeito ou aplicação senão aquele que viola a patente40. Não
se exige, assim, a prova direta da ocorrência de uma violação direta da patente (id est, a
armazenagem, o transporte, a venda, a importação, etc., do produto patenteado ou dos
produtos resultantes do processo patenteado).
37
BENYAMINI, Amiran, Patent Infringement, cit., 1992, p. 181.
38
Por exemplo, a decisão do Tribunal de Grande Instance (TGI) de Paris, de 27/06/1997, in Propriété Intellectuelle, Bulletin
Documentaire, 1997, III, p. 581; e, no Reino Unido, o caso Kalman v. PLC Packaging (UK), in Fleet Street Reports, 1982, p. 406 ss.,
pp. 420-424.
39
Cfr., nesse sentido, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal alemão (Bundesgerichtshof), de 30/01/2007, no caso
“Funkuhr II” / “Relógio-rádio II”, proc. nº X ZR 553/04, in http://www.bundesgerichtshof.de, = Gewerblicher Rechtsschutz und
Urheberrecht, 2007, p. 313, orientação que já havia sido seguida anteriormente, pelo mesmo Supremo Tribunal, em 26/02/2002,
no caso “Funkuhr I”, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, 2002, p. 599. É ainda necessário que o fornecimento para
o estrangeiro de alguns meios essenciais para pôr em prática o invento tenha sido efetuado sob a intenção de a invenção ser
efetivamente usada, mais tarde, no país exportador e onde a proteção esteja em vigor. Cfr., ainda, THORLEY, Simon / MILLER,
Richard / BURKILL, Guy / BIRSS, Colin / CAMPBELL, Douglas, TERREL On the Law of Patents, 16ª edição, Sweet & Maxwell, London,
2006, p. 316; CORNISH, William / LLEWELYN, David, Intellectual Property, 5ª edição, Sweet & Maxwell, London, 2003, pp. 252-253;
JESTAEDT, Bernhardt, in BENKARD Europäisches Patentübereinkommen, C. H. Beck, München, 2002, art. 64, anotação à margem
n. 15, p. 648.
40
HARMON, Robert, Patents and the Federal Circuit, 4ª edição, The Bureau of National Affairs, Washington D.C., BNA Books,
1998, p. 308.
34
Seja como for, a vigência do Acordo TRIPS culminou um movimento de afirmação
do poder privado das estruturas do conhecimento científico e tecnológico e da esfera
privada da detenção e da titularidade desse conhecimento. Isso, em detrimento da
esfera pública (onde estará, por princípio, sempre garantido o livre acesso e a partilha
dessas informações e conhecimentos).
Mas o subsistema normativo formal da propriedade intelectual vê-se, hoje,
confrontado e assolado por propostas da “sociedade civil” que abalaram a sua quietude
e a lógica dos tempos passados; os tempos em que a assimetria de poder e de informação
permitia que apenas os juristas e alguns representantes dos interesses econômicos
hegemônicos participassem no processo legislativo destinado à conformação do regime
jurídico desses direitos de propriedade intelectual.
Agora, a crítica e a (des)construção do subsistema normativo da propriedade
intelectual tende a “democratizar-se”.
Essa crítica e (des)construção acha-se, hoje, aberta a propostas que eram
impensáveis ou inexequíveis há alguns anos: p. ex., a menção, nos pedidos de patente,
da origem geográfica de certos recursos biológicos; o consentimento informado e o regime
da partilha dos benefícios entre o titular da patente e as populações locais detentoras
de conhecimentos acerca da localização e manipulação desses recursos biológicos
(benefícios, esses, resultantes da exploração comercial das invenções obtidas a partir
de tais conhecimentos, sob cominação de o pedido de patente ser recusado ou, nas
versões mais radicais, sob ameaça de o direito de patente ser posteriormente anulado)41;
e a concessão de licenças compulsórias para fabrico e exportação de fármacos a preços
bem mais baixos, destinados aos países com graves problemas de saúde pública.
41
Sobre a menção da origem dos recursos e a prestação do consentimento das populações autóctones (ou dos seus
representantes) no quadro do regime das concessão do direito de patente, cfr. J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e
Propriedade Intelectual, vol. II, 2007, cit., pp. 533-589; CORREA, Carlos M., Establishing a disclosure of Origin Obligation in the TRIPS
Agreement, Occasional Paper 12, Quaker United Nations Office, Buenos Aires, 2003, p. 2 ss., in http://www.geneva.quono.
info/pdf/disclosure%2oOP%2012.pdf; GIRSBERGER, Martin A., “Disclosure of the Source of Genetic Resources and Traditional
Knowledge in Patent Applications”, in International Expert Workshop on Access to Genetic Resources and Benefit Sharing, México,
24 a 27 de outubro de 2004, in http://www.canmexworkshop.com/papers.cfm; GOPALAKRISHNAN, N. S., “TRIPs and Protection
of Traditional Knowledge of Genetic Resources: New Challenges to the Patent System”, in European Intellectual Property Review,
2005, pp. 12-13; JOSE MASSAGUER, “Algunos aspectos de la protección juridical de los conocimientos tradicionales asociados
a recursos genéticos mediante el sistema de propriedad intelectual”, in Actas de Derecho Industrial, Tomo XXII, 2002, p. 197 ss.;
BLUEMEL, “Substance Without Process: Analysing TRIPS Participatory Guarantees in the Light of Protected Indigenous rights”, in
Journal of the Patent and Trademark Office Society, vol. 86, 2004, p. 700 ss.; CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent
Rights, 2ª edição, Kluwer Law International, The Hague, London, 2005, pp. 259-303; ROBERTS, Tim, in European Intellectual
Property Review, 2005, N-84-85; CORREA, Carlos M., in Resource Book on TRIPS and Development, UNCTAD-ICTSD, Cambridge
University Press, 2005, pp. 448-459.
35
8. A
INFLUÊNCIA DA GLOBALIZAÇÃO NO REGIME DO DIREITO DE AUTOR E DOS DI -
REITOS CONEXOS : NOVAS “CATEGORIAS” DE PROPRIEDADE INTELECTUAL, EXPANSÃO
DO OBJETO DE PROTEÇÃO DAS “CATEGORIAS” EXISTENTES.
O REGIME DA PROTEÇÃO
CONTRA AS NEUTRALIZAÇÕES DAS PROTEÇÕES TÉCNICAS
No que tange ao direito de autor na atual Sociedade da Informação, a globalização
da propriedade intelectual também se faz aqui sentir em uma dupla vertente: por um
lado, com a criação de novos “tipos” ou “categorias” protetoras (v.g., o “direito especial”
do fabricante de bases de dados não originais, em vigor nos Estados-Membros da
União Europeia; o “direito ao espetáculo”; o regime especial do direito de autor sobre
os programas de computador) e, por outro, com a ampliação das faculdades jurídicas
exercitáveis pelos titulares dos “tipos” de direitos já existentes42.
Depois, têm-se as regras de proteção jurídico-tecnológica do software43. A Diretiva
(CEE) nº 91/250 do Conselho, de 14 de maio de 1991, relativa à proteção jurídica dos
programas de computador, estabeleceu, desde logo, um acervo de proteções jurídicas
contra quem coloque em circulação ou possua, para fins comerciais, uma cópia de um
programa de computador, conhecendo ou não podendo ignorar o seu caráter ilícito, ou de
meios cujo único objetivo seja o de facilitar a supressão não autorizada ou a neutralização
de qualquer dispositivo técnico eventualmente usado na proteção do programa (artigo
7º dessa Diretiva). A própria lei portuguesa prevê a possibilidade de apreensão de
dispositivos em comercialização que tenham por finalidade exclusiva facilitar a supressão
não autorizada ou a neutralização de qualquer salvaguarda técnica colocada para proteger
o programa de computador ou uma base de dados (artigo 13º do Decreto-Lei nº 252/94,
de 20 de outubro, e o artigo 13º/2 do Decreto-Lei nº 122/2000, de 4 de julho).
Quanto ao regime jurídico da proteção contra as neutralizações das proteções técnicas44,
a Diretiva nº 2001/29/CE, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos
direitos conexos na sociedade da informação45 - baseada, é certo, nos artigos 11º e 12º do
Tratado da Organização Mundial da Propriedade Industrial (OMPI) - protege as medidas
técnicas eficazes, nos casos em que, portanto, a obra ou o material protegido por direito
de autor ou direito conexo seja detido pelos titulares dos direitos por meio de um controle
de acesso ou de um processo de proteção, como, por exemplo, a codificação, a cifragem
42
Entre outros, GÓMEZ SEGADE, Jose Antonio, “A Mundialização da Propriedade Intelectual e o Direito de Autor”, in Studia
Iuridica, 48, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 7 ss., p. 22.
43
Cfr., agora, PEREIRA, Alexandre Dias, Direito de Autor e Liberdade de Informação, Dissertação, existente no fundo bibliográfico
da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 2007, p. 504 ss.
44
As quais, como se sabe, impedem a cópia da obra ou controlam o acesso a essa obra ou a qualquer outro material
protegido.
45
36
In Jornal Oficial das Comunidades Europeias, n. L 167, de 22/06/2001, p. 10 ss.
ou qualquer outra transformação da obra, ou um mecanismo de controle da cópia, que
garanta a realização do objetivo da proteção (artigo 6º/3 dessa Diretiva). Além de que
essa proteção jurídica aplica-se também contra o fabrico, a importação, a distribuição, a
venda, o aluguel, a publicidade ou a posse para fins comerciais de todos esses dispositivos
de contornamento de medidas de caráter tecnológico.
9. O IMPACTO DESSAS MUDANÇAS NO REGIME DAS UTILIZAÇÕES LIVRES DE DIREITO
DE AUTOR, EM PARTICULAR A CÓPIA PRIVADA
Mas poderá admitir-se que as utilizações livres (v.g., citação, paródia, comentário ou
crítica, para fins de ensino, educação, de exposição em bibliotecas, etc.) de direito de
autor possam ser suprimidas por meio desse regime jurídico das proteções técnicas?
Na União Europeia e, em alguns casos, nos E.U.A., chegou-se ao ponto de as
medidas eficazes de caráter tecnológico contra a neutralização ou o contornamento dos
protocolos, dos algoritmos, dos formatos ou dos métodos de criptografia, de codificação
ou de transformação poderem constituir um obstáculo ao exercício normal das utilizações
livres pelos seus beneficiários.
No ambiente digital, as medidas tecnológicas predispostas pelos titulares do direito
de autor, e que impedem ou restringem o uso ou a fruição das utilizações livres por parte
de quem tenha legalmente acesso ao bem protegido, são lícitas nos casos em que as
obras ou as prestações ou produções protegidas são disponibilizadas ao público na
sequência de contratos celebrados entre os titulares e os utilizadores, de tal forma que
a pessoa possa aceder a elas a partir de um local e em um momento por ela escolhido (v.g.,
acessos on line a conteúdos protegidos: programas de televisão, músicas, retransmissões
de eventos previamente gravadas e disponibilizadas na Internet, etc.)46. Nos outros
casos, fica assegurado que os beneficiários das utilizações livres delas possam tirar partido
mesmo contra medidas técnicas de proteção utilizadas pelos titulares dos direitos47.
Logo, não há uma imperatividade das utilizações livres (ou não existe uma
imperatividade das “exceções” ao direito de autor, como alguns preferem). Daqui decorre
que os limites à liberdade contratual não operam no ambiente digital, nas eventualidades
em que o utilizador pode aceder às obras ou às prestações protegidas a partir de um local
e em um momento por ele escolhido. Isto é grave, pois se cria uma espécie de lock-up
digital em favor do titular dos direitos de exploração econômica, na medida em que os
utilizadores finais são normalmente levados a subscrever licenças de utilização (End User
46
Cfr. o artigo 222º do Código do Direito de Autor português, na sequência da transposição da citada Diretiva nº 2001/29/CE,
do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e
dos direitos conexos na sociedade de informação, transposição que foi efetuada por meio da Lei nº 50/2004, de 24 de agosto.
37
Licence Agreements: EULA48), predispostas unilateralmente pelo titular da propriedade
intelectual, cujas cláusulas são inalteráveis por esse titular49.
E, ultima ratio, faz-se então mister recorrer ao regime das cláusulas contratuais
(conquanto em ações populares), para o efeito de fazer apreciar e julgar a invalidade
desse tipo de cláusulas50. Pelo contrário, nos E.U.A., há um forte movimento que se
pronuncia contra a neutralização dos limites do copyright mediante o direito dos
contratos ou de meios tecnológicos apropriados. O fair use é aí visto como um limite à
liberdade contratual51.
Não obstante, a lei portuguesa e as demais leis dos Estados-Membros da União
Europeia vão no sentido de conferir prevalência à liberdade de cópia privada sobre as
cláusulas contratuais gerais em sentido contrário (artigo 75º/1 a 3 do Código do Direito
de Autor): a lei comina a nulidade de certas cláusulas, embora permita que as partes
acordem as formas do seu exercício, maxime no que respeita aos montantes das
remunerações equitativas.
E é, ainda, duvidosa a licitude da cópia privada na modalidade de on-line storage52.
Já quanto à realização de cópias de segurança, essa conduta é lícita no quadro do direito
de autor sobre programas de computador. Mas já é uma atividade ilícita no quadro do
regime do “direito especial” de extração e/ou de reutilização de partes substanciais da
47
Nesse caso, o Código do Direito de Autor português estabeleceu, no seu artigo 221º, um procedimento especial, de jeito a
que as medidas técnicas não impeçam o exercício normal de um lato acervo de utilizações livres (as previstas essencialmente
no artigo 75º/2 do mesmo Código), por parte dos seus beneficiários. Assim, todo aquele que pretenda efetuar uma utilização
livre (v.g., uma Universidade que deseje incluir um hiperlink na sua página da Web para determinados manuais ou artigos, que
se encontram no acervo de uma base de dados) deverá procurar celebrar um acordo com o titular dos direitos de autor ou
direitos conexos. Se não o conseguir, poderá recorrer à Comissão de Mediação e Arbitragem, criada pela Lei nº 83/2001, de 3 de
agosto, de cujas decisões, sujeitas a eventuais sanções pecuniárias compulsórias, cabe recurso para o Tribunal de 2ª instância
territorialmente competente (o Tribunal da Relação). Sobre isso, cfr. PEREIRA, Alexandre Dias, Direito de Autor e Liberdade de
Informação, 2007, cit., p. 528 ss.
Todavia, como a obra protegida está no acervo de uma base de dados on line de acesso condicionado (idem, para os demais
ordenamentos europeus), o titular do direito de autor pode impedir, de iure, esse acesso, à luz do disposto na citada diretiva
comunitária e do artigo 222º do referido Código do Direito de Autor. Nessa eventualidade, não se aplicam as normas
imperativas que garantem “sempre” as referidas utilizações contra as medidas técnicas predispostas pelo titular.
48
BURKE, John A., “Reinventing Contract”, in Murdoch University Electronic Journal of Law, vol. 10, n. 2, 2003, p. 18 ss., = http://
www.murdoch.edu.au/elaw/issues/v10n2/burke102_text.html.
49
CORREA, Carlos M., “Fair Use in the Digital Era”, in International Review of Industrial Property and Copyright Law, 2002, p. 570 ss.;
FOGED, T., “US v. EU anti Circumvention Legislation: Preserving the Public’s Privileges in the Digital Age”, in European Intellectual
Property Review, 2002, p. 525 ss.; BURREL, Robert / COLEMAN, Allison, Copyright Exceptions – The Digital Impact, Cambridge
University Press, Cambridge, New York, etc., 2005, 3ª reimpressão, 2006, pp. 67-69; LUCCHI, Nicola, Digital Media & Intellectual
Property, 2006, cit., pp. 102-113.
50
BURREL, Robert / COLEMAN, Allison, Copyright Exceptions, 2006, cit., pp. 306-309; LUCCHI, Nicola, Digital Media & Intellectual
Property, 2006, cit., p. 99 ss., p. 118 ss.
51
Por exemplo, McMANNIS, Charles, “The Privatization (or ‘Shrink-wrapping’) of American Copyright Law”, in California Law
Review, 1999, p. 173 ss.; BURREL, Robert / COLEMAN, Allison, Copyright Exceptions – The Digital Impact, 2006, cit., p. 73.
38
base, o qual beneficia o fabricante de bases de dados eletrônicas (artigos 6º/2, alínea a),
e 9º da Diretiva nº 96/9/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março,
relativa à proteção jurídica das bases de dados).
Assim, o regime das proteções técnicas, o das licenças de utilização e o da proteção
antineutralização tornam quase obsoleta a proteção pelo direito de autor quando essa
tutela é aplicada ao ambiente digital: o titular da obra ou da prestação empresarial
protegida tende a usar, doravante, o direito dos contratos e o regime da responsabilidade
civil para o efeito de permitir a utilização ou o “consumo” da sua obra ou prestação53.
Atenta a enorme facilidade e frequência de reprodução não autorizada de obras e à sua
“distribuição digital”, o titular dos direitos de exploração econômica tenderá a mobilizar
um acervo de proteções técnicas e de medidas antineutralização em vez das medidas
repressivas decorrentes da titularidade do direito patrimonial de autor e dos aspectos
também patrimoniais dos direitos conexos. Mas isso extravasa as preocupações do
regime jurídico estrito do direito de autor.
De resto, também a interoperabilidade passa a estar limitada, pois, diferentemente
do que acontece nos E.U.A. (com o Digital Millenium Copyright Act, de 1999), na
União Europeia não ficou ressalvada a liberdade de pesquisa de software para fins de
desenvolvimento de criptografia.
A cópia privada está, de igual modo, limitada: o titular dos direitos de autor ou de
direitos conexos pode utilizar medidas eficazes de caráter tecnológico para condicionar
o número de reproduções não autorizadas relativas ao uso privado (artigo 221º/8 do
Código do Direito de autor português).
O novo regime jurídico europeu instituiu expressamente uma remuneração
compensatória pela reprodução para uso privado, remuneração que é predisposta
em benefício dos titulares dos direitos; no ambiente analógico, essa remuneração é
estabelecida em favor dos editores. Note-se, porém, que essa compensação econômica
só se dá se o titular dos direitos não utilizar medidas de caráter tecnológico destinadas
a impedir a reprodução da obra.
Assim, a reprodução para uso privado deixou de ser uma utilização livre de direitos de
autor, já que ao titular é atribuída uma pretensão compensatória54. No ambiente digital, os
titulares são normalmente as empresas de conteúdos, que prestam serviços na Internet, e
a reprodução de obras ou outros materiais protegidos para uso privado integra o direito
de reprodução (artigo 75º/1 do Código do Direito de Autor português).
52
Em sentido afirmativo, PEREIRA, Joel Timóteo Ramos, Compêndio Jurídico da Sociedade da Informação, Lisboa, Quid Iuris,
2004, pp. 768-769. Sobre isto, PEREIRA, Alexandre Dias, Direitos de Autor e Liberdade de Informação, 2007, cit., p. 559 ss.
53
BECHTOLD, Stefan, “Digital Rights Management: Destruction or Protection of the Commons?”, in Juridische aspekten van
Internet / Juridisch Tijdschrift voor Internet en E-business, 2003, p. 162 ss., pp. 162-165.
39
A lei portuguesa e a dos restantes Estados-Membros da União Europeia passaram
a consagrar o direito de controlar o acesso à obra no conteúdo dos direitos de autor
enquanto meio de proteção dos direitos dos autores - e não uma nova faculdade de
cariz patrimonial55 -, mesmo que o seja sob a condição de a sua exploração ser efetuada
com o recurso a proteções técnicas.
Chega-se ao ponto de incluir o consumidor final no círculo de oponibilidade, contra
quem os titulares dos direitos de propriedade intelectual podem reagir, nos termos da
Diretiva nº 2004/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 200456,
sobre a aplicação efetiva dos direitos de propriedade intelectual, transposta para o direito
português por meio da Lei nº 16/2008, de 1 de abril57 (artigo 2º dessa lei, a qual aditou
o artigo 210º-F ao Código do Direito de Autor: o nº 2 desse artigo passou a determinar
que a obrigação de prestação de informações sobre a origem e as redes de distribuição
dos bens ou serviços em que se materializa a violação do direito de autor ou de direitos
conexos pode recair sobre quem tenha sido encontrado na posse dos bens - o que pode
abranger os consumidores ou utilizadores finais das obras ou dos conteúdos protegidos - ou
esteja a utilizar ou prestar os serviços, em escala comercial, que se suspeite violarem tais
exclusivos, bem como quem tenha sido indicado pelas pessoas atrás mencionadas).
Não é, por isso, estultice apontar uma espécie de requiem aos direitos de autor no
ambiente digital e salientar a emergência do direito dos contratos enquanto forma de
(limitar o) acesso e de utilização, caso a caso, das obras ou de outros materiais protegidos
(v.g., partes substanciais do conteúdo de bases de dados não originais).
10. O REGIME DA GESTÃO COLETIVA DO DIREITO DE AUTOR
No que tange à gestão coletiva das obras ou prestações, a lei atribui poderes de
representação dos direitos dos titulares a determinadas pessoas (p. ex., aos produtores
de obras cinematográficas: artigo 126º/3 do Código do Direito de Autor português; às
pessoas autorizadas a divulgar obra anônima), mesmo que de uma forma obrigatória
(no caso do direito de retransmissão por cabo (artigos 7º e 8º do Decreto-Lei nº 33/97, na
sequência da Diretiva nº 93/83/CEE, do Conselho, de 27/09/1993, relativa à coordenação
de determinadas disposições em matéria de direito de autor e direitos conexos aplicáveis
à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo).
54
Desenvolvidamente, PEREIRA, Alexandre Dias, Direitos de Autor e Liberdade de Informação, 2007, cit., p. 583.
55
VICENTE, Moura, “Direito de Autor e Medidas Tecnológicas de Protecção”, in Direito Comparado, Perspectivas Luso-Americanas,
vol. I, Fundação Luso-Americana, Coimbra, Almedina, 2006, p. 161 ss., p. 176; OLIVEIRA ASCENSÃO, “Propriedade Intelectual e
Internet”, in Direito da Sociedade da Informação, vol. VI, Coimbra, Coimbra Editora, 145 ss., p. 156; TRABUCO, Cláudia, O Direito de
Reprodução de Obras Literárias e Artísticas no Ambiente Digital, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 728.
56
In Jornal Oficial da União Europeia, n. L 157, de 30/04/2004, p. 45 ss; PEREIRA, Alexandre Dias, Direitos de Autor e Liberdade de
Informação, 2007, cit., p. 550-554.
40
Assim, o direito de autor degrada-se praticamente a um mero direito de remuneração
por meio da gestão que é confiada a um terceiro, sendo duvidoso se o titular dos
direitos pode reservar a não atribuição de certos poderes jurídicos à entidade de gestão
coletiva.
No ambiente digital, as empresas de conteúdos têm, ainda, todo o interesse em confiar
a gestão dos seus direitos a essas entidades, visto que elas desempenham melhor a tarefa
de “policiar” a rede. De todo modo, há que intuir e estar alerta para o poder econômico
exercido, na Europa, por essas entidades de gestão coletiva. Todavia, essa gestão coletiva está
sujeita ao controle do direito nacional e comunitário da concorrência.
11. A GESTÃO COLETIVA DO DIREITO DE AUTOR E O PROCESSAMENTO DE “INFORMAÇÕES SENSÍVEIS” DOS UTILIZADORES
Há, ainda, que considerar o problema da proteção das informações para a
gestão (coletiva) de direitos, no sentido da prevenção da retirada ou da alteração das
informações, bem como a distribuição, a importação para distribuição, a radiodifusão,
a comunicação ao público ou colocação à sua disposição de obras ou outro material
protegido por todo aquele que sabe ou deverá razoavelmente saber que, ao fazê-lo,
está a provocar, permitir, facilitar ou a dissimular a violação de um direito de autor ou
de direitos conexos (artigo 87º/1 da citada Diretiva nº 2001/29/CE; artigo 223º/1 a 3
do Código do Direito de Autor português). É o caso, por exemplo, das entidades que,
gerindo certas páginas da Internet, suprimem as informações que constam de certas
fotografias ou imagens pelas quais os utilizadores que a elas acedem on line ficariam a
saber que se tratava de obras ou de material protegido.
Mas essa proteção das informações pode conduzir a um outro extremo reprovável:
o do processamento de informações para a gestão dos direitos, que, pela sua concepção,
possa processar simultaneamente dados pessoais sobre os hábitos de consumo do
material protegido por parte dos particulares e detectar comportamentos on line,
violando, destarte, o direito à intimidade ou à reserva da vida privada. É o que tem
acontecido com a monitorização respeitante a cópias privadas no ambiente digital, a qual
tem implicado, por vezes, o acesso eletrônico ao computador pessoal dos utilizadores
em busca de cópias ilícitas. Trata-se de uma atividade ilícita não coberta, naturalmente,
pelos direitos de autor.
12. O
REPÚDIO DO DETERMINISMO TECNOLÓGICO NO AMBIENTE DIGITAL : ALGU -
MAS SOLUÇÕES
De tudo isso, decorre um conjunto de perplexidades evidenciadas pelo ocaso do
direito de autor no ambiente digital, pelo determinismo tecnológico agora erigido por
41
mor do direito dos contratos58 (p. ex., licenças shrink-wrap) e pelo recuo da consagração
de regime imperativo das utilizações livres (ou “exceções”) de direito de autor e direitos
conexos.
Doravante, a informação, as prestações empresariais e as obras podem passar a ser
protegidas, não por serem originais, mas antes por estarem codificadas, sendo tal proteção
alvo de um regime jurídico específico de acesso condicionado ao pagamento, caso a caso
(serviço a serviço), de uma quantia predeterminada, e à sua utilização individualmente
controlável. Eis um paradigma em que seriam bem mais baixos os “custos de transação”.
Mas essa nova realidade - que está a dar os seus passos nos E.U.A. e na Europa
- deverá ser planetariamente contrariada por meio de um conjunto de medidas.
Vejamos.
Necessita-se de mais interoperabilidade informática, não apenas nas interfaces
equipamentos versus programas e programas versus programas, mas também no que
respeita ao modelo das próprias redes e ao reforço da interatividade dos dados e das
informações que circulam por essas redes informáticas.
Depois, far-se-á mister reduzir a influência do regime do direito de autor na
sedimentação da tutela dos serviços remunerados de acesso condicional, imunes ao
princípio do esgotamento dos direitos. Pois, caso contrário, corremos já hoje o sério risco
de codificar o princípio da onerosidade de cada ato de desfrute individual de uma obra ou
prestação - como se fosse mais justo pagarmos um preço de cada vez que (re)lemos um
livro acessível on line, ou todas as vezes em que assistimos a um filme ou ouvimos uma
música no ambiente digital.
Em breve, as proclamadas autoestradas da informação, por meio das quais
deveriam fluir correntes de cultura, de entretenimento e de inovação, transformar-se-ão
em estradas pejadas de pedágios e, por conseguinte, atravessadas ou visitadas por um
número cada vez menor de utilizadores.
Pelo contrário, o direito de autor deverá estar na base de um novo modelo
econômico da sociedade da informação: a informação deverá ser livre, e o financiamento,
efetuado por meio da publicidade no seio das comunidades virtuais. Todavia, importa
não descurar a exigência de remuneração do investimento na criação, interesse que é
tanto mais relevante quanto mais intensa é a possibilidade de este ser logrado, atentas
as modernas técnicas digitais de reprodução. Assim, embora essas tecnologias impeçam
que o utilizador proceda à sua retransmissão ou ao carregamento descendente (download)
57
Isso é conseguido mediante a previsão de um acervo de obrigações de informação que impedem sobre qualquer pessoa
que “tenha sido encontrada na posse dos bens ou a utilizar ou prestar os serviços, à escala comercial, que se suspeite violarem direitos
de propriedade intelectual” (artigo 210 - F/2, alínea a), do Código do Direito de Autor, na redação da citada Lei nº 16/2008, de
1º de abril), bem como as informações sobre “as quantidades produzidas, fabricadas, entregues, recebidas ou encomendadas,
bem como sobre o preço obtido” e sobre “os nomes e os endereços dos produtores, fabricantes, distribuidores, fornecedores ou outros
possuidores anteriores desses bens ou serviços” (artigo 210º-F/1, alíneas a) e b), do mesmo Código), obrigação que também
beneficia os titulares de direitos de propriedade industrial.
42
e ao armazenamento no disco duro do seu computador pessoal (v.g., de escritos, imagens,
sons, etc.), elas também permitem reduzir os custos marginais de produção dessas obras
ou prestações empresariais e, consequentemente, criam condições para oferecer os
produtos culturais, a informação e o entretenimento a preços mais baixos.
Em terceiro lugar, o direito de autor deverá posicionar-se como um instrumento de
promoção da concorrência no mercado da informação digital. Para isso, haverá que alargar
a doutrina estadunidense do fair use no seio das utilizações livres previstas nos Códigos
do Direito de Autor da União Europeia, de jeito a que as obras derivadas não estejam
sempre sujeitas à autorização do titular do direito de autor sobre a obra originária - o
que se revestirá do maior interesse em sede de aperfeiçoamento de motores de busca, de
sistemas de navegação e de hiperlinks, impondo, também, o alargarmento do direito de
cópia ou de reprodução para fins criativos, independentemente de autorização do titular
(v.g., o movimento open source).
Em quarto lugar, deverá resistir-se a criar novas formas ou “tipos” de propriedade
intelectual sobre o conteúdo de bases de dados ou compilações, tal como ocorreu na
União Europeia com a Diretiva nº 96/9/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11
de março, relativa à proteção jurídica das bases de dados, cujo regime jurídico monstruoso
impede, na prática, a livre extração ou reutilização desse conteúdo, bem como, nas bases
de dados eletrônicas, a mera transferência não autorizada desse conteúdo para o “disco
duro” do computador de todo aquele que não tenha sido autorizado pelo titular desses
direitos sui generis.
Assim, na União Europeia, o acesso a certos conteúdos de uma biblioteca digital
on line, cujos direitos sui generis são titulados por empresas sediadas nesse espaço
geográfico, fica dependente de autorização, não ocorrendo, tão pouco, o esgotamento
desse direito de propriedade intelectual.
Em quinto lugar, o princípio democrático e o direito-liberdade de expressão e de
informação parecem exigir que a reprodução, a comunicação ao público ou a colocação
à disposição do público de artigos de atualidade, de discussão econômica, política ou
religiosa para fins de crítica sobre as ideias discutidas nessas obras não devem estar
condicionadas à reserva ou à autorização do titular - o que ainda não acontece no
direito português (artigo 75º/2, alínea m), do Código do Direito de Autor).
Ademais, a tutela do patrimônio histórico e arquitetônico e da inerente herança
cultural imporá a liberdade de reprodução, em formato eletrônico, de obras protegidas
pelos direitos de autor, para fins de preservação e de arquivo, ainda que estas já estejam
incluídas no acervo de materiais inseridos em uma base de dados eletrônica.
Por último, o direito de autor e o regime sui generis da extração ou da reutilização
do conteúdo de bases de dados não originais não devem ser utilizados para - sob o
abrigo irrestrito do direito dos contratos e da sacrossanta liberdade contratual - impor uma
proibição total da neutralização das barreiras técnicas (v.g., mediante protocolos, formatos,
43
algoritmos, métodos de criptografia ou de codificação) ao acesso a tais conteúdos. Se
assim suceder, teremos um “super direito de autor” impeditivo de qualquer acesso à
informação tecnicamente protegida. O direito de autor clássico corre o risco de claudicar,
porque desnecessário, em favor do determinismo tecnológico apoiado na lei, no direito
dos contratos e na responsabilidade civil.
13. O DIREITO DE AUTOR TECNOLÓGICO E A PROTEÇÃO DE CRIAÇÕES TÉCNICO -FUNCIONAIS
A constatação de que o direito de autor oferece uma mais fácil e extensa tutela
dos seus titulares tem levado o legislador e alguns intérpretes a recorrer ao direito de
autor para lograr a proteção de certos resultados de ordem prático-funcional, tutela que
outrora era apenas reservada ao direito de patente.
Emergiu, destarte, um direito de autor tecnológico. Essa tendência manifesta-se,
essencialmente, em duas direções.
Por um lado, assistimos à crescente “invasão” do direito de autor relativamente
a territórios que, no paradigma clássico, eram reservados ao direito de patente. Basta
recordar a formidável blitz do direito de autor no campo do software59.
Por outro lado, surpreendemos a pretensão do subsistema do direito de autor em
tutelar certas realidades que o ordenamento havia excluído do universo do patenteável:
é o caso da possibilidade de os mapas genéticos e das sequências genéticas (rectius, das
sequências de nucleotídeos) serem objeto de proteção pelo direito de autor. Solução
que me parece, liminarmente, de afastar60: as sequências de nucleotídeos não podem
ser assimiladas a um programa, a uma compilação ou a uma base de dados, a uma obra
derivada (maxime, a uma tradução), ou a uma carta geográfica: a forma mental não é,
nesse caso, uma forma imaginativa; há apenas uma descrição, uma estruturação e uma
representação técnicas de objetos, formas naturais ou formas extraídas e isoladas da
natureza.
Além disso, os constrangimentos técnico-funcionais não asseguram qualquer grau
de liberdade ao “criador”, sob pena de as sequências genéticas assim “criadas” se revelarem
completamente inúteis do ponto de vista prático-funcional. Mesmo que isso fosse
legalmente possível, o âmbito de proteção reconhecido ao seu titular seria limitadíssimo:
58
CAHIR, John, “The Moral Preferences for DRM Ordered Markets in the Digitally Networked Environment”, in MACMILLAN,
Fiona (ed.), New Directions in Copyright Law, Edward Elgar, Cheltenham, Northampton, 2005, p. 24 ss., pp. 46-48; LUCCHI, Nicola,
Digital Media & Intellectual Property, Management of Rights and Consumer Protection in a Comparative Analysis, Springer, 2006,
p. 99 ss.
59
GHIDINI, Gustavo, Aspectos actuales del Derecho industrial – Propriedad intelectual y competencia, Editorial Comares, Granada,
2002, p. 89.
44
ele não poderia impedir a utilização das mesmas sequências se estas resultassem de uma
criação independente.
De resto, bastaria efetuar pequenas alterações na forma da sequência de
nucleotídeos, para o efeito de obter o mesmo resultado técnico: a expressão formal seria
diferente. Por fim, a utilização de conceitos comunicacionais da linguagem informática
(código genético, programa genético, informação genética, etc.) apenas desfruta de um
valor heurístico susceptível de ser mais facilmente intuído pelos leigos; essa utilização da
linguagem informática não traduz as complexidades biológicas ocorridas por ocasião da
replicação do DNA e da produção de proteínas61.
Em segundo lugar, sob a aparentemente correta justificação da “unidade da arte”,
assistimos, em alguns ordenamentos - de que é exemplo o português (artigo 200º
do CPI de 200362) -, à tutela autoral automática das características da aparência dos
produtos industriais (v.g., linhas, contornos, formas, texturas, cores), tão logo elas sejam
protegidas pelo regime dos desenhos ou modelos, independentemente de o legislador
exigir expressamente a presença de uma criação artística; ou seja, independentemente
da verificação dos requisitos específicos de proteção previstos no Código do Direito
de Autor63 - o que constitui um enorme equívoco jurídico quanto aos objetos e aos
requisitos de proteção.
Em terceiro lugar, no quadro jurídico da União Europeia, a criação do “direito
especial” do fabricante de bases de dados, previsto em Portugal no Decreto-Lei nº
122/2000, de 4 de julho, relativamente aos atos de extração ou de reutilização de partes
substanciais dessas bases, constitui mais uma outra monstruosidade jurídica. Já que
as apresentações de informações não podem ser objeto de direito de patente (artigo
52º/2, alínea d), da Convenção sobre a Patente Europeia; idem, artigo 52º/1, alínea e),
do Código da Propriedade Industrial português de 2003), esse outro regime introduz a
possibilidade da apropriação das meras informações enquanto tal ou outros materiais,
independentemente de se revestirem de nível artístico ou desfrutarem de originalidade
suficiente para poderem ser protegidas pelo direito de autor.
Em vez de essa proteção ser efetuada à luz do regime da concorrência desleal, o
legislador da União Europeia fez introduzir, nos ordenamentos jurídicos dos EstadosMembros, uma tutela dominial, de natureza absoluta – direito cujo reconhecimento e
constituição está dependente da verificação de parâmetros meramente econômicoquantitativos, quais sejam, o ter havido um investimento substancial na obtenção, na
60
J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 143-156, p. 191 ss., p. 210 ss.
61
J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, cit., vol. I, 2007, pp. 195-200.
62
Que reza deste modo: “Qualquer desenho ou modelo registado beneficia, igualmente, da proteção conferida pela legislação
em matéria de direito de autor, a partir da data em que o desenho ou modelo foi criado, ou definido, sob qualquer forma”.
45
seleção e na apresentação ou na disposição do acervo dessa base de dados. Direito,
também, cuja violação está dependente do valor comercial dos dados ou informações
extraídas ou reutilizadas. Tudo isso para remunerar o investimento em uma prestação
empresarial realizada na obtenção, na seleção e na apresentação dessas informações, e
não para remunerar a criação intelectual. Essa solução segue em contracorrente com
a do resto do planeta – basta lembrar que nos E.U.A., no caso Feist, foi, apesar de tudo,
salvaguardada a inapropriação da informação “pura” e dos dados enquanto tais.
O direito de autor e os direitos conexos traduzem, assim, um “território redescoberto”
pelas empresas que vêm ocupando posições dominantes no mercado.
14. A
NOSTALGIA DO PASSADO, OS NOVOS RUMOS E A CONCERTAÇÃO DOS INTE -
RESSES DIVERGENTES
Vale a pena, apesar de tudo, perguntarmos a razão de ser dessa nostalgia do
paradigma clássico do direito de autor, e se esses novos caminhos não são um sinal de
vitalidade desse subsistema da propriedade intelectual.
A resposta há-de residir na forma como o legislador estabelece (se estabelece) o
equilíbrio entre os diferentes interesses antagônicos que aqui se digladiam.
Lembremo-nos de que, em harmonia com esse paradigma clássico, vale o princípio
da liberdade de iniciativa econômica e de gozo do patrimônio cultural intelectual.
Apesar de a criação intelectual e os resultados dessa criação plasmados nos direitos
de propriedade intelectual poderem ser perspectivados, em um certo sentido, como
direitos fundamentais constitucionais64, a exceção é o exclusivo; a regra é a liberdade. Além
disso, o elenco das faculdades jurídicas do titular há-de ser um elenco fechado. De resto,
à luz desse paradigma clássico, há uma antinômica dicotomia entre as criações estéticas,
63
Para a crítica, desenvolvidamente, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp.
169-177. Nós entendemos que o legislador português não terá tido a absurda intenção de conferir uma tutela autoral,
cumulativa, absoluta e automática a todo e qualquer desenho ou modelo registrado junto ao INPI. Propomos, assim, uma
redução teleológica dessa norma. Cremos, pelo contrário, que as características da aparência dos produtos precipuamente
registradas somente se beneficiam da tutela pelo direito de autor se e quando constituírem criações intelectuais, recte, quando
tais características da aparência constituírem uma “criação artística” (artigo 2º/1, alínea i), do Código do Direito de Autor), à luz
dos requisitos dessa outra codificação. De resto, foi esse o primevo sentido aplicado na França. Desde o seu início no dealbar
do século XX, o princípio da unidade da arte nunca dispensou a presença do requisito da originalidade enquanto expressão
de uma criação individualizante e, por isso, uma criação personalizada. A proteção por meio do regime do direito de autor
exige uma criação artística, sendo que a proteção pela propriedade industrial é independente da primeira. Pelo que é errôneo
pretender extrair do ordenamento francês qualquer arrimo que justifique uma proteção cumulativa absoluta e automática
dessas características pelo direito de autor a todo o desenho ou modelo que reúna os requisitos constitutivos próprios do direito
de propriedade industrial para que se pede proteção. Esses requisitos são, na União Europeia, a novidade e a singularidade das
características da aparência. Tb. RIBEIRO, Bárbara Quintela, “A tutela jurídica da moda pelo regime dos desenhos ou modelos”,
in Direito Industrial, vol. V, Coimbra, Almedina, 2008, p. 477 ss., p. 501 ss., p. 507 (propendendo, também, para o cúmulo relativo
de tutelas: haverá uma tutela conjunta, desde que as características da aparência dos produtos preencham os pressupostos de
aplicação do respectivo regime - haverá tutela pelo direito de autor se e quando tais características possam ser consideradas
criações artísticas).
46
literárias e artísticas (protegidas pelo direito de autor) e as criações utilitárias, ou seja, as
ideias inventivas industriais, susceptíveis de proteção pelo direito de patente.
De um lado, temos os interesses dos autores, criadores intelectuais ou dos
inventores, pessoas humanas; do outro, os interesses das empresas que financiam essas
criações artísticas e inovações técnicas; enfim, também surpreendemos os interesses dos
concorrentes: estes desejam minimizar ou anular os efeitos dos direitos de exclusivo;
aqueles querem maximizá-los. Por outro lado, ainda, não podem menosprezar-se, hoje,
os interesses dos consumidores (das soluções técnicas patenteáveis, ou das criações
estéticas tuteladas por direito de autor), os quais são atraídos pela inovação e pelo preço
reduzido dos bens.
Temos, desse modo, uma economia caracterizada por uma situação acentuadamente
monopolista ou oligopolista dos mercados em face do dever de prossecução do interesse
público em manter uma fisionomia concorrencial dos mercados onde se faz e se vende
a inovação estética e a tecnológica - mercados que devem ser aptos a manter uma
concorrência e uma inovação razoavelmente efetivas.
Há, por isso, que olhar para a forma como as tecnologias da informação se
caracterizam. A resposta é a seguinte: elas materializam-se e atuam por meio de um
sistema de redes, de conexões e de protocolos entre os diferentes utilizadores. O movimento
open source, no quadro dos programas de computador e das obras ou outras criações
artísticas (creative commons), é disso exemplo. E o lema propugnado por essa economia
das redes é o seguinte: “o que é aberto é bom e o que é fechado é mau” (what is open is
good, what is closed is bad).
Daí que as próprias interfaces, que permitem a conexão entre os diferentes
computadores e/ou entre os próprios programas informáticos, devem achar-se
submetidas, se for o caso, a regimes de licenças compulsórias remuneradas, de jeito a
prevenir ou a reprimir o abuso de posição dominante, de que foram exemplos, na União
Europeia, o caso Magill (1995) e, recentemente, o caso Microsoft c. Comissão (setembro
de 2007).
Defende-se, desse modo, uma interpretação e uma visão pró-competitiva dos direitos
de propriedade intelectual65, baseada, uno actu, no estímulo ao investimento em pesquisa
e desenvolvimento e na repressão dos comportamentos objetivamente excludentes dos
agentes econômicos e dos consumidores, bem como dos comportamentos nocivos
para as indústrias das redes (network industries).
64
GOMES CANOTILHO, José Joaquim, “Liberdade e Exclusivo na Constituição”, in Direito Industrial, vol. IV, Almedina, Coimbra,
p. 57 ss., p. 62 ss., p. 65 ss.
65
J. P. REMÉDIO MARQUES, “Propriedade Intelectual e Interesse público”, in Revista da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. 79,
2003, p. 293 ss., pp. 321-322, p. 350
47
Isso para evitar que a conformação dos atuais regimes jurídicos da propriedade
intelectual não sirva apenas para tutelar privilegiadamente, e em escala mundial, os
interesses dos atuais detentores da liderança tecnológica e das indústrias culturais. Que
essa conformação do regime jurídico não venha a servir, afinal, para manter ou para
reforçar as situações de exclusão, real ou potencial, da livre iniciativa econômica privada e
da circulação e partilha das informações e dos conhecimentos, é um dos objetivos que
cumpre perseguir.
48
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ARAÚJO, Fernando, A Tragédia dos Baldios e dos Anti-Baldios – O Problema
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53
CAPÍTULO
P ROPRIEDADE I NTELECTUAL : R ACIONAL
2
DE UTILIZAÇÃO E DESAFIOS
FUTUROS EM PAÍSES DE LÍNGUA POR TUGUESA 66
Manuel Mira Godinho 67
66
Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho
de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.
67
Professor Catedrático no Instituto Superior de Economia e Gestão, Universidade Técnica de Lisboa Membro da UECE
([email protected])
I NTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo rever os fundamentos do sistema de
propriedade intelectual e os desafios suscitados pela utilização da propriedade
intelectual, do ponto de vista das estratégias privadas e das políticas públicas, em países
de língua portuguesa.
Em um primeiro momento, este trabalho concentra-se nos fundamentos teóricos
da propriedade intelectual, designadamente de duas das suas principais modalidades, as
patentes e as marcas. Em um segundo momento, o trabalho trata dos aspectos práticos
da utilização e de desenvolvimento do sistema de propriedade intelectual nas décadas
mais recentes. Esse duplo enfoque, teórico e prático, permite extrair um conjunto de
conclusões vitais para perspectivar os desafios que a propriedade intelectual coloca em
países de língua portuguesa.
PROPRIEDADE I NTELECTUAL
Entende-se por Propriedade Intelectual o conjunto de direitos privados, designados
por direitos de propriedade intelectual, concedidos pelo Estado, cuja função é proteger
criações intelectuais com potencial aplicação econômica.
Essas “criações intelectuais” são bens intangíveis, obtidos por meio de atividades
organizadas que envolvem esforço e criatividade. O produto dessas atividades é, em
primeiro lugar, conhecimento novo ou substancialmente distinto de conhecimento
previamente existente. Esse conhecimento é posteriormente materializado ou surge
associado a obras, processos ou artefatos que se destinam a responder a necessidades
econômicas e sociais.
Os “direitos de propriedade intelectual” são concedidos pelo Estado a indivíduos
ou organizações e, como tais, constituem uma intervenção do Estado na economia. Os
agentes privados procuram beneficiar-se da proteção atribuída por esses direitos, afim
de obter compensação pelo esforço realizado e pela criatividade existente nas suas obras
intelectuais. Mesmo quando é possível solicitar esses direitos simultaneamente para
diversos países, a respectiva legitimação ocorre geralmente no âmbito individual de cada
país. As principais modalidades de direitos de propriedade intelectual são as patentes, as
marcas comerciais, os desenhos ou modelos industriais e os direitos de autor.
O principal argumento subjacente aos direitos de propriedade intelectual é que,
na ausência da sua concessão, o potencial de oferta de novas criações intelectuais
com interesse econômico seria deficitário. De acordo com essa linha de argumentação,
esses direitos são necessários para que os indivíduos e organizações se empenhem na
produção de criações intelectuais. Concretamente, argumenta-se que é a possibilidade de
56
obtenção de condições de monopólio, por via da concessão dos direitos de propriedade
intelectual, que permite aos agentes criativos recuperar de forma compensatória os
investimentos realizados na produção das suas obras intelectuais.
FUNDAMENTAÇÃO
ECONÔMICA
DA
CONCESSÃO
DE
PATENTES
PARA
INVENÇÕES
TECNOLÓGICAS
O argumento referido no parágrafo precedente foi formalizado pela teoria
econômica, para o caso particular das patentes, há cerca de cinco décadas. O que os
economistas afirmaram foi que na ausência de patentes se verificaria uma “falha de
mercado”, isto é, o mercado a atuar por si só, livremente, não suscitaria uma oferta
de novos conhecimentos tecnológicos correspondente à quantidade socialmente
desejável (ARROW, 1962).
Essa oferta deficitária de conhecimentos verificar-se-ia porque, na ausência da
proteção atribuída pelas patentes, os imitadores teriam acesso sem restrições aos novos
conhecimentos, podendo dessa forma usá-los abusivamente para fins comerciais
próprios. A falha de mercado verificar-se-ia porque, na ausência da proteção concedida
pela patente, nenhum agente econômico individual é incentivado a investir em pesquisa,
dada a assimetria esperada entre os recursos investidos na invenção (privados) e o
retorno desse investimento (socializado por via da exploração partilhada da inovação
com os imitadores).
Um primeiro corolário dessa argumentação é que é legítima e desejável a
intervenção do Estado na economia mediante a atribuição de direitos privados, para
permitir que a oferta de novos conhecimentos com aplicação econômica se situe no nível
socialmente desejável. É a existência de patentes que cria a envolvente apropriada para
o agente criativo ter a percepção de que poderá compensar de forma adequada o seu
esforço. Um segundo corolário é que, no caso de novos conhecimentos sem aplicação
econômica imediata, mas ainda assim com interesse para a sociedade no longo prazo,
o Estado deve (em alternativa à atribuição de patentes) subsidiar a produção desses
conhecimentos (NELSON, 1959).
Esses dois corolários constituem a fundamentação econômica de duas instituições
centrais nas atuais economias capitalistas: o sistema de patentes, por um lado, que estimula
o desenvolvimento de conhecimentos tecnológicos, e o sistema de conselhos de pesquisa,
por outro lado, que financiam o desenvolvimento de conhecimentos científicos.
Arrow (1962) reconhece, no seu trabalho pioneiro, que, apesar de ter vantagens,
o sistema de patentes é gerador de uma situação subótima em termos econômicos.
Essa situação decorre de as patentes criarem um monopólio que restringe a difusão
da inovação. Porém, essa restrição da difusão é limitada temporalmente (depois de
20 anos, o conteúdo da patente “cai” no domínio público) e é compensada pelo fato
57
de o conhecimento subjacente à patente ser necessariamente publicado em forma
impressa no momento de concessão da patente. O monopólio que é criado, sendo uma
circunstância por natureza indesejável, incide apenas na exploração para fins comerciais
da inovação. Porém, com a publicação do conteúdo da patente, o novo conhecimento
econômico fica automaticamente disponível para outros agentes inovadores se
poderem nele inspirar e assim realizar novos avanços tecnológicos.
Acresce que Arrow reconhece que, apesar de subótima, a situação criada pelas
patentes é claramente preferível à possibilidade de o mercado ser deixado a atuar
livremente, dado que, nesse caso, se correria o risco de os agentes inovadores não
investirem no desenvolvimento de novas tecnologias por não percepcionarem
incentivos para realizar esforços criativos. Foi nesse contexto de análise que Arrow
analisou outras alternativas ao sistema de patentes, designadamente a atribuição de
prêmios, mas concluiu, porém, serem inoperacionais essas alternativas.
Na sequência do trabalho de Arrow (1962), desenvolveu-se uma significativa linha
de pesquisa sobre a “análise econômica de patentes”. A questão fundamental dessa
linha de pesquisa foi saber se o sistema de patentes, tal como ele existe atualmente, se
encontra devidamente calibrado para equilibrar as necessidades contraditórias de oferta
de proteção, necessária para estimular a inovação, e de permitir um amplo acesso dos
utilizadores aos benefícios das inovações, necessário para maximizar o bem-estar social.
Em termos sintéticos, essa questão consubstancia-se no problema da intensidade
de proteção do sistema de patentes, sendo essa intensidade controlada por três
parâmetros fundamentais (GODINHO, 2000). O primeiro desses parâmetros é a “extensão
da patente”, ou seja, o tempo de duração da proteção. Esse assunto foi discutido por
Nordhaus (1969, 1972) e Scherer (1972). O segundo parâmetro é a “largura da patente”
e tem a ver com a maior ou menor facilidade de acesso a novas patentes por parte
de invenções relativamente semelhantes a outras já patenteadas. Essa temática foi
inicialmente investigada por Klemperer (1990), no âmbito de um modelo dedicado à
análise do grau de diferenciação entre invenções patenteadas e outras candidatas à
obtenção de novas patentes. O terceiro parâmetro é a “amplitude”do sistema de patentes,
problemática relativa à extensão de áreas técnicas abrangidas pelo sistema de patentes.
As discussões recentes sobre a patenteabilidade do software, de organismos vivos ou
dos chamados métodos de negócio, têm precisamente a ver com essa dimensão da
“amplitude” do sistema de patentes.
Como se verá adiante, a discussão econômica sobre patentes progrediu, nas
últimas décadas, da temática da “calibração” ótima, para questões mais amplas que têm
a ver com a própria natureza da instituição “sistema de patentes”, tendo em conta a sua
evolução histórica e a forma como se estruturou em alguns países a partir de meados
do século XIX.
58
FUNDAMENTAÇÃO
ECONÔMICA
DA
CONCESSÃO
DE
REGISTROS
DE
MARCAS
COMERCIAIS
As marcas comerciais são sinais distintivos que se destinam a identificar bens e
serviços fornecidos por um determinado indivíduo ou empresa. Em contraste com
as patentes, que têm uma duração limitada no tempo, as marcas comerciais não têm
limitação temporal, desde que delas seja feito um bom uso e sejam pagas taxas de
manutenção ao Estado.
Também em contraste com as patentes, as marcas comerciais não se beneficiam
de uma fundamentação teórica muito detalhada da ciência econômica. Em um dos
poucos trabalhos existentes sobre essa matéria, Economides (1987) propõe uma
análise custo-benefício para o investimento em marcas. A ideia, simples, é que uma
empresa investirá em uma marca se o valor esperado do retorno, dado pelo produto
da probabilidade de registro da marca vezes o fluxo de rendimentos que ela permitirá
obter, exceder o somatório do custo de oportunidade de requerer o registro da marca e
do valor atualizado das taxas de manutenção pagas ao Estado.
Economides (1987) refere que as marcas comerciais são essenciais para garantir
uma alocação eficiente de produtos nos mercados, devido ao fato de facilitarem a
escolha dos consumidores em contextos, como os existentes nas economias atuais,
de grande variedade de tipos e qualidade dos produtos. Porém, esse autor reconhece
igualmente que o potencial de monopólio existente nessa modalidade de propriedade
intelectual pode provocar ineficiências e distorções na alocação de recursos, sendo que
os benefícios informacionais de que os consumidores dispõem são prejudicados por
custos decorrentes de barreiras à entrada no mercado, impostas a potenciais novos
concorrentes.
A conjectura a propósito das marcas comerciais desenvolvida por Mendonça,
Pereira e Godinho (2004), é que o fluxo de novas marcas que solicitam registro pode ser
observado como um indicador de inovação. Naturalmente, nem todas as novas marcas
podem ser observadas como destinadas a proteger inovações importantes. Sabe-se,
designadamente, que é frequente serem pedidas marcas para produtos que não são
substancialmente distintos de outros já existentes no mercado. Porém, admite-se que
essa seja uma situação relativamente minoritária. Uma empresa apenas terá capacidade
de recuperar o investimento associado a uma marca, materializado em publicidade para
obtenção de notoriedade, taxas de registro e de manutenção, etc., se o produto ao qual
a marca é associada dispuser de um significativo grau de diferenciação e vantagens em
face dos produtos dos concorrentes.
59
A UTILIZAÇÃO PRÁTICA DAS PATENTES
Em um trabalho pioneiro, resultante de uma pesquisa realizada em meados da
década de 1980, Levin et al. (1987) demonstram que um grande número de setores
de atividade dão prioridade a outros mecanismos de proteção da inovação que não
as patentes. Concretamente, de acordo com o tipo de tecnologia empregada e as
características do mercado em que atuam, é dada preferência ao segredo industrial, à
reputação comercial ou à liderança sistemática em face dos rivais. A importância desses
mecanismos alternativos foi posteriormente confirmada pelo estudo de Cohen et al.
(2000) que evidencia o uso complementar de vários meios de proteção, entre os quais
se contam as patentes.
Oferecendo um panorama realista dos meios de proteção que as empresas
inovadoras empregam, esses estudos contribuíram para desmistificar, de forma muito
incisiva, a importância das patentes enquanto mecanismo único para proteger inovações.
Esses estudos evidenciam uma significativa variância intersetorial no uso das patentes
e na importância que a elas se atribui, para além do fato de que, na maior parte dos
setores de atividade, dá-se prioridade a mecanismos alternativos de proteção. Em suma,
a perspectiva aberta por esses estudos contribuiu para desmistificar a centralidade do
sistema de patentes.
Por outro lado, estudos mais recentes têm argumentado que muitas das patentes
em vigor não se destinam a proteger a inovação. Um maior recurso a patentes com
pouco valor tecnológico ou com pouco potencial de aplicação prática, verificado nos
últimos anos, decorre de táticas premeditadas que visam a estabelecer vastos portfolios
de ativos intangíveis. Esse tipo de estratégia destina-se a suscitar efeitos de reputação
e valorização em bolsa, a criar muros protetores em torno de áreas tecnológicas vitais
para a empresa, a oferecer moeda de troca quando há acusações comprovadas de
infração de direitos de propriedade intelectual de terceiros, ou, ainda, a constituir base
de licenciamento cruzado de tecnologias complementares (COHEN et al., 2000).
Esse tipo de utilização estratégica de patentes, realizada em articulação com o
emprego de outras modalidades de propriedade intelectual, tem reflexo na literatura
acadêmica que se desenvolveu sobre corridas pela patente e outras abordagens
baseadas no instrumental de teoria dos jogos, de que o trabalho de Scherer (1967) é um
precursor longínquo.
Para todos os efeitos, é claro que as motivações que atualmente conduzem muitas
empresas a procurar obter patentes estão longe da função originalmente reconhecida
à atribuição destas por parte dos Estados nacionais, que era, recorde-se, o estímulo à
invenção e o favorecimento da subsequente exploração da inovação no mercado.
Referenciando o caso americano, Jaffe e Lerner (2004) sugerem que um recurso
crescente a patentes sem relevância econômica e social tem sido estimulado por
60
práticas forenses que privilegiam excessivamente os direitos dos detentores de patentes
e por uma diminuição dos limiares de exigência por parte do instituto de patentes dos
Estados Unidos (USPTO).
A prática de estratégias agressivas e o uso excessivo de patentes estará, inclusive,
a conduzir a uma situação em que o benefício econômico líquido das patentes é
atualmente negativo, em virtude de os custos de contencioso estarem a aumentar
exponencialmente (BESSEN; MEURER, 2008). Esse resultado foi verificado por um estudo
detalhado dos proveitos e custos de contencioso com patentes entre 1984 e 1999 de
empresas cotadas em bolsa nos Estados Unidos, verificando-se para a totalidade dos
setores de atividade, com exceção da indústria farmacêutica. Os custos foram estimados
por esse estudo tomando em conta os honorários dos advogados e a degradação que
ocorre no valor das respectivas ações cada vez que as empresas têm de ir a tribunal por
casos associados a patentes. Bessen e Meurer (2008) argumentam que as patentes não
dispõem, com exceção de em áreas como a da química, da capacidade de identificar
adequadamente as fronteiras do objeto de proteção, o que suscita a possibilidade de
contestação em tribunal. Nesse sentido, esses autores propõem um aproximar das
patentes aos direitos de autor, com a propriedade a incidir mais no objeto e menos no
conhecimento.
O agravamento do panorama de uso de patentes em anos recentes nos Estados
Unidos é tal que, recentemente, têm-se verificado apelos, não apenas provenientes de
perspectivas radicais, mas inclusive de economistas mainstream, para a abolição pura
e simples do sistema de patentes (BOLDRIN; LEVINE, 2008). Esses autores afirmam que
o monopólio proporcionado pelas patentes (e também pelo direito de autor) está a
provocar mais prejuízos que benefícios.
A LTERNATIVAS
ÀS MODALIDADES INSTITUCIONALIZADAS DE PROPRIEDADE
INTELECTUAL
Esse recente questionar do sistema de patentes, quanto à sua utilidade prática e
quantos a vários aspectos perniciosos que decorrem da sua forma de funcionamento,
tem levado a análise acadêmica a considerar ativamente não só possíveis linhas de
reforma do sistema a serem adotadas, como também sistemas alternativos que possam
substituir ou complementar o sistema de patentes.
Curiosamente, no seu trabalho de 1962, Arrow comparou o sistema de patentes
a outros sistemas alternativos de estímulo à inovação, ventilando três situações
(analisadas em detalhe in Wright, 1983). A primeira dessas situações tem uma
natureza essencialmente teórica, envolvendo a consideração de um “agente-central”
(provavelmente, uma versão ampliada dos atuais institutos de patentes) que avaliaria em
61
termos econômicos cada invenção e proporia um “preço justo” a pagar ao inventor pela
respectiva compra, disponibilizando-a posteriormente para uso livre. A segunda situação
envolve a existência de contratos entre o Estado e inventores profissionais (empresas de
pesquisa, etc.), para a produção de invenções em áreas de carência pré-identificadas.
Finalmente, o terceiro caso baseia-se no anúncio de prêmios, em alternativa a contratos,
a atribuir nas referidas áreas carentes de invenções. Arrow (1962) concluiu, com base em
critérios de natureza prática, pela vantagem do sistema de patentes.
Porém, de forma interessante, passadas mais de quatro décadas do seu trabalho, a
terceira alternativa por ele ventilada tem vindo a atrair a atenção, designadamente por,
em vários casos significativos recentes, se ter retornado ao sistema de prêmios que tinha
já, historicamente, estado associado a algumas invenções de grande importância, como
o cronômetro para medida de longitude em alto mar ou os recipientes para conservar
alimentos. Na verdade, em anos recentes têm sido instituídos prêmios que variam entre
significativas somas em dinheiro, como o atribuído ao primeiro voo privado suborbital
(Ansari X-Prize, 10 milhões de dólares), até a prêmios de menor dimensão pecuniária,
como os atribuídos por comunidades na Internet para a resolução de pequenos
problemas de software (SAAR, 2006; STIGLITZ, 2006).
Tão interessante como a recuperação do sistema de prêmios é, de um ponto de
vista histórico, o retorno a mecanismos de desenvolvimento cumulativo da inovação
por comunidades de inovadores. Nuvolari (2001) descreve precisamente a existência de
comunidades desse tipo, durante a revolução industrial na Inglaterra.
Os regimes designados por “open source” e “software livre” correspondem,
atualmente, a versões atuais dessas comunidades. Esses regimes, apesar de diferenciados
entre si, baseiam-se em mecanismos de desenvolvimento partilhado da inovação que
reconhecem haver vantagem em as inovações se manterem acessíveis à comunidade
de inovadores. Dessa forma, os múltiplos inovadores podem introduzir, de forma
cumulativa, melhorias incrementais nas respectivas áreas tecnológicas. A manutenção
dos conhecimentos em regime “aberto” contribui assim, de acordo com os apologistas
dessas metodologias, para um progresso tecnológico global mais rápido que o possível
no contexto do sistema de patentes.
Nesses regimes, a partilha dos conhecimentos não é vista como contraditória da
apropriação provada de benefícios. Essa apropriação não decorre, porém, da patente,
mas essencialmente da reputação que o inovador adquire ao produzir inovações
sucessivas em uma determinada área tecnológica. É o reconhecimento da competência
tecnológica do inovador que contribui para que os seus serviços sejam requisitados por
uma base de clientes progressivamente mais alargada.
62
Q UE DIZEM AS ESTATÍSTICAS
De forma algo paradoxal, apesar da insatisfação crescente com o funcionamento
do sistema de patentes e da tentativa de explorar regimes alternativos de incentivo ao
desenvolvimento tecnológico, o número total de patentes solicitadas e concedidas, à
escala global, tem vindo a aumentar significativamente nas últimas décadas. Na verdade,
os dados da Figura 1 revelam essa tendência. Desde 1991, o número de pedidos de
patentes realizados à escala mundial praticamente duplicou, atingindo em 2006 um
valor de 1,7 milhões de pedidos.
Há a referir que esse número diz respeito a atos individuais de pedidos e não a
pedidos de direitos de proteção em diferentes países. Essa distinção tem a ver com o
fato de um pedido individual de uma “patente internacional” (patentes PCT), ou de uma
patente europeia (patentes concedidas pelo EPO), poder indicar em simultâneo até
algumas dezenas de países em que procura proteção. Tendo em conta essa distinção,
estima-se que existiam em 2006 cerca de 5,6 milhões de pedidos de direitos de proteção
por patente à escala global (TRILATERAL, 2007).
O muito significativo aumento de pedidos de patentes registrados no período mais
recente, identificado por Granstrand (1999) como correspondendo à entrada da economia
mundial em uma “época pró-patente”, deve-se fundamentalmente a quatro tipos de razões:
(i) desenvolvimento de novas áreas tecnológicas com grande propensão a patentear
(biotecnologia, tecnologias de informação, nanotecnologia...); (ii) desenvolvimento de
um clima de proteção mais favorável; (iii) utilização estratégica de patentes por parte de
grandes companhias à escala global; (iv) legislação que estimulou a entrada de novos
atores nas atividades de obtenção de patentes (designadamente universidades).
Figura 1 - Número total de pedidos de patentes, 1985-2006
Fonte: WIPO Statistics Database, 2008
Taxa de Crescimento (%)
Pedidos de Patentes
1.800.000
1.600.000
1.200.000
1.000.000
10,1
800.000
2,6
1,7
0,4
8,7
6,4
6,2
4,8
0,1
3,3
2,6
0,9
8,3
6,0
5,6
2,9
5,2
4,9
600.000
-0,7
-1,1
400.000
200.000
-10,9
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
1992
1991
1990
1989
1988
1987
1986
0
1985
Número de Pedidos
1.400.000
63
A razão da flutuação registrada no gráfico da Figura 1 entre 1985 e 1995 prendese, fundamentalmente, ao colapso da União Soviética, que no seu auge gerava mais
de 200 mil patentes. Como é visível na Figura 2, o número de pedidos com origem na
Federação Russa é agora bastante inferior, situando-se abaixo dos 50 mil pedidos/ano.
A Figura 2, apresentando informação para um período de 124 anos, de 1883 a
2006, mostra que atualmente os principais institutos de patentes à escala mundial, em
termos de recepção de pedidos de patentes, são o norte-americano e o japonês, ambos
com mais de 400 mil pedidos/ano em 2006. Os outros grandes institutos são, neste
momento, e por essa ordem, em termos de volume de pedidos processados em 2006,
o chinês, o sul coreano e o europeu (EPO).
Há a notar que os dados constantes dos gráficos da Figura 2, relativos aos principais
países em termos de recepção de pedidos de patentes, dizem respeito ao somatório
de pedidos de entidades residentes com os de entidades não-residentes. Para todos os
efeitos, a evolução recente dos pedidos na Coreia do Sul e, em particular, na China, é
verdadeiramente notável.
Figura 2 - Pedidos de patentes nos principais institutos de patentes: 1883-2006
Fonte: WIPO Statistics Database, 2008
Figura 2a
E UA
China
European Patent Office
Japão
República da Coreia
União Soviética
Número de Pedidos
450.000
300.000
150.000
0
1883 1893 1903 1913 1923 1933 1943 1953 1963 1973 1983 1993 2003
64
Figura 2b
Alemanha
Federação Russa
Reino Unido
Canadá
Austrália
França
Número de Pedidos
200.000
150.000
100.000
50.000
0
Nas Figuras 3 e 4, a ótica de observação é distinta, estando os dados contabilizados
em ambas as figuras em termos de pedidos originários de diferentes países. Na primeira
dessas duas figuras, tem-se a distribuição percentual dos pedidos de patentes, por países,
em 2006. É visível que o Japão e os E.U.A. lideram a hierarquia, concentrando esses dois
países mais de metade dos pedidos de patentes à escala global (com respectivamente,
29,1% e 22,1%). Os países da União Europeia, no seu conjunto, detêm também uma
proporção considerável da procura global de patentes. Porém, individualmente, a
Coreia do Sul surge em terceiro lugar, originando quase 10% dos pedidos globais, vindo
a China em quinto, logo depois da Alemanha, com 7,3% dos pedidos em 2006. Há a
notar que, para além desse top 10 constante na Figura 3, o grupo designado por “outros”
concentra uma proporção de apenas 14,8% dos pedidos globais.
Figura 3 - Distribuição percentual dos pedidos de patentes, por países, em 2006
Fonte: WIPO Statistics Database, 2008
Outros:
Outros ;14,80%
14,80%
China:
China ;7,30%
7,30%
Suíça:
Suiça;1,40%
1,40%
Holanda ;1,60%
1,60%
Holanda:
Reino
Reino Unido:
Unido ;2,30%
2,30%
Japão ;29,10%
29,10%
Japão:
Federação
Russa;
Federação Russa:
2,50%
1,60%
EUA:
EUA;22,10%
22,10%
França: ;2,50%
França
2,50%
República
República da
da
Coreia: 9,80%
Coreia;
9,80%
Alemanha:
Alemanha;7,40%
7,40%
65
Os dois gráficos que a Figura 4 contém também apresentam a informação em
termos de pedidos originários de diferentes países, mas com os dados processados
mediante um indicador que pondera o número de pedidos de patentes por milhão de
habitantes. É visível a enorme vantagem do Japão e da Coreia do Sul, contando ambos
os países com mais de 2.500 pedidos por milhão de habitantes. Note-se que Portugal
surge com um valor, para esse indicador, inferior a 20 pedidos por milhão de habitantes,
um pouco abaixo do Brasil.
Figura 4 - Pedidos de patentes de residentes,
por milhão de habitantes, 2000 e 2006
Fonte: WIPO Statistics Database and World Bank
(World Development Indicators), 2008
Figura 4a
2000
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
2400
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
1600
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
800
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
China
Cazaquistão
Holanda
Austrália
Eslovenia
Singapura
Islândia
Canadá
Federação
Russa
Irelanda
Suíça
França
Noruega
Suécia
Áustria
Dinamarca
Reino Unido
Finlândia
Nova Zelândia
EUA
Alemanha
Japão
0
Coreia do Sul
Pedidos de residentes por milhão de habitantes
2006
3200
Figura 4b
2000
66
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
90
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
60
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
30
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Índia
Arábia Saudita
México
Síria
Taiândia
Turquia
Portugal
Chile
Brasil
Hong Kong
Estónia
Chipre
Eslováquia
Israel
Bélgica
Lituânia
Grécia
Luxemburgo
Polónia
República Checa
Croácia
Hungria
Espanha
0
Ucrânia
Pedidos de residentes por milhão de habitantes
2006
120
Os Quadros 1 e 2 fornecem informação relativamente a um subconjunto dos
dados analisados nos parágrafos precedentes, concentrando-se nas chamadas
“patentes internacionais” (ou patentes PCT, de Patent Cooperation Treaty). Esse tipo de
patente, que começou a ser concedido em 1978, permite a um residente em um dos
países signatários do acordo PCT solicitar, por meio de um único pedido, uma proteção
múltipla nos diferentes países signatários. Tipicamente, recorrem a esse tipo de pedido
grandes companhias que atuam simultaneamente em diferentes mercados.
É visível, por meio do Quadro 1, o predomínio nos pedidos de patentes PCT dos
mesmos países assinalados anteriormente, os E.U.A. e o Japão, mas surgindo agora
a Alemanha a uma menor distância relativa. Tendo em conta os dados para 2008, os
pedidos de patentes PCT oriundos da China surgem já em 5º lugar, logo depois da
Coreia do Sul e da França. A assinalável evolução da China nos anos 2000 nessa
matéria é coroada, simbolicamente, pelo fato de uma companhia desse país (a Huawei
Technologies CO., Ltd.) surgir, em 2008, como o principal requerente global de pedidos
de patente PCT (ver Quadro 2).
Referenciando os casos do Brasil e Portugal, o número de pedidos de patentes PCT
oriundos de residentes em cada um desses países foi, em 2008, de 470 e 100, em face
de valores em 2000 de, respectivamente, 178 e 21. Essa evolução indica um crescimento
mais rápido que o registrado pelo número total de pedidos PCT entre 2000 e 2008, mas
indica igualmente existir, em ambos os casos, um longo caminho a percorrer para se
obter a convergência com as economias que lideram a utilização desse tipo de patente.
Quadro 1 - Evolução dos pedidos PCT, principais países
Fonte: WIPO Statistics Database, abril 2009
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
93.238
108.230
110.393
115.204
122.632
136.752
149.657
159.921
161.982
1801
2114
2260
2271
2104
2319
2572
2843
2886
China
784
1731
1018
1295
1706
2503
3927
5440
6094
França
4138
4707
5090
5171
5184
5748
6260
6559
6505
Total
Canadá
Alemanha
12582
14031
14326
14662
15214
15984
16732
17816
18669
Itália
1393
1623
1982
2163
2189
2348
2706
2944
2877
Japão
9567
11904
14063
17414
20264
24868
27024
27754
28783
Holanda
2928
3410
3977
4479
4284
4500
4544
4373
4309
Coreia do Sul
1580
2324
2520
2949
3558
4689
5946
7060
7910
Suécia
3091
3421
2990
2612
2851
2883
3333
3656
4114
Suíça
1989
2349
2755
2861
2899
3291
3612
3796
3849
CONTINUA
67
CONTINUAÇÃO
Reino Unido
4795
5482
5376
5206
5027
5085
5085
5526
5492
E.U.A.
38007
43054
41296
41033
43352
46830
51246
54025
51351
Brasil
178
173
201
219
278
270
333
397
470
21
42
34
36
49
55
68
92
100
Portugal
Quadro 2 - Principais requerentes de patentes PCT em 2008
Fonte: WIPO Statistics Database, 2009
HUAWEI TECHNOLOGIES CO., LTD.
PANASONIC CORPORATION
País de Origem
Pedidos PCT
publicados
China
1.737
Japão
1.729
Holanda
1.551
Japão
1.364
ROBERT BOSCH GMBH
Alemanha
1.273
SIEMENS AKTIENGESELLSCHAFT
Alemanha
1.089
NOKIA CORPORATION
Finlândia
1.005
LG ELECTRONICS INC.
Coreia
992
TELEFONAB LM ERICSSON (PUBL)
Suécia
984
FUJITSU LIMITED
Japão
983
KONINKLIJKE PHILIPS ELECTRONICS N.V.
TOYOTA JIDOSHA KABUSHIKI KAISHA
Para finalizar esta seção, em que a análise se concentrou fundamentalmente na
procura de patentes, faz sentido referenciar a procura pelo registro de marcas comerciais
à escala global. Para essa modalidade, a Figura 5 ilustra um processo de crescimento
idêntico ao verificado para as patentes, mas porventura mais pronunciado ainda. Na
verdade, em 1985 verificava-se menos de 1 milhão de pedidos de marcas (953.190);
em 2007, esse valor tinha bastante mais que triplicado (para 3.432.441). Desse total de
pedidos de registro de marcas em 2007, estima-se que 23% são realizados na China,
seguindo-se a esse país os Estados Unidos (8,9%), o Japão (4,2%) e, novamente, a
Coreia do Sul (4,1%). Para além da liderança da China, o outro dado a reter é o fato
de nessa modalidade surgirem na hierarquia, seguidamente, outros dois países em
desenvolvimento, a Índia (com 3,3%) e o Brasil (com 3,1%).
68
O Quadro 3 fornece informação em uma ótica um pouco diferente, pois registra
apenas os pedidos de marcas nacionais feitos no próprio país pelos respectivos
residentes. Esse quadro permite verificar que as disparidades entre alguns países de
desenvolvimento intermédio e os mais desenvolvidos é bastante menor nesse indicador
que no indicador correspondente de patentes. Os valores identificados nesse quadro
revelam, igualmente, uma intensidade de uso marcas comerciais em Portugal e Macau
bastante elevada.
Figura 5 – Pedidos totais de marcas, 1985-2007
Fonte: WIPO Statistics Database, 2008
Pedidos Totais de Marcas
3.750.000
3.250.000
2.750.000
2.250.000
1.750.000
1.250.000
750.000
1984
1988
1992
1996
2000
2004
2008
Quadro 3 – Pedidos de marcas nacionais por residentes,
2006, nos principais países e em territórios de língua portuguesa
Fontes: WIPO Statistics Database, 2008; Human Development Report 2007/8
China
Pedidos
Pedidos por milhão de
habitantes
669.276
509
E.U.A.
233.311
778
Japão
111.754
874
Coreia do Sul
105.544
2203
Brasil
76.827
411
Índia (2005)
73.308
65
Alemanha
68.810
832
CONTINUA
69
CONTINUAÇÃO
França
66.501
1090
Argentina
60.777
1570
México
45.161
433
Macau
531
1062
Moçambique
Portugal
553
27
11.902
1134
A ECONOMIA POLÍTICA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL
As instituições da propriedade intelectual surgiram historicamente, em primeiro
lugar, na Itália do Renascimento e se desenvolveram, posteriormente, na Inglaterra
da Revolução Industrial, assumindo nesse país, durante o século XIX, boa parte das
características que marcam o atual sistema de propriedade intelectual. Durante as últimas
décadas do século XX esse sistema evoluiu para formas de proteção mais intensas, por
via de extensão de prazos de proteção, de um sistema legal e jurídico robustecido, e por
uma articulação crescente da propriedade intelectual com o comércio internacional,
materializada fundamentalmente com o acordo TRIPS. Simultaneamente, os níveis
de utilização das principais modalidades de propriedade intelectual têm aumentado
de forma assinalável nos últimos anos. Devido a esse conjunto de desenvolvimentos,
Granstrand (1999) argumentou que a economia mundial entrou em um período que
ele designou por “capitalismo intelectual”.
Como se verifica ao longo deste trabalho, a propriedade intelectual é uma temática
altamente politizada. O reconhecimento da existência de uma “falha de mercado”
significa que se aceita, de forma explícita e racionalizada, a intervenção do Estado, por
via da política de atribuição de direitos de propriedade intelectual. Na análise que se
seguiu a Arrow (1962), reconheceu-se que o Estado pode, de forma deliberada, gerir a
intensidade de proteção atribuída, por via da extensão temporal, da largura da proteção
e da amplitude de áreas técnicas consideradas.
Em anos mais recentes, a análise acadêmica progrediu das questões de calibração
ótima do sistema existente para questões de relevância prática, mais substanciais. Essa
progressão verifica-se em consonância com a própria evolução da realidade, em que
se registra a recuperação de sistemas de prêmios e de comunidades de inovadores, a
par de uma contestação crescente, nos países em desenvolvimento mas também em
setores diversificados dos países desenvolvidos, do sistema de propriedade intelectual
institucionalizado.
A situação que se vive atualmente é, pois, a diversos títulos, paradoxal. Existe um
diagnóstico extenso dos problemas que afetam o sistema de propriedade intelectual,
70
mas verifica-se uma inércia institucional que entrava qualquer reforma profunda. A par
do fortalecimento da proteção e da utilização mais intensiva das modalidades existentes,
verificam-se experiências com mecanismos alternativos de incentivo à inovação, com
grande relevância prática.
Nesse quadro, impõe-se identificar estratégias eficazes no mundo de língua
portuguesa. Tais estratégias têm, naturalmente, de ter em conta a diversidade
de situações em termos de utilização relativa das diferentes modalidades, de
desenvolvimento socioeconômico e de enquadramento geopolítico dos diversos
territórios onde se fala português. Acresce que, mesmo no interior de cada um desses
territórios, há uma variância significativa em termos de propensão a produzir criações
intelectuais e inovação tecnológica, sendo a esse respeito o caso mais notável o Brasil.
Essa diversidade de situações suscita, naturalmente, dificuldades na identificação de
uma agenda comum sistemática que possa congregar agentes públicos e privados em
todo o espaço lusófono. Existem, porém, alguns aspectos fundamentais nos quais pode
haver cooperação produtiva entre as partes.
A propriedade intelectual, além de altamente politizada, é atualmente uma
temática de natureza global. É desejável que, nesse quadro, atuando nas organizações
internacionais relevantes, incluindo a OMPI e a OMC, se procure identificar uma agenda
mínima de reforma do sistema global de propriedade intelectual, de forma a reduzir os
custos de acesso e, uma vez dentro do sistema, os custos operacionais (incluindo-se
aqui os possíveis custos de litigação). A reforma de aspectos processuais é uma questão
de natureza jurídica complexa, mas na qual valerá a pena investir para caminhar para
uma utilização mais justa e equilibrada da propriedade intelectual.
Um outro aspecto relevante tem a ver com a imposição do português como uma
das línguas nucleares do sistema global de propriedade intelectual. A documentação
associada aos direitos de propriedade intelectual veicula informação técnica e comercial
de importância estratégica, pelo que a sua ampla disponibilização em língua portuguesa
pode atuar como um veículo importante de difusão de novos conhecimentos.
Finalmente, um domínio vital de atuação é o da partilha de recursos e conhecimentos
na educação e informação sobre propriedade intelectual. Para obter-se benefício do
sistema existente, seja pela absorção de informação ou pela obtenção de proteção, há
necessidade de um conhecimento do enquadramento jurídico, das modalidades e dos
aspectos técnicos associados ao seu emprego. Abrem-se aqui, pois, duas vertentes de
atuação importantes: a formação de quadros para os organismos que determinam as
políticas de propriedade intelectual e a gestão do sistema em cada um dos países; e a
formação de técnicos especializados em propriedade intelectual nas organizações que
produzem criações intelectuais com potencial aplicação econômica ou que pretendem
utilizar a informação constante do sistema global de propriedade intelectual.
71
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73
II
I NOVAÇÃO, P ROPRIEDADE I NDUSTRIAL E A CESSO A
P RODUTOS DE S AÚDE
CAPÍTULO
PATENTES
3
BIOTECNOLÓGICAS E O ACESSO A PRODUTOS DE SAÚDE
–
UMA PERSPECTIVA EUROPEIA E LUSO - BRASILEIRA
68
JOÃO PAULO F. REMÉDIO MARQUES69
68
Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho
de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.
69
Professor da Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal), Meste em Ciências Jurídico-Forenses, Doutor em Direito
(Propriedade Intelectual)
1. I NTRODUÇÃO. AS PATENTES NO SETOR DA SAÚDE HUMANA
Ao iniciarmos este breve apontamento, há um ponto sobre o qual se faz mister
afirmar uma primeva razão de ordem: as patentes biotecnológicas e, em geral, as patentes
aplicadas no setor da saúde humana não devem estar sujeitas à mesma atenção e,
logo, ao mesmíssimo regime jurídico das patentes relativas - digamos - a aspiradores,
máquinas de torrar o pão ou a espremedores de sucos. Isso porque as patentes
respeitantes a produtos, processos ou usos aplicados na prestação de cuidados de saúde
atinem à vida humana e ao bem-estar físico, psíquico e social das pessoas, valores não
exatamente assimiláveis aos valores mercadológicos dos produtos que incorporam as
invenções materializadas nas referidas máquinas.
Dado que às pessoas é reconhecido um núcleo infrangível de direitos fundamentais,
aí onde se incluem o direito à vida, o direito à saúde e o direito à autodeterminação (v.g.,
autodeterminação informativa, no que tange ao cumprimento do dever de informar
por ocasião da prestação do consentimento informado em matéria de administração
de cuidados de saúde), é justo e razoável impor, aos titulares das patentes aplicadas
no setor médico e farmacêutico, certos deveres de proteção e de atuação em função da
aplicação última das soluções técnicas sobre as quais gozam e exercem os direitos de
patente, quais sejam: a prevenção ou o restabelecimento do equilíbrio daquele bemestar. Isso não obstante esses titulares também serem inegavelmente titulares de
faculdades jurídicas de exercício negativo (ius prohibendi), por isso mesmo veiculadas
mediante autorizações e licenças contratuais.
Serve isso para afirmar que devem ser proscritas todas as atividades materiais ou
jurídicas que, direta ou indiretamente:
•
•
•
Visem retardar a colocação de medicamentos genéricos no mercado após a
caducidade da patente do medicamento de referência.
Visem impedir ou retardar injustificadamente a concessão de licenças obrigatórias.
Conduzam à prática de condições discriminatórias no acesso aos medicamentos
patenteados.
2. UMA
VISÃO SOBRE AS PATENTES DE MEDICAMENTOS NOS PAÍSES DE EXPRESSÃO
DE LÍNGUA PORTUGUESA
A atividade econômica do fabrico e venda de medicamentos para uso humano
constitui um negócio que movimenta triliões de euros todos os anos.
Na Europa, as maiores empresas farmacêuticas têm a sua sede na Alemanha, no
Reino Unido, na França e na Suíça. Constata-se uma enorme concentração dessa atividade
78
econômica em um reduzido número de empresas societárias. Quer em Portugal, quer
no Brasil, há um conjunto de empresas menores, dotadas de capitais nacionais e,
não raras vezes, saídas dos meios universitários, que se envolveram na pesquisa e no
desenvolvimento de novos produtos, maxime no setor das biotecnologias.
De todo o jeito, a política legislativa portuguesa e brasileira em matéria de cuidados
de saúde é coincidente: sob a reserva do possível, fazer chegar a todas as pessoas os
cuidados de saúde, independentemente das possibilidades econômicas dos cidadãos.
O dilema é o seguinte: como estimular suficientemente a indústria farmacêutica no
sentido da inovação sob o horizonte de um universo de maximização do lucro e, uno
actu, como manter os custos dos sistemas nacionais de saúde em um nível socialmente
aceitável?
De resto, mais na União Europeia e menos no Brasil ou nos outros países de
expressão oficial em língua portuguesa, foi assumido o paradigma segundo o qual, na
ausência de direitos de patente providos de um licere forte, a indústria farmacêutica
provavelmente não sobreviveria; o desenvolvimento e a inovação não prosperariam;
o desemprego aumentaria e a prestação de cuidados de saúde sairia a perder. Esse
paradigma não está demonstrado, nem provavelmente será fácil provar a adequação
das suas premissas.
Seja qual for o cenário mais verossímil, o certo é que o regime do direito de patente
influenciou tanto a atual configuração das indústrias farmacêuticas quanto o statu
quo dessas indústrias, e os lobbies representativos dos seus interesses modelaram, em
aspectos importantes, o concreto regime do direito de patente70 - basta, por exemplo,
pensar no regime jurídico instituído no artigo 230º do Código da Propriedade Industrial
brasileiro71 sobre as patentes pipeline, o que, como é sabido, não era tão pouco exigido
pelo Acordo TRIPS.
70
VAVER, David / BASHEER, Shamnad, “Popping Patented Pills: Europe and a Decade’s Dose of TRIPs”, in European Intellectual
Property Review, 2006, p. 282 ss., p. 282.
71
De acordo com essa disposição, permite-se “o depósito de pedido de patente relativo às substâncias, matérias ou produtos
obtidos por meios ou processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos
e medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou de modificação, por quem tenha
proteção garantida em tratado ou convenção em vigor no Brasil, ficando assegurada a data do primeiro depósito no exterior,
desde que o seu objeto não tenha sido colocado em qualquer mercado, por iniciativa direta do titular ou por terceiro com o seu
consentimento, nem tenham sido realizados, por terceiros, no País, sérios e efetivos preparativos para a exploração do objeto do pedido
ou da patente” - o itálico é meu.
Por sua vez, o § 3 desse Código determina que “… uma vez atendidas as condições estabelecidas neste artigo e comprovada
a concessão da patente no país onde foi depositado o primeiro pedido, será concedida a patente no Brasil, tal como concedida
no país de origem”, mais dizendo o § 6 dessa norma que “fica assegurado à patente concedida com base neste artigo o prazo
remanescente de proteção no país onde foi depositado o primeiro pedido, contado da data do depósito no Brasil e limitado ao
prazo previsto no artigo 40º, não se aplicando o disposto no seu parágrafo único”.
79
Diga-se, desde já, que essa consagração das denominadas patentes de pipeline ou de revalidação encontra apoio no artigo 1º/4
da Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, de 1883: essa norma pretendeu fazer estender as disposições
da referida Convenção aos direitos de patente, incluindo as patentes de importação.
Como se intui, por outro lado, o regime jurídico dessas patentes pipeline, embora não decorra do disposto no artigo 70º do
Acordo TRIPS, maxime dos seus nos 8 e 9, contém uma “solução paralela” à prevista nesse nº 9 (embora no artigo 230º do Código
brasileiro não se exija que o pedido de patente ou a concessão sejam efetuadas no estrangeiro após o dia 1º de janeiro de 2005,
data do início de vigência do TRIPS), e inspira-se na ideia de que poderá ser concedido um exclusivo comercial ou industrial
no Brasil, ainda quando a invenção já tenha sido divulgada no estrangeiro, mas aí ou no Brasil ainda não tenha sido objeto de
comercialização pelo titular (ou requerente da proteção) ou por um terceiro, com o seu consentimento.
Há uma outra regra paralela no artigo 18º/1 da Convenção de Berna para a proteção das obras literárias e artísticas, de 1886
(aprovada, entre nós, para adesão pelo Decreto nº 73/78, de 26 de julho), ex vi do artigo 70º/2 do TRIPS, segundo a qual as
obrigações relativas a obras preexistentes serão definidas nos termos do artigo 18º da referida Convenção, que é o mesmo que
dizer que as obras preexistentes deverão ser protegidas a partir da data da entrada em vigor do TRIPS, desde que ainda não
tenham caído no “domínio público”, ou seja, contanto que ainda não tenha expirado o seu prazo de proteção (o que suscitou
uma conhecida polêmica entre os E.U.A. e o Japão - e, depois, a União Europeia - acerca da proteção das gravações efetuadas
nos E.U.A. antes de 1972, data em que a lei interna estadunidense passou a proteger tais obras: os E.U.A. pretendiam que a
proteção de tais obras (no Japão) fosse retroativa, com efeitos a partir de 1946, embora o ordenamento japonês somente
protegesse tais obras a partir de 1971.
Nesse caso, previsto no artigo 230º do Código da Propriedade Industrial brasileiro de 1996, a novidade intelectiva (e absoluta)
da invenção cede o terreno à exigência e verificação de uma novidade apenas merceológica - baseada na ideia segundo a
qual não deve o objeto da invenção ter sido colocado em qualquer mercado do planeta pelo titular ou por um terceiro com
o seu consentimento, um pouco à semelhança do que ocorre no regime jurídico do direito de obtentor de variedade vegetal
(artigo 6º/1, alínea b), da Convenção UPOV, na redação de 1978, a que o Brasil e Portugal se acham vinculados; artigo 10º/1 do
Regulamento (CEE) nº 2.100/94, do Conselho, de 27 de julho de 1994, relativo ao direito de obtentor comunitário de variedades
vegetais; e artigo 5º/1, alínea d), do Regulamento sobre a proteção das obtenções vegetais, aprovado pela Portaria nº 940/90, de
4 de outubro), o qual, como se sabe, prevê, no quadro do texto saído da revisão de 1991 da Convenção UPOV, a possibilidade
de uma proteção cumulativa, seja pelo direito de patente, seja pelo regime das obtenções vegetais, na medida em que as plantas
subsumíveis ao conceito de variedade vegetal também podem servir para resolver inúmeros problemas técnicos, de modo
que os setores normativos de aplicação dos dois subsistemas da propriedade industrial e os respectivos “círculos de proibição”,
não, de todo em todo, totalmente independentes (cfr., sobre essa aproximação dos dois subsistemas, J. P. REMÉDIO MARQUES,
Biotecnologia(s) e Propriedade Industrial, vol. II, Obtenções Vegetais, Conhecimentos Tradicionais, Sinais Distintivos, Bioinformática e
Bases de Dados, Direito da Concorrência, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 98-104) - e o ordenamento brasileiro passa a reconhecer
as situações jurídicas de direito de patente já constituídas (ou em vias de constituição) no estrangeiro, na decorrência de pedidos de
patente efetuados há mais de um ano (relativamente ao pedido de proteção efetuado no Brasil) ou de patentes já concedidas
no estrangeiro. De acordo com essa norma do artigo 230º do citado Código, ocorre o reconhecimento, no Brasil, de situações
jurídicas criadas no estrangeiro de conformidade com as normas do ordenamento estadual de que aquelas dependem (o país da
data do primeiro depósito), de harmonia com os preceitos de uma legislação que a si própria se considere competente e
que tire a sua competência de princípios universalmente válidos e legítimos (o que normalmente sucede, pois a lei aplicável é,
nessas eventualidades, a lei do Estado cuja Administração competente concede o direito de patente). E mesmo que assim não
sucedesse, dever-se-á, em regra, reconhecer as situações jurídicas multinacionais criadas sob o abrigo de leis estrangeiras, mesmo
que eventualmente tais leis não sejam aplicáveis à luz dos critérios normais de atribuição de competência consagrados no
direito de conflitos do foro (FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, I, com a colaboração de Luís Barreto Xavier,
Almedina, Coimbra, 2000, p. 386, p. 391 ss., p. 397).
Embora o Acordo TRIPS não densifique, na 1ª parte do nº 1 do seu artigo 27º, o conteúdo do requisito da novidade das invenções
enquanto condição indefectível de constituição desse direito de propriedade industrial - remetendo essa densificação para o
quadro da discricionariedade legislativa reconhecida aos Estados contratantes da Organização Mundial do Comércio, domínio
onde os Estados são livres de consagrar um sistema de novidade cognoscitiva absoluta ou, pelo contrário, um sistema de
novidade relativa como é, por exemplo, a novidade merceológica, nos termos previstos na legislação brasileira -, tem sido
altamente discutível e controvertido o problema da constitucionalidade desse artigo 230º do Código da Propriedade Industrial
brasileiro de 1996, em face do disposto no artigo 5º, XXIX, da Constituição Brasileira de 1988 e do princípio da independência
dos direitos de patente consagrado no artigo 4º-bis da Convenção da União de Paris. Uma coisa também nos parece certa:
o requisito da novidade das invenções pode ser entendido em termos flexíveis. E o princípio da proporcionalidade lato sensu
permite sindicar até que ponto as soluções consagradas pelo legislador foram, ou não, excessivas, inadequadas ou desnecessárias
relativamente aos fins que se pretendiam prosseguir e à defesa dos interesses contrapostos.
Em primeiro lugar, foram salvaguardados em termos de cláusula de imunidade (ou de inoponibilidade d)os interesses de todos
aqueles que já usavam, no Brasil, o objeto da invenção protegida no estrangeiro ou faziam preparativos sérios para aí a usar
(uso prévio anterior).
80
Em segundo lugar, ainda quando a patente tenha sido concedida no estrangeiro sem a realização de um exame substancial,
nada impede que a patente pipeline brasileira seja objeto de ação de nulidade perante os tribunais brasileiros, pois o
reconhecimento dessa situação jurídica constituída no estrangeiro não remove a aplicação do princípio da territorialidade e o
da independência do direito de patente. Basta também recordar que, por exemplo, vigora nos E.U.A. o período de graça de um
ano após a divulgação da invenção, por qualquer meio (ou no estrangeiro, por escrito), que não destrói a novidade do invento e
a regra da prioridade com a duração de um ano a contar da data do primeiro depósito do pedido de patente em qualquer país
contratante da Convenção da União de Paris e da Organização Mundial do Comércio.
Depois, a regra ínsita no artigo 70º/3 do Acordo TRIPS, que não obriga os Estados contratantes a restabelecer a proteção de
invenções que, no dia 01/01/1996, tenham caído no “domínio público”, apenas se aplica às invenções divulgadas anteriormente
no Estado cujo ordenamento não permitia a proteção de tais realidades ou cuja proteção já tenha expirado nesse Estado.
São também conhecidos os regimes que vigoraram no passado respeitantes às patentes de importação de invenções já
divulgadas e exploradas em países estrangeiros, o que sucedeu em muitos países (em Portugal; na Espanha: Estatuto de la
Propriedad Industrial, de 1929; na Bélgica: lei de patentes, de 1854; na Argentina: Código da Propriedade Industrial, de 1864).
Por último, não se deve defender que a consagração desse tipo de patentes (pipeline ou de revalidação) viole direitos adquiridos
por terceiros ou pela comunidade, mesmo à luz da dogmática jurídica brasileira, visto que um direito adquirido constitui
sempre um direito subjetivo ou uma posição jurídica subjetiva de natureza patrimonial, e o fato de as invenções já terem sido
divulgadas fora do Brasil, eventualmente para além do prazo da prioridade unionista (um ano) não faz ingressar qualquer direito
patrimonial na esfera jurídica subjetiva de cidadãos ou de entidades sujeitas ao ordenamento jurídico brasileiro.
Não se esqueça que, como atrás referi, ficaram protegidos (scilicet, são oponíveis ao requerente da patente pipeline) os interesses
de todos os terceiros (nacionais ou estrangeiros, à luz do princípio da igualdade) que, na data do pedido da patente pipeline,
tenham efetuado preparativos sérios e efetivos com vista à exploração econômica do objeto dessa invenção no Brasil. Sobre
isso, cfr. AHLERT, Ivan Bacelar / ANTUNES, Paulo de Bessa, “Pipeline e Constituição: de que inconstitucionalidade falamos”, in
Revista da ABPI (Associação Brasileira de Propriedade Intelectual), n. 87, mar./abril 2007, p. 45 ss., p. 53 ss.; DI BLASSI, Gabril /
GARCIA, Mário Sorensen / MENDES, Paulo Parente M., A Propriedade Industrial, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p. 124
(de acordo com os autores, a condição, absoluta ou relativa, da novidade deve ser definida por cada legislador ordinário);
GOMES CANOTILHO / JÓNATAS MACHADO, A Questão da Constitucionalidade das Patentes Pipeline à Luz da Constituição Federal
de 1988, (com a colaboração de Vera Lúcia Raposo), Almedina, Coimbra, 2008; BARBOSA, Denis Borges, “Inconstitucionalidade
das Patentes Pipeline”, 2006, in http://denisbarbosa.addr.com/pipeline.pdf; BARBOSA, Denis Borges / BARBOSA, Pedro Marcos
Nunes, “Algumas notas à intercessão do SPC e a patente pipeline”, in Revista da ABPI, n. 93, mar./abril 2008, p. 35 ss., p. 40;
TIBURCIO, Carmen, “Patente de Revalidação (Pipeline), Extensão do Prazo de Proteção da Patente Originária no Exterior. Efeitos
sobre a Patente Pipeline Nacional”, in Revista da ABPI, n. 92, janeiro/ abril 2008, p. 44 ss.; CLÉVE, Clémerson / BREKENFELD, Melina,
“A repercussão, no regime da patente pipeline, da declaração de nulidade do privilégio originário”, in Revista da ABPI, n. 66,
setembro /outubro 2003, p. 24.
81
Na Europa e, provavelmente, ainda no Brasil, os governos aceitam a retórica
argumentativa das empresas farmacêuticas transnacionais, de harmonia com a qual é
necessário ou imprescindível proteger, mediante o direito de patente, os medicamentos
e os processos de obtenção ou fabricação de medicamentos enquanto forma de estimular
a obtenção de medicamentos mais eficientes. Retórica argumentativa de acordo com a
qual as faculdades jurídicas reconhecidas ao titular dessas patentes devem ser poderosas,
no sentido de atribuir aos titulares o controle sobre a pesquisa, o desenvolvimento, a
produção e a comercialização, nacional ou no estrangeiro, desses “novos” fármacos.
Seja como for, a era pós-TRIPS - caracterizada pelo reforço da proteção dos titulares
de patentes dessa natureza - chegou à União Europeia sob a veste da Diretiva nº 98/44/
CE, do Conselho e do Parlamento Europeu, de 6 de julho de 1998, relativa à proteção das
invenções biotecnológicas72 . Os considerandos nºs 1, 2, 3, 11, 14, 17 e 18 dessa diretiva se
posicionam, algo contraditoriamente, entre Scilla e Caribdis. De fato, ao mesmo tempo
em que o legislador europeu almeja dotar a indústria farmacêutica de um acervo mais
reforçado de faculdades jurídicas, ele visa também a promover a prestação dos cuidados
de saúde nos países em desenvolvimento, por meio do direito de patente, bem como
a exportação de fármacos e a regulação pública da comercialização dos medicamentos
para uso humano.
O certo é que, para a indústria farmacêutica, a instrumentalização dos seus
objetivos opera por meio da influência nas políticas legislativas, mediante os lobbies
e a litigância nos tribunais. Não é por acaso que, por força do Regulamento (CE) nº
726/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 200473, que
estabeleceu o procedimento comunitário de autorização e fiscalização de medicamentos
para uso humano e veterinário, e que instituiu a Agência Europeia do Medicamento, foi
alcançado um sistema centralizado europeu de aprovação de medicamentos que
incorporam inovações biotecnológicas, para efeitos de registro, junto à Agência Europeia
do Medicamento74.
É, na verdade, do interesse das empresas multinacionais farmacêuticas sofrer
menores “custos de transação” no processo de aprovação desse tipo de medicamentos
para uso humano.
Já quanto aos procedimentos administrativos destinados a obter a fixação do preço
máximo de venda ao público desses medicamentos, a estratégia é puramente nacional,
que não europeia, pois mais vale “dividir para reinar”.
72
In Jornal Oficial das Comunidades Europeias, n. L 213, de 30 de julho de 1998.
73
In Jornal Oficial da União Europeia, n. L 136, de 30 de abril de 2004, p. 1 ss.
74
Esse regulamento somente atinge o procedimento administrativo centralizado destinado à aprovação e ao registro de
medicamentos desenvolvidos por meio de: tecnologia do DNA recombinante; de métodos de hibridoma e anticorpos
monoclonais e a expressão controlada da codificação de genes para proteínas biologicamente ativas em organismos procariotas
e eucariotas.
82
Por exemplo, em 2005, o custo do fornecimento do medicamento comercializado
sob a marca “Prozac” custou, por embalagem, cerca de 18,49 euros na Itália e 40,48 euros
na Eslováquia. Isso porque os países da União Europeia, bem como os vários Estados da
União, no Brasil, não estão dotados de uma agência centralizada de compras.
3. A INFLUÊNCIA DO ACORDO TRIPS NA UNIÃO EUROPEIA E NO QUADRO DA CPE
Tanto a Convenção sobre a Patente Europeia (doravante, CPE), quanto a União
Europeia, no que tange à transposição da diretriz sobre a proteção das inovações
biotecnológicas, incorporaram o espírito e o corpo do TRIPS, em matéria de direito de
patente.
3.1. A EXTENSÃO DO PATENTEÁVEL A TODOS OS SETORES DA TECNOLOGIA
Desde logo, foi transposto o regime segundo o qual deve ser assegurada a
patenteabilidade em todos os domínios ou setores da tecnologia (artigo 27º/1 do TRIPS).
Por outro lado, a revisão da CPE, ocorrida em novembro de 2000 - com início de
vigência em 13 de dezembro de 2007 - suavizou a aplicabilidade da cláusula da ordem
pública ao direito de patente: se até aí os pedidos de patente podiam ser recusados
por contrariedade aos bons costumes ou à ordem pública com base na mera publicação
desse pedido de patente, doravante a recusa da concessão somente pode verificar-se se
a exploração comercial for contrária à ordem pública ou aos bons costumes75.
3.2. A DIFERENTE CONFIGURAÇÃO DA PATENTEABILIDADE DOS MÉTODOS TERAPÊUTICOS, DE DIAGNÓSTICO E CIRÚRGICOS
Uma outra alteração da CPE, na sequência da revisão de 2000, ocorreu em matéria
de patenteabilidade dos métodos terapêuticos, de diagnóstico e cirúrgicos76. Agora,
eles são susceptíveis de constituírem invenções, mas tais invenções não são agora
patenteáveis, nos termos do artigo 53º, alínea c), da CPE, diferentemente do disposto no
ordenamento brasileiro; nesse ordenamento jurídico, tais métodos não são susceptíveis
de patenteabilidade por falta de industrialidade, como, de resto, era a solução que
anteriormente constava do artigo 52º/4 da mesma CPE. Mas essas invenções não são,
em geral e como referi, patenteáveis. A nova redação do artigo 53º/3, alínea c), do CPI de
2003 (doravante, CPI de 2003), na redação do Decreto-Lei nº 143/2008, de 25 de julho,
75
Essa alteração já aparece refletida no artigo 6º/1 da Diretiva nº 98/44/CE, sobre a proteção das invenções biotecnológicas.
76
Cfr. J. P. REMÉDIO MARQUES, “A patenteabilidade dos métodos de diagnóstico, terapêuticos e cirúrgicos: Questão (bio)
ética ou questão técnica? - O estado do problema”, in Estudos de Direito da Bioética, vol. II, Associação Portuguesa de Direito
Intelectual, Almedina, Coimbra, 2008, p. 211 ss., p. 217, p. 220, p. 243 ss.
83
determina que, a mais de outras invenções insusceptíveis de proteção, não podem ser
objeto de patente “os métodos de tratamento cirúrgico ou terapêutico do corpo humano,
e os métodos de diagnóstico aplicados ao corpo humano ou animal”.
Quer isso dizer que essa exclusão da patenteabilidade é pautada por preocupações
de política legislativa em matéria de saúde pública. Todavia, os tribunais dos Estados, que
veem o exercício da medicina como uma simples atividade econômica lucrativa, sentirse-ão assim mais à vontade para restringir o alcance dessa proibição de patentear as
invenções respeitantes aos referidos métodos.
3.3. A FALTA DE HARMONIZAÇÃO DAS SOLUÇÕES ( DENTRO DA U NIÃO EUROPEIA): O PROBLEMA
DO ÂMBITO DE PROTEÇÃO DAS PATENTES DE SEQUÊNCIA GENÉTICAS ; A FALTA DE MENÇÃO DA ORI GEM GEOGRÁFICA DOS RECURSOS BIOLÓGICOS
O dever de os Estados Contratantes do TRIPS assegurarem a patenteabilidade das
invenções em todos os setores tecnológicos foi mais “levado a sério” na União Europeia
com o advento da Diretiva nº 98/44/CE, sobre a proteção das invenções biotecnológicas,
pese embora alguns Estados-Membros tivessem levantado sérias objeções quanto à
patenteabilidade dos genes humanos e das matérias biológicas meramente isoladas
do seu ambiente natural e dotadas da mesma estrutura. Porém, o Tribunal de Justiça
da União Europeia rejeitou as ações de impugnação dirigidas contra essa Diretiva77,
o que levou à rápida transposição do texto dessa Diretiva para o ordenamento dos
Estados-Membros, ainda que sob cominação da ameaça, por vezes concretizada, da
apresentação de queixa junto ao mesmo Tribunal por motivo da não implementação
de legislação comunitária.
De qualquer jeito, essa transposição ocorreu. Em Portugal, ela deu-se em 2003,
com a entrada em vigor do novo Código da Propriedade Industrial (CPI de 2003).
Só que a transposição do regime dessa Diretiva nº 98/44/CE foi tudo menos
uma transposição da qual tenha resultado uma harmonização dos regimes jurídicos.
Por exemplo, em matéria de delimitação do âmbito de proteção de uma patente sobre
sequências de genes humanos, assiste-se a uma notável disparidade de soluções
legislativas.
De fato, contrariamente à visão tradicional segundo a qual a proteção de uma
patente (maxime, de uma patente de produto) é uma proteção absoluta78 - que torna
oponível o direito do titular relativamente a todas e quaisquer utilizações do objeto
77
Processo C-377/98, países Baixos c. Parlamento Europeu e Conselho, in Colectânea de Jurisprudência do Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias, 2001, I, p. 7079 (ação a que, depois, aderiram a Noruega e a Itália).
78
Sobre isto, desenvolvidamente, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, Direito de Autor,
Direito de Patente e Modelo de Utilidade, Desenhos ou Modelos, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 878-919.
84
da invenção, que não possam ser excepcionadas pelo regime das denominadas
utilizações livres -, alguns ordenamentos europeus (no caso, a França79 e a Alemanha80)
determinaram que o âmbito das patentes relativas a genes humanos é limitado à
específica função ou efeito técnico reivindicado e descrito no pedido de patente, e não a
quaisquer outras funções ou efeitos técnicos81.
O próprio Parlamento Europeu, em uma Resolução de 26/10/200582, entende que
a Diretiva nº 98/44/CE fornece indicações claras no sentido da limitação do âmbito de
proteção das patentes de genes às concretas funções indicadas no pedido de patente.
Mas a Comissão Europeia83 sustenta, pelo contrário, que nesse setor das invenções
biotecnológicas não existem motivos ponderosos e razões objetivas para instituir um
regime jurídico diferente daquele que vigora para as restantes invenções químicas.
A citada Diretiva nº 98/44/CE e os Códigos da Propriedade Industrial dos EstadosMembros da União Europeia84 determinam que o âmbito de proteção das patentes de
matérias biológicas ou de processos que permitem a produção de matérias biológicas
se estende a todas as matérias obtidas, direta ou indiretamente, por reprodução ou
multiplicação, sob forma idêntica ou diferenciada, contanto que sejam dotadas das mesmas
propriedades exibidas pelas matérias inicialmente patenteadas, ou as que resultaram
diretamente do processo biotecnológico patenteado.
79
Veja-se a nova redação do art. L. 611-18, e do art. L. 613-2-1, do Code de la propriété intellectuelle, segundo a qual “os direitos
conferidos pela patente relativa a uma sequência genética não podem ser invocados contra reivindicações posteriores
respeitantes à mesma sequência genética, se essa reivindicação satisfizer as condições previstas no art. L. 611-18 e indicar
uma outra aplicação específica dessa sequência”.
80
§ 9a da lei de patentes alemã (PatG), em vigor desde o dia 28 de fevereiro de 2005 (Bundesgesetzblatt, n. 6, 2005, p. 46). De
acordo com o parágrafo III desse artigo da lei de patentes alemã, as patentes que visam a proteção das sequências de ácidos
nucleicos e de outras matérias, que incluem informação genética proveniente de seres humanos e de primatas, são vistas
como patentes de produtos vinculadas ao específico uso do produto para que se destinam (“ … In das dieses Erzeugnis Eingang
findet und in dem genetische Information enthalten ist und ihre Funktion erfüllt”) - o itálico é meu. Sobre isto, na doutrina alemã,
cfr. KRAUβ, Jan, “Die Effekte der Umsetzung der Richtlinie über den rechtlichen Schutz biotechnologischer Erfindungen auf
die deutsche Praxis im Bereich dieser erfindungen”, in Mitteilungen des deustchen Patentanwälte, 2005, p. 490 ss., pp. 491-492;
ENSTHALER, Jürgen / ZECH, Herbert, “Stoffschutz bei gentechnischen Patenten – Rechtslage nach Erlass des Biopatentgesetzes
und Auswirkung auf chemiepatente”, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, 2006, p. 529 ss., p. 534; FELDGES, J., “Ende
des absoluten Stoffschutzes?, Zur Umsetzung der Biotechnologie-richtlinie”, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht,
2005, p. 978 ss.; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 891-892.
81
O considerando nº 25 da Diretiva nº 98/44/CE, sobre a proteção das invenções biotecnológicas, reforça essa posição,
visto que preceitua que: “para a interpretação dos direitos conferidos por uma patente, em caso de sobreposição de sequências
[recte, sequências de genes] apenas nas partes que não são essenciais à invenção, cada sequência é considerada uma sequência
autônoma para efeitos do direito de patente”.
82
Resolução do Parlamento Europeu sobre invenções relativas a invenções biotecnológicas, de 26 de outubro de 2005,
Documento P6-TA-PROV(2005)0407, adotada por uma maioria de 338 votos a favor, 272 votos contra e 35 abstenções.
83
Relatório da Comissão Europeia ao Conselho e ao Parlamento Europeu, intitulado “Desenvolvimentos e Implicações do
Direito de Patentes no Setor da Biotecnologia e da Engenharia Genética”, de 14 de julho de 2005, Documento COM(2005)312
final, in http://www.europa.eu.
84
Artigo 97º/3 e 4 do CPI português de 2003.
85
Isso já levou alguns setores da indústria a defender e a litigar (em alguns tribunais
dos Estados-Membros da União Europeia), no sentido de que o titular da patente possa
proibir a importação para a União Europeia - e a venda adentro desse espaço econômico
- de alimentos obtidos a partir de cereais em cujo processo de reprodução foram usadas
sementes geneticamente manipuladas (nas respectivas células e sequências de DNA) para
resistir a certas pragas de insetos ou a pesticidas, ainda que os alimentos (o produto
final) não exibam as células ou os genes precipuamente manipulados ou somente
exibam resíduos insignificantes dessas substâncias. O mesmo tipo de litígios poderá
emergir a propósito da importação e venda de vestuário ou calçado em cujo processo
de obtenção ou fabricação se verificou, algures a montante, a intervenção de matérias
biológicas patenteadas. E quem diz vestuário ou calçado diz medicamentos obtidos a
partir de matérias biológicas patenteadas (v.g., vírus, bactérias, cosmídeos, plasmídeos,
outros vetores de expressão de genes, etc.).
Ou seja: será que o controle da patenteabilidade de uma determinada ferramenta
biotecnológica faz depender do consentimento do titular dessa patente a obtenção,
sob forma idêntica ou diferenciada, e o uso, para fins comerciais, de quaisquer outras
matérias (biológicas ou não biológicas) obtidas a jusante, bastando, para esse efeito, que
a matéria biológica protegida tenha estado na gênese mais ou menos longínqua dessas
outras matérias ou produtos ou tenha sido utilizada no respectivo processo de produção?
Creio que não.
A resposta só pode ser a seguinte: o âmbito de proteção dessas patentes somente
pode estender-se às matérias obtidas por reprodução ou multiplicação se estas últimas
continuarem a exercer ou a exibir, a jusante, as propriedades ou as características
precipuamente reivindicadas e descritas no pedido de patente, e desde que um perito na
especialidade possa prever tais características ou propriedades com base na consulta e
análise do fascículo da patente (na data do pedido de patente ou da prioridade), sem
exercer atividade inventiva própria85. O âmbito (tecnológico) de proteção de um direito
de patente nunca pode estender-se para além do acervo de regras técnicas novas e
inventivas objetivamente reconhecíveis no fascículo da patente (nas reivindicações
apoiadas pela descrição), na data do pedido de proteção (ou na data da prioridade),
pelos peritos na especialidade.
É, pois, importante salientar que as propriedades ou as características exibidas
e reivindicadas pelo dispositivo acusado sejam as mesmas que hajam sido tomadas
em consideração para resolver o problema técnico que objetivamente caracteriza a
invenção biotecnológica protegida, ou seja, as propriedades ou as características que
85
Em sentido análogo, já o meu J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 10711073.
86
jamais poderiam ser alcançadas sem a consideração e a relevância das características
ou das propriedades da invenção biotecnológica patenteada; dispositivo acusado este
em que se constata, assim, a influência das regras técnicas que permitiram a execução do
produto ou processo biotecnológico patenteado.
Outro exemplo de soluções legiferantes díspares: se, no pedido de patente, faltar
a menção da origem geográfica dos recursos biológicos que deram origem à invenção
para que é pedida a patente, esse vício gera, em alguns ordenamentos, a invalidade
da patente que vier a ser concedida (Bélgica, Itália); em outros, essa falta de menção
não provoca qualquer efeito (v.g., Portugal, Espanha, França); em outros, ainda (p. ex.,
Dinamarca), essa omissão gera um ilícito não criminal, sancionado com o pagamento de
uma multa, sempre que o requerente conheça ou não possa razoavelmente desconhecer
essa origem geográfica.
4. A REGULAÇÃO PÚBLICA DA COMERCIALIZAÇÃO DE MEDICAMENTOS E O ACESSO DA
POPULAÇÃO AOS MEDICAMENTOS GENÉRICOS
Um outro tema intimamente conexo com o acesso aos cuidados de saúde e aos
medicamentos é o do impacto do direito de patente sobre os medicamentos de referência
e a regulação pública atinente à autorização administrativa para fins de comercialização de
medicamentos genéricos e à fixação do preço máximo de venda desses medicamentos.
A Diretiva nº 2004/27/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de
março de 200486 - que alterou a Diretiva nº 2001/83/CE, sobre o código comunitário
respeitante aos medicamentos para uso humano -, a par do Código da Propriedade
Industrial português de 2003, teve um importante impacto no exercício das faculdades
jurídicas inerentes à titularidade de direitos de patente sobre os medicamentos para uso
humano.
Em primeiro lugar, essa Diretiva consagrou - tal como o CPI português de 2003
já o havia anteriormente feito no artigo 101º, alínea c) - a possibilidade de efetuar
testes farmacológicos, pré-clínicos e clínicos durante a vigência do direito de patente
do medicamento de referência, para efeitos de obtenção de autorização administrativa
destinada a comercializar os medicamentos (maxime, os medicamentos biossimilares
e não tanto os genéricos, cuja aprovação não carece, na Europa, da realização de tais
testes). Isso corresponde à solução alcançada no Painel de resolução de litígios junto
à Organização Mundial do Comércio, no conhecido caso Canada – Patent Protection
of Pharmaceutical Products, de 17 de março de 200087. Nesse caso, decidiu-se que
86
In Jornal Oficial da União Europeia, nº L 136, de 30 de abril de 2004, p. 34 ss.
87
Documento WT/DS114/R, in http://www.wto.org.
87
era inválida uma disposição da lei de patentes do Canadá, segundo a qual terceiros
ficavam autorizados a armazenar os medicamentos genéricos nos seis meses anteriores
à caducidade da patente sobre os medicamentos de referência. Todavia, o dito Painel
já considerou, conforme o Acordo TRIPS, uma outra disposição legal canadense que
permitia efetuar os referidos testes exclusivamente para fins de obtenção de autorização
administrativa de colocação dos medicamentos no mercado, independentemente do
consentimento do titular da patente.
Essa é a chamada exceção Bolar/Roche aos direitos de patente, a qual, de resto, já
vinha sendo praticada nos E.U.A. desde 1984 (desde a lei Hatch-Waxman, ou seja, desde
o Drug Price Competition and Patent Term Restoration Act) e na União Europeia, in casu,
na Alemanha, pelo menos desde 1997, na sequência dos casos Clinical Trials I e II (este
último, de 1998), decidido pelo Supremo Tribunal Federal alemão88. O artigo 43º, inciso
VII, do Código da Propriedade Industrial brasileiro, também contém essa exceção aos
direitos de patente, na sequência da redação introduzida pela Lei nº 10.196, de 2001.
Mais: não somente a realização daqueles exames e testes ficou imune a qualquer
interferência repressiva do titular da patente sobre o medicamento de referência, como
também, ao que julgo, essa Diretiva nº 2004/27/CE, ao modificar o artigo 10º/6 da citada
Diretiva nº 2001/83/CE, passou a prever que, para além da livre realização daqueles
testes e ensaios, é dispensada a autorização do titular da patente relativamente à
realização de outras atividades jurídicas posteriores, na medida em que tais atividades
ou atos supervenientes reflitam as exigências práticas decorrentes da realização daqueles
testes e ensaios.
Assim, no meu entender, durante o período de vigência do direito de patente respeitante
a um medicamento de referência, passaram a ser livres as atividades de importação e o
armazenamento de amostras destinadas, razoável e exclusivamente, a ser usadas junto
às entidades sanitárias competentes, para fins de registro dos medicamentos, bem
como passou a ser livre o pedido de autorização administrativa de comercialização e,
bem assim, os próprios atos administrativos autorizativos e de fixação do preço máximo
de venda dos medicamentos ao público. Já em 1996, uma Resolução do Parlamento
Europeu abriu esse caminho.
88
Sobre isso, cfr., desenvolvidamente, J. P. REMÉDIO MARQUES, Medicamentos versus Patentes – Estudos de Propriedade Industrial,
Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 11 ss., § 4.2. ss., § 5, p. 94 ss., p. 99 ss., p. 112 ss.; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s)
e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 1147-1156; DOMEIJ, Benght, Pharmaceutical Patents in Europe, Kluwer Law
International, Norstedts Juridik, The Hague, London, Boston, 2000, p. 293 ss.; CORNISH, William, “Experimental Use of Patented
Inventions in European Community States”, in International Review of Industrial Property and Copyright Law, 1996, p. 735 ss.;
BURSHTEIN, Sheldon, “Experimental use Exception to Patent Infringement”, in Intellectual Property, vol. XII (3), 2006, p. 744 ss.;
COOK, Trevor, The Protection of Regulatory Data in the Pharmaceutical and Other Sectors, Sweet & Maxwell, London, 2000, p. 6 ss.;
MADAWELA, Yvonne, “European Bolar Exemption Update”, in IP World – Bio Supplement, maio de 2007, p. 18 ss.
88
Na verdade, no parágrafo nº 17 da Resolução do Parlamento Europeu nº
A4-0194/96(1), de 16 de abril de 1996, sobre a “Política Industrial para o Setor
Farmacêutico”89 já se afirmava: “Entende que, para que a União Europeia possa ser
competitiva nos mercados em expansão europeus e internacionais de produtos não
protegidos, se devem adotar medidas que permitam que as empresas farmacêuticas
iniciem, antes de a patente ou o certificado complementar de protecção expirarem,
as experiências laboratoriais e os preparativos regulamentares necessários para o
registro de medicamentos genéricos fabricados na União Europeia, de modo a poderem
estar imediatamente disponíveis no mercado uma vez findo o prazo de validade de uma
patente ou do certificado complementar de protecção para um produto com patente” - o
itálico é meu.
Trata-se, em suma, de exigências regulatórias públicas destinadas a aferir a segurança,
a qualidade e a bioequivalência dos medicamentos que se pretendem comercializar
relativamente aos medicamentos que (ainda) se encontram patenteados. Exigências
que não importam a utilização mercadológica do objeto da invenção patenteada. São
estas, antes, atividades e usos, quais “paper acts” cuja prática é estritamente necessária
para colocar os medicamentos (genéricos) no mercado tão logo o direito de patente
sobre os medicamentos de referência caducar, ou seja, antecipadamente invalidado.
Se assim não se entender, o titular da patente desfrutará de um ilícito período de
exclusivismo fático de comercialização dos medicamentos, mesmo para além e após
a extinção das patentes ou dos períodos de extensão dessas patentes respeitantes
aos medicamentos de referência (na Europa, por meio dos denominados certificados
complementares de proteção de produtos farmacêuticos).
Em Portugal, quanto ao preço de venda ao público dos medicamentos genéricos,
o regime jurídico previsto no artigo 9º/1 e 2 do Decreto-Lei nº 65/2007, de 14 de
março, determina que este deve ser inferior em 35% ao preço de venda ao público
do medicamento de referência autorizado em Portugal, com igual dosagem e na mesma
forma farmacêutica - exceto se o preço deste último for inferior a 10 euros, eventualidade
em que o preço do genérico deverá ser inferior em 20% ao preço do primeiro.
No Brasil, após o início de vigência da Lei nº 9.787, de 10 de fevereiro de 1999
(que dispôs sobre a vigilância sanitária, estabeleceu o medicamento genérico e dispôs
sobre a utilização de nomes genéricos em produtos farmacêuticos), constata-se que os
genéricos se apresentam 40% mais baratos do que os medicamentos de referência logo
que entram no mercado, aumentando essa diferença de preços após alguns anos de
permanência no mercado90.
89
In Jornal Oficial das Comunidades Europeias, nº C 141, de 13/05/1996, p, 63.
90
Veja-se VIEIRA, Fabiola Sulpino / ZUCCHI, Paola, “Diferenças de preços entre medicamentos genéricos e de referência no
Brasil”, in Revista de Saúde Pública (São Paulo), vol. 40, n. 3, 2006, p. 444 ss., p. 448.
89
Revela-se, pois, um objetivo importante a criação de condições legiferantes
claras e não ambíguas para que os medicamentos genéricos e os medicamentos
biossimilares possam obter autorização administrativa de comercialização, de fixação do
preço de venda e de (eventual) margem de comparticipação estadual no preço, ainda
durante a vida do direito de patente ou do certificado complementar de proteção,
independentemente do consentimento do titular desses direitos de propriedade
industrial, de jeito a poderem ser imediatamente colocados no mercado após a extinção
desses direitos de exclusivo91.
5. O PRAZO DE PROTEÇÃO DOS DADOS
Em segundo lugar, essa Diretiva nº 2004/27/CE alterou o regime jurídico do
prazo de proteção dos dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos comunicados às
autoridades nacionais sanitárias, com vista à concessão de autorização administrativa
de comercialização.
Na sequência do disposto no artigo 39º/3 do Acordo TRIPS, foi estabelecido um
prazo normal de proteção desses dados com a duração de 10 anos, que beneficia os
titulares de autorizações de comercialização respeitantes a novos fármacos. A fórmula
do legislador europeu, já transposta para os ordenamentos dos Estados-Membros, é a
seguinte: 8 + 2+ 192, ou seja:
(1) O requerente da autorização para um medicamento genérico está livre de
apresentar o pedido de autorização administrativa de comercialização, uma vez decorrido
o prazo de oito anos a contar da data da emissão da autorização administrativa respeitante
ao medicamento de referência. Todavia, a autorização administrativa requerida nunca
será concedida senão após o decurso do prazo de 10 anos a contar da autorização (ou
do registro) do referido medicamento de referência.
91
Note-se, porém, que deverá depender do consentimento do titular desses exclusivos a promoção (maxime, a promoção
publicitária) desses medicamentos, ainda quando esta for acompanhada da rigorosa e terminante advertência de que tais
produtos somente serão colocados no mercado após a extinção dos direitos de patente ou dos certificados complementares
de proteção. Tb., nesse sentido, a decisão do Supremo Tribunal Federal alemão (Bundesgerichtshof), de 5/12/2006, proc. X ZR
76/05, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, 2007, p. 221. É que, a mais de outras considerações, a promoção desses
produtos em uma época em que os direitos de propriedade industrial ainda estão em vigor afeta injustificadamente o mercado
e os interesses econômicos do respectivo titular: os potenciais adquirentes dos medicamentos tenderão a aguardar a colocação
no mercado dos genéricos ou dos biossimilares, afectando assim o volume de vendas do titular da patente ou do certificado
complementar no ocaso da vigência desses direitos de exclusivo.
92
Cfr. o artigo 19º/3, alíneas a) e b), do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de agosto, que transpôs para o ordenamento jurídico
português a citada Diretiva nº 2004/27/CE. Veja-se, também, J. P. REMÉDIO MARQUES, Medicamentos versus Patentes – Estudos
de Propriedade Industrial, 2008, cit., p. 30 ss., pp. 51-62.
90
(2) As empresas farmacêuticas podem obter um ano adicional de proteção dos
dados comunicados à entidade sanitária competente (v.g., em Portugal: a Autoridade
Nacional do Medicamento - INFARMED), na eventualidade de que, nos primeiros oito dos
dez anos subsequentes à autorização inicial do medicamento de referência, o titular da
autorização de comercialização desse medicamento tenha obtido uma outra autorização
administrativa para uma ou mais indicações terapêuticas novas que, de acordo com a
avaliação científica prévia, se considere traduzirem um benefício clínico significativo em
face das terapias até aí existentes.
6. A
EQUIPARAÇÃO DAS FORMAS FARMACÊUTICAS ORAIS DE LIBERAÇÃO IMEDIATA
E DOS SAIS, ÉSTERES, ISÔMEROS E MISTURAS DE ISÔMEROS À SUBSTÂNCIA ATIVA
PARA QUE FORA CONCEDIDA A INICIAL PROTEÇÃO DOS DADOS E O EXCLUSIVISMO
MERCADOLÓGICO
Em terceiro lugar, foi estancada uma vulgar estratégia usada pelas empresas
farmacêuticas destinada a obter novas e sucessivas autorizações de comercialização
para a “mesma” substância ativa.
Curava-se do expediente traduzido na apresentação de pedidos de registro para os
diferentes sais, ésteres, isômeros e misturas de isômeros, complexos ou derivados de uma
substância ativa anteriormente autorizada na União Europeia, bem como da formulação
de pedidos de registro relativamente às diferentes formas farmacêuticas orais de liberação
imediata da substância ativa. Estratégia que, assim, visava primacialmente impedir as
importações paralelas de medicamentos e prolongar o exclusivo após a caducidade da
patente ou da extensão dessa patente com a vigência do certificado complementar de
proteção: após a obtenção de um novo registro junto às entidades sanitárias competentes,
a empresa peticionava então a emissão de um certificado complementar de proteção
junto dos institutos de patentes dos Estados-Membros.
Doravante, a autorização administrativa inicial para a colocação do fármaco no
mercado cobre as diferentes formas farmacêuticas orais de liberação imediata e, outrossim,
os diferentes sais, ésteres, isômeros e misturas de isômeros, na medida em que todas essas
substâncias são consideradas a mesma substância ativa93.
93
Artigo 19º/4, alíneas a) e b), do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de agosto (Estatuto do Medicamento português).
Isso só não será assim se e quando essas substâncias diferirem significativamente em propriedades relacionadas com a segurança
ou a eficácia, hipóteses em que o requerente da autorização de comercialização tem de fornecer dados suplementares
destinados a comprovar a segurança, a eficácia dos vários sais, ésteres ou derivados de uma substância ativa autorizada.
91
Por outro lado, na União Europeia, na sequência da citada Diretiva nº 2004/27/
CE, foi abolida a regra de harmonia segundo a qual somente era possível conceder
uma autorização administrativa de comercialização de medicamentos genéricos94 se o
medicamento de referência, que fora objeto da autorização inicial na União Europeia, ainda
estivesse a ser comercializado no Estado-Membro para onde se requerera a autorização.
Isso porque a manutenção dessa regra conduziu a abusos de posição dominante. Vejase o caso da sociedade AstraZeneca, que foi punida, em junho de 2005, pela Comissão
Europeia com uma multa de 60 milhões de euros, por motivo de ter retirado do mercado
dinamarquês o conhecido fármaco comercializado sob a marca “Losec” e, desse modo,
impedir que a colocação no mercado do genérico desse medicamento de referência
pudesse ser aí autorizada.
7. O DIREITO DE PRIORIDADE UNIONISTA, A CPE E A PATENTEABILIDADE DE FÁRMACOS NA E UROPA
Como é sabido, os requerentes de patentes em um Estado contratante da referida
Convenção de Paris, de 1883, beneficiam-se de um direito de prioridade, com a duração
de um ano, a contar da data em que tenham efetuado um primeiro pedido de proteção,
ficando salvos de efetuar, nesse ínterim, idêntico pedido de proteção em um outro Estado
contratante da mesma Convenção de Paris (artigo 4º/C, nº 1, da referida Convenção).
Ora, todos os Estados-Membros da União Europeia são membros da Convenção
sobre a Patente Europeia, embora essa CPE - ou seja, o Instituto Europeu de Patentes e os
seus órgãos jurisdicionais (in casu, as Divisões de Oposição, as Câmaras Técnicas de Recurso
e a Grande-Câmara de Recurso) - nada tenha a ver com a União Europeia. Por outro lado,
a própria União Europeia aderiu ao Acordo TRIPS, em finais de 1994. E todos os EstadosMembros da União Europeia são membros da Organização Mundial do Comércio, tendo
subscrito, por conseguinte, o Acordo TRIPS.
Só que isso não significa que a própria CPE esteja vinculada às disposições do
Acordo TRIPS. Não está. E nem está a CPE vinculada à Convenção Europeia dos Direitos
Humanos, de 1950. É, porém, certo que todos os Estados-Membros da União Europeia
(e outros Estados europeus) se acham obrigados pelo Acordo TRIPS.
94
Ou seja, de medicamentos com a mesma composição qualitativa e quantitativa em substâncias ativas, sob a mesma forma
farmacêutica e para os quais, sempre que se revela necessário, foi demonstrada a bioequivalência com o medicamento de
referência.
92
Daí que, até 13 de dezembro de 2007 - data do início de vigência da revisão da
CPE -, a CPE não reconheceu qualquer prioridade aos pedidos de patente inicialmente
depositados em países que não fazem parte da referida Convenção de Paris, de 188395.
Esse status quo impediu que pudesse ser patenteada junto à CPE (dando logo
origem a um feixe de patentes nos Estados europeus contratantes dessa Convenção)
uma invenção respeitante a um fármaco, cuja patente havia sido inicialmente pedida na
Índia, já que, ao tempo, esse país somente integrava a Organização Mundial do Comércio,
e não a referida Convenção de Paris, de 188396.
Resultado: esse fármaco pôde livremente ser comercializado nos Estados
contratantes da CPE, uma vez obtida a autorização administrativa junto das entidades
sanitárias competentes.
Ou seja: enquanto até 13 de dezembro de 2007, os pedidos de patentes nacionais
efetuados junto aos institutos dos Estados-Membros da CPE beneficiavam-se do
direito de prioridade emergente de idênticos pedidos anteriormente efetuados junto a
países-membros da Organização Mundial do Comércio - pois as obrigações do TRIPS a
isso conduzem -, os mesmos pedidos de patentes feitos junto ao Instituto Europeu de
Patentes não podem beneficiar-se dessa prioridade (a prioridade unionista). A situação
foi, no entanto, corrigida após o dia 13 de dezembro de 2007.
8. O ACESSO AOS MEDICAMENTOS E AS LICENÇAS COMPULSÓRIAS
O acesso aos cuidados de saúde é logrado, inter alia, por meio da administração de
fármacos. Todavia, se os fármacos estão protegidos por direito de patente, o seu titular
apenas tem o dever jurídico de explorar a invenção patenteada no território do Estado que
lhe concedeu a patente.
E mesmo assim, esse dever jurídico pode ser cumprido, em alguns países, mediante
a prova da mera comercialização do fármaco nesse país. Não é exigido o fabrico do
objeto da patente no território do Estado da proteção. Isso não acontece, felizmente,
no Brasil, aí onde o dever de explorar o invento só se satisfaz com o fabrico do objeto da
patente no Brasil, o que significa um estímulo para o desenvolvimento da indústria local,
propiciando a comunicação do saber-fazer e as demais tecnologias não integralmente
divulgadas na descrição que acompanha os pedidos de patente97.
95
Após a entrada em vigor da revisão da CPE, a nova redação do artigo 87º dessa Convenção permite reconhecer o direito de
prioridade relativamente a pedidos de proteção inicialmente realizados em Estados contratantes da Organização Mundial do
Comércio, mesmo que estes não tenham aderido à Convenção de Paris.
96
Nesse sentido, cfr. as decisões G 02/02 e G 03/02, tiradas na Grande-Câmara de Recurso do Instituto Europeu de Patentes,
de 26 de abril de 2004.
97
Como é sabido, somente o ordenamento de patentes dos E.U.A. exige que o requerente da proteção descreva a melhor
maneira de executar a invenção para que pede proteção (requisito do best mode).
93
A liberdade contratual é conatural do titular da patente e é por ele exercida em
termos de modelar a oportunidade, o conteúdo e os efeitos jurídicos dos contratos pelos
quais ele autoriza o exercício de todas ou de algumas das faculdades jurídicas inerentes
ao direito (de patente) de que é titular: v.g., o fabrico, o transporte, o armazenamento, a
comercialização, a importação, etc.
Em suma: essas autorizações são autorizações voluntárias. Se o titular da patente
não quiser celebrar os contratos de licença, sibi imputet. E nem vale obtemperar dizendo
que terceiros podem potestativamente usar o objeto da invenção e depois remunerar
essa utilização, já que esse proceder constitui uma indesmentível violação do direito de
patente, que, como se sabe, é um direito subjetivo privado absoluto de patrimonial.
Contudo, da falta de celebração de contratos de licença de patentes (as licenças
voluntárias) podem resultar prejuízos e danos gravíssimos para os destinatários dos
cuidados de saúde e, inclusivamente, para os Governos dos Estados que prosseguem
objetivos pautados pela melhoria dos cuidados de saúde.
Se o titular da patente decidir não realizar contratos de licença de exploração
da patente, é bem provável que a especulação provoque o aumento do preço que
seria livremente negociável no mercado. Pense-se nas pandemias (maxime, a aids) e
nas epidemias (v.g., a malária, a hepatite C, a tuberculose) que afetam os países em
desenvolvimento e os países menos desenvolvidos. Pense-se, igualmente, na ameaça
de certas epidemias de curta duração que podem afetar os países mais desenvolvidos,
como tem sido a (constante) ameaça da gripe aviária.
8.1. AS LICENÇAS COMPULSÓRIAS E A EXPORTAÇÃO DE FÁRMACOS PARA OS PAÍSES COM GRAVES
PROBLEMAS DE SAÚDE PÚBLICA ( AS FLEXIBILIDADES DO TRIPS)
Os ordenamentos nacionais prevêem, há muito98, a possibilidade de emissão
das denominadas licenças obrigatórias ou compulsórias de direitos de propriedade
industrial, maxime, as licenças obrigatórias de direitos de patente. São licenças onerosas
e, em princípio, são licenças não exclusivas, cuja remuneração é estipulada pela entidade
administrativa competente ou por um tribunal.
Coloca-se, todavia, um importante obstáculo à praticabilidade desse sistema. É que
as licenças obrigatórias ou compulsórias de direito de patente visam apenas autorizar a
98
Em Portugal, essa possibilidade existe já desde o CPI de 1940 (artigo 30º), aplicável sempre que o titular não explorasse o
invento, durante o prazo de três anos, a contar da concessão, ou não o fizesse de modo a ocorrer às necessidades nacionais,
bem como nas eventualidades em que fosse exigível essa utilização por terceiros em indústrias com considerável importância
para a economia nacional. O ato de concessão da licença obrigatória consistia, ao tempo, na prolação de uma sentença de
natureza constitutiva, precedida de uma ação declarativa junto ao tribunal judicial competente. A partir do CPI português de
1995, a concessão de licença obrigatória passou a operar por meio da emissão de um ato administrativo por parte do INPI ou
do Governo (no caso de serem invocados e estarem verificados motivos de interesse público: artigo 110º/4 do CPI de 2003).
94
utilização do objeto da invenção no território do Estado cuja administração constituiu ou
concedeu o direito de propriedade industrial, independentemente do consentimento
do titular da patente. O princípio da territorialidade dos direitos de propriedade industrial,
et, pour cause, dos direitos de patente, impõe naturalmente essa solução.
O próprio Acordo TRIPS permite o licenciamento compulsório “predominantemente
para fornecimento do mercado interno do Membro que autorizou essa utilização” (artigo
31º, alínea f ), do TRIPS).
Na verdade, com base nesse preceito, o INPI português ou o congênere brasileiro
não podem autorizar a utilização do objeto da patente para o fim de efetuar a exportação
de um fármaco carenciado em um país terceiro, em desenvolvimento ou menos
desenvolvido. É certo que esse país terceiro, cujos habitantes carecem da administração
desse fármaco, está salvo de conceder uma licença obrigatória para importação para
o respectivo território nacional, com base em razões de saúde pública ou por outros
motivos de interesse público (v.g., segurança nacional, desenvolvimento econômico e
tecnológico do país). Todavia, o fármaco apenas poderá ser importado a partir de um
país em cujo território não esteja em vigor a patente que protege essa invenção ou,
estando aquela em vigor, o titular da patente autorize, nesse outro país, a fabricação e a
subsequente exportação.
8.2. A DECLARAÇÃO DE DOHA E OS DESENVOLVIMENTOS POSTERIORES
Essa dificuldade em obter fármacos patenteados a um preço razoavelmente acessível
foi acentuada, em 2001, por ocasião das queixas apresentadas pelos E.U.A. contra os
governos do Brasil99 e da África do Sul, junto da Organização Mundial do Comércio. Esse
foi, de resto, o mote para a emissão da conhecida Declaração de Doha, sobre o Acordo
TRIPS e a saúde pública, de 20 de novembro de 2001100, a qual visou agilizar o fabrico e a
exportação de medicamentos genéricos (bioequivalentes, qualitativa e quantitativamente,
aos medicamentos de referência), a preços inferiores, para países menos desenvolvidos.
O parágrafo 6º da referida Declaração de Doha reconheceu que os países com
escassa ou nula capacidade industrial instalada no setor farmacêutico são incapazes de
utilizar eficazmente o mecanismo das licenças compulsórias existente nos respectivos
ordenamentos jurídicos e solicitou que o Conselho do TRIPS procedesse à análise desse
problema e recomendasse as soluções adequadas.
99
Como é sabido, a queixa dirigida contra o Brasil baseou-se no fato de o regime jurídico das licenças compulsórias poder atuar
nos casos em que o objeto da patente não for fabricado no Brasil. Não basta a mera importação e comercialização, no Brasil,
do objeto da patente; faz-se mister que o fabrico ocorra no Brasil, por óbvias razões de promoção e de estímulo da atividade
industrial no país e da transferência de tecnologia para as indústrias brasileiras ou estrangeiras com filiais no Brasil.
100
Documento WT/MIN(01)DEC/2.
95
Em 30 de agosto de 2003, o Conselho do TRIPS, com a preciosa ajuda e mediação
da União Europeia, acordou sobre a implementação do referido parágrafo 6º da
Declaração de Doha, ainda que a título provisório, até que fosse alcançado um consenso
alargado no que respeita à alteração do referido artigo 31º, alínea f ), do TRIPS. Assim, os
Estados contratantes da Organização Mundial do Comércio - OMC passaram a poder
ser dispensados do cumprimento das obrigações emergentes do TRIPS, para o efeito de
adotarem as medidas julgadas necessárias em matéria de importação, exportação ou
fabrico de fármacos, com vista a satisfazer os interesses da saúde pública101.
Essa Decisão tornou, na prática, inaplicável o requisito previsto na alínea f) do
artigo 30º do TRIPS, de harmonia com o qual as licenças compulsórias somente devem
ser emitidas para fins de utilização do objeto da patente no mercado interno do Estado
que autorizou essa utilização. Essa decisão permite, desse modo e pelo contrário, que
os ordenamentos nacionais criem mecanismos pelos quais uma licença obrigatória pode
ser concedida para fins de fabrico e exportação de determinado tipo de medicamentos102
destinados a países com específicas necessidades de utilização desses medicamentos.
Assim, o Estado importador (Estado contratante do TRIPS) que pretenda usar esses
fármacos deve notificar o Conselho do TRIPS e comunicar que não desfruta de capacidade
industrial instalada ou ela é insuficiente (exceto se for um país menos desenvolvido).
Se nesse Estado importador o medicamento estiver protegido por direito de patente,
esse Estado deve declarar que já emitiu ou pretende emitir uma licença compulsória exceto se for um país menos desenvolvido, a quem o parágrafo 7º da Declaração de Doha
autoriza não sancionar, no seu território, o exercício de direitos de patente. Esse Estado
importador também deve identificar um potencial Estado exportador.
Uma entidade desse Estado exportador deve, por sua vez, iniciar negociações para a
celebração de um contrato de licença com o titular da patente, em termos comercialmente
razoáveis, e por um período de tempo comercialmente razoável. Se a licença voluntária
for recusada, o exportador potencial deverá solicitar uma licença compulsória junto ao
seu próprio Governo, limitada a um único fornecimento.
Por sua vez, o Estado exportador deverá notificar o Conselho do TRIPS dos termos
da licença compulsória para exportação, incluindo o destino, as quantidades a fornecer
e a duração da licença.
101
J. P. REMÉDIO MARQUES, “Propriedade Intelectual e Interesse público”, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol.
79, 2003, p. 293 ss., p. 332-335 e nota 91; CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent Rights, 2ª edição, Kluwer Law
International, The Hague, 2005, pp. 339-364.
102
O conceito de medicamento utilizado no §1, alínea a), dessa Decisão cobre os ingredientes ativos, os kits de diagnóstico e,
ao que julgo, as vacinas. Tb. in ABOTT, Frederick, in Resource Book on TRIPS and Development, Cambridge University Press, 2005,
p. 484.
96
O exportador deverá solicitar o registro do fármaco e demonstrar a bioequivalência
e a biodisponibilidade deste, segundo as normas previstas no Estado importador.
Prevê-se o pagamento de uma remuneração adequada, a fixar caso a caso, em favor
do titular da patente. Os fármacos fornecidos sob o abrigo dessa licença devem estar
identificados por meio de embalagens diferentes, de cores ou de outras características
da aparência.
Antes de iniciar a importação para o país carenciado, o titular da licença deverá
publicitar as quantidades fornecidas e as características distintivas do produto.
O exportador deve notificar o Conselho do TRIPS sobre a concessão da licença e o
respectivo conteúdo.
Depois, a Decisão de implementação da Declaração de Doha determina a obrigação
de o Estado importador prevenir a reexportação dos mesmos fármacos para outros países,
bem como o dever de qualquer Estado-Membro da OMC prevenir a importação para
os respectivos países de fármacos fabricados e exportados sob o abrigo dessas licenças
compulsórias. Essa medida visa prevenir que os produtos assim transacionados sejam
distraídos para outros mercados de Estados que não se confrontam com problemas
graves de saúde pública, bem como contornar as objeções postas por alguns Estados,
que viram nesse esquema um astucioso expediente, passível de colidir, de modo
injustificável, com a exploração normal dos direitos de patente (artigo 30º do TRIPS).
No entanto, esse mecanismo instituído pela referida Decisão, de 30 de agosto
de 2003, foi transformado em um instrumento jurídico permanente, incluído no corpo
normativo do próprio TRIPS, por meio do aditamento do artigo 31º-bis ao TRIPS, efetuado
em 8 de dezembro de 2005. A sua vigência enquanto instrumento jurídico inserido no
Acordo TRIPS depende da adesão de dois terços dos Estados contratantes da OMC, e a
data-limite de adesão a essa alteração termina em 31 de dezembro de 2009.
8.3. A REAÇÃO DA U NIÃO EUROPEIA E DE OUTROS E STADOS NÃO MEMBROS
Alguns Estados não membros da União já procederam à densificação das condições
de cuja verificação depende a emissão desse tipo de licenças para exportação. Fê-lo a
Noruega103, o Canadá104, a Índia105 e a China.
103
Decreto Real de 14 de maio de 2004, o qual alterou os artigos 49º e 69º da lei de patentes norueguesa, de 15/12/1967 –
http://www.dep.no/ud/engelsk.
104
Em maio de 2004, o legislador canadense alterou o Patent Act e o Food and Drugs Act e prescreveu uma lista de produtos
dessa natureza “candidatos positivos” ao “benefício” da outorga de licenças obrigatórias. Cfr. ABOTT, Frederick, in Resource Book
on TRIPS and Development, 2005, cit., p. 483.
105
A Índia procedeu à alteração da sua lei de patentes.
97
Os Estados-Membros da União Europeia não alteraram os respectivos regimes
internos, na sequência dessa Decisão do Conselho do TRIPS, de 30 de agosto de 2003.
Ao invés, a Comissão Europeia promoveu a harmonização vertical desse problema,
por meio da emissão do Regulamento (CE) nº 816/2006, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 17 de maio de 2006, relativo à concessão de licenças obrigatórias de direitos
de patente e certificados complementares de proteção destinados ao fabrico de produtos
farmacêuticos destinados à exportação para países com problemas de saúde pública. A
Noruega e o Canadá também legislaram a esse respeito.
Em todas essas hipóteses legiferantes, foi adotado o modelo da concessão de licenças
compulsórias (de exportação) de jaez nacional, provido de mecanismos procedimentais
complexos (notificações, embalagens, acondicionamento, rotulagem, oposição do
titular da patente, etc.), em vez de ser criado um esquema de licenças de direito, de
constituição mais rápida e sem efeito suspensivo após a dedução de oposição do titular
da patente. Não se esqueça, ainda, que esse mecanismo deverá ser desencadeado
tantas vezes quantos forem os lotes de medicamentos a serem exportados, caso a caso
e pontualmente, para os países com graves problemas de saúde pública.
Assim, os representantes do país importador, de organismos da ONU ou de uma
organização não governamental que atue como a autoridade formal de um ou de
vários importadores devem apresentar uma notificação às autoridades competentes do
Estado-Membro em que produzam efeitos patentes ou certificados complementares de
proteção e declarar que pretendem utilizar esse mecanismo para fazer face a problemas
de saúde pública (artigo 5º, alíneas a) e b), artigo 6º/1 e 3, ambos do Regulamento (CE)
nº 816/2006). A autoridade competente notifica imediatamente o titular dos direitos
do pedido de licença obrigatória, dando-lhe a oportunidade de exercer o contraditório
acerca do pedido e prestar informações relevantes. Não obstante, o requerente da licença
no país exportador deve demonstrar, perante as autoridades competentes, que efetuou
diligências para obter uma licença voluntária e que tais diligências não tiveram êxito
(artigo 9º/1), exceto nas situações de emergência nacional ou outras circunstâncias de
extrema urgência. Se emitir a licença obrigatória, o Estado-Membro exportador deve
notificar o Conselho do TRIPS, por meio da Comissão Europeia, informando-o das
condições dessa licença (artigo 12º). Tais condições são, sumariamente, as seguintes:
a licença obrigatória é, em princípio, intransmissível; é constituída ad tempus e deve
limitar-se estritamente a todos os atos. A quantidade dos lotes a exportar não deve
ultrapassar o necessário para satisfazer as necessidades do(s) país(es) importador(es)
mencionado(s) no pedido, tendo em conta a quantidade do(s) produto(s) fabricado(s)
sob o abrigo de outras licenças obrigatórias concedidas em qualquer outro lugar; os
produtos fabricados sob o abrigo da licença devem ser claramente identificados por
98
meio de rotulagem e devem distinguir-se dos fabricados pelo titular da patente por
meio de uma embalagem especial, com cor ou formas distintas, provida com indicação
de que o produto está sujeito a uma licença obrigatória.
A concessão da licença obrigatória para exportação é, obviamente, uma licença
onerosa. Em situações de emergência nacional do país importador, a remuneração
deve corresponder a 4%, no máximo, do preço total a pagar pelo país importador
ou em nome desse país. Nos demais casos, a remuneração é determinada tendo em
consideração o valor econômico da utilização que foi autorizada sob o abrigo da licença
para o país importador em causa, bem como as circunstâncias humanitárias ou não
comerciais relacionadas com a emissão da licença (artigo 9º, alíneas a) e b), do citado
regulamento).
Por outro lado, proíbe-se a importação, para a Comunidade, dos produtos fabricados
sob o abrigo da licença obrigatória, bem como a reexportação, colocação sob um regime
suspensivo ou colocação em uma zona franca.
De fato, o esquema das licenças compulsórias instituído por esse regulamento
comunitário pressupõe a intervenção procedimental do titular da patente, seja
para fornecer informações relevantes, seja para propor a correção de erros, seja para
impugnar a decisão; e a sua impugnação é efetuada sob o abrigo dos direitos nacionais,
substantivos e processuais, dos Estados-Membros da União Europeia, podendo ter efeito
suspensivo (artigo 17º/2º do referido regulamento), consoante a previsão nesses direitos
nacionais106.
Parece, inclusivamente, que esse complexo esquema procedimental serve apenas
como instrumento de dissuasão, que será raramente posto em prática, na medida em
que, como no-lo revela a experiência brasileira (com exceção da licença obrigatória
concedida para exploração no Brasil do efavirenz, em maio de 2007) e da África do Sul
(aí onde a autoridade da concorrência, após ter aplicado uma multa e haver considerado
que a titular da patente efetuara uma prática restritiva da concorrência), esse titular da
patente preferirá negociar a celebração de um contrato de licença do que sujeitarse a ver contra si concedida e efetivada uma licença compulsória, com o que esse ato
implicará termos de “imagem” das empresas do grupo nas cadeias de distribuição dos
produtos.
106
Por exemplo, no direito português, a concessão de uma licença compulsória pode ser objeto de recurso para o juízo de
propriedade intelectual de Lisboa (artigo 40º/2, ex vi do artigo 112º/2, ambos do CPI de 2003, na redação da Lei nº 52/2008,
de 28 de agosto); depois, o titular da patente pode recorrer ao tribunal de 2ª instância (tribunal da Relação de Lisboa) e,
excepcionalmente, ao Supremo Tribunal de Justiça (artigo 46º/2 do mesmo Código). A decisão favorável à concessão só produz
efeitos após o trânsito em julgado e depois de ter sido averbada no registro do INPI português (artigo 112º/4 do mesmo
Código).
99
8.4. ALGUMAS DIFICULDADES DE IMPLEMENTAÇÃO DO R EGULAMENTO (CE) Nº 816/2006 E DA
DECISÃO DO CONSELHO DO TRIPS, DE 30 DE AGOSTO DE 2003
Subsistem, ainda, dois outros problemas susceptíveis de dificultar a implementação
e atuação efetiva do mecanismo das licenças obrigatórias.
O primeiro tem a ver com a utilização dos dados farmacológicos, pré-clínicos e
clínicos pela entidade sanitária no país importador, com vista a emitir a autorização
administrativa de comercialização nesse país. É que essa utilização é normalmente
efetuada ainda durante o prazo de proteção dos dados (na União Europeia a fórmula é,
como referimos supra, 8 + 2 + 1).
Ora de duas, uma: ou bem que é paga ao titular da patente uma remuneração
global adequada no país exportador pela utilização desses dados no país importador,
por isso mesmo susceptível de incorporar o valor dos dados e o valor econômico da
utilização que for autorizada - pois só assim se respeita o disposto no artigo 39º/3 do
TRIPS107 -, ou bem que a patente apenas abrange um dos ingredientes ativos de que o
fármaco é composto. Nesse último caso, o titular da licença obrigatória deverá, ainda,
obter no país importador uma autorização administrativa de comercialização108.
A União Europeia resolveu parcialmente esse problema no artigo 18º/2 do citado
Regulamento (CE) nº 816/2006, de 17 de maio de 2006, visto que se o pedido de licença
compulsória for relativo a um genérico de um medicamento de referência, que seja ou
tenha sido autorizado sob o abrigo do artigo 6º da Diretiva nº 2001/83/CE, e sob o
abrigo da legislação interna dos Estados-Membros, são inaplicáveis os referidos períodos
de proteção dos dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos, previstos no Regulamento
(CE) nº 726/2004 e nos nos 1 a 5 da mencionada Diretiva nº 2001/83/CE.
O segundo problema é gerado pela falsa premissa de que cada fármaco
patenteado é atingido por uma única patente titulada por uma única pessoa (humana
ou jurídica), o que não é verdade, especialmente nas patentes de biotecnologia: uma
vacina geneticamente manipulada ou um antirretroviral são, não raras vezes, atingidos
por patentes pertencentes a várias pessoas ou entidades. Assim, poderá ser necessário
remunerar adequadamente duas ou mais pessoas ou entidades, nos termos do artigo 31º,
alínea h), do Acordo TRIPS.
E mesmo que apenas seja enfocado o produto ou o fármaco, que não a pessoa
do titular da patente - como parece sugerir a redação do parágrafo 7 da Declaração
de Doha -, pode suceder que o fármaco seja composto por vários ingredientes ativos
patenteados e por um ou vários excipientes também objeto de patente, de sorte que
107
Nessa eventualidade, não existe a necessidade de emitir duas licenças obrigatórias - uma para fabricar e exportar o fármaco
e outra para utilizar os dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos no país importador, com vista à emissão da autorização
administrativa destinada a permitir a colocação desse fármaco no mercado do país importador.
108
100
Também, nesse sentido, CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent Rights, 2ª edição, 2005, cit., pp. 366-367.
cada um dos ingredientes ativos e excipientes poderá ser considerado um produto
diferente, relativamente ao qual terá que ser emitida a respectiva licença compulsória.
Seja como for, a remuneração adequada é calculada com base no valor econômico
da utilização que for autorizada sob o abrigo da licença para os países importadores (artigo
10º/9, alínea b), do Regulamento (CE) nº 816/2006), independentemente do número
de licenças e de licenciantes compulsórios envolvidos: os royalties e as demais quantias
entregues deverão ser repartidos entre todos, de acordo com os critérios estabelecidos
pela entidade administrativa que conceder a licença obrigatória109.
9. OS ACORDOS BILATERAIS (O TRIPS-PLUS) EM MATÉRIA DE PATENTES E O MINGUAR DAS UTILIZAÇÕES LIVRES
Os resultados do chamado bilateralismo no quadro do direito de patentes também
têm espelhado a maneira como os Estados economicamente hegemônicos tentam
transpor os seus regimes jurídicos para o quadro normativo dos Estados com quem
celebram acordos comerciais.
Fazem-no os E.U.A. e também a União Europeia, embora sejam os primeiros aqueles
que assumem uma estratégia de plasmar nos Acordos de Livre Comércio o objetivo de
elevação dos níveis de proteção dos direitos de propriedade intelectual. Não é por acaso
que os maiores atores transnacionais do fabrico e do comércio de medicamentos têm a
sua sede nos E.U.A. e na União Europeia.
Aqui, o princípio do tratamento nacional (artigo 3º/1 do Acordo TRIPS) é a mola que
impulsiona a elevação de novos patamares e níveis de proteção, visto que a celebração
de um acordo bilateral entre um determinado Estado e os E.U.A. ou a União Europeia,
provido de novos objetos de proteção ou de um âmbito de proteção mais alargado, obriga
esse Estado a conceder o mesmo tratamento aos nacionais de outros Estados-Membros
da OMC. Então, se esse novo patamar ou nível de proteção se tornar mais ou menos
hegemônico, tanto os E.U.A. quanto a União Europeia tentam introduzi-lo no quadro
das negociações do TRIPS110.
Os Acordos de Livre Comércio celebrados ou projetados pelos E.U.A. seguem esse
paradigma: se o universo dos objetos ou realidades patenteáveis se estende a qualquer
setor tecnológico (artigo 27º/1 do TRIPS), é natural que se queira eliminar todas e quaisquer
“exceções”, tais como a eliminação da proibição da patenteabilidade de uma miríade de
matérias biológicas: sequências genéticas meramente isoladas do estado natural, células,
plantas, animais, processos (micro)biológicos de obtenção de plantas ou animais.
109
Em sentido análogo, cfr. CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent Rights, 2ª edição, 2005, cit., p. 356.
110
VAVER, David / BASHEER, Shamnad, “Popping Patented Pills …”, 2006, cit., p. 288.
101
Outrossim, tem-se em vista a abolição da regra que veda a patentabilidade dos
métodos de diagnóstico, terapêuticos e cirúrgicos aplicados diretamente ao corpo
humano e a regra que permite a proibição da patenteabilidade das invenções que
violam a ordem pública, o meio ambiente ou a saúde pública.
Isso sem esquecer a introdução da regra de harmonia com a qual o Estado
contratante de acordos bilaterais desse jaez se obriga a não receber nem apreciar os
pedidos de registro de medicamentos genéricos enquanto não caducar a patente do
medicamento de referência. Esse regime traduz o famoso linkage ou mecanismo de
articulação entre a vigência do direito de patente e a aprovação e registro de medicamentos
genéricos ou biossimilares por parte das entidades sanitárias competentes. Atente-se
também para a regra de acordo com a qual, após a caducidade da patente pelo decurso
do prazo, é possível estender a duração do exclusivo resultante de demoras não razoáveis
para obter a aprovação dos fármacos.
E, enfim, o dever jurídico de os Estados passarem a proteger as patentes de segundo
e subsequentes usos terapêuticos de substâncias já conhecidas.
Na União Europeia, o regime do certificado complementar de proteção para
produtos farmacêuticos - que constitui um novo direito de propriedade industrial ligado à
substância ativa autorizada pelas entidades sanitárias competentes e que fora protegida
pela patente de base - permite adicionar um período máximo de cinco anos aos 20
anos de duração da patente. Isso na hipótese mais extrema de decorrer um prazo de 10
anos entre o depósito do pedido de patente e a data da aprovação do medicamento
e a entrada nos circuitos comerciais: em qualquer caso, a duração efetiva do exclusivo
comercial nunca pode durar mais de 15 anos111.
O artigo 17.9.1. do Acordo de Livre Comércio celebrado entre os E.U.A. e o Chile é
exemplo do recuar do contra legem em matéria de direito de patente.
É, porém, certo que a maioria das exceções e impedimentos à patenteabilidade
das invenções tiveram a sua origem na Convenção sobre a Patente Europeia, de 1973, e,
antes dela, nos ordenamentos nacionais de alguns Estados europeus, em particular, na
Alemanha, Reino Unido e França. Todavia, é comumente aceite que essas exceções ou
impedimentos devem ser interpretados restritivamente, o que me parece uma inversão
axiológico-metodológica: de fato, a regra é a da liberdade; a regra da liberdade de
exercício de atividades econômicas e de iniciativa privada (artigo 61º/1 da Constituição da
República Portuguesa), que apenas é limitada aí onde, por outras razões também elas
ponderosas, o legislador resolva criar exclusivos comerciais ou industriais.
111
Artigo 13º do Regulamento (CEE) nº 1.768/92, do Conselho, de 18 de junho de 1992, relativo à criação de um certificado
complementar de proteção para os medicamentos.
102
Ademais, mesmo no ordenamento europeu, aqui onde se determina a proibição
da patenteabilidade dos métodos de diagnóstico praticados sobre o corpo humano
vivo (artigo 52º/4 da CPE), a mais alta jurisprudência do Instituto Europeu de Patentes
instituiu um regime de “exceção à exceção” da patenteabilidade dessas realidades, qual
seja: os métodos de diagnóstico são, apesar de tudo, patenteáveis se a sua execução
somente fornecer resultados intermédios (e não um diagnóstico final) - já que se estará
apenas perante um método de obtenção de dados ou elementos informativos acerca do
estado de (des)equilíbrio psico-físico do examinando - ou se for executado fora do corpo
humano vivo (v.g., em amostras de matérias biológicas retiradas do corpo humano)112.
Do mesmo modo, a proibição das patentes de métodos terapêuticos é de alguma
forma “contornada” mediante a admissão, no artigo 54º/5 da CPE, da patenteabilidade
do uso de uma substância para o fabrico de um medicamento para ser usado na execução
de métodos de diagnóstico, terapêuticos ou cirúrgicos (segundo e subsequentes
usos médicos de substâncias já conhecidas)113. No mesmo sentido navega agora o
disposto no artigo 54º/1, alínea a) e b), do CPI de 2003, na redação do Decreto-Lei nº
143/2008, de 25 de julho. Diz-se, então, que esse tipo de reivindicação não atinge o
método terapêutico, mas apenas as atividades preliminares de produção ou fabrico de um
medicamento (a partir de uma substância química já conhecida) usado em uma nova
aplicação terapêutica. A invenção parece estar no novo efeito técnico associado à
segunda ou às subsequentes aplicações terapêuticas, efeito este que estaria, apesar de
tudo, “escondido” do conhecimento dos peritos na especialidade quando essa mesma
substância fora utilizada para outros propósitos114. É claro que, depois, a sindicação da
novidade (e o nível inventivo) dessas invenções far-se-á à luz dos critérios das invenções
de seleção de substâncias químicas integradas em compostos constituídos por centenas
ou milhares de substâncias.
Essas considerações não impedem que sejam, por vezes, concedidas patentes de
uso relativas a aplicações médicas praticamente banais ou triviais. Foi o que, em minha
opinião, terá acontecido na decisão T 1020/03, proferida por uma das Câmaras Técnicas
112
Decisão G 01/04, da Grande-Câmara de Recurso, de 16/12/2005, in http://www.epo.org.; agora, no mesmo sentido,
decisão T 330/03, no caso ABOTT LABORATORIES/Multiplex sensor and method of use, de 7/02/2006, in http://www.epo.org. Cfr.
J. P. REMÉDIO MARQUES, “A patenteabilidade dos métodos de diagnóstico, terapêuticos e cirúrgicos: Questão (bio)ética ou
questão técnica? – O actual estado do problema”, in Estudos de Direito da Bioética, vol. II, Almedina, Coimbra, 2008, p. 211 ss.,
pp. 248 ss. = in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Medicina, n. 6, 2006, p. 73 ss., p. 95 ss.
113
Esse artigo 54º/5 da CPE traduz, assim, uma exceção à exceção prevista no artigo 52º/4, que, inter alia, veda a patenteabilidade
dos métodos terapêuticos.
114
Sobre essas patentes do segundo e dos subsequentes usos médicos de substâncias já conhecidas, cfr. PATERSON, Gerald, The
European Patent System, The Law and Practice of the European Patent Convention, 2ª edição, Sweet & Maxwell, London, 2001,
pp. 518-530; PATERSON, Gerald, “The Novelty of Use Claims”, in International Review of Industrial Property and Copyright Law,
1996, p. 179 ss.; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 924-929.
103
de Recurso do Instituto Europeu de Patentes, no caso Method of Administration of
IGF-1/Genentech, de 29/10/2004: as reivindicações incidiam sobre o “uso de um fator de
crescimento do tipo insulina na preparação de um medicamento para ser administrado em
mamíferos” e o tribunal aceitou que a novidade residia apenas na dose usada e na forma
de aplicação dessa substância.
Mas a situação é, por vezes, caricata: em certos países que adotaram o regime jurídico
do TRIPS-Plus, as empresas europeias estão livres de patentear invenções cuja proteção
lhes seria negada no quadro da Convenção da Patente Europeia e dos ordenamentos
nacionais dos seus Estados contratantes. E a inversa também é verdadeira.
Tudo isso não impede, porém, que os Estados contratantes da OMC e obrigados
a cumprir o Acordo TRIPS utilizem todas as “proibições” da patenteabilidade previstas
na CPE, mas sem abrir “exceções às exceções”. Podem assim tais Estados proibir a
patenteabilidade das invenções respeitantes a plantas e a animais, bem como impedir
a patenteação dos processos essencialmente biológicos ou microbiológicos de produção
ou fabrico de outras matérias.
De igual modo, podem tais Estados proibir a patenteabilidade das invenções
contrárias à promoção da saúde pública, ao meio ambiente, à dignidade e à integridade
dos seres humanos, ainda que no estado embrionário, ou que impliquem um sacrifício
ou sofrimentos desmesurados aos animais não humanos em cujo organismo sejam
executadas, etc.
Outrossim, estão salvos de fazer depender a concessão da patente da menção
da origem geográfica dos recursos biológicos com base nos quais foi, sem margem
para dúvidas, obtida a invenção e/ou o consentimento informado das pessoas cujos
conhecimentos serviram para a obter.
Por outro lado, temos assistido ao minguar das chamadas utilizações livres do direito
de patente, ou seja, todas aquelas situações em que terceiros estão livres para usar o
objeto da invenção patenteada independentemente do consentimento do titular da
patente. Isso é mais acentuado no caso das patentes biotecnológicas.
De fato, na União Europeia (e nos E.U.A., embora não haja norma expressa nesse
outro ordenamento jurídico), é limitadíssimo o alcance do princípio do esgotamento
do direito de patente biotecnológica: mesmo quando aliena ou permite a alienação das
primevas matérias biológicas patenteadas, o titular da patente pode sempre controlar,
legal ou contratualmente, direta ou indiretamente, as subsequentes multiplicações ou
reproduções e, por consequência, pode ele controlar as subsequentes alienações das
matérias biológicas obtidas a partir das primeiras (artigo 103º/2 do CPI português de
2003, na sequência do disposto no artigo 10º da citada Diretiva nº 98/44/CE).
O chamado privilégio do agricultor ou do criador pecuário somente o autorizam a
utilizar, na respectiva exploração, as sementes, os materiais de reprodução animal ou os
animais protegidos pela patente (artigo 11º da citada Diretiva nº 98/44/CE e artigo 97º/6
104
do CPI português de 2003)115. Por exemplo, esses agricultores ou criadores pecuários
estão inibidos de, respectivamente e sem o consentimento do titular da patente, ceder
gratuitamente sementes das colheitas dos anos anteriores aos agricultores vizinhos, ou
ceder gratuitamente o material de reprodução animal ou os próprios animais protegidos.
De igual sorte, os criadores pecuários não podem ceder ou vender os animais assim
obtidos, com vista a uma atividade de reprodução com fins comerciais, mas apenas podem
vendê-los para abate ou para outros fins (v.g., circos, animais de companhia).
Aliás, os legisladores não falam em utilizações livres, mas sim em exceções ao direito
de patente - veja-se, por exemplo, o disposto no artigo 30º do TRIPS.
Esquece-se, todavia, que o subsistema jurídico da propriedade intelectual não
contém apenas as pautas jurídicas dos titulares desses direitos; esse subsistema é
condicionado por outros valores e interesses relevantes, especialmente os que são referidos
nos artigos 7º e 8º do Acordo TRIPS e no considerando nº 16 da Diretiva nº 98/44/CE,
sobre invenções biotecnológicas:
•
promoção e inovação tecnológica.
•
transferência de tecnologia.
•
bem estar social e econômico.
•
desenvolvimento socioeconômico e tecnológico.
•
conciliação entre direitos e obrigações.
•
proteção da saúde pública e da alimentação.
•
dignidade e integridade das pessoas humanas.
Por conseguinte, quando desejarmos referir as utilizações livres no quadro dos
direitos de patente, deveremos falar antes em direitos dos utilizadores, em vez de exceções
aos direitos de patente.
E esses direitos dos utilizadores ou direitos de utilização do objeto das patentes
(biotecnológicas) são vários, a saber, no essencial116:
•
os atos praticados em um âmbito privado e sem fins comerciais.
•
os atos realizados exclusivamente para fins de ensaio ou experimentais.
•
os atos realizados para fins de ensino.
•
os atos praticados sobre o objeto da invenção para a testar ou aperfeiçoar.
•
os atos realizados exclusivamente para preparar e instruir procedimentos
administrativos destinados a obter a aprovação dos produtos patenteados junto
às entidades administrativas competentes, com vista à sua comercialização
após a extinção dos direitos de patente.
115
J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. II, cit., 2007, pp. 174-180, pp. 209-213, pp. 221-223.
116
Sobre isso, desenvolvidamente, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 11371196.
105
•
os atos praticados ou os preparativos sérios para a prática de atos de boa fé
por terceiros, que tenham chegado por meios próprios ao conhecimento da
invenção antes da data do pedido de proteção ou da data da prioridade.
Pois só assim poderemos falar em um sistema de direito de patente equilibrado,
que não seja pautado por uma racionalidade eminentemente política de programação
e institucionalização de objetivos político-sociais dos utilizadores hegemônicos desse
subsistema (as empresas transnacionais, o Governo dos E.U.A. e algumas instituições
políticas da União Europeia). Só assim poderemos, de fato, construir e problematizar
um sistema de patentes cujo regime jurídico permita lograr consequências jurídicas e
soluções justas.
106
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Parlamento Europeu: Desenvolvimentos e implicações do direito de patentes no
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VAVER, David; BASHEER, Shamnad. Popping patented pills: Europe and a decade’s dose
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VIEIRA, Fabiola Sulpino; ZUCCHI, Paola. Diferenças de preços entre medicamentos
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444-449, 2006.
109
CAPÍTULO
POLÍTICAS
4
S AÚDE , A IDS E P ROPRIEDADE
I NDUSTRIAL EM M OÇAMBIQUE 117
DE
Eusebio Chaquisse118, médico e docente na Universidade Lúrio
117
Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho
de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.
118
Coordenador do Núcleo Provincial de combate ao HIV, Nampula, Moçambique.
L ISTA DE ABREVIATURAS E ACRÔNIMOS
112
CD4
CÉLULAS DO SISTEMA IMUNOLÓGICO CONTENDO RECEPTORES EM SUA PARTE
EXTERIOR QUE PERMITEM AO HIV LIGAR - SE A ELAS
CNCS
CONSELHO NACIONAL DE COMBATE AO SIDA
CV
CARGA VIRAL
CVM
CRUZ VERMELHA DE M OÇAMBIQUE
DFC
DANIDA FELLOWSHIP CENTRE
DFG
D ISCUSSÕES EM G RUPOS FOCAIS
EP2
E NSINO PRIMÁRIO DO S EGUNDO G RAU
EPP
EPIDEMIOLOGICAL PROJECTION PACKAGE
GATV
G ABINETE DE ACONSELHAMENTO E TESTAGEM VOLUNTÁRIA
HD
H OSPITAL-D IA
HIV
VÍRUS DA I MUNODEFICIÊNCIA HUMANA
INE
I NSTITUTO N ACIONAL DE E STATÍSTICA
ITS
I NFECÇÃO DE TRANSMISSÃO S EXUAL
MISAU
M INISTÉRIO DA S AÚDE
ONG
O RGANIZAÇÕES N ÃO G OVERNAMENTAIS
PEN
PLANO NACIONAL E STRATÉGICO
PMTCT
PREVENÇÃO DA TRANSMISSÃO DA M ÃE PARA O FILHO
PNPCS
PROGRAMA N ACIONAL DE PREVENÇÃO E CONTROLE DE SIDA
PVHA
PESSOAS VIVENDO COM HIV E AIDS
SAAJ
S ERVIÇOS AMIGÁVEIS DE ADOLESCENTES E J OVENS
SIDA (AIDS)
S ÍNDROME DA I MUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA
SNS
S ISTEMA N ACIONAL DE S AÚDE
SSRAJ
S AÚDE S EXUAL E R EPRODUTIVA DO ADOLESCENTE E J OVEM
TARV
TERAPIA ANTIRRETROVIRAL
UEM
UNIVERSIDADE EDUARDO M ONDLANE
UNAIDS
PROGRAMA CONJUNTO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE O HIV E AIDS
I. I NTRODUÇÃO
O HIV/aids é um dos mais terríveis desafios à vida humana, constituindo uma
emergência nacional em Moçambique devido aos seus efeitos devastadores em escala
nacional e ao seu impacto negativo nos esforços realizados com o objetivo de promover
o desenvolvimento econômico e social e o bem-estar das famílias. A perda de membros
economicamente ativos dos agregados familiares e o aumento do número de pessoas
econômica e socialmente vulneráveis, como os órfãos e os idosos, condiciona o efetivo
gozo dos direitos humanos (MOÇAMBIQUE, 2003).
Moçambique possui uma população de cerca de 20 milhões de habitantes, dos
quais 44,8% são menores de 15 anos. A população jovem, ou seja, entre 15 e 24 anos
de idade, constitui 32,2% da população (PNUD, 2006). A pandemia do HIV/aids afeta
todos os grupos populacionais, ricos e pobres, sem distinção de idade, sexo ou raça,
e estima-se que, em 2007, 1,8 milhões de pessoas estavam infectadas pelo HIV, o que
equivale a uma prevalência de 16%, ocorrendo por dia cerca de 500 novas infecções
(MOÇAMBIQUE, 2007). As mulheres constituem o grupo populacional mais afetado e
vulnerável à epidemia do HIV/aids, particularmente as moças, o que se reflete na diferença
de prevalência da infecção no grupo etário de 15-24 anos, em que o sexo feminino está
3 vezes mais afetado que o masculino (MOÇAMBIQUE, 2007; MOÇAMBIQUE; INE, 2003).
A desigualdade de gênero faz com que seja muito difícil para as mulheres terem
a capacidade de negociar o “sexo seguro” e insistir em que os seus parceiros utilizem
preservativos. As mulheres jovens são especialmente vulneráveis ao HIV devido ao sexo
entre gerações e ao sexo transacional (CHAQUISSE, 2006). Adicionalmente, estima-se
que 36,8% dos homens, 57% das mulheres e 6,2% das crianças vivem com o HIV/aids,
com implicações severas sobre o seu bem-estar econômico e social (MOÇAMBIQUE,
2003). O peso dessa pandemia afeta desproporcionalmente as mulheres, que, pela
natureza da evolução do processo de doença dos indivíduos infectados no respectivo
agregado familiar, muitas vezes têm que cuidar dos doentes e ao mesmo tempo prover
a alimentação da família, reduzindo assim a sua possibilidade de ingresso nas escolas e
no trabalho e encarecendo, ainda, os custos dos cuidados domiciliares.
A pobreza pode ser identificada como um dos fatores que contribuem para a
rápida expansão da epidemia do HIV em Moçambique. Os pobres são mais vulneráveis
à infecção, podendo-se apontar fatores que influenciam a sua vulnerabilidade, tais
como a migração e prostituição, o que aumenta a probabilidade de terem múltiplos
parceiros sexuais; as mulheres, além disso, enfrentam riscos adicionais ao envolveremse em atividades sexuais para subsistência, reduzindo o seu poder de negociação para
o uso do preservativo, o que é agravado pelo pouco acesso e procura pelos cuidados
de saúde após envolverem-se em atividades sexuais de risco (MOÇAMBIQUE, 2003;
CHAQUISSE, 2006).
113
II. A EPIDEMIA DO HIV E AIDS EM M OÇAMBIQUE
O primeiro caso de aids em Moçambique foi diagnosticado em 1986. A partir de
março de 1987 e durante vários meses foi levado a cabo, em várias cidades do país,
um inquérito sero-epidemiológico, um dos primeiros jamais realizados, que detectou
infecções, sobretudo, pelo HIV-2 (taxa de prevalência de 2% na população estudada),
mas também pelo HIV-1 (taxa de prevalência de 1,2% na população estudada). A cidade
mais afetada foi Nampula, com taxas de prevalência de 2,8% para o HIV-2 e 2,2% para o
HIV-1, logo seguida por Lichinga e Inhambane. Nesta última já predominava o HIV-1, do
mesmo modo que em Chimoio, Quelimane e Pemba. As cidades menos afetadas foram
Pemba e Xai-Xai. Entretanto, no decurso de 1987, foram notificados os primeiros 5 casos
clínicos em cidadãos nacionais. No período que se seguiu, até 1989, o número de casos
duplicou a cada ano, tendo em julho de 1989 chegado ao total de 41 casos. O grupo
etário mais atingido era o dos 20 aos 29 anos, como sucede em outras partes do mundo,
mas as crianças também figuravam de maneira significativa no total de casos arrolados,
com 5 casos. Já se sabia, nessa altura, que tais números estavam longe de traduzir a
situação real do país (CONSELHO NACIONAL DE COMBATE AO SIDA, 2004).
A situação de guerra que o país viveu, para além de produzir um elevado número de
vítimas mortais e casos de incapacidade por lesão permanente, levou ao deslocamento
de povoações inteiras em busca de refúgio e segurança, quer para outras áreas do país,
quer para países vizinhos. O conflito armado também causou danos materiais de vulto
em todos os setores de atividade, incluindo as infraestruturas da Saúde. Assistiu-se,
então, à drenagem da maior parte dos recursos disponíveis para o esforço de defesa.
Por força dessas dificuldades conjunturais, o combate ao HIV/aids foi-se transformando,
essencialmente, em responsabilidade do MISAU (CONSELHO NACIONAL DE COMBATE
AO SIDA, 2004), cujo Programa Nacional de Prevenção e Controle do SIDA continuou
a liderar o processo. De notar também que, naquela ocasião (finais da década de 80 e
início dos anos 90), outros países africanos apresentavam taxas muito mais elevadas do
que as que o inquérito de 1987 havia mostrado no nosso país, pelo que o interesse das
organizações internacionais e das agências de desenvolvimento se concentrava nesses
países, considerando-se Moçambique como um problema menor.
No ano 2000, o MISAU criou 20 postos-sentinela para a vigilância epidemiológica
no país, tendo-se chegado a 36 em 2001, número que se mantém até ao presente. Só a
partir dos últimos anos é que se passou a ter a real noção da gravidade da situação.
Entretanto, a partir de 2002, por meio dos órgãos de comunicação social, começase a passar a mensagem de que a degradação da situação era devida ao regresso
maciço de populações que, em resultado do conflito armado, se tinham refugiado nos
países vizinhos, onde as taxas de seroprevalência eram altas. Muito embora esse afluxo
populacional tenha sido provavelmente um fator real de agravação da situação, a forma
114
como ele foi apresentado criou um certo espírito de tranquilidade, pois acreditava-se
que, com o reassentamento dos regressados, tudo se iria normalizar. Não se insistiu
suficientemente no fato de a infecção estar já bem instalada no país, com todas as
condições para se desenvolver endogenamente.
Os estudos sobre Conhecimentos, Atitudes e Práticas fazem-se no país desde 1988,
mas, na sua maior parte, incidem sobre grupos populacionais específicos ou então estão
circunscritos a áreas geográficas limitadas e à escala nacional.
A propagação do HIV continua a ser uma realidade bastante preocupante em
Moçambique, e ainda não há sinais que permitam visualizar a reversão desse quadro.
Em 1999, a aids matou 41.000 pessoas no país, e as estimativas apontavam para uma
tendência de crescimento nos anos subsequentes. O índice de seroprevalência em 2004
entre pessoas de 15 e 49 anos de idade atingia os 16,2% e, segundo dados do Instituto
Nacional de Estatística (INE), o ano de 2005 registrou, muito provavelmente, mais de
225.000 novas infecções (PNUD, 2006).
A estratégia de combate ao HIV/aids adotada pelo governo de Moçambique
assenta na realização de campanhas de educação, informação e comunicação, na
criação de condições para o aconselhamento e testagem voluntária, no tratamento
das infecções oportunistas e na terapia antirretroviral, bem como na prevenção da
transmissão vertical, ou seja, da mãe para o filho (CONSELHO NACIONAL DE COMBATE
AO SIDA, 2004).
III. EVOLUÇÃO DA PREVALÊNCIA DO HIV EM M OÇAMBIQUE
As últimas rondas de vigilância epidemiológica, realizadas em 2004 e 2007, indicam
que as regiões Sul e Centro do país apresentam as mais elevadas taxas de prevalência
do HIV, havendo uma tendência crescente da epidemia na região Sul, onde as taxas
observadas se situaram entre 23% e 27% na ronda de 2007, com exceção da província
de Inhambane, que registrou a prevalência de 12%. As taxas de prevalência no Centro
do país continuam a ser relativamente elevadas, situando-se entre 13-23% nas quatro
províncias da região. No Norte, a prevalência continua a ser menor em comparação
com o Centro e o Sul, sendo a prevalência regional estimada em 9%. Portanto, com a
estimativa nacional de 16% para o ano de 2007, a prevalência verdadeira provavelmente
está entre 14% e 17% (MOÇAMBIQUE, 2007).
115
Nas regiões Centro e Norte, a prevalência tende a estabilizar-se quando comparada
com a do Sul (ver Tabela 1).
Tabela 1
Comparação das taxas estimadas de prevalência do HIV provinciais, regionais e nacional,
baseadas no Epidemiological Projection Package (EPP). Moçambique, 2001-2007
Província
2001
2002
2004
2007
Maputo
Cidade
17%
(12%-20%) 18% (13%-23%) 21% (16%-26%)
23%
(18%-29%)
Maputo
Província
16%
(10%-24%) 18% (12%-26%) 22% (15%-31%)
26%
(18%-34%)
Gaza
19%
(12%-26%) 21% (14%-29%) 25% (17%-33%)
27%
(18%-35%)
Inhambane
8%
(6%-14%)
9%
12%
(7%-16%)
Zambezia
16%
(9%-23%)
17% (10%-25%) 18% (12%-28%)
19%
(12%-29%)
Sofala
25%
(15%-31%) 24% (16%-32%) 24% (17%-33%)
23%
(17%-33%)
Manica
18%
(10%-23%) 17% (10%-23%) 16% (10%-23%)
16%
(10%-23%)
Tete
16%
(11%-21%) 15% (11%-21%) 14% (11%-21%)
13%
(11%-21%)
Niassa
6%
(3%-11%)
7%
(4%-12%)
8%
(4%-14%)
8%
(4%-14%)
Nampula
8%
(5%-10%)
9%
(6%-11%)
9%
(6%-12%)
8%
(6%-12%)
Cabo
Delgado
8%
(4%-12%)
9%
(5%-13%)
9%
(6%-14%)
10%
(6%-14%)
Região
2001
(6%-15%)
10% (7%-16%)
2002
2004
2007
Sul
15%
(10%-17%) 16% (12%-18%) 19% (14%-21%)
21%
(16%-23%)
Centro
18%
(16%-20%) 18% (17%-20%) 19% (17%-21%)
18%
(17%-21%)
Norte
7%
(6%-8%)
9%
(7%-10%)
Nacional
2001
14%
8%
(6%-9%)
2002
9%
(7%-10%)
2004
(12%-14%) 15% (13%-15%) 16% (14%-16%)
2007
16%
(14%-17%)
Fonte: MISAU, Moçambique, 2007
Na região Sul observa-se uma tendência de crescimento consistente da prevalência
nas últimas quatro rondas, variando de 15 a 21%. Em relação à região Centro, observase uma taxa entre 18 e 19% nas rondas de 2001 e 2007, respectivamente; essas taxas
mostram um grau de consistência que revela uma epidemia mais antiga relativamente
às outras regiões do país. Na região Norte, registrou-se um ligeiro aumento da
prevalência entre as rondas de 2001 a 2004, situação que viria a alterar-se na ronda de
2007, em que se manteve a taxa estimada em 2004, situada em 9%; com base nos dados
disponíveis sobre essa região, pode-se considerar que a prevalência tende a entrar na
116
fase de estabilização. Porém, a região Norte somente possui dados a partir do ano 2000,
ao passo que, em outras regiões, foram considerados dados históricos mais antigos, isto
é, a partir de 1994 para a região Centro e a partir de 1988 para a região Sul.
Quanto à prevalência nacional, registrou-se um ligeiro crescimento de 2001 a
2004, e de 2004 a 2007 observa-se uma tendência de estabilização, chegando a uma
prevalência de 16%. Isso significa que a taxa de prevalência estimada para o ano
2007 não difere muito da taxa estimada em 2004. É importante lembrar que a nova
metodologia indica que a taxa nacional de prevalência nesse ano estaria entre 14 e
17%, sendo que em 2004 situava-se entre 14 e 16%. Qualquer diferença aparente devese à nova metodologia de estimativa e não a uma verdadeira queda na prevalência
(MOÇAMBIQUE, 2007).
IV. A RESPOSTA DE M OÇAMBIQUE À PANDEMIA DA AIDS
A) ANTECEDENTES
Como referido anteriormente, o primeiro caso de aids em Moçambique foi
diagnosticado em 1988. Já em 1985, um Comitê de Especialistas da OMS, reunido em
Banguí, tinha feito a definição de caso clínico de aids na África. A Organização Mundial
da Saúde passou, então, a recomendar aos países-membros a constituição de comitês
nacionais de luta contra a aids. Nesse quadro, foi criado em Moçambique, em agosto de
1986, o primeiro organismo de combate ao HIV/aids, com a designação de Comissão
Nacional do SIDA.
Em fevereiro de 1988, foram reorganizadas as estruturas de combate à aids, sendo
formada no MISAU uma Comissão Nacional de Combate ao SIDA, com 39 membros.
A maior parte dos integrantes da Comissão (21 membros) era do próprio MISAU, mas
contava-se também com representantes de organizações democráticas de massas,
de credos religiosos, da Cruz Vermelha (CVM), do Centro de Estudos Africanos da
Universidade Eduardo Mondlane (UEM) e também de 5 Ministérios (Defesa, Interior,
Educação, Justiça e Informação). Presidia à Comissão o Diretor do INS. Na mesma
ocasião, foi instituído, na Direção Nacional de Saúde do MISAU, um Programa Nacional
de Prevenção e Controle do SIDA (PNPCS), de onde são provenientes muitos dos
membros do MISAU na referida Comissão Nacional. A Comissão teve um início de
atividades promissor, pois que representou, de fato, a primeira abordagem multi-setorial
no combate à aids; porém, ao longo da sua existência, ela nunca conseguiu um real
envolvimento dos outros setores no nível político e estratégico.
117
B) PLANOS ESTRATÉGICOS DE COMBATE À AIDS
Em fins de 1999, o Governo da República de Moçambique criou o Plano Estratégico
Nacional (PEN) para o combate das Infecções de Transmissão Sexual (ITS), incluindo o
HIV e o SIDA, para o período de 2000 a 2002, o qual foi estendido até 2003. O PEN
fornecia um quadro e definia as grandes estratégias adotadas pelo Governo na sua
batalha contra a epidemia do HIV/aids.
No plano estratégico, reconheceu-se que uma abordagem multissetorial ao
problema seria a forma mais eficiente de combater o HIV/aids. Para a coordenação
dessas intervenções multissetoriais no nível nacional, provincial e da comunidade, havia
necessidade de um órgão coordenador no alto nível. A sua missão seria de dirigir a luta
contra o HIV/aids por meio de:
•
•
•
•
•
Mobilização de liderança social e política de alto nível e comprometimento;
Coordenação de uma resposta multissetorial envolvendo todos os membros
da sociedade;
Melhoria da qualidade e cobertura da prestação de serviços;
Abordagem da epidemia do HIV/aids nas suas dimensões social, econômica,
de saúde e desenvolvimento; e
Resposta aos desafios especiais das pessoas que vivem com o HIV/aids.
Assim, no ano 2000 foi criado, pelo Decreto Ministerial nº 10/2000, de 23 de maio,
o Conselho Nacional de Combate ao SIDA (CNCS), que tinha o objetivo de coordenar
as estratégias de combate ao HIV/aids em Moçambique. O CNCS é presidido pela
Primeira-Ministra e tem como Vice-Presidente o Ministro da Saúde. Além do Ministério
da Saúde, o CNCS integra os Ministérios dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, da
Educação e Cultura, da Juventude e Desporto, da Mulher e Coordenação da Ação social,
do Plano e Desenvolvimento e o Ministério das Finanças. O Decreto também estabelece
um Secretariado para servir de organismo operacional para a coordenação da resposta
nacional e principal força de advocacia da atenção à pandemia da aids. Também é sua
responsabilidade levar a aids à arena da política nacional e de integrar as questões do
HIV/aids no diálogo social e político em Moçambique.
O segundo Plano Estratégico (PEN II) foi aprovado pelo conselho de Ministros
em 2004 e cobre o período de 2005 a 2009. O PEN II é concebido como um plano
de médio termo; porém, algumas das projeções que ele comporta estendem-se pelos
próximos 10 anos. A sua perspectiva de abordagem é rigorosamente multissetorial,
sendo considerados todos os atores que trabalham em prol da redução da propagação
da epidemia e que trabalham com a população direta ou indiretamente afetada, além
de todas as parcerias que podem ser mobilizadas, quer nacionais, quer internacionais. O
118
Plano identifica os grandes objetivos a atingir, define prioridades e propõe as estratégias
necessárias para que os objetivos sejam atingidos (CHAQUISSE, 2006).
Tanto na formulação de objetivos como na escolha das estratégias que se
propõem, procurou-se sempre tirar lições de análise da situação efetuada e das relações
causais entre um certo número de fatores e a probabilidade de facilitar a propagação
da infecção pelo HIV/aids. Dessa forma, tanto a formulação de objetivos como a escolha
das estratégias decorrem das causas básicas, subjacentes e imediatas que foram
identificadas para essa propagação.
Como a problemática do HIV/aids é, por excelência, um domínio multissetorial,
fixaram-se responsabilidades para o CNCS e os seus Núcleos Provinciais, mas, igualmente,
para os diversos setores que participam desse combate.
O PEN II é consistente com o Programa Geral de Desenvolvimento do Governo,
que se encontra descrito no Plano Quinquenal do Governo (2005-2009), e com o
segundo Plano de Ação para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA II, 2006-2009). O
PEN II compreende sete objetivos fundamentais, por áreas:
1. ÁREA DA PREVENÇÃO :
Objetivo Geral:
Reduzir o número de novas infecções do nível atual, de 500 por dia, para menos de 350
em 5 anos e menos de 150 em 10 anos;
2. ÁREA DA ADVOCACIA :
Objetivo Geral:
Transformar o combate ao HIV/aids em uma emergência nacional;
3. ÁREA DO E STIGMA E D ISCRIMINAÇÃO :
Objetivo Geral:
Reduzir o estigma e a discriminação ligados ao HIV/aids;
4. ÁREA DO TRATAMENTO :
Objetivo Geral:
Tratamento: prolongar e melhorar a qualidade de vida das pessoas infectadas pelo HIV
e dos doentes de aids;
5. ÁREA DA M ITIGAÇÃO DAS CONSEQUÊNCIAS :
Objetivo Geral:
Mitigação das Consequências do HIV e Aids: reduzir as consequências do HIV/aids no
nível dos indivíduos, das famílias, comunidades, empresas, considerando, ainda, os
impactos globais;
119
6. ÁREA DA PESQUISA:
Objetivo Geral:
Aumentar o grau de conhecimento científico sobre o HIV/aids, suas consequências e as
melhores práticas no seu combate;
7. ÁREA DA COORDENAÇÃO DA R ESPOSTA N ACIONAL
Objetivo Geral:
Desenvolver a capacidade de planificar e descentralizar os mecanismos de tomada de
decisão e gestão de recursos, a fim de aumentar gradualmente a resposta nacional.
Essa estratégia tem sido acompanhada por um incremento da alocação orçamental
do Estado, que tem apoiado especificamente os diversos setores na mitigação do
impacto do HIV/aids, particularmente em termos de capacidade humana e expansão
da cobertura geográfica da resposta, sobretudo nas zonas menos privilegiadas, onde
os serviços de prevenção e tratamento não estão disponíveis (MOÇAMBIQUE, 2003).
Promover ações que reduzam o peso dos cuidados domiciliares sobre as mulheres e
empreender ações de combate à feminização do HIV/aids são considerados fatores
importantes para a redução do impacto da epidemia nas famílias e comunidades.
No quadro do princípio dos “Três Uns” (Um Órgão de Coordenação da Resposta
Nacional, Um Plano Estratégico de Combate ao HIV/Aids e Um Sistema de Monitoramento
e Avaliação), o Secretariado Executivo do Conselho Nacional de Combate ao SIDA criou,
em colaboração com parceiros nacionais e estrangeiros, um sistema único de Monitoria
e Avaliação da Resposta Nacional de Combate ao HIV/SIDA, instrumento que fornece
uma base conceitual e mecanismos operacionais para o desenvolvimento do processo
de monitoramento e avaliação situacional e programática e do esforço nacional de
combate ao HIV/aids em Moçambique.
V. O RGANIZAÇÃO
S AÚDE EM
AIDS EM RESPOSTA ÀS ATRIBUIÇÕES PREVISTAS NO PEN II
DO
SISTEMA NACIONAL
DE
FACE DA EPIDEMIA DA
Como foi referido atrás, desde o aparecimento do primeiro caso de aids em
Moçambique em 1986 e em resposta à recomendação da OMS de 1985, o MISAU
assumiu a dianteira nos esforços de descrição e controle da epidemia.
Nesse sentido, o MISAU, no quadro das suas atribuições, em face da realidade da
existência de pessoas necessitando do tratamento como consequência da epidemia do
HIV/aids, estabeleceu novos serviços de Aconselhamento e Testagem Voluntária para a
Saúde (ATS), abriu Hospitais-Dia (HD), Cuidados Domiciliares (CD) e Programas de Saúde
Sexual e Reprodutiva do Adolescente e Jovens (SAARJ), bem como a sua massificação, e
estabeleceu metas a alcançar visando mitigar os efeitos da epidemia da aids.
120
O acesso aos novos serviços ora criados é feito a partir de qualquer ponto de
contato do paciente com os serviços de saúde, como, por exemplo, consultas externas
nas Unidades Sanitárias (US) espalhadas pelo país, serviços de internação em Medicina,
Cirurgia, Pediatria, consultas de ITS (Infecções de Transmissão Sexual), Saúde MaternoInfantil (SMI), ou então referência e encaminhamento a partir de serviços de laboratório
e banco de sangue.
A organização desses serviços traz consigo novos desafios para o Sistema Nacional
de Saúde (SNS) em termos da captação de recursos humanos em quantidade e
qualidade. Os serviços de laboratórios de Biologia Molecular para a medição da carga
viral do CD4, bioquímica capaz de responder às necessidades da demanda dos novos
serviços, constituiu prioridade para garantir a oferta de tratamento às pessoas em
necessidade de acesso à terapia antirretroviral, bem como o monitoramento laboratorial
dos pacientes em TARV.
Com efeito, inicialmente foram providos os Hospitais Centrais de Maputo, Beira
e Nampula, que fazem parte das regiões Sul, Centro e Norte, respectivamente, com
equipamento capaz de dar resposta à demanda em exames laboratoriais para o
monitoramento da Carga Viral (CV) e células linfocitárias T auxiliadoras (CD4). Atualmente,
esses serviços estão a ser oferecidos nos Hospitais Provinciais, e, gradualmente, estarão
disponíveis nos Hospitais Rurais e Distritais.
Em termos de prestação de cuidados de saúde, a epidemia de HIV trouxe novos
desafios na definição de políticas. Por um lado, devido às particularidades que a
epidemia de aids arrasta consigo, as políticas de resposta do setor de saúde devem
ser definidas com base na evidência da previsão das consequências e do seu impacto
nos setores de desenvolvimento, familiar e comunitário. Por outro lado, outros fatores
devem ser igualmente considerados, como, por exemplo, a disponibilidade de recursos,
particularmente humanos, financeiros e materiais. Assim, ao longo do tempo, foram
definidas políticas no setor de saúde para acomodar a nova realidade.
Na área dos Recursos Humanos, o Ministério da Saúde (MISAU), assumindo os
efeitos e o impacto previsível da epidemia de aids no país, estabeleceu, em 2006, o Plano
Acelerado de Formação de Quadros para o setor, que consiste no aumento do número
de cursos que anteriormente eram lecionados nas instituições de formação da saúde.
Por seu turno, o Governo de Moçambique criou, também em 2006, a Universidade Lúrio,
sediada em Nampula; esta priorizou a abertura da Faculdade de Ciências de Saúde, que
lançou os primeiros cursos no ano de 2007. A formação de médicos generalistas e de
outros técnicos superiores de saúde é de inquestionável importância para um país em
que a cobertura da rede sanitária é considerada de 40%.
Juntam-se a esses esforços o aumento do número de médicos graduados pelas
Universidades Eduardo Mondlane (UEM), em Maputo, e Católica, na Cidade da Beira.
121
No âmbito do desenvolvimento de ações tendentes a reverter a situação do
alastramento da infecção pelo HIV, o MISAU, em 1992, iniciou a notificação de casos de
infecções de transmissão sexual pelas Unidades de Saúde (US), por meio do Sistema
Nacional, como atividade de rotina, e definiu a abordagem sindrômica como a principal
estratégia para o tratamento das ITS. Para fazer estimativas e projeções de HIV e aids,
bem como prever seu impacto demográfico, o MISAU reforçou a extensão da rede de
postos de vigilância epidemiológica no país, os Postos Sentinela (PS), que passaram de 4
em 1998 para 20 em 2000. Em 2001, esse número aumentou para 36.
Do 1,8 milhão de pessoas vivendo com HIV em Moçambique, estima-se que cerca
de 300.000 adultos necessitem de tratamento antirretroviral. Até julho de 2007, eram
cerca de 60.000 adultos sob TARV em Moçambique, representando aproximadamente
20% de adultos em necessidade de tratamento. A redução dos preços dos medicamentos
antirretrovirais foi um dos principais determinantes do aumento do número de pessoas
beneficiadas. Quando o tratamento foi introduzido, seu custo anual ascendia a US$
1,500. Atualmente, em média, o custo anual do regime de primeira linha é de US$ 274
ao ano (dado de 2007), enquanto que o do regime de segunda linha, considerado mais
caro, é de US$ 2.804 ao ano. O tratamento de primeira linha usa diferentes combinações,
de forma a acomodar as diferentes necessidades dos doentes antes de se passar para
a segunda linha; contudo, a maior parte dos pacientes está ainda na primeira linha de
tratamento com os ARV (MBOFANA et al., 2007).
O acesso dos jovens e adolescentes aos serviços de aconselhamento e testagem
voluntária foi alargado mediante a abertura, nas Unidades Sanitárias de quase todo o
país, de clínicas com serviços de aconselhamento em saúde sexual e reprodutiva dos
adolescentes e jovens.
De 23 a 26 de março de 2006, o MISAU realizou uma reunião sobre HIV e aids
na qual foi tomada a decisão de expandir a TARV, treinar os técnicos em medicina e
colocar o medicamento mais próximo do doente. Na ocasião, foi também priorizada a
formação em equipe dos técnicos de saúde lotados nas unidades sanitárias, bem como
a indicação de coordenadores das grandes endemias no nível das direções provinciais,
o que inclui o HIV, a tuberculose e a malária.
VI. R ESULTADOS ALCANÇADOS
Como resultado da criação de condições para o acesso dos cidadãos necessitando
tratamento, o governo aprovou, em 2001, o Diploma Ministerial número 183-A/2001, de
18 de dezembro, que introduz o tratamento antirretroviral nas Unidades Sanitárias do
Sistema Nacional de Saúde (SNS) e estabelece princípios orientadores para o acesso ao
tratamento de pessoas com infecção pelo HIV e doentes de aids. O diploma também
122
define as linhas de tratamento a serem seguidas e as alternativas aos medicamentos,
conforme as necessidades específicas de cada doente, além estabelecer que o acesso à
TARV é gratuito no país (MOÇAMBIQUE, 2001).
Os esforços para o aumento do acesso ao Aconselhamento e Testagem em Saúde
(ATS), a oferta dos serviços que visam reduzir a transmissão vertical do HIV da mãe para
o filho, a criação de condições para a expansão do tratamento antirretroviral até ao
nível mais periférico e a oferta dos serviços de TARV (tratamento antirretroviral) em 211
Unidades Sanitárias do país têm mostrado resultados encorajadores. Com efeito, até
abril de 2008, 101.163 pessoas estavam em TARV em todo o país; destas, cerca de 62%
são do sexo feminino e 7% são crianças (MOÇAMBIQUE, 2008).
A expansão da TARV para as unidades periféricas tem sido possível graças à política
de delegação de tarefas a níveis inferiores ao do médico, como é o caso do treino de
técnicos em medicina, iniciado em 2006.
O programa de prevenção da transmissão vertical começou a ser expandido
significativamente desde 2002 e, em 2006, cerca de 222 Unidades Sanitárias ofereciam
serviços de prevenção da transmissão vertical. Em 2006, 46.784 mulheres grávidas
soropositivas receberam profilaxia com antirretrovirais (MOÇAMBIQUE, 2008; ASSAN et
al., 2008).
Nos esforços para reduzir a estigmatização e dar a oportunidade para que os cidadãos
infectados possam continuar a gozar os seus direitos fundamentais, a Assembleia da
República aprovou a Lei nº 5/2002, de 5 fevereiro de 2002, que foi consequentemente
promulgada pelo Presidente da República; essa lei protege as Pessoas Vivendo com HIV
e Aids (PVHA) no local de trabalho e ao se candidatarem a emprego. Por outro lado, a
nova Lei de Trabalho nº 23/2007, de 1º de agosto de 2007, enfatiza o que diz a Lei nº
5/2002, em termos do respeito e proteção de que o trabalhador deve gozar em caso de
infecção pelo HIV e/ou agravo por aids.
VII. CONCLUSÕES
Desde o início da epidemia do HIV/aids, as políticas de saúde em Moçambique
foram orientadas para responder às exigências da epidemia; contudo, a falta de
recursos humanos, materiais e financeiros condicionou a sua aplicação. Desde o início
da epidemia, a prevenção foi e continua a ser a prioridade nas estratégias de combate
à aids. A expansão e integração dos serviços de aconselhamento e testagem em saúde,
visando a oferta dos testes voluntários, também é prioritária para que os cidadãos
tenham a oportunidade de conhecer o seu estado sorológico em relação ao HIV e
usufruir dos atuais serviços disponíveis no sistema nacional de saúde.
123
Políticas relativas ao acesso à TARV, redução da transmissão do HIV da mãe para o
filho, bem como a expansão desses serviços aos cidadãos são desenhadas tendo em
conta a capacidade do setor de saúde de oferecer serviços de qualidade e sustentáveis.
Os Recursos Humanos no setor de saúde continuam a ser a maior limitação para uma
reposta efetiva à pandemia da aids.
Houve sempre vontade política do Governo em instituir políticas que pudessem
reduzir as consequências e o impacto da aids; contudo, as políticas que puderam ser
implementadas mostraram uma resposta às necessidades reais das comunidades.
Em Moçambique, a definição de políticas de saúde em relação às leis da Propriedade
Intelectual para o acesso aos cuidados de saúde de pessoas infectadas pelo HIV e
doentes de aids é feita acompanhando os desafios que a epidemia impõe.
124
R EFERÊNCIAS
ASSAN, A. et al. Task shifting for scaling up HIV services in Mozambique.
[S.l.: s.n., 2008?]. Abstract presented in HIV implementers’ meeting. Kampala, Uganda.
2008.
CHAQUISSE, E. Porque alto risco de infecção pelo HIV nos Jovens dos 1519 anos de idade na cidade de Nampula e Distrito de Lalaua, Província de
Nampula, Moçambique. [S.l.: s.n.], jun. 2006. Universidade Copenhaga.
CONSELHO NACIONAL DE COMBATE AO HIV/SIDA (Moçambique). Plano Estratégico
para o Combate ao HIV/SIDA 2005-2009. Maputo, 2004.
MBOFANA, F. et al. Innovative financing methods for accelerated access to HIV/
AIDS care, treatment and prevention in Mozambique. Maputo, [s.n.], dezembro
2007.
MOÇAMBIQUE. Governo. Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta
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MOÇAMBIQUE. Ministério da Saúde. Relatório sobre a revisão dos dados de
vigilância epidemiológica do HIV: Ronda 2007. Maputo, 2007.
_____. Diploma Ministerial nº 183-A/2001, BR nº 50, 4º Suplemento. Maputo,
dezembro 2001.
_____. Plano Estratégico do Sector da Saúde. Maputo, 2008.
_____.; INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA (INE) (Moçambique). Impacto
Demográfico do HIV/SIDA em Moçambique. Maputo: setembro 2008.
PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD). Relatório
Nacional de Desenvolvimento Humano 2005: Alcançando os Objectivos de
Desenvolvimento do Milénio. Maputo, 2006.
125
CAPÍTULO
5
A CESSO AOS M EDICAMENTOS A NTIRRETROVIRAIS :
D ESAFIOS EM P ROPRIEDADE I NTELECTUAL PARA OS PAÍSES
DE L ÍNGUA P OR TUGUESA
Cristina de Albuquerque Possas119
119
Pesquisadora, Chefe da Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Departamento de DST, Aids e Hepatites
Virais, Ministério da Saúde, Brasil.
I NTRODUÇÃO
No cenário internacional, o debate sobre a propriedade intelectual (PI) de insumos
essenciais à saúde pública e sobre o impacto dos monopólios temporários resultantes
das patentes sobre os seus preços, limitando condições de acesso das populações dos
países em desenvolvimento a esses insumos, vem ganhando crescente importância,
sobretudo nos países mais afetados pela pandemia do HIV/aids, entre os quais se
incluem, como se verá mais adiante, diversos países da CPLP.
Esse debate vem-se realizando em um ambiente internacional bastante propício,
marcado pela valorização dos diversos aspectos normativos e regulatórios da inovação
na pesquisa farmacêutica, tais como, além da propriedade intelectual, as questões de
bioética e de biossegurança envolvendo procedimentos de modificação genética.
Destaca-se, nesse contexto, o gigantesco potencial econômico da pesquisa
farmacêutica, tornando a questão da propriedade intelectual de suas aplicações
um aspecto crucial da política científica e tecnológica em saúde nos países em
desenvolvimento, em sua interface com a política pública em saúde.
As controvérsias sobre PI nessa área intensificaram-se ao longo da última década,
em decorrência do Acordo TRIPS na OMC, que introduziu a PI dos medicamentos na
legislação internacional, vinculando-a às regras do comércio mundial (CORREA, 2002).
Recentes acordos bilaterais entre países desenvolvidos (E.U.A., União Europeia) e alguns
países em desenvolvimento, caracterizados como “TRIPS Plus”, contendo cláusulas ainda
mais rígidas que as do Acordo TRIPS, vêm tornando esse cenário ainda mais complexo.
Em tese, o processo de harmonização internacional da propriedade intelectual
dos medicamentos e outros insumos em saúde, ao criar condições regulatórias e
normativas compatíveis e compartilhadas por diferentes países, desenvolvidos e
em desenvolvimento, possibilitaria assegurar a proteção dos direitos do cidadão e a
melhoria da qualidade de vida das populações envolvidas.
Além disso, argumenta-se que essa harmonização contribuiria, na crescente
e acirrada competição internacional, a estimular, por meio do aperfeiçoamento do
arcabouço regulatório no comércio mundial, o processo inovativo em redes colaborativas
de pesquisa, favorecendo o estabelecimento de parcerias estratégicas entre os setores
público e privado e assegurando, assim, a efetiva integração econômica e social.
No entanto, há evidências de que o processo de harmonização em curso no âmbito
do Acordo TRIPS da Organização Mundial de Comércio e dos acordos bilaterais de livrecomércio (FTAs), estabelecidos pelos Estados Unidos e a União Europeia com países em
desenvolvimento, vem-se dando, em decorrência da implantação de procedimentos
pouco flexíveis de propriedade intelectual, em direção oposta às intenções enunciadas.
Ao contribuir para uma expressiva elevação dos preços dos medicamentos e ao
restringir significativamente a possibilidade de competição por genéricos, esses acordos
128
vêm limitando consideravelmente, nesses países, o acesso das populações a insumos
essenciais à saúde pública.
Considerando essas dificuldades, os governos, as comunidades científicas e
as distintas organizações da sociedade civil envolvidas vêm buscando conceber e
implementar novas normas e procedimentos de propriedade intelectual, de modo
a conciliar dois objetivos que têm sido apontados como antagônicos: de um lado,
estimular a inovação, procurando harmonizar, no plano internacional, os diferentes
sistemas de propriedade intelectual; de outro, criar flexibilidades que permitam uma
efetiva negociação de preços, tais como a competição com medicamentos genéricos,
a transferência de tecnologia e a produção local de insumos estratégicos para a saúde
pública, buscando atender às especificidades e peculiaridades sociais dos países em
desenvolvimento.
Examinaremos aqui, com foco nas questões relacionadas à propriedade intelectual
dos medicamentos antirretrovirais (ARV), as implicações dessas tendências regulatórias
globais e seus efeitos para a cooperação internacional entre os membros da Comunidade
de Países de Língua Portuguesa (CPLP).
A nosso ver, uma maior clareza nas complexas questões que envolvem a PI dos
medicamentos ARV no âmbito dos países da CPLP poderá certamente contribuir para
o compartilhamento de experiências e para o compromisso político dos seus governos,
no sentido do aperfeiçoamento do atual arcabouço legal internacional, reduzindo, com
isso, o impacto da pandemia do HIV/aids sobre suas populações.
A PANDEMIA DO HIV/AIDS
No decorrer dos últimos 25 anos, a epidemia do HIV/aids se disseminou rapidamente
em escala mundial, transformando-se em uma pandemia e criando graves problemas
sociais e econômicos, sobretudo nas nações em desenvolvimento. Nesse período, cerca
de 60 milhões de homens, mulheres e crianças foram infectados pelo HIV e quase 25
milhões de pessoas já morreram em decorrência da aids.
Cerca de 33 milhões de pessoas vivem hoje no mundo com HIV/aids, das quais
70% no continente africano. A cada ano, ocorrem 2,5 milhões de novas infecções e 2
milhões de pessoas morrem de aids (WHO; UNAIDS, 2007).
O HIV/aids tornou-se, portanto, uma das principais causas de mortalidade mundial,
sendo hoje a principal causa de morte na África, sobretudo na região sul do continente,
que concentra cerca de 35% dos casos e 32% dos óbitos por aids no mundo. As taxas de
prevalência do HIV/aids nos países mais afetados alcançaram níveis antes impensáveis.
Essa situação permite constatar que em nenhuma outra parte do mundo a pandemia
do HIV/aids teve um impacto tão devastador sobre as populações afetadas.
129
Estudos baseados em modelagem matemática para a construção de cenários
estimam que, se mantidas as atuais condições de acesso e tratamento ARV no
continente africano, que tendem a agravar consideravelmente o quadro da epidemia,
até 2025 terão morrido na África 67 milhões de pessoas com aids (UNAIDS, AIDS Africa
Project, 2004), caracterizando uma situação catastrófica e sem precedentes em termos
de saúde pública.
A PANDEMIA NOS PAÍSES DA CPLP
O dramático impacto da pandemia do HIV/aids, agravado pela exclusão da maioria
das populações da possibilidade de acesso à terapia antirretroviral, é uma realidade
sombria na maioria dos países que integram a CPLP, à exceção de Portugal e do Brasil,
como se pode ver mais adiante.
Cabe ressaltar, nesse contexto, a diversidade das epidemias e subepidemias no
conjunto desses países. Ilustra bem esse quadro a grande variação entre as diferentes
prevalências, chamando a atenção o contraste entre a baixíssima prevalência estimada
para o Timor Leste, epidemias generalizadas como a de Moçambique e epidemias
concentradas, como a do Brasil, nos grupos mais vulneráveis da população.
Embora na maioria desses países a qualidade da informação epidemiológica ainda
seja precária, caracterizada pela subnotificação, os dados epidemiológicos disponíveis
nos permitem ter uma visão, ainda que limitada, da extensão e gravidade desse
quadro.
1. PREVALÊNCIA ESTIMADA DO HIV/AIDS NA POPULAÇÃO DE 15 A 49 ANOS
Moçambique – 16,2%
Guiné-Bissau - 7,3%
Angola - 2,5%
São Tomé e Príncipe – 1%
Cabo Verde – 0,5 a 1,5%
Brasil - 0,6 %
Timor Leste – 0,2 a 0,5%
Portugal – 0,4%
2. NOVOS CASOS DE HIV/ AIDS POR ANO
Moçambique - 100.000 ou mais
Angola, Brasil - 10.000 a < 50.000
130
Guiné-Bissau - 1.000 a < 10.000
Portugal, Timor-Leste - <1.000
Cabo Verde, São Tomé e Príncipe - dados não disponíveis
3. I NCIDÊNCIA DO HIV/AIDS
Moçambique - 1,00% a < 2,00%
Angola - 0,2% a < 0,3%
Guiné-Bissau - 0,10% a < 0,20%
Brazil, Portugal, Timor Leste - < 0,10%
Cabo Verde, São Tomé e Príncipe - dados não disponíveis
Fontes: Para o Brasil, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde (2007). Para os demais países,
Organização Mundial da Saúde/UNAIDS (2007) e Programas Nacionais de Aids, em UNAIDS/CPLP (2008).
CONDIÇÕES DE ACESSO UNIVERSAL AO TRATAMENTO ARV
Em 2006, os Estados-Membros da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre
HIV/Aids (incluindo-se aqui os países-membros da CPLP) ratificaram o entendimento
comum sobre o acesso universal. Este foi definido, em uma perspectiva multissetorial,
como um esforço integrado no sentido de oferecer a toda a população, particularmente
os grupos populacionais mais vulneráveis, as condições de acesso à informação de
qualidade e cientificamente embasada e aos insumos de prevenção, em especial o
preservativo; de acesso a aconselhamento e testagem; de acesso ao tratamento
antirretroviral e de enfermidades oportunistas, além dos cuidados essenciais às pessoas
vivendo com HIV/aids.
Contrastando com esse entendimento, os dados epidemiológicos acima
apresentados apontam para uma situação dramática, agravada pelas condições de
exclusão social e extrema pobreza na maioria dos países em desenvolvimento que
integram a CPLP. Eles evidenciam, à exceção do Brasil – onde o acesso das pessoas com
indicação para o tratamento ARV (cerca de 30% das pessoas vivendo com o HIV/aids) é
universal e gratuito – a exclusão, nesses países, da maioria da população vivendo com
HIV/aids da possibilidade de acesso aos medicamentos ARV.
Verificamos, na maioria dos países da CPLP, a inexistência de sistemas públicos
de saúde, como o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, que possam assegurar a
distribuição universal e gratuita dos ARV. Essa lacuna acaba obrigando os portadores do
HIV/aids a dependerem de doações esporádicas de organizações internacionais e, em
situações excepcionais, da compra privada individual (“out of pocket”) de medicamentos
em farmácias.
131
Essa dependência, limitando e mesmo impedindo o acesso das populações aos
medicamentos ARV, leva ao rápido agravamento da morbi-mortalidade pelo HIV/aids,
com profundas implicações sociais, econômicas e culturais.
Como o cidadão comum desses países não tem recursos para comprar
medicamentos ARV do setor privado, esse quadro acabou levando à excessiva
dependência externa de doadores internacionais, como, entre outros, o Plano de
Emergência do Presidente dos E.U.A. para o Alívio da Aids (PEPFAR).
Essa situação de dependência resultou em diversos impasses, a exemplo do boicote
pelos E.U.A. à compra, com fundos doados pelo referido Plano, de ARV genéricos não
aprovados pelo governo americano, limitando a possibilidade de aquisição, pelos países
africanos, dos medicamentos mais baratos disponíveis.
Destacam-se, ainda, problemas como a dificuldade de retenção dos pacientes
nos programas de tratamento, o elevado número de pacientes que desconhecem sua
condição sorológica ou que são diagnosticados muito tarde e morrem nos primeiros
seis meses de tratamento.
Esse quadro é particularmente agravado pela coinfecção com a tuberculose, que
constitui uma das principais causas de morte de pessoas vivendo com HIV/aids no
mundo e a primeira causa de morte entre os portadores do HIV que vivem na África.
É necessário reconhecer que o ano de 2007 marcou, inegavelmente, uma etapa
importante na história mundial da pandemia do HIV/aids e do acesso ao tratamento
ARV. Nesse ano finalmente atingiu-se, com dois anos de atraso, a meta da “Iniciativa 3
por 5” de se chegar, em 2005, a cerca de 3 milhões de pessoas HIV-positivas em países em
desenvolvimento recebendo a terapia antirretroviral, o que elevou significativamente
a cobertura do tratamento (WHO; UNAIDS; UNICEF, 2008). Com efeito, essa estratégia
possibilitou que muitas pessoas até então limitadas pela doença e vivendo em condições
de pobreza passassem a ter, com a ampliação do acesso ao tratamento antirretroviral, a
possibilidade de retornar à atividade econômica e à vida social.
Esse aumento da cobertura tem sido atribuído à ampliação de iniciativas
internacionais diversas e também ao esforço de alguns países em desenvolvimento no
sentido de assegurarem a maior disponibilidade de medicamentos, pela redução de
preços, o aumento da testagem e do diagnóstico – estimulando a demanda –, além da
ampliação, simplificação e descentralização dos serviços e dos sistemas de dispensação
dos medicamentos.
No entanto, é importante destacar que, apesar desse esforço internacional, essa
meta da Iniciativa 3 por 5 atingiu apenas 31% do número estimado de 9,7 milhões de
pessoas nos países em desenvolvimento que necessitavam da terapia antirretroviral no
final de 2007. Isso significa que cerca 74% das pessoas que necessitam do tratamento
nesses países ainda estão distantes da possibilidade de acesso a medicamentos
antirretrovirais que salvam vidas.
132
A gravidade desse quadro impõe a necessidade de ampliação do esforço
colaborativo da comunidade internacional, em particular da CPLP, envolvendo os
governos, o meio científico e as organizações da sociedade civil dessa comunidade,
no sentido de tentar reverter a presente situação, o que exige um amplo conjunto de
ações e de políticas mais flexíveis de propriedade intelectual (PI) dos medicamentos
antirretrovirais e de outros insumos em saúde, propiciando a diminuição dos preços e
facilitando o acesso de populações hoje excluídas do tratamento.
A POLÍTICA BRASILEIRA DE ACESSO UNIVERSAL E GRATUITO AOS ARV
No Brasil, o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde
assegura, desde 1996, apoiado pela legislação em vigor, o acesso universal e gratuito ao
tratamento antirretroviral. Em apenas seis anos, de 1996 a 2002, essa política resultou
em um dramático declínio de 70% na mortalidade e 80% na morbidade, além de uma
diminuição de 70% nas internações hospitalares e uma economia de U$ 2,2 bilhões
no gasto público. No entanto, contrastando com esses resultados notáveis e muito
positivos, a sustentabilidade dessa política de acesso universal permanece como uma
questão crucial para o país.
Apesar de importantes esforços na última década em direção ao desenvolvimento
de medicamentos genéricos e negociações com empresas farmacêuticas multinacionais,
os preços dos medicamentos ARV persistiram muito altos, particularmente para a
segunda e terceira gerações de medicamentos. Por outro lado, como consequência
de pressões internacionais e políticas tecnológicas e industriais locais pouco efetivas, o
desenvolvimento e a produção local desses medicamentos por laboratórios públicos e
empresas privadas nacionais permaneceram em níveis baixos.
Na última década, a perspectiva de poder produzir localmente alguns dos
medicamentos ARV de primeira geração e de importar princípios ativos da China e da
Índia possibilitou ao Brasil negociar a redução de preços com as empresas farmacêuticas
multinacionais. Ademais, a introdução de medicamentos genéricos no mercado
brasileiro foi vista como uma estratégia para superar o problema dos altos preços do
tratamento antirretroviral no país (ORSI et al., 2003). A diminuição do poder de compra
governamental dos ARV, pelo rápido aumento nos preços, pelo declínio na produção
local por empresas privadas nacionais e a tendência global no sentido de uma escassez
de princípios ativos, resultante do rápido crescimento da demanda e estabilização do
número de fornecedores, tornou evidente, no final de 2004, que a licença compulsória
de alguns medicamentos ARV era urgente e não podia mais ser adiada. Os casos de
países desenvolvidos, como os E.U.A. e o Canadá, nos quais a licença compulsória para
medicamentos já havia sido usada com relativa frequência, forneciam o fundamento
histórico para a adoção dessa medida. Portanto, em 2005, depois de uma decisão
133
política em favor da licença compulsória pelo Presidente do Brasil, um instrumento legal
(Portaria) foi preparado pelo então Programa Nacional de DST e Aids, do Ministério da
Saúde, para a licença compulsória de quatro medicamentos ARV: efavirenz (Merck, Sharp
& Dome), nelfinavir (Roche), lopinavir/ritonavir (Abbott) e tenofovir (Gilead Sciences), os
quais respondiam por cerca de 70% do orçamento do Ministério da Saúde para a terapia
ARV (destinado a um total de 15 medicamentos ARV).
No entanto, o Ministro da Saúde à época, que estava até então comprometido
com a decisão do Presidente, desistiu no último minuto, de forma surpreendente, de
assinar a licença compulsória desses quatro medicamentos. Vários argumentos foram
trazidos à cena política para justificar a sua decisão, incluindo a alegação de falta de
capacidade de produção pelas empresas privadas nacionais (contrariando avaliações
anteriores do próprio Ministério da Saúde, feitas pelo então Programa Nacional de DST
e Aids e posteriormente apoiadas por avaliações do PNUD, da REBRIP e da Fundação
Clinton, confirmando a existência de capacidade nacional de produção).
Diante de todos esses obstáculos e resistências, somente em maio de 2007 o
novo Ministro da Saúde finalmente conseguiu emitir a licença compulsória de um
medicamento (o efavirenz, da Merck), após mais de uma década de negociações e
ameaças de competição de preços com a produção local de genéricos. Essa decisão
ocasionou uma drástica redução de preço e resultará, como se verá mais adiante, em
uma economia expressiva para o país.
Esse longo processo político indica como pode ser difícil a utilização da flexibilidade
do TRIPS por países em desenvolvimento.
CONDIÇÕES DE ACESSO NOS DEMAIS PAÍSES DA CPLP
Como se verá a seguir, na maioria dos países da CPLP as condições de acesso
sustentável ao tratamento ARV são bastante precárias, à exceção de Portugal e Brasil,
como mostram dados de fontes diversas: para Portugal, WHO, UNAIDS, UNICEF (2008),
para o Brasil, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde (2007).
Para os demais países, Organização Mundial da Saúde/UNAIDS (2007) e Programas
Nacionais de Aids, em UNAIDS/CPLP (2008).
PORTUGAL
Em Portugal, como no Brasil, toda a população tem acesso aos serviços prestados
pelo Serviço Nacional de Saúde. Com uma população estimada em 10,5 milhões de
habitantes, o país possui uma elevada expectativa de vida (75 anos para homens e 82
para mulheres). À semelhança do Brasil, a epidemia em Portugal é concentrada nos
grupos mais vulneráveis, no caso, os usuários de drogas injetáveis, homens que fazem
134
sexo com homens e a população confinada. Possui um total de 34.000 pessoas vivendo
com HIV/aids nos diferentes estágios da doença, dos quais 14.195 casos de aids. Existem
18.679 pessoas em tratamento antirretroviral.
M OÇAMBIQUE
Em Moçambique, cerca de 78% da população, que é de cerca de 20 milhões de
habitantes, vivem abaixo da linha de pobreza. É uma população muito jovem, com
metade de seus habitantes menores de 18 anos. O acesso a serviços de saúde é muito
limitado. Aproximadamente 1,6 milhões de pessoas estão infectadas pelo HIV, com cerca
de 160 mil óbitos anuais. A prevalência estimada do HIV é altíssima, da ordem de 16,2%
na população de 15 a 49 anos (2007). Apesar dos esforços governamentais no sentido
da ampliação do tratamento, mais de 80% das pessoas que vivem com HIV/aids não
têm acesso aos medicamentos ARV. Cerca de 260.000 pessoas necessitam atualmente
de medicamentos ARV no país. Estima-se que, com o agravamento desse quadro, no
ano de 2010 o número de pessoas infectadas pelo vírus poderá chegar a 1,9 milhões de
pessoas, com grande impacto no desenvolvimento social e econômico do país.
ANGOLA
Em Angola, cerca de 42% da população vivem abaixo da linha de pobreza; a
expectativa de vida é de 38 a 42 anos e a rede de saúde e educação é insuficiente para
satisfazer as necessidades básicas da população, apesar dos esforços governamentais
para aumento da cobertura e descentralização. A prevalência do HIV estimada na
população de 15 a 49 anos é elevada (2,1%), embora, comparativamente, mais baixa que
a dos demais países da África Austral. Com uma população de 16 milhões de habitantes,
o país possui cerca de 183.000 pessoas vivendo com HIV/aids e cerca de 51.000 órfãos
em decorrência da aids. Segundo o Programa Nacional de SIDA em Angola, apenas 6,5%
das pessoas vivendo com HIV/aids têm acesso ao tratamento ARV e apenas 20% das
pessoas com infecção avançada estão recebendo o tratamento.
G UINÉ BISSAU
Em Guiné Bissau, cerca de 70% da população vivem abaixo da linha de pobreza,
com acesso muito restrito a serviços de saúde e educação. A prevalência do HIV é muito
elevada, estimada em 7,3%. O país está em uma situação de epidemia generalizada e
enfrenta o risco de expansão massiva da epidemia. Em uma população de 1,6 milhões
de habitantes, há um número estimado de 16.300 pessoas vivendo com HIV/aids, e
somente 28% das pessoas com infecção avançada estão recebendo o tratamento ARV.
135
CABO VERDE
Cabo Verde é um país com cerca de 60% de sua população vivendo abaixo da
linha de pobreza. Embora possua indicadores de saúde mais favoráveis que a maioria
dos países da CPLP (expectativa de vida de 72 anos, melhores condições de acesso
a serviços de saúde em uma rede descentralizada), possui ainda, apesar dos esforços
governamentais, uma prevalência estimada do HIV entre 0,5 e 1,5%. Com uma
população de cerca de 520 mil habitantes, o país tem cerca de 2.000 pessoas vivendo
com HIV/aids, sendo o modo de transmissão predominantemente heterossexual (80%),
marcado por crescente feminização da epidemia. O acesso à terapia antirretroviral ainda
é relativamente restrito, pois apenas 28% das pessoas com infecção avançada recebem
o tratamento ARV.
TIMOR LESTE
O Timor Leste é um dos países de população mais jovem do mundo. Entre seus
habitantes, 41% vivem abaixo da linha de pobreza. Com uma população estimada
de 1 milhão de pessoas, são muito restritas as condições de acesso aos serviços de
saúde. A taxa de prevalência estimada é relativamente baixa, situando-se na faixa de
0,2 a 0,5%. Contudo, as condições muito precárias de vigilância da epidemia permitem
supor que o número de pessoas infectadas é muito maior que o número de pessoas
HIV positivas registradas. Não existem dados oficiais disponíveis sobre o número de
pessoas em infecção avançada em tratamento ARV. Os medicamentos antirretrovirais
foram providos pelo governo brasileiro mediante acordo de cooperação e os dados
disponíveis informam que existem apenas 20 pessoas vivendo com HIV/aids em
tratamento antirretroviral.
S ÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
O arquipélago de São Tomé e Príncipe possui cerca de 50% de sua população
abaixo da linha de pobreza. A expectativa de vida, embora baixa, em torno de 60 anos, é
considerada elevada quando comparada com a de outros países da África Subsaariana.
O acesso a serviços de saúde também é precário, porém melhor que o dos demais países
da região. Com cerca de 155 mil habitantes, o país possui uma taxa de prevalência de
1%, com uma estabilização dos óbitos por aids. O modo de transmissão predominante
do HIV é heterossexual (89,5%), com feminização da epidemia. Cerca de 300 pacientes
necessitam atualmente de tratamento ARV no país; destes, porém, apenas cerca de 27%
têm acesso aos medicamentos.
136
D EPENDÊNCIA EXTERNA NO ENFRENTAMENTO DA EPIDEMIA
À exceção de Brasil e Portugal, os demais países da CPLP estão em uma situação de
alta dependência externa no enfrentamento da epidemia. Em que pese os importantes
esforços de iniciativas internacionais como os do Fundo Global de Luta contra a Aids,
do Banco Mundial (Programa Multinacional contra a Aids e Programa de Aceleração do
Tratamento), do Governo americano (PEPFAR), da Fundação Clinton e outras agências bi
e multilaterais, a inexistência, nesses países, de sistemas de saúde estruturados capazes
de assegurar a sustentabilidade a longo prazo do tratamento e a rápida elevação dos
preços de medicamentos protegidos por patentes, agravada pelo acordo TRIPS, torna
esse quadro bastante sombrio.
PROPRIEDADE INTELECTUAL : PATENTES E PREÇOS DOS ARV
A crítica situação epidemiológica aqui apontada e as atuais barreiras ao acesso, nos
países que integram a CPLP, a insumos essenciais para o enfrentamento da pandemia do
HIV/aids decorrem de um complexo conjunto de fatores econômicos, sociais, culturais e
de saúde pública dos países em questão, que merecem análise em profundidade e que
certamente não se limitam às questões de PI.
No entanto, sem dúvida, a rigidez do atual regime internacional de PI no âmbito
do Acordo TRIPS e dos acordos bilaterais “TRIPS Plus” entre os Estados Unidos, a União
Europeia e países em desenvolvimento, incentivando regras ainda mais rígidas de PI
no âmbito desses acordos, contribui de forma significativa para o agravamento desse
quadro. Além disso, essa harmonização acrítica acaba criando uma camisa de força legal
e impedindo a necessária adequação das regras de PI à peculiaridade das condições
sociais, econômicas e de saúde pública desses países.
Ao estimular monopólios temporários em áreas hiperendêmicas, como nos países
do sul da África, esse regime acaba contribuindo para uma elevação expressiva dos
preços dos medicamentos ARV, excluindo amplas parcelas da população portadora do
HIV/aids da possibilidade de acesso ao tratamento.
Como consequência, medicamentos mais recentes e eficazes de segunda linha, tais
como os recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em suas diretrizes
de tratamento, acabam ficando, pela rigidez da proteção patentária e pelas restrições à
produção de genéricos e a competição de preços, excluídos dos serviços de saúde por
serem muito mais caros que os remédios antigos, de primeira linha.
Se a barreira da propriedade intelectual perdurar e a produção de medicamentos
antirretrovirais no mundo continuar concentrada em poucas empresas farmacêuticas,
inviabilizando a produção local de genéricos nos países em desenvolvimento, a situação
137
da pandemia do HIV/aids nesses países, em particular nos países da CPLP, tende a se
agravar consideravelmente.
Essa situação impõe, como se discutirá a seguir, a necessidade de ampla mobilização
política, nos países em questão, em torno da necessidade de revisão dos atuais acordos
internacionais relativos à propriedade intelectual, buscando-se a criação de novos
arcabouços legais e institucionais que assegurem o respeito às condições específicas
dos países cuja população está sendo dizimada pela pandemia.
L ICENÇA COMPULSÓRIA: A BUSCA DE ESTRATÉGIAS ALTERNATIVAS DE INCENTIVO À
INOVAÇÃO E DE COMPENSAÇÃO
Um importante argumento exposto pelos defensores das atuais regras
comerciais internacionais e sua aplicação a insumos de primeira necessidade, como os
medicamentos antirretrovirais, é a existência do mecanismo de licença compulsória,
uma “flexibilidade” do TRIPS, que pode ser aplicada a qualquer momento pelos países
em desenvolvimento, em caso de situações de interesse público ou emergência.
Com efeito, algumas experiências de licenças compulsórias, cujos resultados ainda
estão sendo analisados, ocorreram recentemente em países da CPLP, como Moçambique
e Brasil.
Em abril de 2004, o Ministério da Indústria e Comércio de Moçambique emitiu a
licença compulsória para as patentes da lamivudina, da estavudina e da nevirapina. A
licença foi concedida à Pharco Moçambique Ltda, uma empresa local, para a manufatura
desses antirretrovirais como uma dose fixa combinada, prevendo-se royalties de até 2%
das vendas.
No Brasil, apesar de diversas ameaças de licença compulsória de medicamentos ARV
na última década por diferentes Ministros da Saúde, apenas recentemente, em maio de
2007, essa provisão legal foi aplicada com sucesso para um medicamento, o efavirenz, da
empresa Merck, cuja produção está sendo iniciada por Far-Manguinhos, uma instituição
pública, em parceria com a iniciativa privada. Segundo estimativas governamentais,
essa versão genérica do medicamento poderá permitir ao país economizar cerca de
US$ 240 milhões até 2012, quando a patente da Merck terá expirado.
No entanto, em que pesem alguns avanços nessa área, a experiência de países
em desenvolvimento, como o Brasil e Moçambique, mostra que, embora esta seja de
fato uma importante flexibilidade, tendo sido buscada em diversas oportunidades
por esses países, sua aplicação é bastante difícil. Na verdade, ela exige dos governos
locais uma complexa negociação política interna e externa, além do enfrentamento
de pressões comerciais e ameaças de retaliação por parte das empresas dos países
detentores das patentes.
138
A constatação dessa dificuldade de aplicação do mecanismo de licença
compulsória vem levando os países em desenvolvimento a uma crescente mobilização
em torno da necessidade urgente de revisão do regime internacional de proteção da
propriedade intelectual de medicamentos essenciais, como os medicamentos ARV.
Essa revisão do regime de PI se orientaria para a definição de novos mecanismos, além
de licenças compulsórias e voluntárias, que permitissem a adequada compensação
de investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PDI) feitos por empresas
privadas e públicas na área farmacêutica.
Tais empresas poderiam, além disso, se beneficiar de incentivos alternativos,
tais como incentivos fiscais e garantia de compra tecnológica antecipada (um bom
exemplo é a Lei de Inovação brasileira, que permite a compra tecnológica de inovações
isenta da exigência dos tradicionais processos licitatórios). Outros incentivos são os
procedimentos de aprovação regulatória de insumos essenciais ao enfrentamento de
pandemias (rápidos, mais ágeis, em sistema “fast-track”).
Fundos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) têm sido propostos nos casos de
licença compulsória, de forma a compensar os investimentos realizados em inovação.
Tais fundos preveem um pagamento direto ao detentor da patente, sendo uma
percentagem do próprio Fundo de P&D e uma participação do detentor da patente no
Fundo (LOVE, 2005a; 2006). No Brasil, esse Fundo foi incorporado ao decreto anterior
proposto (mas não assinado pelo então Ministro da Saúde) para a licença compulsória
de medicamentos antirretrovirais, em 2005.
Consórcios (pools) de patentes para licenças (LOVE, 2005b) podem ser criados
como entidades não lucrativas, constituindo uma estratégia colaborativa para a gestão
coletiva dos direitos de propriedade intelectual. Um bom exemplo é a recente proposta
de um novo “patent pool” da UNITAID, um fundo multilateral para o financiamento
sustentável de medicamentos ARV. Segundo a proposta em discussão, qualquer
novo medicamento que surja sob o “pool” seria vendido de forma não lucrativa e
os proprietários originais das patentes receberiam um “royalty” determinado pelos
administradores do “patent pool” e apoiado pelo financiamento da UNITAID, prevendose uma entidade legal separada, constituída como uma Fundação, para administrar o
“pool”.
Finalmente, também se concebeu um novo sistema de remuneração para incentivo
à inovação, o Medical Innovation Prize Fund, segundo o qual o mercado para produtos
é separado do mercado para inovações, possibilitando que os produtos possam ser
disponibilizados ao público a preços genéricos, enquanto os inovadores se beneficiam
de um sistema separado (LOVE, 2005).
De modo a mudar radicalmente a forma como os governos apoiam a P&D na área
médica, a proposta de um novo Tratado foi assinada por 162 cientistas, especialistas
em saúde pública, professores de direito, economistas, autoridades governamentais,
139
membros do Congresso e organizações da sociedade civil, apontando para o fato de que
o atual arcabouço legal internacional para apoio à P&D na área médica possui distorções
significativas e impõe elevados custos sociais. Os signatários da carta, apresentada em
fevereiro de 2005 à OMS, na Assembleia Mundial da Saúde e à CIPIH (WHO Commission
on IPR, Innovation and Health) apelavam para a necessidade de debates sobre um
arcabouço legal global em P&D na área médica, para atender de forma mais adequada
o objetivo de prover o “acesso a medicamentos para todos”.
A
PAR TICIPAÇÃO DA
CPLP
EM UMA AGENDA PARA O DESENVOLVIMENTO
Como as estratégias alternativas aqui apresentadas só serão viáveis no longo prazo
se forem incorporadas nos novos acordos comerciais internacionais, é fundamental a
mobilização dos países em desenvolvimento, e em particular os da CPLP, em torno de
uma agenda para o desenvolvimento.
Com essa perspectiva, durante a 31ª Sessão da Organização Mundial de
Propriedade Intelectual - OMPI (WIPO, sigla em inglês), realizada em Genebra, em 2004,
as delegações de diversos países em desenvolvimento, inclusive do Brasil, apresentaram
em conjunto uma proposta denominada “Friends of Development Group”. Em 2007, os
países-membros da WIPO finalmente concordaram com o estabelecimento de uma
agenda para o desenvolvimento a ser submetida à Assembleia da WIPO naquele ano.
Eles também concordaram com um novo Comitê da WIPO em desenvolvimento e
propriedade intelectual.
Na agenda em HIV/aids, diversos países em desenvolvimento, com a participação
do Brasil, criaram durante a Conferência Internacional de aids em 2004 em Bangcoc,
uma rede de cooperação em insumos estratégicos (medicamentos ARV, vacinas,
microbicidas, kits para monitoramento e diagnóstico e preservativos), firmando um
compromisso com relação ao aprimoramento do arcabouço ético, regulatório e de
propriedade intelectual.
A ampliação da participação dos países da CPLP nessas diversas iniciativas de
fortalecimento da cooperação Sul-Sul em torno de questões de prevenção, acesso e
propriedade intelectual de insumos estratégicos em HIV/aids certamente contribuirá
para a mobilização internacional necessária ao enfrentamento da pandemia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Examinou-se aqui em que medida os países que integram a CPLP são afetados pela
pandemia do HIV/aids e de que forma a atual legislação internacional de propriedade
intelectual e os acordos bilaterais de livre comércio vêm contribuindo para dificultar a
competição por genéricos e, em consequência, afetando os preços dos medicamentos
140
antirretrovirais. Tal situação vem tornando esses países cada vez mais dependentes da
excepcionalidade do mecanismo de licença compulsória, que, pelas pressões políticas
e comerciais, é bastante difícil de ser efetivamente implementado.
Constatou-se que, embora os atuais obstáculos ao acesso a medicamentos ARV
devam ser examinados em uma perspectiva mais ampla, considerando o complexo
conjunto de questões econômicas, sociais, culturais e de saúde pública envolvidas, o
aprimoramento do atual regime internacional de propriedade intelectual será decisivo
para impulsionar a atividade científica e tecnológica na área farmacêutica, assegurando
a proteção dos direitos humanos, o desenvolvimento social e a melhoria das condições
de vida e de saúde das populações afetadas pela pandemia.
As informações aqui apresentadas chamam a atenção para a necessidade
urgente de revisão da legislação e dos procedimentos internacionais de propriedade
intelectual, tornando-os menos restritivos e mais flexíveis, de modo a levar em conta
as peculiaridades econômicas dos países em desenvolvimento, assegurando-lhes a
necessária autonomia para fortalecimento de sua capacidade nacional de pesquisa,
desenvolvimento e inovação, além da possibilidade de optarem pelas respostas mais
adequadas às suas necessidades locais.
Em síntese, a possibilidade de reversão do quadro epidemiológico e de acesso aos
medicamentos ARV aqui apresentada para os países da CPLP exigiria uma estratégia
integrada, em uma perspectiva macroestrutural, contemplando:
1. Novas estratégias de prevenção, com ações no nível dos comportamentos,
atitudes e práticas sexuais e do consumo de drogas, estratégias de prevenção positiva
e de intervenção comunitária.
2. Apoio à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico em DST/
HIV/aids, gerando novos conhecimentos, fortalecendo a capacidade de pesquisa,
desenvolvimento e inovação de insumos estratégicos (medicamentos, kits para
diagnóstico e monitoramento, preservativos e apoio ao desenvolvimento de vacinas
anti-HIV) e subsidiando o processo decisório dos governos no enfrentamento da
pandemia.
3. Busca de novos paradigmas para a propriedade intelectual nos países em
desenvolvimento, em particular na CPLP, estimulando a produção local de medicamentos
antirretrovirais, reduzindo preços e ampliando o acesso das pessoas vivendo com
HIV/aids ao tratamento ARV. Aqui, é necessário lembrar que sistemas muito rígidos
de propriedade intelectual, ao invés de estimular a inovação, acabam tendo o efeito
inverso de a restringir, o que significa um obstáculo ao desenvolvimento econômico e
social (Stiglitz, 2004).
141
4. Fortalecimento das estratégias de cooperação internacional entre países em
desenvolvimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação em HIV/aids, bem como
dos aspectos éticos e regulatórios relacionados.
A cooperação internacional em ciência, tecnologia e inovação entre os países no
âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, destacando a propriedade
intelectual e as demais questões éticas e regulatórias envolvidas, será crucial para
viabilizar essa abordagem macroestrutural. Ela possibilitará a troca de experiências,
a transferência de tecnologias e uma reflexão conjunta entre os diferentes atores
envolvidos (governos, sociedade civil, doadores multilaterais e bilaterais e setor privado)
sobre os possíveis cenários futuros para o desenvolvimento de novas intervenções,
insumos e produtos no enfrentarmento da pandemia do HIV/aids, fundamentando a
busca de soluções criativas e inovadoras nesse campo.
142
R EFERÊNCIAS
CORREA, C.M. Implications of the Doha Declaration on the TRIPS Agreement
and Public Health. Geneva: WHO, 2002. (Health economics and drugs series, n. 12).
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WHO; UNAIDS; UNICEF. Towards universal access: scaling up priority HIV/AIDS
interventions in the health sector. Geneva, 2008.
143
CAPÍTULO
A S C IÊNCIAS
DE
S AÚDE
EM
6
M OÇAMBIQUE :
O PAPEL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL 120
Maria Teresa Araújo 121
120
Comunicação apresentada no I Seminário Internacional: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesa, Rio de
Janeiro, de 30 de junho a 2 de julho de 2008.
121
Médica Ginecologista-Obstetra, atual Diretora da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Lúrio.
Em Moçambique, durante o período colonial, existia legislação que regia a questão
da propriedade intelectual como um todo, não havendo, no entanto, procedimentos
para a sua aplicação. Após a independência nacional, em 1975, o assunto não foi
esquecido, mas, em face dos grandes desafios que se colocavam ao jovem país, essa
não era a grande prioridade.
Posteriormente, o Ministério da Ciência e Tecnologia produziu um documento
preliminar sobre a “Estratégia da Propriedade Intelectual”. Nesse documento, os direitos
de autor estão plasmados com pormenor, mas, no que respeita à área da saúde, apenas
se afloram assuntos relacionados com a medicina tradicional e a pesquisa relativa a
alguns produtos da ervanária (para a terapêutica ou cosmética), e pouco ou quase nada
sobre outros aspectos. Mas mais uma vez, a grande dificuldade está em como aplicar
qualquer que seja a legislação nesse sentido e em controlar aspectos relacionados com
a fuga de ideias, informação e outros aspectos, sem que para tal se criem e aprovem
os instrumentos reguladores e se definam, de forma clara, os conceitos e os direitos de
todos os atores. Muitas vezes tive acesso a publicações em que o autor mencionado
havia sido mais financiador e/ou promotor e não o executor, tendo-se limitado a alterar
algumas palavras por sinônimos e a corrigir algumas vírgulas. Tive a oportunidade
de conhecer, diretamente ou em reuniões internacionais, vários desses executores
espoliados do seu trabalho intelectual, que deveria ser sua propriedade, mas que não
tinham instrumentos que lhes permitissem defender os seus direitos.
A minha experiência pessoal, tanto em Moçambique – em vários níveis do Serviço
Nacional de Saúde e atualmente, na área da Educação, como diretora da Faculdade
de Ciências de Saúde da Universidade Lúrio – quanto ao longo dos 18 anos na OMS,
onde tive o privilégio de trabalhar, permite-me avançar com as reflexões que a seguir
apresento:
1. Intencionalmente ou não, a cooperação com os países beneficia bastante o
propositor da cooperação, individualmente:
a. muitos dos que passaram por Moçambique e outros países ascenderam a
postos importantes em organismos internacionais ou nos seus países de origem. A
razão desse fato pode encontrar-se em:
i. terem melhorado o seu currículo graças ao trabalho feito com a colaboração das
equipes em que foram inseridos.
ii. terem publicado trabalhos executados com quadros nacionais, os quais não são
sequer mencionados.
iii. terem “copiado” programas ou normas de Moçambique, aplicando-os em outras
cooperações, sem mencionarem a origem.
146
Os fatos acima descritos são reprováveis em qualquer parte do mundo. Reprováveis
porque quem os pratica sequer menciona, mesmo que a título de agradecimento, o
nome das pessoas ou dos programas que realizaram o trabalho ou nele colaboraram.
Reprováveis porque usam conhecimentos e mão de obra de pessoas a quem faltam
meios e informação jurídica que lhes permitam fazer valer os seus direitos.
2. No nível político, a cooperação “convence” os decisores políticos que, por sua
vez, “obrigam” os executores técnicos a seguirem linhas que não as mais apropriadas ou
as mais ajustadas à realidade de Moçambique ou do país em questão. Isso se manifesta
nomeadamente na transposição, linear e direta, de métodos ou formas que deram certo
na realidade concreta do país ofertante da cooperação. Tal se observa, sobretudo, no
reforço às instituições.
3. A pressão econômica é também um fator que leva à perda de propriedade
intelectual, pois embora as ideias e protocolos tenham um determinado “nascimento”,
acabam por pertencer a quem as financia e não a quem as elaborou e executou. Esse
fator manifesta-se mais em projetos e programas de pesquisa.
4. Outro aspecto, não menos relevante, está relacionado com o fato de os superiores
hierárquicos darem aos seus subordinados instruções de trabalho e de pesquisa muitas
vezes irrelevantes para as funções ou responsabilidades que estes desempenham,
e depois as publicarem em seu nome pessoal sem para isso nada terem feito e, mais
uma vez, sem mencionarem os executores, com o agravante de os desviarem das suas
funções e obrigações principais.
Tudo isso resulta em uma situação extremamente lesiva para os pesquisadores e
inovadores moçambicanos que, sem terem instrumentos legais a que possam recorrer,
são colocados em uma situação de desvantagem lesiva para os seus interesses e direitos
pessoais e para os interesses nacionais, e de abuso intelectual.
Essas condições são propícias para:
•
Oportunismos individuais de pessoas que se aproveitam do trabalho e ideias
alheias e ficam impunes;
•
Uso de mão de obra especializada para pesquisa e tratamento de dados, sem
que seja reconhecido o direito de autor;
•
Apropriação de ideias e inovações, individuais ou coletivas, ficando os seus
autores no anonimato total;
•
Apropriação de conceitos nacionais;
147
•
•
Imposição de ideias e de conceitos por meio do financiamento ou de
políticas;
Diminuição da autoestima e aumento do desinteresse dos quadros nacionais
por não verem reconhecido o seu esforço ou trabalho nem a sua capacidade
intelectual, o que leva à inibição mental e, muitas vezes, estimula a fuga de
cérebros para outros locais onde “pensam” que terão algum reconhecimento.
Tudo isso só será revertido mediante a aprovação de leis e respectivos regulamentos
de aplicação que forneçam os instrumentos indispensáveis para a proteção dos direitos
de propriedade intelectual.
148
III
P ROPRIEDADE I NTELECTUAL NA A GRICULTURA
E C ONHECIMENTOS TRADICIONAIS
CAPÍTULO
E
7
P ROPRIEDADE I NTECTUAL NA A GRICULTURA
C ONHECIMENTOS C ORRELATOS EM M OÇAMBIQUE
Jorge Ferrão122, Américo Uaciquete123 e Camilo Cuna124
122
Reitor da Univerisdade Lúrio (UNILÚRIO), Moçambique.
123
Professor de Biologia na Univerisdade Lúrio (UNILÚRIO), Moçambique, Doutorando na Universidade Witswatersrand,
Joanesburgo, África do Sul.
124
Professor de Ética e Bioética na Univerisdade Lúrio (UNILÚRIO), Moçambique, PhD na Universidade de Roma, Itália.
1. I NTRODUÇÃO
Se aceitarmos que propriedade significa um bem materialmente real, então a
propriedade intelectual poderá ser entendida como a posse de ambos, o bem/produto
ou capital e o conhecimento associado à aplicação do mesmo. Portanto, o saber aplicar
o recurso, produto ou capital é ato humano e consciente. Nesse contexto, a propriedade
se associa de forma indiferenciada ao recurso Homem.
Aqui, propomo-nos a analisar o atual estágio do discurso sobre a propriedade
intelectual, quer no nível global, quer, sobretudo, no contexto particular de Moçambique,
com destaque para o âmbito da agricultura.
2. PROPRIEDADE INTELECTUAL NO CONTEXTO GLOBAL
De acordo com Prado (2005), ao longo das últimas décadas tornou-se lugar comum
afirmar-se que estamos vivendo em uma sociedade de informação e que o capitalismo
contemporâneo estaria em uma nova fase, a chamada pós-grande indústria. Nessa fase,
por consequência, a principal fonte de valorização deixa de ser o tempo de trabalho,
passando a ocupar o seu lugar o desenvolvimento da ciência e da tecnologia.
A esse pressuposto Albagli (1998) designará como imperativo tecnológico, que
coloca a ciência e a tecnologia em um novo patamar, ou seja, as suas relações com as
estruturas de poder vigentes. Desse modo, ciência e tecnologia passam a constituir-se
em bens mercantis e bens estratégicos, ao mesmo tempo protegidos e restritamente
tornados disponíveis no mercado global, privatizados e comercializados pelos grandes
agentes econômicos.
A transformação em mercadoria das formas culturais e históricas da atividade
intelectual reveste-se de contornos de expropriação. Desse modo, a evolução que
acontece no mundo está extremamente distante do horizonte de países menos
desenvolvidos, cuja preocupação ainda é eliminar a fome e outras carências.
Ao refletirmos sobre a propriedade intelectual, julgamos imperioso questionar:
de que modo as esferas públicas locais e regionais, mediante os blocos regionais e
mesmo – convenhamos – a Organização Mundial do Comércio, por meio do TRIPS
(Trade Related Aspects of Intellectual Property), poderiam abandonar o foro tradicional
das discussões sobre propriedade intelectual para acomodar o interesse dos países
mais carenciados, porém detentores de uma potencial biodiversidade? Como esses
países poderiam defender a sua propriedade intelectual, sem que esta fique diluída na
propriedade industrial ou em outros domínios, no âmbito dos quais esses países não
teriam condições técnicas, científicas e práticas de se autodefenderem? E qual seria,
concretamente, o lugar da propriedade intelectual?
152
No nosso modo de entender, a importância dos sistemas de direito de propriedade
intelectual reside, essencialmente, na promoção da inovação por intermédio de leis
ou normas que encorajam o inovador a desvendar o seu conhecimento ao público e,
por conseguinte, estimulam o progresso científico e artístico. Assim, o recurso Homem
representa o aspecto mais preponderante em uma esfera global onde o conhecimento
desempenha, cada vez mais, um papel de progresso tecnológico, industrial e, em suma,
de desenvolvimento.
Na verdade, a propriedade intelectual recai, em última instância, sobre quem quer
que seja o responsável pela administração do recurso Homem, quer no espaço, quer no
tempo. Em muitos casos, os responsáveis são os Estados.
Nos moldes do desenvolvimento econômico moderno, a propriedade e, por
conseguinte, o poderio econômico dos Estados assenta no conhecimento. Os recursos
físicos ou materiais, como a terra, o mar, a flora e a fauna, representam apenas a matériaprima, cujo valor, na economia global, decresce cada vez mais. Novos recursos, tais como
a Internet, o capital humano qualificado e os produtos transformados, vão tomando a
essência do progresso econômico das pessoas, empresas, corporações, Estados e até de
regiões estratégicas.
O perfil do intelecto de um Estado, bem como a sua diversidade e organização,
mostram-se cada vez mais importantes quando, por exemplo, se nota que, no nível
do comércio global, a venda anual de bens culturais aumentou quatro vezes entre
1980 e 1998. Em muitos casos, esses bens representam o saber milenar dos povos,
amalgamado em danças, vestes, traços na madeira, na pedra e até em composições
de artefatos diversos como artigos de cestaria, sons musicais e instrumentos e, ainda,
em composições de expressão linguística própria. No nível internacional, são duas
as organizações com responsabilidade de implementar as leis internacionais de
propriedade intelectual: A Organização Mundial de Propriedade Intelectual – OMPI
(WIPO, sigla em inglês) e a Organização Mundial de Comércio – OMC (WTO, sigla em
inglês), das quais Moçambique é membro, mediante as Resoluções Nºs. 12/96 e 31/94.
3. PROPRIEDADE INTELECTUAL NA AGRICULTURA EM M OÇAMBIQUE
O reconhecimento dos direitos de propriedade intelectual, sem dúvida, galvaniza
a inovação e competitividade em todas as esferas da vida. Neste trabalho, porém,
pretendemos:
(1) Elucidar o cenário da valorização da propriedade intelectual em Moçambique,
na esfera da agricultura e aspectos a ela associados. Em outras palavras, analisaremos
como o inovador na agricultura moçambicana vende seu produto ou sistema
ao governo, em troca do monopólio da sua criatividade por um determinado
153
período, e, ademais, como o governo investe na promoção desse tipo de negócio,
assumindo-o como relevante para o desenvolvimento acelerado da sua economia.
Entenda-se agricultura no seu sentido lato, em que as plantas são combinadas com
animais em benefício da vida humana, tanto no campo como nas zonas urbanas;
(2) Analisar os nexos que se estabelecem entre a estratégia nacional de
propriedade intelectual e a sua implementação em face dos acordos internacionais,
particularmente os TRIPS, na atual conjuntura e condição socioeconômica
de Moçambique. De salientar que este trabalho, pela sua natureza, resulta
essencialmente do estudo sistemático de documentos e de alguma bibliografia
sobre o tema.
Até 2004, Moçambique aparecia registrado como participante de três acordos
internacionais relacionados com a propriedade intelectual, designadamente: 1) o
acordo de Madri sobre o registro internacional de marcas (Resolução Nº 20/97),
2) o acordo internacional sobre a classificação de bens e serviços para o registro de
marcas (Resolução Nº 35/99) e 3) a União de Paris (Resolução Nº 21/97). Esses acordos
obrigam os governos-membros a proteger o direito de propriedade intelectual nos
seus territórios. No contexto da agricultura, isso significa referir-se à emergência de
agropatentes protegidas por lei, tal como acontece nas indústrias gráfica e discográfica,
por exemplo.
Em Moçambique, o governo deu alguns passos significativos, convenhamos,
nessa perspectiva, mediante a criação de bases institucionais e legislativas: o Decreto
Nº 50/2003 cria e confere estatuto orgânico ao Instituto de Propriedade Industrial; o
Decreto Nº 4/2006 versa sobre o código de propriedade industrial; o Decreto Nº 19/99
regula o funcionamento de agentes oficiais de propriedade industrial; e a Resolução Nº
34/99 dispõe sobre a adesão de Moçambique à legislação regional sobre o direito de
propriedade intelectual (ARIPO).
No contexto da agricultura, existe o Regulamento Nº 184/2001, que estabelece
as normas para a produção, comercialização, controle de qualidade e certificação de
germoplasma. Contrariamente ao que acontece em alguns países da região, como
o Quênia, o Zimbábue e a Suazilândia, que já têm leis específicas sobre os direitos
do melhorador de plantas, o regulamento acima referido não assegura direitos de
propriedade para além do registro de autoria, no caso particular de variedades de
espécies vegetais cultivadas.
Ainda, a grande maioria dos intervenientes no processo desconhece não só a
importância da propriedade intelectual, como também a legislação existente, inclusive
os mecanismos à sua disposição para defender os seus interesses, fato que torna os
avanços acima mencionados inexpressivos ou pouco relevantes.
154
Há uma consciência dos acontecimentos internacionais que inclui organizações/
sistemas como a União Internacional para a proteção de novas variedades de plantas
(UPOV/1978). A aliança voluntária é limitada e, portanto, o instrumento não foi adotado
por muitos países africanos, à exceção do Quênia e da África do Sul, essencialmente
devido ao seu impacto sobre a livre e secular partilha de sementes pelos camponeses.
Em 2002, a Organização da Unidade Africana, publicou uma lei modelo para a proteção
dos direitos das comunidades locais, camponeses e melhoradores da África, no contexto
do acesso aos recursos biológicos. Em Moçambique, essa lei ainda é pouco conhecida.
É verdade que o direito de monopólio do conhecimento requer do governo o
desenvolvimento de sistemas de tipificação e catalogação de tecnologias baseadas
no conhecimento e essa missão cabe ao Instituto de Propriedade Industrial, criado
pelo Decreto Nº 50/2003. Além disso, o governo de Moçambique já mostrou certo
comprometimento na promoção do desenvolvimento por meio da inovação
tecnológica, criando o chamado Fundo Competitivo Nacional para a Investigação FNI (Decreto nº 12/2005). Todavia, falta um aspecto preponderante, que é a proteção
do direito de monopólio das criações resultantes por tempo determinado, sobretudo
na área da agricultura. Em consequência disso, as ideias, marcas e produtos nacionais
praticamente continuam a carecer de proteção e reconhecimento. Como agravante, as
plantas nacionais que concorrem para o tratamento de diversas doenças continuam a
ser exploradas até por estrangeiros, abusivamente, sem que as comunidades locais, que
transmitem o conhecimento sobre o seu uso, se beneficiem de qualquer incentivo.
É provavelmente importante levantar uma questão que afeta não apenas
Moçambique. Se o monopólio da criação tem sido justificado internacionalmente com
base nos investimentos realizados em prol dessa criação, como poderá ser justificado o
monopólio quando a inovação provém de capitais públicos?
A pesquisa privada em Moçambique é quase inexistente. Essa ideia é corroborada
por outros analistas, como é o caso da Fundação Joaquim Chissano, segundo a qual a
ciência e a tecnologia ainda são áreas de fraca divulgação no país. Mesmo o conhecimento
básico existente reside mais nos estabelecimentos acadêmicos e de pesquisa científica,
nos Ministérios e em diversas outras instituições, públicas e privadas.
Esse conhecimento se encontra pouco disponível para o grande público,
pouco contribuindo, portanto, para a solução dos problemas nacionais ligados ao
desenvolvimento. Semelhante déficit de divulgação do conhecimento e tecnologia
básicos deixa muitos produtores, sobretudo comunitários, completamente entregues
às práticas de produção rudimentares que pouco concorrem para a produção rentável
de bens e serviços. Os serviços de extensão que deveriam transmitir conhecimentos
científicos básicos, incluindo resultados da pesquisa científica e promover a utilização
de tecnologias apropriadas, são igualmente incipientes. Nesse cenário, parece coerente
a alegação de que o espírito de monopólio é o impeditivo básico da implementação
155
da legislação de propriedade intelectual, ou seja, o monopólio do direito milenar dos
povos e de recursos, quando o financiamento é público, em benefício de um indivíduo
singular ou coletivo. Aliás, a cláusula UPOV91, que proíbe a partilha de sementes entre
produtores no campo, é o exemplo típico disso.
Nas sociedades em que a maioria das pessoas não possui escolarização suficiente
para perceber o benefício das leis futuristas, qualquer norma que altere o seu modus
vivendi é contra a ordem natural ou tradicional da sua existência, pelo que a rejeição
daquela é a mais óbvia opção.
Em resumo, a praticabilidade do direito de propriedade intelectual na agricultura
em Moçambique poderá estar condicionada a três fatores, nomeadamente: (1) a fonte do
financiamento da inovação; (2) a competência do estabelecimento dos limites entre uma
criação e outra; e (3) a educação massiva da sociedade sobre as vantagens da substituição
da lei tradicional da livre troca do conhecimento por uma lei de comercialização deste,
na perspectiva de um rápido desenvolvimento econômico, evitando, assim, que os
gigantes econômicos do mundo se apoderem do fosso tecnológico dos pobres.
4. CONCLUSÃO
Embora exista uma estratégia nacional sobre propriedade intelectual, a sua
implementação circunscreve-se mais a uma discussão teórica e institucional. Na prática,
o ordenamento jurídico e as instituições do Estado não consagram, ainda, os direitos
de propriedade intelectual como instrumento de defesa dos interesses nacionais e dos
respectivos detentores dessa propriedade.
A revisão constitucional ocorrida em 2004, no seu nº 02, do artigo 82, prevê a
possibilidade de expropriação de direitos de propriedade por necessidade, utilidade e
interesses públicos, mediante pagamento de justa indenização. Todavia, a abordagem
histórica e sistemática na interpretação das normativas e decretos de vária ordem não
favorece nem o Estado, nem os cidadãos nacionais e, muito menos, as regiões rurais,
detentoras do “saber tradicional”.
A estratégia nacional da propriedade intelectual nem por isso terá criado as
condições reais para a implementação do acordo TRIPS, e nem é previsível que, fora
da esfera institucional, o cidadão comum adote o acordo para a defesa dos seus
interesses.
Impõe-se, enfim, o desafio ao Estado e a todos os intervenientes no discurso sobre
a propriedade intelectual na agricultura em Moçambique para que algo seja feito no
sentido de melhorar o atual cenário, tão cedo quanto possível.
156
R EFERÊNCIAS
ALBAGLI, Sarita. Geopolítica da biodiversidade. Brasília, DF: IBAMA, 1998.
EXPERE, J. A. The African Model Law. Addis Ababa: Organization of African Unity,
2000.
FUNDAÇÃO JOAQUIM CHISSANO. Desenvolvimento econômico e social.
Disponível em: <http:www.jchissano.org.mz/conteudos/portugues/PA_desenvol%20
%20%econ%20%20social.pdf>. Acesso em: 17 maio 2008.
KUYEK, D. Intellectual property rigths in African agriculture: implications for small
scale farmers. Barcelona: GRAIN, Aug. 2002.
MOÇAMBIQUE. Constituição da República. 2004. Disponível em:< http://www.
mozambique.mz/pdf/constituicao.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2008.
MOMOANE, Ana. Os desafios do financiamento da investigação e de
desenvolvimento dos bens intangíveis da propriedade intelectual.
Disponível em: <http/www.ipi.gov.mz/img/ppt/ipstrategy-mozambique>. Acesso em:
17 maio 2008.
PRADO, Eleutério F.S. Desmedida do valor: crítica da pós-grande indústria. São
Paulo: Xamã, 2005.
WORLD TRADE ORGANIZATION. Agreement on trade related aspects of
intellectual property rights: Nnex 1C of the Marrakech agreement establishing
the World Trade Organization, signed in Marrakech, on April 15, 1994. Geneva, 1994.
157
CAPÍTULO
E DUCAÇÃO
8
PARA A INOVAÇÃO :
AÇÕES DO INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL
-
INPI NO ÂMBITO DA AGRICULTURA 125
R ITA P INHEIRO -M ACHADO 126
125
As opiniões expressas no texto são de responsabilidade da autora. Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade
Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.
126
Coordenadora Geral de Articulação Institucional e Difusão Regional ([email protected]).
1. I NTRODUÇÃO
A institucionalização da ciência no Brasil teve início na década de 50 e se baseou
na ideia da ciência como “fronteira sem fim”, em que todos os campos do conhecimento
eram merecedores de financiamento, e todos os bons projetos deviam ser apoiados
pelo governo. Na década de 70, a ciência como força produtiva e educação para formar
pessoas qualificadas foram ideias incorporadas ao Programa de Metas e Bases do
Governo (1970) como uma das doze conquistas essenciais a serem alcançadas. Isso deu
grande impulso à ciência e permitiu ao Brasil dispor, hoje, de um parque científico que
cobre grande parte das áreas do conhecimento.
A partir da década de 80, o governo brasileiro esvaziou o programa oficial de
financiamento à pesquisa, mas passou a fazer expressivos investimentos na formação
de pessoal pós-graduado. Desde então, houve um aumento progressivo no total de
bolsas de estudo concedidas no país, além de apoio crescente para o desenvolvimento
da infraestrutura necessária aos cursos de pós-graduação credenciados – o que se
distingue da estratégia utilizada por outros países em desenvolvimento, que enviam
seus estudantes para centros de pesquisa estrangeiros. A Figura 1 mostra a evolução
do número total de bolsas de estudo de mestrado e doutorado concedidas no país, no
período de 1970 – 2009, indicando um forte crescimento tanto na formação de novos
mestres quanto de novos doutores no país.
Figura 1: Bolsas de mestrado e doutorado, 1970–2009.
45000
Total
40000
35000
30000
25000
Mestrado
20000
Doutorado
15000
10000
5000
0
1970
1975
Fonte: MCT, acesso setembro/10.
160
1980
1985
1990
1995
2000
2005
2010
A Figura 2 apresenta a produção científica resultante dos investimentos
governamentais realizados na área de ciência e tecnologia (C&T) em números absolutos
(2A) e como percentual em relação a tudo o que é produzido anualmente no mundo e
em comparação com a produção da América Latina (2B).
O investimento realizado na pós-graduação traduziu-se em aumento da
contribuição do Brasil em publicações técnicas e científicas em revistas indexadas. Em
1968, a participação brasileira na produção mundial representava apenas 0,015% (n =
53) do total publicado no ano (n = 364.723). Quatro décadas depois, passou para 2,63%
(n = 30.415), um crescimento na participação de 175,3 vezes dentro do período (1968
- 2009), como mostra a Figura 2A. Esse crescimento ocorreu também como percentual
do total produzido por países da América Latina (Figura 2B) que passou de 34,3% para
54,56% entre 1981 e 2008, um aumento de 59 vezes em 28 anos. Todo esse movimento
tem relação direta com o investimento feito na pós-graduação e o consequente
crescimento da comunidade científica, pois o aumento no número de pesquisadores
ativos está relacionado com o total de recém-doutores que entram no sistema de C&T.
Figura 2: (A) Total de publicações brasileiras em revistas indexadas e (B)
Porcentagem das publicações brasileiras em relação ao total produzido
no mundo e na América Latina, 1975–2009.
3.0
100
30000
27500
2.5
80
25000
% Mundial ( )
Total
20000
17500
15000
12500
2.0
60
1.5
40
1.0
10000
% América Latina ( )
22500
7500
20
0.5
5000
2500
A
0
1975
1980
1985
1990
1995
Ano
2000
2005 2010
B 0.0
0
1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010
Ano
Fonte: MCT, acesso setembro/2010.
Esse conjunto de dados indica que, apesar dos períodos de instabilidade econômica,
houve aumento dos recursos destinados ao treinamento de pessoal para C&T; além
disso, apesar das flutuações nas verbas destinadas aos programas de pesquisa, o Brasil
apresentava (e apresenta) uma ciência em processo de crescimento contínuo devido à
161
manutenção do programa de concessão de bolsas de estudo, principal componente da
rubrica Ensino de Pós-Graduação.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta,
como papel central das políticas públicas em ciência, tecnologia e inovação (C,T&I),
alavancar o desenvolvimento econômico e social sustentável, por meio de investimentos
em pesquisa e desenvolvimento (P&D), ampliação e qualificação de recursos humanos,
aumento do capital social e recursos financeiros. Para tanto, as políticas públicas devem
usar mecanismos diretos e indiretos, tais como promoção do capital de risco, juros
baixos e redução de impostos, além de investimentos públicos na obtenção de ativos
intangíveis (MCT/ABC).
Nos anos 90, o cenário mudou drasticamente em relação à época em que o Brasil
começou a caminhar no sentido de seu desenvolvimento científico e tecnológico.
A política de abertura econômica e de inserção do país no mercado internacional
modificou as condições de funcionamento da economia brasileira. Nesse novo
ambiente, estruturaram-se programas de C&T voltados para fortalecer a competitividade
do parque industrial do país.
Apesar do contexto histórico de desbalanceamento nas ações de P&D e da falta de
uma política integrada de desenvolvimento industrial e tecnológico, o Brasil sempre se
posicionou pioneiramente na adoção de marcos reguladores de Propriedade Intelectual
(PI), tendo sido um dos países a integrar o grupo de primeiros signatários da Convenção
de Paris (1883). Entretanto, apenas em 1996 foi aprovada a atual Lei da Propriedade
Industrial, em adequação a requisitos apresentados no Acordo TRIPS, bem antes do
prazo máximo permitido pela atual OMC. Tais marcos legais apontam, principalmente,
para duas situações: o tratamento isolado dado à matéria PI, desarticulado do contexto
de esforços de desenvolvimento industrial e tecnológico; e a disponibilização de uma
estrutura de base legal de “proteção”, não levando, necessariamente, a níveis elevados
de inovação.
Após mais de uma década de ausência de uma política industrial que propiciasse
uma mudança no patamar competitivo da indústria nacional, o Governo Federal
formulou e implementou, em 2004, a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio
Exterior – PITCE, de longo prazo e direcionada para o futuro. A PITCE baseava-se em um
conjunto articulado de medidas para fortalecer e expandir a base industrial por meio
da melhoria da capacidade inovadora das empresas, tendo como objetivo o aumento
da eficiência econômica e do desenvolvimento e a difusão de tecnologias com maior
potencial de competição no comércio internacional. Ademais, foi aprovada a Lei de
Inovação Tecnológica (Lei nº 10.973/2004), regulamentada pelo Decreto nº 5.563, de
2005. Com essas iniciativas, o governo brasileiro apresentou um conjunto de medidas
para promover o desenvolvimento produtivo que geraram avanços, tais como:
162
•
•
•
Fortalecimento do diálogo entre o setor público e o privado, com a criação
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial – CNDI e da Agência
Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI;
Melhoramento no âmbito dos processos relacionados ao registro de
propriedade industrial, por meio da reestruturação do Instituto Nacional da
Propriedade Industrial – INPI;
Criação de programas de financiamento específicos para setores estratégicos,
como o de fármacos e de software.
Entretanto, para além das conquistas já alcançadas pela PITCE, o momento atual da
economia brasileira demanda apoio amplo e firme à formação de capital e à inovação,
visando a sustentabilidade do crescimento em longo prazo. Para dar continuidade
ao processo de desenvolvimento industrial, tornou-se necessário conferir potência
à política industrial, ampliando sua abrangência, aprofundando as ações iniciadas e
consolidando a capacidade de implementar e avaliar políticas públicas. É exatamente
isso o que pretende a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), lançada em maio
de 2008.
A seguir, trataremos do INPI dentro do atual contexto de políticas públicas.
2. O INPI E O CONTEXTO NACIONAL
O INPI é uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior (MDIC), responsável pela concessão de patentes de
invenção e modelo de utilidade e por registros de marcas, programas de computador,
topografia de circuitos, desenho industrial e indicações geográficas, além de averbação
de contratos de transferência de tecnologia e de franquia empresarial, de acordo com a
Lei da Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96) e da Lei de Software (Lei nº 9.609/98). Foi
criado em dezembro de 1970, pela Lei nº 5.648, em uma época marcada pelo esforço de
industrialização do país, pautando sua atuação em uma postura cartorial, limitando-se à
concessão de ativos intangíveis e controlando a importação de novas tecnologias.
Com as mudanças trazidas pela PITCE e com a modernização do país, o INPI foi
reestruturado, a partir de 2004, com o objetivo de promover o uso do sistema como
instrumento de capacitação e competitividade, condições fundamentais para alavancar
o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.
A reestruturação envolveu a modernização tanto dos processos administrativos
quanto das áreas fins, em especial as relacionadas às marcas e patentes. Ademais, foi
criada, no mesmo ano, a Diretoria de Articulação e Informação Tecnológica (DART),
que aprimorou a comunicação entre o Instituto e a sociedade, facilitando o acesso às
informações tecnológicas disponíveis no INPI e disseminando a cultura da PI. No que tange
163
à cooperação institucional, o Instituto procura consolidar os laços com as instituições
do Sistema Nacional de Inovação - associações empresariais, federações, universidades
e agências de desenvolvimento, buscando a efetiva participação das empresas e
universidades brasileiras nos programas de capacitação relacionados ao tema.
Dentro desse novo contexto, a tímida participação dos principais atores nacionais
de inovação no uso do sistema de PI apresenta-se como um reflexo da incapacidade
de se criar um Sistema de Inovação equilibrado e eficiente. Do total de depósitos de
patentes realizados no Brasil, uma média de 30% provêm de residentes, enquanto
que, do total de concessões, apenas 20% destinam-se a estes. Ademais, 75% desses
depósitos são feitos por pessoa física, fato que aponta para uma infraestrutura de
inovação imatura. Somado à falta de procura dos atores residentes pelos mecanismos
de proteção, ocorre o baixo uso da informação tecnológica disponível no INPI, e que
se encontra nos bancos de patentes. Estes oferecem oportunidades estratégicas, tais
como: 1) tecnologias que já estão em domínio público e podem ser usadas livremente;
2) tecnologias patenteadas em outros países que não foram depositadas no Brasil; 3)
uso da informação para pesquisa; 4) uso da informação para monitorar a concorrência e
apontar melhores rotas tecnológicas; e 5) uso da informação para estudos de prospecção
tecnológica; entre outras.
As ações que o INPI vem desempenhando se revestem de caráter estratégico
no contexto das políticas de desenvolvimento. Para o que se quer ressaltar aqui,
importa a criação de unidades no INPI voltadas à pesquisa e à educação, em particular,
a criação da Coordenação de Pesquisa e Educação em Propriedade Intelectual,
Inovação e Desenvolvimento (COPEPI), subordinada à DART, e que desde 2006 vem
executando atividades de cunho acadêmico. Devido à sua missão de formar e treinar
recursos humanos, a COPEPI vem realizando estudos e pesquisas sobre PI envolvendo
universidades e outras instituições públicas e privadas. Desse modo, ela passa a
desempenhar um papel ativo na articulação do Instituto com os demais agentes que
compõem o Sistema Nacional de Inovação brasileiro, e firma a imagem deste como
instituição produtora e disseminadora de conhecimentos em PI. A outra iniciativa do INPI
é o Mestrado Profissional em PI e Inovação, que visa formar recursos humanos em nível de
pós-graduação. Assim, espera-se vencer o desafio da disseminação da cultura da PI, por
um lado, inserindo o tema nas grades curriculares das graduações e pós-graduações do
sistema educacional brasileiro, priorizando uma abordagem multidisciplinar ao invés da
tradicional abordagem jurídica à qual o tema tem sido relegado; por outro, oferecendo
serviços educacionais pautados em uma qualificada apresentação do sistema de PI e de
sua importância no mundo atual.
Dentro desse enfoque, serão destacadas, a seguir, as ações desenvolvidas pelo
Instituto desde 2005.
164
3. AÇÕES DO INPI: DISSEMINAÇÃO E CAPACITAÇÃO EM PI
Tendo em vista o contexto da política governamental, que tem incentivado a
promoção da inovação e do desenvolvimento tecnológico, vem crescendo o número de
instituições públicas e privadas que se mostram interessadas em capacitar seus gestores,
técnicos e pesquisadores no uso de mecanismos de proteção de PI, bem como no acesso
e uso estratégico das informações contidas em bancos de patentes. Para enfrentar a
grande demanda existente, o INPI, por intermédio da DART, vem estabelecendo, desde
2005, inúmeras parcerias, objetivando a disseminação e a capacitação em PI de agentes
do Sistema Nacional de Inovação.
Dessa forma, cursos para gestores de tecnologia vêm sendo articulados e
realizados pela DART, totalizando 3.731 pessoas capacitadas nas cinco macrorregiões
do país, alcançando 20 Estados, além do Distrito Federal. A Tabela 1 mostra o total dos
cursos e oficinas realizados entre janeiro de 2005 e dezembro de 2008, divididos por
região do país.
Tabela 1: Cursos e oficinas de Propriedade Intelectual realizados entre janeiro de
2005 e dezembro de 2008, divididos por macrorregião do país.
Região
Total de cursos
Pessoas capacitadas
NORTE
10
221
CENTRO-OESTE
16
507
SUL
20
789
NORDESTE
25
784
SUDESTE
48
1.430
TOTAL
119
3.731
Fonte: INPI
Atividades como a identificação de conhecimentos passíveis de patenteamento,
o estabelecimento de acordos de licenciamento com o setor industrial, o apoio aos
pesquisadores, a utilização da PI como fator estratégico para o aumento de valor
agregado, a diferenciação competitiva e a entrada de royalties demandam a formação
de expertise específica e complexa por parte dos gestores, envolvendo desafios nos
campos da proteção de intangíveis, da negociação e estabelecimento de contratos, da
valoração do intangível e da colocação das invenções no mercado.
A realização de ações a cargo de profissionais com as habilidades acima referidas
apresenta-se como fator importante para desempenhos satisfatórios por parte das diversas
instituições que compõem o sistema de inovação brasileiro. Nesse contexto, apresenta165
se como medida importante a capacitação e o estabelecimento de metodologias que
venham a dar o suporte necessário às unidades de apoio à gestão da PI.
Com o intuito de capacitar os funcionários de Instituições Parceiras que tratam com
Propriedade Intelectual, o INPI vem firmando Acordos de Cooperação que possibilitam,
por exemplo, um programa de qualificação para que noções de PI sejam inseridas tanto
no suporte a ser dado aos usuários do sistema, quanto no contexto da avaliação de
financiamentos de tecnologia. Essa iniciativa foi estruturada com diversas instituições
parceiras, como a Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP e a Petróleo Brasileiro S.A.
– PETROBRAS, entre outras.
No caso do setor de agropecuária, o INPI firmou Acordos de Cooperação com o
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA e com a Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária – Embrapa. O modelo de atendimento previu cursos voltados
especificamente para os funcionários, visando mostrar a importância do uso estratégico
do sistema de PI, os retornos que a proteção dos intangíveis pode trazer e a apresentação
de casos de sucesso. A Tabela 2 mostra a capacitação de funcionários realizada entre
2005 e 2007, quando foram treinadas 135 pessoas ligadas ao dito setor.
Tabela 2 – Capacitação de funcionários do setor de agroindústria, distribuídos por
ano de realização (janeiro de 2005 a dezembro de 2007).
Cursos
2005
Cursos
2006
Cursos
2007
Total de
horas
Pessoas
-
-
4
120
92
MAPA
10
9
-
440
43
Total
10
9
4
560
135
Instituição Parceira
Embrapa
Fonte: INPI
3.1. M INISTÉRIO DA AGRICULTURA , PECUÁRIA E ABASTECIMENTO – MAPA
O Ministério tem como missão estimular o aumento da produção agropecuária
e o desenvolvimento do agronegócio, para atender ao consumo interno e formar
excedentes para exportação. Essa é a missão institucional que tem como consequência
a geração de emprego e renda, a promoção da segurança alimentar, a inclusão social
e a redução das desigualdades sociais. Para tanto, o MAPA formula e executa políticas
para o desenvolvimento do setor, atuando na busca da sanidade animal e vegetal, na
organização da cadeia produtiva do agronegócio, na modernização da política agrícola,
no incentivo às exportações e no uso sustentável dos recursos naturais.
166
No que concerne aos ativos intangíveis, o MAPA tem ligação direta com:
1) A proteção de cultivares cuja primeira legislação, promulgada em 25 de abril
de 1997, garantiu os direitos de obtentores de novas variedades de plantas (Lei nº 9.456,
regulamentada pelo Decreto nº 2.366, de 5 de novembro de 1997) e criou, no Ministério,
o Serviço Nacional de Proteção de Cultivares - SNPC, que tem como competência a
proteção de cultivares no país.
2) O incentivo às Indicações Geográficas (IG), por meio da Secretaria de
Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo/Departamento de Propriedade
Intelectual e Tecnologia da Agropecuária (DEPTA), cujas atribuições norteiam ações que
visam apoiar o desenvolvimento de estudos subsidiários e instrumentos de parcerias
quanto ao reconhecimento de IG de produtos agropecuários.
Dentro dessa perspectiva, o INPI firmou, em 2005, um primeiro acordo com o
MAPA objetivando a cooperação técnica, mediante a reunião de esforços visando à
implementação de atividades conjuntas na área de competência institucional e de
conhecimento específico de cada partícipe, com ações voltadas à disseminação da
cultura da PI. No âmbito do acordo citado, os agentes das Superintendências Estaduais
do Ministério foram distribuídos pelos cursos para Gestores de Tecnologia, organizados
pelo INPI em cidades próximas aos seus respectivos estados (ver Tabela 2). Além disso,
foram realizados eventos para promoção de IG em Florianópolis/SC e em Salinas/MG,
com a participação de 122 pessoas (Tabela 3).
Tabela 3 – Eventos promovidos pelo INPI e pelo MAPA em parceria, no âmbito do
primeiro Acordo de Cooperação (vigência: dezembro de 2005 a novembro de 2007).
Eventos
Cidade/Local
Participantes
1. Oficina de Indicações Geográficas
Florianópolis - SC
70
2. Seminário de lançamento da
Indicação Geográfica Cachaça de
Salinas
Salinas - MG
52
Total de participantes nos eventos
122
Fonte: INPI, 2008.
Atualmente, o INPI está articulando um novo acordo com o Ministério para ampliar
a ação conjunta, apresentando as seguintes ações no plano de trabalho do referido
acordo:
167
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Disponibilizar informações sobre o estágio de desenvolvimento da tecnologia
agropecuária, promovendo a disseminação da cultura de PI e da inovação no
setor do agronegócio;
Capacitar técnicos, pesquisadores, empresários e produtores rurais em temas
afetos aos participantes, com vistas a apoiar a implementação da Lei de
Inovação;
Fomentar o uso do sistema de PI e a inovação tecnológica no setor do
agronegócio;
Estimular a transferência de tecnologia e o uso do sistema de PI e da inovação
tecnológica no setor agropecuário;
Disseminar e fomentar a proteção de IG de produtos agropecuários;
Promover estudos, diagnósticos e pesquisas em temas que envolvam o setor
dentro do Observatório Tecnológico.
3.2. EMPRESA B RASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA - E MBRAPA
A Embrapa foi criada em 26 de abril de 1973, e é uma empresa pública de direito
privado, vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Sua missão
é viabilizar soluções para o desenvolvimento sustentável do agronegócio por meio da
geração, adaptação e transferência de conhecimentos e tecnologias, em benefício da
sociedade. É considerada a maior e mais importante instituição de pesquisa agropecuária
do país, sendo que, na esfera internacional, destaca-se como o principal centro de
tecnologia agropecuária tropical do mundo.
A Embrapa atua por intermédio de 38 Unidades de Pesquisa, três Unidades de
Serviços e 13 Unidades Administrativas, desenvolvendo atividades em quase todos
os estados da Federação. Está sob a sua coordenação o Sistema Nacional de Pesquisa
Agropecuária - SNPA, constituído por instituições públicas federais e estaduais,
universidades, empresas privadas e fundações, que, de forma cooperada, executam
pesquisas nas diferentes áreas geográficas e campos do conhecimento científico. Para
tornar-se uma das maiores instituições de pesquisa do mundo tropical, a Empresa
investiu sobretudo em recursos humanos, possuindo atualmente 8.155 funcionários, dos
quais 2.097 são pesquisadores (25% com mestrado e 66% com doutorado), operando
um orçamento da ordem de R$ 1 bilhão. As tecnologias geradas pela Embrapa têm
permitido a substituição de fertilizantes químicos por processos biológicos e a
substituição de agrotóxicos por controle biológico.
A inovação tecnológica contribui para o desenvolvimento econômico e social do
país, uma vez que permite a otimização dos recursos, podendo modificar a estrutura
produtiva e acelerar o crescimento. No que concerne às empresas, a inovação impacta
o processo produtivo em seus aspectos econômicos, financeiros e gerenciais e
168
proporciona o aumento da competitividade. A tecnologia é um ativo econômico que,
na Era do Conhecimento, apresenta-se como fator determinante de ganhos. Nesse
contexto, a Propriedade Intelectual deve servir como um instrumento importante para
a inovação tecnológica. Não obstante o relevante valor estratégico da PI, entidades
nacionais geradoras de conhecimento desconhecem os benefícios relativos ao tema e,
por conseguinte, a participação de nacionais no sistema de propriedade intelectual é
proporcionalmente inferior ao potencial inventivo dos atores nacionais.
No contexto da nova política industrial, os desafios concentram-se no aumento
da inovatividade, no porte e investimento em P&D pelas empresas brasileiras. Dentre
as linhas de ação dessa política, estão: a inovação e o desenvolvimento tecnológico, a
modernização industrial, a capacidade e escala produtiva e a inserção internacional.
Diante disso, torna-se necessário o estabelecimento de iniciativas que estimulem
a participação de um número crescente de atores em atividades inovadoras, ao mesmo
tempo em que se criem condições para que instituições de C&T implementem unidades
de gerenciamento de tecnologia com foco especial em PI. Além disso, é importante que
seja difundido o conhecimento acerca da Propriedade Intelectual e da transferência de
tecnologia.
Nesse novo contexto político, é de suma importância o fomento e o entendimento
do sistema de propriedade industrial, seus marcos legais e seus mecanismos, no âmbito
dos atores inovadores. Torna-se, portanto, de fundamental importância a capacitação
dos funcionários da Embrapa, tanto para estratégias de proteção de PI quanto para o
uso da informação tecnológica contida em patentes, que servem para subsidiar decisões
de fomento à inovação.
Nesse sentido, a Embrapa e o INPI convergiram seus interesses para disseminar o
uso e o entendimento do sistema de PI, viabilizando ações de capacitação do corpo
técnico da empresa. Isso foi feito por meio de um Acordo de Cooperação assinado em
2007, com vigência até 2010. As atividades já realizadas se encontram na Tabela 4.
169
Tabela 4 – Eventos promovidos pelo INPI e Embrapa em parceria no âmbito do
primeiro Acordo de Cooperação (vigência: maio de 2007 a abril de 2010).
Eventos
Cidade/Local
Participantes
1. Seminário de Sensibilização
Distrito Federal - DF
193 – participação
presencial
86 – por teleconferência
2. Curso Básico de Propriedade
Intelectual
Distrito Federal - DF
29
3. Curso Intermediário de
Propriedade Intelectual
Distrito Federal - DF
31
4. Curso Básico de Propriedade
Intelectual
São Paulo - SP
38
5. Curso Intermediário de
Propriedade Intelectual
São Paulo - SP
39
Fonte: INPI, 2008.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil fez importantes investimentos para gerar uma capacidade científica que
repercute expressivamente na produção científica mundial (2,0% do total mundial, em
2008). Entretanto, o sistema de PI não é utilizado adequadamente, mostrando que a
carência está no conhecimento sobre o sistema. O Brasil se assemelha a outros países
com sistema de inovação imaturo e comunidade científica estabelecida, mas que
não conseguem estabelecer o link entre o conhecimento produzido e as inovações
desenvolvidas no âmbito das empresas, universidades e centros de pesquisa. O papel
do INPI, nesse aspecto, é fundamental para que possamos reverter o quadro atual e
aumentar o número de nacionais utilizando o sistema em vigor, conforme determina a
Política de Desenvolvimento Produtivo.
No âmbito do Mestrado Profissional em Propriedade Intelectual e Inovação, linhas
de pesquisa e disciplinas são direcionadas justamente para o estudo e reflexão em
temas afetos ao agronegócio, como biocombustíveis e energias renováveis, além do
estudo sobre as formas de proteção dentro de indústrias importantes, como a de canade-açúcar e soja, entre outros aspectos relevantes. O INPI, dessa forma, procura criar
massa crítica para refletir temas importantes ligados ao sistema de PI e ao uso eficiente
deste para o desenvolvimento tecnológico sustentável do país.
170
R EFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. [Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento: home page]. Disponível em: < http://
www.agricultura.gov.br/>. Acesso em: 2 jun. 2008.
BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Informações aos
usuários do SNPC. Disponível em: < http://www.agricultura.gov.br/pls/portal/
docs/PAGE/MAPA/SERVICOS/CULTIVARES/PROTECAO/MENU_LATERAL_PROTECAO/
INFORMA%C7%D5ES%20AOS%20USU%C1RIOS%20DO%20SNPC.PDF. Acesso em: 2
jun. 2008.
BRASIL. Ministério da Ciência e da Tecnologia; ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS.
Ciência, tecnologia e inovação: desafio para a sociedade brasileira - Livro Verde.
Brasília, DF, 2001. 278 p. Coordenação: Cylon Gonçalves da Silva e Lúcia Carvalho
Pinto de Melo.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
Desenvolvimento produtivo: desafios. Disponível em: < http://www.
desenvolvimento.gov.br/pdp/index.php/politica/desenvolvimentoProdutivo/
desafios>. Acesso em: 2 jun. 2008.
EMBRAPA. [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária: home page].
Disponível em: <http://www.embrapa.br/a_embrapa/atuacao>. Acesso em: 2 jun.
2008.
GUIMARÃES, R. FNDCT: uma nova missão. In: CIÊNCIA E TECNOLOGIA NO BRASIL: uma
nova política para um mundo global. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / Escola
de Administração de Empresas, 1993.
SALLES-FILHO, S. (Org.). Ciência, tecnologia e inovação: a reorganização da pesquisa
pública no Brasil. Campinas: Komedi, 2000. 416 p.
TEITEL, S. Patents, R&D, country size and per-capita income: an international
comparison. Scientometrics, Amsterdam, v. 29, n. 1, p. 137-159, 1994.
171
CAPÍTULO
R EGIMES
9
TECNOLÓGICOS E PROPRIEDADE
INTELECTUAL NA AGRICULTURA :
O PAPEL DAS NOVAS INSTITUIÇÕES 127
ANA CÉLIA CASTRO 128, S ERGIO PAULINO DE CARVALHO129 E M ARCOS FUCK 130
127
Artigo que fundamenta a palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de
junho – 2 de julho de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.
128
Professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.
129
Coordenador Geral de Articulação Institucional do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, INPI.
130
Professor Adjunto da Universidade Federal do ABC.
1. I NTRODUÇÃO
O presente trabalho apresenta alguns dos principais elementos que estão
afetando o processo de inovação nas atividades de melhoramento vegetal no Brasil.
Notadamente a partir da segunda metade dos anos noventa, profundas transformações
tecnológicas e institucionais impactaram a estrutura do mercado brasileiro de sementes
e as estratégias dos principais agentes, públicos e privados, envolvidos nas atividades de
pesquisa e comercialização desses materiais.
Pretende-se contextualizar essas questões a partir da análise do processo de
catching up do sistema brasileiro de pesquisa agrícola. Grosso modo, esse processo
pode ser dividido em duas grandes fases. A primeira estaria concentrada no período
que se estende do final dos anos 1940 até o final dos anos 1980, enquanto a segunda
poderia ser datada de meados dos anos 1990 até o presente, e ainda se encontra em
pleno curso. Dessa forma, o artigo pretende tratar da segunda fase do catching up
do sistema brasileiro de pesquisa agrícola, com especial atenção às implicações da
biotecnologia e da propriedade intelectual nas articulações entre alguns dos principais
atores participantes dessa nova fase das pesquisas em melhoramento vegetal.
2. R EGIMES TECNOLÓGICOS E INSTITUIÇÕES
A transformação produtiva do sistema de pesquisa agrícola no Brasil - que sugerimos
dividir, para efeitos de análise, em duas grandes fases - faz parte de um processo mais
amplo ocorrido na economia brasileira131, caracterizado como de emparelhamento
tecnológico com países da fronteira do conhecimento agroindustrial. Mais do que isso,
as origens desse processo na agricultura até mesmo pareciam coincidir com o ponto
de partida dos processos que aconteciam na indústria, a partir da segunda metade dos
anos 1940.
Essa primeira fase de transformação produtiva está ainda assentada no chamado
paradigma da Revolução Verde, cuja base é, de forma muito simplificada, a introdução de
sementes de alto rendimento (em muitos casos sementes de híbridos) e de todo o pacote
tecnológico que as acompanha - fertilizantes, defensivos, máquinas, equipamentos e
irrigação. Do ponto de vista institucional, por outro lado, a difusão desse paradigma
exigiu a montagem de um sólido sistema de pesquisa agropecuária132, constituído
131
O autor que assumidamente introduziu essa temática e interpretou o desenvolvimento industrial brasileiro como um
processo de catching up foi Antonio Barros de Castro. O artigo “Renegade Development: Rise and Demise of State-led
Development in Brazil”, in Smith, W. et all (Organizer), Miami: Transaction Publishers, 1993, é o ponto de partida de uma rica
reflexão que se desdobra em outros trabalhos do mesmo autor.
132
O Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária teve suas bases nos Institutos Estaduais de Pesquisa (como o Instituto
Agronômico de Campinas, o do Paraná e o de Pernambuco) que pré-existiam antes da constituição da Embrapa, em 1973.
174
basicamente de instituições públicas de pesquisa, articulado à assistência técnica e
à extensão rural, sendo a extensão rural também de base pública (federal, estadual e
municipal) e amparado por instrumentos de crédito ao produtor e à comercialização
dos produtos.
Esse tipo de desenvolvimento, que tendeu a ocorrer de forma bastante similar
em países muito distintos, estava inserido em uma conjuntura marcada pela fome e
escassez de alimentos, que acompanhou o período que se seguiu à Segunda Guerra
Mundial, e correspondia a uma visão compatível com o desenvolvimentismo, baseada
na ideia chave do aumento da produtividade agrícola com transferência de mão de
obra do campo para as cidades.
Pela ótica de regimes tecnológicos, poderíamos então dividir a transformação
produtiva do sistema de pesquisa agrícola brasileiro em duas grandes fases, ou dois
regimes tecnológicos. A primeira concentrar-se-ia no período que se estendeu do final
dos anos 1940 até o final dos anos 1980, associada ao paradigma da Revolução Verde,
enquanto a segunda poderia ser datada de meados dos anos 1990 até o presente, e
ainda se encontra em pleno curso.
Entende-se como emparelhamento ou equiparação tecnológica ao “estado das
artes” internacional um processo que tende a ocorrer de forma concentrada em um
período de tempo determinado, acompanhado de taxas expressivas de crescimento da
economia, com elevação da produtividade e da competitividade internacional de setores
e empresas. Entretanto, o consenso que emergiu da literatura consagrada (“clássica”)
sobre os processos de emparelhamento tecnológico encontra-se presentemente em
evolução, especialmente a partir dos resultados das pesquisas em curso na rede liderada
pelos professores Richard Nelson e Franco Malerba (NELSON; MALERBA, 2008)133.
A contínua aceleração da inovação tecnológica na última década, no plano
internacional, especialmente nos campos da biotecnologia e das tecnologias de
informação, com inegáveis impactos sobre o “agronegócio”, entre outros setores da
economia, tem deslocado a fronteira tecnológica setorial. Na realidade, sugerimos que
o regime tecnológico “baseado em ciência de segunda geração”, basicamente as novas
biotecnologias (CORIAT; ORSI; WEINSTEIN, 2002), fecundou o sistema agroalimentar e
transformou as instituições constitutivas do regime tecnológico da Revolução Verde.
Nesse sentido, os regimes tecnológicos possuem uma dimensão dinâmica, e devem ter
em conta o conjunto daquelas instituições constitutivas e de suas relações intersetoriais
ou sistêmicas, ou seja, devem considerar a articulação do sistema agroalimentar em seu
conjunto.
133
A rede PASTAS, liderada por Franco Malerba, propõe-se a estudar a dimensão setorial dos processos de catching up em
uma perspectiva comparativa entre países. Os setores da rede são, em inglês: “pharmaceuticals, automobiles, software,
telecomunication, agrifood and semiconductors”. Os países que fazem parte da perspectiva comparativa são, no caso do
agronegócio, Brasil, China, Costa Rica, Nigéria e Vietnã.
175
Dessa forma, predominaram, no primeiro regime tecnológico, as instituições
constitutivas da Revolução Verde (o já mencionado tripé pesquisa-extensão-crédito
rural), difusoras de uma tecnologia intensiva em energia, insumos e máquinas. Na
segunda fase, maior atenção é dada às questões de qualidade, “grades and standards”
e requisitos de desenvolvimento sustentável. O objetivo passa a ser capturar o valor
intangível incorporado nos produtos. Isso ocorre por meio das patentes, registro de
cultivares, indicações geográficas e conhecimentos tradicionais, que são os alicerces
da vantagem competitiva social e institucionalmente construída nos novos mercados.
Esse novo modelo não é compatível com o anterior. Verifica-se a formação de um novo
regime tecnológico baseado em novas tecnologias, como a biotecnologia, que não é
compatível com as instituições anteriores.
A assistência técnica, por exemplo, sofre profundas transformações, com o modelo
tradicional fragmentando-se cada vez mais a partir dos anos noventa. As empresas
fornecedoras de insumos químicos e biológicos passam a incorporar a assistência
técnica. Além disso, o fortalecimento das instituições ligadas aos produtores rurais e
os novos arranjos entre elas e as instituições públicas de pesquisa (principalmente a
Embrapa, no caso brasileiro) passam a dar uma nova tônica ao processo de pesquisa e
transferência de tecnologia agropecuária, configurando um novo modelo de assistência
técnica. Ou seja, a mudança entre os dois períodos de catching up diz respeito não só ao
conjunto das instituições, mas também às articulações entre elas.
Enfatiza-se, portanto, neste trabalho, que o novo regime tecnológico do sistema
de pesquisa agrícola brasileiro, baseado em ciência de segunda geração, tem outro
arcabouço institucional distintivo. Esse arcabouço tem semelhanças com o que é
descrito na literatura sobre o regime baseado em ciência de segunda geração, mas
guarda também singularidades e especificidades nacionais. Entre elas, a presença da
Embrapa, por meio da política de proteção de seus ativos intelectuais e de articulação
com os demais atores participantes do processo de pesquisa e comercialização de
cultivares, talvez seja a mais importante. É disso que tratam os itens a seguir. Antes,
porém, interessante é observar o contexto de evolução da produção e da produtividade
da agricultura nacional, embasada não somente na expansão da fronteira agrícola e do
crédito rural, mas na incorporação de novas tecnologias e inovações no campo, exigindose, assim, um tratamento diferente de temas até então consolidados no mainstream e
mesmo a incorporação de discussões que pouco faziam parte desse campo de estudo
- como as interações entre os setores públicos e privados (especialmente no tocante ao
desenvolvimento da pesquisa e da inovação) e, consequentemente, da repartição dos
riscos e dos benefícios aí envolvidos.
176
3. MUDANÇA DA BASE TÉCNICA NOS ANOS NOVENTA
A aceleração do crescimento da produção e da produtividade agrícola pode ser
avaliada a partir dos dados que a seguir são apresentados, em que é visível a mudança na
inclinação da curva (para cima) a partir dos anos 90. Como aponta o Gráfico 1, nas últimas
três décadas a produção nacional cresceu de forma expressiva. A estimativa da Companhia
Nacional de Abastecimento (Conab) é de que, na safra 2008/09, a produção brasileira de
grãos tenha alcançado 134,3 milhões de toneladas. Devido a problemas climáticos, houve
recuo em relação à safra anterior, que havia sido de 144,1 milhões de toneladas, o maior
volume já colhido no país. Se a análise é feita por cultura, notadamente sobre as cinco
principais (soja, milho, arroz, feijão e trigo), observa-se que a soja e o milho contribuíram
significativamente para essa evolução, enquanto o arroz e o feijão mantiveram um
comportamento relativamente estável nas últimas décadas e o trigo oscilou em função da
falta de incentivos específicos, entre outras razões. Como dito, na última safra houve recuo
na produção nacional de grãos devido às condições climáticas adversas - estiagem nos
estados da região Sul e Centro-Oeste, o que reduziu a produtividade de algumas lavouras,
principalmente as de milho e soja. A redução na produção nacional na última safra é
explicada também pela redução na área plantada com milho, em função dos preços de
mercado considerados pouco atrativos pelos produtores e também pela estiagem, a qual
impediu o próprio plantio deste em algumas áreas.
Pela previsão da Conab, a soma das produções de soja e milho deve representar
aproximadamente 80% da produção nacional de grãos. Esse número comprova a
importância das duas culturas no agronegócio brasileiro. Com base nas expectativas
com relação às próximas colheitas, a tendência é que a participação da soja e do milho
na produção brasileira continue expressiva.
em mil toneladas
Gráfico 1. Evolução da produção brasileira de arroz, feijão, trigo, milho e soja, da
colheita de 1976/77 à de 2008/09.
***
ARROZ
Fonte: Conab
FEIJÃO
MILHO
**
SOJA
TRIGO
TOTAL
177
O aumento da produção brasileira de grãos, ainda que tenha se beneficiado pelo
incremento da área plantada, deve-se, principalmente, ao aumento expressivo da
produtividade, verificado ao longo das últimas décadas. A incorporação progressiva de
novas áreas para a agricultura permitiu que se chegasse a uma área de 49 milhões de
hectares cultivados com grãos no Brasil, na safra 2004/05. Na última safra, a área ficou
em 47,7 milhões de hectares, a terceira maior área já cultivada no país.
A ampliação da produtividade das plantações se deve, entre outros fatores, aos
investimentos em pesquisa e desenvolvimento dirigidos à agricultura. Parte expressiva
do aumento de produtividade “dentro da porteira” deve ser consagrada às instituições
públicas e privadas de pesquisa dirigidas à agricultura, principalmente nos últimos anos,
em que as investigações realizadas por essas instituições tiveram um papel central,
possibilitando uma importante articulação entre as diferentes fontes de dinamismo
tecnológico da agricultura (POSSAS et al., 1996). Conforme aponta o Gráfico 2, os números
da Conab apontam para uma produtividade média nacional acima de 3 mil quilos por
hectare na safra 2007/08. Mesmo com os problemas climáticos, a produtividade média
nacional ficou em 2,8 mil toneladas por hectare na safra 2008/09.
60.000
3.500
50.000
3.000
2.500
40.000
2.000
30.000
1.500
20.000
1.000
10.000
Área
Fonte: Conab
178
Produtividade
2008/09
2006/07
2004/05
2002/03
2000/01
1998/99
1996/97
1994/95
1992/93
1990/91
1988/89
1986/87
1984/85
1982/83
1980/81
1978/79
500
1976/77
0
-
em quilos por hectare
em mil hectares
Gráfico 2. A evolução da área e da produtividade dos principais grãos cultivados no
Brasil, nas colheitas de 1976/77 a 2008/09
4. O SISTEMA DE PROTEÇÃO DE CULTIVARES E DE INOVAÇÕES DA BIOTECNOLOGIA
VEGETAL NO B RASIL
Como apontado acima, a proteção à propriedade intelectual é um elemento
central no novo regime tecnológico que vem sendo construído. Assim como ocorreu
em outros setores, o potencial de maior apropriabilidade do esforço inovativo, na
agricultura, atraiu maiores investimentos, notadamente das grandes empresas, e abriu
novas oportunidades de articulações.
Conforme discutido em Fuck & et al. (2007), o Brasil adotou como norma de
proteção de sementes e mudas o sistema sui generis, referenciado pela União para a
Proteção de Obtenções Vegetais (UPOV). A Lei de Proteção de Cultivares (LPC), de 1997,
foi formulada agregando pontos das Atas da UPOV que foram considerados estratégicos
para o país, como o reconhecimento dos direitos dos titulares de variedades que sejam
utilizadas como fonte de variação para a obtenção de novas variedades (as variedades
essencialmente derivadas); a consideração de que a proteção de cultivares é a única
forma de proteção jurídica das inovações em plantas; a proibição da dupla proteção
(que é a proteção simultânea por patentes e por registro de proteção de cultivares),
entre outros aspectos.
Como dito pelos mesmos autores, na prática, além da LPC, os obtentores/
melhoristas podem utilizar a legislação brasileira de propriedade industrial como forma
de proteção à propriedade intelectual nas atividades de melhoramento vegetal (exceto
patentes de plantas, o que não está previsto na legislação), embora essa legislação
restrinja a proteção de genes e organismos geneticamente modificados (SALLES-FILHO
et al., 2007). Essa restrição está expressa de duas formas na legislação:
1.
2.
Ao não considerar como invenção ou modelo de utilidade do todo ou parte
de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza ou
dela isolados, incluindo, de forma expressa, o genoma ou germoplasma de
qualquer natureza e os processos naturais (Art. 10, inciso IX);
Ao não considerar como matéria patenteável o todo ou parte dos seres vivos,
exceto os organismos geneticamente modificados para fins transgênicos
que contemplem as exigências de novidade, atividade inventiva e aplicação
industrial (Art. 18). O parágrafo único desse artigo explicita que são
considerados patenteáveis os micro-organismos transgênicos que tenham
sofrido intervenção humana direta e cujas características não se encontrem
na espécie em condições naturais.
Com a formação de um novo ambiente institucional (a legislação de propriedade
industrial também é da segunda metade dos anos noventa), novas formas de articulação
179
passaram a ser verificadas entre os principais atores participantes do processo de pesquisa
e de comercialização de sementes. A Embrapa, a principal instituição de pesquisa
agropecuária brasileira, passou a valorizar mais seus ativos, principalmente seus bancos
de germoplasma, com o amparo da legislação nacional de propriedade intelectual e
também a partir de políticas internas relacionadas às articulações com seus parceiros.
5. A POLÍTICA DE PROPRIEDADE INTELECTUAL DA E MBRAPA
Com base em uma sólida estrutura de pesquisa, a Embrapa desenvolve diversas
tecnologias aplicadas às atividades agrícolas. Para que essas tecnologias se tornem
efetivamente disponíveis aos produtores rurais, a Embrapa faz parcerias com outros
atores, públicos e privados, que estejam mais próximos aos produtores, como as
empresas produtoras de sementes. A Embrapa adotou, em 1996, a Política Institucional
para a Gestão da Propriedade Intelectual, segundo a qual a Instituição procura ativamente
a proteção legal dos resultados de suas pesquisas e maximiza o uso de direitos de
propriedade intelectual mediante a licença de processos e produtos, sem comprometer
sua missão social.
Essa Política passou a ser o principal marco regulador a sinalizar o relacionamento
da Embrapa com seus parceiros externos. Em 2000, a Embrapa estabeleceu normas
de observância obrigatória no conjunto de suas unidades de pesquisa, alinhadas aos
princípios destacados na Política, que passaram a regular o seu relacionamento com
seus parceiros públicos e privados. Nos quatro anos seguintes, muitas normas foram
aprovadas, visando regular a transferência de tecnologias ao setor privado e “evitar a
armadilha do favorecimento a empresas ou grupos de empresas” (CUNHA; BOTELHO
FILHO, 2007, p. 4). Atualmente, a Embrapa possui 14 escritórios que coordenam a
transferência de tecnologia para empresas do setor agropecuário em diferentes regiões
do país (TAKAKI et al., 2008).
A parceria da Embrapa com o setor privado é fortemente monitorada, segundo
Carvalho et al. (2007). Isso porque a Embrapa editou normas estabelecendo que os
parceiros envolvidos em programas de melhoramento genético por ela conduzidos não
podem possuir programas próprios de pesquisa nessa área ou trabalhar em conjunto
com organizações que tenham esses programas. A Embrapa também passou a não
admitir a cotitularidade com parceiros privados. Essa postura foi importante em um
momento em que as grandes empresas transnacionais estavam avançando no mercado
brasileiro, a partir da aquisição de importantes empresas sementeiras nacionais. A partir
dessa posição, a Embrapa teve maior controle sobre seu banco de germoplasma134.
134
Germoplasma, segundo Wilkinson & Castelli (2000), “é o conjunto de genes encontrados em uma população ou, de forma
mais ampla, em um conjunto de populações”.
180
Outro acontecimento importante, ocorrido no período, diz respeito ao rompimento
da parceria existente entre a Embrapa e a Fundação Mato Grosso. A Fundação Mato
Grosso não aceitou se enquadrar na nova regulamentação imposta pela Embrapa
quanto à titularidade e a divisão dos royalties e, em consequência dessas novas regras,
decidiu criar seu próprio programa de melhoramento genético de soja e algodão (DE
CARLI, 2005). Assim, se por um lado a política da Embrapa favorece as articulações com
as fundações de produtores que não possuem programas próprios de pesquisa, por
outro lado as parcerias com instituições de maior porte ficaram comprometidas.
No geral, a Embrapa realiza parcerias com o setor privado nas fases finais de
pesquisa e na colocação das tecnologias no mercado. Os acordos estabelecem que
o parceiro privado aporte recursos na pesquisa e, em contrapartida, receba o direito
de ser licenciado de forma exclusiva para explorar esses materiais. Essa exclusividade é
relativa, na medida em que os parceiros em questão são as fundações de produtores de
sementes, o que aumenta a amplitude de absorção dessa tecnologia (TEIXEIRA, 2008).
A única forma de garantir a exclusividade ao parceiro privado é a proteção
intelectual. De outra forma, a Embrapa não teria como garantir a exclusividade na
utilização da cultivar por parte do parceiro privado. Esse modelo de parceria tem
ampliado os recursos para as pesquisas da Embrapa devido ao aporte financeiro dado
pelo setor privado, pelos ganhos com os royalties decorrentes da tecnologia que foi
licenciada e pela venda da semente básica que foi desenvolvida pela Embrapa. Além
da ampliação dos recursos, o desenvolvimento de novas cultivares é favorecido pelos
pontos de testes ofertados pelos parceiros privados, o que representa um importante
feedback em relação às diferentes regiões produtoras do país.
Dessa forma, como se percebe, o caso da Embrapa revela que a propriedade
intelectual pode ser utilizada como um instrumento essencial no processo de produção
e transferência de tecnologias aos produtores rurais. Com base nessa percepção e com
uma expressiva capacitação construída nas últimas décadas, a Embrapa destaca-se em
relação às formas de proteção intelectual de seus ativos. Segundo Castelo Branco &
Vieira (2008), entre os anos de 1996 a 2006 a empresa depositou no Instituto Nacional
de Propriedade Industrial (INPI) 190 pedidos de patentes, 191 marcas e 25 registros de
software. No mesmo período, depositou no exterior 65 patentes e uma marca. Ainda
segundo os autores, a Embrapa possui um portfólio tecnológico de 129 patentes
concedidas, 168 marcas registradas e 30 softwares registrados.
Em relação, especificamente, aos certificados de proteção de cultivares no Brasil,
a situação de janeiro de 1998 a outubro de 2008135 era a seguinte: a Embrapa, como
titular e cotitular, possuía cerca de 26% do total de 1.105 registros de proteção de
cultivares, incluindo os certificados provisórios. Na sequência das principais instituições
135
Segundo o levantamento do Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC).
181
com cultivares protegidas estava a Monsoy (Monsanto), com 7%, e a Coodetec, com 4%.
Entre as 46 espécies vegetais que possuíam cultivares protegidas até aquele momento,
a soja era principal delas, com participação de 34% do total.
Dados mais recentes confirmam a presença majoritária da soja em relação às
demais culturas protegidas. Conforme descrito na Tabela 1, até julho de 2009 eram
426 certificados de proteção de cultivares de soja, incluindo cultivares geneticamente
modificadas (GM). A propósito, vale destacar que atualmente existem dois mercados
de sementes de soja: o de soja convencional e o de soja transgênica. No mercado
de sementes convencionais, a Embrapa, individualmente e em parceria com outras
organizações, é o principal player do mercado. Ela possui o maior número de sementes
protegidas, muitas delas de grande sucesso comercial. A Monsanto é a maior empresa
privada no mercado de soja convencional, o que conseguiu a partir da compra de
importantes empresas sementeiras nacionais. Na sequência, aparecem a Coodetec
(cooperativa de pesquisa ligada às cooperativas paranaenses) e a Naturale (empresa
nacional).
Tabela 1. Certificados de Proteção de Cultivares de Soja,
de janeiro de 1998 a julho de 2009.
Titulares
EMBRAPA
AGENCIARURAL/EMBRAPA
EMBRAPA/EPAMIG
EMBRAPA/EPAMIG/AGROP. BOA FÉ/COPAMIL/APSEMG
CTPA/AGENCIARURAL/EMBRAPA
EMBRAPA/EMATER-GO/AGROSEM
EMBRAPA/FUNDAÇÃO-MT
EMBRAPA/EPAMIG/CENTRO TECNOLÓGICO DO TRIÂNGULO E ALTO PARNAÍBA
EMBRAPA/FUNDAÇÃO-MT/CTPA
EMBRAPA/SEAGRO
EMBRAPA/FEPAGRO
EMATER-GO/AGROSEM/EMBRAPA
CTPA/EMBRAPA/AGENCIARURAL
EPAMIG/CENTRO TECNOLÓGICO DO TRIÂNGULO E ALTO PARNAÍBA/EMBRAPA
EPAMIG/EMBRAPA
MONSOY LTDA.
COODETEC
NATURALLE AGROMERCANTIL LTDA
DUPONT DO BRASIL S/A - DIVISÃO PIONEER SEMENTES
ANGLO NETHERLANDS GRAINS B.V.
FTS SEMENTES S.A.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA-UFV
ASOCIADOS DON MARIO S.A.
NIDERA S. A.
FUNDAÇÃO MT
FUNDAÇÃO MT/TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA/UNISOJA
FUNDAÇÃO MT/UNISOJA
UNISOJA/FUNDAÇÃO MT/TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA
UNISOJA/TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA/FUNDAÇÃO MT
TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA/UNISOJA/FUNDAÇÃO MT
TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA/FUNDAÇÃO MT/UNISOJA
FUNDAÇÃO CENTRO DE EXPERIMENTAÇÃO E PESQUISA - FUNDACEP FECOTRIGO
FUNDACEP-FECOTRIGO/COODETEC
SYNGENTA SEEDS LTDA
CM SEMENTES BIOTECNOLOGIA E COMÉRCIO LTDA.
PIONEER OVERSEAS CORPORATION
GRANAR S/A
AGENCIARURAL
COOPERATIVA AGROPECUARIA DO ALTO PARNAIBA-COOPADAP
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA-UFU
AGRO NORTE PESQUISA E SEMENTES LTDA.
INSTITUTO MATO-GROSSENSE DO ALGODÃO-IMA
TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA
FUNDAÇÃO ESTADUAL DE PESQUISA AGROPECUARIA-FEPAGRO
Total
182
Soja Convencional
80
7
5
4
4
3
2
1
1
1
1
1
1
1
39
22
22
7
11
10
13
8
1
1
1
3
1
5
7
7
2
4
2
2
2
1
283
Soja GM
23
1
1
1
41
9
9
4
3
11
9
4
3
2
1
2
1
5
3
6
3
1
143
Total
103
8
5
4
4
3
2
2
1
1
1
1
1
1
1
80
31
22
16
15
13
13
11
9
8
5
3
3
1
3
1
8
1
8
7
7
6
5
4
2
2
2
1
1
426
No mercado de soja GM, a situação é o oposto. Quem possui o maior número de
cultivares protegidas é a Monsanto. A Embrapa ocupa o segundo lugar. A Coodetec e
a Dupont possuem algumas cultivares protegidas também. Empresas argentinas (Don
Mario e Nidera) e uma paraguaia (Granar) também passaram a proteger cultivares no
Brasil (cultivares desenvolvidas inicialmente nos países vizinhos). As variedades de soja
GM protegidas são as resistentes ao herbicida glifosato (soja RR – Roundup Ready). Como
a Monsanto tem direitos sobre esse tipo de material (pela tecnologia de engenharia
genética que “transforma” a soja), consegue cobrar “taxas tecnológicas” pela utilização
de sua tecnologia. Por exemplo, em uma semente de soja RR da Embrapa, o produtor
paga pela tecnologia da semente (para a Embrapa, com base na Lei de Proteção de
Cultivares) e pela tecnologia RR (para a Monsanto). Além disso, o herbicida glifosato
também é produzido, embora não exclusivamente, pela Monsanto.
Percebe-se, então, que a Embrapa vem atuando no mercado de sementes
convencionais e transgênicas. No primeiro caso, como dito, é a líder. No mercado de
soja RR, ela não poderia ofertar esse tipo de material sem a parceria com a Monsanto.
Optou-se pela parceria de modo a também participar desse mercado. Além da soja RR,
outras variedades de soja transgênica estão em fase de pesquisa pela Embrapa. Uma
delas é originada de acordo entre a Embrapa e a Basf. Trata-se de uma variedade de
soja transgênica que está sendo desenvolvida no Brasil sob coordenação da Embrapa.
Pelo acordo, a Basf forneceu o gene ahas, que foi aplicado a uma variedade de soja da
Embrapa. A nova semente é resistente aos herbicidas da classe das imidazolinonas, que
matam ervas daninhas. Essas sementes ainda estão em fase de testes. Quando forem
liberadas para comercialização, devem ampliar a oferta de sementes de soja transgênica,
aumentando a concorrência no mercado, sobretudo em relação às variedades
resistentes ao glifosato. A Embrapa também está desenvolvendo uma variedade de soja
GM com maior resistência ao estresse hídrico (seca) em parceria com o JIRCAS (Japan
International Research Center for Agricultural Sciences). Esses dois exemplos colocam a
Embrapa entre as principais organizações que pesquisam soja GM no mundo.
6. CONCLUSÃO
As questões referentes à geração de novos conhecimentos na agricultura e aos
direitos de propriedade intelectual ocupam um lugar de destaque nesse novo cenário da
pesquisa agrícola, em especial em relação às atividades relacionadas ao melhoramento
vegetal. O desenvolvimento de novas cultivares, que a partir da Revolução Verde
assumiu um papel central na nova trajetória tecnológica então em curso, segue sendo
o elemento central de um conjunto de tecnologias que constituem a base do chamado
“agronegócio”.
183
Porém, diferentemente do que ocorria em momentos anteriores, novas questões
estão influenciando a forma de fazer pesquisa e as relações que se estabelecem entre
seus participantes. Se a inovação cerca de maneira cada vez mais profunda essas
atividades, a propriedade intelectual passa a ser um tema estratégico na formação do
arcabouço institucional do novo regime tecnológico e, por conseguinte, da dinâmica
de inovação da agricultura. Nesse sentido, é responsável pela incorporação de novas
tecnologias associadas a um padrão mais intensivo em ciência, que redefine o conjunto
de investimentos dirigidos ao setor. As novas cultivares promovem uma reordenação
do mercado de sementes, com o ingresso de novos atores e com a possibilidade de
fortalecimento das instituições de pesquisa (o que necessariamente depende da forma
como cada instituição passa a valorizar seus ativos).
Em um momento de forte concentração no mercado de sementes e mudas (em
2008, a Monsanto adquiriu importantes empresas brasileiras de pesquisa genética de
cana-de-açúcar e citros), somada à incerteza que sempre ronda o financiamento das
atividades de pesquisa no país, verifica-se a necessidade de se ampliar a discussão
sobre a forma como se organizam (e reorganizam) as instituições envolvidas com o
processo de pesquisa. Essa necessidade fica evidente ao se considerar que a fronteira
do conhecimento em agricultura se move de forma extremamente rápida, com forte
impacto nas atividades de pesquisa em melhoramento vegetal. Caso o Brasil se distancie
dessa fronteira, corre-se o risco de que a capacitação acumulada em pesquisa agrícola
nos últimos 200 anos136 fique ameaçada.
Esse novo ordenamento caminha ao lado da revisão dos marcos legais que se
encontra em pleno curso e, de certa forma, exige um novo movimento de capacitação
do conjunto dos atores envolvidos na inovação agrícola. Admitindo-se que o “novo”
paradigma já esteja em pleno processo de implementação, está mais do que na hora de
se refletir sobre esses assuntos.
136
O marco inicial da pesquisa agrícola no Brasil pode ser considerado a fundação do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, em
1808.
184
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186
IV
D IREITOS A UTORAIS E D ESENVOLVIMENTO
CAPÍTULO
I NOVAÇÃO
10
E PROPRIEDADE INTELECTUAL
NA INDÚSTRIA DE SOFTWARE NA
A MÉRICA L ATINA 137
Paulo Bastos Tigre138
Felipe Silveira Marques139
Agradecemos os comentários e sugestões de Elvira Andrade do INPI e dos pareceristas
anônimos. Entretanto, as opiniões, assim como eventuais erros e omissões, são de exclusiva
responsabilidade dos autores e não representam as instituições a que eles estão vinculados.
137
Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho
de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.
138
Professor Titular, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ).
139
Economista do BNDES, Doutor em Economia pelo IE/UFRJ.
I NTRODUÇÃO
A relação entre inovação e direitos de propriedade intelectual sempre levantou
controvérsias, dada a grande heterogeneidade existente nas formas de apropriação dos
resultados de esforços de inovação tecnológica. Os direitos de propriedade intelectual
constituem essencialmente um estímulo à inovação, recompensando o inovador em
relação aos riscos inerentes à atividade. Por outro lado, podem representar um obstáculo à
ampla difusão do conhecimento na economia, na medida em que conferem ao detentor
de patentes o direito de excluir terceiros do acesso a inovações. Harmonizar o incentivo
ao inovador com o amplo acesso à torrente de informação que brota da dinâmica
tecnológica constitui um desafio que transcende o aspecto puramente técnico.
Na área de software, a controvérsia sobre as formas de proteção da propriedade
intelectual está associada à natureza única dos programas que desempenham funções
técnicas por meio de algoritmos. Ao invés de enfatizar o meio físico, o software é intangível
e pode ser replicado praticamente sem custos. O software é caro de produzir e barato
de se reproduzir, ou seja, possui altos custos fixos e baixos custos marginais (Shapiro e
Varian, 1999). Por isso, seu preço é fixado de acordo com o valor que o consumidor está
disposto a pagar por ele, e não como função direta dos custos de produção.
O título de propriedade intelectual atribuído internacionalmente ao software é o
direito de autor140. Alguns países, entretanto, concedem patentes de invenções relativas
a serviços financeiros, vendas eletrônicas, métodos de negócios e publicidade pela
Internet que se expressam por meio de programas de computador. A demanda pelo
patenteamento de software se deve ao fato de o direito de autor proteger apenas as
“expressões literais” dos programas de computador. Como o valor do software não está
apenas na sua forma, mas também nas “ideias” nele contidas, as patentes passam a ser
uma forma de apropriação tecnológica mais forte. Elas protegem a funcionalidade do
programa e não apenas a forma como este foi escrito. Em termos práticos, o direito de autor
protege contra a pirataria, enquanto as patentes evitam a cópia por concorrentes.
Um dos principais argumentos em favor das patentes de inovações implementadas
por meio de software é que o conceito do programa precisa ser protegido para
favorecer a atividade inventiva. Na medida em que o software interage com o hardware,
oferecendo um conjunto de instruções que permitem que a máquina desempenhe
uma determinada função, argumenta-se que ambos precisam ser protegidos. Por outro
140
Usaremos aqui direito de autor e copyright como sinônimos, embora haja diferenças entre os dois. O copyright, como o
próprio nome diz, foi criado para proteger a cópia e, dessa forma, o editor. Já o direito autoral visa proteger o autor. A diferença
básica entre as duas modalidades recai nos direitos morais.
190
lado, existe oposição ao patenteamento de software e modelos de negócios em função
de suas implicações econômicas e sociais. Argumenta-se que a proteção por patentes
pode inibir a competição em função das características da inovação em software. Ao
contrário do que ocorre em áreas em que a inovação é centralizada, o desenvolvimento
de software envolve, tipicamente, a cumulatividade, a inovação sequencial e o reuso de
módulos em novos programas.
Este artigo analisa as práticas de propriedade intelectual adotadas na indústria
latino-americana de software. A principal questão discutida é a eficácia das patentes
de software como instrumento de estímulo à inovação e difusão das tecnologias da
informação e da comunicação (TIC). Como garantir os legítimos direitos de apropriação
tecnológica sem reduzir o espaço para a diversidade e convivência de modelos de
negócios distintos? A metodologia utilizada inclui análise do banco de dados de patentes
(SIMPI) do Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Diante dos impasses atuais no
debate sobre o regime de propriedade intelectual do software no âmbito do Acordo
TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) da Organização Mundial
do Comércio, o aprofundamento do tema é importante para balizar as negociações
bilaterais e multilaterais em curso envolvendo países latino-americanos.
I. A INDÚSTRIA DE SOFTWARE E SERVIÇOS NA AMÉRICA L ATINA
Para entender a importância dos direitos de propriedade intelectual na indústria
latino-americana de software, precisamos inicialmente avaliar suas características,
dinâmica e relevância na indústria global. A tabela abaixo apresenta os dados de vendas,
exportações e emprego em oito países da América Latina141. Empresas de software e
serviços de informática (SSI) instaladas nos principais mercados da região obtiveram um
faturamento conjunto de US$ 17 bilhões, equivalentes a pouco menos de 3% do mercado
mundial. Dentre eles, o Brasil constitui o principal mercado, com cerca de 60% do total.
Cabe lembrar que o valor registrado das atividades de SSI é geralmente subestimado,
já que parte das atividades não é contabilizada, por ser realizada internamente pelas
empresas usuárias. Além disso, alguns serviços são executados de maneira informal, não
aparecendo nas estimativas de faturamento.
As empresas de SSI empregavam formalmente 371,2 mil pessoas nos oito países
estudados, em 2005. No entanto, o número real de trabalhadores no setor pode ser
141
Os dados foram obtidos por consultores de um projeto da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe - CEPAL
e apresentam algumas diferenças em relação aos da World Information Technology and Services Alliance - WITSA (2006),
principalmente para a Colômbia, cuja estimativa não inclui empresas locais de serviços. Um dos motivos para tanto é que os
dados são de produção de software e serviços e não de gasto.
191
substancialmente maior, devido não só ao desenvolvimento de software e serviços pelos
próprios usuários, mas também por causa da prática, amplamente adotada no setor, de
utilizar contratos informais de trabalho. Mochi e Hualde (2009, p. 188s) estimam, para
o caso do México, que o número efetivo de trabalhadores em SSI é cinco vezes maior
do que o registrado nas empresas especializadas. Tomando esse número como base,
chegaríamos a 1,8 milhões de trabalhadores, o que equivale a 1,6% da força de trabalho
total da região. Em contraste, nos países da OECD, que apresentam maior difusão de TI, a
força de trabalho no setor corresponde a 3 a 4% do total, dado que confirma a coerência
de tais estimativas (OCDE, 2006, p. 217).
Ainda no tocante ao fator trabalho, verificamos que o perfil de empregos das
nove principais empresas multinacionais que atuam na região varia significativamente
em função do segmento de mercado visado. As subsidiárias de empresas dedicadas
exclusivamente à prestação de serviços empregam, em média, 16,4 pessoas para cada
milhão de dólares de vendas. Já as empresas que oferecem software produto, por
trazerem soluções prontas do exterior, geram somente 2,6 empregos por milhão (TIGRE;
MARQUES, 2007). Como não desenvolvem localmente, as subsidiárias de empresas de
software-produto tampouco exportam.
A dinâmica da indústria mundial de software é muito influenciada pelo feedback
positivo que torna os padrões dominantes cada vez mais fortes (SHAPIRO; VARIAN,
1999), especialmente no segmento de “software-produto”. Poucas empresas dominam
o mercado global de pacotes e sistemas operacionais, deixando pouco espaço para as
empresas independentes de software. Mesmo em nichos específicos, o software-produto
tende a se concentrar em poucos fornecedores globais. Tal monopólio foi consolidado
com o surgimento do microcomputador e a subsequente guerra de padrões em sistemas
operacionais. Diante da necessidade de garantir a compatibilidade e a comunicação
entre programas aplicativos, o mercado acabou por selecionar um “padrão de fato” para
sistema operacional que acabou por dominar praticamente todo o mercado.
O fato de o padrão ser praticamente monopolizado tem gerado grandes
assimetrias na rede de fornecedores de software. O acesso ao código-fonte, que permite
o desenvolvimento de aplicativos por empresas independentes, tem sido dificultado por
práticas de integração vertical por meio de pacotes. Ao embutir em um mesmo pacote
uma ampla gama de aplicativos que, alternativamente, seriam fornecidos separadamente
por empresas independentes, o proprietário do padrão unifica e concentra o mercado
de software. Ao fornecer um pacote completo, ele evita que os clientes procurem outros
fornecedores para complementar suas necessidades. Assim como os supermercados
vendem “de tudo” para evitar a dispersão dos clientes, as grandes empresas de software
formatam pacotes com uma ampla gama de aplicativos, visando criar barreiras para
fornecedores de programas individuais.
192
A América Latina ainda não desempenha um papel na indústria mundial de
software e serviços compatível com seu potencial. As exportações estão muito
aquém do padrão da Índia, que concentra 85% das exportações mundiais de software
pelo modelo de terceirização de serviços para outros países (offshore outsourcing) e
representa um paradigma para outros países em desenvolvimento. Porém, segundo a
World Information Technology and Services Alliance - WITSA (2006), o mercado latinoamericano de software e serviços (SSI) cresce mais do que a média mundial, e a indústria
local vem aumentando sua participação nas vendas globais. A participação das empresas
localizadas em 14 países142 latino-americanos nas vendas globais cresceu de 1,94%, em
2001, para 2,72%, em 2005 (TIGRE; MARQUES, 2009b, p. 251).
As exportações de software e serviços da região são estimadas em cerca de US$ 1 bilhão.
Em termos relativos, a Costa Rica, o Uruguai e a Argentina são os países que mais exportam
em relação ao faturamento total, com 44,5%, 39,5% e 18,3%, respectivamente. Esses três
países são, justamente, aqueles que apresentam os melhores indicadores educacionais no
subcontinente, sugerindo que a qualificação da força de trabalho constitui um fator-chave
nas exportações de software e serviços. Chile e México, com 5%, estão próximos à média
da amostra, que é de 6%. O Equador (12%) está em situação intermediária. Já o Brasil e a
Colômbia exportam apenas 3% do faturamento total.
Tabela 1 - Faturamento, emprego e exportações de SSI em países selecionados, 2005.
Argentina
Faturamento
(US$
milhões)
Emprego/
setor
(em mil
pessoas)
Exportações (US$
milhões)
Faturamento/
PIB
% do
emprego total
Exportação
1.342
32,0
245,1
0,74
0,20
18,3
a
Brasil
10.347
219,3
314,0
1,30
0,25
3,0
Chile
a
1.385
24,9
a
68,8
a
1,20
0,42
5,0
Colômbia
340a
31,7a
10,3a
0,28
0,16
3,0
b
44,5
Costa Rica
248
nd
110,3
1,28
nd
a
a
4,5
10,7
a
0,25
0,07
11,9
53,9
164,0
0,41
0,13
5,2
a
104,5
1,57
0,30
39,5
1.027,7
0,83
0,21
6,0
Equador
90
México
3.128
Uruguai
265
4,9
Total
17.145
371,2
a Dados de 2004.
b nd: não disponível.
Fonte: CAMTIC (2006, p. 3) para Costa Rica; Tigre e Marques (2008) para os demais países.
142
Além dos 7 países abordados em Tigre e Marques (2009a), há informações sobre a Bolívia, Costa Rica, Honduras, Jamaica,
Panamá, Peru e Venezuela.
193
O Uruguai é o país em que o setor tem o maior peso relativo no PIB (1,57%), seguido
pelo Brasil (1,30%), Costa Rica (1,28%) e Chile (1,20%). O software tem uma participação
relativamente menor no México (0,41%), Colômbia (0,28%) e Equador (0,25%). A
Argentina, com 0,74% encontra-se em situação intermediária, próxima à média dos oito
países, que é de 0,83%.
II. FORMAS DE PROTEÇÃO À PROPRIEDADE INTELECTUAL EM SOFTWARE
Os mecanismos legais disponíveis para a proteção da propriedade intelectual são a
patente e o direito autoral, também existindo, em um contexto mais restrito, a proteção
de marcas e símbolos de negócio, mediante o seu registro. Além disso, são utilizadas
formas técnicas de proteção, de forma a assegurar o segredo de negócio, como a
autenticação digital, a criptografia, o controle de acesso, a segregação de funções e a
auditoria de sistemas para proteger ativos. Frequentemente, um único produto utiliza
mais de uma dessas formas de proteção.
A indústria de software é naturalmente segmentada entre produtos e serviços,
embora possa haver uma combinação entre as duas modalidades. O software-produto
ou pacote de software é uma aplicação preparada previamente, que serve a um conjunto
amplo de clientes. A competitividade nesse segmento é definida pela capacidade de
desenvolvimento técnico e de comercialização de produtos em massa. Os investimentos
necessários para desenvolver e lançar produtos são altos e o retorno depende de sua
aceitação pelo mercado. O software-produto diferencia-se dos serviços de software em
função de suas características concorrenciais, pois envolve ganhos crescentes de escala.
Segundo Roselino (2006), o desenvolvimento de software-pacote envolve, de modo
geral, uma menor interação entre a empresa de software e o potencial demandante,
aumentando, assim, a necessidade de proteção legal.
D IREITO DE AUTOR
Tradicionalmente, o software é protegido por copyrights. O Acordo TRIPS, da
Organização Mundial do Comércio (OMC), referendou essa interpretação em 1994,
dispondo, no seu artigo 10, que “programas de computador, em código-fonte ou objeto,
serão protegidos como obras literárias, segundo a Convenção de Berna”. O copyright
é o regime de proteção conferido especificamente às criações literárias, artísticas
e científicas. Para a obtenção de um registro de direito autoral, é necessário apenas
que o autor declare que o objeto constitui uma criação original e independente, sem
necessidade de exame. Esse registro confere ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir
194
e dispor da obra literária, artística ou científica, ou seja, basicamente, o de impedir que
terceiros copiem o que foi criado, sem o seu consentimento. O registro do software é
opcional, já que o direito do autor nasce com a obra e, consequentemente, não se aplica
a uma concepção abstrata ou simples ideia, mas a algo escrito, pintado ou esculpido,
expressando uma ideia, em uma forma concreta de criação. O registro de direito autoral
protege tanto o código-fonte quanto o código-objeto (ou código-executável) relativo ao
software. Tal proteção está relacionada à “forma de expressão da ideia” e não à “aplicação
da ideia” que o software executa (ANDRADE et al., 2007).
O copyright protege uma criação original de software, o que garante ao criador
um controle exclusivo sobre este, incluindo o direito de vender e licenciar o trabalho
e vedando a terceiros a apropriação, réplica ou venda do programa sem permissão.
O sistema de proteção não exclui a possibilidade de outros agentes desenvolverem
outros trabalhos semelhantes de forma independente, com base nas mesmas ideias ou
propósitos. O titular original pode, também, manter controle sobre trabalhos derivados,
tais como novas versões. O software é geralmente licenciado a qualquer usuário, mas a
licença pode conter termos e condições arbitrárias de uso, pagamento e disseminação,
incluindo prazos, abrangência da licença e formas de pagamento.
No entanto, à medida que o software efetivamente comanda todo o sistema
computacional, levando-o a realizar múltiplas funções, fica claro que ele representa
muito mais do que é literalmente expresso pelo seu código. Sob esse argumento, as
empresas de software incluíam, na solicitação de registro de direito autoral, aspectos
relacionados às funções executadas pelo programa. A tutela de direito autoral, por estar
relacionada às criações artísticas, científicas e literárias, é uma proteção de forma e de
aspectos literais, não cabendo qualquer proteção a funcionalidades. Assim, tais artifícios
foram negados judicialmente, posto que os aspectos funcionais não se enquadravam
na categoria de direito autoral.
Segundo o Manual Frascati (OCDE, 2002, p. 46), para um projeto de desenvolvimento
de software ser classificado como Pesquisa e Desenvolvimento, sua consecução deve
depender de avanços técnicos ou científicos ou o seu objetivo deve ser a resolução
sistemática de uma incerteza científica ou tecnológica. O uso de um software para uma
nova aplicação ou propósito não constitui necessariamente um avanço. Dessa forma, é
difícil identificar o que é de fato uma inovação no setor. Valimaki (2005, p. 69) aponta que
muitos programadores renomados não se reconhecem como inovadores, mas como
autores. Estes comparam o desenvolvimento de um novo software à escrita e afirmam
que um novo software não é “descoberto”, mas implementado. Nesse contexto, o direito
de autor constitui a forma mais adequada de propriedade intelectual para o software.
Na tradição do direito autoral, a lei protege a forma de expressão de um programa,
e não a sua ideia ou utilidade. A interpretação corrente é de que as telas e relatórios de
195
um programa podem ser copiados sem violação dos direitos autorais; o que não pode
ser copiado é seu código-fonte (VEIGA, 1998). Também não constitui ofensa aos direitos
do titular a ocorrência de semelhanças de um programa a outro, quando esta se der por
força das características funcionais da aplicação, da observância de preceitos normativos
e técnicos ou de limitação de forma alternativa para a sua expressão. Existem, ainda, os
casos de realização de uma única cópia de salvaguarda e de citação parcial para fins
didáticos, que são explicitamente permitidos na lei. A lei exclui, também explicitamente,
os direitos morais do autor, exceto o direito de reivindicar a paternidade do programa e
de se opor a qualquer modificação que possa prejudicar sua honra ou reputação. Além
disso, são reconhecidos como pertencentes exclusivamente ao empregador os direitos
de propriedade de programas desenvolvidos sob vínculo empregatício. Para usufruto
dos direitos de autor decorrentes do desenvolvimento de programas de computador,
não há necessidade de nenhuma formalidade ou registro.
PATENTES ENVOLVENDO SOFTWARE
As patentes relacionadas aos sistemas de controle dedicado, definidos como
“softwares embarcados”, sempre foram admitidas pelas instituições de registro de
patentes. Programas de controle de equipamentos e sistemas como freio ABS em
automóveis e programas embutidos em telefones celulares e máquinas de lavar não
têm sido objeto de controvérsias relevantes. Porém, observa-se claramente que a
maioria dos debates relativos à patenteabilidade das invenções implementadas por
computador gira em torno do critério, escopo e forma de proteção segundo os quais
devem ser concedidas patentes relacionadas a softwares cuja aplicação se destina a
computadores de aplicações gerais, tais como o microcomputador pessoal (ANDRADE
et al., 2007).
Já as patentes de métodos de realização de negócios que habitualmente
incorporam software aplicativo começaram a concedidas em 1998. Apesar de a exclusão
de programas para computador em si da proteção por patente estar contemplada
no art. 52 da European Patent Convention (EPC), bem como nas legislações nacionais,
milhares de patentes têm sido concedidas pelo European Patent Office (EPO) e por
alguns escritórios de Estados-Membros da União Europeia (UE). Nos Estados Unidos, a
concessão de patentes tem sido ainda mais liberal, tanto no processo de análise quanto
no escopo das inovações.
As criações envolvendo programas de computador eram consideradas uma
extensão do pensamento, atos puramente mentais, que não se enquadram como
invenções. Porém, com o intuito de forçar uma proteção mais ampla, empresas de TIC
passaram a submeter, sistematicamente, depósitos de pedidos de patente envolvendo
196
programas de computador. Tal ação rendeu frutos, posto que hoje em dia algumas
instituições envolvidas em PI já admitem que os programas de computador atribuem
um caráter técnico ao objeto, deixando este de ser considerado apenas um ato mental
abstrato.
As grandes empresas de software-produto, que vendem pacotes padronizados, são
as que mais pressionam os escritórios de Propriedade Intelectual por uma proteção mais
abrangente. Elas procuram criar novas condições técnicas e jurídicas para proteger seus
produtos. Entretanto, os critérios de patenteabilidade para as invenções implementadas
em computador não são claros e, em decorrência disso, vêm sendo interpretados de
forma diferente nos diversos países, gerando problemas comerciais transfronteiriços.
O advento da Internet facilitou ainda mais a distribuição e circulação do software,
acentuando as características descritas por Lemos (2005) como res commune, isto é,
bens de todos e, ao mesmo tempo, bens de ninguém. Evitar a circulação de cópias
não autorizadas passou a ser mais difícil e a indústria de TIC tem-se preocupado em
criar novas formas de proteger seus ativos intangíveis por meios jurídicos (patentes) e
técnicos (proteções eletrônicas).
A concessão de patentes de software pode resultar na concentração do mercado.
O poder de inovação da pequena empresa é inibido pela patente, já que o seu alto custo
de obtenção – que varia de € 10 mil nos E.U.A. a quase € 50 mil na Europa – aumenta
o risco de serem excluídas do mercado, por não terem condições de arcar com esses
custos. Outra consequência das patentes de software seria o aumento nos pedidos de
patentes, e, consequentemente, no tempo que estas levam para serem concedidas,
elevando, assim, a incerteza legal do sistema. As pequenas empresas não seriam capazes
de competir em bases iguais com grandes corporações que possuem advogados
especializados, podendo requisitar centenas ou milhares de patentes anualmente e
iniciar processos legais indiscriminadamente, como medida de intimidação.
Outro argumento contra o patenteamento é que produtos de software tendem a
ser sistemas construídos a partir de vários subsistemas pré-existentes. Permitir a patente
desses componentes poderia implicar o pagamento simultâneo de várias licenças, de
forma a poder comercializar um dado produto, resultando em um custo maior para
a sociedade. Dessa forma, as grandes empresas seriam favorecidas devido aos seus
grandes portfólios de patentes e, consequentemente, poder de barganha para negociar
licenças cruzadas entre si.
Os opositores das patentes de software argumentam, ainda, que os bancos de
dados utilizados pelos escritórios nacionais de patentes não contemplam grande parte
do estado da técnica para softwares, dificultando significativamente o procedimento de
exame de patente na aferição de novidade e não-obviedade. Em consequência, correse o risco de que softwares que já fazem parte do estado da técnica sejam apropriados
indevidamente por meio de patentes (VALIMAKI, 2005).
197
FORMAS TÉCNICAS DE PROTEÇÃO
Muitas empresas, principalmente de pequeno e médio porte, não utilizam meios
jurídicos para proteger sua propriedade intelectual, preferindo recorrer a elementos
tecnológicos. Os meios técnicos de proteção ao software incluem autenticação digital,
criptografia, controle de acesso, auditoria de sistemas e segregação de funções. A
eficácia desses procedimentos pode variar segundo a complexidade do software e o
mercado ao qual ele se dirige. Empresas que desenvolvem produtos sob encomenda
de usuários específicos não necessitam de registros de software, pois podem controlar
o acesso de usuários e criptografar as comunicações que envolvem o programa. Já os
provedores de produtos voltados para o grande público utilizam códigos e protocolos
para dificultar a cópia ilegal e monitorar as ações dos usuários. Independentemente da
questão legal, as formas técnicas de proteção estão ganhando crescente importância
nas estratégias competitivas adotadas na indústria de software.
III. I NOVAÇÃO E PROPRIEDADE I NTELECTUAL NA INDÚSTRIA DE SOFTWARE
O conceito de software como um componente distinguível de um sistema
computacional, segundo Mowery e Rosenberg (2005), nasceu nos anos 1950, com o
advento da arquitetura de Von Neumann de computadores com programas armazenados.
Porém, o software permaneceu intimamente ligado ao hardware e o desenvolvimento
de uma indústria de software nos Estados Unidos só começou realmente quando os
computadores passaram a ser produzidos em grandes quantidades. Ao final dos anos
60, os produtores de computadores começaram a “desembutir” suas ofertas, separando
o preço e a distribuição do software, fato que estimulou a entrada de produtores
independentes de programas aplicáveis a computadores de grande porte.
A invenção do microprocessador pela Intel, em 1971, revolucionou a tecnologia
de hardware ao integrar toda a Unidade Central de Processamento (CPU, na sigla em
inglês) de um computador em um único chip. Com a maior integração de circuitos,
a disponibilidade de memória deixou de ser um recurso escasso para se transformar
em uma solução virtualmente ilimitada. Em consequência, multiplicou-se a oferta, a
custos declinantes, da capacidade de armazenamento, processamento e transmissão
da informação digitalizada, o que permitiu sustentar uma crescente expansão das
aplicações de bens da informação.
O crescimento do valor atribuído ao software na cadeia de valor resultou em um
maior interesse por parte da indústria em proteger seus ativos intangíveis. O software
passou a ser um produto à parte, cobrado separadamente do hardware, o que propiciou
198
o desenvolvimento de uma indústria independente. Tal indústria passou a reivindicar
maior proteção legal, visando reaver os investimentos realizados no desenvolvimento
de programas e impedir a circulação de cópias não autorizadas. Diante dessa nova
situação, chegou-se a um consenso no âmbito da Organização Mundial de Propriedade
Intelectual (OMPI) de que os programas de computador precisavam ser protegidos,
dando origem a intensas discussões sobre o papel do regime de Propriedade Intelectual
(WIPO, 2004, p. 436).
O advento da Internet facilitou ainda mais a distribuição e circulação do software,
acentuando suas características de intangibilidade e fácil distribuição. O valor de
uma tecnologia geralmente depende das condições de apropriabilidade, ou seja,
da possibilidade de se manter o controle monopolista sobre essa tecnologia por um
determinado período de tempo. Tal controle é geralmente exercido por meio da
propriedade intelectual sobre bens imateriais, principalmente por meio de patentes
ou direitos autorais. Em alguns casos, a tecnologia não é patenteável e a proteção é
mantida por segredo industrial. Uma tecnologia não protegida e facilmente imitável
leva os rendimentos monopolistas de uma inovação a quase zero (DOSI et al., 2003).
Por outro lado, uma apropriação exclusiva e prolongada de direitos sobre inovações
pode restringir a difusão do conhecimento. Isso ocorre não apenas porque o monopólio
resulta em maiores custos para os usuários, mas principalmente pela pouca transparência
técnica oferecida. O software proprietário constitui uma “caixa preta” cujo código-fonte
não está aberto a terceiros. Em consequência, há pouca troca de conhecimentos e
insuficientes incentivos para o processo de aprendizado interativo. As tecnologias
proprietárias, quando bem sucedidas, constituem um monopólio natural em função das
economias de rede que geram para seus usuários (SHAPIRO; VARIAN, 1999).
Diante da heterogeneidade existente na indústria de software com relação a
tamanho de empresas, modelos de negócios, mercados e tecnologias utilizadas,
observam-se acirrados conflitos quanto à forma de proteção a ser conferida ao softwareproduto. Tais conflitos foram evidenciados por ocasião das discussões, iniciadas no
início da década de 2000 no Parlamento Europeu, sobre uma proposta de diretiva
europeia para o patenteamento de software. Dois grupos podem ser identificados como
polarizadores da discussão.
O primeiro grupo é constituído pelas grandes empresas do setor de TIC, que exercem
uma considerável pressão junto a organismos multilaterais e governos nacionais, não
só pela manutenção do status quo como também pelo aumento da abrangência da
patenteabilidade de invenções implementadas em computador. Na Europa, um grupo
formado por Nokia, Philips, Siemens, Ericsson e Alcatel enviou um documento à União
Europeia estimando um prejuízo de 15 a 18,5 bilhões de euros em seus gastos com
pesquisa de desenvolvimento (P&D), caso não fossem permitidas patentes relacionadas
a software (SILVA, 2007).
199
Outro argumento é que restrições às patentes de software irão ter implicações
negativas na economia da Europa como um todo, onde acabarão por acarretar a perda
de milhares de empregos de alta qualificação em pesquisa e desenvolvimento (P&D).
As grandes empresas alegam que uma diretiva estabelecendo limites a patentes de
software poderia induzir a fuga de especialistas e investimentos para os Estados Unidos
e, portanto, o fortalecimento do regime de propriedade intelectual seria uma forma de
defender a Europa da competição com os E.U.A.
O segundo grupo, contrário ao fortalecimento do sistema de proteção à propriedade
intelectual em software, é formado por um conjunto abrangente de atores, incluindo a
comunidade de software livre e código aberto, instituições acadêmicas e associações de
pequenas e médias empresas. Eles argumentam que as patentes relacionadas a software
irão desestimular a inovação e farão com que os desenvolvedores de softwares corram o
risco de serem processados por grandes empresas (ANDRADE et al., 2007).
A exemplo de outros bens imateriais, o software se caracteriza como um bem não
competitivo, ou seja, pode ser compartilhado por todos sem custos adicionais. O fato
de uma pessoa utilizar um programa não priva ninguém mais da possibilidade de fazer
o mesmo, em igualdade de condições (LEMOS, 2005). Por esse motivo, desde 1980, vêm
surgindo modelos alternativos de produção e distribuição. Questionando a necessidade
de licenças que, cada vez mais, restringiam a liberdade dos usuários, as comunidades
de software livre adotam diferentes iniciativas como a criação de sistemas operacionais
e aplicativos com código-fonte aberto e que são distribuídos gratuitamente mediante
uma licença de uso específica.
Os adeptos do software aberto defendem que um regime sem patentes, que
estimule o acesso ao conhecimento e a competição entre empresas independentes, é
uma forma preferível de incentivar a inovação no setor e garantir a interoperabilidade
entre os programas, sistemas e redes. Eles argumentam que as patentes de software
prejudicam o processo de padronização e aprisionam usuários em tecnologias
proprietárias. O patenteamento de modelos de negócios é visto como um fator de
distorção da competição no mercado, pois confere direitos exclusivos desproporcionais
em relação aos investimentos realizados pelo detentor da patente. Tendo em vista o
custo desproporcional imputado à sociedade pela concessão de direitos exclusivos, os
métodos de negócios deveriam ser considerados de domínio publico, a exemplo das
leis da natureza e dos princípios científicos.
200
IV. PROPRIEDADE I NTELECTUAL DE SOFTWARE NA AMÉRICA LATINA
Em conformidade com a Convenção de Berna, os países latino-americanos
conferem ao software a proteção autoral concedida às obras literárias. Vários países
revisaram recentemente seu marco regulatório referente à propriedade intelectual,
de forma a se adequar à legislação sugerida pelo acordo TRIPS. Hoje existem apenas
diferenças pontuais nas políticas adotadas pelos países da região em relação a PI. Por
exemplo, a Argentina, ao contrário do Brasil, do Chile e da Colômbia, não inclui obras
de multimídia em sua lei de proteção ao software. Outra diferença se verifica, ainda,
nos órgãos responsáveis pelo registro de software. Enquanto que no Brasil, no Chile, no
Equador e no México o registro é feito pela instituição que concede também a patente,
na Colômbia e no Uruguai este é realizado pela instituição que faz o registro de livros e
outras obras, ao passo que na Argentina o mesmo é feito por uma associação do setor.
Quadro 1: Legislação sobre proteção de software na América Latina
País
Lei
Ano
Forma de
proteção
Argentina
11.723
1998
Direito
de autor
Cámara de Empresas de Software
(CESSI)
Brasil
9.609
1998
Direito
de autor
Instituto Nacional de Propriedade
Industrial (INPI)
Chile
17.336
1970
Direito
de autor
Departamento de Derechos de la
Propiedad Intelectual
Colômbia
603
2000
Direito
de autor
Dirección Nacional de Derechos de
Autor
Equador
83
1998
Direito
de autor
Instituto Ecuatoriano de la Propiedad
Intelectual (IEPI)
México
122
1996
Direito
de autor
Instituto Mexicano de la Propiedad
Intelectual
Uruguai
17.616
2003
Direito
de autor
Consejo de Derechos de Autor
Quem faz o registro
Fonte: elaboração própria a partir de Chudnovsky, López e Melitsko (2001, p. 91-96) para a Argentina; Marques (2009a, p. 99s)
para o Brasil; Alvarez e Lillo (2009, p. 130s) para o Chile; Rodríguez (2009) para a Colômbia; Mireles (2007, p. 64) para o Equador;
Mochi e Hualde (2009, p. 195ss) para o México; e González (2009, p. 244) para o Uruguai.
201
Embora a legislação preveja a proteção por direito de autor, alguns países da região
concedem patentes de software, registradas como patentes de invenção. No Chile, em
1991, houve apenas um pedido de patente; em 1998, oito; em 2004, 123; e em 2005, 140
(ALVAREZ; LILLO, 2009, p. 130s.). Devido ao alto custo – entre US$ 1,3 mil e US$ 3,7 mil –
as empresas de capital chileno não costumam solicitar patentes de software.
O CASO DAS PATENTES DE SOFTWARE NO BRASIL
O caso do Brasil merece ser destacado pelo fato de o país ter um histórico de efetiva
concessão de patentes de software e também por ser o principal mercado na região. Em
1998, foi aprovada a nova lei de software (ANDRADE et al., 2007). A política anterior já
sofria pressões em função da inclusão do tema de propriedade intelectual na pauta de
negociações da Rodada Uruguai do então General Agreement for Trade and Tariffs (GATT),
que antecedeu a OMC. Desde 1994, quando foi criado o TRIPS Em consequência, o Brasil
vinha discutindo a reformulação de sua legislação sobre direitos autorais, estabelecendo
o direito autoral para programas de computador pelo prazo de cinquenta anos.
Apesar de não incluir explicitamente patentes de software, esse tipo de proteção
vem sendo efetivamente concedida, segundo a prática adotada na Europa e nos Estados
Unidos. O software é geralmente patenteado como uma invenção implementada por
computador. Para isso, os solicitantes argumentam que, conforme o acordo TRIPS (artigo
27.1), as patentes devem ser disponíveis para invenções em todos campos tecnológicos,
devendo a proteção patentária, portanto, se estender também ao software.
Em uma busca no sistema de patentes do Instituto Nacional da Propriedade
Intelectual (SINPI) realizada em março de 2007 por Antônio Carlos de Souza Abrantes,
foram identificadas 590 patentes de software decididas (deferidas e indeferidas). A busca
utilizou as seguintes palavras-chave: “Computador, microprocessador, microcontrolador,
notebook, programa ou software”. Foram considerados apenas pedidos de patente de
invenção (PI), que é a natureza adequada para os pedidos relacionados a programas de
computador. Dos 590 pedidos decididos, 439 foram deferidos (74%) e 151 indeferidos
(26%). As patentes de invenção concedidas são dos seguintes tipos:
•
•
•
•
•
•
202
Sistema operacional (SO)
Interfaces de usuário (IU)
Telecomunicações (TC)
Processamento gráfico (PG)
Controle de impressão (PR)
Automação industrial (AU): controle de freios de trens e elevadores, controle
automático de marchas de automóveis
•
•
•
•
•
Codificação de dados (ML)
Distribuição e seleção de programas de televisão
Processamento de linguagem com sistemas de reconhecimento de voz (PL)
Controle de instalações elétricas (EE)
Edição de texto (ET)
A tabela abaixo mostra que, do total de 590 pedidos de patentes decididos, 512
foram solicitados por não residentes (87%) contra apenas 78 de residentes no país
(13%). Das patentes solicitadas por não residentes, a maioria (83%) foi efetivamente
concedida. Em contraste, apenas 18% dos pedidos feitos por residentes foram deferidos.
Tais pedidos foram feitos principalmente por pessoas físicas e a maior parte dos
indeferimentos foi atribuída à insuficiência descritiva. Já as patentes concedidas a não
residentes foram solicitadas por empresas que, em sua grande maioria, já haviam obtido
tal registro no exterior. Das 590 decisões, 457 já possuíam patente americana concedida
pelo United States Patent and Trademark Office - USPTO, sendo que 388 (85%) acabaram
sendo deferidas pelo INPI. Destas, 309 haviam obtido patente europeia, das quais 279
(90%) foram deferidas e apenas 30 (10%) indeferidas.
Tabela 2. Pedidos de patentes relativas a programas de computador, INPI, Brasil, 2007.
Origem
Pedidos totais
Patentes
concedidas
Não concedidas
Residentes
78
(13%)
14
(18%)
64
(82%)
Não residentes
512
(87%)
425
(83%)
87
(17%)
Total
590
100%
439
(74%)
151
(26%)
Fonte: SINPI (INPI)
Podemos observar que apenas 14 patentes de software (3% do total) foram
concedidas a residentes no país. Nenhuma empresa ou instituição brasileira detém
mais de duas patentes de software, o que revela a pouca importância atribuída a
esse mecanismo de apropriação no âmbito local. Questionada sobre esse fato, uma
empresa nacional entrevistada revelou que, embora nunca tenha solicitado patente no
país, já possui um título nos Estados Unidos. A patente foi obtida para evitar conflitos
com eventuais detentores de direitos de propriedade intelectual nas exportações de
software.
203
Os dados sugerem que as patentes de software, no Brasil, representam
essencialmente uma extensão de direitos de propriedade já obtidos em outros países.
O sistema local parece dar vigência e eficácia às patentes concedidas no exterior, sem
representar um efetivo estímulo à atividade inventiva local.
V. A QUESTÃO DA PIRATARIA
Em uma economia crescentemente baseada na informação e no conhecimento,
a apropriação de ativos intangíveis por meio de direitos de propriedade é um tema de
crescente importância nas relações internacionais. Visando monitorar o movimento de
cópias não autorizadas, conscientizar a opinião pública sobre ilegalidade e pressionar
governos nacionais a combater a pirataria por meio de ações penais, empresas de
software criaram associações em toda a América Latina. No plano político, além de
angariar apoio local, tais associações contam com apoio tácito dos governos de
seus países de origem. O governo norte-americano, em particular, criou a US Special
301 Priority Watch List com o objetivo de dar consistência legal a ações de retaliação
comercial a países suspeitos de praticarem pirataria de software. Atualmente, o México
é um dos países latino-americanos incluídos na lista.
Um estudo da Business Software Association (IDC; BSA, 2005, p. 14) estima que
a perda das empresas de software com as cópias não autorizadas na América Latina
atingiu US$ 2 bilhões em 2005. Tal estimativa é feita com base na avaliação do
número de cópias piratas em circulação multiplicado pelo preço da licença original.
Comparativamente, a perda com a pirataria de software na América Latina seria, em
linhas gerais, equivalente ao estimado para o Oriente Médio e África (US$ 1,6 bilhão)
e para o Leste Europeu (US$ 3 bilhões). As perdas em países desenvolvidos seriam
de US$ 6,9 bilhões nos Estados Unidos, US$ 3,2 bilhões na França, US$ 1,9 bilhão na
Alemanha e US$ 1,8 bilhão no Reino Unido. Porém, como o mercado desses países é
maior, as perdas estimadas nos países em desenvolvimento são mais significativas em
termos relativos. O estudo avalia que a taxa de pirataria chega a 68% na América Latina
contra 36% na União Europeia.
Entretanto, tais estimativas de pirataria estão provavelmente superestimadas.
(CORREA, 1999) critica os cálculos da BSA por partirem da hipótese de que as cópias
piratas existentes em circulação seriam alternativamente compradas a preços de
mercado. Para esse autor, uma estimativa mais realista deveria levar em conta as vendas
que as empresas efetivamente deixaram de realizar em consequência da pirataria.
Nesse sentido, é razoável supor que muitos consumidores que copiaram ou compraram
softwares piratas a um preço inferior ao do original não estariam dispostos a pagar o
preço cheio das licenças oficiais. Caso a pirataria fosse efetivamente controlada, muitos
204
usuários simplesmente deixariam de usar programas proprietários. Esse argumento, já
levantado na literatura, sugere que as cópias não autorizadas ajudam a difundir padrões
tecnológicos proprietários em países emergentes. Apesar de não gerarem receitas
imediatas, o uso não autorizado dos programas contribui para o feedback positivo,
gerando efeitos de rede essenciais para a consolidação de padrões no mercado.
A pirataria afeta principalmente as empresas que vendem pacotes genéricos. Já as
empresas que prestam serviços ou que customizam produtos para seus clientes estão
menos preocupadas com cópias ilegais. Uma pesquisa conduzida por Chudnovsky,
López e Melitsko (2001, p. 95), na Argentina, revelou que 60% das 39 empresas locais
desenvolvedoras de software entrevistadas alegaram não serem afetadas por pirataria por
parte dos usuários, enquanto que metade delas não temia a pirataria de competidores.
Na medida em que seus programas precisam ser adaptados às necessidades dos
clientes, o produto em si não tem valor de revenda para imitadores pouco qualificados
tecnicamente.
A principal alternativa para os usuários de software que não querem se submeter
às condições de licenciamento e às restrições técnicas impostas pelos fornecedores de
software proprietário é o software livre ou aberto. Os modelos de negócios baseados
nesse tipo de licença partem do princípio de que o valor está no serviço e não no
produto. Adotado inicialmente por pequenas empresas, vem ganhando adeptos entre
âncoras da indústria, como a IBM e a Sun. Os programas são doados ou licenciados
a preços simbólicos aos clientes em troca de contratos de prestação de serviços.
Empresas usuárias não necessitam apenas do programa, mas principalmente de serviços
técnicos e tecnológicos como o desenvolvimento e implementação de interfaces com
sistemas legados, adaptação dos programas às características das empresas, serviços de
manutenção, treinamento e consultoria. Assim, as receitas de royalties são substituídas
por serviços ao cliente.
VI. CONCLUSÕES
A América Latina vem aumentando gradativamente sua participação na indústria
global de software e serviços, graças à disponibilidade de recursos humanos qualificados
a custos relativamente baixos e a um mercado interno em franco crescimento. A
principal área de oportunidade para os países da região reside na prestação de serviços,
já que os pacotes de software são monopolizados por poucas empresas globais (TIGRE;
MARQUES, 2009b; MARQUES, 2009b). Por ser de produção cara e reprodução barata, o
software-produto implica grande economia de escala e escopo. Além disso, o feedback
positivo e os efeitos de rede conduzem à lógica do “vencedor leva tudo”.
205
O fortalecimento dos mecanismos de apropriação interessa essencialmente
a empresas de pacotes que praticamente não produzem na América Latina. As
grandes empresas multinacionais que efetivamente produzem e geram divisas na
região são predominantemente voltadas à prestação de serviços de outsourcing, um
ramo de negócios que tem pouca necessidade de proteção patentária. As empresas
nacionais de software tampouco consideram as patentes importantes. Elas se utilizam
essencialmente de procedimentos técnicos e somente julgam necessária a proteção
por patente quando exportam para os Estados Unidos.
Assim, levando em conta os interesses regionais, um regime de baixa
apropriabilidade tecnológica é mais favorável à inovação, dado o caráter cumulativo
e modular das soluções. Como o desenvolvimento de software se baseia no
aproveitamento de componentes pré-existentes, a patente desses subsistemas inibe
a inovação, seja pelo alto custo de licenciamento ou pela proibição da utilização de
determinados componentes.
O fato de as patentes inibirem a inovação em software, no entanto, não justifica o
desrespeito a leis e acordos internacionais. Nesse aspecto, a maioria dos países latinoamericanos se enquadra nas orientações do acordo TRIPS de proteger os produtos
contra a pirataria por meio de copyrights. Tais países alteraram suas legislações na década
de 90 para se adaptar às exigências multilaterais e hoje se observa uma significativa
homogeneidade nas legislações. Entretanto, o controle legal de cópias não autorizadas
é difícil até mesmo em países desenvolvidos, fato que vem levando muitas empresas a
adotarem formas técnicas de proteção como autenticação digital, criptografia, controle
de acesso, segregação de funções e auditoria de sistemas para proteger seus ativos.
Outra estratégia é adotar modelos de negócios mais apoiados em software livre e na
prestação de serviços.
Apesar do enquadramento às normas internacionais, os países-membros da
Organização Mundial do Comércio (OMC) vêm enfrentando crescentes pressões
para aumentar a proteção aos direitos de propriedade de programas de computador
(SHADLEN; SCHRANK; KURTZ, 2005). Tais pressões contribuem para uma maior
liberalidade na concessão de patentes, principalmente no Brasil, que responde por
mais da metade do mercado latino-americano de software. Outro aspecto importante
na agenda comercial dos países latino-americanos é a questão das perdas na
indústria de software, motivadas pela pirataria. As estimativas são superestimadas em
função da metodologia adotada, mas, mesmo assim, servem de base para ameaças
de retaliação comercial. Entretanto, isso não quer dizer que a pirataria não deva ser
combatida. Assegurar os direitos de propriedade intelectual é uma obrigação do
Estado e da Justiça.
206
Em síntese, a propriedade intelectual é um instrumento legal que busca garantir a
apropriação tecnológica, diante dos riscos e dificuldades enfrentados pelos inovadores.
A dinâmica do mercado de software é permanentemente afetada por inovações em
rede que ampliam as interfaces, permitindo o surgimento de novas formas de produzir
e compartilhar informação e conhecimento. Em consequência, o mercado se subdivide
com a criação de novos segmentos, como o de software aberto, gerando modelos de
negócios e padrões de competição significativamente distintos.
Nesse contexto, os organismos encarregados da política industrial se defrontam
com o desafio de harmonizar interesses conflitantes que transcendem o aspecto técnico.
Por um lado, precisam atender à demanda das grandes empresas por maior proteção,
segundo as legislações e os acordos internacionais vigentes. Por outro, é necessário levar
em conta que as mudanças tecnológicas exigem a abertura de espaço no mercado para
novas formas cooperativas de produção internacional de conhecimentos digitalmente
codificados. Uma excessiva restrição à circulação de conhecimentos poderá dificultar
essa missão. Os debates sobre o tema são ainda incipientes e necessitam ser reforçados
por meio de uma agenda de pesquisa independente, que analise o impacto das patentes
de software sobre o processo de inovação e as alternativas existentes para estimular as
atividades inventivas no setor.
207
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210
CAPÍTULO
D ILEMAS
DA
L EGISLAÇÃO
AUTORAL NO
11
B RASIL 143
Allan Rocha de Souza144
143
Texto originalmente apresentado em Audiência Pública realizada na Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos
Deputados, em 11.11.08, em Brasília-DF, por ocasião da discussão sobre a reforma da lei autoral no Brasil.
144
Doutor em Direito Civil pela UERJ. Professor e Pesquisador de Dirieto Civil na UFRRJ/ITR. Professor e Pesquisador de Direitos
Autorais na UFRJ/PPED.
1. EM BUSCA DO EQUILÍBRIO
A proteção jurídica das obras artísticas abrange essencialmente duas ordens de
interesses: os do criador e os da sociedade.
Ao criador de uma expressão personalizada de conteúdo artístico, literário ou
científico são constitucionalmente atribuídos direitos de utilização equiparados ao de
propriedade, inclusive com relação à satisfação obrigatória de sua função social145.
À sociedade e aos usuários são reconhecidos direitos igualmente constitucionais e
fundamentais de usos essenciais à educação146, pesquisa147, cultura148 e comunicação149,
todos essenciais para a interação sociocultural150 e para a própria formação da pessoa e
construção de sua dignidade151.
145
Constituição Federal de 1988, art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: (...) XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá à sua função
social; (...) XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível
aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais
em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização
do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas
representações sindicais e associativas”.
146
Id., art. 6o:: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”; art. 205: “A educação,
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”; art. 206:
“O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber”.
147
Ibid., art. 218: “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas”.
148
Ibid., art. 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional,
e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. (...)
§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à
integração das ações do poder público que conduzem à: I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção,
promoção e difusão de bens culturais; (...) IV democratização do acesso aos bens de cultura”; art. 216: “Constituem patrimônio
cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas
de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos,
documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais”.
149
Ibid., art. 221: “A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo
à produção independente que objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística,
conforme percentuais estabelecidos em lei”.
150
O reconhecimento do direito fundamental à cultura é inerente ao Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
ratificado pelo Brasil em 1992, e parte indissociável do conjunto de direitos humanos fundamentais positivados no conjunto
de instrumentos internacionais promulgados pela UNESCO. Seu valor se torna extremamente relevante quando consideramos
os efeitos das interações culturais na construção das identidades e na coesão social, como expresso na Declaração Universal
sobre Diversidade Cultural, adotada na 31ª Conferência Geral da UNESCO, em novembro de 2001.
151
ONU. Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Preâmbulo: “Reconhecendo que esses direitos (à educação e
cultura) decorrem da dignidade inerente à própria pessoa humana.”
212
Com a função de unir esses interesses, pode haver diversos intermediários, cujas
atividades empresariais destinam-se ao lucro e justificam-se exclusivamente por este.
Os intermediários desempenham uma gama variada de ações de cunho
empresarial. Encarregam-se da tarefa de viabilizar a utilização comercial de grupos
de obras artísticas, produzindo e circulando riqueza. São importantes no processo de
divulgação e distribuição das obras artísticas de valor comercial para o seu mercado.
Podem ser igualmente importantes na produção de certas obras, principalmente as de
caráter complexo, devido ao necessário investimento na própria produção da obra152.
Seus direitos não são direitos autorais, mas apenas equiparados, mutatis mutandis,
aos direitos patrimoniais do autor.
Suas ações têm cunho estritamente empresarial e seus interesses são estritamente
econômicos, não se confundindo, portanto, com os interesses do autor, ainda que
equivocadamente insistam alguns em falar pelos autores, sem, porém, substancialmente
representá-los e até se contrapondo aos seus interesses153.
Ao mesmo tempo, outros intermediários – porém com baixa representatividade
política e poder econômico – ocupam-se da circulação não comercial e não concorrencial,
promovendo e viabilizando a diversidade cultural154.
Acertadamente, todos clamam por segurança jurídica, pois esta permite a
construção de um ambiente propício ao desenvolvimento da economia e da cultura,
favorencendo a robustez de nossa rica diversidade cultural.
Há uma gama variada de conflitos entre as partes envolvidas e um grande número
desses problemas encontra-se carente de solução ou insatisfatoriamente resolvido.
A ausência de soluções legislativas satisfatórias para todos os interessados acaba
por gerar forte tensão política, inúmeros conflitos sociais e grande demanda judicial,
favorecendo, com o seu escalonamento, a posição estrutural, econômica e politicamente
dominante das entidades empresariais, frente tanto aos criadores quanto aos usuários.
Os dispositivos da atual legislação não estão suficientemente adequados à
preservação nem da remuneração equitativa do autor nem do espaço essencial de
liberdade de utilização e, em razão dessa assimetria, não conseguem garantir a segurança
jurídica. Nesse sentido, a legislação não é satisfatória para ninguém.
152
Como o audiovisual, por exemplo, em que o produtor deve voltar a ser positivado como titular original, mas não autor, dos
direitos de exploração econômica.
153
Interessante notar a posição e considerações dos sindicatos de músicos apresentadas nos Seminários promovidos pelo
Ministério da Cultura (MinC) – em especial, aquele dedicado aos Autores e Artistas, realizado no Rio de Janeiro em 27 e 28 de
outubro de 2008 – pois revelam alguns dos conflitos entre titulares empresariais e autores ou artistas da área musical, sempre
em favor dos primeiros, em razão do próprio poder econômico.
154
Esse circuito não comercial abriga iniciativas como os cineclubes, que promovem a exibição pública de obras audiovisuais
não disponíveis, com finalidade cultural e educativa, permitindo, como consequência essencial, uma rica interação
sociocultural a partir da discussão sobre os sentidos da obra exibida.
213
A parte primária, nuclear, desse conjunto de relações é necessariamente o
autor, pessoa humana criadora, que dá forma personalizada à expressão, que é de
imediato protegida pelo Direito. A par dos elementos inerentes à personalidade do
criador, inalienáveis, há a exclusividade de utilização econômica, objeto de cessão ou
licenciamento de conteúdo patrimonial. Essa exclusividade de utilização comercial é o
incentivo econômico para a produção de cultura material artística.
Na outra ponta, temos toda a sociedade, que é fonte de referências para as novas
criações e que, complementariamente, as incorpora como instrumentos essenciais para
a interação sociocultural, educação e comunicação. Os cidadãos constituem, por isso,
os destinatários das obras artísticas, que são igualmente culturais e cujas utilizações são
intrínsecas ao próprio processo de formação. São bens essenciais e indispensáveis à
própria formação sociocultural dos cidadãos e, em última instância, da nação e do país.
Nunca se deve esquecer que a disponibilidade e utilização constitui a própria
justificativa e função da exclusividade de exploração econômica atribuída ao autor155 –
massivamente cedida aos empresários da cultura –, pois o objetivo final da proteção é
aprimorar o espaço público, garantindo o enriquecimento cultural e elevação espiritual,
e não só após o longuíssimo prazo de proteção, mas também durante o prazo de
proteção, reservando suficientes usos incondicionados e livres.
Os criadores, os destinatários e os empresários da cultura clamam, justificadamente,
por segurança jurídica como condição para a ampla circulação dos bens culturais e
maior densidade econômica da atividade. Contudo, a própria segurança jurídica, cara à
atividade econômica, depende do equilíbrio na representação dos interesses, sob pena
de ver-se deslegitimada e conscientemente desobedecida.
Devem ser aperfeiçoados os instrumentos que ampliem a segurança jurídica156,
sem que seja olvidado que em um Estado Democrático de Direito, como impõe a
Constituição Federal, a almejada segurança jurídica somente será assegurada com uma
representação justa dos diversos interesses legítimos no marco legal ordinário.
A segurança jurídica, portanto, depende do equilíbrio dos interesses projetados na
legislação.
155
Eduardo Vieira Manso, antes mesmo da CF/88, aponta que “o fundamento jurídico do Direito Autoral reside no interesse
público de toda obra do engenho humano que, sendo original ou criativa, ou ambas, corresponda a uma parcela
de manifestação da sociedade em que foi gerada. [...] O interesse público que há sobre e por toda obra intelectual é que
fundamenta a extensão das prerrogativas próprias de seu autor. [...] Esse interesse público, de outro público, fundamenta e
justifica as ressalvas, as exceções que se impõem aos autores quanto a determinados usos – inclusive para fins econômicos –
de sua obra, para permitir e possibilitar que ela efetivamente cumpra o seu papel cultural e realize sua função social.” MANSO,
Eduardo Vieira. Direito Autoral. São Paulo: José Bushatsky, 1980. p. 24-25.
156
214
Um exemplo é garantir ao produtor audiovisual a titularidade original dos direitos patrimoniais da obra resultante.
A atual legislação, porém, contraria a história da matéria e confronta os
mandamentos constitucionais fundamentais de proteção ampla à pessoa, suas
expressões e sua formação (incluindo o acesso incondicionado aos bens essenciais à
sua formação), permitindo uma expansão exacerbada dos interesses dos titulares em
prejuízo dos interesses dos elos realmente essenciais: o criador e o público.
O gritante desequilíbrio é a causa da ilegitimidade social dessa legislação e do
amplo desrespeito às suas determinações.
A excessiva concentração da titularidade em poucas entidades empresariais e o
obsessivo controle dos usos – inclusive os não comerciais – que querem estas poucas
entidades exercer conduzem a um desvio funcional e estrutural injustificado do foco da
proteção das obras artístico-culturais.
Os direitos de remuneração equitativa dos criadores, pessoas físicas, não é
assegurado, deixando à liberdade negocial a tarefa de garantir a representatividade dos
interesses. O desequilíbrio – econômico, jurídico e político – de forças é refletido nos
contratos em que todos os direitos são cedidos sem razoável contraprestação. Sequer
a garantia de ampla distribuição – dever legal e contratual, além de razão de existir
dos intermediários – é assegurada. São muitas as manifestações dos autores sobre a
assimetria das relações e suas consequências (baixa remuneração aos autores e altos
lucros aos empresários da cultura), bem como sobre a necessidade de uma correção157.
Ao mesmo tempo em que os autores e artistas são economicamente oprimidos, o
livre exercício dos direitos transindividuais à educação e cultura é fortemente ameaçado
pelo alcance que os titulares – majoritariamente não autores – querem atribuir à
proteção patrimonial, apropriando-se de usos consagradamente livres158.
Como a própria atividade de aprender, comunicar-se e interagir demanda acesso,
cópia, reprodução, representação, a sua restrição ou impedimento carece de justificativa
e ofende os valores constitucionais e humanos vigentes, gerando um forte sentimento
de injustiça e uma resistência ao cerceamento de um direito fundamental, essencial à
formação da própria pessoa como ser social159.
157
Ver, por exemplo, as apresentações nos Seminários do MinC, ocasião em que os autores puderam livremente expor suas
dificuldades e carências.
158
Um interessante exemplo disso é a interpretação que se quer forçosamente atribuir ao art. 46 da Lei do Direito Autoral –
LDA, que trata, junto com os artigos 47 e 48, dos limites da exclusividade privada. Pretendem os titulares que o artigo 46 seja
interpretado restritivamente. Essa visão não coaduna com uma interpretação sistemática e teleológica do Direito, prendendose a uma perspectiva do positivismo novecentocentista de interpretação literal ou gramatical, na contramão dos movimentos
de atualização já dominantes no Direito Contemporâneo.
159
A Organização Mundial de Saúde - OMS entende que o ser humano saudável é aquele que é física, mental e socialmente
ajustado e, para tanto, é fundamental que possa participar incondicional e ativamente das relações socioculturais que desejar.
Ver o conceito de saúde no documento de Constituição da OMS, disponível em http://www.who.int/governance/eb/who_
constitution_en.pdf
215
As omissões e inexatidões da legislação permitem ainda que, mediante beligerância
e ameaça, as organizações de titulares utilizem o seu poder econômico, político e jurídico
para construir, impor e efetivar uma verdadeira legislação privada, e, por meio desses
métodos, ilegitimamente e injustificadamente expropriam direitos alheios, privatizando
direitos fundamentais individuais e sociais.
Essa apropriação privada se dá tanto com relação aos direitos patrimoniais dos
criadores – ao impor-lhes condições contratuais abusivas, sob pena de exclusão do
mercado cultural – como do público – ao constantemente ameaçá-lo com ações
judiciais, aproveitando-se do desconhecimento específico do tema para impedir que os
cidadãos legitimamente exerçam seus direitos à cultura e educação e utilizem os bens
culturais ou tenham acesso ao seu conteúdo – conteúdo que, deve-se sempre lembrar,
não é protegido pelos direitos autorais, que apenas protegem a expressão, ou seja, a
forma extrínseca da criação.
Na ausência de definição, regulação e atuação do Estado, cria-se um espaço fértil
para o florescimento do condicionamento privado do comportamento e da definição
particular das regras de convivência social, decorrentes do uso inapropriado e ilegítimo
da força e ameaças – econômicas e jurídicas – por parte dos titulares ou pelas entidades
de titulares160.
Os desequilíbrios contidos na Lei nº 9.610/98 têm causado inúmeros conflitos sociais
e jurídicos desde a sua promulgação, que se têm acentuado nos últimos tempos161.
Resta claro que as demandas para uma atuação legislativa corretiva são fortes e
sua urgência, imediata. Os desequilíbrios no sistema são gritantes e precisam ser logo
corrigidos para que os problemas não se agravem. É necessário fortalecer os dois únicos
interesses essenciais e fundamentais do sistema – autores e usuários – que se encontram
ilegítima e abusivamente restringidos em prol dos interesses puramente mercantis dos
empresários culturais ou das agências e associações de arrecadação de direitos.
Para se alcançar o tão almejado equilíbrio, basta o reconhecimento da natureza
fundamental desses direitos e sua inclusão na legislação ordinária que controla a
circulação e usos das obras artístico-culturais.
160
Um paralelo disso se observa cotidianamente nos jornais, ao tratarem das milícias que dividem, com o tráfico de drogas e
armas, o domínio de vastas regiões do Rio de Janeiro, em detrimento da segurança, da justiça e da própria legitimidade do
Estado. A persistirem os desequilíbrios e a ausência do Estado na regulação do exercício justo dos direitos autorais, estamos
condenados a vivenciar, ao lado da verdadeira pirataria – que é organizada, comercial e concorrencial –, o surgimento de
novas milícias, comandadas pelas poderosas e autointeressadas associações de titulares, com o objetivo principal de impedir
qualquer utilização social livre dos bens artístico-culturais e de cercear ao máximo a concretização dos direitos fundamentais
à educação, cultura e conhecimento.
161
O crescente número de ações judiciais, o alto índice de inadimplência no pagamento de direitos e a articulação de
entidades de defesa dos direitos dos usuários são todos exemplos dessa situação conflituosa que se vivencia.
216
2. FUNDAMENTOS JURÍDICOS DOS DIREITOS DA SOCIEDADE
Os direitos à educação e cultura estão expressos na Constituição Federal do Brasil
e nos tratados internacionais de direitos fundamentais, sendo seus efeitos sobre os
direitos autorais, no plano internacional, limitados apenas pelo “teste dos três passos”
da Convenção de Berna e do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade
Intelectual relacionados ao Comércio – ADPIC/TRIPS.
Esses direitos fundamentais sociais – educação, cultura e comunicação – que
condicionam e limitam os direitos econômicos dos titulares – autores ou não – de obras
artístico-culturais estão positivados em nosso ordenamento, são de concretização
contínua e obrigatória e são qualificados como preceitos máximos e inexpugnáveis do
ordenamento, sendo de cumprimento compulsório.
As restrições a esses direitos sociais – seja pelos direitos autorais ou por outros
motivos – são igualmente limitadas, não podendo ser incompatíveis com sua natureza
e devendo ser legislativamente expressas, com o objetivo único de favorecer o bem
estar geral162.
Além de constarem expressamente nos artigos 6º, 205, 206, 215, 216, 218 e 221
da Constituição Federal do Brasil, os direitos à educação e cultura são consequências
inevitáveis da ampla proteção à pessoa, em todas as suas dimensões, em sua dignidade,
que é um dos fundamentos essenciais da República, conforme positivado no art. 1º,
inciso III, do mesmo ordenamento163. Além do mais, a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária é um dos objetivos da República, o que, por si só, já impõe que
as legislações ordinárias, como a Lei do Direito Autoral – LDA, reflitam e tenham por
princípios tanto a liberdade como a justiça e solidariedade164.
É primordial compreender que a própria liberdade individual só é possível mediante
o respeito a esses direitos sociais165. A proteção total e integral à pessoa humana implica
tanto a liberdade de expressão, inclusive artística, quanto a utilização e acesso aos bens
essenciais à sua integridade físico-psico-social, dentre os quais os bens artístico-culturais.
162
Art. 4º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966): “Os Estados partes do presente Pacto
reconhecem que, no exercício dos direitos assegurados em conformidade com o presente Pacto pelo Estado, este poderá
submeter tais direitos unicamente às limitações estabelecidas em lei, somente na medida compatível com a natureza desses
direitos e exclusivamente com o objetivo de favorecer o bem-estar geral em uma sociedade democrática”.
163
Constituição Federal do Brasil, art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a
cidadania; III - a dignidade da pessoa humana”.
164
Ibid., art. 3º: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa
e solidária”.
165
Essa afirmação é premissa do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, deriva da própria Declaração Universal dos
Direitos Humanos e é ratificada no Pacto de São José da Costa Rica.
217
Encontram-se igualmente positivados nos principais tratados internacionais de
direitos fundamentais, que recebem apreço especial em nosso ordenamento, por força
dos §§ 2º166 e 3º167 da Constituição Federal do Brasil168, e cuja aplicação é imediata, por
força do § 1º169.
Dentre os tratados internacionais de direitos fundamentais ratificados pelo Brasil
e de aplicação direta às questões aqui abordadas, podemos destacar a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e
o Pacto de São José da Costa Rica.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos aborda no mesmo artigo tanto o
direito à proteção quanto o direito de acesso, impondo sua conjunção170.
O Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – ratificado pelo Decreto nº
591/1992 –, em seu preâmbulo, após reconhecer que esses direitos sociais derivam
da própria dignidade humana171, afirma que o ideal de um homem livre não pode ser
realizado sem que seja possível concretizar os direitos econômicos, sociais e culturais,
bem como os civis e políticos172. Acrescenta ainda que todos – sem isentar nem autores
nem, muito menos, titulares não autores – devem contribuir para a concretização desses
direitos e da própria dignidade173.
166
“§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
167
“§ 3º - Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais”.
168
Os §§ 3º e 4º do art. 5º foram acrescidos por força da Emenda Constitucional 45/04.
169
“§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
170
“27.1.: Todo homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar
do progresso científico e de fruir de seus benefícios. 27.2.: Todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e
materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor”.
171
“Reconhecendo que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana”.
172
“Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre,
liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus
direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos.”
173
“Compreendendo que o indivíduo por ter deveres para com seus semelhantes e para com a coletividade a que pertence,
tem a obrigação de lutar pela promoção e observância dos direitos reconhecidos no presente Pacto (...)”
218
Esse instrumento igualmente aponta os limites da restrição ao exercício desses
direitos sociais174 e a essencialidade dos direitos fundamentais à educação175 e cultura176
para a completude da dignidade e do próprio exercício da liberdade, e seu caráter de
obrigatoriedade é reforçado.
O Pacto de São José da Costa Rica – documento internacional de Direitos Humanos
das Américas – confirma, logo em seu preâmbulo, que o ideal de liberdade só poderá
ser alcançado quando as condições permitirem que cada pessoa possa usufruir de
seus direitos individuais e sociais177. Igualmente reafirmado é o direito de liberdade de
expressão e da livre circulação de ideias e informações178. Concretiza a obrigatoriedade
de sua efetivação progressiva, a ser alcançada por meio de diversos instrumentos,
inclusive a utilização da via legislativa179.
174
“Art. 4º: Os Estados partes do presente Pacto reconhecem que, no exercício dos direitos assegurados em conformidade
com o presente Pacto pelo Estado, este poderá submeter tais direitos unicamente às limitações estabelecidas em lei, somente
na medida compatível com a natureza desses direitos e exclusivamente com o objetivo de favorecer o bem-estar geral em
uma sociedade democrática”.
175
“Art. 13: Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a
educação deverá visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o
respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá capacitar todas
as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas
as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da
manutenção da paz”.
176
“Art. 15, 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural; b)
desfrutar o progresso científico e suas aplicações; c) beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes
de toda a produção científica, literária ou artística de que seja autor. 2. As medidas que os Estados Partes do presente
Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito aquelas necessárias à conservação, ao
desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura. 3. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar
a liberdade indispensável à pesquisa científica e à atividade criadora. 4. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem
os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da
ciência e da cultura”.
177
Reiterando que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, só pode ser realizado o ideal do ser
humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos
econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos.
178
“Art. 13 – Liberdade de Pensamento e Expressão: § 1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão.
Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações
de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha. (...) § 5. Não
se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de
papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por
quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões”.
179
“Art 15: Os Estados-Membros comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante
cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade
dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da
Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via
legislativa ou por outros meios apropriados”.
219
A esses tratados devemos acrescer ainda as recentes Declaração Universal sobre a
Diversidade Cultural e Convenção para Promoção e Preservação da Diversidade Cultural.
A Declaração, que foi aprovada na 31ª Assembleia Geral em novembro de 2001,
antecedeu a Convenção propriamente dita. Seu principal efeito é a consolidação, no plano
internacional, do direito fundamental à cultura180. Isso é obtido pelo reconhecimento
internacional de sua relevância e encontra-se expresso nos seus termos, por meio dos
quais as questões são apresentadas181. Traz também importante afirmação quanto à
essencialidade e especialidade dos bens artístico-culturais, o que afeta como deve ser
compreendida a proteção proprietária privada a esses bens concedida182. Informa ainda,
como parte do plano de ação, o caráter fundamental do direito à cultura183 e insiste na
necessidade de equilibrá-lo com os direitos autorais, preservando o máximo de ambos,
como já demandara a Declaração Universal dos Direitos Humanos184.
180
“Art. 5º: Os direitos culturais são partes integrantes dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes.
O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena realização dos direitos culturais, tal como os define o Artigo
27 da Declaração Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e difundir suas obras na língua que deseje e, em partícular, na
sua língua materna; toda pessoa tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que respeite plenamente sua
identidade cultural; toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais,
dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais”.
181
É de salutar leitura o preâmbulo, que sintetiza as razões e justificativas: “Reafirmando seu compromisso com a plena
realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e
em outros instrumentos universalmente reconhecidos, como os dois Pactos Internacionais de 1966 relativos respectivamente,
aos direitos civis e políticos e aos direitos econômicos, sociais e culturais, Recordando que o Preâmbulo da Constituição da
UNESCO afirma ‘(...) que a ampla difusão da cultura e da educação da humanidade para a justiça, a liberdade e a paz são
indispensáveis para a dignidade do homem e constituem um dever sagrado que todas as nações devem cumprir com um
espírito de responsabilidade e de ajuda mútua’, Recordando também seu Artigo primeiro, que designa à UNESCO, entre outros
objetivos, o de recomendar ‘os acordos internacionais que se façam necessários para facilitar a livre circulação das ideias por
meio da palavra e da imagem’, Referindo-se às disposições relativas à diversidade cultural e ao exercício dos direitos culturais
que figuram nos instrumentos internacionais promulgados pela UNESCO, Reafirmando que a cultura deve ser considerada
como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou
um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de
valores, as tradições e as crenças, Constatando que a cultura se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a
identidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma economia fundada no saber, Afirmando que o respeito à diversidade
das culturas, à tolerância, ao diálogo e à cooperação, em um clima de confiança e de entendimento mútuos, estão entre as
melhores garantias da paz e da segurança internacionais, Aspirando a uma maior solidariedade fundada no reconhecimento
da diversidade cultural, na consciência da unidade do gênero humano e no desenvolvimento dos intercâmbios culturais,
Considerando que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução das novas tecnologias da informação e da
comunicação, apesar de constituir um desafio para a diversidade cultural, cria condições de um diálogo renovado entre as
culturas e as civilizações, Consciente do mandato específico confiado à UNESCO, no seio do sistema das Nações Unidas, de
assegurar a preservação e a promoção da fecunda diversidade das culturas”.
182
“Art. 8º: Frente às mudanças econômicas e tecnológicas atuais, que abrem vastas perspectivas para a criação e a inovação,
deve-se prestar uma particular atenção à diversidade da oferta criativa, ao justo reconhecimento dos direitos dos autores e
artistas, assim como ao caráter específico dos bens e serviços culturais que, na medida em que são portadores de identidade,
de valores e sentido, não devem ser considerados como mercadorias ou bens de consumo como os demais”.
183
“4. Avançar na compreensão e no esclarecimento do conteúdo dos direitos culturais, considerados como parte integrante
dos direitos humanos”.
184
“16. Garantir a proteção dos direitos de autor e dos direitos conexos, de modo a fomentar o desenvolvimento da criatividade
contemporânea e uma remuneração justa do trabalho criativo, defendendo, ao mesmo tempo, o direito público de acesso à
cultura, conforme o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos”.
220
A qualificação desses tratados no ordenamento nacional passa por um processo
de mudança, cujo marco político foi a Emenda Constitucional nº 45, de 2004. O marco
judicial dessa transformação está sendo revisto a partir do Recurso Extraordinário nº
466.343.
Esse julgamento é de extrema relevância também para os demais Poderes da
República, no cumprimento do dever constitucional de realizar os direitos fundamentais
até então não suficientemente considerados na proteção autoral.
O Supremo Tribunal Federal, em síntese, coloca que sua interpretação sobre o papel
dos direitos fundamentais originados dos tratados internacionais deve ser alterada e
adequada a uma posição equitativa aos demais Direitos Fundamentais, significando
que os tratados de direitos fundamentais devem passar a ter, então, uma posição
intermediária, supralegal, entre a Constituição e as demais leis ordinárias185.
Tal mudança resulta da “premente necessidade de se dar efetividade à proteção
dos direitos humanos nos planos interno e internacional”, que “torna imperiosa uma
mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre os direitos na
ordem jurídica nacional”. Conclui-se que “diante do inequívoco caráter especial dos
tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil
entender que a sua internalização no ordenamento jurídico por meio de procedimento
de ratificação previsto na Constituição tem o condão de paralisar a eficácia jurídica, de
toda e qualquer disciplina infraconstitucional com ela conflitante”, complementando:
“tendo em vista o caráter supra legal desses diplomas normativos internacionais, a
legislação infraconstitucional posterior que com ele seja conflitante, também tem a sua
eficácia paralisada. Isso ocorre também com toda legislação anterior” 186.
Nesse sentido, todos os tratados internacionais, inclusive os que versam sobre os
direitos fundamentais sociais – cultura, educação e informação – tornam-se imperiosos
na nossa ordem jurídica, tanto quanto os direitos individuais, e os efeitos da concretização
desses direitos sobre os direitos autorais deverão ser avaliados política e juridicamente,
de forma a preservar o máximo de ambos na conformação dos limites de cada um
desses conjuntos em face do outro.
Essa decisão traz a superação de um suposto conflito, de uma dicotomia entre os
direitos fundamentais individuais e sociais, permitindo a integração dos interesses que
revolvem em torno da pessoa humana.
185
RE 466.343. Voto Gilmar Mendes, p 16: “Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a
supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária
seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana”.
186
Ibidem, p. 26 e ss.
221
Como apontado, os tratados internacionais que regulamentam a propriedade
intelectual (e em especial os Direitos Autorais) preveem os critérios dentro dos quais
os países podem estabelecer livremente os limites da proteção. Tanto a Convenção de
Berna como o ADPIC/TRIPS estabelecem o “teste dos três passos” como o padrão de
conformação dos limites da proteção, padrão este que os países se comprometem a
respeitar.
O acordo TRIPS define ainda, entre os seus objetivos, a necessidade – segundo
alguns, a obrigatoriedade – de equilíbrio entre os direitos patrimoniais dos titulares
de propriedade intelectual e os interesses da coletividade187. Quando se expõem os
princípios que pautam a proteção, é reiterada a liberdade dos Estados-Membros de
promover o interesse público e evitar o abuso dos titulares188.
Portanto, desde que se obedeça aos limites impostos pelo “teste dos três passos”,
podem e devem os Estados estabelecer o equilíbrio entre os interesses público e
privado.
Os citados três passos demandam que o estabelecimento de espaços de usos
livres pelas legislações nacionais deve obedecer aos seguintes limites: (1) sejam casos
especiais; (2) não prejudiquem a exploração normal da obra; e (3) não causem prejuízo
injustificado ao titular.
Obviamente, a interpretação desses limites internacionais impostos não pode ser
tal que desvirtue do contexto sistêmico em que está inserido o “teste dos três passos”
– pois o equilíbrio entre os interesses públicos e privados é essencial e indispensável,
conforme positivado nos próprios tratados189.
Por conseguinte, a interpretação do “teste dos três passos” deve ser direcionada
a alcançar o equilíbrio entre os interesses econômicos do titular e os de acesso a bens
essenciais da sociedade, sob pena de se desvirtuarem os seus objetivos primordiais.
187
“Art. 7º: A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para
a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e
usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social econômico e a um equilíbrio entre
direitos e obrigações”.
188
“Art. 8º: 1. Os Membros, ao formular ou emendar suas leis e regulamentos, podem adotar medidas necessárias para proteger
a saúde e nutrição públicas e para promover o interesse público em setores de importância vital para seu desenvolvimento
socioeconômico e tecnológico, desde que estas medidas sejam compatíveis com o disposto neste Acordo. 2. Desde que
compatíveis com o disposto neste Acordo, poderão ser necessárias medidas apropriadas para evitar o abuso dos direitos de
propriedade intelectual por seus titulares ou para evitar o recurso a práticas que limitem de maneira injustificável o comércio
ou que afetem adversamente a transferência internacional de tecnologia”.
189
Nesse sentido, a “Declaração sobre o Teste dos Três Passos do Direito de Autor”, de autoria de Christophe Geiger, Jonathan
Griffiths e Reto M. Hilty, elaborada em conjunto entre o Instituto Max Planck de Propriedade Intelectual e a Queen Mary
University, é esclarecedora. Encontra-se disponível para assinatura no sítio eletrônico do Instituto Max Planck.
222
Recorde-se, ainda, que a Constituição Federal do Brasil demanda que qualquer
propriedade atenda à sua função social190, sendo indiscutível a necessidade e
obrigatoriedade de ampliação dos espaços de liberdade de utilização das obras artísticoculturais, de maneira que não se impeça ou dificulte o exercício e concretização dos
direitos fundamentais à educação e cultura.
Alcançar uma composição equilibrada entre os interesses fundamentais em
jogo é o desafio mais urgente dos Poderes da República no que concerne à proteção
jurídica dos direitos autorais. O fracasso em alcançar esse equilíbrio significará a redução
injustificada dos direitos fundamentais dos cidadãos à educação e cultura e uma falha
dos poderes em realizar suas obrigações constitucionais de progressiva concretização
desses direitos.
3. OS USOS LIVRES FUNDAMENTAIS
A legislação ordinária vigente mostra-se incapaz de harmonizar o conjunto de
interesses que devem, obrigatoriamente, ser refletidos na lei ordinária.
Esse processo de relativização das propriedades, imposto pela Carta Magna,
deve ser consignado via legislação ordinária, que necessita obedecer ao princípio da
proporcionalidade191.
Uma interpretação literal, ou pouco informada, da legislação em vigor resultaria
em uma desproporcionalidade gritante. A ostensiva difusão dessa visão pelos titulares e
suas organizações configura uma forma de apropriação privada dos espaços públicos,
para o qual utilizam argumentos de autoridade e ameaças visando impor privadamente
os limites públicos que acharem convenientes.
190
Sobre esse aspecto, vale a reflexão do Ministro Gilmar Mendes, em seu voto no RE 466.343, p. 46 e ss.: “Sobre o direito
de propriedade, pode-se afirmar que eventual redução legal das faculdades a ele inerentes pode ser vista sob uma dupla
perspectiva: para o futuro, cuida-se de uma nova definição do direito de propriedade; em relação ao direito fundado no
passado, tem-se uma nítida restrição. [...] Inexiste, todavia, um conceito constitucional fixo, estático, de propriedade, afigurandose, fundamentalmente, legítimas não só as novas definições de conteúdo como a fixação de limites destinados a garantir a
sua função social. É que, embora não aberto, o conceito constitucional de propriedade há de ser necessariamente dinâmico.
Nesse passo, deve-se reconhecer que a garantia constitucional da propriedade está submetida a um processo de relativização,
sendo interpretada, fundamentalmente, de acordo com parâmetros fixados pela legislação ordinária. As disposições legais
relativas ao conteúdo têm, portanto, inconfundível caráter constitutivo. Isso não significa, porém, que o legislador possa
afastar os limites constitucionalmente estabelecidos. A definição desse conteúdo pelo legislador há de preservar o
direito de propriedade enquanto garantia institucional. Ademais, as limitações impostas ou as novas conformações
conferidas ao direito de propriedade hão de observar especialmente o princípio da proporcionalidade, que exige que
as restrições legais sejam adequadas, necessárias e proporcionais. Como acentuado pelo Bundesverfassungsgericht, a faculdade
confiada ao legislador de regular o direito de propriedade obriga-o a “compatibilizar o espaço de liberdade do indivíduo no
âmbito da ordem de propriedade com o interesse da comunidade”. Essa necessidade de ponderação entre o interesse individual
e o interesse da comunidade é, todavia, comum a todos os direitos fundamentais, não sendo uma especificidade do direito
de propriedade. [...] Vê-se, pois, que o legislador dispõe de uma relativa liberdade na definição do conteúdo da propriedade e
na imposição de restrições. Ele deve preservar, porém, o núcleo essencial (Wesensgehalt) do direito, constituído pela utilidade
privada e, fundamentalmente, pelo poder de disposição. A vinculação social da propriedade, que legitima a imposição de
restrições, não pode ir ao ponto de colocá-la, única e exclusivamente, a serviço do Estado ou da comunidade”.
191
Como exposto pelo atual Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, no RE 466.343, supracitado.
223
Isso ocorre, por exemplo, com relação à interpretação dos limites à proteção
patrimonial dos direitos autorais, estabelecidos no art. 46 e seguintes da LDA, que
insistem em dizer ser restritiva, quando a única solução juridicamente possível é a sua
interpretação extensiva.
Os diversos usos das obras artístico-culturais podem ser classificados em quatro
grandes categorias, que são:
(1) os usos patrimoniais reservados e privados, que dependem de autorização
prévia do titular e pagamento;
(2) os usos livres que independem de autorização, mas em que se deve compensar
os autores e titulares, pois, pelo impacto comercial que causam, geram uma
diminuição injustificada do potencial de rendimento econômico;
(3) os usos livres que, sem finalidade lucrativa, e com objetivos de concretização
de direitos fundamentais à educação e cultura, independem de remuneração ao
autor ou titular;
(4) os usos lícitos e incondicionais, inclusive para fins comerciais. Nesse campo
têm-se as obras em domínio público.
A nossa legislação prevê apenas três tipos de usos: patrimoniais privados e
reservados; livres, mas restritos às finalidades de concretização de direitos fundamentais
sociais (embora estes estejam insuficientemente previstos); e o das obras totalmente livres.
Ainda não se encontra incorporada em nosso ordenamento a regulação das situações
em que os usos devam ser livres, mas condicionados ao pagamento de direitos.
Contudo, a preocupação principal desta exposição é com a indevida apropriação
dos usos livres que objetivam a efetivação de direitos fundamentais essenciais e o
relevante interesse público em jogo.
É inadiável a construção e preservação desses espaços de liberdade, em que a
própria cidadania cultural é construída. Ignorar o dever de construção destes espaços
– inclusive jurídicos – de liberdade é ignorar os deveres constitucionamente impostos
e relegar à inefetividade direitos fundamentais essenciais à própria formação da pessoa
humana. Dentre as diversas dificuldades concernentes, destacam-se:
(1) O ARQUIVAMENTO E PRESERVAÇÃO DO CONTEÚDO DA OBRA ARTÍSTICO - CULTURAL ORIGINAL,
AINDA QUE COM FINALIDADE HISTÓRICA .
Isso acontece atualmente, por exemplo, com a Biblioteca Nacional, cuja principal
função legal de arquivamento e preservação encontra-se ameaçada e seus dirigentes e
funcionários temem problemas jurídicos decorrentes do simples cumprimento de seu
dever profissional.
224
De forma semelhante, mesmo o exercício dos direitos fundamentais básicos do
consumidor, garantidos na Constituição Federal, estão ameaçados, como ocorre, por
exemplo, com o simples arquivamento de obras ou a sua inserção em bancos de dados
privados não disponibilizados publicamente, a exemplo da inclusão, em uma biblioteca
virtual particular, das músicas de um CD adquirido legitimamente; ou, ainda, quando se
quer ouvir música legitimamente adquirida em tocadores digitais de música (MP3, MP4
- dispositivos atuais equivalentes ao antigo walk-man);
(2) OS USOS DIDÁTICOS DAS OBRAS PROTEGIDAS EM AMBIENTE DE ENSINO.
Isso ocorre, por exemplo, com os livros de edição esgotada ou de difícil acesso,
mas de uso essencial ao ensino ou pesquisa, condição para o aperfeiçoamento pessoal
e profissional do cidadão e que não pode depender dos desejos dos titulares.
Mesmo o uso de material audiovisual, por não estar expressamente previsto, é
entendido pelos titulares como sendo não autorizado, ainda que seja contemplada a
utilização de obras musicais e teatrais;
(3) A PROMOÇÃO REGULAR E INCONDICIONAL DA VIDA SOCIOCULTURAL DA NAÇÃO, COM A NECES SÁRIA UTILIZAÇÃO – SEMPRE NÃO COMERCIAL - DAS OBRAS ESSENCIAIS À FORMAÇÃO CULTURAL
BRASILEIRA E HUMANÍSTICA .
A ocorrência de espaços de interação que possibilitem a participação de todos os
cidadãos na vida sociocultural da nação é imperativa para que todos possam agir no
processo de construção dos significados culturais.
Essas atividades, que se desenrolam em espaços comunitários, preservam
tradições, garantem a diversidade cultural, promovem novas formas de expressão e,
mais importante, permitem a inclusão de cidadãos na construção social dos significados
culturais que balizam as identidades.
São promovidas, por exemplo, em cineclubes, grupos amadores de teatro, serestas
informais, festejos culturais locais, espaços e centros comunitários, instituições de ensino
e outros;
(4) A ADAPTAÇÃO PLENA DONS BENS CULTURAIS PARA USO POR DEFICIENTES, SEJAM ELES AUDITIVOS, MOTORES OU MESMO VISUAIS ;
Contemplando as obras cuja liberdade de uso é plena, podendo, por isso, serem
utilizadas para qualquer finalidade – inclusive exploração econômica –, resta igualmente
evidente a urgência de ampliar o rol das que compõem essa categoria, acrescentando ao
domínio público as obras abandonadas ou órfãs ou as de titularidade desconhecida.
225
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há, assim, uma clara necessidade de se prevenir conflitos, equilibrando a
representação dos interesses na legislação, impedindo os abusos dos titulares e
adequando a legislação à progressiva concretização do direito fundamental à educação
e cultura.
O próprio estabelecimento de usos livres é uma imposição que se justifica nos
direitos fundamentais constitucionais e parte dos diversos tratados internacionais
ratificados pelo Brasil, com força vinculante, sendo hierarquicamente superiores às leis
ordinárias, que com aqueles não podem conflitar, sejam anteriores ou posteriores aos
Tratados ou à Constituição.
A lei de direitos autorais, da maneira como se encontra, é especialmente afetada
por essa posição, que a eiva de vícios e omissões e a inviabiliza.
Os direitos autorais, como todos os direitos, são frutos de um processo histórico
de construção e reconstituição dos institutos sociais – o que significa dizer que são e
devem ser regularmente revisitados. Não há, portanto, nenhuma novidade na revisão
da legislação.
Nessa mais que necessária revisão, deve-se considerar que o país ainda está em
desenvolvimento e não pode abrir mão da circulação das obras artístico-culturais para
completar a formação social, cultural, política e histórica dos seus cidadãos, para que
estes, aí sim, possam exercer plenamente a liberdade e assegurar sua dignidade.
Além do mais, os direitos autorais pertencem ao gênero maior da propriedade
intelectual, como as patentes, que estão funcionalizadas pela lei de propriedade
industrial e são exemplos internacionais de liderança mundial exercida pelo Brasil. Podese e deve-se fazer o mesmo com os Direitos Autorais192.
A inclusão de cláusulas gerais que busquem corrigir os desequilíbrios do sistema
permitirá a abertura deste, tornando-o mais permeável às questões concretas que
busca resolver e, portanto, mais eficiente para dirimir conflitos e para aplicação pelo
judiciário193.
A função social dos direitos autorais, que é constitucionalmente assegurada, pode
ser garantida com algumas poucas alterações na legislação ordinária.
192
Não se deve esquecer que um substancial conjunto de usos livres cria demanda cultural e forma plateias, que, por sua vez,
retroalimentam o próprio mercado de bens culturais, fechando o ciclo e favorecendo todos os atores.
193
A utilização dessa técnica legislativa foi muito bem sucedida com relação, por exemplo, ao Código de Defesa do Consumidor,
o Estatuto da Criança e do Adolescente e o novo Código Civil Brasileiro.
226
Além de uma cláusula geral reafirmando o condicionamento constitucional, devese incluir – para fortalecer o equilíbrio dos interesses público e privado e a segurança
jurídica – a referência direta ao mencionado “teste dos três passos” para guiar a
interpretação sobre a extensão dos usos livres permitidos e a redefinição do artigo 46,
apontando situações exemplificativas de usos livres.
Dentre esses usos livres, devem ser especificadas as reproduções, apresentações,
representações, execuções e exibições não concorrenciais para fins exclusivamente
privados, educativos e culturais ou para a preservação da cultura e história material da
sociedade e nação.
Já as relações entre autores artistas e empresas titulares podem ser equilibradas
com a o reconhecimento, via cláusula geral, do direito legal à remuneração equitativa
pela exploração econômica de sua criação194, e através do fortalecimento da posição
contratual dos autores.
Muitos dos problemas carecem de uma instância de intermediação e regulação
para que sejam encaminhadas soluções de forma ágil. Os conflitos atuais e futuros
podem ser direcionados à resolução mediante a criação de um órgão administrativo,
com funções consultivas e arbitrais, como ocorria com o extinto Conselho Nacional de
Direitos Autorais – CNDA.
Essas são algumas das sugestões para aperfeiçoamento do sistema nacional de
proteção das obras artístico-culturais.
194
O direito de remuneração equitativa, reconhecido via cláusula geral, deve ser complementado para garantir a efetiva
circulação da obra – dever contratual e legal do editor e do distribuidor – e o direito constitucional de fiscalização por parte do
autor. Este último, obviamente, também deve receber prestação de contas correta, direta e regularmente por parte do editor,
distribuidor ou entidade arrecadadora de direitos, independentemente do que estiver estabelecido em contrato.
227
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