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Dois rostos ou um vaso A paralaxe marxista como um problema em Žižek Joelton Nascimento 1. A paralaxe marxista Slavoj Žižek, a meu ver, apresentou o problema da paralaxe marxista de modo extremamente esclarecedor e fecundo, ao examinar a obra do filósofo e crítico japonês Kojin Karatani1. Em suas próprias palavras: Karatani é um filósofo desconhecido entre os autores daquilo que Anselm Jappe chamou de “Nova Crítica do Valor”. Entretanto, ele desenvolve uma teoria crítica bastante semelhante à destes. A primeira significativa diferença entre Karatani e os demais teóricos críticos de matriz europeia é que, se estes vêm em Hegel um incontornável ponto de passagem filosófico, ainda não suficientemente reconhecido, Karatani vê em Kant este incontornável ponto de passagem ainda não reconhecido pela crítica da economia política. Cf. KARATANI, Kojin. Transcritique On Kant and Marx. Tradução: Sabu Kohso. London/Cambridge: The MIT Press, 2003. 1 1 ...a principal paralaxe marxista não é aquela entre economia e política, entre a “crítica da economia política”, com a sua lógica de mercadorias, e a luta política, com sua lógica de antagonismo de classe? Ambas as lógicas são “transcendentais”, não meramente onto-empíricas; e as duas são irredutíveis uma à outra2. O que Žižek propõe aqui é uma difícil dualidade entre estas duas modulações da crítica teoricamente fundamentada do capitalismo. Há um modo de crítica que está centrada da crítica da economia política e, portanto, na lógica fundamental do valor, da mercadoria e do dinheiro, e outra que se centra no antagonismo de classes, nas suas distintas modalidades de luta e suas formas de conquista e manutenção do poder político. Ambas comumente se arvoram no tronco da atividade intelectual de Marx, dando mais ênfase por vezes a um grupo de textos e, por vezes, a outro. Do ponto de vista de cada uma destas modulações de crítica, a outra se encontra em grande medida equivocada. Isto porque cada uma destas modalidades de crítica possui uma matriz própria, geradora de um modo próprio de compreensão da totalidade das relações sociais que se julgam centrais em uma dada sociedade. Neste contexto, segundo Žižek: A relação entre economia e política é, em última instância, aquela do conhecido paradoxo visual dos “dois rostos ou um vaso”: ou se vêm os rostos ou um vaso, nunca as duas coisas ao mesmo tempo; é preciso optar. Do mesmo modo, podemos nos concentrar no político, reduzindo o domínio da economia ao “fornecimento de bens” empírico; ou no econômico, reduzindo a política a um teatro de aparências, um fenômeno passageiro que desaparecerá com a chegada de uma sociedade comunista (ou tecnocrática) desenvolvida, na qual, como explicaram Saint-Simon e Engels, o “governo do povo” dá lugar ao “governo das coisas”3. Do ponto de vista da crítica da econômica política, o campo da política, no sentido de antagonismo de classes, é minimizado, para dizer o menos. Mas não por conta de uma predileção qualquer, antes, por conta de sua “matriz geradora de uma totalidade” – nos termos de Žižek. Isto se encontra, de fato, bastante ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. IN SADER, Emir (org.) Contragolpes. Seleção de artigos da New Left Review. São Paulo: Boitempo: 2006, p. 183. 3 ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe, p. 183-184. 2 2 evidente na formulação de Anselm Jappe, na Nova Crítica do Valor, segundo a qual o valor é um “fato social total”, no sentido maussiano do termo4. As categorias de valor, mercadoria e dinheiro são as matrizes segundo as quais a crítica da economia política, consequente e bem pensada, perfaz os trajetos e limites, historicamente ultrapassáveis e absolutos, do desenvolvimento do capitalismo. Nesta totalidade pensada, a política é percebida de modo quase que exclusivamente negativo. Robert Kurz, por exemplo, restringe seu conceito de política à atividade relacionada ao estado, concebendo, portanto, apenas uma “antipolítica” como a ação coletivamente organizada de superação das sociedades centralmente produtoras de mercadorias5. Já do ponto de vista da política como antagonismo de classes, como é em grande medida o dos que se arvoram no tronco althusseriano6, por exemplo, a economia é uma “esfera” relativamente neutra e que se submete aos desígnios da política em seu sentido verdadeiro7, à política das classes em luta. Para Žižek é a visão (teórica) que dá cor, profundidade e largura ao objeto visto em ambos os casos. A mesma realidade social é captada nestes dois modos, dando a nítida impressão paralática de que são dois objetos (sociais) distintos: A idéia básica da visão em paralaxe é, portanto, que o próprio isolamento produz seu objeto. A “democracia” como forma só surge quando se isola a textura das relações econômicas, assim como a lógica inerente do aparelho político de Estado – ambas têm de ser abstraídas para que as pessoas efetivamente incorporadas aos processos econômicos e sujeitas aos aparelhos de Estado sejam reduzidas a agente eleitorais individuais.(...) a esfera da (re)produção econômica também só surge quando se isola metodologicamente a JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria. Tradução: José Miranda Justo. Lisboa: Antígona, p. 226. 5 KURZ, Robert. Antieconomia e Antipolítica – Reformulação da emancipação social após o fim do “marxismo” [1997]. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz106.htm (2002). Acessado em <28/03/2012>. 6 Para Althusser – como ele mesmo escreveu – a obra de Marx, se resumia a uma “teoria das condições, das formas e dos efeitos da luta de classes” ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan – Marx e Freud. Trad. Walter José Evangelista. Rio de Janeiro: Graal, 2000, p. 75. 7 Como nos diz o próprio Žižek “a „política pura‟ de Badiou, Rancière e Balibar, mais jacobina do que marxista, divide com seu grande adversário os Estudos Culturais anglo-saxões, a degradação da esfera da economia. Ou seja, o que pretendem todas as novas teorias francesas (ou de orientação francesa) da política, de Balibar a Laclau e Mouffe, passando por Rancière e Badiou, é – usando termos filosóficos tradicionais – a redução da esfera da economia (da produção material) a uma esfera „ôntica‟ privada de dignidade „ontológica‟. Dentro desse horizonte, simplesmente não há lugar para a „crítica da economia política‟ marxista...” ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe, p. 183. 4 3 existência concreta da ideologia política e Estado; não surpreende que tantos críticos Marx se queixem de que falta à sua “crítica economia política" uma teoria do poder e Estado8. do de da do Ao se deparar com esta dualidade paralática a tentação básica, intuitiva, é tentar “mesclar” as distintas visões em uma só, bastando para isso admitir que se trata de duas partes de uma mesma realidade social, duas metades de uma mesma totalidade. Esta (pseudo)resposta “ingênua” diante do problema da paralaxe marxista, entretanto, é pior do que deixá-lo em aberto. Ao se tentar uma “síntese” irrefletida das duas perspectivas paraláticas “acaba-se não vendo nada – seus contornos desaparecem”9, a agudez e a contundência de ambas as críticas das sociedades capitalistas se perdem. Isso acontece porque o problema da paralaxe marxista aponta não para dois distintos procedimentos epistemológicos conflitantes, mas para uma realidade em conflito consigo mesma. E este conflito se manifesta também na teoria crítica desta realidade. Esta clivagem incontornável entre economia e política; entre as aspirações de cidadania e justiça perante o estado e as necessidades das pessoas na forma de sujeitos monetários e de trabalho perante o mercado, somente será superada quando pudermos superar estas formas mesmas, valor e estado. E esta superação, por sua vez, só ocorrerá se a teoria e prática social emancipadora puderem se retroalimentar constantemente. Ou seja: a paralaxe marxista tem seu fundamento na realidade cindida contra a qual a obra de Marx buscou ser uma crítica. Assim, as abordagens que tomam a “matriz da compreensão da totalidade” do valor e da mercadoria – a começar pelo Marx dO Capital, e chegando à Nova Crítica do Valor, passando pela Neüe Marx-Lekture – são capazes de enxergar detalhadamente os dois rostos; entretanto, têm enormes dificuldades para, sem perder a mirada nos contornos deste rosto, enxergar também o vaso. O próprio Kurz, poucos meses antes de sua morte inesperada, se deu conta de que uma teoria do estado com fundamento na Nova Crítica do Valor já deveria ter sido 8 9 ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe, p. 184. ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe, p. 184. 4 feita e ainda estava faltando. Começou a esboçar o plano de uma série de artigos, escreveu duas partes e deixou o resto por fazer10. As teorias que se centram no antagonismo social – na maioria das vezes elaborada sob a rubrica da “luta de classes”11 – contudo, também encontram enormes dificuldades em assimilar os conceitos abstratos-reais (Sohn-Rethel) da crítica da economia política no interior de uma teoria do antagonismo social. E isso já começa com Engels no final do século XIX que, no intuito de tornar os trabalhos de Marx mais conhecidos – especialmente o primeiro livro dO Capital –escondia sua complexa teoria do dinheiro, expondo com vivacidade em suas resenhas apenas sua teoria da mais-valia, que era o mais politicamente relevante e, segundo sua opinião, o mais importante, como atestam as cartas trocadas com Marx em 186712. Althusser, em sua apresentação à edição francesa não disse que o capítulo 1 dO Capital deveria ser deixado de lado na primeira leitura? E também não disse que a teoria do fetichismo deste “terrível” capítulo (expressão dele) era apenas um resquício hegeliano inconsequente? A dificuldade paralática aqui é conseguir ver os dois rostos (o cerne da crítica da economia política) sem perder os nítidos contornos do vaso (a teoria do antagonismo e da luta de classes). Em suma, é preciso reconhecer o grande mérito de Žižek em expor este problema no cerne do pensamento anticapitalista. Se na profusão de textos que este filósofo produz às vezes se escondem momentos que merecem uma reflexão mais detida, este sem dúvida é um deles. KURZ, Robert. Não há Leviatã que vos salve - Teses para uma teoria crítica do Estado (primeira parte). Exit Online em Português. 2011. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz390.htm Acesso em: 22 de Julho de 2013. 11 Vale a pena lembrar que a Nova Crítica do Valor defende o caráter histórico do velho tema do marxismo operário da “luta de classes”, no sentido de que este cumpriu já o papel de inserção mais ou menos bem sucedida do proletariado no edifício do estado e da economia de mercado capitalista. 12 Cf. a introdução de ELDRED, Michael. Critique of Competitive Freedom and the BourgeoisDemocratic State. 2ª ed. Cologne: Artefact, 2010. Uma atualização da predileção de Engels pela vocação política da teoria da mais-valia a despeito da teoria do valor se encontra na conhecida obra de BERNARDO, João. Economia dos Conflitos Sociais. São Paulo: Expressão Popular, 2009, que começa, sintomaticamente, pela teoria da mais-valia. 10 5 2. O direito em paralaxe Para que o problema da paralaxe marxista se torne mais claro poderíamos nos remeter a um campo particular deste modo de crítica social. Tomemos o direito. Já nos primeiros anos da década de 20 a União Soviética de Lênin produziu um rico debate sobre a crítica marxista do direito que só pôde ser inteiramente recuperado nos anos 60. Deste debate acirrado, duas posições se destacam: a de Pietr Stutchka e a de Evgeny Pachukanis. Ao examinar o campo jurídico, Stutchka viu apenas o vaso. Em sua obra Direito e Luta de Classes de 1924, Stutchka examina diversos conceitos de direito que, segundo ele, escamoteavam aquilo que uma correta definição deveria ter de mais importante: “Somente a concepção classista do direito introduz uma determinação essencial, sem a qual a jurisprudência é unicamente uma técnica verbal, uma „escrava‟ da classe dominante”13. A concepção que este jurista compartilhava com o Colégio do Comissariado do Povo para a Justiça era o de que “O direito é um sistema (ou ordenamento) de relações sociais correspondente aos interesses da classe dominante e tutelado pela força organizada da classe”14. Em outra de suas obras, Stutchka assevera que “A natureza de classe do direito consiste no fato de ele tem como seu conteúdo a proteção dos interesses da classe dominante”15. Noutro trabalho, ele afirma o direito como uma “categoria de classe”, e sendo assim, ao extirpar a burguesia de sua posição como classe dominante, o proletariado russo pôde edificar seu próprio direito de classe, na perspectiva de que esta seja a condição de possibilidade para a extinção futura definitiva da sociedade dividida em classes16. Na sua contribuição para a Enciclopédia do Direito e do Estado (19251927) ele escreve: Eu tenho dito que para nós todo direito é direito de classe. (...) Na sociedade de classe nenhuma classe dominante pode fazê-lo sem o direito. O estado foi formado para deter e subjugar a classe oprimida. O direito é a organização direta desta subjugação, e é, em geral, a STUCKA, Petr Ivanovich. Direito e Luta de Classes: Teoria Geral do Direito. São Paulo: Acadêmica, 1988, p. 21. 14 STUCKA, Petr Ivanovich. Direito e Luta de Classes, p. 16 (g. do a.). 15 STUTCHKA, P. I. Selected Writings on Soviet Law and Marxism. New York: M. E. Sharpe, 1988, p. 53. 16 STUTCHKA, P. I. Selected Writings on Soviet Law and Marxism, p. 70. 13 6 organização da exploração da classe oprimida. O interesse de classe tem significado especial para o conceito de direito, pois é para a sua proteção que o direito e o estado existe.17 O que se conclui das definições e da argumentação de Stutchka é que ele tenta extrair uma definição de direito que seja um espelho imediato das relações sociais de produção e, portanto, ser traduzível imediatamente em termos de “interesse” e “dominação” de classe. Ao contrário do Marx dO Capital, Stutchka não se preocupou suficientemente com a forma social de seu objeto de crítica. Isto é, não se preocupou suficientemente com a razão pela qual uma determinada relação social (o capital, por exemplo) adquiriu uma determinada forma (primeiro valor, depois dinheiro e em seguida capital) e não outra. Ao invés disso, ele fica quase que circunscrito ao problema do conteúdo jurídico, ou seja, daquilo que cada dispositivo “implica” socialmente. E onde ele encontrará o conteúdo que será a medida desta implicação social? Ou seja, que conteúdo explicaria a existência e o funcionamento do direito? Stutchka focará em outra relação social, a saber, a existência (e luta) de classes. Com isso ele termina realizando uma quimérica tentativa de explicar uma determinada relação social (o direito) por intermédio de outra relação social (a existência antagônica das classes). Márcio Bilharinho Naves sintetiza muito bem o dilema que resulta da elaboração teórica de Stutchka: O resultado disso é que se obtém apenas uma teoria do direito que vincula aos interesses e às necessidades materiais das diversas classes sociais, mas não dá conta de explicar a própria regulação jurídica como tal, ou seja, não é capaz de explicar por que determinado interesse de classe é tutelado precisamente sob a forma do direito, e não sob outra forma qualquer, de sorte que é impossível distinguir a esfera jurídica das outras esferas sociais.18 O problema que a definição de Stutchka suscita é relativamente simples se nos colocarmos na perspectiva da crítica da economia política marxiana. Poderia existir algo como um “valor burguês”, ou uma “mercadoria burguesa”? Não. A mercadoria e o valor como tal são formas abstratas de socialização e categorias elementares cujo desenvolvimento e concretização histórica é que Op. Cit., p.147 NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: Um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000, p. 45-46. 17 18 7 implicaria na existência e no antagonismo de classes, como fenômeno claramente derivado19. A mercadoria, o valor e, por conseguinte, o capital, são categorias fundamentais a partir das quais a socialização moderna se reproduz em quase todos os seus sub-sistemas. Sendo assim, tanto a burguesia quanto o proletariado e outros estamentos se constituiriam a partir desta formação social específica, não sendo, portanto, correto se apontar para um suposto “valor burguês” e mesmo um “capital burguês”. Assim, quando Stutchka tenta fazer o direito ser derivado das classes e de seus interesses ele tenta explicar uma estrutura sócio-formadora (a forma jurídica do estado) por intermédio de um conteúdo derivado desta (a existência e o antagonismo de classes). Com isto não queremos dizer que a existência e o antagonismo de classes não são fatores fundamentais para a explicação deste ou daquele dispositivo jurídico particular. A verdade é que quase todos os dispositivos jurídicos de um dado ordenamento podem ser passíveis de uma explicação deste tipo. O mesmo, contudo, não pode ser dito a respeito da forma jurídica em si, da definição do que seja o direito como categoria social formadora. Esta precisa necessariamente se remeter à realidade fundamental da mercadoria e do valor e de seu desenvolvimento, ou seja, à realidade fundamental e categorial das modernas sociedades produtoras de mercadorias. O que o pensamento jurídico de Stutchka nos revela, especialmente se colocado lado a lado com o do Pachukanis de A Teoria Geral do Direito e o Marxismo (1924), é que ele se apoiava precariamente no Marx do Manifesto Comunista (1847), isto é, aquele que criticava o capitalismo por ser este apenas um sistema de dominação e exploração consciente e voluntariosa do proletariado pela burguesia20. Ele obliterou o Marx dO Capital, centrado na análise formal-categorial do valor, da mercadoria e do capital e no Não é nenhum acaso que no planejamento inicial dO Capital as classes seriam estudadas no Livro III e que Marx nunca chegou a cumprir esse plano, tendo o interrompido abruptamente, cf. MARX, Karl. El Capital - Crítica de la economía política – (Libro III, Tomo III). Madrid: Akal, 2007, p. 358. 20 Tomemos apenas um dos pontos problemáticos do Manifesto como exemplo de nosso problema, a sua definição de capital: “O capital, portanto, não é uma potência [Macht] pessoal; é uma potência social. Assim, se o capital é transformado em propriedade comum pertencente a todos os membros da sociedade, não é uma propriedade pessoal que se transforma em propriedade social. Transforma-se apenas o caráter social da propriedade. Ela perde seu caráter de classe” MARX, Karl; Friedrich ENGELS. O Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 58. Ora, a caracterização “classista” de capital remete aqui inevitavelmente a uma categoria jurídica, a da propriedade. Como poderia um conceito ele próprio jurídico, fundamentar uma crítica do direito? 19 8 desenvolvimento lógico e histórico destes. De tal sorte que Stutchka termina sendo o paradigma de uma crítica classista do direito. Como consequência desta situação teórica, para Stutchka, ao tomar o poder do estado, o proletariado funda então uma nova legalidade, como classe dominante que passará a ser. Somente depois dessa legalidade proletária abrir-se-ia o horizonte histórico para a superação do direito, uma vez abolidas as classes sociais. Pachukanis segue outro caminho. Sua crítica marxista do direito, tal como a encontramos em A Teoria Geral do Direito e o Marxismo reassume a crítica categorial da economia política e tenta apreender o fenômeno do direito a partir deste prisma21. Assim, o direito na qualidade de forma social se liga inelutavelmente à circulação mercantil capitalista, não sendo um instrumento neutro mediante o qual a classe burguesa poderia, com seu arbítrio e vontade de exploração e dominação, submeter o proletariado e as demais classes dominadas ao seu comando. Antes, o direito como derivação da lógica da mercadoria e do valor realiza as clivagens sociais que perfazem as condições de possibilidade para uma sociedade fundada no trabalho abstrato e no dinheiro. É pelas costas dos sujeitos que se dá o processo dentro do qual a pilhagem e a injustiça se realizam por intermédio das categorias “aparentemente” neutras de sujeito de direito, contrato e norma jurídica. Pachukanis vai, desse modo, ao menos parcialmente, fazer com a “ciência jurídica” o que Marx fez com a “Economia Política” a saber, destrinchar a perspectiva que levava os estudiosos do tema a ver nas categorias de suas análises (no caso dos economistas, valor, trabalho e lucro, por exemplo, no caso dos juristas, lei, contrato e crime, etc.) dados naturais presentes em toda e qualquer sociedade. Em Pachukanis, por conseguinte, se encontra a primeira tentativa de tomar a crítica marxiana da legalidade burguesa em geral em seu caráter “esotérico” e, assim, também de colocar em questão a superação da forma jurídica como regulador social, tanto quanto o valor como cerne da socialização das sociedades produtoras de mercadorias.22 Sobre Pachukanis, além do livro de Naves já citado, cf. o meu NASCIMENTO, Joelton. O valor como fictio juris. Sinal de Menos, nº 1, 2009, p. 60 e ss. Disponível em http://www.sinaldemenos.org Acessado em: 22 de setembro de 2013. 22NASCIMENTO, Joelton. Origens da crítica do direito. Sinal de Menos, nº 2, 2009, p. 176-177. Disponível em http://www.sinaldemenos.org Acessado em: 22 de setembro de 2013. 21 9 Como caracterizar esta diferença profunda nas abordagens de Stutchka e Pachukanis? Alysson Mascaro tentou da seguinte forma: No que diz respeito à compreensão do direito na totalidade social – ou seja, no que se refere a uma fenomenologia jurídica marxista - , certamente as visões de Stutchka e Pachukanis são complementares. Isto porque o movimento de reprodução do capital, que é jurídico, se faz também por meio da luta de classes. É verdade que todo sujeito de direito assim o é porque a lógica capitalista, para que extraia a mais-valia do trabalho assalariado e lucre no comércio e nas finanças, faz do indivíduo natural um sujeito de direito. E é verdade também que este sujeito possa viver sob regimes políticos que lhe dão direito a voto, que lhe tiram tal direito, que lhe torturam ou que lhe respeitam determinados direitos humanos. Ao descobrir o núcleo estruturante do próprio direito e sua relação com o capitalismo, Pachukanis foi mais a fundo na lógica do direito, na ossatura de seu corpo. E Stutchka, tratando do momento da luta de classes, é quem lhe complementa a ossatura com os músculos.23 A tentativa de Mascaro precisa ser corrigida neste particular: a relação entre Stutchka – como paradigma de crítica classista do direito – e Pachukanis – como iniciativa inovadora em fundar a crítica do direito na crítica marxiana da economia política – não é “complementar”, é paralática. Pachukanis não é um descobridor da “ossatura” e Stutchka da “musculatura” da ordem jurídica capitalista, antes, cada um fez uma análise do direito a partir de um ângulo paralático distinto. Precisamente pelos ângulos que configuram a principal paralaxe do marxismo como teoria anticapitalista: a paralaxe entre economia e política. A caracterização destes autores sob uma “totalidade” não-dialética – que se expressa na metáfora fisiológica de “ossos e músculos” – indica que Mascaro realizou o desviou “ingênuo” do problema da paralaxe marxista entre a economia e a política. MASCARO, Alysson Leandro. Pachukanis e Stutchka: o direito, entre o poder o capital. IN NAVES, Márcio Bilharinho (org.). O Discreto Charme do Direito Burguês. Campinas, IFCH, 2009, p. 52. 23 10 3. A inconsistência (paralática?) de Žižek Embora Žižek tenha levantado muito bem o problema da paralaxe marxista, podemos nos perguntar: como ele o encaminha? Em primeiro lugar, ele reafirma uma tese comungada pela Nova Crítica do Valor: a de que não há, a rigor, uma teoria da “luta de classes” na obra marxiana. As diversas observações de Marx a respeito de acontecimentos políticos e de suas repercussões para o movimento operário não formam uma teoria consistente. Nas palavras de Žižek: ...nem Marx nem Freud poderiam de fato pensar esse antagonismo: em última análise ambos o reduzem a uma característica da realidade (social ou psíquica), sendo incapazes de articulá-la como constitutiva da própria realidade, como a impossibilidade ao redor da qual a realidade é construída. O único pensamento capaz de fazer isso vem depois, e origina-se na lógica diferencial do “estruturalismo”24. É importante notar as similitudes desta tese com a de Robert Kurz, formulada em 1993: Se Marx não se estende sobre a forma universal de consciência do sistema produtor de mercadorias constituído pelo fetiche, isto ocorre porque seu pensamento defronta-se aqui com um limite: a referência ao trabalho (ontologia do trabalho) e o ponto de vista de classes e do operariado exige uma abordagem dualista e antagônica e faz a questão da consciência recuar à respectiva "consciência de classe", de sorte que a questão da forma geral da consciência não pode ainda ser posta claramente "antes" do antagonismo de classes. Hoje, sob as condições da crise já madura do sistema produtor de mercadorias, a crítica do fetiche de Marx só pode ser reformulada e desenvolvida adequadamente como crítica da forma universal da consciência que inclui ŽIŽEK, Slavoj Less than Nothing: Hegel and the Shadow of Dialetical Materialism. New York/London: Verso, 2012, p. 250. [ŽIŽEK, Slavoj. Menos que Nada: Hegel e a Sombra do Materialismo Dialético. Tradução: Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2013, p.93]. Citarei quando puder as duas obras pelo fato de que alguns dos capítulos da edição original foram omitidos na edição brasileira. Fiz ainda algumas ligeiras alterações na tradução. 24 11 todas as categorias de classe e interesse (e vai muito além das meras determinações sócio-econômicas em sentido estrito). Só agora as concepções de Kant, Marx e Freud podem ser assim unificadas sistematicamente, só agora se pode ousar a reformulação da "história das lutas de classes" como "história das relações fetichistas" (e com isso, para além das "lutas de classes", remontar à origem da transformação humana)25. As diferenças entre as duas formulações precisam ser anotadas também, evidentemente. Para Kurz, os limites da obra de Marx, no que se refere ao problema dos antagonismos sociais – em especial na figuração destes como “luta de classes” – se devem ao papel que a teoria de Marx exerceu como uma teoria pertencente ao movimento operário, que adotou o ponto de vista do trabalho organizado como pretenso contra-princípio do capital. Quando caem os últimos estados soviéticos, abre-se historicamente a possibilidade de se reencontrar a crítica da economia política em sua agudeza e contundência efetiva, para além de uma teoria dos antagonismos sociais centrados no conflito capital versus trabalho. Este “núcleo temporal da verdade” (Adorno) da teoria crítica marxiana não aparece em Žižek. Ao descrever os impasses que os políticos e intelectuais soviéticos vivenciaram entre os anos 1928-1933 (período da “stalinização” propriamente dita) durante a coletivização, Žižek mostra como foi difícil coadunar o “materialismo histórico” com as necessidades propriamente políticas que a coletivização forçada ensejava: Em sua tentativa de dar conta de seus esforços para esmagar a resistência camponesa em termos marxistas “científicos”, ele dividiram os camponeses em três categorias (classes): bednyaki, os “miseráveis”, os camponeses pobres (sem terra ou com uma terra mínima, trabalhando para outros), aliados naturais dos trabalhadores; serednyaki, os “médios”, os camponeses autônomos medianos (proprietários de terras, mas que não empregavam outros), ricos mas oscilando entre os explorados e os exploradores; e os “kulaks” (kulaki) que, além de empregar outros trabalhadores em suas terras, empresta-os ainda dinheiro ou sementes, etc. – eles são propriamente os exploradores, os “inimigos de classe” KURZ, Robert. Dominação sem sujeito. Sobre a superação de uma crítica social redutora. [1993] Disponível em: http://www.obeco.planetaclix.pt/rkurz86.htm (2000).Acessado em: 22 de setembro de 2013, p. 24/43 (tradução ligeiramente alterada). 25 12 que, como tais, tinham que ser “liquidados”. Entretanto, na prática, esta classificação se tornou mais e mais turva e inoperante: na pobreza generalizada, critérios claros não eram mais aplicados, e camponeses das outras duas categorias amiúde se juntavam aos kulaks em sua resistência contra a coletivização forçada. Uma categoria adicional foi então introduzida: a de “subkulak”, um camponês que, embora muito pobre para ser considerado propriamente um kulak, ainda assim compartilhava a atitude “contra-revolucionária” do kulak. (...) O “subkulak” era, pois, uma paradoxal interseção de espécies: uma subespécie da espécie “kulaks” cujos membros vêm das duas outras espécies. Como tais, os “subkulaks” eram a encarnação da mentira ideológica (falsidade) da inteira classificação “objetiva” de campesinos em três categorias: sua função era dar conta do fato de que todos os estratos do campesinato – não apenas os ricos – resistiam à coletivização.26 A esdrúxula formulação stalinista do “subkulak” é um exemplo extremado dos paradoxos de uma teoria formal e “objetiva” de classes sociais, e, ainda mais, de classes sociais em luta. Embora Stalin não tenha tido muitas dificuldades em esmagar efetivamente as resistências à coletivização forçada do campo da Rússia ele teve enormes dificuldades em formular teoricamente esta coletivização utilizando de conceitos e categorias formais da crítica da economia política – o que se demostrou impossível sem grotescas incongruências. O stalinismo foi uma vítima (nada inocente) da paralaxe marxista ao tentar caracterizar fenômenos políticos a partir de uma matriz econômica de compreensão. De mais a mais, poderíamos nos perguntar se uma crise capitalista também pode ser vista “paralaticamente”, ou seja, a partir de suas matrizes geradoras de totalidade compreensiva irredutíveis entre si. Após discorrer sobre a missão de Paulo em Atenas, escreve Žižek: O mesmo vale para o capitalismo: sua dinâmica de perpétua autorevolução baseia-se no adiamento interminável de seu ponto de impossibilidade (crise ou colapso final). Aquilo que para os antigos modos de produção representava uma exceção perigosa é, para o capitalismo, uma normalidade: no capitalismo, a crise é interiorizada, ou seja, levada em conta como o ponto de impossibilidade que o estimula em uma atividade contínua. Estruturalmente, o capitalismo está sempre em 26 ŽIŽEK, Slavoj Less than Nothing, p. 72-73 (traduzi). 13 crise, e é por isso que está em contínua expansão: ele só pode reproduzir-se “pegando emprestado do futuro”, em uma fuite em avant para o futuro. O ajuste de contas final, quando todas as dívidas são pagas, não chega nunca. Marx propôs um nome para o ponto social de impossibilidade: “luta de classes”. 27 Em primeiro lugar, duas observações preliminares precisam ser feitas: a primeira é sobre o caráter de aeterna veritas que o filósofo esloveno atribui aqui à crise no capitalismo. Seria mesmo “perpétua” e “interminável” a capacidade do capitalismo de transformar, nas crises, seus limites em barreiras transponíveis?28 O principal mérito da Nova Crítica do Valor é ter colocado esta premissa em questão. A segunda observação, ligada a primeira, é sobre a suposta indistinção entre crise e normalidade capitalista implícita nesta passagem. Sim, para Marx a crise se encontra em potência já na formulação simples do valor de uma mercadoria, no fato de que já aí, na mercadoria em si mesma considerada, aparecem necessariamente separados utilidade/desejabilidade e valor. Portanto, capitalismo é crise desde sua mais abstrata caracterização possível. Entretanto, isso não significa que não há distinção entre o circuito normal e o circuito do capital interrompido pela crise, entre sua normalidade e seu “estado de exceção”. Se assim fosse, as crises não seriam sequer discerníveis – pois estas estariam cravadas indistintamente na normalidade da reprodução do capital. Enfim, a crise está inscrita na essência do capital, pois está na forma simples do valor, mas a crise ainda é sempre interrupção, perturbação da normalidade capitalista e, precisamente por isto, ela tem a capacidade de transformar as coordenadas e pressupostos da reprodução do capital de modo a restabelecer uma nova normalidade, ainda que transitória, que ensejará novas crises, etc. Mas a quê Žižek se refere ao afirmar que “Marx propôs um nome para o ponto social de impossibilidade” e que este nome é “luta de classes”? Ao que tudo indica, ele está afirmando que, para Marx, somente a luta de classes é capaz de romper o ciclo infernal infinito de crise-normalidade do capital. Mas como é possível harmonizar esta afirmação com aquela feita por ele neste ŽIŽEK, Slavoj. Less than Nothing, p. 651. [ŽIŽEK, Slavoj. Menos que Nada. p. 363] A elaboração teórica de Marx sobre a capacidade do capital de transformar limites em barreiras transponíveis – especialmente nos Grundrisse – é feita mediante um recurso importante ao pensamento hegeliano. No livro de Žižek sobre Hegel que citamos, contudo, este recurso não é tematizado. 27 28 14 mesmo livro, já citada, segundo a qual “...nem Marx nem Freud poderiam de fato pensar esse antagonismo”? No mínimo, Žižek aqui aparece, ele mesmo, às voltas com a paralaxe marxista, pois ele sugere que a “luta de classes”, essencialmente política, seria a solução para o problema econômico da crise do capital. Outra passagem deste mesmo livro nos fornece mais um movimento do autor em torno desta paralaxe: ... embora seja verdade que o anticapitalismo não pode ser o objetivo direto da ação política – na política, nós nos opomos ao agentes políticos concretos e suas ações, não ao “sistema” anônimo –, devemos usar aqui a distinção lacaniana entre meta e alvo: o anticapitalismo, se não a meta imediata da política emancipadora, deve ser o alvo definitivo, o horizonte de toda a atividade. Não seria essa a lição da ideia marxista da “crítica da economia política”? Embora a esfera da economia pareça “apolítica”, ela é o ponto secreto de referência e princípio estruturador das lutas políticas.29 E aqui o movimento vai no sentido oposto: os antagonismos sociais aparecem estruturados pelo automatismo da esfera econômica e de seu funcionamento sistemático autorreferente. Neste movimento, contudo, parece que os contornos se tornam mais nítidos, e aqui a argumentação žižekiana se mostra mais consistente. Por que apenas quando enuncia formulações de um dos ângulos paraláticos Žižek se mostra convincente? Minha hipótese é a de que a formulação do problema é, ela mesma, problemática. Uma “paralaxe marxista” precisa necessariamente se fundamentar na teoria marxiana e – como o próprio Žižek reconhece30 – a teoria marxiana já está inegavelmente em paralaxe; ela própria é uma matriz compreensiva totalizadora que, fundada na análise da forma de valor da mercadoria, apreende seu desenvolvimento a partir das contradições que essa categoria basilar enseja, etapa por etapa, até chegar às mais desenvolvidas e complexas configurações, em especial o do capitalismo-cassino de papéis de alto risco que são apenas promessas de pagamentos futuros nas quais “economias reais” de países inteiros se baseiam. Mesmo em suas configurações mais desenvolvidas e complexas o capitalismo não deixa de ser apenas o desenvolvimento das contradições que se encontram na forma simples do valor. 29 30 ŽIŽEK, Slavoj. Less than Nothing, p. 651. [ŽIŽEK, Slavoj. Menos que Nada. p. 640] Afinal “...nem Marx nem Freud poderiam de fato pensar esse antagonismo”. Cf. nota 24. 15 Assim, a paralaxe marxista, na medida em que é “marxista”, não é de modo algum uma paralaxe simétrica, mas, antes, extremamente assimétrica, e os dois rostos são sempre muito mais nítidos do que o vaso. Ainda está para nascer uma teoria anticapitalista que realize uma abordagem completa e simétrica em relação à teoria marxiana do valor e que seja capaz de, com a mesma consistência, detalhe e abrangência, ser uma “matriz de totalidade compreensiva” que apreenda a sociedades capitalistas partindo, todavia, do antagonismo social e da disputa pelo poder político. As teorias estruturalistas, mesmo as de linhagem marxista, ficaram muito aquém dessa tarefa31. E desse modo, a metáfora žižekiana dos “dois rostos ou um vaso” como representação da paralaxe marxista encontra seus limites – como toda metáfora. Os dois rostos – ou seja, a crítica da economia política – são muito mais nítidos do que o vaso – a crítica da dominação por intermédio de uma teoria dos antagonismos e da luta de classes. Entretanto, o caráter “paralático” do marxismo ainda se encontra indiscutivelmente presente e operante, e Žižek tem toda razão ao nos mostrar que é melhor enfrenta-lo com todas as dificuldades que ele implica do que se desviar dele. Dito e feito: o filósofo esloveno é mais bem-sucedido, por enquanto, em apresentar a lacuna do que em tentar saltar sobre ela. Voltando ao exemplo do direito como campo da crítica anticapitalista: é precisamente por isto que, como Mascaro reconhece (op. cit.), Stutchka fica aquém de Pachukanis, isto é, ele não consegue apresentar uma crítica do direito tão consistente quanto a do seu pupilo. Stutchka se apoiava em uma teoria cujos desenvolvimentos mais importantes estavam no outro ângulo paralático. Se ao menos Stutchka tivesse conhecido o estruturalismo... 31 16
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