DO objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral
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DO objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral
62 Primeiro momento I Do real à fotograficidade ria: seus corpos de mulheres, seus corpos de elefantes e seus corpos de árvores encontram-se, misturam-se e confundem-se nesse espaço novo que é o espaço fotográfico, nesse Pays de permissiori, como indica o título de seu livro. A arte é um país onde tudo é permitido, basta existirem leis. É esse mesmo procedimento que anima Évrard em sua série Murs installés. O artista parte de uma realidade já existente e nela se instala. As paredes deterioradas e cansadas adquirem então um novo sentido ao se tornarem fotográfias. Évrard, que à primeira vista parecia repórter, situa-se, aqui, nas antípodas das constatações de Lewis Baltz: torna-se plástico e passa a preocupar-se com matéria, com luz e com forma, em resumo, com estilo, como Pascal Kern. O objeto a ser fotografado foi o ponto de partida do repórter e não seu ponto de chegada: o repórter colocou-o em movimento, mas não o atingiu. No entanto, sem ele, não teria havido trabalho nem obra. Ele foi apenas um objeto-pretexto. Portanto, mesmo na reportagem, é possível passar do objeto a ser fotografado ao objeto fotográfico e, assim, dar adeus a uma relação sonhada com O primeiro para se confrontar com uma relação real com O segundo. Uma estética da reportagem deve partir desse deslocamento. Veremos como tal estética só assume seu sentido articulada com uma estética do "ao mesmo tempo"." A reportagem não atinge nem fotografa o objeto a ser fotografado. Será que isso é um fracasso? Não, é uma condição de possibilidade da realização de uma obra; todas as grandes reportagens, como, a título de exemplo, a obra fotográfica de Robert Frank sobre os norte-americanos ou aquelas da FSA,nos levariam às mesmas conclusões. 2 DO objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral: "Isto foi encenado" Será possível esperar do retrato uma melhor apreensão do objeto a ser fotografado? Neste capítulo, o problema da possibilidade de a fotografia captar o real e, portanto, atingir o objeto a ser fotografado é inicialmente aprofundado a partir do retrato: é preciso substituir um "isto existiu" por um "isto foi encenado". Essa tese pode ser universalizada para a fotografia em geral. Mais do que isso, ela é um dos fundamentos de uma estética do "isto foi encenado", que integra a estética do retrato, articulada com a da encenação. Esta reflexão baseia-se numa análise poiética das obras e das fábulas de Ca- 78 Ver "Rumo a uma estética do 'ao mesmo no capítulo 8. meron, Gelpke, Thrner, Michals e Klein. tempo". no capítulo 7, e "A estética do 'ao mesmo tempo' e o político", O conceito condutor é aqui o de "isto foi encenado": uma estética do "isto foi encenado" deve ser aplicada. :64 Primeiro momento I Do real à fotograficidade Do objeto do retrato ao objeto da fotografia Se existisse uma representação em geral: "Isto foi encenado" exata, eu não fotografaria. Claude Maillard, " ... Sur l'imphotographiable"l Em um artigo sobre Christian Vogt, Jean-Claude Lemagny distingue "duas tendências irredutíveis" na fotografia. De um lado, a "fotografia direta", como a reportagem, o retrato e a paisagem: ela explora a realidade que se apresenta ao fotógrafo. De outro lado, a "fotografia encenada", como a de Duane Michals, Les Krims ou Ralph Eugene Meatyard, "fotografia subjetiva, manipulada, autônoma, que, ela própria, é exploração de uma realidade: realidade do próprio meio fotográfico".2Essa distinção é interessante. Por um lado, indica os dois palas, ou seja, o objeto e o sujeito, entre os quais hesitam, se orientam e oscilam as fotos _ a "fotografia direta" deixaria a escrita para o objeto luminoso, e a "fotografia encenada" seria escrita por um sujeito esclarecido, como o déspota. Por outro lado, ela nos obriga a reconhecer uma abordagem conceitual nesta "fotografia subjetiva manipulada" que se indaga sobre sua própria essência. Mas será tão simples assim? Será que o retrato, por exemplo, não pode resultar também da fotografia encenada? A questão é importante: será que no retrato, o objeto a ser fotografado é atingido ou, como na reportagem, é inapreensível? A obra de Cameron deve nos ajudar a aprofundar esse problema e suas implicações ..Poderemos então não só escolher entre a teoria do "isto existiu", importante para Barthes," e a do "isto foi encenado", que faz apelo a uma estética do "isto foi encenado", mas sobretudo poderemos nos perguntar se a fotografia em geral não é da ordem do "isto foi encenado". A encenação do objeto do retrato (Julia Margaret Cameron) Julia Margaret Cameron, A Rembrandt (Sir Henry Taylor, 1865). Será que o retrato é um gênero que dá o objeto - um (ou vários) serres) humano(s) - a ser fotografado ou uma prática que produz uma aparência foto- --I C. Maillard, "... Sur I'imphotographiable: le déroulernent", em Photocouleur critique üa Tremblade: Photolangages, 1985), p, 14. cr Zoam, no 30, p. 36. Roland Barthes, La chambre claire, Coleção Les Cahiers du Cinéma (Paris: Gallimard/Seuil, 1980). 65 66 Primeiro momento I Do real à fotograficidade DO objeto do retrato ao objeto da fotografia gráfica de um fenômeno visível? Esse problema tem raízes na própria tradição do retrato em pintura, aquela, por exemplo, expressa por Dom Perriety em seu Dictionnaire portatif de peinture, de sculpture et de grauure, de 1756: para fazer um retrato, é preciso expressar bem o verdadeiro temperamento, o caráter distintivo, o ar e a fisionomia das pessoas, de maneira que se leia aí o que se lê no próprio rosto da pessoa viva. [...] É sempre captar o momento, a posição mais favorável para a pessoa. [...] Mas essa indulgência não deve ser levada ao extremo, pois seria um quadro e não um retrato. 4 o retrato fotográfico é pleno de tensões e contradições próximas: será que ele se distingue, de fato, de uma fotografia, que seria, como O quadro, da competência da arte? 'Talvez seja apenas uma simples constatação? Uma análise o nOS permite sonhar e imaginar. A mulher olha ao longe: dá uma aber. denunci c A I'em diISSO, essa Imagem enuncia-se como lato pe I a tura Jll 'lumina seu rosto, pois de onde vem essa luz? A fotografia não depende [uz que l re da exterioridade? Os cabelos estao soltos e caem sobre os ombros: belesemp odernidade dessa mulher colocada ali por uma outra mulher que se quer za e rn '. Depois de repente, percebemos que a mão esquerda da mulher segura a mesm. finita , c para a lato. [jvre. preciso poiética do trabalho de Cameron poderá nos ajudar a compreender melhor o problema retrato fotográfico e de suas relações com o ser a ser fotografado. do ' . esse contato sensual mostra-nos que a prece não existe mais, talvez nem cruZ. tenha existido, talvez nem venha a existir. O fundo muito escuro destaca a personagem e a cruz, isolando-as do mundo: só há elas; ele afirma a solidão dessa mulher sonhadora: não há nada atrás, como se fosse um cenário vazio no teatro. 1àmbém sonhamos nós a partir dessa foto, como sonhamos graças às frases fotográficas de Pierre-Paul1temblay. Nosso sonho é ainda mais vivo e pertinente à medida que a foto se afirma como encenação, ao passo que, diante do real ou do real encenado, A teatralização Por que, do ponto de vista de muitos historiadores da fotografia, Cameron se ela é, antes de tudo, uma encenadora conti- fotográfica? Na verdade, uma grande parte de suas fotos representa mitológica ou literária encenada muito frequentemente The Christ Kind: ainda nos impressiona, será porque uma situação histórica, por desconhecidos. Se seu modelo é Margerie Thackeray ou porque Menino, anjinho? Jesus, meio Deus, meio é, portanto, do sentido ao mesmo a encontrar. tempo incontornável "Little Margie" encarna o Menino composição. Na verdade, se para a fotografia direta a recusa do termo I/composição" em favor do termo "enquadramento" as histórias das artes com as geografias das artes. Sejamos exemplo todos esses casos, é sempre do cotidiano: em 1861 pelos Cameron, Mary Ann Hillier, empregada vai, em 1865, representar domés- nessa foto a mulher que reza. Cameron dispôs todos os elementos significativos da cena: um crucifixó branco sobre uma grande cruz negra e flores em torno da cruz. Onde estamos? Num cemitério? Numa igreja? Numa casa? Cameron indeterminada e, desse modo, torna possíveis diferentes um encenador que não nos impõe leitura - Um sua única deixou a resposta interpretações, como do texto e que, por isso Dom Pernety, verbete "Portrait", em Dictionnaire portatif de peinture, de sculpture et de gravure (Paris: Bauche, 1757). As fotos de que falamos foram extraídas do livro de Jean-Marie Bruson, Hommage de J. M. Cameron à Victor Hugo (Paris: Les Presses Artistiques/Maison de Victor Hugo, 1980). Os títulos são de Cameron. de Arnaud Claass" é operatória, por outro lado, para a encenação, deve-se falar de composição. Evidentemente, toda arte é específica, mas nem por isso é totalmente autônoma: é preciso articular Fotografar pode gerar vários tipos de comportamento: ção aparente do voyeur, ou mostrar-se com a exuberância dessa teatralização e discreta. objeto fotográfico é desviado de seu sentido mundano para adquirir um sentido fotográfico, e, correlativamente, o sujeito que fotografa se designa e assina sua Podemos identificar quatro objetos da encenação na obra de Cameron: o cotidiano, a cultura religiosa, a história e a literatura. Lady with a Crucifix é um tica contratada 4 somos escravos fotógrafo pode ser tentado por duas direções: a da publicidade, que constitui um instante eternizado de uma peça de teatro engajada em proveito de uma produção e de um consumo determinados, e a da obra de arte. Neste último caso, o A teatralização fotográfica nua sendo uma retratista, 67 em geral: "Isto foi encenado" constituir então cartógrafos. ou ver com a discrido exibicionista. Em um teatro do qual se é o diretor, do qual se é, por certo tempo, o Deus ordenador: dão-se ordens, chama-se à ordem, introduz-se ordem no real que se quer fotografar. A preordenação divina - a previsão absoluta de todas as coisas - é o sonho de certos fotógrafos: Duane Michals declara prever nove décimos de suas fotos. Deus per machinam: o fotógrafo é, então, ouvido e obedecido; poder decorrente ~arece captar o ser, ou, pelo menos, JO de Cameron ---- oscila sempre da máquina que detém uma das formas instantâneas entre esse Deus leibniziano o tempo e do ser. O dese- e esse Deus do Teatro. fi Arnaud Claass, "Un art sans matériau", em tes Cahiers de Ia Photographie, no 1, Paris, 1981, p. 24. 68 Primeiro I Do real à fotograficidade momento DO objeto do retrato ao objeto da fotografia Ser o Deus do cotidiano: através desse desejo de criação, Cameron coloca-se como artista. Mas o cotidiano não é seu único objeto. Ela quer também reapropriar-se fotograficamente das grandes mitologias e das grandes religiões, e reativar o poder "eterno" delas, modernizando-as graças a uma técnica nova, exatamente como os pintores do Quattrocento pintavam as cenas bíblicas: essa fotografia religiosa notável, na qual Cameron brilhou, foi muito esquecida. Mary Mother é um exemplo impressionante desse trabalho verdadeiramente hermenêutico: é uma reinterpretação da maternidade divina no século XIX graças à máquina fotográfica. Mary Ann Hillier vai representar inúmeras vezes a perso- nagem da Virgem, tornando-se sucessivamente a Madana aspettante, a Madona vigilante, a Madona aâolorata ... O título da foto estudada introduz um equívoco: Mary Mother. Será Mary Ann Hillier ou a Virgem Maria? Esse equívoco, na verdade, reforça a trans-historicidade do tema, correlato implícito da trans-historicidade da fotografia. Mary parece olhar a criança, e através desse olhar para a criança ausente da foto revela-se sua maternidade. Como sabemos que é para uma criança que ela está olhando? Por causa do título? Aqui o texto dá sentido à foto, mas a distância - produtora de sentido - entre o texto e a imagem não é em nada comparável ao que se pode encontrar, por exemplo, em Magritte. Essa foto é maciçamente teatro de um instante; nisso ela se distingue da pintura, em relação à imediação de toda tomada fotográfica. Como escreveu Roger Fry: Aqui o artista mostrou-se capaz de controlar tudo, a mise en page, a disposição dos tecidos e a iluminação; e o resultado é quase perfeito .. Nenhum [pintor] pocena ultrapassar a be- ada passar por uma fotografia de reportagem. Ilusão superior da arte ainda cen. t: rte porque Pinkie Ritchie usa uma roupa que só evoca o século XVI de mais 10 .' muito aproxImatIVa. forma A teatralização é elevada ao quadrado quando Cameron fotografa os Cenci: reendamos que agora a arte fotográfica toma como objeto uma obra de (I, l e a materia-prima d e sua pro d ução compH Qual é seu ponto dee parti riartid a? '-Zua arte. ibilid d histé 1 d C . N artística? Primeira pOSSI inua e: a IStOna rea os erici. esse caso, estamos é no erudito. Mas então, por que não fotografar os atores da peça representada em Londres? Talvez porque Cameron quisesse recriar fotograficamente para si mesma e por si mesma a tragédia de Shelley: a obra de arte pode ser a fonte de uma outra obra de arte. O quadro de Guido Reni (da coleção Barberini), de que fala Stendhal em Promenades dans Rome, considerado como a terceira fonte possível da fotografia de Cameron, só reforça nossa tese: a imagem de Reni dá origem a uma outra imagem (a de Cameron), imagem específica, pois imagem de uma encenação de um hic et nunc extratemporal dos Cenci. Mais do que isso, A study af Cenci designa uma pluralidade potencial de imagens possíveis: Kate Keown, dois anos depois, questiona por isso mesmo substituiu Mary Prinsep; essa substituição indica e a eternidade e a universalidade do drama dos Cenci. leza do modelado do lado esquerdo do rosto ou a excelente perfeição do contorno do lado direito? Com Cameron, a fotografia se afirma como arte e revela a natureza própria do fotográfico. Lembremos que, na mesma época, Duchenne de Boulogne quer O problema personagens da teatralização se coloca de maneira ainda mais intensa quan- do Cameron decide fotografar uma personagem histórica que existiu outrora e da qual há representações pictóricas. Por que, na verdade, fotografar uma mulher que representa ron permite modernas. Mary Stuart? a reencarnação De fato, em Mary, Queen of Scots, Carne- de Mary Stuart graças Ela aposta que a fotografia artística a sua arte e a sua técnica da representação que viveu numa época em que não existia a fotografia, olha a foto, o mesmo tém essa aposta, 7 ,.. diante da mesma problemática referente a Mary Stuart: que relação existe entre a orgulhosa Beatriz que viveu entre 1577 e 1599 e Mary Prinsep, que a encarna em 1866 diante de nossos' olhos? Existe uma segunda possibilidade: a tragédia de Shelley, The Cenci, que fazia grande sucesso em 1866 junto a todo vitoria- fazer com que pacientes quem em geral: "Isto foi encenado" papel que a foto verdadeira dessa mulher, pode desempenhar, da rainha. para Se ela man- é graças à força de sua arte, que pode fazer uma fotografia en- Roger Fry, "Introduction", em Julia Margareth Cameron, Victorian Photographs of Famous Men and Fsit Women, introd. Virginia Woof e Roger Fry (Londres: Hogarth, 1926), pp. 26-27. Fry escreveu "mise en page" em francês em seu texto inglês. - que ele fotografa - representem os sentimentos das de Shakespeare. A fotografia como arte elevada ao quadrado assume uma nova característica com o trabalho que Cameron realizou a partir dos poemas de Alfred Tennyson: passamos luz a escrita de fato da encenação do poeta. poesia vitoriana"; "o precursor Como nos lembra de nossos mestres e Tennyson. :--9 Com imagens, a fotografia Ritz,9 Tennyson de 1850 a 1892, ele mantém em 1874, a tarefa de ilustrar d traduzirá à reescrita; sua obra mais famosa, com a é "a figura maior o título de "poeta laureado". Yeats, Joyce, Huxley, mas recriará reescreve da Ora, Eliot" confia a Cameron, Idylls of the King. Ela não uma obra de arte a partir The Kiss of Peace é uma foto feita a partir do poema da literatura "Saint Agnes ~~r a noção de "arte elevada ao quadrado" no último capítulo deste livro. . EncYClopaedia universalis, tomo 15 (Paris: Éditions de l'Encyclopaedia Universalis, 1979), p, 933. 69 70 Primeiro momento I Do real à fotograficidade Do objeto do retrato ao objeto da fotografia Eve": uma mulher bela e misteriosa beija a testa de uma adolescente; ambas parecem mergulhadas em pensamentos melancólicos _ tristes, mas sem angústia =, evocando tanto o poema de Thnnyson quanto a pintura pré-rafaelita. Quem olha a foto encontra os sonhos de "Saint Agnes Eve", mas também se encontra alhures, pois a imagem não funciona em seu imaginário como as palavras. The Rosebud Garden of Girls mostra-nos bem o procedimento de Cameron para compor uma foto. O poema "Maud", de Thnnyson, inspira a fotógrafa, que "isola uma palavra ou um grupo de palavras'"? e lhes dá uma interpretação totalmente pessoal, "distante de seu contexto, guiada pelas sonoridades ou pelas visões que as palavras evocam": Rosa, rainha do jardim florido de jovens, Venha, as danças terminaram No brilho do cetim e na luminosidade das pérolas, Rainha dos lírios e das rosas ao mesmo tempo. 11 As quatro irmãs Fraser 1Ytler representam as jovens que Thnnyson evocava; o jardim, as rosas e os lírios formam o cenário; a atmosfera é recriada _ e não encontrada, como em certos trabalhos medíocres com pretensões realistas. Essa teatralização fotográfica também pode ser elaborada seguindo um outro processo. Em 1869, Cameron fotografara Mary Ann Hillier desempenhando o papel de uma heroína patética e estranha; ora, cinco anos depois, essa foto evocou para Cameron o poema "The Lady ofthe Lake": Ejunto a ele estava a Dama do Lago Que conhece encantos mais sutis do que os seus Vestida de brocado branco, misteriosa, maravilhosa. 12 O poema já estava ilustrado. Só restava à fotógrafa realizar, uma segunda vez, ato de artista: desviar a foto de seu primeiro sentido e articulá-Ia à obra de Thnnyson, dando-lhe o título tão famoso do poema. Ainda aqui, não só Cameron fazia urna obra de arte, mas, além disso, desvendava o status paradoxal da fotografia: obra cujo sentido muda em função do título que lhe é dado. Na verdade, - . ta reinterpretava sua própria foto, tal como Moliêre, que fazia representar com outra encenação, uma de suas próprias peças de teatro. O a arOs de nOV , Aliás, Cameron às vezes dá várias interpretações fotográficas de um mesmo a É o caso de "The angel at the tornb": a cada vez, encontramos a mesma poem . Duas senes ' . corre I'ativas dee interpretações i . fiotográficaMary Ann nnn I ler. atflZ _ postas em prática: de um lado, as diferentes interpretações teatrais que sao Mary Ann Hillier deu ao papel do anjo - da mesma forma que uma atriz interpreta várias vezes e de maneiras diferentes uma ~esma peç~ de teatro, a cada representação -, e, de o~tro lado, as diferentes mterpretaçoes do poema por Cameron - da mesma forma que um tradutor pode interpretar de maneiras diferentes um mesmo poema ou, talvez, como um psicanalista interpreta indefinidamente o mesmo sonho: ponto central da fotografia, imagem do ponto central da interpretação dos sonhos estudada por Freud, imagem também do ponto central das cópias que, a cada vez, são sempre as mesmas e sempre são diferentes." Rumo a uma estética do retrato e da encenação Será que a teatralização fotográfica é específica de um determinado tipo de retrato ou de todos os retratos? Para responder, vejamos os de Hattie Campbell. Que retrato nos revela melhor a identidade da moça? Será que é quando ela representa a Vestal ou quando Carneron faz dela um retrato "verdadeiro", fotografando a própria Hattie, e não Hattie encarnando uma personagem? Será que a verdade de uma identidade é encontrada graças à apreensão natural de uma natureza, ou graças à apreensão cultural de uma cultura? De fato, no retrato "verdadeiro" de Hattie, a moça já está representando. Ela "posa" nos dois sentidos da palavra: pose fotográfica e afetação mundana, cultural e social. Não temos diante dos olhos a pessoa de Hattie, mas sua personagem, ou seja, um ar, um jogo e uma imagem que ela dá de si mesma aos outros e talvez a si própria. "O homem não passa de disfarce, mentira e hipocrisia. [...] não fazemos outra coisa senão nos enganarmos e adularmos mutuamente", escreve Pascal.I4 Além disso, essa pose é obrigatória por razões técnicas da época: a exposição da placa devia durar de cinco a sete minutos. Permanecer imóvel durante um tempo bastante longo a fim de deixar para a eternidade a imagem de seu eu!... ••••••••• 13 11 Jean-Marie Bruson, Hammage de J. M. Cameron à victor Huga, cít., p. 17. Alfred Tennyson, "Maud", em Maud and Other Paems (Londres: Moxon, S/d). 12 Alfred Tennyson, "The lady of the lake", em Idylls 10 em geral: "Isto foi encenado" ot the King (Londres: Penguin Classics, 1983). 14 Ver capítulo 4. Pascal, PenSées, no 100, org. Brunschvicg (Paris: Garnier, s/d). [O trecho aqui citado é da edição brasileira pensamentos, no 100, org. Brunschvicg, trad. Sérgio Milliet, Coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural, 1973), P.70.1 71 72 Primeiro momento I Do real à fotograficidade Mas o que é o eu? Na verdade, será que ele não é mais facilmente perceptível nas fotos claramente teatrais? Em todo caso, considerando a pluralidade destas, o eu não é afirmado nem como elemento fixo nem como elemento natural; a oposição verdade/representação, correlata da oposição natureza/cultura, é aqui recusada, assim como as distinções fotografia diretalfotografia encenada e en, quadramento/ composição. A identidade de Hattie é plural: Hattie é, também em sua própria vida, Vestal, anjo da guarda ou Eco; para a última foto _ The Echo -, Bruson fala até, com uma exatidão paradoxal, da "espontaneidade do movimento", que parece "natural e não posado". 15 A pose mundana e social dá a impressão de desaparecer quando é estabelecida a pose teatral e artística: a identidade nasce da ilusão afirmada. Acting Grand-Mama reforça nossa tese. Nessa foto, a ilusão é ao mesmo tempo posta em prática e denunciada duplamente: através do título e através das roupas convencionais usadas nas brincadeiras infantis e nos teatros amadores do século XIX. Mary Prinsep, moça de uns 20 anos, representa a avó; dessa forma, nós a descobrimos em Sua pluralidade identitária: a moça, a atriz, a mulher que será avó ... Ora, entre essas três personagens, estabelecem-se e tensionam-se relações que permitem uma leitura fenomenológica do eu, portanto, uma leitura a ser sempre retomada, mas, de qualquer modo, produtora de um sentido infinito. Todo retrato é uma representação: o retrato da mulher desconhecida com um turbante nos designa não mais uma determinada mulher, mas um tipo de mulher representado; passamos do individual ao típico e ao universal. E, quando Cameron fotografa Tennyson, podemos reafirmar o que dissemos. Temos ao mesmo tempo a foto do poeta "em carne e osso" e a foto do poeta fazendo-se fotografar; como diria Barthes, o sujeito tornando-se objeto. E que objeto! Carneron queria "imortalizar os grandes homens": já imortalizados pelas práticas e os discursos da sociedade - Tennyson é o poeta laureado durante cerca de meio século - a ponto de se terem tornado quase que super-homens, esses homens são duplamente eternizados e universalizados: pela técnica fotográfica e pela arte fotográfica. Não é mais o retrato de Alfred Tennyson que temos diante dos olhos, mas a imagem atemporal de Tennyson e até a imagem do conceito de grande homem. A fotografia, que parecia ser uma técnica que reproduzia o fenômeno, coloca-se como uma arte que resulta no conceito; ela parece ter a mesma pretensão que a pintura de Leonardo da Vinci: ser "a ciência suprema". Como Leonardo, Cameron poderia ter dito: "Aciência perfeita é a distinção en- -15 Jean-Marie Bruson, Hommage de 1. M. Cameron à victor Hugo, cit., p, 17. Do objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral: "Isto foi encenado" mbra e a luz em claro-escuro [...]. Quero fazer milagres". É possível então tre a SO ética da encenaçao. uma es t se considera uma pintora ou uma encenadora? Rembrandt" parece camero 11 , ' . . . ialmente indicar que o modelo da fotografa e o pintor: ela quer fotografar In1C b d ., d M . ficar . Ilenry Taylor como Rem ran t o tena pinta o. as sera' que e, preciso SI;sse primeiro nível de análise? Na verdade, ela quer fotografar com a mesma ~ualidade artística com que o maior pi,nto~ teria pintado o,u o maior diretor de teatro teria feito representar. Sua referência a Rembrandt e a marca de sua eXIgência artística e de sua-assinatura pessoal de artista, não a marca da mimesis da pintura. Tclmbém ela será aconselhada, para suas fotos, por artistas de horizontes diferentes: pintores, é claro, mas também poetas, dramaturgos, músicos, diretores de teatro. Se Watts, por exemplo, colabora às vezes na preparação dessas fotos, durante os 23 anos que mora com os Cameron, é antes de tudo como artista. Aliás, suas pinturas históricas eram verdadeiras encenações, assim como seus afrescos monumentais que evocam a evolução da humanidade - por exemplo, tlamour et Ia mort - ou seus retratos de Swinburne ou de Thomas Carlyle. O problema da teatralização em pintura era exportado para o campo da fotografia. Evidentemente era modificado, mas não totalmente transformado. Cameron levou esse problema a sério, trabalhando-o e tratando-o com sua personalidade e suas próprias escolhas artísticas, técnicas e ideológicas. Recusando-se a adotar uma teatralização fotográfica realista, ela vai se chocar - e isso será sua força e sua riqueza - com a crítica fotográfica tradicional. Em 1864, um crítico considera suas fotos "admiráveis, cheias de expressão e de vigor, mas terrivelmente contrárias às convenções e aos usos fotográficos"." Uma crítica de 1865 que talvez parecesse, na época, depreciativa revela-se, de fato, extremamente valorizadora: as fotos de Cameron, "embora muito medíocres como fotografias, são a obra de uma verdadeira artista"." Fotógrafa, encenadora, artista simplesmente, são estes os qualificativos que podem ser atribuídos a Cameron. Ela própria faz duas observações interessantes sobre a definição da imagem e sobre as manchas: o que é a definição da imagem e quem tem o direito de dizer qual é o grau exato de de- finição? [,..] Quando eu estava definindo a imagem e quando chegava a alguma coisa que, 16 17 Foto publicada na p. 64 deste livro. 18 The Phatagraphic Jaurnal, vaI. 9, Londres, 1864, P, 171. Ibid" 1865, p, 117, 73 Do objeto do retrato ao objeto da fotografia para mim, era muito bonito, eu então parava em vez de girar a objetiva até uma definição perfeita, o que todos os outros fotógrafos insistem absolutamente em fazer [...]. Quanto às manchas, penso que é preciso deixá-Ias. Poderia retocá-Ias, mas sou o único fotógrafo que só apresenta fotografias não retocadas, e os artistas, por esse minhas fotografias 19 motivo, entre outros, valorizam Dessa forma, Cameron mostra que ser artista é escolher, e que o mais importante não é o objeto a ser fotografado, mas sim a maneira fotográfica de gravar suas aparências visuais para produzir o fotográfico. "Nunca ninguém captou nem utilizou o sol como VOCê",20 dizia Victor Hugo a Julia Margaret Cameron. Talvez pelo fato de ela ter sabido ultrapassar a fotografia aparentemente objetiva e realista para atingir o teatro: teatro da vida? Teatro da arte? Teatro fotográfico, em todo caso, graças a essa Aufhebung21 hegeliana de uma técnica. Cameron pôde também ultrapassar o simples projeto de retrato de um ser a fotografar para chegar à fotografia como obra, deixando no mistério a identidade do ser. Ela abandonou a busca do "isto existiu" para escolher o "isto foi encenado". O objeto a ser fotografado não é mais do que uma oportunidade de encenação. A estética do retrato articula-se então com a da encenação no interior de uma estética do "isto foi encenado". Rumo a uma estética geral do "isto foi encenado ll o jogo da fotografia Pode-se então pensar que toda foto é teatralizante e que para a fotografia em geral é preciso dizer: "isto foi encenado"? Retomemos o problema do ponto de partida. Pode-se fotografar o eu de uma pessoa? Para tal, seria preciso que o eu existisse de maneira permanente e idêntica. "O que é o eu?", pergunta Pascal:" todas as tentativas de respostas que ele apresenta - o corpo, a beleza, o julgamento, etc. - fracassam: "Onde está portanto esse eu, se não está nem no corpo 19 20 21 22 Cf. Jean-Marie Bruson, Hommage de 1.M. Cameron à vtctor Hugo, cit., pp 9,12,18. Ibid., p. 5. na alma?" Não será ele unicamente uma das três personagens do segundo nem - sera'1e e sempre mutante e d·irerente? e , íco de Freud? Consequentemente, nao toP~;1tado eu, devemos fotografar o próprio aparelho psíquico? O que significa, Nasse caso. a expressão "fotografar o psíquico"? Não se estará sempre diante de ne orpo ou em todo caso, diante de uma matéria? Mas esse corpo é o sintoum c , ' a o vestígio ou o índice de quê? Do eu? Mas então de qual eu? Do aparelho rn -' Ul'CO? Mas será isso de modo geral ou num dado instante? Seria melhor dizer psiq . .. . ue a fotografia nos põ~ diante do id do outro. Esse iâ afirma-se como deslocado ~m relação ao eu permanente impossível. Esse id é representado por si mesmo e por sua posição dialética no interior do aparelho psíquico. Cada foto nos indica que o id foi representado, pois, diante de um fotógrafo, representamos e somos representados. O livre-arbítrio não é aceito em fotografia: é preciso que seja substituído pelo jogo da necessidade, a necessidade das relações de teatro que constituem a vida. "Isto foi encenado": isso é verdadeiro não só para o id do fotografado, mas também para o id daquele que fotografa. Com efeito, toda foto é trabalhada por aquilo que escapa àquele que fotografa e, portanto, o domina, a saber, entre ou tras coisas, pelo id daquele que fotografa. A relação fotografado que fotografa não é neutra. Mais do que isso, ela não é controlável, porque o mais importante acontece no nível inconsciente." Uma foto é antes de tudo o resultado de relações entre ids, entre pulsões. O id do que fotografa desempenha um papel, mas, além disso, um papel é desempenhado pelo id do outro e pelo próprio aparelho psíquico. Para todo fotógrafo ocorre um jogo dialético, na maioria das vezes inconsciente, entre seu ego, que visa a dominar e a prever, seu id, que exprime maciçamente suas pulsões e suas tendências para com a exterioridade (e portanto para com o fotografado e a fotografia), e seu superego, que é habitado pela identificação problemática do fotógrafo com "grandes" fotógrafos, e portanto com regras e modelos estéticos, estilísticos ou técnicos; todo fotógrafo é encenado e dirigido, atraído e paralisado por esses modelos, mesmo - e sobretudo - se quiser se distanciar deles. "Isto foi encenado": todo mundo se engana ou pode ser enganado em fotografia - o fotografado, o fotógrafo e aquele que olha a fotografia. Este pode achar q~e a fotografia é a prova do real, enquanto ela é apenas o índice de um jogo. Diante de qualquer foto, somos enganados. Isto foi encenado, porque isto ocorreu e po . rque isto ocorre num lugar diferente daquele que se acredita. Como no teatro, em fotografia o referente não está onde se pensa, nem onde se está, nem Ultrapassagem dialética. Pascal, Pensées, nO688, org, Louis Lafuma (Paris: seuil, s/d.). em geral: "Isto foi encenado" 23 FranÇOiSSOulages et ai., Photographie et inconscient (Paris: osírís. 1986). 75 Do objeto do retrato ao objeto da rorograna F J 6""'Prrmelro=tt10mentO onde se acredita que esteja. Talvez a fotografia não se refira senão a ela mesma: é, aliás, a única condição de possibilidade de sua autonomia. As teses que apresentamos para a obra de Cameron poderiam ser retomadas em relação a qualquer retrato fotográfico: a pessoa fotografada representa uma personagem. Demonstraremos isso, por exemplo, com Diane Arbus," para quem cada foto é, conscientemente ou não, uma encenação, ou a foto de uma encenação: [eune homme avec bigoudis chez lui, Les champions du [unior Interstate Dance, Dame à un bal masque avec deux roses sur sa robe, etc. Todas as fotos de Arbus poderiam ser citadas. Essas teses são pertinentes não só para as fotos das pessoas que sabem que estão sendo fotografadas, mas também para as de pessoas anônimas tiradas às escondidas. Na verdade, há sempre uma encenação do fotógrafo: poderíamos tomar como exemplo as fotos de William Klein. Talvez seja - poder-se-ia dizer numa perspectiva humanista - a especificidade da encenação que manifesta o estilo do autor. Diante da foto de um anônimo, nunca podemos saber se essa foto é realmente de um anônimo espionado ou a de uma pessoa prevenida (que, portanto, representa): o "isto existiu" é impossível de dizer porque o "isto foi encenado" foi pronunciado uma vez. Assim como Descartes foi enganado uma vez, devemos, diante de qualquer foto, praticar uma dúvida metódica e hiperbólica em relação à existência particularizada do referente: a fotografia sempre pode ser vítima do Gênio Maligno, de "algum não sei qual enganador"." As pretensas fotos espontâneas de Doisneau são frequentemente fotos de encenação. Ora, essa encenação não se refere só às fotos de homens ou de mulheres, mas também às de paisagens, de máquinas, de qualquer objeto do real. Na verdade, qualquer foto pode ser a foto de uma encenação, como, por exemplo, essas paisagens falsas cujo status não deixa de evocar o dos cenários de teatro barroco, como em Lillusion comique, de Corneille, ou A vida é sonho, de Calderón. Além disso, qualquer foto pode ser manipulada na revelação, como as fotos de publicidade. Enfim, ela é sempre feita por um homem que é ele próprio trabalhado e dominado inconscientemente por modelos a serem reproduzidos ou a serem evitados, por pulsões e desejos. Todo fotógrafo é, portanto, quer queira quer não, um encenador, o Deus de um instante. Toda fotografia é teatralizante. 24 Ver capítulo 7. 25 Descartes, Méditations métaphysiques (Paris: PUF, 1966), 11, 4. [O trecho aqui citado é da edição brasileira Meditações, 11, 4, trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior, coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural, 1973), p.100.] em geral: "ISto TOI encenaao 7 I Do-rnalTmtografiClClaae" Mais uma vez o real nos escapou, talvez simplesmente porque é impossível ostrá-l . Os homens parecem ter necessidade de crer, e talvez seja por isso o mIes se apeguem à aparência. Não podendo dizer e assumir o "isto foi enceque e diante de uma foto, eles apostam na fotografia como prova do real. Essa ado" :atisfação com a ilusão vem de outro lugar, ela não é específica da fotografia, mas deve ser denunciada para que a fotografia possa chegar a um papel diferente daquele de, pobre testemunha de um real impossível. A fotografia deve ser comparada com o teatro e ser pensada como trabalhada por um jogo: o jogo dos homens e das coisas. Por ser habitada por esse jogo do mundo, por sermos representados diante dela, por sermos enganados por ela é que a fotografia pode entrar no mundo das artes. A fotografia está do lado do artificial e não do real. O objeto a ser fotografado pode menos ainda ser reproduzido em sua integralidade pela fotografia, à medida que ela está sempre na dependência do ponto de vista de um sujeito: dessa forma, o "eu" do fotógrafo é posto em primeiro plano. Que consequências se pode tirar disso? Em que a arte fotográfica é modificada por isso? As obras de Gelpke e de Thrner, de Michals e de Klein vão permitir-nos elaborar respostas para essas questões. o jogo da realidade (André Gelpke e Pete Turner) A fotografia não dá a realidade. Em contrapartida, ela pode questioná-Ia. A esse respeito, o trabalho de André Gelpke é exemplar: suas fotos se apresentam como fotos realistas, mas não o são. Quando o receptor toma consciência disso, não pode fazer outra coisa a não ser questionar a fotografia, a pretensa realidade e a relação que ele mantém com ela. "A 'pseudo-aparência' de meus 26 'clichés realistas' põe em questão a própria realidade", afirma o fotógrafo. Suas fotos constituem, na verdade, um jogo com as aparências e a realidade, com o fotografado e o simulacro, com a foto e o infotografável. "A realidade, condicionada pelo afastamento do acontecimento, pela avalanche dessas imagens de crueldade, torna-se uma ficção"," diz Gelpke. De um lado, a realidade tem aparências de sonho e até de pesadelo. De outro lado, essa angustiante estranheza é reforçada pela própria natureza da foto, que descontextualiza o fenômeno visível fotografado. Por essa separação de seu tempo, de seu espaço e de seu ponto de vista de origem, a foto pode então parecer vazia de sentido, seja 26 27 Release da exposição do Centro Georges pompidou, 1984. Ibidem. otograficidade Do objeto do retrato porque nada nela é reconhecível nem identificável, seja simplesmente porque o que se pensa reconhecer está separado do Conjunto que lhe dá sentido. A foto está sempre rodeada por um irremediável extracampo visual inacessível, enconhecível e doador quanto no cinema o extracampo é sempre potencialmente de sentido. "Logo depois de tirada, a foto começa a se esvaziar de seu sentido ligado à atualidade representada para começar a ficar carregada de sentidos intencionais, isto é, aqueles Ando Gilardi.> que a realidade pode investi-Ia estabelecidos por seu modo de divulgação", escreve Como a foto, em SUa própria essência, é esvaziada do sentido poderia ter, o receptor, uma vez passado o tempo da confusão, de novos sentidos uma foto de alguma a arte do imaginário ligados a Sua subjetividade e a seu imaginário: coisa permite sempre imaginar outra coisa. A fotografia é por excelência, bem mais do que o cinema, talvez porque seja muda, sem movimento e sem futuro, puro fragmento de nonsense que pede uma construção de sentido imaginária por parte do receptor. Essa é uma das razões de sua possível passagem do sem-arte à arte. Também Gelpke pode em sua obra tentar "tornar perceptível, pelos meios puramente fotográficos, essa 'contra-realidade'''.29 A fotografia permite não captar a realidade, mas chegar à contrarrealidade que, por contragolpe, critica a realidade do mundo: a ficção tal- vez seja o melhor meio de se compreender a realidade. "A máquina fotográfica representa uma maneira de ir, de uma matéria fluida e mutante, ao encontro de uma outra realidade ", diz Jerry Uelsmann.e' o trabalho de Pete Thrner é um outro modo de questionar a realidade: "Quero uma outra realidade em minhas imagens, mais realidade", escreve ele." Entendemos "mais realidade" como sendo ao mesmo tempo uma realidade diferente, uma realidade mais solicitadora para quem olha, e uma realidade de natureza fotográfica. Com esses dois fotógrafos, encontramos questionamentos com os quais já nos deparamos a respeito da esquizofrenia.32 Não que uma tendência ou tentação esquizofrênica perpasse a obra deles, mas vemos em suas fotos e compreendemos em Suas afirmações uma decepção e até um mal-estar quanto à realidade externa, assim como uma vontade ou de criticar essa realidade ou de substituí-Ia por outra. A fotografia lhes dá esperança de que essa vontade pode chegar a um fim porque, 28 29 30 31 32 como diz Ernest Haas, ela "decorre da transformação Jerry Uelsmann, soua J. Lizé, Fixer-révéler ou tentative de délimitation 1981, o, 15, não publicado. tiu champ Photo, Pete Tumer, Coleção Les Grands Maltres de Ia Photo, no 7 (Paris: Photo, 1983), p. 7. Ver François Soulages et ai., Photographie et inconscient, cit. 79 inventem-na'." A fotografia deve ser ; realidade! Se vocês não a encontram, não só encenação e jogo, mas deve ser invenção; nisso o fotógrafo é criador. pete -rurrier experimenta, por conseguinte, todos os parâmetros constitutivos da fotografia; nota-se, aliás, essa liberdade exploradora e criadora entre os fotógrafos desde o início da fotografia. "Não mudo as cores simplesmente para fazer experimentos, faço o que posso para que elas trabalhem a meu favor", escreve 'Illrner.35 Seu interesse não é a realidade externa, mas a realidade de Sua obra. 'Itabalha com a cor com a mesma lógica do fotógrafo que usa o preto e branco. É por razões de coerência interna da foto e de distinção para com a realidade que determinada cor é usada. Ele se opõe totalmente a Herman Podesta, que afirma: "Não faço fotos coloridas, pois a cor induz uma referência imediata ao real"." Os dois fotógrafos constatam a mesma coisa, mas tiram disso consequências prático-estéticas opostas. É preciso então distinguir as cores do objeto a ser fotografado autônomo e as da foto. Thrner cria seu mundo na fotografia: esse mundo é e rico. o jogo e o eu do fotógrafo (Duane Michals e William Klein) É por essa razão que esses fotógrafos Cartier-Bresson: é contra sua doutrina captação do objeto a ser fotografado "Em vez de fotografar mento que precedia e o momento quer captar um acontecimento aventura quência que se desenvolve --34 35 36 37 se opõem explicitamente à estética de do instante decisivo e de uma possível que esses fotógrafos o momento tografia não é mais citação 33 esthétique de Ia photographie, em geral: "Isto foi encenado" _ da reprodução"33 Pete Turrier extrai disso uma consequência que o coloca e nao ma artista: "Fico constantemente surpreso de ver a quantidade de fotógrafos C~e se recusam a manipular a realidade, como se isso fosse um mal. Mudem decisivo, que seguia", da realidade, que ocorreu durante constroem sou levado escreve mas história Duane Estabelece o mo- Michals." encenada. (Barcelona: Time Life, 1979), p, 234. Herman Podesta, apud Photographiques, nO101, Paris, novembro de 1983, p. 17. Entrevista concedida à rádio France Culture, novembro de 1980, não publicada. A fo- O autor não mas contar uma então uma se- de um texto. Dessa maneira, e para a ficção: por vezes aparece Ernest Haas, apud tes grands photographes Photo Pete Turner, cit.. p. 8. Ibidem. sua obra. a fotografar num dado instante, um certo tempo. de várias fotos, às vezes acompanhada se abre para a narração Ando Gilardi, Storia sociale della fotografia (Milão: Feltrinelli, 1976), p. 251. Release da exposição do Centro Georges Pompidou, cit. ao objeto da fotografia ele um anjo na foto, em 80 Primeiro momento I Do real à fotograficidade DO objeto do retrato decorrência das necessidades da história e, ao mesmo tempo, para nos mostrar que a fotografia capta as aparências às vezes invisíveis para o olho humano e não a simples realidade. O artista, portanto, apela mais para nossa imaginação do que para nossa visão: ''A única realidade que conheço de modo seguro é a mas não na realidade das pinturas. Isso dá uma vantagem para os fotógrafos. O problema é que os fotógrafos também acreditam na realidade das fotografias", observa Duane Michals." Os fotógrafos devem se situar no mesmo plano que os pintores para abordar a questão da realidade; é uma das condições 81 FOtoSautomáticas, paparazzo, tabloide, pastiche, arte bruta, antifoto, para começar. Eu não desfocado, não enquadramento, esse procedimento tudo. Granulado, deformação, acidentes. Batia fotos ao acaso [...l. fazendo render o máximo. Mergulhava de cabeça em tudo o que não se devia fazer em fotografia [. .] Tinha a impressão de que os pintores tinham-se libertado das regras: por que não os rotógraíos?" Encontramos na aventura deliberada de Klein o trajeto de Pataut com as crianças do hospital-dia: não há nenhum limite, nenhum superego técnico nem estético domina; a experimentação é total, e as fotos são notáveis; só existe um modelo: a liberdade total dos pintores. O artista estuda todas as possibilidades da possibilidade de que eles façam arte. "Eu não 'vi' o que fotografei, eu 'fiz"', afirma esse fotógrafo. ''A fotografia é um ato poético, no sentido em que poiein da fotografia, voltando incessantemente a seu trabalho, retomando o que lhe parece não canônico, "perseguindo os negativos disperses"." Foi porque ousou quer dizer 'fabricar' antes de tudo mentais: seus limites são os de meu espírito. "41 O fotógrafo não tira fotos, ele as faz, evidentemente a partir dos fenômenos visíveis _ sem com trabalhar o que alguns teriam deixado nas latas de lixo da história e porque se apropriou disso para construir um conjunto coerente, assinado e significativo que ele pôde produzir uma obra original e rica, que é a sua, e dessa maneira isso procurar ter deles uma restituição realista -, mas sobretudo a partir das imagens psíquicas que ele inventa em si mesmo. Encontramos aqui, ao mesmo pôde renovar a estética da fotografia. Foi confrontando-se com o temporário sem arte que ele entrou na arte: fotos automáticas, arte bruta e antifoto torna- tempo, as afirmações ram sua fotografia possível e poderosa. em grego. Tenho horror do pitoresco; de Marc Pataur" e a concepção portante para Paul Valéry e René Passeron.? centro da fotografia, seu responsável. minhas imagens são poiética da arte que é im- o sujeito criador volta a se tornar o "Eu ia em direção oposta [a Cartier-Bresson], deixando de lado o mito da objetivida.de",44 escreve William Klein para explicar seu procedimento. Também rejeita o instante decisivo, que ele substitui são decisivos";" afirma corretamente esse criador. A liberdade infinita. Ele experimenta tudo o que é tecnicamente possível: - de negativos, um homo faba. Não se tira uma foto, ela é feita. do poiein é então Dessa forma, a fotografia dos seres humanos não deve fazer crer que ela pode fotografar o ser a fotografar: ela sempre o perde, fotografando apenas uma aparência visual que depende do ponto de vista de um sujeito e de uma aparelhagem técnica. "Nós vemos, mas não sabemos nada", escreve Lemagny." É sei, o que o e talvez, as- sim, nos abrir para um outro saber. Saber do objeto? Talvez, mas não se trata so- Ibidem. 39 J-M. Schaeffer, L'image précaire: Ou dispositif photographique, 40 Cf. Duane Michals & Michel Foucault, Ouane Michals: Photographies Museu d'Art Moderne de Ia Ville de Paris, 1982), p. 111. Cf. Zoom, no 40, Paris, outubro de 1976, o, 25. Ver capítulo 5. 41 é um perseguidor justamente esse ver sem saber, que substitui o saber de eu vejo/eu artista explora para nos fazer ver outra coisa de maneira diferente 38 42 O fotógrafo não é um caçador de imagens, pelo sujeito que decide: cabe ao artista e não ao tempo decretar o que será uma foto e decidir sobre isso, sendo o fotógrafo, nesse caso, apenas um caçador de imagens. "Todos os momentos bretudo de um mistério? Coleção Poétique (Paris: Seuil, 1987). de1958 à 1982 (Paris: Paris Audiovisual/ 43 René Passeron, Pou: une philosophie de Ia création (Paris: Klincksieck, 1989), e Création et répétition, Coleção Recherches POlétiques (Paris: Clancier-Guénaud, 1982). 44 Cf. William Klein, Coleção Les Grands Maitres de Ia Photographie, nO6 (Paris: Photo, 1983), p 60. CI. Camera International, no 4, Paris, 1985, p 107. 45 em geral: "Isto foi encenado" estava limitado por um formato fotográfico ou por tabus; experimentava que acontece em mim, são minhas emoções", escreve ele." A realidade das fotos não é a do mundo no qual se vive, apesar do hábito cultural _ do "isto existiu" de Barthes à arché de Schaefferê? ''As pessoas acreditam na realidade das fotografias, ao objeto da fotografia problemas Em resumo, a fotografia nos persegue radicais: o que é o objeto a ser fotografado? O que é o real? Como se Pode fazer uma obra a partir dessas não evidências? --46 47 48 ainda com seus Cf. Wil/iam Klein, cit. Ibid., p. 59. Texto de introdução de Cahiers de Ia Photographie, nO1, Paris, 1981, p. 2.