Cervantes - Novelas Exemplares
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Cervantes - Novelas Exemplares
Miguel de Cervantes Saavedra Novelas exemplares 1971 2ª Edição Tradução de Darly Nicolana Scornnaienchi Com licença da Editôra Boa Leitura, São Paulo, detentora do Copyright para a língua portuguêsa. http://groups-beta.google.com/group/digitalsource PRÓLOGO Quisera, se fôsse possível, leitor amigo, deixar de escrever êste prólogo, porque não me saí tão bem no que fiz para o meu Dom Quixote a ponto de querer um segundo prólogo. A culpa disto cabe a um dos muitos amigos que, no decorrer de minha vida, pude granjear, mais por minha condição do que por mérito próprio, amigo que bem poderia, como é de costume, cinzelar-me e esculpir-me, na primeira fôlha dêste livro, pois o famoso Dom Juan de Jáuregui dera-lhe meu retrato: com isto, ficariam satisfeitos a minha ambição e o desejo dos que quisessem conhecer o rosto e o porte de quem se atreve a comparecer, com tantas intenções, em praça pública, aos olhos de tanta gente, e colocar-se-ia debaixo do retrato: “Este, que aqui vêdes, de rosto aquilino, de cabelo castanho, de testa lisa e alta, de olhos alegres e nariz adunco, ainda que bem proporcionado, de barbas de prata que, há mais de vinte anos foram de ouro, de bigodes grandes, bôca pequena, dentes nem de mais nem de menos, porque são apenas seis e, ainda assim, em má condição, muito mal dispostos, pois não têm correspondência uns com os outros; o corpo, entre dois extremos, nem grande, nem pequeno; de côr viva, mais branca do que morena, de espáduas um tanto largas e de pés não muito ligeiros; êste, digo, é o retrato do autor de A Galatéia e de Dom Quixote de la Mancha e daquele que fêz Viagem do Parnaso, à semelhança de César Caporal Perusino e outras obras que andaram perdidas por aí, talvez até sem o nome de seu dono, que se chama Miguel de Cervantes Saavedra. Foi soldado durante muitos anos, escravo por cinco anos e meio e foi aí que aprendeu a ter paciência na adversidade. Perdeu, na batalha naval de Lepanto, a mão esquerda com um tiro de arcabuz, defeito que, embora pareça feio, êle o considera formoso por tê-lo conseguido na mais memorável e difícil das ocasiões que os séculos passados jamais viram, nem hão de ver os séculos vindouros, lutando sob a bandeira vencedora de Carlos V, filho do raio da guerra, de quem se lembra com muita saudade. E se êste amigo, do qual me queixo, não se lembrasse de dizer, a meu respeito, outras coisas além das já mencionadas, eu acrescentaria a mim próprio duas dezenas de depoimentos e os daria em segrêdo a fim de que engrandecesse meu nome e tornasse meu talento digno de crédito, pois pensar que os tais elogios dizem somente a verdade é disparate, e isso porque nem os elogios nem os vitupérios têm fundamento, tampouco são verdadeiros. Enfim, já que o tempo se foi e eu passei em branca nuvem, serei obrigado a valer-me de minha lábia, que, embora gaguejante de natureza, não o será para falar certas verdades que, embora ditas por metáforas, possam ser entendidas claramente. E assim, digo-te outra vez, leitor amigo, que de maneira alguma poderás fazer confusão com as novelas que te ofereço, porque elas não têm nem pé, nem cabeça, nem miolo ou coisa parecida; quero dizer que os galanteios amorosos, que em algumas encontrarás, são honestos e tão orientados pela razão e pelos preceitos cristãos, que não podem levar a um mau pensamento tanto o descuidado como o cuidadoso que os ler. Dei-lhes o nome de Exemplares e, se observares bem, não verás nenhuma da qual não se possa tirar algum exemplo proveitoso e, se não fôsse prolongar demasiadamente êste assunto, talvez eu te mostrasse o saboroso e honesto fruto que se pode obter tanto de tôdas juntas como de cada uma em separado. Minha intenção foi colocar, em praça pública, uma mesa de trucos, onde cada um possa divertir-se sem prejuízo das barras (No jôgo de truque ou truco é um aro de ferro fixo na mesa. N.T) isto é, sem prejuízo da alma ou do corpo, porque os exercícios honestos e agradáveis oferecem mais benefícios do que males. Sim, porque não é só estar nos templos, ou só ocupar as tribunas, ou só escravizar-se aos negócios, por mais necessários que sejam; há também horas de descanso para que o irrequieto espírito possa repousar. Para isto, fazem-se as alamêdas, procuram-se as fontes, aterram-se as encostas e cultivam-se, de maneira curiosa, os jardins. Uma coisa, porém, eu me atreverei a dizer-te: se, de algum modo, fizesse eu com que a leitura destas novelas induzisse quem as lesse a algum mau desejo ou pensamento, preferiria cortar a mão que as escreveu a publicá-las. Minha idade não está para brincar com a outra vida. Para isto esforçou-se o meu engenho, leva-me por aqui a minha vocação; eu me considero - e assim o é - o primeiro a novelar em língua castelhana, pois as inúmeras novelas que nela andam impressas são tôdas traduzidas de língua estrangeira e estas aqui são minhas mesmo, não são imitadas, nem roubadas; concebeu-as o meu talento, pariu-as a minha pena e vão crescendo nos braços da imprensa. Depois delas, se a vida me permitir, eu te oferecerei os Trabalhos de Persiles, livro que se atreverá a competir com Heliodoro, se o tiro não lhe sair pela culatra; primeiro verás, e ràpidamente, dilatadas as fachadas de Dom Quixote e a galhardia de Sancho Pança; logo a seguir, as Semanas do Jardim. Estou prometendo muito para fôrças tão insignificantes como as minhas, mas quem haverá de frear os desejos? Quero que consideres apenas isto: se eu tive a ousadia de oferecer estas novelas ao grande Conde de Lemos, há algum mistério secreto que as edifica. Apenas isto; de resto, que Deus te guarde e que dê a mim paciência para considerar um bem o mal que há de falar de mim uma meia dúzia de melindrosos e almofadinhas. Adeus. O Amante Liberal Ó lamentáveis ruínas da infeliz Nicósia, ainda molhadas do sangue de vossos valorosos soldados e desafortunados defensores! Se tivésseis sentimento, na solidão em que nos encontramos, poderíamos lamentar juntos nossas desgraças e talvez o fato de têrmos encontrado companhia nelas aliviasse nosso tormento; a esperança de alívio pode ter-vos abandonado, meus arruinados torrões, pois, ainda que não fôsse para defender uma causa tão justa como aquela pela qual vos derrubaram, poderíeis levantar-vos outra vez; mas eu pobre de mim! -, que ventura poderei esperar na miserável solidão em que me encontro, ainda que volte ao estado em que me achava antes dêste em que me vejo agora? É grande minha desgraça, pois na liberdade não tive ventura e na escravidão não a tenho, nem a espero. Estas palavras, pronunciava-as um prisioneiro cristão, olhando, de uma encosta, as muralhas destruídas de Nicósia já perdida; falava com elas e comparava suas misérias com as dêle, como se elas fôssem capazes de entendêlo; fatos comuns nos aflitos que, levados pela imaginação, fazem ou dizem coisas despidas de razão ou de lógica. Nisto, saiu de uma das quatro barracas ou tendas que havia naquela planície um jovem turco de muito boa aparência e elegante, que, chegando-se ao cristão, lhe disse: - Aposto, Ricardo amigo, que são os teus pensamentos que te trazem a êstes lugares. - Sim - respondeu Ricardo, pois êste era o nome do prisioneiro -, mas de nada me adianta, porque em parte alguma encontro alívio nem descanso; pelo contrário, estas ruínas que daqui se avistam serviram apenas para aumentar minha dor. - As ruínas de Nicósia? - E de quais querias que eu falasse, se não há outras perante os nossos olhos? - Se te entregas a estas contemplações terás de chorar muito - disse-lhe o amigo -, pois os que vieram há dois anos para esta afamada e rica ilha de Chipre, tranqüila e sossegada, gozando seus moradores de tudo aquilo que a felicidade humana pode conceder aos homens; os que vieram há dois anos para cá, pensando agora nos desterrados ou contemplando os que ficaram nela, prisioneiros e miseráveis, como poderão deixar de chorar tal calamidade e desventura? Mas deixemos estas coisas de lado, porque não têm remédio, e vamos às tuas, pois quero ver se elas o têm; peço-te, pela boa vontade que te demonstrei, pelo fato de sermos ambos da mesma pátria e nos têrmos criado juntos na infância, que me digas a causa de tua excessiva tristeza, pois, embora o fato de ser escravo seja bastante para entristecer o coração mais alegre do mundo, imagino que tuas desgraças já venham de longe, porque os espíritos generosos como o teu não costumam entregar-se às desgraças comuns, dando mostras de extraordinária coragem, e o que mais me faz pensar nisto é saber que podes dar quanto pedirem pelo teu resgate, já que não és pobre; também não estás nas tôrres do mar Negro como prisioneiro incondicional que, tarde ou nunca, poderá alcançar a liberdade desejada, e, assim, não tendo a sorte levado a esperança de te pores livre, é natural que eu, vendo-te entregue às manifestações de tua desventura, imagine procederem os teus males de outra coisa além da liberdade que perdeste; suplico-te, pois, que me digas a causa de teu sofrimento e me coloco também à tua disposição; talvez, para que te pudesse servir, quis a sorte que eu vestisse êste hábito, que tanto me aborrece. Já sabes, Ricardo, que meu amo é o cádi (Cádi: magistrado judicial entre os muçulmanos. N.T) desta cidade; equivale ao bispo em tua terra; sabes também o quanto êle é poderoso e quanto sou influente junto dêle; além disso, não ignoras o desejo ardente que tenho de não morrer neste estado com o qual pareço concordar, e, quando não puder mais, terei de confessar e declarar em alta voz a fé que tenho em Jesus Cristo, de quem me separou minha pouca idade e entendimento, embora saiba que tal confissão há de custar-me a vida; mas para não perder a alma, pouco me importa perder a vida do corpo; por tudo isto, espero que deduzas e consideres que te pode ser de algum proveito minha amizade e que, para saber quais os remédios ou alívios para tua desdita, é tão necessário que me fales dela quão necessária é ao médico a informação do paciente, e asseguro-te que a mergulharei no mais profundo silêncio. Ricardo escutou calado todos os argumentos do amigo e viu-se obrigado a responder - meu amigo Mahamut, se descobrisses um remédio para meus males da mesma forma como descobriste minha desdita, julgaria muito bem empregada a perda de minha liberdade e não trocaria minha desgraça pela maior ventura que se pudesse imaginar; contudo, sei que ela é tão grande que o mundo todo poderia saber a causa de sua origem; mas não haverá nêle pessoa alguma que se atreva a encontrar um remédio ou ao menos um alívio; todavia, para que fiques satisfeito, tudo te contarei, com o menor número possível de palavras; antes, porém, de entrar no confuso labirinto de meus males, quero que me digas por que razão meu amo, o Paxá Hazan, mandou levantar nesta planície estas tendas e barracas antes de entrar em Nicósia, para onde vem como vice-rei ou paxá, que é como os turcos chamam os vice-reis. - Eu te explicarei logo - respondeu Mahamut -, e assim ficarás sabendo que entre os turcos é costume o vice-rei de alguma província não entrar na cidade onde seu antecessor mora, até que êle saia dela e deixe o nôvo paxá fazer livremente o balanço da administração; enquanto êle se estabelece, o antigo permanece no campo esperando a parte que lhe cabe pelo cargo que desempenhou, e isto se faz sem que êle possa intervir para valer-se de subornos ou amizades, se é que já não fêz tal coisa antes de sair; feito o balanço, êle é dado em um pergaminho fechado e selado àquele que deixa o cargo, que se apresenta com êle à porta do grão-senhor, o que equivaleria a estar na côrte perante o Grande Conselho; vendo o pergaminho, o vizir e os outros quatro paxás menores - é como se disséssemos: o presidente do Conselho Real e assistentes - ou premiam-no ou castigam-no, segundo a relação ali exposta; se é culpado, paga o crime com dinheiro e salva-se do castigo; se não é culpado e não o premiam, como acontece geralmente, com dádivas e presentes, consegue o cargo que mais deseja, porque os cargos e profissões não são dados por merecimento e sim por dinheiro; tudo se vende e tudo se compra; os provedores dos cargos roubam aos providos e os esfolam; dêste cargo comprado consegue-se dinheiro para comprar outro cargo que oferece mais vantagens; tudo é como digo, todo êste império é violento, sinal de que não há de durar muitos anos; acredito, e há de ser verdade, atiram sôbre seus ombros nossos pecados, quero dizer, os pecados daqueles que descaradamente e a torto e a direito ofendem a Deus, tal como eu faço; que êle tenha piedade de mim! Pelos motivos que te expus é, pois, que teu amo, o paxá Hazan, permaneceu nesta planície por quatro dias, e se o paxá de Nicósia ainda não saiu é por ter passado muito mal; porém, já está melhor e sairá hoje ou amanhã, sem dúvida alguma; há de alojar-se em uma das tendas que ficam atrás desta encosta e que ainda não viste; teu amo entrará logo na cidade. Aí tens a resposta do que me perguntaste. - Então escuta - falou Ricardo -, mas não sei se poderei cumprir o que te havia prometido antes, isto é, que em breves palavras te contaria minha desventura, isto porque ela é tão longa e tão grande que razão alguma pode compreendê-la; contudo, farei o que puder e o que o tempo permitir; assim pergunto, antes de mais nada, se conheces, em Trápana, uma jovem, apontada como a mais formosa mulher que existiu em tôda a Sicília; uma jovem que tôdas as pessoas leigas diziam, e os mais raros entendidos confirmavam, ser a mais perfeita formosura de todos os tempos, a quem os poetas cantavam e diziam possuir cabelos de ouro, dois olhos que eram dois sóis resplandescentes; suas faces, rosas purpúreas; seus dentes, pérolas; seus lábios, rubis; seu pescoço, alabastro; e que tanto as partes se harmonizavam com o todo e o todo se harmonizava com as partes, constituindo perfeita e maravilhosa harmonia, espargindo por tudo uma suavidade de côres tão natural e perfeita que mesmo uma pessoa despeitada jamais pôde encontrar nela defeito algum. Será possível, Mahamut, que ainda não me tenhas dito quem é e como se chama? Acho que não me ouves ou que quando estavas em Trápana não tinhas olhos para ver. - Para dizer a verdade, Ricardo - falou Mahamut -, se esta criatura, cuja beleza pintaste com tanta veemência, não fôr Leonisa, a filha de Rodolfo Florêncio, não sei quem seja, pois somente ela possuía a fama de que falaste. - É isso mesmo, ó Mahamut! É essa, amigo, a principal causa de tôda a minha felicidade e de tôda a minha desventura; é por ela e não pela liberdade perdida que meus olhos derramaram e derramarão lágrimas sem conta e por quem meus suspiros inflamam o ar, perto e longe, e por quem minhas palavras fatigam ao céu que as escuta e aos ouvidos que as ouvem; é por causa dela que me julgaste louco ou pelo menos de pouco valor e menor coragem; Leonisa, Leoa para mim e ovelha para outro, é quem me pôs neste estado miserável, pois hás de saber que, desde a mais tenra idade ou pelo menos desde que pude fazer uso da razão, não somente a amei como também a adorei e servi com tanta solicitude como se não houvesse na terra ou no céu outra a quem servir ou adorar. Seus parentes e seus pais sabiam de minhas intenções e jamais se aborreceram com isso, pois sabiam que se dirigiam para um fim honesto e virtuoso; e sei também que muitas vêzes disseram a Leonisa que me aceitasse como espôso. Mas ela, que só tinha olhos para Cornélio, filho de Ascânio Rótulo - tu o conheces bem -, rapaz elegante, apresentável, de mãos macias e cabelos ondulados, de voz suave e palavras doces, todo feito de âmbar e alfenim, bem vestido e sempre enfeitado de brocado, não quis voltar seus olhos para meu rosto, que não é tão agradável como o de Cornélio, não quis sequer agradecer os muitos e constantes serviços que lhe prestei, pagando minha boa vontade com desdém e aversão; chegou a tal ponto meu amor por ela que considerava uma felicidade o fato de ela aniquilar-me, à fôrça de desdém e ingratidão, contanto que não fizesse favores, ainda que honestos, a Cornélio; e, como se não bastasse, amigo, a angústia, a maior e a mais cruel para os ciúmes, causada pelo desdém e pela aversão, minha alma viu-se agitada por dois males mortais: os pais de Leonisa encobriam os favores que ela prestava a Cornélio, acreditando, e com razão, que o môço, atraído por sua incomparável e peregrina formosura, a escolhesse para espôsa, conquistando, desta maneira, um genro mais rico do que eu; estaria tudo bem se assim fôsse, mas não conseguiram, modéstia à parte, alguém de melhor condição que a minha, ou alguém de melhores intenções, nem sequer de maior valor que o meu. Falando eu de minhas pretensões, pude saber, nesse meio de tempo, que em um dia do mês de maio faz exatamente um ano, três dias e cinco horas - Leonisa, seus pais, Cornélio e os seus iam divertir-se, com tôda sua parentela de criados, no jardim de Ascânio, que fica perto da praia, a caminho das salinas. - Sei onde fica - disse Mahamut. - Estive lá por mais de quatro dias, bem mais de quatro dias. Prossegue, Ricardo. - Soube-o - continuou Ricardo -, e no mesmo instante apoderou-se de minha alma uma fúria, uma raiva e um mundo de ciúmes, com tanta veemência e rigor que fiquei fora de mim, como hás de ver pelo que em seguida fiz. Fui ao jardim, onde me disseram que estavam, e encontrei a maior parte das pessoas divertindo-se debaixo de uma nogueira, embora um pouco distantes, vi Cornélio e Leonisa sentados. Qual dêles desapareceu primeiro da minha vista não sei; sei apenas dizer que a imagem de Leonisa me ofuscou de tal forma que perdi a visão e permaneci como estátua, sem voz ou movimento algum; não demorou, porém, que a irritação despertasse a cólera, a cólera, o sangue nas veias, o sangue, a ira, a ira, as mãos e a língua, embora minhas mãos se detivessem por respeito ao formoso rosto que tinha diante de mim. A língua, porém, interrompeu o silêncio com estas palavras: “Ficarás contente, ó inimiga mortal de meu sossêgo, mantendo, diante de teus olhos, a causa que fará meus olhos viverem em perpétuo e doloroso pranto; aproxima-te, aproxima-te, mulher cruel, aproxima-te um pouco mais e entrelaça tua hera neste tronco inútil que te busca; desembaraça ou penteia os cabelos de teu nôvo Ganimedes que te solicita mansamente, entrega-te aos verdes anos dêste jovem a quem amas, porque eu, perdendo a esperança de possuir-te, perderei também esta vida que me enfastia; pensas, porventura, soberba e tresloucada, que somente contigo não se hão de executar as leis e castigos que se usam no mundo em casos semelhantes? Pensas, quero dizer, que êste jovem, orgulhoso de sua riqueza, convencido de sua elegância, inexperiente por sua pouca idade, confiante em sua linhagem, há de querer ou poder ou saber manter-se fiel em seus amôres ou estimar o inestimável, ou conhecer o que conhecem os maduros e os experimentados anos? Não o penses, se é que pensas, porque a melhor coisa que o mundo faz é repetir os fatos sempre da mesma forma para que ninguém se engane, a não ser que seja por sua própria ignorância; nos poucos anos reside a inconstância; nos ricos, a soberba; a vaidade, nos arrogantes, e nos famosos o desdém, e naqueles que possuem tudo isto ao mesmo tempo reside a estupidez; que é a mãe de todo mau sucesso. E tu, jovem, que pensas roubar o prêmio que minhas intenções merecem mais do que teus desejos fúteis, por que não te levantas dêste tapête de flôres onde estás e não vens arrancar a alma que tanto te detesta? E me ofendes não pelo que fazes, mas porque não sabes avaliar o bem que a ventura te concede; percebe-se claramente que não a estimas, pois não queres mover-te ou defendê-la para correres o risco de descompor o exagerado alinho de tua elegante roupa; se Aquiles estivesse na tranqüilidade em que te encontras, seria difícil a Ulisses levar a cabo seu intento; olha-te e alegra-te entre as criadas de tua mãe e cuida de teus cabelos, de tuas mãos mais hábeis para enrolar fios de sêda que para empunhar a espada”. Apesar de tôdas estas palavras, Cornélio não se levantou do lugar onde o encontrei sentado; primeiro, permaneceu quieto, olhando-me como que encantado, sem mover-se; o elevado tom de voz com que eu lhes disse as palavras que ouviste fêz chegar, aos poucos, o pessoal que andava pelo jardim; puseram-se êles a escutar outros impropérios que dirigi a Cornélio; êste, encorajando-se com a presença do pessoal que para ali viera, pois todos ou quase todos os outros eram seus parentes, criados ou conhecidos, fêz menção de querer levantar-se, mas, antes que se pusesse de pé, tomei de minha espada e agredi não só a êle, mas também a todos que ali estavam; Leonisa, mal viu minha espada reluzir, desmaiou, fato que me deu mais coragem e despeito ainda maior; não sei dizer-te se as inúmeras pessoas que me atacavam procuravam antes de mais nada defender-se, como quem se defende de um louco furioso, ou se foi minha boa estrêla e agilidade, ou o céu que me queria reservar para males ainda maiores, pois feri sete ou oito dos que estavam mais ao meu alcance. A agilidade de Cornélio lhe foi tão útil que, parecendo ter asas nos pés, fugiu, escapou de minhas mãos; estando eu metido neste perigo, cercado por meus inimigos, que, ofendidos, procuravam vingar-se, socorreu-me a sorte, mas com um remédio tal que fôra melhor ter deixado ali a vida que vir a perdê-la mil e mil vêzes a cada hora que passa; foi então que, inesperadamente, apareceu no jardim uma enorme quantidade de turcos vindos de duas galeotas de corsários de Viserta que haviam desembarcado por uma enseada que havia ali por perto, sem serem vistos pelas sentinelas das tôrres da marinha, nem descobertos pelos agentes e vigias da costa; quando meus inimigos os viram, deixaram-me sozinho e com grande rapidez puseram-se a salvo de todos os que estavam no jardim; os turcos puderam aprisionar apenas três pessoas e Leonisa, que estava ainda desmaiada; os turcos surpreenderam-me com quatro feridas horríveis como revide às quatro feridas que eu fizera em outros tantos turcos e que deixara estendidos no solo, sem vida. Realizaram êste assalto com sua costumeira rapidez; não muito contentes com o resultado, embarcaram e lançaram-se ao mar e, à fôrça de vela e remo, em curto espaço de tempo chegaram a Fabiana; revistaram a tripulação para ver quem lhes faltava e, vendo que os mortos eram quatro soldados daqueles chamados por êles de “levantes” e dos melhores e mais estimados que possuíam, quiseram vingar-se em mim; assim, o capitão da galeota mandou descer a corda para me enforcar. Leonisa, que já voltara a si, observava tudo isto; vendo-se em poder dos corsários, derramava abundantes e formosas lágrimas e, esfregando suas delicadas mãos, sem dizer palavra, ouvia atentamente para ver se entendia o que os turcos diziam; um dos cristãos do remo, entretanto, disse-lhe em italiano que o capitão mandava enforcar aquêle cristão, e apontou-me, porque tinha matado, para defendê-la, quatro dos melhores soldados das galeotas; ouvindo isso, Leonisa apiedou-se de mim pela primeira vez; pediu ao cativo que falasse aos turcos para não me enforcar, pois perderiam um bom resgate; pediu ainda que voltassem a Trápana, porque logo haviam de me resgatar; esta foi a primeira e será a última caridade que me fêz Leonisa, tudo isso para aumentar ainda mais os meus males. Os turcos, ouvindo o que o prisioneiro lhes dizia, acreditaram nêle, e então a cólera cedeu lugar ao interêsse. Na manhã do outro dia, içando a bandeira da paz, voltaram a Trápana; o que sofri naquela noite não é difícil de imaginar, não tanto pela dor que as feridas me causavam, quanto por imaginar o perigo que corria minha cruel inimiga nas mãos daqueles bárbaros. Chegadas à cidade, uma das galeotas entrou no pôrto e a outra permaneceu fora; o pôrto inteiro e a margem tôda encheram-se logo de cristãos; o belo Cornélio, de longe, olhava o que se passava na galeota; um de meus mordomos apresentou-se logo para tratar de meu resgate, mas disse-lhe eu que não tratasse de maneira alguma de minha liberdade, e sim da de Leonisa e que desse por ela tudo quanto eu tinha; ordenei-lhe ainda que voltasse e dissesse aos pais de Leonisa que o deixassem tratar da liberdade de sua filha e que não se preocupassem com ela. Feito isso, o capitão, que era um renegado grego chamado Izuf, pediu por Leonisa 6.000 escudos mais 4000, acrescentando que só venderia os dois juntos; pediu êle esta grande soma, segundo eu soube depois, porque estava enamorado de Leonisa e não queria resgatá-la ou dá-la ao capitão da outra galeota, com quem teria de repartir pela metade as prêsas que se fizessem; pedindo por mim 4.000 escudos e 6.000 em dinheiro, faria 5.000 e ficaria com Leonisa por outros 5.000, sendo êste o motivo pelo qual nos avaliou aos dois em 10.000 escudos. Os pais de Leonisa não ofereceram nada por ela, atendendo ao pedido que, por minha ordem, lhes fizera meu mordomo; Cornélio também não abriu a bôca em seu favor; assim, depois de muito conversar, meu mordomo propôs dar 5.000 escudos por Leonisa e 3.000 por mim. Izuf aceitou a proposta, persuadido pelas palavras de seu companheiro e pelo que diziam os seus soldados, porém, como o mordomo não tivesse tão grande quantidade de dinheiro disponível, pediu três dias de prazo para juntálo com a intenção de vender minhas propriedades para realizar-se o resgate. Izuf regozijou-se com isso, pensando encontrar, nesse meio de tempo, oportunidade para que o acôrdo não fôsse adiante e, voltando-se para a ilha de Fabiana, disse que no prazo de três dias voltaria para buscar o dinheiro. A sorte ingrata, porém, não contente com minhas desgraças, fêz com que uma sentinela dos turcos, colocada como vigia no ponto mais alto da ilha, descobrisse, em meio ao mar, seis veleiros latinos, e imaginou, o que aliás era verdade, que fôsse ou a esquadra de Malta ou alguma esquadra da Sicília; desceu ràpidamente para dar a notícia e, num abrir e fechar de olhos, todos os turcos que estavam em terra, um preparando o que comer, outro lavando a roupa, embarcaram e, levantando ferros, com uma rapidez jamais vista, soltaram o remo às águas, as velas ao vento e, viradas as proas, em direção da Berbéria, em menos de duas horas, perderam-se de vista, e assim, protegidos pela ilha e pela noite que se aproximava, recobraram-se do susto que haviam passado. Deixo à tua imaginação, ó Mahamut amigo, a consideração de meu estado de espírito naquela viagem tão contrária àquilo que esperava; o dia seguinte me foi ainda pior, pois, tendo as duas galeotas chegado à ilha de Pantanaléa, ali pelo meiodia, saltaram os turcos à terra para fazer lenha e carne, como êles dizem; vi quando os dois capitães desceram à terra e se puseram a repartir tudo o que haviam apreendido; a cada uma de suas divisões eu parecia morrer aos poucos; quando foram repartir a mim e a Leonisa, Izuf deu a Fetala, o capitão da outra galeota, seis cristãos, quatro para o remo e dois rapazes formosíssimos, da Córsega, e eu fui incluído entre êles, para poder ficar com Leonisa; Fetala contentou-se e eu, embora presenciasse a tudo, nunca pude entender o que diziam, embora soubesse o que faziam, nem entenderia até hoje aquela partilha se Fetala não se chegasse a mim e me dissesse em italiano: “Cristão, já és meu prisioneiro, deram-te a mim por 2.000 escudos de ouro; se queres a liberdade tens de dar 4.000 escudos; se não, morres aqui”. Perguntei-lhe se a môça também lhe pertencia; disse-me que não, que ela ficaria com Izuf, tendo êste a intenção de torná-la moura e casar-se com ela. E era verdade, porque um dos prisioneiros do remo, que entendia bem a língua dos turcos, ouviu o trato feito entre Izuf e Fetala. Pedi a meu senhor que desse um jeito de ficar com a môça e eu lhe daria, pelo resgate dela, 10.000 escudos de ouro. Respondeu-me êle que não era possível, mas que faria Izuf saber da grande soma que eu lhe oferecia por ela, e Izuf, movido pelo interêsse, talvez mudasse de opinião e aceitasse. Cumpriu a palavra e ordenou que todos os tripulantes de sua galeota embarcassem logo, pois queria ir a Trípoli ou a Berbéria, de onde era. Izuf decidiu ir para Veserta, apesar de tudo; embarcaram ambos com a mesma pressa que costumavam ter quando descobriam as galeras dos que temiam ou uma embarcação que quisessem roubar; apressaram-se porque julgaram que o tempo estava mudando e prenunciando uma borrasca. Leonisa ficara em terra, mas em um lugar em que eu não pude vê-la, a não ser na hora de embarcarmos, pois chegamos juntos à costa; seu nôvo amo e também seu mais recente namorado levava-a pela mão e, ao entrar pela escada que ligava a terra à galeota, voltou os olhos para me ver; os meus, que não se desviavam dela, olharam-na com tanto sentimento e dor que, sem saber como, se antepôs a êles uma nuvem que me tirou a visão e eu caí por terra, sem sentidos; disseram-me depois que o mesmo acontecera a Leonisa, pois viram-na cair da escada ao mar, e que Izuf mergulhou logo atrás dela e a trouxe nos braços; isto contaram-me dentro da galeota de meu senhor, onde me haviam pôsto sem que eu o sentisse, mas, quando voltei de meu desmaio, vi que estava sozinho na galeota e que a outra embarcação, tomando caminho diverso, afastava-se de nós, levando com ela metade de minha alma ou, para melhor dizer, tôda ela; meu coração apertou de nôvo e de nôvo eu maldisse minha desventura e chamei a morte em altas vozes; minhas palavras eram tão sentidas que meu amo, cansado de ouvir-me, ameaçou-me com um grande cajado, dizendo-me que, se não me calasse, me bateria; reprimi as lágrimas, engoli os suspiros, acreditando que a fôrça despendida nisso arrebentaria de maneira a abrir uma porta para a alma que tanto desejava abandonar o corpo miserável; a sorte, porém, não contente ainda por haver-me pôsto em situação tão difícil, decidiu acabar com tudo, levando as esperanças de todo o meu alívio, e foi então que, num instante, se desencadeou a tempestade tão temida; o vento que, depois do meio-dia, soprava e atirava-nos à proa, pôs-se a bater com tanta fôrça que foi necessário voltar para êle a pôpa e deixar a embarcação correr por onde o vento queria levá-la. O capitão queria contornar a ilha e abrigar-se nela pelos lados do norte, mas seu plano não deu certo, pois o vento soprou com tanta fúria que tudo o que havíamos feito em dois dias foi pôsto a perder; em pouco mais de catorze horas vimo-nos a 6 ou 7 milhas da própria ilha de onde havíamos partido e sem dúvida nenhuma íamos bater de encontro aos penhascos; os de nossa embarcação faziam o mesmo, ao que parece, com mais vantagem e esfôrço que os da outra, pois cansados pelo trabalho, vencidos pela fúria do vento e da tormenta, soltaram os remos e deixaram-se ir, perante nossos olhos, bater nos penhascos, onde a galeota deu tão grande golpe que se fêz tôda em pedaços; a noite começava a cair, os gritos dos que se perdiam e o mêdo dos que, em nossa embarcação, temiam perder-se foram tais que não se entendiam nem se cumpriam as ordens de nosso capitão; cuidava-se apenas de não soltar os remos das mãos, achando-se que a única solução era voltar a proa ao vento e lançar as duas âncoras ao mar para retardar a morte certa; ainda que o mêdo de morrer fôsse geral, em mim era o contrário, porque, com a esperança enganosa de ver no outro mundo aquela que, há tão pouco tempo, havia se afastado dêste, cada momento em que a escuna demorava para naufragar ou para ir de encontro aos penhascos era, para mim, um século da mais penosa morte; as ondas revoltadas que passavam por cima do barco e de minha cabeça faziam-me ficar atento para ver se, com elas vinha o corpo da infeliz Leonisa; não quero parar agora, Mahamut, para te contar minuciosamente os sobressaltos, os temores, as ânsias, os pensamentos que tive naquela noite, longa e amarga, para não contrariar o propósito que fiz de narrar-te ràpidamente minha desventura; meus sofrimentos foram tantos que, se a morte viesse naquele momento, teria de lutar muito pouco para tirar-me a vida; veio o outro dia prenunciando uma tempestade mais forte que a do dia anterior e achamos que a embarcação tinha virado um bom pedaço, tendo-se afastado bastante dos penhascos, aproximando-se de uma ponta da ilha; turcos e cristãos, vendo-se na possibilidade de contorná-la, criaram nova esperança e novas fôrças; ao fim de seis horas dobramos o cabo e encontramos o mar bem mais sereno e sossegado, de modo a usarmos mais fàcilmente os remos; abrigados pela ilha, os turcos puderam saltar em terra para ver se havia ficado alguma relíquia da galeota que na noite anterior batera nos penhascos; mas não quis o céu conceder-me ainda a graça tão esperada de ter em meus braços o corpo de Leonisa, porque, embora morto e despedaçado, gostaria de vê-lo, para contrariar minha estrêla que me impediu de juntar-me a êle como o mereciam minhas boas intenções; pedi, então, a um renegado que queria desembarcar, para procurá-lo e ver se o mar o teria atirado à praia, mas, como já disse, tudo isto negou-me o céu, pois, no mesmo instante, tornou o vento a enraivecer-se, de modo que a proteção da ilha de nada nos adiantou; Fetala, vendo isto, não quis lutar contra a sorte que tanto o perseguia e, assim, mandou prender o traquete (Traquete: vela grande do mastro da proa. N.T) ao mastro e levantar um pouco as velas; virou, logo a seguir, a proa ao mar e a pôpa ao vento, e, encarregando-se êle próprio do timão, deixou-se levar pelo mar imenso, certo de que nenhum empecilho atrapalharia seu caminho; na coxia (Cochia: Espaço da pôpa à proa no meio da coberta do navio. N. T.) os remos mantinham-se na mesma direção; permaneciam todos sentados nos bancos e nas ameias; em tôda a galeota, via-se apenas o comitre (Comitre: oficial que, nas galés, tinha a seu cargo dirigir a marcação e castigar os remadores. N.T.) que, para maior segurança, fêz-se prender fortemente à estandeiro a embarcação ia com tanta velocidade que, no prazo de três dias e três noites, passando por Trápana, Melazo e Palermo, entrou pelo farol de Messina, para espanto de todos que íamos dentro dela e daqueles que, da terra, nos olhavam. Enfim, para não ser tão cansativo em descrever a tormenta como foi em tôda a sua porfia, digo que, cansados, famintos e fatigados por têrmos de rodear quase tôda a Sicília, chegamos a Trípoli de Berbéria, onde meu senhor, antes de fazer o balanço dos despojos, dar a seus camaradas o que lhes tocava e mais a quinta parte ao rei, segundo o costume, sentiu tão grande dor nas costas que, dentro de três dias, foi parar no inferno; o rei de Trípoli e o alcaide, mantido pelo chefe dos turcos e que, como sabes, recebe os bens dos mortos que não possuem herdeiros, tomaram conta de todos os seus bens, apoderaram-se ambos das propriedades de Fetala, meu senhor, e eu passei a pertencer ao alcaide, que era então vice-rei de Trípoli; dali a quinze dias foi êle nomeado vice-rei de Chipre; com êle vim até aqui sem intenção alguma de me fazer resgatar; embora tenha-me êle dito muitas vêzes para que eu o faça, pois sou homem importante, segundo lhe disseram os soldados de Fetala, jamais o atendi; disse-lhe mesmo terem-no enganado os que falaram da grandeza de minhas posses; se queres que eu te diga todo o meu pensamento, Mahamut, hás de saber que não quero voltar aonde eu possa ter consôlo e quero que, reunindo-se à vida do cativeiro, os pensamentos e lembranças da morte de Leonisa jamais me abandonem, não me façam alimentar gôsto algum de viver, e, se é verdade que as dores contínuas se hão de acabar ou acabar com quem as padece, as minhas também não poderão deixar de ser assim, porque penso não lhes dar trégua, de modo que, dentro de poucos dias, dêem cabo da vida miserável que sustento tão contra a minha vontade. É esta, ó Mahamut amigo, minha triste vida; é esta a causa de meus suspiros e de minhas lágrimas; vê e considera, se és capaz de tirá-las das profundezas de minhas entranhas e gerá-las na aridez de meu peito aflito; Leonisa morreu e com ela minha esperança, pois a que eu tinha, enquanto ela viveu, manteve-se por um delicado fio de cabelo; contudo, contudo. E neste contudo pegou-se-lhe a língua de modo a não poder falar nem mais uma palavra nem conter as lágrimas, que, como se costuma dizer, corriamlhe pelo rosto com tanta abundância que chegaram a umedecer o solo. Mahamut chorou também, mas, passada aquela exaltação causada pela lembrança amarga, quis Mahamut consolar a Ricardo com as melhores palavras que encontrou; êste, porém, interrompeu-o dizendo: - O que deves fazer, amigo, é aconselhar-me o que fazer a fim de cair na antipatia de meu amo e de todos aquêles que estiverem ao meu redor para que, sendo detestado por êles, possa ser maltratado e perseguido, de modo que, acrescentando a dor à dor e a pena à pena, possa eu alcançar brevemente meu desejo de acabar com a vida. - Sei agora que é verdade quando se diz que o que se sente sabe-se também dizer, embora algumas vêzes o sentimento emudeça a língua, mas, de qualquer maneira, Ricardo, quer as tuas palavras exprimam exatamente a tua dor, quer elas a ultrapassem, sempre hás de encontrar em mim um verdadeiro amigo, ou, para ajudar-te ou para aconselhar-te, pois, ainda que minha pouca idade e o desatino que cometi ao vestir êste hábito estejam dando mostras de que não sou digno de tua confiança, farei com que tua suspeita não se comprove nem seja verdadeira tua opinião e, ainda que não queiras ser aconselhado ou protegido, nem por isso deixarei de fazer o que te convier, como costumam fazer com o enfêrmo que pede o que não lhe dão e dão-lhe o que lhe convém; em tôda a cidade não há quem possa ou valha mais do que o cádi, meu amo, nem mesmo o teu, que vem como vice-rei; e, assim sendo, posso dizer que sou o mais poderoso da cidade, pois consigo com meu patrão tudo o que desejo; digo isto porque poderia combinar com êle para que passasses a lhe pertencer e, em minha companhia, o tempo nos dirá o que havemos de fazer para te consolar, se queres e podes ter consôlo, e a mim, para mudar de vida ou pelo menos encontrar um lugar onde eu possa sentir-me melhor. - Agradeço-te, Mahamut, a amizade que me ofereces - falou Ricardo -, embora esteja certo que por mais que te esforces não hás de realizar nada em meu benefício; deixemos, porém, tudo isto e vamos para a tenda, porque, pelo que vejo, sai da cidade muita gente e, sem dúvida, é o antigo vice-rei que se dirige à planície para ceder lugar a meu amo, a fim de que êle entre na cidade e fixe residência. - É isso mesmo - falou Mahamut. - Vem, então, Ricardo, e verás como se recebem mutuamente, pois sei que gostarás de vê-los. - Já está mesmo na hora - falou Ricardo. - Talvez eu precise de ti, se por acaso o guardião dos prisioneiros, que é um renegado corso e de má índole, tiver dado pela minha falta. Pararam de conversar e chegaram às tendas na hora em que o antigo paxá se aproximava e o nôvo saía para recebê-lo à porta da tenda. Ali, pois êste era o nome do paxá que deixava o govêrno, vinha acompanhado pelos janízaros (janízaro: Oficial de diligências dos tribunais mouros. N.T.), mais ou menos uns quinhentos, que geralmente permanecem de guarda em Nicósia, depois que os turcos a conquistaram; vinham êles em duas alas ou fileiras, uns com escopetas, outros com alfanjes; chegaram à porta do nôvo Paxá Hazan; todos o rodearam e Ali, inclinando-se, fêz profunda reverência a Hazan; êste inclinou-se, mas discretamente, e o saudou. Ali entrou rápidamente no pavilhão de Hazan; os turcos colocaram-no sôbre um poderoso cavalo, ricamente ajaezado, e, levandoo à tenda redonda, por quase tôda a planície, ouviu-se que êles gritavam em sua língua: “Viva, viva o Sultão Soliman e Hazan, seu representante!” Repetiram estas palavras muitas vêzes, aumentando as vozes e o alarido, para depois voltarem à tenda onde havia ficado o Paxá Ali, que se fechou a sós com o cádi e com Hazan pelo espaço de uma hora. Mahamut disse a Ricardo que êles se haviam fechado para tratar do que convinha fazer na cidade com respeito às obras que Ali deixara começadas. Logo depois, saiu o cádi à porta da tenda e falou bem alto, em turco, árabe e grego, que todos os que quisessem entrar e pedir justiça ou fazer qualquer outra coisa contra o Paxá Ali podiam entrar livremente, pois o Paxá Hazan, a quem o grão-senhor enviava como vice-rei de Chipre, haveria de lhes dar razão e justiça. Os janízaros deixaram livre a porta da tenda e permitiram entrar todos os que quisessem. Mahamut fêz entrar com êle Ricardo; que, por ser escravo de Hazan, pôde entrar livremente. Entraram também gregos, cristãos e alguns turcos, mas pediam todos coisas tão insignificantes que o cádi os despachou sem precisar de anotações à parte, de altos interrogatórios ou respostas, pois tôdas as causas, com exceção das matrimoniais, despacham-se logo, dependendo mais do bom senso da criatura que de alguma lei, e entre aquêles bárbaros o cádi é o juiz competente para tôdas as causas, abreviando-as e fazendo executá-las em um abrir e fechar de olhos, sem que haja apelação da sentença para outro tribunal. Neste momento entrou um chauz (chauz: Oficial inferior de justiça. N.T.), que é mais ou menos como um aguazil, dizendo que à porta da tenda havia uns Soldados turcos que faziam parte da guarda do sultão. Achava-se também ali um judeu que trazia uma jovem cristã lindíssima e queria vendê-la; o cádi ordenou que o fizesse entrar; o chauz saiu para voltar logo em seguida com um venerável judeu, que trazia pela mão uma mulher vestida, com roupas da Berbéria; estava ela mais enfeitada e bem vestida que a mais rica moura de Fêz ou Marrocos, que, no enfeitar-se, supera tôdas as africanas, até mesmo as de Argel com tôdas as suas pérolas; seu rosto estava coberto por um tafetá carmesim; nos tornozelos, que estavam à mostra, viam-se duas pulseiras ou carcajes, como as chamam os árabes, e que pareciam ser de ouro puro; nos braços, que transpareciam por sob fino cendal, trazia outras pulseiras de ouro e pérolas; para resumir, ela estava rica e elegantemente enfeitada. Admirados, o cádi e os outros paxás, antes de falarem ou perguntarem qualquer coisa, ordenaram ao judeu que a fizesse tirar o véu; o judeu assim o fêz e viu-se um rosto que deslumbrou os olhos e alegrou os corações de todos os que ali estavam; e foi como o sol, que, por entre fechadas nuvens, depois de muita escuridão, aparece aos olhos daqueles que o desejam; tal era a beleza, a elegância e a graça da prisioneira cristã; mas em quem a maravilhosa luz que se havia descoberto produziu maior impressão foi no infeliz Ricardo, porque êle, melhor do que ninguém, a conhecia, pois era sua amada Leonisa, que tantas vêzes e com tantas lágrimas tinha sido chorada e tida por morta. Ali, à vista inesperada da singular beleza da môça, viu-se ferido e submisso; o mesmo aconteceu com Hazan, pois não se pôde livrar da mesma chaga amorosa que se abrira no coração do cádi, o mais impressionado de todos e que não podia tirar os olhos dos formosos olhos de Leonisa. E, para aumentar as poderosas fôrças do amor, formou-se, naquele mesmo instante, no coração dos três, o desejo de possuí-la; e assim, sem querer saber como, onde e quando teria ela chegado ao poder do judeu, perguntaram-lhe que preço pedia por ela; o cobiçoso judeu respondeu que seu preço era de 4.000 dobras, que vêm a ser 2.000 escudos; mal declarou êle o preço, o Paxá Ali apressou-se em aceitar e a mandar buscar o dinheiro em sua tenda; entretanto, Hazan, que não queria perdê-la, ainda que para isso devesse arriscar a própria vida, falou: - Eu também dou por ela as 4.000 dobras que o judeu pede, e não as daria nem ousaria contrariar a vontade de Ali - e êle há de concordar comigo - se esta gentil escrava não pertencesse tão-somente ao nosso grão-senhor, e, assim, digo que a compro em seu nome; vejamos agora quem se atreverá a tirá-la de mim. - Eu - replicou Ali -, que por esta mesma razão quero comprá-la, e cabeme, a mim, fazer êste presente ao grão-senhor, pela facilidade que tenho de levá-la imediatamente a Constantinopla, granjeando com isso as boas graças do grão-senhor, pois, como bem vês, Hazan, sou um homem que acaba de ficar sem cargo algum e preciso então, mais do que tu, arranjar um meio de consegui-lo, pois estás seguro por três anos, já que hoje começas a governar êste riquíssimo reino de Chipre; por estas razões e por ter sido eu o primeiro a oferecer o preço pedido pela prisioneira, é justo, ó Hazan, que a deixes para mim. - O grão-senhor há de me agradecer muito mais pelo fato de procurá-la e enviá-la - falou Hazan -, porquanto eu o faço sem ser movido por nenhum interêsse; e, quanto à facilidade para levá-la, não há problema, porque equiparei uma galeota somente com meus homens e meus escravos, que a levarão. Irritou-se Ali com estas palavras e, levantando-se, empunhou o alfange, dizendo: - Sendo minha única intenção, ó Hazan, levar esta mulher ao grão-senhor e tendo sido eu o primeiro comprador, é justo que a deixes para mim, e se pensares o contrário êste alfange que empunho defenderá meus direitos e castigará teu atrevimento. O cádi, que estivera atento e que, não menos que os dois, receava ficar sem a môça, imaginou como apagar o fogo que se acendera e ao mesmo tempo ficar com a escrava sem despertar suspeita alguma de sua má intenção, e assim, levantando-se, colocou-se entre os dois e disse: - Sossega-te, Hazan, e tu Ali, fica quieto, que eu estou aqui e saberei conciliar ambas as vontades de modo que consigais vossos intentos e que o grão-senhor seja servido como desejais. Obedeceram os dois às palavras do cádi e teriam obedecido mesmo que êle tivesse ordenado coisa mais difícil, tal é o respeito que os componentes daquela seita perversa devotam a seus superiores; o cádi prosseguiu dizendo: - Tu dizes, Ali, que queres dar esta cristã ao grão-senhor, e Hazan também diz o mesmo; tu alegas que, por seres o primeiro a oferecer o preço, ela há de ser tua; Hazan te contradiz e, embora êle não saiba apresentar suas razões, o motivo dêle é o mesmo que o teu, isto é, a intenção, que sem dúvida deve ter nascido ao mesmo tempo que a tua, de querer comprar a escrava para o mesmo fim; só que tens a vantagem de tê-lo declarado primeiro, mas isto não é motivo para anular a boa intenção dêle; parece-me que a melhor maneira de resolver a situação é a seguinte: a escrava pertencerá a ambos e o destino dela há de ser decidido pela vontade do grão-senhor, para quem ela foi comprada; tu, Hazan, pagarás 2.000 dobras, e tu, Ali, outras duas mil e a cativa ficará em meu poder, para que, em nome de ambos, eu a envie a Constantinopla, a fim de que eu também receba alguma recompensa pelo fato de estar presente; assim, ofereçome para levá-la, às minhas expensas, com tôdas as honras à altura da pessoa à qual ela será enviada, escrevendo também ao grão-senhor tudo o que aqui se passou e a boa vontade que ambos demonstraram em servi-lo. Não souberam, não puderam, nem quiseram contradizê-lo os dois turcos enamorados, e, embora vissem que daquela maneira não realizariam seus desejos, concordaram com o parecer do cádi, acalentando cada um a esperança, ainda que duvidosa, de poder levar ao fim seus ardentes desejos. Hazan, que ficaria como vice-rei de Chipre, pensava em oferecer tantos presentes ao cádi que êle, vencido e obrigado, haveria de lhe dar a prisioneira. Ali imaginou fazer alguma coisa que lhe assegurasse conseguir o que desejava, e cada um, acreditando realizar sua intenção, aceitou fàcilmente o que o cádi propôs, e, com o consentimento e a vontade de ambos, entregaram-na logo e apressaramse em pagar ao judeu 2.000 dobras cada um; o judeu acrescentou ainda que não haveria de dá-la com as roupas que ela vestia, pois valiam elas outras 2.000 dobras, e assim era na verdade, porque nos cabelos, meio soltos, caindo pelas espáduas, e meio presos, unidos com laços, viam-se algumas fileiras de pérolas, que, extremamente graciosas, a êles se misturavam; os anéis dos pés e das mãos possuíam também enormes pérolas; vestia-lhe o corpo uma almalafa (Almalafa: Traje mouro que cobre o corpo, desde o ombro até os pés. N.T) de cetim verde, tôda bordada e cheia de fios de ouro; todos acharam que o judeu pedira pouco pelo vestuário, e o cádi, para não se mostrar menos liberal que os dois paxás, disse que êle queria pagar para que a jovem se apresentasse ao grão-senhor daquele mesmo jeito; os dois contendores acharam que assim estava bom, cada um acreditando que tudo haveria de cair em seu poder. Não esqueçamos, porém, de dizer o que sentiu Ricardo ao ver que faziam leilão de sua alma, os pensamentos que teve, os temores que o sobressaltaram, pois encontrara sua bem-amada para vê-la ainda mais perdida: não sabia êle se estava dormindo ou acordado, não acreditava que estivesse tão inesperadamente diante dêles aquela a quem julgara morta; nisto chegou Mahamut, seu amigo. - Não a conheces? - perguntou. - Não a conheço - respondeu Mahamut. - Pois sabe que é Leonisa. - Que dizes, Ricardo? - O que acabaste de ouvir. - Cala-te e não a identifiques, que a sorte está de teu lado, pois Leonisa está em poder de meu amo. - Achas - perguntou Ricardo - que eu deva ficar onde possa ser visto? - Não, para que não sobressaltes nem a ela nem a ti e não venhas a demonstrar que a conheces e que a viste, o que poderia prejudicar meus planos. - Seguirei teu conselho - falou Ricardo. E assim o fêz, pois evitou que seus olhos se encontrassem com os de Leonisa, que, enquanto isto, mantinha os seus cravados no solo, derramando algumas lágrimas. O cádi aproximou-se dela e, tomando-a pela mão, entregou-a a Mahamut, ordenando-lhe que a levasse à cidade e a entregasse à Halima, dizendo que a tratasse como escrava do grãosenhor; Mahamut obedeceu, deixando sozinho a Ricardo, que foi seguindo com os olhos a sua estrêla até que ela fôsse encoberta pela nuvem dos muros de Nicósia. Depois, chegando-se ao judeu, perguntou-lhe onde a tinha comprado ou como teria vindo parar em suas mãos aquela cativa cristã. Respondeu-lhe o judeu que a comprara de alguns turcos que haviam naufragado na ilha de Pantanaléa; parecia querer contar alguma coisa mais, porém não pôde, pois vieram chamá-lo, por ordem dos paxás, que queriam perguntar-lhe o que Ricardo desejava saber, e por isto foi obrigado a despedir-se dêle. A caminho da cidade, Mahamut teve oportunidade de perguntar em italiano a Leonisa de que lugar ela era. Esta respondeu ser de Trápana; Mahamut prosseguiu perguntando se ela conhecia, naquela cidade, um cavalheiro rico e nobre, chamado Ricardo. Leonisa, ouvindo isto, deu um profundo suspiro e falou: - Conheço, infelizmente. - Por que infelizmente? - Porque êle também me conheceu, para sua desventura. - E por acaso conhecestes também na mesma cidade a outro cavalheiro elegante, filho de pais muito ricos, muito liberal, muito discreto, que se chamava Cornélio? - Conheço-o também - respondeu Leonisa -, e posso dizer que para minha maior infelicidade. Mas, quem sois vós, senhor, que os conheceis e por êles me perguntais? - Sou natural de Palermo e por vários motivos estou com êste traje, vestido desta maneira, e conheço-os porque, não há muitos dias, estiveram ambos em meu poder, pois Cornélio foi prêso por uns mouros de Trípoli da Berbéria e vendido a um turco que o trouxe a esta ilha, para onde veio com mercadorias, porque é mercador de Rodes e confiava a Cornélio tôda a sua riqueza. - Saberá guardá-la - falou Leonisa -, porque sabe guardar muito bem a sua; mas dizei-me, senhor, como e com quem veio Ricardo a esta ilha? - Veio com um corsário que o aprisionou em um jardim à beira-mar, em Trápana, e disse que com êle haviam aprisionado uma jovem cujo nome não quis revelar; permaneceu aqui alguns dias com seu amo, que ia visitar o sepulcro de Maomé na cidade de Medina; por ocasião da partida, Ricardo caiu enfêrmo e tão indisposto que seu amo o deixou comigo, por sermos da mesma terra, para que eu cuidasse de sua saúde e tomasse conta dêle até sua volta ou, se para aqui não voltasse, que eu o enviasse a Constantinopla, pois êle me avisaria quando lá estivesse; os céus, entretanto, dispuseram os fatos de outra maneira, porque o desventurado Ricardo, sem sofrer acidente algum, perdeu a vida em poucos dias, sempre chamando a uma tal Leonisa, a quem êle me dissera querer mais que a própria vida e a própria alma; disse-me êle que esta Leonisa se havia afogado em um naufrágio na ilha de Pantanaléa, e sua morte, êle a chorava e pranteava sempre, até que perdeu a vida, pois eu não percebi enfermidade alguma em seu corpo, e sim amostras de dor em sua alma. - Dizei-me, senhor - falou Leonisa -, o outro môço de quem falais, nas inúmeras conversas que teve convosco, falou-vos alguma vez desta Leonisa e da maneira pela qual ela e Ricardo foram aprisionados? - Sim, falou. Perguntou-me também se havia chegado a esta ilha uma jovem cristã com êste nome, a quem gostaria de encontrar para resgatá-la, pois seu amo já devia saber que ela não era tão abastada quanto julgara e talvez pedisse por ela um preço menos elevado, pois já a possuíra; que, se o preço não fôsse além de 300 ou 400 escudos, êle os daria de muito boa vontade, porque, há algum tempo, tivera por ela alguma afeição. - Devia ser bem insignificante esta afeição, pois não passava de 400 escudos; Ricardo era mais liberal, valente e arrojado; Deus me perdoe, porque fui eu a causa de sua morte e sou eu a infeliz que êle considerou morta; só Deus sabe quanto me alegraria se êle estivesse vivo, para pagar-lhe com afeto o preço de sua desgraça e o desgôsto que provou ao me ver também desgraçada; eu, senhor, como já vos disse, sou a criatura menosprezada por Cornélio e a bem-amada de Ricardo; depois de vários incidentes, fui reduzida a êste estado miserável e, embora me fôsse perigoso, pude conservar, com o auxílio do céu, a integridade de minha honra, o que ainda me faz contente, apesar de tôda a minha miséria; agora nem sei onde estou nem quem é meu dono, nem aonde hão de me levar os fados adversos, pelo que vos rogo, senhor, pelo sangue cristão que tendes, que me ajudeis em minhas misérias, que por serem muitas serviram para me advertir, e meus desgostos são tantos e tais que não sei como hei de me haver com êles. Mahamut respondeu que faria o que pudesse para servi-la, aconselhandoa, ajudando-a com sua capacidade e com tôdas as suas fôrças; lembrou-lhe o desentendimento que os dois paxás tiveram por sua causa e que estava em poder do cádi, seu amo, para, com ela, presentear o grande Sultão Selim, em Constantinopla, mas que, antes de tal coisa ser levada a efeito, nutria esperanças de que o verdadeiro Deus, no qual acreditava, embora não fôsse um verdadeiro cristão, haveria de dispor os fatos de outra maneira, e aconselhava-a a tratar bem Halima, a mulher do cádi, seu amo, em cujo poder haveria de estar até que a enviassem a Constantinopla; foi dizendo estas e outras coisas em seu benefício até que a deixou em sua nova casa e em poder de Halima, a quem transmitiu o recado de seu amo. Halima, vendo-a tão bem enfeitada e tão formosa, recebeu-a muito bem. Mahamut voltou à tenda para contar a Ricardo o que se havia passado entre êle e Leonisa; encontrando-o, contou-lhe tudo tintim por tintim e, quando se referiu ao sentimento que Leonisa provara ao falar-lhe que êle havia morrido, as lágrimas quase lhe vieram aos olhos; disse-lhe também que inventara uma história a respeito de Cornélio, para ver o que ela dizia; falou-lhe do pouco caso e da malícia da qual usara referindo-se a Cornélio; tudo isto serviu apenas para aumentar ainda mais o sofrimento de Ricardo, que disse a Mahamut: - Lembro-me, Mahamut, de uma história contada por meu pai, que, como já sabes, foi muito dedicado e recebeu grandes honrarias do Imperador Carlos V, a quem sempre serviu em nobres cargos na guerra. Contou-me êle que, quando o imperador ocupou Túnis à fôrça, trouxeram para o seu acampamento uma jovem moura, de uma beleza singular, para com ela presenteá-lo; quando a jovem entrou, alguns raios de sol que se infiltravam pela tenda bateram em seus cabelos, que disputavam o doirado ao sol, fato extraordinário em se tratando dos mouros que, em geral, têm os cabelos negros. Contava que naquela ocasião se encontravam na tenda, entre muitos outros, dois cavalheiros espanhóis; um era andaluz e outro catalão, ambos distintos e ambos poetas; vendo-a, o andaluz, admirado, começou a fazer uns versos, que êles costumavam chamar de coplas; encontrando certa dificuldade para dar aos versos harmonia perfeita, pois escolhera palavras de rimas difíceis, deteve-se no quinto verso e não chegou a terminar a copla nem seu pensamento, mas o outro cavalheiro, que estava a seu lado e tinha ouvido os versos, vendo-o parado, como se tirasse as palavras da bôca do companheiro, prosseguiu, utilizando-se da mesma rima. Tudo isto veio-me à memória quando vi Leonisa entrar na tenda do paxá, capaz não somente de ofuscar os raios do sol se êles a tocassem, mas também a todo céu com suas estrêlas. - Basta, não digas mais nada; chega, Ricardo, pois a cada momento que passa receio que de tanto endeusares tua bela Leonisa deixes de ser cristão para te tornares um idólatra; dize-me, se queres, êsses versos ou coplas, e depois falaremos de outras coisas que sejam mais alegres e também, talvez, de maior proveito. - Está bem - disse Ricardo -, mas volto a te advertir que cinco versos foram ditos por um e os outros cinco por outro, todos de improviso: Tal qual o sol que assoma atrás de baixa montanha, que de repente aparece e que ao chegar escurece nossa vista e a ofusca, tal qual o belo rubi que não abriga o carcoma, o teu lindo rosto, Aja, é a dura lança de um deus que fere minhas entranhas. - Soam-me bem ao ouvido - falou Mahamut -, e soam-me ainda melhor porque são ditas por ti, Ricardo, pois fazer versos ou dizê-los exige um ânimo desapaixonado. - Costuma-se também - respondeu Ricardo -, chorar endechas (Endecha: Canção triste, de tom lamentoso e sentimental. N.T.), cantar hinos, e tudo significa dizer versos; mas, deixando isto de lado, dize-me: como pensas resolver nosso caso? Pois, embora não tenha entendido o que os paxás disseram na tenda, um renegado veneziano pertencente a meu amo, que se achava presente e que entende bem tua língua, enquanto levavas Leonisa, contou-me tudo, e antes de mais nada é preciso dar um jeito para que Leonisa não vá parar nas mãos do grão-senhor. - A primeira coisa é fazer com que venhas ao poder de meu amo; feito isto, depois veremos o que mais nos convém. Neste momento chegou o guardião dos prisioneiros cristãos de Hazan e levou Ricardo com êle; o cádi voltou à cidade com Hazan, que, em poucos dias, fêz o atestado de antecedentes de Ali, dando-o fechado e selado para que pudesse êle ir a Constantinopla; Ali partiu logo, recomendando muito ao cádi que enviasse brevemente a prisioneira, escrevendo ao grão-senhor para que a utilizasse como quisesse. O cádi prometeu, mas de nada valiam suas palavras, pois, por causa da prisioneira, voltaria fàcilmente atrás; Ali partiu cheio de esperanças e Hazan ficou também cheio delas; Mahamut fêz com que Ricardo viesse para o poder de seu amo; iam-se os dias e o desejo de ver Leonisa era tanto que Ricardo não tinha sossêgo; passou a chamar-se Mário para que seu nome não chegasse aos ouvidos de Leonisa, antes que ela o visse - e vê-la era muito difícil, porque os mouros são extremamente ciumentos: escondem de todos os homens os rostos de suas mulheres, embora não se importem que os cristãos as vejam, pois, talvez por serem êles escravos, não os considerem homens. Aconteceu então que Halima viu, um dia, seu escravo Mário e olhou-o tanto que êle ficou gravado em seu coração e em sua memória; e, certamente, pouco satisfeita com os abraços frouxos de seu velho marido, teve logo um mau pensamento, do qual imediatamente falou a Leonisa, a quem já se afeiçoara por sua agradável companhia, maneiras discretas, tratando-a com muito respeito, por pertencer ao grão-senhor; disse-lhe que o cádi tinha trazido para casa um escravo tão garboso e elegante que, a seu ver, jamais conhecera homem tão bonito em tôda a sua vida, e todos diziam que êle era um chilili, que quer dizer cavalheiro, e era da mesma terra de Mahamut, e que não sabia como dar-lhe a entender seu desejo sem que o cristão a menosprezasse por tê-lo declarado; Leonisa perguntou-lhe como se chamava o escravo; disse-lhe Halima que seu nome era Mário. - Se êle fôsse um cavalheiro e do lugar que dizem, eu o conheceria; com o nome de Mário não conheço ninguém em Trápana; mas faze, senhora, com que eu o veja e lhe fale, que te direi quem é e o que se pode esperar dêle. - Assim o faremos, porque sexta-feira, quando o cádi estiver fazendo suas orações na mesquita, farei Mário entrar aqui dentro, onde poderás falar-lhe a sós e, se quiseres, dá-lhe a entender os meus desejos, e o farás da melhor maneira que puderes. Isto foi o que disse Halima a Leonisa; e não haviam passado duas horas quando o cádi chamou Mahamut e Mário; com o mesmo ardor com que Halima havia aberto o coração a Leonisa, o velho enamorado abriu também o seu aos dois escravos, pedindo-lhes que o ajudassem a achar um meio de possuir a jovem cristã e ao mesmo tempo não faltar com a palavra ao grão-senhor, a quem ela pertencia, dizendo-lhes que preferia mil vêzes morrer a entregá-la ao grande chefe. Com estas palavras, o devotado mouro falava de sua paixão, confiando-a aos corações de seus dois escravos, que pensavam justamente o contrário do que êle estava pensando. Ficou combinado entre êles que Mário, por ser de sua terra natal, embora tivesse dito que não a conhecia, ficaria incumbido de falar-lhe de suas intenções, e se por êste modo êle nada obtivesse, usar-se-ia da fôrça, pois ela estava em seu poder; feito isto, dizendo que ela morrera, preservar-se-iam de mandá-la a Constantinopla. O cádi ficou contentíssimo com o plano de seus escravos e, com infinita alegria, ofereceu, na mesma hora, liberdade a Mahamut e a metade de seus bens quando morresse; prometeu ainda a Mário dar-lhe a liberdade e dinheiro para que voltasse à sua terra, rico, honrado e feliz, caso êle levasse o plano a bom têrmo; se o cádi foi generoso em prometer, seus escravos foram pródigos em oferecer até mesmo a lua do céu, quanto mais a Leonisa, se êle desse liberdade de vê-la e falar com ela. - Darei a Mário a liberdade que êle quiser - falou o cádi -, pois farei com que Halima vá, por alguns dias, para a casa de seus pais, que são gregos cristãos; estando ela fora, ordenarei ao porteiro que deixe Mário entrar dentro de casa tôdas as vêzes que êle quiser e direi a Leonisa que poderá falar com o seu patrício quando tiver vontade. Assim, começou a voltar o vento da ventura de Ricardo, soprando em seu favor, sem que seus próprios amos soubessem o que faziam. Tomando, pois, os três esta decisão, quem primeiro a pôs em prática foi Halima, que, como tôdas as mulheres, era por natureza precipitada e resoluta para conseguir o que desejava. Naquele mesmo dia, o cádi disse a Halima que ela podia, quando quisesse, ir para a casa dos pais e passar com êles o tempo que desejasse, mas, estando ela entusiasmada com as esperanças que Leonisa lhe dera, não queria ir para a casa dos pais e não iria nem mesmo ao paraíso de Maomé, se êle existisse; por isso, respondeu ao cádi que, por enquanto, não tinha vontade de viajar e que quando ela quisesse lhe diria; porém, fazia questão de levar com ela a escrava cristã. - Isso não - replicou o cádi - não fica bem que a dádiva do grão-senhor seja vista por alguém e ainda deixá-la conversar com um cristão, pois, sabeis que, chegando ao poder do grão-senhor, hão de encerrá-la no harém e fazer dela sua mulher, quer ela queira, quer não. - Andando ela comigo, não importa que esteja em casa de meus pais nem que se comunique com êles, pois eu também falo com êles e nem por isso deixo de ser boa mulher, e além disso penso ficar lá apenas quatro ou cinco dias, porque o amor que vos dedico não me permitirá ficar ausente por tanto tempo e sem ver-vos. O cádi não quis discutir com ela para não despertar nenhuma suspeita. Na sexta-feira, êle foi para a mesquita, de onde não podia sair em menos de quatro horas; Halima, mal o viu longe dos umbrais da casa, mandou chamar Mário; um cristão corso, que servia como porteiro à porta do pátio, não o teria deixado entrar se Halima não tivesse ordenado que o deixassem passar, e foi assim que Ricardo entrou, confuso e tremendo, como se fôsse lutar com um exército de inimigos. Leonisa estava do mesmo jeito e com o mesmo vestuário de quando entrou na tenda do paxá, sentada ao pé de uma escada grande, de mármore, que ia dar nos corredores; tinha a cabeça encostada na palma da mão direita e o braço sôbre os joelhos, os olhos voltados para o lado contrário da porta por onde entrou Mário, de modo que, embora êle fôsse para o lado dela, ela não o via. Ricardo, entrando, correu os olhos por tôda a casa e nela viu apenas um mudo e profundo silêncio, até que fixou a vista onde Leonisa estava; num instante vieram à sua mente de namorado tantos pensamentos que o detiveram e alegraram, considerando-se a vinte passos, ou pouco mais, distanciado de sua felicidade e alegria; considerava-se cativo por estar sua bem-aventurança em poder alheio; pensando tôdas estas coisas, movia-se lentamente com temor e inquietação, alegre e triste, temeroso e encorajado; ia-se aproximando do lugar onde estava sua alegria, quando Leonisa se voltou de repente e pôs seus olhos nos de Mário, que a olhava atentamente; e, quando os olhares dos dois se encontraram, de maneira diferente deram mostras do que suas almas tinham sentido. Ricardo parou e não pôde dar mais um passo à frente. Leonisa, que, pelas informações de Mahamut, considerava Ricardo morto, encheu-se de temor e de espanto, vendo-o ali inesperadamente, vivo; sem tirar os olhos de cima dêle nem voltar-lhe as costas, subiu quatro ou cinco degraus e, tirando uma pequena cruz do seio, beijou-a muitas vêzes e persignou-se infinitamente, como se algum fantasma ou alma do outro mundo estivesse olhando-a. Ricardo, voltando de seu êxtase e percebendo a verdadeira causa do temor de Leonisa, disse-lhe: - Sinto muito, formosa Leonisa, que as notícias de minha morte, dadas por Mahamut, não sejam verdadeiras, pois com ela evitaria os tepores que me invadem, pensando se ainda continua, com a mesma intensidade, a aspereza que sempre usaste para comigo. Sossega-te e desce e, se és capaz de fazer o que nunca fizeste, chega-te a mim, chega e verás que não sou um fantasma; sou Ricardo, Leonisa, Ricardo, cuja felicidade ainda depende de ti. Leonisa fêz sinal para que êle se calasse ou falasse mais baixo; animandose um pouco, Ricardo foi-se aproximando dela até que pudesse ouvir suas palavras. - Fala baixo, Mário. É assim que te chamas agora, não? Ouve apenas o que te vou falar e lembra-te de que as palavras que disseste há momentos poderiam ser motivo para que nunca nos tornássemos a ver; creio que Halima, nossa ama, e que me disse adorar-te, está a nos escutar; pediu-me que eu te falasse a respeito de suas intenções; se quiseres corresponder, estarás beneficiando mais ao teu corpo do que à tua alma, porém, mesmo que não queiras, é necessário que finjas querer, primeiro, porque eu te peço, depois porque o merecem os desejos da mulher que ousou declará-los. - Jamais pensei nem pude imaginar, formosa Leonisa, que havia de considerar impossível deixar de fazer alguma coisa que me pedisses, mas o que me pedes agora decepcionou-me. Será que a vontade é tão insignificante que se possa levá-la de um lugar. para outro? Ficaria bem ao homem honrado e verdadeiro fingir em alguma coisa assim tão importante? Se te parece que tal coisa se deve ou se pode fazer, faze o que bem quiseres, pois és senhora de minha vontade, mas também nisto te enganas, pois jamais a conheceste e não sabes o que fazer dela. entretanto, para não dizeres que fôste desobedecida na primeira ordem que me deste, esquecerei quem sou, satisfarei o teu desejo e o de Halima, se é que com isso hei de conseguir a felicidade de te ver; inventa as respostas que quiseres, que eu, embora esteja mentindo, as confirmarei; em troca do que faço por ti, que, aliás, é o máximo que poderia fazer, embora possa dar-te novamente a alma que tantas vêzes te dei, peço-te que me digas, com breves palavras, como escapaste das mãos dos corsários e como vieste às mãos do judeu que te vendeu. - Pedes o resumo de minhas desgraças, mas, como quero satisfazer-te em alguma coisa, eu as contarei. Depois de um dia que nos separamos, a embarcação de Izuf, por causa de vento forte, voltou à ilha de Pantanaléa, onde vimos também a tua galeota, mas a nossa, sem que nada se pudesse fazer, foi atirada aos rochedos; meu amo, vendo que estávamos perdidos, esvaziou ràpidamente dois barris que estavam cheios de água, fechou-os muito bem e prendeu-os com cordas; colocou-me entre êles, despiu-se e, pegando o outro barril entre os braços, prendeu-o ao corpo com um cordel; com êste mesmo cordel prendeu os meus barris e com grande coragem atirou-se ao mar, levando-me atrás dêle; eu não tive coragem para me atirar, mas alguém da embarcação empurrou-me e eu caí sem sentidos, atrás de Izuf; só voltei a mim quando me achei em terra, nos braços de dois turcos, que, mantendo-me de bruços, faziam com que eu vomitasse a grande quantidade de água que tinha bebido; abri os olhos atônita e vi Izuf junto a mim, com a cabeça em pedaços; segundo soube depois, ao chegar à terra bateu com ela nos penhascos, perdendo assim a vida; disseram-me os turcos que me tiraram da corda quase afogada; somente oito pessoas escaparam da galeota; ficamos na ilha oito dias e os turcos respeitaram-me como se eu fôsse irmã dêles ou mais; talvez; ficamos escondidos em uma caverna, pois temiam êles que um grupo de cristãos da ilha os aprisionasse; alimentaram-se com o biscoito molhado que levavam na galeota e que o mar atirou à praia, saindo para pegá-lo durante a noite; quis o destino, para minha maior infelicidade, que o destacamento estivesse sem capitão, pois morrera êle poucos dias atrás e o destacamento contava com vinte soldados apenas; soubemos isto de um rapaz do próprio destacamento que os turcos aprisionaram quando fôra apanhar conchas na praia; depois de oito dias chegou àquela costa uma embarcação de mouros, chamada por êles de caramuçal; os turcos viram-na, saíram de onde estavam, fazendo tantos sinais à embarcação que estava perto da terra que os outros puderam ver que eram os turcos que os chamavam; contaram-lhes suas desgraças e os mouros os receberam em sua embarcação, na qual vinha um judeu, mercador riquíssimo; quase tôda ou a maior parte da mercadoria do barco era constituída de barreganas (Barreganas: Fazendas de lã forte e impermeável. N.T.), alguicéis (Alguicéis: Mantos mouriscos em forma de capa, brancos e de lã. N.T.) e outras coisas que se levam da Berbéria ao Levante. Os turcos partiram para Trípoli nesta mesma embarcação; no caminho venderam-me ao judeu, que pagou por mim 2.000 dobras, preço muito alto, mas o amor que o judeu me devotava fêz com que êle se tornasse generoso; a embarcação, deixando os turcos em Trípoli, tornou a seguir viagem e o judeu passou a dirigir-se a mim descaradamente; desprezei-o, como, aliás, mereciam seus torpes desejos; vendo-se êle sem esperanças de alcançar o que queria, determinou desfazer-se de mim na primeira ocasião que se apresentasse; ao saber que os dois paxás, Ali e Hazan, estavam nesta ilha, e que aqui podia vender sua mercadoria tão bem quanto em Xio, onde pensava vendê-la, veio até aqui com intenção de vender-me a algum dos paxás; por isso, vestiu-me da maneira que ainda me vês, para despertar-lhes o desejo de me comprar; soube, depois, que o cádi me comprou para enviar-me como presente ao grande chefe, o que, aliás, me faz bastante inquieta; soube também, aqui, de tua falsa morte e, para dizer a verdade, se é que queres acreditar, senti profundamente e tive mais inveja que pena de ti, não porque te queira mal, pois, embora eu seja desamorosa, não sou ingrata nem mal agradecida, mas porque tinhas pôsto fim à tragédia de tua vida. - Falaste bem, senhora, se a morte não me impedisse de tornar a ver-te; alegro-me muito mais com êste momento de glória em que sou feliz por poder olhar-te do que com a ventura da vida eterna, pois, tanto na vida como na morte, êste seria sempre o meu desejo; o sentimento que Halima tem por mim é o mesmo que meu amo, o cádi, em cujo poder vim parar por incidentes semelhantes aos teus, tem por ti; pediu-me êle que me fizesse portador de seus desejos; aceitei a incumbência, não porque me agradasse, mas porque assim teria maior facilidade para falar contigo; vê, Leonisa, a que ponto nossas desgraças nos trouxeram: tu me pedes algo impossível de fazer e eu tenho de pedir-te coisa que jamais imaginei, e daria a vida, que agora prezo tanto por terme concedido a ventura de ver-te, para não ver realizado aquilo que te peço. - Não sei que dizer, Ricardo, nem qual seria a saída do labirinto onde, como dizes, nossa má sorte nos colocou; só sei dizer que é necessário usarmos de subterfúgios que não seriam de se esperar de nosso caráter, ou seja, de fingimento e falsidade; assim, direi a Halima algumas palavras que não lhe tirem a esperança e que a entretenham; tu poderás dizer ao cádi o que melhor convier para minha segurança e para mantê-lo também entretido; coloco, pois, minha honra em tuas mãos, e podes acreditar que ela ainda está intata, embora os caminhos pelos quais andei e os embates que sofri pudessem pôr em dúvida minhas palavras; conversarmos será fácil e eu terei com isso muito prazer, com a condição de jamais me falares de teus sentimentos, pois na hora em que o fizeres deixarei de te ver, porque não quero que penses ser eu de tão pouco mérito que hei de conceder, no cativeiro, aquilo que na liberdade não pude conceder; com a ajuda do céu, devo ser como o ouro, que, quanto mais se acrisola, mais puro e limpo se faz; contenta-te com o haver dito que tua presença não me aborrece como antes acontecia, pois quero que saibas, Ricardo, que sempre te considerei mau, arrogante e presunçoso; confesso, também, que me enganava e pode ser que, se fizesse agora uma experiência, a verdade viria fàcilmente aos meus olhos e, conhecendo eu esta verdade, pudesse, ao mesmo tempo, ser honesta e mais humana; vai com Deus, pois receio que Halima nos tenha escutado, porque ela entende um pouco da língua cristã, ou pelo menos, daquela mistura de línguas que se usa e pela qual todos nós nos entendemos. - Tens razão, e agradeço-te infinitamente o fato de me teres logo desiludido, o que estimo tanto quanto o favor que fazes em deixar-me ver-te, e, como dizes, talvez a experiência te faça compreender quão sincera e humilde é minha intenção, principalmente para adorar-te; e, sem que estabelecesses limites, fizesses observações ou condições, seria tão honesto para contigo que não poderias desejar algo melhor; quanto ao cádi, não te preocupes, eu saberei entretê-lo; faze o mesmo com Halima e sabe que, depois de ver-te, nasceu em mim tal esperança que me faz pensar em alcançarmos logo a liberdade desejada; fica com Deus e da outra vez falar-te-ei dos caminhos pelos quais a fortuna me trouxe a êste estado, depois que de ti me separei, ou melhor, que de ti me separaram. Com isto, despediram-se: Leonisa ficou satisfeita com a retidão de Ricardo e êle ficou contentíssimo por não ter ouvido uma palavra áspera da bôca de Leonisa. Halima permanecera fechada em seus aposentos, pedindo a Maomé que Leonisa voltasse com boas notícias; o cádi estava na mesquita, retribuindo os desejos de sua mulher com os seus, permanecendo ansioso e prêso à resposta que esperava ouvir do escravo a quem incumbira de falar com Leonisa, contando para isso com o auxílio de Mahamut, que lhe ofereceria tôdas as facilidades, mesmo com a presença de Halima na casa. Leonisa intensificou em Halima o desejo e o amor, alimentando-lhe muitas esperanças de que Mário faria tudo o que pudesse, tudo o que ela quisesse, mas que deveria deixar passar primeiro duas luas antes de realizar-se o que êle desejava muito mais que ela própria, e pedia êste prazo porque desejava orar e pedir a Deus que lhe concedesse a liberdade. Halima satisfez-se com a resposta e com a proposta de Mário, a quem ela concederia liberdade mesmo antes de terminado o prazo, porque êle consentira em atender aos seus desejos; assim, pediu a Leonisa que dissesse a Mário para deixar de lado o tempo e não se demorar mais, pois ela ofereceria por êle quanto o cádi pedisse para seu resgate. Por outro lado, Ricardo, antes de dar uma resposta a seu amo, falou com Mahamut; combinaram os dois que desiludiriam o senhor e o aconselhariam a levar Leonisa para Constantinopla o mais depressa possível e que, no caminho, ou por bem ou por mal, alcançaria êle seu intento; para não faltar com a devoção ao grão-senhor, seria bom comprar outra escrava e, na viagem, fingir ou fazer com que Leonisa ficasse enfêrma; durante a noite, atirariam ao mar a outra escrava, dizendo que Leonisa, a escrava do grão-senhor, morrera; e isto havia de ser feito de modo que a verdade jamais fôsse descoberta e êle não faltasse com a palavra ao grão-senhor; depois, para que seus desejos fôssem realizados, haveriam de estabelecer um plano conveniente e proveitoso. Estava tão cego o mísero e velho cádi que, se outros disparates semelhantes lhe fôssem ditos, acreditaria em todos, desde que apresentassem uma solução para a realização de suas esperanças; assim, acreditou nas palavras de seus escravos, pois pareceu-lhe que elas o levariam ao caminho certo e a um fim mais certo ainda, e assim de fato o seria se a intenção de seus dois conselheiros não fôsse apoderar-se de sua embarcação e presenteá-lo com a morte em trôco de seus loucos pensamentos. Apresentou-se, porém, ao cádi outra dificuldade; segundo êle, a maior que naquele caso se lhe podia apresentar, ou seja, a dificuldade de poder ir a Constantinopla sem Halima, porque era certo que ela não o deixaria ir só; haveria de querer ir também; entretanto, arranjou logo um meio de facilitar as coisas, dizendo que, em vez de comprarem uma escrava para substituir Leonisa, usariam Halima, de quem desejava livrar-se mais do que da própria morte. A mesma facilidade que teve o cádi em fazer tal pensamento tiveram, também, Mahamut e Ricardo em concordar com êle e, não havendo mais nada a discutir, o cádi, naquele mesmo dia, tratou de falar com Halima sôbre a viagem que pretendia fazer a Constantinopla a fim de levar a jovem cristã ao grão-senhor, cuja liberdade o faria, por certo, grão-cádi do Cairo ou de Constantinopla. Halima concordou plenamente com sua decisão, acreditando que Ricardo não fôsse, mas, quando o cádi a informou de que o levaria, bem como a Mahamut, mudou de opinião e tratou de anular os conselhos que lhe dera anteriormente. Por fim disse que se não a levasse não o deixaria ir de maneira alguma. O cádi regozijou-se em obedecê-la desta vez, porque pensava em livrar-se, o mais depressa possível, de carga tão pesada. Enquanto isso, o Paxá Hazan não se cansava de pedir ao cádi que lhe entregasse a escrava, oferecendo-lhe muito ouro, tendo chegado a presenteá-lo com Ricardo, cujo resgate avaliava em 2.000 escudos, e planejava o modo de ela ser-lhe entregue com a mesma facilidade com que o cádi imaginara dar a notícia da morte da escrava quando o grão-senhor mandasse buscá-la. Todos os presentes e promessas serviram apenas para aguçar no cádi o desejo de apressar a partida e, assim, impelido pelas suas intenções, pelas impertinências de Hazan e ainda pelas de Halima, que também fabricava castelos no ar, equipou, no prazo de vinte dias, um bergantim com quinze bancos, um bom número de bóias, com mouros e com alguns gregos cristãos; colocou nêle tôda a sua riqueza; Halima levou tudo o que pôde e pediu ao marido que a deixasse levar os pais até Constantinopla; sua intenção era a mesma do cádi: fazer com que Mahamut e Ricardo, no caminho, fugissem com o bergantim, mas não quis revelar-lhes seu pensamento até embarcar, tendo a intenção de voltar a viver no meio dos cristãos, tornar a ser o que fôra anteriormente e casar-se com Ricardo, pois era de se acreditar que, levando ela consigo riquezas e tornando a ser cristã, êle haveria de tomá-la por espôsa. Nesse meio de tempo, Ricardo conversou novamente com Leonisa e contou-lhe todos os seus planos; Leonisa, por sua vez, falou das intenções de Halima, que com ela se havia comunicado; ambos pediram mútuamente segrêdo e, confiando em Deus, esperavam o dia da partida. Esse dia chegou finalmente; Hazan, com todos os seus soldados, acompanhou-os até o mar, não os deixando até que levantassem velas, nem tirou os olhos do bergantim até perdê-lo de vista, e parece que os suspiros exalados pelo enamorado mouro impeliam com maior fôrça as velas que se afastavam e levavam sua alma; porém, o amor que sentia não o deixava sossegado há muito tempo, e, assim, pensando no que havia de fazer para não morrer sufocado pelos seus desejos, pôs imediatamente mãos à obra que planejara, decidida e inteligentemente; assim, em uma embarcação de dezessete bancos, que armara em outro pôrto, pôs cinqüenta soldados, todos amigos e conhecidos, atraindo-os com muitos presentes e promessas, e ordenou-lhes que se pusessem a caminho e tomassem o barco do cádi com tôdas as riquezas, passando a fio de espada todos os que nêle iam, com exceção da escrava Leonisa, pois somente a ela queria, dentre os muitos haveres que o bergantim levava; ordenou-lhes também que afundassem de modo que nada ficasse para indicar o lugar onde afundaram. A cobiça pôs-lhes asas nos pés e ânimo no coração, embora vissem que haveriam de encontrar pouca resistência no bergantim, pois êles estavam desarmados e sem suspeitar de que tal coisa pudesse acontecer. Fazia já dois dias que o bergantim caminhava, mas ao cádi pareceram dois séculos, porque logo no primeiro queria pôr seus planos em ação; seus escravos, porém, aconselharam-no a simular antes uma doença em Leonisa, para que as circunstâncias de sua morte se fizessem verídicas, e que convinha, portanto, fingir alguns dias de enfermidade; êle preferia dizer que ela morrera de repente, acabar logo com tudo, despachar sua mulher e acalmar o fogo que ia, aos poucos, devorando suas entranhas, mas teve de aceitar o parecer dos dois. A estas alturas Halima já havia revelado seus planos a Mahamut e a Ricardo, e êles prometeram executá-los quando passassem os limites de Alexandria ou quando entrassem nos castelos de Natólia; o cádi, porém, apressou tanto que se dispuseram a agir na primeira oportunidade que se apresentasse; ao fim de seis dias de viagem, o cádi achou que se devia pôr um ponto final na falsa enfermidade de Leonisa; ordenou aos escravos que no outro dia dessem cabo de Halima e a atirassem ao mar amortalhada, dizendo ser a escrava do grão-senhor. Na manhã do outro dia em que Mahamut e Ricardo deviam realizar suas intenções, arriscando para isso a própria vida, descobriram uma embarcação que vinha atrás dêles com tôda a fôrça das velas e dos remos; recearam que fôssem corsários cristãos dos quais nem uns nem outros poderiam esperar nada de bom; os mouros os temiam porque poderiam ser presos como escravos, os cristãos porque, embora recuperassem a liberdade, seriam roubados; Mahamut e Ricardo, entretanto, contentavam-se com a liberdade de ambos e com a de Leonisa; apesar disto, temiam o atrevimento , dos corsários, pois os que se dedicam à rapinagem, qualquer que seja sua lei ou nação, jamais deixam de ser cruéis e insolentes. Todos prepararam-se para a defesa, sem deixar dos remos e dar tôda a fôrça que pudessem; não demorou muito, entretanto, para que os outros se aproximassem e em menos de duas horas disparassem tiros de canhão; vendo isto, largaram todos os remos, apanharam as armas e esperaram, embora o cádi lhes dissesse que o barco era turco e que não lhes causaria mal algum; enquanto isso, mandou içar logo a bandeira branca da paz nas velas de pôpa, para que a vissem os cegos e cobiçosos que investiam com grande fúria contra o desprotegido bergantim. Nisto, Mahamut voltou a cabeça e viu que do lado do poente vinha uma galeota que êle julgou ter uns vinte bancos mais ou menos; apressou-se em dizê-lo ao cádi e alguns cristãos que estavam no remo disseram que a embarcação era de cristãos; tudo isto serviu para aumentar-lhes a confusão e o mêdo; ficaram parados, sem saber o que fazer, temendo e esperando o destino que Deus lhes queria dar. Parece-me que a confusão interior do cádi era muito grande, pois dirigira-se para aquêles lados pensando encontrar exitosa a realização de tôdas as suas esperanças e desejos, esperanças que logo se desvaneceram pela presença da primeira embarcação que se aproximava e que, sem respeitar a bandeira de paz e a própria religião, investiu contra o barco do cádi com tanta fúria que pouco faltou para pô-lo a pique; o cádi conheceu logo os que o atacavam, viu que eram soldados de Nicósia, adivinhou o que poderia ser e considerou-se perdido e morto; se os soldados não se pusessem mais a roubar que a matar, ninguém teria ficado com vida; encontravam-se êles no melhor da luta e atentos ao roubo quando um turco, em altas vozes, disse: “As armas, soldados, que uma embarcação de cristãos se aproxima”. E era verdade, porque o barco avistado pelo bergantim do cádi apresentava insígnias e bandeiras cristãs e dirigia-se com tôda a fúria contra o barco de Hazan; antes de chegar, porém, alguém da proa perguntou, em turco, de quem era aquêle barco. Responderam-lhe que era do Paxá Hazan, vice-rei de Chipre. “Mas como ousais atacar e roubar o barco onde vai o cádi de Nicósia, se sois também muçulmanos?” Responderam-lhe que só sabiam ter recebido ordens de capturar o barco e que êles e todos os soldados nada mais fizeram do que obedecer. O capitão dêste segundo barco, que parecia cristão, tendo sabido o que queria, deixou de atacar o barco de Hazan e voltou-se para o do cádi; à primeira investida matou mais de dez turcos e abordou a embarcação com grande coragem e rapidez, mas, mal pusera os pés dentro do barco, o cádi viu que quem o atacava não era cristão, e sim o enamorado Ali, que, tendo a mesma intenção de Hazan, estivera esperando a sua vinda e, para não ser reconhecido, fizera seus soldados vestirem-se como cristãos, utilizando-se assim de um disfarce que encobrisse o seu roubo. O cádi, que sabia das intenções dos dois enamorados e traidores, começou a proclamar-lhes a maldade, dizendo: - Que é isso, traidor? Como é que, sendo muçulmano, me assaltas como cristão? E vós, traidores soldados de Hazan, que demônio vos levou a cometer tão grande insulto? Para cumprir os apetites de quem vos envia, ousais atacar vosso verdadeiro senhor? A estas palavras todos suspenderam as armas, entreolharam-se e se reconheceram, pois todos tinham sido soldados de um mesmo capitão e lutado sob a mesma bandeira; e, ficando meio confusos com as palavras do cádi, com o malefício que causariam a êles próprios, embainharam os sabres e arrefeceram os ânimos; somente Ali fechou os olhos, os ouvidos, e, atirando-se ao cádi, deulhe tamanho golpe na cabeça que, se não fôsse o enorme turbante que a cobria, sem dúvida alguma teria sido partida ao meio; apesar disso não pôde evitar a queda entre os bancos do barco e, ao cair, disse: - Ó cruel renegado, inimigo do divino profeta! É possível que não haja alguém que castigue tua crueldade e tua insolência? Como, maldito, ousaste levantar as mãos e as armas contra teu cádi e um ministro de Maomé? Estas palavras emprestaram maior fôrça às primeiras ouvidas pelos soldados de Hazan, que, movidos pelo temor de que 4 soldados de Ali lhes tirassem a prêsa que já consideravam sua, resolveram jogar com a sorte: atiraram-se aos soldados de Ali com tanta rapidez, rancor e coragem que, em pouco tempo, os reduziram a um número pequeno, embora fôssem de início mais numerosos; êstes que ficaram, porém, voltando a si, vingaram os companheiros, deixando apenas quatro soldados de Hazan com vida e êstes ainda muito feridos. Ricardo e Mahamut de vez em quando botavam a cabeça para fora, pelo escotilhão dos aposentos de pôpa, para verem no que dava aquela barulheira; Ricardo, vendo que os turcos estavam quase todos mortos, os sobreviventes muito feridos e que poderia fàcilmente dar cabo de todos êles, chamou a Mahamut e a dois sobrinhos de Halima que ela levara consigo para ajudarem o barco a levantar ferros; êle, os dois rapazes e o pai, tomando os alfanjes dos mortos, saltaram as coxias, gritando: “Liberdade, liberdade)”; ajudados pelas bóias e pelos cristãos gregos, degolaram a todos com facilidade, sem receberem ferimento algum. Depois, passaram à galeota de Ali, que estava sem proteção, subjugaramna e apoderaram-se de tudo o que com ela vinha. Entre os primeiros que morreram neste segundo encontro, encontrava-se Ali, pois um dos turcos, para vingar o cádi, matou-o a facadas; por ordem de Ricardo, apressaram-se todos a carregar todos os objetos de valor do barco de Hazan para a galeota de Ali, que era maior e mais ajeitada para qualquer carga ou viagem e por serem cristãos os seus remadores, que, contentes por alcançarem a liberdade e por receberem inúmeras coisas que Ricardo distribuíra a todos, ofereceram-se para levá-lo a Trápana ou ao fim do mundo, se êle quisesse; Mahamut e Ricardo, satisfeitíssimos com o resultado, dirigiram-se a Halima e disseram-lhe que, se ela quisesse voltar a Chipre, colocariam bóias em sua embarcação e lhe dariam a metade das riquezas que trouxeram, mas ela, que, apesar de tanta desgraça, não esquecera o carinho e o amor que dedicava a Ricardo, disse que desejava ir com êles para o meio dos cristãos, fato que alegrou muitíssimo a seus pais. O cádi voltou a si do desmaio e os outros cuidaram dêle como puderam, dizendo-lhe depois que escolhesse entre deixar-se levar para a terra e voltar a Nicósia em seu próprio barco. Respondeu êle que, uma vez que a fortuna o havia traído e levado a tal ponto, agradecia a liberdade que lhe davam e preferia ir a Constantinopla para queixar-se ao grão-senhor do agravo que sofrera por parte de Hazan e Ali; porém, quando soube que Halima o deixava para tornar a ser cristã, estêve a ponto de perder o juízo. Enfim, equiparam seu barco e providenciaram tôdas as coisas necessárias para sua viagem e deram-lhe mesmo alguns cequins que, aliás, já tinham sido seus, e, decidido a voltar para Nicósia, despediu-se de todos, mas, antes que se levantassem as velas, pediu que Leonisa o abraçasse, pois seria um grande favor, suficiente para fazê-lo esquecer tôda a sua desventura. Pediram todos a Leonisa que fizesse aquêle favor a quem tanto a queria, pois não ia nisso atentado algum ao seu decôro e à sua honestidade; Leonisa fêz o que lhe pediram e o cádi pediu-lhe ainda que lhe pusesse as mãos sôbre a cabeça para que êle levasse a esperança de curar sua ferida; Leonisa fêz tudo o que êle pediu. Um vento fresco impulsionou o barco de Hazan e pareceu convidar as velas para a partida. Os tripulantes, percebendo isso, resolveram partir; em poucas horas perderam de vista o barco do cádi, que, com lágrimas nos olhos, via os ventos levarem seus bens, sua alegria, sua mulher e sua alma. Os pensamentos de Ricardo e de Mahamut eram outros; não queriam tocar em terra alguma; por isso, passaram por Alexandria, fora da barra, sem reduzir a velocidade, e, sem precisarem utilizar os remos, chegaram à fértil ilha de Corfu, onde se abasteceram de água, e a seguir, sem parar, passaram pelos infames penhascos acroceráunios e no segundo dia, de longe, avistaram Paquina, promontório da fertilíssima Tinácria; passaram por ela e pela célebre ilha de Malta voando, tal era a velocidade do ditoso lenho; por fim, passada a ilha, avistaram Lampadosa, depois de quatro dias, e, a seguir, a ilha onde se perderam; Leonisa estremeceu ao vê-la, pois veio-lhe à memória o perigo por que passara; no outro dia, tiveram diante dos olhos a desejada e amada pátria; a alegria renasceu em seus corações, alvoroçaram-se os espíritos com a boa nova, porque uma das maiores alegrias que se pode ter na vida é chegar, depois de longo cativeiro, são e salvo, à pátria; a ela iguala-se apenas a alegria da vitória alcançada sôbre os inimigos. Encontrou-se na galeota uma caixa bem cheia de bandeirolas e flâmulas de sêda de diversas cores; Ricardo mandou enfeitar com elas a galeota; pouco depois de amanhecer acharam-se a menos de uma légua da cidade, navegando ràpidamente e dando gritos alegres, aproximando-se do pôrto, onde, num instante, apareceu um grande número de gente do povo, que, tendo visto chegar à terra aquela embarcação tão enfeitada, fêz questão de deixar a cidade para dirigir-se à beira-mar. Enquanto isso, Ricardo pediu a Leonisa que se vestisse e se enfeitasse da mesma forma que quando entrou na tenda dos paxás, pois queria fazer uma brincadeira com seus pais. Ela atendeu-o e, acrescentando graça à graça, pérolas às pérolas e beleza à beleza, às quais se aliou ainda a alegria, vestiu-se novamente de maneira a causar admiração e espanto; Ricardo vestiu-se à moda dos turcos, Mahamut e todos os cristãos do remo fizeram o mesmo, pois as roupas dos turcos mortos foram suficientes para todos; chegaram ao pôrto lá pelas 8 da manhã, que era clara e serena e que parecia estar atenta àquela alegre chegada. Antes de chegar ao pôrto, Ricardo fêz disparar as peças de artilharia da galeota, que consistiam em um canhão de coxia e dois falconetes; a cidade respondeu-lhe com igual número de disparos. O pessoal todo estava confuso, esperando a chegada do majestoso barco; porém quando viram de perto que era turco, por causa dos turbantes, que se pareciam com os turbantes dos mouros, temerosos e suspeitando de alguma cilada, tomaram as armas e todos os que eram soldados na cidade dirigiram-se ao pôrto e muita gente a cavalo estendeuse por tôda a costa; os que se aproximavam pouco a pouco do pôrto alegraramse com isto; tendo chegado a um ponto mais raso, lançaram a prancha à terra e largaram os remos ao mesmo tempo; todos, um a um, como em uma procissão, saltaram à terra, que, com lágrimas de alegria, beijaram inúmeras vêzes; fazendo assim, deram a entender aos que se achavam na terra serem êles cristãos; atrás dêles saíram o pai, a mãe de Halima e seus dois sobrinhos, todos, como já se disse, vestidos com roupas turcas; por último, com o rosto coberto pelo tafetá carmesim e ladeada por Ricardo e Mahamut, saiu a formosa Leonisa, que atraiu para si os olhares de tôda a multidão. Êstes fizeram o mesmo que os outros: chegando à terra, prostraram-se e beijaram-na. Nisto, o governador da cidade, percebendo que êles eram os chefes do grupo que desembarcara, para êles se dirigiu; chegando-se mais perto e reconhecendo imediatamente Ricardo, correu para abraçá-lo, com os braços abertos e com mostras de enorme alegria. Com êle, chegaram também Cornélio e seu pai, os pais de Leonisa e todos os seus parentes, os pais de Ricardo, todos êles pessoas importantes da cidade; Ricardo abraçou o governador e agradeceu a todos as boas-vindas que lhe davam, apertou a mão de Cornélio (que, assim que o reconheceu e se viu abordado por êle, perdeu a côr e quase começou a tremer de mêdo) e, segurando também a mão de Leonisa, disse: - Peço-vos por favor, senhores, que, antes de entrarmos na cidade e no templo para agradecer ao Senhor a graça que nos concedeu, escuteis as palavras que vos quero dizer. O governador disse-lhe para falar o que quisesse, pois todos o escutariam com prazer e em silêncio. As pessoas mais importantes rodearam-no logo e êle, levantando um pouco a voz, assim falou: - Deveis estar lembrados muito bem, senhores, da desgraça que há alguns meses atrás me aconteceu no jardim das salinas com a perda de Leonisa; deveis também ter na memória o esfôrço que fiz para conseguir sua liberdade, pois, esquecendo-me de mim próprio, ofereci todos os meus bens para seu resgate (embora isto, que lhes pareceu liberalidade, não possa nem deva redundar em elogio, pois, para resgatá-la, daria minha própria alma); para contar o que depois disto nos aconteceu é necessário mais tempo, outra ocasião e circunstância e outra língua que não esteja tão perturbada quanto a minha; por agora basta dizer-vos que, depois de vários e estranhos acontecimentos e depois de perdidas mil esperanças de encontrar alívio para nossas desditas, o piedoso céu, mesmo sem nenhum merecimento de nossa parte, devolveunos à querida pátria, cheios de alegria e cumulados de riquezas; a imensa alegria que sinto não nasce, porém, das riquezas nem da liberdade alcançada, mas sim da alegria que proporcionei a esta que é minha doce inimiga, em paz e em guerra, alegria por ver-se livre e por conhecer agora sua própria alma; alegro-me, ainda, com a felicidade de todos os que foram meus companheiros de infortúnio e, embora as desventuras e os acontecimentos tristes costumem mudar os fatos e aniquilar os espíritos mais valorosos, o mesmo não se deu com o verdugo de minhas esperanças, porque, com valor e coragem fora do comum, sofreu suas desditas e as impertinências de minhas ardentes quanto honestas intenções, por isto verifica-se que muda o céu, mas não muda a maneira de proceder das criaturas. Para resumir, quero dizer que ofereci, pelo seu resgate, todos os meus bens e pus a alma em minhas intenções; planejei sua liberdade e, esquecendo-me de mim, arrisquei por ela a própria vida, e tôdas estas obrigações, que em outro homem podiam ser momentâneas, em mim não o são e não desejo que o sejam; quero apenas que me agradeças êste momento que agora te proporciono. Dizendo isto, levantou a mão comedidamente, tirou o véu do rosto de Leonisa e foi como se tirasse a nuvem que às vêzes cobre a formosa claridade do sol. Entrego-te, Cornélio, a jóia que deves estimar, acima de tôdas as coisas no mundo; e vês, formosa Leonisa, ofereço-te àquele que sempre estêve em tua memória; isto sim, quero eu que seja considerado liberalidade e não o fato de ter eu dado meus bens, minha vida, que, comparado a êste, nada são; recebe-a, meu felizardo, recebe-a, se és capaz de conhecer seu imenso valor, considera-te o homem mais venturoso da terra; dar-te-ei com ela também a parte que me toca de tudo quanto o céu nos deu e creio que serão mais de 30.000 escudos; podes desfrutar de tudo à vontade, como quiseres, com liberdade, sossêgo e descanso; pede aos céus que tudo seja por longos e felizes anos; não me importo de ficar pobre, pois, faltando-me Leonisa, a vida já não me interessará mais. Depois calou-se, como se a língua estivesse prêsa, mas, logo a seguir, antes que alguém dissesse uma palavra, exclamou: - Valha-me Deus! Como os trabalhos árduos perturbam a razão! Eu, senhores, com a intenção de fazer o bem, não me dei conta de minhas palavras, porque não é possível que alguém possa mostrar-se liberal com o que não lhe pertence. Que direitos tenho eu sôbre Leonisa para oferecê-la a outro? Como posso oferecer o que não me pertence? Leonisa é tão senhora de si que se os seus pais, que Deus os conserve, chegassem a faltar, ela saberia cuidar-se muito bem; e se ela, em sua sensatez, pensar que me deve alguma coisa, desde já quero dizer que tais obrigações não me importam e as dou por esquecidas; assim, dou também o dito por não dito e não dou nada a Cornélio, pois nada tenho para dar; confirmo, entretanto, a doação de todos os meus bens a Leonisa, querendo apenas, como recompensa, que acredite serem verdadeiros meus sentimentos e que êles jamais deixaram de fazer jus a sua incomparável honestidade, seu grande valor e sua infinita formosura. Dizendo isto, Ricardo calou-se e então Leonisa lhe respondeu: - Se imaginas que concedi algum favor a Cornélio, Ricardo, no tempo em que andavas enamorado e tinhas ciúmes de mim, foi obedecendo à vontade e ordem de meus pais, que, desejosos de que êle se tornasse meu espôso, permitiam que eu lhe fizesse tais favores; se ficas satisfeito com isto, ficarás também satisfeito sabendo de minha honestidade e recato, que, aliás, já tiveste ocasião de observar nas muitas experiências pelas quais passei; digo isto, Ricardo, para fazer-te saber que nunca obedeci a ninguém, a não ser aos meus pais, aos quais peço agora humildemente, como é natural, que me dêem permissão e liberdade para dispor da vida que tua valentia e liberdade me concederam. Seus pais responderam afirmativamente, dizendo que confiavam em sua sensatez e porque sabiam que ela usaria de sua discrição de modo a resultar sempre em favor de sua honra e benefício. - Sendo assim - prosseguiu Leonisa -, quero que não levem a mal o meu desembaraço nem pensem que eu queira ser mal, agradecida: Minha vontade, meu valente Ricardo, até aqui recatada, irresoluta e indecisa, declara-se, agora, em teu favor, para que os homens saibam também que nem tôdas as mulheres são ingratas; sou tua, Ricardo, e tua serei até a morte, se é que outra decisão não te leva a negar a mão de espôso que te peço. Estas palavras deixaram Ricardo atordoado e o que soube fazer foi apenas cair de joelhos ante Leonisa e beijar-lhe as mãos, que apertou inúmeras vêzes, banhando-as com ternas e amorosas lágrimas; Cornélio também as derramou, mas de pesar; de alegria foram as lágrimas dos pais de Leonisa, de admiração e contentamento as de todos os circunstantes; achavam-se presentes o bispo ou arcebispo da cidade, que, com sua bênção, os levou ao templo e, sem mais esperar, casou-os no mesmo instante. A alegria espalhou-se por tôda a cidade e dela foram provas a intensa iluminação daquela noite, os inúmeros jogos e comemorações, que nos dias seguintes foram promovidos pelos parentes de Ricardo e Leonisa. Mahamut e Halima, que, vendo a impossibilidade de tornarse espôsa de Ricardo, se contentou em casar com Mahamut, reconciliaram-se com a Igreja. Do quinhão que recebera, Ricardo, em sua liberdade, deu aos pais e aos sobrinhos de Halima uma quantia suficiente para viverem. Todos, enfim, ficaram contentes, livres e satisfeitos. A fama de Ricardo atravessou os limites da Sicília, estendeu-se por tôda a Itália e por muitos outros lugares, com o nome de Amante Liberal, nome que permanece até hoje na bôca dos inúmeros filhos que teve de Leonisa, que foi exemplo raro de discrição, honestidade, recato e formosura. A Força do Sangue Numa dessas noites calorosas de verão, em Toledo, voltavam do rio, onde tinham ido divertir-se, um velho fidalgo, sua mulher, um filho pequeno, uma filha de dezesseis anos e uma criada. A noite estava clara; eram 11 horas; o caminho estava deserto e êles caminhavam devagar a fim de não pagarem com cansaço o prazer ocasionado pelos folguedos que se fazem no rio ou em suas margens, em Toledo. Vinha o bom fidalgo e sua honrada família com a segurança que oferecem a justiça e a boa gente daquela cidade, longe de pensar que algum desastre pudesse acontecer-lhes, mas, como a maior parte das desgraças que acontecem são inesperadas, aconteceu-lhes, sem que esperassem, sofrer uma dessas desgraças que lhes levou a alegria e os fêz chorar por muitos anos. Havia naquela cidade um cavalheiro de uns 22 anos, a quem a riqueza, o sangue ilustre, a impudência, a liberdade excessiva e as más companhias levavam a certas coisas e atrevimento que não condiziam com sua posição e lhe davam o renome de atrevido. Este cavalheiro, pois - que agora, por respeito, escondendo seu nome, chamaremos de Rodolfo -, com quatro amigos, todos moços, todos alegres e todos insolentes, desciam pela mesma encosta que o fidalgo subia. Encontraram-se os dois grupos, o das ovelhas e o dos lôbos e, com indecorosa desenvoltura, Rodolfo e seus camaradas, com os rostos cobertos, olharam os rostos da mãe, da filha e da criada. O velho inquietou-se e reprovou-lhes o atrevimento; os rapazes responderam-lhe com caretas e zombarias, porém, sem atreverem-se a mais, foram embora. Entretanto, a grande formosura do rosto de Leocádia, pois dizem que assim se chamava a filha do fidalgo, visto por Rodolfo, começou de tal maneira a perturbar-lhe a mente que sua vontade o fêz parar um momento e lhe despertou o desejo de possuí-la, apesar de tudo que lhe pudesse acontecer; num instante externou seu pensamento aos camaradas, que decidiram voltar para roubá-la e fazer a vontade de Rodolfo, pois os ricos que dão para ser libertinos acham sempre quem aprove seus desaforos e considere bons os seus maus gostos; assim, nascer a má intenção, comunicá-la, aprová-la e decidirem-se a roubar Leocádia foi questão de segundos. Puseram lenços no rosto e, desembainhadas as espadas, voltaram; com poucos passos alcançaram aquêles que não haviam acabado de dar graças a Deus por tê-los livrado das mãos daqueles atrevidos. Rodolfo lançou-se contra Leocádia e, levantando-a em seus braços, fugiu com a môça, que não teve fôrças para defender-se; o susto tirou-lhe a voz e também a luz dos olhos, pois, desmaiada e sem sentidos, não viu quem a levava nem para onde a levavam. Seu pai falou em altas vozes, sua mãe gritou, seu irmãozinho chorou, a criada arranhou-se, mas nem as vozes foram ouvidas, nem os gritos escutados, nem o pranto moveu a compaixão, nem os arranhões trouxeram proveito algum, porque a solidão do lugar, o calado silêncio da noite e as cruéis entranhas dos malfeitores tudo encobriam. Finalmente, uns foram-se alegres e os outros ficaram tristes. Rodolfo chegou à sua casa sem impedimento algum e os pais de Leocádia chegaram à dêles, agravados, aflitos e desesperados; cegos, sem os olhos da filha, que eram a luz de seus olhos; sozinhos, porque Leocádia era doce e agradável companhia; confusos, sem saber se seria conveniente informar a Justiça de sua desgraça, temerosos de serem êles o primeiro instrumento a publicar sua desonra. Como fidalgos pobres, viam-se necessitados de favor; não sabiam de quem fazer queixa, a não ser de sua pouca ventura. Rodolfo, enquanto isso, sagaz e astuto, tinha já, em sua casa e em seu aposento, a Leocádia, cujos olhos, embora percebendo que ela desmaiara quando a levava, cobrira com um lenço para que não visse as ruas pelas quais passava, nem a casa, nem o aposento onde se encontrava; aí, sem ser visto por ninguém, porque possuía um quarto separado em casa de seu pai, que ainda vivia, e tinha as chaves da mansão e as do quarto - descuido comum aos pais que querem ter os filhos em casa -, antes que Leocádia voltasse do desmaio, Rodolfo havia realizado seu desejo, pois os ímpetos incastos da mocidade poucas ou nenhuma vez pensam em conveniências e requisitos que mais os estimulem e enobreçam. Cego à luz do entendimento, às escuras, roubou a melhor prenda de Leocádia e, como os pecados da sensualidade, em sua maior parte, não vão além de sua própria consecução, quisera Rodolfo que Leocádia logo desaparecesse dali e teve a idéia de colocá-la na rua desmaiada como estava; pondo-se a executar o que imaginara, percebeu que ela voltava a si, dizendo: - Onde estou, infeliz de mim? Que escuridão é essa, que trevas me rodeiam? Estou no limbo de minha inocência ou no inferno de minhas culpas? Jesus! Quem me toca? Eu, em um leito, desonrada? Mãe, escutas-me? Ouvesme, querido pai? Pobre de mim! Bem sei que meus pais não me escutam e que meus inimigos me tocam; seria bem feliz se esta escuridão durasse para sempre, sem que meus olhos voltassem a ver a luz do mundo e que êste lugar, onde agora estou, qualquer que ele seja, servisse de sepultura para minha honra, pois é melhor a desonra que se ignora que a honra exposta à opinião dos outros. Agora me lembro - antes nunca me lembrasse! - de que há pouco vinha em companhia de meus pais; lembro-me agora de que me raptaram; já imagino e vejo não ser conveniente que outras pessoas me vejam. Ó tu, quem quer sejas, que estás aqui comigo - assim dizendo, tomou as mãos de Rodolfo -, se é que tua alma admite qualquer espécie de súplica, suplico-te, já que dispuseste de minha reputação, dispõe também de minha vida; mata-me logo, pois não convém viver àquela que não tem mais honra; olha que o rigor da crueldade que usaste comigo ao ofender-me se suavizará com a piedade que usares ao matar-me, e assim, ao mesmo tempo, virás a ser cruel e piedoso! As palavras de Leocádia deixaram Rodolfo confuso e, como rapaz pouco experimentado, não sabia o que dizer nem o que fazer; seu silêncio surpreendia mais a Leocádia, que, com as mãos, procurava saber se quem estava com ela seria fantasma ou sombra, mas, como sentisse tocar um corpo e se lembrasse da fôrça que fizera quando fôra tirada aos pais, dava-se conta de sua desgraça; com este pensamento, tornou a apresentar os argumentos que os inúmeros soluços e suspiros haviam interrompido, dizendo: - Atrevido mancebo, tuas ações fazem-me julgar-te de pouca idade; eu te perdôo a ofensa que me fizeste, contanto que me prometas e jures que assim como a cobriste com esta escuridão, hás de cobri-la com perpétuo silêncio, sem contá-la a ninguém; pequena recompensa te peço para tão grave ofensa, mas, para mim, será a maior que saberei pedir-te e tu quererás conceder-me; lembrate de que nunca vi teu rosto nem quero vê-lo, porque, embora me lembre do desagravo, não quero lembrar-me de meu ofensor, nem guardar na memória a imagem do causador de minha infelicidade; minhas queixas passarão de mim para o céu, sem querer que as ouça o mundo, que não julga as coisas pelos fatos e sim como melhor lhe parece; não sei como te digo estas verdades, que se costuma adquirir com a experiência de muitos casos e no decorrer de muitos anos, e os meus não chegam a dezessete; por isso, chego à conclusão de que a dor ata e desata, da mesma forma, a língua do aflito, algumas vêzes exagerando seu mal para que nêle creiam, outras vêzes não o dizendo para que se o remedeiem; de qualquer maneira, quer eu me cale quer eu fale, creio que hei de levar-te a me acreditares ou a me socorreres, pois não me crer será ignorância, e socorrer-me, impossível de me trazer algum alívio; não quero desesperar-me, porque te custará pouco dar-me tal alívio; escuta, não esperes nem acredites que o correr do tempo amenize a justa raiva que tenho de ti, nem queiras aumentar os agravos; quanto menos me possuíres, e sei que já me possuíste, menos brotarão teus maus desejos; faze de conta que me ofendeste por acaso, sem dar motivo a que te repreendam; eu farei como se não tivesse vindo ao mundo ou que, se nasci, foi para ser infeliz; põe-me logo na rua, pelo menos junto à igreja matriz, porque dali saberei voltar para casa; mas também haverás de jurar não me seguir, nem saber onde moro, nem perguntar-me o nome de meus pais, nem o meu, nem o de meus parentes, para que, sendo tão ricos quanto nobres, não sejam infelizes por minha causa; responde-me e, se temes que te possa conhecer pela voz, faço-te saber que, além de meu pai e meu confessor, nunca falei com homem algum em minha vida e a poucos ouvi falar de maneira a poder distingui-los pelo som de sua voz. A resposta que Rodolfo deu às discretas palavras da infeliz Leocádia foi abraçá-la, dando-lhe mostras de querer voltar a confirmar, nêle, o gôsto e, nela, a desonra. Leocádia, vendo isto, com mais fôrças do que sua tenra idade parecia ter, defendeu-se com os pés, com as mãos, com os dentes e com a língua, dizendo-lhe: - Olha bem, traidor e desalmado homem, quem quer que sejas, que os despojos que de mim levaste são os que pudeste roubar de um tronco ou uma coluna sem sentidos; tua vitória e triunfo hão de redundar em infâmia e menosprêzo; mas o que agora pretendes só haverás de alcançar com minha morte; desmaiada, pisaste-me e aniquilaste-me; agora, porém, que tenho fôrças, poderás antes matar-me que me venceres, pois se agora, desperta, acedesse, sem resistência, a tão abominável desejo, poderias imaginar que meu desmaio foi fingido quando te atreveste a destruir-me. Enfim, Leocádia resistiu tão galharda e tenazmente que as fôrças e os desejos de Rodolfo se enfraqueceram; como a insolência que usara para com Leocádia não nasceu senão de um ímpeto lascivo, do qual nunca nasce o verdadeiro amor, que permanece, em lugar do ímpeto, êste, quando passa, deixa, se não o arrependimento, pelo menos uma frouxa vontade de se repetir. Arrefecido e cansado, Rodolfo, sem dizer uma palavra, deixou Leocádia em seu leito, em sua casa, e, fechando o aposento, foi procurar seus camaradas para aconselhar-se com êles e ver o que devia fazer. Leocádia percebeu que ficava só e encerrada; levantando-se do leito, andou por todo o aposento, tateando as paredes com as mãos para ver se havia uma porta por onde sair ou uma janela por onde atirar-se; porta encontrou, mas bem fechada, e deu com uma janela que pôde abrir e pela qual entrou a claridade da Lua, tão intensa que Leocádia pôde distinguir as côres de uns tecidos adamascados que adornavam o aposento; viu que a cama era dourada e tão ricamente composta que mais parecia um leito de príncipe que de algum simples cavalheiro; contou as cadeiras e as escrivaninhas; observou a parte onde estava a porta e, embora visse, pendentes das paredes, alguns quadros, não pôde ver as pinturas que continham; a janela era grande, guarnecida e protegida por uma grossa grade; a vista dava para um jardim que também terminava em altas paredes; as dificuldades que se opuseram à intenção que tinha de atirar-se à rua, tudo o que viu e observou, a qualidade e ricos adornos daquela mansão, deram-lhe a entender que o dono dela havia de ser homem importante, rico e muito rico; em uma escrivaninha que estava junto à janela viu um pequeno crucifixo, todo de prata, que tomou e colocou na manga da roupa, não por devoção, nem por furto, e sim levada por um discreto desígnio seu; feito isso, fechou a janela como estava antes e voltou para o leito, esperando para ver que fim teria o mau início de tais acontecimentos. Não teria passado, assim pensou, meia hora quando percebeu que a porta do aposento se abriu, e que uma pessoa chegou-se a ela e, sem dizer uma palavra, vendou-lhe os olhos com um lenço e, tomando-lhe o braço, levou-a para fora da mansão; percebeu também que a pessoa voltava para fechar a porta. Esta pessoa era Rodolfo, que, embora tivesse ido procurar seus camaradas, não quis encontrá-los, por parecer-lhe que não lhe convinha confessar o que se havia passado com aquela jovem; resolveu dizer-lhes que, arrependido da má ação e movido pelas suas lágrimas, a havia deixado na metade do caminho. Assim pensando, voltou bem depressa para levar Leocádia junto à igreja matriz, como a jovem lhe havia pedido, antes que amanhecesse e o dia o impedisse de levá-la, forçando-o a mantê-la em seu aposento até a noite seguinte; neste espaço de tempo não queria voltar a usar de suas fôrças nem dar oportunidade para que fôsse reconhecido. Levou-a, pois, até a praça que chamam de Ayuntamiento e ali, mudando a voz, disse-lhe, meio em português, meio em castelhano, que podia ir tranqüilamente para casa porque ninguém a seguiria e, antes que ela tivesse tempo de tirar o lenço, êle já se havia colocado em lugar onde não pudesse ser visto. Leocádia ficou só, tirou a venda, reconheceu o lugar onde a deixaram. Olhou para todos os lados, não viu ninguém, mas, suspeitando que alguém, de longe, a seguisse, detinha-se a cada passo, caminhando em direção de sua casa, que ficava não muito distante dali; para disfarçar, se por acaso a seguissem, entrou em uma casa que encontrou aberta e dali a pouco foi para casa, onde encontrou seus pais ainda atônitos e vestidos, sem pensarem em descansar. Quando a viram, correram para ela de braços abertos e a receberam com lágrimas nos olhos. Leocádia, cheia de sobressalto e alvorôço, fêz os pais retirarem-se com ela de parte e, assim que o fizeram, contou-lhes, em breves palavras, os desastrosos acontecimentos, com todos os pormenores, da pouca notícia que trazia do salteador e usurpador de sua honra; disse-lhes o que havia visto no teatro, onde se representou a tragédia de sua desventura: a janela, o jardim, a grade, as escrivaninhas, a cama, os tecidos e, por último, mostrou-lhes o crucifixo, que trouxera; perante a imagem renovaram-se as lágrimas, fizeram-se súplicas, pediram-se vinganças e desejaram-se milagrosos castigos; disse também que, embora não desejasse vir a conhecer seu ofensor, se os pais achavam conveniente conhecê-lo, podiam, por meio daquela imagem, fazer com que muitos sacristãos dissessem nos púlpitos de tôdas as paróquias da cidade, que quem houvesse perdido tal imagem a encontraria em poder do religioso que êles escolhessem; e assim, conhecendo-se o dono da imagem, haveriam de conhecer a casa e também a pessoa de seu inimigo. Ao que o pai lhe respondeu: - Terias dito muito bem, filha, se a malícia das pessoas não se opusesse a tuas sábias palavras, pois é claro que hoje, neste dia, darão pela falta desta imagem no aposento ao qual te referiste; o dono dela há de estar certo de que a pessoa que estêve com êle a levou e, tomando conhecimento de que está em poder de algum religioso, há de servir antes para identificar quem a deu do que para indicar o dono que a perdeu, pois pode fazer vir atrás dela outra pessoa a quem o dono tenha feito a descrição e, sendo assim, ficaremos antes confusos que informados, embora possamos usar do mesmo artifício que imaginamos, dando-a ao religioso por intermédio de uma terceira pessoa; o que hás de fazer, filha, é guardá-la e recomendar-te a ela, pois ela foi testemunha de tua desgraça e permitirá que haja um juiz que olhe em teu favor; e lembra-te, filha, que mais ofende um grama de desonra pública do que uma arrôba de infâmia secreta; podes, pois, biìblicamente, viver honrada com Deus; não sofras por te saberes desonrada, em segrêdo; a verdadeira desonra está no pecado e a verdadeira honra na virtude; com a palavra, com o desejo e com a ação ofende-se a Deus e como tu, ou em palavra, ou em pensamento, ou em ações, não o ofendeste, considera-te honrada, que eu assim te considerarei e nunca hei de te olhar senão como teu verdadeiro pai. Com estas previdentes palavras, o pai de Leocádia consolou-a e sua mãe, abraçando-a de nôvo, procurou também consolá-la; a môça gemeu e chorou novamente e decidiu cobrir a cabeça, como se diz, e viver recolhidamente sob a proteção dos pais, vestida tão recatada quanto pobremente. Enquanto isso, Rodolfo, tendo voltado à casa, deu pela falta da imagem do crucifixo e imaginou quem poderia tê-la levado; não se importou, porém, e, como fôsse rico, não fêz caso do fato, nem seus pais a pediram quando, dali a três dias, partiu êle para a Itália e entregou aos cuidados de uma camareira de sua mãe tudo o que deixava no aposento. Fazia já muitos dias que Rodolfo havia decidido ir para a Itália e seu pai, que ali estivera, animava-o, dizendo-lhe que não eram cavalheiros os que o eram somente em sua pátria, que era necessário sê-lo também em terras estranhas. Por essas e por outras razões, dispôs-se a vontade de Rodolfo a cumprir a vontade do pai, que lhe creditou muito dinheiro para Barcelona, Gênova, Roma, Nápoles, e êle, com dois de seus camaradas, partiu logo, pensando gulosamente no que ouvira de alguns soldados sôbre a abundância das hospedarias da Itália e França e da liberdade que gozavam os espanhóis nos alojamentos. Soava-lhe bem aquêle Eco li buoni polastri, picioni, pdesuto et salcicie (A expressão é dialetal e significa: Eis os bons franguinhos, pombos, presunto e salsichas.) e outros nomes assim, dos quais os soldados se lembram quando vêm daqueles lados para cá e passam pelo apêrto e falta de comodidade das estalagens e hospedarias da Espanha. Enfim, êle se foi, pouco se lembrando do que se passara com Leocádia, como se nada tivesse acontecido. Ela, enquanto isso, passava a vida em casa dos pais, no maior recolhimento possível, sem se deixar ver por pessoa alguma, temerosa de que houvessem de ler sua desgraça no rosto. Mas, em poucos meses, viu-se obrigada a fazer o que até ali fazia de bom grado; viu que lhe convinha viver retirada e escondida, porque se sentiu grávida, motivo pelo qual as lágrimas, esquecidas por algum tempo, voltaram a seus olhos, e os suspiros e lamentos começaram a ferir novamente os ventos, sem que as palavras de sua mãe a deixassem de consolar. O tempo voou, chegou a hora do parto e tudo se fêz tão secretamente que nem mesmo se ousou confiar em uma parteira; estas funções, exerceu-as a mãe, e a môça deu à luz um menino, dos mais formosos que se possa imaginar. Em meio ao mesmo recato e segrêdo em que havia nascido, levaram-no a uma aldeia, onde passou quatro anos, ao fim dos quais o avô o levou como sobrinho à casa, onde se criava, senão muito rica, pelo menos virtuosamente. Era o menino - ao qual deram o nome de Luís, por assim chamar-se o avô - de rosto formoso, de boa índole, de inteligência aguda e em tôdas as ações, que em sua pouca idade podia fazer, dava mostras de ter sido gerado por um pai de origem nobre; sua graça, beleza e discrição tornaram seus avós de tal maneira enamorados que êles chegaram a considerar felicidade a infelicidade da filha, por ter-lhes dado tal neto. Quando ia pela rua, choviam sôbre êle mil bênçãos; uns bendiziam sua formosura; outros, a mãe de quem havia nascido; êstes, o pai que o gerou; aquêles, a quem tão bem o havia criado. Com a admiração dos que o conheciam e dos que não o conheciam, chegou o menino à idade de sete anos e já sabia ler latim e em língua romance e escrever com muito boa letra, porque a intenção de seus avós era fazê-lo virtuoso e sábio, já que não podiam fazê-lo rico, como se a sabedoria e a virtude não fôssem as riquezas sôbre as quais nem o ladrão nem aquela a quem chamam fortuna podem exercer sua jurisdição. Aconteceu, pois, que, um dia, em que o menino foi, com um recado de sua avó, à casa de uma parenta, passou por uma rua onde havia uma corrida de cavaleiros; pôs-se a olhar e, para arranjar um lugar melhor, passou de um lado para outro, mas, não tendo tempo de fugir, foi atropelado por um cavalo, cujo dono não pôde deter na fúria de sua carreira; passou por cima do menino e deixou-o como se estivesse morto, estendido no chão e perdendo muito sangue pela cabeça. Mal isto acontecera e um cavalheiro ancião, que estava observando a corrida, com rapidez jamais vista, desceu de seu cavalo e foi para onde estava o menino; tirando-o dos braços de uma pessoa que já o levantara, sem prestar atenção às suas cãs e à sua autoridade, que era grande, dirigiu-se a passos largos para sua casa, ordenando aos criados que o deixassem e fôssem buscar um cirurgião para tratar do menino. Muitos cavaleiros seguiram-no, lastimando a desgraça do tão formoso menino, pois logo se soube que o atropelado era Luisinho, sobrinho de tal cavalheiro, e aí diziam o nome de seu avô. A notícia correu de bôca em bôca até chegar aos ouvidos de seus avós e de sua mãe, que, certificando-se bem do caso, saíram como que desatinados e loucos em busca de seu querido menino; por ser muito conhecido e importante o cavalheiro que o havia levado, muitas das pessoas que encontraram indicaram-lhes a casa, à qual chegaram quando o menino estava já nas mãos de um cirurgião. O cavalheiro e sua mulher, donos da casa, pediram aos que julgaram ser seus pais que não chorassem nem levantassem a voz para se queixarem, porque não seria bom para o menino. O cirurgião, que era famoso, tendo-o medicado com grande firmeza e mestria, disse que a ferida não era mortal, como receara de início. Na metade do curativo, Luís, que até então estivera sem sentidos, voltou a si e alegrou-se por ver os tios, que lhe perguntaram, chorando, como se sentia. Respondeu-lhes que estava bem, mas que lhe doía muito o corpo e a cabeça. O médico ordenou que não falassem com êle e que o deixassem repousar; assim se fêz, e o avô começou a agradecer ao dono da casa a grande caridade de que usara para com seu sobrinho. O cavalheiro respondeu que nada havia para agradecer, pois, quando viu o menino caído e atropelado, pareceu-lhe ver o rosto de um filho seu a quem amava ternamente, que isto o fêz tomar a criança nos braços e trazê-la para sua casa, onde ficaria até que se curasse, e que teria ali tôdas as regalias possíveis e necessárias. Sua mulher, que era nobre senhora, disse a mesma coisa e fêz ainda melhores promessas. Os avós ficaram admirados com tanta bondade, mas a mãe ficou ainda mais admirada, porque, com as notícias dadas pelo cirurgião, sossegara um pouco seu espírito aflito. Olhou atentamente o aposento onde o filho estava e, por muitos motivos, viu claramente que era aquêle o lugar onde perdera a honra e encontrara a desventura e, embora não estivesse enfeitado com os adamascados que então possuíra, conheceu a disposição dos objetos, viu a janela de grades, que dava para o jardim, e, estando ela fechada por causa do menino, perguntou se aquela janela dava para algum jardim. Responderam-lhe afirmativamente; porém o que mais reconheceu foi aquêle mesmo leito que considerava sua sepultura e o reconheceu mais que a própria escrivaninha sôbre a qual estava a imagem que havia tirado. Finalmente, os degraus, que ela havia contado quando a tiraram do aposento com os olhos vendados, trouxeram à luz a confirmação de tôdas as suas suspeitas, isto é, os degraus que havia dali até a rua, que ela contara com discreta atenção; quando voltou à casa achou justo o número dêles; conferindo uns sinais com os outros certificou-se de que suas suspeitas eram bem fundadas e as expôs detalhadamente à mãe, que discretamente procurou saber se o cavalheiro com quem estava seu neto teria tido ou tinha algum filho; soube que o rapaz ao qual chamamos Rodolfo era filho dêle e que estava na Itália; calculando o tempo que lhe disseram ter êle saído da Espanha, viu que eram os mesmos sete anos que tinha o neto. Comunicou tudo isto ao marido e os dois combinaram com a filha esperar para ver o que Deus faria do menino, que dentro de quinze dias ficou fora de perigo e depois de trinta dias levantou-se; durante todo êste tempo foi êle visitado pela mãe, pela avó e tratado pelos donos da casa como se fôsse o próprio filho; algumas vêzes, falando com Leocádia, Dona Estefânia, que assim se chamava a mulher do cavalheiro, dizialhe que aquêle menino se parecia tanto com um filho seu que estava na Itália e não havia uma só vez que o olhasse que não parecesse ver o filho diante dos olhos. Em uma dessas vêzes em que assim falava, Leocádia, achando-se a sós com ela, teve oportunidade de dizer-lhe algumas palavras que, de acôrdo com os pais, havia decidido dizer-lhe, e que foram estas ou mais ou menos estas: - No dia, senhora, em que meus pais ouviram dizer que seu sobrinho sofrera o desastre, acreditaram e pensaram que o céu se lhes havia fechado e que todo o mundo viera abaixo; imaginaram que, faltando-lhes êste sobrinho, a quem êles querem com tanto amor que excede, de muito, o amor de muitos pais por seus filhos, faltava-lhes a luz dos olhos e o consôlo de sua velhice; mas, como se costuma dizer, quando Deus dá a ferida dá também o remédio; o menino encontrou-o nesta casa e eu encontrei nela a lembrança de alguns acontecimentos que nunca poderei esquecer enquanto a vida me dure; eu, senhora, sou nobre, porque meus pais o são e o hão sido todos os meus antepassados, que, com modestos bens da fortuna, mantiveram, felizmente, sua honra onde quer que viveram. Dona Estefânia, admirada e surpreendida, estivera escutando as palavras de Leocádia e não podia acreditar, embora estivesse vendo, que pudesse haver tanta ponderação em tão pouca idade, pois, a seu parecer, julgava que a môça deveria ter vinte anos mais ou menos; sem falar-lhe ou responder-lhe qualquer palavra, ouviu tôdas as palavras que a môça quis dizer-lhe e que foram suficientes para contar-lhe a malandragem do filho, sua desonra, o rapto, o cobrir-lhe os olhos, o trazê-la para aquêle aposento, os sinais que a fizeram reconhecer o que suspeitava; para confirmar suas palavras, tirou do peito o crucifixo que havia levado e disse: - Tu, Senhor, que fôste testemunha da violência, sê juiz do reparo que me deve ser feito; levei-te de cima daquela escrivaninha com o propósito de te lembrar sempre a ofensa feita, não para pedir-te vingança, que não a quero, mas para pedir-te que me desses algum consôlo para eu levar com paciência minha desgraça. Êste menino, senhora, pelo qual haveis demonstrado o extremo de vossa caridade, é vosso verdadeiro neto; quis o céu que êle fôsse atropelado para que, trazendo-o a vossa casa, pudesse eu encontrar nela, como espero encontrar, senão o remédio que melhor me convenha para minha desventura, pelo menos um meio para que eu possa relevá-la. Dizendo isto, abraçada ao crucifixo, caiu desmaiada nos braços de Estefânia, que, enfim, como mulher e como nobre, em quem a compaixão e a misericórdia costuma ser tão natural como a crueldade o é no homem, mal viu o desmaio de Leocádia, juntou seu rosto ao dela, derramando sôbre êle tantas lágrimas que não foi preciso espargir outra água em Leocádia para que ela voltasse a si. Estando as duas desta maneira, o cavalheiro, marido de Estefânia, entrou, trazendo Luisinho pela mão e, vendo êle o pranto de Estefânia e o desmaio de Leocádia, pediu pressuroso para lhe dizerem o porquê da situação. O menino abraçava a mãe, que julgava sua prima, a sua avó, que julgava sua benfeitora, e perguntava também por que choravam. - Tenho importantes coisas a vos dizer, senhor - disse Estefânia a seu marido -, mas, para resumir, devo dizer-vos que esta môça é vossa filha e êste menino vosso neto. O que vos digo me foi revelado por essa menina e o rosto dêste menino, no qual ambos vimos o rosto de nosso filho, confirma suas palavras. - Se não vos explicardes, senhora, não vos entenderei - falou o cavalheiro. Nisto, Leocádia voltou a si e, abraçada ao crucifixo, parecia estar transformada em um mar de pranto. Os fatos haviam colocado o cavalheiro em grande confusão e dela só saiu quando sua mulher lhe contou tudo o que Leocádia lhe havia dito; êle, pela divina permissão do céu, em tudo acreditou, como se o houvessem provado com muitas e verdadeiras testemunhas. Consolou e abraçou Leocádia, beijou o neto e naquele mesmo dia mandou um mensageiro a Nápoles avisar ao filho para vir logo, porque lhe tinham arranjado casamento com uma jovem excepcionalmente bela e que muito lhe convinha. Não deixaram que Leocádia nem seu filho voltassem mais à casa de seus pais, que, contentíssimos com o bom sucesso da filha, davam sem cessar infinitas graças a Deus. O mensageiro chegou a Nápoles e Rodolfo, desejoso de possuir a tão formosa mulher descrita pelo pai, depois de dois dias que recebeu a carta, tendo-se-lhe oferecido oportunidade, embarcou com seus dois camaradas, que ainda não o haviam deixado, em quatro galeras que estavam prestes a vir para Espanha, e sem nenhum empecilho chegou, dentro de doze dias, a Barcelona e dali, pela posta, a cavalo, em outros sete chegou a Toledo e entrou em casa de seu pai, tão elegante e tão garboso que tôda a elegância e galhardia do mundo pareciam estar nêle reunidas. Os pais alegraram-se em ver a saúde e a feliz chegada do filho. Leocádia, que o observava de um lugar escondido, permaneceu quieta a fim de não trair os planos e a ordem que Dona Estefânia lhe havia dado. Os companheiros de Rodolfo quiseram ir logo para suas casas, mas Estefânia não o permitiu, por necessitar dêles para seus desígnios. Rodolfo chegou quando a noite se aproximava e, enquanto se preparava o jantar, Estefânia, acreditando, sem dúvida alguma, que êles deveriam ser dois dos três camaradas que Leocádia dissera estarem com Rodolfo na noite em que a raptaram, chamou os dois companheiros do filho e pediu-lhes insistentemente para dizerem se se lembravam de que o filho havia raptado uma mulher, em tal noite e há tantos anos atrás, pois de saber a verdade a êsse respeito dependia a honra e o sossêgo de todos os seus parentes; assim, com tantos e tais empenhos soube falar-lhes e de tal maneira assegurar-lhes que o esclarecimento do rapto não lhes traria dano algum, que êles acharam melhor confessar ser verdade que, em uma noite de verão, indo êles dois e outro amigo com Rodolfo, raptaram uma jovem, na mesma noite a que ela se referia; que Rodolfo a tinha trazido, enquanto êles detinham as pessoas de sua família; que estas, gritando, procuravam defendêla, e no outro dia Rodolfo lhes havia dito que a tinha levado para sua casa e era somente isto o que podiam responder à sua pergunta. A confissão feita pelos dois pôs fim às dúvidas que em tal caso poderiam aparecer e, assim, decidiu ela levar a cabo seu bom pensamento, que foi o seguinte: pouco antes de sentarem-se para jantar, a mãe de Rodolfo entrou a sós com êle em um aposento e, colocando-lhe um retrato nas mãos, disse-lhe: - Rodolfo, meu filho, quero dar-te um grande prazer, mostrando-te a tua espôsa; êste é seu retrato; quero-te, porém, advertir que o que lhe falta em beleza lhe sobra em virtude; ela é nobre e discreta e medianamente rica e, como teu pai e eu a escolhemos para ti, asseguro-te que é ela quem te convém. Rodolfo olhou atentamente o retrato e disse: - Se os pintores, que geralmente costumam ser pródigos na formosura do rosto que retratam, o foram também com êste, acredito, sem dúvida, que o original deve ter a mesma feiúra; para dizer a verdade, senhora minha mãe, é justo e bom que os filhos obedeçam ao que os pais mandarem, mas também é conveniente e melhor que os pais dêem aos filhos o que êles mais gostarem; e como o matrimônio é nó que se desata apenas com a morte, será bom que os laços sejam iguais e fabricados com os mesmos fios: a virtude, a nobreza, a discrição e os bens da fortuna podem muito bem alegrar a alma daquele a quem a sorte lhe deu tal espôsa, mas que a feiúra dela alegre os olhos do espôso parece-me impossível; sou môço, mas parece-me ser compatível com o sacramento do matrimônio o justo e devido prazer que os casados desfrutam, e, se êle falta, o matrimônio fraqueja e nega sua segunda finalidade; pensar, pois, que um rosto feio, que se há de ter a tôda hora diante dos olhos, na sala, na mesa e no leito, possa deleitar, digo-vos outra vez, parece-me quase impossível; por vossa vida, minha mãe, dai-me uma companheira que me alegre e que não me enfade para que, sem nos desviarmos por uma ou outra parte, ambos os dois levemos igualmente e pelo reto caminho o jugo que o céu nos impuser; se esta senhora é nobre, discreta e rica como vossa mercê diz, não lhe faltará um espôso que tenha um modo de pensar diferente do meu; uns há que buscam nobreza; outros, discrição; outros, dinheiro e outros, formosura; eu sou dêstes últimos, porque nobreza, graças ao céu, aos meus antepassados e a meus pais, eu a tenho por herança; recato, não sendo a mulher néscia ou tonta, basta-lhe que não se revele muito desembaraçada nem muito bôba para não aproveitar; quanto às riquezas, também as de meus pais fazem-me não temer que eu venha a ser pobre; busco a formosura, quero a beleza aliada ao dote de honestidade e bons costumes; se minha espôsa trouxer isto, servirei a Deus com gôsto e darei uma velhice sossegada a meus pais. A mãe de Rodolfo ficou contentíssima com suas palavras porque elas a faziam conhecer que tudo ia correndo de acôrdo com seus planos; respondeulhe que procuraria casá-lo conforme êle quisesse, que não se preocupasse, pois era fácil desmanchar o acôrdo que haviam feito para casá-lo com aquela senhora. Rodolfo agradeceu-lhe e, como chegasse a hora do jantar, foram para a mesa; estando já sentados o pai e a mãe, Rodolfo e seus camaradas, Dona Estefânia disse descuidadamente: - Como sou distraída e como trato minha hóspede! Andai - disse ela a um criado -, dizei à Senhora Leocádia que deixe de lado sua modéstia e nos venha honrar esta mesa, pois todos os que nela estão são meus filhos e seus servidores. Tudo isto fazia parte de seu plano e tudo o que havia de fazer já o sabia Leocádia. Pouco demorou para que Leocádia saísse e desse de si a mais imprevista e bela mostra que a formosura natural e composta jamais pôde dar. Por ser inverno, estava vestida com uma saia tôda de veludo negro, salpicada com botões de ouro e pérolas; o cinto e a gola, de diamantes; seus próprios cabelos, que eram longos e não excessivamente loiros, serviam-lhe de adôrno e touca; os laços, os ondeados e os reflexos de diamantes, que com êles se misturavam, ofuscavam a luz dos olhos que os olhavam. Leocádia estava bem disposta e elegante; trazia o filho pela mão e diante dela vinham duas donzelas iluminando-a com duas velas de cêra, em dois candelabros de prata. Levantaram-se todos para reverenciá-la, como se ela fôsse alguma criatura do céu que milagrosamente houvesse aparecido ali. Nenhum dos que estavam olhando-a embevecidos, parece que por estarem atordoados, pôde dirigir-lhe a palavra. Leocádia, com graça airosa e discreta polidez, cumprimentou a todos, e Estefânia, tomando-a pela mão, fê-la sentar-se a seu lado, defronte de Rodolfo. Colocaram o menino junto ao avô. Rodolfo, que de mais perto olhava a incomparável beleza de Leocádia, dizia consigo: “Se aquela que minha mãe escolheu para minha espôsa tivesse a metade desta beleza, eu me consideraria o mais feliz homem do mundo. Valhame Deus! O que vejo! Estou eu olhando, porventura, algum anjo humano?” E com isto ia-se-lhe entrando pelos olhos, para tomar conta de sua alma, a formosa imagem de Leocádia, que, enquanto o jantar não vinha, vendo também tão perto de si aquêle que já queria mais que a luz dos próprios olhos, com os quais o olhava de vez em quando, furtivamente, começou a revolver em sua imaginação o que havia passado com Rodolfo; começaram a enfraquecer em sua alma as esperanças que a mãe de Rodolfo lhe havia dado de êle tornar-se seu espôso; considerava quanto estava perto de ser feliz ou infeliz para sempre; a consideração foi tão intensa e os pensamentos tão contraditórios que lhe apertaram o coração de tal forma que começou a suar e a perder a côr a ponto de, sobrevindo-lhe um desmaio, ver-se obrigada a reclinar a cabeça nos braços de Estefânia, que, vendo-a assim, nêles a recebeu muito perturbada. Sobressaltaram-se todos e, deixando a mesa, correram para acudi-la. Porém quem mais demonstrou senti-lo foi Rodolfo, que, para chegar mais rápidamente a ela, tropeçou e caiu duas vêzes. Nem desabotoando-lhe a roupa, nem atirando-lhe água ao rosto ela voltava a si; pelo contrário, o peito e o pulso, que não lhe achavam, iam dando sinais precisos de sua morte; as criadas e os criados da casa, sem pensar, falaram em alta voz e a consideraram morta. Estas novas amargas chegaram aos ouvidos dos pais de Leocádia, que Dona Estefânia havia reservado para mais agradável ocasião. Eles, com o cura da paróquia, que com êles estava, desobedecendo às ordens de Dona Estefânia, vieram à sala. O cura chegou logo para ver se Leocádia, mesmo por sinais, dava mostras de arrepender-se de seus pecados para absolvê-la e, onde pensava encontrar apenas um desmaio, encontrou dois, porque Rodolfo estava com o rosto pendido sôbre o peito de Leocádia. A mãe deixou-o aproximar-se dela como de algo que havia de lhe pertencer; quando porém, viu que êle também estava sem sentidos, estêve a ponto de perder o seu e o perderia, se não visse que Rodolfo tornava a si, como voltou, envergonhado de o terem visto chegar ao extremo dos extremos; mas sua mãe, quase adivinhando o que o filho sentia, disse-lhe: - Não te envergonhes, filho, do extremo a que chegaste; envergonha-te, isto sim, daqueles aos quais não chegaste quando souberes o que não te quero mais esconder, embora eu pensasse revelá-lo em mais alegre ocasião; deves saber, filho de minh’alma, que esta jovem, que tenho desmaiada em meus braços, é tua verdadeira espôsa; digo verdadeira porque eu e teu pai a havíamos escolhido para ti, pois a do retrato é falsa. Rodolfo, quando ouviu isto, levado por seu amoroso e ardente desejo e, tirando-lhe o nome de espôso todos os inconvenientes que a honestidade e a decência do lugar podiam-lhe impor, inclinou-se ràpidamente ao rosto de Leocádia e, unindo seus lábios aos dela, parecia esperar que a alma dela saísse, para que a sua lhe desse acolhida. Porém, quando as lágrimas de todos cresciam ainda mais pelo desgôsto, os gritos aumentavam pela dor, a mãe de Leocádia arrancava os cabelos e seu pai a barba, os gritos de seu filho alcançavam os céus, Leocádia voltou a si e, com sua volta, retornou a alegria e o contentamento que se haviam ausentado dos corações de todos os circunstantes. Leocádia viuse nos braços de Rodolfo e com fôrça considerável procurava livrar-se dêles; porém êle lhe disse: - Não, senhora, não há de ser assim; não fica bem que luteis para livrar-vos dos braços daquele que vos tem na alma. Neste momento, Leocádia acabou de recobrar completamente seus sentidos e Dona Estefânia acabou por não levar mais adiante sua primeira determinação, dizendo ao cura que casasse logo seu filho com Leocádia; o padre assim o fêz, pois êste caso passou-se no tempo em que o matrimônio era realizado com a vontade dos nubentes apenas, sem os cuidados e prevenções justas e santas, que, agora existem; nada houve que impedisse o casamento. E, realizado, deixe-se que outra pena e outro talento mais delicado que o meu narre a alegria geral de todos os que nêle se acharam; os abraços que os pais de Leocádia deram em Rodolfo; as graças que seus pais deram ao céu; os oferecimentos de tôdas as partes; a admiração dos camaradas de Rodolfo, que tão inesperadamente viram, na mesma noite de sua chegada, tão formoso casamento, e mais ainda quando souberam, por ter Dona Estefânia contado diante de todos, que Leocádia era a jovem que seu filho havia raptado em sua companhia; Rodolfo não ficou menos admirado e, para-certificar-se, pediu a Leocádia para indicar-lhe alguma coisa que identificasse perfeitamente aquilo de que não duvidava, por parecer-lhe que seus pais o teriam averiguado bem. Ela respondeu: - Quando despertei e voltei a mim do desmaio, encontrei-me, senhor, em vossos braços, sem honra; porém, eu o dou por bem empregado, pois, ao voltar do desmaio que agora tive, encontrei-me também naqueles braços de então, mas honrada. Se esta prova não basta, bastará a da imagem de um crucifixo que ninguém, senão eu, vos pôde furtar; se deste pela falta dela e se é a mesma que está em poder de minha senhora.. - Pertenceis à minh’alma e pertencereis pelos anos que Deus o ordenar, minha querida. E, abraçando-a de nôvo, de nôvo voltaram as bênçãos e os parabéns que lhes deram. Veio o jantar e vieram os músicos, que já estavam prevenidos. Rodolfo viu-se a si próprio no espelho do rosto de seu filho; seus quatro avós choraram de alegria; não houve um só canto, em tôda a casa, que não fôsse visitado pelo júbilo, pelo contentamento e pela alegria; e, embora a noite Voasse com suas ligeiras e negras asas, parecia a Rodolfo que ia e caminhava não com asas, mas com muletas, tão grande era o desejo de ver-se a sós com sua querida espôsa. Chegou, enfim, a hora desejada, porque nada há que não tenha fim. Retiraram-se todos, tôda a casa mergulhou. Em silêncio, no qual não ficará a verdade dêsse conto, pois não o consentirão os inúmeros filhos e a ilustre descendência que deixaram em Toledo êstes dois felizes esposos, que, durante muitos e felizes anos, desfrutaram da alegria de se possuírem, de terem muitos filhos e netos, tudo isso permitido pelo céu e pela fôrça do sangue, que o valoroso, ilustre e cristão avô de Luisinho viu derramado no solo. O Ciumento Não faz muitos anos, partiu de uma aldeia de Estremadura um fidalgo, filho de pais nobres, que andou gastando como um pródigo os anos e os bens, por diferentes partes da Espanha, Itália e Flandres; ao fim de muitas peregrinações; mortos já seus pais e dissipados os seus bens, foi parar na grande cidade de Sevilha, onde não lhe faltaram ocasiões para consumir o pouco que lhe restava. Vendo-se, pois, em grande penúria e com poucos amigos, decidiuse por um recurso, comum, naquela cidade, aos que se encontram em igual situação: partiu para as Índias (Com o têrmo “Índias” indicava-se, na época de Cervantes, também a América.), refúgio e amparo dos desesperados de Espanha, abrigo dos falidos, salvo-conduto dos homicidas, apoio e proteção dos jogadores chamados “certos” pelos peritos na arte, chamariz de mulheres perdidas, engano comum de muitos e remédio particular de poucos. Partindo, nessa ocasião, uma frota para Terra firme, entendeu-se êle com o almirante, preparou a matalotagem, a esteira de esparto e, embarcando em Cádiz, deu a bênção à Espanha, enquanto a frota levantava ferros; com geral alegria deramse as velas ao vento, que soprava branda e favoràvelménte e que, em poucas horas, os fêz perder de vista a terra e enxergar as largas e espaçosas planícies do grande pai das águas, o mar Oceano. O nosso passageiro ia pensativo, revolvendo na memória os grandes e variados perigos pelos quais passara em suas peregrinações e o mau rumo que até ali seguira no caminho da existência; dessa recapitulação surgia-lhe na alma o firme propósito de mudar de vida, procurando um jeito de conservar os bens que Deus fôsse servido dar-lhe e procedendo com as mulheres mais recatadamente do que até então fizera. Encontrava-se a frota em plena calmaria enquanto Filipe de Carrizales assim se chamava o homem que nos deu assunto para nossa novela - era agitado pela tempestade interior de seus pensamentos. Tornou a soprar o vento, impelindo os navios com tanta fôrça que ninguém pôde ficar em seus lugares; Filipe de Carrizales teve que desistir de suas cogitações e entregar-se aos cuidados que a viagem lhe impunha; mas a viagem foi tão próspera que os navios chegaram sem contratempo ao pôrto de Cartagena. Resumindo, e para não perder tempo com fatos alheios à nossa novela, direi que Filipe tinha uns 48 anos quando embarcou para as índias e que, em vinte que ali passou, conseguiu, graças à sua habilidade e ao seu esfôrço, ganhar mais de 150.000 pesos bem contados. Vendo-se, pois, rico e em plena prosperidade, veio-lhe o desejo natural e que todos têm de voltar à pátria; desprezados os grandes interêsses que se lhe ofereciam, deixou o Peru, onde adquirira tanta riqueza, e, convertendo todos os seus bens em barras de ouro e prata, registrou-as, para evitar complicações, e voltou à Espanha. Desembarcou em Sanlúcar; chegou a Sevilha, tão carregado de anos como de riquezas; levantou sua fortuna sem dificuldade; procurou seus amigos: todos tinham morrido; quis então ir à sua terra natal, apesar de saber que a morte não lhe deixava parente algum. Se, quando partiu para as índias, pobre e necessitado, inúmeros pensamentos o assaltaram e não o deixavam sossegar um só instante, agora, no sossêgo da terra, assaltavam-no do mesmo modo, embora o motivo fôsse outro; se antes não dormia por ser pobre, agora não podia estar tranqüilo por ser rico, que a riqueza é fardo tão pesado para quem não está acostumado nem sabe utilizá-la como é a pobreza para aquêle que a tem por companheira constante. O ouro nos dá cuidados, a falta dêle também; mas os que não o têm contentam-se ao conseguir uma pequena quantia, e os que o têm vêem aumentados os seus tormentos quanto mais dinheiro possuem. Carrizales contemplava suas barras de ouro e prata não por ser avarento, pois aprendera a ser liberal durante seu tempo de soldado, mas por não saber o que havia de fazer com elas; assim como estavam nada lhe rendiam; tendo-as em casa serviriam de isca para os cobiçosos e atrairiam os ladrões. Morrera-lhe o desejo de voltar à vida inquieta dos negócios e parecia-lhe que, tendo a idade que tinha, possuía riquezas de sobra para passar a vida e queria passá-la em sua terra, pôr aí sua riqueza para obter rendimentos, passar nela os anos de sua velhice em tranqüilidade e sossêgo, dando a Deus o que podia, pois já dera ao mundo mais do que devia. Por outro lado, considerava que sua terra era muito pequena e que havia muita gente pobre, de modo que, estabelecendo-se aí, tornar-se-ia alvo de tôdas as importunações que os pobres costumam infligir a um vizinho rico, principalmente quando não há outro na terra que lhes possa acudir em suas misérias. Desejava ter a quem, por sua morte, deixar os grandes bens que possuía, e considerava as fôrças que lhe restavam, parecendo-lhe que poderia ainda arcar com o pêso do matrimônio, mas, vindo-lhe êste pensamento, sobressaltava-o tão grande mêdo que tais planos logo se desvaneciam como névoa dispersada pelo vento; era, por temperamento, a criatura mais ciumenta do mundo e, mesmo antes do casamento e só com a idéia de vir a casar-se, o ciúme espicaçava-o de tal modo, que, aos poucos, decidiu não se casar. Tendo assim resolvido, mas não sabendo ainda o que havia de fazer de sua vida, quis o destino que, passando um dia por uma rua, levantasse os olhos e visse, à janela, uma jovem que parecia ter uns treze ou catorze anos e dotada de tal formosura e fisionomia tão agradável, que, sem poder defender-se, o bom velho Carrizales viu a fraqueza de seus muitos anos vencida pelos poucos de Leonora, que assim se chamava a formosa jovem. E logo, sem conseguir dominar-se, começou a fazer grande quantidade de discursos; falando consigo mesmo, dizia: “Esta môça é muito bonita e, pelo aspecto da casa, não deve ser rica; ela é muito jovem; seus poucos anos são garantia contra minhas suspeitas. Casar-meei com ela; encerrá-la-ei e saberei modelá-la a meu gôsto; assim, conhecerá do mundo apenas o que eu lhe mostrar. Não sou tão velho a ponto de perder esperanças de ser pai e ter herdeiros para os meus bens. Que tenha dote ou não, é indiferente, pois quis o céu dar-me o suficiente para uma vida sem preocupações, e os ricos não devem buscar no matrimônio um negócio, mas sim o prazer, porque o prazer prolonga a vida e os desgostos entre casados só servem para abreviá-la. A sorte está lançada; esta é a sorte que o céu me reservou”. E assim, terminado êste solilóquio, repetido uma centena de vêzes, no fim de alguns dias foi falar com os pais de Leonora e soube, então, que êles, embora pobres, eram de nobre origem; comunicando-lhes Carrizales as suas intenções, falando-lhes de sua posição e riqueza, pediu-lhes a mão de sua filha. Quiseram algum tempo a fim de se informarem sôbre o que dizia, enquanto êle, Carrizales, poderia fazer indagações sôbre sua nobreza. Despediram-se; ambos colheram informações e, como fôssem elas satisfatórias, Leonora tornou-se, enfim, espôsa de Carrizales, que lhe deu como primeiro dote 20.000 ducados, tão abrasado estava o coração do velho ciumento. Mas, apenas pronunciou êle o sim de espôso, foi assaltado por um tropel de endemoninhados ciúmes e, sem motivo algum, começou a tremer e a ter cuidados que jamais tivera. A primeira manifestação de seu ciúme foi não permitir que alfaiate algum tomasse medidas à sua mulher para fazer os muitos vestidos que desejava oferecer-lhe, e, assim, andou procurando outra mulher que tivesse mais ou menos corpo de Leonora e a quem tirassem as medidas; encontrou uma rapariga pobre que serviu para êste fim e, quando Leonora provvou um vestido e achou que lhe ficava bem, serviu êste de medida para todos os outros, que foram tantos e tão lindos que os pais da desposada consideraram-se mais que felizes por terem encontrado tão bom genro, para sua alegria e para alegria dá filha. A menina estava assombrada, vendo tantas galas, pois as que ela até então usara não passavam de uma saia de fazenda grosseira e corpo de tafetá. A segunda manifestação do ciúme de Filipe foi não querer juntar-se com a espôsa antes de lhe dar casa separada, o que arranjou do seguinte modo: comprou, por 12.000 ducados, uma casa em um dos mais importantes bairros da cidade, que tinha água de nascente e jardim com muitas laranjeiras; fechou tôdas as janelas que davam para a rua, deixando-lhes apenas vista para o céu, e fêz o mesmo com tôdas as outras da casa. Na sala d entrada, que, em Sevilha, chamam vestíbulo, fêz estrebaria para uma mula e, por cima, um palheiro e um cubículo onde devia dormir o tratador, que era um velho prêto eunuco; levantou de tal maneira as paredes dos terraços que os que entravam na casa tinham de olhar para o céu em linha reta, sem poder ver outra coisa; mandou colocar uma roda, como as da portaria dos conventos, entre o vestíbulo e o pátio. Comprou um rico mobiliário para enfeitar a casa, de modo que esta, pelas tapeçarias, pelos estrados e pelos ricos dosséis, dava mostras de pertencer a um grande senhor; comprou também quatro escravas brancas e marcou-as no rosto, e mais duas negras, recém-chegadas de seu país. Combinou com um despenseiro que comprasse e lhe trouxesse à casa o que comer, mas com a condição de não dormir em sua casa e nunca ir além da roda, pela qual passaria o que trouxesse. Feito isto, arrendou parte de seus bens, depositou outra parte no banco e ficou com algum dinheiro para o que fôssi preciso. Mandou também fazer uma chave mestra que abria tôdas as portas da casa e pôs dentro destas tudo o que pôde comprar por atacado e nas estações próprias, a fim de possuir provisões para o ano todo; tendo tudo preparado desta maneira, foi à casa dos sogros pedir sua mulher, que êles entregaram com bastante lágrimas, pois pareceu-lhes que a levavam para a sepultura. A terna Leonora não sabia ainda o que o destino lhe reservara e, chorando com os pais, pediu-lhes a bênção, despediu-se dêles e, rodeada de suas escravas e criadas, dando a mão ao marido, foi para sua casa, onde Carrizales fêz a tôdas um sermão encarregando-as de guardarem Leonora e de não deixarem ninguém entrar da segunda porta para dentro, nem que fôsse o eunuco negro. A quem êle mais especialmente entregou a guarda e o bem-estar de Leonora foi a uma dama idosa de muita prudência e gravidade, que tomara como aia de Leonora e também para que fôsse superintendente de tudo o que se fizesse em casa, para governar as escravas e as duas criadas da idade de Leonora que, para a distraírem e entreterem, tomara também em sua casa. Prometeu-lhes que as trataria e as presentearia de maneira que não sentissem o isolamento e que todos os dias santos e domingos, sem faltar um só, iriam à missa, mas tão de manhãzinha que mal pudessem vê-las à luz do dia. Prometeram-lhe as criadas e escravas fazer tudo o que lhes mandava, sem tristeza, com boa vontade e ânimo; a jovem espôsa, encolhendo os ombros e baixando a cabeça, disse que não tinha outra vontade que não fôsse a de seu espôso e senhor, a quem sempre obedeceria. Feita esta prevenção, fechou-se em casa o nosso bom estremenho e começou a gozar como pôde os frutos do matrimônio, que, para Leonora, como não conhecera outros, não foram saborosos nem insípidos; e assim foi vivendo com sua aia, criadas e escravas. E tôdas, para melhor passarem o tempo, fizeram-se gulosas e poucos dias decorriam sem que preparassem muitos manjares, que o mel e o açúcar tornam saborosos. Tinham para isso, com grande abundância, tudo de que precisavam, e ao seu amo não faltava também a vontade de lhes dar, convencido de que, estando elas assim distraídas e ocupadas, não teriam tempo de pensar em seu isolamento. Leonora tratava as criadas de igual para igual, entretinha-se com o que elas se entretinham, chegando, em sua ingenuidade, a fazer bonecas e outras criancices semelhantes, que mostravam a simplicidade de sua natureza e o verdor dos seus anos; tudo isso proporcionava grandíssima satisfação ao ciumento marido, parecendo-lhe que acertara na escolha da melhor vida que soubera imaginar e que de modo algum a habilidade ou a malícia humana jamais poderia perturbar seu sossêgo; assim, só se desvelava em trazer presentes à espôsa e em conceder-lhe que pedisse todos os que lhe viessem ao pensamento, pois teria todos os que quisesse. Nos dias em que ela ia à missa, o que, como já se disse, verificava-se bem de manhãzinha, vinham seus pais e, na igreja, falavam à filha na presença do marido; êste oferecia-lhes tantos presentes que, embora tivessem pena da filha pela Clausura em que vivia, sentiam atenuado seu pesar com as inúmeras dádivas que Carrizales, em sua liberalidade, lhes dava. Levantava-se Carrizales bem cedinho e esperava a chegada do despenseiro, a quem, na noite anterior, por meio de um bilhete que punham na roda, avisavam do que devia trazer no dia seguinte; e, depois de vir o despenseiro, saía de casa, a maioria das vêzes a pé, deixando fechadas as duas portas; a da rua e a do meio: entre as duas ficava o negro. Ia então tratar de seus negócios, que eram poucos, e logo voltava, fechando-se em casa, onde se entretinha dando presentes à espôsa e agradando às criadas; tôdas lhe queriam bem, por ser de natureza franca e agradável e, sobretudo, por mostrar-se tão liberal. Desta maneira passaram um ano de noviciado e professaram naquela vida, determinando-se a levá-la assim até o fim de seus dias; e assim, seria, sem dúvida, se o astuto perturbador do gênero humano não o estorvasse, como agora o vereis. Diga-me aquêle que se tenha em conta de mais sagaz e recatado que mais preocupações haveria de tomar para a sua segurança o velho Filipe, pois nem sequer consentia que em sua casa houvesse animal algum de sexo masculino. Nunca um gato perseguiu ali os ratos, nem naquela casa ouviu-se ladrar um cão: todos eram do sexo feminino. De dia pensava e de noite não dormia; era êle a ronda e sentinela de seu lar e o Argos daquilo que tanto estimava; jamais entrou um homem além da porta do pátio. Com seus amigos negociava na rua. As figuras das tapeçarias e quadros que ornamentavam as salas eram tôdas fêmeas, flôres e florestas. A casa inteira reacendia honestidade, recolhimento e recato; até as histórias contadas pelas criadas junto da lareira durante os longos serões de inverno, por estar êle presente, não tinham qualquer sombra de lascívia. As cãs, que prateavam a cabeça do velho, pareciam a Leonora de ouro puro, porque o primeiro amor das donzelas imprime-se em sua alma como o sêlo imprime-se na cêra. Sua vigilância excessiva parecia-lhe prudente recato; pensava e acreditava que o que lhe sucedia, sucedia a tôdas as recém-casadas. Não se atreviam os seus pensamentos a transpor as paredes da casa, nem sua vontade desejava outra coisa que não fôsse a vontade do marido; só nos dias em que ia à missa via as ruas, e isto era tão cedo, que apenas ao voltar havia claridade suficiente para enxergá-las. Nunca se viu convento mais fechado, nem freiras mais guardadas, nem maçãs de ouro tão defendidas; mas com tudo isto, não pôde Carrizales prevenir nem evitar a desgraça de cair no que temia ou, pelo menos, de pensar que nela caíra. Há em Sevilha certa gente ociosa e mandriona, a quem se costuma chamar gente de bairro; são os filhos dos privilegiados e dos mais ricos, gente vadia, janota e amaneirada; é gente da qual, de seu trajar e maneira de viver, de sua condição, das leis que observam entre si, haveria muito o que dizer, mas, por muitos motivos, nos calaremos. Um dêstes janotas, que, entre êles, chamam-se peralvilhos, môço solteiro - pois aos recém-casados dão o nome de espadachins -, olhou por acaso a morada do recatado Carrizales e, vendo-a sempre fechada, teve desejos de saber quem vivia lá dentro; empenhou-se com tanto afinco e curiosidade em descobri-lo, que veio a saber tudo o que queria. Soube do gênio do velho, da formosura de sua espôsa e de que maneira a guardava; tudo isto lhe despertou o desejo de tentar, por fôrça ou habilidade, a conquista da fortaleza tão bem guardada; falou do caso a dois peralvilhos e a um espadachim, seus amigos, que logo foram de opinião que se pusessem mãos à obra, pois para tais empreendimentos nunca faltam conselheiros e ajudantes. Decidiram o modo de empreender tão difícil façanha e, como já tinham entrado muitas vêzes em tais brincadeiras, acabaram por combinar o seguinte: Loaysa, tal era o nome do peralvilho, devia fingir que ia passar alguns dias fora da cidade e não aparecer mais aos amigos, e assim fêz. Feito isto, vestiu calças de linho fino e limpo e uma camisa também limpa; por cima, pôs uma roupa tão rôta e remendada, que mendigo algum da cidade parecia mais andrajoso; cortou um pouco a barba que usava, tapou um ôlho com um pedaço de pano, pôs uma atadura muito apertada numa das pernas e, apoiando-se em duas muletas, transformou-se em um pobre paralítico, de tal modo que não o igualava o maior estropiado. Com êsse disfarce ia tôdas as noites à porta da casa de Carrizales, que já estava fechada, permanecendo o negro, que se chamava Luís, encerrado entre as duas portas. Colocado ali, Loaysa pegava de uma guitarra um tanto sebenta e sem algumas cordas e, como fôsse um pouco músico, começava a tocar algumas modinhas alegres, mudando a voz para não ser reconhecido. Entoava, sem perda de tempo, cantigas de mouros e mouras como doido, com tanta graça, que as pessoas que passavam pela rua ficavam a escutá-lo e, enquanto cantava, estava sempre rodeado de rapazes; o negro Luís, aplicando o ouvido às portas, permanecia prêso à música do peralvilho e daria um braço para poder abrir a porta e escutá-lo mais à vontade: tal é a inclinação que os negros têm para a música. E quando Loaysa queria que seus ouvintes o deixassem, calava-se, guardava a guitarra e, pegando as muletas, ia-se embora. Quatro ou cinco vêzes êle havia tocado para o negro - que só para êle o fazia -, pois achava que o desmoronamento daquele edifício deveria começar por ali; não lhe saiu errado tal pensamento, porque, chegando, como de costume, uma noite à porta, começou a afinar a guitarra e percebeu que o negro estava já atento; aproximando-se aos gonzos da porta, disse-lhe: - Seria possível, Luís, dar-me um pouco de água, pois estou morto de sêde e não posso cantar? - Não - disse o negro -, porque não tenho a chave desta porta e não há abertura por onde possa passar a água. - E quem tem a chave? - perguntou Loaysa. - Meu amo - respondeu o negro -, que é o homem mais ciumento do mundo. Se êle soubesse que estou agora falando aqui com alguém, não sei o que seria de minha vida. Mas, quem sois vós que me pedis água? - Eu - respondeu Loaysa - sou um pobre aleijado de uma perna, que ganho a vida pedindo esmolas pelo amor de Deus; ensino também a tocar guitarra a alguns “morenos” e outras pessoas pobres e já tenho três negros, escravos de três presidentes da Câmara Municipal, a quem ensinei de tal modo que podem cantar e tocar em qualquer baile ou em qualquer taverna e por isso me pagaram muitíssimo bem. - Muito melhor vos pagaria eu - disse Luís - se pudesse tomar umas lições, mas não é possível por causa de meu amo, que saindo pela manhã, fecha a porta da rua e quando volta faz o mesmo, deixando-me prêso entre as duas portas. - Por Deus, Luís - replicou Loaysa, que já sabia o nome do negro -, se descobrísseis a maneira de eu poder entrar algumas noites para vos dar lições, em menos de quinze dias eu vos tornaria tão hábil tocador de guitarra, que poderíeis tocá-la sem vergonha alguma, em qualquer esquina; porque deveis saber que tenho muito jeito para ensinar e, além disso, já ouvi dizer que sois dotado de muita habilidade; e eu, a julgar pelo vosso timbre de voz, creio que deveis cantar muito bem. - Não canto mal - respondeu o negro -, mas de que me serve se não sei cantiga alguma, a não ser aquela da estrêla Vênus, ou esta: Por um verde prado, e a que está em moda e diz assim: Aos ferros de uma grade a mão trêmula agarrada? - Tudo isso não vale um tostão, comparado com o que eu vos poderia ensinar - disse Loaysa -, porque sei tôdas as cantigas do mouro Abindarraz e as de sua dama Jarifa e tôdas as que contam a história do grande sofi (Sofi: Antigo título dos soberanos da Pérsia.) Tomunibeyo e as da sarabanda do divino; são tão boas que até fazem pasmar os portugueses; ensino isto de tal maneira e com tanta facilidade, que, ainda que não tivésseis pressa de aprender, mal teríeis comido três ou quatro pitadas de sal e já vos veríeis músico de mão cheia em qualquer espécie de guitarra. O negro suspirou e disse: - Que adianta tudo isso se não sei como posso meter-vos em casa? - Isso não é problema - disse Loaysa. - Procurai tirar as chaves ao vosso amo e eu vos darei um pedaço de cêra, onde as imprimireis de forma a ficarem bem marcadas; pelo muito afeto que vos tomei, conseguirei com que um serralheiro, meu amigo, faça as chaves e assim poderei entrar de noite e ensinarvos melhor que o preste (Preste: Sacerdote que celebra a missa cantada.) João das índias; pois acho grande pena perder-se uma voz como a vossa, faltando-lhe o arrimo da guitarra; deveis saber, irmão Luís, que a melhor voz do mundo perde seu quilate quando não é acompanhada por instrumento, seja guitarra, cravo, órgão ou harpa; mas o que mais convém à vossa voz é a guitarra, por ser o mais manejável e menos dispendioso de todos os instrumentos. - Parece-me tudo muito bem - replicou o negro -, mas não pode ser, pois as chaves nunca vêm à minha mão nem meu amo as larga das suas; dormem, noite e dia, debaixo de seu travesseiro. - Fazei então outra coisa, Luís - disse Loaysa -, se é que tendes vontade de ser um grande músico, pois se não a tendes não vejo por que hei de me cansar aconselhando-vos. - Se tenho vontade? - replicou Luís. - E tanta, que a tudo me sujeitarei, seja o que fôr, para chegar a ser músico. - Já que é assim - disse o peralvilho -, eu vos darei, por debaixo da porta, tirando vós alguma terra da soleira para fazer um vão, eu vos darei uma torquês e um martelo com que podereis, de noite, tirar os pregos da fechadura com muita facilidade, e tornaremos a pôr a chapa de tal modo que ninguém poderá perceber que foi despregada; e, estando eu dentro, fechado convosco no palheiro, ou onde dormis, apressar-me-ei tanto no que tenho de fazer, que vereis mais do que vos disse, para proveito de minha pessoa e aumento de vossa sabedoria. E do que havemos de comer não tenhais cuidado, pois levarei provisões para nós dois e para mais de oito dias, pois tenho discípulos e amigos que não me deixarão passar mal. - Quanto à comida - replicou o negro -, nada haverá que recear: com a ração que me dá meu amo e com os restos que me dão as escravas, sobraria comida, ainda que Fôssemos mais dois. Que venha êsse martelo e a torquês, que eu farei na soleira, por debaixo da porta, lugar onde caibam e tornarei a tapar, cobrir com barro e, ainda que dê algumas marteladas para tirar a chapa, meu amo dorme tão longe desta porta, que será milagre ou grande desgraça nossa se as ouvir. - Então, com a graça de Deus - disse Loaysa -, daqui a dois dias, Luís, tereis tudo o que é necessário para pôr em execução o vosso virtuoso propósito; tomai cuidado para não comer coisas ardidas, porque não dão proveito algum e só causam dano à voz. - Nada me enrouquece tanto - respondeu o negro - como o vinho, mas não me privarei dêle nem por tôdas as vozes do mundo. - Não é preciso chegar a tanto - disse Loaysa -, nem Deus permita tal coisa; bebei, filho, bebei e bom proveito. Que vinho que se bebe com moderação jamais fêz mal a ninguém. - Bebo com moderação - replicou o negro -, tenho aqui uma caneca que leva uma medida bem contada; são as escravas que a enchem para mim sem que meu amo o saiba; e o despenseiro traz-me, às escondidas, uma botija de duas medidas que serve para as faltas da caneca. - Pois eu vos digo - tornou Loaysa -, isto me parece muito bom; enxuta, a garganta não grunhe nem canta. - Ide com Deus - disse o negro -, mas não deixeis de vir cantar tôdas as noites, enquanto não trouxerdes o que ficou combinado, que já me coçam os dedos, tal é o desejo que tenho de vê-los postos na guitarra. - E não hei de vir? - replicou Loaysa. - E com modinhas novas. - É isso mesmo que peço - disse Luís. - E agora, canta-me alguma coisa para que eu possa deitar-me satisfeito; quanto ao pagamento, ficai sabendo, senhor pobre, que vos hei de pagar melhor que um rico. - Deixemos isso para depois - disse Loaysa -, pagar-me-eis segundo as lições que vos der; escutai por enquanto esta modinha; quando eu estiver aí dentro, será muito melhor ainda. - Em boa hora havereis de prová-lo - respondeu o negro. Terminado êste longo colóquio, Loaysa cantou uma cantiga muito engraçada, que deixou o negro contente e satisfeito, não vendo a hora de abrir a porta ao músico. Com mais ligeireza que as muletas poderiam deixar prever, Loaysa, mal afastou-se da porta, foi encontrar-se com os amigos, dando-lhes conta do bom andamento da emprêsa, que lhes prometia fim ainda melhor. Encontrou-os e contou-lhes o que combinara com o negro; no dia seguinte arranjaram ferramentas para quebrar qualquer prego, como se fôsse de pau. Não se esqueceu o peralvilho de voltar a tocar para o negro e êste também não se esqueceu de cavar na soleira da porta o buraco por onde coubesse o que seu mestre haveria de lhe trazer, disfarçando-o de maneira que só quem para ali olhasse com malícia e suspeita poderia descobri-lo. Na segunda noite, Loaysa passou-lhe a ferramenta e Luís deu mostras de sua fôrça, pois, quase sem esfôrço, viu os pregos quebrados e a chapa da fechadura nas mãos; abriu a porta, recolheu o seu orfeu e mestre; quando o viu com as duas muletas e tão andrajoso, com a perna tão embrulhada em ataduras, ficou admirado. Loaysa não estava com o pano no ôlho por não ser necessário e, nem bem entrou, abraçou o seu bom discípulo, beijou-o na face e logo lhe pôs nas mãos um odre de vinho, uma caixa de conservas e outras coisas boas, que levava em uns alforjes bem providos. Largando as muletas, como se não sofresse de mal algum, começou a dar cabriolas; o negro admirou-se ainda mais e Loaysa lhe disse: - Sabereis, irmão Luís, que aminha entrevação não provém de enfermidade, mas do meu engenho para ganhar o pão de cada dia pedindo esmola pelo amor de Deus e, servindo-me dela e da minha música, para levar a melhor vida do mundo, onde todos aquêles que não forem engenhosos e inventivos morrerão de fome; vereis isto, no decorrer de nossa amizade. - Assim será - disse o prêto. - Mas vamos agora pôr outra vez esta chapa em seu lugar, de modo que não se dê pela sua mudança. - Então vamos lá - disse Loaysa. E, tirando alguns pregos de seus alforjes, assentaram a fechadura exatamente como dantes; com isto o negro ficou contentíssimo; subindo Loaysa para o aposento que Luís tinha no palheiro, acomodou-se aí o melhor que pôde. O prêto acendeu então um rôlo de cêra e, sem mais demoras, Loaysa pegou a guitarra e, tocando-a baixinho e suavemente, arrebatou de tal maneira o pobre discípulo que o pôs fora de si. Tendo tocado um pouco, foi buscar as provisões e Luís bebeu do odre com tanto gôsto que ficou mais fora de si ainda. Ordenoulhe Loaysa, em seguida, que tomasse sua lição e, como o pobre negro tinha quatro dedos de vinho na cabeça, não acertava um só ponto; apesar disso, Loaysa convenceu-o de que já sabia pelo menos duas modinhas; e o melhor era que o negro acreditava e tôda noite não fêz outra coisa senão tocar a guitarra desafinada e à qual faltavam algumas cordas. Dormiram ambos as poucas horas que lhes restavam da noite, e, por volta das 6 horas da manhã, Carrizales desceu e abriu a porta do meio e também a da rua; estêve esperando o despenseiro, que veio dali a pouco, deu a comida pela roda e foi-se embora. Carrizales chamou então o negro, a fim de que viesse pegar a cevada para a mula e sua própria comida; depois, foi-se o velho, deixando bem fechadas ambas as portas, sem dar pelo que se fizera na da rua, o que muito alegrou ao mestre e ao discípulo. Apenas o amo saiu de casa, o negro pegou a guitarra e começou a tocar de tal maneira que tôdas as criadas o ouviram e, pela roda, perguntaram-lhe: - Que é isto, Luís? Desde quando tens guitarra e quem te deu? - Quem deu? - respondeu Luís. - O melhor músico que há no mundo e o que há de me ensinar, em menos de seis dias, mais de 6.000 modas. - E onde está êsse músico? - perguntou a aia. - Não está muito longe daqui - respondeu o negro. - E, se não fôsse por vergonha e pelo mêdo que tenho de meu senhor, talvez eu vos pudesse mostrálo e, por minha fé, folgaríeis em vê-lo. - E onde pode êle estar e como poderemos vê-lo - replicou a aia -, se nesta casa jamais entrou outro homem que não fôsse nosso amo? - Pois bem - disse o negro -, não vos quero dizer mais nada até que vos prove o que sei e o que êle me vai ensinar. - Por certo - disse a aia -, que, se não é algum demônio, não sei quem possa fazer-te músico em tão pouco tempo. - Vamos - tornou o negro -, que ouvireis e vereis algum dia o que vos digo. - Isto não pode ser - disse uma das criadas -, porque não temos janelas para a rua e não nos é possível ver nem ouvir ninguém. - Está certo - disse o negro -, mas para tudo há remédio, a não ser para a morte; sobretudo, se souberdes ou quiserdes guardar segrêdo. - E não havíamos de nos calar, irmão Luís? - falou uma das escravas. Calaremos mais do que se fôssemos mudas, pois juro, amigo, que sou doida para ouvir uma boa voz; porque, desde que aqui nos emparedaram, não temos ouvido nem mesmo o canto dos pássaros. Loaysa escutava esta conversa com enorme satisfação, parecendo-lhe que tôdas as coisas se encaminhavam para a realização de seus desejos e que a boa sorte se havia encarregado de guiá-las segundo sua vontade. As criadas despediram-se, prometendo-lhes o negro que, quando menos pensassem, haveria de chamá-las para ouvir uma linda voz; e, com mêdo de que o amo voltasse e o encontrasse conversando com elas, deixou-as e recolheu-se ao seu quarto. Queria tomar lição, mas não se atreveu a tocar de dia, temendo que o amo o ouvisse; êste voltou daí a pouco e, fechando as portas segundo o seu costume, trancou-se em casa. Quando, naquele dia, uma negra veio à roda trazer a comida de Luís, disse-lhe ele que, à noite, depois que o amo dormisse, descessem tôdas ali, a fim de ouvirem a voz da qual lhes falara. A verdade é que, antes de dizer isso, pedira insistentemente ao mestre que fizesse o favor de cantar e tocar, naquela noite, ao pé da roda, a fim de que ele pudesse cumprir a promessa que fizera às criadas de fazê-las ouvir uma belíssima voz, assegurando-lhe que seria muito presenteado por tôdas elas. Loaysa fez-se um pouco de rogado para fazer o que tanto desejava; mas, por fim, disse que faria o que seu bom discípulo estava a lhe pedir, só para lhe dar prazer e sem ter qualquer outro interêsse. O negro abraçou-o e deu-lhe um beijo na bochecha, em sinal da alegria que lhe havia causado o favor prometido, e, naquele dia, Loaysa comeu tão bem como se estivesse em sua própria casa, e talvez melhor. Chegou a noite e na metade dela, ou talvez pouco antes, ouviu-se cochichar perto do tôrno; Luís entendeu logo que eram as mulheres que tinham chegado e, chamando seu mestre, desceram ambos do palheiro com a guitarra encordoada de nôvo e muito bem afinada. Luís perguntou então quem e quantas eram as que escutavam. Responderam-lhe que eram tôdas, menos a senhora, que dormia ao lado do marido, o que contrariou Loaysa; mas, apesar disso, quis dar início à sua empresa e contentar o discípulo; tocando suavemente a guitarra, tirou tais sons que deixou o negro admirado e arrebatado o grupo de mulheres que o escutava. Mas que direi eu do que elas sentiram quando o ouviram tocar o Pésame de Ello e acabar com o endiabrado som de uma sarabanda, completamente nova, naquela época, na Espanha? Não ficou uma velha sem bailar, nem houve môça que não se desconjurasse, tudo em meio de um estranho silêncio e sempre com espião e sentinelas para espreitar se o velho acordava. Loaysa também cantou umas coplas da Seguida, levando ao máximo o prazer do auditório, que pediu encarecidamente ao negro para dizer-lhe o nome de tão milagroso músico. Disse-lhe o negro que era um pobre mendigo, o mais desembaraçado e gentil homem que havia em tôda a pobreza de Sevilha. Pediram-lhe então que descobrisse maneira de elas poderem vê-lo e que não o deixassem partir, pelo menos durante quinze dias, pois o presenteariam muito e lhe dariam tudo o que precisasse. Perguntaramlhe como conseguira metê-lo em casa. Luís nada lhes respondeu; quanto ao resto, disse-lhes que, para poder vê-lo, deveriam fazer um pequeno buraco na roda, que depois o tapariam com cêra, e, a respeito de segurá-lo em casa, prometeu que tudo faria. Loaysa falou-lhes também, oferecendo-lhes seus préstimos com tão lindas palavras, que logo perceberam não virem elas do talento de um simples mendigo. Pediram-lhe que voltasse na noite seguinte, porque tratariam de convencer sua senhora a vir escutá-lo, apesar do sono do amo, leve não pelos seus muitos anos e sim pela fôrça do ciúme. Loaysa respondeu que, se elas gostassem de ouvi-lo sem aquêle sobressalto, lhes daria uns pós para deitarem no vinho do velho e que o fariam dormir um sono pesado e mais longo que de costume. - Valha-me Deus! - exclamou uma das donzelas. - Se isso fôsse verdade, que grande ventura nos teria entrado pela porta adentro, sem darmos por isso e sem o merecermos! Não seriam êsses pós de sono para êle, e sim de vida para tôdas nós e para minha pobre senhora Leonora, sua mulher, pois não a larga nem ao sol nem à sombra, nem a perde de vista um só momento. Ai, meu rico senhor! Traga êsses pós e Deus lhe dê em troca todo o bem que deseja! Vá e não demore; traga-os, meu senhor, que eu me ofereço para misturá-los no vinho e servi-lo; e tomara Deus que o velho dormisse três dias e três noites, que outros tantos teríamos nós de glória! - Pois eu os trarei - disse Loaysa. - E são de tal espécie que não fazem mal a quem os toma e seu único efeito é provocar um sono pesadíssimo. Pediram-lhe tôdas que trouxesse os pós quanto antes e, combinando fazer para a noite seguinte um buraco na roda com uma verruma e trazer sua senhora para que o visse e ouvisse, despediram-se; o negro, embora fôsse quase de madrugada, quis tomar lição, que Loaysa lhe deu de boa vontade, e deu-lhe a entender que não havia encontrado melhor ouvido que o seu entre todos os discípulos que tinha; e não sabia o pobre negro, nem jamais o soube, entoar um só compasso de música! Os amigos de Loaysa tinham o cuidado de vir à noite escutar por entre as portas da rua, a ver se o amigo lhes dizia algo ou precisava de alguma coisa; naquela noite, fazendo um sinal que tinham combinado, percebeu Loaysa que estavam à porta e pelo buraco da fechadura deu-lhes conta do bom andamento do negócio, pedindo-lhes encarecidamente que buscassem alguma droga para provocar sono, a fim de dá-la a Carrizales, pois ouvira dizer que existia certo pó que produzia tal efeito. Disseram-lhe que tinham um médico que poderia darlhes o melhor remédio que conhecesse, se é que tal remédio existia; animando-o a prosseguir na emprêsa e prometendo-lhe voltar na noite seguinte, em breve se despediram. Chegou a noite e o bando das pombas acudiu ao chamado da guitarra. Com elas veio a ingênua Leonora, temerosa e receando que o marido acordasse; subjugada pelo temor, não queria vir, mas as criadas, sobretudo a aia, disseramlhe da suavidade da música e do grande talento do cantor mendigo, que, embora não o tivessem visto, exaltavam mais do que a Absalão e Orfeu, e a pobre senhora, convencida e persuadida pelo que elas diziam, viu-se arrastada a fazer o que não tinha nem nunca tivera vontade. O primeiro cuidado das mulheres foi abrir um furo na roda com a verruma, por onde pudessem ver o músico, que não se encontrava mais em trajes de mendigo e sim com amplos calções de fina sêda avermelhada, à marinheira, um gibão do mesmo tom com enfeites de ouro em trançado, gorro de cetim da mesma côr e gola engomada com grandes pontas e rendas, que tudo isso trouxera nos alforjes, imaginando que se havia de ver em ocasião que lhe conviesse mudar de roupa. Era jovem de gentil aspecto e bem parecido e, como havia tanto tempo que tôdas aquelas mulheres estavam acostumadas a ver diante de si o velho amo e senhor, ao verem Loaysa, pareceu-lhes ter diante de si um anjo. Espreitava uma pelo buraco feito na roda, e logo outra; e, para que o pudessem ver melhor, o negro levantava e abaixava em volta dêle o rôlo de cêra aceso. E, depois que tôdas o viram bem, até as escravas negras, Loaysa pegou a guitarra, tocou e cantou naquela noite tão bem que acabou deixando-as suspensas e atônitas, tanto as velhas como as môças, e tôdas pediram a Luís para achar um jeito de o senhor seu mestre entrar na casa, a fim de que pudessem ouvi-lo e vê-lo de mais perto e não de qualquer maneira como pelo buraco, nem com o sobressalto em que estavam ao encontrarem-se tão longe do lugar onde o amo dormia e sujeitas a serem apanhadas em flagrante, o que não poderia acontecer se tivessem o músico escondido dentro de casa. Leonora opôs-se a isto com ardor, dizendo que não se fizesse tal coisa, porque lhe pesaria na alma, e que assim estava bem, pois dali podia ver e ouvir sossegadamente e sem perigo para sua honra. - Que honra? - disse a velha. - Isso de honra é lá com o rei! Fique Vossa Mercê fechada com seu Matusalém, mas deixe-nos folgar como pudermos. Tanto mais que êste senhor parece tão honrado que certamente nada quererá de nós além do que quisermos. - Eu, minhas senhoras - acudiu Loaysa -, vim aqui trazido apenas pelo desejo de servir a Vossas Mercês, com tôda minha alma e vida, condoído de vossa clausura e do tempo que perdeis nesta espécie de vida. Sou, juro pela vida de meu pai, homem tão simples, tão manso, de tão bom gênio e tão obediente que nada farei senão o que mandardes. E se qualquer de Vossas Mercês disser: “Mestre, sentai-vos aqui; mestre, passai para ali, chegai-vos cá, ide para acolá”, assim farei, como o cão mais manso e bem ensinado que salta pelo rei da França. - Se fôr assim - disse a inocente Leonora -, que meio haveremos de arranjar para que o senhor mestre entre em casa? - Bom - disse Loaysa -, Vossas Mercês procurarão um jeito de tirar em cêra o molde da chave desta porta do meio e eu me encarregarei de arranjar as coisas, de modo que, amanhã à noite, tenhamos outra chave que nos possa servir. - Quem tiver essa chave - disse uma criada -, tem as da casa tôda, porque é chave-mestra. - Não vejo nisso nenhum inconveniente - replicou Loaysa - De certo - disse Leonora -, mas êste senhor há de jurar primeiro que, depois de estar aqui dentro, nada fará senão cantar e tocar quando lhe pedirem, e que há de se manter fechado quietinho onde o pusermos. - Sim, juro - disse Loaysa. - Nada vale êsse juramento - respondeu Leonora. - Há de jurar pela vida de seu pai, há de jurar pela cruz e beijá-la de modo que tôdas possamos ver. - Juro pela vida de meu pai - disse Loaysa -, e por êste sinal-da-cruz que beijo com minha bôca impura. E, fazendo uma cruz com os dedos, beijou-a três vêzes. Feito isso, disse outra das criadas: - Olhe, senhor, não se esqueça dos pós, que são o mais importante de tudo. Assim terminou a conversa daquela noite, ficando todos muito contentes com estas combinações. E o destino, que ia encaminhando os negócios de Loaysa cada vez melhor, trouxe àquelas horas, que já eram 2 da madrugada, os amigos, que fizeram o sinal de costume: um toque de trompa de Paris; Loaysa falou-lhes, prestando-lhes conta do que se passara, e perguntou-lhes se traziam os pós, ou coisa semelhante, como havia pedido, para adormecer Carrizales; contou-lhes também o caso da chave-mestra. Responderam-lhe que, na noite seguinte, trariam um ungüento de tal virtude que, untando-se com êle os pulsos e a fronte de qualquer pessoa, logo provocava um sono tão profundo que não se podia despertar antes de dois dias, a não ser que se lavasse, com vinagre, as partes untadas; que lhes desse o molde da chave, pois também a mandariam fazer com facilidade. Com isto, despediram-se; Loaysa e seu discípulo dormiram o pouco tempo que lhes restava da noite, esperando Loaysa ansiosamente pela noite seguinte, desejoso de saber se as mulheres cumpririam o que, a respeito da chave, tinham-lhe prometido. E, embora o tempo pareça lento e preguiçoso aos que esperam, corre, na verdade, junto ao próprio pensamento, e depressa chega ao término, porque não pára nem descansa. Chegou, pois, a noite e a hora costumeira da reunião na roda, onde acudiram tôdas as criadas da casa, grandes e pequenas, negras e brancas, porque estavam tôdas desejosas de ver, dentro de seu serralho, o senhor músico; mas Leonora não apareceu e, perguntando Loaysa por ela, responderam-lhe que estava deitada com sua sentinela, que fechava a porta do quarto a chave e, depois de a ter fechado, colocava debaixo do travesseiro, e que a senhora lhes havia dito que, adormecido o velho, procuraria tirar-lhe a chavemestra para fazer-lhe o molde, que já tinha a cêra preparada e que dali a pouco haviam de ir buscá-la na gateira da porta. Loaysa ficou admirado com as precauções do velho; mas nem por isso desistiu de seu propósito e, estando as coisas neste pé, ouviu a trompa de Paris. Correu à porta e, pela abertura da soleira, deram-lhe os amigos um frasquinho do tal ungüento de que lhe haviam falado; Loaysa pegou-o e disse-lhes para esperarem um pouco, que lhes daria o molde da chave; voltou para a roda e disse à aia, que era a que se mostrava mais empenhada em fazê-lo entrar em casa, que levasse aquêle frasco à Senhora Leonora, explicando-lhe a propriedade do ungüento, e que procurasse untar o marido com tal jeito que êle não o sentisse, que veria aí maravilhas. A aia assim fêz e, chegando-se à gateira, encontrou Leonora estendida no chão e com o rosto na abertura. Estendendo-se a aia, da mesma maneira, do lado de fora, chegou a bôca ao ouvido de sua senhora e disse-lhe baixinho que trazia o ungüento, explicandolhe como deveria servir-se dêle. Ela pegou o frasco e respondeu que não pudera, demaneira alguma, tirar a chave do marido, porque êle não a guardara debaixo do travesseiro, como de costume, e sim entre os colchões, quase debaixo de seu corpo; mas dissesse porém ao mestre que, se o ungüento tinha a virtude que êle atribuía, tiraria, com facilidade, a chave tôdas as vêzes que quisessem e, assim, não seria necessário moldá-la na cêra. Recomendou-lhe que, sem demora, fôsse dar êste recado e voltasse para ver o efeito que o ungüento produzia, porque pensava untar, no mesmo instante, o marido. A aia desceu e deu o recado a Loaysa; êle despediu os amigos que esperavam pela chave. Trêmula, hesitante e quase sem se atrever a respirar, Leonora untou os pulsos do marido e também as narinas; quando as tocou, pareceu-lhe que êle estremecia e ela ficou meio morta de mêdo, pensando que êle ia surpreendê-la em flagrante. Por fim, acabou lá, do melhor modo que pôde, de untar tôdas as partes que lhe tinham dito ser necessário, e foi o mesmo que se o tivesse embalsamado para a sepultura. Pouco tardou o afamado ungüento em dar claros sinais de sua eficácia, porque o velho começou logo a soltar roncos tão fortes que podiam ser ouvidos da rua; mas êste profundo ressonar, aos ouvidos da espôsa, era como se fôsse música mais afinada que a do mestre de seu escravo negro; e, ainda mal convencida do que via, chegou-se a êle, sacudindo-o um pouco, e depois com mais fôrça, para ver se o despertava; atreveu-se a tanto que chegou a virá-lo na cama completamente, sem que o velho despertasse. Assim que verificou isto, foi à gateira da porta e, em voz baixa, chamou a aia que ali a estava esperando, dizendo-lhe: - Podes felicitar-me, irmã, que Carrizales dorme melhor que um morto. - Pois o que esperais para lhe tirar a chave, senhora? perguntou a aia. Lembrai-vos de que o músico espera há mais de uma hora. - Espera, irmã, que já vou buscá-la - respondeu Leonora E, voltando para junto da cama, meteu a mão por entre os colchões e tirou a chave sem que o velho percebesse; tomando-a nas mãos, começou a saltar de alegria e, sem mais esperar, abriu a porta e deu a chave à aia, que a recebeu com a maior alegria do mundo. Leonora ordenou-lhe que abrisse a porta ao músico e o trouxesse para os corredores, pois ela não ousava sair dali receando pelo que pudesse acontecer; mas que, antes de mais nada, obrigasse o músico a ratificar seu juramento de fazer apenas o que elas lhe ordenassem e, se êle não o quisesse confirmar fazendo-o de nôvo, que não lhe abrisse a porta de maneira alguma. - Assim será - disse a aia -, e por minha fé que não há de entrar se não jurar e não tornar a jurar e beijar a cruz seis vêzes. - Não lhe imponhas a quantia - disse Leonora -, que êle a beije lá quantas vêzes quiser; exige, porém, que jure pela vida de seus pais e de tudo o que mais estima, porque com isto estaremos seguras e nos fartaremos de ouvi-lo cantar e tocar, pois no meu entender o faz maravilhosamente. E vai, não te demores mais, para que não gastemos a noite em conversa. Arregaçando as saias, a velha, com ligeireza nunca vista, correu para a roda onde estava reunida tôda a gente da casa e, mostrando a chave a todos, o contentamento geral foi tanto que a ergueram em triunfo, como se ela fôsse um catedrático: “Viva! viva!”, ainda mais quando lhes disse que não havia necessidade de tirar o molde da chave porque, enquanto o velho untado dormia, podiam aproveitar bem da casa, tôdas as vêzes que quisessem. - Pois então, amiga - disse uma das môças -, abra-se a porta e entre êste senhor, que há muito tempo espera, e vamos lá ouvir música até dizer chega! - Mas - replicou a aia - antes de entrar há de fazer juramento como na noite passada. - Ele é tão bom - disse uma das escravas - que não reparará em juramentos. A aia abriu então um pouquinho a porta e, conservando-a entreaberta, chamou Loaysa, que tudo havia escutado pelo buraco da roda e que, aproximando-se da porta, quis entrar de repente; mas a aia, pondo-lhe a mão no peito, disse-lhe: - Saiba Vossa Mercê, meu senhor, que, perante Deus e perante minha consciência, digo-lhe que tôdas as que se encontram dessa porta para dentro somos tôdas virgens como as mães que nos pariram, exceto minha senhora; e eu, ainda que pareça ter uns quarenta anos, embora não tenha nem trinta ainda, pois faltam-lhe dois meses e meio, também o sou, infelizmente; se pareço velha é porque fadigas, trabalhos e desgostos acrescentam um zero ao número dos anos e às vêzes dois, conforme lhes apraz. E, sendo assim, como é, não haveria razão para que, em troca de duas, ou três, ou quatro cantigas, deitássemos a perder tanta virgindade como a que aqui se encerra; porque até esta preta, que se chama Guiomar, também é virgem. De modo que, meu prezado senhor, Vossa Mercê tem, antes de entrar em nosso reino, que fazer primeiro o juramento solene de que nada fará além do que lhe ordenarmos; se lhe parece muito o que lhe pedimos, considere que arriscamos muito mais por sua causa. E, se é que Vossa Mercê vem com boas intenções, pouco lhe há de custar o juramento, que nada custam ao bom pagador as promessas. - Muito bem e mais do que bem falou a Senhora Marialonso - disse uma das criadas. - Enfim, falou como pessoa previdente e que vê as coisas como devem ser; se o senhor não quiser jurar é melhor não vir cá para dentro. A preta Guiomar, que não era muito ladina, disse: - Por mim, jure ou não jure, entre com mil diabos, porque; por mais que jure, ao entrar, acaba esquecendo tudo. Loaysa ouviu com grande sossêgo a arenga da Senhora Marialonso e, com grave pausa e autoridade, respondeu: - Sem dúvida, senhoras minhas irmãs e companheiras, nunca tive outra intenção, nem terei, senão a de vos dar gôsto e satisfazer-vos em tudo a quanto cheguem minhas fôrças; e, sendo assim, o juramento que me pedem não será nenhum sacrifício quisera, porém, que minha palavra merecesse alguma confiança porque, sendo dada por pessoa de minha honestidade, é tão sagrada como a obrigação de uma penitência de quaresma; É preciso fazer com que Vossa Mercê saiba que debaixo de ruim capa esconde-se o bom bebedor. Mas, para que tôdas estejam tranqüilas e certas de minhas boas intenções, tomo a resolução de jurar como católico e homem de bem; e, assim, juro pela intemerata eficácia, onde mais santa e largamente se encerra, pelas entradas e saídas do santo monte Líbano e por tudo quanto em seu prefácio contém a verdadeira história de Carlos Magno com a morte do gigante Ferrabrás, de não sair nem ir além do juramento feito e das ordens que a mais humilde e mesquinha destas senhoras me der, sob pena, se outra coisa fizer ou quiser fazer, desde agora para então e desde então para agora, de dá-lo por nulo e não feito, nem válido. Chegara o bom Loaysa a êste ponto do seu juramento, quando uma das duas criadas, que o estivera escutando com atenção, levantou a voz dizendo: - Isto sim é que é um juramento de enternecer as pedras Faria muito mal se exigisse que jurasses mais, pois com o que juraste poderias entrar na própria caverna da Cabra! E, fazendo outras exclamações, meteu-o dentro de casa e tôdas as outras juntaram-se ao redor dêle. Uma foi logo dar a notícia à senhora, que estava de sentinela ao sono do marido, e, quando a mensageira lhe disse que o músico vinha subindo, Leonora alegrou-se e perturbou-se ao mesmo tempo e perguntou se êle havia jurado. A outra respondeu-lhe que sim e com um juramento que nunca ouvira em sua vida. - Pois se jurou - disse Leonora - está prêso. Como fui prudente em obrigálo a jurar! Nisto chegou a turma tôda com o músico no meio, álumiados pelo negro e pela negra Guiomar. Apenas Loaysa viu Leonora, fêz menção de atirar-se-lhe aos pés para beijar-lhe as mãos Ela, calada, fêz com que êle se levantasse, por sinais, e tôdas estavam como se fôssem mudas, sem se atreverem a falar, com mêdo de que seu senhor as ouvisse; Loaysa, porém, percebendo êste cuidado, disse-lhes que podiam falar bem alto, pois o ungüento com que estava untado seu senhor tinha tal virtude que, embora não tirasse a vida, deixava um homem como morto. - Estou certa disso - disse Leonora -, pois, se assim não fôsse, êle já teria acordado vinte vêzes, porque seus muitos achaques tornam-lhe o sono muito leve; e, depois que o untei, está roncando como um animal. - Pois, sendo assim - disse a aia -, vamos para aquela sala fronteira, onde poderemos ouvir cantar aqui êste senhor e nos alegrarmos um pouco. - Vamos - disse Leonora -, mas que Guiomar fique aqui de guarda, para que nos avise se Carrizales despertar. Guiomar respondeu: - Eu, preta, fico; brancas, vão. Que Deus perdoe a tôdas. Ficou a negra de guarda; os outros foram para a sala, onde havia um rico estrado, e, colocando o músico no centro, sentaram-se tôdas. Pegando Marialonso uma vela, começou a olhar o bom do músico de alto a baixo, e uma dizia: “Que lindo topête êle tem, tão lindo e tão ondeado!” E outra: “E que brancura de dentes! Mau ano será êste para pinhões pilados, que não os haverá mais brancos nem mais lindos!” Outra: “Ai, que olhos tão grandes e tão rasgados! E, por minha mãe, são verdes, parecem duas esmeraldas!” Esta louvava a bôca, aquela os pés e tôdas juntas fizeram dêle um minucioso estudo anatômico e uma cabidela. Só Leonora olhava para êle em silêncio e, examinando-o, achava que tinha melhor aspecto que o marido. Nisto a aia tirou a guitarra das mãos do negro e a colocou nas mãos de Loaysa, pedindo-lhe que cantasse umas coplazinhas, que andavam então muito em moda em Sevilha e que diziam: Mãe, querida mãe, Protegei-me.. Loaysa satisfez-lhe o desejo. Levantaram-se tôdas e começaram a requebrar-se, dançando. A aia sabia as coplas e cantou-as com mais entusiasmo do que com boa voz, e foram estas: Mãe, querida mãe, Protegei-me, Que, se eu não me guardar, Não me guardará ninguém. Dizem que está escrito, E com grande razão, Ser a privação A causa do apetite; Aumenta sem limite O recalcado amor; Por isso é melhor Que não me fecheis; Que, se eu não me guardar, Não me guardará ninguém. Se a vontade Por si não se guarda, Não a poderão guardar O mêdo e a posição; Romperá, na verdade, Com a própria morte, Até encontrar a sorte Que vós não entendeis; Que, se eu não me guardar, Não me guardará ninguém. Quem tem por costume O ser amorosa, Como maripôsa Irá procurar a luz, Podem guardá-la Com mil cuidados, Que tudo isto Não traz resultados; Que, se eu não me guardar, Não me guardará ninguém. É de tal modo A fôrça amorosa, Que a môça formosa Transforma em quimera: O peito é de cêra, De fogo o desejo, As mãos são de lã, De fêltro os pés; Que, se eu não me guardar, Não me guardará ninguém. Apenas tinham elas acabado de cantar e dançar esta canção, dirigida pela velha aia, quando chegou Guiomar, a sentinela, agitada, gesticulando com os pés e com as mãos, como se tivesse um ataque de epilepsia, e, com voz rouca e sumida, disse: - Senhor acordado, senhora; e, senhora, acordado senhor, e levanta-se e vem! Quem já viu um bando de pombas comendo no campo, sem recear, o que mãos alheias semearam, e que ao furioso estrépido de um tiro se alvoroça e levanta, esquecido de seu regalo, confuso e atônito cruza os ares, pode imaginar em que estado ficou o bando das bailadoras, pasmadas e temerosas, ao ouvirem a inesperada notícia trazida por Guiomar; e, procurando cada uma sua desculpa e tôdas juntas o remédio, uma por um lado, outra por outro, foram esconder-se por entre os vãos e recantos da casa, deixando o músico, que, largando a guitarra e o canto, todo atrapalhado, não sabia o que fazer. Leonora torcia suas formosas mãos; esbofeteava o rosto, embora brandamente, a Senhora Marialonso; enfim, tudo era confusão, sobressalto e mêdo. Mas a aia, que era a mais astuta e moderada de tôdas, mandou Loaysa entrar em seu aposento, resolvendo que ela e sua senhora permaneceriam na sala, pois achariam fàcilmente qualquer desculpa a dar ao senhor se êle ali as encontrasse. Escondeu-se logo Loaysa e a aia permaneceu atenta a ver se o amo aparecia e, não ouvindo rumor algum, recobrou o ânimo e, pouco a pouco, pé ante pé, foi chegando ao aposento onde dormia seu senhor e ouviu-o ressonar fortemente; assegurando-se de que êle dormia, arregaçou as saias e voltou correndo a pedir alvíssaras a Leonora do sono de seu amo, alvíssaras que Leonora lhe deu de muito boa vontade. Não quis, porém, a velha aia perder a ocasião que a sorte lhe oferecia de gozar, antes de tôdas, dos encantos que imaginava no músico; e assim, dizendo a Leonora que a esperasse na sala enquanto ela ia chamá-lo, deixou-a e entrou onde êle estava, confuso e pensativo, esperando para saber o que fazia o velho untado; maldizia a falsidade do ungüento e queixava-se da credulidade dos amigos e da imprudência que tivera, não fazendo primeiro a experiência em outra pessoa antes de fazê-la em Carrizales. Nisto chegou a aia e assegurou-lhe que o velho dormia mais e melhor. Acalmou-se, então, Loaysa, e permaneceu atento às inúmeras palavras amorosas que Marialonso lhe disse, apurando delas sua má intenção, e determinou servir-se dela como isca para pescar sua senhora. Estando os dois nesta conversa, as demais criadas, que se haviam escondido em diversas partes da casa, uma aqui, outra ali, voltaram para ver se era verdade que o amo havia despertado e, perguntando pelo músico e pela aia, souberam onde êles estavam, e tôdas, com o mesmo silêncio em que haviam entrado, chegaram-se às portas para escutar o que ambos diziam. Guiomar também se uniu ao grupo, mas faltava o negro, porque, apenas soube que o amo havia despertado, abraçou-se à guitarra e fugiu para o palheiro; aí, coberto com a manta de sua pobre cama, suava e transpirava de mêdo; mas, apesar de tudo isso, não deixava de apalpar as cordas da guitarra, tanta era - que o diabo a carregue! - a afeição que tinha pela música. As criadas ouviram os galanteios da velha e cada uma lhe disse um elogio; nenhuma lhe chamou, velha sem acrescentar um epíteto ou adjetivo, de feiticeira e barbuda, de entojada e de outras coisas, que por decôro não se escrevem; porém, o que mais causaria riso a quem as escutasse seriam as razões da preta Guiomar, que, por ser portuguêsa e não muito ladina, injuriava a aia da mais singular e engraçada maneira. Enquanto isso, os dois lá dentro chegaram à seguinte conclusão: Loaysa obedeceria à vontade de Marialonso se ela lhe entregasse primeiro sua senhora. Foi muito difícil para a aia aceder ao que o músico pedia; mas, vendo que só assim conseguiria satisfazer o desejo que já se lhe apoderara da alma, dos ossos e da medula do corpo, prometeu-lhe as coisas mais impossíveis que se podem imaginar. Deixou-o e saiu para falar com sua senhora; assim que viu a porta rodeada de tôdas as criadas, disse-lhes que se recolhessem a seus aposentos, pois na noite seguinte teriam oportunidade de gozar das músicas, com menos ou nenhum sobressalto, pois naquela noite o susto havia-lhes tirado a vontade de se divertirem. Compreenderam muito bem que a velha queria ficar só, mas não puderam deixar de obedecer-lhe, porque era grande sua autoridade. As criadas saíram e Marialonso foi para a sala falar com Leonora e persuadi-la a ceder à vontade de Loaysa, e o fêz com tão longa e habilidosa arenga, que parecia ter levado muitos dias para estudá-la. Elogiou a gentileza, o valor, a graça e os inúmeros encantos do músico; descreveu-lhe com eloqüência o maior gôsto que lhe dariam os abraços do amante jovem que os do marido velho, tranqüilizando-a sôbre o segrêdo e a duração de sua felicidade, com outras razões semelhantes a estas, que o demônio lhe pôs na língua, cheias de côres de retórica, tão demonstrativas e eficazes, que moveram o coração terno e inexperiente da ingênua e incauta Leonora, como teriam movido o mais endurecido mármore. Ó velhas aias, nascidas e utilizadas no mundo para a perdição de mil intenções boas e recatadas! Ó longas e pregueadas toucas, escolhidas para assegurar a respeitabilidade das salas e estrados, onde tomam lugar senhoras importantes, e como servis tão ao contrário do que devíeis o vosso quase indispensável ofício! Enfim, tantas coisas disse a aia, tão bem soube persuadir, que Leonora rendeu-se, Leonora enganou-se, Leonora perdeu-se, atirando por terra tôdas as precauções do prudente Carrizales, que dormia o sono da morte de sua honra. Marialonso levou pela mão e quase à fôrça a sua senhora, com os olhos cheios de lágrimas, e conduziu-a para onde estava Loaysa, e, deitando-lhes a bênção com um sorriso falso de demônio, fechou a porta, deixou-os lá dentro e pôs-se a dormir no estrado, ou, para melhor dizer, a esperar a recompensa de seu trabalho. Mas, como o cansaço das noites passadas a vencesse, adormeceu realmente no estrado. Seria muito bom, a estas alturas, perguntar a Carrizales, se não soubéssemos que êle dormia, onde estavam seus prudentes cuidados, seus receios, suas advertências, suas persuasões, os altos muros de sua casa, o não haver entrado nela, nem por sombra, alguém que fôsse do sexo masculino; a roda estreita, as grossas paredes, as janelas sem luz, a notável prisão, o grande dote que dera a Leonora, os contínuos presentes que lhe dava, o bom tratamento que dispensava às criadas e escravas, o não faltar, em nada, tudo aquilo que imaginava ser-lhes necessário ou que podiam desejar. Contudo, já ficou dito que de nada serviria perguntar-lhe, porque dormia além do necessário; e, se êle ouvisse e por acaso respondesse, não poderia dar melhor resposta que encolher os ombros, arquear as sobrancelhas e dizer: “Tudo isso derrubou pela base a astúcia, segundo creio, de um rapaz folgazão e cheio de vícios, a malícia de uma velha falsa, a inadvertência de uma jovem persuadida e enganada!” Que Deus livre a todos de tais inimigos, contra os quais não há escudo de prudência, nem espada de recato, que nos defenda e nos livre. Com tudo isto, porém, a virtude de Leonora foi tal que, na hora em que precisava dela, não lhe faltou, e opôs-se às fôrças vis de seu astuto enganador, que não foram suficientes para vencê-la; cansou-se êle em vão, ela saiu vencedora e ambos dormiram. Nisto ordenou o céu que, apesar do ungüento, Carrizales despertasse e, como era de costume, passou a mão pela cama; não encontrando nela sua querida espôsa, saltou do leito apavorado e atônito, com mais ligeireza e denôdo que sua avançada idade poderia permitir; quando não encontrou sua espôsa no aposento e deu com a porta aberta pela falta da chave entre os colchões, pensou que fôsse perder o juízo; mas, dominando-se um pouco, saiu para o corredor; dali, andando pé ante pé, a fim de não ser pressentido, chegando à sala onde a velha dormia e vendo-a só, sem Leonora, foi ao aposento da aia; abrindo a porta devagarinho, viu o que nunca quisera ter visto, viu o que daria os olhos para não ver: viu Leonora nos braços de Loaysa, dormindo ambos a sono sôlto, como se a virtude do ungüento, produzisse nêles seu efeito e não no ciumento velho. O coração de Carrizales deixou de bater à vista de tão amarga cena; a voz morreu-lhe na garganta, os braços caíram sem fôrça e êle permaneceu como estátua de mármore frio; e, embora a cólera produzisse seu natural efeito, avivando-lhe as fôrças quase perdidas, foi tão grande sua dor que não o deixou tomar alento. E, com tudo isso, poria em prática a vingança que aquela grande afronta exigia, se naquele instante estivesse com armas; determinou então voltar ao aposento para buscar um punhal e voltar para lavar as manchas de sua honra com o sangue de seus dois inimigos e também com todo o sangue de tôda a gente de sua casa. Com êste propósito honrado e necessário voltou, com o mesmo silêncio e cautela, para seu aposento, onde a dor e a angústia apertaram-lhe tanto o coração que, sem ânimo para coisa alguma, deixou-se cair sem sentidos por sôbre o leito. Amanheceu e o dia encontrou os dois amantes enlaçados na rêde de seus braços. Marialonso despertou e quis reclamar o que, a seu ver, lhe pertencia; vendo, porém, que era tarde, quis deixar para a noite seguinte. Inquietou-se Leonora ao ver o sol tão alto e amaldiçoou seu descuido e o da maldita aia; e as duas, com passos agitados, foram para onde estava Carrizales, rogando entre dentes ao céu para o encontrarem ainda ressonando; quando o viram em cima da cama, quieto, acreditaram que o ungüento ainda estivesse fazendo efeito, pois dormia; abraçaram-se as duas com grande alegria. Leonora aproximou-se do marido e, pegando-lhe em um braço, virou-o de um lado para outro, para ver se despertava sem ser preciso esfregar-lhe as fontes com vinagre, como lhe haviam dito ser necessário para êle voltar a si. Mas, com o movimento, Carrizales voltou do desmaio e, dando um profundo suspiro, disse, com uma voz lamentosa e sumida: - Infeliz de mim! A que triste fim trouxe-me o destino. Leonora não entendeu muito bem o que dizia o espôso, mas, vendo-o acordado e falando, admirada de ver que a virtude do ungüento não durava tanto como lhe haviam dito, chegou-se a êle, e, encostando o rosto ao seu, abraçando-o estreitamente, perguntou-lhe: - Que tendes, meu senhor? Parece-me que vos estais queixando?! O desditoso velho ouviu a voz de sua doce inimiga e, abrindo os olhos desmesuradamente, atônito e pasmado, fitou-a e, com grande insistência, sem pestanejar, permaneceu olhando-a durante um bom tempo, ao fim do qual lhe disse: - Fazei o favor, minha senhora, de mandar chamar imediatamente vossos pais, de minha parte, porque sinto não sei o que em meu coração que me causa uma enorme fadiga, e receio que brevemente a vida me deixe; queria vê-los antes de morrer. Leonora acreditou, sem duvidar, no que o marido lhe dizia, não imaginando o que êle havia visto, pensando que a violência do ungüento o tivesse pôsto naquele estado; respondeu-lhe que faria o que êle ordenava; enviou o prêto, no mesmo instante, para chamar os pais e, abraçando-se ao espôso, fazia-lhe as maiores carícias que nunca lhe fizera, perguntando-lhe o que sentia com palavras tão amorosas e ternas, como se êle fôsse o ente que mais amava no mundo. Êle a olhava com espanto, como já se disse, sentindo cada palavra ou carícia que ela lhe fazia como facadas que lhe atravessavam a alma. A aia havia já contado ao pessoal da casa e a Loaysa que seu amo estava enfêrmo, acrescentando ainda que devia ser coisa repentina, pois esquecera-se de mandar fechar as portas da rua, quando o negro saiu para chamar os pais de sua senhora; admiraram-se todos também dessa embaixada, porque, desde o casamento da filha, nenhum dêles havia entrado naquela casa. Enfim, estavam todos calados e inquietos, sem acertarem com a verdadeira causa da indisposição do amo, que, de quando em quando, suspirava tão profunda e dolorosamente, que, a cada suspiro, parecia arrancarse-lhe a alma. Leonora chorava ao vê-lo assim e êle riá-se com um riso de pessoa que estava fora de si, considerando a falsidade de suas lágrimas. Nisto chegaram os pais de Leonora e, ao encontrarem a porta da casa e a do pátio abertas, a casa sepultada em silêncio e como abandonada, ficaram admirados e em grande sobressalto. Foram ao aposento do genro e encontraram-no, como já se disse, com os olhos sempre cravados na espôsa, que retinha pelas mãos, derramando ambos copiosas lágrimas; ela, pensando que não tornaria a ver seu espôso, continuava a derramá-las; êle, por ver com que fingimento ela chorava. Logo que os pais de Leonora entraram, Carrizales falou-lhes e disse-lhes: - Sentem-se aqui Vossas Mercês e todos os outros retirem-se dêste aposento; que fique apenas a Senhora Marialonso. Obedeceram-lhe e, ficando os cinco a sós no quarto, sem esperar que alguém falasse, com voz sossegada, enxugando os olhos, Carrizales assim falou: - Estou bem certo, meus pais e senhores, que não será necessário trazervos testemunhas para que me acrediteis em uma verdade que vos quero dizer. Deveis estar bem lembrados, pois não é possível que vos tenhais esquecido, com quanto amor, com que afeto, faz hoje um ano, um mês e cinco dias e nove horas que me destes vossa querida filha para minha legítima espôsa. Sabeis também com que liberalidade lhe dei um dote, que chegaria para mais de três noivas se casarem, com fama de ricas. Deveis lembrar-vos também do cuidado com que a vesti e enfeitei com tudo aquilo que ela desejou e que eu considerei que lhe convinha. Da mesma forma, senhores, tendes visto como, levado pela minha condição de receoso do mal de que, sem dúvida, hei de morrer, e cheio de experiência que me deram os anos, dos estranhos e vários acontecimentos do mundo, quis guardar esta jóia, que escolhi e que me destes, com a maior prudência que me foi possível: levantei os muros desta casa, tirei a vista das janelas da rua, reforcei as fechaduras das portas, pus-lhe uma roda, como as que existem nas portarias dos conventos; desterrei dela perpetuamente tudo o que fôsse, sombra ou nome, do sexo masculino; dei-lhe criadas e escravas que a servissem; nada lhes neguei do que me pediram; tornei minha mulher minha igual; comuniquei-lhe os meus mais secretos pensamentos; entreguei-lhe todos os meus bens. Tudo isso, e bem o esperava, para que vivesse eu certo de desfrutar, sem sobressalto, o que tanto me custou, e ela procurasse não me dar oportunidade a que nenhuma espécie de ciúme entrasse em meu pensamento; mas como não se pode, com esfôrço humano, evitar o castigo que a vontade divina quer dar àqueles que nela não depositam inteiramente seus desejos e esperanças, não é de se admirar que eu me veja frustrado em minhas esperanças e que eu próprio tenha sido o fabricante do veneno que me vai tirando a vida. Contudo, porque vejo como todos estais suspensos, presos às palavras de minha bôca, quero encerrar os longos preâmbulos de minha conversa dizendo-vos numa palavra o que não é possível dizer-se com milhares delas: Declaro, pois, senhores, que tudo o que tenho dito e feito fêz com que achasse eu, nesta madrugada, a essa (e apontou a espôsa), vinda ao mundo. para meu desassossêgo e fim de minha vida, nos braços de um galhardo mancebo, que se encontra agora encerrado nos aposentos desta pestilenta aia. Mal acabou de pronunciar estas últimas palavras e Leonora, levando as mãos ao coração, caiu desmaiada sôbre os joelhos do marido. Marialonso perdeu a côr e na garganta dos pais de Leonora formou-se um nó, que não os deixava dizer uma só palavra. Mas, prosseguindo, Carrizales disse: - A vingança que penso tomar desta afronta não é nem há de ser das que ordinàriamente se vêem em tais circunstâncias, pois quero que, assim como fui extremado no que fiz, também o seja minha vingança, tomando-a de mim próprio, como o maior culpado dêste delito, pois deveria eu considerar que mal podiam contentar-se os quinze anos desta jovem com os quase oitenta que tenho. E eu fui semelhante ao bicho-da-sêda, que faz a casa onde possa morrer; não te culpo, pobre menina mal aconselhada! - e dizendo isto inclinou-se e beijou o rosto de Leonora, que ainda estava sem sentidos. - Não te culpo, repito, porque persuasões de velhas espertalhonas e galanteios de moços enamorados fàcilmente vencem e triunfam o pouco engenho que os tenros anos encerram. Mas, para que todo mundo veja a fôrça dos quilates do amor com que te quis, neste último transe de minha vida quero mostrá-lo de modo que fique no mundo como exemplo, senão de bondade, pelo menos de ternura jamais ouvida nem vista; e, assim, quero que se traga logo um escrivão para fazer de nôvo meu testamento, no qual mandarei dobrar o dote de Leonora e lhe pedirei que, depois de acabados os meus dias, que serão muito breves, disponha-se a fazer o que quiser, casando-se com aquêle môço a quem nunca ofenderam as cãs dêste infeliz velho. E assim ela verá que, se enquanto vivo jamais fiz coisa alguma que não fôsse de seu gôsto, à hora da morte faço o mesmo e quero que seja feliz com quem ela deve querer tanto. O resto de meus bens deixarei para as obras de caridade e a Vossas Mercês, meus senhores, deixarei o suficiente para que possais viver de maneira honrada até o fim de vossos dias. Quero que o escrivão venha logo, pois a paixão que tenho em mim atormenta-me de tal maneira que, de pouco em pouco, me vai encurtando os passos da vida. Mal disse isto, sobreveio-lhe um terrível desmaio e deixou-se cair tão perto de Leonora que os dois rostos se juntaram. Estranho e triste espetáculo para os pais que olhavam a querida filha e o amado genro! Não quis a maldosa aia esperar pelas repreensões que os pais de Leonora lhe poderiam fazer e, assim, saiu do aposento, foi contar a Loaysa tudo o que se passava, aconselhando-o a ir-se daquela casa o mais depressa possível, que ela teria o cuidado de informálo, por intermédio do negro, de tudo o que acontecesse, pois já não havia portas nem chaves que o impedissem. Loaysa admirou-se com estas notícias e, aceitando o conselho, tornou a vestir-se como mendigo, e foi prestar contas a seus amigos do estranho e imprevisto desenlace de seus amôres. Enquanto Carrizales e Leonora estavam desmaiados, o pai desta mandou, chamar um escrivão seu amigo, que chegou em tempo de encontrar os dois esposos já despertos. Carrizales fêz o testamento da maneira que dissera, sem declarar o êrro de Leonora, pedindo apenas, se êle morresse, que ela se casasse com o jovem que êle lhe indicara em segrêdo. Quando ouviu isto, Leonora atirou-se aos pés do marido e, com o coração aos saltos dentro do peito, disselhe: - Vivei muitos anos, meu senhor e maior bem que tenho no mundo, pois, embora não estejais obrigado a acreditar em coisa alguma do que vos direi, sabei que não vos ofendi, senão com o pensamento. E, começando a desculpar-se e a contar por extenso a verdade do caso, não pôde mais falar e tornou a perder os sentidos. O desditoso velho abraçou-a assim desmaiada; abraçaram-na os pais; todos choraram tão amargamente que obrigaram o escrivão a acompanhá-los; o testamento de Carrizales deixara o que comer para tôdas as criadas da casa, dava alforria às escravas e ao negro, à falsa Marialonso nada mais deixou que o pagamento de seu salário; a dor do velho foi apertando de tal maneira que, ao fim de sete dias, levaram-no à sepultura. Leonora ficou viúva, chorosa e rica; e quando Loaysa esperava que ela cumprisse o que o marido lhe ordenara em seu testamento, viu que uma semana depois ela tornou-se freira e entrou em um dos mais fechados conventos da cidade. Êle, despeitado e quase corrido, partiu para as índias. Os pais de Leonora ficaram tristíssimos, embora se consolassem com o que o genro lhes havia deixado em seu testamento. As criadas consolaram-se com o mesmo, as escravas e escravos, com a liberdade; a malvada aia ficou pobre e frustrada em todos os seus maus pensamentos. E eu fiquei com o desejo de chegar ao fim desta história, exemplo e espelho da desconfiança que devemos ter em chaves, rodas e paredes, quando a vontade permanece livre, e, do mesmo modo, da desconfiança que se deve ter nos verdes e poucos anos, se lhes andam pelos ouvidos as exortações destas aias de vestes negras e amplas, de toucas brancas e longas. Só não conheço a causa de Leonora não se ter empenhado, com mais afinco, em desculpar-se e dar a entender a seu marido ciumento quão limpa e sem ofensa saíra de tais acontecimentos; mas a perturbação prendeu-lhe a língua e a pressa com que seu marido morreu não permitiu que ela se desculpasse. A espanhola inglesa Entre os despojos que os inglêses levaram da cidade de Cádiz, um cavalheiro inglês, Clotaldo, capitão da esquadra, levou para Londres uma menina de uns sete anos mais ou menos, contra a vontade do Conde de Leste, que, diligentemente, mandou procurar a menina para devolvê-la aos pais, porque êstes a êle foram queixar-se do rapto da filha, dizendo que os inglêses costumam contentar-se com os bens apreendidos, deixando livres as pessoas, e que, assim sendo, por que haveriam de torná-los tão infelizes, deixando-os, além de pobres, sem a filha, que era a luz de seus olhos e a mais formosa criatura de tôda a cidade? O conde mandou comunicar a tôda a armada que sofreria pena de morte quem tivesse a menina em seu poder; mas, pena alguma ou temores foram suficientes para fazer Clotaldo obedecer-lhe, pois era êle, Clotaldo, quem mantinha Isabela escondida em sua embarcação e que se afeiçoara, embora cristãmente, à sua incomparável beleza. Os pais, sem a menina, ficaram tristes e desconsolados; Clotaldo, contentíssimo, chegou a Londres e deu a menina, como presente, à sua mulher. Quis a sorte que tôdas as pessoas da família de Clotaldo fôssem católicas, embora, publicamente, demonstrassem seguir a religião de sua rainha. Clotaldo tinha um filho chamado Recaredo, de doze anos, a quem ensinou a amar e temer a Deus e a permanecer fiel às verdades da fé católica. Catalina, espôsa de Clotaldo, senhora nobre, cristã e prudente, afeiçoou-se tanto a Isabela, que a criava, presenteava e educava como filha; a menina era de tão boa índole, que aprendia com facilidade tudo quanto lhe ensinavam; com o tempo e com os presentes, foi esquecendo seus pais verdadeiros, não deixando, entretanto, de lembrar-se e suspirar por êles muitas vêzes, e, embora aprendendo a língua inglêsa, não se esquecia da espanhola, porque Clotaldo tinha o cuidado de trazer secretamente para casa alguns espanhóis para falar com ela; desta maneira, sem esquecer-se de sua língua, como já dissemos, falava a língua inglêsa como se tivesse nascido em Londres; depois de lhe terem sido ensinados todos os trabalhos que tôda jovem pode e deve saber, ensinaram-na a ler e a escrever, mas o que aprendeu melhor foi tocar todos os instrumentos que a mulher pode tocar, e o fazia com perfeição; além disso, o céu deu-lhe uma voz tão boa que, enquanto cantava encantava. Tôdas estas graças, adquiridas e acrescentadas aos seus dons naturais, foram, pouco a pouco, inflamando o peito de Recaredo, a quem ela queria e servia como filho de seu senhor. A princípio Recaredo gostava de ver a beleza sem igual de Isabela e de observar suas infinitas virtudes e atrativos, amando-a como se ela fôsse uma irmã, sem que seus desejos ultrapassassem limites da honra e da virtude, mas, conforme Isabela, que tinha doze anos quando Recaredo começou a amá-la, foi crescendo, aquela simpatia, aquela satisfação e prazer de olhá-la transformou-se em ardentíssimo desejo de possuí-la; não que aspirasse a isto por outros meios que não o casamento, pois, da incomparável honestidade de Isabela, como a chamavam, não se podia esperar outra coisa e nem êle o haveria de querer, mesmo que pudesse, mas porque seu caráter nobre e a estima que tinha por Isabela não permitiam que nenhum mau pensamento deitasse raízes em sua alma; mil vêzes decidiu manifestar suas intenções aos pais e outras tantas vêzes não aprovou sua determinação, pois sabia que estava destinado a ser espôso de uma donzela escocesa, muito rica e importante, também cristã como êles, e era claro, pensava êle, que não haviam de querer vêlo casado com uma escrava - se é que se pode dar êste nome a Isabela -, já que haviam combinado de casá-lo com uma fidalga. E assim confuso e pensativo, sem saber que caminho tomar para realizar suas boas intenções, levava uma vida tão agitada, que se via a ponto de morrer. Entretanto, julgando ser uma grande covardia deixar-se morrer sem procurar um remédio para seu mal, encorajou-se e dispôs-se a declarar suas intenções a Isabela. Tôdas as pessoas da casa andavam tristes e preocupadas com a doença de Recaredo, que era estimado por todos, e com profunda dor de seus pais, porque não tinham êles outro filho porque também o mereciam sua virtude, seu valor e sua compreensão; os médicos não conseguiram descobrir a causa da enfermidade do rapaz e nem êle queria que a descobrissem. Finalmente, vendose a sós com Isabela, certo dia em que ela entrou para servi-lo, tendo já decidido enfrentar as dificuldades, disse-lhe, com voz fraca e comovida: - Isabela, teu valor, tua virtude e formosura deixaram-me assim neste estado; se não queres que minha vida seja entregue a maiores penas, concorda em ser minha espôsa, mesmo contra a vontade de meus pais, que temo eu não reconheçam como eu reconheço o teu mérito e que são capazes, portanto, de me negar êste bem que tanto desejo; se me prometes ser minha espôsa, eu também te prometo, como cristão que sou, ser apenas teu e, mesmo que não chegue a possuir-te, o que, aliás, não acontecerá até que sejas minha pelas bênçãos de meus pais e da Igreja, só o fato de imaginar que me pertences será suficiente para devolver-me a saúde e para manter-me alegre e satisfeito até alcançar a felicidade que tanto almejo. Enquanto Recaredo pronunciava estas palavras, Isabela estêve escutandoo, de olhos baixos, demonstrando que sua honestidade igualava-se à sua formosura, à sua discrição; depois, vendo que Recaredo terminara, respondeulhe: - Depois que o rigor ou a clemência dos céus, não sei a qual dos dois fatôres me referir, depois que o rigor ou a clemência dos céus quis afastar-me de meus pais e dar-me aos vossos, Senhor Recaredo, reconhecida aos infinitos favores que me têm feito, decidi que minha vontade jamais discordaria da vontade dêles e, assim, consideraria mau o inestimável favor que me quereis fazer; se eu fôr mesmo tão venturosa a ponto de vos merecer, ofereço-vos, desde já, a ordem que êles me derem, mas, mesmo que não se encontre logo ou que não haja uma solução, que os vossos desejos saibam que os meus serão eternos e puros em desejar-vos todo o bem que o céu vos pode dar. Assim encerrou Isabela suas honestas e discretas palavras; depois disso, a saúde de Recaredo começou a voltar e renasceram também as esperanças de seus pais. Os dois despediram-se cortesmente: êle, com lágrimas nos olhos; ela, muito admirada de ver a alma de Recaredo dedicada inteiramente a amá-la. Recaredo, deixando o leito por milagre, na opinião de seus pais, não quis ocultar, por mais tempo, seus pensamentos; manifestou-os um dia à sua mãe, dizendo-lhe, ao fim de longas palavras, que, se não consentissem em seu casamento com Isabela, seria o mesmo que matá-lo; encareceu, também, de tal forma, as qualidades da jovem que fêz a mãe pensar que a enganada seria Isabela, tomando seu filho como espôso; deu-lhe esperanças de que seu pai viesse a aceitar êste casamento que ela já havia aceito e assim o foi, pois, transmitindo ao marido as mesmas palavras que o filho a ela dissera, induziuo, com facilidade, a concordar com o que o rapaz tanto desejava, pensando já nas desculpas que deveriam apresentar para não se realizar o casamento, que era tido como certo, com a jovem da Escócia. Por esta época, teria Isabela uns catorze anos e Recaredo vinte, mas, apesar de tão verde e tão florida idade, sua discrição e prudência faziam com que êles parecessem mais velhos. Faltavam quatro dias para que os pais de Recaredo vissem o filho unir-se a Isabela pelos laços sagrados do matrimônio, considerando-se felicíssimos por receberem sua prisioneira como filha, levando em conta mais o dote das virtudes da jovem que a imensa fortuna da escocesa; as roupas estavam quase prontas, os parentes amigos convidados; faltava apenas levar o fato ao conhecimento da rainha, porque sem a sua vontade e consentimento não se efetua nenhum casamento entre pessoas de sangue ilustre, mas não duvidavam de seu consentimento, por isso demoraram-se em ir procurá-la. Quando faltavam, então, como eu dizia, quatro dias para as bodas, apareceu um ministro da rainha, que veio desfazer a alegria de todos, pois trouxe a Clotaldo um comunicado de Sua Majestade que o mandava levar à sua presença, na manhã do dia seguinte, sua prisioneira, a espanhola de Cádiz. Clotaldo disselhe que executaria com muito prazer a ordem de Sua Majestade. O ministro partiu e deixou todos os corações agitados, cheios de sobressalto e de mêdo. - Ai - exclamava a Senhora Catalina - se a rainha souber que criei esta menina com fé na religião católica, se vier a saber que todos desta casa somos cristãos! E se a rainha lhe perguntar o que aprendeu durante os oito anos em que foi nossa prisioneira, o que há de responder a pobrezinha, para não nos condenar, por mais prudente que seja? Isabela, ouvindo-a, disse-lhe: - Não vos preocupeis, minha senhora, pois confio no céu, que, em sua divina misericórdia, há de me inspirar para que minhas palavras não vos condenem e sim resultem em vosso proveito. Recaredo tremia, como que pressentindo alguma coisa má; Clotaldo procurava de inúmeras maneiras afastar-lhe o temor, mas via que contava apenas com a enorme confiança que tinha em Deus e com a prudência de Isabela, a quem recomendou, muitas vêzes, que evitasse, por todos os meios, dizer que eram católicos, pois, embora, em espírito, estivessem preparados para receber o martírio, a carne recusava-se a beber do cálice amargo. Mais de uma vez Isabela disse-lhes que ficassem descansados, pois nada do que temiam ou suspeitavam havia de acontecer, porque embora não soubesse ainda o que responder às perguntas que lhe fizessem, tinha como viva e certa a esperança de responder de modo que suas palavras, como aliás já havia dito, lhes fôssem apenas benéficas. Naquela noite falaram de muitas coisas, principalmente que se a rainha soubesse que êles eram católicos, não lhes enviaria um recado tão delicado, pelo qual se podia deduzir que queria apenas ver Isabela, cuja incomparável beleza e aptidões teriam chegado a seus ouvidos, como chegara também aos ouvidos de tôda a cidade, mas o fato de não a terem apresentado à rainha fazia-os sentirem- se culpados e, para se justificarem perante a soberana, acharam melhor dizer que haviam escolhido Isabela como espôsa de seu filho Recaredo, desde que ela chegara a seu poder, porém, ainda assim, sentiram-se culpados por terem planejado o casamento sem o consentimento da rainha, muito embora esta culpa não lhes parecesse merecedora de grande castigo. Consolaram-se com isto e decidiram que Isabela não fôsse vestida humildemente, como prisioneira, mas sim como espôsa de um homem importante como era seu filho. No dia seguinte, vestiram Isabela à moda espanhola, com uma túnica de cetim verde, com aberturas regulares, através das quais se podia ver um rico tecido dourado; as aberturas eram rematadas com pérolas, formando esses; e era tôda bordada com pérolas riquíssimas; o colo e a cintura estavam enfeitados com belíssimos diamantes; levava também um leque. à maneira das grandes senhoras espanholas; seus cabelos, loiros e compridos, entrelaçados com diamantes e pérolas, serviam-lhe de toucado. Elegante, de uma beleza sem igual, ricamente enfeitada, foi assim que Isabela se apresentou naquele dia a Londres, transportada por um belíssimo côche, levando com ela as almas e os olhos de todos quantos a olhavam. Com ela iam Clotaldo, sua espôsa e Recaredo, acompanhados de inúmeros e ilustres parentes. Clotaldo quis conceder-lhe tôda esta honra para fazer com que a rainha a tratasse como a espôsa de seu filho. Chegando ao palácio, Isabela entrou em uma grande sala, onde se encontrava a rainha, despertando em todos a melhor de tôdas as impressões. A sala era grande e espaçosa, as pessoas que a acompanhavam detiveram-se. Isabela deu dois passos à frente e, assim que se destacou do grupo, foi como se uma estrêla ou um raio cortasse o sossêgo e a calma da noite, ou, então, como o raio de sol que, ao nascer do dia, aparece por entre as montanhas, foi também um cometa a anunciar o fogo que incendiaria mais de um coração dos que ali estavam presentes e que seriam queimados nas chamas da luminosa beleza de Isabela, que, humilde e cortês, foi colocar-se de joelhos perante a rainha para dizer-lhe, em inglês: - Que Vossa Majestade estenda vossas mãos a esta serva que, de hoje em diante, sentir-se-á enaltecida, pois teve a ventura de admirar a vossa grandeza. A rainha olhou-a por um bom espaço de tempo, sem dizer uma palavra, pois parecia-lhe, como falou depois à sua camareira, ter diante de si um céu estrelado, estrêlas que eram inúmeras pérolas e diamantes usados por Isabela, cujo rosto e olhos pareciam o Sol e a Lua e tôda ela uma nova maravilhosa formosura. As damas que acompanhavam a rainha fizeram tôdas olhos para não deixarem de admirar nada em Isabela. uma elogiava-lhe o brilho dos olhos; outra, a côr do rosto; ou a elegância; outra, a doçura de suas palavras; houve uma que, de pura inveja, disse: - A espanhola é muito bonita, mas não gosto de suas roupas. Depois de passada um pouco sua admiração, a rainha, fazendo Isabela levantar-se, disselhe: - Fala-me em espanhol, jovem, que eu o entendo bem. será um prazer ouvi-lo. - E, voltando-se para Clotaldo, disse: - Clotaldo, fizestes-me uma ofensa escondendo êsse tesouro por tantos anos, ofensa esta agravada porque fôstes movido pela cobiça; estais, pois, na obrigação de restituí-lo a mim porque, de direito, é meu. - Senhora - falou Clotaldo -, é bem verdade o que Vossa Majestade diz; confesso minha culpa, se podemos considerar como tal o fato de ter eu guardado êste tesouro a fim de que atingisse a perfeição para depois trazê-lo aos olhos de Vossa majestade; agora que esta perfeição foi alcançada, pensava trazer Isabela a vossa presença e pedir-vos que consentísseis no casamento dela com meu filho Recaredo e, oferecendo-os, à rainha, ofereço com êles tudo quanto vos posso dar. - Até o nome dela me agrada - falou a rainha - só faltava chamar-se Isabela para que eu nada ficasse a desejar. mas lembrai-vos, Clotaldo, de que a prometestes a vosso filho sem o meu consentimento. - É verdade, senhora. Mas foi confiando nos inúmeros relevantes serviços que eu e meus antepassados prestamos à coroa que pensei poder alcançar de Vossa Majestade favores ainda maiores que êste consentimento; além disso, meu filho ainda não se casou. - Nem se casará, até que a mereça por êle próprio; quer dizer com isto que êle não se deve aproveitar de vossos serviços nem dos serviços de vossos antepassados; êle, por êle próprio, há de se colocar à minha disposição e ser merecedor desta preciosidade que eu já estimo como se fôsse minha filha. Isabela, mal ouviu estas últimas palavras, tornou a ajoelhar-se diante da rainha, dizendo-lhe em castelhano: - Há desgraças, sereníssima senhora, que devem ser consideradas como felicidade e não como desventura; se Vossa Majestade chamou-me de filha, que males haverei de temer ou que benefícios não poderei esperar? Isabela falava com tanta graça e desembaraço que a rainha afeiçoou-se extremamente a ela e ordenou que permanecesse a seu serviço, entregando-a a uma importante senhora, sua camareira-mor, para ensinar-lhe seu modo de viver. Recaredo, que sentiu fugir-lhe a vida quando viu que o afastavam de Isabela, estêve a ponto de perder o juízo; e, assim, tremendo e sobressaltado, pôs-se de joelhos perante a rainha, dizendo: - Para servir a Vossa Majestade não é necessário receber outros prêmios, além daqueles que meus pais e meus antepassados alcançaram por terem servido a seus reis, mas, já que Vossa Majestade deseja que eu vos sirva por novos motivos e pretensões, gostaria de saber de que modo e em que trabalho poderei cumprir com a obrigação que Vossa Majestade me impõe. - Dois navios, que se encontram sob as ordens do Barão de Lansac, que eu nomeei general, estão prontos para andar a corso (Andar a corso - dizia-se dos navios e dos homens armados para correr no encalço de navios mercantes; era uma forma de pirataria.); faço-vos capitão de um dêles, pois o sangue que tendes nas veias assegura-me de que há de compensar vossa pouca idade, e lembrai-vos da graça que vos concedo, pois, com ela, vos dou a oportunidade de, não desmentindo vossa linhagem, servindo a vossa rainha, demonstrar o valor de vosso engenho, de vossa pessoa, para alcançardes o melhor prêmio que, a meu ver, podeis desejar; serei eu a guardiã de Isabela, embora sua honestidade, da qual ela já nos deu prova, seja sua mais preciosa guardiã; ide com Deus, pois, partindo enamorado, como imagino, espero que realizeis grandes façanhas; feliz seria o rei que tivesse em seu exército 10.000 soldados enamorados, que esperassem possuir suas amadas como prêmio às suas vitórias. Levantai, Recaredo, e olhai se tendes ou quereis dizer alguma coisa a Isabela, porque amanhã partireis. Recaredo beijou as mãos da rainha, agradecendo muitíssimo o favor que ela lhe fazia; logo a seguir, pôs-se de joelhos perante Isabela e, querendo falarlhe, não pôde, pois sentiu um nó na garganta, que lhe prendeu também a língua; as lágrimas vieram-lhe aos olhos e procurou disfarçá-las o mais que lhe foi possível, mas elas não passaram despercebidas aos olhos da rainha, que disse: - Não vos envergonheis de chorar, Recaredo, nem vos sintais diminuído por terdes dado neste momento tão ternas mostras de vosso coração, pois uma coisa é pelejar com os inimigos e outra é despedir-se de quem se quer bem; abraçai-o, Isabela, e dai-lhe a vossa bênção, que bem o merecem os seus sentimentos. Isabela, que estava surprêsa e admirada de ver a humildade e a dor de Recaredo e que já o amava como espôso, não compreendeu a ordem da rainha; começou antes a derramar lágrimas, sem perceber o que fazia, e, permanecendo como cega, sem movimento algum, parecia uma estátua de alabastro a chorar. Estas reações tão ternas dos dois enamorados fizeram muitos dos parentes derramarem lágrimas, sem poder dizer palavra e sem ter conseguido falar com Isabela, que fêz, juntamente com Clotaldo e todos os que com êle vieram, uma reverência à rainha, saindo da sala, cheios de compaixão, de pesar e de lágrimas. Isabela ficou tal qual uma órfã que acaba de enterrar os pais, receosa de que sua nova senhora quisesse mudar-lhe os costu mes em que se havia criado; mas ali permaneceu. Daí a dois dias, Recaredo partiu, dominado por dois pensamentos entre muitos outros, que o mantinham fora de si: um era pelo fato de considerar que lhe convinha realizar determinadas façanhas que o fizessem merecedor de Isabela; o outro, por saber que não podia realizá-las sem ter que desembainhar sua espada contra católicos, pois estaria contrariando sua formação interior; não desembainhar a espada seria denunciar sua qualidade de cristão ou ser acusado de covarde; qualquer das duas soluções redundaria em prejuízo para sua vida e em obstáculo para suas pretensões. Resolveu, enfim, atender primeiro à sua condição de católico, pedindo intimamente ao céu que lhe desse ocasiões em que pudesse demonstrar sua coragem, cumprir com a religião, deixando a rainha satisfeita, e fazer-se merecedor de Isabela. Os dois navios navegaram por seis dias com vento favorável seguindo o caminho das ilhas Terceras, onde sempre há naves portuguêsas das Índias Orientais ou algumas que se desviaram das Ocidentais. Ao fim de seis dias, um vento fortíssimo, que no Mediterrâneo chama-se Meio-dia, mas que no Atlântico tem outro nome, soprou os costados dos navios, e o fêz tão fortemente e por tanto tempo que os impediu de alcançar as ilhas, obrigando-os a se dirigirem para a Espanha; junto às costas espanholas, à bôca do estreito de Gibraltar, descobriram três navios; um, po deroso e grande; os outros dois, pequenos; os homens de Recaredo perguntaram ao capitão se o general queria atacar os três navios que tinham sido avistados, mas, antes de poderem comunicar-se com êle, viram hastear, sôbre a gávea maior, uma bandeira negra e, chegando-se mais para perto, ouviram o som de clarins e cornetas roucas, sinais evidentes de que o general, ou alguma outra pessoa importante da nave, morrera. Inquietos, comunicaram-se com os outros pela primeira vez, coisa que não haviam feito desde que saíram do pôrto; da nave capitânea disseram, em altas vozes, que Recaredo assumisse o comando, porque o general morrera na noite anterior, vítima de apoplexia. Todos se entristeceram, menos Recaredo, que se alegrou, não pela morte de seu general, mas porque se via livre para comandar os dois navios, pois a rainha ordenara que, na falta do general, Recaredo assumisse o seu pôsto. Recaredo apressou-se a passar para a outra nau, onde encontrou alguns marinheiros que choravam pelo general morto e outros que se alegravam com sua presença; no fim, puseram-se todos sob suas ordens, reconhecendo-o como general em rápida cerimônia, passando logo a falar dos três navios que tinham descoberto, dois dos quais, desviando-se do maior, vinham em direção de suas naves. Reconheceram logo, pelas meias-luas que se viam nas bandeiras, que se tratava de duas galeras turcas. Recaredo alegrou-se, pois, se o céu o permitisse, aquela seria uma prêsa considerável e vinha de encontro aos seus desejos, porque, tomando-a, não ofenderia a nenhum católico. As duas galeras turcas chegaram a reconhecer os navios inglêses, que não traziam insígnias da Inglaterra e sim da Espanha, não para enganar os que pudessem reconhecê-los, mas para que não fôssem considerados navios de corsários. Os turcos pensaram que se tratasse de naves derrotadas das Índias e julgaram que as abateriam com facilidade. Foram-se aproximando pouco a pouco e Recaredo deixou-os aproximar-se propositadamente, até que pudesse tê-los sob a mira de sua artilharia, e, disparando na hora exata, atingiu com tanta fúria, com cinco balas, o centro de uma das galeras, que a partiu ao meio; a embarcação imediatamente pendeu para bombordo e começou a ir a pique, sem que nada se pudesse fazer. A outra galera, vendo êstes acontecimentos, apressou-se em desttruí-la, fazendo com que afundasse próximo aos costados do navio grande, mas Recaredo, que dispunha de barcos velozes e bem aparelhados, que podiam sair ou entrar como se tivessem remos, mandou carregar de nôvo tôda a artilharia e os foi seguindo até a nave maior, descarregando sôbre êles intensa chuva de balas. O pessoal da galera, logo que chegou perto da nave, abandonou sua embarcação, procurando abordá-la o mais depressa possível. Recaredo, vendo que a nave se ocupava com a galera atingida, atacou-a com seus dois navios e, impedindo-a de fazer a volta ou de valer-se dos remos, encurralou-a; os turcos procuraram, assim mesmo, recolher-se à nave, não para atacar, mas para salvar suas vidas. Os cristãos, que estavam nas galeras como prisioneiros, romperam as cadeias e juntamente com os turcos, procuravam alcançar a nave e, confor me iam subindo pelos costados, iam servindo de alvo aos arcabuzes dos navios; Recaredo ordenou que ninguém atirasse nos cristãos. Quase todos os turcos foram mortos e os poucos que chegaram à nave foram reduzidos a pedaços pelos cristãos, com que êles haviam-se misturado, apoderando-se de suas armas, pois quando os valentes caem, a coragem que os anima passa a substituir a fraqueza dos que se levantam, e, assim, os cristãos, animados, acreditando que os navios inglêses fôssem espanhóis, realizaram maravilhas, tendo sempre em mente sua liberdade. A encerrar-se o combate, alguns espanhóis puseram-se a bordo do navio, e, em altas vozes, chamaram os que julgavam ser espanhóis, para festejar com êles a vitória. Recaredo perguntoulhes em espanhol, que navio era aquêle. Responderam-lhe que era uma embarcação vinda da Índia portuguêsa, carregada de especiarias, cheia de pérolas e diamantes, no valor de mais de 1 milhão em ouro, e que, por causa de uma tormenta, viera dar naqueles lugares, tôda destruída e sem artilharia, porque o pessoal enfêrmo, quase morto de fome e de sêde, incumbira-se de atirá-la ao mar; disseram ainda que as duas galeras pertenciam ao corsário Arnaute Mami, a quem a nave havia sido entregue, sem a menor resistência, e que, segundo ouviram dizer, pretendia rebocá-la até o rio Larache, que não ficava muito distante dali, pois a enorme riqueza que a nave transportava não cabia em suas embarcações. Recaredo respondeu-lhes que, se êles pensavam que aquêles dois navios eram espanhóis, estavam enganados, pois pertenciam à rainha da Inglaterra; suas palavras deram muito o que pensar e temer a todos que as ouviram, por compreenderem que haviam escapado de uma armadilha para logo em seguida caírem em outra. Recaredo, entretanto, disse-lhes que nada temessem, que contassem como certa sua liberdade e que, assim sendo, não era preciso tratarem da defesa. - E nem que quiséssemos não poderíamos - responderam êles -, porque, como já dissemos, êste navio não tem artilharia e nós estamos desarmados; assim, temos que aceitar a gentileza e a liberalidade de vosso general; será justo que quem nos libertou do cativeiro dos turcos leve adiante tão grande mercê e benefício, pois, assim fazendo, poderá tornar-se famoso em todos os recantos, que já sabemos serão muitos, onde chegar a notícia desta memorável vitória e a da liberdade, que dêle esperávamos. Recaredo achou razoáveis as palavras do espanhol e, reunindo em conselho o pessoal de seu navio, perguntou-lhe como faria para enviar todos os cristãos à Espanha, sem correr o risco de terem que enfrentar algum perigo, embora pensassem que as situações difíceis servissem para levantar-lhes o ânimo. Alguns pensaram em fazê-los passar, um a um, para seu navio, e matá-los, conforme fôssem entrando debaixo da cobertura, pois, matando-os a todos, poderiam levar, sem preocupação ou temor, a grande nave a Londres. Recaredo, porém, falou: - Já que Deus nos concedeu tanta graça e nos deu tanta riqueza, não quero retribuir com crueldade, nem ser mal agradecido, nem é justo resolver-se com a espada aquilo que pode ser resolvido pacificamente; assim, penso que nenhum católico deve morrer, não porque eu os queira bem, mas porque me prezo muito e queria que a façanha de hoje não desse, nem a mim nem a vós, que fôstes meus companheiros, a fama de cruéis, ao lado de nossa fama de valentes, pois valentia e crueldade nunca andaram juntas; o que se deve fazer é passar tôda artilharia de um dêstes navios para a nave portuguêsa, deixando nêle apenas provisões e, sem que haja prejuízo para nossa gente, levaremos a nave até a Inglaterra, enquanto os espanhóis vão para a Espanha. Ninguém ousou recusar a proposta de Recaredo; alguns consideraram-no valente, magnânimo e muito inteligente; outros julgaram-no mais católico do que devia ser. Obtendo, pois, a aprovação de todos, Recaredo passou com cinqüenta arcabuzeiros para a nave portuguêsa, todos mantendo-se alertas e prontos para atirar; encontrou a bordo quase trezentas pessoas das que haviam escapado das galeras, pediu logo o registro da nave, mas o mesmo homem que lhe falara pela primeira vez respondeu que o registro estava nas mãos do corsário, chefe das embarcações, que com elas havia afundado. Utilizando-se do tôrno e encostando a segunda embarcação na grande nave, com extraordinária rapidez e a poder de fortíssimos sarilhos, passaram a artilharia do pequeno batel para a nave maior; depois, dizendo algumas palavras aos cristãos, Recaredo mandou-os passar para o batel, onde encontrariam provisões em abundância, para mais de um mês e para um número de pessoas bem maior, e, conforme iam embarcando, dava-lhes a cada um 4 escudos de ouro espanhóis, que mandou trazer de seu navio para remediar, em parte, certas necessidades quando chegassem à terra, que, aliás, estava muito próxima, pois dali podiam avistar as altas montanhas de Abila e Calpe. Todos agradeceram infinitamente o favor que êle lhes fazia; o último a embarcar foi o homem que lhe falara em nome dos demais e que não quis partir sem antes dizer-lhe: - Gostaria muito mais, valoroso cavalheiro, que me levasses contigo para a Inglaterra, do que me mandasses para a Espanha, porque, embora seja minha terra e faça apenas seis dias que dela parti, ali haverei somente de encontrar tristezas e saudades; desejo que saibais, senhor, que na batalha de Cádiz, há uns quinze anos atrás, perdi minha filha, levada à Inglaterra pelos inglêses; com ela perdi o sossêgo de minha velhice e a luz de meus olhos, que jamais se alegraram com coisa alguma, depois de sua partida; o grande aborrecimento que sua perda e a perda de todos os meus haveres me causaram puseram-me de tal maneira que não quis e nem pude mais comerciar, embora eu fôsse considerado o comerciante mais rico de tôda a cidade, o que, aliás, era verdade, pois além das muitas centenas de milhares de escudos que eu possuía em dinheiro, os meus bens, dentro das portas de minha casa, passavam de 50.000 ducados; tudo isso eu perdi, mas nada me importaria se não tivesse perdido minha filha; além da desgraça que atingiu a todos em geral e a mim em particular, as necessidades começaram a nos perseguir, a tal ponto que, não podendo mais resistir, eu e minha mulher, aquela infeliz que ali se encontra, decidimos ir para as índias, refúgio comum de todos os pobres generosos e, tendo embarcado há seis dias, fomos surpreendidos, logo ao sair de Cádiz, por êstes dois navios de corsários que nos aprisionaram, renovando-se assim nossa desgraça e confirmando-se nossa desventura, que seria ainda maior se os corsários não tivessem apreendido aquela nave portuguêsa que lhes ocupou a atenção, até acontecer o que o senhor já sabe. Recaredo perguntou-lhe como se chamava sua filha. Tendo êle respondido que seu nome era Isabela, Recaredo viu confirmarem-se as suas suspeitas, pois já desconfiara que aquêle homem deveria ser o pai de sua querida Isabela; não lhe disse uma só palavra a respeito da jovem, mas ofereceu-se para levá-los, êle e sua mulher, para Londres, onde poderiam, por certo, obter as informações que tanto desejavam; a seguir, fêz com que êles passassem para seu navio; enviando um número suficiente de marinheiros e guardas para a nave portuguêsa. Levantaram velas à noite e trataram de se afastar logo das costas da Espanha, por causa do navio de prisioneiros libertos, entre os quais havia quinze turcos e aos quais Recaredo concedeu a liberdade, a fim de mostrar que era liberal, mais por ser de índole generosa do que por dedicar amor aos católicos; pediu aos espanhóis que, na primeira oportunidade, libertassem os turcos, que, por sua vez, também se mostraram agradecidos. O vento, que antes dera mostras de ser favorável, tornou-se excessivamente calmo e os inglêses, atemorizados, passaram a reprovar a liberalidade de Recaredo, dizendo-lhe que as pessoas por êle libertadas poderiam avisar a Espanha dos fatos ocorridos e que, se por acaso houvesse no pôrto alguns galeões de guerra, podiam sair em seu encalço e colocá-los em uma situação difícil, ou até mesmo aprisioná-los. Recaredo bem que reconhecia a gravidade da situação, porém, acalmou a todos com uma série de razões, mas o que mais os acalmou foi o vento, pois voltou a soprar de modo que, batendo suavemente em tôdas as velas, não se teve a necessidade de amainá-las ou dirigi-las e assim, dentro de nove dias, encontraram-se às vistas de Londres, voltando, depois de trinta dias, vitoriosos. Recaredo, em virtude da morte de seu general, não quis entrar no pôrto dando mostras de muita alegria; às manifestações de contentamento, preferiu associar as de tristeza; por vêzes, eram os clarins que soavam, em festa; outras vêzes, as roucas trombetas tocavam qual tambores alegres e armas de guerra; às trombetas respondiam os pífaros, com sons tristes e chorosos; de uma das gáveas, às avessas, pendia uma bandeira cheia de meias-luas; em outra, via-se um grande estandarte de tafetá negro, cujas pontas beijavam a água. E foi assim que Recaredo entrou no rio de Londres com seu navio, pois a nave, não encontrando águas suficientes, teve que permanecer no mar, ao longe. Os sinais tão contraditórios que se avistavam na embarcação surpreenderam o povo numeroso, que das margens os olhava; conheceram pelas insígnias que o navio menor era a nau capitânea do Barão de Lansac, mas não podiam compreender como o outro navio teria sido trocado por aquela nave poderosa, que se encontrava no mar; sua dúvida, porém, se desfêz quando viram saltar, com tôdas as armas, ricas e resplandescentes, o valoroso Recaredo que, a pé, acompanhado apenas pela multidão que o seguia, dirigiu-se ao palácio, onde a rainha, por entre os corredores, esperava que lhe trouxessem notícias dos navios; com ela estavam suas damas de honra e Isabela, vestida à inglêsa; antes que Recaredo chegasse, apresentou-se perante a rainha um mensageiro, que se incumbiu de dar-lhe as notícias a respeito de Recaredo. Isabela, ouvindo o nome de Recaredo, temeu e esperou ansiosa pelos acontecimentos. Recaredo era alto, aristocrático e elegante; a couraça, o gorjal (Gorjal: Peça da armadura que servia para proteger o pescoço.), as braceleiras, as escarcelas (Escarcela: Parte da armadura desde a cintura até o joelho.) e os escudos milaneses de onze vistas, trabalhados e dourados, contribuíam para produzir viva impressão em todos quantos o olhavam; na cabeça, em vez de um morrião (Morrião: Antigo capacete, sem viseiras e de aba levantada.), usava um chapéu de aba larga, aleonado, com uma porção de plumas colocadas à moda dos valões; sua espada era larga; os boldriés (Boldrié: Correia a tiracolo, à qual os militares prendem uma arma.), ricos; as calças, à suíça. Suas roupas e seu passo garboso fizeram com que muitos o comparassem a Marte, deus da guerra, e outros, impressionados pela beleza de seu rosto, disseram que êle deveria ser Vênus em pessoa, que se disfarçara daquela maneira para zombar de Marte. Recaredo chegou, enfim, à presença da rainha e, pondo-se de joelhos, disse-lhe: - Majestade, para vossa alegria e para a realização de meus desejos, após a morte do General de Lansac, ficando eu em seu lugar, graças à vossa liberalidade, colocou a sorte em meu caminho duas galeras turcas que rebocavam aquela grande nave, que daqui se pode ver; atacados, vossos soldados defenderam-se e afundaram as embarcações dos corsários; libertei, em vosso nome, os cristãos que puderam escapar ao poder dos turcos, permitindo que êles partissem para a Espanha em um dos nossos navios; trouxe comigo sõmente um homem e uma mulher, espanhóis, que de livre vontade quiseram vir conhecer vossa grandeza; a grande nave que trouxemos vinha da Índia portuguêsa e, por ter sofrido uma tempestade, caiu em poder dos turcos, pois êles, com pouco trabalho, ou, para melhor dizer, sem trabalho algum, assenhorearam-se dela e, segundo dizem alguns portuguêses, seus tripulantes, o valor das especiarias, das pérolas e diamantes que ela carrega passa de 1 milhão, em ouro; ninguém tocou em nada, nem os turcos puderam tirar coisa alguma, pois o céu o reservou e eu me incumbi de guardar êste tesouro para Vossa Majestade; contentar-me-ei com apenas uma jóia, que me fará dever-vos outras dez naves como esta; esta jóia é minha querida Isabela, que vós me prometestes antes de minha partida; com ela sentir-me-ei pago e satisfeito, não só por êste serviço, mas por todos os outros que fiz a Vossa Majestade e pelos muitos que ainda penso fazer para pagar um pouco do quase infinito que, com esta jóia, me ofereceis. - Levantai-vos, Recaredo - disse a rainha - e acreditai que, se quisésseis pagar pelo quanto eu estimo Isabela, não conseguiríeis fazê-lo nem com o que trazeis nessa nave, nem com o que fica em tôda a índia; eu vos darei Isabela porque já prometi e porque ela é digna de vós e também sois digno dela: o vosso valor a merece; se guardastes as jóias da nave para mim, eu também guardei a jóia que vos pertence e, embora não pareça nada devolver-vos o que é vosso, sei que vos faço um grande favor com isso, porque os prêmios que se conquistam por mérito próprio e que são ardentemente desejados valem tanto quanto a alma e não há na terra preço algum que os pague. Isabela é vossa, eila, podereis tornar-vos dono e senhor dela quando quiserdes; creio que ela o aceitará de boa vontade e saberá apreciar a amizade que lhe dedicais; digo amizade e não favores porque somente eu posso concedê-los; podeis ir descansar e vinde aqui pela manhã, pois quero conhecer pormenorizadamente tôdas as vossas façanhas, e trazei-me também o casal que, de espontânea vontade, quis vir para me conhecer, pois quero agradecer-lhes. Recaredo beijou-lhe as mãos pelos inúmeros favores que ela lhe concedia. A rainha dirigiu-se para outra sala; as demais pessoas rodearam Recaredo e uma delas, que se tornara grande amiga de Isabela, chamada Senhora Tansi, considerada a mais prudente, desenvolta e graciosa de tôdas, disse-lhe: - Que é isto, Senhor Recaredo, que armas são estas? Pensáveis, porventura, que viríeis pelejar contra vossos inimigos? Tôdas aqui somos vossas amigas, com exceção da Senhora Isabela, que, como espanhola, é obrigada a não vos olhar com bons olhos.' - Mas é preciso que ela se lembre, Senhora Tansi, de olharme com um pouco de boa vontade falou Recaredo. - A ingratidão não pode andar ao lado de tanto valor, de tanta compreensão e de tão rara formosura. - Senhor Recaredo - disse-lhe Isabela -, uma vez que vos pertenço, está em vós decidir sôbre meu destino, a fim de que sejais plenamente recompensado pelos elogios que me fizestes e pelos favores que pensais conceder-me. Estas e outras palavras foram trocadas entre Recaredo, Isabela e as damas, entre as quais havia uma jovenzinha que nada mais fêz do que olhar Recaredo enquanto êle estêve ali; levantava-lhe as escarcelas, para ver o que havia debaixo delas, examinava-lhe a espada e, com sua simplicidade de criança, queria que as armas lhe servissem de espelho, chegando mesmo a olhar-se nelas de muito perto, e, quando partiu, dirigindo-se às damas, falou: - Acho que a guerra deve ser coisa muito boa, porque as mulheres apreciam muito os homens armados. - E como não havia de ser? - perguntou a Senhora Tansi. - Basta olhar para Recaredo, que parece o próprio sol caminhando pelas ruas. Tôdas riram-se das palavras da mocinha e da comparação de Tansi; não faltou, entretanto, quem considerasse uma impertinência de Recaredo o fato de êle ter ido armado ao palácio, embora houvesse outras que procurassem desculpá-lo, dizendo que, como soldado, tinha o direito de se apresentar assim, para que pudesse mostrar sua esplêndida galhardia. Recaredo foi carinhosamente recebido por seus pais, parentes e amigos. Naquela noite, tôda Londres festejou a sua vitória. Os pais de Isabela encontravam-se na casa de Clotaldo e Recaredo já lhe havia dito quem eram, tendo, entretanto, pedido que nada lhes falasse a respeito de Isabela, pois êle próprio queria encarregar-se disso. O aviso estendeu-se à Senhora Catalina, sua mãe, e a todos os criados e criadas da casa. Naquela mesma noite, com muitos botes, lanchas, barcos, e com muitos olhos a observarem, começou-se adescarregar a nave, demorando-se oito dias para retirar a enorme quantidade de pimenta e de outras riquíssimas mercadorias que nela se encontravam. No dia seguinte, Recaredo foi ao palácio, levando consigo o pai e a mãe de Isabela, vestidos como inglêses, dizendo-lhes que a rainha queria vê-los. A rainha, em meio às suas damas, estava esperando por Recaredo, a quem pensou agradar, mantendo Isabela a seu lado, vestida com as mesmas roupas que usara quando apareceu pela primeira vez no palácio, e sua beleza de agora nada ficava a dever à sua beleza de então. Os pais de Isabela ficaram admirados e surpresos de ver tanta beleza e elegância juntas. Puseram os olhos nela, mas não a reconheceram, embora o coração, pressentindo a ventura que os rondava, começasse a bater mais forte no peito, não com sobressaltos de quem se entristece, mas com um não sei quê de felicidade, que êles próprios não podiam entender. A rainha não permitiu que Recaredo se mantivesse de joelhos perante ela; fêz com que êle se levantasse e sentasse em uma cadeira, sem encôsto, que tinha sido colocada ali, especialmente para êle, favor êste dificilmente concedido pela altiva condição da rainha. Houve quem dissesse: - Recaredo senta-se hoje não sôbre a cadeira que lhe foi dada e sim sôbre a pimenta que trouxe. Outro disse: - Confirma-se agora o que comumente se diz, que as dádivas amenizam as penas, porque as dádivas que Recaredo trouxe abrandaram o rígido coração de nossa rainha. E outro: - Agora que está tão bem sentado, mais de dois atrever-se-ão a persegui-lo. Com efeito, aquela nova honra que a rainha concedera a Recaredo fez com que a inveja nascesse em muitos corações daqueles que o observavam, pois tôda mercê concedida por um príncipe a alguém que lhe agrade é uma lança a atravessar o coração do invejoso. A rainha quis saber de Recaredo, pormenorizadamente, a batalha que travaram com os barcos dos corsários; êle contou-a novamente, atribuindo a vitória a Deus e aos braços valorosos de seus soldados, exaltando-os a todos e, particularmente, os feitos de alguns que se haviam destacado, fato que obrigou a rainha a recompensar todos e principalmente os nomes citados por Recaredo, que não se esqueceu de falar da liberdade que dera aos turcos e cristãos, em nome da rainha: - Aquela mulher e aquêle homem, que ali estão - disse, apontando os pais de Isabela -, são os que, como já tive oportunidade de dizer ontem a Vossa Majestade, desejavam conhecer a vossa grandeza, pedindo encarecidamente para trazê-los comigo; êles são de Cádiz, segundo me disseram, e, conforme pude observar pelas suas palavras, sei que são gente importante e de bem. A rainha ordenou-lhes que se aproximassem; Isabela ergueu os olhos para poder observar aquêles que se diziam espanhóis de Cádiz, ansiosa por saber se êles conheciam seus pais. Os olhos de Isabela encontraram-se com os de sua mãe, que se pôs a observá-la demoradamente; na memória da môça começaram a se formar umas idéias confusas, que lhe deram a impressão de já ter visto antes aquela mulher. Seu pai encontrava-se na mesma confusão e não se atrevia a acreditar na verdade que se fazia clara diante de seus olhos. Recaredo observava atentamente as reações e os movimentos daquelas três almas, que se encontravam na dúvida e que se procuravam reconhecer. A rainha percebeu o estado de ânimo dos pais de Isabela, bem como a inquietação da môça, pois a viu transpirar e levantar a mão inúmeras vêzes para arrumar o cabelo. Isabela desejava ardentemente ouvir a voz da criatura que imaginava ser sua mãe, pois seus ouvidos talvez pudessem desfazer a dúvida em que seus olhos a tinham colocado. A rainha ordenou a Isabela que falasse em espanhol àquela mulher e àquêle homem, perguntando-lhes por que haviam recusado a liberdade que Recaredo lhes oferecera, uma vez que a liberdade é, das coisas, a mais amada, não só pelos indivíduos dotados de raciocínio, como também pelos animais, que dela precisam. Isabela obedeceu e falou com sua mãe, que, sem responder-lhe palavra, quase mecânicamente, meio trôpega, chegou-se a Isabela e, sem respeitar os protocolos e os olhares da côrte, levantou a mão, tocando a orelha direita de Isabela, onde descobriu um pequeno sinal negro que ali havia e que veio confirmar as suas suspeitas; vendo claramente que Isabela era sua filha, abraçou-se a ela, dizendo em altas vozes: - Filha de meu coração! Vida de minha alma! - Mas foi apenas isto o que conseguiu dizer, pois caiu desmaiada nos braços de Isabela. Seu pai, terno e prudente, deu mostras de seus sentimentos não com palavras, más com lágrimas que, silenciosamente, banharam-lhe o rosto. Isabela aproximou seu rosto ao de sua mãe e, voltando os olhos para o pai, olhou-o de tal maneira que o fêz sentir tôda a alegria e ao mesmo tempo a amargura de os ver ali. A rainha, admirada com os acontecimentos, falou a Recaredo: - Penso, Recaredo, que vossa prudência preparou êste encontro, mas não podemos dizer que agistes acertadamente, pois sabemos que uma súbita alegria pode também matar uma criatura. - E assim dizendo, voltou-se para Isabela, separando-a de sua mãe, que, tendo-lhe alguém molhado o rosto com água, voltou a si e, já no domínio de suas emoções, ajoelhou-se aos pés da rainha, dizendo-lhe: - Peço que Vossa Majestade perdoe o atrevimento de ter perdido os sentidos pela alegria de encontrar minha amada prenda. A rainha, por intermédio de Isabela, que lhe serviu de intérprete, disse-lhe que era muito natural perder os sentidos em tal circunstância, e ordenou aos pais de Isabela que ficassem no palácio para poderem ver e falar com a filha quando quisessem; Recaredo alegrou-se com o fato e pediu novamente à rainha que cumprisse a palavra de lhe dar Isabela, se é que êle a merecia; se não, suplicava-lhe, desde logo, que lhe desse novos trabalhos a fim de se fazer digno dela. A rainha bem sabia que Recaredo estava contente consigo mesmo, com seu valor, não havendo, portanto, necessidade de novos trabalhos para provar sua coragem. por isso, disse-lhe que dentro de quatro dias entregar-lhe-ia Isabela, concedendo aos dois tôda a honra que estivesse em seu alcance. Recaredo despediu-se contentíssimo e certo de que Isabela havia de lhe pertencer, sem pensar que poderia perdê-la, pois, êste é, aliás, o último dos desejos de um enamorado. O tempo correu, mas não com a rapidez por êle desejada, pois os que vivem esperando o cumprimento de promessas imaginam sempre que o tempo não voa e que anda sempre sôbre os pés da própria lentidão. Chegou finalmente o dia em que Recaredo pensou não em pôr fim aos seus desejos, mas em encontrar em Isabela novas graças que o fizessem amá-la ainda mais, se isto fôsse possível. Mas, nesse meio de tempo em que êle pensava que a nave de sua boa fortuna fôsse impelida por um vento favorável até o pôrto desejado, a sorte adversa preparava tal tormenta que parecia tudo querer e não dar. Acontece que a camareira da rainha, a cujos cuidados estava entregue Isabela, possuía um filho de 22 anos, chamado Conde Arnesto. Sua posição destacada, a nobreza de seu sangue, a consideração que a rainha tinha por sua mãe faziam-no mais arrogante, altivo e presumido do que na realidade deveria ser. Este homem apaixonou-se de tal maneira por Isabela, que sentia a alma queimar-se na luz dos olhos da jovem; enquanto Recaredo estêve ausente, procurou Isabela para manifestar os seus desejos, embora ela nunca lhe tivesse dado atenção; a repugnância e os desdéns, que no princípio dos amôres costumam fazer os enamorados desistirem de suas intenções, em Arnesto produziram efeito contrário, pois seus ciúmes o devoravam e a honestidade de Isabela o consumia: vendo que Recaredo, segundo a opinião da rainha, fizera por merecer Isabela e que, dentro de pouco tempo, ela haveria de se tornar espôsa dêle, quis desesperar-se, mas, antes de chegar a tão infame e covarde solução, falou com sua mãe, dizendo-lhe para pedir à rainha que lhe desse Isabela por espôsa; se ela não consentisse, era preciso fazê-la saber que a morte estava rondando as portas de sua vida. A camareira ficou impressionada com as palavras do filho e, como conhecia seu gênio violento e a tenacidade com que os desejos apoderavam-se de sua alma, temeu que seus amôres tivessem um final infeliz. Além disso, era mãe e seria natural que procurasse o bem-estar de seu filho; prometeu, então, falar com a rainha, não por esperar que ela voltasse atrás com sua palavra, o que, aliás, era impossível, mas para não deixar de tentar e ter esperanças num último remédio. Naquela manhã, em que Isabela, por ordem da rainha, estava tão ricamente vestida, que minha pena não se atreve a tentar descrever, tendo no pescoço um colar feito das mais belas pérolas trazidas pela nave, avaliadas em 20.000 ducados, e, no dedo, um anel com um só diamante, no valor de 6.000 escudos, colocados no colo e no dedo pela própria rainha, naquela manhã, em que as damas, alvoroçadas, esperavam pela festa do casamento próximo, a camareira entrou e, de joelhos, suplicou à rainha que suspendesse os esponsais de Isabela por dois dias e que com êste favor, se lhe fôsse concedido, dar-se-ia por paga e satisfeita de todos os serviços que lhe prestara. A rainha quis, antes de mais nada, saber por que lhe pedia ela, com tanta insistência, o não cumprimento da palavra que dera a Recaredo. A camareira, porém, não lhe quis dar uma explicação sem que ela lhe atendesse antes o pedido; a rainha lhe fêz a vontade, pois desejava muito saber a causa de tal demanda. A camareira, tendo alcançado o que desejava, contou à rainha os sentimentos do filho, dizendo temer que êle fizesse alguma loucura ou algum escândalo se não lhe dessem Isabela por espôsa e que pedira aquêles dois dias a fim de que Sua Majestade pudesse pensar em um meio de resolver a situação. A rainha respondeu que, se sua palavra não estivesse em jôgo, ela acharia fàcilmente uma solução para esta situação tão delicada, mas que não voltaria atrás no que prometera e não frustraria Recaredo em suas esperanças por todo o interêsse do mundo. Esta resposta a camareira transmitiu-a ao filho, que, sem nada a esperar, abrasado pelo amor e pelo ciúme, apanhou as armas que pôde e, montando o cavalo forte e formoso, dirigiu-se à casa de Clotaldo e, em altas vozes, disse que Recaredo aparecesse na janela; o jovem, que naquele momento vestia-se como nubente e que se preparava para ir ao palácio com um acompanhamento que tal ocasião exigia, ouvindo vozes tão altas e tomando conhecimento de quem as pronunciava e da maneira que se apresentava, dirigiu-se a uma das janelas, sobressaltado. Arnesto, assim que o viu, disse-lhe: - Recaredo, presta atenção ao que te quero dizer. A rainha, minha senhora, ordenou-te que a servisses e realizasses façanhas que te fizessem merecedor da formosa Isabela; partiste e voltaste com naves carregadas de ouro e com isso pensas ter comprado e merecido Isabela; nossa rainha prometeu dá-la a ti acreditando que não haja na côrte alguém que a sirva melhor do que tu, nem que haja alguém que mais mereça Isabela, no que, julgo eu, pode ter-se enganado; chegando a esta conclusão digo-te que não fizeste, nem poderás fazer coisa alguma que te faça merecedor de Isabela; digo-te que não a mereces e, se queres desmentir-me, desafio-te para um duelo. Calou-se o conde e Recaredo lhe respondeu: - Confesso que não mereço Isabela, senhor conde, e reconheço também que criatura alguma na face da Terra a merece; por esta razão não haveria eu de aceitar vosso desafio; aceito-o, entretanto, para responder ao atrevimento que tivestes em vir desafiar-me. Dito isto, afastou-se da janela e pediu que lhe trouxessem as armas ràpidamente. Tôdas as pessoas de sua família e todos os que se encontravam presentes para fazerem parte do acompanhamento que levaria Recaredo ao palácio alvoroçaram-se. Dentre os que viram o Conde Arnesto armado e ouviram-lhe o desafio, não faltou quem fôsse falar com a rainha, que mandou o capitão de sua guarda ir prender o conde. O capitão apressou-se tanto em executar a ordem, que chegou a tempo de ver Recaredo sair de casa, armado e montado em um belíssimo cavalo. O conde, vendo o capitão, imaginou logo a razão de sua presença e decidiu não se deixar prender; levantando a voz, disse a Recaredo: - Estás vendo, Recaredo, que estamos impedidos de lutar. se queres castigar-me, procura-me, pois eu te procurarei, e como duas pessoas que se procuram fàcilmente se encontram, deixemos para depois a realização de nossos desejos. - Está bem - respondeu Recaredo. Nisto, chegou o capitão com tôda a sua guarda, dizendo ao conde que se considerasse prêso em nome de Sua Majestade. O conde não resistiu, mas pediu-lhe que o levassem à presença da rainha. O capitão atendeu ao seu pedido e, escoltando-o, com sua guarda, levou-o ao palácio, à presença da rainha, que já fôra informada por sua camareira do grande amor que o filho dedicava a Isabela e que, com lágrimas nos olhos, pedira à rainha, que, sem querer ouvir suas explicações, ordenou que lhe retirassem a espada e o levassem prêso a uma torre. Tôdas estas coisas atormentavam o coração de Isabela e de seus pais, que viam perturbar-se, tão cedo, o mar de sua tranqüilidade. A camareira aconselhou a rainha a enviar Isabela para a Espanha, pois só assim poderia evitar que alguma coisa má acontecesse entre seus parentes e os de Recaredo, impedindo, desta maneira, que se chegasse a resultados desastrosos; acrescentou ainda que Isabela era católica, e tanto, que nenhuma de suas numerosas palavras tinham podido induzi-la a deixar de sê-lo. Respondeu-lhe a rainha que a estimava mais ainda por isso, pois demonstrava, assim, que sabia respeitar o ensinamento de seus pais, e que não pensava em enviá-la à Espanha porque sua formosa presença, suas inúmeras graças e virtudes agradavam-lhe muito, e que, sem dúvida alguma, haveria de fazê-la espôsa de Recaredo; se não fôsse naquele dia, seria em outro, e, assim, cumpriria o prometido. As palavras da rainha deixaram a camareira tão desconsolada, que ela não pôde dizer uma só palavra, pois achava que somente enviando Isabela de volta à Espanha poderia fazer com que seu filho não se batesse em duelo com Recaredo; como não fôsse bem sucedida em seu plano, decidiu praticar uma das maiores crueldades que a cabeça de uma mulher importante como o era ela jamais pôde imaginar: decidiu envenenar Isabela; decidida e rápida, como o é a maior parte das mulheres, naquela mesma tarde deu-lhe um veneno para beber, dizendo-lhe que o tomasse por ser bom remédio para acalmar a ansiedade em que se encontrava. Logo depois que bebeu o veneno, Isabela sentiu que lhe inchavam a língua e a garganta, que seus lábios enegreciam, que sua voz enrouquecia, que os olhos não enxergavam e que o peito lhe apertava. Todos êstes eram sintomas de envenenamento. As damas da rainha informaram-na do que se passava, afirmando que só a camareira poderia ter causado aquêle mal a Isabela. Não foi preciso muito para que a rainha acreditasse e foi imediatamente ver Isabela, que estava quase expirando. Mandou chamar, à pressa, todos os seus médicos e, enquanto êles não chegavam, fêz com que lhe ministrassem algumas porções de antídotos que os grandes príncipes costumam ter para o caso de se encontrarem em situação semelhante. Chegaram os médicos e pediram à rainha que obrigasse a camareira a revelar que espécie de veneno havia usado, pois não havia mais dúvidas de que fôra ela quem envenenara a jovem. Ela revelou-lhes o nome e assim puderam os médicos aplicar tantos e tão eficazes remédios que, com êles e com a ajuda de Deus, Isabela pôde ficar com vida ou, pelo menos, com a esperança de tê-la. A rainha ordenou que prendessem a camareira e a encerrassem em um pequeno aposento do palácio, com intenção de castigá-la pelo delito que havia praticado, embora ela procurasse desculpar-se dizendo que, matando Isabela, oferecia um sacrifício ao céu, por tirar uma cristã da terra, evitando que seu filho se batesse em duelo. Quando êstes tristes acontecimentos chegaram aos ouvidos de Recaredo, quase o fizeram perder o juízo. Isabela não perdeu a vida, mas a natureza fêz com que ela ficasse sem as sobrancelhas, sem pestanas e sem cabelo, o rosto inchado, descorada, a pele áspera e os olhos lacrimejantes. Ficou tão feia que, se antes parecia um milagre de beleza, agora parecia um monstro de feiúra. Todos os que a conheciam julgavam que seria preferível ter ela morrido do que ficar reduzida àquele estado. Apesar de tudo isto, Recaredo tornou a pedi-la à rainha, suplicando que a deixasse levar para casa, pois o amor que a ela dedicava estendia-se à alma e não simplesmente ao corpo e que, se Isabela havia perdido sua beleza, não havia, certamente, perdido suas infinitas virtudes. - Assim seja - disse a rainha. - Levai-a, Recaredo, e tomai cuidado, porque levais uma riquíssima jóia, encerrada em uma caixa de madeira tôsca; Deus sabe que eu vos queria devolvê-la da maneira que a entregastes a mim; já que não é possível, perdoai-me; talvez o castigo que eu der à autora de tal crime satisfaça, em parte, o desejo de vingança. Recaredo disse-lhe inúmeras palavras, procurando justificar a atitude da camareira e suplicando-lhe que a perdoasse, pois as desculpas que ela apresentava eram suficientes para perdoar insultos ainda maiores. Finalmente, entregaram-lhe Isabela e Recaredo levou-a à casa de seus pais; às ricas pérolas e ao diamante a rainha reuniu outras jóias e outros vestidos, demonstrando o grande amor dedicado a Isabela, que, durante dois meses, permaneceu naquele estado, sem dar indício algum de poder voltar à sua antiga formosura; só depois de dois meses é que a pele começou a cair, deixando ver sua formosa cútis. Por êsse tempo, os pais de Recaredo, acreditando que Isabela não voltasse mais a ser o que era, decidiram mandar buscar a jovem da Escócia que antes estivera para casar com Recaredo, e fizeram isto sem que êle o soubesse, não duvidando de que a formosura de sua nova prometida fizesse o filho esquecer a antiga beleza de Isabela, a quem pensavam enviar para a Espanha, em companhia de seus pais, dando-lhes riquezas suficientes para recompensá-los dos prejuízos passados. Não se passara ainda um mês e meio quando, sem que Recaredo soubesse, a nova espôsa entrou pelas portas de sua casa, tão formosa que, depois da beleza de Isabela, não havia, em Londres, outra que a igualasse em formosura. Recaredo assustou-se com a vinda inesperada da jovem e receou que o choque de sua presença pudesse acabar com a vida de Isabela; para afastar êsse temor, foi até o leito de Isabela, que se achava acompanhada de seus pais e, mesmo diante dêles, disse-lhe: - Isabela de minha alma, meus pais, levados pelo grande amor que me dedicam, não sabendo o quanto eu lhe quero, trouxeram para cá uma jovem escocesa com a qual haviam planejado casar-me, antes que eu conhecesse teu verdadeiro valor; fizeram isto, penso eu, acreditando que a beleza desta jovem apague de minha alma a tua lembrança; eu, Isabela, sempre te dediquei um amor que vai muito além de um simples prazer material, pois, se tua formosura pôde cativar meus sentidos, tuas infinitas virtudes aprisionaram-me a alma, de modo que, se te quis quando eras formosa, agora que perdeste a beleza adorote, e, para provar que digo a verdade, quero que me dês a tua mão. Isabela estendeu-lhe a mão direita e êle, unindo-a com a sua, falou: - Juro pela fé católica, que meus pais me ensinaram, e pelo Deus verdadeiro, que nos está ouvindo, Isabela de minha alma, juro ser teu espôso. E como tal me considero desde já, se queres conceder-me a graça de me pertencer. Isabela surpreendeu-se com as palavras de Recaredo e seus pais ficaram atônitos, pasmados. Ela não soube o que dizer-lhe; o que fêz foi somente beijar as mãos de Recaredo muitas vêzes para depois dizer-lhe, Com voz entrecortada pelas lágrimas, que ela o aceitava e que se considerava sua escrava. Recaredo beijou-lhe o rosto feio, coisa que não ousara fazer antes, quando êle era formoso; os pais de Isabela solenizaram com ternas e copiosas lágrimas as festas do esponsal; Recaredo disse-lhes que adiaria sempre o casamento com a jovem escocesa, que se encontrava em sua casa, recomendando-lhes que não se recusassem, os três, a ir para a Espanha, quando seu pai lhes falasse da partida; que partissem e o aguardassem em Cádiz ou em Sevilha, dentro de dois anos, pois dava-lhes êle sua palavra de ir procurá-los se o céu lhe concedesse vida até lá; disse-lhes ainda que, se não aparecesse dentro do prazo estabelecido, estivessem êles certos de que algum motivo importante ou mesmo a morte havia-se pôsto em seu caminho. Isabela respondeu-lhe que o esperaria, não só por dois anos, mas pela vida tôda, até certificar-se de que êle ainda existia, pois, quando êle morresse, estaria lavrada também sua sentença de morte. Com estas ternas palavras, renovaram-se as lágrimas de todos e Recaredo saiu para dizer aos pais que de maneira alguma casar-se-ia com a jovem escocesa, sem antes ter ido a Roma, para ficar com a consciência tranqüila. Tais razões soube êle apontar aos seus pais e aos parentes de Clisterna - assim chamava-se a escocesa - que todos, católicos também, acreditaram fàcilmente em suas palavras; Clisterna, por sua vez, alegrou-se por ficar na casa de seu sogro até a volta de Recaredo, o que se verificaria dentro de um ano. Depois de terem entrado em acôrdo, Clotaldo informou Recaredo que decidira enviar, se a rainha permitisse, Isabela e seus pais à Espanha, pois talvez os ares da pátria fôssem benéficos para seu completo restabelecimento. Recaredo, para não deixar transparecer suas intenções, respondeu simplesmente que o pai fizesse como achasse melhor, pedindo apenas que não tirasse de Isabela riqueza alguma que a rainha lhe havia dado. Clotaldo prometeu e, naquele mesmo dia, dirigiu-se à rainha para pedir-lhe licença de casar seu filho com Clisterna e enviar Isabela e seus pais à Espanha. A rainha concordou com a decisão de Clotaldo, pois achou-a acertada; em seguida, sem a presença de advogados e sem levar a camareira a juízo, afastou-a de seu cargo e condenou-a a pagar 10.000 escudos de ouro a Isabela; ao Conde Arnesto, por ter lançado um desafio, desterrou-o por seis anos da Inglaterra. Quatro dias depois, Arnesto achava-se pronto para partir. A rainha chamou um rico mercador francês, que habitava em Londres e que possuía representantes na França, Itália e Espanha, entregou-lhe os 10.000 escudos, pedindo-lhe um comprovante da entrega do dinheiro, a fim de que esta quantia pudesse chegar às mãos do pai de Isabela, em Sevilha, ou em qualquer outra praça da Espanha. O mercador, satisfeito em seus interêsses e ganância, disse à rainha que as cédulas seriam enviadas a Sevilha em nome de outro mercador francês, seu representante; para tanto, teria êle que mandar uma carta a Paris ordenando que as cédulas fôssem feitas por outro de seus representantes, a fim de que constassem as datas da França e não as da Inglaterra, pois não pagariam assim o impôsto sôbre a transação de mercadorias entre os reinos; era bastante que mandasse um aviso sem data, com suas credenciais, para que o dinheiro fôsse imediatamente entregue ao negociante de Sevilha, pois o de Paris já estaria informado de tudo. A rainha tomou tôdas as providências para que as negociações saíssem a contento; mandou chamar o dono de uma nave flamenga, que, no outro dia, deveria partir para a França, a fim de que pudesse apresentar na Espanha um documento de partida de algum pôrto da França e não da Inglaterra; pediu-lhe também, encarecidamente, que levasse Isabela e seus pais, deixando-os em algum pôrto da Espanha, no primeiro que chegasse, zelando pela segurança dêles e dispensando-lhes um bom tratamento. O homem, que desejava cair nas graças da rainha, prometeu fazer tudo o que ela havia pedido, dizendo que os deixaria em Lisboa, Cádiz ou Sevilha. Tomadas, pois, tôdas as precauções, a rainha mandou dizer a Clotaldo que nada tirasse a Isabela do que lhe havia dado, quer fôssem jóias ou vestidos. No dia seguinte, Isabela e seus pais vieram despedir-se da rainha, que os recebeu carinhosamente. Entregou-lhe a carta do mercador e muitos outros presentes, em dinheiro e coisas para a viagem; Isabela agradeceu de tal modo à rainha que esta se viu ainda na obrigação de lhe fazer mais favores; despediu-se Isabela de tôdas as damas da côrte, que, vendo agora apagada a beleza da jovem, não queriam que ela partisse, pois não teriam mais que invejar sua formosura, e porque sentiam-se felizes de poder mostrar suas graças, suas qualidades. A rainha abraçou os três, desejando-lhes boa sorte, recomendando-os ao capitão da nave, pedindo a Isabela que mandasse avisá-la quando chegasse à Espanha, enviando sempre notícias de seu estado de saúde, por intermédio do mercador francês. Clotaldo, sua mulher e tôdas as pessoas da casa choraram quando Isabela partiu naquela mesma tarde, pois ela era muito querida de todos. Recaredo não estêve presente à despedida porque, para não dar demonstração de seus sentimentos, fêz com que alguns amigos o levassem à caça. Foram inúmeros os presentes que a Senhora Catalina deu a Isabela; infinitos foram os abraços, abundantes as lágrimas, inúmeras as recomendações para Isabela escrever; pais e filha a tudo responderam afirmativamente, de modo que, embora chorando, ficaram todos satisfeitos. A embarcação içou as velas naquela noite; como o vento fôsse favorável e tivessem êles tomado tôdas as providências necessárias, puderam, daí a trinta dias, entrar na barra de Cádiz, onde Isabela e seus pais desembarcaram; reconhecidos por tôdas as pessoas da cidade, foram recebidos com muita alegria. Receberam felicitações por terem encontrado Isabela, por terem conseguido libertar-se dos mouros que os haviam aprisionado e por terem recebido os favores dos inglêses, fato de que tomaram conhecimento através dos escravos, que a liberalidade de Recaredo tornara livres. Por êsse tempo, Isabela dava mostras de retornar à sua antiga formosura. Permaneceram em Cádiz pouco mais de um mês, fazendo revisões no navio; depois disso foram a Sevilha para ver se recebiam os 10.000 escudos, que deveriam chegar por intermédio do mercador francês; dois dias depois, desembarcaram em Sevilha, procuraram o representante do mercador, encontraram-no, entregaram-lhe a carta que traziam de Londres, êle a reconheceu como verdadeira, mas não lhes podia dar o dinheiro enquanto não recebesse o aviso e a ordem de pagamento de Paris, mas que certamente não deveria demorar. Os pais de Isabela alugaram uma casa vizinha ao Mosteiro de Santa Paula, onde se encontrava uma sobrinha dêles, que possuía voz belíssima e inigualável, e o fizeram porque Isabela havia dito a Recaredo que, quando viesse buscá-la haveria de encontrá-la em Sevilha e que, ali chegando, era só perguntar pela monja de melhor voz em todo o mosteiro, porque esta indicação êle não haveria de esquecer fàcilmente e também porque sua prima, a freira de Santa Paula, ensinar-lhe-ia sua casa. Passaram-se quarenta dias até que chegassem os visos de Paris; aí, então, o mercador francês entregou os 10.000 escudos a Isabela, que os passou às mãos de seus pais; com êsse dinheiro e com mais algum que conseguiram, vendendo algumas das inúmeras jóias de Isabela, pôde seu pai voltar a ser comerciante, fato que admirou a todos os que souberam das inúmeras perdas por êle sofridas. Em poucos meses obteve êle o crédito que perdera e a beleza de Isabela voltou a ser o que fôra e de tal maneira que, falando-se em beleza, todos eram unânimes em conceder os louros à espanhola inglêsa, apelido pelo qual Isabela era conhecida em tôda a cidade. Por intermédio do mercador francês de Sevilha, Isabela e seus pais enviaram cartas à rainha da Inglaterra falando de sua chegada e agradecendo os inúmeros favores que dela haviam recebido; escreveram também a Clotaldo e a Catalina. Da rainha, não obtiveram resposta, mas Clotaldo e sua mulher responderam-lhes, dizendo-se alegres por terem êles chegado a salvo e comunicavam-lhes que Recaredo, um dia após a partida dêles, partira também para a França, de onde dirigir-se-ia depois para outros lugares, procurando assegurar a paz de sua consciência; acrescentavam, no fim, outras palavras amorosas e ofereceram-se para auxiliá-los no que pudessem. Esta carta obteve uma resposta cortês, amorosa e agradecida. Isabela imaginou logo que Recaredo deixara a Inglaterra para vir buscá-la e, alimentando essa esperança, sentia-se muito feliz, procurando levar uma vida simples e virtuosa, a fim de que, quando Recaredo chegasse a Sevilha, ouvisse falar mais de suas virtudes do que de qualquer outra coisa. Saía muito pouco de casa e, quando o fazia, era para ir ao mosteiro; os únicos elogios que recebia eram os que se podem receber em um convento. Em sua casa, em seu oratório, dirigia o pensamento a Deus e ao Espírito Santo; jamais visitou o rio, jamais passou por Triana, nem mesmo estêve festejando em meio ao povo, no campo de Tablada ou na porta de Jerez, o dia de São Sebastião, que é festejado por um número incalculável de criaturas; não assistiu a nenhuma festa pública de Sevilha; vivia em seu recolhimento e para suas orações, esperando sempre a chegada de Recaredo. Êste seu retraimento aguçava a curiosidade e os desejos não só dos janotas do bairro, como também de todos aquêles que a tivessem visto, mesmo que fôsse uma só vez; por esta razão, fizeram-lhe muitas canções, que foram cantadas à noite em sua rua. Muitos foram os que se interessaram por Isabela e não faltou quem fizesse a tolice de recorrer a feitiços; Isabela, porém, permanecia imperturbável, como se fôsse uma rocha em meio ao mar: as águas chegam a tocá-la, mas nem as ondas nem os ventos conseguem movêla. Passou-se um ano e meio e a esperança de tornar a ver Recaredo agitava mais e mais o coração de Isabela; por êsse tempo, quando a môça imaginava que seu prometido estava por chegar, quando já o via diante dos olhos e lhe perguntava que motivos o teriam feito demorar-se tanto, quando já chegavam a seus ouvidos as desculpas que êle havia de dar e quando ela se via perdoandoo, abraçando-o, como se recebesse a metade de sua alma, chegou a suas mãos uma carta da Senhora Catalina, de Londres, datada de cinqüenta dias antes, com os seguintes dizeres: “Filha de minha alma. Certamente conheceste Guilharte, o pajem de Recaredo; pois bem, foi êle quem acompanhou, como tive oportunidade de contar já em outra carta, foi êle quem acompanhou Recaredo em sua viagem à França e a outros lugares e foi êle próprio quem, dezesseis meses após a partida de meu filho, entrou, ontem, pela nossa porta, dizendo que o Conde Arnesto havia matado Recaredo a traição, na França. Imagina, minha filha, como ficamos eu, seu pai e sua futura espôsa ao recebermos tais notícias; estamos certos de que a desventura nos acompanha. Clotaldo e eu te pedimos outra vez, filha de minha alma, que recomendes a Deus a alma de Recaredo, pois êle bem o merece pelo muito que te quis; pede também a Nosso Senhor que nos dê paciência e nos assista na hora de nossa morte, que nós pediremos também que êle dê, a ti e a teus pais, muitos anos de vida”. A letra e a assinatura de tal carta fizeram com que Isabela não duvidasse da morte de seu espôso; conhecia ela muito bem o pajem Guilharte, sabia que êle não mentia e que não tinha motivos para simular aquela morte; nem a Senhora Catalina seria capaz de mentir-lhe ou inventar-lhe história alguma porque não tinha nenhum interêsse em enviar-lhe tão tristes notícias; nada, portanto, poderia fazê-la deixar de acreditar nesta nova desventura que acabava de atingi-la. Ao terminar de ler a carta, sem derramar lágrimas e sem dar mostras de que sofria, o rosto tranqüilo, o coração aparentemente confortado, levantou-se, dirigiu-se ao seu oratório e, ajoelhando-se perante um crucifixo, fêz votos de ser monja, pois, tendo morrido seu espôso, nada mais a impediria agora. Seus pais procuraram esconder a grande dor que a notícia lhes causara, a fim de poderem confortar Isabela em sua amargura, mas foi ela quem, reconfortando-se, sentindo-se firme no santo e cristão propósito que fizera, procurou consolar os pais. Falou-lhes também de suas intenções e êles aconselharam-na a não levar seu plano a efeito, até que passassem os dois anos de prazo pedidos por Recaredo, podendo-se também, desta forma, confirmar-se a notícia de sua morte, e ela poderia saber, então, se realmente queria entrar para o convento. Isabela assim fêz e, no correr dos seis meses e meio que faltavam para inteirar os dois anos, passou exercitando-se como religiosa e preparando-se para entrar no mosteiro que escolhera, o de Santa Paula, onde estava sua prima. Passaram-se os dois anos e chegou o dia em que Isabela deveria tomar o hábito; a notícia espalhou-se por tôda a cidade e todos aquêles que a conheciam, ou de vista ou de nome, foram ao mosteiro para vê-la; os pais de Isabela convidaram seus amigos e êstes convidaram também outras pessoas, de modo que ela teve um dos mais belos acompanhamentos que, em semelhante ocasião, se viu em Sevilha. Entre os acompanhantes estavam o assistente e o provedor da igreja, o vigário e tôdas as senhoras e senhores importantes que haviam na cidade, pois todos desejavam ardentemente ver o sol da formosura de Isabela, o que, por tanto tempo, lhes fôra negado; as jovens que vão receber o hábito costumam vestir-se da melhor maneira possível, apresentando-se como alguém que se despede de uma vida cheia de esplendores, por isso, Isabela quis vestirse ricamente; pôs aquêle mesmo vestido que usara quando fôra ver a rainha da Inglaterra pela primeira vez e que, como já dissemos, era riquíssimo e vistoso; todos puderam ver as pérolas e o famoso diamante, que eram de imenso valor. Assim, enfeitada, em tôda a sua elegância, fêz com que todos avaliassem a grandeza de Deus; Isabela saiu de sua casa a pé, pois, morando tão perto do mosteiro, não havia necessidade de se utilizar de carros e carruagens; a afluência de pessoas foi tão grande que os componentes do cortejo arrependeram-se de não se terem servido de carros para entrar no mosteiro; algumas pessoas louvavam-lhe os pais, outras louvavam a Deus pela sua incomparável beleza; uns ficavam na ponta dos pés para vê-la, outros, depois de vê-la uma vez, corriam mais adiante para vê-la de nôvo; havia, entretanto, um homem vestido como prisioneiro, que acabava de ser resgatado, com o símbolo da Santa Trindade no peito, sinal de que havia sido libertado pelos frades da Ordem da Mercê, que era o mais solícito. Quando Isabela, recebida segundo o uso pela abadêssa e pelas freiras, punha os pés na porta do convento, êste prisioneiro gritou, tão alto quanto pôde: - Pára, Isabela, pára! Enquanto eu fôr vivo tu não poderás ser freira. Ouvindo estas palavras, Isabela e seus pais voltaram-se e viram que o escravo, abrindo caminho entre tôda aquela multidão, dirigia-se para onde êles se encontravam; caíra-lhe da cabeça um barrete azul, deixando à mostra uns cabelos crespos, côr de ouro, desalinhados, um rosto alvo como a neve e corado como o carmim, branco e corado, sinais que fizeram todos julgarem-no estrangeiro. Não foi sem dificuldade que êle conseguiu chegar até onde estava Isabela e, tomando-a pela mão, disse-lhe: - Não me reconheces, Isabela? Sou Recaredo, teu espôso. - Reconheço - disse Isabela -, se não és um fantasma que veio para me tirar o sossêgo. Seus pais tocaram-no, olharam-no atentamente e reconheceram nêle, por fim, Recaredo, que, com lágrimas nos olhos, de joelhos, perante Isabela, suplicava-lhe que aquêles trajes estranhos e a má situação financeira em que se encontrava não a impedissem de cumprir a palavra que ela lhe dera. Isabela, apesar de ainda vivamente impressionada pela carta da mãe de Recaredo, que lhe falava da morte dêle, quis acreditar mais em seus olhos e no que via, e assim, abraçando o jovem prisioneiro, disse-lhe: - Vós, sem dúvida alguma, meu senhor, sois a criatura que poderá impedir-me de realizar meu propósito cristão; sois, sem dúvida alguma, meu senhor, a metade de minha alma, pois sois meu verdadeiro espôso; trago vossa imagem guardada em minha memória e em meu coração; as notícias de vossa morte, enviadas por minha senhora, vossa mãe, não me tiraram a vida, mas fizeram-me escolher uma vida de recolhimento da qual queria fazer parte; porém, já que Deus parece ter disposto os fatos de outra maneira, não podemos nem devemos opor-nos; vinde, senhor, à casa de meus pais, pois ela vos pertence; ali podereis tornar-vos meu senhor, de acôrdo com os preceitos da santa fé católica. Todos os presentes ouviram essas palavras; o assistente, o vigário, o provedor do arcebispo admiraram-se ao ouvi-las e quiseram saber logo do que se tratava, quiseram saber quem era aquêle estrangeiro e a respeito de que casamento falava. O pai de Isabela procurava responder a tôdas as suas perguntas, acrescentando depois que aquela história exigia outro lugar para ser contada e algum tempo para que se pudesse narrá-la; em seguida, pediu a todos os religiosos que fôssem à sua casa, tão próxima dali, pois lá haveria de contar a verdade, a fim de que todos ficassem satisfeitos e ficassem admirados com a grandiosidade e estranheza do caso. Nisto, um dos presentes, levantando a voz, disse: - Senhores, êste jovem é um grande corsário inglês; eu o conheço, é aquêle que, faz pouco menos de dois anos, tomou dos corsários de Argel a nave portuguêsa que vinha das Índias; não há dúvida, eu o conheço, pois foi êle quem me deu liberdade e dinheiro para vir à Espanha, a mim e a outros trezentos prisioneiros. Estas palavras alvoroçaram tôda aquela gente, despertando nela o desejo de saber claramente a respeito de fatos tão complicados. Tôdas as pessoas importantes, o assistente do arcebispo e demais autoridades eclesiásticas voltaram para acompanhar Isabela até sua casa, deixando as religiosas tristes, confusas e chorando por perderem a companhia da formosa Isabela, que, tendo chegado à sua casa, fêz com que todos os seus acompanhantes se acomodassem em uma grande sala que nela havia; Recaredo quis encarregar-se de contar tôda a história, porém, pareceu-lhe melhor confiar na discrição de Isabela e em sua maneira de falar, pois êle sabia que não falava perfeitamente a língua castelhana. Calaram-se todos os presentes e voltaram a atenção a Isabela, que passou a narrar os fatos, desde o dia em que Clotaldo a roubou de Cádiz até o dia em que para ali voltou; falou da batalha de Recaredo contra os turcos, da liberalidade que êle tivera para com os cristãos, da promessa que haviam feito de se tornarem marido e mulher, do prazo de dois anos que Recaredo lhe pedira, das notícias da morte dêle, notícias estas que a levaram a decidir-se pela vida religiosa; elogiou a liberalidade da rainha, o espírito cristão de Recaredo e de seus pais e, finalizando, pediu a Recaredo para contar o que havia acontecido desde que êle saíra de Londres, até o tempo presente, em que se apresentava com roupas de prisioneiro e com mostras de ter sido libertado por esmola. - É verdade - falou Recaredo. - Resumirei em poucas palavras os difíceis trabalhos pelos quais passei. Depois que saí de Londres, por recusar-me a casar com Clisterna, aquela jovem católica, da qual Isabela já teve oportunidade de falar, levando em minha companhia Guilharte, o pajem, que, como falou minha mãe em sua carta, levou a Londres a notícia de minha morte, cheguei a Roma, atravessando antes a França, onde minha alma se alegrou e onde minha fé se fortaleceu; beijei os pés do sumo pontífice, confessei meus pecados, penitenciando-me dêles; êle absolveu-me e deu-me os papéis necessários para comprovar minha confissão e penitência, assim como minha conversão à Santa Madre Igreja. Depois disso, visitei os inúmeros lugares santos daquela santa cidade e, dos 2.000 escudos de ouro que possuía, troquei 1600 por dinheiro florentino; com os 400 que me ficaram, parti para Gênova, com intenção de vir para a Espanha, pois eu sabia que duas galeras estavam prestes a partir. Cheguei com Guilharte, meu criado, a um lugar chamado Água Pendente; é o último lugar sob os domínios do papa, vindo-se de Roma para Florença; desci em uma hospedaria ou pousada, onde me encontrei com o Conde Arnesto, meu inimigo mortal, que, segundo pude perceber, acompanhado de quatro criados disfarçados, ia, secretamente, para Roma, e o fazia mais por curiosidade que por ser católico; fechei-me em um dos aposentos com meu criado, decidido a procurar outra hospedaria, logo que a noite chegasse; não o fiz, entretanto, porque a aparência despreocupada do conde e de seus criados fizeram-me pensar que êles não me tivessem reconhecido; jantei em meus aposentos, fechei a porta, examinei minha espada, rezei, mas não quis deitar-me; meu criado dormiu e eu, recostado numa cadeira, adormeci; pouco depois da meia-noite, quatro pistoletes acordaram-me para me fazer dormir o sono eterno, pois, como depois fiquei sabendo, o conde e seus criados dispararam contra mim e, julgando que eu estivesse morto, montaram os cavalos que já estavam prontos e partiram, dizendo ao dono da hospedaria que me enterrasse, porque eu era homem importante. “Meu criado, segundo me disse depois o hospedeiro, despertou e pulou uma janela que dava para o pátio, dizendo: “Ai de mim, mataram meu senhor!', deixou a hospedaria e o deve ter feito com muito mêdo, pois só parou em Londres e levou a notícia de minha morte. O pessoal da estalagem subiu e encontrou-me com o corpo varado por quatro balas e por muito chumbo, mas nenhuma das feridas foi mortal. Como católico que sou, quis confessar-me e receber os sacramentos; fui atendido, dispensaram-me todos os cuidados, mas não pude caminhar durante dois meses, no fim dos quais fui até Gênova, onde encontrei apenas duas fragatas que eu e outros dois espanhóis importantes alugamos, uma para que fôsse adiante a fim de reconhecer o caminho e outra onde pudéssemos viajar; tomadas estas precauções, embarcamos, procurando não nos afastar da costa da França; sem que esperássemos, fomos abordados por duas galeotas turcas que saíram de uma enseada; uma delas cortou-nos o caminho do mar, a outra, o caminho da terra, e, assim, conseguiram aprisionarnos; quando subimos às galeotas, despiram-nos até deixar-nos completamente nus; tiraram tudo o que as fragatas levavam e deixaram-nas ir ter à praia, pois não quiseram afundá-las, dizendo que nossas embarcações poderiam trazerlhes outras prêsas; ninguém poderá duvidar do quanto sofri, ao tornar-me escravo, e, principalmente, por perder os documentos e a cédula de 1600 ducados, que trazia de Roma em um baú; quis a fortuna, entretanto, que o baú fôsse parar nas mãos de um espanhol, escravo e cristão, que o guardou, pois, se chegasse às mãos dos turcos, poderia servir para me resgatar, porque, certamente, êles haveriam de verificar a origem da cédula e procurar obter seu valor em dinheiro. “Levaram-nos para Argel, onde encontrei-me com os padres da Santíssima Trindade; falei com êles e expliquei-lhes quem eu era e êles, movidos pela caridade, resgataram-me, embora eu fôsse estrangeiro, dando por mim 300 ducados, 100 de início e 200 quando o barco que trazia o dinheiro viesse para resgatar um padre daquela ordem, que se encontrava em Argel, pois exigiram por êle 4.000 ducados e êle já havia gasto o dinheiro que possuía. E isso porque a caridade e desprendimento dêstes padres é tanta que êles chegam a dar sua liberdade pela alheia; tornam-se escravos para libertar escravos. Para minha maior felicidade, pude encontrar o baú que perdera, com os documentos e a cédula; mostrei-a ao abençoado padre que lhe havia resgatado e ofereci-lhe 500 ducados além do preço do meu resgate, para ajudá-lo. A nave, que trazia o dinheiro, demorou quase um ano para voltar, e o que aconteceu durante êste ano, se tivesse que contar, daria para compor outra história; direi apenas que fui reconhecido por um dos vinte turcos aos quais libertei, juntamente com os cristãos, e êle mostrou-se muito agradecido, pois não quis denunciar-me; se os turcos me reconhecessem e se lembrassem de que eu pusera a pique seus dois navios e lhes havia tirado das mãos a grande nave que vinha da índia, ou levarme-iam à presença do paxá, ou tirar-me-iam a vida; se me levassem à presença do grão-senhor, certamente eu jamais recobraria minha liberdade. Finalmente, o padre redentor veio para a Espanha comigo e mais cinqüenta cristãos, que foram resgatados. Em Valência, separamo-nos e cada um partiu para onde quis, levando as insígnias de sua liberdade, que são êstes hábitos; cheguei hoje a esta cidade, com tanto desejo de ver Isabela que, sem preocupar-me com mais nada, perguntei onde ficava o mosteiro, pois êle haveria de me dar notícias de minha espôsa; o que aconteceu daí por diante todos já sabem, mas, para que possam acreditar em minha história, que tanto tem de assombrosa quanto de verdadeira, é preciso que eu mostre os papéis dos quais lhes falei.” Dizendo isto, tirou de um baú os papéis aos quais se referia, colocando-os nas mãos do provedor, que, junto com o assistente, examinou-os, nada encontrando que pudesse pôr em dúvida as palavras de Recaredo. E, para que elas se tornassem mais verdadeiras, quis o céu que o mercador florentino em nome de quem estava a cédula de 2600 ducados estivesse presente, e pedisse para ver a cédula; mostraram-na, êle reconheceu-a como válida e aceitou-a logo, pois há muitos meses já lhe havia chegado o aviso de tal cédula; tudo isto fêz com que à admiração se acrescentasse admiração e ao espanto, espanto. Recaredo disse novamente que oferecia os 500 ducados que prometera. O assistente abraçou Recaredo, Isabela e seus pais, colocando-se cortesmente à disposição de todos. Os outros dois sacerdotes fizeram o mesmo e pediram a Isabela que narrasse tôda a história por escrito, a fim de que o arcebispo a lesse. Isabela disse que sim. O grande silêncio em que todos os circunstantes se haviam mergulhado para escutar aquela história estranha rompeu-se, pois queriam todos dar graças a Deus pelas maravilhas que êle realizara; desde o mais rico até o mais humilde, todos foram cumprimentar Recaredo, Isabela e seus pais, deixando-os a sós, logo em seguida. O assistente do arcebispo foi convidado para honrar, com sua presença, as bodas de Recaredo e Isabela, que se realizariam dali a oito dias; o assistente sentiu-se muito honrado e, dali a oito dias, acompanhado pelas pessoas mais importantes da cidade, lá se encontrou. Os pais de Isabela procuraram por todos os meios recompensá-la por seu sofrimento e ela, abençoada pelo céu, auxiliada por suas inúmeras virtudes, a despeito de tantos contratempos, encontrou marido tão bom como Recaredo, em cuja companhia, pensa-se, vive até hoje na casa que alugaram, nas proximidades de Santa Paula, e que foi comprada, depois, aos herdeiros de um fidalgo burgalês, chamado Hernando de Cifuentes. Esta novela pode ensinar a todos nós a fôrça da virtude e da formosura, pois ambas, quer isoladas, quer unidas, são suficientes para apaixonar até mesmo os inimigos; pode mostrar ainda como os céus podem fazer das maiores adversidades nossos maiores benefícios. O casamento enganoso Saía do Hospital da Ressurreição, situado em Valladolid, além da Porta do Campo, um soldado que, por usar a espada como bordão, pela fraqueza de suas pernas e pela palidez de seu rosto, demonstrava claramente - embora não estivesse fazendo muito calor - que deveria ter transpirado em vinte dias tôda a disposição que, com tôda certeza, adquirira numa hora. Andava cambaleando, tropeçando a cada momento, como um convalescente, e, ao transpor a porta da cidade, percebeu vir em sua direção um amigo a quem não via há mais de seis meses. Este, persignando-se como se tivesse visto alguma assombração, aproximou-se e lhe disse: - Que aconteceu, Senhor Alferes Campuzano? É possível que esteja nessa terra? Imaginava-o em Flandres, empunhando a lança, e não por êstes lados, arrastando a espada. Que palidez, que fraqueza é essa? Campuzano respondeu: - Se estou ou não nessa terra, Senhor Licenciado Peralta, minha presença pode responder-lhe. Quanto às outras perguntas, nada tenho a responder, senão que estou saindo daqui do hospital, onde agüentei quarenta suadouros, por causa de uma mulher a quem escolhi para espôsa, coisa que jamais deveria ter feito. - Vossa Mercê casou-se? - perguntou Peralta. - Sim senhor - respondeu Campuzano. - Será que foi por amor? - disse Peralta, acrescentando: - Tais casamentos trazem sempre o arrependimento. - Não saberei dizer se foi por amor - respondeu o alferes -, embora possa garantir que foi por amargor, pois do meu casamento, ou cansamento, carrego tais coisas no corpo e na alma que as do corpo, para curá-las, me custaram quarenta suadouros, mas para as da alma não encontro um remédio que possa aliviálas. Mas Vossa Mercê há de me perdoar: não posso manter longas conversas na rua. Outro dia, mais comodamente, contar-lhe-ei, minhas aventuras; são as mais novas e originais que Vossa Mercê terá ouvido em todos os seus longos dias. - Não há de ser assim - disse o licenciado -, pois desejo que venha à minha pousada e ali choraremos juntos nossas mágoas. Além disso, tenho uma comida própria para convalescentes; embora tenha sido preparada para dois, meu criado se contentará com um pastel. Se a sua convalescença permitir, umas fatias de presunto de Rutenos servirão para nos abrir o apetite. E ofereço isso de boa vontade, agora e tôdas as vêzes que Vossa Mercê desejar. Campuzano agradeceu-lhe, aceitou o convite e os oferecimentos. Foram ambos a São Lourenço, onde ouviram missa. Depois, Peralta levou o amigo à sua casa, dando-lhe o prometido e insistindo para que repetisse. Tendo êle acabado de comer, pediu-lhe Peralta para narrar os acontecimentos que tanto o haviam mortificado. Campuzano não se fêz de rogado e começou a falar: - Vossa Mercê há de se lembrar, Senhor Licenciado Peralta, como fui, nesta cidade, amigo do Capitão Pedro de Herrera, que agora está em Flandres. - Lembro-me, lembro-me- respondeu Peralta. - Pois um dia - prosseguiu Campuzano -, quando mal acabávamos a refeição na Pousada da Solana, onde vivíamos, entraram duas mulheres de belo aspecto, acompanhadas por dois criados; uma delas pôs-se logo a falar com o capitão, encostados ambos a um canto da janela; a outra sentou-se numa cadeira junto à minha, cobrindo-se com o xale até o pescoço, não deixando ver o seu rosto mais do que a transparência do xale permitia. Embora lhe suplicasse cortesmente que se descobrisse, nada consegui. Para completar a história, fôsse de propósito ou por acaso, exibiu ela suas mãos muito brancas, cobertas por magníficas jóias. Eu me sentia importantíssimo com aquela grande corrente que Vossa Mercê talvez tenha conhecido, com meu chapéu de plumas e cordões, com o traje de côres e a arrogância de um soldado, tão imponente aos olhos de minha vaidade que me sentia flutuar. Com tudo isso, roguei-lhe que se descobrisse, ao que ela respondeu: - Não sejais importuno; tenho minha casa; fazei com que um pajem me siga, pois, embora seja mais honrada do que faz crer esta resposta, quero ver se vossa discrição corresponde à vossa galhardia; folgarei que me vejais. “Beijei-lhe as mãos pelo grande favor que me fazia e em paga lhe prometi montes de ouro. O capitão concluiu sua conversa; elas se foram, seguidas pelo meu criado. O capitão disse-me que a dama lhe pedira para levar cartas a outro capitão, em Flandres. Dizia serem para um primo, mas êle bem sabia que eram para seu amante. Eu fiquei abrasado pelas mãos de neve que havia visto e ansioso pelo rosto que desejava ver. assim, no dia seguinte, guiado por meu pajem, fui visitá-la. Dei com uma bela residência e com uma mulher de quase trinta anos, a quem reconheci pelas mãos. Não era excepcionalmente bela, mas podia prender-nos pelo trato, pois possuía um tom de voz tão suave e penetrante que ia até a alma. Mantivemos longos e amorosos colóquios; blasonei, garganteei, prometi; dei enfim tôdas as demonstrações que me pareceram necessárias para tornar-me benquisto, mas ela parecia ter sido feita para ouvir maiores oferecimentos e razões. Ouvi-a, mas parecia não acreditar. Para concluir: nossos colóquios floresceram durante quatro dias. Continuei a visitá-la, sem chegar, porém, a colhêr o fruto desejado. “Nos momentos em que a visitei, sempre encontrei a casa livre; jamais percebi traços de parentes reais ou fingidos. Servia-lhe certa môça mais astuta que ingênua. Tratando meus amôres como soldado em vésperas de partida, apertei, finalmente, a Senhora Dona Estefânia de Caicedo - pois êste é o nome de quem me deixou assim -, que respondeu: “Seria ingenuidade, Alferes Campuzano, se quisesse vender-me a Vossa Mercê como santa; tenho sido pecadora e ainda sou, embora não dê motivos para que os vizinhos murmurem e os empregados comentem. Nem herdei coisa alguma de meus parentes, mas, apesar disso, o que tenho aqui em casa vale, bem contados, 2500 escudos; e isto em coisas que, vendidas, haverão de se converter em bom dinheiro. Com esta fortuna, procuro marido a quem me entregar, a quem obedecer e a quem, juntamente com o arranjo de minha vida, entregarei uma incrível solicitude em agradar e servir. Príncipe algum terá cozinheiro mais cuidadoso ou que melhor saiba dar o ponto nos guisados. Poderei ser um bom mordomo, um ótimo cozinheiro e melhor senhora na sala; na verdade, sei mandar e sei fazer com que me obedeçam. Nada desperdiço e economizo muito. O dinheiro não vale menos e sim mais quando gasto sob minha orientação. A roupa branca que possuo, que é muita e da melhor qualidade, não foi adquirida em lojas ou vendedores ambulantes; fizeram-na êstes dedos e os de minhas criadas e, se fôsse possível tecê-la em casa, assim teríamos feito. Digo estas coisas sem modéstia, pois não há mal algum quando a necessidade nos obriga a dizê-las. Acrescento, finalmente, que procuro marido que me ampare, dirija e honre, e não amante que se aproveite e depois vá falar mal de mim. Se Vossa Mercê souber apreciar, neste momento, a prenda que lhe é oferecida, estou à vossa disposição, sujeita a tudo quanto Vossa Mercê obrigar, e isto sem me pôr à venda, queé a mesma coisa que andar em língua de casamenteiros; não há nada para con o todo como as suas próprias partes. “Eu, que estava com o juízo não na cabeça, mas nos calcanhares, julgando a felicidade ainda maior do que a imaginação me pintava e oferecendo-se-me tão à mão tal quantidade de bens - eu já os contemplava convertidos em dinheiro -, sem fazer mais comentários do que aquêles a que dava lugar a ventura, que me enfraquecia o raciocínio, respondi-lhe que me sentia muito alegre e afortunado por haver-me dado o céu, quase por milagre, tal companheira, para fazê-la senhora da minha vontade e dos meus bens, não tão poucos que não valessem juntos com aquela corrente que trazia no peito e outras pequenas jóias que estavam em casa, além das minhas galas de soldado, mais de 2000 ducados, que, juntos aos mil e quinhentos dela, formavam quantia mais do que suficiente para vivermos na aldeia onde nasci e onde possuía alguns bens; tais haveres, convertidos em dinheiro, renderiam seus frutos com o tempo, permitindo-nos uma vida alegre e descansada. Em suma, naquela noite acertamos o casamento e esclarecemos nossa vida de solteiros nos próximos três dias de festas que vieram. logo pela Páscoa fizeram-se os proclamas e no quarto dia nos casamos, encontrando-se presentes dois amigos meus e um rapaz que dizia ser primo dela. Tratei-o como a um parente, com palavras amáveis, como foram as que até então êle dirigira à minha nova espôsa; falava, no entanto, com intenção tão falsa e hipócrita que prefiro calar, porque, embora esteja dizendo somente a verdade, não são verdades de confessionário, dessas que não podem deixar de ser ditas. “O criado levou meu baú da pousada para a casa de minha mulher. Encerrei nêle, diante dela, a minha esplêndida corrente, mostrando-lhe outras três ou quatro, não do mesmo tamanho, porém da melhor qualidade, assim como três ou quatro cintos de diversos tipos. Mostrei-lhe também as roupas e chapéus, entregando-lhe para as despesas da casa os 400 reais que possuía. Seis dias desfrutei calmamente a lua-de-mel, como genro pobre em casa de sogro rico. Pisei custosos tapêtes, dormi em colchas da Holanda, alumiei-me com candelabros de prata. Almoçava na cama, levantando-me às 11 horas, comendo às 12 e fazendo a sesta àsduas. Dona Estefânia e a criada excediam-se em agrados e cuidados. Meu criado, que até então fôra lerdo e preguiçoso, transformou-se num azougue. Nos momentos que Dona Estefânia não passava ao meu lado, era fácil encontrá-la na cozinha, solícita em ordenar guisados que me despertassem o gôsto e avivassem o apetite. Minhas camisas, colarinhos e lenços, pelo perfume que exalavam, pareciam um nôvo Aranjuez de flôres, banhados como eram em água de flor de laranjeira. “Êstes dias passaram voando como passam os anos sob o império do tempo; por ver-me tão regalado e bem servido, transformara-se em boa a má intenção com que começara aquêle negócio. Ao fim dêles, certa manhã, quando ainda no leito com Dona Estefânia, chamaram com grandes batidas na porta. A criada surgiu à janela e disse: - Oh! Seja bem-vinda! Vejam só, veio antes do que esperávamos. “- Quem é que chegou, criatura? - perguntei. - Quem? - respondeu ela. - Minha senhora, Dona Clementa Bueso, acompanhada por Dom Lope Meléndez de Almendárez, dois criados e a aia Hortigosa. - Corre, mulher, e abre-lhes a porta, que já vou - disse Dona Estefânia à criada, que parara, sem saber que atitude tomar. - E vós, senhor, pelo amor que me tendes, não vos assusteis nem respondais em meu nome a coisa alguma que contra mim ouvirdes. - Mas quem se atreverá a ofender-vos em minha presença? Dizei: que gente é essa que tanto alvorôço vos causa? - Não tenho tempo para responder-vos - disse Dona Estefânia. - Sabei somente que tudo o que se passará é fingido e visa a certo desígnio, o qual sabereis depois. “Quis replicar, mas a Senhora Dona Clementa Bueso não permitiu, pois entrou no quarto arrastando a cauda do longo vestido verde todo enfeitado com cordões de ouro, capinha da mesma espécie, chapéu de plumas verdes, brancas e vermelhas e rico cinto de ouro. Metade de seu rosto estava oculto por um véu leve. Em sua companhia entrou o Senhor Dom Lope Meléndez de Almendárez, não menos bizarro nem menos ricamente ataviado. “Dona Hortigosa, que foi a primeira a falar, exclamou: - Jesus! Que é isso? Ocupando oleito da Senhora Clementa e além disso com um homem? Que milagres vejo nesta casa! Não há dúvida de que Dona Estefânia tomou o pé pela mão, abusando da amizade de minha senhora. “- Tendes razão, Dona Hortigosa, mas a culpa é minha. Que jamais me aborreça novamente por arranjar amigas que não o sabem ser senão quando o desejam! “A tudo isto, Dona Estefânia respondeu: - Não se aborreça, Dona Clementa Bueso, e creia que não é sem mistério que a senhora vê estas coisas em sua casa; quando souber da verdade, sei que ficarei desculpada e Vossa Mercê sem nenhum motivo de queixa. “A essas alturas eu já vestira as calças e a camisa; Dona Estefânia, tomando-me pelo braço, levou-me a outro quarto e ali me disse que aquela sua amiga desejava enganar Dom Lope, com quem pretendia casar-se, que o engano era dar-lhe a entender que aquela casa e tudo quanto nela estava lhe pertencia e disso tudo pensava fazer seu dote. Realizado o casamento, pouco importava que descobrissem o engano, confiada como estava no grande amor de Dom Lope. - Logo me devolverá tudo. Não se pode levá-la a mal, nem a nenhuma outra mulher que procura marido honrado, embora por meio de um embuste. “Respondi-lhe que era uma prova de grande amizade o que desejava fazer e que primeiro pensasse bem, porque poderia depois, sem ter necessidade, precisar da justiça para reaver seus bens. Ela, porém, respondeu com tantas e tais razões, mostrando quantas coisas a obrigavam a servir Dona Clementa, coisas de pouca importância, é verdade, que, embora de má vontade e com remorso, concordei com o desejo de Dona Estefânia. Asseguroume ela que o engano duraria somente oito dias, durante os quais ficaríamos em casa de outra amiga sua. Acabamos de nos vestir e ela, despedindo-se de Dona Clementa Bueso e do Senhor Lope Meléndez de Almendárez, disse a meu criado que carregasse o baú e a seguisse. Eu também a segui, sem despedir-me de ninguém. “Dona Estefânia parou em casa de uma amiga e, antes que entrássemos, estêve lá dentro um bom espaço de tempo falando com ela; depois apareceu uma criada mandando que entrássemos, eu e o criado. Levou-nos a um pequeno aposento, onde havia duas camas tão juntas que pareciam uma só; não havia espaço para separá-las e as cobertas pareciam beijar-se. Ali estivemos seis dias e em todos êles não passou uma hora em que não tivéssemos alguma discussão. Dizia-lhe da loucura que fizera em ter deixado a casa e seus haveres, ainda que fôsse para a própria mãe. Durante as discussões, ia e vinha pelo quarto, tanto que a dona da casa, um dia em que Dona Estefânia fôra ver como estavam as coisas, quis saber qual a causa que me levava a discutir tanto com ela e o que tanto a ofendia, insistindo em dizer que fôra loucura notória e não amizade perfeita. Contei-lhe tôda a história, falei que me casara com Dona Estefânia e do dote que ela trouxera. Quando lhe disse da grande bobagem que fizera em deixar a casa a Dona Clementa, embora fôsse com a boa intenção de conseguir um marido da importância de Dom Lope, começou a benzer-se e a persignar-se com pressa e com tantos “Ai! Jesus!' que não pude deixar de ficar grandemente preocupado. Ela então me disse: - Senhor alferes, não sei se vou contra a minha consciência ao contar-lhe o que também nela pesaria se permanecesse calada. Porém, por Deus e pelo destino, seja lá o que fôr: viva a verdade e morra a mentira! A verdade é que Dona Clementa Bueso é a verdadeira dona da casa e dos bens que lhe deram como dote; mentira foi tudo quanto lhe contou Dona Estefânia. Ela não possuía casa, nem bens, nem outro vestido a não ser aquêle que traz no corpo. E para tornar viável êste lôgro Dona Clementa quis visitar um parente em Placência e dali foi fazer uma novena a Nossa Senhora de Guadalupe; neste espaço de tempo deixou Dona Estefânia cuidando de sua casa, pois são realmente grandes amigas. Está claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois soube arranjar para marido uma pessoa como o Senhor alferes. “Aqui terminou ela sua conversa e eu dei princípio ao meu desespêro e, sem dúvida, o teria prolongado se meu anjo da guarda não acudisse dizendome para não esquecer de que era cristão e de que o maior pecado dos homens era o desespêro, por ser pecado dos demônios. Essa boa inspiração confortoume um pouco, mas não tanto que deixasse de apanhar a capa e a espada para sair à procura de Dona Estefânia, com intenção de dar-lhe castigo exemplar; porém a sorte, que não saberei dizer se melhora ou piora as coisas, determinou que eu não a encontrasse em lugar algum onde pensava encontrá-la. Fui a São Lourenço e encomendei-me a Nossa Senhora; sentei-me depois em um banco e o desgôsto me fêz cair em um sono tão pesado que não despertaria tão cedo se não me sacudissem. Fui cheio de pensamentos e de aflição à casa de Dona Clementa; encontrei-a tão à vontade como senhora que era de sua casa; não ousei dizer-lhe nada porque Dom Lope estava presente. Voltei à casa de minha hospedeira, que me disse haver contado a Dona Estefânia como eu já sabia de tôda a sua falsidade e que ela lhe havia perguntado que cara fizera eu_ com a notícia. Havia-lhe respondido que uma cara muito má e que, parecia-lhe, eu saíra para procurá-la com muito má intenção. Disse, finalmente, que Dona Estefânia levara tudo o que estava no baú, sem deixar nêle uma só peça de roupa. “Aí é que foram elas! Aqui me teve Deus de nôvo em suas mãos. Fui ver o baú e encontrei-o aberto, como um túmulo à espera de um cadáver, que poderia muito bem ter sido o meu, se tivesse calma para sentir e ponderar tamanha desgraça.” - Bem esperta foi - disse nesse momento o Licenciado Peralta -, por ter Dona Estefânia levado tanta corrente e tantos cintos, pois como se diz, todos os duelos ... etc., etc. - Não me importei com isso - respondeu o alferes -, pois também poderei dizer: “Dom Simueque pensou que me enganava com sua filha caolha, mas, pela vontade de Deus, sou coxo”. - Não sei por que Vossa Mercê está a dizer isso - respondeu Peralta. - Acontece - disse o alferes - que aquêle embrulho e aparato de correntes, cintos e brincos poderia valer quando muito, 10 ou 12 escudos. - Isso não é possível - replicou o licenciado -, porque a corrente que o senhor trazia no pescoço parecia valer mais de 200 ducados. - Assim seria - respondeu o alferes -, se a verdade correspondesse à aparência; porém, como nem tudo que reluz é ouro, as correntes, cintos, jóias e brincos eram apenas imitações. Estavam tão bem feitas que somente o toque ou o fogo poderiam revelar sua qualidade. - Dessa maneira - disse o licenciado -, houve empate no jôgo entre Vossa Mercê e a Senhora Dona Estefânia? - E tal empate - respondeu o alferes -, que poderia voltar a baralhar as cartas. Mas o estrago, senhor licenciado, é que ela poderá desfazer-se de minhas correntes e eu não poderei sair do laço em que caí, pois, embora muito me pese, ela é minha mulher. - Dai graças a Deus, Campuzano - disse Peralta -, pois ela se foi com os próprios pés e não estais obrigado a ir buscá-la. - Assim é - respondeu o alferes -, porém, com tudo isso, embora não a procure, tenho-a sempre no pensamento e, onde quer que eu vá, está presente a afronta. - Não sei o que responder - disse Peralta -, Só sei trazer-vos à memória dois versos de Petrarca que dizem: Che chi prende diletto di far frode, non sha di lamentar saltro Nnganna. O que em nossa língua quer dizer: “Aquêle que tem o costu me e gôsto de enganar os outros não se deve queixar quando é enganado”. - Não me queixo - respondeu o alferes -, apenas me lastimo, pois o culpado nem por reconhecer a culpa deixa de sentir a pena do castigo. Tentei enganar, bem sei, e fui enganado. Feriram-me com as minhas próprias armas, mas não posso evitar que tais sentimentos me assaltem. Finalmente, o que mais importa no meu romance, pois tal nome se pode dar às minhas aventuras, é ter sabido que Dona Estefânia se fôra com o primo, o mesmo que se encontrava em nosso casamento e que tempos atrás fôra seu amigo para tôdas as coisas. Não quis procurá-la para não encontrar o mal que me faltava. Mudei de pousada e cabelo, em poucos dias, pois começaram a cair-me os pêlos das sobrancelhas, dos cílios e pouco a pouco êles se foram; tornei-me calvo antes do tempo: deume uma doença que chamam de calvície. Achei-me verdadeiramente limpo; não possuía cabelos para pentear nem dinheiro para gastar. A enfermidade caminhou ao lado da minha miséria e, como a pobreza atropela a honra e leva uns à fôrça, outros ao hospital e ainda faz outros baterem nas portas de seus inimigos com pedidos e súplicas, o que é uma das maiores desgraças que pode acontecer a qualquer infeliz; por não ter podido cuidar das roupas que me haveriam de cobrir e assegurar a saúde, ao chegar o tempo em que se dão os suadouros no Hospital da Ressurreição, para êle me dirigi e ali tomei quarenta suadouros. Dizem que sararei se me tratar; espada ainda possuo; o resto ficará nas mãos de Deus. As duas donzelas A 5 léguas da cidade de Sevilha há um lugar chamado Castilblanco. Ao anoitecer, entrou, em uma das muitas hospedarias que ali existem, um viajante, montando um formoso cavalo estrangeiro; não o acompanhava nenhum criado e, sem esperar que lhe segurassem o estribo, pulou da sela com grande ligeireza. O estalajadeiro, que era homem diligente e atencioso, apressou-se em recebê-lo, mas não o fêz suficientemente rápido a ponto de impedir o viajante de sentar-se em um banco de pedra, que havia junto à porta. O desconhecido desabotoou ràpidamente a roupa e deixou cair para os lados ambos os braços, dando mostras de que ia desmaiar. A estalajadeira, que era muito bondosa, chegou-se a êle e, borrifando-lhe o rosto com água, fê-lo voltar do desmaio. Demonstrando que se aborrecera por ter-se deixado ver daquela maneira, abotoou a roupa e pediu que lhe dessem logo um aposento onde pudesse recolher-se e, se fôsse possível, para colocarem-no sozinho. A estalajadeira disse-lhe que havia em tôda a casa apenas um quarto com duas camas e que, se viesse outro hóspede, seria obrigada a acomodá-lo na outra cama. O viajante respondeu que pagaria pelos dois leitos, viesse ou não algum hóspede, e, tirando 1 escudo de ouro, deu-o à estalajadeira, com a condição de ela não ceder a ninguém o leito vazio. A estalajadeira não se entristeceu com a paga, pelo contrário, ofereceu-se para fazer o que êle pedia, ainda que o próprio deão de Sevilha chegasse naquela noite à sua casa. Perguntou ela ao viajante se queria jantar e êle respondeu que não; pediu a chave do quarto e, levando consigo umas bôlsas grandes de couro, entrou no aposento, fechou a porta à chave, e ainda, como se pensou depois, encostou nela duas cadeiras. Mal êle se fechou, o estalajadeiro, o rapaz que cuidava dos cavalos e outros dois vizinhos que ali se encontravam, todos, enfim, elogiaram a grande formosura e garbosa disposição do nôvo hóspede, chegando à conclusão de que jamais haviam visto tanta beleza. Calcularam a idade dêle e acharam que deveria ter de dezesseis a dezessete anos; deram tratos à bola, como se costuma dizer, para descobrirem a causa do seu desmaio, mas, como não conseguissem, contentaram-se em elogiar-lhe a galhardia. Os vizinhos foram embora para casa, o estalajadeiro foi cuidar do cavalo e a estalajadeira foi preparar o que comer, para o caso de aparecerem outros hóspedes. Não demorou muito, entrou outro rapaz, um pouco mais velho e tão elegante quanto o primeiro. A estalajadeira, nem bem o viu, disse: - Valha-me Deus! O que é isso? Será que os anjos querem pousar em minha casa esta noite? - Por que a senhora estalajadeira diz isso? - perguntou o cavalheiro. - Por nada, senhor - respondeu ela. - Digo apenas a Vossa Mercê para não apear porque não tenho cama para dar-lhe, onde Vossa Mercê possa dormir. Eu tinha duas, mas um cavalheiro, que está naquele quarto, embora precisasse apenas de uma, tomou-as e pagou ambas, a fim de que ninguém entre no aposento. êle deve gostar da solidão, mas não sei por que, pois motivos para se esconder não tem, antes o tem para que todo o mundo o veja e o bendiga. - É assim tão bonito, senhora estalajadeira? - perguntou o cavalheiro. - E como é bonito! - respondeu ela. - É mais que bonito. - Segura aqui, rapaz - disse á estas alturas o cavalheiro. - Embora tenha eu de dormir no chão, preciso ver êsse homem tão elogiado. E, dando o estribo a um rapaz, que o acompanhava, apeou e pediu para lhe trazerem logo o jantar. E assim se fêz. Estava êle a jantar, quando entrou um aguazil - que sempre há nos lugares pequenos - e sentou-se para conversar com o rapaz enquanto êle jantava. E, conversa vai, conversa vem, não deixou de engolir três bons copos de vinho, de roer o peito e uma coxa de perdiz que o cavalheiro lhe deu. O aguazil pagou-o, pedindo-lhe notícias da côrte, das guerras de Flandres, dos turcos, não se esquecendo ainda dos acontecimentos da Transilvânia, que Deus, Nosso Senhor, guarde. O cavalheiro jantava calado porque não vinha da côrte e não podia, portanto, responder a suas perguntas. O hospedeiro, que acabava naquele instante de tratar do cavalo, sentou-se para tomar parte na conversa e para beber de seu próprio vinho tantos tragos quantos bebêra o aguazil. Acompanhava cada trago com uma inclinação de cabeça por sôbre o ombro esquerdo, e elogiava o vinho, pondo-o nas nuvens, embora não o deixasse lá por muito tempo a fim de não ficar aguado. Aos poucos, puseram-se a elogiar o hóspede que se encontrava no quarto; falaram do seu desmaio e disseram que êle não quisera comer nada; lembraram a história das bôlsas, a qualidade do cavalo, as vistosas roupas de viajante que o rapaz usava, estranhando, porém, o fato de não trazer nenhum criado para servi-lo. Todos êstes elogios despertaram no cavaleiro o desejo de ver o outro jovem; pediu ao estalajadeiro para dar um jeito de pô-lo a dormir na outra cama, que lhe daria 1 escudo de ouro. A cobiça do estalajadeiro venceu-o, mas, mesmo assim, nada pôde fazer, porque a porta estava fechada por dentro e êle não se atrevia a despertar o jovem, que lhe havia pago tão bem pelos dois leitos. O aguazil procurou ajeitar a situação, dizendo: - O que se pode fazer é chamá-lo à porta, dizendo que sou da Justiça e que, a mandado do senhor alcaide, pedi ao senhor estalajadeiro para dar pousada a êste rapaz; e, não havendo outra cama, é preciso que aquela lhe seja dada. O hóspede há de alegar que o ofendem, pois já está alugada e não será direito tirála; com isto, o estalajadeiro será desculpado e Vossa Mercê conseguirá seu intento. Todos gostaram do plano do aguazil, o rapaz principalmente, pois lhe deu 4 reais. Puseram mãos à obra; o rapaz que chegara primeiro à hospedaria abriu a porta ao ouvir “em nome da Justiça”, mostrando-se bastante aborrecido; o outro, pedindo-lhe desculpas pela ofensa que lhe parecia ter feito, deitou-se no leito desocupado, mas o primeiro não lhe disse uma palavra, nem ao menos o deixou ver-lhe o rosto, porque, mal abriu a porta, voltou para a cama, virou-se para a parede e, para não responder, fingiu que dormia. O segundo jovem deitou-se; esperando pela manhã e esperando ver realizado o seu desejo quando se levantassem. Estávamos em uma dessas noites dolentes, preguiçosas e longas de dezembro; o frio e o cansaço da viagem obrigavam a procurar repouso; o nosso primeiro hóspede, porém, não podia descansar e, lá pela meianoite, começou a suspirar tão amargamente que, a cada suspiro, a alma parecia abandonar-lhe o corpo; suspirava, enfim, de tal maneira que o tom lastimoso de sua voz despertou seu companheiro e êste, admirado com os soluços que acompanhavam os suspiros, pôs-se a escutar atentamente o que o outro mal murmurava. O aposento estava às escuras e as camas bem afastadas, mas nem por isso deixou êle de ouvir estas palavras, entre muitas outras que o primeiro hóspede, com voz fraca e debilitada, dizia: - Ai de mim! Onde me leva a obstinada fôrça de meus fados? Qual é o meu caminho ou que saída espero encontrar para o complicado labirinto onde me encontro? Ah, poucos e inexperientes anos, incapazes de discernir e aceitar conselhos! Que fim há de ter essa minha desconhecida peregrinação? Ah, honra desprezada! Ai, amor mal agradecido! Respeito de honrados pais e parentes ofendidos! Ai de mim mil e uma vezes, pois me deixei levar pelo vendaval de meus desejos! Ó palavras fingidas que tanto me obrigastes a retribuir com obras! Porém, de quem me queixo, pobre de mim! Não foi a mim que ele quis enganar? Não fui eu quem tomou de uma lâmina com as próprias mãos e cortou e atirou por terra o crédito em cujo valor se fiavam meus velhos pais? Ó mentiroso Marco Antônio! Como é possível que as doces palavras que me dizias estivessem mescladas com o fel de tuas grosserias e desdéns? Onde estás, ingrato? Para onde fôste? Responde-me, é a ti que falo; espera-me que te sigo; sustenta-me, que desmaio; paga-me o que me deves; socorre-me, pois a ti estou ligada. Em seguida, calou-se, demonstrando, pelos ais e pelos suspiros, que seus olhos não deixavam de derramar ternas lágrimas. O outro hóspede permanecera escutando tudo em silêncio, concluindo, pelas palavras que ouvira, tratar-se de uma mulher, fato que lhe avivou ainda mais o desejo de conhecê-la, e estêve muitas vêzes para ir até o leito daquela que se lastimava e o teria feito se em certo momento não a visse levantar-se e abrir a porta do aposento para ordenar ao hospedeiro que encilhasse o cavalo, pois queria partir. Ao fim de um bom espaço de tempo, o estalajadeiro disse-lhe que sossegasse, pois ainda não passava de meia-noite. e a escuridão era tanta que seria temeridade querer pôrse a caminho. O rapaz acalmou-se e, tornando a fechar a porta, atirou-se na cama, exalando um profundo suspiro. O outro rapaz, que o escutava, acreditou ser muito bom falar-lhe e ofereceu-se para ser útil no que fôsse possível; assim, poderia obrigá-lo a mostrar-se e a contar-lhe sua triste história. Disse-lhe então: - Por certo, cavalheiro, se os suspiros que destes e as palavras que pronunciastes não tivessem tocado meu coração, pelo mal do qual vos queixais, pensaria que não tenho sentimento ou que minha alma é de pedra e meu peito de duro bronze; se a pena que sinto de vós e a intenção que em mim nasceu de pôr minha vida à procura de um remédio - se é que vosso mal é curável merecem algum favor, como recompensa, rogo-vos que useis delas, declarandome, sem nada encobrir, a causa de vossa dor. - Se eu não tivesse perdido o juízo - respondeu o queixoso -, não teria me esquecido de que não estava só neste aposento, teria freado um pouco mais minha língua e dado trégua a meus suspiros; mas, como paga de haver-me faltado a memória quando eu mais precisava dela, farei o que me pedis, porque, relembrando a amarga história de minhas desgraças, talvez meu nôvo sentimento se acabe. Se quereis, entretanto, que eu atenda o vosso pedido, havereis de prometer, diga eu o que disser, pela fé que demonstrastes com vosso oferecimento e por quem sois e vossas palavras parecem provir de um homem de bem -, havereis de prometer não vos mover de vosso leito nem vir até o meu nem me perguntar nada além do que eu vos quiser dizer. Se fizerdes o contrário, ao perceber eu que vos moveis, transpassarei meu peito com uma espada que tenho aqui à cabeceira. O outro, tendo prometido o impossível, ansioso por saber de tudo, respondeu-lhe que não perguntaria um “a” além do prometido, reforçando suas palavras com mil juramentos. - Assim sendo, com esta promessa, farei o que até agora não fiz: prestar contas de minha vida a alguém. Havereis de saber, senhor, que eu entrei nesta hospedaria - e, sem dúvida, já vos terão dito - vestida como homem. Sou, entretanto, uma infeliz donzela, ou melhor, fui, porque deixei de sê-lo, não faz oito dias, por ser imprudente, louca e por acreditar nas palavras bonitas de um homem falso. Meu nome é Teodósia e minha terra, um lugar importante de Andaluzia, cujo nome prefiro não revelar, porque a vós não interessa tanto sabê-lo como a mim interessa ocultá-lo. Meus pais são nobres e um pouco mais que medianamente ricos; tiveram êles um filho e uma filha: êle, para seu consôlo e orgulho; ela, para seu desgôsto. O filho, enviaramno para estudar em Salamanca; a mim, mantinham-me em sua casa, onde me criavam com o recolhimento e recato exigidos pela sua virtude e nobreza e eu, sem pesar algum, sempre fui obediente, combinando, subordinando, adaptando minha vontade à dêles, sem discordar em nada, até que minha falta de sorte ou, talvez minha sorte excessiva fêz com que o filho de um nosso vizinho, mais rico do que meus pais e tão nobre quanto êles, me visse. Quando o olhei pela primeira vez, senti apenas satisfação por tê-lo visto, mas não foi muito, pois sua elegância, sua galhardia, seu semblante e seus costumes eram elogiados e apreciados pelo povo, bem como sua rara discrição e cortesia. Mas de que me serve louvar meu inimigo e ir prolongando com palavras minha desgraça ou, para melhor dizer, o princípio de minha loucura? Digo, enfim, que êle me viu, uma e muitas vêzes, de uma janela fronteira à minha; dali, segundo meu parecer, enviou-me a alma pelos olhos e os meus gostaram de vê-lo, sentindo uma alegria diferente daquela que sentiram quando eu o vi pela primeira vez, forçando-me a acreditar na veracidade de tudo que eu lia em seu rosto e em seus gestos. Os olhos foram os intercessores e medianeiros da palavra; a palavra foi para declarar seus desejos; seus desejos despertaram os meus e fizeram-me acreditar nos dêle. Acrescentaram-se a tudo isto as promessas, os juramentos, as lágrimas, os suspiros e tudo aquilo que, segundo penso, pode um enamorado fazer para revelar a integridade de sua vontade e a firmeza de seus sentimentos e em mim - infeliz! -, que nunca me vira em situação semelhante, cada palavra era um disparo de artilharia a derrubar parte da fortaleza de minha honra; cada lágrima era uma fogueira onde se abrasava minha honestidade; cada suspiro, um furioso vento a avivar a fogueira de tal sorte que acabou por consumir minha virtude até então imaculada. Finalmente, com a promessa de ser meu marido, mesmo contra a vontade dos pais, que lhe haviam reservado outra pessoa, vi todo o meu recato ir por terra; sem saber como, entreguei-me a êle, às ocultas de meus pais, tendo como testemunha de meu desatino apenas um pajem de Marco Antônio, que êste é o nome do perturbador de meu sossêgo. Roubou de mim tudo quanto quis e, dali a dois dias, sumiu da cidade, sem que seus pais ou qualquer outra pessoa soubessem dizer ou imaginar para onde fôra. Como fiquei, diga-o quem tiver poder para dizê-lo, pois eu soube e sei apenas sentir. Arranquei os cabelos, como se êles tivessem culpa de meu êrro; arranhei meu rosto, por parecer-me ter sido êle a causa de minha desventura; amaldiçoei minha sorte, lamentei minha precipitação; derramei infinitas lágrimas, vi-me quase afogada nelas e nos suspiros que saíam de meu peito ofendido, queixei-me ao céu em silêncio, dei tratos à imaginação para ver se descobria algum caminho a seguir. Pensei, então, em vestir-me de homem, ausentar-me da casa de meus pais e ir procurar êste Enéas enganador, êste cruel e falso Vireno, êste defraudador de meus bons pensamentos, de minhas legítimas e bem fundadas esperanças. E assim, para encurtar minhas palavras, encontrando um traje de viagem de meu irmão, um cavalo que pertencia a meu pai e que eu criei -, saí de casa, em uma noite muito escura, com intenção de ir a Salamanca, aonde, segundo se falou depois, Marco Antônio poderia ter vindo, porque é também estudante e colega de meu irmão. Não me esqueci também de arranjar uma boa quantia de dinheiro em ouro, para auxiliar-me em tudo que me possa acontecer nesta precipitada viagem. O que mais me atemoriza é saber que meus pais haverão de me seguir e, por causa de minhas roupas e do cavalo, haverão de me encontrar. Além disso, tenho mêdo de meu irmão, que se encontra em Salamanca, pois, se êle me reconhecer, já se pode imaginar o perigo que minha vida corre, porque, embora êle escute minhas justificações, poderá querer vingar a honra ofendida. Apesar de tudo isto, decidi, ainda que perca a vida, procurar aquêle meu cruel espôso, quenão pode recusar-se a sê-lo, pois deixou em meu poder um anel de diamantes com as seguintes palavras: “Marco Antônio, espôso de Teodósia”. Se eu o encontrar, saberei o que viu êle em mim que o levou a abandonar-me assim tão depressa. Eu o farei cumprir suas promessas, não o deixarei, enfim, faltar à palavra dada, ou então, renunciarei à vida, mostrando-me, na vingança, tão rápida quanto o fui ao consentir na ofensa, porque a nobreza do sangue que meus pais me deram desperta aos poucos meus brios, que exigem ou o remédio imediato ou a vingança ao meu ultraje. Esta é, cavalheiro, a verdadeira e infeliz história, suficiente para justificar os suspiros e as palavras que vos despertaram. Peço-vos, já que não podeis, ajudai-me ao menos a evitar os perigos que me rondam, a abrandar o temor que tenho de ser encontrada e facilitar os meios dos quais devo lançar mão para executar meus planos, tão desejados quanto necessários. O rapaz, após ouvir a história da enamorada Teodósia, ficou sem dizer palavra um bom espaço de tempo. Teodósia pensou que êle estivesse dormindo e não ouvira coisa alguma. Para certificar-se de sua suspeita, perguntou-lhe: - Dormis, senhor? Seria natural que dormísseis, porque as desditas de um apaixonado, contadas a quem não as sente, na verdade despertam mais sono do que lástima. - Não estou dormindo - respondeu o cavalheiro -, estou tão acordado e de tal modo sinto a vossa desventura, que talvez ela me aflija e doa tanto quanto a vós. Por isso, não me contentarei apenas com aconselhar-vos. mas também vos ajudarei em tudo quanto minhas fôrças permitirem, pois, embora a maneira pela qual contastes vossa história tenha mostrado o raro entendimento de que sois dotada e tenha mostrado, segundo vossas palavras, que fôstes enganada mais pela vossa vontade enfraquecida do que pelas promessas de Marco Antônio, sou obrigado a acreditar ter sido a causa de vosso êrro os vossos poucos anos, que não conhecem a falsidade dos homens. Tranqüilizai-vos, senhora, e, se podeis, dormi o pouco da noite que resta, pois, vindo o dia, conversaremos e veremos que solução poderíamos encontrar para vosso problema. Teodósia agradeceu-lhe da melhor maneira que pôde, procurou descansar um pouco e deixar o cavalheiro dormir, mas êste não pôde descansar um só momento, começou a mexer-se na cama e a suspirar, de modo que Teodósia se viu obrigada a perguntar-lhe o que sentia, pois, se fôsse alguma coisa que ela pudesse remediar, haveria de fazê-lo com a mesma boa vontade demonstrada por êle em querer servi-la. O cavalheiro respondeu: - Sois vós, senhora, a causa de meu desassossêgo; não sereis vós quem poderá saná-lo, pois, se o fôsseis, eu não teria pena alguma. Teodósia não pôde entender a intenção daquelas palavras confusas; continuou, porém, a suspeitar de que alguma paixão amorosa o perturbava; pensou ainda ser ela a causa, e era mesmo de suspeitar, pois a comodidade do aposento, a calma, a escuridão e o fato de ela ser mulher poderiam, fàcilmente, ter despertado nêle algum mau pensamento. Receando isto, vestiu-se rápida e silenciosamente, cingiu a espada e a adaga e, daquela maneira, sentada sôbre a cama, permaneceu, esperando o dia, que, dali a pouco, anunciou sua chegada, com a luz que penetrava pelas várias passagens usuais em aposentos de hospedarias e estalagens. O cavalheiro fêz o mesmo que Teodósia fizera e, mal viu o aposento iluminado pela luz do dia, ergueu-se da cama e disse: - Levantai-vos, Senhora Teodósia, que eu quero acompanhar-vos nesta jornada e não vos abandonarei senão quando tiverdes Marco Antônio como legítimo espôso; em caso contrário, ou eu ou êle perderá a vida. Por isso, poderei ver a obrigação que me impôs vossa desgraça. Dizendo isto, abriu as janelas e as portas do aposento. Teodósia estivera esperando pela claridade para ver, com a luz, o porte e a fisionomia daquele com quem estivera falando durante tôda a noite; mas, quando o viu e reconheceu, quisera que jamais tivesse amanhecido e antes lhe tivessem fechado os olhos em escuridão perpétua, porque, apenas o cavalheiro voltou os olhos para vê-la - que também êle desejava olhá-la -, ela reconheceu que êle era seu irmão, a quem temia. Ao vê-lo, quase perdeu os sentidos, ficou atônita, muda e sem côr. Fazendo, porém, do temor, esforços, e do perigo, sensatez, tomou da adaga e prostrou-se de joelhos perante o irmão, dizendo, com voz perturbada e receosa: - Toma, querido irmão, e castiga-me com esta lâmina pelo crime cometido; descarrega tua ira, pois, para tão grande culpa, misericórdia alguma deverá valer-me; confesso meu pecado e não quero que meu arrependimento sirva como desculpa; suplico-te apenas que o castigo se limite a tirar-me apenas a vida e não a honra, pois, embora eu a tivesse pôsto em perigo, ausentando-me da casa de meus pais, ela não será posta em jôgo se o castigo que me deres fôr secreto. O irmão olhava-a e, embora seu atrevimento o incitasse à vingança, as palavras ternas e firmes com que ela manifestava sua culpa abrandaram-lhe de tal sorte o ânimo que êle, calma e amàvelmente, soergueu-a do solo e consoloua da melhor maneira possível, dizendo-lhe, entre outras coisas, que, por não achar um castigo à altura de sua culpa, e também por parecer-lhe que a fortuna ainda não lhe havia fechado de todo as portas, suspendia-o por enquanto; queria antes procurar-lhe um alívio por todos os meios possíveis e não se vingar do agravo a que sua leviandade a conduzira. Estas palavras fizeram Teodósia recobrar o ânimo, recuperar a côr e reavivar suas esperanças quase mortas. Dom Rafael, assim se chamava seu irmão, não quis mais falar do ocorrido; disse-lhe apenas que mudasse o nome de Teodósia para Teodoro e sugeriu que ambos fôssem dar uma volta em Salamanca para procurar Marco Antônio, embora julgasse que não deveria estar lá, porque, sendo seu amigo, teria ido procurá-lo, mas podia ser também que a ofensa que lhe fizera lhe tivesse tirado a vontade de vê-lo. Teodósia submeteuse à vontade do irmão. Nisso, entrou o estalajadeiro e êles pediram-lhe algo para comer, pois desejavam partir imediatamente. Enquanto o criado selava as mulas e o almôço não vinha, entrou na estalagem um fidalgo com roupas de viagem, e que Dom Rafael logo reconheceu. Teodoro também o conhecia e por isso não se atreveu a sair do aposento, para não ser visto. Abraçaram-se e Rafael perguntou ao recémchegado que novidades havia em sua terra. O outro respondeu que vinha do pôrto de Santa Maria, onde deixara quatro galeras prontas para partir rumo a Nápoles, e que Marco Antônio Adorno, filho de Dom Leonardo Adorno, embarcara numa delas. Dom Rafael alegrou-se com as notícias, pois pareceu-lhe que o fato de ter recebido inesperadamente informações a respeito de coisas que tanto lhe interessavam era sinal de que sua emprêsa haveria de ser bem sucedida. Pediu ao amigo para ceder-lhe a mula que montava. Em troca, dar-lhe-ia seu cavalo, porque não queria levar tão bom animal em tão longa viagem, pois lhe dissera que ia a Salamanca, e não que vinha de lá. O outro, que lhe tinha grande amizade, concordou e encarregou-se de entregar o cavalo ao pai de Dom Rafael. Comeram juntos, o amigo logo se despediu e tomou o caminho de Cazalha, onde possuía uma rica propriedade. Dom Rafael não partiu com êle, pois disse que precisava voltar naquele dia para Sevilha; assim, tão logo o viu partir, estando já prontas as cavalgaduras e acertadas as contas com o estalajadeiro, saíram, dizendo adeus e deixando admirados todos os que ali se encontravam, com sua formosura e elegância, pois Dom Rafael destacava-se por seu garbo e desenvoltura e sua irmã pela graça e beleza. Ao sair, Dom Rafael contou imediatamente as notícias que lhe haviam dado de Marco Antônio, dizendo ainda que deviam dirigir-se ràpidamente para Barcelona, onde, em geral, as galeras que vão para a Itália ou vêm para a Espanha costumam parar; se as galeras não tivessem ainda chegado, poderiam esperá-las, pois, sem dúvida, haveriam de encontrar-se com Marco Antônio. A irmã disse-lhe para fazer o que lhe parecia melhor, pois sua vontade limitava-se a querer o que ele quisesse. Dom Rafael pediu ao cavalariço que o acompanhava para ter paciência, pois precisava ir a Barcelona, assegurando-lhe que pagaria, conforme sua vontade, pelo tempo que ficasse com ele. O criado, que era alegre e conhecia a liberalidade de Dom Rafael, respondeu que o serviria e o acompanharia até o fim do mundo. Dom Rafael perguntou à irmã quanto dinheiro ela levava. Ela respondeu que não o contara e, portanto, não sabia, mas havia pôsto a mão no cofre de seu pai sete ou oito vêzes, tirando-a cheia de escudos de ouro. Esta informação fez Dom Rafael calcular que ela poderia ter tirado uns 500 escudos; êstes, somados a outros 200 que ele possuía e a uma cadeia de ouro, garantiram-lhe maior sossego, pois já estava certo de que haveria de encontrar Marco Antônio em Barcelona. Apressaram-se e sem empecilho algum chegaram a 2 léguas de um lugar chamado Igualada, que fica a 9 léguas de Barcelona. Pelo caminho souberam que um cavalheiro, que ia para Roma como embaixador, estava em Barcelona, esperando pelas galeras, que ainda não haviam chegado; esta notícia os deixou muito contentes. Caminharam até entrar em um bosquezinho atravessado pela estrada, de onde viram um homem sair correndo e olhando para trás espantado. Dom Rafael cortou-lhe a carreira, dizendo-lhe: - Por que correis, bom homem? Que vos aconteceu para estardes assim com êste mêdo que vos faz tão ligeiro? - E como não hei de correr com tôda a fôrça e mêdo, se escapei, por milagre, a um grupo de bandoleiros que se esconde nesse bosque? - falou ele. - Muito mau - falou o criado. - Deus nos livre! Bandoleiros a estas horas? Benzamo-nos, pois se êles nos pegam... - Não vos assusteis, irmão - falou o homem que saía do bosque -, pois os bandoleiros já se foram e deixaram, amarrados às árvores dêste bosque, mais ou menos trinta passageiros, largando-os em manga de camisa; deixaram livre apenas um homem para desamarrar os outros, depois que tivessem transposto um pequeno morro que indicaram. - Se é assim - disse Calvete, pois assim se chamava o criado -, podemos passar sem mêdo, porque os bandoleiros não costumam voltar por alguns dias ao lugar que assaltam, e posso afirmar-vos isso como quem conhece bem a palma da mão e sabe quais os seus usos e costumes. - É assim mesmo - disse o homem. Dom Rafael, ouvindo isso, decidiu seguir para frente. Não demorou muito para encontrarem as pessoas amarradas e que eram mais de quarenta; o homem deixado sôlto estava desamarrando-os. Vê-los era um espetáculo singular: uns, completamente nus; outros, vestidos com as roupas sujas dos bandoleiros, outros, rindo ao verem as esquisitas roupas dos companheiros; êste contava minuciosamente o que lhe haviam roubado; aquêle dizia que sentia mais a perda de um agnus que trouxera de Roma que a das inúmeras coisas que levava. Enfim, tudo ali era gemidos e prantos dos miseráveis despojados. Os dois irmãos olhavam tudo, imensamente penalizados, dando, porém, graças ao céu, que os havia livrado de tão grande perigo. Entretanto, o que mais lhes causou compaixão, especialmente a Teodoro, foi ver, prêso ao tronco de uma azinheira, um rapaz que aparentava ter uns dezesseis anos, vestindo apenas uma camisa e um calção de algodão, mas tão formoso de rosto, que obrigava todos a olharem para êle. Teodoro apeou, foi desamarrá-lo e êle agradeceu-lhe com palavras corteses o benefício; Teodoro pediu a Calvete, o criado, para emprestar-lhe a capa até que pudessem comprar outra para o gentil mancebo. Calvete deu-lha e Teodoro cobriu com ela o rapaz, perguntando-lhe de onde era, de onde vinha e para onde ia. Dom Rafael presenciava tudo e ouviu o rapaz dizer que era de Andaluzia e, dizendo o nome do lugar, souberam todos tratarse de uma cidade que ficava apenas a duas léguas de onde moravam. O rapaz disse que vinha de Sevilha e pensava ir à Itália para exercitar-se no manejo das armas, como o faziam muitos outros espanhóis; a sorte, porém, não lhe fôra favorável, pois os bandoleiros lhe haviam levado boa quantia de dinheiro e umas roupas que não se compram com apenas 300 escudos; apesar de tudo isso, porém, pensava prosseguir em seu caminho, porque era gente de fibra e o calor de seu desejo não haveria de gelar com o primeiro empecilho. As palavras do rapaz, o fato de ser de um lugar tão próximo de sua cidade e a carta de recomendação que era sua beleza fizeram os dois irmãos se oferecerem para ajudá-lo em tudo o que lhes fôsse possível; repartiram êles algum dinheiro entre os que pareciam mais necessitados, especialmente os frades e clérigos, que eram mais de oito, fizeram o mancebo montar o cavalo de Calvete, e, sem demorar mais, chegaram logo a Igualada, onde souberam que as galeras haviam chegado a Barcelona no dia anterior e partiriam dali a dois dias se a discutível segurança da praia não os obrigasse a partir antes. Estas notícias fizeram-nos levantar-se na manhã seguinte antes do sol. Dormiram pouco durante a noite e sobressaltados, porque, estando êles à mesa, Teodoro olhou demoradamente o rapaz que haviam desatado e, observando-o, pareceu-lhe ter êle as orelhas furadas. Por isso, por seu olhar meio envergonhado, Teodoro desconfiou que se tratasse de uma mulher e desejou acabar de comer logo para poder certificar-se de suas suspeitas. Durante o jantar, Dom Rafael perguntou-lhe de quem era filho, pois conhecia tôda a gente importante do lugar de onde êle dissera ter vindo. O jovem respondeu que era filho de Dom Enrique de Cárdenas, cavalheiro muito conhecido. Dom Rafael disse-lhe que conhecia muito bem a Dom Enrique e tinha certeza de que êle não possuía filho algum, mas, se êle assim falara para não revelar o nome de seus pais, não tinha importância e nunca mais lhe faria perguntas. - É verdade - replicou o môço - que Dom Enrique não tem filhos, mas um irmão seu, chamado Dom Sancho, os tem. - Mas êsse também não tem filhos - disse Dom Rafael - e sim uma única filha. Dizem que é das mais formosas donzelas que há em Andaluzia, mas isto eu sei apenas por ter ouvido falar, pois, embora eu tenha estado lá inúmeras vêzes, jamais pude vê-la. - Tudo o que dizeis, senhor, é verdade - falou o jovem. Dom Sancho tem apenas uma filha, mas não é tão formosa como dizem, e se eu falei que era filho de Dom Enrique, foi para que me considerásseis um pouco, senhores, pois sou apenas filho do mordomo de Dom Sancho, que há muitos anos o serve. Eu nasci em sua casa, mas, por certo desgôsto que dei a meu pai, tirandolhe considerável quantia em dinheiro, quis ir para a Itália, como já vos disse, e seguir o caminho da guerra por intermédio da qual, conforme pude observar, até os de origem obscura conseguem tornar-se ilustres. Tôdas estas palavras e o modo pelo qual eram ditas foram confirmando as suspeitas de Teodoro. Terminado o jantar, tirou-se a mesa e, enquanto Dom Rafael se despia, tendo-lhe já confiado suas suspeitas, Teodoro, com o consentimento do irmão, retirou-se para o balcão de uma grande janela que dava para a rua e ali, debruçados os dois, começou a falar com o rapaz: - Quisera, Senhor Francisco - assim disse chamar-se o môço -, ter-vos feito tantos benefícios que vos obrigasse a não negar qualquer coisa que eu pudesse ou quisesse pedir-vos, mas o pouco tempo que vos conheço não o permite; podia ser também que descobrísseis meu desejo e, se agora não quiserdes satisfazer minha curiosidade, nem por isso deixarei de ser vosso servidor, como o sou agora. Quero também que saibais, embora tenha eu tão pouca idade quanto tenho mais experiência das coisas do mundo do que parece, pois com ela cheguei a suspeitar de que não sois homem, como o mostram as vossas roupas, mas mulher, e de origem tão nobre quão evidente é a vossa formosura, e também infeliz como o demonstra a mudança de traje que fizestes, pois nunca tais mudanças são feitas por alguém sem algum motivo. Se minha suspeita tem fundamento, dizei, pois juro-vos pela minha fé que vos ajudarei e servirei em tudo quanto puder. Não podeis negar que sois mulher, pois os furos de vossas orelhas deixam transparecer a verdade e fôstes descuidada esquecendo-vos de ocultá-los com um pouco de cêra; podia ser que outro, tão curioso quanto eu e talvez não tão honrado, revelasse o que não soubestes disfarçar muito bem. Não vos recuseis a dizer-me quem sois, pois ofereço-vos a minha ajuda e assegurovos que saberei manter segrêdo. O jovem escutou com grande atenção o que Teodoro lhe dizia e, vendo que êle se calava, em vez de falar, tomou-lhe as mãos e, levando-as aos lábios, beijou-as e banhou-as com muitas lágrimas que seus formosos olhos derramavam. Êsse estranho procedimento impressionou Teodoro de tal forma que êle não pôde deixar de chorar também - pois é comum e natural as mulheres nobres se comoverem com os sentimentos e fadigas alheias. Após ter retirado com dificuldade as mãos dos lábios do rapaz, permaneceu atenta a esperar para ver sua resposta. Êste, dando um doloroso gemido, acompanhado de muitos suspiros, falou: - Não vos quero negar, senhor, que vossa suspeita é verdadeira; sou mulher e a mais infeliz mulher que o mundo já conheceu; os favores que me fizestes e os oferecimentos que me fazeis obrigam-me a obedecer-vos em tudo quanto me ordenardes; escutai e eu vos direi quem sou, se é que não vos cansareis de ouvir apenas desventuras. - Que eu seja para sempre desventurado - replicou Teodoro - se não chegar a sentir pena de vossas desgraças, pois já as vou sentindo como se fôssem minhas. E, tendo tornado a abraçá-lo e a fazer-lhe novos e sinceros oferecimentos, o jovem, um pouco mais tranqüilo, começou a falar: - A respeito de minha pátria já vos disse a verdade; não a disse, porém, quando me referi a meus pais, porque Dom Enrique é apenas meu tio; sou filha de Dom Sancho, seu irmão; sou eu a desventurada filha de Dom Sancho, cuja beleza, segundo disse vosso irmão, é elogiada por todos, o que não passa de engano, conforme podeis muito bem ver. Meu nome é Leocádia e sabereis agora a razão da minha mudança de traje: a 2 léguas de minha cidade há um lugar considerado como um dos mais ricos e nobres de Andaluzia, onde vive um cavalheiro importante, descendente da família dos nobres e antigos Adorno, de Gênova. Êste senhor tem um filho que é considerado um dos homens mais elegantes que se possa imaginar. Êle, quer por morar perto de cidade, quer por ser, como meu pai, aficionado a caçadas, vinha à minha casa muitas vêzes e ali permanecia por cinco ou seis dias, passando-os, bem como parte da noite, no campo, juntamente com meu pai. Desde então, apoderou-se da fortuna, do amor ou da minha inexperiência, que foi suficiente para lançar-me da altura de meus bons desejos, ao estado em que me encontro, pois, tendo eu olhado, mais do que se permite a uma recatada donzela, a elegância de Marco Antônio, tendo considerado sua origem nobre e a grande quantidade dos bens de seu pai, pareceu-me que, se eu conseguisse tê-lo como espôso, teria tôda a felicidade comigo; assim pensando, comecei a olhá-lo mais demoradamente para depois olhá-lo de maneira mais descuidada, pois êle chegou a perceber que eu o olhava; não quis o traidor nem foi preciso outro caminho para conhecer meu segrêdo e para roubar as melhores prendas de minh'alma. Mas não sei por que me ponho a contar-vos, senhor, as particularidades de meus amores, pois quase não vêm ao caso; basta dizer-vos que fui muito liberal para com êle porque, havendo-me dado sua palavra e, segundo acreditei, fazendo juramentos firmes, cristãos, de ser meu espôso, disse-lhe, que dispusesse de mim como bem entendesse; porém não estando eu muito satisfeita apenas com seus juramentos e palavras, e para que não as levasse o vento, fi-lo escrevê-las em um papel que êle me devolveu depois de deixar nêle sua assinatura e escrever certas palavras que me satisfizeram. Recebi o documento, dei um jeito para que viesse de sua cidade até a minha, entrasse à noite pelos muros do jardim e fôsse ter ao meu quarto, onde, sem susto algum, podia colhêr o fruto que a êle somente estava destinado. Chegou, enfim, a noite que eu tanto desejava Teodoro permanecera em silêncio até então, tendo a alma prêsa às palavras de Leocádia, palavras que lhe trespassaram a alma, principalmente quando ouviu o nome de Marco Antônio e notou a peregrina formosura de Leocádia, considerou também sua grandeza e seu valor por sua discrição, demonstrada através do modo de ela contar sua história. Entretanto, quando disse: “Chegou a noite que eu tanto desejara”, estêve a ponto de perder a paciência e, sem poder fazer mais nada, interrompeu-a, dizendo: - E então, o que fêz êle quando chegou esta desejadíssima noite? Conseguiu entrar? Chegou a possuir-vos? Confirmou o que escrevera? Ficou satisfeito por ter conseguido de vós o que lhe reservastes? E vosso pai, soube do fato? Que fim tiveram tão honestos e sábios princípios? - Tais princípios - disse Leocádia - acabaram por deixarme como vêdes, porque nem eu o possuí, nem êle me possuiu, nem veio ao encontro marcado. Teodósia, ouvindo estas palavras, tomou nôvo alento, recuperou a razão, que, encurralada pelo maldito ciúme, estava prestes a abandoná-la; se a situação se prolongasse um pouco mais, o ciúme acabaria infiltrando-se em seus ossos e medula até apoderar-se inteiramente de sua paciência; contudo, ela não pôde deixar de ouvir com grande sobressalto o que Leocádia tinha ainda a dizer: - Não somente deixou de vir como também, dali a oito dias - eu soube isto de fonte limpa -, acabou por ausentar-se da cidade, não sem antes ter levado para a casa de seus pais uma donzela, filha de um homem importante, chamada Teodósia, jovem dotada de grande beleza e rara discrição. Por tratar-se de uma jovem, filha de pais nobres, a notícia do rapto chegou depressa à minha cidade e mais depressa ainda a meus ouvidos; com ela chegou também a temida e fria lança do ciúme, que me atravessou o coração, abrasou minh'alma em chama tal que transformou minha honra em cinzas, arrebatou-me as esperanças, esgotou minha brandura. Como fui infeliz! Imaginei logo como deveria ser Teodósia: mais formosa que o sol, mais sensata que a própria sensatez e, sobretudo, mais venturosa que eu. Tomei o papel e reli as palavras; achei-as firmes e verdadeiras, incapazes de trair a fé que revelavam, mas, embora minha esperança tivesse recorrido a elas, vi-as caídas por terra ao levar em conta a duvidosa companhia que Marco Antônio levava com êle. Maltratei o meu rosto, arranquei os cabelos, maldisse minha sorte. E o que mais me aborrecia era não poder fazer tais sacrifícios a tôda hora, por causa da presença constante de meu pai. Enfim, para poder ficar sozinha ou para acabar com a vida, decidi deixar a casa de meu pai, e, como a sorte parece facilitar e afastar todos os inconvenientes a fim de que um pensamento seja pôsto em prática, roubei a um pajem, sem temor algum, umas vestes, e a meu pai, grande quantidade de dinheiro, que cobri com uma capa negra; saí de casa certa noite, andei a pé algumas léguas e cheguei a um lugar chamado Osuna e, acomodando-me em uma carruagem, entrei em Sevilha, dali a dois dias, onde, ainda que me procurassem, podia estar certa de que não me encontrariam. Comprei umas roupas, um animal e caminhei até ontem com uns cavaleiros que vinham para Barcelona a tôda a pressa, pois não queriam perder a oportunidade de ir para a Itália numas galeotas que aqui se encontram; caminhei até acontecer o que já sabeis; os bandoleiros tiraramme tudo quanto trazia, inclusive a jóia que mantinha minha saúde e aliviava o pêso de minhas fadigas: o documento escrito por Marco Antônio. E eu, que pensava levá-lo para a Itália, encontrar Marco Antônio, apresentá-lo como prova de sua infidelidade e exigir dêle o cumprimento de sua promessa; mas, considerei também que quem se nega a cumprir obrigações que deviam estar gravadas em sua alma, negará com facilidade as palavras escritas em um papel. Se êle tiver em sua companhia a incomparável Teodósia, claro está, não há de querer olhar para a infeliz Leocádia. Por tudo isso, penso em morrer ou, então, apresentarme na presença dos dois, para que minha vida lhes tire o sossêgo. Não pense a inimiga de meu descanso gozar assim tão fàcilmente aquilo que é meu. Eu a procurarei, eu a encontrarei e haverei de tirar-lhe a vida, se puder. - Mas que culpa terá Teodósia - disse Teodoro - se ela também tiver sido enganada por Marco Antônio, como vós o fôstes, Senhora Leocádia? - E como pode ser assim - falou Leocádia -, se êle a levou consigo? E estando juntos os que se querem bem, que engano pode haver? Nenhum, por certo. Êles estão felizes, porque estão juntos. Pois que fiquem nos distantes e abrasadores desertos da Líbia ou nas terras isoladas da fria Cítia, como se costuma dizer. Ela o possui, sem dúvida, e somente ela há de pagar pelo que sofri. - Talvez estejais enganada - replicou Teodósia -, pois eu conheço muito essa vossa inimiga, e sei que ela, em seu recato, nunca se aventuraria a deixar a casa de seus pais nem concordar com a vontade de Marco Antônio. E, mesmo que o tivesse feito, não vos conhecendo nem sabendo nada a respeito do que se passava, não vos pode ter ofendido em coisa alguma, e onde não há ofensa não pode haver vingança. - Quanto ao recato - falou Leocádia -, nada significa, pois eu também era tão recatada e honesta como pode ser qualquer donzela e, no entanto, fiz o que bem sabeis. Êle a levou, não há dúvida, e, analisando os fatos desapaixonadamente, sou obrigada a confessar que ela não me ofendeu, mas a dor que me despertam os ciúmes me faz sentir como que uma espada a atravessar minhas entranhas; não é exagêro procurar arrancar e fazer em pedaços êsse punhal que tanto me fere; é sinal de muita prudência afastar de nós tôdas aquelas que atrapalham nossa felicidade. - Seja como dizeis, Senhora Leocádia - retrucou Teodósia -, pois vejo que vossa paixão não vos deixa dizer palavras mais ponderadas; sei que a hora não é própria para conselhos. De minha parte, repito-vos que hei de ajudar-vos a favorecer em tudo quanto fôr justo e possível. Sei que meu irmão fará a mesma coisa, pois sua condição e nobreza não o levarão a agir de outra forma. Nosso destino é a Itália; se quiserdes vir conosco, já sabeis mais ou menos como sereis tratada em nossa companhia. Peço-vos apenas licença para contar a meu irmão o que sei a vosso respeito; assim êle poderá tratar-vos com o respeito que mereceis e cuidará de vós como se deve. Parece-me, também, que não deveis mais usar estas roupas e, se tivermos oportunidade, comprarei, pela manhã, as melhores roupas que houver e que melhor vos convenham. Quanto às vossas demais pretensões, dai tempo ao tempo, que é grande mestre em achar remédio para os casos mais desesperadores. Leocádia agradeceu a Teodósia, que ela julgava ser Teodoro, os muitos oferecimentos que fazia e permitiu-lhe contar ao seu irmão tudo que quisesse, suplicando-lhe para não a desamparar, pois já antevia os inúmeros perigos a que estaria exposta se todos soubessem ser ela mulher. Com isto, despediram-se e foram dormir. Teodósia dirigiu-se ao quarto do irmão e Leocádia ao quarto contíguo. Dom Rafael ainda não dormira, pois esperava a irmã para saber o que se havia passado. Quando Teodósia entrou, perguntou-lhe, antes de ela se deitar, qual o resultado da conversa. A môça contou-lhe detalhadamente o que Leocádia lhe dissera: de quem era filha, de seus amôres, do papel que Marco Antônio lhe dera e de sua intenção. Dom Rafael, admirado, falou à irmã: - Se ela é de fato a pessoa que diz, só vos posso dizer, minha irmã, que ela é uma das senhoras mais nobres e importantes de tôda Andaluzia; seu pai é muito conhecido do nosso e a beleza de seu rosto não desmente a fama de que goza por sua formosura. Isso me faz pensar que devemos agir cautelosamente e não a deixar falar com Marco Antônio antes de nós, pois o documento assinado por êle, embora ela o tenha perdido, muito me preocupa. Mas, tranqüilizai-vos e repousai, minha querida irmã, pois haveremos de encontrar uma solução para tudo. Teodósia procurou fazer o que o irmão lhe dizia, mas não pôde acalmarse, pois a doença do ciúme se havia apoderado de sua alma. Como a beleza de Leocádia e a deslealdade de Marco Antônio se apresentavam muito maiores do que eram na realidade! Quantas vêzes lia ou imaginava ler o papel que êle assinara! Quantas palavras e argumentos via serem acrescentados àquele papel, que aumentava assim em valor! Quantas vêzes imaginou que, se êle não existisse, Marco Antônio não teria deixado de cumprir a promessa que lhe fizera! Assim, passou ela a maior parte da noite sem poder conciliar o sono. Dom Rafael, seu irmão, também não conseguiu descansar, pois, logo que ouviu dizer quem era Leocádia, seu coração queimou-se em amôres, como se de há muito esperasse que isso acontecesse; tal é o poder da formosura, que, de repente, arrasta consigo o desejo de quem a vê e a conhece, pois, quando promete alguma esperança, inflama impetuosamente a alma de quem a contempla e o faz de tal modo que qualquer centelha incendeia com facilidade a pólvora que ali se encontra. Dom Rafael não podia imaginar Leocádia prêsa a uma árvore nem vestida com andrajosas roupas de homem e sim vestida com roupas de mulher, em casa de seus ricos e importantes pais. Não fixava nem queria fixar o pensamento nas causas que o fizeram conhecê-la; desejava que o dia chegasse para prosseguir em sua jornada e procurar Marco Antônio, não tanto para fazer dêle seu cunhado, mas para impedi-lo de tornar-se espôso de Leocádia. O amor e o ciúme apoderaram-se dêle de tal forma que êle pensou em deixar de ajudar a irmã e matar Marco Antônio, a fim de que nada o impedisse de casarse com Leocádia; suas esperanças prometiam bom têrmo para seu desejo, que haveria de ser realizado, quer pela fôrça quer pelos favores que pudesse prestar, pois a ocasião e o lugar lhe eram propícios. Prometendo uma porção de coisas a si próprio, acalmou-se um pouco e dali a instantes viu chegar o dia. Todos se levantaram e Dom Rafael, chamando o hospedeiro, perguntou-lhe se naquela cidade havia roupas adequadas para vestir um pajem que os bandoleiros haviam deixado nu. O hospedeiro disse que possuía umas roupas em bom estado. Dom Rafael ordenou-lhe que as trouxesse e, como servissem em Leocádia, pagou-as. A môça vestiu-se, cingiu uma espada e uma adaga com tanta graça que perturbou a razão de Dom Rafael e aumentou o ciúme de Teodósia. Calvete arreou os cavalos e, às 8 horas, partiram êles para Barcelona, sem visitar o famoso mosteiro de Montserrat, deixando para fazê-lo quando Deus os deixasse tornar sossegados à sua terra. Não podemos contar, de maneira satisfatória, os pensamentos dos dois irmãos, nem falar dos diferentes ânimos com que iam olhando Leocádia. Teodósia desejava-lhe a morte; Dom Rafael, a vida. Ambos, ciumentos e apaixonados. Ela atribuía-lhe defeitos para não ver fenecer suas esperanças; Dom Rafael via-lhe perfeições que, pouco a pouco, o obrigavam a amá-la cada vez mais. Apesar de tudo isso, não deixaram de se apressar, de modo que chegaram a Barcelona antes do pôr do sol. Admiraram-se com a beleza do lugar e consideraram Barcelona a mais bela entre as belas cidades do mundo, a glória da Espanha, o temor e espanto de seus inimigos, ou vizinhos ou distantes, o regalo e delícia de seus moradores, abrigo para os estrangeiros, modêlo de cavalheirismo, coragem, e exemplo de lealdade e satisfação de tudo aquilo que um discreto e curioso desejo pode pedir a uma grande, formosa e rica cidade. Ao entrarem, ouviram um fortíssimo estrondo e viram muita gente a correr alvoroçada. Indagando a causa de tal agitação, souberam que o pessoal das galeras estava na praia e lutava com a gente da cidade. Dom Rafael, ouvindo isso, quis ver o que se passava, embora Calvete lhe dissesse para não o fazer, que era loucura meter-se em tal perigo, que era difícil uma pessoa sair-se bem em tais brigas, comuns naquela cidade, quando ali chegavam galeras. O conselho de Calvete não conseguiu, porém, demover Dom Rafael de seu intento e acabaram todos por segui-lo. Chegando à praia, viram muitas espadas desembainhadas e muita gente golpeando-se sem dó nem piedade. Apesar disso, sem apear, chegaram tão perto do local da luta, que puderam ver distintamente o rosto dos combatentes, porque o sol ainda não se havia escondido. Era imenso o número de pessoas da cidade que para lá se dirigiam e grande o número de pessoas que desembarcavam das galeras, embora o cavalheiro que as comandava, um valenciano chamado Dom Pedro Vique, da pôpa da galera capitânea, ameaçasse a todos os que haviam embarcado em seus botes para que fôssem socorrer os demais. Enfim, vendo Dom Pedro que de nada adiantavam seus gritos e ameaças, mandou virar as proas das galeras em direção da cidade e disparar uma peça de artilharia sem bala, sinal de que, se êles não parassem de lutar, o outro disparo não iria sem ela. Enquanto isso, Dom Rafael olhava atentamente a luta ferrenha que se travava. Notou, então, que, entre os homens das galeras, havia um jovem de uns 22 anos, vestido com roupas verdes e um chapéu da mesma côr, enfeitado com um galão muito rico, talvez de diamante, que se destacava dos demais. Sua destreza ao lutar e a elegância de sua roupa chamou a atenção de todos os que apreciavam a luta; os olhos de Teodósia e os de Leocádia fitaram-no de tal forma que ambas exclamaram a um só tempo: - Valha-me Deus! Ou não tenho olhos ou aquêle jovem de roupas verdes é Marco Antônio. Dizendo isto, saltaram das mulas com grande ligeireza e, passando a mão nas espadas, entraram sem temor algum no meio da turba, colocando-se lado a lado de Marco Antônio, pois era êle mesmo o jovem que usava as roupas verdes das quais falamos. - Não temais, Senhor Marco Antônio - disse Leocádia assim que chegou -, pois tendes a vosso lado alguém que fará escudo de seu próprio corpo para defender o vosso. - Quem o duvidará, estando eu aqui? - perguntou Teodósia. Dom Rafael, vendo e ouvindo o que se passava, seguiu-as e colocou-se a seu lado. Marco Antônio, ocupado em atacar e defender-se, não prestou atenção às palavras que elas lhe disseram; empenhado na luta, fazia coisas incríveis, porém, como o pessoal da cidade aumentasse, viram-se obrigados a recuar até meterem-se na água. Marco Antônio retirava-se de má vontade e junto com êle as duas novas e valentes Bradamante e Marfisa ou Hipólita e Pantasiléia. Nisto, aproximou-se um cavaleiro catalão da ilustre família dos Cardona, que, colocando-se entre os inimigos, fazia o pessoal da cidade retirar-se, pois todos o respeitavam. Entretanto, alguns, mais exaltados, de longe atiravam pedras aos que entravam na água, e quis a má sorte que uma delas atingisse a fronte de Marco Antônio, com tanta fúria, que o fêz cair dentro da água. Leocádia, tão logo o viu cair, levantou-o e recolheu-o em seus braços. Teodósia fêz o mesmo. Dom Rafael estava um pouco distante defendendose da chuva de pedras que por sôbre êles caía e, quando quis ir em socorro de sua bem-amada, de sua irmã e do cunhado, pôs-se diante dêle o cavalheiro catalão e lhe disse: - Acalmai-vos, senhor, como bom soldado que sois, e fazei o favor de colocar-vos a meu lado que eu vos livrarei da insolência desta gente. - Deixai-me passar, senhor - falou Dom Rafael -, pois vejo em grande perigo tôdas as pessoas que mais estimo na vida. O cavalheiro deixou-o passar, mas êle não chegou a tempo. Marco Antônio e Leocádia, que o mantinha nos braços, foram recolhidos ao barco da galera capitânea; Teodósia não conseguiu ir com êles, pois não teve fôrças para subir no bote, ou por estar cansada, ou por sofrer vendo que Marco Antônio estava ferido, ou por ver que sua maior inimiga estava com êle; e teria, sem dúvida, caído na água, desmaiada, se o irmão não chegasse a tempo de socorrê-la. Dom Rafael ficou tão aborrecido quanto a irmã por ver que Leocádia se fôra com Marco Antônio, pois também êle já o havia reconhecido. O cavalheiro catalão, impressionado com a galhardia de Dom Rafael e de sua irmã, que êle pensava ser homem, chamou-os da praia e pediu-lhes para ir ter com êle. Forçados pela necessidade e receando que o povo, ainda não totalmente acalmado, lhes causasse algum mal, tiveram de aceitar o convite que lhes era feito. O cavalheiro desmontou, e, colocando-se junto aos dois jovens, passou com a espada desembainhada por entre a turba, pedindo ao povo que se afastasse, e êle assim o fêz. Dom Rafael olhou para todos os lados para ver se encontrava Calvete e as mulas, mas não conseguiu, pois o criado as levara para uma estalagem onde costumava ficar. O cavalheiro chegou a casa, que era uma das mais importantes da cidade, e perguntou a Dom Rafael em qual das galeras tinha êle vindo. Dom Rafael respondeu-lhe que não viera em nenhuma, pois havia chegado à cidade no momento em que a luta começava e, por ter reconhecido o cavalheiro que tinha sido ferido pela pedrada, expusera-se àquele perigo. Disse isso e pediu-lhe para mandar buscar o rapaz ferido, porque dêle dependiam sua alegria e sua vida. - Eu o farei de boa vontade - falou o fidalgo -, e sei que o general me atenderá, pois é um cavalheiro e é também meu parente. Sem mais demora dirigiu-se êle à galera, onde Marco Antônio estava sendo socorrido, pois a ferida, como dissera o cirurgião, era perigosa, por ser do lado esquerdo. Conseguiu do general permissão para transportar Marco Antônio à terra a fim de curá-lo; puseram o rapaz no bote com muito cuidado e o levaram para terra; Leocádia não o abandonou um só instante, embarcou também, como para seguir o guia de sua esperança. Chegando à terra, o cavalheiro mandou trazer de sua casa uma liteira para o levarem. Enquanto isto se passava, Dom Rafael mandou procurar Calvete, que se encontrava na estalagem, preocupado com a sorte de seus amos; entretanto, ao saber que êles estavam bem, alegrou-se muitíssimo e foi para onde estava Dom Rafael. Entrementes, chegaram Marco Antônio e Leocádia e o cavalheiro, que acomodou a todos com muito confôrto e carinho. Ordenou que se procurasse um famoso cirurgião da cidade a fim de que êle medicasse Marco Antônio novamente. O médico atendeu o chamado, mas não quis receitar nada, dizendo que os médicos dos exércitos e armadas eram muito experientes, pois tinham, freqüentemente, de cuidar de feridos e que, portanto, nada queria receitar, pelo menos até o outro dia. Deu instruções apenas para colocarem Marco Antônio em um quarto bem fechado e que o deixassem descansar. Logo depois chegou o médico da galera, que lhe contou como socorrera o ferido e qual era, segundo pensava, seu verdadeiro estado. O médico da cidade achou que Marco Antônio tinha sido bem atendido e também, levando em consideração o relatório feito pelo outro, exagerou ao falar do perigo que o rapaz corria. Leocádia e Teodósia, ao ouvirem suas palavras, pensaram ter ouvido sua própria sentença de morte, mas, para não darem mostras de sua dor, calaramse. Leocádia, porém, decidiu fazer o que lhe parecia mais conveniente para preservar sua honra. Assim, tão logo os médicos se foram, entrou no quarto de Marco Antônio e, perante o dono da casa, perante Dom Rafael, Teodósia e outras pessoas, chegou à cabeceira do ferido e, tomando-lhe as mãos, disse-lhe: - A situação não permite, Senhor Marco Antônio Adorno, gastarem-se muitas palavras convosco, por isso peço-vos apenas para escutar algumas palavras que, se não forem benéficas para a saúde do corpo, haverão de sê-lo para vossa alma, mas para eu as dizer é necessário dardes licença e demonstrardes se estais em condição de ouvir-me. E isso porque, tendo eu procurado agradar-vos desde que vos conheci, não é justo que nesse instante, talvez fatal, eu vos seja a causa de algum aborrecimento. Ao ouvir estas palavras, Marco Antônio abriu os olhos, fixou-os demoradamente em Leocádia e, parecendo reconhecê-la, disse, com voz fraca e apagada: - Dizei, senhora, o que desejais, pois eu não estou assim tão mal que não possa nem mesmo escutar-vos, nem tendes voz tão desagradável que eu me aborreça ao ouvi-la. Teodósia permanecia atenta; cada palavra de Leocádia era uma seta aguda a atravessar-lhe o coração e a ferir a alma de Dom Rafael, que também a escutava. Leocádia prosseguiu: - Se o golpe desfechado em vossa cabeça ou, para melhor dizer, em minh'alma, Senhor Marco Antônio, não levou de vossa memória a imagem daquela que há pouco tempo considerastes como vossa glória e vossa felicidade, havereis de lembrar quem é Leocádia e que palavras escrevestes, com vossa própria mão e com vossa letra, em um papel que a ela entregastes; não tereis esquecido também a nobreza de sua origem, tôda a sua integridade e seu recato e vossa obrigação, por terdes consentido, de vossa própria vontade, que ela satisfizesse todos os vossos desejos. Se não vos esquecestes, havereis de reconhecer fàcilmente que sob êstes trajes se esconde Leocádia, pois eu, receando que novos acidentes me roubassem o que tão justamente é meu, tão logo partistes, superando muitas inconveniências, decidi seguirvos com a intenção de procurar-vos em tôda parte da terra, até encontrar-vos. E não vos deveis admirar, se é que já ouvistes falar alguma vez onde chegam as fôrças de um amor verdadeiro e a cólera de uma mulher enganada. Passei algumas dificuldades em minha viagem, mas eu as julgo uma alegria, pois elas me permitiram ver-vos; talvez Deus queira levar-vos desta vida, por isso, se fizerdes o que deveis antes de partir, considerarme-ei mais do que feliz e vos prometo que, depois de vossa morte, pouco tempo há de se passar até eu vos seguir nesta última e forçosa jornada. Rogo-vos, primeiro por Deus, a quem ofereço meus desejos, e depois por vós, que muito deveis a vós mesmo por serdes quem sois, e finalmente por mim, a quem deveis mais do que a qualquer outra pessoa no mundo, que me recebais aqui como vossa legítima espôsa, não permitindo que a Justiça faça o que a razão vos indica. Leocádia calou-se e todos os presentes, que tinham permanecido em profundo silêncio enquanto ela estivera falando, mantiveram-se em silêncio, esperando a resposta de Marco Antônio. - Não posso negar, senhora, que vos conheço, pois vossa voz e vosso rosto não me permitem negá-lo. Também não quero negar o muito que vos devo nem o grande valor de vossos pais nem vossa incomparável honestidade e sensatez, nem vos menosprezarei por terdes vindo procurar-me vestida com êstes trajes; pelo contrário, estimo-vos por isso e estimarei muito ainda; mas, já que minha sorte me fêz chegar ao fim, como dissestes, e porque em tais ocasiões nada se deve esconder, quero revelarvos uma verdade que, se não vos agradar agora, talvez no futuro vos traga algum proveito. Confesso, formosa Leocádia, que vos quis bem, mas também confesso que assinei aquêle papel mais para realizar vosso desejo que propriamente o meu, pois muitos dias antes de assiná-lo já entregara minha vontade e minh'alma a uma jovem de minha cidade, chamada Teódósia, filha de pais tão nobres quanto os vossos, e a quem vós bem conheceis; se vos dei um papel assinado por meu próprio punho, dei a ela minha mão, juntamente com tais obras e testemunhas que estou impossibilitado de prender-me a qualquer outra pessoa no mundo. Nossos amôres foram sem maior conseqüência, e dêles nada mais alcancei além de flores, que não vos ofenderam nem vos podem ofender em coisa alguma; com Teodósia, entretanto, obtive o fruto que ela pôde dar e que desejei que me desse, pois , estava certo de ser seu espôso, como de fato o sou. Se deixei a vós admirada e enganada, a ela, receosa e, a seu ver, desonrada, foi levado pelo meu pouco juízo, acreditando que tais coisas não tivessem muita importância e que podia fazê-las sem escrúpulo algum; levado por outros pensamentos, quis ir para a Itália e passar ali alguns anos de minha juventude e depois voltar para ver o que Deus havia feito de vós e de minha verdadeira esposa, mas o céu, apiedando-se de mim, permitiu-me ficar neste estado para que, confessando estas verdades, nascidas de minhas inúmeras culpas, pague nesta existência minhas dívidas, a fim de que vós fiqueis desenganada e livre para fazerdes o que melhor vos parecer. Se Teodósia souber algum dia de minha morte, saberá, por vós e pelos que estão presentes, como em minha hora extrema eu soube cumprir a palavra que empenhei estando vivo e se, no pouco tempo de vida que me resta, Senhora Leocádia, eu vos puder servir em alguma coisa, exceto receber-vos como esposa, é só dizer, pois tudo farei para vos agradar. Enquanto Marco Antônio dizia estas palavras, apoiava a cabeça em seu cotovêlo, mas, acabando de pronunciá-las, deixou cair o braço, dando mostras de que desmaiava. Dom Rafael acudiu logo e, abraçando-o fortemente, disse: - Voltai, senhor, abraçai vosso amigo e irmão; sou Dom Rafael, vosso amigo, que será a verdadeira testemunha de vossa vontade e da graça que concedeis a minha irmã, aceitando-a por esposa. Marco Antônio voltou a si e logo reconheceu Dom Rafael, abraçou-o estreitamente, beijou-o no rosto e disse: - Meu querido amigo e irmão, a imensa alegria que senti ao ver-vos só pode ser transformada em imenso pesar, pois costuma-se dizer que à alegria segue-se a tristeza, mas eu darei por bem empregada qualquer tristeza em troca da alegria de vos ver. - Pois eu quero prolongar vossa alegria - disse Dom Rafael -, apresentando-vos esta jóia que é a vossa querida espôsa. Procurou Teodósia e a encontrou chorando, surprêsa, hesitante entre o pesar e a alegria pelo que via e acabava de ouvir. Dom Rafael pegou-a pela mão e ela, sem resistir, deixou-se levar até Marco Antônio, que a reconheceu, que a abraçou, e ambos derramaram ternas e amorosas lágrimas. Todos os presentes ficaram admirados por presenciar tais acontecimentos; entreolhavam-se sem dizer palavra, esperando para ver que fim teriam tôdas aquelas coisas. A desventurada Leocádia, vendo com seus próprios olhos o que Marco Antônio fazia e vendo aquêle que julgava irmão de Dom Rafael nos braços de quem ela acreditava seu espôso e vendo também frustrados seus desejos, perdidas suas esperanças, abandonou o aposento sem ser vista, pois todos olhavam atentamente o enfêrmo, que permanecia abraçando o suposto pajem; num instante encontrou-se ela na rua, com intenção de ir para onde ninguém pudesse vê-la. Mal chegara à rua, Dom Rafael deu pela sua falta, e, como se lhe faltasse a alma, perguntou por ela, mas ninguém soube dizer para onde tinha ido. Desesperado, não esperou mais; saiu para procurá-la e dirigiu-se até a hospedaria onde estava Calvete, pois talvez ela tivesse ido para lá à procura de um animal que pudesse montar. Não a encontrando, andou como um louco pelas ruas, procurando-a em tôdas as partes. Depois, pensando que ela poderia ter voltado às galeras, dirigiu-se à praia e, ao chegar, ouviu gritos que chamavam da terra o bote da nau capitânea e reconheceu que quem os pronunciava era a formosa Leocádia. Esta, receando algum perigo, ao ouvir seus passos, empunhou a espada e esperou. Dom Rafael aproximou-se dela, ela o reconheceu e lamentou que a encontrasse, e ainda mais em lugar tão deserto, pois já percebera que Dom Rafael não lhe queria mal; percebeu até que êle lhe queria muito bem e desejou que Marco Antônio lhe quisesse tanto quanto Dom Rafael lhe queria. Que palavras poderei eu usar para transmitir o que Dom Rafael disse a Leocádia ao declarar-lhe seus sentimentos? Tantas foram suas razões que eu não me atrevo a repeti-las, mas, como é preciso, direi algumas delas: - Se eu não tivesse agora, ó formosa Leocádia, o atrevimento de vos revelar os segredos de minh'alma, ficaria enterrada no seio do esquecimento perpétuo a mais enamorada e honesta vontade que já nasceu ou há de nascer em um coração enamorado. Mas, para não ofender meu sincero desejo, aconteça-me o que acontecer, quero, senhora, que observeis, se o vosso agitado pensamento consentir, que Marco Antônio em nada é superior a mim, a não ser pelo fato de ser amado por vós; minha linhagem é tão nobre quanto a sua e sua fortuna não me leva muita vantagem; quanto ao físico, não convém gabarme, pois vossos olhos não me estimam; digo-vos tudo isso, minha senhora, para que aceiteis o remédio que a sorte vos oferece no auge de vossa desgraça. Já sabeis que Marco Antônio não pode ser vosso porque o céu o reservou para minha irmã, e êste mesmo céu que vos tirou Marco Antônio quer recompensar-me, pois não desejo outro bem na vida senão tornar-me vosso espôso. Notai que, se até há pouco a má sorte nos acompanhou, a fortuna bate agora às nossas portas; não penseis que vosso atrevimento ao procurar Marco Antônio seja motivo para que eu não vos estime e não vos considere, pois, quando vos receber como espôsa, hei de esquecer - e já esqueci - tudo quanto soube e vi. Sei muito bem que as fôrças que me obrigaram tão impetuosamente a adorar-vos e a entregarme a vós trouxeram-vos ao estado em que vos encontrais e, assim, não haverá necessidade de apresentar desculpas, pois não há êrro algum. Leocádia permaneceu em silêncio, ouvindo o que Dom Rafael lhe dizia; de vez em quando, dava uns profundos suspiros, saídos do imo de suas entranhas. Dom Rafael atreveu-se a pegar-lhe numa das mãos e beijá-la muitas vêzes. Leocádia não teve fôrças para impedi-lo. - Consenti, senhora de minh'alma, em ser minha espôsa - dizia êle -, consenti em presença dêste céu estrelado que nos cobre, dêste sossegado mar que nos escuta e desta areia que nos sustém; dai-me o sim que sem dúvida convém tanto à vossa honra como a minha satisfação. Torno a dizer-vos que sou um cavalheiro, como sabeis, que sou rico e que vos quero bem - e será o que mais haveis de estimar. Em vez de encontrar-vos só e vestida com roupas menos condizentes com a vossa honra, longe da casa de vossos pais e parentes, sem ninguém para vos auxiliar e sem esperança de alcançar o que procuráveis, podeis voltar à vossa pátria em vosso próprio, honrado e verdadeiro, traje, acompanhada de tão bom espôso quanto aquêle que soubestes escolher, rica, satisfeita, estimada, servida e também louvada por todos aquêles a cujos ouvidos chegar a notícia de tais fatos. E, se isto é assim, não sei o que esperais; consenti e eu vos digo outra vez - em levantar-me do chão de minha miséria ao céu de merecer-vos, que também vos encontrareis nêle e cumprireis com as normas da cortesia e educação, mostrando-vos ao mesmo tempo agradecida e sensata. - Está bem - disse Leocádia então. - Já que o céu assim o ordenou e não está em minhas mãos ou nas mãos de vivente algum opor-se ao que êle determina, faça-se o que êle quer e vós também quereis, meu senhor; mas êste mesmo céu sabei quão envergonhada estou ao ceder à vossa vontade, não porque.) não entenda o muito que lucro em obedecer-vos, mas porque; temo que, realizando vosso desejo, haveis de me ver com outros olhos, pois talvez estejais enganado até agora. Mas, seja como fôr, não poderei perder o nome de mulher legítima de Dom Rafael de Villavicencio; com êste título já viverei contente. Se meus hábitos e costumes merecerem um dia que me estimeis, agradecerei ao céu por ter concedido a mim, através de tão estranhas voltas e de tantos males, a ventura de vos pertencer. Aceito, Dom Rafael, a vossa proposta e que o céu, o mar, as areias e êste silêncio, interrompido apenas pelos meus suspiros e pelas vossas palavras, sejam, como dizeis, as testemunhas de vossas promessas. Dizendo isto, estendeu a mão a Dom Rafael e deixou-o abraçá-la; apenas lágrimas de alegria, que brotavam de seus olhos, celebraram êste nôvo esponsal. Voltaram em seguida à casa do fidalgo, que estava preocupadíssimo com sua ausência, o mesmo acontecendo com Marco Antônio e Teodósia, que já se haviam casado, pois Teodósia, receando que algum incidente pudesse tirarlhe o bem que encontrara, pediu para trazerem um padre o mais depressa possível. O fidalgo atendeu-a imediatamente, e assim, tendo tornado de volta os dois jovens e tendo Dom Rafael contado o que se passara, todos se alegraram como se êles fôssem parentes muito próximos, fato característico da nobreza catalã, que sabe ser amiga e auxiliar de todos os estrangeiros que dela precisem. O sacerdote que ali se encontrava ordenou a Leocádia para mudar de roupas; o cavalheiro dispôs-se a ajudá-la e a ajudar também Teodósia, dando-lhes ricos vestidos de sua mulher, que era uma senhora importante, pertencente à famosa e antiga família dos Granalheques. O cirurgião, preocupado com o estado do ferido, pois êle falava muito e ninguém o deixava só, ordenou que todos se mantivessem em silêncio. Deus, decidindo restituir a saúde de Marco Antônio, ordenou que a alegria e o ruído que giravam em tôrno do rapaz o reanimassem e assim, no outro dia, quando o examinaram novamente, acharam-no fora de perigo; daí a catorze dias Marco Antônio sentiu-se tão bem que, sem temor algum, pôde empreender viagem. É preciso saber que Marco Antônio, enquanto estêve no leito, fêz a promessa de ir a pé a Santiago da Galícia. Dom Rafael, Leocádia, Teodósia e até mesmo Calvete o acompanharam. Os cavalariços raramente fazem tal coisa, mas a bondade e a simplicidade de Dom Rafael obrigaram Calvete a não o deixar até que êle voltasse à sua terra; tendo o criado que viajar a pé como peregrino, enviaram suas mulas e a de Dom Rafael a Salamanca, pois não faltou quem quisesse levá-las. Chegando o dia da partida, muniram-se todos de suas esclavinas, de outras coisas necessárias e despediram-se do liberal cavalheiro que se chamava Dom Sancho de Cardona, nobre de origem, afamado por suas ações e que tanto os havia auxiliado; prometeram todos lembrar para sempre os imensos favores que dêle haviam recebido, agradecendo pelo menos a êle e a seus descendentes, já que não lhes podiam retribuir. Dom Sancho abraçou-os, dizendo que fazia de bom grado tôdas aquelas e mais outras boas ações, a todos os que eram ou pareciam ser fidalgos castelhanos. Repetiram-se os abraços e com um misto de alegria e tristeza despediram-se. Caminhando conforme o permitia a constituição delicada das duas peregrinas, chegaram daí a três dias a Montserrat; permaneceram neste lugar também por três dias, fazendo o que, como bons cristãos. e católicos, deviam fazer; retomaram depois seu caminho e chegaram a Santiago sem que nada lhes acontecesse. Cumpriram a promessa com a maior devoção possível e não quiseram tirar as roupas de peregrinos até chegarem a suas casas, onde entraram lentamente, descansados e felizes. Antes de chegar, porém, avistando de uma encosta o lugar onde Leocádia e Teodósia moravam, o qual, como já se disse, ficava apenas a 1 légua um do outro, não puderam conter as lágrimas que a alegria lhes trouxe aos olhos, principalmente aos das duas jovens, que relembraram os acontecimentos passados. De onde estavam, podia-se ver um grande vale que separava as duas cidades e nêle viram, à sombra de uma oliveira, um cavalheiro, montando um belíssimo cavalo, com uma adaga cintilante na mão esquerda e uma comprida lança na direita. Olhando mais atentamente, viram ainda por entre o olival dois outros cavaleiros também armados e tão elegantes quanto o primeiro. Viram então que êles se reuniram e, depois de terem ficado juntos por um instante, separaram-se. O último dêstes cavaleiros afastou-se com o que estava embaixo da oliveira e ambos, esporeando seus cavalos, atacaram-se mutuamente, dando mostras de ser inimigos mortais. Seus fortes e destros golpes de lança provavam que êles eram mestres em lutar. O terceiro dêles olhava-os sem sair de seu lugar. Dom Rafael, não podendo ficar observando de longe aquela renhida e singular batalha, desceu ràpidamente a encosta, sendo seguido pelos demais; em pouco tempo encontrou-se êle junto aos dois combatentes, mas os cavaleiros já se haviam ferido bastante. Um dêles, ao perder seu chapéu e seu capacete de aço, voltou-se, e Dom Rafael pôde reconhecer nêle seu pai; o outro cavaleiro era o pai de Marco Antônio, e foi imediatamente reconhecido pelo filho. Leocádia, olhando atenciosamente o cavaleiro que não entrava na luta, reconheceu que êle era seu pai; ao vê-lo, ficaram todos admirados, perplexos, mas o espanto cedeu lugar à razão e os dois rapazes, sem mais demora, puseram-se entre os que lutavam, dizendo em altas vozes: - Parai, cavalheiros, parai, pois êstes que vos rogam e suplicam são os vossos próprios filhos. Eu sou Marco Antônio, meu pai. Sou aquêle por quem, segundo penso, vossas veneráveis cãs estão sofrendo êste difícil transe; abrandai a fúria e abandonai a lança ou guardai-a para outros inimigos, pois êste que está diante de vós há de ser vosso irmão. Dom Rafael dizia mais ou menos estas mesmas palavras a seu pai; os cavalheiros, ouvindo-as, estacaram e puseram-se a olhar atentamente os que as pronunciavam. Voltando a cabeça, viram que Dom Enrique, o pai de Leocádia, se abraçava ao suposto peregrino. E que Leocádia, aproximando-se dêle e dando-se a conhecer, pediu-lhe que evitasse a luta, dizendo-lhe, em breves palavras, que Dom Rafael era seu esposo e Marco Antônio, o espôso de Teodósia. Ouvindo isto, Dom Sancho desmontou, abraçou a filha e procurou logo acalmar os dois fidalgos, embora não fosse preciso, pois êles já haviam reconhecido seus filhos, já haviam apeado e estavam a abraçá-los, chorando lágrimas nascidas do amor e da satisfação. Reuniram-se e, tornando o olhar para os filhos, não sabiam o que dizer; tocavam-lhes o corpo, para ver se eram fantasmas, pois sua imprevista chegada engendrara suspeitas, mas, certificados da verdade, voltaram às lágrimas e aos abraços. Nisto, apontou no vale grande quantidade de gente armada, a pé e a cavalo, que vinha defender o cavaleiro de sua cidade. Ao chegarem e verem todos abraçados, com os olhos cheios de lágrimas, desceram, espantaram-se e permaneceram admirados até que Dom Sancho lhes disse brevemente o que Leocádia lhe havia contado. Todos começaram a abraçar os peregrinos com tais mostras de contentamento que não podemos descrever. Dom Rafael contou novamente a todos, com a brevidade requerida pelo tempo, que estava casado com Leocádia e que sua irmã Teodósia se casara com Marco Antônio, notícias estas que causaram novas e imensas alegrias. O pessoal recém-chegado arranjou cavalos suficientes para os cinco peregrinos, que decidiram ir à cidade de Marco Antônio, pois seu pai se oferecera para celebrar ali as bodas dos dois casais. Partiram e alguns dos presentes adiantaram-se para chegar à cidade e pedir alvíssaras a seus parentes e amigos. No caminho, Dom Rafael e Marco Antônio souberam a causa da luta: o pai de Teodósia e de Leocádia, sabedores do que se passara, haviam desafiado o pai de Marco Antônio para um duelo. Vieram os dois a um só tempo, mas, não querendo ser desleais, resolveram que, como cavalheiros, haveria de lutar um de cada vez; a luta acabaria com a morte de um dêles, ou mesmo de dois, se os peregrinos não tivessem chegado. Os quatro peregrinos agradeceram a Deus pelo bom desfecho dos fatos. No dia seguinte ao de sua chegada, o pai de Marco Antônio mandou celebrar, magnífica e esplendidamente, as bodas de seu filho com Teodósia, e as de Dom Rafael com Leocádia. E êstes viveram felizes por muitos e muitos anos, em companhia de suas espôsas, deixando ilustre descendência, que até hoje existe naqueles dois lugares, os melhores de Andaluzia. Se não dizemos o nome dos lugares é por respeito às donzelas, às quais, talvez, as línguas maledicentes ou inescrupulosas haveriam de criticar a leviandade dos desejos e a mudança de roupa. Peço a esta gente para não criticar tais liberdades, até que tenha sido ferida pelas chamadas flechas de Cupido, pois, na verdade, elas são uma fôrça insuperável, se assim podemos dizer, que faz o desejo vencer a razão. Calvete, o cavalariço, ganhou a mula que Dom Rafael mandou levar a Salamanca e muitos outros presentes que os recémcasados lhe deram. Os poetas daquele tempo tiveram oportunidade de usar suas penas, exaltando a formosura e as vitórias das duas tão destemidas quão honestas donzelas, figuras principais desta aventura estranha. O Licenciado Vidriera Dois jovens estudantes, passeando pelas margens do Tormes, encontraram embaixo de uma árvore, dormindo, um rapaz de uns doze anos, vestido como lavrador; mandaram um criado despertá-lo; o rapazinho acordou e êles perguntaram-lhe de onde era e o que fazia ali, sozinho. O menino respondeulhes que já não se lembrava mais do nome de sua terra e que ia à cidade de Salamanca para ver se encontrava um amo a quem servir, mas que o deixasse, ao mesmo tempo, estudar. Os moços perguntaram-lhe se êle sabia ler; êle respondeu que sim e que sabia também escrever. - Se é assim - disse um dos rapazes -, não é por falta de memória que não sabes o nome de tua pátria. - Seja lá como fôr - respondeu êle -, ninguém saberá o nome de minha pátria, nem o nome de meus pais, até que eu possa honrá-los. - E de que maneira pensas honrá-los? - perguntou o outro jovem. - Com meus estudos, tornando-me famoso, pois ouvi dizer que dos homens se fazem os bispos. Esta resposta fêz com que os rapazes o levassem e lhe oferecessem determinadas condições, que costumam ser proporcionadas aos criados que ingressam naquela universidade. O rapaz disse chamar-se Tomás Rodaja e, por seu nome, por suas roupas, seus patrões concluíram que êle devia ser filho de algum lavrador pobre. Alguns dias depois, vestiram-no de negro e dentro de poucas semanas Tomás demonstrou possuir um talento fora do comum, servindo seus amos com tanta fidelidade, pontualidade e diligência que parecia não fazer outra coisa senão servi-los, embora não se descuidasse dos estudos; e, como a boa vontade do criado desperta a boa vontade do patrão, Tomás Rodaja deixou de ser criado para ser amigo e companheiro de seus patrões. Ao fim de oito anos, tornou-se êle tão famoso na universidade, por seu talento e por sua habilidade extraordinária, que era estimado pelas mais diferentes pessoas. Especializou-se em leis, mas o que lhe dava posição de relêvo era o estudo das humanidades; sua memória era tão brilhante que causava espanto e êle procurava cultivá-la com sua inteligência, que não era menos famosa. Quando seus amos terminaram os estudos voltaram para sua terra natal, que era uma das melhores cidades de Andaluzia. Levaram Tomás, que ficou ali com êles, mas a vontade que êle tinha de terminar os estudos e de voltar a Salamanca - que aguça o desejo de fazer retornar a ela todos os que provaram as delícias de seu modo de viver - fê-lo pedir aos amos licença para voltar. Êles, corteses e liberais, consentiram, dandolhe o suficiente para sustentar-se durante três anos. O rapaz despediu-se dêles e, em suas palavras, demonstrou-lhes tôda a gratidão; saiu de Málaga - que esta era a pátria de seus amos - e, ao passar pela costa de Zambra, caminho que leva a Antequera, encontrou um gentil-homem a cavalo, esplêndidamente vestido, acompanhado por dois criados, também a cavalo. Chegou-se a êle e soube que iria seguir o mesmo caminho; fizeram camaradagem, conversaram sôbre muitas coisas e Tomás, com poucas palavras, demonstrou seu extraordinário talento; o cavalheiro, por sua vez, demonstrou sua generosidade, pois, como êle próprio o disse, era capitão da infantaria de Sua Majestade e seu alferes encontrava-se em Salamanca, exercitando a tropa. Elogiou a vida de soldado, pintou-lhe ao vivo as belezas de Nápoles, as diversões de Palermo, a fortuna de Milão, os festins da Lombardia, as deliciosas comidas das hospedarias; pintou-lhe, doce e detalhadamente, o: “Olha o fricassé, compadre!; Passa pra cá, seu malandro!; Que venha la macatela, li polastri e li macarroni!” Elevou às alturas a vida livre do soldado e a liberdade na Itália, mas nada lhe disse sôbre o frio que as sentinelas passavam, sôbre o perigo dos assaltos, sôbre as ameaças de guerra, sôbre a fome que se sofre, sôbre a ruína das minas e outras coisas dessa espécie, que os soldados têm de aturar. Para resumir, disse-lhe tantas coisas e de tal maneira, que a sensatez do nosso Tomás Rodaja começou a fraquejar e a se interessar por aquela vida, que corteja sempre a morte. O capitão, que se chamava Dom Diego de Valdívia, muito impressionado pela aparência, talento e desembaraço de Tomás, pediu-lhe que fôsse com êle para a Itália, se é que sua curiosidade desejava conhecê-la; oferecia-lhe um lugar à sua mesa e também, se fôsse necessário, sua própria bandeira, porque o alferes estava para deixar seu pôsto. Não foi preciso muita coisa para Tomás aceitar o convite, fazendo previamente um discurso a si próprio, dizendo lá com seus botões que seria muito bom conhecer a Itália, Flandres e outras terras e países, pois as longas viagens muito ensinam aos homens; para isso, gastaria, no máximo, três ou quatro anos, que, acrescentados à sua pouca idade, não seriam assim tão longos a ponto de prejudicar-lhe os estudos. E, pensando que tudo haveria de sair conforme sua vontade, disse ao capitão que se sentia feliz por ir com êle à Itália, com a condição de não se colocar sob suas ordens, nem sob as ordens de sua bandeira, nem ser obrigado a sentar praça. O capitão disse-lhe que não era necessário alistar-se, pois receberia assim mesmo os socorros e os benefícios dispensados à companhia e que lhe daria licença tôdas as vêzes que êle a pedisse. - Aceitar isso - disse Tomás - seria ir contra minha consciência e contra a sua própria, senhor capitão; por isso, prefiro ir por minha própria conta. - Uma consciência assim tão escrupulosa - disse Dom Diego - parece mais a consciência de um religioso que a de um soldado, mas, de qualquer modo, podemos considerar-nos amigos. Chegaram em Antequera à noite e, dentro de poucos dias, andando quase sem parar, chegaram aonde se encontrava a companhia já formada e pronta para começar a viagem de volta a Cartagena, tendo ela, e mais outras quatro companhias, procurado alojamento nos lugares que lhe ficavam mais à mão. Tomás pôde observar a autoridade dos comissários, a impertinência de certos capitães, a solicitude dos oficiais encarregados de acomodar as tropas, a habilidade dos pagadores, as queixas do povo, a maneira de se trocar vale por dinheiro, a arrogância dos recrutas, as discussões dos hóspedes, a mania de se pedir coisas além do necessário e, finalmente, a necessidade quase inevitável de fazer tudo aquilo que via, mas que não aprovava. Tomás vestiu-se de meganha e deixou de usar suas roupas de estudante, para entregar-se ao “Deus dará”, como se costuma dizer. Os inúmeros livros que possuía ficaram reduzidos a umas Horas de Nossa Senhora e a um Garcilaso, sem comentários, que levava em suas algibeiras. Chegaram a Cartagena mais depressa do que queriam, porque a vida nos alojamentos é folgada, cheia de deliciosos imprevistos. Dali embarcaram para Nápoles, em quatro galeras, onde Tomás Rodaja pôde observar a vida esquisita que aquela gente leva, em suas casas flutuantes, passando a maior parte do tempo a ridicularizar os maçantes, a roubar os galeotes, a aborrecer os marinheiros, a destruir os ratos, a exaltar os ânimos. As grandes borrascas e tormentas temorizaram-no, principalmente no gôlfo do Leão, onde foram surpreendidos por duas tempestades; uma levou-os à Córsega e outra a Toulon, na França. Depois de tudo isso, tresnoitados, molhados e com olheiras, chegaram à belíssima cidade de Gênova e desembarcaram; depois de terem visitado uma igreja, o capitão e todos os seus companheiros foram para uma hospedaria, onde esqueceram tôdas as tempestades. Conheceram ali a suavidade do Trebiano, o valor do Montefrascão, a fôrça do Asperino, a generosidade dos dois vinhos gregos Cândia e Soma, a grandeza do Cinco Vinhas, a calma e a doçura do famoso Guarnacha, a aspereza do Chentola, sem saírem do sério. O hospedeiro, tendo enumerado grande quantidade de diferentes vinhos, ofereceu-se para trazer-lhes o verdadeiro Madrigal, o Coca, o Alaejos e o Imperial, que o deus da alegria prefere ao próprio Real Cidade; ofereceu-lhes o Esquivias, o Alanis, o Cazala, o Guadalcanal e o Membrilha, sem esquecer-se do Ribadávia e do Descargamaria. Em resumo, o hospedeiro esmerou-se e lhes trouxe tanto vinho que podia abrigar em suas adegas o próprio Baco. Tomás admirou-se ao ver os cabelos loiros das genovesas, a gentileza e a disposição garbosa dos homens, a admirável beleza da cidade, que parece ter suas casas engastadas nos penhascos, como se elas fôssem diamantes de ouro. No outro dia, tôdas as companhias que deviam ir a Piemonte desembarcaram; Tomás, entretanto, não quis fazer esta viagem e sim ir por terra a Roma e Nápoles, ficando de passar por Veneza, ir de Loreto a Milão e a Piemonte, onde encontrar-se-ia com Dom Diego de Valdívia, caso êle não recebesse ordens de ir a Flandres, o que era bem provável. Tomás despediu-se do capitão dali a dois dias e em cinco chegou a Florença, tendo passado antes por Lucca„, cidade pequena, mas bem bonita, e onde, mais do que em qualquer outra parte da Itália, os espanhóis são bem recebidos. Gostou imensamente de Florença, do lugar onde foi construída, de sua limpeza, de seus suntuosos edifícios, de seu rio agradável e de suas ruas calmas. Permaneceu ali quatro dias e depois partiu para Roma, a rainha das cidades e senhora do mundo.' Visitou seus templos, adorou suas relíquias, admirou sua grandeza e, assim como se conhecem o poder e a ferocidade do leão pelas suas unhas, êle também conheceu a grandeza e o poder de Roma pelos restos de mármore, pelas estátuas, ou inteiras ou mutiladas, pelos arcos quebrados e pelas termas destruídas, pelos seus magníficos pórticos e grandes anfiteatros, pelo famoso rio santo, que sempre enche de águas as suas margens, abençoando-as com as infinitas relíquias de mártires, que ali tiveram sua sepultura, por suas pontes, que parecem olharemse mútuamente, e por suas estradas, que, só pelo nome, se impõem a tôdas as outras cidades do mundo: a Via Ápia, a Flamínia, a Júlia e outras semelhantes. Admirava-se também com a própria divisão de seus montes: o Célio, o Ouirinal, o Vaticano e os outros quatro cujos nomes expressam a grandeza e a majestade de Roma. Observou também a importância do Colégio dos Cardeais, a majestade do sumo pontífice, a afluência e variedade de pessoas de tôdas as nações. Observou e anotou as coisas minuciosamente. Depois de percorrer a estação das sete igrejas, depois de ter-se confessado e beijado os pés de Sua Santidade, o papa, cheio de agnus dei e de planos, decidiu ir a Nápoles por mar, porque era época de se fazerem mudanças, tempo desfavorável, portanto, para todos aquêles que querem entrar ou sair de Roma por terra. A admiração que sentira ao ver Roma tornou-se ainda maior quando viu Nápoles, que lhe pareceu, como acontece a todos os que a vêem, a melhor cidade da Europa e também de todo o mundo. Dali foi para a Sicília, Palermo e Messina; de Palermo, admirou a posição geográfica e a beleza; de Messina, o pôrto; de tôda a ilha, a abundância que lhe vale, merecidamente, o nome de “celeiro da Itália”. Em seguida voltou a Nápoles e a Roma; dali foi a Nossa Senhora de Loreto, em cujo templo não viu nem muros nem paredes, porque estavam todos cobertos por muletas, cadeias, grilhões, algemas, cabeleiras, bustos de cêra, pinturas e painéis, que demonstravam as inúmeras graças recebidas das mãos de Deus, por intermédio de sua Santa Mãe, pois aquela imagem sagrada quis engrandecer, com uma série de milagres, a devoção que lhe dedicam aquêles que, com tais dosséis, adornam as paredes de sua casa. Viu a casa e o aposento onde se passou o mais importante acontecimento do mundo, que, entretanto, nem mesmo os céus, nem os anjos, nem todos os habitantes das moradas eternas conseguiram entender. Dali foi a Ancona, onde embarcou para Veneza, cidade que não teria rival se Colombo não tivesse nascido e também graças ao auxílio do céu e ao grande Fernão Cortês, que conquistou a grande Cidade do México, para que a bela Veneza encontrasse quem pudesse competir com ela. Estas duas famosas cidades têm suas ruas feitas de água; a da Europa é a admiração do Mundo Antigo; e a da América, a maravilha do Nôvo Mundo. Sua riqueza pareceu-lhe infinita; seu govêrno, previdente; sua localização, inexpugnável; sua fartura, admirável; seus contornos, alegres; considerou-a, tôda ela, enfim, digna da fama que tem em tôda a face da terra, fama que se deve sobretudo ao seu famoso arsenal, onde se fabricam galeras e outras inumeráveis embarcações. As diversões e os passatempos que nosso curioso encontrou em Veneza quase o fizeram esquecer seus objetivos. Mas, depois de estar ali um mês, passando por Ferrara, Parma e Placência, voltou a Milão, oficina de Vulcano, pouco apreciada pelo reino da França, cidade, enfim, que desperta inúmeros comentários, magnífica por sua grandeza, pela grandeza de seu templo e pela extraordinária fartura de tôdas as coisas necessárias à vida humana. Dali foi para Aste, onde chegou a tempo de alcançar o tércio (tércio: Antigo corpo de tropas espanholas dos séculos XVI e XVII.) que no dia seguinte partia para Flandres. Seu amigo, o capitão, recebeu-o muito bem e, em sua companhia, passou por Flandres, dirigindo-se depois a Antuérpia, cidade que nada ficava a dever às outras cidades que vira na Itália. Visitou Gante, Bruxelas e observou que todo o país se preparava para tomar armas e realizar operações militares no verão seguinte. Tendo realizado seu desejo, Tomás decidiu voltar à Espanha, mais precisamente para Salamanca, a fim de terminar seus estudos; seu amigo sentiu imensamente que êle se fôsse e pediu-lhe para mandar notícias de sua saída, de sua chegada e de tudo o que lhe acontecesse. O rapaz prometeu satisfazer-lhe a vontade ' e, passando pela França, voltou à Espanha, sem conseguir ver Paris, pois ela estava em pé de guerra. Finalmente, chegou a Salamanca, onde foi bem recebido pelos amigos; com o auxílio dêles, continuou os estudos, até graduar-se em leis. Por êsse tempo, chegou àquela cidade uma senhora imponente e intrigante. Todos os pássaros do lugar foram logo atraídos pelo seu canto, caíram todos em sua armadilha e não havia vademecum que não a visitasse. Disseram êles a Tomás que aquela dama dizia ter estado na Itália e em Flandres; êle, para ver se a conhecia, foi visitá-la e ela apaixonou-se por êle; Tomás, entretanto, não se deixou prender; somente à fôrça e levado por outros é que entrava em casa dela. Por fim, ela revelou-lhe seus sentimentos e ofereceu-lhe todos os seus bens; êle, porém, preocupava-se mais com os livros que com qualquer outra coisa e de maneira alguma correspondeu aos sentimentos daquela senhora, que, vendo-se desprezada e sabendo que, por meios comuns, não poderia conquistar a rocha que era Tomás, decidiu procurar outros meios, em sua maneira de ver, mais eficazes, para fazê-lo ficar sob suas ordens. Aconselhada por uma jovem moura, deu a Tomás, em um marmelo Toledano, uma droga, acreditando que assim pudesse obrigá-lo a amá-la, como se no mundo houvesse ervas, encantos ou palavras suficientes que nos pudessem tirar o livre arbítrio; por isso as criaturas que fazem essa espécie de bebidas ou comidas chamam-se venéficas, pois nada mais fazem que dar veneno a quem bebe os seus filtros, como já o demonstrou uma série de experiências em diversas ocasiões. Tomás comeu o marmelo e logo depois começou a bater as mãos e os pés, como se estivesse com epilepsia, ficando inconsciente durante muitas horas; quando voltou a si, falou, com a língua enrolada, que se encontrava naquele estado porque comera um marmelo que o envenenara e denunciou quem o havia dado. O caso foi levado à Justiça, que se pôs a procurar a malfeitora, mas ela, vendo o mau sucesso de seu plano, já se havia pôsto a salvo e nunca mais apareceu. Tomás ficou na cama seis meses e emagreceu de tal forma que ficou só pele e osso, como se costuma dizer; além disso, mostrava estar com o juízo perturbado e, embora lhe tivessem dado todos os remédios possíveis, curaramlhe apenas a enfermidade do corpo; a do entendimento não; ficou louco e da mais estranha loucura que já se viu. O infeliz imaginou-se todo feito de vidro e, por isso, quando alguém chegava perto dêle, gritava, pedindo, suplicando que não se aproximassem dêle senão se quebraria, pois não era como todos os outros homens, e sim inteirinho de vidro, da cabeça aos pés. Para tirar-lhe êsse pensamento esquisito, muitas pessoas, sem atender ao que êle dizia, abraçavam-no, dizendo para observar como êle não se quebrava. O que conseguiam com isto, entretanto, era fazer com que o pobre rapaz se deitasse no chão, gritanto terrivelmente e desmaiando logo em seguida; e só voltava a si depois de quatro horas; quando o fazia era para renovar os rogos, os pedidos para não se aproximarem dêle. Dizia para lhe falarem a distância, para lhe perguntarem o que quisessem que êle a tudo responderia e mais sàbiamente, pois era um homem de vidro e não de carne, porque o vidro, matéria fina e delicada, deixava que o espírito trabalhasse com maior prontidão e eficácia que a do corpo comum, pesado e prêso à terra. Houve quem quisesse ver se era verdade o que êle dizia e perguntaramlhe muitas coisas difíceis, às quais êle respondeu sábiamente e com grande agudeza de espírito, fato que causou espanto aos letrados da universidade e aos professôres de medicina e filosofia, pois estavam diante de um indivíduo que, portador de uma loucura tão fora do comum, era dotado de grandes conhecimentos e respondia tôdas as perguntas com propriedade e perspicácia. Tomás pediu para lhe arranjarem uma capa que lhe cobrisse o corpo frágil, a fim de não se quebrar por ter de vestir uma roupa mais apertada; deram-lhe uma veste marrom, uma capa bem larga, que êle pôs com cuidado e prendeu com uma corda de algodão. Não quis calçar os sapatos de maneira alguma e ordenou que lhe dessem de comer sem chegar perto dêle; para resolver esta situação, puseram na ponta de uma vara uma bandeja, na qual colocaram um pouco de fruta, de acôrdo com a estação. Não comia carne nem peixe, bebia só na fonte ou no rio e fazia-o com as mãos; quando andava, ia pelo meio da rua olhando os telhados, receoso de que lhe caísse alguma coisa em cima e o quebrasse; no verão, dormia no campo, ao ar livre; no inverno, metia-se em uma hospedaria qualquer, enterrava-se no palheiro até a garganta, dizendo que aquela era a melhor e mais segura cama para um homem de vidro. Quando trovejava, êle tremia como se estivesse com febre, ia para o campo e só voltava para o povoado quando a tempestade tivesse passado. Seus amigos o prenderam por muito tempo, mas, vendo que seu sofrimento diminuía quando êle estava livre, deixaram-no e êle saiu pela cidade, causando admiração e pena a todos os que o conheciam. Os rapazes cercavam-no logo, porém êle detinha-os com a vara, pedindolhes que falassem de longe para não parti-lo, pois era um homem de vidro, delicado e quebradiço. Os rapazes, que são a raça mais travêssa do mundo, apesar de seus rogos, começaram a dirigir-lhe ofensas e até mesmo a lançar-lhe pedras, para ver se era de vidro, como dizia; Tomás porém, gritava e exaltavase tanto que fazia os outros repreenderem e castigarem os rapazes a fim de não lhe atirarem mais nada. Um dia aborreceram-no tanto que êle se voltou e lhes disse: - O que quereis de mim, criaturas teimosas como môscas, sujas como percevejos, atrevidas como pulgas? Serei, por acaso, o monte Testacho de Roma para me atirardes tantas pedras e telhas? Muitos rapazes o seguiam para ouvi-lo esbravejar, defenderse e responder a todos, chegando depois a preferirem apenas ouvi-lo falar. Certa vez, passando pela alfaiataria de Salamanca, uma costureira perguntou-lhe: - Sua desgraça, senhor licenciado, entristece-me bastante, mas que hei de fazer se não posso chorar? Êle voltou-se e respondeu-lhe calmamente: - Filiae Hierusalem plorate super vos et super filios vestros. (Filhas de Jerusalém, chorai sôbre vós e sôbre vossos filhos.) O marido da costureira percebeu a malícia da resposta e disse-lhe: - Meu caro Licenciado Vidriera - que assim dizia chamar-se -, és mais velhaco do que louco. - Posso jurar - respondeu êle - que de estúpido nada tenho. Passando um dia pelo prostíbulo e vendo à sua porta muitas de suas moradoras, disse que elas eram componentes do exército de Satanás, alojadas na casa do inferno. Certa vez alguém lhe perguntou que conselho daria êle a um amigo que estava muito triste porque sua mulher havia fugido com outro. - Diga-lhe que dê graças a Deus por ter permitido que levassem para longe dêle um grande inimigo. - Não deve, então, ir buscá-la? - Nem por brincadeira - respondeu êle. - Seria o mesmo que procurar um verdadeiro perpétuo castigo para sua desonra. - Já que é assim, que farei eu para viver em paz com minha mulher? - Dá-lhe o que ela precisar, deixa que ela mande em todos os de sua casa, mas não consintas que mande em ti. Um rapaz lhe disse: - Senhor Vidriera, não quero morar mais com meu pai, porque êle me bate muito. - Cuidado, filho, os açoites dos pais honram os filhos, os do verdugo ultrajam. Estando à porta de uma igreja viu entrar nela um lavrador, daqueles que sempre se gabam de ser cristãos verdadeiros; atrás dêle vinha outro lavrador que tinha a mesma opinião; o licenciado dirigiu-se a êle, falando bem alto: - Vamos, Domingo, espere que o Sábado passe. Dizia que os professôres eram felizes porque lidavam sempre com os anjos; mas que seriam felicíssimos se os anjinhos não fôssem sujos. Alguém lhe perguntou o que êle pensava das alcoviteiras e êle respondeu que só havia alcoviteiras quando duas mulheres eram vizinhas. As notícias de sua loucura, de suas respostas e chistes estenderam-se por tôda a Castilha, chegando até mesmo aos ouvidos do príncipe da côrte, que pediu a um amigo de Salamanca para enviá-lo à sua presença. Êste cavalheiro, encontrando-se com êle, disse-lhe: - Saiba o senhor licenciado que uma grande figura da côrte deseja conhecê-lo e me envia para falar-lhe. - Vossa Mercê desculpe-me com êste senhor, pois eu não sou de ficar em palácios, porque tenho vergonha e não sei bajular ninguém. Apesar disso, o cavalheiro levou-o à côrte, mas para conseguir que êle fôsse usaram de um artifício: puseram-no em um cêsto de vime, igual àqueles cêstos onde se colocam vidros, calçaram os espaços com pedras e vidros envoltos em palha para fazê-lo pensar que o levavam como se fôsse um objeto de vidro. Chegou a Valladolid de noite e foi levado à casa do fidalgo que o mandara buscar, sendo aí muito bem recebido. - Seja bem-vindo, Senhor Vidriera. Como foi de viagem? Como vai a saúde? - Dos caminhos, o único ruim, quando se acaba, é aquêle que leva à fôrca. Quanto à saúde, nada há de nôvo; meu pulso e meu cérebro batem no mesmo ritmo. Certo dia, tendo visto em várias gaiolas muitos nebris (Nebri: Espécie de falcão, adestrado para a caça.), açôres (Açor: Ave de rapina de asas e bico prêtos, cauda cinzenta manchada de branco e penas amarelas.) e outros pássaros de altanaria (Altanaria: Arte de caçar com aves amestradas.), disse que esta espécie de caça era digna de príncipes e de grandes senhores, mas para tomarem cuidado com ela, pois na maioria das vêzes cobrava pesado tributo. Disse que a caçada de lebres é muito boa, ainda mais quando se caça com galgos amestrados. O fidalgo gostou de sua loucura e deixou-o sair pela cidade sob os cuidados de um homem que não deixasse os garotos lhe fazerem mal. Em seis dias Tomás tornou-se conhecido de tôda a côrte e de todos os rapazes; na rua, ou em qualquer esquina, respondia a tôdas as perguntas que lhe faziam; um estudante perguntou-lhe se êle era poeta, pois parecia ter talento para tudo. - Até agora não tive oportunidade de ser assim tão néscio nem tão venturoso - respondeu êle. - Não entendo essa história de néscio e de venturoso - disse o estudante. - Não fui néscio porque não quis ser um mau poeta, nem fui tão venturoso que tenha merecido ser um bom poeta. Outro estudante perguntou-lhe o que pensava dos poetas. Êle respondeu que admirava muito a ciência, mas os poetas não. Perguntaram-lhe por que dizia aquilo e êle respondeu que da grande quantidade de poetas raríssimos eram os bons e, portanto, não havendo quase poetas, não poderia estimá-los; admirava, entretanto, a ciência da poesia, pois ela encerra em si tôdas as outras ciências; serve-se de tôdas as outras, enfeita-se com tôdas elas e dá à luz suas maravilhosas obras, oferecendo ao mundo grandes lições, prazer e encantamento. E acrescentou: - Bem sei o quanto se deve estimar um bom poeta e lembro-me daqueles versos de Ovídio que dizem: “Cura ducum fuerunt olim regumque poetae, Praemiaque antiqui magna tulere chori. Sanctaque magistras et erat venerabile nomen Vatibus et larguae saepe dabantur opes.” (Os poetas foram outrora a preocupação dos generais e dos reis, os coros da antiguidade ofereceram-lhes grandes honrarias. Os poetas tinham, então, uma soberania sagrada, um nome venerado e inúmeras recompensas foram-lhes muitas vêzes oferecidas.) Não posso também esquecer-me dos poetas de alta categoria, aquêles que Platão chama de intérpretes dos deuses e dos quais diz Ovídio: “Est Deus in nobis, agitante calescimus illo (Há um deus em nós, e nós nos inspiramos nêle quando êle se inflama.). “E ainda: “At sacri vates, et Divum cura vocamur (Mas nós, os poetas, somos chamados sagrados e somos a preocupação dos deuses.). “Isto diz êle dos bons poetas, pois dos maus, dos charlatães, o que se pode dizer senão que são êles a idiotice e a arrogância do mundo? Como é aborrecido ver-se quando um dêstes poetas pede licença aos que o rodeiam para dizer um sonêto: Escutem os senhores um sonetinho que fiz uma noite dessas, pois, embora me pareça não valer nada, tem um não-sei-quê de bonito. E, assim dizendo, torce a bôca, levanta as sobrancelhas, remexe o bôlso e tira, do meio de mil papéis ensebados e rasgados que contêm uns mil sonetos, o sonêto que quer recitar, e o recita de fato, com voz melíflua e afetada. E se por acaso os que o escutam não o elogiam, ou porque sejam astutos, ou porque sejam ignorantes, diz: Ou os senhores não entenderam o sonêto ou eu não soube recitá-lo; é bom que eu o recite novamente e que os senhores prestem mais atenção, porque na verdade o sonêto merece. E torna a recitar, com novos trejeitos e novas pausas. Como é aborrecido ver êstes poetas censurarem-se mutuamente! Que posso eu dizer de cachorros e de alguns indivíduos chamados modernos que latem para os grandes mastins, antigos e graves? Que direi eu dos que criticam alguns ilustres e excelentes indivíduos, onde resplandece a verdadeira luz da poesia, que, considerando com alívio o entretenimento para suas inúmeras e graves preocupações, mostram a divindade de seus talentos, a excelência de seus conceitos, pouco se importando com o ignorante que emite juízos a respeito do que não conhece, que menospreza o que não entende? Que direi eu daquele que se deseja ver estimado, apreciado em sua estupidez, venerado, enquanto a ignorância se aproxima dêle cada vez mais?” De outra feita perguntaram-lhe por que a maior parte dos poetas era pobre. Respondeu êle que os poetas eram pobres porque queriam, pois estava em suas mãos serem ricos; era só saberem aproveitar a ocasião, uma vez que a fortuna se encontrava nas mãos de suas namoradas, pois eram tôdas riquíssimas: possuíam cabelos de ouro, rosto de prata polida, olhos de verdeesmeralda, dentes de marfim, lábios de coral, colo de cristal transparente e suas lágrimas, pérolas líquidas; seus pés, ao pisarem a terra mais dura e estéril do mundo, faziam-na produzir jasmins e rosas; que seu hálito era de puro âmbar, almíscar e algália; e que tudo isto eram pequenas mostras de sua imensa riqueza. Esta era sua opinião sôbre os maus e bons poetas; dos bons sempre falou bem, pondo-os nas alturas. Certo dia viu na Rua de São Francisco umas figuras muito mal pintadas e disse que os bons pintores imitavam a natureza, mas que os maus a vomitavam. Aproximou-se uma vez, com muito cuidado, a fim de não se quebrar, da oficina de um livreiro e disse-lhe: - Gostaria muito dêste ofício se não tivesse um grande defeito. - Que defeito? - perguntou-lhe o livreiro. - O de causar melindres quando compram os direitos autorais de um livro e a trapaça que fazem com o autor quando o livro é impresso às suas custas, pois, em lugar de imprimirem 1500 livros, imprimem 3.000 e, quando o autor pensa que seus livros estão sendo vendidos, os livros de outros é que estão sendo despachados. Aconteceu que, neste mesmo dia, passaram pela praça seis homens açoitados, e, tendo o pregoeiro dito que ao primeiro se açoitava por ser ladrão, Vidriera, em altas vozes, disse aos que lhe estavam à frente: - Afastai-vos, irmãos, que nenhum de vós seja o primeiro a querer uma justificação. E, quando o pregoeiro chegou a dizer: “O último.. “, êle falou: - Aquêle deve ser o fiador dos rapazes. Um jovem disse-lhe: Vidriera, amanhã vão açoitar uma alcoviteira. - Se dissesses que iam açoitar um alcoviteiro eu diria que iam açoitar um porco. Encontrava-se presente nesta ocasião um dêsses indivíduos que carregam liteiras, e que lhe falou: - E de nós, licenciado, nada tens a dizer? - Não - respondeu êle -, a não ser que cada um de vós sabe mais pecados que um confessor, mas com a diferença de que o confessor sabe mantê-los em segrêdo, e vós sabeis divulgálos pelas tabernas. Um rapaz de cavalariça, que tôda espécie de gente sempre o escutava, perguntou-lhe: - De nós, Senhor Redoma, pouco ou nada há que dizer, porque somos gente de bem e úteis à república. - A honra do amo revela a do criado; segundo isto, olha a quem serves e verás quão honrado és; todos vós sois os piores canalhas que existem na face da terra. Certa vez, quando eu não era de vidro, fui obrigado a montar uma mula de aluguel tão ruim que pude contar nela 101 defeitos, todos importantes e inimigos da espécie humana. Todos os moços de cavalariça têm um pouco de rufião, um pouco de ladrão e um não-sei-quê de bôbo; se seus amos - assim chamam êles aos indivíduos que levam em suas mulas - são uns bôcas-moles, ganham dêles mais do que perderam em todos os outros anos; se são estrangeiros, tratam de roubá-los; se estudantes, de maldizê-los; se religiosos, de renegá-los; se são soldados, temem-nos. Êles, os marinheiros, os carreiros, os arrieiros, têm um modo de viver diferente dos outros e todo seu: o carroceiro passa a maior parte de sua vida entre a vara e um pedaço que vai pouco além do jugo das mulas à bôca do carro; passa a metade do tempo a cantar, a outra metade a blasfemar e a dizer: “Afasta!”, e, se por acaso tem de tirar uma roda do carro de algum atoleiro, vale-se mais das pragas que da fôrça de três mulas. Os marinheiros são gente selvagem, anti-social e só sabem a linguagem usada nos navios; são diligentes na bonança, na borrasca são preguiçosos; na tormenta são muitos os que mandam, os que obedecem, poucos; seu deus é o dinheiro e a comida; seu passatempo é ver os passageiros enjoarem. Os arrieiros são gente que nasceu para se casar com a albarda (Albarda: Espécie de sela grosseira que serve para bêstas de carga.); são tão delicados e pressurosos que para não perderem uma viagem são capazes de perder a alma; sua única música é a do marteiro (Marteira: Refere-se aqui a uma peça de ferro de pequenas dimensões, que se enche de pólvora para dar tiros, imitando as salvas de artilharia.); seu aperitivo, a fome; suas matinas consistem em dar comida ao gado; sua única devoção é não ter devoção alguma. Na ocasião em que assim falava, encontrava-se à porta de uma farmácia; dirigindo-se a seu dono, falou-lhe: - O senhor teria uma ótima profissão se não fôsse tão inimigo de suas próprias candeias. - Como posso ser inimigo de minhas candeias? - perguntou o boticário. - Digo isto - respondeu Vidriera - porque, faltando-lhe qualquer azeite, o senhor pega o azeite da candeia que lhe está mais à mão e sua profissão é capaz de tirar o crédito ao mais competente médico do mundo. Perguntaram-lhe por que êle disse haver certos boticários que substituíam os remédios receitados pelos médicos por outros que julgavam produzir o mesmo efeito, só para não dizer que, em sua botica, não havia tal produto; por isso o remédio mal ministrado agia em sentido contrário ao que deveria, se fôsse bem ministrado. Alguém lhe perguntou, então, o que pensava dos remédios e êle respondeu: - Honora medicum propter necessitatem, etenim creavit eum Altissimus. A Deo enfim est omnis medela, et a rege accipiet donationem. Disciplina medici exaltabit caput illius, et in conspectu magnatum collaudabitur. Altissimus de terra creavit medicinam et vir prudens non abhorrebit illam (Honra o médico porque precisas dêle, pois o Altíssimo o criou. Todo remédio provém de Deus e do rei receberá êle a recompensa. A ciência do médico exaltará e êle será louvado diante dos poderosos. O Altíssimo criou a medicina da terra e o homem prudente não se oporá a ela.). É isto o que diz o Eclesiástico da medicina dos bons médicos; dos maus poderíamos dizer tudo isto ao contrário, pois não há gente mais perniciosa para a população. O juiz pode abrandar ou adiar o cumprimento da justiça; o advogado pode defender por interêsse próprio uma demanda injusta; o mercador pode acabar com nossos bens; tôdas as pessoas com as quais tratamos podem, enfim, causar-nos algum mal, porém ninguém pode tirar-nos a vida sem ficar subordinado ao temor do castigo; só os médicos podem matar-nos e nos matam sem temor e a sangue frio, desembainhando uma única espada: a receita; e ninguém pode descobrir seu crime porque as provas vão para debaixo da terra. Lembro-me de que, quando eu era de carne e não de vidro como sou agora, um dêsses médicos de segunda classe mandou um enfêrmo procurar outro médico e dali a quatro dias resolveu passar pela botica que aviava as receitas do tal médico, perguntar ao boticário como ia o enfêrmo, que êle não quisera tratar, e saber se o outro médico havia receitado algum purgante. O boticário respondeu-lhe que havia mesmo uma receita de purgante, que o doente deveria tomar no dia seguinte; o médico pediu-lhe que a mostrasse e, vendo que no fim dela estava escrito: Sumal diluculo (Tome-o pela manhã.), disse: “Aprovo tudo neste purgante, menos êsse tal de dilúculo, porque é excessivamente úmido”. Por estas e por outras coisas que dizia a respeito de tôdas as profissões, havia muita gente que andava atrás dêle, sem fazer-lhe mal, porém sem deixálo sossegado, e êle não poderia defender-se dos rapazes se seu guarda-costas não cuidasse dêle. Alguém lhe perguntou o que deveria fazer para não ter inveja de ninguém. - Dorme, pois durante todo o tempo em que estiveres dormindo serás igual àquele que invejas. Outro lhe perguntou o que deveria fazer para conseguir um cargo que desejava há dois anos. - Parte a cavalo e, sem perder de vista a pessoa que está encarregada de realizá-la, acompanha-a até sair da cidade, que só assim sairás com ela. Certa vez passou, casualmente, por onde êle estava um juiz que devia resolver uma questão, acompanhado de um grande número de pessoas e dois aguazis; quis saber quem era tôda aquela gente e, quando soube, disse: - Aposto que aquêle juiz leva víboras em seu seio, pistolas na cinta e raios nas mãos para destruir tudo o que puder. Lembro-me de ter tido um amigo que em uma destas comissões proferiu uma sentença que ia muito além da culpa dos acusados. Perguntei-lhe por que havia êle pronunciado aquela sentença tão cruel e feito tão grande injustiça. Respondeu-me que pensava concordar com a apelação que seria feita, podendo assim mostrar aos componentes do Conselho sua misericórdia, atenuando e pondo aquela rigorosa sentença em seu devido lugar. Respondi-lhe eu que teria sido muito mais fácil dar a sentença de modo a evitar todo aquêle trabalho, podendo também fazer com que todos o considerassem um juiz honesto e honrado. No meio das inúmeras pessoas que sempre o ouviam, estava um seu conhecido vestido como advogado, a quem uma pessoa da roda chamou de “senhor doutor”, mas Vidriera, sabendo que o indivíduo ao qual chamaram de doutor não tinha sequer o título de bacharel, disse-lhe: - Cuidado, amigo, que os frades libertadores de escravos não vejam vosso título, pois, do contrário, haviam de levar-vos pensando que fôsseis um vagabundo. - Tratemo-nos bem, Senhor Vidriera, pois já sabeis que sou homem de sólida cultura. - Já sei que sois um Tântalo da cultura, porque vos preocupais tanto com a altura dela que não podeis alcançá-la em profundidade. Estando, certa vez, próximo à barraca de um alfaiate e vendo que êle estava com os braços cruzados, disse-lhe: - Sem dúvida, mestre, estais a caminho da salvação. - Como o sabeis? - Como o sei? Sei porque, já que nada tendes a fazer, não tereis também ocasião para mentir. E acrescentou: - Infeliz do alfaiate que não mente e que cose para as festas; o interessante é que, entre tôdas as pessoas desta profissão, encontra-se apenas um que faça roupas sem defeitos; os outros todos não sabem costurar. Quanto aos sapateiros, dizia que - na opinião dêles, sapateiros - jamais um calçado era malfeito, pois se as pessoas reclamam que o sapato é estreito e apertado êles dizem que é assim mesmo, que os elegantes costumam calçar um sapato justo, que usando o tal sapato por duas horas êle fica mais largo do que uma alpargata e, se alguém reclama que o sapato é largo, êles dizem que é bom mesmo ser largo para não provocar a gôta. Um rapaz esperto que ocupava um cargo de escrevente da província crivava-o de perguntas e trazia-lhe as novidades, pois êle tecia comentário sôbre tudo e respondia a tôdas as perguntas. Certa vez disse-lhe êste rapaz: - Vidriera, esta noite morreu no cárcere um prêso que estava condenado à fôrca. - Fêz êle muito bem em apressar sua morte, assim o verdugo não se sentará sôbre êle. Na Rua de São Francisco, por onde êle passeava certa vez, havia um carro de genoveses; um dêles chamou-o e disse-lhe: - O Senhor Vidriera bem que podia vir até aqui e contar-nos uma história. - Não, porque não quero que a repitais em Gênova. Encontrando uma vez uma mulher, dona de uma loja, que acompanhava uma filha muito feia, mas tôda cheia de enfeites, de jóias, de pérolas, disse-lhe: - Fizeste muito bem em enfeitá-la para que ela possa passear. Dizia que os pasteleiros, há muitos anos, jogavam dobladilla (Dobladilla: jôgo de cartas que consiste em ir dobrando a parada cada vez que se ganha.) porque, sem mais nem menos, passaram a cobrar 4 pelo pastel de 2, 8 pelo de 4 e meio real pelo pastel de 8 e ninguém os multava. Falava muito mal dos saltimbancos, dizendo que essa gente é vadia e desrespeita as coisas divinas, porque, mostrando em seus retábulos imagens divinas, transformam a devoção em motivo de chacota e que acontecia, muitas vêzes, de êles colocarem dentro de um saco tôdas ou a maior parte das figuras do Velho e do Nôvo Testamento e sentarem-se em cima dêle para comer ou para beber nos bares e nas tabernas; dizia, enfim, admirar-se de que ninguém os fizesse silenciar ou os desterrasse do reino. Passando, certa vez, por um comediante vestido como um príncipe, disse: - Lembro-me de ter visto êste homem em um teatro com o rosto enfarinhado, com uma samarra vestida ao contrário e, apesar disso, fora do palco, parece um fidalgo. - É possível que o seja - disse alguém -, porque há muitos comediantes que são de origem nobre e fidalga. - Talvez seja verdade - replicou Vidriera -, mas a comédia não precisa de pessoas de origem nobre, precisa é de galãs, de gente elegante e que saiba falar bem. Os comediantes ganham o pão com o suor de seu rosto, com o trabalho árduo, recitando, de cor, feito ciganos, indo de um lugar a outro, de pousada a pousada, desdobrando-se para contentar os outros, porque seu único bem consiste na alegria de outrem. Não enganam a ninguém, pois tiram sua mercadoria em praça pública, à vista de todos. O trabalho dos empresários das comédias é incrível e seu cuidado, extremo, e precisam, pois, ganhar bastante para que no fim do ano não se vejam tão endividados que sejam obrigados a litigar com credores; todos êles são necessários a todos nós, como o são as florestas, as alamêdas, os parques, como o são, enfim, tôdas as coisas que honestamente nos divertem. Um amigo meu - dizia êle - achava que quem trabalhava para uma comediante trabalhava para muitas damas a um só tempo; para uma rainha, para uma ninfa, para uma deusa, para uma criada, para uma pastôra, acontecendo muitas vêzes servir também a um pajem, a um lacaio, pois uma comediante costuma representar tôdas estas e muitas outras figuras. Alguém lhe perguntou quem foi o homem mais feliz do mundo e êle respondeu que foi Nemo, porque Nemo novit palrem; Nemo sine crimine vivit; Nemo sua sorte contentus; Nemo ascendit in caelum (Ninguém, porque Ninguém conhece o pai; Ninguém vive sem êrro; Ninguém está contente com sua sorte; Ninguém sobe ao céu.). Dos esgrimistas disse uma vez serem êles mestres em uma ciência ou arte que ignoravam quando precisavam dela, e que eram um tanto presunçosos, pois queriam reduzir a demonstrações matemáticas, infalíveis, os movimentos e pensamentos coléricos de seus adversários. Tinha verdadeira ojeriza pelos indivíduos que tingiam a barba. Certa ocasião, dois homens, um dêles português, de barba muito pintada, discutiam em sua presença. Em dado momento disse o português ao espanhol: - Pela barba que tenho no rosto. Vidriera não o deixou terminar: - Olhe aqui, homem, não diga pela barba que tenho no rosto e sim pela barba que tinjo. Havia outro que tinha a barba manchada de várias côres por causa da tinta ruim que usara; Vidriera não deixou passar: disse que a barba dêle parecia um depósito de lixo. A outro, cuja barba crescera e que, por descuido, não a tinha pintado, deixando-a metade branca, metade escura, disse Vidriera para não discutir nem brigar com ninguém, pois poderiam dizer-lhe que êle era tão falso quanto a própria barba. Uma vez contou êle que uma jovem discreta e ajuizada, para satisfazer a vontade dos pais, concordou em casar-se com um velho de barba e cabelos brancos, mas o velho, na véspera do casamento, não foi procurar o rio Jordão, como dizem as velhas, mas sim, uma tintura, com a qual pintou a barba; assim, da noite para o dia, a barba, de branca como a neve, tornou-se negra como o breu. Chegou a hora do casamento e a môça, vendo o que o velho fizera, disse aos pais para lhe darem o espôso prometido, pois que não queria saber de outro. Disseram-lhe que era aquêle mesmo o espôso que lhe haviam apresentado. Ela tornou a dizer que não era aquêle e trouxe várias testemunhas para afirmarem com ela que o homem prometido por seus pais era um senhor respeitável, de barba e cabelos brancos. A môça manteve-se firme em sua opinião; o velho envergonhou-se e desfez-se o casamento. A mesma ojeriza que tinha pelas pessoas que pintavam o cabelo, tinha também pelas aias; admirava-se com sua permafoy, com os babados complicados de sua touca, com sua afetada delicadeza, com seus escrúpulos e com sua mesquinhez fora do comum; aborreciam-lhe as fraquezas de seu estômago, seus desmaios, seu modo de falar mais complicado que suas toucas e, finalmente, sua inutilidade e suas atitudes desprezíveis. Alguém lhe disse: - O que acontece, senhor licenciado? Eu vos tenho ouvido falar mal de muitas profissões, mas nunca falastes dos escrivães, e há muito o que falar dêles. - Embora eu seja de vidro, não sou assim tão fraco que me deixe levar pela conversa dos outros. Parece-me que a gramática dos murmuradores e o Ia, Ia, Ia dos que cantam são os escrivães, pois, assim como não se podem estudar outras ciências sem passar pela porta da gramática e assim como o músico primeiro murmura para depois cantar, também os difamadores começam a mostrar a maldade de suas línguas falando mal dos escrivães, dos aguazis e de outros membros da Justiça, quando, sem os escrivães, a verdade andaria escondida, desprezada, maltratada pelos cantos do mundo; diz o Eclesiástico: n manum Dei potestas hominis est, et super fatiem scribae imponet honorem (O poder do homem está nas mãos de Deus e êle coloca a honra na fisionomia do escriba.). O escrivão e o juiz são funcionários que não podem exercer cômodamente sua profissão se não tiverem algo de seu. Os escrivães têm de ser livres e não escravos, e nem podem ser filhos de escravos; devem ser legítimos, e não bastardos, nem descender de má família. Juram fidelidade secretamente e juram não passar escrituras com lucro excessivo; juram que nem a amizade nem a inimizade, lucro ou prejuízo haverá de movê-los a exercer sua função fora de sua consciência cristã. Se esta profissão exige tantas qualidades, por que se há de pensar que os vinte e tantos mil escrivães existentes na Espanha não podem produzir frutos honestos em seu trabalho? Não quero acreditar, nem é bom que ninguém acredite, que as coisas não sejam assim, pois os escribas foram as pessoas mais úteis que existiram nas repúblicas bem organizadas onde havia dessa gente, alguns excessivamente direitos e outros excessivamente tortos, e que dêstes dois extremos poderia originar-se um meio têrmo que os fizesse entrar nos eixos. Dos aguazis falou que não era de se estranhar que tivessem alguns inimigos, pois sua função era prender, ou tirar-nos ou vigiar-nos e comer à nossa custa. Censurava a negligência e a ignorância dos procuradores e dos solicitadores, comparando-as com as dos médicos, que, curando ou não o doente, ganham o seu dinheiro. Alguém lhe perguntou qual era a melhor terra e êle respondeu que era a fértil e agradecida. - Não foi isso o que lhe perguntei, quero saber qual é o melhor lugar: Valladolid ou Madri. - De Madri, os extremos, de Valladolid, o meio. - Não entendo - disse o indivíduo que o interrogava. - De Madri, terra e céu; de Valladolid, as habitações. Vidriera ouviu um homem dizer a outro que, nem bem entrara em Valladolid, sua mulher ficara doente, porque a terra quis experimentá-la. Disse-lhe Vidriera: - Se ela é ciumenta, melhor seria que a terra a tivesse comido. Dizia que a sorte e as esperanças dos músicos e dos estafêtas eram limitadas, porque os primeiros podiam, no máximo, chegar a ser músicos do rei e os segundos, a conseguir um cavalo para entregar a correspondência. Dizia que tôdas ou quase tôdas as cortesãs eram mais corteses do que sãs. Estando um dia em uma, igreja e vendo entrar nela, ao mesmo tempo, um velho que ia ser enterrado, um menino para batizar e uma mulher que ia velar, pelo Santíssimo, disse que os templos eram campos de batalha onde morrem os velhos, vencem as crianças e triunfam as mulheres. Certa ocasião uma abelha picava-lhe o pescoço, mas êle não se atrevia a tocá-la para não se quebrar, embora se queixasse da dor que sentia. Perguntaram-lhe como podia êle sentir a dor da picada se seu corpo era de vidro e êle respondeu que aquela abelha deveria ser faladeira, pois, se as línguas das faladeiras eram suficientes para abater até mesmo corpos de bronze, que não haveria de ser dos corpos de vidro? De outra vez, um religioso, muito gordo, passou casualmente por êle e pelas pessoas que costumavam ouvi-lo; uma destas pessoas falou: - De tão magro que é, não pode nem mover-se. Vidriera aborreceu-se e disse: - Que ninguém se esqueça do que disse o Espírito Santo: Nolite tangere christos meos (Não toqueis os meus ungidos.) Chegou a encolerizar-se e disse a todos para notarem que dos inúmeros santos canonizados pela Igreja e considerados bem aventurados, nenhum se chama Capitão Fulano, nem Sicrano de Tal, nem conde, nem marquês ou duque de tal lugar, e sim Frei Diogo, Frei Jacinto, Frei Raimundo; todos eram frades e religiosos, porque as religiões são abrunheiros do céu, cujos frutos, comumente, são postos na mesa de Deus. Dizia Vidriera que as línguas dos faladores eram como as águias, que bicam e arrancam as penas das outras aves que a elas se juntam. Dos gariteiros e dos jogadores dizia coisas espantosas: dizia que os gariteiros são prevaricadores públicos, porque, tirando a porcentagem de quem vai ganhando, desejam que a pessoa perca ou passe adiante o naipe, a fim de que ela faça o contrário e êles possam cobrar seus direitos. Elogiava a paciência do jogador que, jogando e perdendo durante tôda a noite, embora seja de natureza colérica e endemoninhada, não abre a bôca e sofre tanto quanto Barrabás, a fim de que seu adversário não abandone o jôgo. Elogiava, também, a consciência de alguns gariteiros honrados, que nem por sonho permitem que em sua casa se façam outros jogos a não ser palla e cientos e, com isso, tiram lentamente, no fim do mês, sem temor e sem trapaça, uma porcentagem muito maior do que a estabelecida pelos juízes. Em suma, dizia êle tais coisas que, se não fôssem os grandes gritos que dava quando o tocavam ou quando se aproximavam dêle, se não fôsse pelas roupas que usava, pelo pouco que comia, pelo modo de beber, pelo fato de querer dormir ao ar livre no verão, e no palheiro durante o inverno, como já tive oportunidade de contar, dando assim claras provas de sua loucura, ninguém poderia dizer que êle não era uma das pessoas mais ponderadas do mundo. Sua enfermidade durou dois anos mais ou menos, porque um padre, da Ordem de São Jerônimo, que possuía a faculdade de fazer os mudos compreenderem as coisas e, de certo modo, falarem, êste padre, que podia também curar loucos, sentindo pena de Vidriera, fêz o possível para curá-lo e o conseguiu. Vidriera recuperou a razão e voltou a ser o que era. O padre, vendoo curado, deu-lhe roupas de bacharel e o fêz voltar à côrte, onde, dando mostras de sábio, como as dera de louco, podia exercer sua profissão e tornar-se famoso. Vidriera assim o fêz e, com o nome de Licenciado Rueda e não Rodaja, voltou à côrte, onde, nem bem entrou, foi conhecido pelos rapazes, que, vendo-o com roupas diferentes das que costumava vestir, não ousaram dirigir-lhe gracejos nem lhe fazer perguntas, embora o seguissem, indagando-se uns aos outros: - Êste não é Vidriera, o louco? Olha que é! Mas vem curado. Bom, pode ser que continue louco, apesar de bem arrumado. - Vamos perguntar-lhe alguma coisa e assim poderemos tirar nossa dúvida. Vidriera ouvia tudo em silêncio; estava mais confuso e enver gonhado do que quando perdera a razão. A notícia passou dos rapazes para os homens e, antes que o licenciado chegasse ao pátio dos Conselhos, tinha atrás de si mais de duzentas pessoas de tôda espécie. Com êste acompanhamento, digno de um catedrático, chegou ao pátio, onde todos o rodearam. Êle, vendo-se cercado por tanta gente, disse em voz alta: - Senhores, eu sou o Licenciado Vidriera; só que agora me chamo Licenciado Rueda. Quis o céu que eu, por determinadas circunstâncias, perdesse o juízo, mas a misericórdia de Deus permitiu-me recuperá-lo. As coisas que eu disse quando louco, 50, é verdade o que me disseram, serão repetidas e feitas agora qual estou em meu perfeito juízo. Sou diplomado em leis por Salamanca, onde estudei com sacrifício e onde obtive o segundo lugar; podendo-se concluir que eu obtive minha posição mais por mérito que por favor. Vim para a côrte a fim de advogar e ganhar a vida, mas, se não o permitirdes, ficarei aqui a vagar e a cortejar a morte; pelo amor de Deus, não transformeis o seguir-me em perseguir-me e nem me façais perder, agora que sarei, a posição que consegui quando era louco. O que acostumaveis perguntarme pelas praças, perguntai-me agora em minha casa. vereis que as respostas que eu vos dava de improviso, segundo dizem, serão muito melhores agora que posso pensar. Todos o escutaram; alguns o deixaram. Voltou para sua casa com um acompanhamento bem menor. No dia seguinte, quando saiu, foi a mesma coisa; êle fêz outro sermão, que nada adiantou. Perdia muito e ganhava pouco. vendo, enfim, que estava a morrer de fome, decidiu deixar a côrte e ir para Flandres, onde pensava fazer valer a fôrça de seu braço, já que não lhe valiam as de seu talento. Pondo seu plano em prática, disse, ao sair da côrte: - Ó côrte, que dilatas as esperanças dos atrevidos e que reduzes as dos talentosos tímidos, que alimentas fartamente truões desavergonhados e matas de fome os que são discretos e briosos! Assim falou e partiu para Flandres, onde acabou de eternizar pelas armas, em companhia de seu bom amigo, o Capitão Valdívia, a vida que começara a eternizar pelas letras, deixando, até morrer, fama de prudente e valentíssimo soldado. A Senhora Cornêlia Dom Antônio de Isunza e Dom João de Gamboa, senhores importantes, da mesma idade, ponderados e grandes amigos, sendo ambos estudantes em Salamanca, decidiram interromper seus estudos para ir a Flandres, levados pelo fervor do sangue môço e pelo desejo de ver o mundo, como se costuma dizer, e também por lhes parecer que a vida militar, ainda que dê honra a todos, convém principalmente aos fidalgos, aos nascidos de sangue ilustre. Chegaram, pois, a Flandres, no tempo em que as coisas estavam em paz ou em acertos e tratos para consegui-la. Em Amberes, receberam cartas de seus pais, que lhes falavam de seu desagrado por terem êles interrompido os estudos sem os avisar, pois, se o tivessem feito, poderiam ter viajado em melhores condições, com a comodidade que convinha a gente de sua posíção. Finalmente, sabedores do desgôsto dos pais, tomaram a resolução de voltar à Espanha, pois nada havia a fazer em Flandres; porém, antes de voltar, quiseram conhecer as mais famosas cidades da Itália; e, tendo visto tôdas, pararam em Bolonha, onde, admirados com os estudos que se faziam naquela magnífica universidade, quiseram continuar a estudar ali. Escreveram aos país, revelando-lhes seu propósito, e êstes alegraram-se muitíssimo e o demonstraram, possibilitando-lhes viver magnificamente e de modo a mostrarem ser pessoas de fino trato e origem; desde os primeiros dias em que foram à escola, tornaram-se conhecidos como cavalheiros distintos, prudentes e educados. Dom Antônio teria uns 24 anos e Dom João não passava de 26; à juventude acrescentava-se o fato de serem êles verdadeiros fidalgos, músicos, poetas, hábeis e valentes, o que os tornava simpáticos e queridos de todos os que com êles tratavam. Tiveram logo muitos amigos, tanto entre os estudantes espanhóis que cursavam aquela universidade, como entre os próprios habitantes da cidade e entre os estrangeiros; mostravam-se liberais e comedidos para com todos e muito alheios à arrogância de que, dizem, os espanhóis costumam ser acusados. Como eram jovens e alegres, não desgostavam de olhar as mulheres mais lindas da cidade e, embora houvesse muitas môças solteiras e casadas, com fama, de serem honestas e famosas, distinguia-se entre elas a Senhora Cornélia Bentibolli, da antiga e generosa família dos Bentibolli, que durante certo tempo foram senhores de Bolonha. Cornélia era formosíssima e encontrava-se sob a guarda e amparo de Lourenço Bentibolli, seu irmão, fidalgo muito conceituado e valente, órfãos de pai e mãe, que, embora os tivessem deixado sozinhos, deixaram-nos ricos, e a riqueza é grande consôlo para a orfandade. Cornélia era tão recatada e seu irmão tão solícito em guardá-la que nem ela se mostrava, nem seu irmão consentia que a vissem. A fama de Cornélia tornava Dom João e Dom Antônio desejosos de conhecê-la, mesmo que fôsse na igreja; mas o esfôrço que fizeram foi em vão e, perante o impossível, que é cutelo da esperança, seu grande desejo foi enfraquecendo. E assim, entregues ao estudo e a divertimentos honestos que compartilhavam com alguns amigos, passavam uma vida tão alegre como honrada; poucas vêzes saíam à noite e, se saíam iam juntos e bem armados. Aconteceu, porém, que, tendo Dom João de sair certa noite, disse-lhe Dom Antônio que não podia acompanhá-lo, pois queria ficar para rezar e cumprir certas devoções; mas que fôsse andando porque logo iria encontrar-se com êle. - Para quê? - disse Dom João. - Eu vos esperarei e se não sairmos esta noite pouco importa. - Lá isso é que não - replicou Dom Antônio. – Ide. tomai um pouco de ar, que eu daqui a um momento hei de encontrar-vos, se é que ides por onde costumamos ir. - Está bem - disse Dom João. - Ficai com Deus e quando sairdes, tomai nosso costumado caminho que nêle me encontrareis. Dom João saiu e Dom Antônio ficou só. Eram 11 horas e a noite estava escura; Dom João, tendo percorrido duas ou três ruas e vendo-se muito só e sem ter com quem conversar, resolveu tornar a casa. E assim o fêz; mas, ao passar por uma rua cujos portais eram de mármore, percebeu que, de uma porta, o chamavam baixinho. A escuridão da noite, aumentada pela sombra das arcadas, não lhe permitiu ver quem lhe falava. Deteve-se um pouco, permaneceu atento e viu entreabrir-se uma porta; aproximou-se e uma voz disse-lhe, sussurrando: - Sois vós, Fábio? Dom João, por êsse ou por aquêle motivo, respondeu que sim, - Tomai falaram lá de dentro. - Levai-o para lugar seguro e voltai sem demora, que é urgente. Dom João estendeu a mão, topou com um embrulho e, querendo pegá-lo, viu que precisava das duas mãos; tão logo lhe entregaram o fardo, fecharam a porta e êle encontrou-se no meio da rua, carregado sem saber de quê. Mas, um momento depois, sob o embrulho, uma criatura começou a chorar e parecia um recém-nascido; Dom João ficou surprêso e confuso, sem saber o que fazer ou que solução dar para o caso; se tornasse a bater na porta, pareceu-lhe que a mãe da criança poderia correr algum perigo; se deixasse o bebê ali, também êle correria perigo; se o levasse para casa, não teria quem tratasse dêle, e não conhecia na cidade nenhuma pessoa a quem pudesse entregá-lo. Lembrando-se, porém, de que lhe haviam recomendado que pusesse o recém-nascido em lugar seguro e logo voltasse, resolveu levá-lo para casa e deixá-lo aos cuidados de uma criada que os servia, tornando ali a tôda pressa, para ver se podia ser útil em alguma coisa, embora tivesse percebido muito bem que lhe haviam entregado o bebê por engano. Por fim, deixando de lado tais considerações, foi para casa com a criança e já não encontrou Dom Antônio; entrou em um quarto, chamou a criada, descobriu a criança e viu que era o mais lindo bebê que seus olhos já tinham visto; as roupas que o envolviam mostravam ter êle nascido de pais muito ricos; a ama desembrulhou-o e viram que era um menino. - É preciso - disse Dom João - dar de mamar a êste menino e fazer o seguinte: tirai-lhe estas roupas tão ricas e embrulhai-o em outras mais modestas e, sem dizer que fui eu quem o trouxe para casa, levai-o à casa de uma parteira, pois essas mulheres sabem sempre achar remédio para tais apuros; levareis bastante dinheiro para que a parteira fique satisfeita; inventareis os pais que quiserdes, contanto que não reveleis terdes recebido a criança de minhas mãos. A criada respondeu que assim faria e Dom João, com a maior pressa possível, voltou para ver se lhe diziam mais alguma coisa; porém, um pouco antes de chegar à casa de onde o tinham chamado, ouviu grande ruído de espadas, como de muita gente que se batesse. Permaneceu atento, mas não ouviu palavra alguma; brigavam em silêncio e, à luz das centelhas que as pedras, feridas pelas espadas, lançavam, quase pôde ver que eram muitos para atacar um só; esta suspeita confirmou-se quando ouviu dizer: - Ah! traidores, que sois tantos contra um homem só! Mas, com tudo isso, nada vos há de valer a esperteza. Ouvindo e vendo isto, Dom João, levado pelo seu generoso e esforçado coração, de um salto, pôs-se ao lado do homem que assim falara e, lançando mão da espada e de um punhal, para não ser reconhecido, falou em italiano ao que se defendia: - Não temais, chegou-vos refôrço, que não vos faltará enquanto me durar a vida. Servi-vos bem da espada que os traidores nada podem, embora sejam numerosos. - Mentes. Aqui não há traidores, pois o querer recuperar a honra perdida tudo permite. Não lhe falou mais nada, pois a pressa que tinham de se ferir mutuamente não lhes dava tempo. Os inimigos, que Dom João acreditou serem em número de seis, apertaram tanto o seu companheiro que, afinal, o atiraram por terra. Dom João pensou que o tivessem matado e, com ligeireza e extraordinária coragem, saltou à frente dos adversários e os fêz recuar sob uma chuva de golpes; mas não teria sido bastante sua valentia para atacar e defender, se a sorte não o ajudasse, fazendo com que os moradores daquela rua aparecessem com luzes às janelas e chamassem, em altos gritos, pela justiça. Ao verem isso, os adversários voltaram as costas e fugiram. Entretanto, levantarase o que fôra ao chão, porque as espadas tinham encontrado uma couraça rija como diamante, onde se embotaram. Na refrega, o chapéu de Dom João caíra e, ao procurá-lo, encontrou outro com que se cobriu, sem reparar se era o seu. O desconhecido aproximou-se dêle e lhe disse: - Senhor, confesso que vos devo a vida e declaro que essa vida e tudo quanto tenha e valha está a vosso dispor. Fazei-me a honra de me dizer quem sois, para que eu saiba a quem devo mostrar-me agradecido. Dom João respondeu: - Sou desinteressado, mas não quero ser descortês; para vos fazer a vontade direi que sou fidalgo espanhol e estudante nesta cidade. Se por acaso quiserdes servir-vos de mim para qualquer coisa, sabei que me chamo Dom João de Gamboa. - Muito vos agradeço o favor - respondeu o outro. - Mas eu, Senhor Dom João de Gamboa, não vos quero dizer meu nome, pois prefiro que o saibais por intermédio de outra pessoa e terei o cuidado de vos fazer conhecê-lo. Dom João já lhe perguntara se êle estava ferido, porque vira os outros lhe darem duas grandes estocadas e êle respondera que; depois de Deus, uma couraça o defendera, mas que, apesar de tudo isto, seus inimigos teriam acabado com êle se Dom João não estivesse ao seu lado. Nisto, viram uma porção de gente que se aproximava e Dom João disse: - Se êstes são os vossos inimigos que voltam, ponde-vos em guarda, senhor, e agi como costumais. Mas, ao que parece, não são inimigos e sim amigos que aí vêm. E assim foi, pois os que chegaram, e eram oito homens, rodearam o desconhecido e trocaram com êle algumas palavras mas tão baixas e secretas que Dom João não as pôde ouvir. O desconhecido voltou logo para junto de Dom João e disse-lhe: - Se não tivessem vindo êstes amigos, Senhor Dom João, de modo algum haveria de me separar de vós, até que me pusésseis a salvo; porém, agora, peçovos encarecidamente que me deixeis. Assim falando, levou a mão à cabeça e reparou que estava sem chapéu; voltando-se para os recém-chegados, pediu-lhes que lhe dessem um, pois havia perdido o seu. Dom João, ouvindo estas palavras, tirou o chapéu que o cobria e colocou-o na cabeça do desconhecido; êste apalpou-o e, voltando-se para Dom João, disse: - Êste chapéu não é meu. Peço-vos, por favor, Senhor Dom João, que o leveis como troféu desta refrega e o guardeis, pois me parece que é um chapéu bem conhecido. Deram-lhe então outro chapéu e Dom João, depois de breves cumprimentos de despedida, voltou para casa, sem parar à porta onde lhe haviam entregado o recém-nascido, porque o bairro acordara e estava alvoroçado com a briga. Aconteceu, então, que encontrou no caminho Dom Antônio de Isunza, seu companheiro, que, reconhecendo-o, lhe disse: - Voltai comigo, Dom João, que no caminho eu vos contarei uma história bem estranha que acaba de me acontecer e talvez nunca tenhais ouvido outra igual. - Quanto a aventuras - respondeu Dom João -, eu também poderei contarvos algo espantoso, mas primeiro vamos aonde quereis para contar-me a vossa. Dom Antônio falou: - Pouco mais de uma hora depois que saístes de casa, decidi ir procurarvos e, a menos de trinta passos daqui, veio ao meu encontro um vulto negro de mulher, que parecia muito agitada e que, entre suspiros e soluços, me perguntou: “Dizei-me, senhor, sois por acaso estrangeiro ou de Bolonha?” “Sou estrangeiro”, respondi eu, “e espanhol”. E ela tornou: “Graças a Deus, por não permitir que eu morra sem sacramentos”. “Estais ferida, senhora”, perguntei, “ou tendes alguma doença mortal?” “Pode ser que meu mal seja de morte se eu não lhe der logo um remédio. Por confiar na cortesia, que, em geral, é virtude dos espanhóis, peço-vos, senhor, que me tireis destas ruas e me leveis para vossa casa o mais depressa possível e lá, se quiserdes, poderei contar-vos de que mal estou morrendo e quem sou, embora isso me custe muito.” Ouvindo eu essas palavras e parecendo-me que ela estava em grande necessidade, sem dizer mais nada, tomei-a pela mão e levei-a para nossa casa. O pajem Santisteban abriu-me a porta; ordenei-lhe que se retirasse e, sem que êle a visse, conduzi-a para o meu aposento, onde, entretanto, se atirou na cama, sem sentidos. Cheguei-me a ela e descobri-lhe o rosto, que estava oculto sob o manto, e vi então a maior formosura que os olhos humanos jamais viram. Deve ter uns dezoito anos, talvez menos; fiquei admirado ao ver tanta beleza; depois, atireilhe umas gôtas de água no rosto; ela voltou a si, suspirando ternamente, e a primeira coisa que me disse foi: “Conheceis-me, senhor?” “Não”, respondi eu, “ainda não tive a honra de conhecer tal formosura.” “Infeliz daquela que a possuí para sua desventura”, falou ela. “Mas agora não é ocasião de se gabarem formosuras e sim de remediar desgraças. Por quem sois, deixai-me aqui fechada e não permitais que ninguém me veja; tornai imediatamente ao lugar onde me encontrastes para ver se há alguma briga na rua e não tomeis partido de ninguém, mas procurai separar os combatentes, pois qualquer desgraça que aconteça a qualquer das partes virá aumentar minha desventura.” Deixei-a fechada no quarto e vim à procura dessa gente que se deve bater, para apaziguá-los. - Tendes mais alguma coisa para me dizer, Dom Antônio? - perguntou Dom João. - Pois não vos parece bastante o que já contei? Parece-vos pouco dizer eu que tenho, fechada em meu quarto, a maior beleza que já vi? - O fato é, sem dúvida, extraordinário - disse Dom João -, porém ouvi agora o que tenho a dizer. Contou tudo o que lhes sucedera e acrescentou que a tal briga a que a senhora se referia devia ser aquela na qual se achara envolvido e disse a Dom Antônio que, segundo lhe parecia, as pessoas que tinham combatido eram tôdas de grande importância. Ficaram ambos admirados e pensativos com as aventuras de cada um e, sem demora, voltaram para casa para ver se a môça precisava de alguma coisa. Pelo caminho Dom Antônio disse a Dom João que prometera àquela senhora não deixar ninguém vê-la e que só êle entraria no quarto, enquanto ela não ordenasse outra coisa. - Não importa - respondeu Dom João -, acabaremos por obter seu consentimento a fim de que eu possa vê-la, pois, ao ouvir-vos gabar tanto sua formosura, tenho muita vontade de conhecê-la. Com isto, chegaram a casa e, à luz das tochas que os três pajens traziam ao abrir-lhes a porta, levantou Dom Antônio olhos para o chapéu de Dom João e viu-o resplandescente dos diamantes. Tirou-o e verificou que todo aquêle brilho provinha de uma fivela pregada no chapéu e cravejada com essas pedras preciosas. Os dois a examinaram com atenção e chegaram à conclusão de que, se tôdas aquelas pedras eram finas como pareciam, valiam mais de 12.000 ducados. Convenceram-se ainda mais de que o pessoal da briga devia ser importante, sobretudo aquêle que Dom João socorrera e lhe dissera para ficar com o chapéu como recordação e por ser bem conhecido. Ordenaram aos pajens que se retirassem; Dom Antônio abriu o seu aposento e encontrou a senhora sentada na cama, com a mão encostada no queixo e derramando muitas lágrimas. Dom João, desejoso de vê-la, aproximou-se da porta e estendeu a cabeça, de modo que a luz, batendo-lhe no chapéu, fêz brilhar os diamantes aos olhos da senhora, que logo exclamou: - Entrai, senhor duque, entrai! Por que me negais o bem de vossa presença? Ao ouvir isso, Dom Antônio disse: - Aqui não há nenhum duque, minha senhora, que não vos queira ver. - Como não? - replicou ela. - Aquêle que ali olhou por um momento é o Duque de Ferrara, pois a riqueza de seu chapéu não o deixa passar despercebido. - Em verdade, minha senhora, o chapéu que ali apareceu não está na cabeça de nenhum duque; se quereis desiludir-vos, permiti que entre quem o traz. - Pois que entre - disse ela -, ainda que minha desgraça aumente se não fôr o duque. Dom João ouvira tôda a conversa e vendo, a essas alturas, que tinha licença para entrar, assim fêz, trazendo o chapéu na mão; apenas a senhora viu que o portador do chapéu não era quem pensava, disse precipitadamente e com voz perturbada: - Ai, infeliz de mim! Dizei-me senhor, pelo amor de Deus: conheceis o dono dêste chapéu? Onde o deixastes e por que motivo tendes o chapéu em vosso poder? Vive ainda ou é êsse o sinal que me envia de sua morte? Que se passa? “Vejo as coisas que te pertencem, mas não vejo a ti.” Estou aqui encerrada e graças a Deus em poder de fidalgos espanhóis, pois, se não fôsse isso, teria já morrido com mêdo de perder a minha honra! - Sossegai, minha senhora - disse Dom João -, pois nem o dono dêste chapéu morreu, nem vos encontrais em lugar onde vossa honestidade corra perigo. Aqui estamos nós para vos servir em tudo o que pudermos e prontos a arriscar a própria vida para vos defender e amparar, pois nunca será desmentida a fé que tendes no cavalheirismo espanhol. Somos espanhóis e de nobre origem - não é arrogância declará-lo neste momento. Tranqüilizai-vos, pois, que será bem guardado o decôro que vossa presença merece. - Confio plenamente em vós - respondeu ela -, mas dizei-me, senhor: como veio às vossas mãos êsse rico chapéu e onde está seu dono, Alfonso de Este, Duque de Ferrara? Dom João, para satisfazer-lhe a vontade, contou-lhe como havia, em uma luta, ajudado o cavalheiro que, de acôrdo com suas informações, devia ser o Duque de Ferrara. Contou-lhe como o duque havia perdido o chapéu e achado aquêle; disse que, a pedido do próprio duque, havia êle guardado o chapéu ao qual ela se referia; falou ainda que, no final da luta, nem êle nem o cavalheiro se achavam feridos, pois havia chegado gente, ao que parece, amiga do duque, e êste, agradecido, lhe dera o chapéu como lembrança. E concluiu: - Agora sabeis, minha senhora, como êste rico chapéu veio ter às minhas mãos, e, se seu dono é, como assegurais, o duque, é preciso dizer-vos que há menos de meia hora deixei-o são e salvo. Que esta notícia vos sirva de consôlo, se vos podeis consolar. - Para saberdes, senhores, que tenho motivos para perguntar por êle, ficai atentos e escutai minha infeliz história. Enquanto isso a criada estivera tomando conta do recém-nascido, dandolhe mel para chupar e trocando-lhe as belas rou-Ï pas que usava por outras mais modestas; quando acabou êste serviço, preparou-se para levar a criança à casa da parteira, como Dom João lhe ordenara. Passando, porém, com o bebê pelo quarto onde estava aquela que se dispunha a contar sua história, a criancinha chorou e a senhora, levantando-se, ficou a escutar atentamente; ouvindo mais distintamente o chôro, perguntou: - Senhores, quem está chorando? Parece um recém-nascido Dom João respondeu: - É um menino que abandonaram esta noite à porta de nossa casa e agora a criada vai levá-lo a quem lhe dê de mamar. - Tragam-no aqui, pelo amor de Deus! - pediu a senhora. Eu farei essa caridade aos filhos alheios, visto não permitir océu que eu a faça aos meus. Dom João chamou a criada, pegou a criança e, voltando para o quarto com ela nos braços, disse: - Aqui está, minha senhora o presente que nos fizeram esta noite, e não foi o primeiro, porque poucos meses passam sem acharmos tais surprêsas na soleira de nossa porta. - Ela pegou o recém-nascido, olhou-o atentamente, examinando-lhe não só o rosto como também as roupas, simples , porém limpas, que o envolviam; em seguida, começou Ì a chorar e, tapando os peitos com o manto para poder dar de mamar à criancinha com recato, aconchegou-a ao seio e, sustentando-a com seu leite, banhava-a de lágrimas. Assim ficou, sem erguer o rosto enquanto a criança não largou o peito. Todos os quatro estavam silenciosos; o menino mamava, mas não muito bem, porque as parturientes não podem logo dar de mamar; e assim o entendeu afinal a senhora, que, voltandose para Dom João, lhe disse: - Mostrei-me caridosa em vão; sou novata neste assunto. Mandai, senhor, que sustentem esta criancinha com uma gôta de mel e não permitais que a levem pelas ruas a esta hora; esperai pelo dia de amanhã e, antes de a levarem, gostaria de tornar a vê-la, pois é para mim um consôlo. Dom João tornou a entregar a criancinha à criada, dizendo-lhe que deixasse para levá-la de casa no dia seguinte e que antes tornasse a envolvê-la nas mantas com que viera e o avisasse antes de partir. Entrando novamente no quarto e encontrando-se os três a sós, a formosa senhora falou: - Se quereis que eu fale, dai-me primeiro alguma coisa para comer, pois estou muito fraca e tenho motivo para tal. Dom Antônio foi logo abrir um armário, de onde tirou muitas conservas; a senhora comeu algumas e bebeu um copo de água fria. Reanimada e um pouco mais tranqüila, disse: - Sentai-vos, senhores, e escutai. Obedeceram-lhe e ela, acomodando-se no leito e abrigando-se bem com as saias, deixou escorregar para os ombros o véu que trazia na cabeça, ficando com o rosto bem descoberto; sucedeu, então, o que sucede à luz, ou melhor, ao próprio sol, quando, liberto das nuvens, se mostra formoso e claro. Caíam-lhe dos olhos pérolas líquidas e ela as limpava com um lenço alvíssimo e com tais mãos que, entre elas e o lenço, teria bons olhos aquêle que soubesse distinguir a brancura. Finalmente, depois de soltar muitos suspiros, tranqüilizou-se um pouco e disse, com voz magoada: - Sou aquela de quem, sem dúvida, deveis ter ouvido muitas vêzes falar, porque a fama de minha beleza é tanta que poucas línguas há por aí que não a publiquem. Sou, com efeito, Cornélia Bentibolli, irmã de Lourenço Bentibolli, e, dizendo-vos isto, revelo duas verdades: a da minha nobreza e a da minha formosura. Fiquei órfã de pai e mãe quando era ainda muito pequena e fui entregue a meu irmão, que sempre me guardou com desvêlo inigualável, embora confiasse mais na seriedade e honradez de meu caráter que propriamente na solicitude que empregava em guardar-me. Fui crescendo entre paredes e solidão, acompanhada apenas por minhas criadas; crescia comigo a fama de minha beleza, apregoada por meus servidores, por aquêles que conseguiam ver-me e por um retrato feito por um pintor famoso a pedido de meu irmão, a fim de que, dizia êle, o mundo não ficasse sem mim, quando o céu me mandasse para outra vida melhor. Mas tudo isso seria pouco para assegurar minha perdição, se o Duque de Ferrara não fôsse ao casamento de uma parenta minha como padrinho, a cujas bodas meu irmão me levou com boas intenções e para homenagear minha prima. Ali, olhei e fui vista; ali, segundo crêem, venci corações, avassalei vontades; ali percebi o gôsto que produzem os louvores, ainda que sejam dados por línguas lisonjeiras; ali, finalmente, vi o duque e êle me viu, e é por isso que me encontro agora nesse estado. Não vos quero dizer, senhores, porque não teria mais fim essa narrativa, os meios, a persistência, os estratagemas, os modos pelos quais o duque e eu chegamos a realizar, ao cabo de dois anos, os desejos que naquelas bodas nasceram, porque nem vigilância, nem prudência, nem admoestações, nem outros cuidados humanos foram suficientes para impedir que viéssemos a juntar-nos, o que, por fim, sucedeu, com a promessa de que viria a ser meu espôso, pois sem ela teria sido impossível quebrar a rocha de meu orgulho. Mil vêzes lhe disse para falar com meu irmão, pois êle não se negaria a consentir em nosso casamento, e que não precisaria pensar em qualquer desigualdade em nossa união, porque a nobreza dos Bentibolli em nada era inferior à sua. Respondeu-me com razões que julguei boas e necessárias e confiante, com a credulidade de uma namorada, entreguei-me a êle por intermédio de uma criada minha, mais sensível às dádivas e promessas do duque que à consciência que devia à confiança que meu irmão depositava em sua fidelidade. O resultado de tudo isso foi que daí a pouco tempo percebi que estava grávida e, antes que meu aspecto revelasse meu estado, fingia-me doente e melancólica e fiz meu irmão me mandar para a casa daquela prima de quem o duque fôra padrinho de casamento. Aí o tornei sabedor da situação em que me encontrava, do perigo que me ameaçava e da pouca segurança em que estava a minha vida, por pressentir que meu irmão já suspeitava de meu estado. Combinamos então que, ao fim de minha gravidez, eu o avisaria e êle viria buscar-me, acompanhado por seus amigos, e me levaria para Ferrara, onde, logo que pudesse, se casaria comigo publicamente. Esta noite em que estamos foi a combinada para a sua vinda, porém, na hora em que o esperava, senti passar meu irmão com muitos outros homens, que, pelo tilintar das espadas, pareciam armados. Isto me causou tal sobressalto que, de repente e sem esperar, sobreveio o parto e dei à luz um lindo menino. Minha criada, sabedora e medianeira de meus feitos, estando já prevenida para êste caso, envolveu a criancinha em roupas e mantas diferentes das que cobriam o menino abandonado à vossa porta e, indo à porta da rua, entregou-o, segundo disse, a um criado do duque. Quanto a mim, logo depois, arranjando-me como pude, saí de casa, julgando que encontraria o duque na rua, e nunca devia tê-lo feito antes de êle estar à porta. Mas o mêdo que me inspirava a quadrilha armada de meu irmão, pois parecia-me sentir no pescoço o fio de sua espada, não me deixou raciocinar melhor; e assim, louca e desatinada, saí e andei até onde me encontrastes. E, conquanto agora me veja sem filho e sem espôso, receando coisas piores, dou graças a Deus por ter-me trazido para debaixo de vosso teto, esperando de vós tudo o que a cortesia espanhola me permite esperar e especialmente da vossa, pois estou certa de que sabereis ser tão nobres quanto pareceis. Dizendo isso, deixou-se cair por sôbre o leito; acudindo os dois fidalgos, pensando que ela perdera os sentidos, viram que chorava amargamente. Dom João lhe disse: - Se até aqui, minha senhora, eu e Dom Antônio, meu amigo, nos sentíamos compadecidos perante vosso infortúnio, pelo fato de serdes mulher, agora que sabemos quem sois, a nossa compaixão se torna dever sagrado de vos servir. Recuperai o ânimo e não vos desalenteis; ainda que não estejais acostumada a semelhantes aventuras, lembrai-vos de que quanto maior fôr a vossa paciência e coragem para suportá-las melhor mostrareis quem sois. Estou convencido, minha senhora, de que êstes acontecimentos extraordinários hão de ter um bom fim, pois o céu não há de permitir que tanta beleza se perca e tão nobres pensamentos malogrem. Deitai-vos agora e cuidai de vossa pessoa, que muito o necessitais; uma criada virá aqui para vos servir; podereis depositar nela tôda a confiança, pois saberá guardar segrêdo sôbre as vossas desgraças e acudir às vossas necessidades. - E eu preciso muito - respondeu ela. - Que venha então, senhor, quem dizeis, porque, vindo de vossa parte, só pode ser de confiança; peço-vos, porém, que ninguém mais me veja, a não ser vossa criada. - Está bem - falou Dom Antônio. Saíram, deixaram-na sozinha e Dom João disse à criada que entrasse no quarto e levasse o recém-nascido com suas verdadeiras roupas e mantas. A criada entrou no quarto preparada para responder ao que a senhora lhe perguntasse sôbre o bebê. Ao vê-la, Cornélia lhe diz: - Chegais em boa hora, amiga; dai-me essa criancinha; chegai aqui esta vela. A criada assim fêz e Cornélia, tomando a criança nos braços, perturbou-se, fitou-a atentamente e disse: - Dizei-me: êste menino é o mesmo que trouxestes há pouco? - Sim, minha senhora - respondeu a criada. - Mas, então, por que está vestido com outras roupas? perguntou Cornélia. - Em verdade, amiga, parece-me que as roupas são diferentes ou esta não é a mesma criança. - Tudo pode ser - falou a criada. - Ai de mim! - disse Cornélia. - Como tudo pode ser? Respondei-me, pois o coração parece arrebentar-se dentro do meu peito. Dizei-me, amiga, por tudo quanto tendes de mais sagrado, como vieram parar em vossas mãos estas roupas. Vereis que são minhas, se não me falha a vista e se não me engana a memória. Com estas mesmas roupas ou com outras iguais a estas, entreguei à minha aia a prenda mais querida de minha alma. Quem as tirou? Ai de mim! Quem as trouxe aqui? Como sou infeliz! Dom João e Dom Antônio, que escutavam tôdas essas queixas, não quiseram que a ansiedade da pobre Cornélia se tornasse ainda maior e, entrando os dois, Dom João disse: - Essas roupas e êsse menino pertencem-vos, Senhora Cornélia. E contou-lhe pormenorizadamente como fôra a êle que, por engano, sua criada entregara a criancinha à porta de sua casa. - E qual o motivo da troca de roupas? tinha certeza de que aquêle menino era seu filho e, se ainda não dissera nada, fôra para evitar uma comoção violenta que lhe poderia ser nociva; e, assim, êsse conhecimento viera aos poucos e, ao sobressalto da dúvida, seguiu-se a alegria de tê-lo reconhecido. Neste ponto as lágrimas de felicidade de Cornélia pareciam não ter fim. Infinitos foram os beijos que deu em seu filho, infinitas as graças que deu aos dois rapazes, chamando-os de seus anjos da guarda e de outros nomes inspirados por sua gratidão. Deixaram-na, então, com a criada, recomendando a esta que a tratasse com todo o carinho de que necessitava, e foram deitar-se para descansar o resto da noite, com o propósito de não voltarem ao aposento de Cornélia, a não ser que ela os chamasse e que sua presença fôsse necessária. Amanheceu; a criada trouxe à casa uma mulher que deu de mamar à criança, às escuras e secretamente. Os dois amigos perguntaram por Cornélia e a criada disse que ela descansava; foram então à escola e passaram pela rua onde se dera a briga e pela casa de onde Cornélia saíra, para ver se já tinham dado por sua falta ou se ouviam algum comentário; mas nada viram nem ouviram que se relacionasse com a briga ou com a ausência de Cornélia. Depois das aulas voltaram para casa. Cornélia mandou chamá-los por intermédio da criada, mas êles responderam que tinham decidido não voltar ao seu aposento, a fim de que ela se cuidasse com o decôro que exigia sua honestidade; Cornélia, porém, pediulhes com lágrimas para que tornassem a vê-la, pois êsse era o decôro mais adequado, senão para seu remédio, pelo menos para seu consôlo. Fizeram-lhe a vontade e ela recebeu-os com rosto alegre e cortesmente; pediu-lhes que perguntassem na cidade para ver se havia alguma notícia a seu respeito. Os rapazes responderam-lhe que já tinham empregado diligências nesse sentido, mas ninguém falava em nada. Nisto chegou um dos três pajens da casa e disse, à porta do aposento: - Está aí um fidalgo com dois criados que diz chamar-se Lourenço Bentibolli, meu senhor Dom João de Gamboa. Ao ouvir êste recado, Cornélia fechou ambas as mãos e levou-as à bôca, falando com voz baixa e trêmula: - Meu irmão, senhores. É meu irmão que está aí. Sem dúvida já sabe onde estou e vem para me matar. Socorro, senhores, defendei-me. - Tranqüilizai-vos, minha senhora - disse Dom Antônio. - Estais em lugar seguro e sob a proteção de quem não vos deixará sofrer a menor ofensa. Ide, Dom João, e vêde o que deseja êsse fidalgo; eu ficarei aqui para defender a Senhora Cornélia, se fôr necessário. Dom João, sem mudar de fisionomia, desceu as escadas e logo Dom Antônio mandou trazer duas pistolas carregadas e ordenou aos pajens que pegassem as espadas e ficassem prevenidos. A criada tremia vendo todos aquêles preparativos; Cornélia, receando o que poderia acontecer, aterrorizava-se. Só Dom Antônio e Dom João sentiam-se seguros e decididos sôbre o que deviam fazer. Dom João encontrou Dom Lourenço à porta da rua, e êste lhe disse: - Suplico a Vossa Mercê que faça o favor de me acompanhar àquela igreja, pois tenho um negócio a comunicar-lhe, ao qual estão ligadas a minha vida e a minha honra. - Com todo o prazer - respondeu Dom João. - Iremos aonde quiserdes. Dito isso, dirigiram-se à igreja, sentaram-se em um banco, em lugar onde não podiam ser ouvidos. Lourenço foi o primeiro a falar: - Eu, senhor espanhol, sou Lourenço Bentibolli, senão dos mais ricos, pelo menos de uma das mais nobres casas desta cidade. Êste fato, de todos conhecido, poderá parecer presunção. Fiquei órfão há alguns anos e tornei-me responsável por uma irmã tão formosa que, não fôsse ela minha parenta e quisesse eu elogiá-la, não encontraria palavras para fazê-lo, pois não há palavras capazes de exprimir tôda a sua beleza. Por ser eu homem de bem e ela jovem e formosa, minha solicitude em guardá-la era extrema; mas tôdas as minhas precauções e diligências foram frustradas pela vontade de minha irmã Cornélia, pois é êste o seu nome. Finalmente, para resumir e não ser cansativo, direi que o Duque de Ferrara, Alfonso de Este, com olhos de lince, venceu os de Argos, triunfou sôbre meu engenho, conquistando minha irmã, e ontem à noite levou-a, tirando-a da casa de uma parenta nossa, e, além de tudo, segundo dizem, com um filho. Ontem à noite eu o soube e logo saí à procura do duque e penso que o encontrei e lhe dei duas estocadas; mas êle foi socorrido por um anjo que não consentiu que eu lavasse, com seu sangue, a mancha feita em minha honra. Disse-me minha prima, que foi quem me contou tudo, que o duque enganou¡ minha irmã, prometendo recebê-la como espôsa. Nisso não acredito, porque o casamento seria desigual quanto à riqueza, embora não o fôsse quanto à linhagem, pois todos sabem quem são os Bentibolli de Bolonha. Parece-me que o duque se fiou no que se fiam os poderosos que desejam conquistar uma donzela tímida e recatada, acenando-lhe com o doce nome de espôsa e, fazendo-a acreditar em vários motivos que não permitissem a realização imediata do casamento; são mentiras com aparência de verdades, porém falsas e mal-intencionadas. Mas, seja como fôr, vejo-me sem irmã e sem honra, conquanto tudo isto, de minha parte, esteja sob a chave do silêncio; não quis contar a pessoa alguma êste agravo, até ver se posso encontrar um jeito de remediá-lo: é melhor que as infâmias se presumam ou suspeitem do que se conheçam com certeza, porque entre o sim e não da dúvida cada um pode inclinar-se para onde quiser. Em resumo, resolvi ir a Ferrara e pedir ao duque satisfação de tão grande ofensa; se êle a negar, eu o desafiarei e isto não será com esquadrões de gente, pois não posso formá-los nem sustentá-los, mas sim de homem para homem. Desejaria que me ajudásseis e me acompanhásseis nesta jornada. Espero que não vos recuseis, pois sei que sois espanhol e fidalgo. Faço isto para não ter de prestar contas a nenhum parente ou amigo, de que só poderia esperar conselhos e dissuasões, e de vós só posso esperar o que é bom e honrado, mesmo a trôco de qualquer perigo. Peço-vos o favor de me acompanhar, pois, levando eu um espanhol a meu lado e tal como vós me pareceis, farei de conta que levo comigo o próprio exército de Xerxes. Bem sei que vos peço muito, mas o dever que tendes de corresponder à fama de vossa pátria obriga-vos a muito mais. - Nem mais uma palavra, Senhor Lourenço - disse a essas alturas Dom João, que estivera escutando em silêncio. - Nem mais uma palavra, pois desde já me considero vosso defensor e tomo como obrigação a vingança de vosso agravo. E isto, não só por ser espanhol, mas também por ser cavalheiro, como vós dissestes que sois, o que, aliás, já era de meu conhecimento. Quando partiremos? Quanto mais depressa melhor, porque o ferro deve ser malhado enquanto está quente, o ardor da cólera aumenta a coragem e a injúria recente estimula a vingança. - Ânimo tão generoso quanto o vosso, Senhor Dom João, não precisa ser estimulado por outro interêsse que não seja a honra que haveis de receber por êste feito e que, desde já, por minha parte, reconheço, oferecendo-vos tudo quanto tenho, posso e valho. Partiremos amanhã porque hoje providenciaremos o que fôr necessário. - Parece-me que assim está bem - disse Dom João. - Se permitis, Senhor Lourenço, levarei o fato ao conhecimento de um cavalheiro meu amigo que é até de maior valor e muito mais discreto do que eu. - Senhor Dom João, haveis tomado minha honra a vosso cargo; logo, podereis dispor dela como quiserdes, falar dela o que quiserdes e a quem bem desejardes. Tanto mais que, sendo vosso amigo e companheiro, só poderá ser de caráter nobre. Dito isto, abraçaram-se e despediram-se, combinando que no dia seguinte Lourenço mandaria chamar Dom João; montariam em seus cavalos fora da cidade e, disfarçados, seguiriam seu caminho. Voltando a casa, Dom João contou a Dom Antônio e a Cornélia tudo o que se passara. - Valha-me Deus! - disse Cornélia. - Vossa confiança e cortesia são em verdade muito grandes. Como vos dispusestes logo a empreender uma façanha tão cheia de perigos? E sabeis, senhor, se meu irmão vos leva a Ferrara ou a outro lugar? Mas, seja aonde fôr que vos leve, podeis estar certo de que vos acompanha a fidelidade em pessoa, ainda que eu me afogue em um copo de água e veja perigo até mesmo nos sonhos. E como não haveria de temer se minha vida ou minha morte dependem da resposta do duque? Talvez êle fale cortêsmente e desarme a cólera de meu irmão. E, se assim não fôr, que grande inimigo terá êle pela frente! Como hei de passar êsses dias enquanto ficar aqui ansiosa e a tremer de mêdo, esperando as notícias que hão de vir? Será que estimo tão pouco ao duque ou ao meu irmão que não receie as desgraças e as sinta até o fundo da alma? - É justo que vos agiteis, minha senhora - disse Dom João. - Mas, entre tantos receios, dai lugar à esperança; confiai em Deus, em minha habilidade e meus bons desejos e assim vereis, com facilidade, cumpridos os vossos. Eu não podia recusar meu auxílio a vosso irmão nem minha companhia em sua jornada a Ferrara. Até agora não conhecemos as intenções do duque, nem se êle sabe que vos ausentastes de casa; saberemos tudo isso no momento oportuno e por intermédio dêle; ninguém melhor do que eu para perguntar. Convencei-vos, minha senhora, de que a saúde, o contentamento de vosso irmão e do duque me são mais preciosos que a menina dos olhos; eu os defenderei da mesma forma que defendo a ela. - Senhor Dom João - disse Cornélia -, se o céu vos dá poder para remediar como bondade para consolar, considero-me feliz. Gostaria de ver-vos ir e voltar, quer me aflija o temor, quer me anime a esperança durante vossa ausência. Dom Antônio aprovou a decisão de Dom João e elogiou a maneira pela qual êle correspondeu à confiança de Lourenço Bentibolli, dizendo ainda que desejaria acompanhá-lo. Dom João respondeu: - Isso não, porque não é prudente deixarmos a Senhora Cornélia sozinha e porque não quero que o Senhor Lourenço pense que preciso valer-me de fôrças alheias. - O que é meu é vosso - replicou Dom Antônio -, de modo que, embora disfarçado e de longe, hei de seguir-vos; sei que a Senhora Cornélia aprovará meu procedimento, pois não ficará tão só que não tenha alguém para servi-la, guardá-la e acompanhá-la. Cornélia respondeu: - Será um grande consôlo para mim saber que ides juntos, ou, pelo menos, de modo que possais auxiliar-vos mutuamente se a sorte assim o exigir. E, como vossa emprêsa parece a mim cheia de perigos, fazei-me o favor de levar convosco estas relíquias. E, dizendo isto, tirou do seio uma cruz de diamantes de valor incalculável e um agnus de ouro, tão precioso quanto a cruz. Examinaram ambos as riquíssimas jóias com mais admiração ainda do que quando haviam visto a fivela do chapéu do duque, mas devolveram-nas a Cornélia, não querendo de modo algum ficar com elas, dizendo que levariam consigo outras relíquias não tão bonitas, mas igualmente preciosas pela sua santidade. Cornélia sentiu muito ao vê-los recusar as relíquias, mas teve de se conformar com sua vontade. A criada mostrara-se muito zelosa e atenta com a senhora de quem não conhecia o nome e, sabendo que seus amos precisavam viajar, ignorando, porém, para onde iam e qual seu intento, prometeu cuidar de Cornélia de tal modo que ela não sentisse a falta de seus protetores. No dia seguinte, logo de manhãzinha, já estava Lourenço à porta de casa e Dom João pronto para partir, levando na cabeça o chapéu do duque, enfeitado por plumas negras e amarelas, cobrindo a fivela de diamantes uma roseta negra. Os dois rapazes despediram-se de Cornélia, mas esta, considerando que o irmão estava tão perto, não teve ânimo para lhes dizer uma palavra. Dom João saiu primeiro e, na companhia de Lourenço, encontrou dois excelentes cavalos e dois criados que os seguravam pelas rédeas. Montaram e, com os dois criados adiante, por atalhos e caminhos escondidos, foram andando na direção de Ferrara. Dom Antônio, disfarçado e montando seu cavalo, seguia-os. Pareceu-lhe, porém, que os outros, sobretudo Lourenço, desconfiavam dêle; resolveu, então, tomar a estrada real de Ferrara, na certeza de encontrar lá o seu amigo no fim da jornada. Mal tinham saído da cidade quando Cornélia contou à criada tudo o que lhe sucedera, como aquêle menino era seu filho e do Duque de Ferrara; contou com todos os pormenores já narrados, não lhe escondendo que os dois amigos tinham partido para Ferrara acompanhando seu irmão, que ia desafiar o Duque Alfonso. Ouvindo isto, a ama, como se o demônio a tentasse para dificultar ou estorvar a salvação de Cornélia, disse: - Ai, minha senhora! Tôdas essas coisas passaram por vós e estais aí descansada da vida? Não tendes alma ou a tendes tão desprezada que não a percebeis. Pensais, porventura, que vosso irmão vai a Ferrara? Não vêdes que seu intento foi afastar os meus amos de casa para vir aqui e tirar-vos a vida com a maior facilidade? Qual é nossa defesa e amparo agora, senão três pajens que só fazem coçar a sarna que têm e não querem saber de outros cuidados? Quanto a mim, direi que me falta o ânimo para esperar os desastres que ameaçam esta casa. Como hei de acreditar que o Senhor Lourenço, italiano, confia em espanhóis e lhes pede favores? Não. Não creio. Se vós, filha, quisésseis aceitar um conselho, eu vos daria um muito proveitoso. Pasmada, confusa, atônita, Cornélia ouvia as palavras que a velha criada declarava com tanta veemência e mostras de temor; a pobre senhora começou a acreditar no que ela dizia e a afigurar-se que, talvez, àquela hora Dom-João e Dom Antônio estivessem mortos e de um momento para outro seu irmão entraria pela casa adentro e a crivaria de punhaladas. - Qual seria o vosso conselho, amiga, capaz de nos salvar e prevenir a desventura que temeis? - perguntou ela à criada. - Meu conselho é tão bom que não pode haver melhor. Há alguns anos, servi eu a um cura que vive em uma aldeia a 2 milhas de Ferrara. É um bom e santo homem, que fará por mím tudo quanto eu lhe pedir, porque me deve mais obrigações que as que um amo costuma dever a seu criado. Vamos para lá. Tratarei de arranjar quem nos leve; quanto à mulher que dá de mamar ao menino, é muito pobre e irá conosco até o fim do mundo. E, como supomos que acabareis por ser encontrada, melhor será vos encontrarem em casa de um sacerdote de missa, velho e honrado, que em poder de dois estudantes moços e espanhóis, pois êstes, e disso eu sou testemunha, não desprezam uma patuscada, e, se agora vos respeitam é porque estais doente; logo que estiverdes curada e em seu poder, só Deus vos poderá ajudar, porque, em verdade, se minha repugnância, desdém e coragem não me tivessem guardado, já teriam acabado comigo e com minha honra, pois nem tudo o que reluz é ouro. Uma coisa é o que dizem, outra é o que pensam; mas comigo perderam seu tempo, porque tenho pêlo nas ventas e sei onde o sapato me aperta; além de tudo, sou bem nascida, pois descendo dos Cribelos de Milão e considero minha honra 10 milhas acima das nuvens. Por isto, podem-se ver as calamidades que por mim passaram, pois, sendo quem sou, cheguei a ser escrava de espanhóis, embora não me possa queixar de meus amos, porque são muito bons quando não se zangam; neste ponto parecem vasconços, como dizem que são, mas pode ser que para convosco venham a ser galegos, que é outra nação e tem fama de ser menos, pontual e séria que a vasconça. Enfim, tantas e tais razões apresentou a velha que a pobre mõça resolveu seguir-lhe o conselho. E assim, em menos de quatro horas, com o consentimento de Cornélia, a criada arranjou tudo e puseram-se as duas e a ama, com o menino, num carro, a caminho da aldeia do tal cura, sem que os pajens dessem pela sua partida. Tudo isto se fez a conselho da velha e com o seu dinheiro, porque os amos, antes de partir, lhe haviam pago um ano de seu ordenado e assim não foi preciso empenhar uma jóia que Cornélia lhe queria dar para tal fim. Como tivessem escutado Dom João falar que nem êle nem Lourenço Bentíbollí seguiriam pela estrada principal, quiseram ir por êste caminho e de vagar, a fim de não os encontrar. O dono do carro sujeitou-se à vontade delas, pois lhe pagavam bem. Mas deixemos que elas se vão, cheias de si e bem encaminhadas; vamos ver o que aconteceu a Dom João de Gamboa e a Lourenço Bentibolli. Souberam êles, pelo caminho, que o duque não se encontrava em Ferrara e sim em Bolonha. Abandonando, então, o atalho que seguiam, tomaram a estrada real ou a estrada mestra, como lá se diz, considerando que o duque, ao sair de Bolonha, por ela passaria. Pouco depois de caminharem nessa estrada, dirigindo os olhares para Bolonha, a fim de ver se alguém se aproximava, enxergaram uma porção de gente a cavalo. Dom João disse a Lourenço que se afastasse da estrada e fôsse para longe, pois, se por acaso o duque viesse no meio daquela gente, queria falar-lhe ali mesmo, antes que êle entrasse em Ferrara. Lourenço assim o fêz, aprovando o parecer de Dom João. Assim que Lourenço se afastou, Dom João tirou a roseta que escondia a rica fivela do chapéu. Nisto, chegou o grupo de cavalheiros; vinha com êles uma mulher vestida com roupas de viagem e de rosto coberto por uma pequena máscara, ou para esconder o rosto ou para proteger contra o sol e o ar. Dom João parou no meio da estrada e esperou os viajantes; quando êstes se encontravam perto, sua estatura, seu garbo, o possante cavalo que montava, a riqueza e elegância de seu vestuário, o brilho dos diamantes em seu chapéu despertaram a atenção dos que chegavam, principalmente a do duque, que era um dos cavaleiros, e que, ao pôr os olhos na fivela de diamantes, percebeu logo que aquêle homem era Dom João de Gamboa, que lhe salvara a vida na luta em Bolonha. Mal se compenetrou desta verdade, sem esperar por mais nada, esporeou o cavalo e partiu ao encontro de Dom João, dizendo: - Suponho que não me enganarei, senhor cavalheiro, se vos chamar de Dom João de Gamboa, pois vossa aparência e o enfeite dêsse chapéu revelam vosso nome. - Não vos enganastes - respondeu Dom João. - Jamais soube ou quis esconder meu nome, para nunca ser descortês. - Isto será impossível - respondeu o duque -, pois tenho a certeza de que jamais poderieis ser descortês. Sou o Duque de Ferrara, Senhor Dom João, aquêle que está obrigado a vos servir durante tôda a vida, pois não faz quatro noites que vós me salvastes da morte. O duque não acabara ainda de falar e Dom João, com extraordinária agilidade, já saltara do cavalo e corria para beijar-lhe os pés, mas, por muito ligeiro que fôsse, já encontrou o duque fora da sela, de modo que êste acabou de apear nos braços de Dom João. Lourenço, que de longe olhava estas cerimônias, julgando que não eram de cortesia e sim de cólera, esporeou o cavalo, mas estacou no mesmo instante, porque viu os dois estreitamente abraçados e imediatamente reconheceu o duque. Este, por cima do ombro de Dom João, olhou para Lourenço e também o reconheceu e sobressaltou-se um pouco; assim como estava, abraçado a Dom João, perguntou-lhe se Lourenço Bentibolli viera em sua companhia. Dom João respondeu: - Afastemo-nos daqui e contarei a Vossa Excelência grandes coisas. O duque assim fêz e Dom João lhe disse: - Senhor duque, Lourenço Bentibolli, que ali vêdes, tem uma grande queixa de vós. Diz êle que há quatro noites tirastes sua irmã, a Senhora Cornélia, da casa de uma prima, que a enganastes e desonrastes, e deseja saber de vós que satisfação podereis dar para êle pensar no que deve fazer. Pediu-me para ser seu mediador e eu aceitei, porque, pela descrição que me fêz do combate, descobri serdes vós, senhor, o dono desta fivela, que, por liberalidade e cortesia, quisestes que fôsse minha; e, vendo que ninguém melhor do que eu podia servir a ambos, aceitei, como já vos disse. Peço-vos agora, senhor, para me dizerdes o que sabeis acêrca dêste caso e se é verdade o que Lourenço diz. - Ai, amigo! - respondeu o duque -, é tão verdade que não me atreveria a negá-lo, mesmo se quisesse; porém não enganei Cornélia nem a tirei de casa como dizeis; não a enganei porque a considero minha espôsa e não a raptei, pois nem mesmo sei onde ela se encontra. Se não celebrei públicamente a nossa união, foi porque esperava que minha mãe, que está nas últimas, passasse desta vida para a outra, pois ela queria que eu desposasse a Senhora Lívia, filha do Duque de Mântua, e também por outros motivos talvez mais graves ainda que não convém agora dizer. Naquela noite em que me acudistes, eu deveria trazê-la para Ferrara, porque ela estava já em vésperas de dar à luz o tesouro que, por favor do céu, pôde ela conceber. Porém, ou por causa da briga ou por eu ter-me demorado um pouco, quando cheguei à sua casa encontrei-me com a pajem que nos ajudava secretamente e, tendo-lhe perguntado por Cornélia, disse-me ela que já saíra e que naquela mesma noite dera à luz um menino, o mais lindo e perfeito que tinha visto, e que o entregara a meu criado Fábio. A aia é aquela que me acompanha; Fábio está aqui, porém Cornélia e o menino desapareceram. Passei êstes dois dias em Bolonha, esperando e procurando receber alguma notícia de Cornélia, mas nada consegui. De maneira que, meu senhor - disse Dom João -, tão logo que Cornélia e vosso filho apareçam, não negareis que ela é vossa espôsa e êle vosso filho? - Certamente que não, pois, se me prezo como cavalheiro, prezo-me ainda mais como cristão. Além disso, Cornélia tem tais qualidades que merece ser dona de um reino. Se ela aparecer, esteja minha mãe viva ou morta, todo o mundo verá que, se eu soube ser amante, sei também manter perante todos a fé que jurei em segrêdo. - E podereis repetir a seu irmão, o Senhor Lourenço, o que acabastes de me declarar? - perguntou Dom João. - O meu mal - respondeu o duque - foi não lhe ter dito nada ainda. Dom João, no mesmo instante, fêz sinal a Lourenço para desmontar e vir ter com êles; o rapaz concordou, longe de adivinhar a boa nova que o esperava. O duque dirigiu-se a êle de braços abertos e a primeira coisa que fêz foi chamálo de irmão. Lourenço, surpreendido, mal sabia responder a tão afetuosa saudação e a tão cortês acolhimento. E, estando assim perplexo, antes que pudesse dizer uma palavra, Dom João falou-lhe: - Senhor Lourenço, o duque confessa as relações secretas que manteve com vossa irmã, a Senhora Cornélia. Confessa também que a considera como legítima espôsa e que o dirá publicamente, tão logo lhe seja possível. Diz ainda que foi há quatro noites buscá-la à casa de sua prima, a fim de trazê-la para Ferrara, à espera de uma oportunidade para celebrar seu casamento, que tem sido adiado por motivos muito justos e que êle me confiou. Falou-me também do combate que travou convosco e que, quando foi buscar Cornélia, se encontrou com Sulpícia, sua aia, aquela mulher que ali está -, e por intermédio dela soube que Cornélia tivera um filho e logo saíra de casa, julgando ir ter com o duque, e receosa, pois pensava que vós, Senhor Lourenço, já sabíeis o que se passava. Sulpícia, acreditando entregar o recémnascido a um criado, deu-o a uma pessoa desconhecida. Desapareceram, pois, mãe e filho; o duque reconhece sua culpa e declara que, tão logo encontre Cornélia, a receberá como espôsa. Considerai agora, Senhor Lourenço, se há mais alguma coisa a dizer ou desejar, a não ser a descoberta de dois tesouros tão preciosos quanto desgraçados. Lourenço respondeu atirando-se aos pés do duque, que se esforçava para erguê-lo. - De vossa bondade cristã e grandeza, sereníssimo senhor, não poderíamos esperar outra atitude; a ela, tornando-a igual a vós; a mim, considerando-me vosso criado. Nesse ponto, os dois tinham os olhos rasos de lágrimas, enternecidos, um com a perda da espôsa, o outro por ter encontrado um cunhado tão bom. Mas, considerando que seria fraqueza dar mostras de seus sentimentos com lágrimas nos olhos, ambos procuraram reprimi-las. Nos olhos de Dom João brilhava a alegria, que lhe vinha ao pensar que as duas jóias estavam sãs e salvas em sua casa. Estavam, pois, nesta situação, quando apontou na estrad a Dom Antônio de Isunza, que Dom João reconheceu de longe. Mas, quando se aproximou, deteve-se, observando os cavalos de Dom João e de Lourenço, que dois criados seguravam. Dom Antônio reconheceu Dom João e Lourenço, mas não reconheceu o duque e não sabia o que fazer: se devia aproximar-se ou não. Dirigiu-se aos criados do duque e perguntou-lhes se sabiam quem era o fidalgo que estava falando com os outros dois. Responderam-lhe que era o Duque de Ferrara, e esta notícia deixou-o ainda mais perplexo; Dom João correu em seu auxílio, chamando-o pelo nome. Dom Antônio, vendo que todos estavam desmontados, apeou e, ao aproximar-se, foi recebido pelo duque muito cortêsmente, pois Dom João já lhe dissera que aquêle era seu grande amigo e companheiro. Finalmente, Dom João contou-lhe tudo o que acontecera desde que se haviam separado até aquêle momento. Dom Antônio regozijou-se e disse a Dom João: - Por que não completais a alegria e o contentamento dêstes senhores, dizendo-lhes onde se encontra Cornélia com seu filho, e lhes pedis alvíssaras pelo achado? - Se não fôsse vossa chegada, Dom Antônio, eu já o teria feito, mas vós podeis pedi-las agora que êles as darão de muito boa vontade. Ao ouvirem falar de Cornélia e de alvíssaras, o duque e Lourenço perguntaram de que se tratava. - Que há de ser - respondeu Dom Antônio -, senão que desejo também representar meu papel nessa comédia trágica, e que êsse papel será o da personagem que pede alvíssaras pelo fato de estarem em sua casa a Senhora Cornélia e seu filho? E contou-lhes pormenorizadamente tudo o que narramos até agora. O duque e Lourenço sentiram tal alegria que abraçaram estreitamente os dois amigos, prometendo o duque o seu Estado como alvíssara e Lourenço os seus bens, sua vida e sua alma. Chamaram, então, a aia, que entregara por engano o recém-nascido a Dom João, a qual tendo reconhecido seu amo Lourenço tremia de mêdo. Perguntaram-lhe se conhecia o homem a quem dera a criança e ela respondeu que não, que lhe perguntara se era Fábio e êle respondera afirmativamente e, confiando nisto, entregara ela o menino. - Foi assim mesmo - falou Dom João. - E vós fechastes a porta logo depois de me recomendardes que pusesse o bebê a salvo e voltasse depressa. - Assim foi, meu senhor - respondeu a aia chorando. O duque disse: - Não queremos lágrimas aqui, e sim júbilo e festas. Agora não posso entrar em Ferrara, antes de voltar a Bolonha, pois tôda essa alegria é apenas uma sombra e só a presença de Cornélia a tornará real. E, sem dizer mais nada, partiram todos de volta a Bolonha. Dom Antônio entrou antes de todos na cidade a fim de prevenir Cornélia, impedindo assim que se assustasse com a súbita chegada do duque e de seu irmão; mas, como não a encontrou em casa, nem os pajens souberam dar notícias dela, ficou triste e desesperado, sem saber o que fazer de sua vida. Dando, então, pela falta da criada velha, lembrou-se de que talvez fôsse a causadora da partida de Cornélia. Os pajens disseram-lhe que a aia se ausentara no mesmo dia em que seus amos haviam partido e que essa Senhora Cornélia de quem Dom Antônio falava êles nunca tinham visto. Dom Antônio ficou fora de si ao considerar esta nova desgraça, temendo que o duque os tomasse por mentirosos ou embusteiros ou até imaginasse coisa pior, que redundasse em prejuízo de sua honra e da reputação de Cornélia. Estava, pois, nesta situação quando entraram o duque, Lourenço e Dom João, que, deixando a comitiva fora da cidade e passando por ruas desertas, chegaram à casa de Dom João. Encontraram Dom Antônio sentado em uma cadeira, com a mão no rosto e pálido como um morto. Dom João perguntou-lhe o que tinha e onde estava Cornélia. - Que não haverei eu de ter - respondeu Dom Antônio. Cornélia desapareceu juntamente com a criada que deixamos para lhe fazer companhia, desapareceu no mesmo dia em que partimos. Ao ouvir estas palavras, o duque estêve para expirar; Lourenço ficou desesperado. Todos se mantiveram aflitos, suspensos e pensativos. Nisto, chegou um pajem de Dom Antônio e disse-lhe ao ouvido: - Santisteban, o pajem do senhor Dom João, desde o dia em que os senhores saíram de casa, tem uma mulher muito bonita fechada em seu quarto e creio que seu nome é Cornélia, assim tenho ouvido chamá-la. Dom Antônio alvoroçou-se novamente e queria que Cornélia não aparecesse em tais circunstâncias, pois imaginou que o pajem a tivesse escondido e era preferível não a encontrar do que encontrá-la fechada em tal lugar. Mas não disse nada a ninguém e foi ao aposento do pajem; encontrou a porta fechada e o pajem ausente; aproximou-se, então, da porta e disse em voz baixa: - Abri, Senhora Cornélia, vinde receber o vosso irmão e o duque vosso espôso, que vieram para buscar-vos. - Estão zombando de mim? Não sou assim tão feia nem tão sem graça que não possam vir buscar-me duques e condes, mas é isso que dá a gente meter-se com pajens. Por estas palavras Dom Antônio percebeu que não era Cornélia quem falava. Nesse instante chegou Santisteban e, dirigindo-se ao seu aposento, ali encontrou Dom Antônio, que lhe pediu para trazer várias chaves da casa para ver se alguma dessas servia na porta daquele quarto. O pajem caiu de joelhos e, com a chave na mão, disse: - A ausência de vossas mercês e a minha velhacaria fizeram-me trazer para cá uma mulher para ficar comigo; suplico a Vossa Mercê, Dom Antônio de Isunza, que, se meu senhor Dom João não sabe disto, não lhe digais nada, e eu neste mesmo instante mando esta mulher embora. - E como se chama a tal mulher? - perguntou Dom Antônio. - Chama-se Cornélia - respondeu o pajem. O outro pajem, que fizera a denúncia e que não era muito amigo de Santisteban, desceu à sala onde estavam o duque, Lourenço e Dom João e disse: - Agarrai o pajem, por Deus, que o obrigaram a entregar a Senhora Cornélia! Escondeu-a bem! Teria gostado de que os senhores se demorassem para estender ainda o gaudeamus por mais três ou quatro dias. Ouvindo isto, Lourenço perguntou-lhe: - Que dizeis, homem? Onde está Cornélia?! - Lá em cima - respondeu êle. Ao ouvir isto, o duque não esperou mais e subiu a escada como um raio, julgando que ia ver sua Cornélia. Entrando no aposento onde estava Dom Antônio, disse: - Onde está Cornélia? Onde está a vida de minha vida? - Aqui está Cornélia - respondeu uma mulher envôlta por um lençol e de rosto coberto. - Valha-me Deus! - exclamou ela. - Terei roubado alguma coisa? Será assim tão espantoso uma mulher dormir com um pajem para se fazer tanto barulho? Lourenço, que também estava presente, cheio de despeito e cólera, puxou uma ponta do lençol e viu uma mulher, jovem ainda, de boa aparência, que, envergonhada, tapou o rosto com as mãos e tratou de pegar sua roupa que estava sôbre a cama servindo de travesseiro; todos viram, então, que aquela mulher devia ser uma dessas mulheres perdidas que andam pelo mundo. O duque perguntou-lhe se era verdade que se chamava Cornélia. Ela respondeu que sim, que tinha parentes muito honrados na cidade e que ninguém devia dizer: desta água não beberei. O duque ficou tão acabrunhado com tudo isto que estêve para desconfiar de que os espanhóis tivessem caçoado dêle, mas, para não se entregar a tão maus pensamentos, voltou as costas e, sem dizer palavra, seguido por Lourenço, montaram ambos a cavalo e foram-se embora, deixando Dom Antônio e Dom João em situação pior que a dêles, ainda mais envergonhados que êles. Os dois espanhóis decidiram fazer tôdas as diligências possíveis e impossíveis para encontrar Cornélia. Despediram Santisteban por causa de seu atrevimento e disseram a Cornélia que fôsse embora. Nisto, veio-lhes à memória que haviam esquecido de contar ao duque o fato do agnus e da cruz de diamante que ela quisera oferecer-lhes; com êstes sinais, êle haveria de acreditar que Cornélia estivera em seu poder e que, se não estava ali, a culpa não era dêles. Saíram para dizer isso ao duque, mas não o encontraram em casa de Lourenço, onde julgaram que êle deveria estar. Lourenço estava em casa e disse-lhes que o duque partira para Ferrara, deixando-o encarregado de procurar sua irmã. Contaram a Lourenço o caso das jóias, mas êste respondeu que o duque estava muito satisfeito com seu procedimento e que tanto êle quanto o duque atribuíam a fuga de Cornélia ao grande mêdo que dela se apoderara, e que Deus haveria de fazê-la aparecer, pois a terra não poderia ter engolido a ela, à criada e ao menino. Com estas palavras todos ficaram mais animados e combinaram não fazer diligências públicas e sim secretas, porque ninguém, a não ser sua prima, sabia do desaparecimento de Cornélia. E, como não se conheciam as intenções do duque, correria grande risco a reputação de Cornélia e seria grande trabalho estar a desfazer as suspeitas que uma convicção infunde nas mais diferentes pessoas. Seguiu o duque a sua viagem e a boa sorte que lhe ia preparando a ventura fê-lo passar pela aldeia onde morava o cura e em cuja casa se encontravam Cornélia, o menino, a criada conselheira e a ama; elas já haviam contado a história ao bom padre, pedindo-lhe proteção e conselho. O cura era grande amigo do duque e êste vinha muitas vêzes de Ferrara para visitá-lo e descansar em sua casa, que era muito bem arrumada, como convinha a um sacerdote rico, ilustrado e colecionador de curiosidades. O duque fazia ali grandes caçadas e gostava de conversar com o padre, que era bem engraçado em tudo quanto dizia e fazia. Não se alvoroçou, pois, o cura, ao ver o duque entrar, porque não era a primeira vez que isso acontecia, mas afligiu-se ao vê-lo triste, pois logo pensou que alguma paixão lhe atormentava o espírito. Cornélia percebeu que o duque estava ali e perturbou-sei muito, pois não sabia quais eram as suas intenções; torcia as mãos e andava de um lado para outro, como se estivesse fora de si; queria falar ao cura, mas êste conversava com o duque e era impossível chamá-lo. O duque disse ao padre: - Venho tristíssimo, meu pai, e não quero entrar hoje em Ferrara e sim ficar aqui como vosso hóspede. Dizei aos que me acompanham para irem a Ferrara e que só fique Fábio. O cura assim fêz e logo foi dar ordem a fim de que tudo se preparasse para acomodar o duque e dar-lhe de comer. Só então Cornélia pôde falar-lhe e, pegando-lhe as mãos, disse-lhe: - Ai meu pai! Que deseja o duque? Pelo amor de Deus, falai-lhe um pouco de mim e procurai saber quais as suas intenções a meu respeito. Fazei como vos parecer melhor e como vossa grande prudência vos aconselhar. - O duque está muito triste - falou o cura -, mas até agora não me disse por quê. É preciso vestir êste menino com suas melhores roupas e pôr-lhe as melhores jóias que tiverdes, sobretudo as que o duque vos tiver dado. Deixai o resto por minha conta, pois se Deus quiser teremos hoje um dia feliz. Cornélia abraçou-o e beijou-lhe a mão, retirando-se em seguida para vestir e enfeitar o seu filho. O cura foi ter com o duque para conversar com êle enquanto não chegava a hora do jantar. No decorrer da conversa, perguntou-lhe se não era possível saber-se a causa de sua tristeza, pois a 1 légua de distância podia-se notar o que lhe passava no coração. - Pai - respondeu o duque -, é bem certo que as tristezas do coração transparecem no rosto; lê-se nos olhos o que se passa na alma. E o pior é que, por enquanto, não posso contar minha tristeza a ninguém. - Em verdade, meu senhor - respondeu o cura -, se estivésseis disposto para ver coisas agradáveis, eu teria uma para vos mostrar e sei que vos daria grande prazer. - Tolo seria aquêle - disse o duque - que, tendo ocasião de ver aliviado seu mal, se recusasse a isso. Por Deus, mostrai me, padre, o que dizeis, pois deve ser algum objeto para sua coleção e gostaria muito de vê-lo. O cura levantou-se e dirigiu-se para onde estava Cornélia, que já tinha vestido e enfeitado o filho, pondo-lhe a cruz de diamantes e o agnus e outras jóias preciosíssimas, oferecidas pelo duque; o cura pegou a criança e, levando-a à sala onde estava o duque, chamou êste para junto da claridade de uma janela e, desembrulhando o menino, colocou-o em seus braços. O duque olhou admirado e, quando reconheceu as jóias, ficou atônito. Olhava espantado o pequenino e parecia-lhe que estava a ver seu próprio retrato. Cheio de admiração, perguntou ao cura de quem era aquela criancinha, que, pelo vestuário e pelos enfeites, parecia filha de um príncipe. - Não sei - respondeu o cura - Uma noite destas, um cavalheiro de Bolonha trouxe-o aqui e me encarregou de olhar por êle e criá-lo, pois era filho de nobre e valoroso pai e de mãe fidalga e formosíssima. Com o cavalheiro veio também uma mulher para dar de mamar ao menino; eu lhe perguntei se ela sabia alguma coisa a respeito dos pais da criança e ela me disse que não. Se a mãe é tão linda como a ama, deve ser a mulher mais formosa da Itália. - Não poderia eu vê-la? - perguntou o duque. - Sem dúvida - respondeu o cura. - Vinde comigo, senhor, pois, se a beleza desta criança vos surpreendeu como penso, o mesmo efeito vos há de fazer a vista de sua ama. O cura quis pegar o menino, mas o duque não o largou; apertou-o contra o peito e cobriu-o de beijos. Saiu o cura por uns instantes e disse a Cornélia para vir, sem preocupação alguma, ao encontro do duque. Cornélia assim fêz, mas com a comoção veio-lhe tal côr ao rosto que sua beleza parecia do outro mundo. O duque espantou-se ao vê-la e ela quis atirar-se a seus pés para beijá-los. Sem dizer uma palavra, o duque entregou o menino ao cura e, voltando as costas, saiu do aposento a tôda pressa. Cornélia, vendo isto, virou-se para o cura e disse: - Ai, meu pai! Teria o duque se espantado ao ver-me? Detesta-me, por certo; pareço-lhe feia. Esqueceu já as obrigações que me deve! Será que não me vai dizer nem uma palavra? Cansou-se tanto de segurar o filho que o largou! O cura, admirado com a saída precipitada do duque, não disse uma só palavra, pois parecera-lhe que êle fugira. Enganava-se, porque o duque, saindo, chamou Fábio e lhe disse: - Corre, Fábio amigo, e vai a Bolonha o mais depressa que puderes e dize a Lourenço Bentibolli e aos dois fidalgos espanhóis, Dom João de Gamboa e Dom Antônio de Isunza, para virem sem demora alguma a esta aldeia. Vai, amigo, e não voltes sem êles, pois vê-los importa-me mais que a própria vida. Fábio apressou-se em cumprir a ordem de seu amo. O duque voltou imediatamente para a sala onde estava Cornélia, que derramava muitas lágrimas; apertou-a em seus braços e, juntando suas lágrimas às dela, beijou-lhe mil vêzes os lábios, pois a felicidade era tamanha que lhes prendia a fala. E assim, arrebatados em amoroso silêncio, abraçavam-se os dois felizes amantes e verdadeiros esposos. A ama do menino e Cribela, a criada, que, por uma fresta da porta, espreitavam o que se passava entre o duque e Cornélia, de alegria, davam cabeçadas pelas paredes, como se tivessem perdido o juízo. O cura dava mil beijos no menino que tinha nos braços e, com a mão direita, que deixara livre, não se cansava de abençoar os dois esposos. A ama do cura, que não se encontrava presente a êstes acontecimentos por estar na cozinha preparando o jantar, apareceu nesta altura, anunciando que a mesa estava posta. Isto veio pôr fim aos estreitos abraços dos dois jovens; o duque tirou o menino dos braços do cura e o segurou no colo durante todo o tempo em que durou o simples mas saboroso jantar. Enquanto comiam, Cornélia contou tudo o que lhe sucedera até chegar àquela casa, dizendo que partira a conselho da velha criada, fugindo da morada dos dois fidalgos espanhóis que a tinham servido, amparado e guardado com o mais honesto e correto decôro que se podia imaginar. O duque, por sua vez, contou-lhe tudo o que se passara até aquêle momento. A criada velha e a ama do menino, que estavam presentes, encontraram no duque grandes oferecimentos e promessas. Em todos, enfim, renovou-se a alegria e a satisfação com o feliz desenlace dêstes acontecimentos e, para que a ventura geral fôsse completa, faltava apenas a presença de Lourenço, Dom João e Dom Antônio. Chegaram êles dali a três dias, pressurosos e desejosos de saber se o duque tivera alguma notícia de Cornélia, pois Fábio, que fôra chamá-los, nada lhes pudera dizer, porque nada sabia. O duque veio recebê-los em uma sala contígua àquela em que se encontrava Cornélia e não deu mostras do mais leve contentamento, o que entristeceu os recém-chegados; mandou-os entrar e, sentando-se também, dirigiu-se a Lourenço nestes têrmos: - Bem sabeis, Senhor Lourenço Bentibolli, que jamais enganei vossa irmã, do que o céu e minha consciência são testemunhas. Sabeis igualmente com que empenho a procurei e o desejo que tinha de encontrá-la para me casar com ela conforme lhe prometera. Porém, ela não aparece e minha palavra não pode ser eterna. Sou jovem e tão inexperiente das coisas do mundo que não posso impedir de me deixar levar pelos prazeres que se me oferecem a cada passo. A mesma afeição que me levou a prometer casamento a Cornélia obriga-me a fazer igual promessa a uma camponesa desta aldeia a quem agora deixava enganada por terme rendido aos merecimentos de Cornélia, embora não atendesse ao que a consciência me pedia, o que não era pequena prova de amor. Mas, visto que ninguém se casa com uma mulher desaparecida, nem é razoável que um homem procure a mulher que o deixa, pergunto-vos agora, Senhor Lourenço, que satisfação posso eu dar-vos da afronta que não vos fiz, pois nunca tive intenção de fazê-la? Quero, além disso, pedir-vos licença para cumprir a minha primeira palavra e casar-me com a camponesa que já está dentro desta casa. Enquanto o duque falava, Lourenço não conseguia permanecer quieto na cadeira; seu rosto mudava de expressão e tornava-se de mil côres, dando claros sinais de que a cólera ia aos poucos tomando conta de todos os seus sentidos. O mesmo acontecia a Dom João e a Dom Antônio, que decidiram não deixar o duque ir adiante, ainda que tivessem de lhe tirar a vida. O duque, lendo tais intenções em suas fisionomias, disse-lhes: - Tranqüilizai-vos, Senhor Lourenço. Antes de ouvir vossa resposta quero que vejais a formosura daquela que tenciono receber como legítima espôsa; essa formosura vos obrigará a dar-me a licença que vos peço, pois é tão grande que poderia desculpar erros ainda maiores. Dizendo isto, levantou-se e entrou na sala onde se encontrava Cornélia, ricamente vestida e enfeitada com tôdas as jóias que o menino tinha e muitas outras mais. Quando o duque voltou as costas, Dom João levantou-se e, pondo ambas as mãos nos braços da cadeira em que Lourenço estava sentado, disselhe ao ouvido: - Por Santiago de Galiza, Senhor Lourenço, pela fé que tenho e pela honra de fidalgo que será mais fácil eu me tornar mouro do que deixar o duque levar adiante sua intenção. Aqui, aqui em minhas mãos há de perder a vida ou há de cumprir a palavra que deu à Senhora Cornélia, vossa irmã, ou pelo menos há de nos dar tempo para procurá-la, e, até o dia em que tenhamos certeza de que ela morreu, o duque não se casará. - Sou dêste mesmo parecer - respondeu Lourenço. - E sei que meu amigo Dom Antônio também está de acôrdo - falou Dom João. Nisto Cornélia entrou pela sala adentro, entre o cura e o duque, que a trazia pela mão. Atrás dêles vinha Sulpícia, a aia de Cornélia que o duque mandara vir de Ferrara, assim como a criada dos espanhóis e a ama do menino. Quando Lourenço viu a irmã e a reconheceu bem, pois de início a impossibilidade de que tal coisa acontecesse impedia-o de aceitar a verdade, tropeçando em seus próprios pés, foi atirar-se aos pés do duque, que o levantou, conduzindo-o aos braços de sua irmã; esta abraçou-o, dando mostras de imensa alegria. Dom João e Dom Antônio disseram ao duque que jamais tinham visto brincadeira tão gostosa. O duque pegou o menino que Sulpícia trazia no colo e entregou-o a Lourenço, dizendo: - Recebei, meu irmão, o vosso sobrinho e meu filho e respondei se agora podereis dar licença para que eu me case com esta camponesa, que é a primeira mulher a quem prometi casamento. Seria um não mais terminar se contássemos o que Lourenço respondeu, o que perguntou Dom João, o que sentiu Dom Antônio, o regozijo do cura, a alegria de Sulpícia, o contentamento da criada conselheira, o júbilo da ama, a admiração de Fábio e, finalmente, a felicidade de todos. O cura casou-os ali mesmo e Dom João de Gamboa foi o padrinho. Todos concordaram em que o casamento fôsse mantido em segrêdo até ver em que parava a doença da velha duquesa, que estava muito mal. Enquanto isso Cornélia voltaria para Bolonha com seu irmão. E tudo terminou assim: a duquesa morreu e Cornélia entrou em Ferrara alegrando tôda gente com o esplendor de sua beleza. Os lutos transformaram-se em galas; as criadas ficaram ricas; Sulpícia casou-se com Fábio; Dom Antônio e Dom João ficaram contentíssimos por terem servido o duque em alguma coisa e êste ofereceu-lhes suas primas como espôsas, com dotes riquíssimos. Mas êles responderam que os fidalgos vasconços tinham por costume casarem-se em sua pátria e que, portanto, não por menosprêzo, pois tal coisa não era possível, mas sim para cumprir êsse louvável costume e a vontade de seus pais, que certamente já lhes tinham escolhido noivas, não aceitavam tão honroso oferecimento. O duque admitiu a desculpa e, honrosa e delicadamente, procurando ocasiões oportunas, mandou muitos presentes a Bolonha; alguns foram tão ricos e enviados em tão boa hora que, embora não os pudessem aceitar para não parecer que recebiam paga, a ocasião em que chegavam, a delicadeza com que eram mandados desarmavam todos os escrúpulos. Apreciaram particularmente os presentes que o duque lhes enviou quando partiram; para a Espanha e os que lhes deu quando foram a Ferrara, para se despedirem dêle; chegando lá encontraram Cornélia com duas filhas gêmeas e o duque mais enamorado do que nunca. A duquesa quis dar a cruz de diamantes a Dom João e o agnus a Dom¡ Antônio, que, não podendo desta vez recusar, aceitaram tão valiosas lembranças. Voltaram os dois rapazes para a Espanha e dirigiram-se para sua terra, onde se casaram com ricas, importantes e formosas fidalgas; mantiveram sempre correspondência com o duque, com a duquesa e com Lourenço Bentibolli, para enorme satisfação de todos. Rinconete e Cortadilho Na Estalagem do Molinilho, situada nos confins dos famosos campos da Alcúdia, como quem vai de Castela para Andaluzia, encontraram-se, por acaso, num dêsses dias quentes de verão, dois rapazes de uns catorze ou quinze anos, nem um nem outro passava dos dezessete, ambos atraentes, porém desalinhados, rotos e maltrapilhos. Capa não tinham; seus calções eram de cânhamo, as meias, a própria pele e, para completar êste conjunto, os sapatos; porque os de um eram alpargatas, muito usadas, os do outro, furados e sem solas, a lhe servirem mais como grilhões que propriamente de sapatos. Um usava barrete verde de caçador; o outro, um chapéu sem fita, enterrado na cabeça. Um trazia às costas, fechada ao peito, uma camisa côr de camurça encerada e prêsa a uma das mangas; o outro estava desabrigado e sem alforjes, ainda que no peito lhe aparecesse um grande volume que, como depois se verificou, era um cachecol, à moda dos valões, ensebado e tão desfiado que mais parecia um trapo. Nêle, envoltos e guardados, havia uns baralhos de forma oval, porque, de tanto serem usados se lhes gastaram as pontas, que foram aparadas para que êles durassem mais, donde aquêle seu formato. Estavam os dois queimados pelo sol, tinham as unhas caireladas e as mãos não muito limpas; um possuía uma espada de meio tamanho e o outro, uma peixeira de cabo amarelado. Saíram ambos para dormir a sesta no saguão ou alpendre que se costuma construir diante das estalagens e, sentando-se um defronte ao outro, disse o que parecia mais velho ao mais jovem: - De que terra é vosmecê, meu ilustre fidalgo, e para onde vai? - Minha terra, cavalheiro - respondeu o interrogado -, não sei qual é e também não sei para onde vou. - Não me parece que vosmecê tenha caído do céu - disse o mais velho -, e êste não é um lugar onde se possa morar; vosmecê forçosamente haverá de ir para diante. - Bem, assim é - respondeu o mais jovem -, mas disse a verdade, porque minha terra não é minha; nela tenho um pai que não me considera como filho e uma madrasta que me trata como enteado; vou por aí sem destino e só haveria de parar onde encontrasse alguém que me desse o necessário para passar esta vida miserável. - E tem vosmecê algum ofício? - perguntou o mais velho. E o mais jovem respondeu: - Sei apenas que corro como uma lebre, que salto como um gamo e que manejo a tesoura muito bem. - Tudo isso é muito bom, útil e proveitoso - disse o mais velho -, porque há de haver um sacristão que lhe dê a oferenda de todos os santos a fim de que na quinta-feira santa vosmecê lhe corte florões de papel para o altar. - Não é dêsse corte que eu falo - respondeu o mais jovem. - Meu pai, pela misericórdia dos céus, é alfaiate e calceiro e me ensinou a cortar antiparras, que, vosmecê bem sabe, são meias calças com protetores para os pés, comumente chamadas polainas, e corto-as tão bem que poderia ser considerado um mestre, não fôsse a sorte ingrata que me mantém desterrado. - Tudo isso e mais ainda acontece aos bons - respondeu o mais velho -, e sempre ouvi dizer que as melhores habilidades são as mais desperdiçadas, porém, vosmecê é ainda suficientemente jovem para modificar sua sorte. Mas, se não me engano e não me falha a vista, vosmecê tem outros dons ocultos e não os quer revelar. - Tenho, sim - respondeu o mais jovem -, mas não são de interêsse público, como vosmecê observou muito bem. Ao que replicou o mais velho: - Pois eu sei dizer que sou um dos moços mais discretos que se pode encontrar e, para obrigar vosmecê a abrir-se e a confiar em mim, quero que me conheça primeiro, pois imagino que a sorte não nos uniu aqui à toa e penso que havemos de ser, de hoje até o último dia de nossa vida, verdadeiros amigos. Eu, meu fidalgo, sou natural de Fuenfrida, lugar conhecido e famoso pelos ilustres passageiros que por ali passam continuamente; meu nome é Pedro del Rincón; meu pai é homem de bem, é ministro da Santa Cruzada; quero dizer que é buleiro ou buldero, como chama o povo. Acompanhei-o em seu trabalho por alguns dias e aprendi a profissão de tal forma que ninguém seria capaz de me superar na arte de apregoar bulas; porém, um dia, tendo-me entusiasmado mais pelo dinheiro que pelas próprias bulas, agarrei-me a um taleigo, dei comigo e com êle em Madri, onde, por causa das comodidades que ali comumente se oferecem, esvaziei em poucos dias o interior do taleigo e o deixei com mais dobras do que lenço de recém-casado. O encarregado do dinheiro foi atrás de mim; prenderam-me; não me favoreceram, ainda que tivessem visto minha pouca idade: contentaram-se em que me encostassem à aldrava e me açoitaram um bocado as costas e que fôsse desterrado da côrte por quatro anos. Tive paciência, encolhi os ombros, sofri a pena e os açoites e saí para cumprir meu destêrro, com tanta pressa, que não tive tempo de arranjar um animal. Das jóias que tinha, apanhei as que pude e as que me pareceram mais necessárias; dentre elas peguei êste baralho - nesse momento descobriu os naipes, que, como já se disse, estavam envoltos pelo cachecol -, com o qual tenho ganhado a vida pelas tabernas e estalagens que existem de Madri até cá, jogando o vinte-e-um, e, ainda que vosmecê o julgue vil e maltratado, produz êle efeitos maravilhosos para quem sabe estendê-lo e sabe onde o ás se encontra; e, se vosmecê conhece bem êste jôgo, verá quantas são as vantagens para quem tem a certeza de possuir um ás como primeira carta e que tanto lhe pode servir como um ponto ou como onze; com esta vantagem, apostando-se o vinte-e-um, o dinheiro não lhe sai do bôlso. Fora isto, aprendi com um cozinheiro de certo embaixador certas manhas na “quina” e no “parar”, a que chamam também de “andaboba”, e assim, como se pode considerar a vosmecê mestre no corte de suas antiparras, eu posso ser considerado mestre na ciência de velhacarias. Com isso estou certo de não morrer de fome, porque, chegando eu a uma colônia, há sempre quem queira passar o tempo jogando um pouco; e disto haveremos logo de fazer a experiência dos dois: armemos a rêde e vejamos se nela cai algum dêstes tolos arrieiros que por aqui existem; quero dizer com isto que jogaremos nós dois o vinte-e-um como se fôsse de verdade, e, se alguém quiser ser o terceiro, êle será o primeiro a deixar a grana. - Está muito bem - disse o outro -, e tenho em grande consideração a mercê com que vosmecê me distinguiu, prestando-me contas de sua vida, obrigandome a não encobrir a minha, que, narrada o mais brevemente possível, é a seguinte: nasci em Pedroso, entre Salamanca e Medina do Campo; meu pai é alfaiate; ensinou-me sua profissão e o manejo das tesouras; com minha habilidade passei a cortar bôlsas. Aborreceu-me a vida acanhada da aldeia e o desamoroso trato de minha madrasta; deixei meu povo, vim a Toledo para exercer meu ofício e nêle consegui maravilhas, porque não há relicário enfeitado nem algibeira tão escondida que meus dedos não visitem ou que minhas tesouras não cortem, ainda que a estejam guardando com olhos de Argos. Em quatro meses que estive naquela cidade nunca fui apanhado entre portas, nem sobressaltado nem corrido por policial algum, nem acusado por qualquer delator; é bem verdade que há uns oito dias um espião dissimulado deu notícias de minha habilidade ao corregedor, que, entusiasmado com a minha perícia, quis ver-me; mas eu, por ser humilde, não quero tratar com pessoas tão importantes; procurei não me avistar com êle e, assim, saí da cidade com tanta pressa que não tive tempo de me munir de montaria, nem de dinheiro, nem de carruagem, nem ao menos de uma carrêta. - Esqueçamos isso - disse Rincón -, e, já que nos conhecemos, não há razão para grandezas nem altivez; confessemos francamente que não tínhamos nem dinheiro nem sapatos. - Está bem - respondeu Diego Cortado, pois assim disse chamar-se o mais jovem -, e uma vez que nossa amizade, como vosmecê mesmo disse, Seu Rincón; há de ser eterna, vamos começá-la com santas e louváveis cerimônias. Levantando-se, Diego Cortado abraçou Rincón; Rincón o abraçou, terna e fortemente, e ambos puseram-se logo a jogar o vinte-e-um com as referidas cartas, limpos do pó e da palha, mas não da graxa e da malícia, e, com poucas jogadas, Cortado tirava tão bem o ás quanto Rincón, seu mestre. Nisto, um arrieiro chegou ao alpendre para refrescar-se e pediu para ser o terceiro no Ago. Receberam-no amigàvelmente e em menos de meia hora ganharam-lhe 12 reais e 22 maravedis, e foi o mesmo que lhe dar doze golpes e 22.000 desgostos. Acreditando o arrieiro que, por serem êles jovens, não se defenderiam, quis tirar-lhes o dinheiro, mas êles, passando um a mão na pequena espada e outro na faca de cabo amarelado, deram-lhe tanto o que fazer que, se os seus companheiros não acudissem, sem dúvida alguma teria passado mal. Neste momento, passou casualmente pelo caminho um bando de viajantes a cavalo, que iam fazer a sesta na taberna do Alcalde, que ficava meia légua mais adiante; êstes, vendo a briga do arrieiro com os rapazes, apaziguaram-nos, dizendo aos últimos que, se por acaso fôssem a Sevilha, poderiam ir com êles. - Vamos para lá, sim - disse Rincón -, e serviremos aos senhores em tudo quanto nos ordenarem. Sem perda de tempo saltaram os dois à frente das mulas e foram-se com êles, deixando o arrieiro agravado e enfurecido e a estalajadeira admirada com a astúcia dos mandriões, pois estivera ouvindo a conversa sem que êles isto percebessem; quando disse ao arrieiro que os tinha ouvido dizer serem falsos os naipes que traziam, pôs-se êle a arrancar as barbas e queria ir à taberna atrás dêles para cobrar o que era seu, porque dizia ser afronta muito grande e não ter cabimento dois rapazes enganarem um homenzarrão tão grande quanto êle. Seus companheiros aconselharam-no que não fôsse para não tornar pública sua falta de habilidade e parvoíce. Mostraram-lhe, enfim, tais razões, que, se não o consolaram, pelo menos o obrigaram a ficar. Enquanto isso, Cortado e Rincón puseram-se a servir os viajantes com tanta solicitude, que pelo resto do caminho êles os levaram à garupa e, ainda que se lhes oferecessem algumas ocasiões de tocar as valises de seus quase amos, não quiseram, para não perder a tão boa oportunidade de ir a Sevilha, onde tanto desejavam estar. Contudo, à entrada da cidade, o que se verificou à hora das aves-marias, e pela porta de Adriana, por causa do registro e da taxa que se paga, Cortado não pôde deixar de cortar a bôlsa de couro que um francês trazia prêsa ao flanco do animal, e assim, com sua faca, fêz-lhe um talho tão comprido e profundo que deixava à mostra as entranhas, e ràpidamente tirou dali duas boas camisas, um relógio de sol e um livrinho de notas, coisas de que não gostaram muito, pensando que se o francês levava aquela maleta às costas não haveria de tê-la ocupado com tão pouco pêso como era o daquelas “jóias”, e quiseram voltar para dar-lhe outro golpe; não o fizeram, entretanto, ao imaginar que já teriam notado a falta dela e pôsto a salvo o que ficara. Tinham-se despedido antes de assaltar aquêles que até então os haviam sustentado; no outro dia venderam as camisas em uma barraca que existe fora da porta do arsenal, obtendo com a venda 20 reais. Feito isto, foram ver a cidade e admiraram-se com a grandeza e a suntuosidade de sua maior igreja, com a grande afluência do pessoal do rio, porque era tempo do carregamento da frota, e com a presença de seis galeras, cuja vista os fêz suspirar e recear também o dia em que suas culpas os haveriam de fazer morar nelas por tôda a vida. Viram os inúmeros rapazes da estiva, que ali andavam, perguntaram a um dêles que espécie de ofício era aquêle, se era muito trabalhoso e se era lucrativo. Um rapaz asturiano, a quem, aliás, fizeram a pergunta, respondeu que o serviço era folgado, que não se pagava impôsto e que em certos dias saía ganhando 5 ou 6 reais de lucro, podendo comer, beber e repousar como um rei, sem ter de dar satisfação a ninguém e certo de comer à hora que bem entendesse, pois em qualquer bodega da cidade, a qualquer hora, podia encontrar alimento. Os dois amigos não acharam má a informação do jovem nem desgostaram da profissão, por parecer-lhes que vinha de encontro às suas intenções de agirem livremente e também pela comodidade que oferecia de poder entrar em tôdas as casas; imediatamente resolveram comprar os utensílios necessários e, tendo perguntado ao asturiano o que precisavam comprar, souberam que precisavam de dois sacos pequenos, limpos ou novos, e três cêstos de palha para cada um, dois grandes e um pequeno, nos quais se distribuíam a carne, o pescado e a fruta, deixando o saco para o pão; o rapaz levou-os onde se vendiam tais utensílios; êles, do dinheiro tirado ao francês, compraram tudo e, dentro de duas horas, enquanto provavam os cestos e ajustavam os sacos às costas, eram empossados na nova profissão. Seu chefe indicou-lhes os lugares a que deviam atender: pelas manhãs ao açougue e à Praça de São Salvador; nos dias de pescado, à peixaria e à Costanilha; tôdas as tardes, ao rio; nas quintas-feiras, à feira. Aprenderam de cor a lição e no outro dia, bem cedinho, plantaram-se na Praça de São Salvador; nem bem chegaram foram rodeados por outros rapazes da mesma profissão, que, pelo brilho dos sacos e dos cêstos, viram logo serem êles novos na praça; fizeram-lhes mil perguntas, às quais respondiam com discrição e mesuras. Nisto chegaram um estudante, um soldado e uns encarregados da limpeza dos cêstos dos dois novatos; o que parecia estudante chamou Cortado e o soldado chamou Rincón. - Que Deus seja louvado - disseram ambos. - Para que eu comece bem na profissão - disse Rincón - é necessário que vosmecê estréie, meu senhor. Ao que o soldado respondeu: - A estréia não será má porque estou de sorte, porque estou enamorado e porque tenho de banquetear umas amigas de minha senhora. - Pois sirva-se à vontade, que eu tenho ânimo e fôrças para levar esta praça inteira e, se fôr necessário ajudá-lo a cozinhar, eu o farei de bom grado. Alegrou-se o soldado com a boa vontade do rapaz e disse-lhe que se êle quisesse poderia tirá-lo daquele serviço horrível; Rincón respondeu que era aquêle seu primeiro dia na profissão e não queria deixá-la assim tão depressa, até ver, pelo menos, o que teria ela de bom ou de mau e que, quando se aborrecesse, dava-lhe sua palavra de que preferia servi-lo a ter de servir um cônego. O soldado riu-se, pagou-o muito bem, mostrou-lhe a casa da namorada para que daí em diante soubesse onde ela ficava e para que êle não precisasse acompanhá-lo quando o enviasse de outra vez. Rincón prometeu-lhe fidelidade e bom tratamento; o soldado lhe deu 3 quartos (Quarto: Antiga moeda espanhola de cobre que valia 4 maravedis de tosão, ou seja, três centésimos de peseta.) e êle, ràpidamente, voltou à praça para não perder outras oportunidades, porque o asturiano lhe recomendara mais êste cuidado, dizendo-lhes ainda que, quando levassem peixe miúdo, isto é, bogas, sardinhas ou linguado, podiam tomar alguns e deixá-los como amostra naquele dia, mas que o fizessem com tôda a sagacidade e atenção, a fim de não se perder o crédito, que era o que mais importava neste trabalho. Por mais depressa que Rincón voltasse, já encontrou Cortado a postos. Cortado chegou-se a Rincón e perguntou-lhe como se tinha saído; Rincón abriu a mão e mostrou-lhe as três moedas. Cortado pôs a sua no peito e tirou uma bolsinha que demonstrava ter sido de âmbar em tempos atrás e que estava um tanto estufada. Disse êle: - Pagou-me o estudante com esta bôlsa e mais 2 quartos; pega-a, Rincón. Mal havia dado secretamente a bôlsa, quando o estudante voltou, transpirando e profundamente perturbado. Avistando Cortado, perguntou-lhe se por acaso não teria êle visto uma bôlsa pequena, côr de âmbar, com 15 escudos de ouro, 3 reais e muitos maravedis, que êle havia perdido, perguntando-lhe ainda se êle não a teria tomado, enquanto êle fazia as compras. Cortado, com singular dissimulação, respondeu-lhe sem perturbar-se: - Só sei dizer que esta bôlsa não deve estar perdida, se é que vosmecê a pôs em lugar seguro. - É isso, pobre de mim - respondeu o estudante -, não devo tê-la guardado bem, pois a roubaram. - É o que digo - falou Cortado -, mas para tudo há remédio, só para a morte que não, e a primeira coisa que vosmecê tem a fazer é ser paciente, pois nada há como um dia após o outro, e pode ser que, com o tempo, quem levou sua bôlsa venha a arrepender-se e a devolvê-la a vosmecê ainda mais recheada. - Isto seria o de menos - respondeu o estudante. Cortado prosseguiu: - Ainda mais que há o perigo de excomunhão e uma fiscalização severa, o que, aliás, é uma grande sorte e, para dizer a verdade, eu não queria ser o ladrão de tal bôlsa, porque se vosmecê pertence a alguma ordem sacra me parecia ter cometido grave incesto ou sacrilégio. - E que sacrilégio! - disse o aflito estudante -, pois, embora não seja eu um sacerdote, sou sacristão de umas monjas; o dinheiro da bôlsa era do têrço de uma fundação religiosa, que um sacerdote meu amigo pediu para cobrar, e é um dinheiro sagrado, bendito. - Cada um sabe o que faz - disse Rincón a essas alturas. Eu não imitaria tal ganância; há de chegar um dia em que tudo será pôsto em pratos limpos e então veremos o poder da justiça e conheceremos o indivíduo que se atreveu a tomar, a furtar, a menoscabar o têrço da capelania. E quanto rende por ano? Vamos lá, diga-me, senhor sacristão. - Rende a puta que te pariu! Eu tenho lá obrigação de dizer o que rende? respondeu o sacristão, enfurecido. - Dizei-me, amigo, se sabeis algo a respeito, se não ficai com Deus, que eu quero dar parte à polícia. - Esta decisão não me parece de todo má - disse Cortado -, mas que vosmecê tome cuidado, para não se esquecer das características da bôlsa, nem da quantidade exata do dinheiro que há dentro dela, porque se vosmecê esquece de 1 ceitil, nunca mais a achará, escute o que lhe digo. - Não seja por isso - respondeu o sacristão -, que eu tenho tudo gravado na memória, mais do que o próprio tocar dos sinos; não me esquecerei de nada. Tirou da algibeira um lenço rendado para limpar o suor que lhe escorria do rosto, em bicas; Cortado, logo que viu o lenço, achou que deveria pertencerlhe; o sacristão partiu, Cortado correu atrás dêle e o alcançou ali nas Gradas, chamou-o a um canto e começou-lhe a dizer tantos disparates e mentiras acêrca do roubo e do achado de sua bôlsa, dando-lhe grandes esperanças sem jamais concluir nada, que o pobre sacristão o escutava embevecido e, como não entendesse muito bem, fazia Cortado repetir-lhe os argumentos por duas ou três vêzes. Cortado observava-o atentamente e não tirava os olhos de seus olhos; o sacristão olhava-o da mesma maneira, prêso às suas palavras. Tal embevecimento permitiu a Cortado concluir sua obra; tirou-lhe sorrateiramente o lenço da algibeira e, despedindo-se dêle, disse-lhe que, à tarde, procurasse vêlo naquele mesmo lugar, pois desconfiava de que um rapaz de sua profissão, de seu tamanho e que era meio ladrãozinho lhe tivesse roubado a bôlsa, comprometendo-se êle a descobrir a verdade, dentro de poucos ou de muitos dias. O sacristão consolou-se um pouco e despediu-se de Cortado; êste voltou para onde estava Rincón, que tudo observara a distância; mais abaixo havia outro rapaz, que presenciou o fato e, enquanto Cortado dava o lenço a Rincón, aproximou-se dêles e disse-lhes: - Digam-me, caros senhores, vosmecês são de boa paz ou não? - Não entendemos, caro senhor - respondeu Rincón. - O que não entenderam, seus múrcios? - perguntou o outro. - Não somos de Tebas nem de Múrcia - disse Cortado. Se quer alguma coisa, diga logo, se não, vá com Deus. - Não entende? - perguntou o rapaz. - Pois eu me farei entender e lhes darei, para beber, uma colher de chá; quero dizer, senhores, se vosmecês, por acaso, não são ladrões. Mas nem sei por que lhes pergunto isso, pois já sei que o são. E digam-me: por que não foram à alfândega do Senhor Monipódio? - Paga-se, nesta terra, impôsto de ladrão, caro senhor? perguntou Rincón. - Se não se paga - respondeu o rapaz -, pelo menos registra-se com o Senhor Monipódio, que é pai, mestre e amparo dos ladrões e, portanto, aconselho-os a virem comigo para prestar-lhe obediência; não se atrevam a furtar sem o seu consentimento, pois lhes custará muito caro. - Eu pensei - disse Cortado - que furtar era profissão liberal, isenta de contribuições e de impostos, e, caso fôsse paga, haveria de ter como fiadores apenas a garganta e as costas, mas já que é assim, e que cada terra tem seu uso, vamos respeitar o uso desta, que, por ser a mais importante do mundo, terá o mais correto de todos os usos; portanto, pode vosmecê guiar-nos até êste cavalheiro a quem se refere, pois já sei que, de acôrdo com o que ouvi dizer, êle é homem de classe, generoso e, além do mais, mestre no ofício. - E como é de classe, hábil e competente - respondeu o rapaz -, e tanto que em quatro anos de serviço como nosso chefe e pai apenas quatro padeceram no finibusterrae (Finibusterrae: Fôrca.), cêrca de trinta foram açoitados e 62 foram para as galeras. - Na verdade, senhor - disse Rincón -, entendemos muito bem o significado destas palavras. - Vamos andando que pelo caminho irei enumerando outras que os senhores devem conhecer como conhecem a palma da mão - replicou o jovem. E assim foi-lhes dizendo e explicando outras palavras pertencentes àquilo que êles costumam chamar de gíria ou calão, ao longo de sua conversa, que não foi curta, pois o caminho era longo. Rincón, por sua vez, dirigiu-se ao guia: - É vosmecê, porventura, um ladrão? - Sim - respondeu êle -, para servir a Deus e às pessoas de bem, embora eu não seja dos melhores, porque ainda estou em início de carreira. Ao que Cortado retrucou: - Para mim é novidade que haja no mundo ladrões para servir a Deus e às pessoas de bem. - Caro senhor, não entendo muito bem de teologia; só sei que cada um, em sua profissão, pode servir a Deus, ainda mais com as instruções dadas por Monipódio a todos os seus afilhados, - Essas instruções, sem dúvida alguma, hão de ser boas e santas, pois fazem os ladrões servirem a Deus - disse Rincón. - São tão santas e boas - replicou o môço - que talvez não haja nada a melhorar em nossa arte. Recebemos ordem de tirar, do que roubamos, alguma coisa ou esmola para o azeite da lâmpada de uma imagem milagrosa que está na cidade, e temos realmente recebido grandes graças por esta obra; dias atrás, deram três ansias a um cuatrero, que havia passado os cinco em dois roznos, que, mesmo estando fraco e acabado, agüentou sem reclamar, como se nada fôsse; e isto, nós, de nosso ofício, atribuímos à sua devoção, porque suas fôrças não eram suficientes para sofrer o “primeiro trabalho” do verdugo. E porque sei que me hão de perguntar o significado de algumas de minhas palavras, quero explicá-las, para evitar complicações. Saibam vosmecês que cuatrero é o ladrão de cavalos, ansia é a tortura, roznos são os asnos, com o perdão da palavra, “primeiro trabalho” são as primeiras lambadas ministradas pelo verdugo. E temos mais: rezamos nosso têrço em certos dias da semana e muitos de nós não furtam às sextas-feiras, nem conversam com mulheres que se chamam Maria aos sábados. - São verdadeiras preciosidades - disse Cortado -, mas diga-me vosmecê: costumam-se restituir as coisas roubadas ou fazer outra penitência além da que vosmecê já citou? - Isso de restituir é caso encerrado - respondeu o jovem. - A restituição é impossível uma vez que a prêsa é dividida em muitas partes e cada um dos ministros, cada um dos contra-mestres leva seu quinhão; o ladrão nada pode restituir, ainda mais porque não há quem nos mande fazer tal coisa, motivo pelo qual jamais confessamos; em caso de excomunhão, não tomamos conhecimento, porque nunca vamos à igreja, no tempo em que as excomunhões são tornadas públicas; só vamos lá nos dias de festa, pela cobiça que nos desperta a afluência de muita gente. - E com tudo isto que fazem, êstes senhores dizem que sua vida é santa e boa? - perguntou Cortado. - Pois então, o que há de mal nisso? - replicou o jovem. - Não é pior ser herege ou renegado ou matar pai e mãe ou ser solomico? - Sodomita quer vosmecê dizer - atalhou Rincón. - Pois é - disse o jovem. - Tudo é mau - replicou Cortado. - Mas, se a sorte quer que façamos parte desta confraria, que vosmecê aperte o passo, pois morro de vontade de me avistar com o Senhor Monipódio, a quem se atribuem virtudes. - Seu desejo será logo satisfeito, pois daqui já se avista a casa dêle. Vosmecês fiquem na porta que eu entrarei para ver se êle está desocupado, porque a estas horas êle costuma dar audiência. - Chegamos em boa hora - disse Rincón. O môço, adiantando-se um pouco, entrou numa casa feia e de aparência suspeita; e os dois ficaram junto à porta esperando. Pouco depois, o rapaz voltou e os chamou; êles entraram e seu guia mandou-os esperar em um pequeno pátio ladrilhado, que, de tão perfeito e limpo, parecia exalar o mais fino carmim. De um lado havia um banco de 3 pés e do outro um cântaro desbeiçado, com um pequeno jarro em cima, tão desbeiçado quanto o cântaro; em outro lugar, havia uma esteira e no meio um vaso de manjericão, que, em Sevilha, é conhecido por macela. Os rapazes olharam atentamente tais preciosidades, esperando a descida do Senhor Monipódio, mas, como êle tardasse, Rincón atreveu-se a entrar em uma sala baixa, uma das duas pequenas salas que existiam no pátio, e viu nela duas espadas, dois escudos de cortiça, dependurados em quatro pregos, uma arca mais ou menos grande, sem tampa ou coisa alguma que a cobrisse, e três outras esteiras espalhadas pelo chão. Na parede da frente, havia uma imagem de Nossa Senhora, muito malfeita; mais abaixo, uma alcôfa de palma e, embutida na parede, uma bacia branca, pela qual deduziu Rincón que a alcôfa servia como depósito para esmolas e a bacia para pôr água benta, e de fato assim o era. Nisto, entraram na casa dois jovens de uns vinte anos, vestidos como estudantes; logo depois, entraram dois rapazes da estiva e um cego; sem dizer uma palavra, começaram êles a passear pelo pátio. Não demorou muito, entraram dois velhos de baeta e de óculos, que os tornavam sérios e dignos de serem respeitados, com dois rosários de contas barulhentas nas mãos. Atrás dêles entrou uma velha, cheia de saias, que, sem dizer nada, foi à sala e, tendo tomado água benta, pôs-se, com grande devoção, de joelhos ante a imagem e, ao fim de um bom espaço de tempo, depois de beijar três vêzes o chão, de levantar os braços e os olhos para o céu outras tantas vêzes, levantou-se e deixou sua esmola na alcôfa e foi juntar-se aos demais no pátio. Em suma, em pouco tempo, juntaram-se no pátio umas catorze pessoas com diferentes trajes e de diferentes profissões. Chegaram também, entre os últimos, dois jovens fortes e estranhos, de bigodes longos, chapéus de aba larga, colarinhos à moda dos valões; meias de côr, ligas mal-ajambradas, espadas de diferentes marcas, dois pistoletes em lugar de adagas e com escudos dependurados na cintura; logo que entraram, olharam Rincón e Cortado, de esguelha, à maneira de quem estranha e não conhece. Chegando-se a êles, perguntaram-lhes se pertenciam à confraria. Rincón respondeu que sim e que era um criado para os servir. Nisto desceu o Senhor Monipódio, tão esperado e benquisto de tôda aquela virtuosa confraria. Parecia ser um homem de 45 a 46 anos, alto, de rosto moreno, de sobrancelhas cerradas, de barba negra e espêssa; os olhos eram fundos. Estava em mangas de camisa, que, um pouco aberta na frente, deixava à mostra uma verdadeira floresta, tão grande era a quantidade de pêlos que lhe cobriam o peito. Às costas, uma capa de baeta que quase chegava aos pés, nos quais havia uns sapatos que mais pareciam chinelas; cobriam-lhe as pernas uns calções de cânhamo, largos e que iam até o tornozelo; seu chapéu era como são os chapéus de todos os malandros: bojudo e de aba caída; usava um talim a tiracolo, de onde pendia uma espada curta e larga, como se fôsse uma serrinha; as mãos eram pequenas, peludas, e os dedos, gordos; as unhas, finas e arrebitadas; as pernas não apareciam, mas os pés eram descomunais, por serem largos e possuírem joanetes. Para dizer a verdade, representava êle o mais rústico e disforme bárbaro do mundo. A seu lado desceu também o guia de Rincón e Cortado, que, tomando-os pelas mãos, apresentou-os a Monipódio, dizendolhe: - Estes são os dois jovens dos quais lhe falei, Seu Monipódio; se vosmecê os examinar, verá como são dignos de entrar na nossa congregação. - Eu o farei com prazer - respondeu Monipódio. Esquecia-me de dizer que, assim que Monipódio desceu, todos os que esperavam fizeram-lhe profunda e demorada reverência, com exceção dos dois bravos jovens, que, com um sorriso amarelo, como se diz, deixaram os chapéus e voltaram logo a seu passeio em um dos lados do pátio; pelo outro lado passeava Monipódio, que perguntou aos novatos qual era sua especialidade, de que lugar vinham e quem eram seus pais. Ao que Rincón respondeu: - Sôbre nossa especialidade, nada tenho a dizer, pois viemos perante vosmecê; quanto à nossa terra, não me parece importante falar dela; de nossos pais, muito menos, pois não se trata de dar informações para receber nenhum cargo honroso. Respondeu Monipódio: - Você está certo, meu filho; faz muito bem em não prestar estas informações, porque se a sorte não correr como deve não fica bem aparecer assentado debaixo da assinatura do escrivão, nem do livro de registros: “Fulano, filho de Fulano, vindo de tal lugar, foi enforcado dia tal, ou foi açoitado”, ou qualquer outra coisa semelhante, que soe mal aos bons ouvidos, e assim, torno a dizer que é muito proveitoso não falar sôbre a pátria, encobrir o nome dos pais e mudar os próprios nomes, ainda que aqui entre nós não há de haver nada encoberto e somente agora quero saber os nomes dos dois. Rincón disse o seu e Cortado também. - Pois daqui por diante - falou Monopódio -, quero e é de minha vontade que você, Rincón, se chame Rinconete e você Cortado, Cortadilho, nomes feitos sob medida para suas respectivas idades e para nossos estatutos, de acôrdo com os quais é necessário saber o nome dos pais de nossos confrades, porque é nosso costume mandar rezar, todo ano, umas missas pelas almas de nossos defuntos e benfeitores, tirando o estupendo para a esmola de quem as diz de alguma parte do que se afana; diz-se que tais missas, rezadas e pagas, beneficiam tais almas por meio de um naufrágio (Naufrágio: Sufrágio.) e ficam sob as ordens de nossos benfeitores o procurador que nos defende, o beleguim que nos avisa, o verdugo que de nós tem pena, aquêle que, quando um de vós vai fugindo pela rua e outros o vão seguindo e gritando: “Ao ladrão, ao ladrão! Pega, pega!”, se põe no meio, se mistura com a multidão que o segue dizendo: “Deixem-no à própria sorte, que já é bastante desventurado! Deixem-no para lá, que seu pecado o castigue!” São também nossas benfeitoras aquelas que, com seu suor, nos socorrem tanto na guerra como na paz, e também o são nossos pais e mães, que nos põem no mundo, e o escrivão, que, se está de boa veia, não há delito que êle considere culpa, nem culpa à qual êle atribua grande pena; por todos êstes, nossa irmandade festeja, cada ano, seu adversário (Adversário: Aniversário.) com a maior popa (Popa: Pompa.) e soledade (Soledade: Solenidade.) que pode. - Sem dúvida - disse Rinconete, já conformado com o apelido - é uma obra digna do altíssimo e profundíssimo engenho que temos ouvido dizer que vosmecê, Senhor Monipódio, possui. Mas nossos pais ainda gozam de boa saúde e, se os encontrarmos ainda com vida, comunicaremos logo a felicíssima e medianeira confraria, para que faça por suas almas um naufrágio ou tormenta, ou êsse adversário ao qual vosmecê se refere, com a solenidade e pompa habituais, se é que não é melhor com popa e soledade, como também apontou vosmecê, em sua exposição - Assim será ou não sobrará nada de mim - replicou Monipódio. E, chamando o guia, disse-lhe: - Ganchuelo, vem cá. Estão todos a postos? - Sim - disse o guia, que se chamava Ganchuelo. – Os sentinelas estão de ôlho e não há perigo de ninguém nos colher desprevenidos. - Mas, voltando ao nosso negócio - disse Monipódio - queria saber, filhos, o que vocês sabem para distribuir-lhes ofício e atividades de acôrdo com as respectivas inclinações e habilidades. - Eu - respondeu Rinconete - sei passar muito bem conversa nos outros, modéstia à parte, sei explorar a vaidade, faço qualquer jôgo muito bem, ninguém me vence na trapaça, na astúcia e nas fanfarronadas; enfrento o perigo como se nada fôsse, sei aproveitar das oportunidades melhor do que ninguém e sou capaz de dar um golpe no sujeito mais esperto. - É um bom comêço - disse Monipódio -, mas tôdas estas coisas são do tempo da minha avó; são tão usadas que qualquer principiante as conhece e servem para os trouxas que se deixam matar, sem essas nem aquelas, mas vamos dar tempo ao tempo e então veremos; espero que, com meia dúzia de aulas e com a ajuda de Deus, o senhor se faça um oficial famoso; quem sabe, um mestre. - E tudo isso para servir a vosmecê e aos caros colegas - respondeu Rinconete. - E você, Cortadilho, o que sabe? - perguntou Monipódio. - Eu - respondeu Cortadilho - conheço aquela trapassa do põe dois e tira cinco e sei esvaziar uma algibeira com muita precisão e rapidez. - Que mais sabe vosmecê? - perguntou Monipódio. - Nada mais, para minha infelicidade - respondeu Cortadilho. - Não se aflija, meu filho - replicou Monipódio -, porque você bateu em porta certa; haverá de sair daqui bem escolado para aquilo que tiver maior vocação. E a coragem, filhos, como vai? - E como haveria de ir? - falou Rinconete. - Muito bem, Temos coragem para tentar qualquer emprêsa que diga respeito à nossa arte e atividade. - Está bem - disse Monipódio -, mas eu queria que vocês tivessem coragem para agüentar, se fôsse preciso, meia dúzia de lambadas, sem abrir a bôca e sem dizer um ai. - Já sabemos - disse Cortadilho -, e temos coragem para tudo, e não somos tão ignorantes a ponto de não saber que a língua é o chicote do corpo e grandes graças concede o céu aos homens ousados, deixando que a língua decida sôbre sua vida e morte. Como se um não tivesse mais letras que um sim! - Basta! Chega! Não fale mais nada - disse Monipódio a essas alturas. Estas últimas palavras já me convenceram e já me obrigam, persuadem-me e me forçam a aceitá-los, desde logo, como confrades graduados e elevá-los ao noviciado. - Eu também sou dêste parecer - disse um daqueles bravos. Todos os presentes que tinham escutado a conversa aprovaram-nos a uma só voz e pediram a Monipódio que permitisse aos recém-chegados gozarem das imunidades da confraria, porque sua presença agradável e suas declarações bem que faziam jus a isso. Respondeu Monipódio que, para agradar a todos, consentia, convidando, porém, os rapazes a estimá-las bastante porque consistiam em não pagar a metade do primeiro furto que fizessem; não fazer serviços pequenos durante o ano todo, ou seja, não levar arrecadação de nenhum irmão superior ao cárcere, nem à casa, da parte de seus contribuintes, beber vinho puro, fazer banquetes quando, como e onde quisessem, sem pedir licença ao chefe; ter direito, desde logo, como qualquer um dêles, a uma parte do que os irmãos superiores embolsassem e outras coisas mais que êles consideravam como especial deferência e os outros, com palavras corteses, agradeceram muito. Neste momento, entrou, correndo e ofegante, um rapaz que disse: - O aguazil dos vagabundos está a caminho desta casa, mas vem sem o bando. - Que ninguém se afobe - disse Monipódio -, pois é amigo e jamais veio para nos prejudicar. Fiquem sossegados que eu irei falar com êle. Todos os que já estavam um tanto sobressaltados acalmaram-se; Monipódio dirigiu-se para a porta, onde encontrou o aguazil, com o qual falou um pouco, entrando logo a seguir para perguntar: - A quem coube hoje a Praça de São Salvador? - A mim - disse o rapaz que servira de guia a Rinconete e Cortadilho. - E por que - perguntou Monipódio - não me mostrou a bolsinha de âmbar que você surrupiou lá esta manhã, com 15 escudos de ouro, 2 duplos reais e não sei lá quantos quartos? - É verdade - disse o guia - que esta bôlsa desapareceu hoje, mas não fui eu quem a roubou, nem posso imaginar quem a tenha roubado. - Não me venha com mentiras - disse Monipódio. - Á bôlsa tem de aparecer, pois quem a vem pedir é o nosso amigo aguazil, que nos faz mil e tantos favores por ano! O rapaz tornou a jurar que nada sabia a respeito. Monipódio começou a ficar com raiva e seus olhos pareciam lançar chispas de fogo. - Que ninguém se atreva a transgredir a mínima coisa de nossa ordem, pois pagará com a vida. Que trate logo de mostrar a bôlsa e, se por acaso está se escondendo para não pagar os impostos, eu lhe darei, inteirinha, a parte que lhe toca, e o que falta tirarei de meu bôlso, porque de qualquer maneira o aguazil tem de sair contente daqui. O rapaz tornou a protestar sua inocência e a se maldizer, dizendo que não havia roubado nem visto a tal bôlsa, mas o que conseguiu foi apenas aumentar a cólera de Monipódio e permitir que a confraria se alvoroçasse, ao ver que se rompiam seus estatutos e leis. Rinconete, porém, vendo tanta altercação e alvoroço, achou que seria bom sossegá-los e agradar ao chefe, que se arrebentava de raiva; consultando seu amigo Cortadilho, entrou em acôrdo com êle, e tirou a bôlsa roubada ao sacristão, dizendo: - Vamos encerrar a questão, meus senhores, aqui está a bôlsa, sem faltar nada do que o aguazil declarou; hoje, meu amigo Cortadilho apanhou-a, juntamente com êste lenço, tirado ao mesmo dono. Cortadilho tirou o lenço e o mostrou ràpidamente. Monipódio, vendo-o, disse: - Cortadilho, o bom - pois com êsse título e apelido há de ficar, daqui em diante -, fique com o lenço e aceite os meus cumprimentos pelo serviço prestado; a bôlsa o aguazil vai levar, pois é de um sacristão, seu parente, e convém pôr em prática o que diz o ditado: “Não é muito dar uma perna de galinha a quem te deu uma galinha inteira”. Mas perdoe o nosso amigo aguazil, pois não podemos e nem costumamos exigir nada dêle. Todos, de comum acôrdo, aprovaram a fidalguia dos dois novatos, a sentença e a opinião de seu chefe, que saiu para dar a bôlsa ao aguazil; Cortadilho ficou com o cognome de “Bom” tal como se fôsse Dom Alonso Pérez de Gusmá, o Bom, que atirou uma faca pelas muralhas de Tarifa, para degolar seu único filho. Monipódio voltou e com êle entraram duas môças, pintadas, de lábios pintados e de peito branco como alvaiade, cobertas com mantos de anascote, desembaraçadas e sem nenhuma cerimônia, sinal evidente de que eram mulheres de vida fácil; assim o julgaram Rinconete e Cortadilho e de fato não se enganaram; logo que entraram dirigiram-se, de braços abertos, uma em direção de Chiquiznaque e a outra na direção de Mão-de-Ferro, pois eram êstes os nomes dos dois valentes; um chamava-se Mão-de-Ferro porque uma de suas mãos era de ferro, que a outra fôra cortada por ordem da justiça. Êles as abraçaram com grande alegria e perguntaram-lhes se traziam algo com que pudessem molhar a goela. - Pois não havia de trazer, meu pilantra? - respondeu a que se chamava Gananciosa. - Não tardará a chegar Silbatilho, teu criado, com as cubas de vinho, cheias do que Deus bem quis. E era verdade, porque naquele mesmo instante entrou um rapaz com uma cuba de vinho, coberta com um pano. Todos alegraram-se com a chegada de Silbato e, então, Monipódio mandou tirar uma das esteiras que estavam no aposento e estendê-la no meio do pátio. Ordenou também que todos sentassem ao redor, porque, passada a raiva, tratar-se-ia de assuntos de interêsse geral. Nisto, a velha que tinha rezado ao pé da imagem disse: - Meu filho Monipódio, não tenho disposição para festas porque estou, há dois dias, com uma tontura que me deixa louca; ainda mais que, antes de ser meio-dia, tenho de ir cumprir minhas devoções e devo acender minhas velas a Nossa Senhora das Águas e ao Santo Crucifixo de Santo Agostinho, o que não deixaria eu de fazer mesmo que nevasse e armasse uma tempestade. Vim porque, à noite, Renegado e Cem Pés levaram à minha casa uma cuba de vinho bem maior do que esta, cheia de roupa branca, e juro por Deus e por minha alma que vinha com sua barrela e os pobrezinhos não tinham onde deixá-la; vinham suando por todos os poros e dava dó vê-los entrar, arquejantes e escorrendo tanta água pelo rosto que pareciam uns anjinhos. Disseram-me que iam ao encalço de um negociante de gado, que tinha pesado alguns carneiros no açougue, para ver se podiam passar a mão em uma burra, cheia de dinheiro, que êle levava. Não desembrulharam nem contaram a roupa, confiando na integridade de minha consciência e, assim, que Deus testemunhe minha boa intenção e nos livre a todos de cometer injustiças, pois eu não toquei na roupa, estando ela tal como chegou. - Acreditamos piamente, mamãe - falou Monipódio - que a cuba assim permaneça; pois à noitinha irei lá e verei tudo o que ela contém e darei a cada um o que lhe tocar, como é meu costume. - Será como ordenas, filho - disse a velha -, e, como está ficando tarde para mim, dá-me um traguinho, se é que tens para consolar meu estômago; que anda sempre fraco. - Mas é claro, mamãe - disse por sua vez Escalanta, companheira que com ela viera. E, descobrindo a cesta, deixou à mostra um odre com 30 litros de vinho e uma caneca que podia conter bem uns 2 li tros; Escalanta encheu-a e a pôs nas mãos da dedicadíssima velha, que, segurando-a com ambas as mãos e depois de assoprar um pouco a espuma, disse: - Puseste muito, minha filha, mas Deus me dará fôrças para beber tudo. E, levando-a à bôca, passou, de uma só vez, sem tomar fôlego, o vinho da caneca para o estômago. - É de Guadalcanal - disse, e ainda tem um não-sei-quê de gôsto de barro, o danado. Que Deus te abençoe, minha filha, pois me reconfortaste; eu só tenho mêdo de que me faça mal, pois ainda não comi. - Não há de fazer, mãe - falou Monipódio -, porque já tem mais de três anos. - Que a Virgem Maria te ouça - disse a velha. E acrescentou: - meninas, vocês, por acaso, não teriam aí algum dinheiro para eu comprar umas velinhas para oferecer ao santo de minha devoção? Porque a pressa e a vontade que tinha eu de trazer as novidades me fizeram esquecer a bôlsa em casa. - Tenho sim, Dona Pipota (êste era o nome da velha) - respondeu Gananciosa. - Tome. Aí tem duas moedas; peço-lhe que compre uma vela pra mim e ofereça a São Miguel; se der para comprar duas, ofereça a outra a São Brás, que são meus protetores. Gostaria que oferecesse a outra a Santa Luzia, de quem sou também devota, porque protege os olhos, mas não tenho trocado; outro dia pago a dívida a todos. - Fazes muito bem, filha, e olha, não sejas miserável, porque é muito mais importante a pessoa oferecer as velas antes de morrer do que esperar que os herdeiros e testamenteiros as ofereçam. - A senhora tem razão, mamãe - disse Escalanta. E enfiando a mão na bôlsa, deu-lhe outra moeda, encarregando-a de oferecer outras duas velinhas aos santos que ela achasse mais diligentes e agradecidos. E lá se foi a Pipota, não sem antes dizer: - Aproveitem agora, filhos, enquanto é tempo, que a velhice logo chega e então vocês hão de chorar, como eu, o tempo que perderam na mocidade; recomendem-no a Deus em suas orações, que eu vou fazer o mesmo por mim e por todos vocês, para que êle nos proteja e mantenha nossa perigosa profissão sem preocupações com a justiça. Depois que a velha partiu, sentaram-se todos em volta da esteira; Gananciosa estendeu o lençol, fazendo de toalha; a primeira coisa que tirou da cesta foi um grande maço de rabanetes, umas duas dúzias de laranja e limão, uma caçarola grande, cheia de bacalhau frito, a metade de um queijo de Flandres, uma panela de azeitonas famosas, um prato de camarões, um bom punhado de caranguejos, com apetitosas alcaparras refogadas com pimentão e três branquíssimas broas de Guandu. Havia umas catorze pessoas para comer e nenhuma delas deixou de tirar sua faca de cabo amarelado, com exceção de Rinconete, que tirou sua pequena espada. Os dois velhos de baeta e o guia tiveram de tomar vinho na caneca. Mal tinham começado a entrar nas laranjas, quando uns golpes dados na porta fizeram todos ficar sobressaltados. Monipódio pediu-lhes que se mantivessem calmos; entrando na sala baixa, pegando um escudo, passando a mão na espada, chegou à porta e perguntou com voz tonitroante e assombrosa: - Quem é? De fora responderam: - Sou eu, Senhor Monipódio, não é nada. Sou Tagarote, sentinela da manhã, e venho para dizer-lhe que Juliana, a Cariharta, vêm aí, tôda desgrenhada e chorosa; parece que lhe aconteceu algum desastre. Nisto chegou a criatura de quem falavam, soluçando; escutando-a, Monipódio abriu a porta : mandou Tagarote voltar ao seu pôsto e que, daí por diante, anunciasse a chegada de alguém com menos estrondo e ruído. Tagarote respondeu que assim o faria. Aí entrou Cariharta, môça da mesma espécie das outras e que exercia a mesma profissão. Vinha descabelada, com o rosto todo inchado, e assim que entrou no pátio caiu desmaiada. Gananciosa e Escalanta vieram em seu auxílio; desabotoando-lhe o peito, viram que ela estava cheia de manchas roxas e machucada. Jogaram-lhe água no rosto e ela voltou a si, dizendo em altas vozes: - Que a justiça de Deus e do rei caia sôbre aquêle ladrão sem vergonha, sôbre aquêle covarde gatuno, sôbre aquêle patife piolhento! E eu que o salvei mais vêzes da fôrca do que os pêlos que tem na cara! Pobre de mim! Vejam com quem perdi e gastei minha mocidade, a flor dos anos! Com um velhaco desalmado, delinqüente e incorrigível! - Acalma-te, Cariharta - falou Monipódio -, estou el aqui para te fazer justiça. Conta-nos o caso; farei tudo para que sejas vingada; dize-me se êle te faltou com o respeito; se assim foi e se queres que te vingue, é só falar. - Mas que respeito? - falou Juliana. - Ao inferno com o respeito! Era mais fácil um leão respeitar as ovelhas do que êle a mim. Depois do que aconteceu, poderia eu repartir ainda meu pão com êle e morar sob o mesmo teto? Prefiro ver devoradas pelos vermes estas carnes, que êle maltratou, como bem podeis ver. Levantando as saias acima do joelho, mostrou as pernas cheias de equimoses. - Foi assim que me deixou Repolido, aquêle ingrato, a mim, a quem deve mais que à mãe que o pariu. E por que pensam vocês que êle fêz isso? Teria eu dado algum motivo? Claro que não! O que fiz foi somente mandar-lhe apenas 24 reais, em lugar dos 30 que êle mandou o rufião Cabrilhas me pedir, pois êle estava perdendo no jôgo; peço aos céus que o trabalho e o suor que me custaram êsse dinheiro sirvam para descontar meus pecados. Em troca dêste favor e bom serviço, acreditando êle ter eu tirado alguma coisa que, lá na sua imaginação, pensou que eu pudesse ter, levou-me essa manhã ao campo, atrás da quinta do rei e ali, entre uns olivais, tirou-me a roupa e com uma cinta, sem dó nem piedade - maldito seja! -, bateu-me tanto que me deixou feito morta; estas marcas são boas testemunhas do que eu disse. Tornou a levantar a voz, e pedir justiça; de nôvo, Monipódio e todos os bravos que ali estavam tornaram a prometer justiça. Gananciosa pegou-lhe a mão para a consolar, dizendo-lhe que daria, de boa vontade, uma das melhores jóias que possuía para que seu amado lhe fizesse o mesmo. - E o digo por querer que saibas, querida Cariharta, se já não o sabes, que se castiga àquilo que se quer bem e quando êstes velhacos nos batem, açoitam e dão coices, é porque nos adoram; e cá entre nós, depois que Repolido te bateu e maltratou, não te fêz nenhuma carícia? - Como uma? - falou ela chorosa. - Fêz-me um milhão e daria um dedo para que eu fôsse com êle até sua casa; parece-me também que as lágrimas quase lhe saltaram dos olhos depois de me haver moído de pancada. - Eu não duvido - replicou Gananciosa -, e talvez chorasse mesmo de pena por ver o estado em que te deixou, porque êstes homens, em casos como êste, dizem não terem culpa quando lhes chega o arrependimento e hás de ver, minha irmã, como êle vem te buscar antes de sairmos daqui e como vem te pedir perdão pelo que fêz, sorrindo como um cordeiro. - Mas aqui por estas portas êste covarde não entra, sem antes fazer uma penitência pelo delito que cometeu. Por que se atreveu êle a pôr as mãos em Cariharta, pessoa que em honestidade e ganância pode competir com a própria Gananciosa que aqui está? Não. Eu não posso mais ter consideração por êle falou Monipódio. - Ai! - exclamou a estas alturas Juliana. - Não diga Vossa Mercê, Senhor Monipódio, mal daquele maldito, que, apesar de êle ser tão ruim, eu o quero com tôdas as fôrças de minha alma; as palavras ditas por Gananciosa, minha amiga, em favor dêle, fizeram-me voltar à razão e, para dizer a verdade, estou quase indo atrás dêle. - Isso não te aconselho - falou Gananciosa -, porque êle vai ficar convencido, vai fazer-se de rogado e zombar de ti até dizer chega. Acalma-te, irmã, que mais cedo do que pensas o verás chegar arrependidíssimo, mas, se não vier, nós lhe escreveremos uma carta com uma porção de desaforos. - Isso sim - disse Cariharta -, pois tenho mil coisas a dizer-lhe. - E eu serei o secretário, quando fôr preciso - disse Monipódio. - Não sou poeta, mas, quando um homem se decide, faz 2.000 versos com a maior facilidade e, se não saírem bons, tenho um barbeiro, meu amigo, que completará o que falta a qualquer hora; bom, mas agora vamos tratar de comer, que depois tudo se arranjará. Juliana foi tôda contente obedecer à ordem do chefe; assim, tornaram todos ao seu gaudeamus; num instante chegaram ao fundo da pipa e à bôrra do odre. Os velhos beberam nine fine; os jovens, abundantemente; as senhoras, à vontade. Os velhos pediram licença para ir embora; Monipódio a deu logo, encarregando-os de trazer com tôda a rapidez possível as notícias de tudo o que julgassem útil para a comunidade. Responderam êles que o faziam com o maior cuidado e partiram. Rinconete, que era curioso de natureza, pedindo perdão e licença, perguntou a Monipódio o que faziam na confraria duas pessoas tão encarnecidas, tão sérias e tão bem afeiçoadas. Respondeu Monipódio que tais pessoas, em sua gíria e modo de falar, se chamavam ahispones, e que seu serviço era andar de dia por tôda a cidade, ahispando a casa em que se podia dar o golpe à noite, e observavam também os que recolhiam dinheiro do comércio ou da Casa da Moeda, para ver aonde o levavam e onde o punham; feito isso, calculavam a grossura da parede de tal casa e indicavam o lugar mais conveniente para se fazer buracos, a fim de facilitar a entrada. Disse, em suma, que era gente de igual ou maior valor da comunidade e que, de tudo o que, por seu engenho, se furtava, recebiam a quinta parte, como acontece com Sua Majestade nos tesouros, e que, com tudo isso, eram homens dignos de fé, muito honrados, de boa vida e boa fama, tementes a Deus e às suas consciências e que assistiam a missas todos os dias com singular devoção.. - E há alguns tão modestos, especialmente êsses dois que foram embora, que se contentam com muito menos do que, segundo nossas leis, lhes toca. Há outros dois que são beleguins, andam de casa em casa, conhecem as entradas e as saídas de tôdas elas, na cidade, em quais convém entrar e em quais não convém. - Tudo isto é maravilhoso - disse Rinconete -, e gostaria de ser útil em tão famosa confraria. - O céu ajuda sempre as boas intenções - disse Monipódio. Estavam nessa conversa, quando alguém chamou à porta; Monipódio saiu para ver quem era e de fora respondeu: - Abra Vossa Mercê, Seu Monipódio, sou eu, Repolido. Cariharta, ouvindo esta voz, falou bem alto: - Não abra, Senhor Monipódio; não abra a êsse marinheiro de Tarpéia, a êsse tigre de Ocanha. Nem por isso Monipódio deixou de lhe abrir; Cariharta, vendo isso, levantou-se correndo, entrou na sala dos escudos e, fechando a porta atrás de si, falou em alta voz: - Livrem-me da presença dêsse homem, dêsse verdugo de inocentes, dêsse assustador de pombas ingênuas. Mão-de-Ferro e Chiquiznaque continham Repolido, que, de qualquer maneira, queria entrar onde Cariharta estava e, como não o deixassem, dizia do lado de fora: - Sai, minha braveza; acalma-te, que te verás casada. - Casada eu, perverso? Olha em que tecla bates! Querias que eu fôsse contigo, mas prefiro mil vêzes a morte! - Vamos, bôba! Vamos acabar com isso que já é tarde, E olha, não fiques convencida por eu falar tão manso e vir tão submisso, porque - louvado seja Deus -, se me sobe o sangue à testa, a emenda será pior do que o sonêto. Humilha-te; vamos nos humilhar todos e não vamos dar de comer ao diabo. - Eu seria capaz até de lhe preparar um banquete, para que êle te levasse para onde meus olhos nunca mais te vissem - disse Cariharta. - Não estou dizendo? Por Deus! Estou vendo, sua faladeira, que tenho de botar tudo a perder e faltar com minha palavra - falou Repolido. - Em minha presença ninguém há de cometer violências; Cariharta sairá não por causa das ameaças, mas por consideração a mim, e então tudo se arranjará, pois as brigas entre os que se querem bem são, depois, motivo de satisfação quando fazem as pazes. Ó Juliana! menina! Cariharta! Sai daí por favor, que farei Repolido pedir-te perdão de joelhos. - Se êle fizer isso - disse Escalanta - estaremos todos do seu lado e pediremos a Juliana que saia. - Se eu tenho de me dar por vencido para depois vocês fazerem pouco de mim - disse Repolido -, não me entregarei nem a um exército de suíços, mas. se é porque Cariharta assim o quer, não digo que eu me mêta aí de joelhos, porém meterei um cravo na testa se ela assim o desejar. Chiquiznaque e Mão-de-Ferro riram-se; Repolido ficou muito insultado, pensando que zombavam dêle, e disse com uma raiva imensa: - Aquêle que rir ou pensar em rir do que Cariharta possa dizer contra minha pessoa e eu contra a dela estará mentindo e mentirá tôdas as vêzes em que rir ou pensar. Chiquiznaque e Mão-de-Ferro entreolharam-se de tal modo que Monipódio viu que a história acabaria mal se êle não procurasse remediar a situação, e assim, pondo-se logo entre êles, disse: - Vamos parar por aqui, cavalheiros, não digam mais nada; não se ofendam e, já que as palavras ditas não atingiram ninguém, que ninguém vista a carapuça. - Sabemos muito bem que tais ofensas não foram ditas por nós e nem o serão - falou Chiquiznaque -, e, se desconfiássemos de que poderiam ser dirigidas a nós, teríamos às mãos um pandeiro e saberíamos tocá-lo. - Eu também tenho um pandeiro, Seu Chiquiznaque, e, se fôr preciso, saberemos tocar os guizos, e já disse que quem zombar estará mentindo e quem pensar em outra coisa siga-me, pois não será um palmo de espada que me fará menos homem, e o que eu disse está dito. Dizendo isto, preparava-se para sair porta afora. Cariharta estava a escutar e, quando percebeu que êle ia embora enfurecido, saiu dizendo: - Não deixe que êle se vá, pois fará das suas! Não vêem que ele vai embora com raiva e nessa história de valentia êle é igual a Judas Marcaelo? Volta aqui, valentão de minha alma. E, abraçando-se a êle, agarrou-o fortemente pela capa; Monipódio correu também para segurá-lo; Chiquiznaque e Mão-de-Ferro não sabiam o que fazer, se deviam encolerizar-se ou não; ficaram parados, esperando para ver o que Repolido faria; êste, vendo-se chamado por Cariharta e Monipódio, voltou, dizendo: - Os amigos nunca devem encolerizar os amigos, nem zombar dêles, ainda mais quando vêem que os amigos estão com raiva. - Aqui não há nenhum amigo que queira encolerizar ou zombar de outro amigo, e, como somos todos amigos, que os amigos se dêem as mãos - disse Mão-de-Ferro. - Todos vocês falaram como bons amigos e, como amigos, que se dêem as mãos os amigos. Todos apertaram logo a mão e Escalanta, tirando um de seus chapins, começou a bater nêle como se êle fôsse um pandeiro; Gananciosa pegou uma vassoura de fôlha de palmeira, nova, que se encontrava ali por acaso, e, arranhando-a, conseguiu dela um som que, embora rouco e áspero, combinava com o do chapim. Monipódio quebrou um prato e fez dêle duas castanholas, que, tocadas com grande rapidez, serviam de contraponto ao chapim e à vassoura. Rinconete e Cortadilho espantaram-se com a história da vassoura, porque, até então, nunca tinham visto tal coisa. Mão-de-Ferro, percebendo, disse-lhes: - Estão admirados? Pois fazem muito bem, porque não há no mundo música mais rápida, mais leve, nem mais barata e, na verdade, ouvi, outro dia, um estudante dizer que nem o Negrofeo, que tirou Arauz do inferno, nem Marión, que subiu às costas do delfim e saiu do mar como se tivesse vindo no lombo de uma mula de aluguel, nem o grande músico que construiu uma cidade com cem portas e com outros tantos postigos, inventaram melhor gênero musical, tão fácil de aprender, tão ajeitado para tocar, tão sem trastes, cravelhas ou cordas e tão sem necessidade de se afinar, e - pasmem! - dizem que quem o inventou foi um galã desta cidade, que se gaba de ser o Hércules da música. - Acredito, acredito - respondeu Rinconete -. mas vamos escutar o que os nossos músicos querem cantar, pois parece que Gananciosa já pigarreou, sinal de que vai cantar. E era verdade, porque Monipódio tinha-lhe pedido para cantar algumas seguidilhas da moda, mas quem começou primeiro foi Escalanta, que, com voz sutil e delicada, cantou: Por un sevillano rufo a lo valón tengo socarrado todo el corazón. Depois foi a vez de Gananciosa: Por un morencio de color verde, cuál es la fogosa que no se pierde? A seguir, ouviu-se Monipódio, que, apressando o ritmo com suas castanholas, cantou: Rinen dos amantes; hácese la paz: si el enojo es grande, es el gusto más. Cariharta não quis regozijar-se em silêncio, porque, tomando de outro chapim, entrou na dança e acompanhou as demais, dizendo: Detente, enojado, no me azotes más: que si bien lo miras, a tus carnes das. - Cantem à vontade - disse neste momento Repolido - e não toquem em coisas passadas, que não há necessidade; o que passou, passou; vamos tomar outro caminho e basta. Pareciam êles não ter intenção de acabar a cantoria tão cedo, mas ouviram chamar apressadamente à porta; Monipódio saiu para ver quem era e a sentinela contou-lhe que vira aparecer no fim da rua o oficial de justiça, e que, à frente dêle, vinham Tordilho e Cernicalo, os agentes imparciais da justiça. Todos os que estavam dentro escutaram e se alvoroçaram de tal maneira que Cariharta e Escalanta calçaram seus chapins ao contrário; Gananciosa largou a vassoura; Monipódio, suas castanholas; a música cessou e tudo caiu em silêncio constrangedor; Chiquiznaque emudeceu; Repolido espantou-se, Mão-de-Ferro levantou-se e todos desapareceram subindo às sotéias e aos telhados para fugir e passar do outro lado da rua. Nem um arcabuz disparado fora de hora, nem um trovão repentino espantaria um bando de pombas descuidadas, como a vinda do oficial de justiça alvoroçou e espantou tôda aquela comunidade reunida, tôda aquela boa gente. Os dois noviços, Rinconete e Cortadilho, não sabiam o que fazer; ficaram parados, esperando para ver no que dava aquela tempestade repentina, que terminou com a volta da sentinela, dizendo que o oficial de justiça passara reto, sem dar mostras da mais leve sombra de suspeita. E, enquanto êle dizia isto a Monipódio, chegou um jovem cavalheiro à porta, vestido à moda caipira, como se costuma dizer; Monipódio entrou com êle e mandou chamar Chiquiznaque, Mão-de-Ferro e Repolido, dando ordens para não descer ninguém além dêles. Rinconete e Cortadilho, como tivessem ficado no pátio, puderam ouvir a conversa de Monipódio com o cavalheiro recémchegado, que perguntou por que haviam feito tão mal o que tinha êle encomendado. Monipódio respondeu que ainda não sabia o que se tinha feito, mas ali estava o oficial encarregado do negócio, pronto para a prestação de contas. Chiquiznaque desceu e Monipódio perguntou-lhe se êle terminara o serviço, se tinha dado a facada de catorze, que lhe haviam encomendado. - Qual? - perguntou Chiquiznaque. - Aquela do mercador da encruzilhada? - É essa mesmo - disse o cavalheiro. - O que se passou - falou Chiquiznaque - foi o seguinte: eu o esperei de noite, à porta de sua casa; êle chegou antes da hora da oração; cheguei perto dêle, bati os olhos no seu rosto e vi que era tão pequeno que seria impossível, impossibilíssimo, caber nêle uma facada de catorze pontos, e, vendo-me impossibilitado de poder cumprir o prometido e de levar a cabo minha destruição.. - Instrução, quer Vossa Mercê dizer - interrompeu o cavalheiro -, não destruição. - É isso - falou Chiquiznaque. - Dizia eu que, vendo que a estreiteza e pequenez daquele rosto não davam para os pontos prometidos, a fim de que minha viagem não fôsse em vão, dei a facada em um seu lacaio, que, para dizer a verdade, pode levar um número bem maior de pontos. - Mas eu queria - disse o cavalheiro - que se tivesse dado no amo uma facada de sete em vez de dar uma de catorze no criado. Não cumpriram o trato feito comigo, como era de direito, mas não importa; não me fazem falta os 30 ducados que deixei de sinal. Beijo as mãos de Vossa Mercê. E, dizendo isto, pegou o chapéu e virou as costas para ir-se embora; Monipódio, porém, segurou-o pela capa de mescla que êle vestia, dizendo-lhe: - Vosmecê volte e cumpra sua palavra, pois nós cumprimos a nossa com muita honra e perfeição; faltam 20 ducados e não há de sair daqui sem dá-los ou sem deixar coisas que valham essa quantia. - É a isso que Vossa Mercê chama de cumprimento da palavra? Dar uma facada no criado quando devia dá-la no patrão? - Como o senhor está ruim de contas! - exclamou Chiquiznaque. - Bem parece que não se lembra daquele ditado que diz: “Quem quer bem o patrão, ama também o seu cão”. - A trôco do que êsse ditado? - perguntou o cavalheiro. - Pois então - prosseguiu Chiquiznaque -, não é o mesmo que dizer: “Quem quer o mal do patrão, quer também o do cão”? É assim: o patrão é o mercador, vosmecê lhe quer mal; seu lacaio é o cão; batendo-se no cão, bate-se no patrão; a dívida fica liquidada e bem executada; por isso, é tratar de pagar logo, sem fazer nenhuma observação. - Isso eu também posso jurar - acrescentou Monipódio -, e tudo quanto disseste tiraste-me da bôca, Chiquiznaque amigo, e assim, meu caro, não faça conta de ninharias com seus amigos e servidores, siga meu conselho e pague logo sua conta; se quiser que se dê uma facada no patrão, com a quantidade de pontos que cabe no rosto dêle, pode estar certo de que até já lhe estarão fazendo curativos. - Já que é assim - respondeu o rapaz - pagarei de muito boa vontade tanto uma conta como a outra. - Isso é tão certo quanto é certo eu ser cristão - disse Monipódio -, pois Chiquiznaque dará a facada de tal maneira que ela parecerá ser de nascença. - Com esta certeza e promessa - disse o cavalheiro -, receba esta cadeia em lugar dos 20 ducados atrasados e de 40 que ofereço pela futura facada; vale 1.000 reais e pode ser que seja arrematada, pois estou desconfiado de que serão precisos outros catorze pontos. Dizendo isto, tirou do pescoço uma cadeia de voltas pequenas e deu-a a Monipódio, que, pela côr e pelo pêso, viu bem que ela não era falsa. Monipódio recebeu-a muito contente e com delicadeza, porque era um homem extremamente educado; a execução ficou a cargo de Chiquiznaque, que prometeu pô-la em prática naquela noite. O cavalheiro foi-se muito satisfeito; Monipódio chamou logo todos os ausentes e refugiados. Todos desceram e Monipódio, misturando-se com êles, tirou um caderninho de notas que trazia no capuz; deu-o a Rinconete para que lesse, porque êle não sabia ler. Rinconete abriu-o e viu que a primeira página dizia: “Facadas que devem ser dadas nesta semana. “A primeira será no mercador da encruzilhada. Vale 50 escudos. “Recebemos 30 por conta. Executor: Chiquiznaque”. - Não creio que haja outra, filho - disse Monipódio. Passe para a frente e olhe onde diz: “Pauladas”. Rinconete virou a fôlha e viu que na outra estava escrito: “Pauladas”. Mais abaixo dizia: “No taberneiro de Alfafa, doze pauladas da melhor qualidade, a 1 escudo cada uma. Foram dados 8 escudos por conta. Prazo: seis dias. Executor: Mão-de-Ferro”. - Bem que podia apagar essa nota - disse Mão-de-Ferro -, porque esta noite darei conta do recado. - Há mais alguma outra, filho? - perguntou Monipódio. - Sim - respondeu Rinconete -, há uma outra que diz assim: “No alfaiate corcunda, conhecido como Silguero, seis pauladas da melhor qualidade, a pedido daquela senhora que deixou a gargantilha. Executor: Desmochado”. - Estou admirado - falou Monipódio - de êste serviço não ter sido feito ainda. Na certa, há alguma coisa errada com Desmochado, pois já se passaram dois dias do prazo e ainda não se mexeu nisso. - Encontrei-me com êle ontem - disse Mão-de-Ferro - e êle me falou que o corcunda não tinha aparecido porque está doente, e por isso não pôde êle cumprir com a obrigação. - Acredito - falou Monipódio -, pois sei que Desmochado é um bom profissional e que se não fôsse por um motivo tão justo êle já teria dado conta do recado da melhor forma possível. Há mais alguma coisa, rapaz? - Não senhor - respondeu Rinconete. - Então vamos para frente e veja onde está escrito: “Agravos comuns”. Rinconete passou adiante e, em outra fôlha, encontrou escrito: “Agravos comuns, isto é, garrafadas, banhos de merda, cornos, injúrias, zombarias, ameaças, motins, facadas simuladas, publicação de nibelos (Nibelos, isto é, libelos, escritos difamatórios.), etc.” - Que diz mais abaixo? - perguntou Monipódio. - Diz - falou Rinconete - “Banho de merda na casa.. “ - Não leia o nome da casa, que eu já sei onde é, sou eu o tuatem (Tuatem: Indivíduo que se julga indispensável.) e executor desta ninharia e já foram dados 4 escudos por conta; ainda faltam 8. - É verdade - falou Rinconete -; tudo isso está escrito aqui e mais abaixo ainda tem: “Cornos”. - Também não precisa falar a casa e o lugar - disse Monipódio. - Basta que se faça a ofensa, sem que se diga em público; é uma questão de consciência. Eu, pelo menos, sendo pago pelo meu trabalho, preferia fazer cem injúrias e outras tantas difamações do que revelar um nome, ainda que fôsse à mãe que me pariu. - O executor disto é Narigueta - disse Rinconete. - Isso já foi feito e pago - falou Monipódio. - Olha se tem mais, que, se não me falha a memória, há de ter aí uma ameaça de 20 escudos; a metade já foi dada, o executor é a comunidade inteira, o prazo é todo o mês que estamos atravessando, e há de ser cumprida sem faltar nenhum pingo nos II e será um dos mais notáveis acontecimentos desta cidade, nos últimos tempos. Dá cá o livro, jovem, pois eu sei que não há mais nada e sei também que a praça não anda muito boa, mas, nesse meio tempo, há de vir alguém e então teremos mais serviço do que se pode imaginar, pois não cai uma fôlha sem que Deus veja e nós não iremos fazer com que alguém se vingue à fôrça, ainda mais que cada um costuma ser valente dentro de sua casa e não quer pagar pela execução de serviços que pode fazer com suas próprias mãos. - É verdade - falou Repolido -, mas Vossa Mercê, Senhor Monipódio, veja aí o que nos vai ordenar, porque já é tarde e o dia já vem chegando mais do que depressa. - O que se tem a fazer - disse Monipódio - é irem todos para seus postos e que ninguém mude de lugar até domingo, que nos reuniremos aqui mesmo e repartiremos tudo o que tiver entrado, sem prejudicar ninguém. A Rinconete e Cortadilho daremos, até domingo, o distrito que vai desde a Torre del Oro, por fora da cidade, até o postigo de Alcázar, onde podem trabalhar sentados, com seus naipes, pois já vi outros, menos hábeis que êles, saírem com mais de 20 reais em miúdo, além da prata, com um baralho só e ainda com quatro naipes menos. Ganchoso ensinará onde fica êsse distrito e, ainda que vocês trabalhem até San Sebastián e San Telmo, não importa, embora não seja justo que ninguém entre no domínio de ninguém. Os dois rapazes beijaram-lhe a mão, pela graça que êle lhes concedia, e prometeram cumprir a obrigação muito bem, fielmente, com tôda a diligência e honestidade. Nisto, Monipódio tirou um papel dobrado do capuz, onde se encontrava a lista dos confrades, e disse a Rinconete que pusesse ali seu nome e o de Cortadilho, mas, como não houvesse tinteiro, deu o papel para que êle o levasse e, no primeiro boticário, tratasse de escrevê-los, colocando: Rinconete e Cortadilho, confrades; noviciado: nenhum; Rinconete: conversa fiada; Cortadilho: trapaça; dia, mês e ano; pátria e pais não precisariam pôr. Neste momento, entrou um dos velhos abispones, que disse: - Venho dizer a Vossas Mercês que encontrei agora, em Gradas, Lobilho, aquêle de Málaga, e êle me disse que melhorou tanto sua técnica que, mesmo com naipes sem marcas, pode tirar dinheiro até mesmo do Satanás e que, por estar mal arrumado, não vem logo à sua presença, para prestar a obediência costumeira, mas que domingo, sem falta, estará aqui. - Eu sempre achei - disse Monipódio - que êste Lobilho havia de ser o único em sua arte, porque possui as melhores e mais ajeitadas mãos que se pode desejar para isto, pois, para ser um bom oficial na profissão, é preciso tanto ter bons instrumentos para realizá-la como engenho para aprendê-la. - E encontrei também - disse o velho -, numa casa de pensão da Rua de Tintores, o Judeu, vestido de padre, que passou por ali por saber que dois ricaços vivem nesta mesma casa e queria ver se podia jogar com êles, ainda que fôsse um pouco só, pois êste pouco poderia mais tarde vir a ser o muito. Disse também que, no domingo, não faltará à reunião e prestará contas de sua pessoa. - Êste judeu também - disse Monipódio - é uma águia e tem grandes conhecimentos. Faz dias que não o vejo e êle faz muito mal em não aparecer. Se não se emendar, tiro-lhe o pôsto, pois êle tem tanta autoridade quanto o Turco e sabe tanto latim quanto minha mãe. Há mais alguma novidade? - Não - disse o velho -, pelo menos que eu saiba, não. - Está muito bem - falou Monipódio. - Peguem todos êste pouco de dinheiro e que ninguém falte no domingo, pois repartiremos o resto. - E, assim dizendo, distribuiu entre êles 40 reais. Todos lhe agradeceram; Repolido e Cariharta, Escalanta e Mão-de-Ferro, Gananciosa e Chiquiznaque tornaram a se abraçar, combinando que, naquela noite, depois de terminarem o serviço da casa, iriam à casa de Pipota, para onde iria também Monipódio, a fim de examinar a canastra, depois de cumprir e apagar do caderninho de notas o trabalho que se propusera a fazer. Abraçou Rinconete e Cortadilho e, abençoando-os, despediu-os, aconselhando-os a não terem jamais lugar certo para dormir ou ficar, pois assim era necessário para o bem de todos. Ganchoso acompanhou-os para ensinar-lhes seus postos, recomendando-lhes que não faltassem no domingo, porque pensava que Monipódio havia de dar uma lição de posições referentes à sua arte. Com isto se foi, deixando os dois companheiros admirados com o que tinham visto. Rinconete, embora jovem, possuía muitos conhecimentos, era inteligente por natureza; como andara com o pai no negócio das bulas, sabia falar bem e tinha muita vontade de rir ao pensar nas palavras que ouvira de Monipódio e dos demais componentes de sua confraria e bendita comunidade, ainda mais quando, em lugar de modum sufragâ, dissera naufrágio, e tiravam o estupendo, em vez de estipêndio, do que, aliás, se gabava; assim também quando Cariharta disse que Repolido era como um marinheiro de “Tarpéia” e um tigre de “Oeanha”, em vez de Hircânia, e outras mil coisas semelhantes ou piores que essas. Achou uma graça especial quando ela falou que o trabalho que tivera para ganhar os 24 reais fôsse recebido pelo céu em paga de seus pecados; admirava sobretudo a segurança, a confiança que tinham de ir para o céu, por não faltarem às suas devoções, embora estivessem tão cheios de furtos, homicídios e ofensas a Deus. Riam-se também da boa velha Pipota, que deixava a canastra furtada, em sua casa, e ia oferecer velinhas de cêra às imagens, pensando em ir ao céu de mala e cuia. Não se admirava menos da obediência e respeito que todos tinham por Monipódio, sendo êle um homem bárbaro, rústico e desalmado. Considerava o que lera em seu caderno de notas as obrigações de cada um e, finalmente, considerava quão descuidada era a justiça da famosa cidade de Sevilha, pois vivia nela, sem nenhuma assistência, gente tão perniciosa e tão contrária à própria natureza; fêz, então, o propósito de convencer o seu companheiro a não permanecer, por muito tempo, naquela vida tão perdida, tão má, tão inquieta, tão livre e dissoluta. Contudo, em virtude de sua pouca idade e pouca experiência, permaneceu nela mais alguns meses, nos quais lhe aconteceram coisas que exigiriam muitas outras fôlhas; e, assim, deixamos para contar, em outra oportunidade, sua vida, os milagres que fêz, mais os de seu mestre Monipódio e outros acontecimentos relativos aos componentes daquela infame academia, pois serão todos êles muito importantes e poderão servir de exemplo e advertência a todos os que os lerem. http://groups-beta.google.com/group/digitalsource http://groups-beta.google.com/group/Viciados_em_Livros