Acessar documento - Opinião Filosófica
Transcrição
Acessar documento - Opinião Filosófica
TRAVESSIA DO PAMPA: FONTES E PROJETOS DA CULTURA GAÚCHA SIMÕES LOPES NETO Anais do Simpósio Simoniano - Lendas do Sul 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS UCPEL Chanceler D. Jayme Henrique Chemello Reitor Alencar Mello Proença Vice-Reitor Cláudio Manoel da Cunha Duarte Pró-Reitor de Graduação Gilberto de Lima Garcias Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão William Peres Pró-Reitor Administrativo Carlos Ricardo Gass Sinnott EDUCAT - EDITORA DA UCPel Editor Wallney Joelmir Hammes CONSELHO EDITORIAL Wallney Joelmir Hammes- Presidente Lino de Jesus Soares Luciano Vitória Barboza Luiz Roberto Bitar Real Osmar Miguel Schaefer Vilson José Leffa EDUCAT Editora da Universidade Católica de Pelotas - UCPel Rua Félix da Cunha, 412 Fone (0xx53)284.8297 - FAX (0xx53) 225.3105 - Pelotas - RS - Brasil 2 Agemir BAVARESCO Luís BORGES (orgs.) TRAVESSIA DO PAMPA: FONTES E PROJETOS DA CULTURA GAÚCHA SIMÕES LOPES NETO Anais do Simpósio Simoniano - Lendas do Sul EDUCAT Pelotas 2003 3 © 2003 BAVARESCO, A. BORGES, L. (orgs.) Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Católica de Pelotas Rua Félix da Cunha, 412 Fone (0xx53)284.0000 - Fax (0xx53)225.3105 Pelotas - RS - Brasil E-mail:[email protected] PROJETO EDITORIAL EDUCAT EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Ana Gertrudes G. Cardoso CAPA Luis Fernando Giusti REVISÃO Maria M. Louzada Terezinha M. Louzada FOTO CAPA Wilson Lima PROJETO ESTATUETA TEINIAGUÁ Arq. Serafim Pinho Dias Simpósio Simoniano – Lendas do Sul (1º: 2002:Pelotas) Anais do I Simpósio Simoniano – Lendas do Sul, Pelotas 06 a 08 de dezembro de 2002. - Pelotas: Educat, 2003. 292 p. I. Título Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim CRB 10/1233 4 COMISSÕES Comissão organizadora: Grupo de Pesquisa Simoniano do Instituto Superior de Filosofia/UCPEL, Comissão coordenadora: Instituto Histórico e Geográfico de Pelotas, Núcleo de Estudos Simonianos, Academia Pelotense de Letras, Instituto João Simões Lopes Neto, Academia Sul-Brasileira de Letras e SECULT/Pelotas. APOIO: FAPERGS e UCPEL 5 6 JARAU DE NÓS OUTROS 1 Mário Mattos Dezembro, 2002 (Primeira Parte – Os Contos Gauchescos) Na poderosa aeronave Da Leitura, onipresente, Sobrevoei, majestosos, O Pampa, o Pago... e a Gente. Pela voz florida e forte De Blau Nunes, tapejara, Vi o Rio Grande, amanhecendo, Vi a colméia - e a seara. Entre o viver e o morrer ... O amor... a dor... e o conflito Na fala do narrador, A força, que vem do mito. Cada conto é uma vertente, No chão da História, nascida, E nela, o falar campeiro, É poesia, é estilo, é vida!... Descortinar os limites Das paixões do ser humano, É o que faz universal, O legado simoniano, 1 . Este poema foi composto especialmente para o Simpósio Simoniano Lendas do Sul, sendo declamado pelo autor no dia 05/12/2002. 7 Obrigado, Simões Lopes!... Escutando passarinhos, Procuro te conhecer És árvore, flor e ninhos, Raio de sol, a nos ver!... (Segunda Parte - O Cerro da Tentação) Mas, bah!...que eu também me encontro Cismado, como o tio Blau A campear meu Boi Barroso, , Pelas bandas do Jarau... De repente, o meu destino: Na porta da Salamanca: Me aparece, frente à frente O vulto da face branca!... Ai!... vida, que a cada dia Nunca pára de mudar!... Ai!...mente do ser humano, Que não doma o seu sonhar!... Já te entendo, meu Santão: Vou seguir o velho Blau, Minha sorte, aventurar: Quem sabe, a Princesa Moura A Teiniaguá tentadora Tem o tudo, pra nos dar?... 8 (Terceira Parte – A Furna e a Velha Carquincha) Medo e ambição se peleiam, Na furna dos Anhangás: Feras, serpentes, miasmas Peso de culpas fantasmas, A nos puxar para trás. Mas, onde passa um Blau Nunes, Gaúcho velho de lei Por Cristo!... que eu passarei! Resistir com alma forte, Da Carquincha à tentação Da língua, ao erro fatal Saber lutar, coração, Vida ou morte, contra o Mal, Que trago em mim, sem razão... É justo vender-se a alma Ao vil metal, sem consciência – Pra subir, causar estrago, Pisotear a convivência Com nossos irmãos do pago?... (Quarta Parte – A Explosão do Cerro) Como explodirei meu Cerro Castelo azul dos meus erros O Jarau da velha crença, 9 Onde mora a indiferença, O dogma, o preconceito, E a empáfia de ser perfeito?.. Sem renunciar à aparência E à falsa felicidade, Como ver em transparência, No caos da globalidade?.. (Quinta Parte - Conclusão) Abro a Caixa de Pandora: E a Esfinge não me devora; Mau fado não me intimida, Tenho o pássaro da vida, Desse gênio, que me escora!... A dor de Anhangá Pitã, Boa nova nos deixou: Teiniaguá se transformou, Da lagartixa do Mal, Na rosa do Manantial: A mulher - pecado ou flor, Purificada no Amor!... 10 SUMÁRIO À GUISA DE INTRODUÇÃO: JOÃO SIMÕES LOPES NETO AFIRMAÇÃO & TRANSBORDAMENTOS ................................. 13 Luís Borges ................................................................................. 13 1 - LENDAS DO SUL - UM ROTEIRO DE LEITURA .................. 45 Luís Augusto Fischer ................................................................. 45 2 - A UNIVERSALIDADE DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO ..... 71 Eduardo Arriada ........................................................................ 71 3 - A SALAMANCA DO JARAU: A TRAVESSIA ÉTICA DO GAÚCHO CONSIDERANDO ASPECTOS METAFÍSICOS ..... 88 Eduardo de Oliveira .................................................................. 88 Mauro Henrique Franzkowiak Martins ................................... 131 5 - SITUAÇÃO ECONÔMICA NA LENDA SALAMANCA DO JARAU ....................................................................................... 147 Péterson Figueiredo ................................................................ 147 6 - O ITINERÁRIO DA LENDA: A APRENDIZAGEM SIMBÓLICA ............................................................................. 157 Agemir Bavaresco .................................................................... 157 7 - O MILAGRE DE NATAL EM LÍGIA FAGUNDES ................ 198 TELLES E JOÃO SIMÕES LOPES NETO ................................... 198 Luís Borges .............................................................................. 198 8 - O RECONHECIMENTO EM VIDA DE J. S. SIMÕES LOPES NETO......................................................................................... 224 Cláudia Antunes ....................................................................... 224 9 - ANÁLISE DISCURSIVA DE A SALAMANCA DO JARAU DE J. S. LOPES NETO ........................................................................ 246 Oscar Brisolara ....................................................................... 246 11 10 - O CIVISMO NA VIDA E NA OBRA DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO......................................................................................... 268 Zênia de Leon .......................................................................... 268 SÍNTESE CONCLUSIVA DO SIMPÓSIO .................................. 292 Mário Mattos ............................................................................ 292 ANEXO - PROGRAMA DO SIMPÓSIO SIMONIANO - LENDAS DO SUL ..................................................................................... 298 12 À GUISA DE INTRODUÇÃO: JOÃO SIMÕES LOPES NETO - AFIRMAÇÃO & TRANSBORDAMENTOS Luís Borges O manancial, realmente, é quase inesgotável. (Mozart Victor Russomano in Como se fosse um prefácio) A apresentação dos textos segue a ordem da programação do Simpósio Simoniano-Lendas do Sul. Mantivemos os textos na sua integralidade, procuramos, contudo, dar uma uniformidade na formatação, e submeter às correções necessárias, guardando em algumas palestras e comunicações o tom da oralidade, sempre que não houvesse prejuízo na clareza da expressão. Infelizmente, a comunicação a ser apresentada pelo prof. Carlos Francisco Sica Diniz não se realizou em virtude de problemas de saúde do mesmo, portanto, não pôde constar aqui. Entretanto, o que nos seria sumariamente apresentado, sê-lo-á de maneira completa na obra do prof. Diniz, pela qual todos ansiamos, cujo título é João Simões Lopes Neto, uma biografia. Este trabalho, fruto de rigorosa e minuciosa pesquisa, afirmo sem medo de errar, será o livro definitivo sobre a vida do Velho Capitão. 13 Nossos objetivos no evento foram os seguintes: - Estudar as Lendas do Sul de João Simões Lopes Neto, para afirmar a identidade cultural regional em diálogo com o contexto universal; - Introduzir a obra simoniana no quadro geral da literatura brasileira; - Tornar mais conhecidas as Lendas do Sul; - Abrir novas linhas hermenêuticas da obra simoniana; - Estabelecer diálogo com outros escritores regionalistas. Entendeu-se que, de forma geral, os objetivos propostos – supracitados – foram atingidos. Os resultados relativamente aos objetivos foram os seguintes: a) Através das diversas abordagens apresentadas nas palestras, comunicações e apresentações artísticas, além da participação do público presente, foi-nos possível constatar não somente a preocupação em conhecer a obra simoniana, mas também em resignificá-la, tomando como exemplo a questão relativa ao problema entre tradição/tradicionalismo; identidade regional/globalização; regionalismo gaúcho/ contexto literário nacional. 14 b) Quanto a relacionar a obra de João Simões Lopes Neto com o contexto literário nacional, notou-se, especialmente, em duas oportunidades, um ganho significativo. A palestra de Luís Augusto Fischer tratou de trazer à tona alguns enunciados problemáticos fundamentais para compreender essa relação. De um lado, a partir da abordagem de Antônio Cândido em Parceiros do Rio Bonito, Fischer estabeleceu que a tradição cultural/literária que subjaz ao regionalismo, pode ser analisada, de maneira geral, pela ―consciência do atraso‖ ou pela ―consciência do progresso‖. Nessa dialética, pode-se localizar o escritor gaúcho sob vários prismas, entre os quais, a relação com a escritura marcantemente urbana de Machado de Assis e Lima Barreto; a superação dicotômica entre narrador culto e personagens, coisa que, no período, outros escritores, tais como Coelho Neto e Afonso Arinos, entre outros, não souberam dar respostas. Além disso, podemos citar a comunicação de Luís Borges, onde se traçou uma linha comparativa entre a escritura simoniana e a literatura contemporânea de Lígia Fagundes Telles, objetivando mostrar, apesar de todas as diferenças de linguagem e recursos expressivos, que Simões, pela vitalidade de sua imagística e narratividade, 15 mostra-se muito atual, recolocando-o além da simples classificação tradicional de escritor pré-modernista. c) Sabe-se que Contos gauchescos é a obra mais conhecida e mais estudada de Simões Lopes Neto. Neste sentido, o Simpósio realizado procurou – e cremos ter atingido resultados positivos – estender o olhar para Lendas do Sul, ainda que não restringindo a discussão a este ponto, conforme pode ser observado pela programação. Para tanto buscou-se abarcar três pontos: 1- Uma visão geral das Lendas, o que foi feito pelo professor Fischer, suscitando muitas perguntas. 2 - Uma visão da universalidade da literatura simoniana o que compreende as fontes históricas e literárias da Salamanca do Jarau, no que a palestra de Eduardo Arriada se concentrou, tendo ainda acrescentado novas informações, resultado de suas últimas pesquisas. 3 - Uma nova abordagem hermenêutica dos textos simonianos, sobretudo da lenda a Salamanca do Jarau. d) Até então, os encontros realizados sobre vida e obra de Simões Lopes Neto quase que se restringiam a aspectos literários. Neste evento - Simpósio Simoniano: Lendas do Sul - houve a incorporação de várias outras hermenêuticas, algumas bastante recentes, tais como a 16 ético-filosófica e que já está a dar frutos, uma vez que acadêmicos apresentaram trabalhos dentro desta linha de pesquisa, como foi o caso do acadêmico Mauro H. Martins com sua comparação entre a caverna platônica e a caverna simoniana. Tal cruzamento de informações resultou num saldo coletivo importante, pois não só reorientou a pesquisa simoniana, como também atualizou os diversos pesquisadores quanto ao estágio dos estudos sobre Simões Lopes sob diversos ângulos. e) Era nossa intenção tomar a literatura simoniana como um referencial, e não um fechamento, para estabelecer um diálogo trans e interdisciplinar. Nesse ponto, incluía-se a pergunta sobre se o regionalismo era um subproduto cultural-literário e nesse sentido estaria esgotado ou se, por exemplo, escritores como Aldyr Garcia Schlee apresentavam novos elementos, capazes de sustentar uma escritura de tema rural-regional dentro da atualidade literária do Brasil. Constatamos que esse objetivo não foi alcançado, uma vez que esse debate não apareceu durante o Simpósio. A fim de verificarmos se os objetivos propostos tinham sido atingidos, as diversas entidades que compuseram as comissões de organização e coordenação do evento se reuniram para fazer uma avaliação no dia 17 de 17 dezembro de 2002. De vários pontos contou essa avaliação. Podem ser resumidos em alguns itens: 1 - O público: número de inscritos; locais de inscrição etc. Chegou-se à conclusão de que o número de inscritos correspondeu às expectativas, considerando a época do ano, a divulgação, a ocorrência de eventos paralelos. O público-alvo foi o de professores universitários e do ensino médio, estudantes univesitários e do ensino médio, escritores e pesquisadores. Constatou-se a ausência de pessoas e entidades ligadas ao Tradicionalismo, excetuando o Escritor Mário Mattos e o Sr. Mogar Pagano Xavier, responsável pela FUNDAPEL, extinta e substituída pela atual Secretaria Municipal de Cultura. 2 - A participação das entidades envolvidas na realização do evento: Exceto o Instituto de Letras e Artes da UFPEL concluiu-se que todas as entidades, incluindo o poder público através da Secretaria Municipal de Cultura participaram, efetivamente, para o sucesso do acontecimento. 3 - Quanto ao desenvolvimento geral do evento: Constatou-se que a programação artística (teatro, música e declamação poética) foi adequada ao tema e agradou ao público. Cumpriram-se os horários e a atuação dos 18 coordenadores das comunicações e dos palestrantes foi satisfatória. 4 - Quanto à repercussão do evento: Entendeu-se que a repercussão foi bastante boa, o que pode ser constatado através da cobertura da imprensa escrita, além da radiofônica, que foi realizada pelas rádios Comunidade FM; Pelotense e Federal FM, e da TV-UCPEL. Os cartazes e folders foram distribuídos pelas entidades, obedecendo a um planejamento estratégico, visando um público determinado, o que correspondeu ao intento. Compreendeu-se que a figura humana e literária de João Simões Lopes Neto vem cada vez mais se impondo, no que é fato significativo, o apoio da FAPERGS, o que não só possibilitou a viabilização do evento, mas assinala o reconhecimento oficial da pesquisa acadêmica e seu diálogo com os diversos setores da sociedade, no debate em torno do criador de Blau Nunes. A esse reconhecimento, já estabelecido pelo público e pela crítica, que talvez possa ser sintetizado pela inclusão do conto Contrabandista, na antologia Os cem melhores contos brasileiros do século, organizada por Ítalo Moriconi, editada pela Editora Objetiva, em 2000, se somou o pedido de inclusão de seu nome no Livro dos Saberes. O pedido foi entregue à então 19 coordenadora geral do Livro e Literatura do Ministério da Cultura, Mequita Coimbra de Andrade, em agosto de 2001. O Livro dos Saberes, instituído pelo decreto nº 3551, de 4 de agosto de 1999, é uma publicação do Governo Federal, que destaca a obra dos principais escritores brasileiros, como uma espécie de memorial da literatura nacional. Fora essas manifestações críticas, como a de Moriconi, ou institucionais, onde se inscreveria a inclusão do Velho Capitão no Livro dos saberes, Simões é antes de tudo um tema que apaixona. Melhor exemplo não há do que a resposta de Mário Mattos, cerca de 20 anos depois, ao artigo Escritor representativo 2 , no trabalho inédito intitulado O reconhecimento de Simões Lopes Neto: uma revisão à crítica de Wilson Martins (agosto de 2002). O mesmo sentimento me fizera redigir também uma contestação indignada das teses do autor da monumental História da inteligência brasileira, sob o título de Modernismo e 2 MARTINS, Wilson. In Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28-5-1983. O pesquisador Mário Mattos vem preocupando-se com esse ponto há vários anos. Vide MATTOS, Mário. Simões Lopes Neto nas asas da modernidade. In Diário Popular, Pelotas, 9- 3 – 1994 e do mesmo autor Os embaraços ao desenvolvimento do MTG e Os mitos na simbologia da cultura e Simões Lopes no Terceiro Milênio (textos inéditos, 1999).Para maiores detalhes sobre este assunto vide também Anais do II Seminário de Estudos Simonianos. Pelotas: Ed. Universitária UFPEL, 2001, pp. 154-157. 20 Regionalismo (ensaio inédito, 1999) 3 . Esse trabalho já se encontra superado pelo artigo de Mattos, o qual esperamos venha logo a público. Outro sinal visível de paixão, elemento notado e elogiado pela pesquisadora Cláudia Antunes, foi a repercussão da palestra ―Contos gauchescos: uma obra-prima do mau gosto‖ realizada, no foyer do Teatro 7 de Abril, pelo prof. João Arendt, em 13-11-2002, durante o exitoso projeto da Secretaria Municipal de Cultura de Pelotas, ―É conversando que a gente se entende‖ , conforme se pode observar pelo comentário de M. L. Vollosky feito no artigo Uma lição de coragem publicado no jornal Diário Popular, de Pelotas, em 19-11-2002. Vale dizer que foi possível perceber, dentre as diversas abordagens realizadas no Simpósio, a presença de um ―Simões contaminador‖, isto é, um autor que teve sua obra como fonte de outras produções estéticas não literárias e, em contrapartida, recebeu novas leituras de sua literatura permeadas pela interpolação de diversificadas linguagens dos multimeios e de outras formas de arte, tais como a pintura, a música e o teatro. Apenas para que possamos 3 Para maiores detalhes sobre as divergências com as teses de Wilson Martins, vide Anais do II Seminário de Estudos Simonianos. Pelotas: Ed. 21 exemplificar, busquemos na memória a exposição Mítica Simoniana, do artista plástico goiano 4 Fábio Borges, no Centro de Integração do Mercosul, cuja vernissage , em 2011-2000, marcou a abertura do II Seminário de Estudos Simonianos. O próprio artista em declaração à imprensa revelou esse poder ―contaminador‖ do autor de Contos Gauchescos (1912): Não é um trabalho de ilustrar os contos, mas de unir o que há de comum entre a minha linguagem e a de Simões Lopes Neto.5 As edições populares, tais como as da Martin Claret e da L&PM, se multiplicam 6. Se de um lado, isso confirma a penetração da literatura simoniana entre diversos tipos de leitores, oriundos de variegados lugares sociais e níveis de ensino, de outro, se pode incorrer no risco da falta de critérios editoriais confiáveis, inclusive com erros a respeito de informações básicas, do que é exemplo a edição do Cancioneiro guasca, surgida em 1999, pela casa publicadora Universitária UFPEL, 2001, pp. 154-157. 4 Em notícia do jornal Diário Popular, Pelotas, de 25-11-2000 aparece a informação de que o artista plástico Fábio Borges é carioca. 5 Cf. RIBEIRO, Roberto. Exposição sobre a obra e Simões Lopes amanhã. In Diário Popular, Pelotas, 19-11-2000. 6 Para maiores detalhes vide CRUZ, Cláudio. Simões Lopes a mancheias. In Cadernos Porto e Virgula. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1999, pp.11-14. 22 porto-alegrense Sulina, onde se afirma que a referida obra apareceu apenas postumamente. Depois veio a edição, em formato pocket, do Negrinho do Pastoreio e outras histórias, comemorativa dos 109 anos do Diário Popular, de Pelotas, com seleção e notas de Mário Osório Magalhães. A capa foi ilustrada com uma fotografia de Carlos Queiroz, a partir de uma escultura de Antônio Caringi. Esse tipo de trabalho, meritório por colocar ao alcance do grande público obras importantes a preços acessíveis, notadamente do público escolar, possui o inconveniente de poder desorientar o leitor não especializado quanto à bibliografia exata do autor, posto que sabemos nunca ter Simões publicado qualquer livro com este título, tratando-se, pois, de uma coletânea. De qualquer forma, isso mais demonstra o interesse na divulgação de sua obra. A universalidade simoniana, sempre tão contestada em função de sua linguagem dialetal gauchesca, não se tem mostrado elemento impeditivo de sua acolhida, inclusive através de uma das mais fecundas atividades interculturais, tanto que Simões Lopes Neto tem sido traduzido para o espanhol, o inglês, o francês, o italiano, o alemão, o russo e agora para o japonês, conforme atesta o catálogo da editora 23 Shinseken 7 (2002-2003), no qual constam Trezentas onças (ilustrado por Clóvis Garcia) e O Negrinho do pastoreio (ilustrado por Clarice Jaeger), ambos traduzidos por Mayumi Watanabe e Sachito Tsuda. Ainda na linha de popularização da obra simoniana, uma salutar iniciativa coube ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre, que publicou a série Lendas gaúchas, no ano 2000, onde constavam trabalhos do Rapsodo bárbaro. 8 Temos ainda livros infantis calcados nas lendas simonianas, tais como Negrinho do pastoreio e Boitatá, editados pela Sabida, s/d., integrantes da ―Coleção Folclore em atividades‖. Essas manifestações de popularização da literatura de Simões Lopes Neto através de edições voltadas ao grande público e da divulgação mediada pelos encartes jornalísticos, em formato atraente e com ilustrações bonitas, possibilitaram a afirmação senão de um ―Simões canônico‖9, pelo menos, o encaminhamento de um Simões em vias de reconhecimento, a partir de sua próximidade com o público leitor. 7 Catálogo cedido gentilmente pelo pesquisador Adão Monquelat. Cf. Lendas gaúchas. Porto Alegre: Zero Hora/ Pioneiro, 2000. De Simões Lopes Neto encontra-se: V. 1: Negrinho do pastoreio, pp. 6-15; V.2: Casa de M´bororé, p. 27, e Lunar de Sepé, pp. 30-33; V. 3: A M´ boitatá; V.4: Mãe mulita, pp.4-8; V. 5: Salamanca do Jarau, pp. 4 -36. 8 24 Considerando esses impulsos de divulgação da obra lopesnetina, deve-se assinalar a interessante iniciativa de gravá-la em fita ou CD, juntamente com a obra de outros autores gaúchos, tais como Lya Luft e Luís Fernando Veríssimo, para utilização de portadores de deficiência visual. 10 Além disso, a gravadora carioca Luz da Cidade lançou quatro CDs referentes a Simões Lopes Neto, narrados por Paulo César Pereio, sendo o primeiro uma antologia11, e os demais, os Casos do Romualdo, na íntegra. Em disco, fora do circuito comercial, temos ainda o Negro Bonifácio, narrado pelo escritor Aldyr Garcia Schlee, como anexo à dissertação de mestrado de Cláudia Antunes, apresentada na PUC-RS, e o CD Simões Lopes Neto: sonhos e sons (2002), produzido por mim especialmente para o programa ―Palavra Liberdade‖, na Rádio Comunidade FM, emissora comunitária mantida, fundamentalmente, pelo movimento sindical de Pelotas, programa este reproduzido via Internet, pela rádio da Casa de Cultura Lázaro Zamenhof. 9 Vide BORGES, Luís. Simões Lopes Neto: um canônico na fímbria do cânone. (Ensaio inédito). 10 Cf. Autores gaúchos em audiolivros. In Zero Hora, Porto Alegre, 10-5-2000. 11 O conteúdo do disco é o seguinte: Negrinho do pastoreio, O mate do João Cardoso; Trezentas onças e Algumas miudezas. 25 A intuição de que o Velho Capitão, se não o foi para si era um bom negócio para os outros, seguida pela editora Echenique e, mais tarde, pela Globo, é inegável pela sua vitalidade editorial. Nesse sentido, o boom simoniano, se assim nos podemos expressar, expandiu-se, quando sua obra caiu em domínio público, podendo, deste modo, ser editada sem o pagamento de direitos autorais. Outro fator importante foi a publicação, no início da década de 80 do século passado, do livro pioneiro de Carlos Reverbel, Um Capitão da Guarda Nacional, pela Martins Livreiro. Em verdade, a trajetória da pesquisa e do resgate da vida e obra de Simões Lopes Neto12, obrigatoriamente, em sua fase heróica, tem de ser contada desde os anos 40 até 1981 – a Era Reverbel. Daí pra frente, temos alguns marcos indispensáveis na reflexão sobre os rumos da pesquisa lopesnetina. Vejamos alguns: a descoberta de Olhos de remorso pelo historiador Mário Osório Magalhães 13 , em 12 Para maiores informações vide BAVARESCO, Agemir e BORGES, Luís, opb. cit, pp. 86-119. 13 Para maiores informações vide o livro Novos textos simonianos. Pelotas: Confraria Cultural e Científica Prometheu/Livraria Lobo da Costa, 1991. Ver também BAVARESCO, Agemir e BORGES, Luís. História, resistência e projeto em Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS Editor, 2001, p. 95 e 113-114, notas 83-85 e 88. Esse debate também apareceu no II Seminário de Estudos Simonianos. Vide os respectivos Anais. Pelotas: Ed. Universitária UFPEL, 2001, pp. 181-182. 26 1985, quando teve grande repercussão na imprensa. Esse conto seria incluído na edição crítica de Lígia Chiappini, de 1988. Nesse mesmo ano, os pesquisadores Adão Monquelat e Geraldo Fonseca publicaram a Antologia poética (E alguma prosa de e sobre) Lobo da Costa, obra para a qual me cedem para um ensaio sobre o regionalismo do autor de Lucubrações (1874) dois sonetos14 de Simões Lopes Neto, cuja face poética, com exceção dos triolés das ―Balas de estalo‖15, era ainda desconhecida. O pesquisador Adão Monquelat inaugurou uma nova e significativa fase nos estudos simonianos, pois é ele o 14 Esses poemas, Réve e Duvida, foram divulgados em artigo de Monquelat ao jornal Diário da Manhã, Pelotas, em 30-6-1991. Posteriormente apareceram em Novos textos simonianos (1991, pp. 17 e 19) e no nº 17 dos Cadernos Porto & Vírgula. Porto Alegre: Unidade editorial/ Prefeitura Municipal, 1999, pp. 53-54. Cabe observar que esses poemas já haviam sido desentranhados do esquecimento dos jornais antigos desde, pelo menos, a segunda metade da década de 80 do século passado, quando Monquelat e Fonseca, completaram outra obra importante: Coletânea e notas biográficas de poetas pelotenses (1985), que infelizmente permanece inédita. Além disso, apareceram também na Revista ZH, do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, na matéria Baús revelam poemas de Simões Lopes Neto, de autoria do jornalista Klécio dos Santos, em 26-5-1996. 15 Sobre as ―Balas de estalo‖ vide o livro de Ângelo Pires Moreira, A outra face de Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983. Mais tarde, em seu artigo João Simões Lopes Neto: a face romântica, incluído em Novos textos simonianos (pp. 13-22), o pesquisador Monquelat revela a data em que efetivamente estrearam as ―Balas de estalo‖, isto é, em 12-6-1888, e não em 2-7-1888 como supunham Reverbel e Pires Moreira. 27 único a ter descoberto um conto urbano de João Simões Lopes Neto 16 , Na lagoa... do Fragata 17 , encontrando tal revelação grande ressonância na mídia18. Alia-se a essa nova fase de impulso à pesquisa lopesnetina os trabalhos no campo da estilística e da biografia de Carlos Francisco Sica Diniz.19 Outro ponto marcante no resgate da obra simoniana foi a publicação de O teatro de Simões Lopes Neto (v. 1), sob 16 Cf. ARRIADA, Eduardo e BORGES, Luís. Laçando o boi barroso: o caso de atribuição de autoria do conto „Olhos de remorso‟ a João Simões Lopes Neto (Ensaio inédito). 17 Publicado originalmente no Radical (Pelotas), ano 1, nº 12, em 22-3-1890, sob o pseudônimo de João Felpudo. Posteriormente apareceu na edição de 30-6-1991 do Diário da Manhã, Pelotas, inserido ao final do artigo de Monquelat, Capitão João Simões ... e sua cia. de Joões. Depois foi republicado ainda em Novos textos simonianos, pp. 53-60; e CRUZ, Cláudio. Cadernos Porto &Vírgula, n. 17. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1999, pp. 57-62. 18 Cf. Uma herança de inestimável valor. In Zero Hora, Porto Alegre,26-5-1996. 19 Cf. DINIZ, Carlos F. Sica. Simões Lopes Neto – o espaço da linguagem. In Diário Popular, Pelotas, 4 -3-2001. Vide também Um conto bem contado. In Novos textos simonianos, pp. 41-46. Quanto às pesquisas biográficas de Sica Diniz tivemos duas amostras nas palestras proferidas em 11-6-1996, quando da realização do I Seminário de Estudos Simonianos, e em 14 –11-1999, quando ocorreu o III Encontro Sul-Brasileiro de Escritores, promovido pela Academia Sul-Brasileira de Letras, Casa Brasileira de Cultura e UCPEL. Cabe observar que foi no referido Encontro de Escritores, a partir da palestra do prof. Sica Diniz, que o prof. Bavaresco ―descobriu‖ Simões Lopes, passando a incorporá-lo como objeto de sua investigação filosófica, notadamente sob os aspectos ético-metafísicos e de filosofia intercultural. (Cf. COGOY, Carlos. Filosofando com Simões Lopes. In Diário da Manhã, Pelotas, 24-12-2002.) 28 os auspícios do Instituto Estadual do Livro, em 1990, organizado por Cláudio Heemann. Em 1987, Dilmar Messias, responsável pela política teatral do Rio Grande do Sul, considerou relevante a pesquisa das artes cênicas e da dança no estado.20 Heemann, ligado ao teatro desde a adolescência, aceitou a tarefa, proposta pela Coordenadoria de Artes Cênicas do CODEC, de investigar a história do palco rio-grandense, chegando a publicar uma História do teatro no RS. Na trilha desse trabalho beneditino, percorrendo acervos diversos e bibliotecas durante dois anos, auxiliado por Cheila Moro, trouxe à baila teatrólogos soterrados pelo tempo, tais como Joaquim Alves Torres, cuja obra, em 1989, foi editada pelo IEL.21 Municiado dessa experiência era sabedor de que, a começar por Augusto Meyer, passando por Reverbel, Guilhermino César, Flávio Loureiro Chaves, Antônio Hohlfeldt e outros, as referências ao teatro de Simões Lopes Neto eram invariavelmente as mesmas, quase sempre distantes das fontes primárias. Estava aí a necessidade de se 20 APPEL, Carlos Jorge. Afinal o teatro de Simões Lopes Neto. In HEEMANN, Cláudio (org.). In O teatro de Simões Lopes Neto. V. 1. Porto Alegre: IEL, 1990. 21 Idem. 29 buscar – caso existissem - os originais ou as raríssimas publicações. Segundo Sérgio da Costa Franco 22, a ―descoberta‖ de Heemann, que já havia desenterrado outros dramaturgos, mesmo muito importante, afirmava ainda mais o contista Simões contra as demais facetas de seu inquieto espírito criador, pois conforme afirmou Mozart Victor Russomano23, nem as crônicas, nem o teatro, nem as conferências, nem os poemas de João Simões Lopes Neto acrescentam algo à sua glória literária [...] porque a glória verdadeira de Simões Lopes está conquistada e consolidada, definitivamente, pelas Lendas do Sul e pelos Contos Gauchescos. Os Casos do Romualdo foram uma exceção, dessas que não se repetem. Cláudio Heemann observa, entretanto, que a obra de Simões Lopes Neto, especificamente sob o ponto de vista dramatúrgico, não deve ser encarada como apêndice ou curiosidade no conjunto da produção de um novelista clássico, mas é antes a expressão de um estro cênico que não encontrou no ambiente provinciano de Pelotas, em que se 22 Cf. A descoberta. Recorte do jornal Zero Hora, Porto Alegre, existente na Biblioteca Pública Pelotense, do mês de julho, sem identificação de dia e ano. Suponho, contudo, que o ano seja o da publicação do livro. 30 manifestou, a atenção e o cuidado que o encaminhassem à maturação plena. Conclui ele ainda: Em conjunto, as comédias de Simões Lopes Neto, as cenas avulsas, o drama que nos chegou com falta de um ato e os roteiros para revistas musicais, mesmo limitados ou inconclusos, não revisados ou em fase de elaboração cuja terminalidade só podemos presumir, posicionam seu autor na dramarturgia gaúcha. Como no caso de Qorpo Santo, o valor deste teatro se afirma dentro do fragmentário. Mas nem por isso destituído de valor , importância ou encanto cênico. Pois mesmo nos momentos em que a sua consistência literária apresenta-se com menor inteireza, a vocação cênica é inegável. 24 Na ocasião em que Heemann divulgou seu livro, contendo as 13 peças de Simões Lopes Neto, a imprensa mobilizou-se em louvar – com justeza - os achados do pesquisador, ―decorrentes de complicadas investigações‖.25 Na ocasião, Sérgio da Costa Franco tratou de lembrar que Carlos Reverbel, em sua modéstia, não quis imiscuir-se na pesquisa de Heemann, o que lhe teria facilitado o caminho, uma vez que em seu Um Capitão da Guarda Nacional escreveu: 23 RUSSOMANO, Mozart Victor. Como se fosse um prefácio. In Novos textos simonianos, p. 11. 24 CF. HEEMANN, Cláudio. O teatro de Simões Lopes Neto. Porto Alegre: IEL, 1990. 25 Sérgio da Costa Franco, no recorte citado. 31 Mais adiante, por volta de 1955, os salvados desse arquivo [de Simões Lopes Neto] foram doados a Mozart Victor Russomano, que os recebeu com estas palavras: ―o arquivo de J. Simões Lopes Neto foi espoliado através de anos. Hoje está entregue às minhas mãos pela viúva do saudoso escritor. Reduz-se a um amontoado de documentos desorganizados – muitos dos quais de vital importância para a história do Rio Grande do Sul -, que reclamam classificação e detalhada pesquisa.‖ 26 É ainda Mozart Victor Russomano quem esclarece o impasse entre as opiniões de Sérgio da Costa Franco e Carlos Jorge Appel, que debatiam ―a conhecida e provinciana história do pai da criança‖: A pesquisa sobre o teatro no Rio Grande do Sul, desenvolvida por Cláudio Heemann, sob patrocínio do CODEC e com o estímulo entusiasmado de Carlos Jorge Appel, trouxe à luz do conhecimento público, não a existência das peças do velho Simões (das quais se tinha ampla notícia, mas os textos , em número de doze, alguns incompletos e secundários, dos quais alguns aparecem neste livro [de Heemann], acrescido de Os Bacharéis, que Regina Clara Simões Lopes obteve no Rio de Janeiro, completando, assim, o que havia, a propósito, no arquivo do escritor.27 Paralelamente às atividades individuais de pesquisa, observamos surgir várias entidades, como o Núcleo de 26 REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981, p 252. 27 RUSSOMANO, Mozart Victor. O arquivo de Simões Lopes Neto. In HEEMANN, Cláudio (org). O teatro de Simões Lopes Neto. Porto Alegre: IEL, 1990. 32 Estudos Simonianos, do Instituto Histórico e Geográfico de Pelotas, o Instituto João Simões Lopes Neto e, mais recentemente, o Grupo de Pesquisa Simoniano, ligado ao Instituto Superior de Filosofia da UCPEL. Nessa orientação, vão também os eventos do I e II Seminário de Estudos Simonianos (1996 e 2000, respectivamente) e, em dezembro de 2002, o Simpósio Simoniano - Lendas do Sul, cujo registro são os presentes Anais. Todos estes encontros foram momentos decisivos para os pesquisadores e interessados na vida e obra de Simões Lopes Neto, posto que eles nos deram uma idéia do ponto em que estão as pesquisas e as linhas em que mais se desenvolvem, permitindo um significante saldo coletivo. Lembra-me justamente no concernente aos objetivos propostos na realização do Simpósio Simoniano - Lendas do Sul, de que estava a superação de competitividades funestas, intrigas pessoais e polêmicas intransigentes. Soubemos, pois, com satisfação que esse propósito foi atingido, não só pela representatividade institucional do evento, que contou com a participação do NES/IHGPEL, ASBL, APEL e SECULT/Pelotas, capitaneadas pelo ISF/UCPEL, mas também pelas perspectivas abertas pelos debates ali travados, sendo um dos mais importantes o que foi sugerido 33 por Mário Mattos, durante a palestra do prof. Luís Augusto Fischer, que deverá se concretizar através de painéis, em 2003, sob o título geral de As raízes populares da gauchesca rio-grandense 28. O Simpósio Simoniano - Lendas do Sul logrou continuar a tradição de, ao lado de grandes nomes sediados em Pelotas, trazer renomados pesquisadores da Capital, entre os quais se destacam o prof. Fischer e a jornalista Cláudia Antunes. Aliás, esta última pesquisadora, aplicando a crítica genética a Simões, mais especificamente ao conto Negro Bonifácio 29 , fez uma importante descoberta: a publicação no jornal Diário Popular de contos, inclusive já em 1911, que irão integrar sua obra mais famosa, Contos gauchescos. 30 28 Cf. e-mail de Mário Mattos, em 9-1-2003. Esse tema, o que mostra a pertinência da sugestão, surgiu no debate sobre tradicionalismo/modernidade na identidade do gaúcho, principalmente na literatura, o que foi objeto da mesa-redonda ―Literatura gaúcha com cara universal‖, mediada por Luís Borges, de que participaram Agemir Bavaresco, Manoel Soares Magalhães e Charles Kiefer. A atividade aconteceu durante a 30a. Feira do Livro de Pelotas, no dia 12-11-2002, no auditório do Colégio São José. Obs: Eurico de Souza Gomes não compareceu por motivo de doença em família. 29 ANTUNES, Cláudia Rejane Dornelles. Simões Lopes Neto: a lógica da criação literária. O exemplo do conto Negro Bonifácio. 2 v. Porto Alegre: PUCRS. Dissertação de mestrado, 2001. 30 Cf. RIBEIRO, Roberto. Contos gauchescos em primeira mão. In Diário Popular, Pelotas, 4 –3- 2001. 34 Em maio de 2000, encontrei também no Diário Popular, de 2-11-1912, a primeira manifestação crítica sobre os Contos gauchescos, de Januário Coelho da Costa (1886-1949), sendo que até então tal prioridade era concedida a Antônio de Mariz (1855-1929) (pseudônimo de José Paulo Ribeiro), cujo trabalho crítico sobre Simões Lopes Neto apareceu no Correio do Povo, de Porto Alegre, em 7-11-1913, e mais tarde, em 17-11-1913, no periódico pelotense Opinião Pública. 31 Nos ecos das novas hermenêuticas e descobertas se desenvolviam os ―transbordamentos‖ da literatura simoniana para outras linguagens, sendo uma das mais peculiares e atraentes as Histórias em Quadrinhos (HQ). Em 1976, na revista Parelelo 32 , quadrinizado por Santiago, aparece o conto O jogo do osso e agora, durante a realização do Simpósio Simoniano - Lendas do Sul, tivemos a exposição da Salamanca do Jarau em HQ, trabalho de autoria do desenhista Saulo Morales. 31 Para maiores detalhes vide BORGES, Luís. Primeiras manifestações críticas sobre Contos gauchescos: Coelho da Costa e Antônio de Mariz. (Ensaio inédito, 2001) Vide também breve comentário em BAVARESCO, Agemir e BORGES, Luís. História, resistência e projeto em Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS Editor, 2001, pp. 87-89. 32 Cf. Revista Paralelo, nº 2, out. 1976, pp. 14 -18. 35 Talvez seja na música que possamos constatar os primeiros ―transbordamentos‖. Luís Cosme (1908-1965) compôs, em 1936, uma trilha baseada na Salamanca do Jarau.33 Em 1945 ela foi usada pela primeira vez num balé, montado pela coreógrafa Tony Petzhold (1914-2000). Em 1985, o espetáculo do Balé Phoenix, dirigido pela mesma coreógrafa, foi remontado. Será somente 17 anos depois, nos dias 20 e 21 de dezembro de 2002, que o espetáculo de dança retornará34, dessa vez com o acompanhamento da OSPA e direção artística e coreografia de Eva Shul, com regência e direção musical de Ion Bressan. Outros grandes intérpretes e compositores da música gaúcha e brasileira também usaram a literatura simoniana como fonte de inspiração 35. 33 COSME, Luís. A Salamanca do Jarau: bailado sobre a lenda missioneira. Porto Alegre: Movimento, 1976. Vide também GUEDES, Paulo. Salamanca do Jarau [comentário sobre a música de Luís Cosme]. In Província de S. Pedro. Porto alegre: Globo, n. 3, dez. 1945, pp. 92-93. 34 A montagem foi o resultado de um concurso promovido pela SEDAC, em 2001. 35 Sem fazer um levantamento exaustivo foi-nos possível listar as seguintes composições musicais que buscaram em Simões Lopes Neto sua fonte: Meu rosilho Piolho (Ramiro Amoril/Joca Martins, CD: Vida Buena, 2000); No manantial (Vítor Ramil, CD: Ramilonga, 2000); Correndo eguada (Alex Silveira, CD: De quem anda por aí, 2000); Negrinho do pastoreio (Barbosa Lessa, CD: 50 anos de música, 2001); Negro Bonifácio (Antônio Augusto Ferreira/Mauro Ferreira/Luís Bastos, CD: Tertúlia Nativista, do festival realizado em Santa Maria, RS, 1985); Cruzilhada (Tiago Cesarino, CD: 18º Reponte, festival realizado em São Lourenço do Sul, RS, 2002); Olhando o cerro do Jarau (Rodrigo Bauer/Mauro Moraes, CD: Autores gaúchos, 2002); Quisera ter sido 36 É no teatro, porém, que Simões Lopes Neto tem recebido grandes abordagens, pois, ao lado dos aspectos cênicos e plásticos (cenários, figurinos, etc), muitas vezes, temos uma incursão concomitante pelo musical. Em 1989, a diretora Inês Marocco, do grupo de teatro da UFSM, produziu o espetáculo Manantiais, para divulgação no exterior, mais especificamente no Marrocos.36 Esse espetáculo tinha enquanto proposta, eis que visava atingir um público estrangeiro alheio ao universo cultural pampino37, tentar universalizar o mais possível a linguagem simoniana. 38 Diferentemente dessa circunstância, mas tomando Manantiais como uma referência, o diretor e dramaturgo Valter Sobreiro Júnior pretendia montar uma peça também a partir dos textos simonianos. Lucidamente sabia que era já território bastante visitado, principalmente em se tratando das Lendas do Sul. (Jaime Caetano Braum/Leonel Gomes, CD: No compasso de meu mundo [de Jari Terres], 2001); Sagração a M‟boitatá (Ribeiro Rudson/Airton Pimentel, CD: 30ª Califórnia da Canção Nativa, festival realizado em Uruguaiana, RS, 2001) e O jogo do osso, composição inédita de Antonio Guadalupe Júnior, de quem colhemos todas essas informações. 36 SOBREIRO JR., Valter. Contos gauchescos: uma experiência cênica. In CRUZ, Cláudio. Simões Lopes Neto. Cadernos Porto & Vírgula, n. 17. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1999, p. 84. 37 Expressão de Januário Coelho da Costa, utilizada na primeira manifestação crítica sobre Contos gauchescos, publicada no Diário Popular, Pelotas, 2-11-1912. 37 Nessa direção, buscou um novo desafio: a experiência cênica dos Contos gauchescos. Seu público-alvo eram, principalmente, os estudantes das escolas públicas e particulares de Pelotas e região. 39 Numa enquete informal o seu grupo chegou a preocupante constatação: ―Ao contrário do que se imaginava, a leitura das obras de João Simões Lopes Neto cingia-se a um grupo restrito e, principalmente, ao obrigatório das aulas de literatura e dos programas de vestibular.‖40 Pronto. Estava instituído o norte do trabalho: o estímulo à leitura de Simões Lopes Neto.41 As reuniões preparatórias tiveram a parceria do Teatro Permanente da UCPEL e o Teatro Escola de Pelotas, nas quais foram estudados os Contos, tanto em seus aspectos socioculturais quanto lingüísticos. Ao final de quatro meses de estudos e ensaios, com música de Leonardo Oxley Rodrigues, estava pronto para nascer o espetáculo Teias de amor e morte. 38 SOBREIRO JR., Valter, ob. cit., p. 85. Idem, ibidem. Idem. 41 Idem. 39 40 38 A peça estreou em Ijuí, em setembro de 1998, como uma das atividades artísticas que compunham programação da Feira do Livro do município. a No ano seguinte, até outubro, sucederam-se encenações em Pelotas e Canguçu.42 Segundo Michele Ferreira43, o ator paulista José de Abreu, hoje conhecido artista da Rede Globo, vindo da Grécia em companhia de sua esposa, Nara Keisermann, pelotense de nascimento, passa a residir em Pelotas desde 1973. No ano seguinte, ele participa de um movimento que visava contrapor-se à venda do Teatro 7 de Abril e sua possível demolição. A mobilizacão, da qual participou ativamente José de Abreu, culminou com a desapropriação do prédio por parte da Prefeitura Municipal e seu tombamento pelo IPHAM. Em 1975, estréia no Teatro 7 de Abril, a peça A Salamanca do Jarau, com adaptação e direção de Luiz Artur Nunes e trilha sonora de Carlinhos Hartleb, tendo como ator principal e produtor José de Abreu. A peça percorreu 90 cidades em todo o RS, fazendo ainda uma temporada de 42 Informações prestadas pelo diretor e teatrólogo Valter Sobreiro Júnior em conversa telefônica informal. 39 duas semanas em São Paulo, primeiro no Teatro Municipal, por intermédio de Sábato Magaldi, e depois no MASP. O espetáculo foi aclamado pela crítica e pelo público. O sucesso, conforme Roberto Ribeiro 44 , proporcionado pela Salamanca do Jarau, em ―montagem moderníssima e experimental‖, fez com que José de Abreu recebesse um convite, em 1980, quando abandonou Pelotas, para participar do filme A intrusa, baseado na obra de Jorge Luís Borges, recebendo o kikito de melhor ator no Festival de Cinema de Gramado. Recentemente dois esquetes, ancorados em textos lopesnetinos, foram montados. Um deles em 28-11-2002, numa apresentação única no Auditório do CEFET-RS, exibido pela Cia. Cem Caras, grupo amador dirigido por Flávio Dornelles, que apresentou O jogo do osso. O outro aconteceu na abertura do Simpósio Simoniano - Lendas do Sul, quando o grupo Tribo da Lua, cujo diretor é Aceves Moreno, encantou o público com magistral encenação. Apenas de 1999 em diante é que surgiram produções baseadas na obra do maior regionalista brasileiro, no campo 43 FERREIRA, Michele. José de Abreu, cidadão pelotense. In Diário Popular, Pelotas, 6-11-2002. Obs: José de Abreu é sócio honorário do Instituto João Simões Lopes Neto. 40 da ―sétima arte‖.45 O filme Cobra de fogo, baseado na lenda do Boitatá, tem o roteiro e direção de Antônio Carlos Textor, fotografia de Antônio Oliveira e trilha sonora de Heitor Barbosa. No elenco estão o cantor nativista Telmo de Lima Freitas, o tradicionalista e escritor Antônio Fagundes e a atriz Maria Fakembach 46. Produções para TV e vídeo são também atividades recentes. Em 29-2-2000, na sala multiuso do SESC-Pelotas, houve mostra pública do vídeo O mate do João Cardoso 47. O vídeo, em verdade, é a gravação da peça teatral adaptada do conto simoniano por Chico Meirelles, com música de Sueli Costa e Lisiara Silva. A produção do vídeo foi do Grupo de Teatro Regionalista, contando com o apoio do SESC e da Casa de Brinquedos/Cooperativa de teatro. O Grupo de Teatro Regionalista é formado por vários integrantes de CTGs de Pelotas e surgiu em 1999, a partir de um curso de teatro regionalista, que trabalhou somente com 44 RIBEIRO, Roberto. José de Abreu recebe título hoje. In Diário Popular, Pelotas, 5-11-2002. 45 Cf. Obra de Simões Lopes é tema de filme. In Diário Popular, Pelotas,9-7-1999. 46 Cf. Filme retrata conto de Simões Lopes Neto. In Diário da Manhã, Pelotas, 25-11-2000. 47 Cf. PARANHOS, Maristela. Obra de Simões Lopes Neto é difundida cada vez mais. In Diário Popular, Pelotas, 29-2-2000. 41 textos de Simões Lopes Neto. 48 Outro vídeo existente é Melancia-côco verde, levado ao ar pelo Canal 7, TVE, em 13-12-2002 .49 Produzido especialmente para a televisão foi o clássico Negrinho do pastoreio, que teve como protagonistas os atores João Diemer (estancieiro), William da Silva (Negrinho) e Simone Castiel (Virgem Maria), sendo a narração de Neto Fagundes. O episódio foi ao ar na RBS-TV em 17-11-2001, na série ―Histórias extraordinárias‖, sendo reprisado na TVCOM, às 21 h , e no dia seguinte mais duas vezes, às 14h10min e às 18h10min. 50 Diante do exposto, uma digressão um tanto longa para uma simples introdução, concluímos que o Simpósio Simoniano - Lendas do Sul se enraíza num rico e complexo contexto interpretativo da literatura simoniana - de sua afirmação e de seus ―transbordamentos‖ - mostrando seus percalços, suas lacunas, mas principalmente suas conquistas de resignificação do olhar simoniano e, num sentido mais amplo, da identidade cultural gaúcha e das identidades locais, em geral, em face de um mundo globalizado. 48 Cf. PARANHOS, Maristela. Idem, Diário Popular, Pelotas, 29-2-2000. 49 Informação via e-mail do poeta e compositor nativista Antônio Guadalupe Júnior. 42 50 Cf. Lendas recontadas. In Zero Hora, Porto Alegre, 17-11-2001. 43 44 1 - LENDAS DO SUL - UM ROTEIRO DE LEITURA Luís Augusto Fischer 51 Nunca retornaremos à natureza humana pré-capitalista; mas lembrar como eram seus códigos, expectativas e necessidades alternativas pode renovar nossa percepção da gama de possibilidades implícita no ser humano. Costumes em comum - estudos sobre a cultura popular tradicional E. P. Thompson Nada como um bom historiador para ajudar a pensar; nada como uma frase de Thompson para servir de guia a uma aproximação em direção às magníficas Lendas do sul, obra-chave de Simões Lopes Neto e da cultura do sul do Brasil. Pensar sobre elas, freqüentá-las, não significa uma apologia do passado, ou uma defesa da excelência do período nelas retratado, e uma conseqüente reprovação em bloco do presente; é certo que as dificuldades de nossos dias sempre - das mais amplas às mais restritas, das guerras e da fome à injustiça miúda e diária - parecem um convite a dourar o passado. Mas não é o caso aqui, nem foi o caso do autor. O que anima esta edição está apontado nas linhas da epígrafe: conhecer um mundo que não existe mais sempre 51 Professor da UFRGS. 45 pode ser uma forma de pensar sobe as potencialidades da vida humana, que não se esgota na regra do mercado, nem na regra do presente, nem na da razão. Lendas do sul, livro de Simões Lopes Neto, foi publicado em 1913, sendo o terceiro e último de seus livros que o autor viu impressos, sucedendo ao Cancioneiro guasca, de 1910, e aos Contos gauchescos, de 191252. A partir de 1926, as Lendas e os Contos passaram a ser publicados conjuntamente. E, ainda hoje, o leitor brasileiro encontra dificuldades de leitura, porque a genial criação de Simões Lopes Neto foi escrita em dialeto regional fenecido. Nessas poucas frases já se insinua uma equação imensa. Para não ir muito longe, o que significa exatamente ―escrever em dialeto regional‖? O que significa o adjetivo, no quadro brasileiro da época do autor e na nossa própria época? Estamos entrando em terreno pantanoso; tentemos não perder o senso de direção. *** 52 Publicamos, pela editora Artes e Ofícios, uma edição anotada dos Contos gauchescos (em 1998) e uma das Lendas do sul (2002), além de uma edição também anotada de Antônio Chimango, clássico de Amaro Juvenal publicado pela primeira vez em 1915. 46 País imenso e ainda hoje não incorporado totalmente - nem à lógica do mercado, nem ao âmbito de ação do Estado nacional -, é esperável que o Brasil se depare com o tema do regionalismo. Nem que seja pelo mero fato de que há regiões remotas no espaço, regiões, que ao longo do tempo, desenvolveram um jeito mais ou menos próprio de lidar com todas as coisas, da economia à cultura, da moeda à língua. O caso do Rio Grande do Sul, se visto dessa panorâmica e inocente altura, pode ser explicado por aí: sendo a província mais meridional do país, distante do Centro de turno (a Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, pela ordem de entrada em cena) e - importantíssimo - quase não acessível por mar durante os quatro primeiros séculos da vida brasileira (a maldita barra do porto de Rio Grande, único porto marítimo do estado, só deixou de ser um enigma e um risco totais no começo do século 20), desde sempre precisou o estado gaúcho inventar suas práticas. Devemos acrescentar a tais elementos um outro, quem sabe mais decisivo ainda: trata-se da situação fronteiriça do Rio Grande do Sul. Pode parecer uma trivialidade nos dias de hoje, mas ser da fronteira, ou melhor, ser a fronteira, implicava ser a face real e viva que o Império português oferecia ao Império espanhol, até o começo do 47 século 19, e depois da face do Brasil diante dos estados platinos, Uruguai e Argentina. Quer dizer: desde que esta parte do planeta foi alcançada pela civilização européia, o território do Rio Grande do Sul foi o palco mais vivo (quase foi o único de fato vivo, em todo o país) do atrito entre interesses conflitantes, às vezes chegando à expressão das armas. Traduzido em miúdos, viver no Rio Grande do Sul significou ser brasileiro e (ou ―mas‖?) precisar saber disso ao montar a metafórica ou real guarda dos limites do país: significou ser brasileiro sem a inocência de sê-lo. E isso acrescido ainda da circunstância, não desprezível, de que as condições naturais da região - padrão da terra, capacidade de produção agropastoril, acesso ao mar - assim como as condições históricas - a presença forte de índios de certo padrão de vida, os jesuítas e as Missões, os padrões de vida humana - enfim, de tudo isso ser compartilhado pelos habitantes tanto do lado de cá como do lado de lá da fronteira. Os habitantes do Rio Grande do Sul eram por assim dizer iguais aos habitantes do Uruguai e da Argentina, mas o tempo todo precisavam afirmar a pouca diferença pouca mas decisiva, porque era justamente essa diferença o que regulava as relações por aqui. Ser partidário de Portugal 48 ou da Espanha, ser brasileiro ou ser uruguaio e argentino, isso acabava pesando mais que toda a realidade cotidiana de trabalho e fruição da natureza, pastoreio e pampa. Aqui deve entrar de novo na conversa a idéia do regionalismo. Vistas as coisas desde o centro do Brasil tomemos o século 19 como referência, o Rio de Janeiro capital do Império e depois da República - a região sul era parte do Brasil, sem dúvida, mas uma parte apenas. Não poderia ser tomada como regra do centro, naturalmente: o centro só é centro, porque ele comanda regiões periféricas. Além disso, naquela época como agora, o Sul do Brasil não parece alcançar nem reproduzir a idéia de representação que o Brasil faz de si mesmo, a cada geração renovadamente, país periférico mas com fumos de autonomia que é. O Rio Grande do Sul não parece caber nunca nos elementos identitários, sejam eles as palmeiras e os sabiás ou os índios que casam com brancas, nos termos do Romantismo, sejam eles a malemolência do samba ou a excelência da mulata e do malandro, nos termos da Era do Samba, sejam eles, ainda, a negritude explícita e batuqueira na beira de uma praia tropical paradisíaca, nos termos atuais desta espécie de Grande Bahia que ocupa o cenário mental de nossos dias. 49 Nada disso. Aqui temos a linha reta do pampa no lugar das palmeiras e da praias; temos o gaúcho, originalmente um pária social e depois uma simbolização da identidade, tão arbitrária quanto qualquer outra, em lugar do malandro, a mulata, o trabalhador paulista, o caipira mineiro etc.; em lugar da malemolência sincopada do samba, a rigidez monotônica da milonga, porta de entrada de outra rigidez que foi também uma predileção sulina, o tango; em lugar da malandragem, a grossura e o estabanamento; em lugar do calor tropical, o frio. Quer dizer: não apenas o Rio Grande do Sul era e continua sendo uma periferia do centro do país; é também uma periferia esquisita, fora do âmbito identitário dominante no Brasil. O que se dirá, então, da literatura produzida em torno dessas diferenças, ou melhor, a partir da afirmação positiva das coisas identitárias sulinas, em boa parte opostas àquelas brasileiras? Está traçado o caminho do enquadramento da cultura sul-rio-grandense no escaninho fácil do ―regionalismo‖, isto é, do quadro de minoridade estética. Dez Simões Lopes Neto, com toda a sua qualidade especificamente artística, não fazem sequer sombra a um ou dois Carlinhos Brown, para fazer uma aproximação tão vigorosa quanto, talvez, perigosa, no cenário mental dominante no país de nossos 50 dias. (Isso para nem falar de outra variável, aquela que filiaria Simões Lopes Neto, de pleno direito, segundo meu ponto de vista, à tradição da gauchesca platina, filiação que ainda hoje parece arrepiar os nacionalistas rasteiros que gostam de pensar em nosso autor como alguém que se definiu, supostamente, contra os platinos. Não é lugar para esse debate, que no entanto me parece mais e mais pronto para acontecer, se não pelas evidências literárias, pelas contingências históricas, que têm desvelado a fragilidade das fronteiras nacionais na consideração de mérito do fenômeno cultural, como Ángel Rama há duas décadas apontou. Restaria, no entanto, a necessidade de apontar, ainda aqui, que o esforço construtivo da identidade gauchesca foi, em e para Simões Lopes Neto, apenas um tópico regional no contexto da condição brasileira, ao passo que, em e para os Ascasubi e os Hernández, o maior e mais prestigioso tópico identitário nacional.) *** Quando Simões Lopes Neto está publicando sua obra, década de 1910, a Literatura Brasileira é, em primeiro lugar, o que o Rio de Janeiro define que ela seja. Na prática, fazer literatura, para quem mora na então capital ou para 51 quem quer ser lido lá, ou quer no mínimo ser parecido ao que considera correto, fazer literatura é ser Olavo Bilac - fazer sonetos elegantes, de vocabulário cuidado, tendendo ao raro, sobre assunto de preferência bem afastado das durezas da vida real, sobre assunto localizado no alto da Torre de Marfim que servia de símbolo e programa de ação para os letrados nacionais, todos eles de uma francofilia quase assutadora de tão alegre. Ou então fazer literatura era fazer como Coelho Neto - um narrador que, mesmo em tema regional de seu Maranhão natal, era um preciosista, um exemplo perfeito da afetação pseudo-erudita, praticada largamente naquela altura parnasiana. (Que Simões Lopes Neto tenha dedicado parte da obra reunida em Lendas do sul ao próprio Coelho Neto é um enigma pequeno e resolvível: todos admiravam o escritor maranhense naquela época, e ele de fato era uma referência para os provincianos que queriam seguir seu exemplo, erguendo a matéria de sua região à dignidade nacional. Mas o futuro decidiu a questão, eternizando o alcance literário de Simões Lopes e restringindo tremendamente o alcance da obra de Coelho Neto.) É uma época em que várias regiões estão alcançando um padrão civilizatório inédito, com cidades de porte já 52 considerável procurando viver de acordo com as novas exigências, que envolviam uma intensa atividade jornalística, mais educação formal, maior proximidade aos padrões europeus, e correspondentemente um maior afastamento da vida rural, que havia dado substância à mesma região; e por isso mesmo, da parte dos letrados aderentes à cidade e ao que ela parecia implicar - elevação, elegância, sofisticação, até o nefelibatismo - isso parecia acarretar uma renegação, total ou parcial, das origens e de tudo o que elas implicavam. Por outro lado, e dialeticamente, é um período em que vários escritores e pensadores se proporão a tarefa simetricamente oposta a essa adesão. Estamos falando de um grupo de letrados que se vai interessar, sem método ou consciência claros, pela fixação de tipos, cenas, situações, fantasias e mesmo registros lingüísticos em vias de fenecer. Justamente a cidade moderna, esta fantástica criação humana ainda hoje enigmática, tratará de impor um nova lógica sobre toda a experiência humana; e é na cidade que se criarão tanto aqueles aderentes, que optam pela saída mais fácil, com vento a favor e sucesso fácil junto ao público ávido de parecer elegante (imagine Bilac palestrando para gente semi-ilustrada, interioranos em férias na capital, candidatos 53 a chiques etc.), quanto aos críticos, que enfrentarão a maré braba de falar daquilo que a cidade quer esquecer ou esmagar. O leitor não precisa muita imaginação para lembrar os casos brasileiros de tais escritores críticos, que colocarão sua pena a serviço do futuro: um Sílvio Romero colhendo lendas do folclore, e incentivando outros a imitá-lo; um Euclides da Cunha relatando a guerra genocida contra Canudos; um Simões Lopes Neto salvando do esquecimento figuras e cenas do sul profundo, em vias de desaparecer. No volume das Lendas do sul, temos três lendas relatadas com detalhe, em formato digamos definitivo, e quinze argumentos de lendas. Assim o autor deixou o trabalho. Essa incompletude, este aspecto de work in progress, de trabalho apresentado ao mundo ainda com os andaimes, dá a medida simoniana das coisas: parece que lhe interessava a divulgação, mesmo ao custo de certo aspecto apressado. Simões Lopes Neto quer comunicar, quer falar, quer ser ouvido. Por isso mesmo se pode compreender a concepção do livro, que talvez tenha germinado em seu espírito por muito tempo. Para ficar com um elemento concreto, veja-se que ele mesmo anota que a história registrada aqui com o nome de ―Lunar de Sepé‖ ele a ouviu no ano de 1902. Simões Lopes 54 colheu as histórias na tradição oral, propriamente dita, conviveu com o material por longo tempo e depois publicou o resultado, na forma de três relatos e quinze esboços, isso sem falar de sua primeira publicação em livro, o Cancioneiro guasca, recolha bastante aleatória, ainda que significativa, deste material. Não foi o primeiro a fazer isso, naturalmente. Antes dele, aqui mesmo no Rio Grande do Sul já alguns intelectuais haviam se preocupado com a fixação da memória popular. Como lembra Reverbel53, a partir de 1880 Karl von Koseritz se pôs à tarefa, instado pelo folclorista-mor do período, Sílvio Romero; depois dele, o grande animador da Sociedade Partenon Literário, Apolinário Porto Alegre, que recolheu (imperfeitamente, na avaliação de Augusto Meyer) o que chamou de ―cancioneiro de 35‖, motivos poéticos e poemas que teriam circulado no estado 53 Um capitão da guarda nacional, p. 222. 55 durante a guerra dos Farrapos; e assim também Graciano Azambuja, Cezimbra Jacques, Luís de Araújo Filho e, mais recentemente, Barbosa Lessa e Aparício Silva Rillo. No centro do Brasil, como anota Lígia Chiappini 54 , estão engajados em tarefa semelhante escritores de nomeada, como os já mencionados Bilac e Coelho Neto, que publicam conjuntamente Contos pátrios, em 1904. O sentido edificante de todos estes empenhos é bastante claro, chegando mesmo ao compromisso patriótico no conhecido caso de Bilac, ou ao quase delírio de Por que me ufano de meu país, do conde Afonso Celso, obra publicada em 1900, que marcou época e ficou na memória da língua com a alusão ―ufanismo‖. Mas é de lembrar que não era exatamente este o ânimo inicial daqueles que, na Europa e depois na América, recolheram pelas primeiras vezes o material que depois viria a ser chamado de ―folclore‖; estes, ainda que animados de algum nacionalismo, atuaram muito mais na perspectiva de salvar do esquecimento elementos com que se identificavam eles própri os, ou com as pessoas 54 de determinada No entretanto dos tempos, p. 104. 56 região, em geral, elementos que poderiam parecer inúteis ou meramente instrumentais para a cultura das capas superiores, cultura tendencialmente leiga, científica, erudita, formal, distante, desde o século 18, da vida cultural popular, plebéia55. O caso de Simões Lopes parece habitar um ponto intermediário entre os dois pólos. De um lado, sua biografia e parte de sua obra (excluindo justamente o melhor, que são os Contos gauchescos, as Lendas do sul e os Casos do Romualdo) demonstram cabalmente seu interesse por assim dizer patriótico gauchesco e brasileiro, já na militância em prol da formação de insitutições culturais, já no caráter edificante de algumas iniciativas (incluindo a quase malograda obra Terra gaúcha, de intenções didáticas, só publicada bem após sua morte), já mesmo em traços mais sutis, como as notas didáticas que apôs às Lendas. Do outro lado, porém, está precisamente o melhor Simões Lopes, o escritor que superou o mero registro folclórico, em Lendas do sul, e o mero decalque fotográfico ou histórico, em Contos gauchescos. Está aí mesmo o acerto do autor, que logrou ultrapassar as contingências tanto localistas quanto 55 Para o debate deste assunto, veja-se o citado E. P. Thompson em Costumes em comum - estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad. 57 historicistas, na direção de uma literatura madura; nas palavras de Augusto Meyer, Simões Lopes acertou foi com ―o cuidado em reconstituir o timbre familiar das vozes‖. *** As Lendas do sul, muito especialmente as três lendas desenvolvidas - ―A M‘boitatá‖, ―A salamanca do Jarau‖ e ―O negrinho do pastoreio‖ -, se apresentam com todos os apetrechos convenientes a seu estilo. Talvez não importe muito, para o leitor de hoje, o debate sobre o estatuto literário específico dos textos, se de fato estamos diante de uma lenda ou, como observa com boas razões Flávio Loureiro Chaves, se trata melhor de um conto56. Importará mais, sem dúvida, ter em mente certas variáveis históricas que enquadram as histórias aqui relatadas e lhes dão substância. Para iniciar, veja-se que os enredos se situam no tempo anterior ao mundo urbano, anterior à lógica republicana; com boa dose de certeza, pode-se mesmo dizer que a referência histórica mais recente está na altura de 1850, Rosaura Eichemberg. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. 56 Simões Lopes Neto: regionalismo & literatura, p. 79: ―A salamanca do Jarau, assim como foi redigida por Simões Lopes Neto, não é uma lenda 58 na história da Salamanca, de que participa Blau Nunes, como personagem. Quem percorreu as páginas dos Contos gauchescos lembrará que Blau é dado como um homem de seus noventa anos na apresentação do livro, editado em 1912, e que esta referência permite localizá-lo como nascido na altura de 1820, pouco mais ou menos. E lembrará que as histórias se passam entre esta data e o fim da Guerra do Paraguai, aproximadamente. Nas Lendas, temos uma narrativa que se passa em tempo rigorosamente mítico, pré-histórico no rigor do termo, ―A Mboitatá‖, referente a uma vaga era em que houve um dilúvio; outra, ―A salamanca do Jarau‖, que transcorre não entre, mas em dois momentos bastante distintos, o primeiro na altura de 1650, quando o sacristão é encantado pela princesa moura, e 1850, quando Blau encontra o fantasma dele e aceita o desafio de entrar na furna encantada; e ―O negrinho do pastoreio‖, por fim, enredo que forçosamente se situa nos limites da escravidão e da estância mais ou menos primitiva, não conectada, claramente, ao mundo do mercado, o que nos permite pensá-la, acompanhando a tradição crítica a este respeito, na altura da passagem do século 18 para o 19, e nem tampouco apenas uma nova versão da lenda. É um conto: a aventura de Blau‖. 59 aproximativamente. (Dos esboços de lendas referentes ao mundo missioneiro, já por isso sabemos que se passam até a metade do século 18, quando se operou aquela chacina contra os índios e os jesuítas, a mando das coroas ibéricas, para cumprimento do Tratado de Madri. Uma delas, ―São Sepé‖, se alimenta de fatores diretamente históricos, como o próprio Sepé Tiaraju, mas se conduz ao modo das lendas fundadoras, neste caso em relação ao Cruzeiro do Sul.) Pelo modo como Simões Lopes Neto aborda os temas humanos e sociais nas lendas, percebe-se sua nítida simpatia pela civilização missioneira, que se explicita mais claramente ainda em seu livro Terra gaúcha, editado postumamente (1955), mas escrito pelo menos desde 1904.57 Neste, lemos comentários do autor como, por exemplo, a propósito dos horrores da escravidão dos negros no Brasil: ―Foram os jesuítas os únicos que se opuseram e protestaram sempre contra semelhantes iniqüidades‖. Entusiasma-se com o fato de não ter havido propriedade privada dos meios de produção e com a simplicidade do modo de vida dos índios. Mais significativo para a perspectiva de nossos dias, Simões 57 Lígia Chiappini, no livro já citado, aventa a interessante tese de que entre Terra gaúcha e Lendas do sul haveria uma espécie de complementaridade e correspondência, sendo este o equivalente literário daquele. 60 Lopes Neto trata o patrimônio histórico das Missões como pertencente ao universo formador da história do Rio Grande do Sul, pertencimento que durante muito tempo, e até hoje mesmo, é esquecido ou renegado, recaindo a preferência de boa parte dos historiadores na data de 1737 (fundação do forte do Rio Grande por portugueses, em missão oficial). Em conferência proferida na Biblioteca Pública Pelotense, em 1905, Simões Lopes Neto especifica tal compreensão, ao dizer o futuro que imagina para seu almejado livro que viria a ser o Terra gaúcha, nesta altura apenas ideado: ―Um livro que vivesse no rancho das margens do Uruguai e no palácio das plagas do Oceano; e que das suas páginas simples e sinceras fulgisse nítida e vivaz, amorosa, exemplificadora e saudosa, a plaga dos pampas, o berço dos farrapos, a Terra Gaúcha‖.58 Não havia rupturas nem de classe, entre o rancho e o palácio, nem na geografia, desde o oeste missioneiro até o leste pelotense: tudo era Rio Grande, tudo era terra gaúcha. 58 Os dados estão no livro de Reverbel, citado. 61 O tratado de Madri, assinado em 1750, é uma espécie de chave da história do Rio Grande e do sul da América. Com ele, Portugal desistiu formalmente de manter uma posição na margem do rio da Prata, posição que tentara construir em 1680, com a Colônia de Sacramento, e portanto absteve-se de disputar com a Espanha a hegemonia daquela área. Mais ainda, Portugal assumia, em total acordo com a Espanha, o encargo de dizimar as Missões jesuíticas, que cresciam, tinham consistência econômica e representavam, para as coroas, uma ameaça geopolítica - suspeitava-se que a Companhia de Jesus teria intenções de fundar por ali um Estado autônomo. Para o cumprimento do Tratado, organiza-se um exército luso-espanhol que vai destruir os Sete Povos, entre 1754 e 56. Era o fim de uma alternativa de civilização para os índios do sul da América, que, sem ela, foram tragados pela civilização envolvente, para nunca mais. Como sempre acontece, os mortos da vida estavam disponíveis, então, para a história e a literatura. Do massacre das Missões, brotaram muitas interpretações historiográficas, e também nasceram duas vertentes de literatura: uma erudita, de pouca vigência, e outra popular, de tardia mas longa frutificação. Da primeira é exemplo 62 maior O Uraguai, poema narrativo de Basílio da Gama, editado em 1769, praticamente no calor da hora. Basílio, segundo declara em notas a seu próprio texto, resolveu escrever para que os europeus soubessem o que havia se passado aqui - sua intenção era antijesuítica, como se sabe, em função de haver sido beneficiado pelo Marquês do Pombal, o verdugo dos jesuítas em Portugal. O Uraguai não foi muito lido, apesar dos elogios que recebeu de comentadores como Machado de Assis, que teria preferido que o indianismo literário brasileiro tivesse tomado em Basílio a referência para o assunto. A outra vertente é a que vai desaguar em Simões Lopes Neto, e daí em toda a atual experiência do que, no Rio Grande do Sul, se chama de Tradicionalismo. Pode-se retraçar a história pelo menos a partir do depoimento do autor das Lendas: diz ele que colheu aqueles versos recolhidos neste volume sob o nome de ―São Sepé‖ de uma velha, em 1902, mulher esta que, suponhamos, terá ouvido de algum contemporâneo do massacre. Do mesmo manancial nasceu, por via indireta, todo um conjunto de lendas, incluindo a da Salamanca da Jarau. Dela em diante, pode-se falar com mais certeza: é certo que Érico Verissimo tomou-a como mote para a construção de uma grande 63 personagem de seu O tempo e o vento, aquela Luzia de gênio tão parecido com o da princesa moura. Mais difusamente, deve-se reconhecer que a obra de Simões Lopes Neto, quando de fato entra em circulação refiro-me à edição feita pela Globo, apenas a terceira, reunindo os Contos gauchescos e as Lendas do sul, em 1949 -, catalisa toda uma retomada do tema regional no Rio Grande do Sul. A conta seguinte parece que não foi feita suficientemente: foi quase ao mesmo tempo que Simões Lopes Neto ganhou de fato leitores, que o cosmopolita escritor Érico Verissimo, até então ocupado quase exclusivamente no tema urbano, começa a publicar sua obra prima, O tempo e o vento, cujo primeiro volume sai à luz no mesmo 1949; dois anos antes, alguns jovens interioranos, sentindo-se oprimidos numa Porto Alegre que lhes parecia descaracterizada, entregue à cultura imperialista norte-americana, resolvem unir-se para fundar o que vai chamar-se Centro de Tradições Gaúchas, impressionante movimento cultural de aspecto popular (e popularesco), de larga vigência nos dias de hoje; pouco depois, vai ser lançada a primeira edição bem feita do Antônio Chimango, ―poemeto campestre‖ que satirizava os desmandos de Borges de Medeiros e que, até então, era tido apenas como panfleto, e 64 que passa a ser visto como texto decivisivo na gauchesca sul-rio-grandense; e toda uma nova geração de escritores vai-se apresentar ao mundo a partir de então, muitos deles versando diretamente o tema local numa perspectiva ingênua ou mesmo mistificante, vistas as coisas do ângulo da cultura letrada; isso para não falar dos escritores que já vinham escrevendo sobre tema gaúcho, como Cyro Martins, Darcy Azambuja e outros. A relação foi longa e significativa; Simões Lopes Neto, com sua obra, está no miolo desta retomada. E assim acontece, é bom lembrar, por causa do nível elevado de tratamento dispensado por ele ao material com que lidou dizendo de modo mais direto, porque ele fez literatura, não ideologia. Coincidindo com intuições dos melhores escritores e críticos que se debruçaram sobre o tema da relação entre vida e mentalidade popular, de um lado, e alta literatura, de outro, Simões Lopes percebeu que era preciso reinventar os modos de escrever; daí ter plasmado, na figura de Blau Nunes, aquilo que três décadas depois uma inteligência sutil como a de Walter Benjamin diagnosticará de modo singular em seu conhecido ensaio ―O narrador‖ uma espécie de consagração, pela via literária, de uma prática ancestral e comunitária, o relato de histórias por um 65 indivíduo experiente, cuja voz merece ser ouvida porque conhece a história horizontal e verticalmente, na permanência do tempo e no deslocamento no espaço. Blau Nunes, a voz que fala desde o tempo da história local e a geografia do sul da América. Das três lendas aqui apresentadas em forma desenvolvida já se retraçou a origem, com bastante precisão59. Nesse âmbito, de vez em quando ressurge o tema da originalidade de Simões Lopes Neto, questão perfeitamente secundária, e o tema da condição autóctone ou não dos enredos, questão igualmente secundária, mas que merece um comentário. Durante muito tempo, pareceu a bons intelectuais do Rio Grande do Sul que teria maior valor aquilo que fosse puramente local, com nascimento e desenvolvimento não ―conspurcados‖ por influência estrangeira. Nessa visão, a única das três lendas verdadeiramente gaúcha seria a do Negrinho, uma vez que das outras se encontraram, em outras partes, versões mais ou menos parecidas. Trata-se de uma perspectiva que considera as coisas estaticamente, sem a necessária dialética - especialmente 59 Não é tema de nosso interesse o tópico das origens; na fortuna crítica do autor encontra-se farto material a respeito. 66 aquela que a crítica à condição colonial nos devia ter ensinado, aquela que lida com o tema da importação e da aclimatação das formas, espécie de fatalidade para países periféricos. Não vamos descer ao detalhe do argumento, que se encontra desenvolvido na obra de Antonio Candido e, mais ainda, na de Roberto Schwarz; mas vamos consignar a idéia-chave: o principal interesse do analista deveria estar na argüição sobre o modo como o autor consegue mediar entre a forma (que sempre é externa, em região colonizada) e a matéria local. A via mais adequada para alcançar bons resultados, no caso da narrativa, é pela boca do narrador60. Por tal critério, Simões Lopes foi de fato um pequeno gênio, porque conseguiu mediar entre tais limites de modo excelente, e isso para além do debate em geral mesquinho sobre a ―nacionalidade‖ da literatura e da arte. Da mesma forma, deve-se afastar do horizonte um debate igualmente nacionalista, mas neste caso anti-castelhano. Por muito tempo, e por razões óbvias ditadas pela condição de fronteira com os ―outros‖ mais evidentes, o Rio Grande do Sul assistiu a uma insana procura 60 Para quem se interessar na teoria do assunto, sugiro o artigo ―Conjecturas sobre a literatura mundial‖, de Franco Moretti (publicado no Brasil em Contracorrente - o melhor da New Left Review em 2000; organização de Emir Sader, Rio de Janeiro: Record, 2001. 67 por distinção entre o gauchismo brasileiro e o platino, o que significava negar as mais duras evidências, que nos aproximam muito mais do que nos afastam. O próprio Simões Lopes entrou no debate, ao dizer, no último parágrafo do texto, que deixa de desenvolver determinadas lendas, porque elas ―são mais do acervo rio-platense--andino‖. Mas mesmo tal delimitação não o impediu, ainda bem, de freqüentar material que seria menos brasileiro que argentino ou uruguaio. O que importa, em todos os casos, é a boa literatura. Isso sem falar na própria lenda da Salamanca, francamente ibérica, como se sabe. Ocorre que na mesma o autor conseguiu arranjar elementos claramente locais, como as Missões, cuja história ele tanto prezava, com fantasia fundadora, como é o caso do desfecho da vida do sacristão-fantasma, que tem sua maldição quebrada por Blau Nunes e, por isso, encontra a princesa moura devidamente transformada em uma formosa tapuia - desfecho que bem pode simbolizar uma espécie de matriz do homem gaúcho. Na história do Negrinho, também não chegamos a pensar suficientemente, tal o eco que ela encontra ainda hoje. Para não ir muito longe, evoco aqui apenas uma possibilidade interpretativa, aventada pela primeira vez, que 68 eu saiba, por Susana Gastal: em pleno estado do Rio Grande do Sul, de tradições guerreiras que consagraram os brancos proprietários de estância como modelares, mas exploração absurdamente cruel dos negros escravos, nas charqueadas. O símbolo maior da bênção dos céus e único santo local (e a julgar pelo debate sobre as origens, a única das lendas que seria puramente gaúcha de nascimento...) vem a ser um negro escravo, aquele que faz nascer a luz por graça da mãe de Jesus. (Aliás, as três lendas lidam diretamente com a luz: no interior da Mboitatá, na cabeça da lagartixa e da princesa, nos pingos de luz que saem da vela do Negrinho.) 61 Quanto aos argumentos de outras lendas, apenas um registro: ao contrário das histórias missioneiras, que lidam com figuras do Bem (Mbororé, a mãe mulita, Sepé), em todas as histórias alegadamente do centro e do norte do Brasil as figuras são do Mal (Caapora, Curupira, Saci, Uiara, Jurupari, Lobisomem, Mula-sem-cabeça). Alguma coincidência? Alguma fantasia de nosso grande autor acerca de seu estado natal? Quanta coisa ainda por discutir, quantos temas férteis Simões Lopes nos oferece - em sinal de sua inequívoca superioridade literária. 61 Ver ―A luz no imaginário gaúcho‖, in Nós, os gaúchos, org. de Sergius Gonzaga e Luís Augusto Fischer, Porto Alegre: Editora da UFRGS, 69 1992. 70 2 - A UNIVERSALIDADE DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO Eduardo Arriada 62 Não tive a sorte, ao contrário de Augusto Meyer, de ler os Contos Gauchescos na edição de 1912 e muito menos numa velha casa de campo. Como rapaz de cidade, ainda que fronteiriça e interiorana, li e reli na pequena e simples edição de 1965, Coleção Catavento da Editora Globo, que a mim do mesmo modo que Meyer, me acompanha. Estamos vivendo nos dias atuais uma enorme efervescência cultural em torno da obra de João Simões Lopes Neto. Durante muito tempo sua obra esteve ―esquecida‖ no panorama da literatura brasileira. Pode-se afirmar que somente com a publicação da edição crítica Contos Gauchescos e Lendas do Sul (1949) da extinta Editora Globo, contendo o belo prefácio de Augusto Meyer, uma introdução de Aurélio Buarque de Holanda e o posfácio de Carlos Reverbel, João Simões se transporta para além Província. A edição da Globo teve o papel fundamental de divulgar e tornar acessível à população brasileira a produção 62 . Professor da FAE/UFPEL. 71 literária simoniana para todo o Brasil. Embora somente com os estudos críticos de Lígia Chiappini, Modernismo no Rio Grande do Sul: materiais para o seu estudo (1972), Regionalismo e Modernismo: o caso gaúcho (1978) e No entretanto dos tempos: literatura e história em João Simões Lopes Neto (1988), é que o autor ganharia, definitivamente, a consagração nacional. Isso não implica dizer que antes João Simões Lopes Neto não fosse conhecido da intelectualidade brasileira; tanto Sílvio Júlio em Pampas (1919) como em Estudos Gauchescos de literatura e folclore (1953) e Literatura, folclore e linguísta da área gauchesca no Brasil (1962); L. Freire, ―Letras Rio-Grandenses‖ in: A Máscara (1922); Victor Russomano, ―Impressões Literárias‖ in: Ilustração Pelotense (1920); Gomes de Freitas, ―Alocução proferida por ocasião da romaria ao túmulo de João Simões Lopes Neto‖, in: O Tiro Brasileiro (1916); Amadeu Amaral, ―O Dialeto Caipira‖ (1920); Mário de Andrade, ―Folclores‖ (1949); Cecília Meireles, ―Folclore Guasca e Açoriano‖; Olavo Bilac, Últimas Conferências e Discursos (1927), podendo ainda ser acrescentado entre outros, Lúcia Miguel Pereira, Athos Damasceno, José Salgado Martins, Guilhermino Cesar, Manoel Bandeira, Augusto Meyer, 72 Carlos Reverbel, Propício da Silveira Martins já tinham analisado e tecido diversos comentários sobre a sua obra. Assim um reconhecimento da intelectualidade brasileira já se fazia presente, tanto o é que o conhecido crítico carioca Agrippino Grieco em sua obra Evolução da Prosa Brasileira (1933) tece o seguinte comentário: ―Simões Lopes Neto fixou, em páginas indestrutíveis, o que havia de mobil e flutuante nas tradições do seu rincão. Toda a alma guasca está nesses contos, que valem por uma epopéia cíclica, antes contada que escrita, com um dom narrativo da mais tocante familiaridade‖. Devemos salientar o que hoje já é sobejamente conhecido, que tanto a matéria-prima de seus contos ou lendas nada tinham de original. É o caso da ―Salamanca do Jarau‖, apesar de o autor fazer referência ao texto de Carlos Teschauer, a verdadeira fonte é Reseña historico-descriptiva de antigas y modernas supersticiones del Rio de la Plata (1896) de Daniel Granada. Em relação aos contos, além dos estudos de Aurélio Buarque de Holanda, Augusto Meyer, Carlos Reverbel, Flávio Loureiro Chaves, Lígia Chiappini, Sica Diniz, Mário Mattos, Luís Borges, os quais trazem novas abordagens, seja estudando as origens e as fontes de seus contos, bem como 73 levantando dados e fontes sobre o autor, tenho para mim que uma grande influência na obra de João Simões deve-se aos textos produzidos por seu contemporâneo Alberto Coelho da Cunha(1853-1939). Nos anos de 1872/75 publica o autor, nas páginas da Revista Partenon Literário, uma obra intitulada ―Contos Rio-Grandenses‖ com os seguintes contos: ―A mãe de ouro‖, ―Fantasias e Caprichos‖, ―Mimi e meu anjo‖, ―Vozes à toa, vozes de amor e a morte de Serafina‖, ―Vozes a Esmo‖, ―Pai Felipe: um episódio de charqueada‖, ―Um farrapo não se rende‖, ―A filha do capataz‖. Quase todos têm como temática o universo regional do Rio Grande do Sul. A valorizar os contos, temos o conhecimento e o gosto do autor pelas coisas do campo; viveu ele vários anos de sua vida na zona rural. Na introdução aos ―Contos Rio-Grandenses‖, Alberto Coelho da Cunha arrola notícia sobre a lenda do Negrinho do Pastoreio: ― Entranhai-vos pelas campinas do Rio Grande; ide aos nossos pampas, e tomai pouso entre os generosos gaúchos. Convivei com eles algum tempo, o preciso para estudar-lhes a feição do caráter, costumes e índole: aprendei as suas frases pitorescas, as suas tradições, crenças e religiões. 74 Vel-los-ei, por exemplo, ao mesmo tempo, que fazem uma promessa ao milagroso Santo Antônio, irem mais confiadamente acender uma vela de sebo no fundo da canhada ao negrinho do pastoreio, para que lhes traga a égua madrinha que se extraviou da manada‖. Os 16 contos que compõem a obra Contos Gauchescos edição de 1912 constituem uma narrativa sobre a decadência do tipo social - gaúcho -. São ―casos‖ narrados por um gaúcho, Blau Nunes. O assunto tratado nesses contos é o mundo rural, percebe-se uma grande riqueza na descrição dos cenários. Em vários momentos de sua obra, a descrição da natureza é sabiamente aproveitada para contextualizar o ambiente, assim como para traçar uma relação íntima entre natureza humana e mundo natural. Vejamos o primeiro aspecto: ― A estrada estendia-se dezerta; a esquerda os campos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da noite; á direita, o sol, muito 75 baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas luminozas‖ (Trezentas onças, 1912, p.17) 63. Pode-se ver esse tom narrativo em outras passagens: ― Lá adeante, o mesmo barulho; noutro ponto, igual; dum rincão, numa trepada de coxilha, numa decida de canhada, rufando duma restinga, os lotes de eguariços íam se encontrando, entreverando-se; os campeiros vinham chegando e a gritos, a cachorro, a tiro, ía-se tocando a bagualada de cada querencia; de todos os lados cruzava-se a contradansa, que se encaminhava sobre uma linha já combinada: e aos poucos ía crecendo o rodeio movediço, que engrossava, redomoinhava, espirrava, tornava a embolar-se e de repente fazia cabeça, fazia ponta, e todo disparava, fazendo tremer a terra, roncando no ar, como uma trovoada‖.(Correr eguada, 1912, p. 88/89). Do mesmo modo, no dizer de Lúcia Miguel Pereira, as suas imagens nada têm de retórica, nunca se destacam do texto como recursos literários; antes surgem naturalmente exigidas pela necessidade de suscitar uma impressão direta, sem auxílio de longas explicações ou de raciocínio. Já na apresentação de Blau Nunes, esse tipo de narração se 63 . Os organizadores respeitaram a grafia com que o autor apresentou o trabalho, conforme a publicação dos textos de Simões Lopes Neto da 76 encontra-se presente: ― Fazia-me elle a impressão de um perene tarumã verdejante, rijo para o machado e para o raio, e abrigando dentro do tronco cernozo enxames de abelhas, nos galhos ninhos de pombas...‖. ―Homem derrotado‖, na expressão de Wilson Martins, ele encontrou na ―estrada das recordações‖ o caminho compensatório e sublimizante da grande evasão estética. Vitorioso postumamente, enquanto homem de letras, ele construiu o universo esquizofrênico no qual se refugiou em vida contra a mesquinhez obstinada da realidade. A linguagem utilizada na narrativa simoniana flui com uma espontaneidade e originalidade somente possível a um profundo conhecedor do universo criado – no caso, o gaúcho -. Para isso, não basta conhecer como viviam os gaúchos, ou até mesmo ser gaúcho. É necessário ser isso e algo mais, é necessário e imprescindível ser como Cervantes, Machado de Assis, Jorge Luís Borges, Javier de Viana, homens cultos e leitores vorazes, conhecedores profundos das debilidades humanas. Assim pôde João Simões Lopes Neto, urbano, culto, educado, conviver com homens do edição de 1912.. 77 campo (gaúchos), identificar-se com eles, conhecer seu mundo, seu linguajar, criando desse modo, sem falsear, sem descaracterizar a realidade rural sulina. Põe como narrador de sua obra, o genuíno rio-grandense Blau Nunes, alter-ego dele mesmo. Nas lendas(...) ―como nos contos, quem fala é um gaúcho pobre, que só tem de seu um cavalo e as estradas‖ (Meyer, Augusto. Prosa dos Pagos, 1943). Hoje já está João Simões Lopes Neto a merecer traduções/versões para outras línguas, temos a pioneira versão de 1956 em italiano ―Storie di gauchos‖ vertida por Giuseppe Tavani. Vejamos alguns trechos: ― Gli occhi di Tudinha somigliavano perfettamente agli occhi di un cervo, spaventato: neri, grandi, lucenti, timidi e allo stesso tempo astuti... parevano occhi che stessero sempre ad ascoltare... ad ascoltare più che a vedere... Le guance del colore della pesca matura; i denti bianchi e lustri come dente di cane giovane; e le labbra della brunetta dovevano essere morbide come un campo di trifoglio, dolci come il miele, fresche come la polpa di guabiju...‖(Il Negro Bonifacio, p.19). 78 Em espanhol, temos a versão ―limpia, elegante y graciosa‖ feita por Aldyr Garcia Schlee em 1991 da ―Salamanca do Jarau‖. Parte do texto: ― Y al tranquito andaba, mirando; mirando hacia el fondo de las sanjas, por arriba de las cuchillas, a lo largo de las cañadas. Tal vez estuviese echado em medio de las carquejas – la carqueja es señal de campo bueno -, así que el campero a veces alzábase en los estribos, mano delante las vistas, y más firmaba la mirada alrededor; pero el buey barroso, nativo de aquel pago, no le aparecía; y Blau iba campeando, campeando...‖. (La Salamanca del Jarau, p. 11). No ano 2000, Margarita Barretto verteu para o espanhol partes do conto ―O Mate do João Cardoso‖ . Transcrevo um fragmento: ― João Cardoso era un sujeto que vivía por aquellas bandas del Paso de María Gomes, viejo bueno, muy estimado, pero charleta como treinta y que daba un diente por dos dedos de conversación y muy amigo de novedades. No pasaba viajante por la puerta, o más lejos, que el viejo João Cardoso no llamara, risueño e insistente como mosca; y ahí nomás ya espantaba los perros y sacando la chala de atrás de la oreja, carraspeaba y decía: 79 - Hola amigo! Abájese, descanse un poco! Venga a tomar un amargo. Es un momentito... Chiruzo?‖ (El Mate: su historia y cultura. p.106). Com certeza qualquer leitor do mundo ficaria apaixonado por sua prosa, vejamos como não perde a sonoridade e a beleza na língua de Racine: ― Mon compatriote, je te présente Blau, le ―vaqueano‖. – J‘ai traversé notre contrée en bizarre zigzag. J‘ai déjà senti l‘ardeur des sables désolés du littoral; je me suis déjà amusé dans les charmantes îles de la lagune Mirim, je me suis fatigné dans l‘extension de la colline de Santana; j‘ai mouillé mês mains dans le superbe Uruguay; j‘ai en l‘ébranlement de la peur dans les durs rochers du Caverá; j‘ai cueilli des reines-margnérites dans les plaines du Saicã, j‘ai oscillé sur les grandes eaux de l‘Ibicuí.(...) J‘ai vu la ruche et l‘étable, j‘ai vu le verger et le troupeau, j‘ai vu la moisson et les manufactures, j‘ai vu la montagne, les fleuves, la plaine et les villes; et des visages et des aurores d‘oiseaux et d‘enfants, des sillons de la charrue, des eaux et de tout, ces yeux, pauvres yeux condamnés à la mort, à la disparition, vont garder dans la rétine jusqu‘au dernier millième de lumière, l‘impression de la vision sublimée et consolatrice. 80 Un type pur – ―crioulo rio-grandense‖ (si modifié aujourd‘hui) c‘était Blau, le ―guasca‖ sain, en même temps loyal et naïf, impulsif dans la joie et la témérité, précautionneux, perspicace, sobre et infatigable; et doué d‘une mémoire de rare netteté Qui brille à travers une loquacité charmante et pleine d‘imagination, ornée par le vif et pittoresque dialeto ―gauchesco‖. Et du trot sur tant de chemins des logements dans les ―estâncias‖; des cheminées où il s‘est chauffé; des ―ranchos‖, où il a chanté, des villages qu‘il a traversé, des érosions de la mort et des éclosions de la vie, entre Blau – jeune, militaire – et Blau – vieux, ―paisano‖ – s‘étendait une longne route semée de souvenirs – ―casos‖, il disait – que le ―vaqueano‖ racontait plusieurs fois, de temps en temps, comme quelqu‘un qui étend au soleil, pour áerer des vêtements gardés au fond d‘une arche. Mon cher digne vieillard! Je sens ton absence, Blau! Mon compatriote, écoute-le. Por uma grande paixão pela obra simoniana, particularmente pelos seus contos, dei início juntamente com a profa. Marina Miatina, russa apaixonada por literatura, a 81 uma versão nessa estranha língua de alguns fragmentos da obra de João Simões Lopes Neto, eis alguns deles: ... ―И, шагая по разным дорогам; различным помещичьим имениям; обогреваясь у очагов; напевая в шалашах; проходя мимо небольших селений; он понимал вещи, которые были сокрыты от поверхностного взгляда, встречаясь лицом к лицу с людьми, разрушением смерти и созиданием жизни; между Блау – молодым военнослужащим и Блау – старым штатским чиновником, - пролегла длинная дорога, усеянная воспоминаниями, - я бы сказал, событиями, которые пастух иногда пересказывал, как достают из сундука и развешивают на солнце, чтобы проветрить, старую одежду. (E, do trotar sobre tantíssimos rumos; das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se aqueceu: dos ranchos em que cantou, dos povoados que atravessou; das cousas que ele compreendia e das que eram-lhe vedadas ao singelo entendimento; do pêlo-pêlo com os homens, das erosões da morte e das eclosões da vida, entre o Blau – moço, militar – e o Blau – velho, paisano ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações – casos, dizia - que de vez em quando, o vaqueano recontava, 82 como quem estende ao sol, para arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca.). Пролегающая дорога была пустынна; слева расстилались необозримые поля, безмятежные, зеленые, освещенные мягким светом заходящего солнца, с пятнами стад, замолкающих на ночных стойбищах; справа – очень низкое, червоного золота, солнце, входящее в массу облаков со светящимися краями. На высохших топях ни одной ‗керу-керу‘64: одна только куропатка, ловкая, осторожная, пробирающаяся между кочками сухой травы; и вдалеке, между остатком уходящего света, с одной стороны, и сгущающимися сумерками приходящей ночи, с другой, просвечивала белизна ‗жоао гранде‘65, безмятежно летящего, почти не шевеля крыльями, как некая грусть прощания, в котором люди еще не успели разжать рук. Опускался прохладный туман; и всеобъемлющая тишина. ( A estrada estendia-se deserta; à esquerda os campos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da 64 65 керу-керу (quero-quero - port) – голенастая птица Бразилии жоао гранде (joão grande – port) – птица Бразилии 83 noite à direita, o sol muito baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas. Nos atoleiros; secos, nem um quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava de manso por entre os pastos maduros; e longe, entre o resto da luz que fugia de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de um joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as asas, como numa despedida triste, em que a gente também não sacode os braços... Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande, em tudo.). Que mistérios e enigmas profundos levam a um autor a escrever uma obra-prima que transcende o tempo e o espaço. Para mim, o autor dos Contos Gauchescos, continua sendo uma surpresa, uma grata surpresa, quanto mais o leio, tanto mais me apaixono. Mais e mais sua narrativa infindável, labiríntica, envolvente, com sinuosidades, pausas, silêncios, reticências, sons ecoam no fundo do meu eu. 84 85 Referências Bibliográficas: AMARAL, Amadeu. O Dialeto Caipira. São Paulo: Casa Editora ―O Livro‖, 1920. BARRETO, Margarita. El Mate: sua historia y cultura. 2ª edição, Buenos Aires: Ediciones del Sol, 2000. BAVARESCO, Agemir e BORGES, Luís. História, resistência e projeto em Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS Editor, 2001. CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: regionalismo e literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. CUNHA, Alberto Coelho da. Contos Rio-Grandenses. Introdução. In: Revista Mensal da Sociedade Partenon Literário. Nº 5 e 6, ano I da II Série, Porto Alegre: Typ. do Constitucional, 1872. GRIECO, Agripino. Evolução da prosa brasileira. Rio de Janeiro: Ariel, 1933. ILUSTRAÇÃO PELOTENSE. João Simões(com foto).Nº 01, ano II, Pelotas, 01.01.1920 JÚLIO, Sílvio. Pampas. S/ed. Fortaleza, 1919. CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos: literatura e história em João Simões Lopes Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1988. LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos. Pelotas: Livraria Universal, 1912. ________________________. Contrabandista. Almanaque do Globo. Porto Alegre, 2º ano, 1918, (169/73). 86 ________________________. Storie di Gauchos. Firenze: Fratelli Bocca-Milano, 1956. ________________________. La salamanca del Jarau. Porto Alegre: IEL/IGEL, 1991. MARTINS, Wilson. Escritor representativo. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28.05.1983. MEYER, Augusto. Prosa dos Pagos. São Paulo: Livraria Martins. 1943. PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira (Prosa de ficção: 1870-1920). Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981. 87 3 - A SALAMANCA DO JARAU: A TRAVESSIA ÉTICA DO GAÚCHO CONSIDERANDO ASPECTOS METAFÍSICOS Eduardo de Oliveira 66 No início do século passado (em 1913), Simões Lopes escreveu a lenda A Salamanca do Jarau. Quando escreve esta lenda Simões Lopes completa, segundo Aurélio Buarque de Holanda, a trilogia das Lendas do Sul: Negrinho do Pastoreio foi escrita em 1906, enquanto M‟boitatá foi escrita em 1909. A Salamanca do Jarau é composta de duas partes: o conto escrito por Simões Lopes (composto basicamente pelos capítulos I e VII-X) e a lenda da qual o autor se apropriou, para compor a história como um todo (a lenda consta basicamente dos capítulos III-VI, já o capítulo II é uma espécie de transição entre as duas partes distintas). Há que se observar que a lenda utilizada por Simões Lopes não é simplesmente copiada por ele, mas é estilizada e adaptada para mais bem atingir os objetivos pretendidos pelo autor. 66 Acadêmico do Curso de Filosofia. Membro do Grupo de Pesquisa Simoniano. ISF/UCPEL. 88 Mas, por que Simões Lopes resgata a lenda da salamanca e a insere neste conto? Talvez Flávio Loureiro Chaves ajude a esclarecer essa questão: ―a recuperação do passado mítico pode elucidar o presente problemático‖ (CHAVES, 1992, p.77). Esse presente problemático se manifesta na crise econômica em que Blau se encontra: ele é um gaúcho pobre com poucos bens materiais (p.140, l.2s) 67. O contexto em que ele está inserido, evidentemente, é o do capitalismo e a crise econômica influenciará no seu modo de agir. Aliás, Chaves diz que ―o verdadeiro objetivo de Simões Lopes Neto, na Salamanca do Jarau, é a invenção de uma personagem e a observação da situação-limite em que se encontra‖ (CHAVES, 1992, p.82). Neste artigo, de modo contrário a Chaves, observar-se-á, basicamente, o comportamento do arquétipo gaúcho, representado por Blau, dentro da situação-limite em que está. 67 Neste trabalho, sempre que houver citações sem referência a autor, elas estarão se referindo à seguinte bibliografia: LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia Chappini. Rio de Janeiro: Presença, 1988. 89 Portanto, o objetivo deste artigo é mostrar qual o modo de agir que Blau adotará ao longo desse percurso que tem como ponto de partida a procura pelo boi barroso. É levado em conta que as origens são importantes no ponto de vista simoniano (porque ele insere em seu conto a lenda das salamancas), e as origens têm estreita relação com o metafísico, uma vez que são abordados temas folclóricos e míticos ao longo do conto, além, é claro, do divino. Como exemplos de entes metafísicos, podem ser citados o Caipora, os poderes mágicos que a princesa moura possuía entre outros que serão comentados ao longo deste trabalho. Ou seja, como a própria palavra aponta, o metafísico é aquilo que está além do físico, aquilo que não é observável dentre os fatos empíricos. Colocados os objetivos deste texto, é necessário mostrar o modo que se procederá para alcançá-los: no primeiro subitem se analisará os dois primeiros capítulos do conto, mostrando qual a problemática levantada por Simões dentro do viés ético. No segundo, a análise se voltará para a lenda da salamanca que o autor utilizou, para mostrar as origens do gaúcho. No terceiro, será retomada a análise do gaúcho, focalizando a sua eticidade a partir da experiência feita no interior do cerro. Como se pode perceber, esta 90 hermenêutica será feita capítulo por capítulo do conto de Simões Lopes e, partindo daí será elaborada a síntese conclusiva, que tentará abarcar os principais elementos aqui discutidos. 3.1 - O gaúcho 3.1.1 - Blau: alguém que está à procura da identidade Simões Lopes apresenta logo no início o protagonista da história: Blau, um gaúcho pobre ―que só tinha de seu um cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais‖, (p.140, l.3) que está à procura de um boi barroso. Dessa busca de um gaúcho pobre saltam aos olhos dois aspectos: o primeiro, do próprio fato de o gaúcho ser pobre, deduz-se a ética vigente no início do século XX: a ética do desprendimento que é contra o acúmulo, aí se percebe forte influência da Igreja Católica. Esse fato pode também ser lido como pobreza absoluta: a época do gaúcho a pé (não sendo necessariamente causada pela ética vigente). Conforme se verá adiante, a riqueza pode trazer intranqüilidades que antes (no estado de pobreza) não havia; e o segundo, de que a 91 busca não almeja algo que pode ser percebido dentre os próprios fatos empíricos: ela é de caráter metafísico, pois o boi barroso nunca pode ser encontrado (cf. nota nº4 do próprio autor). Porém, é esta busca que dá sentido à vida de Blau. Outra figura metafísica (ou pelo menos mitológica), além do boi barroso, citada no primeiro capítulo do texto, é o Caipora: quando alguém encontra o Caipora, encontra também a desgraça. Simões Lopes mostra uma outra possível causa para a pobreza de Blau a qual é mitológica, ou seja, não é explicada de forma racional. É esta a causa da pobreza de Blau? Há fatores econômicos que podem explicar esta pobreza. A propósito, parece que a identidade do gaúcho passa por uma crise e, neste contexto surgem outras perguntas: Qual a origem da perda de identidade pela qual o gaúcho passa? Tem algo a ver com a miscigenação pela qual passou, isto é, pelo fato de ter várias etnias em suas raízes o gaúcho não sabe mais quem é? Quanto à sua identidade, basta afirmar que é um tapejara e ponto final? Sem dúvida, a procura pela identidade é um processo muito mais complexo, pois envolve toda o contexto social em que Blau vive. 92 Nesta busca, Blau, incansável, encontra-se com ―um vulto de face branca e tristonha‖: é o santão. Blau o saúda pela primeira vez com uma saudação cristã. É o início de uma relação que mudará o rumo das histórias destes dois homens. Aqui se mostra a postura do gaúcho diante de um ser desconhecido e como se dá a relação do gaúcho com ele. A conversa desemboca na narração de Blau acerca da salamanca do cerro do Jarau, a qual será apresentada no capítulo seguinte. 3.1.2 – O que Blau sabe de suas origens A seguir é apresentada a origem da lenda de que Simões Lopes se utiliza, para compor seu conto. É Blau quem conta a origem da lenda: foi sua avó quem lhe transmitiue talvez seja ele uma das últimas pessoas capaz de manter viva essa tradição oral que narra a chegada dos mouros no Rio Grande do Sul. Na história contada por Blau há uma certa mitificação, pois ele fala de alguns aspectos que não podem ser racionalmente explicados, há várias alusões a mitos. A própria história se torna um mito por ter sido passada oralmente pelos antepassados do gaúcho. 93 Um aspecto que é mostrado neste capítulo (o segundo), diz respeito à identidade (pelo menos genética) do gaúcho: ele tem o índio como um de seus antepassados, ou seja, o índio é uma das etnias que compõe sua árvore genealógica, que passou por uma serie de miscigenações. A chegada dos mouros vem trazer, no mínimo, uma crise de identidade àqueles que habitavam o estado gaúcho. Talvez consista num preconceito afirmar que o europeu traz o mal, pois os índios já conheciam o mal, tanto que chamavam o diabo de Anhangá-pitã. Mas a vinda dos europeus representa um certo desvirtuamento da identidade, pois é uma outra cultura que está chegando. E essa outra cultura se impõe de tal modo, que a anterior é ―abafada‖ até o ponto em que a nova cultura predomina sobre a que antes existia, provocando sobre esta uma crise de valores. Este capítulo também mostra como a princesa moura encantada dotada de poderes e que oferece riquezas às pessoas, foi transportada para o RS sem que ninguém percebesse, escondida num navio. Ninguém percebeu sua presença devido à força do condão mágico. Essa nova cultura, porém, que que chega ano eEstado (os espanhóis) fica como que impotente diante dos nativos que habitavam o RS, pois entre os índios não havia cobiça por bens materiais. 94 Blau diz que Anhangá-pitã ―folgou, porque a gente nativa daquelas campanhas e a destas serras era gente sem cobiça de riquezas‖ (p.143, l.18-20). Assim, fica expresso que os nativos que habitavam o pampa tinham uma outra noção de mal, pois se trata de uma outra cultura. Blau Nunes ainda conta como foi que o diabo transformou a princesa moura, com poderes do outro mundo, numa lagartixa e o seu condão encantado em pedra luzente a qual é colocada no lugar da cabeça: a princesa moura é, agora, uma lagartixa sem cabeça: a Teiniaguá. Aqui se mostra que o diabo ―não havia tomado tenência que a teiniaguá era mulher‖ (p.144, l.12). O que isso quer significar será discutido mais adiantea frente. 3.2 - A lenda A seguir, santão conta a história de sua vida. Além de representar o desconhecido, o interior do cerro é um lugar metafísico. É na chamada terceira parte do conto simoniano, que aparece a lenda propriamente dita, apesar de alguns aspectos da lenda mesma já terem sido apontados no segundo capítulo. É fundamental que se faça uma análise profunda dos aspectos ético-metafísicos desta parte do 95 conto, pois daqui serão tiradas as possíveis conclusões a respeito das diferentes crises que o gaúcho passou e passa no decorrer da história. 3.2.1 - O sacristão: modelo de cristão face à crise A partir do capítulo III, o ―vulto de face branca e tristonha‖ toma sua parte no discurso. A fala desta personagem, o sacristão, é a forma pela qual Simões Lopes se utiliza para mostrar a lenda68 propriamente dita do Cerro. O período em que se formou a lenda original é em torno de 1650 – segundo a nota nº 11 de Simões Lopes. Neste capítulo santão (o sacristão) se apresenta a Blau e conta-lhe sua história até o momento em que a Teiniaguá se 68 De acordo com as notas 6 e 9 da lenda A Salamanca do Jarau, escritas pelo próprio Simões, o contato que Simões Lopes tem com a lenda, que foi escrita pela primeira vez por Daniel Granada em 1896, se dá através do reverendo C. Teschauer na obra Poranduba Rio Grandense. Nesta obra, Teschauer narra a lenda que Simões lerá antes de escrever a Salamanca e contará ao redigir a mesma. 96 transforma em mulher e fica diante dele. Dentre os aspectos ético-metafísicos da lenda, cabe destacar. 97 Já na sua origem, a vida do sacristão é tomada por uma serie de fatores opostos: ―A minha cabeça foi banhada na água benta da pia, mas nela entraram soberbos pensamentos maus... O meu peito foi ungido com os santos óleos, mas nele entrou a doçura que tanto amarga, do pecado... A minha boca provou do sal piedoso... e nela entrou a frescura que requeima, dos beijos da tentadora...‖ (p.144, l.27-31). Fica, portanto, evidente a contradição entre duas morais: a moral cristã, que seria como que uma ―conseqüência” dos sacramentos, e a moral ―humana, carnal‖ (poder-se-ia dizer que seria algo semelhante ao id freudiano) à qual todos os homens sofrem uma certa inclinação. Esse dualismo da de moralis que está aqui presente poderia ser um reflexo do momento histórico que está se vai passando na época que a lenda original retrata: o período barroco. O período barroco é assinalado pela transição entre o teocentrismo que marcou toda a Idade Média e o antropocentrismo que marcaria caracterizaria a Idade Moderna. Como é um período de transição, o homem encontra-se perdido diante de tantas mudanças. . 98 No conto simoniano há uma separação entre Teiniaguá e Anhangá-pitã, embora ambos representem o mal. A Teiniaguá é o mal colocado de modo externo ao próprio homem. Isto é afirmado porque a Teiniaguá é vista como ―algo‖ que não existia no Rio Grande do Sul antes da chegada dos mouros. Porém Todavia há um mal que é inerente ao homem, que o convida a que este se deixe seduzir, que sinta o sabor que há em fazer as coisas aparentemente proibidas. Este mal que habita em cada homem é Anhangá-pitã. Simões Lopes diz que esse era o nome pelo qual era conhecido o mal entre os nativos: Anhangá-pitã (p.143, l.17). Em outras palavras: há o mal que já existia (Anhangá-pitã) e o mal que vem de fora (Teiniaguá), que certo modo representam duas culturas diferentes e dois modos diversosferentes de se ver o mal que sempre existe numa comunidade humana. Ao mesmo tempo em que há uma dicotomia entre o mal interior e o mal exterior, há um dualismo ético representado pelo sacristão diante do pecado, uma vez que o sacristãoeste representa todo um modelo de religiosidade. Esse modelo mostrando a evidente crise que há dentro da própria religião, uma vez que ele é o arquétipo religioso. HPorém, há quede se observar-se, porém, que o sacristão é 99 movido por um desejo de riqueza tendo como modelo aquilo que era feito pela Igreja no século XVII, durante o estado de cristandade: ―Pelo falar do padre superior eu bem sabia que quem prendesse a teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do mundo; mais rico que o Papa de Roma, e o imperador Carlos Magno e o rei da Trebizonda e os Cavaleiros da Tábula...‖ (l.28-31). Para que alguém se torne rico, a Teiniaguá pode ser o caminho mais fácil. Simões Lopes mostra como o sacristão conhece a Teiniaguá: sua primeira manifestação é um tanto misteriosa, chegando a assemelhar-se com o episódio da ―sarça ardente‖ apresentado no Êxodo. ―Eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia‖ (Ex 3, 2b), diz o livro bíblico. Simões Lopes, por sua vez descreve o fenômeno assim: ―A água da lagoa borbulhava toda, numa fervura, ronquejando tal e qual uma marmita no borralho. Por certo que lá embaixo, dentro da terra é que estaria o braseiro que levantava aquela fervura que cozinhava os juncos e as traíras e pelava as pernas dos socós e espantava todos os mais bichos barulhentos daquelas águas... Eu vi, vi o milagre de ferver toda uma lagoa..., ferver sem fogo que se visse!‖ (p.145, l.17-23). Assim, esta citação pode ser lida na perspectiva da Teiniaguá como um ente metafísico, de caráter sobrenatural. E semelhante à manifestação de Javé a Moisés a Teiniaguá se manifestará ao sacristão dizendo ―Eu sou a princesa...‖, ou seja, as duas primeiras palavras constituem o nome de Deus 100 revelado a Moisés (EU SOU). Aqui não se está afirmando que a Teiniaguá seja uma divindade, mas apenas seu caráter metafísico. Após ter conseguido apanhar a Teiniaguá, o desejo que o sacristão tem de enriquecer é muito forte. Por isso, ele observa um cuidado pela Teiniaguá, pois ela lhe pode ser uma fonte de riquezas para ele. É esse desejo de ser rico que chegará ano Rio Grande do Sul trazido pelos mouros e que Blau narra como a possibilidade de ser a gênese do mal. O mal que chega no estado sulino pode ser visto como uma espécie de ―teste‖ para as virtudes do gaúcho, considerando-se a tese de que não há virtude sem o mal. Três vezes Simões Lopes diz, no capitulo III, que ―Todo o povo sesteava; por isso ninguém viu‖ (p.145, l.16; p.146, l.26; p.147, l.25). Esta frase tem um significado especial em todo o contexto desta análise ética da lenda, pois todo o povo significa que todas os princípios normativos (morais, jurídicos, religiosos e de trato social) estavam ―sesteando‖, ou seja, seus olhos estavam fechados àquilo que o sacristão fazia e a conseqüência disto é a sua condenação. A antiga norma de identidade está de olhos fechados para as atitudes do sacristão, ou seja, o povo não vê a nova época 101 que está chegando e, assim, uma possível transição estaria prejudicada, ou sendo atrasada. Para concluir a análise deste capítulo, é preciso retornar ao seu início, o qual mostra o santão afirmando que Anhangá-pitã não havia tomado tenência de que a Teiniaguá era mulher. Fica subentendo que há a separação de culturas da qual já se falou aqui: o mal é visto por um outro prisma e não há nenhum mal na mulher para os nativos gaúchos Anhangá-pitã vê a Teiniaguá – que é uma mulher – como se fosse uma lagartixa (com a cabeça de pedra luzente). Nos próximos capítulos fica a possibilidade de a mulher ser a ―salvação‖ do homem, porém aqui ela é vista como a causa do pecado e o maAnhangá-pitãl não faz um ―uso‖ devidoadequado da presença da mulher para conseguir ―mais mal‖. Considerando-se o todo formado por esta leitura, pode-se dizer que a Teiniaguá é uma espécie de hibris entre o bem e o mal, uma vez que o próprio ser humano é constituído por essas duas facetas inseparáveis. 3.2.2 - O sacristão face ao pecado 102 Neste capítulo, transparece através do texto, que devido ao fato de o sacristão não ter desejado nem a Teiniaguá, nem as riquezas, ela se manifesta a ele (apesar de, conforme ficou claro na análise do capítulo anterior, o sacristão ter desejo de enriquecer). O cuidado que o sacristão dispensa à Teiniaguá é decisivo: ―Tu não me procuraste ganoso... e eu subi ao teu encontro; e me bem trataste pondo água na guampa e trazendo mel fino para o meu sustento‖ (p.148, l.7-9). O cuidado dispensado à Teiniaguá, feito com espírito puro, sem segundas intenções, e isso faz com que ela ofereça as riquezas que o sacristão quiser. Fica expresso no texto a estreita relação entre a sedução que a Teiniaguá ―impõe‖exerce sobre o sacristão e o pecado. Quando a Teiniaguá aparece ao sacristão, deixa evidente que se o sacristão for seduzido estará em situação de pecado: ―Si a cruz do teu rosário não me esconjurar” (p.148, l.22). Transparece, no texto, o dualismo pregado pela tradição cristã desde Santo Agostinho: ―e minha alma de cristão foi saindo de mim...‖ (p.148 l.35). Aqui, além de haver a separação corpo/alma, o corpo é o responsável pelos pecados que a alma comete. 103 A ética é cristã. O pecado é praticado às escondidas. O fato de um sacristão pecar às escondidas, e esse pecado está diretamente relacionado com o corpo, revela uma possível crise de identidade que há na religião da época. Após a prática do pecado, o sacristão encontra-se (quando acorda) cercado de padres: está condenado! Aqui aparece o caráter de inquisição (período em que se passa a lenda) que a moral do século XVII possui. O sacristão é condenado. E para esse fato não há volta, não há espaço para a reconciliação com Deus. Ele está condenado ao inferno. Um aspecto que não pode passar em branco é o fato de que é a representação que o sacristão faz (deve-se lembrar que se está no período barroco). O sacristão por si só é o símbolo do cristianismo (uma vez que é o único personagem que tem alguma ligação com a religião) e cria-se um conflito grande, quando o sacristão deixa-se seduzir: há uma passagem que pode ser vista não do puritanismo para o pecado de um modo radical, mas de uma possível mudança interna do cristianismo, um cristianismo menos rígido (contudo, não um cristianismo liberal, em que tudo é permitido). Há, portanto, um conflito entre ―dois cristianismos‖, ou seja, trata-se de um período de transição 104 (pelo menos histórico) em que os valores estão em crise e uma ruptura com antigo sistema já pode ser observada. Ao fim deste capítulo, reaparece o dualismo acima assinalado: ―...o povo ajoelhado batia nos peitos, clamando a morte do meu corpo e a misericórdia para a minha alma‖ (p.149 l.28-9). Provavelmente, através desta citação, fique evidente a morte (pelo menos do ―corpo‖, para manter o dualismo) do sacristão. 105 3.2.3 – A condenação do sacristão O capítulo V é assinalado, já no seu início, por uma palavra que será repetida por cinco vezes durante o capítulo: saudade. A palavra saudade, que não apenas existe na Europalíngua portuguesa, por exemplo, é uma palavratambém tipicamente brasileira, ou ainda mais ee muito specificamenteusada pelos gaúchaos. Com essa palavra Simões Lopes quer mostrar o processo de regionalização pelo qual passa a lenda que ele está contando, e o seu intento de mostrar apresentar a situação em que se encontra o gaúcho. No fim do capítulo anterior era visto que o sacristão estava sentenciado a morrer e no princípio do capítulo V, pode-se ver o sacristão como se fosse uma ―alma penada‖. O sacristão diz: ―os santos padres, pasmados mas sisudos, rezavam encomendando a minha alma‖ (p.150, l.13s). Dá a entender que o sacristão morreu e que quem conta a história é contada por a ―sua alma‖. Se até o presente momento a Teiniaguá e, conseqüentemente, a figura da mulher foi tratada sob um olhar machista, neste capítulo surge, pelo menos, uma dialética acerca da figura feminina que tenta superar esse 106 problema. Ao se analisar o capítulo anterior da lenda, ficou dito que a mulher é a causa do pecado, pois, quando o sacristão se deixa seduzir, recebe, como conseqüência, sua devida condenação. Contudo, aqui a perspectiva é mudada. Será, aqui analisado, primeiramente o texto bíblico do livro do Gênesis que mostra Eva caindo na tentação, ao ser seduzida pela serpente e depois se retomará o texto simoniano. Deus criou o homem e o colocou no paraíso. Adão e Eva estavam no paraíso. O homem tem tudo ao seu dispor. O mundo ideal, perfeito é seu com uma condição: não comer do fruto da árvore da sabedoria. A Bíblia conta que a história acontece no tempo que os animais falavam. Ora, cientificamente, isso até hoje não foi comprovado. Poder-se-ia afirmar que se trata de mais uma simbologia bíblica. As Escrituras afirmam que a serpente falava, mas partiremos do pré-suposto que esse ―falar‖ se trata da influência que a situação externa ao homem exerce sobre ele. Eva se deixa seduzir pela serpente: ela dá ouvidos a alguém, que não é ela, e que lhe convida ao pecado – esse convite é percebido, quando o meio, a situação ou a circunstância em que se está inserido, passa a ser visto com outros olhos, e o homem vê a possibilidade de quebrar as 107 normas éticas. Então Eva come o fruto da árvore proibida. Porém, ela não o faz sozinha, mas compartilha do pecado com seu companheiro. Os dois são expulsos do paraíso. O pecado cometido pelo homem não consiste no simples fato de ter desobedecido a uma ordem ou de ter comido uma fruta, mas no fato de querer ser como Deus. Deus havia deixado claro que, se o homem comesse daquele fruto, ele seria como Deus, conhecedor do bem e do mal. Há um modelo (Deus) que dificilmente será atingido pelo homem, a menos que este transgrida uma lei (que de certa forma lhe foi imposta, apesar de ter sido a única condição). Agora, retorne-se ao conto simoniano A Salamanca do Jarau, tendo como bases principais a própria lenda e a pequena hermenêutica exposta acima: pode-se afirmar que o sacristão era alguém feliz, tinha tudo o que precisava para ter uma vida digna. Surge, porém a Teiniaguá encantada: uma pequena lagartixa com a cabeça de pedra luzente. Por querer cuidar da lagartixa, ou seja, por se deixar influenciar por algo exterior, dá-se de frente com uma mulher que o seduz, ou seja, ele vê aquilo que antes era uma simples lagartixa, de um outro modo. Talvez antes de ouvir sua consciência o sacristão não percebesse o que viria a ser uma mulher (no sentido de pecado, na visão judaico-cristã). Há que se frisar 108 que a Teiniaguá não era uma mulher qualquer, mas ela poderia dar ao sacristão todas as riquezas que este quisesse, mas seu objetivo principal era derrotar o cristianismo, unindo-se a ele. As riquezas, por sua vez, são o modelo da época desta lenda: a Igreja detém uma grande riqueza, o modelo é teocêntrico (embora esteja em decadência) e a Igreja representa Deus na Terra, assim, neste período histórico, querer ser como Deus é querer ser igual à Igreja. Mas não é isto que o sacristão quer, ele quer acima de tudo ter em seus braços a Teiniaguá, porém há uma certa censura a este tipo de atitude, pois o sexo é um pecado a que o corpo está sujeito, e o homem virtuoso deve evitá-lo. Não conseguindo ter tal atitude, sua condenação está promulgada. O sacristão é condenado a morrer. Assim como Adão é expulso do paraíso, o sacristão é expulso deste mundo. TodaviaPorém, ainda na perspectiva cristã, se o pecado tem sua gênese com a mulher, a salvação também é trazida por uma outra mulher: Maria, a nova Eva. Aqui, no conto simoniano, a própria Teiniaguá traz a salvação ao homem (pois ela é hibris), tirando-o do domínio da morte: ―Sem peso de dores nos ossos e nas carnes, sem peso de ferros no corpo, sem peso de remorsos na alma passei o rio para o lado do Nascente. A teiniaguá fechou os tesouros da outra banda e juntos fizemos então caminho para o Cerro do Jarau, que ficou 109 sendo o paiol das riquezas de todas as salamancas dos outros lugares‖ (p.152, l.8-12). O Cerro é um lugar metafísico, onde o sacristão nada pode gozar entre os homens. Tem-se aqui uma idéia de um total abandono e isolamento. Mas, antes que se passe a este ponto (a análise do cerro como um lugar metafísico, análise esta que está presente de modo mais detalhado no próximo capítulo), convém destacar que a Teiniaguá é uma hibridação entre as personagens bíblicas Eva e Maria: ela é a síntese na dialética acima esplanada. A Teiniaguá é causa de condenação e, ao mesmo tempo, salva aquele que por sua culpa foi condenado. 3.2.4 - O cerro como lugar metafísico ―Faz duzentos anos que aqui estou; aprendi sabedorias árabes e tenho tornado contentes alguns raros homens que bem sabem que a alma é peso entre o mandar e o ser mandado...‖ (p.152, l.15-7). É assim que inicia o sexto capítulo da lenda de Simões. É mostrado por Simões Lopes que faz muito tempo que o sacristão está na salamanca, tempo que um ser humano não poderia viver. Já as sabedorias árabes que o sacristão diz ter aprendido, mostram tradição moura herdada pelos espanhóis. Também há que se 110 lavar em conta o projeto de destruição da cristandade judaico-ocidental, representado pela Teiniaguá. Ainda vivo, sob o estado de uma ―alma penada‖, o sacristão, passa por uma fase de ascetismo para se purificar-se do pecado antes praticado. Ele agora é um vulto, pois perdeu sua identidade de cristão. ―Nunca mais dormi; num mais nem fome, nem sede, nem dor, nem riso...‖ (p.152, l18s). O sacristão não goza mais nada entre os homens e espera por ―sinal‖ divino: ouvir três vezes uma saudação cristã, para, assim, sua salvação chegar à plenitude. E, em outras palavras, o sacristão resgatará sua identidade de filho de Deus, quando ouvir três vezes uma saudação cristã. Enquanto isso, ele vive como uma espécie de ermitão, isolado dentro de uma caverna. Ele possui riquezas aos seus pés (literalmente): ―...ando sem parar e sem cansaço; piso com pés vagarosos, piso torrões de ouro em pó, que se desfazem como terra fofa (...) tudo ouro maciço do Peru e do México e das Minas Gerais, tudo cunhado com os troféus dos senhores reis de Portugal e de Castela e Aragão...‖ (p.152, l.20ss). Aquele padrão de riquezas que antes era almejado pelos homens e que era representado pela Igreja, não traz felicidade, assim como querer ser como deuses, no paraíso, não trouxe felicidade para Adão e Eva, mas apenas infelicidade (o santão não é feliz, pois já no início é 111 apresentado como sendo alguém de ―face branca e tristonha‖). O sacristão não almejava riquezas, mas chega ao padrão querido pela maioria dos homens, enquanto Adão e Eva não chegam a esse padrão. Contudo, expulsão e purificação são comuns ao sacristão e a Adão e Eva. Durante esse período em que o sacristão está numa atitude de quem é asceta, chega à conclusão de que o novo princípio ético-metafísico é: ―alma forte e coração sereno‖ (p.152, l.36). Um princípio que quer re-unir as duas entidades metafísicas antes separadas (corpo e alma) através de atitudes éticas, ou seja, a alma deve ter força para poder vencer aàs inclinações que o corpo sofre, enquanto que o coração sereno, que representa o corpo, mostra que a pessoa deve pensar, analisar antes de tomar qualquer atitude de forma precipitada. Assim se chega a uma harmonia, harmonia não de dois opostos (corpo e alma), mas da pessoa como um todo (alma e coração). 112 3.3 - O gaúcho 3.3.1 - Blau e as sete provas É neste capítulo que Blau é submetido a sete provas. Ao entrar no cerro, a convite do santão, surgem as sete provas. Foi falado anteriormente que o cerro (ou a caverna) é um lugar metafísico. Neste ponto, pode-se explicar o porquê do cerro se enquadrar em tal aspecto: primeiramente o sacristão se retira do meio dos homens e vai para o cerro para uma espécie de purificação (cf. capítulo anterior), e agora o mesmo acontece com Blau. UBlau é um gaúcho pobre que se encontra em crise de identidade (àa procura dopelo boi barroso, fato principal que vai dardá sentido à sua existência). É aqui, dentro do cerro do Jarau, que o gaúcho será testado, enquanto um homem de virtudes e Blau só passará neste teste, se tiver ―alma forte, coração sereno‖. No interior do cerro Blau, enfrenta sete provas as quais vence com sucesso. Aquilo que lhe fora dito pelo sacristão (―alma forte, coração sereno‖) é o que lhe dá forças para vencer cada prova, e este mote fica claro como o novo princípio metafísico: ―Aí o seu braço direito quase moveu-se acima, como para fazer o sinal da cruz;... porém – alma forte, coração sereno! – meteu o 113 peito e passou entre as ossadas, sentindo o bafio que elas soltavam das suas juntas bolorentas‖ (p.155, l.19ss). O fato de Blau não ter feito o sinal da cruz mostra sua aderência a um novo projeto que não é o da cristandade: ―alma forte e coração sereno‖ é a nova máxima. Já na lenda original, de Daniel Granada69, transparece de forma direta quais devem ser as condições morais para que se entre em uma salamanca: ―Para merecer y poder entrar en ellas, es necesario revestirse de mucho coraje y de mucha indiferencia á todo cuanto rodee y sea capaz de hacer imprecisión leve ó vehemente en los sentidos y en el ánimo del aspirante, que debe tener al intento la impasibilidad de un estoico. Pruebas terribles, aparatos y ceremonias magníficas, que traen á la mente las que usaron los pueblos del Oriente y las que diz que usan masones en la recepción de sus neófitos, esperan al sujeto que quiere iniciase en los misterios de una salamanca. Mas aun así, con todas estas purificaciones, todavía él neófito no sabe si, al salir de la salamanca, será feliz ó desgraciado en su vida terrenal‖ (GRANADA, 1896, p.98). Adaptando esse princípio, Simões Lopes cita-o desta forma: ―alma forte, coração sereno‖. Com ―alma forte e coração sereno‖ Blau supera, com vitória, as sete provas, e, então, surge uma velha que lhe oferece sete recompensas e das quais pode escolher uma como forma de prêmio por sua 69 Aqui é tomado o texto de Daniel Granada, por ser este o texto que mais se assemelha ao de Simões Lopes e também porque é sabido que Teschauer se serviu de Daniel Granada ao escrever Poranduba Rio-grandense. Há teses que afirmam que Simões Lopes leu o texto de 114 vitória no cerro. Porém, Blau, porém, nega todas as formas de recompensa que lhe são oferecidas. A recusa das sete recompensas obtidas, ao vencer as sete provas, mostra um conflito interior que há no gaúcho: sentimento x riqueza. Contudo, Blau queria uma recompensa, mas ele não fala à velha qual a recompensa que gostaria de ganhar. Seu real desejo era a Teiniaguá: ―Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque és tudo!... És tudo o que eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de mim, em volta de mim, superior a mim... Eu te queria a ti, teiniaguá encantada!...‖ (p.158, l13ss). A que se deve o fato de Blau querer ter a Teiniaguá acima de tudo? Teria algo a ver com a história que fora contada pelo sacristão? Ou tem algo a ver com a história contada por sua avó e que fora recontada por ele ao sacristão? O texto não aprofunda o porquê do desejo que Blau tem em possuir a Teiniaguá, mas há a possibilidade de ele querer aderir ao novo, que é representado por ela, para sair de sua situação de pobreza. É certo que este momento foi um grande deslize de Blau e é o próprio sacristão quem o observa: ―Nada quiseste; tiveste a alma forte e o coração sereno, tiveste, mas não soubeste governar o pensamento nem segurar a língua!... Granada, utilizando-o de forma direta ao compor A Salamanca do Jarau (cf. Eduardo Arriada, por exemplo). 115 Não te direi si bem fizeste ou mal‖ (p.153, l.37ss). Apesar de ter recusado aàs sete recompensas o sacristão oferece uma onça encantada a Blau na saída do cerro. Esta onça que Blau está recebendo, possui poderes mágicos: de dentro dela saem quantas onças Blau quiser, porém todavia uma de cada vez. Esta onça encantada tem um ar de sagrado: ―Guarda-a em lembrança de mim!‖ diz o sacristão ao entregá-la a Blau. De modo semelhante Jesus Cristo havia falado na última ceia: ―Fazei isto em minha memória‖. O sacristão para ter o efeito do encantamento da Teiniaguá desfeito anulado, precisa ouvir três vezes uma saudação cristã. E será esta onça que manterá o sacristão na memória de Blau e, posteriormente, desfará o encantamento. Blau guarda a onça e vai-se embora do cerro. Devido ao fato de Blau ser um homem de virtudes e também com valores cristãos inseridos em sua cultura, o sacristão concede-lhe a onça encantada. Essa atitude talvez seja uma ―aposta‖ que o sacristão faz para se ver livre da maldição da Teiniaguá, pois, se ele for mesmo honesto, voltará à caverna. 116 3.3.2 - O enriquecimento de Blau com a onça encantada Neste capítulo (o sétimo do conto) são encontrados alguns elementos que facilitarão a compreensão dos últimos capítulos deste conto. Por isso, nesta análise, ao desenvolver o oitavo capítulo, será feita apenas uma descrição dos eventos sucedidos a Blau após sua saída do cerro. Com a onça encantada, Blau causa admiração às demais pessoas, porque Blau é pobre e agora ele paga todas as suas despesas no mesmo instante em que efetua uma compra. Fato curioso é que, conforme dissera o sacristão, da onça encantada, só apenas se tira uma onça de cada vez. Apesar disto, Blau aproveita que tem em mãos a onça encantada para efetuar grandes compras: ―Arrendou um campo e comprou o gado, pra mais de dez mil cabeças, aquerenciado. O negócio era muito acima de três mil onças, a pagar no recebimento. Aí o coitado perdeu quase o dia inteiro a gargantear a guaiaca e a aparar onça por onça, uma atrás da outra, sempre uma a uma!...‖ (p.160, l.41ss). Parece que Blau ele quer adquirir bens em demasia para superar a pobreza em que se encontra (note-se que ele adquire bens que um estancieiro compraria). Contudo, as pessoas observam que há um mistério nissto tudo: Blau de uma hora para a outra enriquece e o seu modo de pagar os 117 seus gastos é um tanto quanto estranho. O próprio Blau se espanta de sua riqueza. E maior fica o mistério, quando se percebe que todas as pessoas que faziam negócio com Blauele perdiam exatamente a quantia em dinheiro a quantia que fora negociada com ele. Simões Lopes diz que o dinheiro simplesmente ―evaporava‖. 3.3.3 - O agir ético de Blau e a quebra do encantamento do sacristão A riqueza de Blau torna-se um mistério para os homens que o observam: Como um homem poderia enriquecer tanto de forma tão repentina? Por que as pessoas tinham prejuízos ao fazer negócios com Blau? As pessoas acham que Blau fez uma espécie de pacto com o diabo ou algo parecido, pois acham que o dinheiro que Blau tinha era maldito: a quantia que ele dava nos negócios era prejuízos na certa. As pessoas começam a relacionar a riqueza obtida por Blau com a salamanca do Jarau. Muitos fazem tentativas 118 frustradas paraem entrar na salamanca. Não conseguem, entrar porque é preciso ―alma forte, coração sereno‖ e o desejo de riquezas impede com que qualquer um entre na salamanca. Contudo , Blau começa a ser colocado de lado pelas demais pessoas e ninguém tem a coragem ou quer se aproximar dele. Blau eEstá sozinho e tem no máximo a companhia dos cachorros. Ninguém mais quer fazer negócios com ele. Então: ―Blau deu em cismar, e cisma foi que resolveu acabar com aquele cerco de isolamento, que o ralava e esmorecia‖ (p.162, l.19s). Blau tem uma atitude decidida: vai retornar à salamanca, porque quer recuperar a tranqüilidade, os amigos e companhias que outrora possuía. Retornar à salamanca é de fundamental importância, porque é lá que está a raiz do problema. Não basta apenas guardar e não utilizar mais a onça encantada, mas é necessário devolvê-la ao sacristão como uma forma de atitude honesta. Talvez aquilo que aqui se chamou de ―tática‖ do sacristão, tenha dado certo: Blau (homem de alma forte e coração sereno) retornará ao cerro. DBlau devolve a onça encantada ao sacristão e, assim, mostra qual é a sua ética. É a ética do desprendimento, ética em que o maior valor válido para ele não é material, mensurável, mas está 119 nas relações que ele mantém com os seus amigos e também com o dever ético. De que vale ser rico e não ter amigos? É preferível ser pobre, mas ter com quem partilhar o pouco que se possuitem. Blau, ao voltar ao cerro, não perde nada, ou seja, ele não perde as riquezas que havia adquirido com a onça encantada, ele não ficou pobre. Ele era pobre e se reconhece como tal, ao devolver a onça encantada. Isso se verifica, quando Blau chega àna salamanca e diz: ―Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza desta onça, que não se acaba, é verdade, mas que parece amaldiçoada, porque nunca tem parelha e separa o dono dos outros donos de onças!...‖ (p.162 l.34ss). Deve-se lembrar que a ética cristã afirma que a recompensa é ganha por aquele que sabe renunciar às coisas do mundo. Quando Blau chegou à salamanca, pronunciou pela segunda vez uma saudação cristã e, quando vai-se embora, pronuncia uma terceira saudação: o encantamento ao qual o sacristão estava submetido está quebrado. Todos os tesouros da salamanca são queimados. 3.3.4 - Blau recupera a paz e a tranqüilidade 120 Quando o encantamento da salamanca é desfeito, todos aqueles entes que lá habitavam são queimados juntamente com a salamanca. Todos os encantamentos são desfeitos: ―a velha carquincha transformou-se na teiniaguá... e a teiniaguá na princesa moura... a moura numa tapuia formosa; ... e logo o vulto de face branca e tristonha tornou à figura do sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez, num guasca desempenado...‖ (p.163). Assim, pode-se verificar que as principais figuras que estavam na salamanca, a saber o sacristão e a Teiniaguá, voltam ao seu estado primitivo (estado primitivo no começo da história, o que não quer dizer que eles depois de terem passado por toda esta experiência tenham permanecido os mesmos. O ser humano se faz e toda experiência por que ele passa o faz diferente). Simões Lopes chama a Teiniaguá de tapuia, nome que os tupis utilizavam para designar os gentios inimigos, segundo o dicionário Aurélio, mostrando, assim, que há o mal dentro da figura da Teiniaguá. E o sacristão, por sua vez, torna-se um guasca, ou seja, adquiriu, agora, sua verdadeira identidade. Blau, por sua vez, traça sobre si e sobre seu cavalo o sinal da cruz como forma de proteção. O gaúcho é, portanto, um cristão convicto de seus deveres enquanto tal. Ele é alguém que valoriza não apenas gestos que lembram sua 121 religiosidade, mas que valoriza também os atos concretos que o fazem ser um cristão. Alguém que, na linguagem bíblica, é bem-aventurado porque pobre (Mt 5,3). Ele Blau representa o gaúcho que é alguém que mantém, acima de tudo, a honestidade como o valor primordial de sua vida. ABlau ao devolver a onça encantada tem de volta a paz e os amigos antes perdidos. Simões Lopes encerra o conto assim: ―Anhangá-pitã, também não foi mais visto. Dizem que, desgostoso, anda escondido, por não haver tomado bem tenência que a teiniaguá era mulher...‖ (p.164). Uma vez que o gaúcho toma uma atitude honesta, e recupera, desse modo, sua identidade que estava em crise, o mal que habita dentro dele (Anhangá-pitã) não o incita a ter más atitudes. A mulher, para ele, pode ser uma companheira, alguém que se faz presente em sua vida, ou qualquer outra coisa, menos a causa ou motivo para o pecado, pois o gaúcho está em paz com sua consciência. Síntese conclusiva Uma vez feita a análise do agir ético dos personagens do conto A Salamanca do Jarau, é justo relacionar esses 122 aspectos entre si, pois até aqui eles foram apenas mostrados e parece não haver conexão entre eles na leitura que foi feita. O objetivo central deste item é mostrar quais as relações que se pode fazer entre os três personagens da lenda simoniana: Blau, o sacristão e a Teiniaguá. O primeiro aspecto a ser observado é a crise por que passam o sacristão e Blau. O sacristão, representando a religião no século XVII, percebe que a religião esta não responde mais às perguntas de seu tempo. Conforme a análise acima, pode-se perceber que há necessidade de um cristianismo menos rígido, numa época de transição para o que seria depois, caracterizado como antropocentrismo. Quando o sacristão é seduzido, mostra que quando se age contraao agir-se contra as normas de uma época, tem quede arcar-se com as conseqüências dos atos. Num período de exclusão em relação aos demais homens procura por sua identidade (pois tem a face desfigurada – ―branca e tristonha‖). Já Blau passa por crise semelhante: perdeu também sua identidade, mas isso pouco tem a ver com a religião. Seu problema é basicamente econômico, por isso procura por algo que é material: o boi barroso (o boi barroso é visto como uma possível solução aos seus problemas econômicos). Após ter passado pelas sete provas com 123 sucesso, Blau nega as sete recompensas, mas leva a onça encantada e vê nela a possibilidade de ter resolvidos seus problemas econômicos, uma vez que pois a emprega em seus negócios. Contudo, se dá conta de que perdeu seus amigos por causa da onça encantada e que causou prejuízos aos outros, se vê isolado, como o sacristão, e decide acabar com essa situação. Percebe-se que no isolamento (talvez em atitude de ascetismo), os personagens se encontram consigo mesmos. ContudoPorém, o sacristão não depende somente de si para sair desta situação. A crise de identidade pela qualque ambos personagens passam, tem a ver com o modelo que é colocado em evidência na época (Blau é o econômico; o sacristão, o religioso). Ambos os modelos devem se repensar, para que o homem tenha maior autonomia (o sacristão vive numa crise de valores religiosos e Blau, no momento de expansão do capitalismo, e, ao mesmo tempo, de crise econômica – época do gaúcho a pé), isto é, o sacristão pensa em como ser mais livre continuando a ser cristão, e Blau quer saber como ser livre economicamente no capitalismo e na pobreza. Cabe, depois, analisar a relação que o sacristão mantém com a Teiniaguá. Conforme já foi dito, o sacristão dispensa um cuidado pela Teiniaguá, quando esta ainda 124 estava sob a forma de lagartixa. Mas depois de um certo tempo ele a vê na forma decomo mulher. Mas a ética de seu tempo condena as relações que o homem mantém com a mulher, por ser uma ética com fundamentos religiosos que desvalorizam o corpo e dão ênfase à alma, ao espiritual. Contudo, o sacristão quebra essa ética e se deixa seduzir pela Teiniaguá. O momento da sedução é o momento que o sacristão olha nos olhos da Teiniaguá e não mais lhe resiste ao encanto. Como já era de se esperar, o sacristão é condenado à morte pelos padres, pois está vivendo no período inquisitorial. Mas o fato do sacristãode ele ter rompido com a ética cristã mostra que o homem passa por uma transição cultural, a qual repercute em cada pessoa, e isso lhe traz inquietações. O sacristão apesar de ter morrido é salvo pela Teiniaguá. Mas há dúvidas quanto essa ―salvação‖, pois ela quer formar uma nova estirpe com o sacristão, e, por isso, salva-o. Até que ponto isso é salvação? A salvação teria que ser por amor, portanto, gratuita. Mas, não é o que ocorre. Outra questão a ser levantada é: Por que a Teiniaguá salva o sacristão, se ele passa duzentos anos isolado dos demais homens? O ―novo‖ que a Teiniaguá representa tem quais projetos com o sacristão? Poder-se-ia dizer que esse novo seria uma proposta que não é nem o 125 cristianismo que está sendo vivido, nem um paganismo completo. Isto está assim fundamentado: se fosse uma proposta de paganismo, a Teiniaguá teria escolhido alguém que não estivesse ligado à religião, e, se fosse para permanecer do modo que estava a Teiniaguá não surgiria como ―antítese‖ ao sacristão. Esse novo mostra que é possível romper com as estruturas atuais em que se está vivendo, sem que seja necessário voltar para trás ou abandonar toda a tradição, para se chegar a algo novo. Isolado, o sacristão pode refletir melhor naquelasua situação e na proposta apresentada. O cerro, conforme já foi apresentado, é um lugar metafísico, onde cada um faz a experiência de encontro consigo mesmo. Resta ainda uma dúvida quanto ao modelo de ética seguido por Blau: ao devolver a moeda ao santão, ele foi ético, e, quanto a isso não há dúvida. EleBlau se deu conta de que a atitude correta a ser feita neste caso seria devolver a moeda, mas por qual princípio ele se norteou: o teleológico ou o deontológico? Podem ser feitas duas análises: se ele seguiu o primeiro princípio, o fator decisivo de sua atitude foi o fato de ele ter perdido os amigos, pois sua ação é movida por um ―querer recuperar‖ os mesmosamigos perdidos. O fim almejado é alcançar a felicidade e aesta 126 felicidade depende dos amigos, que fazem o gaúcho ser feliz. De nada adianta ser rico, mas não ter amigos com quem partilhar a vida, o chimarrão,… Contudo, se Blau agiu coagido pelo imperativo categórico kantiano (independente de conhecê-lo teoricamente), ele apenas agiu, porque devia agir assim: todo o homem que age eticamente, deve devolver a moeda e ―eu não ia querer que me dessem uma moeda que após algum tempo sumisse‖. Ou seja, Blau ia querer que sua atitude particular se tornasse lei universal baseada no dever. Contudo, através do texto, nada fica subentendido quanto ao princípio ético seguido por eleBlau. É a partir dessa crise, de possuir a onça encantada, pela qualor que Blau passou, que se encontra o projeto para sua identidade procurada desde o início da história. Blau é, acima de tudo, alguém ético, seu projeto consiste na honestidade, e, talvez, seja essa a sua crise: como ser honesto no contexto capitalista? Nesse ambiente de competição que é o capitalismo, há o evidente desejo de superar a situação de pobreza, qual o mais importante: ser rico a qualquer custo, ou ser pobre, mas contar com amigos? Parece que Blau opta pela segunda alternativa. Não importa se ele foi honesto para com seus amigos ou apenas para consigo mesmo. Importa 127 sua honestidade que é colocada em prática independente das adversidades encontrada. 128 Referências bibliográficas: BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1996. CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: Regionalismo & Literatura. Porto Alegre: L&PM, 1982. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. 2ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. GRANADA, D. Daniel. Supersticiones del Río de la Plata. Montevideo: A. Barreiro y Ramos, 1896. LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia Chappini. Rio de Janeiro: Presença, 1988. 129 130 4 - DA CAVERNA PLATÔNICA À CAVERNA SIMONIANA: UMA LEITURA DA CRISE DE IDENTIDADE ÉTICA DO GAÚCHO Mauro Henrique Franzkowiak Martins 70 1. Um Platão unitivo Na reconstrução das interpretações de Platão, é necessário descobrir quais foram os paradigmas 71 que constituíram a base de sustentação das pesquisas. De acordo com Giovanni Reale, os paradigmas essenciais para uma melhor interpretação de Platão, do século IV a.C. até hoje, podem ser resumidos em quatro grandes blocos: a) O paradigma originário, nascido com Platão e consagrado pelos seus discípulos diretos e desenvolvido na 70 Acadêmico do Curso de Filosofia. Membro do Grupo de Pesquisa Simoniano. ISF/UCPEL. 71 Os paradigmas demonstram as convicções e concepções que constituem os pontos firmes da ciência num determinado momento e que fornecem os modelos para a formulação dos problemas e das soluções para aqueles que trabalham nas pesquisas. G. Reale utiliza em sentido analógico e considera o paradigma como uma unidade de medida fundamental nas pesquisas científicas. Ele o utiliza, a exemplo de Kuhn, como uma unidade modeladora. Quando um paradigma entra em crise, se encerra-se com o surgimento de um novo paradigma e, assim, a conseqüente batalha pela sua aceitação. 131 primeira Academia. Sua natureza é teorética e centra-se nas doutrinas não-escritas. b) O paradigma neoplatônico, também de natureza teorética, centra-se prioritariamente nos escritos, interpretados numa ótica alegórica. Absorve elementos basilares das doutrinas não-escritas e desenvolve-se teoreticamente de modo muito notável. c) O paradigma, lançado sobretudo por Schleiermacher, centrado na preeminência quase absoluta atribuída aos escritos, excluindo ou limitando fortemente o significado e a importância das doutrinas não-escritas. d) O paradigma proposto pela escola platônica de Tübingen, que coloca, em primeiro plano, as doutrinas não-escritas junto com os escritos platônicos, e as apresenta como necessárias para a adequada compreensão dos próprios escritos, seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista doutrinal. Os escritos de Platão não oferecem ―todo Platão‖. A doutrina esotérica mostra de forma mais completa as sínteses de Platão. Aqui aparece uma síntese final, que não seria entendida por principiantes e por aqueles que estavam de fora. Esta doutrina é oferecida para os iniciados, 132 na forma de diálogo vivo (cara a cara). Aqui aparece a dialética com teses, antíteses e sínteses. Esta doutrina se chama-se de doutrina não-escrita. A escola de Tübingen irá colocá-la em primeiro plano de sua pesquisa, para assim, elaborar uma releitura de Platão. Aí é que o estudo desta leitura de Platão se torna de suma importância, pois só desse modo se conseguiu chegar à grande síntese. Os pólos se conciliam e a alegoria da caverna pode ser lida de forma completa. 2. A caverna platônica Ao ler a alegoria da caverna platônica, percebe-se que há um limite à visão desses prisioneiros. E este limite não se reduz apenas aos objetos. Eles estão limitados a verem somente suas próprias sombras, pois suas cabeças estão imóveis. ―Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projectadas pelo fogo na parede da caverna?‖ (Rep., 515a)72. Cabe destacar, também, que as vozes ouvidas pelos prisioneiros são atribuídas às sombras que eles viam projetadas no fundo da caverna: 133 ―E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava?‖ (Rep., 515b). Ao sair da caverna, o ex-prisioneiro se encontraria numa ascensão gradual, ou seja, subir o caminho rude e íngreme (Rep., 515e). De início, iria contemplar o fogo, as imagens dos homens e objetos – inclusive de si mesmos – que seriam projetadas na água. Após, passaria a contemplar os próprios objetos, a luz das estrelas, a Lua e por fim, o Sol. Percebe-se, neste processo, que se contemplariam os objetos, os outros homens e a si mesmos. Estas são as três dimensões para perfazer o caminho de ascensão da alma ao mundo inteligível. Porém, só no limite do cognoscível é que se poderá ter a Idéia do Bem. O processo de ascensão os leva a darem-se conta de sua própria condição de prisioneiros. Desta forma, as trevas já não representam a simples ignorância, mas a ingenuidade. Agora se percebe que a sombra não é mais a realidade, que distingue entre aparência e realidade. Prosseguindo sua ascensão, este prisioneiro deve voltar à caverna. O ter compaixão (Rep., 518b) faz com 72 A partir deste momento, usaremos a abreviação ―Rep‖ para a obra: PLATÃO, A República (trad. de Maria Helena da Rocha Pereira). 3ª ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1949. 134 queque ele sinta a necessidade da voltar, ao ver os outros na própria condição anterior, mesmo agora, ficando cego pela falta de luminosidade no interior do local. etorne a caverna ao ver os outros na sua própria condição anterior. Esta compaixão faz com que sinta a necessidade de retorno, mesmo, agora, ficando cego pela falta de luminosidade dentro da caverna. O processo deixa de ser solitário: Desse modo, a intersubjetividade surge como condição do desenvolvimento da subjetividade (Sardi, 1995, p.84). Os prisioneiros soltos, são curados de sua ignorância, mas p. Para isto, o educador deve receber o consentimento do educando. 3. A caverna simoniana Diante da obra de J. Simões Lopes Netodeste escritor, percebe-se que oO verdadeiro objetivo de Simões Lopes Neto, na Salamanca do Jarau, é uma invenção de um personagem e a observação da situação-limite em que se encontra (Chaves, 1982, p. 82). O personagem Blau Nunes vai em busca de um boi barroso por um percurso geográfico, que não tem início nem chegada pré-determinados. O percurso geográfico, num primeiro momento, representa a travessia psicológica do próprio Blau em busca de si mesmo, 135 travessia esta que está sujeita a avanços e recuos. Esta travessia, necessariamente, culmina num processo de autoconhecimento e afirmação da identidade. O ingresso na salamanca onde reside a Teiniaguá, agora, representa a travessia em busca de si mesmo. O ingresso na salamanca torna-se um momento decisivo para Blau, pois representa a tentativa de ultrapassar a condição problemática em que se encontra, buscando os valores éticos. A situação do gaúcho pobre, na crise de seus valores éticos, se contrapõe à busca do poder e das riquezas, que a salamanca e a Teiniaguá representam. O ingresso na furna encantada tem como função subtrair Blau ao mundo humano, para coloca-lo na solidão, num combate do qual deverá alcançar o conhecimento duma zona interdita (o reino encantado da Teiniaguá) e a revelação de sua própria identidade, que conduz à posse de si mesmo. A função da Teiniaguá é uma representação da ruptura entre a humana existência humana e o conjunto de valores éticos a que aspira o gaúcho pobre – Blau Nunes. 4. Da caverna platônica a caverna simoniana: análise da crise de identidade ética do gaúcho 136 Fazendo uma relação com estas duas alegorias, foram destacados alguns elementos desses textos que expressem as semelhanças e as diferenças principais dos personagens e esclarece pontos que revelem, também, o conhecimento teórico-prático (alegoria da caverna), ligando-o com a nossa identidade gaúcha (A Salamanca do Jarau). Qual é a identidade ética que Blau irá assumir? Não é o objetivo deste trabalho apresentar as características ou desenvolver a identidade ética de Blau, mas apenas mostrar o aspecto metodológico que rege a interpretação da lenda simoniana, isto é, a teoria do Bem elaborada pelo escola de Tübingen. Os dois textos possuem características semelhantes: a narrativa de ambos envolve uma caverna que está em nível diferente ao dos personagens. Portanto, percebe-se que os dois textos nos mostram um processo, um caminho a ser percorrido pelos personagens inseridos no contexto da alegoria e da lenda. E este caminho culmina numa elaboração de uma consciência intersubjetiva. Assim como na caverna platônica há um duplo movimento (subir e descer) ético-cognitivo, também na lenda A Salamanca do Jarau há um duplo movimento de busca de identidade ética, 137 quando o personagem percebe a sua crise interior com a crise externa, crise do pampa gaúcho. O personagem simoniano se depara com projetos éticos, na lenda A Salamanca do Jarau, que são projetosos quais são ambíguos. O primeiro é representado pelo sacristão. O sacristão, na lenda, apresenta-se em três fases diferentes: Numa primeira fase, ele é o sacristão da igreja de São Tomé. Ali, ele representa a cristandade colonial, dentro de uma instituição (São Tomé). Era eu que cuidava dos altares e ajudava a missa dos santos padres da igreja de S. Tomé (...) Eu era o sacristão (Lopes Neto, 1988, p.145). Nesta fase, o sacristão entra em oposição com a instituição em que está inserido. Ele vai contra os princípios éticos da instituição: ...e a minha alma de cristão foi saindo de mim, como o sumo se aparta do bagaço, como o aroma sai da flor que vai apodrecendo... (Neto, 1988, p.148). É uma fase de mudança na vida do sacristão, onde ele deixa de viver um projeto ético colonial, para viver um outro projeto, representado pela Teiniaguá. Na segunda fase, o sacristão está fora da sociedade. Já não está mais na instituição. Ele assume um projeto ascético, vive no cerro do Jarau como um eremita, na sua 138 solidão, com face tristonha. Agora está fora do institucional, ele é um vulto de face branca e tristonha. Enfim, na terceira fase, o sacristão assume o projeto de Teiniaguá e se une a ela. Aí há uma metamorfose: o vulto de face branca e tristonha volta a se tornar a figura do sacristão dantes, que, agora, se transforma-se num guasca desempenado, inicia sua viagem com a princesa moura. (...)... e logo o vulto de face branca e tristonha tornou à figura do sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez, num guasca desempenado ... (Lopes Neto, 1988, p. 163). O sacristão representa uma identidade ética da cristandade, que se baseia numa moral dualista, de desprezo ao corpo e ao prazer, tendo valor as asceses espirituais. Aquilo que não faz parte desta moral, é um mal condenável. Si a cruz do teu rosário não me esconjurar... (Lopes Neto, 1988, p.148) O segundo projeto é representado pela Teiniaguá, que revela o novo, expressando um projeto latino-americano. A Teiniaguá é um personagem híbrido, ora simboliza a condenação, ora simboliza a libertação. A Teiniaguá simboliza uma identidade ética unitiva, em queva. Nesta identidade, não há uma dualidade entre 139 corpo x alma. Esta identidade conduz a uma unidade sem exclusões, ou seja, tudo converge para uma única direção. ...do sangue de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais será vencida... (Lopes Neto, 1988, p.148) Relacionando com a filosofia platônica, encontra-se, no primeiro projeto, uma identidade ética dualista, como se depara lendo Platão de forma dualista, ou seja, há separação de Bem x mal, de corpo x alma. No segundo projeto, Teiniaguá representa uma identidade ética unitiva, que conduz todos os pólos a uma unidade, como na teoria sobre o Bem de Platão. A ética da cristandade colonial é dualista,. Ela separa, por exemplo, corpo e alma, ou bem e mal. No entanto, este modelo é superado na união do projeto do sacristão com o da Teiniaguá. Ora, encontra-se na filosofia platônica, à luz das doutrinas não-escritas, uma ética que conduz aà unidade. Da mesma forma, é possível fazer uma leitura da Salamanca do Jarau, em que se realiza uma identidade ética unitiva. Deixa-se em aberto, porém, se Blau Nunes assume esta nova identidade ética resultante da união dos dois personagens. Cabe destacar, contudo, que há uma inquietante busca por uma 140 identidade, representada na figura de "campear o boi barroso". A uUnidade de Platão pode ser aplicada na união dos dois projetos que estão diante de Blau Nunes. A partir da união dos pólos, se chega-se a uma uUnidade, sem excluir. A síntese vai surgir na formação da ―nova gente‖. Diante disso, destacam-se alguns elementos para aplicar à filosofia platônica. Eis cinco pontos principais. 1) Blau está inserido na oposição destes projetos éticos, porém, a ética de cristandade está em crise. Daí, a crise de identidade ética do gaúcho Blau. Por isso, ele sai em busca de seu boi barroso, mesmo sem saber se era possível encontráa-lo. Blau Nunes vai ao cerro do Jarau e recusa qualquer recompensa, tanto da Teiniaguá como do sacristão. Esta rejeição leva à destruição da furna, ou seja, o encantamento desaparece. Com a união de Teiniaguá e do sacristão, ocorre a síntese dos dois projetos. Blau Nunes presencia essa união e a formação de uma grande síntese: Teiniaguá e o sacristão formam um único projeto. Surge uma nova gente. O sacristão, agora, assume a personalidade do guasca desempenado, o que faz com que a crise de identidade do Blau seja resolvida. 141 Nota-se então que, assim como a filosofia platônica converge para uma unidade, uma síntese de opostos, sem exclusões, a lenda A Salamanca do Jarau ilustra esta filosofia desta forma, através destes dois personagens. Há uma unidade entre os dois projetos. 2) A segunda aplicação é o processo da intersubjetividade: Elemento de grande importância nos dois textos. Os dois personagens estão comprometidos com a mudança. O personagem platônico, ao passar pelo processo do conhecimento, sente a necessidade de libertar os outros que estão na caverna, resgatando da ignorância os que ainda estão presos aà ela. O personagem simoniano, ao buscar sua própria identidade, representa não só a sua identidade pessoal denominada Blau Nunes, mas sim, o gaúcho Blau Nunes, representando todo o conjunto ético-cultural do gaúcho que está em crise. É aí que se encontra o resgate da cultura, através de uma consciência intersubjetiva, sem excluir nada, mas conduzindo tudo para a unidade. É esta consciência intersubjetiva, provocada pelo autoconhecimento dos personagens, que é a responsável pela mudança e reconstrução da sociedade. O personagem de Platão expressa a busca pela verdade, mas uma verdade para todos, representada no retorno à caverna . O personagem 142 Blau Nunes manifesta a busca de sua identidade, fundada numa ética do presente que se encontra em crise. Ambos se julgam co-responsáveis pela sociedade em que vivem. 3) A terceira aplicação é elaborada, a partir da conduta que os personagens assumem para chegar ao conhecimento. Os dois personagens precisam encontrar um caminho que os leve ao conhecimento. O personagem platônico percorre um caminho, passo a passo, iniciando pelas sombras, depois pelos reflexos nas águas, pelos astros e enfim, pelo Sol. O personagem simoniano sobe o cerro do Jarau e realiza as sete provas, dialoga com a Teiniaguá. Ganha a moeda, retorna, para devolvêe-la. Ao fazer isso, acontece a destruição da furna e o encantamento acaba. Então acontece a união entre o sacristão e a Teiniaguá e surge a síntese: o sacristão é um gaúcho guasca. Nasce aqui uma ―nova gente‖, que também é uma nova identidade cultural. Fica em aberto qual é esta identidade. 4) O contexto histórico dos dois textos é um momento de crise. Platão, em sua juventude, testemunhou as guerras de Peloponeso, a derrocada de Atenas e, no início do século IV a.C, o enfraquecimento de Esparta e a decadência do conjunto das cidades gregas. A totalidade de suas obras vem espelhar esta situação. Na República, Platão 143 descreve o projeto de uma cidade modelo, ou seja, como se deve administrar uma cidade que leve em conta todos os cidadãos. J. S. Lopes Neto escreve sobre a mudança que acontece no pampa no princípio do séc. XX. Com a chegada da industrialização e da mecanização, é abandonado o trabalho nas charqueadas. Com a crise do charque e das fazendas, o gaúcho perde a sua identidade. Assim como Platão procura conduzir as cidades gregas ao conhecimento, J.S. Lopes Neto procura ilustrar o resgate da identidade gaúcha também numa época de crise econômica. 5) O acesso ao verdadeiro conhecimento e da identidade do gaúcho não se realiza de forma fácil, pois é necessário superar a crise. Os dois processos são longos, e são representados pelos caminhos a subir. Platão diz, claramente, que é preciso subir o caminho íngreme que conduz ao conhecimento. J.S. Lopes Neto ilustra o caminho da subida para o cerro ou a subida para a furna encantada. Assim, com caminhos a subir e provas a realizar, sucede simultaneamente o conhecimento e a identidade. Platão, pela dialética, chega ao Bem. J. S. Lopes Neto pelo auto-conhecimento, chega à nova gente. 144 Em ambos os casos, realiza-se uma síntese. Estas provocam as transformações tanto no indivíduo como na sociedade. Para concluir, pode-se dizer que esta busca pelo conhecimento não é algo solitário, mas tem um caráter intersubjetivo. Esses elementos que foram destacados, servem para ilustrar que o verdadeiro conhecimento é aquele que conduz o homem à transformação da sociedade onde está. A busca pelo conhecimento é a formação de uma consciência intersubjetiva ético-cognitiva que se expressa na afirmação da identidade ético-cultural regional, aberta ao universal. 145 Referências Bibliográficas: CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: Regionalismo & Literatura. Porto Alegre : Mercado Aberto, 1982. LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos e Lendas do Sul.Edição crítica com introduções, variantes, notas, glossário por Aurélio Buarque de Hollanda e nota de Augusto Meyer. Posfácio de Carlos Reverbel. Col. Província, v. 1, 5ª ed., Porto Alegre : Ed. Globo, 1957. ________________________. Contos gauchescos. Lendas do Sul.Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia Chiappini. Rio de Janeiro : Presença, 1988. PLATÃO, A República (trad. de Maria Helena da Rocha Pereira). 3ª ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1949. REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão. São Paulo : Loyola, 1997. REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia.(Vol. 1) São Paulo : Paulinas, 1990. SARDI, Sérgio Augusto. Diálogo e Dialética em Platão. Porto Alegre : EDIPUCRS, 1995. 146 5 - SITUAÇÃO ECONÔMICA NA LENDA SALAMANCA DO JARAU Péterson Figueiredo 73 INTRODUÇÃO O presente trabalho de hermenêutica da situação econômica na lenda ―Salamanca do Jarau‖ do autor João Simões Lopes Neto tem, como objetivo primeiro, diagnosticar e tomar um panorama do contexto geográfico e econômico da época vivida pelo autor, quando escreve a lenda. Também foram observadas as as conseqüências econômicas que levaram, o autor, escrever o induziram a escrevê-laesta lenda. AE será feita a análise do papel do personagem Blau Nunes, personagem este criado por Simões Lopes Neto. No livro Simões Lopes Neto: Regionalismo e literatura de Flávio Loureiro Chaves, cita que objetivo verdadeiro de Simões na lenda [...] é a invenção de uma personagem e a observação da situação-limite em que se encontra. Num segundo momento, o trabalho tem o objetivo de verificar dentro da lenda a visão econômica e toda a 73 Acadêmico do Curso de Filosofia. Membro do Grupo de Pesquisa Simoniano. ISF/UCPEL. 147 trajetória do personagem Blau. Por fim destacar as principais idéias e a contribuição que causou para a literatura e a própria filosofia atual. 1 - Situação econômica na época de João Simões Lopes Neto Na lenda Salamanca do Jarau, Simões resalta em várias passagens à situação econômica. Neste contexto econômico é constatado com o personagem Blau o descontentamento com a pobreza e as conseqüências enfrentadas por ele. A confirmação desta pobreza está em destaque: ―No tranquito ia, cantando, e pensando na sua pobreza, no atraso das suas cousas. No atraso das suas cousas, desde o dia em que topou-cara a cara! Com o caipora num campestre da serra grande, pra lá, muito longe, no Botucarai...‖(Lopes Neto, 1988, 141, 15-20). A análise agora é da situação econômica da época de Simões Lopes Neto, meados de 1913, ano em que o autor escreve a lenda. O período analisado é chamado de República Velha (1890-1930). Neste período, o Rio Grande do Sul tem uma economia voltada de forma específica para a agropecuária. Neste período aA economia é de transformação e mudança, 148 passando de uma economia escravocrata para uma economia assalariada, . Assim surgindo, assim,e na sua base da economia o sistema capitalista. A entrada deste sistema em nosso estado o exemplo do estado de São Paulo, com o café trouxe e o acúumulo de capital, fenômeno até o momento desconhecido. Isso faz com que reproduza efeitos, atingindo vários âmbitos, permitindo um crescimento necessário na estrutura do RS,estado. Estrutura esta tais como estradas de ferros, equipamentos nos portos, desenvolvimento bancário, etc. Na instalação do período da República Velha, a base da economia era voltada para o interior dentro do estado. Com a fabricação do charque e a criação de gado, atividades primordiais para a região o Estado, começou a fluir e consolidar uma economia exportadora regional. Em 1913, a estrutura utilizada no estado era deficiente e encontrava-se em desigualdade com o modo que era aplicado no Prata. Isso faz com que aA má aplicação de tecnologia, e usando métodos já ultrapassados faz , que o charque perca qualidade e o preço alto, não chegando a ser lançado no mercado interno brasileiro. Outro fator negativo era a matéria-prima e altas taxas que o governo cobrava sobre a importação do sal, principal item para a fabricação 149 do charque. Começava então uma crise na economia do estado,o e se alastrando-se por vários anos. No panorama geral da situação econômica da época, decadente e de crises atingindo o pampa, fez quetudo levou Simões a reproduzir,iu-se através do escrito da lenda, um pouco desta situação vigente. Em debate no grupo de pesquisa, ficou salientado que Simões não atingiu nunca sucesso como escritor e empresário. SAssim Simões sempre foi um fracassado e, nos últimos anos de suas vida,s passou na pobreza, recebendo favores e ajuda financeira de amigos. Suas obras somente ganharam destaquecadas e valor literário, após sua morte. 2 - A situação econômica na parte interna da lenda Salamanca do Jarau Já nas primeiras linhas da lenda observamos que o narrador cita que o personagem que percorrera toda a lenda era em primeiro lugar pobre: [...] ―um gaúcho pobre, Blau, de nome, guasca de bom porte, mas que só tinha de seu um cavalo gordo, o fação afiado... e nesse dia andava campeando um boi barroso‖ (Lopes Neto, 140, 2-5). 150 O narrador coloca toda a situação do personagem Blau e a identificação do espaço geográfico. EBlau era um gaúcho que tinha em sua personalidade uma valentiavalente, um espírito dominanteador e trabalhador. Sob este olhar da personalidade de Blau nada corria bem em sua vida econômica e sua situação de pobreza era alargada com o tempo. Na característica do personagem remonta toda uma situação do gaúcho da época de Simões Lopes Neto. NestCom a narrativa, Blau sai ao encontro de uma solução para o problema vivido em sua vidaem que vive:, a pobreza. Durante Ao caminho, faz uma reflexão a respeito dada pobreza e encontra-se com um vulto que era o santão da salamanca do Jarau. Neste encontro, Blau é indagado sobre o conhecimento da furna. O diálogo entre ele o santão dáa a intenção de uma saída para os seus problemas enfrentados por Blau. No segundo capítulo da lenda, é citado o discurso de Blau, que relembrando-se de que sua avó contava a história da furna que se localizava no Cerro do Jarau. Neste capítulo, ocupa-se em total tempo com a narração da história do Cerro do Jarau, que avó contava para seu neto Blau. . A sua avó contava que lá na furna se encontrava-se uma velha fada que possuidora deía um condão mágico que foraera trazido para 151 ada América. Blau, ao lembrar-se da história, temsente a iluminação e a confiança deinfluência também de ali na furna conseguir resolver o problema de sua pobreza. EPois entrando na furna, conseguiria o ―condão mágico‖ e, assim, resolveria sua situação de pobrezadificuldade. No terceiro capítulo, encontra lê-se a narração do vulto de face branca e tristonha, . Vulto este que se intitula como sacristão da Igreja de São Tomé, nas antigas reduções jesuíticas do rio Uruguai. A história inicia com o aparecimento da Teiniaguá que sai de uma lagoa e é aprisionada pelo sacristão. O relacionamento do sacristão e padres faz que se condenea o sacristão, ao descobrir que ele tinha prendido a Teiniaguá, que era mulher. E, condenado à morte, acontece um milagre aos olhos de todos: Teiniaguá liberta o sacristão num toque mágico e os padres e o povo que assistia, nada puderam fazer. Ao ser libertado, ele refugia-se na caverna do cerro do Jarau. ENeste local passa a ser um lugar de riquezas de todas as outras salamancas. O vulto neste contexto todo sente-se arrependido de suas ações e, tendo toda a riqueza, é condenado a não viver livre e desfrutá-lasar no meio dos homens. Pelo fato de oo personagem Blau ter cumprimentado o vulto de face branca e tristonha (sacristão) de uma forma cristã e como filho de 152 Deus e não como um condenado e maldito, este o. O vulto convida, em recompensa aem ingressar na salamanca do Jarau. Os capítulos IV, V e VI continuam a relatar a história do sacristão com o Blau. Agora centro o trabalho nos capítulos seguintes. Quem nestes capítulos retoma a narração ée o narrador Simões. Ele contanarra a entrada do personagem Blau, e a passagem pelas setes provas e o encontro com a Teiniaguá que, em recompensa, oferece sete poderes em pagamento pelas provas. Num poder que ela oferece e a riqueza. NMas no fundo, Blau queria a Teiniaguá e, não conseguindo, rejeita as suas ofertas dela e retorna ao exterior da furna. Neste contexto, o sacristão (santão) entrega uma onça de ouro. ―Mas como és pobre e isso te aflige, aceita este meu presente, que te dou. É uma onça de ouro que está furada pelo condão mágico; ela te dará tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma em uma e nunca mais que uma por vez; guarda-a em lembrança de mim‖ (Lopes Neto, 1988, 158). Aqui nesta citação fica claro que Blau era pobre e que a oportunidade foi oferecida para ele. Primeiro pela Teiniaguá pela passagem das provas. Esta primeira ele rejeita; segundo, pelo sacristão, a onça de ouro. Neste segundo caso, aceitou a oferta. 153 Inicia o momento de usar a onça e começa a gastar e comprar desenfreado, e não pagando de onça em onça, uma de cada vez, como tinha recebido a recomendação. Sua riqueza aumentou e ele tomou de poder e sentiu que estava ficando rico e não mais sentindo aquele Blau pobre e humilde. Mas logo chegou o problema: que ao pagar as suas coisas com a onça, os que recebiam guardavam e num instante sumia. Isso constata a ambição de Blau para a riqueza, e ao cair em si e ver que aquilo era apenas ilusão e algo mágico, busca retornar ao cerro do Jarau e devolver a onça de ouro ao sacristão. Ao chegar na entrada do cerro, saúda o sacristão e joga a onça aos seus pés. N que no mesmo instante ée quebrado todo o encantamento da Teiniaguá e Blau aceita sua condição de pobre. ―Blau Nunes também não quis mais ver; traçou sobre o seu peito uma cruz larga, de defesa, na testa do seu cavalo outra, e deu de rédea e d´espacito foi baixando a encosta do cerro, com o coração aliviado e retinindo como si dentro dele cantasse o passarinho verde... E agora, estava certo de que era pobre como dantes, porem que comeria em paz o seu churrasco... e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida!...‖(Lopes Neto, 1988, 163, 32-38). Assim fica confirmado e que o personagem Blau Nunes toma toda a consciência de sua pobreza. N e no início da lenda ele a declara; sua pobreza no final da mesma dáa a 154 clarezaexplicação necessária para confirmar que Blau continua pobre e abdica de toda a fortuna oferecida. Riqueza esta fruto da mágica e da ilusão de ser herói um dia. ―Assim acabou a salamanca do Cerro do Jarau, que aí durou duzentos anos, que tanto se contam desde o tempo das Sete Missões, em que estas cousas principiaram‖ (Lopes Neto, 1988, 164, 1-4). CONCLUSÃO Ao término do trabalho chego a conclusão de que a situação econômica da época, em 1913, sua vida e a criação do personagem Blau Nunes levaram Simões Lopes Neto a transmitir e colocar na lenda Salamanca do Jarau sua história pessoal e a sua circunstância político-social. A análise da economia no início do séc XIX, contribuiu para localizar o sentido do autor em criar o personagem Blau, citando como um gaúcho pobre à procura de algo melhor para a vida e, por fim, a tomada de consciência de ser um gaúcho pobre, mas feliz com sua liberdade. Assim retorna no final da lenda a aceitação de sua situação de pobreza. O autor não prossegue descrevendo a continuidade de Blau, e somente cita a situação dele como pobre gaúcho. 155 Referências Bibliográficas: CHAVES, Flavio Loureiro. Simões Lopes Neto: Regionalismo e Literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. DACANAL, Jose Hildebrando. RS: Economia e Política. 2ª. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença, 1988. 156 6 - O ITINERÁRIO DA LENDA: A APRENDIZAGEM SIMBÓLICA Agemir Bavaresco 74 A lenda A Salamanca do Jarau (Lopes Neto, 1988, 140; daqui em diante nós citaremos este texto com a sigla ―S‖, a página e a linha correspondente da edição crítica estabelecida por Ligia Chiappini) é composta de 10 cenas. No entender de Flávio L. Chaves, tratam-se de 10 capítulos que podem ser organizados em 4 partes. O critério para estruturá-las é o discurso: 1ª parte - O discurso do narrador (cap. I); 2ª parte - O discurso de Blau (cap. II); 3ª parte - O discurso do guardião (caps. III, IV, V e VI); 4ª parte - A retomada do discurso do narrador (caps. VII, VIII, IX e X). Vê-se que a 1ª e a 4ª partes pertencem a Simões Lopes Neto, enquanto que a 2ª e 3ª conta-se a lenda da Teiniaguá e a origem do cerro. A personagem central é Blau e sua aventura pelo pampa gaúcho. Simões Lopes Neto apropria-se da lenda, apresentando-a em conto na forma de uma narração (Chaves, 1982, 77-79). 74 Professor da UCPel. Membro do Grupo de Pesquisa Simoniano ISF/UCPEL. 157 Há três narradores: um é nomeado na terceira pessoa, o qual apresenta e organiza a narrativa; o segundo é Blau Nunes que vive uma crise de identidade e está em busca do seu destino, daí estar campeando o boi barroso; e o último é o sacristão. Na verdade os três narradores apresentam três versões narrativas que se complementam como numa conversa. Blau conta a história que ouviu de sua ―avó charrua‖, enquanto que o sacristão e a Teiniaguá são personagens da lenda primitiva. É importante notar que Teiniaguá, a mulher-lagartixa, não tem voz diretamente, ela só fala através do sacristão. O texto tem dois tempos: um primordial, o do começo, o da instalação da primeira narrativa; e outro histórico corresponde ao de Blau Nunes conversando com o santão (cf. Lopes Neto, 1999, 32). Tomar-se-á a lenda, capítulo por capítulo, com a finalidade de fazer uma reconstrução do itinerário da aprendizagem feita pelos personagens através dos símbolos no próprio desenrolar da narração. O objetivo é elaborar um roteiro didático de leitura que aponte, ao mesmo tempo, os principais temas, problemas e vertentes interpretativas, as quais serão retomadas e desenvolvidas ao longo da pesquisa. Segue-se a divisão em quatro partes adotada por F. Chaves, 158 porém, segundo o critério de quatro símbolos principais que estruturam a lenda. Constata-se um jogo de oposição simbólico em vários níveis do texto simoniano: entre os símbolos cristãos (a Cruz e o rosário) e o islamismo (a meia-lua dos mouros); entre os símbolos telúricos (terra, fogo, água e ar) que se rebelam e se aliam com a Teiniaguá, para salvar o sacristão da condenação da morte, e o milagre do Santíssimo e a Cruz que acalmam e dominam as forças da natureza. E; entre o povo beato que acompanha o cortejo, sustenta o coro e a cerimônia de condenação e as vozes dos índios, do povo autóctone esbravejando para que libertassem o sacristão; a oposição na interpretação da Teiniaguá: do ponto de vista da cristandade colonial, ela ―é bicho imundo, mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira‖, enquanto que a versão popular vê nela uma simpática lagartixa, luminosa e hesitante, uma linda mulher, terna e apaixonada, nem agressiva e nem diabólica. Enfim, a oposição em nível da estrutura narrativa entre Deus e o Diabo. Uma leitura apressada pode cair na tentação de ir no desfecho e afirmar a vitória de Deus sobre o Diabo. Porém, Isso, porém, ignoraria o jogo das oposições simbólicas, com a repetição das palavras, frases, expressões, da fala poética que supera uma leitura retilínea. Ao contrário, 159 a leitura simbólica é dialética, pois considera a relação entre magia e religião, mito e história, Diabo e Deus, poesia e prosa, segundo a ambigüidade dos símbolos (cf. Chiappini, 1988, 224-227). 6.1 - O símbolo do boi barroso: festa, trabalho e utopia Cap. I - ―Campeando um boi barroso‖ ou aprender a ir ―no rastro‖ ―E no tranquito andava, olhando para o fundo das sangas, para o alto das coxilhas, ao comprido das canhadas‖(S, 140,6). O verbo campear (6 vezes: S, 140, 1-11; 141,34) marca o início do capítulo. Campear é, num primeiro sentido, procurar o gado. Trata-se da busca de um ―boi encantado, que aparecia, porém nunca era encontrado por muito procurado que fosse‖ (Lopes Neto, 1988, nota 4, 165). Num segundo sentido, é algo metafísico ou uma entidade ideal que inspira o caminhar de Blau: ele ia ―campeando e cantando‖. O símbolo do boi barroso compreende-se pelo ato de campear que significa procurar algo de imediato e concreto, e também buscar algo que não pode ser apanhado ou apreendido definitivamente, permanecendo, portanto, 160 uma utopia. Considerando este duplo sentido, neste capítulo campear o boi barroso significa o seguinte: a) Aprendendo o trabalho enquanto festa: No início da lenda cita-se a poesia do boi barroso. Segundo Simões Lopes, trata-se ―duma antiga dança camponesa, cuja música era ornada de versos que eram cantados durante o folguedo‖ (id. nota 4). Esta poesia ese encontra-se originalmente no Cancioneiro Guasca, porém, na lenda sofreu leves modificações, por exemplo, no primeiro verso acrescenta-se a palavra: bonito. Embora o boi barroso sendo ―logo reconhecido‖, ele sempre acaba escapando e nunca é preso, ou seja, ele não se deixa apresarropriar. O gaúcho, ao campear o boi barroso, une trabalho, lazer, poesia e música numa atmosfera festiva. b) Aprendendo a buscar as causas do empobrecimento: Blau constata que a época do trabalho como festa terminou, pois se dá-se conta de ―sua pobreza, no atraso das suas cousas‖. A organização produtiva da fazenda e a industrialização do charque, na virada do século XIX e no início do século XX, entra em declínio. AsComo conseqüências distoresulta são o empobrecimento econômico e a perda das habilidades tradicionais do peão. Blau reconhece no ―agora‖ de sua situação presente, o que 161 ele era antes e o que ele não é mais: ele perdeu todas as habilidades (valente, domador e plantador) e busca uma causa de seu empobrecimento: teria sido o encontro com o Caipora (S, 141,18)? O azar (S,141,21)? Por que todas ―as cousas corriam-lhe mal‖? O certo é que ―um gaúcho pobre, Blau, de nome, ia, ao tranquito, campeando sem topar coo boi barroso‖ (S, 141, 33-35), pois não há mais trabalho e nem festa. c) Aprender a mudar de rastro: Blau enquanto estava campeando o boi barroso, encontroua-se com o santão - ―um vulto de face tristonha‖ - que lhe diz que ―o boi barroso anda cumprindo o seu fadário‖ (S, 142,15). Então, Blau ouve a orientação do santão e dirige-se para a entrada da salamanca do cerro do Jarau. Aqui, ocorre uma mudança do rastro físico, para o rastro da própria memória, ou seja, o que sua avó charrua, lhe contara a respeito da lenda da salamanca. Blau aprende uma tríplice mudança: do rastro do boi barroso utópico, para o lugar geográfico da salamanca, e enfim, para a memória histórica pessoal-familiar. O ato de campear segue o movimento de passagem do exterior (o boi barroso, o cerro) para o interior (a memória oral da lenda). Blau aprende a conhecer que ―um homem é para outro homem‖ (S, 142, 10), isto é, a antropologia 162 simoniana começa com o reconhecimento do outro: Blau, o gaúcho descendente de índia charrua, encontra o santão. Neste primeiro capítulo, aprender é ―ir no rastro‖ da utopia (o boi encantado), da cultura popular (a dança, a música, a poesia, a festa), das causas dos problemas (o empobrecimento) e do reconhecimento do outro. 6.2 - O símbolo da Teiniaguá: religiões, culturas e etnias Cap. II - O outro (espanhóis e mouros), ―a gente pampeana‖ e a Teiniaguá ―...porque o sonho não tem lindeiros nem tapumes‖ (S, 144,20) O discurso de Blau introduz a origem da lenda na cidade de Salamanca na Espanha e nomeia duas etnias: ―os tais mouros e mais outros espanhóis‖. a) A guerra de religiões ou de duas culturas - oriente X ocidente: Há uma luta, na Espanha, entre o catolicismo e o islamismo. Estes últimos são vencidos pelos católicos, daí serem obrigados a ―ajoelharem-se ao pé da Cruz Bendita‖. Os mouros, ―fingidos de cristãos, passaram o mar e vieram dar nessas terras sossegadas, procurando riquezas, ouro, prata, pedras finas‖ (S, 143,2). 163 b) A gente pampeana, Anhangá-pitã e Tupã. Como era essa ―gente nativa‖? ―Era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a fruta e as raízes que Tupã despejava sem conta, para todos, das suas mãos sempre abertas e fazedoras‖ (S, 143,19-22). A gente pampeana da campanha e da serra é sem cobiça, ao inverso dos europeus que cobiçam riquezas. Aparecem duas entidades metafísicas: Anhangá-pitã, ―do tupi-guarani: diabo Vermelho‖ (S, nota 5, 165) e Tupã: para os tupis é o trovão, que os missionários jesuítas designaram de Deus. O primeiro é identificado com o diabo, enquanto o segundo é o doador generoso de bens. c) A metamorfose da fada moura: Teiniaguá surge do sopro de Anhangá-pitã que, através do condão mágico lhe tira a cabeça e implanta em seu lugar uma pedra transparente, ―vermelha como brasa‖. Então, Anhangá-pitã carrega teinianguá ―sobre a correnteza do Uruguai, até as suas nascentes‖. Porém, ele ―só não tomou tenência que a Teiniaguá era mulher‖, porque se trata de um personagem híbrido que assume muitas figurações no desenrolar da lenda. Daí, a dificuldade de reconhecer uma única identidade, pois ela carrega em si o ser híbrido mulher-lagartixa; a pluralidade étnica: moura e índia; a 164 diferença etária velha e jovem. Ela compreende o máximo de contradições e a capacidade de metamorfosear-se, permanentemente, por isso Anhangá-pitã não foi capaz de reconhecer sua identidade. Neste capítulo, apresentam-se algumas etnias fundadoras da identidade do gaúcho: os europeus e os índios. Além desstes, somam-se, sabemos pela história, os portugueses, negros e outros. O gaúcho é o resultado da miscigenação étnica. Aprende-se que a identidade do gaúcho não se forma pela exclusão. A ―gente pampeana‖ forma-se pela inclusão de um conjunto étnico. 6.3 - O símbolo da cruz: cristandade colonial 75, 165 rebeldia e soberania do amor O projeto construído segundo da cristandade colonial é J. Zanotelli da seguinte maneira: Primeiramente, o estado de cristandade é o resultado da fusão do Império Romano indo-europeu com o cristianismo semita (a partir de 313, Constantino e o Edito de Milão), que se torna a matriz etiológica; depois, esta matriz causal de nossa cultura é exportada e imposta para a América Latina, África e Ásia sob a forma colonialista, ou seja, destruindo as outras culturas. ―A Igreja cristã adota a estrutura, as instituições, a burocracia e, em parte, a ideologia do Império Romano como suas. Disto resultou o Estado de Cristandade‖ (Zanotelli, 1998, 85). Daí, que ―é imprescindível estudar as culturas ameríndias, pré-semitas, para não perdermos a memória e a identidade americana, por outro lado não se entendem as culturas, e a identidade americana, sem localizar a América Latina no quadro geral de desdobramento do Estado de Cristandade muitas vezes confundido com Cristianismo e com a Civilização Ocidental‖ (id. p. 9). Cap. III - ―Todo o povo sesteava, por isso ninguém 166 viu‖ ―Tudo o que volteia no ar tem seu dia de aquietar-se no chão‖ (S, 144,36) O discurso do guardião do cerro (o santão) começa repetindo a frase que afirma a dificuldade de Anhangá-pitã em reconhecer quem é Teiniaguá: ―Não tomou tenência que a Teiniaguá era mulher‖. A mesma frase se repete-se três vezes: nos capítulos II, III e X. Essa ambigüidade da Teiniaguá vai marcar toda a narração, do começo ao fim, até a última frase da lenda. Se Anhangá-pitã é incapaz de reconhecê-la, o sacristão vive o desafio de construir uma nova identidade na companhia dela. a) O drama do sacristão: Este desempenha a sua função na Igreja de São Tomé. Ele é atravessado pelo conflito entre a carne e o espírito, pois é uma pessoa ―banhada na água benta‖ e vive povoado de ―pensamentos maus‖. b) ―Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu‖: O sacristão saiu às escondidas da igreja e viu o milagre da lagoa borbulhando. Dela emergiu a Teiniaguá que foi apanhada pelo sacristão e levada para o seu quarto dentro de uma guampa. A conversa que se ouvia era: que ―quem prendesse a teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do mundo‖ (S, 146,28). O sacristão sonha com castelos e 167 palácios, campos sem fim, ouro e prata: ―Tudo isto eu podia ter, porque era o dono da teiniaguá‖. Enfim, ele volta a em si, após o toque do sino da igreja e vai buscar comida para a Teiniaguá. E e eis que, ao voltar para o quarto, a fim de alimentar a lagartixa, uma surpresa: ela se transformara numa mulher: ―Bonita, linda, bela, na minha frente estava uma moça‖ (S, 147,35). A frase: ―Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu‖, repete-se três vezes neste capítulo, referindo-se ao sacristão em três situações diferentes: ao sair da igreja, na volta ao quarto, quando estava com Teiniaguá e ao toque do sino para a oração da tarde. Podem-se enunciar três hipóteses sobre o sentido deste aforisma: 1) O sacristão pretende fugir do sistema de cristandade colonial: ―Eu saí da igreja [...], sem pensar em nada, nem de bem nem de mal; fui andando, como levado‖ (S, 145,12s); 2) O sacristão infringe a disciplina da igreja, por isso não quer ser notado: ―corri para o meu quarto, na casa-grande dos santos padres, por detrás da igreja‖ (S, 146,23); 3) Enfim, ele descumpre com a sua função e não quer ser percebido: ―Pela primeira vez não fui eu que toquei [o sino]; seria um dos padres, na minha falta‖ (S, 147,23). 168 Há neste aforisma duas partes: a primeira, ―todo o povo sesteava‖, isto é, ninguém percebe o que está acontecendo, todos estão dormindo. Enquanto, issto, o sacristão sai, volta à igreja e introduz uma nova identidade no interior do círculo eclesiástico: um personagem híbrido, a mulher-lagartixa. A segunda, ―por isso ninguém viu‖, ou seja, ninguém enxerga que há uma nova realidade no interior da comunidade. Esta não vê a perda da identidade, ou melhor, que está se operando uma mudança. O sacristão está refazendo a sua identidade, no contato com Teiniaguá, personagem coletivo, que representa a ―nova gente‖. Cap. IV: A Teiniaguá dos tesouros e a princesa moura: prazer e condenação ―Serás o meu par, para do sangue de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais será vencida‖(S,148,19) Este é um capítulo central da lenda, pois descreve a contradição entre o sistema de cristandade colonial, a resistência face ao mesmo e o esboço do projeto de constituir uma ―nova gente‖. Teiniaguá revela ao sacristão sua dupla face: ―A Teiniaguá que sabe dos tesouros, sou eu, mas sou também princesa moura‖. Ela detém o conhecimento das riquezas e, 169 ao mesmo tempo, é uma ―mulher jovem, formosa‖ pronta para formar um par com o sacristão. A princesa lhe oferece riquezas de todo o tipo. Não as riquezas que ela tem, mas que ela sabe; ele terá tudo, inclusive seu corpo ―rijo e não tocado‖. A troca do ter por saber desmaterializa os tesouros e lhes dá aquela dimensão de símbolo da essência divina, e do conhecimento que se costuma associar aos tesouros ocultos, os quais só a busca perigosa permite atingir (Chiappini, 1988, 203). a) A cruz e a meia-lua, promessa e condição: ―Serás o meu par, si a cruz do teu rosário me não esconjurar‖ (S, 148,17), afirma, duas vezes, Teiniaguá. O problema é que a doutrina católica, proibia, na época, o casamento com muçulmanos e quem o fizesse, sofreria penas da Igreja. Os muçulmanos eram considerados pagãos: ―Sobre a cabeça da moura amarelejava nesse instante o crescente dos infiéis‖ (S, 148,23). Essa condição ―si a cruz do teu rosário‖ será o grande obstáculo para que a promessa se realize. b) O sonho de uma nova cultura expressa-se no desejo de constituir um par do qual nascerá ―uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque terá todas as riquezas‖ (S, 148,19). Teiniaguá reconhece no 170 sacristão alguém que não a buscou com ―olhos cobiçosos‖ e nem a procurou com ganância. Por isso, ela foi ao seu encontro. Se o sacristão abandona o duplo interesse colonial: riqueza e sedução, Teiniaguá, de seu lado, declara-se como sendo ―a rosa dos tesouros escondidos dentro da casca do mundo‖ (S,148,1). A rosa é o símbolo da perfeição, mas também do amor, das riquezas imateriais, das forças ocultas da alma, da verdade que é preciso descobrir depois de muito esforço, porque soterrada nas grutas profundas do eu. Essa conjugação da rosa aos tesouros reforça a imaterialidade dos mesmos. A rosa está ligada às águas primordiais; os tesouros à terra mãe (Chiappini, 1988, 211). c) Transgressão, profanação e o amor da moura: O sacristão tem consciência de que se vai se distanciando das exigências postas pela cristandade: ―E a minha alma de cristão foi saindo de mim, como o sumo se aparta do bagaço, como o aroma sai da flor que vai apodrecendo‖ (S, 148,35). De um lado, o rito matrimonial católico impede que o sacristão case com a moura; de outro, a moral católica, no sexto mandamento diz: ―Não pecar contra a castidade‖, o que o proíbe de ter relações com ela. Diante desta dupla 171 transgressão religiosa, o sacristão sentia remorso: ―E crivado de pecados mortais, doía quando o padre lançava a bênção sobre a gente ajoelhada‖ (S, 148,40). Mesmo assim, ele afirma que ―cada noite era meu ninho o regaço da moura‖. Além destas transgressões, o sacristão comete uma profanação do cálice sagrado. ―Uma noite ela quis misturar o mel do seu sustento com o vinho do santo sacrifício‖. Então o sacristão busca ―no altar o copo de ouro [o cálice] consagrado, todo lavorado de palmas e resplendores‖. Assim, os dois usaram o cálice ―de boca para boca, por lábios incendiados o passamos... e embebedados caímos, abraçados‖ (S, 149,1-5). A propósito o Cân. 1171 afirma: ―As coisas sagradas, que foram destinadas pela dedicação ou bênção ao culto divino, sejam tratadas com reverência, e não se empreguem para uso profano ou não próprio a elas‖. Por isso a profanação implica punição, conforme recomenda o Cân. 1376: ―Quem profana coisa sagrada, móvel ou imóvel, seja punido com justa pena‖ (Código Direito Canônico, 2001). e) Condenação, tortura e resistência: O sacristão é flagrado ―pelos santos padres‖ e condenado por razões de direito (profanação), de doutrina moral (6º mandamento) e 172 disciplina (não cumpre com suas funções), vigente no sistema de cristandade colonial, que tinha na religião inquisitorial um meio privilegiado de manutenção do controle sobre ―a nova gente‖. ―Afrontei o arrocho da tortura‖, ―fui sentenciado a morrer‖, ―o povo clamando a morte do meu corpo e a misericórdia para a minha alma‖. Mesmo , assim, o sacristão resiste e não confessa ―quem era ela e que era linda‖ e ―por senha da vontade a boca não falou‖. f) Teiniaguá é a causa da condenação: A discriminação do projeto de cristandade colonial enquadra-a dentro de diversos estereótipos: o fato de ser mulher moura (―onde sobressaía uma meia-lua prendendo entre as aspas uma estrela‖- S, 149, 10), feiticeira ou ―bruxa‖ (S, 148,31). Estas qualificações eram típicas da Inquisição para argumentar em favor de um processo de condenação, isto é, a aproximação com alguém que praticasse feitiçaria. Embora, existam as várias transgressões cometidas pelo sacristão, a causa fundamental, porém, ainda é devida aà aproximação com Teiniaguá: ―Condenado fui por ter dado passo errado com bicho imundo, que era bicho e mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira‖ (S, 149, 25s). A mesma frase é repetida no capítulo seguinte, porém, nomeando a 173 causa moral da condenação: ―por ter tido amores com mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira..‖ (S, 151,3). Esta versão, permite que se identifique Teiniaguá, como sendo a origem do mal (a figura de Eva). Porém, como se verá existe uma segunda interpretação que afirma o papel ―salvador‖ da mesma (a figura de Maria). Este capítulo se conclui-se com a contradição entre dois desejos presentes no sacristão, que são na verdade os dois interesses principais do projeto colonial: a riqueza e a sedução. O sacristão vive ―dois amargos desesperos: si das riquezas, que eu queria só pra mim, si do seu amor, que eu não queria que fosse sinão meu, inteiro e todo‖ (S, 149, 21s). Face a esse dilema a qual projeto ele irá aderir? Cap. V: Saudade, agonia e adeus: uma outra antropologia ―...chorei uma lágrima de adeus à teiniaguá encantada, dentro do meu sofrer floreteou uma réstia de saudade do seu cativo e soberano amor‖(S,149,35) Tudo está pronto para o desfecho final: o garroteamento do sacristão. O cenário é descrito de uma forma dramática. Ele está amarrado diante do carrasco e está só com teiniaguá no pensamento, presente na ―saudade do amor‖. 174 a) Saudade: Esta palavra é repetida, neste capítulo, quatro vezes com sentido diferente. Um termo, ou quase um conceito, que implica memória do passado e esperança para o futuro. A saudade não é fixação patológica, ou melancolia, mas paixão de utopia. Estas são as passagens: - ―Saudade do seu cativo e soberano amor‖ (S, 149,37): O sacristão resiste preso ―como uma raiz que não quer morrer‖, porque é a experiência do amor de Teiniaguá lhe dá poder (―soberano amor‖) para resistir ao momento da agonia mortal. - ―Saudade parece que saiu para fora‖ (S, 150,1): Não se trata apenas do passado, mas a saudade é futuro, pois ―ponteou para algum rumo‖. - ―Ao encontro doutra saudade‖ (S, 150,3), ou seja, ao encontro de Teiniaguá que também é constituída pela saudade. Eles estão juntos na reciprocidade da saudade. - ―A lágrima do adeus que a saudade destilara‖ (S, 151, 4): O gotejar lento da lágrima supera, profundamente, a dor no amor. Como a destilação processa uma substância elevando-a para um outro nível de realidade, assim, a saudade destila este momento de agonia mortal, superando-a através da saudade amorosa. 175 b) ―A lágrima do adeus‖: Forma-se ao redor do sacristão todo o cortejo para a execução da pena, na presença de autoridades religiosas (os santos padres), civis (alcaide), militares (soldados) e o povo (chinas, piás, índios velhos). A cerimônia religiosa segue o rito da bênção, o sino dobra a finados, enquanto se encomenda a alma. Em meio à cerimônia, o sacristão, derrama a lágrima do adeus por Teiniaguá (S,149,36), que a ―saudade destilara‖. c) A solidão do sacristão e o amor de Teiniaguá ou o sagrado e o profano: ―Fiquei sozinho, abandonado ouvindo [...] com os ouvidos do pensamento o chamado carinhoso de teiniaguá‖ (S, 151, 30). Durante toda a cerimônia de ―encomendação da alma‖, o sacristão está fisicamente só, porém, está sempre acompanhado de Teiniaguá (S, 151,32s). Há um vínculo invisível entre ambos: ―por essa força que nos ligava sem ser vista‖. Essa força amorosa é descrita plasticamente na união do sensível com o pensamento, culminando numa síntese antropológica prazerosa entre o humano e o divino: - O ouvido: ―ouvir as ladainhas, mas com os ouvidos do pensamento ouvir o chamado carinhoso de teiniaguá‖. 176 - A visão: ―os olhos viam a consolação da graça de Maria puríssima; mas, os olhos do pensamento viam o riso mimoso da teiniaguá‖. - O olfato: ―o nariz tomava o faro do incenso perfumando as santidades; mas o faro do pensamento sorvia a essência das flores do mel fino de que a teiniaguá tanto gostava‖. Dá-se a passagem unitiva entre o sacristão e Teiniaguá, sem mais fazer referência ao religioso, denotando que há uma afirmação da identidade humana. - O paladar: ―a língua está seca de agonia, mas a língua do pensamento saboreava os beijos de teiniaguá‖. - O tato: ―o tato das minhas mãos tocava manilhas de ferro, mas o tato do pensamento roçava pelo corpo da encantada" (S,151, 30-44). Aqui, ocorre a superação da religião inquisitorial espanhola legitimadora do projeto colonial. A religião católica ainda sob a influência da lógica da inquisiiçãotorial é dualista (separa corpo e alma), discriminadora (a mulher é ―bicho imundo‖ e causa de pecado), e prega uma moral que despreza o corpo, o prazer e a afetividade. No entanto, esse capítulo aponta para outra antropologia, em que a categoria da saudade amorosa valoriza o corpo de forma unitiva (os 177 cinco sentidos e o pensamento), representado na figura do sacristão e de Teiniaguá: Mas os olhos do meu pensamento, altanados e livres, esses, esses viam o corpo bonito, lindo, belo, da princesa moura, e recreavam-se na luz cegante da cabeça encantada da teiniaguá, onde reinavam os olhos dela, olhos de amor, tão soberanos e cativos como em mil vidas de homem outros se não viram(S, 150,25-29). d) O caos, a sanga e o caminho para o Cerro do Jarau: Enquanto, ocorria a cerimônia de ―encomendação da alma‖ do sacristão, de repente a lagoa provocou um estrondo, abriu-se a terra, começou a correr uma sanga que desembocou no rio Uruguai. E do meio da água lamacenta da sanga ―todos viram a Teiniaguá de cabeça de pedra transparente‖. O próprio Simões Lopes Neto assim se refere numa nota explicativa: ―Existe no arrabalde de S. Tomé a famosa sanga, que o populacho de origem índia ainda hoje aponta como prova do acontecimento e poder da teiniaguá encantada‖ (S, 165, nota 9, 41-41). Houve um alvoroço, pois um terremoto quase destruiu a Missão de São Tomé. Passado este fenômeno, pairou um grande silêncio, um ―milagre se fez: ―o Santíssimo perpassou a altura das cousas‖ e ―ventos, 178 fogo, urubus e estrondo se humilharam, fenecendo, dominados‖ (S, 151,26). O vento neste momento, é ―o sopro do Verbo, o sopro do Deus cristão, que tem o poder de ordenar o caos primitivo, com a energia luminosa‖ (Chiappini, 1988, 212). Então, o sacristão afirma que Teiniaguá o ―enfeitiçou de amor, pelo seu amor de princesa moura, pelo seu amor de mulher, que vale mais que destino de homem‖. Este amor o liberta-o de um duplo peso: o físico (―dores nos ossos e nas carnes, sem peso de ferros no corpo) e o moral (―sem peso de remorsos na alma‖). Assim, ―salvo pelaor teiniaguá‖ parte ―para o Cerro do Jarau, que ficou sendo o paiol das riquezas de todas as salamancas dos outros lugares‖ (S, 152,11). Cap. VI - Palavra mágica ou imperativo ético: ―Alma forte, coração sereno‖ ―Mas, governa o pensamento e segura a língua: o pensamento dos homens é que os leva acima do mundo, e a sua língua é que os amesquinha‖ (S, 153,40). Com este capítulo se conclui-se a terceira parte da lenda. O sacristão está no cerro do Jarau há duzentos anos. Ele é como um ser imortal, pois não dorme, não tem fome e sede, nem dor e nem riso. Conhece todas as riquezas que 179 estão dentro do mesmo, porém, está ―enfarado de ter tanto e de não poder gozar nada entre os homens‖. Superou todas as inclinações para o mal. Sua função é acompanhar os homens que ―quiserem contratar a sorte‖ na salamanca do Jarau. (S, 152, 15-37). Eis que Blau se apresenta, e o sacristão lhe expõe o imperativo para entrar no cerro e o que ele promete é garantido pela Teiniaguá: ―Esses que toparam, tiveram o que pediram, que a rosa dos tesouros, a moura encantada não desmente o que eu prometo, nem retoma o que dá!‖ (S, 153, 5). a) O imperativo ético do sujeito moderno ocidental: O aforisma ―alma forte, coração sereno‖ aparece cinco vezes neste capítulo e mais quatro vezes no sétimo. Alguns entendem esta frase como uma fórmula mágica que ―funcionaria quase como um ―abra-cadabra‖ (Chiappini, 1988,212). Propõe-se aqui, porém, uma outra interpretação. Trata-se, neste capítulo, de um imperativo ético, porque o santão se refere-se ao modo de ser e agir de todo aquele que deseja entrar na caverna: ―quem isso tem, entra na Salamanca‖ (S,153,25); ―Si entrares assim, si te portares lá dentro assim, podes então querer e serás servido!‖ (S,153,37). O sentido deste aforisma é dado pelo próprio sacristão: ―alma forte‖ é saber governar o pensamento, pois é 180 este que eleva a pessoa acima do mundo; ―coração sereno‖ é segurar a língua, pois esta é que amesquinha o ser humano (cf. S, 153,40). Então, a ―alma forte‖ é ter a capacidade do domínio do pensamento para superar toda fraqueza; e o ―coração sereno‖ é a capacidade de dominar a vontade que se expressa na linguagem. Enfim, trata-se da síntese ocidental do agir ético: governo da razão e serenidade da vontade. Mais ainda, expressa o sujeito transcendental moderno kantiano, pois é através do pensamento, ou da consciência que ele se põe acima do objeto. b) Blau, o guasca diferente: O sacristão compara Blau com todos os que foram até então ao cerro. Os últimos ―vieram arrastados pela ânsia da cobiça ou dos vícios, ou dos ódios‖; enquanto, ―tu foste o único que veio sem pensar e o único que me saudou como filho de Deus‖ (S, 153,10). O sacristão revela que Blau foi o primeiro a saudá-lo como cristão e que na terceira saudação o encantamento cessará, isto é, ―a salamanca desaparecerá‖. Na terceira parte da lenda, o sacristão aprende a sair do sistema de cristandade colonial. Unindo-se a Teiniaguá aos poucos vai transgredindo normas e experimenta um outro valor: o da soberania do amor. 181 182 6.4 - O símbolo da caverna: provas e metamorfoses da gauchidade Cap. VII - Provas, escolhas e negação: o nada e o tudo ―Pois que em sete poderes te não fartas, nada de te darei. Vai-te‖. ―Eu te queria a ti, porque tu és tudo‖(S,158,10). A quarta e última parte começa com o discurso do narrador. Este capítulo é o mais longo de todos. Pode ser divido em duas partes: as sete provas e as sete escolhas e negações. Quase todo o capítulo é dedicado, agora, a instruir Blau para essa travessia dentro da gruta, à procura da Teiniaguá, mas também dentro de si mesmo, à procura da sua identidade, dos seus avessos, das forças que movem a sua vida, e que estão nele e fora dele, possíveis e impossíveis de serem vislumbradas por olhos humanos (Chiappini, 1988, 210). 1ª Parte: As sete provas- Lígia Chiappini compreende o número sete como sendo o símbolo da perfeição e a ―expressão da ordem completa, de um ciclo‖ (1988, 215). 183 Blau Nunes resolve entrar na caverna e enfrenta as sete provas, através de perigosos corredores. Elas tem o mesmo roteiro: começam com a frase ―Blau Nunes foi andando‖; e no momento de passar pelo obstáculo, no final da prova, repete-se a frase: ―E ele meteu o peito e passou‖; uma vez ultrapassado o obstáculo, da 1ª a 5ª provas, existem mãos carinhosas e invisíveis que o acompanham e estimulam a passar adiante; essas mãos são como ―espíritos benéficos a auxiliá-lo no caminho‖ (Chiappini, 1988,217); também repete-se na 1ª, 3ª e 5ª provas a frase já conhecida no capítulo anterior: ―alma forte, coração sereno‖. Blau defronta-se em cada prova com personagens diferentes: 1ª prova- passa no meio de espadas empunhadas por homens lutando: ―As armas simbolizam as forças do espírito em luta contra forças inferiores‖ (Chiappini, 1988,215); 2ª prova- passa entre animais ferozes tais como jaguares e pumas: ―São tradicionalmente guardiães‖ (id. 215); 3ª prova- passa entre as caveiras e esqueletos: ―Imagem da morte, mas também, vaso da vida e do pensamento‖ (id. 216); 4ª prova- passa no meio do fogo, água, vapor e o vento: ―Os quatro elementos amalgamados, como forças terrestres e celestes que se fundem‖ (id. 216) ; 5ª prova- passa pela serpente (Boicininga, Mboitatá): ―É 184 ambivalente. É protetora das fontes de vida e símbolo da imortalidade, dos bens superiores simbolizados pelos tesouros ocultos. Mas também é o princípio do mal, do inerente ao terreno‖ (id. 216); 6ª prova- passa no meio de moças com ar malicioso e sedutor. Elas são as ninfas que criam ―uma atmosfera erótica‖, porém, estão numa espécie de ―paraíso natural‖ (id. 216); 7ª prova- passa no meio de anões que provocam risos: Estes ―simbolizam também as forças inconscientes, como todos os gnomos e duendes. Para Jung são guardiães do inconsciente‖ (id., 217). Após passar as sete provas, o sacristão conduz Blau diante de Teiniaguá, disfarçada em uma velha que com o condão mágico lhe diz: ―Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei‖ (S,157,17). Ela está detrás de um cortinado de escamas de peixe-dourado. ―O peixe é um animal freqüentemente ligado ao sagrado e as escamas simbolizam proteção; a água e o mundo subterrâneo‖ (Chiappini, 1988, 217). A atmosfera é de fato revestida de uma aura sagrada. 2ª Parte: Blau diante das sete escolhas- 1ª: ser jogador de cartas para ganhar qualquer jogo (cartas, cavalos, osso, rifa etc.); 2ª: ser cantor e tocador de viola para conquistar as mulheres; 3ª: ser curandeiro, isto é, conhecer a arte de curar 185 com plantas ou provocar males usando simpatias e agir sobre os outros através de magias; 4ª: ser lutador para não errar golpe de tiro, lança ou faca contra o inimigo; 5ª: ser político ou o poder de todos lhe obedecerem; 6ª: ser estancieiro para ser rico de campo e gado; 7ª: ser artista em geral para praticar a pintura, a poesia, a escritura, a música, a escultura etc. a) O nada e o tudo- a primazia do amor: Diante das sete ofertas, Blau responde categoricamente: Não! Na verdade, trata-se da negação de sete poderes. Ele os recusa, porque o fundamental para ele era Teiniaguá encantada: ―Eu te queria a ti, porque tu és tudo [...] que atino que existe fora de mim, em volta de mim, superior a mim. Eu te queria a ti, teiniaguá encantada‖ (S, 158,15). Por isso, Blau pensa no que lhe fora oferecido e está ―desanimado e penaroso‖. Ele ―não lograra nada por querer tudo‖, isto é, tinha dito não a todas as ofertas, na esperança que lhe fosse oferecido o ―tudo‖: Teiniaguá encantada. Para Chiappini, o tudo é ―o ser, o centro da vida, e eis por que ele nada obtém da Teiniaguá, pois isso só conseguiria regressando ao útero materno, reintegrando-se à grande mãe, refundindo-se na unidade primordial de que a história, entretanto, o distanciou numa viagem sem volta‖ (Chiappini, 1988,220). Blau sai da gruta 186 e recebe um prêmio de consolação: a onça que se reproduz ao infinito. b) A contradição- a onça mágica: Pronto para partir com seu cavalo, Blau depara-se com o sacristão que lhe diz: ―Nada quiseste; tiveste a alma forte e o coração sereno, tiveste, mas não soubeste governar o pensamento nem segurar a língua‖ (S, 158,37). De fato, Blau durante as sete provas teve a alma forte e o coração sereno, mas no momento das escolhas, não aplicou este princípio, porque o seu pensamento e coração estavam em Teiniaguá. Porém, o sacristão não condena este modo de agir: ―Não te direi si bem fizeste ou mal‖. Blau tem como primazia o amor de Teiniaguá, acima de toda sorte de poder. No entanto, a contradição nasce, de uma parte, entre o nada querer das sete escolhas, e, de outra, aceitar do sacristão a moeda de ouro que lhe dá todo o poder. 187 Cap. VIII - ―Acreditou na onça encantada‖ ―Mistério para o próprio Blau... muito rico... muito rico... mas todo o dinheiro que ele recebia [...] todo desaparecia como desfeito em ar (S, 161,20). Este capítulo se organiza-se em três dias de prova para verificar se de fato a ―onça encantada‖ funcionava no mercado: 1º dia: A prova do prometido - ―... foi pensando nas cousas que carecia e que ira comprar‖. Blau começa a usar a onça, para suprir as necessidades pessoais mais imediatas, tais como, roupas, uma adaga, esporas e rebenque. De fato, a onça mágica funcionava conforme o prometido: ―Ela te dará tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma em uma e nunca mais que uma por vez‖ (S, 159,1). Ele gastou três onças. 2º dia: Neste dia, ele compra, ―só peças inteiras‖ e gasta quinze onças. 3º dia: No último dia, ele compra trinta cavalos e gasta quarenta e cinco onças. a) A fama da fortuna: Começando a comprar o mais necessário, Blau foi aumentando o gasto proporcionalmente e enfim, a nova moeda foi testada: ―Depois desses três dias de prova, Blau acreditou na onça encantada‖ (S, 160,41). 188 Agora, Blau aventura-se em grandes negócios, ―arrendou um campo e comprou o gado, pra mais de mil cabeças, aquerenciado‖ (S,160,42). No entanto, todos começaram a ficar intrigados com o fenômeno desta onça mágica, até o próprio Blau. ―Começou a correr a fama da sua fortuna‖ e ninguém conseguia explicar como um ―gaúcho despilchado de, ontem, pobre‖, agora tinha tanto dinheiro para negociar. b) Mistério da riqueza: Nem o próprio Blau conseguia entender o seu enriquecimento. ―Mistério para o próprio Blau... muito rico... muito rico‖. Há um duplo fato: Nunca faltaram moedas, sempre teve o que precisasse, porém, ―todo o dinheiro que ele recebia, que lhe pagavam, todo desaparecia‖, todas as moedas ―evaporavam-se, como água em tijolo quente‖ (S,161,25). Aqui, se lembramos da biografia de Simões, e do dinheiro que sempre lhe fugiu das mãos, temos a tentação de associar essa onça furada ao Capital, que se reproduz, separando os homens dos outros homens, como que amaldiçoados por algum demônio que os faz escravos do dinheiro (Chiappini, 1988, 221). 189 Cap. IX - Riqueza e solidão ou pobreza e companhia ―Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza desta onça, [...] porque separa o dono dos outros donos de onças‖(S,162,35). Blau enriquece, porém, entra em crise, porque sofre um ―cerco de isolamento‖. a) Dinheiro maldito: Blau ―comprava e pagava à vista, é certo‖, porém, o problema é que ―todos com quem tratava e recebiam de suas onças‖, depois faziam maus negócios e perdiam ―exatamente a quantia igual à de suas mãos recebida‖ (S,161,30). O fato começou a se espalhar e isto foi associado a alguma ―mandinga arrumada na salamanca do Jarau‖. b) Distanciamento e solidão: Blau passa a ―ser tratado de longe, como um chimarrão rabioso‖. Trata-se de um tríplice ―cerco de isolamento‖: Da peonada que se afasta de sua companhia; dos negociantes que não mais comerciam com ele; e dos andantes que cortam campo para não se abrigar nos seus galpões. Blau está completamente só: ―Já não tinha com quem pautear; churrasqueava solito, e solito mateava, rodeado dos cachorros‖ (S, 162,15). c) A opção pela companhia: Blau pensa sobre sua solidão e decide ―acabar com aquele cerco de isolamento‖ e volta ao cerro, para devolver a onça de ouro ao santão 190 dizendo: ―Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza desta onça. Adeus!‖ (S,162,35). d) A implosão do cerro: Blau cumprimenta, por três vezes, o santão com a tradicional saudação cristã―Laus‘sus‘Cris‖ (Louvado seja Jesus Cristo): a primeira vez, foi na ida ao cerro do Jarau (S,142,15); depois, ao retornar ao cerro para devolver a onça de ouro (162,30); e, enfim, no ato de despedida, a expressão é modificada (―Fica-te com Deus, sacristão‖, 162,35), porém, o que interessa é falar o ―Nome Santo‖. Assim, ficou quebrado o encantamento, ―e neste mesmo instante, que era o da terceira vez que Blau saudava no Nome Santo, ouviu-se um imenso estouro‖ (S,162,45). O cerro do Jarau ficou destruído com todos os tesouros e, ao mesmo tempo, deste caos surge uma nova realidade. O número [a saudação por três vezes] é simbólico dessa união do céu e da terra, do material e do espiritual que se processa na gestação do gaúcho que assimila a civilização branca e cristã mas também integra o índio das origens e, através da Península Ibérica, o mouro (Chiappini, 1988, 211). Entre a agonia da solidão e a felicidade da companhia, Blau opta por esta última. A insatisfação da 191 riqueza não responde àa sua identidade, pois esta o condena a viver separado dos outros, estado este, que o leva quase à melancolia. Ele vive o dilema de estar preso à identidade do passado e àa crise no presente, pois a tradição não responde mais à situação presente. A identidade originária é mítico-folclórica, em que a contribuição indígena colabora com a utopia do projeto de uma comunidade solidária. A idealização do gaúcho revolucionário, tem seu acento na tradição do gaúcho ser originário do índio e do camponês. A roda do chimarrão é a representação desta pobreza mitificada, no sentido de elele ser desprendido de interesses e riquezas. Blau face àa encruzilhada que se colocava, opta pela pobreza, isto é, segundo a tradição indígena. A implosão do cerro, pode ser compreendida como o fim do sistema de cristandade colonial e também da identidade da estância tradicional, daí a impressão de um estado caótico em que tudo se derrete: ―o cerro do Jarau apagou-se num desgoverno, como uma tropa de gado alçado, que espirra e se desmancha como água passada em regador‖ (S, 163, 5). Com isso, abre-se a possibilidade de recriação de novos projetos de identidade: nova ética , nova religião, novas etnias. 192 Cap. X - Memória e travessia para o futuro ―Aquele par novo, de mãos dadas como namorados foi descendo a pendente do coxilhão, para uma cruzada de ventura, em viagem de alegria‖(S,163,30). ―Blau Nunes também [...] foi baixando a encosta do cerro, com o coração aliviado e retinindo como si dentro dele cantasse o passarinho verde‖ (S,163,35). No último capítulo, Simões Lopes Neto, lança um olhar histórico retrospectivo e mostra os possíveis projetos identitários para o futuro. a) A visão do passado: Blau vê o interior do cerro como se fosse um ―vidro transparente‖ e enxerga ―o que lá dentro se passava‖ (S,163,13), ao enfrentar as sete provas com os seus respectivos personagens. Trata-se de uma memória do passado. b) As metamorfoses do novo: Na descrição da lenda há dois personagens que passam por sucessivas mudanças- o santão e a Teiniaguá. Primeiro, Simões Lopes lembra as três mudanças de Teiniaguá: 1ª) De ―fada velha‖ ou ―fada moura, em teiniaguá‖ (S,143,30).; 2ª) De ―teiniaguá na princesa moura‖ (S,147,1). ; 3ª) De ―moura numa tapuia formosa‖ (S,163,20). Nas passagens de um estado para outro, não se constata um personagem puro, mas híbrido como mostraremos abaixo. O resultado de todas as transformações 193 é uma ―tapuia formosa‖, uma mestiça de índio, isto é, uma nova etnia. Depois, descreve as mudanças do sacristão: 1ª) De ―vulto de face branca e tristonha‖ junto a salamanca do cerro - o santão - (S, cap. I, 142) ―para à figura de sacristão de S. Tomé‖ (S, cap. III, 145).; 2ª) De sacristão para santão, ―o vulto de face branca e tristonha‖ (S, cap. VII, 158) para virar um ―guasca desempenado‖ (S, cap. X, 163). Aqui, também o resultado de todas as metamorfoses, através das quais passou, o santão é um gaúcho forte, desenvolto e valente. Tanto Teiniaguá como o santão/sacristão têm suas origens européias. No entanto, ambos após passaram por várias metamorfoses, inculturam-se e assumem uma nova identidade formando o tipo gaúcho, que é um conjunto cultural de etnias, religiões e éticas. c) Uma nova identidade: O sacristão e a Teiniaguá, são duas personagens ―vindas do tempo antigo e de lugar distante‖, conforme a nota do próprio Simões Lopes Neto, o tempo é por volta de ―1650, em que se formou-se a lenda‖ e o lugar é a região das Missões sobre o rio Uruguai (cf. S, 165, nota 11). Os dois unem-se e formam um ―par novo, de mãos dadas como namorados‖, abandonam o exílio do cerro do Jarau e partem para ―uma cruzada de ventura, em viagem 194 de alegria, a caminho do repouso‖ (S, 163,30). O novo par começa uma nova travessia, pois a identidade construída é dinâmica, daí uma dupla afirmação de movimento: cruzada e viagem. d) E agora, em paz: Blau deixa, também, o cerro e ―estava certo de que era pobre como dantes‖, isto é, após passar pelas diversas provas e travessias renunciara a todas as formas de enriquecimento. Não assumiu nenhum tipo de projeto que lhe foi apresentado: nem o da cristandade colonial e nem o da estância tradicional, mas continua fiel aos costumes, pois ―comeria em paz o seu churrasco; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida!‖(S, 163,36). Por quatro vezes repete-se ―em paz‖, para afirmar a reconciliação que Blau alcançara após realizar a travessia no tempo e no espaço pampeanos. ―Em paz‖, com a nova identidade, já realizada no ―par novo‖: o sacristão e a Teiniaguá. ―Em paz‖, com o novo projeto de identidade híbrida. ―Em paz‖, com a aprendizagem de ser gaúcho. Na última parte da lenda, a aprendizagem de Blau enfrentapassa pelas provas e no confronto de projetos. Em meio a todas essas metamorfoses ele aprende que a identidade do gaúcho é um projeto inclusivo de muitas etnias, religiões, culturas e éticas. 195 Há em Simões Lopes Neto uma valorização dos símbolos. Ora, a linguagem mítica é a mais apropriada para expressar o símbolo. De fato, Daniel Granada ao escrever sobre as tradições latino-americanas oscila entre a ficção e o ensaio erudito. Decididamente, a opção de Simões será aderir empaticamente ao mito desdenhando as explicações realistas ou eruditas (algumas remetidas a notas). Tal adesão ao mito, para ser verossímil, precisava ser expressa por uma prosa poética. Por isso, ele se demora a explorar alguns motivos, apenas mencionados por Granada (Chiappini, 1988,198). De fato, só é possível compreender a Salamanca do Jarau, a partir deste princípio hermenêutico simbólico. O autor trabalha com os símbolos dentro de um horizonte mitológico. Compreendendo-se os símbolos, pode-se compreender a linguagem simoniana, daí a proposta de leitura ndeste estudo, organizar as partes da lenda, segundo os símbolos que a compõem. Uma leitura que se ativesse a excluir um ou outro símbolo ou personagem, correria o risco de ser uma interpretação Anahangá-pitã maniqueísta. e Tupã Deus no 196 ou combate o Diabo, cotidiano ou dos personagens. São mitos, superstições, símbolos que unificam os opostos. Mais ainda, há uma luta entre ―as forças de um mundo demoníaco (feminino, tenebroso, mas também luminoso, reprimido, inconsciente) e as forças diurnas (luminosas, mas também tenebrosas) de um mundo masculino, divino, dominante e consciente‖ (id. p. 224). Referências Bibliográficas: CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: Regionalismo & Literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos. Leitura e história em João Simões Lopes Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1988. CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. São Paulo: Loyola, 2001. LOPES NETO, João Simões Lopes. Contos Gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença, 1988. ZANOTELLI, Jandir João. América Latina. Raízes sócio-político-culturais. Pelotas: EDUCAT, 1998. 197 7 - O MILAGRE DE NATAL EM LÍGIA FAGUNDES TELLES E JOÃO SIMÕES LOPES NETO Luís Borges 76 ―He tentado al Señor pidienlole um prodigio, um milagro patente, cerrados los ojos al milagro vivo del universo y al milagro de mi mudanza‖ (Miguel de Unamuno, in Diário Íntimo) Ao cotejarmos o elemento ―milagre‖ nos contos Natal na barca (1958), de Lígia Fagundes Telles (1923), e O menininho do presépio (1913), de Simões Lopes Neto (1865-1916), é possível constatar que ambos, tanto pela estrutura do tecido diegético quanto pelo olhar do narrador, e principalmente pelo desfecho, provocam no leitor a inquietação e a dúvida a respeito da natureza e da existência dos milagres. Milagre é uma palavra derivada do latim (miraculum), que, em sentido lato, significa ―acontecimento maravilhoso‖ 77. Na Bíblia, todavia, utiliza-se num sentido mais restrito, significando um ato de Deus, que de um modo visível, subverte o curso das causas conhecidas para 76 Professor de Literatura Brasileira e membro do Grupo de Pesquisa Simoniano do ISF/UCPEL. 77 Cf. BUCKLAND, A. R. Dicionário bíblico universal. São Paulo: Ed. Vida, 1997, p. 289. 198 manifestar Seu Poder ou Sua Vontade, de modo a que tudo se cumpra segundo o Seu Plano. Diversas palavras em hebraico (Mopheth, Péle, Oth) se traduzem no Antigo Testamento por milagre, maravilha ou sinal. ONo Novo Testamento utiliza -se a palavra Dunamis para designar78 milagre e Simeion (poder) também com a mesma significação 79 . Os milagres de Jesus são descritos pela palavra erga, que quer dizer, literalmente, ―obras‖80. Aparece também o vocábulo terata81, num sentido mais adequado e próximo a milagre, significando ―prodígios‖82. O Milagre poderia ser entendido então como a intervenção divina em face da impotência humana perante o sofrimento e a morte? Ele seria fruto da imaginação e do mito ou consistiria na conjugação desses dois aspectos? Mais que o simples estabelecimento da dúvida, que deixa espaço para a decisão do leitor, nos contos de Lígia Fagundes Telles e João Simões Lopes, parece haver a sugestão de um entrelaçamento entre a vida natural e sobrenatural, fornecendo à existência um ―entre‖, um 78 Idem, ibidem. Idem. Idem. 81 Idem. 79 80 199 encantatório poder poético imanente à celebração da vida, tão expressivamente representada pelo Natal. O conto de Lígia Fagundes Telles trata da viagem de uma mulher numa barca, no dia de Natal, onde ela encontra uma mãe e seu filho doente. Em verdade, a barca é um símbolo utilizado quase universalmente para representar a viagem, não uma viagem qualquer, mas a travessia realizada seja pelos vivos, seja pelos mortos. Essa imagem aparece na arte e na literatura do Antigo Egito 83 e nos textos mitológicos e em alguns épicos da velha Irlanda84. Em Lígia Fagundes Telles, a estrutura do texto se afigura linear e singela. Encerra, todavia, uma profunda ternura, uma mensagem de fé e esperança. A idéia da barca faz-nos lembrar inclusive da peça de Gil Vicente (aprox. 1470-1536), Auto da barca do Inferno: Fidalgo - Quê? Quê? Quê? Assim lhe vai? Diabo - Vai ou vem, embarcai prestes! Segundo lá escolhestes, Assim cá vos contentai. Pois já que a morte passastes, Haveis de passar o rio. Fidalgo - Não há aqui outro navio? Diabo - Não, Senhor, que este freteastes, 82 Idem. Cf. CHEVALIER, Jean e GHEEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 8ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994, p. 121. 84 Idem, ibidem. 83 200 E primeiro que expirastes 85 Me deste logo sinal. Fidalgo - Que sinal foi esse tal? Diabo - Do que vós vos contentates. Fidalgo - A estoutra barca me vou. Hou da barca! Para onde is? Ah, barqueiros! Não me ouvis? Respondei-me! Houla! Hou! Pardeus, aviado estou! Quanto a isto é já pior... Que gericocins 86, salvanor 87! Cuidam cá que eu sou grou 88? Na linguagem arrogante e caricata do Fidalgo, percebe-se a surpresa perante a barca que lhe espera. A isso o diabo lhe responde com a assertiva de que a embarcação que lhe foi destinada, foi obra de sua própria escolha. Conclui-se, pois, que o dramaturgo português quer demonstrar através desse diálogo, que a barca da vida e da ação moral estão ligadas à barca da morte e do destino eterno, que pode ser a danação ou a felicidade. Comparemos com o timbre da expressão, guardadas as distâncias de época e gênero, em Lígia Fagundes Telles: ―Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num 85 . A frase pode ser entendida como ―tudo tem o seu tempo‖. . Significa: homenzarrão. . Significa: fiquei a pular. 88 .Significa: forma de pedir socorro, que era corrente na península ibérica. 86 87 201 antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.‖89 Examinemos brevemente essa passagem. A narradora sente-se descontente, ao ver-se naquela ―barca carcomida‖. Fuma um cigarro como um sinal de desprezo ou protesto, talvez como um sinal a quem ninguém atenta. No entanto, estão todos numa mesma viagem, vivos e mortos, que escolhem o seu destino de acordo com sua responsabilidade ético-moral. É dessa liberdade, que nasce a esperança mesmo em situações que parecem perdidas e desanimadoras: Contudo, estávamos vivos. E era Natal. Na diegese do conto Natal na barca, aparece uma mulher pobre que traz consigo uma criança com cerca de um ano. Ela havia perdido outro bebê e tinha sido abandonada pelo marido: ―A senhora é conformada‖, declara a personagem-narradora. A explicação para sua resignação foi saber da felicidade de seu filhinho no Paraíso, brincando no jardim com o Menino Jesus, logo ele que gostava tanto de mágica. E concluindo, falou: ―Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.‖ 90 89 TELLES, Lygia Fagundes. Para gostar de ler. Vol. 9. Contos. 3a. ed. São Paulo Ática, 1988, p.68. 90 TELLES, Lygia Fagundes, ob. cit., p. 71. 202 Nessa passagem, a autora remete-nos a outro arquétipo universal: a idéia de Paraíso. As obras de arte e as experiências oníricas, sejam elas os êxtases dos santos, os estados de inconsciência do sono ou processos induzidos por drogas, estão repletas de representações inspiradas naquilo que se costuma chamar a nostalgia do Paraíso91 . Mírcea Eliade explica que ―o desejo de nos encontrarmos sempre e sem esforços no coração do mundo da realidade e da sacralidade, e em suma, o desejo de superar de uma maneira natural a condição humana e de recuperar a condição divina; um cristão diria: a condição anterior à queda.‖92 O narrador reflete que havia encontrado ali o segredo da fé que removia montanhas. Novamente podemos perguntar: foi realmente Deus que concedeu à mulher um ―indulto de Natal‖, ou foi apenas uma defesa de seu inconsciente contra a dor da perda? Tanto faz, porque o verdadeiro milagre é, apesar das adversidades, não desistir da felicidade e da crença na vida. A narrativa mostra com simplicidade a grandeza de uma mãe que confia fielmente num Deus fiel. É essa fidelidade que inspira a superação da dor e da morte. A 91 Cf. CHEVALIER, J. e CHEERBRANT, ob. cit., p. 684. Para mais alguns detalhes vide: BORGES, Luís . O retorno do paraíso. In Diário Popular, 13 e 27-03-1994. 92 Mírcea Eliade apud CHEVALIER e CHEERBRANT, p. 684. 203 narradora não aparece como personagem religiosa, ao contrário, mostra-se céptica e provavelmente atravessa um momento difícil, conforme permite deduzir o começo do conto: Não quero nem devo lembrar por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. 93 A narradora ao constatar a criança (supostamente) morta no colo da mãe, pressente a derrota e a decepção de uma fé que ―removia montanhas‖. Ela toca a água, sente o rio gelado e escuro. O rio, o curso da vida, a barca, o mundo em que habitamos. A barca leva os vivos e os mortos. Afinal, qual realidade separa uns dos outros? A realidade metafísica, a saudade, as lembranças? Quem o saberá? Ao relatar suas desgraças, a mulher, mãe da criança doente, recorda a morte de seu primeiro filho, que gostava de mágicas. O menino caiu do muro dizendo ―vou voar - e voou. A mulher mostra uma fé, ao mesmo tempo, resignada e ativa. A narradora explicita sua covardia diante dos laços humanos, do triste espetáculo da dor alheia, que tão humanamente fraternalmente nos uneirmana a toda 93 TELLES, Lygia Fagundes, ob. cit., p. 67. 204 humanidade. Ela quer fugir desse drama, prefere suportar a água gelada do rio em trevas. O final do conto Natal na barca é emblemático: ―Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para olhar o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente .‖94 Do mesmo modo que a simbologia da barca, a imagem do rio também encontra representação em muitas culturas. Relaciona-se, em geral, com a fertilidade, a morte ou a renovação. A simbologia do rio se acha mais enraizada na mitologia tradicional da China, da Índia, dos gregos e da Palestina. Na China, o rio com sua viagem em direção ao oceano, significa a busca do ser humano ao seu retorno ao indiferenciado, ao Nirvana. Para os chineses o simbolismo do rio possuía ainda certa importância nos ritos de casamento. Os casais jovens costumavam realizá-lo no equinócio da primavera: era uma verdadeira travessia do ano, a passagem das estações, e a do yin ao yang; era igualmente a purificação preparatória à fecundidade e à renovação .95 94 95 TELLES, Lygia Fagundes, ob. cit. , 72. Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., pp. 780-81. 205 Entre os gregos antigos, os rios eram objeto de culto. Tinham-nos como filhos de Netuno e pais das ninfas. Ofereciam-lhes sacrifícios, afogando em suas águas, touros e cavalos. Não se podia atravessá-los senão depois de ritos de purificação e preces. Os rios inspiravam veneração e temor96. A teogonia de Hesíodo afirma: ―Não deveis atravessar jamais as águas dos rios de eterno curso, antes de ter rpronunciado uma prece, com os olhos fixos nas correntes magníficas, e antes de ter mergulhado vossas mãos nas águas agradáveis e límpidas. Aquele que atravessar um rio sem purificar as mãos do mal que as maçula, atrairá para si a cólera dos deuses, que lhe enviarão depois castigos terríveis‖ 97. Na edição de Diels 98 da obra de Heráclito, no fragmento 12, lê-se: ―Aqueles que entram nos mesmos rios recebem as correntes de muitas e muitas águas, e as almas exalam-se das substâncias úmidas‖. Platão, no Crátilo, utiliza-se de uma fórmula mais breve, às vezes, também atribuída a Heráclito, dizendo que não conseguiríamos entrar duas vezes no mesmo rio. Na Índia, o rio Ganga ou Ganges é o elemento purificador que flui da cabeleira de Shiva. Já na Palestina, pela tradição judaica, o rio representa a fonte das graças e das influências celestes. Esse rio que vem do alto desce na 96 97 98 Idem, ibidem. Hesíodo apud CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., p. 781. Idem. 206 vertical, conforme o eixo do mundo, depois, expande-se horizontalmente, a partir do centro, no sentido das quatro direções cardeais, chegando até as extremidades do mundo, que são os quatro rios do paraíso terrestre99. O próprio Filho de Deus, Jesus, é batizado no rio Jordão, onde Deus fala com Ele e o Espírito Santo se manifesta: ―Naquele tempo, veio Jesus da Galiléia ao Jordão até João, a fim de ser batizado por ele. Mas João tentava dissuadi-lo, dizendo: ―Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a mim?‖ ―Jesus então respondeu-lhe: ―Deixa estar por enquanto, pois assim nos convém cumprir toda a justiça‖. E João consentiu. ―Batizado, Jesus subiu imediatamente da água e logo os céus se abriram e ele viu o Espírito de Deus descendo como uma pomba e vindo sobre ele. Ao mesmo tempo, uma voz vinda dos céus dizia: ―Este é o meu Filho Amado, em quem me comprazo‖. (Mt 3,13-17) 100 É nítida, pois, a associação que Lígia Fagundes Telles faz entre a barca, o rio e o mistério da vida, cheia de milagres ou, pelo menos, surpresas capazes de devolver o encantamento e o calor da existência, através da perene renovação da esperança: o rio verde e quente. Em João Simões Lopes Neto, a tragédia e o pessimismo são a marca registrada de sua literatura. O conto 99 Idem. 207 O menininho do presépio como fazendo parte de uma segunda série dos Contos gauchescos (1912), foi publicado em 25-12-1913, no jornal ―A Opinião Pública‖, entretanto, apresenta uma característica bem diversa: o happy-end, tão escasso na escritura lopesnetina. O Rapsodo Bárbaro recorre a um procedimento que lhe é comum, colhe no folclore, nas lendas ou nos arquétipos universais da humanidade, simbologias para construir suas histórias. É o caso de O menininho do presépio. De um lado, está a especificidade do Natal, como um tempo de realização de desejos e apaziguamento dos homens. De outro, porém, a despeito de oo menininho ser Jesus, ele também espelha uma imagem universal de inocência: a criança. Nesse sentido, a infância é o estado anterior ao pecado, portanto, o estado edêmico, capaz de absolver a tragédia e o adultério. A idéia de infância como representação de pureza é uma cosnstante nos ensinamentos evangélicos e emde toda uma parte da mística cristã como, por exemplo, O caminho de Infância, de Santa Teresa do Menino Jesus. Na tradição cristã, os anjos são muitas vezes representados como crianças, em sinal de pureza e inocência. 100 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e Paulus, 1995. 208 Vale lembrar também a seguinte passagem bíblica: ―Traziam-lhe até mesmo as criancinhas para que as tocasse; vendo isso, os discípulos as repreendiam. Jesus, porém, chamou-as, dizendo: ―Deixai virem a mim as criancinhas e não as impeçais, pois delas é o Reino de Deus. Em verdade, vos digo, aquele que não receber o Reino de Deus como uma criancinha, não entrará nele.‖(Lc 18, 15-17) 101 Simões Lopes Neto aproveita-se dessa simbologia, para dar-lhe um tom ambíguo. No conflito entre Mal e Bem, finalizando com a vitória do Bem, que através da inarredável determinação do amor, é purificado. Em esse Se esse amor resultae de uma transgressão à lei moral, acaba sendo desculpabilizado - como acontece com as crianças - de sua origem pecaminosa102. De outro lado, há um acento tanto estranho, ao retratar a figura deitada no presépio. ―Fazia a modo de uma ramada no alto de uns cerritos, e fingindo grotas e sangões e umas reboleiras; havia esparramados uns ALIMAIS entre boizinhos e ovelhas, de brinquedo e outros enfeites, e mais uns figurões mui calamistrados, de coroa, que pareciam reis e pro caso dum, que era negro retinto, era o mais empacholado. E perto destes, sobre a ponta do presépio estava então a Senhora Virgem e o Senhor São José, e entre eles, acamado numas palhinanhas de milhã e uns musgos e umas penugnes estava o Minininho Jesus, ruivito103 e rosado, nuzinho 101 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e Paulus, 1995. 102 Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., p. 302. 103 Idem. 209 em pelo, pro caso como uma criancinha que não tem pecado por mostrar as vergoinhas do seu corpinho de inocente .‖104 É interessante observar o detalhe que Simões Lopes Neto traz ao descrever o Minininho Jesus: ruivo. O ruivo é uma cor que se situa entre o vermelho e o ocre. Ele lembra o fogo, a chama, daí a expressão roux ardent. Em vez de representar o fogo purificador do amor celeste, ele cracteriza-se por simbolizar o fogo impuro, que queima incendeia sob a terra, o fogo do inferno105. Entre os egípcios, Set-Tifão, o deus da concupiscência devastadora, era representado como sendo ruivo, e Plutarco conta que, em algumas de suas festas, a exaltação era tanta, que se chegava a jogar os homens ruivos na lama. A tradição cristã rezava que Judas, o traidor, tinha os cabelos ruivos106. Em resumo, o ruivo evoca o fogo dos instintos luxuriosos, a paixão que consome o ser físico e espiritual .107 Quererá o autor do conto O menininho do presépio sub-repticiamente levar-nos a uma ambivalência sobre a 104 LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença Edições; Brasília: INL, 1988, p. 283. 105 Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., p. 792. 106 Idem, ibidem. 107 Idem. 210 natureza dos milagres? Tal observação pode ser confirmada pela frase final do conto: - Não lhe parece que houve um milagre? Claro! Foi por causa do Menininho que... Si o diabinho é tão milagroso!...108 Nessa direção, pelo menos, duas interpretações são possíveis. De um lado, pode significar que Deus afirma. sSeu poder, mesmo em circunstâncias aparentemente pecaminosas, isto é, até mesmo utilizando-se das mãos do demônio. De outro lado, porém, pode confirmar a visão pessimista da natureza humana, capaz de corromper as coisas mais puras e santas. Dessa maneira, o amor humano, guiado pelo instinto natural, se transveste de dedicação espiritual. Deus então, com pena desses seres incapazes de elevarem-se para além dessa lei natural que governa todos os seres, permite-lhes a transgressão para evitar um mal maior a infelicidade geral. No fundo, para o Simões de O menininho do presépio, o único pecado é a infelicidade. A força telúrica do amor do cadete Vieira e Nhã Velinda fica plasmada com clareza na cena do beijo, que ―derrubou todas as negaças, como uma represa de açude 211 aluída é derrubada por uma muita descida de águas...‖109. Aí, a enumeração das forças naturais, mais os absolve que os condena. Isto é corroborado, se atentarmos para a ―descida das águas‖, que simbolizam não só a fúria do instinto, a atração, a força do desejo, mas, principalmente, a indicação do elemento purificador. De um certo modo, numa acepção naturalista de teologia, talvez ele esteja certo, pois somente o homem feliz, conforme exige a simplicidade do campeiro, cuja lida, em certo sentido, é uma imitação da luta dos animais pela sobrevivência, pode conhecer a Deus. Este aspecto pode tomar, às vezes, um caráter de ―teologia da prosperidade‖ ou de um viés agostiniano. Isto é, a natureza corrompida do homem só pode ser purificada pela misericórdia de Deus, e os sinais dessa misericórdia são percebidos através das graças que ele alcança. A própria linguagem empregada por Simões Lopes Neto auxilia a manter o clima de mistério inerente aos milagres. A beleza estilística desse conto, a princípio ofuscada por um certo truncamento da narrativa (admitido 108 LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença Edições; Brasília: INL, 1988, p. 284. 109 Idem, p. 283. 212 no texto pelo narrador), deriva da tensão entre uma oralidade mais acentuada do que aquela presente, em geral, nos Contos gauchescos e o pleno controle no desenrolar do texto que, por sua vez, proporciona o perfeito equilíbrio da linguagem literária: Parece que eu estou lhe enredando o rastro, mas não „stou, não; vancê escuite110. No conto simoniano, a filha de Miguelão, boa como uma santa e bonita como uma princesa, é nhã Velinda, obrigada a casar com um mouro, velhaco, sem eira nem beira, mal encarado, meio corcunda, que tinha um lanho grande entre a orelha e a nuca. O casal destoava, como um jerivá velho e um cacho em flor. Nhã Velinda chora, é muito infeliz. O cadete Vieira, moço mulherengo, dado a noitadas e brigas, ama-a de verdade: ―Era uma adoração, quase um medo de ofender a querida do seu coração; perdia a voz pra falar com ela, enredava-se nas esporas, perdia o entono de todo o seu jeito, ele todo ele vivia só nos olhos quando atentava na formosura do seu rosto .‖111 Na festa natalina, em queonde todo o povo se reunia para cantar o terço, há o resvalo, o pecado, o instinto da carne, quase a idolatria. É interessante observar que em João 110 LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença; Brasília: INL, 1988, p. 282. 213 Simões Lopes Neto tanto a percepção do Mal quanto da Divindade acontecese dá através de um revelador diálogo telúrico-cósmico. Em O menininho do presépio, diferentemente do que acontece, por exemplo, em Trezentas onças, o diálogo homem/Deus, mediado pela natureza, o Mal, o pecado (nesse caso, o adultério) está intrinsecamente ligado, de uma maneira ambígua, à pureza do amor, mostrando a dupla essência e o perpétuo dilema do homem. Simões deixa claro que nhã Velinda é jovem, inexperiente e infeliz - condições de absolvição - e que o cadete Vieira, ―gostava da moça numa paixão de verdade, diferente de quantas calaveiradas estava avezado a fazer‖, isto é, o amor atua como elemento regenerador. O Mal está deslocado para a figura do marido e do Miguelão. O marido a maltratava, para ele, ela só significava o que se podia ―amanusear da tábua do pescoço até as ancas‖. Quando os protagonistas trocam o beijo - uma bicota é perigo de respeito!112 - cumpre-se o milagre de duas vidas vazias que encontram a felicidade. A cena é descrita maravilhosamente: 111 112 Idem. Idem, p. 283. 214 ―As mãos se encontraram... e num de-repente, num silêncio, num tirão das suas almas, na pressa e no lusco-fusco, perto da gentama, numa relancina de corisco, as duas bocas famintas se encontraram (...) e um beijo, um beijo, que jurou pelos dois, para toda a vida, um beijo só derrubou todas as negaças, como uma repesa de açude aluída é derrubada por uma muita descida de águas...‖113 Note-se que mesmo em toda a força carnal que a descrição encerra, não há qualquer sinal de condenação ou censura, pois o amor, o verdadeiro amor, o amor humano no sentido mais puro de sua condição redentora se une ao amor divino, fonte de toda alegria e esperança. O casal é flagrado pelo Miguelão que vai ―xeretear ao genro a atossicá-lo, mussitando-lhe maldades‖114. No entrevero do ataque do marido traído, a imagem do menininho, que jazia no presépio - personificação do lugar onde as forças telúricas do pampa (a terra, os animais, as estrelas, a lida do campeiro), se fundem com a força cósmica de Deus -, rola para o seio da moça (do mesmo modo como estava acomodada a criança doente no conto Natal na barca), tão à vontade ―como um dono na sua casa‖, e aí, no regaço delicado ficou. Simões está quase a nos dizer, noutras palavras, que a morada de Deus é o peito dos 113 114 Idem LOPES NETO, João Simões. op. cit. p. 283. 215 homens, é aí que está o Natal. Nesse momento o facão matador serenou e o agressor partiu. A escolha do facão, do objeto cortante, refere-se à simbologia geral, que também se aplica ao conto simoniano: o princípio ativo que modifica a matéria passiva115. Se, de uma parte, o marido traído age para punir o casal, este último, embora pareça também agir, optando pela transgressão, está apenas cumprindo seu Destino, a fatalidade do amor. A faca é também, freqüentemente, associada à idéia de execução, de morte, vingança ou sacrifício. Segundo a tradição judaico-cristã, o Amor-redenção exige sacrifício. O sacrifício é um símbolo de renúncia aos vínculos terrestres por amor ao espírito da divindade. Em quase todas as culturas encontramos histórias de filhos ou filhas imolados. Na Bíblia, um dos exemplos mais conhecidos é o caso de Abraão e Isaac: ―Abraão tomou a lenha do holocausto e a colocou sobre seu filho Isaac, tendo ele mesmo tomado nas mãos o fogo e o cutelo, e foram-se os dois juntos. Isaac dirigiu-se a seu pai Abraão e disse: ―Meu pai!‖ Ele respondeu: ―Sim, meu filho!‖ - ―Eis o fogo e a lenha‖, retornou ele, ―mas onde está o cordeiro para o holocausto?‖ Abraão respondeu: ―É Deus quem proverá o 115 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANTE, Alain. Dicionário de símbolos. 8ª ed. Rio de Janeiro: 1994, p. 414. 216 cordeiro para o holocausto, meu filho‘, e foram-se os dois juntos. Quando chegaram ao lugar que Deus lhe indicara, Abraão construiu o algar, dispôs a lenha, depois amarrou seu filho e o colocou sobre o altar, em cima da lenha. Abraão estendeu a mão e apanhou o cutelo para imolr seu filho. Mas o anjo de Iaweh o chamou do céu e disse: ―Eis-me aqui!‖ O anjo disse: ―Não estendas a mão contra o menino! Não lhe faças nenhum mal!‖ Agora sei que temes a Deus: tu não me recusaste teu filho, teu único. Abraão ergueu os olhos e viu um cordeiro, preso pelos chifres num arbusto; Abraão foi pegar o cordeiro e o ofereceu em holocausto em lugar de seu filho‖ (Gn 22,6-13) 116. O sentido do sacrifício, entretanto, pode ser pervertido, como é o caso de Agamenon sacrificando Ifigênia 117 , em que a obediência aos oráculos dissimula outros motivos e, em particular, a vaidade de obter vingança118. Lembremos a simbologia do sumiço do rebanho de novilhos (o sacrifício dos animais encaminha o protagonista para a redenção), fato aparentemente negativo, mas que trouxe o cadete Vieira para aquelas bandas. O narrador relata que o mal encarado, mouro, portanto, não-cristão e feio como o diabo, foi morto numa 116 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e Paulus, 1995. 117 Para maiores detalhes vide: BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. V. 1, Petrópolis: Vozes, 1991, pp. 36-39 e 599-601. 118 Vide CHEVALIER e GHEERBRANT, op. cit. p. 794-796 e BUCKLAND, A R. Dicionário bíblico universal. São Paulo: Ed. Vida, 1997, p. 388-390. 217 bolinchada de carreiras119. Aqui também pode-se depreender a idéia de sacrifício como expiação do pecador, conforme a severa advertência bíblica: Porque o salário do pecado é a morte, e a graça de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 6,23) 120. Estava dado o sacrifício em honra ao Amor-redenção, não mais na estrita linha da tradição judaico-cristã, onde o sacrifício do amor é dado por um cordeiro imaculado. Simões inova, concebendo o holocausto como realização da Justiça, do sagrado direito humano à felicidade. O mistério do milagre está referido na expressão: Amigo! A quincha dos ranchos esconde tanta cousa como os telhados dos ricos!...121 Aponta com isso que Deus deixa nascer o sol sobre bons e maus, que todos podem mudar seu destino, curar seu coração. Há também o Mal, que fere e espreita, não apenas como natureza própria da condição humana, mas também como expressão de liberdade. É a partir da liberdade que se fundamenta a relação com um Deus, que nada exige para Salvação, senão o sincero e 119 LOPES NETO, João Simões, op. cit. p. 284. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e Paulus, 1995. 121 Idem. p. 282. 120 218 teimoso desejo de ser feliz. Basta sua opção e luta, para que os braços de um Deus que também se fez homem, e, nessa medida, coloca-se como conhecedor do sofrimento, estejam perpetuamente abertos para receber os homens em Seu seio, quiçá, realizando um milagre, que é a violação das leis naturais, criadas pelo próprio Deus. Sob esse prisma, Deus trai a Si mesmo - peca, portanto? Não. Acima do império das leis da natureza está a necessidade do Amor. O amor é subversivo, mesmo para Deus. O Mal que habita no homem - sempre tão essencialmente arraigado, conforme se nos aparece em Boi Velho - assume em O menininho do presépio, apesar de suas ambigüidades, um caráter hermenêutico eminentemente cristão, revelando a face oculta da Mão Divina, que insere o pecado humano no contexto da redenção. Somente onde há renovação (Encarnação/Natal) há possibilidade de Ressurreição (vitória sobre a morte e o sofrimento). Nos contos: Natal na barca, de Lígia Fagundes Telles, e O menininho do presépio, de João Simões Lopes Neto, estabelece-se uma tensão, um conflito entre a dilacerada natureza humana, na luta eterna entre Bem e Mal, e os descaminhos desse mesmo homem na busca da felicidade. O encontro da felicidade é o verdadeiro milagre. 219 Resultado de contradições internas ou externas o conflito simboliza a possibilidade da passagem de um contrário a outro, significando, de um lado, o relativismo ético-moral, e, de outro, o perdão que Deus, em Sua misericórdia, reserva para o pecador. Na Bíblia, o perdão dos pecados é representado de diversas maneiras. O pecado é coberto (Sl 32,1; 85,2); não é atribuído (Sl 32,2); é apagado (Is 43,25), um ponto de justiça em conformidade com os desígnios divinos, confessandod que somos pecadores (1 Jo 1,9); um ato perfeito da misericórdia de Deus (Sl 103,2-3; 1 Jo 1,7). O ato de perdoar é decisivo e nunca será revogado por Deus (Mq 7,19). O milagre em ambos os contos é questionado em sua natureza sobrenatural, pois facilmente o texto permite dar aos acontecimentos explicações naturais. De outro lado, o encanto e o mistério do Natal envolvem as narrativas numa atmosfera onde a dúvida é a própria anuência para com um certo sentido mais amplo de fato extraordinário e inexplicável: a renovação e a purificação das atitudes e dos sentimentos humanos como manifestação de verdadeiro e perene milagre. A felicidade é sinônimo de libertação do passado, da amargura, da covardia, do sofrimento e da morte. O milagre 220 de Natal significa um amanhecer consolatório e esperançoso. O milagre em Natal na barca, de Lígia Fagundes Telles, não é que a criança tenha voltado à vida (talvez nem tivesse morrido);, dao mesmao forma,modo em O menininho do presépio, de João Simões Lopes Neto, o milagre não se constitui em que a imagem deitada nas palhinhas de milhãã tenha saltado dali e defendido a moça, antes, o milagre está plasmado nasem que pessoas que jaziam na infelicidade, estavam mortas em vida, mas, pela força renovadora do Amor, puderam olhar a existência de outra maneira. 221 Referências Bibliográficas: BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e Paulus, 1995. BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. V. 1, Petrópolis: Vozes, 1991. BORGES, Luís. O retorno do paraíso. Diário Popular, Pelotas, 13 e 27-03-1994. BRUCKLAND, A. R. Dicionário bíblico universal. São Paulo: Ed. Vida, 1997. ELIADE, Mircea. História das crenças e das idéias religiosas. São Paulo: Zahar, 1983. LOPES NETO, João Simões. O menininho do presépio. In: Contos gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença; Brasília: INL, 1988. TELLES, Lígia Fagundes. Natal na barca. In: Para gostar de ler. V. 9 - contos. 3ª ed., São Paulo: Ática, 1988. VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno & Farsa de Inês Pereira. Notas organizadas por Mário Auriemma Higa. Porto Alegre: Zero Hora e Klick editora, 1998. 222 223 8 - O RECONHECIMENTO EM VIDA DE J. S. SIMÕES LOPES NETO Cláudia Antunes 122 João Simões Lopes Neto iniciou a carreira que o projetaria como importante escritor no jornalismo. Eram os anos de 1888 e o jovem Simões contava então com 23 anos. Começou o ofício como colaborador do periódico pelotense A Pátria, conduzido pelo tio Ismael Simões Lopes, proprietário do jornal. Ali, desenvolveu atividades jornalísticas já marcadas por um toque literário. Durante dois anos, de 1888 123 a 1890, com interrupções, o escritor expressou com humor e ironia suas impressões dos acontecimentos da cidade na coluna Balas de Estalo, assinada com diversos pseudônimos, em formato de triolet. Com essa coluna, o jovem Simões despertou a atenção da cidade. Manteve ainda as sessões Tesoura Hilariante (1891), no mesmo jornal e, a partir de 1892, passou a colaborar no jornal Diário Popular. 122 Doutoranda em Letras/PUCRS. Adão Monquelat fornece a data correta do início da coluna Balas de Estalo no livro Novos textos simonianos. Pelotas: Confraria Cultural e 123 224 Em 1895, ano do falecimento do tio Ismael Simões Lopes e do pai Catão Bonifácio, a coluna foi retomada nas páginas do jornal Diário Popular, ainda em forma de triolet. Depois, o formato da coluna mudou para a prosa, com o mesmo espírito, mas aproximando-se mais da crônica jornalística. As Balas de Estalo, no Diário Popular,ar prosseguiram até o mês de setembro, assinadas com o pseudônimo de Serafim Bemol. Simões tinha trinta anos, quando criou no Diário duas seções: A Semana Passada (Revistinha), publicada aos sábados, em 1895, lembrando textos teatrais, e Semaninha, em cujo espaço retratava acontecimentos locais, no mesmo ano. No final da vida, Simões publicou ainda a editoria Diárias, no Correio Mercantil, entre 1914 e 1915. O jornal A Opinião Pública apresenta ainda dois trabalhos seus: ―Inquéritos em Contraste‖, entre 1913 e 1914, e ―Temas Gastos‖, de 13 de janeiro de 1916 a 5 de maio do mesmo ano. Suas atividades no jornal continuaram até um dia antes de sua morte, em 14 de junho de 1916. Tinha 51 anos. Científica Prometheu/Livraria Lobo da Costa, 1991. (Série Letras Pelotenses). p. 16. 225 O jovem ousado dos primeiros tempos do jornal A Pátria estenderia suas experiências para o teatro. Carlos Reverbel situa o início no teatro em 1893, baseado nos anúncios dos jornais da época. Simões, então com 27 anos, casado há um ano com Francisca Meireles Simões Lopes — vulgo Dona Velha — lançava-se, ao mesmo tempo, a empreendimentos industriais e teatrais. A estréia seria com a revista O Boato, apresentada em 1893 e publicada em 1894, seguida de Os Bacharéis, ―comédia-opereta em três atos‖, encenada em 1893 e reencenada e editada em 1914, e A mixórdia, ―revista cômico-burlesca‖, encenada em 1896. A partir daí, Simões passou a produzir suas peças sozinho, tendo recebido, desde as primeiras apresentações, o reconhecimento da imprensa e do público. No teatro, Simões consolidou a fama, iniciada com os ―triolets‖, de personalidade artística destacada na cidade. Também em 1893, as páginas do Correio Mercantil estamparam, em formato de folhetim, o texto de ficção urbana A Mandinga. Dividido em quinze capítulos, o texto foi publicado entre os dias 15 de outubro e 14 de dezembro, nas edições de quinta-feira e domingo. O sucesso do empreendimento aparece registrado na apresentação do último capítulo. 226 Em 1912, com 47 anos e dois livros publicados — Cancioneiro guasca (1910) e Contos gauchescos (1912) — Simões estava com problemas financeiros. Nessa época, passou a fazer parte do quadro de funcionários de dois jornais: Correio Mercantil — em que chegou a ser diretor, em 1914, e A Opinião Pública — como secretário de redação, onde permaneceu até a morte, em 1916. Como jornalista exerceu as funções de cronista, redator, editorialista, folhetinista, secretário de redação e diretor. As atividades jornalísticas conviveram lado a lado com os projetos teatrais e os planos literários. Paralelamente ao trabalho com as letras, João Simões realizou vários empreendimentos comerciais e comunitários. Trabalhou em cartório, como despachante geral, como publicitário, criando anúncios criativos para seus próprios negócios e para terceiros através da Mensageria Davi. Montou uma fábrica de extração de mel, uma destilaria e uma vidraçaria. Tentou extrair prata em Santa Catarina, comercializou o Café Cruzeiro, explorou a comercialização de peixe salgado, criou os famosos cigarros Marca Diabo e o carrapaticida Tabacina (premiado em 1910). Ao mesmo tempo, foi Capitão da Guarda Nacional e professor particular. Criou o Clube de Ciclismo, a entidade 227 tradicionalista União Gaúcha, a Sociedade Protetora dos Animais e o Clube Caixeiral. Idealizou a Festa das Árvores, exerceu cargos na Maçonaria, no Conselho Municipal, na Biblioteca Pública Pelotense e na Academia de Letras do Rio Grande do Sul, ocupando a cadeira n.º 20, em 1910. Foi o incentivador das comemorações do Centenário de Pelotas (quando editou uma revista), mobilizou os estudantes, promoveu atividades assistenciais e propôs uma reforma ortográfica, rejeitada pelo então Conselho de Instrução Pública. Sofreu muitas derrotas: teve negados os pedidos para canalizar com recursos próprios o Arroio Santa Bárbara e para fabricar fósforos. Foi prejudicado por uma campanha contra os cigarros Marca Diabo, não pôode competir com o preço da concorrência no empreendimento do Café Cruzeiro, que era de melhor qualidade; foi roubado pelo sócio na exploração da mina de prata. A cada empreendimento frustrado, perdia uma propriedade, utilizada para o pagamento das dívidas. Embora exaustiva, sabemos que essa lista não dá conta da totalidade das atividades do capitão — ―homem dos sete instrumentos‖ -— como bem disse Faber Júnior, contemporâneo de Simões, ao traçar o perfil do escritor nas 228 páginas do Correio Mercantil, no mês de seu aniversário, em 1901. Infelizmente, seus esforços se perderam, acumulados em uma sucessão de fracassos que lhe rendeu a fama de caipora e azarado, ao mesmo tempo em que dilapidou seu patrimônio, fazendo com que ele sobrevivesse apenas do escasso salário do jornal e da publicação dos três livros, editados em vida, pela Livraria Universal. Se teve fracasso nos negócios, o mesmo não ocorreu em relação às letras -— primeiro como jornalista e dramaturgo e, depois, como escritor regionalista. Além do talento natural que, aos poucos, iria se desenvolver-se, Pelotas exerceu fator condicionante na sua obra. Na época do escritor, a cidade contava com intensa atividade cultural distribuída entre saraus literários e musicais, teatros, biblioteca, livrarias, tipografias, revistas segmentadas de vários assuntos, almanaques e jornais. As livrarias encarregavam-se da distribuição das publicações nacionais e estrangeiras. Se existia tanta oferta de literatura, é porque é porque era grande o público leitor, transformando o texto literário em objeto de consumo. Ainda mais, se levarmos em consideração fenômeno comum à literatura de massa: o gênero folhetim. 229 O interior do Rio Grande do Sul seguiu o mesmo caminho dos primeiros jornais franceses que, a partir de 1836, começaram a colocar histórias de ficção nos rodapés dos jornais como forma de atrair o público leitor. Com o sucesso dos folhetins nas publicações nacionais e estrangeiras, as folhas locais logo procuraram aderir a esse modelo. O espaço do rodapé do jornal acabou reservado para a publicação de folhetins, em textos completos, ou em capítulos. Era bastante comum escritores publicarem suas obras primeiro em revistas e jornais, testando a aprovação do público, para só depois saírem no formato de livro. Com Simões Lopes Neto não foi diferente. Ele já havia publicado A mandinga em 1893, ―O negrinho do pastoreio‖, em 1906, A ―Mboitatá‖, em 1909; em 1912 foi a vez dos Contos gauchescos. O conto ―O negro Bonifácio‖, integrante dos Contos gauchescos, foi publicado na Revista da Academia de Letras do Rio Grande do Sul, na edição de dezembro de 1911 a abril de 1912. Os Casos do Romualdo, descobertos por Carlos Reverbel, foram publicados inicialmente em 1914 no Correio Mercantil, em formato de folhetim. Os Contos gauchescos vieram a público nas edições de quinta-feira e domingo do Diário Popular, com texto 230 completo, que, às vezes, ocupava também o verso da folha, no rodapé da página dois. Ao todo foram doze contos publicados anteriores à edição em livro, pela Livraria Universal, em setembro de 1912. Se levarmos em consideração os outros autores que foram veiculados no Diário e em outros jornais do mesmo período, como o francês Michel Zevaco (escritor característico da terceira fase do folhetim, entre 1875 e 1900), além de vários escritores menores traduzidos do francês e de brasileiros, como Lima Barreto e João do Rio, podemos concluir que esse espaço era bastante concorrido. Logo, a julgar pelo número de vezes que os Contos saíram, o autor deve ter alcançado algum sucesso. Mais tarde, o Diário Popular publica o anúncio do lançamento do livro, em 11 de setembro de 1912. O mesmo ocorre com outros jornais de Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre, no período de setembro/outubro desse ano, todos eles acusando o recebimento do livro editado por Guilherme Echenique & C. e elogiando a obra e o autor. Pode-se supor que Guilherme Echenique, um dos donos da Livraria Universal, enviou o volume aos principais jornais do Rio Grande do Sul, como estratégia de lançamento, manobra que deu certo. Entre os jornais que pudemos apurar, foram 231 publicadas notas de divulgação em Pelotas no Diário Popular, Correio Mercantil, A Opinião Pública e A Reação; O Tempo e Ecos do Sul, em Rio Grande, e A Federação e Correio do Povo, em Porto Alegre. Na crítica publicada no Diário Popular, em 2 de novembro de 1912, assinada por Coelho da Costa 124 — portanto, anterior à crítica de Antônio de Mariz, publicada no Correio do Povo, em 1913, em Porto Alegre — o poeta pelotense saúda o livro ―ansiosamente esperado da pena magistral de João Simões‖. E afirma: ―Já de há muito é conhecido e festejado, em nosso meio literário125, o nome desse patrício ilustre, que tão nobres serviços tem prestado à literatura rio-grandense, de que é, incontestavelmente, um dos luminares‖. O crítico prossegue tecendo longas considerações a respeito do livro e do tema regionalista abordado pelo autor. Para avaliar o reconhecimento que o autor atingiu com as suas obras, podemos examinar os comentários ao lançamento do livro Contos gauchescos e as notícias referentes ao seu falecimento nos jornais Diário Popular (Pelotas), Correio Mercantil (Pelotas), A Federação (Porto 124 Januário Coelho da Costa (D. Pedrito, RS, 24/10/1887 – Pelotas, RS, 8/11/1949). Advogado, poeta, cronista e jornalista. 232 Alegre), Ecos do Sul (Rio Grande), O tempo (Rio Grande), A reação (Porto Alegre) e Correio do Povo (Porto Alegre). O jornal Ecos do Sul, de Rio Grande, um dia após a morte do escritor, publica o conto ―Trezentas onças‖, em formato de folhetim, com a seguinte inscrição: ―Damos a seguir uma produção literária do saudoso jornalista pelotense sr. João Simões Lopes Neto, falecido quarta-4ª feira última. Pertence ela ao seu livro CONTOS GAUCHESCOS‖. 126 Segue abaixo uma foto em formato oval do escritor e o conto. Essa, provavelmente, seria a primeira vez em que um dos Contos gauchescos sairia em jornal após o lançamento do livro. A partir daíDepois, os Contos e as Lendas de Simões sairiam estampadosapareceriam em diversas publicações, de dentro e fora do Estado, a ponto de a Globo, detentora 125 126 dos Grifo nosso. Diário Popular. Pelotas, 2 nov. 1912. p. 1. Ecos do Sul. Rio Grande, 17 de jun. 1916, p. 1. 233 direitos autorais do escritor desde 1926, começar a cobrar pelas publicações, para repassar os rendimentos à viúva, dona Francisca, que viveu até os 95 anos, ao lado da filha adotiva Firmina, em constantes dificuldades financeiras. Apenas o jornal A Opinião Pública, de quem o escritor era funcionário, não o homenageou com a devida importância. Carlos Reverbel destaca a falta de prestígio que Simões recebeu neste necrológio e, a partir daíapós, conclui que o regionalista foi ignorado em seu tempo como escritor: ―Foi este o melhor necrológio de João Simões Lopes Neto, publicado na imprensa de sua cidade, em que pesem diversas impropriedades e outras tantas incorreções, entre elas histórias como a de que fundara a Biblioteca Ppública Pelotense (aberta quando ele tinha 10 anos) e a de que fora acadêmico de Direito e Engenharia. Observa-se, entretanto, o principal: a julgar-se pelos termos deste necrológio, escrito quando ele recém fechara os olhos, o seu nome não teria ficado na história literária do Rio Grande do Sul. O modo pelo qual os contemporâneos apreciavam o que ele dizia, fazia e escrevia não confere com o julgamento da posteridade a respeito de seus verdadeiros merecimentos.‖127 Muitos críticos fizeram o mesmo julgamento. Acreditamos, contudo, que Simões Lopes foi reconhecido em seu tempo, dentro e fora do Estado. Só não foi mais, porque na época a comunicação era difícil e as novidades 234 espalhavam-se lentamente. O mercado editorial, antes da Livraria do Globo, era incipiente e precário. A própria decisão da Globo de adquirir os direitos do escritor, em 1926, já demonstra que Simões possuía alguma importância. Em Pelotas ele foi reconhecido, como atestam os jornais, como teatrólogo e jornalista; em Porto Alegre, era membro da Academia de Letras do Rio Grande do Sul e viajava algumas vezes pelo Estado, para proferirapresentar suas conferências. Fora do Rio Grande do Sul, foi amigo de Coelho Neto e contava ainda com o apoio de Alcides Maya, que residia no Rio de Janeiro e era membro da Academia Brasileira de Letras. Após sua morte, em 1916, não tardou a ser acolhido pelos grandes nomes da crítica brasileira, como João Pinto da Silva, considerado em sua época o crítico mais importante do Rio Grande do Sul, Moysés Vellinho, Augusto Meyer, Aurélio Buarque de Holanda, Sílvio Júlio, Manoelito de Ornellas e Darcy Azambuja, além do estudo minucioso de Carlos Reverbel. Nos primeiros anos que se seguiram àdepois de sua morte, do autor houve manifestações representativas da crítica. Em 1918, Olavo Bilac comenta em uma conferência 127 REVERBEL, Carlos. Um capitão da guarda Nacional. Porto Alegre: UCS/Martins Livreiro, 1981. p. 280. 235 a lenda ―O negrinho do pastoreio‖, o que atesta o prestígio que Simões havia alcançado. O discurso de Bilac foi editado em 1924 e publicado no Rio de Janeiro, sob o título Últimas conferências e discursos.128 Também em 1918 o nome de Simões aparece citado na Bibliografia do conto brasileiro, editada pela Biblioteca Nacional.129 Os estudos de Lúcia Miguel Pereira, Augusto Meyer e Aurélio Buarque de Holanda constituíram um divisor de águas na história da recepção do autor de Contos gauchescos e de Lendas do Sul. A partir daíDaí em diante, o escritor gaúcho foi várias vezes revisitado. Nos anos 70, os estudos sobre Simões Lopes ocupam a Academia, com novos nomes como Regina Zilberman, Ana Mariza Filipouski, Luis Arthur Nunes, Maria da Glória Bordini, Flávio Loureiro Chaves, Lígia Chiappini e Antônio Hohlfeldt, entre outros. A crítica sai dos jornais e migra para a universidade, e o escritor passa a ser encarado a partir do viés dos pesquisadores. Em todos os momentos Simões Lopes Neto sempre responde às novas visões — sejam as de cunho determinista e impressionista dos primeiros tempos, 128 BILAC, Olavo. O negrinho do pastoreio. In: Últimas conferências e discursos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1924. 236 passando à abordagem regionalista e estilística e chegando aos estudos estruturalistas e narrativos. O que ocorreu, no entanto, foi uma confusão entre a fama de derrotado nos negócios, que passou a ser transferida a todas as atividades de Simões, inclusive à literatura. Contudo, acreditamos que a recepção é da obra e não, da biografia. Outro fator importante para indicar o sucesso editorial de Simões é o grande número de edições que existem de seus livros, atravessando o século em diversos formatos — periódico, livro, internet — em editoras de todo país. Da mesma forma, Cancioneiro guasca foi editado pela Livraria Universal em três momentos — 1910, 1917 e 1928, indicativo de que o livro vendia. A segunda edição afirma textualmente em seu prefácio que o autor era conhecido em todo país. Considerando o número reduzido das primeiras edições dos livros de Simões Lopes Neto — cerca de 200 exemplares e a referência dada à popularidade que o autor atingiu, citadas em jornais e nos livros de João Pinto da Silva, em Fisionomia dos novos (1922) e em História literária do Rio Grande do Sul (1924) , acreditamos 129 GOMES, Celuta Moreira; AGUIAR, Thereza da Silva. Bibliografia do conto brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1918, p. 237 que Simões Lopes Neto ele é um exemplo de permanência na literatura brasileira. Nos jornais pelotenses podem ser encontradas ainda hoje as páginas da vida do escritor. Lá estão divulgados os lançamentos e a publicidade de seus negócios e anunciados alguns fracassos, como a falência e a venda de estabelecimentos e a oferta da venda do seu espólio, por parte da viúva, após a morte de Simões, sem que aparecessem interessados. Os jornais divulgaram ainda a palavra do escritor gaúcho, às vezes com humor, outras com irritação, muitas com preocupação cívica e histórica. Registraram os sucessos das peças teatrais e as primeiras experiências com a literatura, com textos como Contos gauchescos, algumas das Lendas e Casos do Romualdo, entre outros. De maneira abrangente, analisando a vida, a obra e a recepção de Simões Lopes Neto, é possível concluir que ele nunca parou de escrever. De fato, até atingir a maturidade artística, por volta dos quarenta anos, sua produção intelectual foi intensa e realizou-se de formas variadas: ―triolets‖, conferências, ensaios, artigos, peças de teatro. Quando seu talento literário se manifestou-se, realizou 242-243. 238 vários trabalhos ao mesmo tempo — literatura, história, jornalismo, negócios, atividades de cidadão. Soube manejar com a mesma habilidade a comédia e o drama, o pitoresco e o trágico, sempre pontuados por toques de lirismo, motivos que garantiram que sua literatura alcançasse a popularidade, sendo reproduzida, desde o início, em diversas publicações. Do mesmo modo, a crítica nunca deixou de falar sobre ele, e a cada nova abordagem, sua obra provou que tinha fôlego. Considerações finais Ao nos aproximarmos da ficção de Simões Lopes Neto, deparamo-nos com um movimento de idas e vindas na história desse escritor gaúcho. No decorrer do estudo, mergulhamos no universo simoniano, através da obra publicada nas primeiras edições em livros e, depois, reeditada, continuamente. Da mesma maneira, acompanhamos os anúncios publicitários, os textos jornalísticos e literários e as críticas publicadas em antigos jornais do início do século; estudamos a valorização atual do autor, através de extensa fortuna crítica, em livros e periódicos. Pudemos, ainda, aprofundarmo-nos um pouco mais na obra e na vida do escritor, por meio de pesquisas em documentos raros, 239 localizados em arquivos públicos e particulares, e de depoimentos valiosos de seus apreciadores. Aos poucos, Simões foi se revelando-se, e outros dados referentes à recepção de sua obra permitiram a formação de novas hipóteses acerca do reconhecimento da obra do escritordo seu trabalho literário. Tendo em vista o material encontrado nos jornais rio-grandenses do início do século — a crítica pioneira do poeta Coelho da Costa, os registros do lançamento do livro Contos gauchescos e as referências ao sucesso de Simões nos obituários de vários jornais, quando de sua morte, em 1916 — acreditamos que Simões Lopes Netoele foi reconhecido em vida pela crítica e pelo público leitor. Em outro ponto da obra Um capitão da Guarda Nacional, Reverbel fala sobre a recepção de Simões, citando o comentário de João Pinto da Silva, de 1922, — ―J. Simões Lopes Neto, indiscutivelmente o mais fiel e, por isso, o mais popular dos nossos regionalistas, o ‗conteur‘ amado da nossa gente dolorosa e rude da campanha.‖130. O biógrafo refere acerca da popularidade do escritor: ―A observação de João Pinto da Silva, apontando Simões Lopes, naquelas alturas, como ―o mais popular dos nossos 130 SILVA, João Pinto. Fisionomia de “novos”. São Paulo: Monteiro Lobato & Co., 1922. p. 146. 240 regionalistas‖, tem inteira procedência. Contrariamente ao que acontecia com Alcides Maya, cujos livros eram lidos por uma elite, por causa da barreira verbal, os ―Contos gauchescos‖ eram deletreados até mesmo pela gente simples da campanha, pouco chegada aos livros.‖131 E mais adiante, comentando a tiragem reduzida dos Contos gauchescos, reflete sobre o sucesso do escritor junto ao público leitor: Seja como for, o livro teve penetração popular e conseguiu certo número de leitores. E quando já se haviaNo momento em que esgotado, após a morte do autor, suas páginas começaram a ser reproduzidas, com surpreendente regularidade, em diversas publicações. De modo geral, tais transcrições não eram feitas em revistas ou periódicos literários, mas em publicações de caráter popular, como almanaques e órgãos dedicados a assuntos rurais. Desta forma, mesmo depois de esgotada, a obra se mantinha viva junto ao público.132 Depois do falecimento de Simões, os contos passaram a ser publicados isoladamente em periódicos diversos. No ano da morte do escritor, a revista Seleta, do Rio de Janeiro, publica ―Contrabandista‖. 131 133 No ano REVERBEL, Carlos. Um capitão da guarda nacional. Porto Alegre: UCS/Martins Livreiro, 1981. p. 284. 132 Idem, p. 285. 133 Revista Seleta, Rio de Janeiro, 22 jun. 1916, Ano II, n. 25. 241 seguinte, a revista A Estância, órgão da União dos Criadores do Rio Grande do Sul, editada em Porto Alegre, transcreveu ―Artigos de fé do gaúcho‖. 134 Em 1918, foi a vez do Almanaque do Globo publicar ―Contrabandista‖ 135 e, em 1922, o mesmo conto apareceria no Almanaque do Agricultor Rio-Grandense. Também o Almanaque do Correio do Povo traria, em diversas ocasiões, contos e lendas do escritor gaúcho. Além dos comentários de Olavo Bilac, em 1918, e da referência da Biblioteca Nacional, merecem destaque as críticas de João Pinto da Silva, valorizando a popularidade de Simões na História Literária do Rio Grande do Sul. Nessa ocasião, o crítico salientou a importância de Simões Lopes no Regionalismo gaúcho, impondo-se ―decisivamente, à curiosidade e à admiração da crítica‖, com ―os seus lindos Contos gauchescos‖.136 134 A Estância. Porto Alegre, jan. 1917, ano V, n. 1, p. 21-22. Almanaque do Globo. Porto Alegre, 1918, p. 169-173. SILVA, João Pinto. História literária do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1924. p. 155-162. 135 136 242 Ainda no ano de 1922, Moysés Vellinho comenta no jornal Correio do Povo, sob o psedônimo de Afonso Arinos, o trabalho de Simões Lopes, relacionando-o a Alcides Maya, com o título ―Sobre um acerto‖. 137 No ano seguinte, apresenta novo artigo traçando um paralelo entre os dois autores, intitulado ―Alma Bárbara‖.138 Em 1925, Roque Calage cita Simões Lopes na conferência ―A poesia popular nordestina e a gaúcha‖, no jornal Diário de Notícias, em Porto Alegre. 139 Essas referências saíram antes da primeira edição da Globo de Contos gauchescos e Lendas do Sul, indicando que o escritor já despertava o interesse da crítica, ultrapassando as fronteiras municipais. Quando a Globo lançou o livro, em agosto de 1926, as manifestações de reconhecimento ao trabalho do autor só aumentaram. Nesse ano, o Correio do Povo publicou duas críticas significativas para a história da recepção simoniana: as de Augusto Meyer140 e Darcy Azambuja.141 Em 1933, o 137 VELLINHO, Moysés. ―Sobre um acerto‖. Correio do Povo, Porto Alegre, 7 set. 1922. 138 VELLINHO, Moysés. ―Alma bárbara‖. Correio do Povo, Porto Alegre, 23 set. 1923. 139 CALAGE, Roque. ―A poesia popular nordestina e a gaúcha‖. Diário de Notícias. Porto Alegre, 2 ago. 1925, p. 3. 140 MEYER, Augusto. ―O grande Simões Lopes‖. Correio do Povo, Porto Alegre, 26 ago. 1926. 243 crítico Agripino Grieco expressa o reconhecimento à obra de Simões, incluindo-a na sua Evolução da prosa brasileira, enfatizando principalmente a importância das lendas ―A Salamanca do Jarau‖ e ―O negrinho do pastoreio‖. 142 Do mesmo modo, a presença do escritor gaúcho na coletânea, organizada por Edgar Cavalheiro e Almiro Rolmes Barbosa, As obras-primas do conto brasileiro, editada pela Martins, em São Paulo, coloca Simões no nível dos grandes contistas brasileiros.143 Para finalizar, é importante salientar ainda o valor da Revista do Brasil na valorização do autor gaúcho. Dirigida em sua segunda fase, por Otávio Tarquínio de Souza e Rodrigo Melo Franco Andrade, de 1938 a 1943, a Revista do Brasil publicou diversos contos de Simões, aproximando o escritor pelotense de Aurélio Buarque de Holanda e Lúcia Miguel Pereira — 141 dois nomes AZAMBUJA, Darcy. ―Contos gauchescos‖. Correio do Povo, Porto Alegre, 29 ago. 1926. 142 GRIECO, Agripino. Evolução da prosa brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933. p. 131-132. 143 BARBOSA, Almiro Rolmes; CAVALHEIRO, Edgar (Orgs.) As obras primas do conto brasileiro. São Paulo: Martins, 1943. 244 fundamentais para o ressurgimento da ficção simoniana, a partir da edição crítica da Globo, em 1949, que fez com que a recepção da obra adquirisse novo fôlego. A pesquisa nos arquivos e coleções que fomentam os estudos nas fontes primárias, foi fundamental para esse trabalho, bem como o estudo da extensa fortuna crítica do autor. Mais uma vez, a obra de Simões Lopes Neto continua respondendo às novas visões dos leitores e pesquisadores, a partir docomeçar pelo material obtido empelo contato com as fontes primárias. Nos jornais é possível perceber o vaivém de textos que circundam a atividade literária. A obra constitui o produto final, mas ela dispõe de uma história, dada pela sua trajetória das fontes à recepção. A história editorial dos Contos gauchescos indica a capacidade de permanência da obra, que atravessou o século XX, atingindo o ano de 2001 com nova edição pela Globo. O interesse dos editores pela obra de Simões e, conseqüentemente, do público leitor, demonstra que o escritor gaúcho continua atendendo às expectativas dos leitores, mantendo-se atual. 245 9 - ANÁLISE DISCURSIVA DE A SALAMANCA DO JARAU DE J. S. LOPES NETO Oscar Brisolara 144 Este estudo parte das concepções da Teoria da Enunciação de orientação francesa, que concebe ser todo o discurso habitado por discursos outros do passado. Esses discursos não estão apenas no nível da memória, mas constituem o próprio discurso presente. A lingüista francesa Jacqueline Authier-Revuz trata da heterogeneidade que é, justamente, a presença do outro no discurso. A autora apresenta duas formas de dessa heterogeneidade: a heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade constitutiva. A heterogeneidade mostrada é aquela que tem marcas no discurso. É o caso das citações e suas marcas como as aspas, o itálico, ou as glosas, ou sejam, os comentários que se fazem ao discurso do outro, ou ainda as formas do discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre. Essas são formas que as línguas têm para marcar a presença do discurso do outro no texto. 144 Professor da UCPel. 246 Authier afirma: ―No fio do discurso que, de fato, um locutor único produz materialmente, um certo número de formas de lingüisticamente apreensíveis no nível da frase ou do discurso, inscrevem, na linearidade, o outro. ―É o outro do discurso relatado: as formas sintáticas do discurso indireto e do discurso direto, de maneira unívoca, no quadro da frase, um outro ato de enunciação. No discurso indireto, o locutor se faz tradutor: usando suas próprias palavras, ele remete a um outro como fonte do ―sentido‖ dos propósitos que ele relata. No discurso direto são as próprias palavras do outro que ocupam o tempo – ou o espaço – claramente recortado na frase, da citação, o locutor assumindo-se como simples porta-voz. Nessas duas modalidades diferentes, o locutor dá lugar explicitamente em seu discurso ao discurso do outro‖ (Authier-Revuz, 1982, p. 92). Ainda falando sobre a heterogeneidade mostrada, ela se refere a outra forma de o autor marcar a presença do discurso de outro locutor no seu discurso. A essa forma ela denomina de conotação autonímica. Explicita esse tipo de marcação como segue: ―Uma forma mais complexa de heterogeneidade aparece nas diversas formas marcadas da conotação autonímica: o locutor faz uso de palavras inscritas no fio do seu discurso e, ao mesmo tempo, mostra-as. Dessa maneira, sua figura normal de usuário das palavras acompanha-se, momentaneamente, de outra figura, a de observador das palavras utilizadas; e o fragmento assim designado – marcado por aspas, palavras em itálico, uma entonação e/ou qualquer forma de comentário – recebe, em relação ao resto do discurso, um outro estatuto" (Authier-Revuz, 1982, p. 94). Ela apresenta como manifestação da heterogeneidade as formas de comentário, glosa que o locutor inclui no seu discurso. A glosa pode ser uma nota explicativa de palavra 247 ou termo, comentário, interpretação, nota ou crítica, censura; também pode ser anotação marginal ou interlinear, uma nota de rodapé. São sempre freqüentemente manifestações da presença do outro no discurso marcadas pelo locutor. Formas dessa a presença do outro no discurso podem ser ainda a ironia, a antífrase, a imitação, a alusão, a reminiscência e toda e qualquer maneira de referir-se com formas marcadas a esse discurso. Porém a autora francesa refere-se a outra forma mais radical da presença do outro no discurso: a heterogeneidade constitutiva do discurso. Afirma: O outro está sempre presente em tudo (Authier-Revuz, 1982, p. 98). Ela acrescenta que a heterogeneidade constitutiva é uma ancoragem para a heterogeneidade mostrada do discurso. Desenvolve sua argumentação em relação à sempre necessária presença do outro no discurso baseada em duas fontes: o dialogismo do Círculo de Bakhtin e a psicanálise a partir da releitura de Freud por Lacan. De Bakhtin, toma o dialogismo, de modo especial como o autor apresenta em Marxismo e Filosofia da Linguagem. Busca o lugar dado ao outro dentro da perspectiva dialógica, mas um outro que não é nem o duplo de um face a face, nem mesmo o diferente, mas sim, um 248 outro que atravessa constitutivamente o um. Atravessar constitutivamente o um consiste em fazer parte necessariamente dele. Para haver dialogismo, há, inevitavelmente, de haver o outro. Esse é princípio fundador da subjetividade e da linguagem. Só existe o um, porque há o outro. Só há linguagem em função desse outro que está sempre presente no um. A presença do outro é necessária a todo o discurso. A própria palavra que o sujeito julga sua, já vem habitada por outras vozes, outras visões e definições. É necessário incluir aqui também a imagem do interlocutor. Todo discurso tem uma orientação. Diz Authier: ―Deve-se dizer que todo discurso é compreendido nos termos do diálogo interno em que se instaura entre este discurso e aquele próprio do receptor, o interlocutor compreende o discurso através do seu próprio. Visando à compreensão de seu interlocutor, o locutor integra, então, a produção de seu discurso uma imagem de outro discurso, aquele que ele empresta a seu interlocutor.‖ (AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 114). Tomando de Saussure a concepção de eixo paradigmático, pode-se dizer que o discurso dialoga com o interlocutor, orienta-se para um interlocutor, somente que esse o apreende também a partir de seu patamar. O mesmo discurso pode evocar no interlocutor, pelas relações 249 paradigmáticas, leituras que o locutor não pode comandar. O enunciado de um locutor pode produzir leituras diversas daquelas pretendidas pelo locutor- –enunciador. Para a psicanálise, a heterogeneidade tem outra perspectiva. Essa não tem a linguagem como objeto, mas sim o inconsciente. Em relação a essa temática, diz a lingüista francesa: ―É através de um olhar exterior à lingüística, pousado sobre a linguagem, a palavra, o sujeito falante que, para a psicanálise constitui um material e não um objeto próprio, que esta pode lhe dizer respeito ao contrário da imagem de um sujeito ―pleno‖ que seria a causa primeira e autônoma de uma fala homogênea que diz respeito a um sujeito dividido (o que não significa nem desdobrado, nem compartimentado). Sua posição é aquela de uma fala heterogênea‖ (Authier-Revuz, 1982, p. 117). Sendo assim, a psicanálise, olhando a linguagem, vai buscar o recalque, ou seja, os conflitos esquecidos que atuam sobre o sujeito, sem que ele tenha consciência disso, mas que têm efeitos sobre sua vida presente. Falando do inconsciente, diz Lacan: O inconsciente é esta parte do discurso concreto enquanto transindividual, que falta à disposição do sujeito para estabelecer a continuidade do seu discurso consciente (...) O inconsciente é aquele capítulo da minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado (Lacan, 1953, p. 136). 250 A psicanálise faz um trabalho de regressão através da linguagem, para recuperar esses perdidos, esses conflitos do passado que atuam no presente. Não é um retorno de fato. O processo de análise é uma espécie de espelho onde o sujeito se enxerga. É no significante que o analista busca um significado oculto. A psicanálise, como Bakhtin, também chega à conclusão de que o discurso é sempre polifônico. Esse significado oculto não é monolítico, como afirma Lacan: O inconsciente não a mensagem, mesmo estranha, mesmo cifrada, que alguém se esforça para ler num velho pergaminho, é um outro texto, escrito embaixo, que se deve ler por transparência ou com ajuda de algum revelador (Lacan, 1953, p. 129). É como um palimpsesto em que alguém apagou um texto e escreveu outro no mesmo pergaminho. O trabalho de busca, em ambos os casos, é o mesmo. O pergaminho é o significante em que devo, por trás do significado da superfície, procurar o significado apagado. De forma semelhante, é na materialidade da língua que é possível reconhecer a escritura polifônica do discurso. Assim, como é somente através da fala que se pode acessar 251 os conhecimentos formais que o indivíduo tem da língua, assim também o inconsciente é acessível através das manifestações dos significantes que o sujeito produtor do discurso usa. Passa-se, a partir daí, à noção de sujeito que [...] ―não é uma entidade homogênea, exterior à linguagem, que lhe serviria para ―traduzir‖ em palavras um sentido do qual seria a fonte consciente‖ (Authier-Revuz, 1982, p. 127). Esse sujeito não é nem a fonte, nem a origem do que diz. Ele é habitado por outros discursos do passado, que não estão no nível do seu consciente, mas que estão presentes no seu inconsciente e agem no seu discurso presente. Esse sujeito é, portanto, efeito de linguagem. E ainda mais, é um sujeito dividido, como afirma Clément, citado por Authier: ―O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por este efeito ele não é a causa dele mesmo, ele carrega nele a verve da causa que o divide. Pois sua causa é o significante sem o qual não haveria nenhum sujeito na realidade‖ (Authier-Revuz, 1982, p. 128). Esse sujeito clivado, dividido, é descrito por Lacan da seguinte maneira: ―O homem não é em sua psique o resultado conclusivo de uma divisão em duas vertentes. A consciência não é a face visível dum subconsciente oculto, nem o inconsciente a estrutura profunda, não revelada, de um consciente brilhante. A relação não se estabelece nesses termos, mas toma ares geográficos de um percurso sem locais, nem inverso, donde o sujeito se enuncia 252 sem saber o que diz em uma palavra que diz muito sobre este saber‖ (Lacan, apud Authier-Revuz, 1982, p. 128). Não se trata também de um sujeito compartimentado em que haja um espaço, um compartimento para o consciente e outro para o inconsciente. Não um sujeito dividido à maneira de um objeto concreto que pode ser fracionado em diferentes partes e que unidas formam um todo. Essa divisão não é também um acidente traumatizante, cuja unidade desejada pudesse ser recuperada ao modo de um aparelho restaurado. Essa abordagem nos permite-nos concluir que o outro está na essência da linguagem. Ela somente existe em função dele e. Ela está voltada para ele. Isso também nos permite encaminhar nosso raciocínio para a análise da lenda A Salamanca do Jarau de João Simões Lopes Neto. Ora, se todo o discurso é habitado por discursos outros do passado, esse também o é, ainda mais por se tratar de um texto que aborda uma lenda que está na base da formação cultural do Rio Grande do Sul. O discurso cuja presença se pretende-se mostrar neste estudo é o discurso clássico grego, mais precisamente aquele presente na obra clássica de Homero, em sua grande obra, a Ilíada. Além desse, abordar-se-á também a presença 253 de outros discursos como o das culturas européia, árabe e indígena que são importantes formadores da cultura local. É necessário salientar que a própria obra do aedo grego também é habitada por outros discursos pelo mesmo processo aqui apresentado. O grande herói da Ilíada é Aquiles. Esse jovem rei que participou da Guerra de Tróia era filho de Peleu, rei da Tessália, e da deusa Tétis, como quer a mitologia clássica grega. Uma narrativa tradicional na mitologia grega é a do casamento de Peleu, um homem, e Tétis, uma deusa, ocorrido no Olimpo, morada dos deuses. A esse consórcio todos os deuses foram convidados, exceto Éris, deusa da discórdia, não convidada por razões óbvias. A deusa Éris chega no final da festa com uma maçã de ouro que põe sobre a mesa com a seguinte inscrição: , ou seja, para a mais bela. Esse ato provocou uma grande confusão, cada deusa desejando para si a maçã. Zeus, o deus supremo do Olimpo, organiza uma escolha prévia, da qual resulta a seleção de três deusas: Hera, esposa do próprio Zeus; Palas Atenéia, deusa da sabedoria; e Afrodite, deusa do amor. Coube a Páris, filho de Príamo e Hécuba, reis de Tróia, a decisão sobre a primazsia em beleza entre as deusas 254 olímpicas. As deusas fizeram, cada uma por sua vez, um trabalho de subversão para convencer o jovem de apenas vinte anos a escolhê-la como a mais bela. Hera promete torná-lo o mais poderoso rei de toda terra. Palas, afirma que, se for ela a escolhida, torná-lo-á o homem mais sábio do mundo. E Afrodite promete-lhe a mulher mais bela do mundo. Aos vinte anos, Páris escolhe Afrodite. A deusa cumpre a promessa, entregando-lhe Helena, esposa de Menelau, rei de Corinto, que foge com ele para pátria do jovem. Esse fato vai originar a guerra de Tróia, conforme afirma também a mitologia grega,. que Essa mitologia sempre remete à realidade humana. Esse mito, em particular, parece referir-se às tentações humanas. Hera seria, dessa forma, a metáfora do poder; Palas, a do saber; e Afrodite, a do prazer. Essas, segundo a proposta da presente narrativa, parecem ser as três grandes tentações do homem: o poder, o saber e o prazer. É lógico que seria impossível rastrear na lenda de Simões Lopes Neto, aliás parte da tradição da literatura oral do Rio Grande do Sul, a presença de todos o discursos subjacentes ao texto do autor pelotense. Porém, alguns traços 255 do discurso mitológico grego parece estarem evidentes no mito gaúcho. A lenda A Salamanca do Jarau narra a história ocorrida com Blau Nunes, narrador da obra, quando parte em busca de um boi barroso, que fugira. Numa economia baseada fundamentalmente na pecuária, a posse do boi é o ideal do homem, ainda mais numa situação em que o boi fazia parte, muitas vezes, da grande manada sem dono, formada após a expulsão dos jesuítas e derrocada das missões. Assim, o boi barroso é tema de muitas cançonetas populares da época. Como Simões Lopes foi compilador dessas canções numa obra intitulada Cancioneiro Guasca, é claro que tinha conhecimento desse tema. Prova disso é a citação feita pelo autor, logo no início da lenda, de uma canção do boi barroso que faz parte do Cancioneiro Guasca cuja primeira estrofe transcrevo abaixo ―Meu bonito boi barroso. Que eu já contava perdido, Deixando o rastro na areia Foi logo reconhecido‖. (Lopes Neto, 1965, p. 133). Na busca desse boi, Blau mete-se pelas estradas e encontra o santão da salamanca do cerro. (Idem, ibidem 256 p.135), personagem lendário que fora amante de Teiniaguá, princesa encantada de origem árabe. Por indicação do santão, seguiu morro acima, sempre na busca do boi barroso. Entrou na caverna do cerro do Jarau. Diz o texto da lenda: ―Blau Nunes foi andando. Entrou na boca da toca apenas aí clareada e isso pouco, por causa da enrediça da ramaria que se cruzava nela; pra o fundo que era escuro... Andou mais, num corredor dumas braças; mais ainda; sete corredores nasciam deste. Blau Nunes foi andando‖ (Idem, ibidem, p. 153). E foi andando e diante dele se puseram sete provas: Primeira prova: Mãos de gente, sem gente que ele visse, batiam-lhe no ombro (Idem, ibidem, p 154). Segunda prova: ... sentiu ruído de ferros que se chocavam, tinir de muitas espadas (idem, ibidem, p. 154). Terceira prova: ... homens peleavam de morte (idem, ibidem, p. 154), ... Blau meteu o peito entre o espinheiro das espadas, o fino das pontas, ... sem olhar para os lados, ... escutando porém os choros gemidos dos peleadores (Idem, ibidem, p. 154), Quarta prova: mãos mais leves batiam-lhe no ombro, como carinhosas e satisfeitas (Idem, ibidem, p. 154) Quinta prova: ... saltaram-lhe aos quatro lados jaguares e pumas, de goela aberta e bafo quente... E ele meteu o peito e passou (Idem, ibidem, p. 154), 257 Sexta prova:...caveiras soltas, dentes branqueando, buracos de olhos...(Idem, ibidem, p. 155); . Sétima prova: ... aí dentro de um jogo de um jogo de línguas de fogo, vermelho e forte, como atiçado com lenhas de nhanduvai... outra vez meteu o peito e passou, sentindo o mormaço das labaredas (Idem, ibidem, p. 156). São todas situações que perturbariam um homem comum, especialmente levando em consideração que se passaram nas profundezas de uma caverna, no início da noite. Porém, Blau passou, sem se perturbar, por todas elas. Passadas as provas, Blau sem se abalar segue o seu caminho e encontra uma velha assim descrita: ―Por detrás de um cortinado como de escamas de peixe dourado, havia um socavão reluzente. E sentada numa banqueta transparente, fogueando cores como as do arco-íris, estava uma velha, muito velha, carquincha e curvada, e como tremendo de caduca. ―E segurava nas mãos uma varinha branca, que ela revirava a tangia, e atava em nós que se desfaziam, laçadas que se deslaçavam e torcidas que se destorciam, ficando sempre linheira. (...) E disse: - Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei...‖(Idem, ibidem, p. 157-58). 258 E vêm então as sete ofertas que são: 1) a sorte no jogo; 2) a arte de cantar e com ela conseguir o amor das mulheres; 3) o dom de curar e de impor males através das ervas; 4) a habilidade nas armas; 5) o poder sobre os outros; 6) a riqueza; 7) a arte da pintura e da poesia. A todas essas tentações Blau resiste. Pensou e não disse: - Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és tudo (Idem, ibidem, p. 159). As tentações de Blau são as mesmas de Páris. Constituem a presença do discurso grego clássico no discurso da lenda, transformado na linguagem desse texto. A sorte no jogo, a habilidade nas armas, o poder sobre os outros e a riqueza reduzem-se à primeira tentação do herói troiano, ou seja, o poder. A arte de cantar, o dom de curar e a arte da pintura e da poesia correspondem à tentação de Palas, ou seja, o saber que inclui também a arte. Porém, o prazer não 259 lhe é oferecido, no entanto, é o que ele deseja e que se manifesta, quando ele afirma que desejaquer a Teiniaguá. A grande diferença entre a lenda rio-grandense e o mito grego consiste no fato de a Páris ter sido ofertado o prazer na metáfora de Afrodite, que lhe oferece e concede Helena, a própria concretização do prazer carnal, enquanto que a Blau sequer lhe é oferecida essa possibilidade. É ele que manifesta esse desejo, que lhe é negado. Em troca, recebe a onça de ouro que se multiplica indefinidamente, proporcionando-lhe uma imensidão de bens materiais. Em lugar de seu desejo de satisfação carnal, a terceira tentação de Páris, lhe é concedida a primeira oferta do mito grego, pois o dinheiro está intimamente relacionado ao poder. Porém, enquanto Páris desfruta de Helena e por um tempo é feliz, Blau não consegue a princesa Teiniaguá. O poder do dinheiro torna-o infeliz e solitário e ele acaba declinando desse bem e voltando à miséria primitiva. A presença do ideal grego de realização e em nossa cultura fica patente: primeiramente, na procura do boi barroso, manifesta-se como metáfora do sonho de ter. Depois nas ofertas de Teiniaguá, manifestando o sonho do poder e do saber, e a própria oferta do santão que concede ao peão gaúcho a onça de ouro que se multiplica, concretizando 260 o sonho do poder. E, por fim, o desejo do prazer, manifestado no pedido de Blau pela princesa árabe encantada, a Teiniaguá. O número sete presente tanto nas provas pelas quais passa Blau dentro da caverna, (a caverna também se divide em sete) quanto nas ofertas da velha maga manifesta outra constante na numerologia de origem oriental. São sete os sacramentos cristãos, sete são também as virtudes teologais e os pecados capitais. Ora, sete, na mesma numerologia, é o resultado da soma de três e quatro. Nessa numerologia, três constitui a perfeição divina. É o indivisível, o imortal, enquanto que quatro é o divisível, o mortal, portanto, a perfeição humana. O resultado da soma de ambos constitui a soma da perfeição divina com a perfeição humana já marcadamente presentes na mitologia grega. Assim, Aquiles, o herói da Ilíada de Homero, constitui um exemplo disso. Na voz do próprio aedo grego, o guerreiro é apresentado como peleio Aquiles (Homero, 1976, p 75), isto é, filho de Peleu, rei lendário da Tessália. Por outro lado, o poeta grego apresenta a mãe de Aquiles como a bracinívea Tétis (Idem, ibidem, p. 83). 261 Assim, Aquiles é filho de Peleu, homem, rei nobre; mas também de Tétis, deusa, amante e protegida de Zeus. Aquiles é humano-divino. Também o herói romano da Eneida, Enéias, é filho de Anquises, pastor troiano, homem, portanto; e Vênus, a deusa grega do amor. Jesus Cristo é o exemplo cristão dessa dualidade. É filho do Espírito Santo, Deus, com a Virgem Maria, mulher, humana. Portanto, sete é apenas a manifestação numerológica dessa dualidade. Outra manifestação da cultura européia nao lenda é a presença, primeiramente do conflito entre as culturas árabe e a cristã. Depois, a manifestação forte da presença árabe em nossa cultura regional, ocasionada pelos séculos de dominação árabe sobre a península ibérica, ingrediente marcante na literatura de seus povos. Porém, tTrata-se, porém, da visão cristã em que o árabe é apresentado como mau. A própria Teiniaguá aqui se alia a Anhangá-pitã, divindade do mal na mitologia tupi, correspondente ao satanás do cristianismo. Ao mesmo tempo em que ela é apresentada como má, aliada à divindade do mal, por ele transformada, no final da lenda torna-se a mulher primitiva do Rio Grande, formando, com santão, um casal de peões. Diz a lenda: 262 ―Ainda uma vez a velha carquincha transformou-se na teiniaguá... e a teiniaguá na princesa moura... e a moura numa tapuia formosa; ...e logo o vulto da face branca e tristonha tornou a figura do sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez, num guasca desempenado... E assim, quebrado o encantamento que suspendia fora da vida das outras aquelas criaturas vindas do tempo antigo e de lugar distante, aquele par, juntado e tangido pelo Destino, que é o senhor de todos nós, aquele par novo, de mãos dadas como namorados, deu costas ao seu desterro, e foi descendo a pendente do coxilhão, até a várzea limpa, plana e verde, serena e amornada de sol claro, toda bordada de boninas amarelas, de bibis roxas, de malmequeres brancos, como uma concha convidante para uma cruzada de ventura, em viagem de alegria, a caminho do repouso‖ (Lopes Neto, 1965, p. 166). Nesse final de narrativa, o autor deixa clara a concepção de que a cultura rio-grandense é uma soma da cultura cristã, da cultura árabe e da cultura indígena. O casal formado pelo sacristão e pela princesa árabe vem a constituir o gaúcho primitivo que originou o nosso povo. Na última lenda da trilogia, O Negrinho do Pastoreio, vai aparecer também o componente africano da formação do gaúcho. Pode-se constatar, ainda, a presença de uma concepção de mulher muito forte na cultura européia. Teiniaguá é a personificação feminina, em que a mulher, aliada ao demônio (Anhangá-pitã), representa um apelo irresistível ao pobre sacristão, índio europeizado. Ele abandona a civilização, tal como é representada na missão, desfruta das riquezas da salamanca e do amor 263 carnal de Teiniaguá, a um tempo lagartixa e mulher: animal e ser humano. A história de Blau é paralela à do sacristão: ele também, na busca do boi barroso, embrenha-se no Jarau, encontra-se com o sacristão, supera as sete provas da furna e conquista a onça de ouro encantada. Com ela chega à riqueza, porém a solidão não lhe permite a conquista da felicidade. Ambos precisam de uma libertação. O sacristão, estando diante de duas propostas: uma que apontava para Deus, os padres, a civilização cristã; outra para o diabo, para a mulher, para a carne, para o paganismo; optou pela segunda. Blau, pobre peão, conquista a riqueza; porém, todos os que com ele negociam tudo perdem. Isso Leva-o ao isolamento e à conseqüente infelicidade. Como se dará a redenção de ambos? Blau devolve a moeda e com ela a fortuna e recebe como prêmio a felicidade. O sacristão é libertado pela tríplice saudação cristã de Blau. O homem é o instrumento da libertação do outro homem, sempre através da religião, da saudação cristã. O sacristão transforma-se com Teiniaguá, num casal de agricultores. 264 As metamorfoses da princesa árabe, em lagartixa, em moça bonita, em velha carquincha, em tapuia formosa; do índio em sacristão, em vulto de face branca e tristonha, em guasca desempenado, e, por fim ambos em casal de agricultores são metáforas que trazem para o presente esses discursos outros do passado para o presente, e são vozes das culturas subjacentes à nossa cultura. Na lenda, os conflitos são resolvidos. O mundo cristão e transcendente faz concessões às tendências naturais do ser humano, no momento em que punha em risco a própria sobrevivência. A mulher, princesa árabe, metáfora do mal e do erotismo, que perturba e corrompe o macho, metamorfoseia-se em agricultora, metáfora da mulher comportada, que pauta seu comportamento pela obediência aos preceitos da moral cristã. No seu conjunto, a lenda é metáfora do processo de civilização do Rio Grande do Sul, marcando um desenvolvimento que levará à industrialização, domesticando a natureza e , com ela, os homens: o lago que ferve transforma-se em sangão pacífico, sob a invocação dos padres; e o casal rebelde torna-se casal comportado. 265 Assim, a lenda, traz, nos discursos do presente, os discursos do passado, desde a cultura grega clássica, passando pela européia, pela cristã, pela árabe, pela indígena, formando o discurso polissêmico da cultura contemporânea. Referências Bibliográficas: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para a abordagem do outro no discurso. Paris: D.R.L. A. V., 1982. HOMERO. Ilíada. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1976. LOPES NETO, João. Simões.. Lendas do Sul. Porto Alegre: Globo, 1965. 266 267 10 - O CIVISMO NA VIDA E NA OBRA DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO Zênia de Leon 145 Pelotas há muito deixara o primitivismo dos campos, para se tornar uma cidade evoluída, e acreditamos que ante os olhos atentos de Simões Lopes, ela deveria dar mais um passo à frente: o do civismo. Na verdade, vinha já recebendo os insuflares republicanos e abolicionistas desde os memoráveis tempos farroupilhas, idéias passadas no ardor dos nossos heróis, ou pelos sopros europeus, de Coimbra e Paris, através dos estudantes da elite econômica pelotense em em especializações no exterior. O civismo estava reservado no íntimo dos cidadãos, recessivo em todos os pelotenses, e, bastou o clamor de Simões para que ele aflorasse como resposta. Com os cumprimentos a todos, gostaria de agradecer a gentileza dos organizadores por terem se lembrarem-sedo da minha pessoa para falar sobre O civismo na vida e na obra de 145 João Simões Lopes Escritora e pesquisadora. 268 Neto, quando tenho apenas trabalhos feitos sobre a História de Pelotas, de modo geral, notadamente sobre o patrimônio arquitetônico pelotense, sem a especificidade de Simões Lopes Neto., Assime havendo tantos compondo uma legião de elite, de especialistas no assunto, crendo dever-se tal convite à generosidade dos organizadores deste simpósio, o que humildemente agradeço. Também gostaria de parabenizar a Universidade Católica de Pelotas pela criação, dentro de seu contexto educacional, de mais um Núcleo de Estudos Simonianos na cidade, o que vem somente somar, criando oportunidade de expansão sabedoria: do conhecimento da obra do escritor. Diz a que ―deva-se criar sempre mais entidades culturais: mais escolas, mais universidades, mais jornais, mais clubes literários, mais academias de letras‖, e eu diria ainda: mais centros de estudo como este, pois assim mais ―estaremos caminhando para a libertação cultural sem freios‖, palavras de Teófilo Galvão em seu livro: A educação como Processo de Libertação. E Simões Lopes Neto merece que lhe dediquemos sempre o extremo das nossas atenções Usando da honrosa oportunidade de participar deste Simpósio, iniciaria dizendo que João Simões Lopes Neto emprega em suas obras o senso telúrico, o amor acendrado às 269 coisas gaúchas, o que não deixa a menor dúvida, pois é esse senso telúrico e esse acendrado amor às coisas gaúchas que o caracterizam como escritor regionalista gaúcho, aliás, aquele que eternizou de maneira mais autêntica os aspectos regionais do Rio Grande do Sul através da literatura. Entretanto, há, na vida e na obra de João Simões Lopes Neto, dois pontos antagônicos que se sobressaem, ou sejam: o sentido rural e telúrico e o nacionalismo. Então, para falar em civismo na vida e na obra de João Simões Lopes Neto, fica um questionamento: O que lhe despertou a idéia do civismo? Que forças o fizeram atalhar mais uma vez, dos tantos atalhos que teve na vida, desde os empreendimentos com pequenas indústrias e empreitadas mal sucedidas, para entrar na ala da compreensão do ser humano que leva a conhecer e olhar a Pátria com o respeito que ela merece? Levado pelo sentimento ufanista nacional de seus contemporâneos Afonso Celso, Coelho Neto e Olavo Bilac, foi aliando ao espírito local o sentimento nacionalista. Esta é apenas uma conjectura minha. O civismo em João Simões Lopes Neto, então, se manifesta-se nas Conferências; em projetos de comemoração pública do 1 º Centenário da cidade; no apoio à criação da Revista do 1º Centenário da 270 cidade de Pelotas, na qual foi seu redator, pesquisador, editor, enfim, aquele que assumiu incondicionalmente sua publicação; no apoio e participação efetiva no Tiro de Guerra, fundado em Pelotas 9 de agosto de 1913; na publicação da Coleção Brasiliana, como fator de contribuição ao fortalecimento do amor pátrio, também na fundação da União Gaúcha, no cultuar do regional, pelo que representava na época, no resguardo das fronteiras brasileiras, serviço militar, educação, enfim, desenvolvimento nacional como um todo. É que ele, e aqui está apenas um aspecto de seu perfil psicológico, assume a posição de defensor das coisas pátrias, também por ver certo desprezo ao que é brasileiro e, ao contrário, por reconhecer valor nas coisas brasileiras, fato mais ou menos despercebido num tempo em que valia mais o europeu, vendo entristecido, diluídas, as preferências pelo nacional. Outro fator detectado, acredito, por ser simpático ao positivismo e à prática maçomn, haver ingressado na Guarda Nacional da Comarca de Pelotas (nomeado tenente em 1894), em fase inicial de organização, e o cargo de secretário da unidade. Teve, aí, por certo tempo, uma ―vida de caserna‖ onde assumiu o seu papel militar e, como tal, 271 enquadrou-se num civismo obrigatório e consciente. Diz Carlos Reverbel que o seu batalhão, o 3º Batalhão- ficou aquartelado em Pelotas, mesmo porque a sua missão precípua era guarnecer a praça. Como essa cidade não foi atacada, nem sequer ameaçada diretamente pelos maragatos, a unidade de João Simões Lopes Neto não chegou ―a sentir o cheiro da pólvora‖. É nesse batalhão que vemos João Simões Lopes Netonosso escritor empenhar-se numa campanha cívica, mesmo que antes tenha ridicularizado a Guarda Nacional, chegando a dizer o seguinte: ―Eu tive campos, vendi-os; freqüentei uma academia, não me formei; mas sem terras e sem diploma, continuo a ser...um capitão da guarda Nacional‖. (capitão por decreto em 1901). Em 1906 foi considerado- o evangelizador do civismo rio-grandense 146. João Simões Lopes Neto formou seus conceitos sobre civismo nas práticas de leituras, observações gerais, no Tiro de Guerra, ndos estudos para conferências e usou a imprensa e a ―Coleção Brasiliana‖ para transmitir aos seus patrícios os seus ensinamentos cívicos como meio de 146 Cf. Almanaque de Pelotas, 1918, p.166. 272 reavivar o sentimento pátrio que via tão enfraquecido. Simões Lopes Neto teve este despertar dez anos antes que Olavo Bilac encetasse sua campanha cívica no Brasil, principalmente motivando o serviço militar obrigatório e fundando a Liga de Defesa Nacional. Entendia ele que o sentimento local estava extinguindo o sentimento pátrio. E as causas disso, num país já naquele tempo, de multiplicidade cultural e étnica, devido àa grande extensão territorial, àas dificuldades de comunicação, àas distâncias, àas etnias, ao clima. A história, a geografia, os costumes, os tipos físicos, agrupavam indivíduos em suas regiões e fazia com que houvessem apenas cariocas, paulistas, paranaenses, cearenses, gaúchos etc., menos ou poucos, brasileiros. A unidade nacional estava sendo prejudicada e, o único remédio, segundo Simões Lopes, seria a ―Educação Cívica‖. Percebe-se uma tênue mas inicial atenção ao civismo em Simões Lopes Neto quando na segunda fase das Balas de Estalo, em 1889- ainda no jornal A pátria, ao incluir nos triolés a temática do cotidiano- política. Pelotas, motivada pela vários intelectuais que viviam em São Paulo, foi influenciada para a causa republicana e abolicionista. Centralizando uma reflexão sobre o início da carreira de João Simões Lopes vamos encontrá-lo na sua primeira 273 publicação, em 1888. NFoi no jornal A Pátria, que era de seu tio Ismael Simões Lopes, publicou de um poema em português a que deu o título Rève, em francês. Note-se que ele estudou no Colégio Francês de Aristides Guidoni, (tendo sido colega dos irmãos Gonçalves Chaves) . Mais tarde, vamos encontrar outro título em francês em uma das suas crônicas, série que fez no jornal A Pátria - O Rio Grande (à Vol d‘ Oiseau). Bem mais tardePosteriormente, ele iria se rebelar-se contra a preferência ao estrangeirismo. São sutilezas na vida do escritor que nos revelam, pouco a pouco, a trajetória do espírito norteador de toda uma campanha em favor do que é nosso. A própria fundação da União Gaúcha, - 09 de setembro de 1899- liderada por João Simões Lopes Neto, é um realce ao civismo. Embora mesmo que revivendo as tradições gaúchas no contexto nacional que, desde 1950 leva o nome do escritor. Foi na, tanto que é dentro da União Gaúcha que, em 7 de setembro de 1903, se criou-se o ―Tiro de Guerra 31‖, uma entidade eminentemente cívica, sob a presidência do Dr. Ildefonso Simões Lopes., em Nacuja ata de fundação, constavam as palavras: ―‖ Ligados pelo mesmo desejo de paz, porém deliberadamente solidários ante o culto cívico da integridade, da ordem e do progresso da Pátria, 274 resolvemos fundar e declaramos fundada a Sociedade de Tiro Brasileiro de Pelotas, sob os moldes e para os fins da ‖ Confederação do Tiro Brasileiro‖. Festivamente instalada em 12 de outubro daquele ano de 1908, ela iria desenvolver importante atividade cívica e ter o privilégio de possuir a primeira linha de tiro do Brasil. João Simões Lopes chegou a ser presidente da entidade e discursou algumas vezes em ocasiões especiais, na Biblioteca Pública, com muito ardor, indo repetir sua conferência-la, ampliada nas cidades de Bagé, São Gabriel, Santa Maria, Rio Grande e Porto Alegre, na Academia Rio-grandense de Letras. Acredito que foi aí neste aspecto que se concentra mais acendradamente o espírito de civismo em João Simões Lopes Neto. Poderia transcrever para os leitores algumas dessas conferêencias, mas é claro que não o farei para não cansá-los mas posso citar alguns trechos interessantes. Neles, lembrava os autores de livros que forneceram subsídios na sua formação cívica, como: Melo Moraes, Sílvio Romero, Rodrigo Otávio, Fagundes Varela, Manoel Bonfim e mais alguns mestres . Também fazia indicação de livros dizendo que todos os brasileiros os deviam conhecê-loser e estimar - 275 Por que me ufano de meu país, de Afonso Celso Júnior; Educação Nacional, de José Veríssimo. Barbosa Lessa, em seu livro Nativismo, comenta a leitura das conferências de Simões Lopes, da seguinte maneira: ―Dos ensinamentos colhidos na leitura das conferências proferidas pelo capitão Simões Lopes, aprendi dois mandamentos capitais: Se me é lícito comparar o livro dos livros – a Bíblia – com os ensinamentos assimilados da referida conferência, diria que são os seguintes: o primeiro – amai a Pátria sobre todas as coisas e o segundo semelhante a esta – é – sede de um espírito nacionalista inquebrantável , capaz de resistir a todas as procelas. Destes dois mandamentos dependem todas as leis e educadores‖. O nosso capitão, sobre o amor pátrio, na referida conferência, disse o seguinte: ―Mau patriota, desleal cidadão fora aquele que, não sei sob que falso pejo, entendesse menos amar à Pátria, dissimulando-se os erros, cuja emenda está exigindo sejam divulgados e conhecidos. Não! A pátria quer ser amada sem reservas, mesmo com os senões e faltas dos seus filhos e das suas instituições. As virtudes, os vícios de um país, não são senão os vícios e as virtudes de seus filhos. A pátria, essa, na sua figura ideal e amada, paira acima dos nossos erros e das 276 nossas paixões; e atacar a inópia dos que a constituem ainda é estremecê-la no final desejo de a ver não só objeto do nosso amor, mas fonte do nosso orgulho, pira do nosso entusiasmo. ―O sol que no alto do céu profundo, às vezes , se vela num manto de brumas, não deixa, por isso, descer o mesmo maravilhoso foco de luz, de vida e de calor. ―Assim, esta bendita Pátria predestinada a tão fecunda, como que em espontânea revolta, rompe contra as causas acidentais do entravamento e lampeja para o futuro fachos de intensa claridade, de esperança e de conforto. ―O amor àa Pátria alenta-se e vigora-se pelo conhecimento desse passado e do presente e da fé no seu futuro. ―O homem morre, as gerações se sucedem, mas a Pátria fica e sobrevive e segue avante, e mais e sempre, librada na saudade dos que tombaram e na aspiração dos que surgem‖. Sobre o espírito nacionalista proferiu ainda as seguintes palavras: ―Nenhum povo hoje pode ser grande, sem esse sentimento. Nenhuma nação pode ser forte, sem nele apoiar-se. É ele o mais sólido elo da nacionalidade e o mais forte estímulo dos cidadãos.‖ 277 Das causas, além daquelas às quais já nos referimos, tais sejam: diferenças climáticas, culturais, étnicas, existiam falhas nos livros de leitura que deveriam ser reformados,‖ cumpre que ele, o livro, seja brasileiro pelo assunto, pelos pontos reproduzidos, pela história, pela tradição, pelo sentimento nacional que o anime e faça estimar‖. ―Seria de inigualável triunfo o do escritor brasileiro, patriota e iluminado, que pudesse vencer o dificultoso problema de fazer um livro de leitura primário, adaptável e ajeitado a tão diversos meios de ser e de existir, no nosso país‖. Simões Lopes pronunciou a sua primeira conferencia sobre educação cívica, na Biblioteca Pública Pelotense, em 14 de julho de 1904. A mesma trazia como sub-título- Terra Gaúcha. ―Pois bem, no fim dos tempos, no turbilhão desencadeado das fatalidades, a nação, o povo brasileiro, tenha de aniquilar-se e perecer, seja nascido de ventre brasileiro, o último, filho, cidadão soldado, para lançar mão decidida do pavilhão auri-verde -sagrada imagem da pátria que se afunda, e nele envolto e nele amortalhado penetre os umbrais da eternidade, sem deixar ao vencedor mais que a 278 lembrança de um povo que sucumbe, mas não sobreviveu para o escárneo, nem a submissão. ―Mas até lá, que a terra do ― Cruzeiro‖, no cenáculo da pátria universal, possa repetir e sustentar o hino da plaga lusitana; que na tuba da fama, a voz do passado ressoe no futuro: que o verso camoneano, que foi epopéia para Portugal, seja profecia para o Brasil, sempre, quando e onde. Cesse tudo o que a antiga musa canta, que outro valor mais alto se levanta!‖ Um aspecto, nacionalismo, de levantado enfraquecimento por Simões do Lopes nosso de enfraquecimento do nosso nacionalismo foi a falta de culto às nossas tradições. ―Práticas e usanças estão sendo esquecidas‖, dizia ele. ―Hábitos de família, costumes tradicionais, características desprezadas, resvalam para um lamentável abandono. Estamos, sim, é falsificando, deturpados, pelo convencionalismo ingrato, intencionado por uma gravidade, doentia, de importação, mal encaminhada e mal havida‖. ‗Não temos cânticos patrióticos, nem sabemos cantar; ou trauteamos abrejeira cançoneta estrangeira ou enlanguecemos na serenata ao violão‖. 279 Assim ia ele, em suas conferências, denunciando, chamando atenção para aspectos até então ainda não observados. Além da precariedade do jornalismo da época, da legislação que mereceria reparos, criticando o Congresso, ; falou na deturpação das finalidades dos feriados nacionais e até reproduzimos algumas de suas palavras em referência: ―Enquanto outros povos festejam solene e ruidosamente as suas grandes datas nacionais,as nossas caem no olvido e no abandono; o povo vai-se tornando desinteressado na comemoração que elas lembram e numa embrulhada confusão de feriados e dias santos- só aproveitamos daí a folga de um dia ou meio dia de trabalho – para ir à pesca ou ao bilhar. O nosso país ée o país dos feriados (já naquele tempo! observação nossa), os dias úteis minguam, sem ainda haver estabelecido conduta geral neste sentido. Se um grupo de patriotas mantém e proclama a necessidade das comemorações cívicas e as realiza, no dia em que delas não cuida, de outra parte não lhe vem o incentivo. Ainda não instituímos as grandes festas públicas, como as manobras militares e as civis de ginástica, de tiro, de remo, a coincidir com as nossas datas nacionais, a fim de radicá-las ao ânimo e ligar a sua tradição a esses grandes 280 espetáculos, que devem ser como escolas populares, por exemplo. ―O nosso 21 de abril, o 7 de setembro, o 15 de novembro, se diluem na memória do povo e não é a ingratidão que isso faz: é a falta de educação cívica‖. Recordar é viver, e o povo que fecha o coração e a memória à relembrança das suas grandes datas históricas- é digno de lástima‖. Simões comenta também as falhas cometidas durante a execução do Hino Nacional, o respeito aos monumentos, enquadrando- as como falta de civismo. As conferências cívicas de João Simões Lopes Neto tinham como objetivo a denúncia de que a unidade nacional estava ameaçada e ―começou a extinguir, com seu brado, a onda de desânimo que pelo país afora avassalava as almas‖. Ele apontou as causas e indicou o remédio para debelar o mal. Com referência à Revista do Centenário que, como dissemos, foi criada numa reunião de diretoria na Biblioteca Pública, no ano de 1911, onde se propunha-se a confecção edição de um livro com o qual se comemorasse o Centenário da cidade. e que Mas, pelo exíguo tempo, optou-se por fazerpela publicação de uma revista. Simões Lopes assumiu, 281 incondicionalmente, a sua execuçãoelaboração. Foi ele o pesquisador e o captador de recursos, quer dizer, o publicitário. Imprimiu Despertou tanto entusiasmo que ela foi publicadasaiu, mesmo com os maiores sacrifícios, num projeto ousado, onde eleem que foi seu organizador e editor. O centenário da cidade somente aconteceria ano seguinte. Simões Lopes escreve oito números, sendo que os números sete sai acoplado aoe número oito saem acoplados. A explicação vem com a desculpa verdadeira de que os dois números haviam saído com atraso, depois da comemoração em 1912, devido a uma doença comde demorada convalescença de que ele havia sido acometido. Ele já andava doente e pouco de vida lhe restaria a partir dali, fato não percebido pelos íntimos. A revista Centenária é, entretanto, o seu primeiro projeto jornalístico. Um projeto ousado que, tendo surgidou em 1912, quando a mente de Simões Lopes, impregnada de entusiasmo, apresentou-afê-la como medida preparatória às comemorações ao 1 º Centenário da cidade. Com acendrado amor às nossas tradições e denodo dedicação às coisas nacionais, também amor a cidade natal. 282 É nesse clima que ele se revela-se, segundo palavras de seu amigo Pinto da Rocha‖ a alma e o movimento, e em torno de seu nome, girou o espírito local‖. Pelotas chegara ao seu centenário como cidade progressista- comércio e indústria bastante desenvolvidos, imprensa atuante (sete jornais diários em circulação), nomes ilustres na comunidade. João Simões Lopes Neto pretendeu publicar um livro para a impressão da obra em homenagem à cidade centenária. ―E, para não mostrar-se alheio à comemoração que agitara, que prometera, sobre a criação da freguesia de São Francisco de Paula, teve de limitar-se à publicação de uma revista efêmera, de pouco alcance, que, com custoapesar de muito gasto e por poucos meses, pode, atabalhoadamente, agüentar sobre os ombros. E não fez o que queria e era capaz de fazer‖. Uma coisa lhe assomou promissora: a criação da Semana Centenária, que seria comemorada anualmente. Da Revista Centenária, foi o seu redator, e organizador , e seu publicitário, o que. Cconseguiu contratar a propaganda para sua edição. Assumiu a tarefa sozinho. Já nesta data, o escritor encontra-se empobrecido, morando na casa do cunhado e ingressa apenas como redator remunerado do jornal A Opinião Pública. 283 Os festejos do centenário da cidade são realizados depois de uma conclamação bombástica pelo jornal Opinião Pública, no qual chama estudantes a participar de maneira alegre. Mas ele se encontra uma pessoa em declínio físico e desiludido. Nas crônicas da época, percebe-se um Simões amargurado, lutando com sacrifico para fazer publicar seus artigos no jornal diariamente. Ainda prepara a Semana Centenária que ele não quer deixar morrer. No Opinião Pública, publica Os Casos do Romualdo. No fim da vida, em 1913, volta ao Correio Mercantil, desta vez como diretor, uma oportunidade que merecia, mas um pouco tarde. Iria publicar editoriais magníficos( mantém editoriaismantidos com a missão de sustentar a candidatura de Ramiro Barcellos); mantém conserva a coluna literária e artística, aos domingos, transformando o jornal Correio Mercantil num grande jornal. Termina o ciclo no Correio Mercantil em 1915. Retorna ao jornal Opinião Pública, como um simples redator e ainda produz a coluna – Temas Gastos, em que retrata a sua fase decadente, pois Simões se achava -se muito doente. Em 14 de junho de 1916 vem a falecer de úlcera. VBem, voltando aos preparativos para asàs comemorações da Centenária, lemos nas páginas do jornal 284 Opinião Pública a conclamação feita pelo jornal mesmo é realmente eivada de entusiasmo, incitante, que realmente contagiou a todos:‖ Pelotas é, atualmente, o segundo centro didático do estado. Aqui já é numerosa a corte de estudantes. Mantém cinco escolas superiores; a de Agronomia e Veterinária; a de Comércio; a de Odontologia, a de Farmácia; a de Agrimensura, estando em organização a de Direito; dos ginásios, Gonzaga e Pelotense, cursos secundários em vários institutos e colégios; escolas primárias públicas e particulares, em muitas dezenas; tem todas as aulas, o elemento feminino tem comparecido a disputar a competência técnica. Entre vós, oradores, poetas, quem desenha...‖ Assim ia ele impondo entusiasmo às comemorações, inflamando a juventude a festejar o centenário da cidade. Na Revista d‘O 1º Centenário de Pelotas, Simões Lopes Neto pode colocar todo seu sentimento cívico fazendo chamamento aos estudantes para os festejos, principalmente, as bandas de música e até comprometendo as confeitarias que já naquela época, em 1911, eram numerosas. Imaginou ele estender uma enorme mesa de doces em frente à Prefeitura, num comprimento de cem metros e ali colocar doces recolhidos por estudantes nas casas comerciais do 285 ramo, em tons de humor sadio, bem ao gosto da época, com sugestões de visitas ao intendente, às redações dos jornais. ―A postos, estudantada! A Centenária está aí! Que se nomeie comissões. Essa comissão, de gravata flamante, flor ao peito e cartolas...fósseis, vai aos jornais: no Diário Popular, engrossa o Cunha Ramos e o Paradeda; no Correio Mercantil, pega no bico do Souza Lobo e do Caldas; na Tribuna, chalereia o Manoel Veríssimo, o Demerval; na A Redação, acha bonito o Trebi e elegante o Fróis; aqui na Opinião Pública, diz que o Gomes da Silva tem estatura de Adamastor, o Vilarinho a força de Sanção; e ainda no O Arauto, compara-o ao Times...e na A Cavação,com todo o caradurismo, jura que o faeton do Carlitos é mesmo muito sinart... E, no meio de toda essa conversa fiada, a comissão vai atirando barro à parede, isto é, pedindo auxilio de letra de forma, uns pós de boa vontade, umas pitadas de bom humor‖. Assim, segue-se a conclamação ainda sugerindo cortejos e paradas em lugares próprios e discursos, merenda coletiva ao longo da praça e uma grande polonese que terminaria no átrio da Biblioteca Pública Pelotense. Uma autêntica festa pública, sem a organização governamental, encabeçada por um idealista e cultor do amor às suas raízes, ao chão citadino e realizada pelo povo ordeiro, contagiado 286 pelo entusiasmo de um civismo que brotava pelo fervor de um intelectual. A Revista d‘O 1º Centenário de Pelotas foi um marco importante para o conhecimento de nossas origens, participando com ela, do sentimento de amor á pátria. Na revista constam dados sobre Pelotas- origens, vultos ilustres, acontecimentos importantes, economia, charqueadas, comércio, indústria, trabalhos de pesquisa sobre Canguçu, edilidade, curiosidades históricas etc. Com ela, favoreceu ao conhecimento, ao culto de nossa história e dos valores locais. Um dos empreendimentos que mais evidenciam os propósitos cívicos de João Simões Lopes Neto, é a criação da ―Coleção Brasiliana‖ de cartões postais, feita para transmitir aos seus patrícios os seus ensinamentos cívicos com a finalidade de reavivar o sentimento nacionalista que julgava enfraquecidos. Tendo sido um autodidata na formação cívica, valeu-se do Tiro Brasileiro 31, das conferencias na Biblioteca Pública e da coleção de cartões para difundir o sentimento cívico. A sua contribuição para o fortalecimento do amor pátrio na coleção de cartões, foi notável e é, até hoje, para quem pode guardar. Retorna ao jornal Opinião Pública como um simples redator e ainda produz a coluna 287 –Temas Gastos, que retrata a sua fase decadente, pois Simões se achava-se muito doente e, em 1916, vem a falecer de úlcera. Tendo sido um autodidata na formação cívica, valeu-se do Tiro Brasileiro 31, das conferencias na Biblioteca Pública e da coleção de cartões para difundir o sentimento cívico. A sua contribuição para o fortalecimento do amor pátrio na coleção de cartões, foi notável e é até hoje, para quem pode guardar ou colecionar, pois representa um patrimônio do conhecimento. Seriam 12 séries de 25 cartões postais cada série, todos eles com motivos nacionais, um autêntico manual que vulgariza fatos brasileiros. Somente duas séries vieram á lume, confeccionadas na litografia do artista gráfico francês, estabelecido em Pelotas, Eduardo Chapon, o mesmo que imprimiu a revista A Ventarola. A qualidade gráfica impressiona pela perfeição de linhas e cores. Um cabeçalho diz: ―Colleção Brasiliana de vulgarização de fastos da história nacional- em 12 séries de 25 gravuras- realizada por João Simões Lopes Neto‖. Estes dizeres se encontram-se no frontispício do cartão, dispostos em duas faixas que se entrecruzam. Na primeira série, bandeiras nacionais, brasão da República, selos, moedas, notas, medalhas, comendas, topes cívicos, toques de 288 clarinetas militares com pautas musicais, foto do obelisco à república no Areal, espadas, detalhes de cabo de espadas, com seus significados. Na segunda série, gravuras de escravos, índios, fotos de pinturas da 1 ª Missa no Brasil; Grito do Ipiranga; monumentos, etc. Sobre a importância da ―Coleção Brasiliana‖, assim constou do catálogo da Livraria Americana em Pelotas: ―O assunto da ―Coleção Brasiliana‖ é todo nacional e, portanto, patriótico. Dá cópia fiel dos emblemas da soberania nacional, de todos os monumentos públicos, estátuas, etc. e reprodução de quadros célebres de combates e de atos solenes notáveis, desde a época colonial até os nossos dias, túmulos, grandes invenções, obras de arte, objetos, lugares, documentos, cenas históricas, tudo explicado de formaem notícia concisa e clara. Nenhuma coleção neste gênero existe no país, nos próprios livros de instrução pública não se encontram ilustrações da ― Coleção Brasiliana‖, algumas das quais são absolutamente inéditas e documentais. Quem manusear esta coleção verá e aprenderá coisas que desconhecia, e outras de que formava idéia errônea e terá uma verdadeira lição de educação cívica‖. Conclusão 289 Pelo que dissemos, e pelo que ainda muito se dirá num trabalho mais profundo que não este, limitado para vinte minutos de exposição, Simões Lopes Neto foi um grande pesquisador, pelo observado nas fontes de dados buscadoscolhidos, além de grande cultor das tradições gaúchas- linguajar, vestimenta, natureza, enfim, usos e costumes regionais. N; como no uso de expressiva linguagem literária, notabilizando-se como dos maiores escritores brasileiros, além de tantas manifestações culturais, era possuidor de grande sentimento cívico que pretendeu passar aos seus contemporâneos e pósteros, nas formas expostas aqui. Agradeço a oportunidade de conviver com os ilustres companheiros neste Simpósio, e agradeço a paciência do auditório, escutando sobre um tema nada poético, que até fugiu um pouco do assunto central do Simpósio, mas foi escolhido pelos seus organizadores, e procurei me desincumbir de maneira a agradá-los, não sei se consegui, mas foi feito com esse objetivo. 290 Referências Bibliográficas: MOREIRA, Ângelo Pires. A outra face de João Simões Lopes Neto. 1v. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983. _____________________. O civismo e o espírito militar na obra de João Simões Lopes Neto. Pelotas: UFPEL, 1999. REVERBEL, Carlos. Um capitão da Guarda Nacional. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981. HOHLFELDT, Antônio. João Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Ed. Tchê, 1985. LESSA, Barbosa. Nativismo. Porto Alegre: L&PM, 1985. LOPES NETO, João Simões. Revista do 1º Centenário de Pelotas. Editada mensalmente de outubro de 1911 a maio de 1912. Saíram oito números, sendo os dois últimos aglutinados. LOPES NETO, João Simões. Educação Cívica. Conferências. Pelotas: Anais da Biblioteca Pública, 1904. 291 SÍNTESE CONCLUSIVA DO SIMPÓSIO Mário Mattos147 I Nestes três dias, nos defrontamos-nos com um variado e atrativo elenco de palestrantes. No dia 4, com apresentação de Paula Mascarenhas, o palestrante Luís Augusto Fischer descerrou rico panorama de quesitos polêmicos e, por isso mesmo, instigantes sobre a carreira literária de João Simões Lopes Neto e suas repercussões na literatura gaúcha e brasileira. Nas comunicações, com a coordenação de Ivone Leda do Amaral, Eduardo Arriada revelou aspetos inéditos de pesquisa histórica das Lendas do Sul, especialmente A Salamanca do Jarau e O Negrinho do Pastoreio. Pelo Grupo de Pesquisa Simoniana da UCPEL e discorrendo sobre Hermenêuticas filosóficas da lenda A Salamanca do Jarau, atuaram: Eduardo de Oliveira, que analisou as transgressões éticas dos personagens Blau e Santão e subseqüente reconstrução de identidades. Mauro Henrique Martins, que estabeleceu paralelo entre 147 a Caverna em A Escritor e Coordenador do Núcleo de Estudos Simonianos do IHGPEL. 292 República de Platão e a furna da Salamanca, caracterizando a travessia como processo de autoconhecimento. Blau e Santão, com projetos inicialmente ambíguos vão até a solução das crises de identidade, em que Teiniaguá intervém como agente de ruptura. E, finalmente, Peterson Pedro de Figueiredo, que lançou olhar histórico sobre a lenda, fundamentando a relação entre a crise de Blau e a situação econômico-financeira do Rio Grande no começo do século XX. No dia 5, com apresentação de Jandir João Zanotelli, o palestrante Agemir Bavaresco em sua Análise Filosófica da Salamanca do Jarau, interpretou com ineditismo os arquétipos significativos dos personagens e seus destinos na travessia da caverna e demais episódios . Observou que Simões numa leitura plural, desconstrói imagens - a ocidental, do herói e a colonial, da mulher - tendendo a fundamentar uma cultura gaúcha de hibridismo latino-americano, com a marca ética da Resistência Autônoma. Nas comunicações, com a coordenação de Carla Gastaud, Luís Borges comparou Natal na barca de Lígia Fagundes Teles a O Menininho do Presépio, de J. S. Lopes Neto. Defendeu a validade do recurso ao milagre, na 293 literatura de ficção, quando subordinado à sugestão de sentimentos humanistas, como o amor. No dia 6, com apresentação de Hilda Simões Lopes, a palestrante Cláudia Antunes em O Reconhecimento em Vida de J. S. Lopes, revelou as pesquisas feitas em fontes primárias. Inicialmente buscara apurar o modo como Simões escrevia. Depois, em decorrência da necessidade de medir a recepção obtida por suas obras, foi levada a relacionar também aspetos da fortuna crítica do escritor. Pesquisa ainda em aberto e de singular interesse. Nas comunicações, com a coordenação de Civismo e a Álvaro Barcelos, Zênia de Leon, em Revista do Centenário de Pelotas, leu compilação feita sobre as preocupações cívicas de Simões Lopes, concluindo que as mesmas denotam patriotismo, não necessariamente espírito militar. Oscar Brisolara, em Análise discursiva da Salamanca do Jarau de J.S. Lopes Neto, buscou relacionar arquétipos da mitologia grega, vendo na lenda de Simões Lopes, situações análogas, que sugeririam um lastro comum ancestral, a condicionar subconscientemente a inspiração do autor. 294 II Com o presente Simpósio, o Grupo de Pesquisa Simoniano inicia um rico e vigoroso diálogo de interatividade entre Filosofia e Literatura. Embora sejam dois discursos diferentes, Filosofia e Literatura têm muito a ver entre si como disciplinas. Ao aproximar-se da Literatura, a Filosofia dá um chão firme à sua especulação. Por outro lado, a procura da verdade simbólica e psicológica nos personagens e nas situações, contribui para a revitalização da criação literária. O dia a dia trazido pelas imagens e notícias da TV, atesta uma angustiante demanda à filosofia: por exemplo, os crimes chocantes, abalando a estrutura familiar, cujas causas não se esgotam na toxicomania. Tais problemas não serão respondidos apenas com debates na TV, onde o próprio público, ao apoiar a pena de morte, evidencia enquadrar-se na psique de uma sociedade doente, ou no mínimo, despreparada para debater em alto nível. É aí que Literatura e Filosofia precisam dar-se as mãos. Recentemente, li na Folha de São Paulo, artigo mostrando que a literatura européia e, particularmente, a alemã do após guerra, insiste com sucesso na tecla de exorcizar a irracionalidade como 295 principal responsável pela exacerbação da violência humana. No século 19, Dostoievski, com seu personagem, o estudante Raskolnikov, já abordava em Crime e Castigo a situação limite do assassínio. A verdade psicológica do personagem nos valeu por tratados de interpretação filosófica. Como coordenador do Núcleo de Estudos Simonianos do IHGPEL, saúdo a feliz iniciativa do Instituto Superior de Filosofia em criar de forma autônoma e original, este Grupo de Pesquisa para estudar um autor como o pelotense João Simões Lopes Neto, cujo projeto literário, ao lado da excepcional linguagem poética, tem o arrojo de entrar nas furnas da alma e nas situações limite das paixões humanas, dando-nos a chave para chegar mais perto do entendimento, até de fatos da realidade presente. Nossa época está necessitada de novos personagens e novas obras literárias de profundidade. Quem sabe ainda teremos novos escritores, de formação filosófica? Não podemos deixar de mencionar a valorização do evento pelas contribuições de cunho artístico: No dia 4, a apresentação teatral do grupo Tribo da Lua, encenou trecho inicial da Salamanca do Jarau, que nos deixou funda impressão pela autenticidade e talento da interpretação. A 296 exposição de história em quadrinhos do artista plástico Saulo Morales, com esplêndidos desenhos da Salamanca do Jarau no recinto do evento. No dia 5, a declamação por Mário Mattos do poema Jarau de Nós Outros, com acompanhamento ao violão do acad. Fernando Luís Gallo. No dia 6, o número musical a cargo de Fernando Luis Gallo e seus companheiros; e as originais estatuetas da Teiniaguá, concepção do arquiteto Serafim Pinho Dias, e execução pelo arquiteto Cláudio Pinto Nunes, através da maquetaria da UCPEL. Com humildade, mas justo orgulho de seu pioneirismo de quase 8 anos – atividade regular desde o começo de 1995, com dois Seminários realizados, em 1996 e 2000 – O Núcleo de Estudos Simonianos do IHGPEL congratula-se com o grupo co-irmão da UCPEL, cujos frutos podemos verificar nas pertinentes comunicações acima resumidas e, principalmente, no todo deste histórico evento. Fazemos votos de que, na esteira do exemplo, surjam novos e novos círculos de leitura simoniana, nas instituições artísticas, culturais e educacionais de nossa Pelotas. 297 ANEXO - PROGRAMA DO SIMPÓSIO SIMONIANO LENDAS DO SUL Data: 04,05 e 06 de dezembro de 2002 Local: Campus I da UCPEL - Sala-auditório 406C Local de Inscrições: Livraria MONQUELAT Rua Gen. Telles, 558 - Fone 225 15 14 (Horário comercial) Dia 04 (quarta-feira) - 19h. - Apresentação: Fragmento da montagem da Salamanca do Jarau (Grupo Teatral Tribo da Lua/Pelotas) -19h20min. - Abertura oficial -19h30min. - Palestra: Lendas do Sul - Prof. Dr. Luis Augusto Fischer (UFRGS) -Apresentadora: Profa. Paula Mascarenhas (Instituto J. S. Lopes Neto) -20h30min.- Debate e- Intervalo -21h - Comunicações: -Prof. Ms. Eduardo Arriada (FAE/UFPEL): Aspectos históricos das Lendas do Sul; -Acad. Eduardo Santos Oliveira, Acad. Mauro Martins, Acad. Peterson Figueiredo (Grupo de pesquisa simoniano da UCPEL): Hermenêuticas filosóficas da lenda A Salamanca do Jarau de J. S. Lopes Neto -Coordenadora - Profa. Ms. Ivone Leda do Amaral (IHGPEL/NES) -22h15min. - Encerramento 298 Formatados: Marcadores e numeração Dia 05 (quinta-feira) -19h - Programa artístico: Declamação poesia Escritor Formatados: Marcadores e numeração Mário B. de Mattos -19h20min - Palestra: Prof. Dr. Agemir Bavaresco (Grupo Pesquisa Simoniano /UCPEL) - Análise filosófica da Salamanca do Jarau -Apresentador: Prof. Dr. Jandir J. Zanotelli (Academia Sul-brasileira de Letras) -20h20min. - Debate e- Intervalo -20h45min. - Comunicações: -Prof. Carlos F. Sica Diniz (Pesquisador): Novos aspectos biográficos de J. S. Lopes Neto -Prof. Ms. Luis Borges(GPS/UCPEL): O milagre do Natal em Lygia Fagundes Telles e J. S. Lopes Neto -Coordenadora - Profa. Dra. Renata Requião (Secretária Municipal de Cultura/Pelotas) -22h15min. - Encerramento Dia 06 (sexta-feira) 19h - Programa artístico: Músico Acad. Luís Fernando Gallo -19h20min. - Palestra: Dnda. Cláudia Antunes (PUCRS) Reconhecimento em vida de J.S. Lopes Neto 299 Formatados: Marcadores e numeração -Apresentadora: Profa. Hilda Simões Lopes (Instituto J. S. Lopes Neto) -20h20min. - Debate e Intervalo -20h45min - Comunicações: -Pesquisadora Zênia de Leon (Academia Pelotense de Letras): Civismo e a Revista do Centenário de Pelotas -Prof. Drndo. Oscar Brisolara (UCPEL): Análise discursiva da Salamanca do Jarau de J. S. Lopes Neto -Coordenador: Prof. Álvaro Barcellos (Soc. Mário Quintana de Poesia) -22h. - Encerramento oficial e síntese conclusiva: Escritor Mário Barboza de Mattos (IHGPEL/NES) - 300 - 301