livro final - ESEN Viseu
Transcrição
livro final - ESEN Viseu
Escola Secundária de Emídio Navarro - Viseu Percurso Aquiliniano 24 de Maio de 2008 Ficha Técnica Título: Percurso Aquiliniano (Maio de 2008) Projecto: Estudantes do 11º Y (Ensino Secundário Recorrente) Paginação e Concepção gráfica: Paulo Toipa Coordenação: Jerónimo Costa e Jorge Bento Ilustrações: António Borges, Braga da Costa, Leal da Câmara, Júlio Pomar e Pedro Albuquerque Fixação de Texto: J. Costa e Paulo Toipa Revisão: Jerónimo Costa Impressão e acabamentos: EdenGráfico S.A. Patrocínios: Câmara Municipal de Viseu Câmara Municipal de Sernancelhe Colaboração: Escola Secundária de Emídio Navarro Prefácio Este é um trabalho final da disciplina de Geografia, com o expresso contributo das restantes disciplinas. É efectivamente uma oportunidade para introduzir os conhecimentos num trabalho que foque uma realidade e evite aquilo que é mais comum e generalizado. Assim procurou-se uma temática que além de cumprir objectivos da disciplina de Geografia e o âmbito do “ Estudo de Caso”, pudesse de alguma forma ser partilhado por toda a comunidade escolar. Foi assim, e neste pressuposto, que nos surge o “Percurso Aquiliniano”, uma jornada, um itinerário, uma construção, um enriquecimento, enfim. Digamos que este “percurso” pode ser uma proposta e uma abertura para que outros percursos se possam realizar ou inventar. Este pretende trazer aos participantes um conhecimento ou uma proximidade maior com um dos escritores portugueses mais ilustres, e porque tão próximo permite esta “viagem” pelo seu imaginário / real. Vamos procurar as fragas, os montes, as plantas, os animais, as pessoas, os cheiros, os sabores, e muito mais. Se no final da viagem ficarem com vontade de ler ou reler Aquilino Ribeiro estão cumpridos os nossos objectivos. António Jorge Bento Revisitar Aquilino A turma Y do 11.º ano do ensino recorrente vai fazer uma visita de estudo às Terras do Demo e sentir o saber, os sabores e os ambientes peculiares de Mestre Aquilino, exímio cultor do idioma pátrio e vulto insigne do luso panteão literário. A visita de estudo é também pretexto mobilizador para este grupo de trabalhadores-estudantes e seus professores se envolverem na concretização do projecto pluridisciplinar da elaboração do “Roteiro Aquiliniano” corporizado no opúsculo agora dado à estampa. O repositório dos textos publicados é prova da expressiva adesão e louvável cumplicidade que este projecto de complemento curricular suscitou nos docentes e discentes. Da viagem ficarão as vivências, o convívio e a recordação do mundo real e ficcional aquilinianos… O opúsculo é a memória revisitada sempre que a saudade e a evocação sejam mais fortes e instiguem o caminheiro a fazer nova viagem…na imaginação! Como docente e presidente do Conselho Executivo associo-me à iniciativa e exprimo o regozijo de constatar que entre a comunidade escolar da Secundária de Emídio Navarro grassa a vontade de fazer frutificar o germe da cultura e de difundir um património cultural e literário que notabiliza a nossa história, literatura e identidade. António Cabral Presidente do Conselho Executivo Do espaço físico... Um percurso pressupõe um roteiro. O nosso foi feito, refeito, "trefeito", e chegou à sua versão final. Como é evidente, pode ir-se aqui, conhecer-se este ou aquele lugar, mas concerteza, para visitar um imaginário Aquiliniano, há pontos fundamentais a saber: 1- Soutosa - Lugar imprescindível. É aqui que Aquilino passa e escreve grande parte da sua obra. A sua casa é o seu Mundo. É aqui ao pé de Barrelas que o escritor passa uma parte significativa da sua vida. 2- Sernancelhe - É o lugar onde tudo começa e o lugar onde parecem desenrolar-se uma boa parte dos enredos de Aquilino. São os soitos, as fragas, as trutas do rio, os bichos, as gentes do imaginário Aquiliniano. Não se pode falar de Aquilino Ribeiro sem falar em Sernancelhe, das suas gentes e da sua paisagem. Tudo aqui nos faz lembrar o escritor e o seu imaginário. 3- Sr.ª da Lapa - Um lugar essencial. Ele é para o escritor lugar de juventude, de escola, de crescimento e educação, bem documentado da sua vida e obra que não pode ser ignorado. Por isso vamos visitar a Feira Aquiliniana e tentar ver hoje aquilo a que Aquilino poderia ter assistido aquando da sua permanência no Colégio da Lapa. 4- Lamego - Por aqui andou Aquilino Ribeiro (estudante) e por aqui andou também uma boa parte das suas personagens e decorreram alguns dos seus enredos. Lamego é ponto importante e lugar a visitar. 5- Viseu - É lugar de partida e lugar de chegada do nosso roteiro. Há muito de Viseu na obra de Aquilino Ribeiro, é, concerteza, um lugar de grande importância na sua vida. Aqui viveu na juventude; aqui viveu quando regressou do segundo exílio e por aqui passou em várias e fiéis tertúlias. Aqui preservou os amigos, também seus admiradores que o consideravam um mestre e se ufanavam da sua grandiosa obra. * * * Roteiro Lamego N Sernancelhe Soutosa Sr.ª da Lapa Viseu Escala 1:600000 ...ao espaço literário Casa de Aquilino Ribeiro - Soutosa Os veros habitantes da aldeia figuram nas páginas dos meus romances, retocados ou em carne viva, descritos parcialmente ou na integra, debaixo de uma mascarilha. Os próprios - já tive a prova - reconhecem-se no leve farricoco. Não vale a pena, pois, levar o seu retrato ou água-forte mais longe ou reescrever a crónica dos seus feitos. Esta rememoração é apenas mais objectiva e concentrada. Porque os trago agora à colação? Porque estou sozinho a representar e a minha vilegiatura na aldeia foi mais que um monólogo. Contracenam comigo. Quando me vim embora, trazia a aldeia nos poros, no sangue e no cérebro. Um Escritor Confessa-se Lembro-me dos feijões vermelhos com presunto que me dava em sua casa, à volta destas batidas de 5 léguas, mais saborosos que caviar.Um dia caímos em casa do Lucas dos Alhais, pai deste douto Manuel da Gama, que tinha uma boa voz de tiple e como tal tomava parte nos ofícios de corpo presente e missas cantadas, ganhando os honorários dos padres. Comemos-lhe um frango com arroz - delicia das delicias! - e meio presunto que teve a santa inocência de nos pôr em frente, julgando-nos refartos. * * * Geografia Sentimental Comeram-lhe à tripa forra carniça refogada, cozida, assada, de porco, de vaca, de chibato, carniça para todos os paladares. 0 arroz estava de se trocar por um prato dele a imortalidade, o cabrito, rechinado no espeto e picadinho do sal, até fazia cócegas no céu da boca. Quem bem come bem bebe, acabaram a janta enfrascados e lerdos como patos na engorda. Terras do Demo O castelo bronco, de panos cerrado derramava sobre Lamego a poeira nebulosa dum crónicon. A crista de ameias esboroava, sorvada dos sóis e dos invernos; e, sobre a manta de farrapos do casario, dava a impressão dum sólido esqueleto de Hércules, inteiriçado Colégio Roseira ( Lamego) à flor da terra, em jeito de reptar. Torva, sua fisionomia falava; falava ao Pátio dos Reis, ao torreão da catedral e dizia-lhes: passaremos! Toda a cidade me dava, melancolicamente, a sensação de ser conduzida pelo frenesi da morte! Logo à entrada de portas, para quem apeia de Moimenta, uma calçada arrastava pela ladeira acima cordões de casas em ripas, corcovadas, esguias, cheias de remendos e de cor. Nos caixilhos, rolhos de farrapos paravam há dezenas de anos o gume dos invernos. Rapazotes, de verga ao léu, chafurdavam em torno do pego que ali forma o Balsemão. Mulheres espiolhavam-se umas às outras na soleira das portas. Todo o bairro da Ponte me parecia uma judiaria antiga, onde cheirava ao pão ázimo dos sábados. A partir de S. Lázaro, as casas de taipa entremeavam com residências solarengas, de granito. Eu achava-lhes uma grande nobreza nas pedras trabalhadas à escoda e nos brasões de linhagem extinta. Meu mestre disse-me um dia que viera à cidade: - Já reparaste, Libório, no luxo opulento de cantaria que há nestas portas e nestas janelas? Mormente nas janelas? Não é verdade que se diriam pequenos arcos de triunfo por onde passa, amiúde, um hospede real? Via Sinuosa O Malhadinhas visto, no seu traço indelével, por Aquilino Ribeiro D Pedro Albuquerque ANADO aquele Malhadinhas de Barrelas, homem sobre o meanho, reles de figura, voz tão untuosa e tal ar de sisudez que nem o próprio Demo o julgaria capaz de, por um nonada, crivar à naifa o abdómen dum cristão. Desciam-lhe umas farripas ralas, em guisa de suíças, à borda das orelhas pequeninas e carnudas como cascas de noz; trajava j ale ca curta de montanhaque; sapato de tromba erguida; faixa preta de seis voltas a aparar as volutas dobradas da corrente de muita prata—e, Aveiro vai, Aveiro vem, no ofício de almocreve, os olhos sempre frios mas sem malícia, apenas as mandíbulas de dogue a atraiçoar o bom-serás, as suas façanhas deixaram eco por toda aquela corda de povos que anos e anos recorreu. Na velhice, o negócio tilintado através de gerações, as andanças de recoveiro, o ver e aturar mundo, tinham-no provido de lábia muito pitoresca, levemente impregnada dum egoísmo pândego e glorioso. Nas tardes de feira, sentado da banda de fora do Guilhermino, ou num dos poiais de pedra, donde já tivessem erguido as belfurinhas, alegre do verdeal, desbocava-se a desfiar a sua crónica perante escrivães da vila e manatas, e eu tinha a impressão de ouvir a gesta bárbara e forte dum Portugal que morreu. [Bertrand, ed. de 1987 p.11 ] Razões de uma escolha O Malhadinhas é, pelos seus condimentos, a obra mais conhecida de Aquilino Ribeiro. São dele as breves palavras, colhidas em Manuel Mendes (Aquilino Ribeiro, A Obra e o Homem, pp 79 e 80, Arcádia, Lisboa, 1960), de apresentação: Trata-se da vida dum almocreve, contada por ele próprio, pitoresca e variada, salvo seja, como a vida de Fernão Mendes Pinto. O almocreve conta, mas os episódios e as cenas vão-se projectando no écran sob a forma mais objectiva e circunstancial, de modo que o monólogo torna-se um rio de acção, acção rápida, dinâmica e realista. Em realidade, o que perpassa por debaixo do franco falar do Malhadinhas é a velha terra de Barrelas com as suas bisbilhotices, os seus amores lícitos e ilícitos, as suas cenas de cupidez e valentia, sangue e arraial […] Um dos mais expressivos capítulos é, sem dúvida, o V. Com objectivos meramente didácticos e divulgativos, a sua reprodução, aqui, tem ainda o ofício de espevitar o apetite para a leitura integral da obra. * * * O MALHADINHAS ,, S capítulo V OMBRA negra na minha vida era ora e sempre o Tenente da Cruz, que havia jurado tirar-me o chiadouro depois que empalmei Brízida ao pai, pela qual se chorava ainda de morte. Mais de ano que os meus caminhos andavam desencontrados de semelhante piranga. Por mor duma briga em que se envolvera e de que resultara homem morto, tivera de largar à revelia, e por lá andou muito tempo a pontos de ninguém mais falar nele. Vai senão quando apareceu um sábado na feira de Barrelas, mais farsola que nunca, montado numa égua pimpona. Teve bons padrinhos o safado, como não podia deixar de ser, porque, além de rico e poder abafar a Justiça com gordas peitas, nunca perderam a simpatia dos fidalgos, ia dizer de nós todos, estes corredores de valentia e arruaça. Matam e perdoa-se-lhes se foram destemidos a matar. Enfim, fosse como fosse, o ladrão voltou à praça e eu, muito às escondidas da Brízida, pus-me a afiar a faquinha. Fiquei com pulga na orelha e bem haja eu. Mais de um que me dizia, se acertava confessar meus receios: —O Tenente da Cruz assentou; está homem cordo. Tem o casamento tratado com a morgada da Silva. —A ver vamos. Não me toque ele, que eu não lhe toco. Ora?! Vai-se para o mercado de S. Francisco que se faz no tempo do mosto à sombra do convento da Ordem Terceira, de que há vinte anos sou irmão pagante, sem grande esperança de os meus pecados pesarem menos na balança do Paraíso— que aquilo não é confraria, mas falperra de cordão — vai-se, ia dizendo, para o mercado de S. Francisco, e com quem dou eu de cara ao pisar na feira das bestas? Com o birbantão do Tenente. O homem deita-me o rabo de olho e muito na sua compostura — estou a vê-lo de botas altas à Frederica, jaleca curta de alamares, um chapéu branco de muita aba, com um vergalho na cova do braço, alto, garboso, que era moço alentado e bem-parecido, lá isso era, meter pelo meio da ciganada e sumir-se-me da vista. «Hum! —funguei eu — o Diabo feito ermitão! Estás a pregá-la». Desço para a feira do linho, e ponho-me a amarrar o machito ao toro dum castanheiro. E estava eu a dar a laçada, de olhos nos senhores padres que lá iam levados em suas garnachas pretas a esfolar o geral, pumba ! desce um açoite sobre as ancas do animal, como se fosse a tornar-lhe o troco de tropelia, e oiço: — Estupor, ensinou-te o amo a coicinhar!? Boi mau em corno cresce. Era o Tenente, pois quem havia de ser. Sem me bulir, contestei-lhe: — Que febre lhe faz o machinho?... Olhe que também lhe dói como a nós. — Apanhou ele e apanha você... — E porquê, se não fica mal o perguntar? — Porque sim! Você é o pedaço dum velhaco... Dei-lhe salto à garganta mais ligeiro que uma onça — contava depois o Afrânio — e, em menos dum amém, estava tombado por terra e eu de joelhos em cima, na arca do peito... Varreu-se-me a luz dos olhos e já a faca vinha largada quando atalharam o golpe. Foi o miraculoso Padre Santo António, pelo braço, já não sei de que bom burgesso, que se meteu de permeio. Apartaram-nos... e antes assim. Dorido, envergonhado, mais amarelo que a cera, a sacudir os argaIhos da roupa, bem embora foi-me jogando: — Se és homem, ó Malhadas, vem à feira de Lamas, na quinzena... — Pois não faltes, que eu não falto! Nem que o diabo dê estoiro... E assim foi. Tratei de pôr a vidinha em ordem, e na véspera de Lamas pedi ao Sr. Abade para me ouvir de confissão. Ajoelhei-me a seus pés antes de se paramentar para a missa e varri da alma a ciscalhada e dois tições que a encardiam. O diabo é que o negócio foi soado por novo e nunca visto, tratando-se dum bonifrate como eu. Brízida, já porque tivesse rumores do desafio, já porque me visse mais sala-murdo do que é meu natural, concluiu que de alguma empresa grave se tratava e à noitinha esperluxou-me: — Para onde é a jornada? — Para Aveiro, menina! Não reparaste há migalho no céu? Já sabes, vermelho para o mar, aparelha o burro e vai ao sal. De resto, estão à porta as matanças e não há pitadinha pelos povos. — Homem, não sejas trapaceiro. Tu vais mas é à feira de Lamas encontrar o Tenente da Cruz, com quem andas despicado... — Eu?!... Eu?!... Quero lá nada com semelhante pirata?! Nem a bem nem a mal. — Lembra-te que tens mulher e filhos... — Pois é por essas e outras que não quero meças com ele. Terçã o parta lá longe, que há-de morrer a dar coices! Na alva, lavei-me, aprontei-me e fui à cama dizer adeus à mulher, só adeus, que um cavalo que há-de ir à guerra nem corra lobo, nem o abane égua, e dar um beijinho na menina. Assim que vi a inocente a dormir mais quietinha que um anjo, veio-me um soluço aos gorgomilos e, sem querer, desabafei: — Deus sabe se a tornarei a ver ! Que tal disseste ? ! Brízida agarrou-se a mim a chorar: — Homem da minha alma, que me enganas ! Tu não vais para Aveiro ? ! — Vou, minha santa, vou. — Não vais... Vais para Lamas e diz-me o coração que não voltas... — Vou para Aveiro... os caminhos são compridos... há assassinos pelas encruzilhadas. — Para que dizes: Deus sabe se a tornarei a ver? — Por isso mesmo... maneira de falar, que a morte é certa e a hora incerta. Lá reza o prudente: aos olhos tem a morte quem no corcel passa a ponte. — Jura lá! E jurei, pois antes quebrar a palavra por bem-querer que quebrá-la por cobardia. A cavalinho no macho, trupe, trupe, foi-me alvorecer para lá do Vouga, à vista dos carvalhais de Lamas. Estava uma manhã muito clara, destas manhãs de Outono em que o sol é como boi touro, mal castigado da aguilhada. Às duas por três, marra. E, palavra, com o céu aberto, a terra toda a revessar alegria, é preciso força de ânimo para caminhar para um precipício. Mas é o que Deus quer e avante ! Quando cheguei à feira, já andava tudo numa dobadoira: os cortadores a esquartejar as reses, os ferradores a ferrar, os burros a zurrar, as fidalgas a apreçar com ar de não presta, no meio duma algazarra de vozes, um açude de sons, quanto bonda para se avaliar que o negócio bate o auge. Deito os olhos por largo e quem avisto eu? O Tenente da Cruz. Estava em grande relambório com uma tropa fandanga de caras tortas e maltrapilhos, que ninguém gostaria de ver de noite à volta de sua casa. Se eu não soubesse quem ele era, filho de boa família e com os seus teres, homem alto, desempenado, bem vestido, ia dizer que estava ali o capitão duma quadrilha do olho vivo, destes que guardam de assaltos e roubalheira a parte de leão e dão aos sócios o rebotalho. Diante de tal choldra é que me deu logo o coração baque que estavam ali para me chacinar. — Boa vai ela - pensei eu. — São mais que as mães. Deixá-lo, quantos mais melhor, menos caem no chão. Endireitei para a venda da Bicha beber meio quartilho, e logo os bargantes me saíram a caminho, de través, mas arreganhando a tacha. Um botava uma cantiga, que trazia sobrescrito, embora fosse de mal notada carta, outro sapateava o fado com grande esparrame, avançando e vindo às arrecuas até me tocar, todos às upas e urros: Viva o Tenente da Cruz! Viva quem é cavalheiro! Não me dei por achado por mais que o escabeche fosse despropositado, e pude de meu passo meter à taverna, onde, em vez de meio, bebi um quartilho com duas dentadas de broa. Quando ia a pagar, disse-me a vendeira: — Ó senhor António não saia lá para fora que o querem matar. Entre para aquele quarto, que desta porta para dentro é sagrado. Apontava-me o interior da moradia e eu perante a sua lisa franqueza lhe respondi: — Bem haja, tia Maria, e mais lhe agradeço saber que não estou em terra de mouros. Mas aqui não há medo. Muitas vezes um cristão, se defende a vida mais que uma saca de dinheiro, é porque a vida naturalmente é um depósito. Deus lho confiou, a ele, só a ele, tem de o restituir. — Isto de vinte contra um não me cheira bem — tornou ela. — Mas já que assim é homem desenganado, o Padre Santo António lhe estenda o seu divino capote. Saio para a rua e vejo-me logo cercado pela roda de caceteiros. Alguns conhecia eu de ginjeira: o Samarreiro, de Segôes, que evacuava as balas que lhe metiam no fole como aos caroços das azeitonas; o Carlos Negrola, de Cota, tantas vezes condenado, que parecia mesmo um rato das enxovias; o Ranheta, da Póvoa, com morte de homem às costas; o Pilão, do Carvalhal, gatuno refinado e incendiário; o Zé Piranga, de Cinfães, que vivia da vermelhinha e do que zarpava aos pacóvios, etc. etc. O Negrola apontou-me ao bando: — Temos de matar este cão para haver paz no mundo! — Já dizia o meu avô: de sangue misturado e de moço refalsado livre-nos Deus — retorqui.—Se queres mostrar que és tão escarumba por dentro como és por fora, avança que eu abro-te ao verde... — Mate-se! — regougou o Tenente. — Está dito, mate-se! O testamento do pobre escreve-se na unha do dedo mendinho. Rapo da foice que trazia na algibeira da véstia, encabo-a no pau e, depois de me benzer, traço um círculo em terra a todo o largo: — Ó rapazes, para dentro deste risco, mando eu; para fora, já que assim o quereis, mandais vós. Se alguém perdeu o amor à vida que se afoite! —e postei-me em posição de varrer. — Mate-se! Mate-se! — gritavam em redor, mas passar a linha nem tanto como a grossura dum alfinete. Erguiam olhos para a foice, viam-na afiada e a luzir e tinham-lhe respeito. Não é que era o mesmo que correr à degola!? — Escache-se-lhe a alma! — Amigos, é uma só. Deu-ma Deus, para ele a guardo. Se entendeis que não, botai à frente, e tira-se prova! — Mate-se! Mate-se!—e ia crescendo o burburinho e ajuntando-se a feira. Eu tinha em ponto de mira o Tenente, como o frade da anedota, contas na mão, olho no ladrão, que já o toscara por duas vezes a fazer-me o pau: atiro-te, não te atira à tola. «O primeiro a cair és tu — assentei para comigo.—Sim, quando houver de me decidir, é por cima do teu corpo que tenho de passar». Ele parece que compreendeu. Vi-lhe o olhar embaciado e não sei que tremura na boca como cristão-velho a rezar àporta-infra. Trazia pau argolado, um rico pau de marmeleiro com a choupa e ponteira a luzir, mas os mais estavam armados a trouxe-mouxe, vara de castanho e até a haste do carripoto, que cortam nas nossas terras para estadulhos. Nada mais que por isso acusavam o ar desenvergonhado de roga. A Justiça mo levaria em conta. Eu, entrementes, especara, que o Tenente dera um passo atrás, chamado por um homenzinho que se pôs a falar-lhe à orelha, e os quadrilheiros moderaram-se na sanha que os movia. Pela feira é que o alvoroço era cada vez maior e de todos os lados se viam corrimaças. Acudia o povo e bem se me cortava o coração. Como romper aquela mó de gente, se houvesse precisão de pular? Foram-se arrastando os minutos e eu firme à espera do assalto como um castelo. A minha esperança era que, acutilando dois ou três, a malta dos tesos tresmalhasse. Nas pernas me fiava eu. Assim que me pilhasse no monte que há entre o Carvalhal e Queiriga, monte maninho onde não medra feto nem canta pássaro, tudo cascalho afiado como lanças, onde eu queria ver os ministros esgarrados que de sorte voltavam a fazer mal, a salvo estava eu dos matadores. A questão toda era dar o pulo na devida altura e pireza! Mas: mate-se! mate-se! vejo vir uma cabeça à de cima do alevante. Sombreada pelo chapéu braguês, só lhe luziam as suíças e à primeira não conheci quem era. Vinha apartando o monte à cotovelada e breve rompia até a fila dos brejoeiros. E então deu-me ura berro que soou ali como o urro dum leão. Alto como uma torre, tão forçudo que erguia um carro de tojo se pusesse ombros ao chedeiro, jaquetão de peles, olhos mansos, mas destes que despedem chispas com a fúria, quem podia ser senão o Bernardo do Paço?! Que há? Que há? — bramou por duas vezes com a sua voz de trovão. Que há-de haver, Bernardo?! — respondi eu. — Um bando de milhafres para espatifar um pardal. E és sozinho contra tanta gente? E mais não tenho medo. Quando isto ouviu, o Bernardo que era a modo dum alcaide por todo o Vale de Ferreira, tão temido pelo pulso como pela consideração que gozava, tratou de se inteirar com este e aquele do que houvera. E quando se achou esclarecido voltou-se para o Tenente: — Raios te partam que não tens vergonha nenhuma na cara estanhada! Um homem, que se preza, é capaz de tal indecência?! O Tenente ouriçava-se todo, sem lhe tornar resposta. — Sabes o que te vale? É ter-me já sentado à tua mesa. Se não fora isso, havia de te torcer o pescoço como a um frango. Envergonha-te, Tenente, envergonha-te! Trazeres uma roga destas para um fracachicha ! Em resposta o Tenente contou dos seus agravos, um dos quais — há que anos isso fora! — era eu ter- lhe engazupado Brízida. O Bernardo retorquiu-lhe: — Homem por homem, aí o tens! Lá se avenham. Agora peitar uma dúzia de bandalhos para dar cabo dum homem, para mais uma vergôntea, é reles... é borrares a cara bem borrada! Em volta, os marmanjos, ou porque não soubessem com quem estavam a tratar ou porque o ajuste fora estrafegar-me, conservavam o jeito de arremeter. O Bernardo alçou o braço: — Largueza, corja de bigorrilhas ! — Tenha lá mão, senhor!—dizia-lhe o Zé Piranga.—Não sabe que está aqui um matador de faca ? Há-de amargar hoje as safadezas que tem praticado... O Bernardo pôs-lhe a mão no toutiço como se faz a um menino e, meio a brincar, afocinhou-o para a frente: — Rapaz, não me moas a paciência! Desaparece-me, que te não deixo osso direito. A roda, quando os caceteiros isto ouviram e se compenetraram de que o negócio estava furado, rompeu-se, e cada um se esgueirou para sua banda. Ficava só o Tenente, muito amarelo, agora todo engrilado. Um velhote de barbas até ao peito agarrou-se a ele: Ó filho, tu és a minha vergonha! Pelos vistos ,queres a minha morte?! — e tirou-o dali a gaguejar, a cada encontrão que levava dando dois passos à frente e um atrás para fazer crer, imagino eu, que só desfiado à força não jogava as cristas comigo. E, modo ainda de escapulir-se pela porta da fanfarronia, rompeu numa ladração que não percebi bem no meio da balbúrdia e que se permitia, está-se a ver, sentindo as costas no seguro. Um tanto à toa, fui-lhe dizendo: — Quando quiseres, meu banana, estou às ordens! Manda dizer em que descampado nos havemos de encontrar... — Deixa lá, Malhadinhas, deixa lá!—arrazoava o Bernardo.—É um canalha. Por fim o povo punha-se todo à minha banda. Viva e mais viva, tinham-me armado um cadafalso, saía o herói da festa. O Bernardo puxou-me para a venda da Maria Bicha, que ficava mal se não bebêssemos à sossega. De mão na mão e de olhos nos olhos, disse-lhe: — Bernardo, tens aqui um irmão. E ele respondeu-me: — Tens aqui outro. — Prà vida e prà morte! — Prà vida e prà morte! E com amigos e amigos dos amigos passou de almude o briol que ali bebemos. [Bertrand, ed. de 1987 p. 79 e segs.] ,, Em torno de Aquilino... Fiel a si próprio e aos seus princípios, Mestre Aquilino aparece-nos nos seus livros como uma força, como uma árvore de grande porte com as raízes num povo pobre, mas nobre. Do seu enraizado apego a terra e ao homem, e da sua obstinação fiel aos costumes e modos de expressar de certo espaço e de certo falar nele reinante, Beira serrana e não só, um vasto monumento literário se ergueu pronto a conquistar, pela nobreza da imaginação, pela riqueza da sensibilidade e pela beleza da forma, gerações pelos séculos afora. Aquilino Ribeiro foi um dos mais admiráveis trabalhadores da nossa língua, verdadeiramente original e a sua obra está impregnada pelo hálito forte da terra, pelo viver do povo, também pelo perpétuo sofrimento dos homens e representada no vigor de um estilo próprio, enérgico, autêntico e inconfundível. …Quando se vai de Barrelas para Moimenta da Beira, logo adiante de Soutosa, à esquerda, encontra-se Aris. Um dia, mão chocarreira prepôs a este nome, com um bocado de carvão, nas placas da estrada, um P. Graças a tal enxerto, a localidade mais ínfima da Beira tornou-se a cidade mais orgulhosa do Universo. Fabulosa imaginação a do alfabeto! Ora esta Paris de duas horas, mercê de tão poderosa varinha de condão, compõe-se dumas dúzias de casas encarrapitadas em cima de fragas e entre fragas... Aquilino Ribeiro – Geografia Sentimental Ilimitada magia do abecedário! Exclamaríamos nós. Um simples P, como que servindo de abrigo áquela humilde sequência de quatro letras e que emanação de ideias e de emoções! A bilabial e surda consoante transformou todo o contexto em que permanecia a dita placa. Veio arrancar a Aris a grafia que timidamente escondia e, ao mesmo tempo emprestar-lhe os ingredientes próprios da imaginação, da grandiosidade, do sonho...E o poder das palavras. Por elas e nelas projectamos os nossos ideais e as nossas vontades e com elas alicerçamos o nosso saber. Quanto mais perfeito for o domínio da língua, isto é das palavras: quantos mais elementos constituírem o nosso léxico; quanto melhor apreendermos o seu significado; quanto melhor for o conhecimento das suas regras, tanto mais eficaz será a expressão do nosso pensamento e, então aí, tornar-nos-emos especiais, como elementos intrínsecos do mundo que nos envolve. Foi sempre esse o objectivo que animou as nossas horas de convivência, partilhadas ao longo de vários meses: trabalhar para uma correcta utilização da nossa língua, tanto no plano oral como no da escrita. É com orgulho que manifestamos a convicção de, cada um de nós, com seus meios próprios, ter contribuído para a sua defesa e valorização, elegendo-a como objecto de estudo e como meio de aceder a outro conhecimento. Certa de que saímos mais enriquecidos, resta-me, pois, desejar a todos um bom uso do bem adquirido e que, de algum modo, ele venha a servir o desenvolvimento intelectual, cultural e social de cada um. Lúcia de Fátima Almeida Fonseca Professora de Português Aquilino através dos Textos Em tempos de adversidade, entre o risco e a opressão – mesmo a do Estado – passear os olhos pela ficção aquiliniana, revigora o espírito de resistência e semeia, de novo, a confiança activa com que o criador do Malhadinhas sempre enfrentou os combates. Iremos, então, pela liberdade, valor que Aquilino não alija, seja a circunstância o que for. Em O Soldado que vai à Guerra traça o paralelo querendo-se livre como o vento que ninguém tolhe de correr, livre como o pássaro que vai para onde lhe puxa a asa, livre como o gato montês, que tanto dorme como caça, como brinca no brejo natal. Ou ainda A montanha criou o rebelde crónico e lobo sem coleira. Nada de tutelas. Da novela Antecipação, em Maria Benigna, acrescenta: liberdade essa coisa que se não vê, mas se concretiza em ligeireza, confiança, autonomia mental, tonicidade de alma e que se respira como um segundo oxigénio. O lugar de onde somos: Aquilino foi, a seu modo, um cidadão do mundo e um navegante, tantas vezes por necessidade. Um casamento na Alemanha e outro em Paris, estabelecido na Galiza e em Abraveses descobrindo o Brasil ou passeando por Londres, a banca de escritor por companhia, ao invés de lhe formatarem a memória com os sítios onde se acolheu, mais vivamente se sentia o homem da serra, onde precisava de regressar uma e outra vez para se alimentar dos sons e dos cheiros que a sua chã guardava para si e o seu labor reclamava. É possível que eu tenha, sempre na minha frente, um bocado da terra onde nasci, desabafava. Uma certa ideia de escola: O Colégio da Lapa, protótipo de uma escola rigorista, até no clima, dotado de largos corredores, assim talhados para serem recreio de Inverno, despertou, em Aquilino, reflexões que alguns alunos, hoje, gostariam de acolher e alguns professores não desdenhariam. Diz o Mestre em Uma Luz ao Longe (1949): A natureza, em relação ao meu entendimento, sempre teve que dizer mais que as pessoas e até os livros. Ainda hoje estou em julgar que lucrava mais a minha formação com um passeio pela serra do que com uma semana de aulas. Em cima do cavalo que tragava as léguas, eu ia entretido com o arraial interior, em que acudiam a lançar-se, renovando-o, todas as coisas e loisas do caminho. O seu primeiro dia no Colégio descreve-o assim ainda em Uma Luz ao Longe: No recreio da tarde, uma revoada de rapazinhos, pouco mais ou menos da minha idade, precipitou-se pela camarata, vindos uns das aulas, outros da sala de estudo. Em breve acheí-me no meio deles como em pleno arraial. (...) Cá está o novo! (...) Éramos entre cinquenta a sessenta rapazinhos, e no recreio fazíamos guerras assanhadas e quebrávamos denodadamente a pinha uns aos outros como nunca. Pulmões lavados pelos mil metros de altitude, comíamos carne de cabra de manhã, ao meiodia e à noite; e apanhávamos palmatoadas pela medida grande, louvado seja Deus, a qualquer hora. Ontem, como hoje... Quem o seguir na vida airada desde a Granja, sempre em contínua dispersão, casório, amorios, romagens e viajatas, sem falar nos infinitos tombos […], admirar-se-ia como pôde habilitar-se para disciplinas que, por muito perfunctória que fosse a sua inteligência, algumas noções haviam de requerer do examinando para não fazer de todo figura de asno, […]. É possível que todas as matérias em questão fossem pegadas com cuspo […]. Mesmo assim, esta facilidade em inteirar-se de conhecimentos que noutros exigiriam um calcorreado e vagaroso passo de boi a puxar à nora, abona a sua fina e extraordinária massa cerebral. Podemos admitir que semelhantes provas, graduadas por uma baixa escala pedagógica, correspondessem ao que são hoje os exames para adultos. O problema ao presente não é que os analfabetos deixem em realidade de sê-lo, mas que, mercê duma formalidade que se salta a pés juntos, forneçam número às estatísticas. Mesmo assim, não deixa de representar um estímulo louvável. Também se apurou que tantas vezes os candidatos não faziam exames nenhuns. Graças a uma espórtula dada por baixo de capa, o escriba da secretaria, em geral manga de alpaca encalacrado da vida e mal pago, ia-se aos registos e fazia do filho-família ignaro um bacharel em humanidades e até duma bestiaga de barbas um doutor. Seja como for, Camilo três dias depois, com as respectivas certidões em punho, requeria na Escola Médico-Cirúrgica matrícula de anatomia, que desta cadeira consistia o primeiro ano, conjuntamente com a de química, frequentada em qualquer estabelecimento, segundo a organização de 1836. O Romance de Camilo (ilustrado), pp. 125 e 126, Lx., 1957 E o espírito visionário do Programa das Novas Oportunidades, em prosa rimada, como Aquilino gostava de lhe chamar, com todos os condimentos, no Livro de Marianinha - a neta para quem o escreveu - : Atão era pastor E tinha um cão sem orelhas, Que guardava as ovelhas, Chamado Medor. [Depois de muitas contrariedades, entrou fundo na pobreza. Para debelar o seu mal, “deitou-se a Coimbra…] Ofereceu-se na Sé pra sacristão... Não sabia o latim-latão. Agora, Antão, só doutor. Mas não fora ele minhoto, que a saltar vence o gafanhoto, ajustou-se como pajem, ou moço de equipagem dum lente de matemática, que também lia dogmática, exemplar coimbrão da docência. Aí, à força de ouvir o portento, mascar, remascar ciência, acabou, aluno cem por cento, sendo ele quem redigia as sebentas que carregavam duas jumentas. Quando o mestre dar aulas não podia de cama com uremia, catarro ou indigestão, ele substituía o sabichão. E mal o mestre entrou na glória, para reger suas cadeiras, a chamá-lo o magnífico reitor D. Zagalo, já que de sua egrégia memória era o infuso detentor. O Livro de Marianinha, (1967) p. 90 e segs Jcosta Professor de Filosofia Aquilino... É a mais viva aula de Historia! Republicano, de perfil social único: luta e participa. A sua exuberância vocabular é apenas pano de fundo. Homem de acção, na actividade conspirativa, na conjura revolucionária. Num jogo desigual de cá e lá: Acção, prisão, evasão, Exílio e retorno... Sempre! Inimigo do regime, mas bom escritor – dirá Salazar Que bem lhe assenta a ironia! Julgado, condenado à revelia... Ter-se-á sentido mal amado? Ainda é tempo. Façamos eco das homenagens e condecorações que não tardaram; Eco da sua escrita e da sua mais pura crença na vitalidade humana. Basta marcar encontro, lê-lo em devaneio; Descobri-lo num novo olhar; E a certeza de não estarmos sós, E que no mundo aquiliniano... estamos lá todos! Bem-vindo à nossa aula de Historia! Maria Eufémia Santos Professora de História Aquilino Ribeiro É, na minha opinião, o escritor beirão com maior destaque a nível nacional e internacional. Desde muito novo começou a escrever ficção e alguns desses livros, servindo os seus ideais republicanos, eram críticas mordazes às figuras do regime monárquico, dando destaque ao rei D. Carlos. Além de crítico do regime monárquico, tendo colaborado na revolução para a implementação da republica, foi também, posteriormente, um dos críticos do regime de Salazar, tendo-lhe valido por isso algumas idas à prisão, entre elas à do Fontelo em Viseu. Muitos dos seus romances retratam a região de onde era originário, da qual nunca se desligou. Devido ao seu grande prestígio como escritor foi apresentada a sua candidatura ao Nobel da literatura. Acácio Rodrigues Professor de Matemática Linguagem e estilo A linguagem de Aquilino Ribeiro caracteriza-se por uma riqueza lexicológica rara, maior do que a de Camilo, e pelo uso de construções frásicas de raiz popular envernizadas com certo preciosismo, cheias de provincianismos, que seria pena perder. É por isso que muitos dizem que não se pode ler sem um bom dicionário na mão. Mas Aquilino foi sobretudo um estilista e, por isso, a sua linguagem, vernácula e sem estrangeirismos, é arejada, transbordante de graça, às vezes condimentada nos diálogos com expressões entre grotescas e satíricas. Assim inicia o almocreve Malhadinhas o seu longo monólogo: «Quando comecei a pôr vulto no mundo, meus fidalgos, era a porca da vida outra droga. Todas as semanas contavam dias de guarda e, por cada dia de guarda, armava-se o saricoté nos terreiros. Não andaria Nosso Senhor de terra em terra — eu cá nunca me avistei com ele — mas a verdade é que a neve vinha com os Santos, e as cerejas, quando largam do ovo os perdigotos. Bebia-se o briol por canadões de pau até que bonda. Um homem mesmo com os dias cheios tinha pena de morrer. Não tenho cataratas nos olhos, ainda que me hajam rodado sobre o cadáver quase dois carros de anos, mas os dias de hoje não os conheço. E, quanto mais cismo, mais dou razão ao Miguelão da Cabeça da Ponte, que falava como livro aberto, o grande bruxo. Muitas vezes lhe ouvi dizer quando estava de boa lua, o que nem sempre assucedia: — Tempos virão em que o governarão as terras vãs e os filhos das barregãs.» Esmeraldina de Paiva Professora de Francês Uma viagem por terras de Aquilino Ribeiro Ler Aquilino Ribeiro é, para mim, um regresso ao tempo da juventude, ao convívio com pessoas, situações e locais que marcaram, de algum modo, o meu desenvolvimento como ser humano. Recordo o entusiasmo e admiração com que lia a sua obra, páginas e páginas que, de uma maneira excepcional e com as palavras exactas, descreviam, tão bem, cenas, situações e pessoas que saltavam da ficção para o meu mundo real e faziam parte do quotidiano desse meu apertado mundo: o mundo rural, o mundo das coisas simples... * * * não tinham ... as tendeiras mãos a medir nas barracas de lona. Vendia-se ali de tudo, berimbaus, bonecros que alçam as pernas para os ombros, guizos ásperos para adormecer meninos, bons canivetes de marca de anzol, faixas de oito voltas e linhas para quem quiser coser. Diante de tanta lindeza, as moças arrelampavam… A filha da senhora Preciosa com a mão direita servia o povo, com a outra fazia pular o nené que lhe arranjou um fidalgote de Penso: - Ó rico, riquinho, riquiquinho! A corneta custa oito vinténs, freguês, por ser para quem é. In Terras do Demo - Aquilino Ribeiro Etelvina Rodrigues Professora de Inglês Nas Terras do Demo, 95 anos após Jardim das Tormentas. Vivemos em tempo de modas, com o efémero presentificado numa amplitude que cobre todos os domínios do hodierno. Contudo, seria ligeiro, senão leviano, considerarmos o reganho de interesse pela obra de Aquilino Ribeiro integrado nesses parâmetros facilitadores e passageiros. Muito pelo contrário, poucos escritores portugueses contemporâneos, ou até de tempos idos, têm vindo a ser objecto, não só, de tantas e tão variadas reedições (mesmo no estrangeiro), como também, de torrencial bibliografia passiva, ou até de tão merecidas quanto tardias homenagens. E tal constatação apenas evidencia que o Mestre da Nave não é um escritor datado, não se baliza nem esgota numa sincronia literária, mas bem pelo contrário, se redimensiona numa crescente actualidade e, numa redescoberta de uma escrita que, à época, estaria talvez além do tempo, e que, durante algumas décadas, de prolífica produção, das primícias, em 1913, com Jardim das Tormentas, até à publicação póstuma, em 1974, de Um escritor confessa-se, pareceu confinarse a um limbo elitista, pela antipatia do Estado Novo e pela prevalência de outras estéticas, hoje menos lembradas. E se neste específico contexto de Escola – Ensino/Aprendizagem, é banal os discentes serem guiados pelos docentes, enquadrados em visitas de estudo com determinados conteúdos programáticos, aqui, salienta-se o processo inverso, em que os alunos da noite, trabalhadores-estudantes de seu estatuto, decidem, por manifesta vontade própria, interesse pessoal e cultural, visitar as Terras do Demo, assim imortalizadas por Aquilino, e calcorrear por seus passos os andurriais de outrora, por ele descritos em tantas centenas de magistrais páginas. Mais que não seja, esta acção é paradigma e inequívoca prova da tese aqui enunciada: Aquilino Ribeiro, cada vez mais, na pluralidade de valências e abrangências da sua obra, é um Homem de Letras a redescobrir, a revisitar, inesgotável e incansavelmente, até e mesmo, além da universalidade, na telúrica busca das nossas raízes beiroas. E quando são os próprios alunos a terem disso a presciência, todos nos devemos congratular, desde os próprios aos incondicionais aquilinianos, daqueles relevando o substantivo critério e capacidade demonstrados na exequibilidade das suas opções culturais, assim como o gerar das sinergias (em bom rigor), para o êxito da sua concretização, destes salvaguardando o profícuo trabalho feito, nomeadamente o desenvolvido pela Confraria Aquiliniana e pelo CEAR. Paulo Neto. Viseu, 24 de Abril de 2008. “Queremos ser os poetas da nossa própria vida, e, primeiro, nas menores coisas.” Nietzsche Aquilino Ribeiro: Vida e Obra A memória é a trave mestra da nossa identidade. Sem memória viveremos num labirinto onde nós próprios, retomando Camus, nos acharemos estranhos estrangeiros. A globalização a que todos assistimos, sem remédio, fazendo-nos cidadãos do mundo, vai-nos empurrando inexoravelmente para o apertado binómio consumo, logo existo; como se a nossa vida se pautasse pelo vicioso e inútil arrastar da pedra, revisitando Sísifo diariamente. Viver exige necessariamente outros temperos que lhe dão sentido e os livros, mestres silenciosos, são um dos melhores condimentos, a par das belas artes, da música e da dança. Escritores e leitores desenvolvem a cumplicidade feita de tempo, mesclada de história, onde os valores se cruzam numa viagem que ajuda a crescer, a crescer por dentro. São estas experiências, através dos livros, que tantas vezes mudam o rumo das nossas vidas. O Escritor no seu labirinto Aquilino Ribeiro nasceu em 1885, em Setembro, a 13, número mágico que há-de marcar a sua vida e principalmente a estrutura dos seus livros, escritos, alguns, em 13 capítulos. Carregal de Tabosa, em Sernancelhe, acolhe-o por nascimento. Foi baptizado na igreja dos Alhais, no vizinho concelho de Vila Nova de Paiva, conhecida, na altura pela velha Barrelas. Como o pai era padre no Carregal, mandava a decência que a criança fosse baptizada noutra freguesia e noutro concelho. Desde muito cedo, depois de se convencer que perdera, em definitivo, entre o Colégio da Lapa e o seminário de Beja, a vocação sacerdotal, rumou a Lisboa. Esclarecido no Latim e noutras línguas para além da língua pátria que, como nenhum outro, dominou na sua mais pura vertente etimológica. Dono de um consistente saber que foi granjeando também pelo colégio Roseira, de Lamego e pelas lições de filosofia, em Viseu, rumou a Lisboa, ciente que a sua bagagem cultural o havia de subtrair às fragas inóspitas onde o futuro pouco mais lhe reservaria do que uma leira para se mirrar, ou um rebanho para lhe apurar o cálculo. Ao contrário de Einstein a quem um professor, cujo nome não lembramos, lhe vaticinou fraco futuro por não ser entendido em matemática, Aquilino viu-se reconhecido pelos seus mestres que lhe gabavam o estro literário e a desenvoltura com a escrita. Em Lisboa, começou por visitar os jornais e, mesmo antes dos livros, foi cultivando o verbo em crónicas e ensaios que a imprensa acolhia com a expectativa que se devota aos principiantes que antes de se firmarem no reconhecimento, não passam de promessas. Mas um homem não é apenas o que se adivinha entre o aparo da caneta e a folha que espera ver-se impregnada de ideias expressas em texto, não! Aquilino foi um dos artífices da República, amante da liberdade, conspirou contra a monarquia, denunciando os seus vícios e as suas arbitrariedades. Entre a carbonária e a maçonaria, pautou o seu fulgor juvenil, vendo-se por isso, desde muito cedo, a contas com a justiça, por via do seu zelo revolucionário. Foi então preso e logo maquinou que havia de fugir, tão cedo quanto possível, e assim aconteceu. Aquilino não era homem para se intimidar com as grades, nem pássaro habituado a gaiolas e assim que vislumbrou uma nesga, agarrou a liberdade e foi dela usufruir para Paris. Irrequieto, insatisfeito, insaciável, cedo descobriu a Sorbonne e, em 1910, cursava Filosofia e, não fora a guerra, certamente haveria de se apropriar do diploma. Perdeu-se de amores por uma germânica, que consigo estudava na universidade, com quem viria a casar, em 1913, na Alemanha. 1913 é também o ano da publicação do seu primeiro livro: Jardim das Tormentas, que a crítica, nem sempre pródiga com os que começam, acolhe com entusiasmo. Em 1914 nasce o primeiro filho. A guerra na Europa e as saudades do seu rincão natal, esquecidas que foram as razões da sua primeira prisão e fuga, trazem-no de volta a Portugal, com a licenciatura por terminar. Em 1915 é colocado como professor no Liceu Camões e, em 1919, entra para a Biblioteca Nacional, a convite de Raul Proença. Convive com o chamado Grupo da Biblioteca onde se encontram, entre outros, Jaime Cortesão e o próprio Raul Proença. Pública Terras do Demo, obra emblemática que, desde então, funcionará como acrónimo, característico de uma certa Beira, inóspita e ao mesmo tempo afável; rude e ao mesmo tempo gentil; canhestra e ainda assim caprichada; farta de tudo, principalmente do que a terra dá com muito suor e o que o tempo não se esquece de acrescentar em intempérie, para não falar no desleixo e abandono com que a grande capital do império bafejava (e ainda bafeja) a província. Em 1927, fruto do seu intrínseco espírito de homem de letras e de revolucionário convicto, entra na revolta de 7 de Fevereiro e, uma vez mais, para escapar à prisão, foge para França. No ano seguinte, morre a sua primeira mulher e, em 1928, envolve-se na revolta de Pinhel. É preso, passando a residir, contra a sua vontade, a expensas do Estado, no Presídio do Fontelo, em Viseu. No dia da festa da Sra. da Lapa, a 15 de Agosto, farto de ser um fardo para o erário público, evade-se picarescamente, do Presídio do Fontelo. Uma grafonola, porque era dia de festa em Sernancelhe, e um ruidoso grupo de amigos que o foi visitar à prisão, fizeram tal festa e tanto barulho que Aquilino conseguiu, uma vez mais, evadir-se com sucesso. Regressa a Paris, lugar recorrente de um exílio de novo aberto no seu caminho. Aí encontra Bernardino Machado, antigo presidente da República, vivendo também as agruras do exílio. Uma das suas filhas, Jerónima Dantas Machado, há-de ser a sua segunda mulher. Em 1930 nasce o seu segundo filho, o nosso conhecido Eng.º Aquilino Ribeiro Machado, primeiro edil eleito da Câmara de Lisboa depois do 25 de Abril. Em 1932 volta clandestinamente a Portugal. Em 1933 recebe o prémio Ricardo Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa, pela sua obra As Três Mulheres de Sansão. Em 1935 é eleito sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Em 1946, publica Aldeia Terra Gente e Bichos; em 1951, Geografia Sentimental. Em 1952 faz uma viagem ao Brasil, onde é homenageado por escritores e artistas, na Academia Brasileira. Em 1957 publica aquela que muitos consideram a sua obra-prima: A Casa Grande de Romarigães. Em 1958 participa na campanha eleitoral de Humberto Delegado e publica uma das suas obras mais emblemáticas, também pela polémica que originou, Quando os Lobos Uivam. O Livro foi proibido e deu origem a um libelo de que resultou a também célebre defesa jurídica de Aquilino, a cargo do advogado Heliodoro Caldeira, e a súmula da acusação foi publicada no Brasil, em 1960, pela Editora Liberdade e Cultura, de São Paulo, pela mão e com prefácio do grande poeta da Presença Adolfo Casais Monteiro, então ali exilado, com o impressivo título de Quando os Lobos julgam, a Justiça uiva, tendo circulado clandestinamente em Portugal. Em 1960 é proposto para o Prémio Nobel de Literatura. Em 1961 vai a Londres e a Paris. Em 1962 nasce-lhe a primeira neta, Marianinha, para quem, à semelhança do que acontecera com os seus dois filhos, escreve o livro com o mesmo nome: Marianinha. Os outros foram o Romance da Raposa e Arca de Noé, 3ª Classe. Em 1963 é homenageado em várias cidades do país, em virtude dos seus cinquenta anos de vida literária. Morre nesse mesmo ano de 1963, a 27 de Maio. Por suprema ironia a Comissão de Censura, em nota aos jornais, informava “não ser mais permitido falar das homenagens que lhe estavam a ser prestadas.” Em 1972, é publicado postumamente o livro de memórias Um Escritor Confessa-se. Está feito o percurso breve da sua obra, que é também a mescla da sua vida. Jcosta Professor de Filosofia Aos meus alunos do 11º Y Dizia Aquilino Ribeiro que alcança quem não cansa e é neste espírito que escrevo este texto. Quem se esforça, mesmo muitas vezes à custa de grandes sacrifícios, vai concerteza ver frutos. Quem, ao contrário, de uma sociedade cada vez mais facilitista, sai do seu trabalho e vai para a escola, tem mérito. Em tempos onde se pensa ter tudo, e se quer tudo duma forma rápida, estar na escola em vez de estar com a família ou a descansar, é de reconhecer. É por isto tudo, e também pela amizade que já nos une, a todos, que posso dizer que foi um privilégio termos cruzado as nossas vidas. António Jorge Bento Professor de Geografia Pedro Albuquerque O Almocreve de Barrelas