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REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL E D I T O R I A L A Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul tem, em 2012, uma nova proposta e um novo nome: Diaphora, palavra de origem grega que significa diferença. Neste nome e significado encontra-se implícita a nova proposta nas várias perspectivas que esta palavra pode representar: Diferença na forma de abarcar as diversas perspectivas da Psicologia, teorias e formas de produzir a ciência e as práticas psicológicas. Vetor de produção de diversidade, pluralidade e singularidade; Diferença na maneira de pensar e socializar o conhecimento buscando estreitar sua relação com seus diferentes públicos. É neste intercâmbio de conhecimentos e experiências que a ciência psicológica avança e possibilita a promoção da melhoria da qualidade de vida dos seres humanos. Diferença na proposta editorial e projeto gráfico alinhada aos periódicos científicos nacionais e internacionais. Diferença na sua amplitude e democratização de acesso, marcada pela sua implantação em formato eletrônico através da plataforma SEER (Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas), acompanhando a mudança de paradigma no sistema de comunicação científica. Tal iniciativa proporciona uma melhor comunicação entre autores, editores, pareceristas e leitores. Diferença no corpo editorial, contemplando diferentes pesquisadores, profissionais psicólogos especialistas de instituições nacionais e internacionais. A diferença é o principio constitutivo da natureza. É o princípio da diferença que dissolve a determinação, toda e qualquer estabilidade em um mundo que, apenas na aparência, é sólido e permanente. O mundo das diferenças pressupõe a eternidade das diferenças. É com a diferença que se começa, ela não é uma consequência, mas um princípio (Deleuze, 1998). Fazer diferença envolve um processo de mudança. A vida é parametrizada por mudanças como único dado constante. A Revista da SPRGS acompanha este processo. Um periódico científico é o principal canal formal de disseminação da ciência, sendo responsável pela consolidação das áreas e subáreas do conhecimento. As mudanças nas características dos periódicos na área da Psicologia tem sido contínuas. Divulgar o conhecimento é o pilar de sustentação de uma revista científica, levando à constante busca de especialização e sistematização de sua forma de apresentação (Sabadini, Sampaio & Nascimento, 2009). Assumir a edição, a partir de uma proposta diferenciada, de um periódico científico já consolidado, parte integrante da história de uma sociedade científica reconhecida pela sua comunidade, é, sem dúvida, um desafio, mas acima de tudo uma responsabilidade. Desafio que pretendemos construir conjuntamente com a sua comunidade. A SPRGS entende que, por meio de sua revista, atende a uma das suas missões: promover o estudo e o desenvolvimento da ciência psicológica e, para tal, impera a necessidade de estruturar uma publicação que busque atingir plenamente esse objetivo. Neste sentido, viabiliza um meio de divulgação da ciência produzida e reconhecida pelos pares. A publicação dá a necessária visibilidade à produção de um país, preserva a memória e legitima o conhecimento gerado em uma determinada comunidade. A ciência é uma atividade coletiva, construída por membros de uma comunidade de pesquisadores e/ou estudiosos (Trzesniak & Koller, 2009). A SPRGS acompanha essas transformações, atenta ao movimento dos periódicos científicos e alinha-se a esta tendência de qualificação ao lançar a Diaphora. A Psicologia brasileira pôde acompanhar, nos últimos anos, a rápida transformação dos periódicos que, a partir dos esforços dos publicadores e das orientações das Comissões de Avaliação de Periódicos da Área da Psicologia, se profissionalizaram e adquiriram as características das revistas científicas tal qual o exigido atualmente (Sabadini, Sampaio & Nascimento, 2009). Finalizamos agradecendo a Diretoria da SPRGS pelo convite e confiança depositada assim como aos articulistas, pareceristas e membros do Conselho Editorial. Agora esperamos a aceitação do nosso público alvo, leitores interessados na ciência psicológica. A qualidade e a quantidade das publicações presentes nesse primeiro número refletem os esforços envidados tanto pela diretoria da SPRGS, como por parte dos demais membros dessa comunidade (articulistas, pareceristas e membros do Conselho) no intuito de qualificar – nacional e internacionalmente – o debate das ideias na área. Desejamos a todos, uma boa leitura e contamos com a sua colaboração para construção dessa nova etapa de nossa publicação. Os Editores Mary Sandra Carlotto Tânia Rudnicki Adolfo Pizzinato 1 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 03-12 Referências Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal. Sabadini, A. A. Z. P. , Sampaio, M. I. C., & Nascimento, M. M. da (2009). Preparando um Periódico Científico. In: A. A. Z. P. Sabadini, M. I. C. Sampaio & S. H. Koller (Orgs.), Publicar em Psicologia: um enfoque para a revista cientifica (pp.35-73). São Paulo: Associação Brasileira de Editores Científicos de Psicologia / Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Trzesniak, P., & Koller, S. H. (2009). A redação científica apresentada por editores. In: A. A. Z. P. Sabadini, M. I. C. Sampaio & S. H. Koller (Orgs.), Publicar em Psicologia: um enfoque para a revista cientifica (pp.19-33). São Paulo: Associação Brasileira de Editores Científicos de Psicologia / Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 2 R E L ATO D E P E S Q U I S A Influência de jogos de futebol no comportamento criminal Influence os football matches in criminal behavior Cristina Queirósa, Paulo Pereirab Resumo: Os eventos desportivos, especialmente o futebol, cativam multidões e implicam condições de segurança que possibilitem o controle da violência e da actividade criminal. Apesar de inúmeros estudos sobre a violência no desporto, estes são sobretudo centrados na perspectiva individual, no comportamento das multidões e das claques e no fenómeno dos hooligans. A perspectiva da Polícia e da manutenção da ordem pública só recentemente começaram a ser alvo de interesse científico, embora os estudos sugiram a análise dos hotspots do crime como uma estratégia de policiamento eficaz na prevenção do crime. Foi efectuada a análise de cerca de 24.000 ocorrências criminais registadas pela Policia de Segurança Pública em dias de jogos de futebol em Lisboa e Porto/Portugal, nos campeonatos de 2003/04 e 2004/05, bem como no Euro’2004. Encontrou-se um padrão espacio-temporal do crime diferente em cada cidade, verificando-se que nos dias com jogos de futebol aumentam as ocorrências criminais. Palavra-chave: Futebol; Ocorrências criminais; Policiamento Abstract: Sportive events, especially football, attract crowds and involve security conditions that allow the control of violence and criminal activity. Despite numerous studies on violence in sport, these are mainly focused on the individual perspective, on the behaviour of crowds and cheerleaders and on the phenomenon of hooliganism. Police’s perspective and public order perspective has only recently beginning to elicit scientific interest, although some studies suggest the analysis of hotspots of crime as an effective policing strategy in crime prevention. We have analysed 24,000 criminal incidents recorded by the Portuguese Police of Public Security. Those crimes occur on football game days in Lisbon and Oporto/Portugal 2003/04 and 2004/05 national championships, as well as in Euro 2004. There was a specific space-time pattern of crime in each city, with an increase of criminal incidents on days with football games. Keywords: Football; Criminality data; Policing a Psicológa; Doutora em Psicologia; Docente na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal. E-mail: [email protected] b Licenciado em Ciências Policiais e em Direito; Mestre em Criminologia; Superintendente da Polícia de Segurança Pública, Portugal. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 3 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 03-12 Nos nossos dias, o desporto, nomeadamente o futebol, assume um papel de relevo, não só em termos económicos, mas também em termos sociais, cativando multidões e implicando actividades variadas como por exemplo o espectáculo desportivo, a cobertura pelos mass-media, o apoio das claques (torcidas) e a segurança do evento desportivo (Mo rris, 1982; Murad, 1996, 2007). Apesar de o futebol ser “puro deleite, tanto para os que jogam como para os que contemplam” (Saviani citado por Reis, 2006, p. XV), não é só “aquela modalidade praticada por profissionais federados, reconhecidos por contrato legalizado e legitimados pela exposição mediática, pela fama e pela idolatria. É igualmente, aquele que é jogado por amadores, brincadeira de crianças e lazer de jovens e adultos, que é ritualizado pela massa apoiante, que tem sentido educativo e de sociabilidade, mas que também é globalizado pelos poderosos, corrompido por dirigentes, que serve de bom e de mau exemplo” (Murad, 2004, p.9). Com a permissividade da violência simbólica nos estádios, assiste-se ao aumento real da violência, nomeadamente entre espectadores e entre as torcidas de cada equipa, e o futebol passou de espectáculo a problema sociológico (Campos et al., 2008; Pimenta, 2000). Alguns autores (Caillat, 1996; Dunning, 1999; Elias, 1976; Vargas, 1995) consideram que não só o futebol, mas o desporto em geral nasceu da violência e de ritos arcaicos de guerra, marcando os momentos importantes da vida social. O futebol teria um funcionamento simbólico e ritual semelhante aos antigos jogos e cerimónias religiosas, e os estádios substituiriam hoje as catedrais, onde equipamentos, cores e bandeiras têm um grande peso simbólico no desencadear das emoções (Elias & Dunning, 1994). O futebol teria também “múltiplas determinações objectivas e subjectivas-emocionais, existenciais, culturais, sociais e históricas” (Murad, 2004, p.8), congregando generosidade e violência. Contudo, o futebol “não é violento em si, embora haja práticas de violência dentro e fora do campo” (Murad, 2004, p.18). Estas práticas de violência têm nas últimas décadas preocupado diferentes autores (Bouchet et al., 2011; Campos et al., 2008; Dunning, 1995; Dunning et al., 1988; Dupuis, 1993; Gonzalez, 1996; Joern, 2009; Murad, 2007; Murphy et al., 1994; Spaaij, 2007; Spaaij et al., 2005, 2010; Williams et al., 1989), sobretudo no que se refere ao fenómeno dos holligans tragicamente divulgado pelos incidentes no estádio belga de Heysel em 1985. Contudo, antes desta tragédia já outros investigadores exprimiram publicamente a sua preocupação com a violência no desporto (Clark, 1973, 1978; Freischlag & Schmidke, 1979; Terry & Jackson, 1985) e Mosquera (2002) propôs a análise da violência no futebol de forma mais abrangente, definindo quatro tipos de factores em círculos concêntricos: o indivíduo, a sociedade, o contexto desportivo alheio e o contexto desportivo próprio. No centro estaria o contexto desportivo próprio, incluindo factores próximos do acto violento. No círculo seguinte estaria o contexto desportivo alheio. No terceiro círculo estaria a sociedade, abrangendo factores resultantes das circunstâncias sociais de uma época e de um lugar. Por último, o círculo do indivíduo seria o mais vasto, incluindo todos os anteriores e constituindo a causa mais remota da conduta violenta. Analisando com mais detalhe alguns destes níveis, relacionado com o indivíduo poderíamos verificar que a violência nos espectáculos desportivos não significaria apenas a violência física (lançamento de objectos, agressões, etc.), incluindo também a violência verbal (gritos, insultos, assobios, canções ofensivas ou provocadoras), a violência gestual (mímica obscena, aplausos provocadores, agitação de cachecóis) e por fim a violência simbólica, expressa no vestuário dos adeptos e nos símbolos apresentados nas bandeiras. No extremo oposto ao indivíduo situa-se o contexto desportivo próprio, e neste consideram-se os factores que mais directamente estão relacionados com o jogo e com o espaço desportivo, apesar de a violência não se limitar ao estádio (a violência está nas pessoas e vai para onde estas forem, podendo manifestar-se em qualquer lugar). O próprio jogo condicionaria então o aparecimento de manifestações violentas, em que as agressões entre jogadores, a ausência de “fair play”, o desejo de ganhar acima de tudo, a excitação do próprio jogo, o resultado do jogo, e as decisões do árbitro, são factores que podem desencadear reacções violentas no público. Para além destes factores, há ainda que referir as características físicas e de controlo das instalações desportivas, que podem facilitar a ocorrência de violência (Canter, Comber & Uzzel, 1989). Assim, as zonas com lugares de pé e o desenho das bancadas são importantes, pois há diferenças entre uma bancada sem divisões e uma bancada com zonas delimitadas e lugares identificados e espaçosos. Também a própria existência de barreiras para impedir o acesso ao público ao campo de jogo pode gerar agressividade por dar ao indivíduo a sensação de estar “aprisionado”num espaço aberto. A dimensão do grupo nas bancadas é também outro factor a considerar, pois o indivíduo dentro de um grupo adquire a condição de anonimato que o faz sentir-se liberto das pressões e normas sociais (Elias & Dunning, 1986). Por fim, a presença de um sistema policial ostensivo pode ser contraproducente, gerando o efeito contrário ao pretendido e podendo provocar reacções de rejeição e de rebeldia contra a 4 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 03-12 autoridade (Adang & Cuvalier, 2001). Os actos de violência verificados, de forma recorrente, em acontecimentos desportivos têm levado a que diversas entidades assumam uma preocupação cada vez maior, no sentido de desenvolver medidas de prevenção, existindo normas em cada país mas também internacionais (Conselho da Europa, 1987; Parlamento Europeu, 1988, 1999). Analisando os últimos campeonatos europeus de futebol, alguns autores (Reddy, 1977; Reicher, 1984, 1996; Stott, 1998) realçaram a importância do controle de multidões, pois a violência nestes campeonatos foi provocada por grupos de adeptos, sendo difícil de controlar e provocando danos avultados, feridos graves e instabilidade social. Este conflito provocado por multidões ocorre quando instituições estatais como a Polícia intervêm contra uma concentração não autorizada e quase sempre são provocadas mais baixas na multidão do que esta provoca na Polícia. A análise da desordem deveria então ser mais direccionada à forma como a Polícia actua, do que à forma de actuação da multidão, e para Rimé e Leyens (1988) o facto de se colocar a causa da tragédia do Estádio de Heysel na personalidade de alguns adeptos, foi usado para justificar soluções policiais repressivas. Claussen (2006) questiona as medidas de segurança cada vez mais intrusivas e refere que desde o atentando terrorista nos Jogos Olímpicos de Munique em 1976 os eventos desportivos tornaram-se um alvo fácil, implicando medidas rígidas de segurança. Contudo, desde a revista de sacos para evitar arremesso de objectos perigosos até à filmagem de adeptos e ao cruzamento destes dados com o registo criminal dos adeptos, levantam-se questões éticas e de privacidade não justificadas pelo medo de actos terroristas. Outros autores (Dimmock & Grove, 2005; Wakefield & Wann, 2006) relacionam a adesão/identificação forte dos adeptos a uma maior possibilidade de comportamentos violentos durante o evento desportivo, justificando que esta identificação os torna mais susceptíveis à influência do comportamento colectivo fazendo-os perder o controle perante uma situação desagradável como a da derrota da sua equipa. Kerr (2005) refere ainda o aumento crescente da violência no desporto, dentro e fora dos recintos, exemplificando não só com agressões entre adeptos, mas também com agressões entre atletas, entre atletas e adeptos, ou entre atletas e treinadores, sugerindo que a sociedade actual estimula a competitividade, não ensina o controle dos impulsos violentos e desculpabiliza a violência no desporto. Apesar de o fenómeno da violência no desporto estar sobretudo centrado na investigação sobre o autor desse comportamento (expressa na referência frequente aos hooligans), existem já estudos sobre o papel da Polícia no controle da ordem nos eventos desportivos e sobre o impacto dos eventos desportivos no comportamento violento (Adang & Cuvalier, 2001; Connors, 2007; Gultekin & Soyer, 2010; Litavski, 2010; Madensen & Eck, 2008; Morrison & Airey, 2002; Sivarajosingam et al., 2005; Stott et al., 2007, 2008; Veno & Veno, 2002; Warren & Hay, 2009). Em Portugal, os Relatórios Anuais de Segurança Interna (RASI, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010) apresentam o número de policiamentos efectuados pela Polícia de Segurança Pública (PSP, que policia as zonas urbanas) e pela Guarda Nacional Republica (GNR, que policia as restantes zonas) no âmbito da segurança a eventos desportivos (Tabela 1), verificando-se que cerca de metade é absorvido por policiamento a jogos de futebol, e que entre 2005 e 2010 o número de policiamentos e a taxa de incidentes registados pela PSP em jogos de futebol aumentou. Tabela 1 Número de policiamentos de segurança a eventos desportivos Policiamentos 2005 2006 2007 2008 2009 2010 Policiamentos PSP 14.889 14.401 14.696 11.229 para futebol Incidentes registados 185 107 113 181 PSP para futebol Percentagem de incidentes por 1,24 0,74 0,77 1,61 policiamento Policiamentos GNR - 34.871 34.279 34.263 para futebol Policiamento eventos 23.984 27.142 26.902 20.055 desportivos PSP Policiamento eventos - 47.793 48.237 48.111 desportivos GNR Total policiamento - 74.935 75.139 68.166 68.684 78.232 eventos desportivos Em Portugal há já estudos efectuados sobre a violência no desporto, sobretudo por Marivoet (1992, 1996, 1998, 1999, 2002; Marivoet & Boaventura, 2002, Carvalho (1985), Meirim (1989, 1994) e Matos Almeida (1999, 2000), efectuados predominantemente numa perspectiva sociológica ou jurídica. Contudo, sobre a influência que os eventos desportivos têm no comportamento criminal e nos incidentes ocorridos numa cidade nos dias de jogos de futebol não se encontram estudos publicados. Numa comunicação, Pereira (2007), pela sua experiência profissional nas forças de segurança, acedeu a relatórios internos e de expediente policial para caracterizar entre 1998 e 2005 incidentes em 116 jogos nos quatro maiores clubes da Super Liga do futebol português, referindo que 25% dos incidentes foram o arremesso de objectos para o interior do relvado, com o objectivo de atingir jogadores, árbitros, técnicos, 5 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 03-12 e elementos das forças de segurança, e arremesso de objectos contra adeptos do clube adversário e autocarros que transportam os jogadores ou adeptos da equipa adversária. Verificou ainda que 16% dos incidentes ocorridos foram a posse e uso de artefactos pirotécnicos, e 15% foram desordens agressões entre adeptos ou com a Polícia, invasões de campo, colocação de faixas provocatórias, injúrias aos árbitros e a agentes de autoridade e actos de vandalismo nas estruturas físicas dos estádios. Verificou que 73% das ocorrências foram detectadas no interior do estádio, quer antes, durante, ou após o fim dos jogos e que os crimes mais praticados que originaram auto de notícia por detenção foram ofensas à integridade física e injúrias aos agentes policiais, representando 70% das detenções. Ainda recorrendo aos dados internos, Pereira (2007) referiu que no campeonato europeu de futebol realizado em 2000 (Euro’2000) na Holanda e na Bélgica, a actividade ilícita desenvolvida pelos adeptos resultou em cerca de 1.080 detenções administrativas e 300 judiciárias, e 700 ordens de expulsão e afastamento. Em Portugal, no Euro’2004 foram efectuadas 250 detenções e instaurados 80 processo de expulsão, estando 40% dos crimes relacionados com a venda ilegal de bilhetes e especulação, e os restantes sobretudo com agressões e distúrbios. Já na Alemanha, no Mundial’2006 foram registados cerca de 35 crimes por jogo e nos dias sem jogo cerca de 159 crimes por dia. As autoridades policiais procederam a cerca de 8.900 detenções (criminais e administrativas) no período do evento, sendo cerca de 35 por jogo e cerca de 186 em dias em que não houve jogos. Os dados referidos demonstram a influência que os eventos desportivos têm no comportamento criminal e nos incidentes ocorridos numa cidade nos dias de jogo de futebol, resultado já encontrado por Sivarajosingam et al. (2005). Aproveitando o interesse que o campeonato Euro 2004 suscitou aquando da sua organização em Portugal e o interesse pelos incidentes críticos registados, decidiu-se caracterizar a actividade criminal ocorrida em dias de jogos de futebol nas cidades de Lisboa e Porto, colocando a hipótese de a actividade criminal na cidade aumentar nos dias de jogo, sobretudo nas zonas de envolvência dos estádios. Método Estudos efectuados pelo Observatório Permanente de Segurança na cidade do Porto (Agra et al., 1999, 2001) permitiram caracterizar no tempo e espaço da cidade as ocorrências criminais, utilizando o Instrumento de Notação do Sistema Estatístico Nacional (INSEN), grelha do Ministério da Justiça para registo de crimes (embora se reconheça que este registo não revela toda a realidade, existindo “cifras negras”). Este tipo de caracterização do crime é frequentemente usado pelas Polícias para definição dos “hotspots” do crime e consequente definição de estratégias de policiamento dirigidas para locais da cidade que no tempo e espaço apresentam uma concentração evidente de crimes (Buerguer et al., 1995; Eck et al., 2005; Sherman, 1995), permitindo também analisar a evolução da criminalidade (Braga et al., 2010; Leitner et al., 2011). Enquanto profissional da Polícia de Segurança Pública, Pereira (2006) no âmbito do seu mestrado sobre violência no desporto obteve autorização para aceder às ocorrências criminais registadas durante três anos na base de dados da instituição, mantendo a confidencialidade e anonimato dos registos. Os dados então acedidos permitiram desenvolver o estudo que agora se apresenta e atendendo ao constrangimento temporal da autorização dada, foram seleccionados dois campeonatos nacionais de futebol da Super Liga Portuguesa: 2003/2004 e 2004/2005, de forma a contextualizar o Campeonato Europeu de Futebol organizado pela UEFA e realizado em Portugal em 2004 (Euro’2004). Foram ainda considerados nestes dois anos desportivos outros jogos internacionais realizados em Portugal. Em seguida, foram seleccionadas as duas principais cidades do país (Lisboa e Porto) e os dois maiores estádios/clubes de cada uma: em Lisboa o estádio da Luz (onde joga o Sport Lisboa e Benfica) e o estádio de Alvalade XXI (onde joga o Sporting Clube de Portugal), no Porto o estádio do Dragão (onde joga o Futebol Clube do Porto) e o estádio do Bessa Século XXI (onde joga o Boavista Futebol Clube). Recorde-se que 2003/04 foi o ano em que o Futebol Clube do Porto foi campeão da SuperLiga e Campeão da Europa, enquanto em 2004/05 o Benfica foi campeão da Super-Liga, tendo sido realizados importantes jogos internacionais para além do Euro’2004, com adeptos de cada equipa a deslocaram-se em grande número para cada jogo. Para os quatro estádios foram seleccionadas todas as datas de jogos oficiais das competições referidas (Super Liga, competições internacionais da Liga dos Campeões e da Taça UEFA, e Euro’2004) encontrando-se um total de 172 dias com jogo de futebol. Foi seleccionado um número igual de datas nas quais não se realizaram jogos nesses estádios, emparelhadas por cidade, dia da semana, ano e mês, controlando ainda quando cada clube jogava dentro e fora do seu estádio. Para os dias seleccionados foram recolhidos todos os registos de crimes existentes na respectiva cidade onde ocorreu o jogo. Através da identificação das datas com jogos (Tabela 2), foram encontradas para a cidade do Porto 73 datas emparelhadas (ou seja, 146 datas diferentes), correspondentes a 2.976 crimes em dias de jogo e 2.801 em dias sem 6 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 03-12 jogo. Dada a sua atipicidade, o Euro’2004 foi considerado separadamente, encontrando-se 8 datas emparelhadas para a cidade do Porto, correspondentes a 507 crimes em dias de jogo e 344 em dias sem jogo. Relativamente a Lisboa, encontraram-se 81 datas emparelhadas (ou seja, 162 datas diferentes), correspondentes a 7.537 crimes em dias de jogo e 7.751 em dias sem jogo. Para o Euro’2004 em Lisboa encontraram-se 10 datas emparelhadas, correspondentes a 1.266 crimes em dias de jogo e 1.031 em dias sem jogo. Tabela 2 Número de datas e de ocorrências criminais por dia e por tipo de competição Ocorrências Porto Lisboa Número de datas 73 81 Nº de ocorrências em dia com jogo 2.976 7.537 Nº de ocorrências em dia sem jogo 2.801 7.751 Número de datas – Euro’2004 8 10 Nº de ocorrências em dia com jogo – Euro’2004 507 1.266 Nº de ocorrências em dia sem jogo – Euro’2004 344 1.031 um aumento notório relativamente a 2003. Em Lisboa verificouse um média de crimes superior nos dias sem jogo, sobretudo em 2005, encontrando-se de novo um padrão temporal diferente entre as duas cidades. 103 47 101 46 99 45 97 44 95 43 93 42 91 41 89 40 87 39 85 38 83 com jogo sem jogo 2003 Lisboa 102,46 101,60 2004 Lisboa 95,14 97,61 2005 Lisboa 83,50 88,62 2003 Porto 39,31 38,36 2004 Porto 38,32 38,15 2005 Porto 45,86 39,00 37 Figura 2. Evolução da média de crimes/dia por ano no Porto Depois de recolhidas as cerca de 24.000 ocorrências criminais, estas foram codificadas em função da cidade, ano, tipo e categoria do crime, freguesia da cidade onde ocorre (localização em função do estádio), hora e dia (com jogo ou sem jogo). No caso de ser dia de jogo, codificou-se ainda o tipo de competição, tendo os dados sido trabalhados no programa estatístico SPSS. Atendendo ao número de datas ser diferente para cada cidade, ano e competição, os dados foram apenas tratados no formato de média por categoria a analisar (ex: número médio de ocorrências por dia de jogo para os 8 jogos da UEFA ou para os 73 jogos da Super-Liga) para terem a mesma unidade de análise. Resultados Foram analisados separadamente as cidades, ano e competição, verificando-se (Figura 1) que no Porto a média de crimes por dia é maior nos dias com jogo, enquanto em Lisboa existe o padrão inverso e a média de crimes por dia é muito superior. Relativamente à distribuição da média do número de crimes por tipo de freguesia, verificou-se no Porto (Figura 3) que nas freguesias onde se situam os estádios a média de crimes é ligeiramente maior nos dias com jogo no estádio do Dragão, mas ligeiramente inferior nos dias com jogo no estádio do Bessa. As freguesias adjacentes aos estádios ou outras freguesias da cidade apresentam mais crimes em dias com jogo. Em Lisboa (Figura 4), a freguesia do Estádio de Alvalade apresenta mais crimes em dia com jogo e a freguesia do Estádio da Luz apresenta um padrão inverso. As freguesias adjacentes aos estádios e outras freguesias da cidade apresentam mais crimes do que as freguesias dos estádios, e mais crimes em dias sem jogo. Encontrou-se um padrão diferente, pois no Porto a criminalidade em dias com jogo expande-se para outras freguesias que não só as do estádio do jogo e aumenta com a realização dos jogos. Em Lisboa a criminalidade é menor nos dias com jogo e apresenta poucas variações em função dos dias, sendo mais frequente noutras freguesias da cidade. 12 10 8 41 96 95 40 94 39 93 38 37 92 com jogo sem jogo 6 4 2 0 91 Dragão Adjacente Dragão Bessa Adjacente Adjacente Bessa ambos Outra freg. Porto 40,8 38,4 com jogo 3,10 6,52 5,97 10,32 4,83 10,60 Lisboa 93,04 95,69 sem jogo 2,97 5,86 6,19 9,63 4,91 9,16 Figura 1. Média de crimes/dia por cidade em dias com jogo e em dias sem jogo na Super Liga Figura 3. Distribuição da média de crimes/dia por tipo de freguesia no Porto No que se refere à evolução da média do número de crimes por ano, verificou-se que no Porto (Figura 2), os dias com jogo apresentam sempre maior número de crime, existindo em 2005 7 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 03-12 60 50 40 30 20 10 0 Luz Adjacente Adjacente Adjacente Alvalade Luz Alvalade ambos Outra freg. com jogo 4,35 8,41 5,48 11,41 6,67 54,58 sem jogo 4,65 8,77 5,02 10,28 6,87 59,95 Figura 4. Distribuição da média de crimes/dia por tipo de freguesia em Lisboa Quanto ao momento do dia, no Porto os crimes praticam-se ao longo de todo o dia, embora com picos de menor criminalidade durante a manhã. A noite e madrugada apresentam valores mais elevados, quer em dias com jogo, quer em dias sem jogo. Em Lisboa os crimes praticam-se essencialmente durante a manhã e a tarde, seja em dias com jogo ou em dias sem jogo. Relativamente ao tipo de crime, no Porto (Figura 5) nos dias com jogo os crimes contra o património são mais frequentes mas diminuem os crimes contra as pessoas, contra a vida em sociedade e relacionados com a droga. Já em Lisboa (Figura 6), nos dias com jogo diminuem todos os tipos de crime, excepto os crimes contra o Estado, crimes relacionados com a droga e outros crimes (ex: fraudes, crimes relacionados com actividades comerciais). Encontrou-se um padrão diferente entre Porto e Lisboa, embora com os crimes contra as pessoas e contra o património a serem os mais frequentes. No que se refere ao tipo de crime por competição, verificouse que o crime contra o património é o mais frequente nas duas cidades. No Porto (Figura 7), contra as pessoas a média de crimes nos jogos da Super Liga é menor do que nos jogos internacionais da UEFA e nos dias sem jogo. Já contra o património, a média de crimes é maior nos jogos da UEFA e Super Liga do que nos dias sem jogo. Nos jogos da UEFA há menos crimes contra o Estado e relacionados com droga, predominando nos crimes contra o património o furto (sobretudo em e de veículos) e o roubo, especialmente em dias com jogo. Em Lisboa (Figura 8), a média de crimes é menor nos jogos da UEFA, excepto nos outros crimes ou nos crimes relacionados com droga. Nos crimes contra o património predominam o furto (sobretudo em veículos e por carteirista) e o roubo, especialmente em dias com jogo. Encontrouse um padrão diferente entre Porto e Lisboa, pois os jogos da UEFA parecem provocar mais crimes no Porto do que em Lisboa, quando comparados com os jogos da Super Liga. Além disso, nos tipos de crime contra o património predomina o furto em veículos, mas variam nas duas cidades, existindo no Porto mais furtos de veículos e em Lisboa mais furtos por carteirista. 80 60 40 20 0 Pessoas Património Vida em sociedade Estado Outros crimes Outros droga 30 Super-liga 15,50 70,60 4,90 1,70 4,00 3,30 25 UEFA 16,50 72,80 2,50 1,40 4,90 1,90 Dia sem jogo 6,91 25,87 3,27 1,20 2,30 2,43 20 Figura 7. Distribuição da média de crimes/dia por tipo de competição no Porto 15 10 5 80 0 Pessoas Património Vida em sociedade Estado Outros crimes Outros droga 60 com jogo 6,48 29,33 3,00 1,36 2,41 2,25 40 sem jogo 6,91 25,87 3,27 1,20 2,30 2,43 20 Figura 5. Distribuição da média de crimes/dia por tipo de crime no Porto 0 Pessoas Património 70 60 50 Vida em sociedade Estado Outros crimes Outros droga Super-liga 15,50 72,70 4,70 1,10 3,90 2,10 UEFA 15,40 72,00 4,60 1,20 4,30 2,40 Dia sem jogo 15,06 68,72 5,20 1,78 3,05 2,23 Figura 8. Distribuição da média de crimes/dia por tipo de competição em Lisboa 40 30 20 10 0 Pessoas Património Vida em sociedade Estado Outros crimes Outros droga com jogo 14,40 67,50 4,63 1,90 3,90 2,46 sem jogo 15,06 68,72 5,20 1,78 3,05 2,23 No que diz respeito ao Euro’2004, no Porto decorreram 8 jogos entre 12 Junho e 4 Julho 2004 e em Lisboa decorreram 10 jogos entre 12 Junho e 6 Julho 2004. Verificou-se (Figura 9) que nas duas cidades há um aumento notório do número de crimes nos dias com jogo relativamente aos dias sem jogo. Figura 6. Distribuição da média de crimes/dia por tipo de crime em Lisboa 8 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 03-12 64 62 60 58 56 54 52 50 48 46 44 42 128 124 120 116 112 108 104 com jogo sem jogo Porto 63,40 43,00 Lisboa 126,60 103,10 100 Figura 9. Média de crimes/dia por cidade em dias com jogo e em dias sem jogo no Euro’2004 No que se refere à distribuição do crime ao longo do dia, apesar do problema da contagem do horário nocturno (consideraram-se apenas as ocorrências no dia de jogo e não na madrugada do dia seguinte, o que terá de ser revisto em estudos futuros, pois os incidentes podem estender-se pela madrugada do dia seguinte), verificou-se no Porto que 49% da criminalidade ocorreu até 3 horas antes do início do jogo e 46% da criminalidade ocorreu entre 3h antes e 3h depois do jogo. Apenas 5% da criminalidade ocorreu para além de 3 horas após o fim do jogo. Os crimes contra o património foram os mais cometidos, e, nas freguesias dos estádios os valores dos crimes contra o património foram mais elevados nos dias de jogo. Em Lisboa, o dia em que se registaram mais crimes foi o do último jogo da competição (final) e verificou-se que 57% da criminalidade ocorreu até 3 horas antes do início do jogo, contra 41% da criminalidade que ocorreu entre 3h antes e 3h depois do jogo. Os crimes contra o património e contra as pessoas foram os mais cometidos em todas as freguesias durante o evento, mas as freguesias dos estádios e as adjacentes apresentaram valores mais baixos. Comparando as duas cidades, verificou-se que os crimes contra o património foram os mais frequentes em Lisboa e Porto durante o Euro’2004 e a realização dos jogos fez disparar a criminalidade nas duas cidades, apesar de padrões temporais e espaciais diferentes. Discussão Os resultados encontrados constituem um estudo ainda de cariz exploratório quanto aos hotspots do crime em dias de futebol, mas permitem claramente verificar que os eventos desportivos influenciam a actividade criminal ocorrida nas cidades, variando em função da cidade e do tipo de competição. Na cidade do Porto a realização de jogos parece ter um maior impacto no aumento da criminalidade, pois a criminalidade expande-se a toda a cidade em dias de jogo. A freguesia onde se verificaram valores mais elevados da criminalidade situa-se no centro da cidade e nas freguesias onde se situam os estádios a variação em dias de jogo e sem jogo é pouco relevante. Em Lisboa, o aumento foi mais significativo nas freguesias onde se situam os estádios e a criminalidade parece estar mais dispersa e concentra-se nos dias de jogo fora dos locais dos estádios. Durante o Euro’2004 a criminalidade disparou notoriamente nas duas cidades, confirmando a hipótese formulada de que os eventos desportivos fazem aumentar o crime, resultado já encontrado por Sivarajosingam et al. (2005) numa análise dos eventos desportivos em Cardiff entre 1995 e 2002. A análise foi efectuada sobre dados que apresentam a limitação de serem registados apenas para fins de notação de crimes e policiamento e não para investigação científica, podendo também reflectir estratégias de policiamento. O facto de o Euro’2004 apresentar um aumento tão notório de ocorrências registadas pode ter resultado do policiamento intensivo que funcionou como um crivo mais apertado em termos de segurança. Situações que noutros dias de jogo passariam despercebidas podem ter tido tratamento mais rígido e resultar em registo de crime, como se deduz pelo estudo de Stott et al. (2007) que tão bem observaram os comportamentos e estratégias de policiamento da Polícia de Segurança Pública e Guarda Nacional Republicana nos incidentes de claques (torcidas) inglesas ocorridos no Algarve durante o Euro’2004. Estes resultados reflectem ainda características estruturais de cada cidade, pois os limites e as características de Lisboa e Porto são bastante diferentes, implicando também diferentes estratégias de controle das multidões e de circulação na cidade, como Warren e Hay (2009) defendem ao reflectirem sobre o controle da ordem pública na liga australiana. Mesmo reconhecendo que cada cidade, e também cada tipo de competição implica diferentes comportamentos dos adeptos, estes resultados realçam a necessidade de investigações futuras que contribuam para o estudo da violência no desporto alargando-o ao impacto dos eventos desportivos sobre o crime na cidade. Conhecendo os “hotspots” nos dias de eventos desportivos mobilizadores de multidões, as Polícias poderão adoptar um modelo mais proactivo capaz de prevenir a prática de actos ilícitos em dias de competições futebolísticas. Cabe às autoridades policiais desenvolver e aperfeiçoar cada vez mais os seus métodos para prevenir e reprimir eficazmente os actos ilícitos associados ao futebol. Alguns estudos rentabilizaram já a análise dos “hotspots” e dos registos de ocorrências para deles extrair conclusões, como por exemplo Sivarajosingam et al. (2005) que verificaram em Cardiff que os eventos desportivos aumentavam os registos de crimes, reflectindo detalhes da competição como vitória ou derrota da equipa, jogo na cidade ou noutro estádio. Também Leitner et al. (2011) analisaram os padrões de crime na Louisiana após o furacão Katrina, enquanto 9 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 03-12 Braga et al. (2010) analisaram os padrões de violência com armas em Boston entre 1980 e 2008. Estando próximos novos eventos no mundo desporto, como por exemplo o campeonato Mundial de Futebol em 2014 para o Brasil, e existindo actualmente guias de reflexão sobre “hotspots” na cidade (Eck et al., 2005), sobre o controle da violência nos estádios (Madensen & Eck, 2008), sobre o estatuto de defesa do torcedor (Campos et al., 2008) e registos informatizados que permitem caracterizar as ocorrências criminais no tempo e no espaço, a análise dos crimes em função dos eventos desportivos numa cidade parece ser de extrema utilidade. Braga (2006) demonstrou já que a análise de “hotspots” é uma estratégia eficaz de prevenção do crime. Interessará, então, que continue a haver uma análise e identificação da criminalidade, um estudo das tendências criminais e a troca de informações, análise de eventuais propostas de novas medidas/legislação, desenvolvimento de estratégias e tácticas mais eficientes e eficazes para a prevenção da violência e da criminalidade, e, ainda o desenvolvimento de modelos de policiamento que melhor se adaptam a esta realidade. Deste modo, os eventos desportivos e especificamente o futebol, poderão reduzir o nível de violência e o número de ocorrências criminais, e continuar a ser (o futebol) “talvez, a maior paixão popular do planeta, a mais difundida e disseminada” (Murad, 2007, p. 17). Referências Adang, O., & Cuvalier, C. (2001). Policing Euro’2000. International police cooperation, information management and police deployment. Appeldoorn: Dutch Police Academy. Agra, C., Quintas, J., & Fonseca, E. (2001). Dimensões e estrutura da criminalidade, vol.1. 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Recebido em agosto/2011 Revisado em setembro/2011 Aceito em setembro/2011 12 R E L ATO D E P E S Q U I S A A representação social do ‘bom trabalho’ para trabalhadores agrícolas no nordeste brasileiro Social representations of ‘good job’ to farm workers in northeastern Brazil Antonio Virgílio Bittencourt Bastos a *, Fabíola Marinho Costab, Ana Carolina de Aguiar Rodriguesc, Roberval Passos de Oliveirad Resumo: As representações de objetos socialmente relevantes são construídas pelo conjunto de percepções, sentimentos, normas e valores que permeiam as experiências individuais e coletivas, como também pela dinâmica das relações sociais estabelecidas em um dado contexto. De caráter exploratório/descritivo, o presente estudo busca compreender a representação social de trabalhadores de organizações agrícolas acerca do que é um ‘bom trabalho’, analisando como eles percebem, sentem e valorizam os diferentes elementos que estruturam o trabalho humano no contexto em que se inserem. Foram utilizados referencial e procedimentos oriundos do campo de estudos sobre o núcleo central das representações sociais. O estudo foi realizado em 32 organizações, localizadas no pólo Juazeiro/Petrolina, com a participação de 950 trabalhadores, em sua maioria homens, jovens e com pouca escolaridade. Dos participantes, 30% possuem contrato de trabalho temporário. Utilizou-se um questionário semiestruturado e foram realizadas análises descritivas. As representações sociais desses trabalhadores acerca do ‘bom trabalho’ refletem suas história de vida, sua singularidade e referências culturais. Nesse contexto, o trabalho apresenta-se como extremamente valorizado, por ser não apenas um instrumento de sobrevivência, mas também símbolo de autonomia, dignidade e perseverança. Palavras-chave: Representação social; Trabalho; Trabalhadores agrícolas Abstract: The representations of socially relevant objects are constructed by a set of perceptions, feelings, values and norms that permeate the individual and collective experience, as well as the dynamics of social relations in a given context. Descriptive in character this study seeks to understand the social representation of workers in agricultural organizations about what constitutes a ‘good job’, examining how they perceive, feel and value the different elements that structure human labor in the context in which they operate. We used references and procedures based on studies about the core of social representations. The study was conducted in 32 organizations, located in the center Juazeiro / Petrolina, with the participation of 950 workers, mostly men, young and poorly educated with 30% of them on temporary contract. A semi-structured questionnaire was used and descriptive analyzes were performed. Social representations of these workers about the ‘good job’ reflect their life history, its uniqueness and cultural reference. In this context, the work presents itself as extremely valuable, not only for being an instrument for making a living, but also a symbol of autonomy, dignity and perseverance. Key words: Social representation; Labor; Agricultural workers a Doutor em Psicologia (Universidade Federal da Bahia); Centro de Estudos Interdisciplinares para o Setor Público (ISP). *E-mail: [email protected] b Psicóloga; Doutora em Psicologia (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia) c Psicóloga; Doutora em Psicologia (Universidade Nove de Julho) d Psicólogo; Doutor em Saúde Pública (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia) Sistema de Avaliação: Double Blind Review 13 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 13-22 O presente artigo é originado de um grande estudo envolvendo trabalhadores de organizações agrícolas do polo Juazeiro/Petrolina. Busca compreender a representação social de tais trabalhadores acerca do que é um ‘bom trabalho’, uma vez que essa pode ser consideradabase para as suas expectativas e parâmetro de avaliação das condições em que trabalham. Para atingir o objetivo, neste trabalho foram utilizados referencial e procedimentos oriundos do campo de estudos sobre o núcleo central das representações sociais. De caráter exploratório/ descritivo, o estudo pretende contribuir para um melhor entendimento de uma categoria de trabalhadores praticamente esquecida pelapesquisa em comportamento organizacional, analisando como eles percebem, sentem e valorizam os diferentes elementos que estruturam o trabalho humano no contexto e região em que se inserem. As representações são construídas por percepções, sentimentos, normas e valores que permeiam as experiências de indivíduos e grupos, assim como pela dinâmica das relações sociais estabelecidas em um dado contexto. A representação social é definida por Moscovici (1978) como um tipo de conhecimento, socialmente elaborado, que influencia os comportamentos e a comunicação entre as pessoas, além de intervir na definição de suas identidades sociais e visões de mundo. De acordo com Moscovici (2009), as representações sociais convencionalizam objetos, corporificam idéias, dando-lhes uma forma definitiva e os localizando em uma determinada categoria. Nesse sentido, são fenômenos que estão relacionados com um modo particular de compreender e de se comunicar, abstraindo sentido do mundo e reconstituindo-o de modo significativo. Argumentando na mesma direção, Abric (2000) entende que as representações funcionam como um sistema de interpretação da realidade que rege as relações dos indivíduos com o seu meio físico e social, determinando seus comportamentos e suas práticas. As representações, para o autor, são constituídas de um conjunto de informações, de crenças, de opiniões e de atitudes a propósito de um dado objeto social. Esse conjunto de elementos, se organizado, estrutura-se e constitui-se em um sistema sócio-cognitivo particular, composto de dois sistemas em interação: um sistema central, ou núcleo central; e um sistema periférico. O núcleo central determina a significação da representação, sua organização interna (consistência) e sua estabilidade (permanência), constituindo a base comum e consensual de uma representação social. Já o sistema periférico é flexível, adaptativo e relativamente heterogêneo quanto ao seu conteúdo, permitindo modulações individuais da representação. As pessoas, agindo em um sistema de representação, criam objetos e lhes dão significado e realidade. Quando das interações no cotidiano das relações sociais, as pessoas expressam e confirmam suas crenças subjacentes, fazendo com que as representações sociais se tornem uma unidade do que pensam e do modo como fazem. É assim que Wagner (2000) entende as representações, descrevendo-as, ao mesmo tempo, como uma teoria sobre o conhecimento representado, e uma teoria sobre a construção do mundo. De acordo com esse autor, uma representação é mais do que uma imagem estática de um objeto na mente das pessoas, ela compreende também seu comportamento e a prática interativa de um grupo. Sendo produto social, o conhecimento tem de ser remetido às condições sociais que o engendram. Ou seja, só pode ser analisado tendo como contraponto o contexto social em que emerge, circula e se transforma. Nesse sentido, o contexto tornase um aspecto fundamental da pesquisa em representações sociais, seja porque as representações – enquanto produto – são campos estruturados pelos conteúdos históricos que impregnam o imaginário social, sejam porque – enquanto processo – são estruturas estruturantes desse contexto e, como tal, motores da mudança social (Spink, 2004). Nessa perspectiva, a pesquisa em representações sociais demonstra, conforme Jovchelovitch (2008), a importância da expressividade e do status epistemológico dos saberes locais. Investigar esses saberes significa ser sensível àquilo que o conhecimento expressa e às inter-relações de uma forma de saber com outras. Isso se constitui no que autora caracteriza como “fenomenologia do saber”, o estudo dos entendimentos, das mentalidades e das práticas que configuram a constituição de visões de mundo e modos de viver. Tais estudos mostram-se relevantes, visto que permitem examinar como o encontro com o saber de outros pode contribuir para o processo de avaliação critica do próprio saber. No campo de conhecimentos produzidos acerca das representações sociais, o trabalho, enquanto esfera socialmente relevante na vida das pessoas, vem se constituindo como importante objeto de pesquisa. Em estudos empíricos, diversas representações do trabalho têm sido destacadas, como: arriscado, desvalorizado e sem futuro, entre trabalhadores da construção civil (Oliveira & Iriart, 2008); árduo, que causa estresse e sofrimento, conferindo, porém, autonomia a enfermeiras que realizavam trabalho noturno (Veiga, Fernandes & Paiva, 2011); positivo por propiciar desenvolvimento psicossocial, pelos benefícios financeiros e pelos ganhos relacionados ao futuro, entre adolescentes trabalhadores e não-trabalhadores (Oliveira, 14 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 13-22 Fischer, Teixeira, Sá & Gomes, 2010); fonte de prazer, pelo da área cultivada. Para Fischer (2000), ocorre na região uma sentimento de apoiar, ajudar, confortar, entre enfermeiras que transformação nos meios de produção, que redefine as relações trabalham em UTIs (Shimizu & Ciampone, 2002). de trabalho, substituindo, por exemplo, a parceria - na qual trabalhadores são remunerados em quota-parte da produção O contexto: a região do polo Juazeiro/Petrolina obtida com seu trabalho - pela relação de trabalho baseada no assalariamento - trabalhadores recebem o pagamento através A região do pólo Juazeiro/Petrolina está situada no Baixo de uma quantia prefixada em dinheiro -, que desvincula o Médio do Vale do São Francisco, que corresponde a uma das trabalhador dos meios de produção. A relação entre empregador quatro regiões fisiográficas do Vale do São Francisco e abrange e empregado passa, portanto, a ser regida por contratos de áreas dos estados da Bahia e de Pernambuco (Silva, 2001). Essa trabalho. região foi pioneira na implantação de grandes projetos públicos No Brasil, as regras e normas que regulam as relações e privados de irrigação, o que gerou a consolidação e expansão individuais e coletivas de trabalho constam do documento de uma atividade agrícola integrada à indústria. oficial criado pelo Ministério do Trabalho intitulado Consolidação Segundo Fischer (2000), a região é beneficiada por políticas das Leis do Trabalho - CLT e de convenções coletivas adotadas públicas de geração de energia e de irrigação, que possibilitaram por algumas empresas (Fischer, 2000). De acordo com a CLT a implantação de uma infra-estrutura que tem proporcionado (Brasil, 2002), contrato individual de trabalho é o acordo o desenvolvimento econômico da região. Nesse contexto, tácito ou expresso, por prazo determinado ou indeterminado, puderam ser observadas mudanças na estrutura econômica, a correspondente à relação de emprego, na qual o empregador criação de uma nova organização territorial de produção (Silva, é aquele que admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de 2001) e a adoção de técnicas modernas de produção e de gestão serviços e o empregado é a pessoa física que presta serviços ao do trabalho (Fischer, 2000). empregador, sob a dependência desse e mediante salário. É, De acordo com a Superintendência de Estudos Econômicos e portanto, um acordo através do qual um trabalhador, mediante Sociais da Bahia – SEI (2003), estabelecem-se, conjuntamente, retribuição, presta uma atividade sob a direção de outra pessoa. no meio rural, uma evolução tecnológica no setor agrícola, No cenário rural, pode ser observado o caráter temporário uma reorganização dos processos de produção e de trabalho, e dos empregos, mediante o estabelecimento de contratos uma interação entre as atividades nos espaços rural e urbano. de safra. Esse contrato é definido pela CLT (Brasil, 2002) Há um novo padrão agrário, segundo Fajardo (2008), no qual a como aquele que tem sua duração dependente de variações agricultura se constitui em mais um elo da dinâmica produtiva estacionais das atividades agrárias, normalmente executadas no geral e o espaço agrícola passa a ser comandado pela lógica da período compreendido entre o preparo do solo para o cultivo e ampliação das relações capitalistas no campo. a colheita. Assim, o trabalhador que se obriga à prestação de Com o advento da modernização agrícola, a região do serviços mediante contrato de safra é chamado de safreiro ou pólo Juazeiro/Petrolina também vivenciou uma série de safrista. transformações no âmbito sócio-econômico. Segundo dados O processo de modernização e industrialização da da SEI (2000), a população do Município de Juazeiro vem agricultura acarretou transformações nos processos e nas crescendo a taxas elevadas, sobretudo na sua área rural. As relações de trabalho existentes (Livigard, 2001; SEI, 2003). novas atividades rurais, intensivas em capital e mão-de-obra, Segundo Livigard (2001), ocorreu uma interferência sobre o têm representado grande atrativo tanto para a população rural saber tradicional e o processo de trabalho rural, transformando regional, como para as populações de outras regiões e Estados grande parte dos pequenos produtores em assalariados. Fischer do Brasil. A disponibilidade de mão-de-obra de boa qualidade, (2000) corrobora esse argumento ao afirmar que, no meio rural abundante e barata na região, portanto, apresenta-se como brasileiro, o assalariamento, que envolve compromissos entre uma das vantagens comparativas do pólo Juazeiro/Petrolina empregador e empregado, celebrados mediante contratos, teve (Guimarães, 2007). considerável impulso a partir das mudanças econômicas, sociais As transformações na região foram acompanhadas por e políticas no setor agrícola com a expansão da industrialização mudanças nas relações de trabalho, com uma tendência ao no campo. Observou-se a adoção, em larga escala, das máquinas crescimento de relações assalariadas (Fischer, 2000), propiciadas e dos agrotóxicos no campo, o crescimento do assalariamento pela regularização temporal da produção e pela expansão temporário, o aumento do ritmo e da jornada de trabalho 15 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 13-22 e a destruição de pequenas unidades produtivas (Livigard, 2001). De acordo com a SEI (2003), as relações de trabalho são modificadas, introduzindo-se práticas e conceitos como terceirização, sub-contratação, administração profissionalizada das unidades produtivas e otimização de tarefas. Verificam-se, também, alterações nas relações do agricultor com o meio rural, no que diz respeito às ocupações e às rendas percebidas. Inseridos em um contexto de tantas mudanças quando se consideram as suas histórias e os modelos de exploração agrícola do nordeste brasileiro, como os trabalhadores dão significado ao trabalho? O que significa um ‘bom trabalho’ para este contingente de trabalhadores da agroindústria? Em que medida a condição de trabalhador temporário ou permanente altera o conjunto de representações? Buscar respostas para tais questões pode ser importante para compreensão das relações e dos vínculos que esses trabalhadores desenvolvem com as suas organizações empregadoras, as expectativas que desenvolvem em relação ao que esperar como retribuições do seu trabalho, assim como as estratégias que usam para lidar com as dificuldades de todas as ordens que cercam o trabalho num contexto da agroindústria. de trabalhadores com nível superior entre os permanentes (0,4% e 3,8%, respectivamente). Quanto à ocupação, a maior parte dos trabalhadores está concentrada em atividades de campo (65,3%). Observa-se que os trabalhadores temporários, em sua maioria (82,4%) são alocados para essa função. Entre as ocupações com atividades técnicas e administrativas, há um predomínio de trabalhadores permanentes (20,9% e 11,3%). Procedimentos A partir de uma listagem das principais empresas do pólo Juazeiro-Petrolina, essas foram contatadas e convidadas a participar da pesquisa por telefone e/ou mensagem eletrônica. Assim, o critério para a inclusão das empresas na pesquisa foi a aceitação do convite feito pelos pesquisadores, não sendo possível selecionar uma amostra aleatória e estratificada das organizações. Da mesma forma, não foi possível obter amostras representativas dos trabalhadores nas empresas participantes, visto que os gestores não tinham um levantamento preciso do número de trabalhadores permanentes e temporários – safristas – e de suas respectivas funções. Para suprir essa dificuldade, o percentual mínimo de 10% era calculado a Método partir de uma estimativa do quadro de funcionários. Após isso, os entrevistadores se distribuíam pelas organizações em suas População e amostra diversas áreas, abordando os trabalhadores em seu local de O estudo foi realizado em organizações agrícolas de trabalho. médio ou grande porte, localizadas no polo Juazeiro/Petrolina, produtoras de uva, manga, coco, pimenta ou cana-de-açúcar. A Instrumento de Coleta de Dados amostra foi composta por 32 organizações e 950 participantes, Os dados foram coletados por meio de um questionário selecionados a partir de um percentual mínimo de 10% do semiestruturado. O entrevistado era convidado a falar sobre número total de empregados (permanentes ou temporários) aspectos mais gerais do trabalho, quando era questionado de cada organização, representando todas as atividades sobre o que achava importante para que um trabalho fosse desenvolvidas: campo, packinghouses– expressão inglesa que considerado bom. Também foram investigadas características pode ser traduzida como “casas de empacotamento” –, técnicas sociodemográficas e relativas ao trabalho. No presente artigo, e administrativas. foi dada atenção especial aos dados relativos à representação Dentre os participantes da pesquisa, 70% é permanente e do ‘bom trabalho’, assim como aos contratos de trabalho 30% é temporário. Observa-se um predomínio de trabalhadores estabelecidos, com base nos indicadores de duração (curta/ do sexo masculino, tanto entre os permanentes (70,4%), quanto determinada ou longa/indeterminada). entre os temporários (58,6%). Mais da metade dos participantes (57,3%) possui um companheiro, sendo casado ou vivendo de Análises dos Dados forma consensual. Há predominância de trabalhadores jovens As análises foram iniciadas com a categorização das (59,9 possuem até 30 anos), com pouca escolaridade (63,5% respostas dos trabalhadores acerca do que consideram um ‘bom estudaram no máximo até o antigo curso primário completo), trabalho’. Foi utilizado um pacote estatístico para preparação do e que iniciaram a atividade laboral com até catorze anos de banco de dados e digitação das categorias. Inicialmente, foram idade (60,3%). A partir da comparação entre trabalhadores realizadas análises descritivas, utilizando frequências e médias, temporários e permanentes, atenta-se para um maior percentual que serviram de base para classificar por ordem de evocação 16 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 13-22 e para distribuir as categorias no núcleo central, no sistema periférico e nas categorias residuais da amostra como um todo. Após essa etapa, foram realizadas análises considerando apenas a amostra de trabalhadores permanentes e, em seguida, a amostra de trabalhadores temporários, a fim de identificar possíveis diferenças entre as representações sociais de um ‘bom trabalho’ para trabalhadores com diferentes contratos de trabalho. Resultados e discussão Ao analisar as respostas dos trabalhadores das organizações agrícolas investigadas acerca do que consideram um ‘bom trabalho’, foram extraídas 17 grandes categorias, sendo que cinco estão localizadas no núcleo central da representação, 10 no sistema periférico, e duas estão entre as categorias residuais (Figura 1). 18 Sistema Periférico 17 Categorias Residuais 16 15 Benefícios Boa Comunicação 14 13 Gestão de Pessoas Remuneração Reconhecimento e Recompensa Ordem de Evocação 12 11 Condições de Trabalho Saúde e Segurança 10 9 8 Boa Empresa Relacionamento Características Interpessoal Liderança Desejáveis do Trabalhador 7 6 5 Boa Equipe de Trabalho 4 Relação com o Trabalho 3 Qualidade 2 1 Produtividade Bom Tratamento Núcleo Central Natureza do trabalho 0 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 Ordem de Frequência Figura 1. Distribuição das categorias que descrevem ‘bom trabalho’ na amostra total Na Figura 1, o núcleo central que estrutura o ‘bom trabalho’ é integrado por quatro categorias que remetem a uma relação positiva do trabalhador com diferentes facetas do trabalho: liderança, colegas de trabalho e atividades realizadas no trabalho (‘Relacionamento Interpessoal’, ‘Liderança’, ‘Relação com o Trabalho’ e ‘Bom Tratamento’). Já a quinta categoria (‘Características Desejáveis do Trabalhador’) toma como foco o indivíduo, enfatizando características pessoais ou profissionais que são desejáveis que um trabalhador possua para que um trabalho seja considerado bom. Tal núcleo central é integrado por ideias que, a partir de uma fala hipotética e representativa, poderiam ser assim expressas: “Um bom trabalho é aquele em que as pessoas trabalham unidas e com harmonia, onde existe confiança, respeito e amizade entre os colegas. Além disso, os chefes devem ser bons e compreensivos com o trabalhador. Eles devem ser competentes e dar uma boa assistência, ensinando a maneira certa de trabalhar. O trabalho não pode ser escravidão, que precise se matar de trabalhar. O trabalhador deve ter liberdade para trabalhar sem perturbação e as tarefas devem ter uma carga horária normal, com o número suficiente de trabalhadores. Para que o trabalho seja bom, o trabalhador deve fazer as tarefas com atenção e disciplina, ter perseverança e determinação, cumprindo os deveres e as regras da empresa. O trabalhador tem que ser bem tratado. O bom trabalho é, também, aquele que mantém o sustento da pessoa e da sua família”. Para melhor compreender as ideias apresentadas pelos participantes, são apresentadas na Figura 2 as cinco categorias do núcleo central e suas subcategorias, com as respectivas frequências e com trechos representativos das evocações dos trabalhadores. Também é possível analisar o sistema periférico nas Figuras 3 e 4. No núcleo central, nota-se uma tendência que atravessa ao menos três categorias. Observa-se que, em ‘Liderança (competência interpessoal)’, em ‘Relação com o Trabalho (carga de trabalho)’ e em ‘Bom Tratamento’, estão presentes ideias ligadas a compreensão, respeito, bondade, dignidade, consideração, ausência de abuso e de exploração do trabalho (escravo). É possível que essas expectativas em relação ao ‘bom trabalho’ constituam-se em oposição ao contexto de trabalho rural, que combina alta carga com baixo valor atribuído pelos empregadores. O trabalhador rural, por sua vez, com baixa escolaridade e com alta vulnerabilidade, está sujeito a situações de desrespeito e de ameaça ao emprego.É possível que, por essa razão, sejam também frequentes entre as ‘Características Desejáveis do Trabalhador’ evocações ligadas à importância de cumprir normas e regras. A obediência, portanto, passa a compor a representação social de ‘bom trabalho’ entre trabalhadores rurais. Ao analisar o número de evocações dentro das categorias, observa-se que três possuem altas frequências, porém não foram lembradas mais prontamente pelos trabalhadores. ‘Remuneração’, ‘Saúde e Segurança’ e ‘Benefícios’, com 311, 218 e 187 evocações respectivamente, ainda que citadas por muitos trabalhadores, não estavam entre as primeiras ideias citadas. Observa-se, portanto, que os trabalhadores das organizações 17 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 13-22 Figura 2. Núcleo central da amostra geral Figura 3. Sistema periférico da amostra geral (parte 1) 18 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 13-22 Figura 4. Sistema periférico da amostra geral: parte 2. agrícolas, ao representarem um ‘bom trabalho’, reconhecem a importância de recursos físicos e materiais, expressa em categorias como ‘Remuneração’, ‘Saúde e Segurança’, ‘Benefícios’, ‘Gestão de Pessoas’ e ‘Condições de Trabalho’. Entretanto, colocam em ênfase questões referentes às relações entre as pessoas, como observado no núcleo central. Ao considerar que, para estar satisfeito no trabalho, o trabalhador precisa representá-lo como algo positivo, tais dados levam à seguinte reflexão: os trabalhadores agrícolas, em sua maioria com baixa qualificação e pouco poder sobre sua trajetória de trabalho, expressam como necessidades mais importantes aquelas classicamente consideradas mais superiores (relações sociais), em detrimento das ditas mais básicas (ligadas à sobrevivência). Aos gestores, portanto, cabe atentar para além das condições físicas e materiais oferecidas ao trabalhador, como remuneração, benefícios e condições de trabalho, dando uma maior ênfase às condições das relações humanas estabelecidas dentro da organização. Dentro dessa perspectiva, a Psicologia Organizacional e do Trabalho ganha uma relevância na medida em que se apresenta como uma importante área de produção de conhecimento, assim como de formação de profissionais habilitados e competentes para dar suporte às organizações no que tange às questões das relações entre os indivíduos e os diferentes focos do trabalho, a exemplo das equipes e das atividades de trabalho. Quando comparado o núcleo central do grupo de trabalhadores permanentes (Figura 5) com o núcleo central do grupo de trabalhadores temporários (Figura 6), foram identificadas em ambos duas categorias também pertencentes ao núcleo central geral da amostra: ‘Relação com o Trabalho’ e ‘Características Desejáveis do Trabalhador’. Independente do tipo de vínculo contratual, os trabalhadores das organizações agrícolas consideram que um ‘bom trabalho’ precisa de uma relação positiva entre o trabalhador e suas atividades, assim como o trabalhador precisa ter determinadas características pessoais e profissionais. Assim como na amostra geral, a relação positiva entre trabalhadores e ‘Liderança’ é considerada importante para um ‘bom trabalho’ entre os permanentes. Entre os temporários, tal importância é atribuída ao ‘Bom Tratamento’ em relação ao trabalhador. Mais uma vez, é possível colocar em foco a situação de vulnerabilidade e o baixo valor atribuído, pelos empregadores, aos trabalhadores rurais, ainda agravado no caso dos temporários. Em geral, esses trabalhadorespossuem escolaridade ainda menor, como observado nas características da amostra, e são convocados em períodos de colheita, com permanência média de 3 meses na organização. Assim, seguindo a tendência da amostra geral, os trabalhadores temporários tendem a valorizar ainda mais as condições de dignidade e respeito no trabalho. 19 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 13-22 18 18 Sistema Periférico Categorias Residuais 16 14 13 Relacionamento Interpessoal Ordem de Evocação 11 10 9 Reconhecimento e 13 Recompensa 12 Saúde e Segurança 8 Liderança 7 Características 6 Desejáveis do Boa Equipe de Trabalho 10 Condições de Trabalho 8 Boa Empresa 1 0 Qualidade Bom Tratamento 2 Natureza do trabalho Núcleo Central Boa Comunicação Características Desejáveis do Trabalhador 3 Produtividade 2 1 Produtividade Relação com o Trabalho 7 4 Qualidade 3 Reconhecimento e Recompensa 9 5 Bom Tratamento Relação com o Trabalho 4 Relacionamento Interpessoal Liderança 6 Trabalhador 5 Gestão de Pessoas Remuneração 11 Boa Empresa Boa Equipe de Trabalho Saúde e Segurança 14 Condições de Trabalho Remuneração 12 15 Pessoas Benefícios Categorias Residuais Benefícios 16 Boa Comunicação Gestão de 15 Sistema Periférico 17 Ordem de Evocação 17 Natureza do trabalho Núcleo Central 0 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 Ordem de Frequência 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 Ordem de Frequência Figura 5. Distribuição das categorias dos trabalhadores permanentes Figura 6. Distribuição das categorias dos trabalhadores temporários Uma nova categoria está incluída no núcleo central referente a cada grupo de trabalhadores. Entre os trabalhadores permanentes há uma maior valorização da ‘Saúde e Segurança’ no trabalho, com ênfase na prevenção de acidentes e na exposição a fatores de risco à saúde, como a manipulação de agrotóxicos e o constante trabalho ao sol. Tais trabalhadores também apontam para a importância das empresas disponibilizarem equipamentos de proteção individual (fardamento, bota, luva, óculos, máscara). Já o núcleo central referente ao grupo de trabalhadores temporários apresenta a categoria ‘Condições de Trabalho’. Tal categoria remete à adequação da infra-estrutura física e dos recursos materiais disponibilizados pela empresa, a exemplo de ferramentas de trabalho. Ao analisar o número de evocações dentro de cada categoria, foi possível observar que entre os permanentes três dessas possuem altas frequências (‘Remuneração’ com 216; ‘Relacionamento Interpessoal’ com 169; e ‘Benefícios’ com 137), e entre os temporáriosmais três (‘Remuneração’ com 95; ‘Saúde e Segurança’ com 60; e ‘Liderança’ com 53). No entanto, tais categorias não compõem os respectivos núcleos centrais, pois não foram evocadas mais prontamente pelos trabalhadores que representam o grupo. Ainda que com peculiaridades entre os núcleos centrais dos trabalhadores permanentes e temporários, a representação de ‘bom trabalho’ entre tais grupos de trabalhadores não apresenta grandes diferenças. O maior tempo de serviço na organização onde foi realizada a pesquisa talvez implique em um maior reconhecimento por parte dos permanentes dos riscos e agravos à saúde do trabalhador ao considerar o que é um ‘bom trabalho’. Da mesma forma, os temporários, com menor contato com a organização pesquisada, podem ter apontado as condições de trabalho, como a infra-estrutura e materiais de trabalho, por serem percebidas mais prontamente pelos trabalhadores. Além disso, é possível que os trabalhadores temporários, de fato, tenham condições de trabalho ainda mais desfavoráveis que os trabalhadores permanentes. Essas hipóteses explicativas tem como base a ideia de que, ao representar o ‘bom trabalho’, os participantes da pesquisa se reportaram também às suas experiências vivenciadas no presente. Considerações Finais É possível afirmar que as representações sociais do ‘bom trabalho’ para os trabalhadores agrícolas do polo Juazeiro/ Petrolina refletem sua história de vida, sua singularidade e referências culturais. Ao mesmo tempo, retratam as expressões e interpretações de um grupo formado por trabalhadores de baixa renda, baixa escolaridade, cuja maioria iniciou a atividade laboral, em geral ligada à agricultura, ainda na adolescência, como forma de ajudar a família. Nesse contexto, é possível que o trabalho seja extremamente valorizado, por ser não apenas um instrumento de sobrevivência, mas também símbolo de 20 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 13-22 autonomia, dignidade e perseverança, dentre outros pontos positivos. Ao se falar de ‘bom trabalho’, duas categorias proeminentes na amostra geral e nos dois subgrupos analisados (permanentes e temporários) refletem tal realidade: ‘Relação com o Trabalho’ e ‘Características Desejáveis do Trabalhador’. Assim, o trabalho deve ser interessante, para que gere identificação e satisfação do trabalhador; equilibrado, para que não cause sobrecarga; suficiente para o sustento próprio e da família; além de proporcionar uma maior autonomia e liberdade de decisão. Em contrapartida, o trabalhador deve apresentar características pessoais e profissionais, a exemplo de obediência, competência, disciplina, atenção, motivação, dedicação, determinação, bom comportamento, dinamismo, honestidade e calma, entre outros aspectos que legitimariam o direito e o merecimento de um ‘bom trabalho’. Além dessas categorias, outras três (‘Liderança’, ‘Relacio namento Interpessoal’ e ‘Bom Tratamento’) caracterizam como central para os trabalhadores a dimensão relacional. Assim, a consistência e a permanência de sua representação social de ‘bom trabalho’ está pautada na forma como interagem com os colegas e supervisores, no tipo de tratamento recebido e no modo como se relacionam com o trabalho realizado. São esses aspectos que constituem o sistema central, base consensual que estrutura as cognições dos sujeitos, refletindo dados históricos, simbólicos e sociais aos quais são submetidos. Considerando a estabilidade conferida ao núcleo central, pode-se dizer que os comportamentos dos trabalhadores estarão, em parte, sendo guiados pela forma como avaliam seu trabalho segundo o parâmetro de sua representação de ‘bom trabalho’. Ainda que esteja presente também uma expectativa de troca, expressa por outras categorias de alta frequência, como ‘Remuneração’, ‘Benefícios’ e ‘Gestão de Pessoas’, é possível que a influência de diferentes contextos e contingências resulte em novas adaptações, que serão facilitadas pelo caráter de flexibilidade do sistema periférico em que se encontram. Esses dois grandes polos (relacional e material) guiam a avaliação do trabalho feita pelos trabalhadores agrícolas, que colocam as necessidades mais básicas, ligadas à sobrevivência, em um patamar inferior às necessidades ligadas à realização pessoal e profissional, expressas pelas relações estabelecidas no meio de trabalho. O presente estudo fornece indícios de que mesmo trabalhadores de menor renda e baixa escolaridade estarão mais satisfeitos e motivados com o trabalho quando bons relacionamentos, espírito de equipe, respeito e confiança entre colegas e líderes estiverem sendo estimulados. Em um contexto regional caracterizado historicamente pelos menores índices de desenvolvimento econômico e social do país, vale destacar que a presença da agroindústria da fruticultura irrigada, com suas médias e grandes empresas, com seus avanços tecnológicos e com a formalização do emprego, mesmo quando temporário, constitui um quadro de inovação no contexto regional que suscita uma avaliação positiva por parte dos trabalhadores. Os resultados aqui apresentados são congruentes com os elevados níveis de comprometimento e satisfação revelados pelos trabalhadores participantes da pesquisa, relação que deve ser explorada em estudos posteriores. Referências Abric, J. C. (2000). A abordagem estrutural das representações sociais. In A. S. Moreira & D. C. Oliveira (Orgs.), Estudos interdisciplinares de representação social (pp.27-38). Goiânia: AB Editora. Brasil (2002). Consolidação das Leis do Trabalho - CLT. In N. Mannrich (Org.), 3ª Edição, atualizada e revisada. 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As representações sociais dos 21 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 13-22 trabalhadores de enfermagem não enfermeiros (técnicos e auxiliares de enfermagem) sobre o trabalho em unidade de terapia intensiva em um hospital-escola. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 36(2), 148-155. Silva, P. C. G. (2001). Articulação dos interesses públicos e privados no pólo Petrolina-PE/Juazeiro-BA: em busca de espaço no mercado globalizado de frutas frescas. Tese de doutorado, Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. Spink, M. J. P. (2004). O estudo empírico das Representações Sociais. In M. J. P. Spink (Org.), O Conhecimento no Cotidiano: As representações sociais na perspectiva da psicologia social (pp.85-108). São Paulo: Brasiliense. Veiga, K. C. G., Fernandes, J. D., & Paiva, M. S. (2011). Estudo estrutural das representações sociais do trabalho noturno das enfermeiras. Texto & Contexto Enfermagem, 20(4), 682-690. 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A regressão de Cox bivariada mostrou associação significativa entre a insatisfação com a imagem corporal e sexo feminino (RP:4,61 IC95%:3,42–6,22); sobrepeso/obesidade (RP:5,80 IC95%:3,39-9,92); uso na vida de tabaco (RP:1,50 IC95%:1,19-1,90); sentimento de discriminação (RP:2,1 IC95%:1,71-2,57), de solidão (RP:2,42 IC95%:1,98-2,95) e tristeza (RP:1,97 IC95%:1,61-2,43); dificuldade para dormir (RP:1,74 IC95%:1,40-2,16); ideação suicida (RP:2,23 IC95%:1,78-2,78) e planejamento suicida (RP:1,80 IC95%:1,342,43). Recomenda-se que educadores, profissionais de saúde e familiares sejam esclarecidos sobre a importância de reforçar a autoestima dos jovens, estimulando que tenham maior satisfação com a sua imagem corporal e melhor qualidade de vida. Palavras-chave: Imagem corporal; Adolescente; Escolar; Maturidade sexual Abstract: Cross-sectional study aimed at investigating the prevalence of poor body image satisfaction and its associated factors among students from Gravataí, state of Rio Grande do Sul, Brazil. In a representative sample including 1,170 students of the 7th grade, the outcome was investigated using the body shape questionnaire. We found 23.6% of poor body image satisfaction. Bivariate Cox regression showed a significant association between poor body image satisfaction and female gender (PR:4.61 95%CI:3.426.22); overweight/obesity (PR:5.80 95%CI:3.39-9.92); lifetime use of tobacco (PR:1.50 95%CI: 1.1-1.90); feelings of prejudice (PR:2.1 95%CI:1.71-2.57), loneliness (PR:2.42 95%CI: 1.98-2.95) and sadness (PR:1.97 95%CI:1.61-2.43); sleep difficulty (PR:1.74 95%CI:1.40-2.16); suicidal ideation (PR:2.23 95%CI:1.78-2.78), and suicide planning (PR:1.80 95%CI: 1.34-2.43). It is recommended that teachers, health professionals, and relatives be informed about the importance of reinforcing young people’s self-esteem, stimulating them to achieve higher body image satisfaction and better quality of life. Keywords: Body image; Adolescent; Student; Sexual maturity a Mestre em Saúde Coletiva; PPG em Saúde Coletiva da Universidade Luterana do Brasil – RS – Grupo Hospitalar Conceição/GHC – Brasil. * E-mail: [email protected] b Profa do PPG em Saúde Coletiva e curso de medicina da Universidade Luterana do Brasil – RS. c Profa do PPG em Saúde Coletiva e curso de enfermagem da Universidade Luterana do Brasil – RS d Profa do PPG em Saúde Coletiva e curso de psicologia da Universidade Luterana do Brasil – RS Fonte de financiamento: P.O.O. Langoni teve apoio do Grupo Hospitalar Conceição/GHC – Brasil. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 23 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 23-30 Na sociedade atual, principalmente a ocidental, há uma preocupação excessiva em cultuar o belo, o formoso, o musculoso ou um corpo magro (Stenzel, 2006). Com frequência, essas formas são associadas pela mídia ao sucesso, tanto social como sexual. Diariamente, os meios de comunicação lançam mensagens, nas artes e no esporte, explicitando a falta de lugar na sociedade para os indivíduos que não se enquadram a esses padrões estéticos (Conti, Bertolin & Peres, 2008). Nesse sentido, o adolescente, que se encontra em fase de mudanças biológicas e emocionais, está extremamente vulnerável às pressões da sociedade no que diz respeito ao aspecto de seu corpo (McCabe & Ricciardelli, 2003). A imagem corporal é formada pelo indivíduo a partir da percepção que tem sobre seu próprio corpo, considerando suas experiências e sentimentos. É influenciada por fatores históricos, culturais, sociais, individuais e biológicos que se modificam ao longo do tempo (Cash, 2004). As questões socioculturais afetam diferentemente meninos e meninas, visto que as meninas são estimuladas a praticar exercícios e a fazerem dietas para perder peso, enquanto os meninos o fazem para ganhar musculatura. Essas influências contribuem para o desenvolvimento de distintos padrões estéticos e percepções em relação ao próprio corpo (McCabe & Ricciardelli, 2003; Conti, Gambardella & Frutoso, 2005). Em estudo brasileiro desenvolvido com adolescentes, Conti et al. (2005) verificaram associação significativa entre estado nutricional e imagem corporal, concluindo que estado nutricional, maturação sexual e sexo interferem na satisfação corporal. Berg, Simonsson e Ringqvist (2005) identificaram, em escolares suecos de 15 anos do sexo masculino, que os obesos manifestaram mais sintomas psicossomáticos, ideação e tentativa suicida, consumo de drogas ilícitas e insatisfação com sua aparência, além de possuírem menos amigos quando comparados aos com sobrepeso ou eutróficos. Semelhante a esse resultado, em estudo com escolares de Gravataí/RS, os autores verificaram associação entre sentimento de discriminação e preocupação com a imagem corporal (Bittencourt et al., 2009). Muitos fatores têm sido descritos como associados à percepção da imagem corporal. Em função disso, o presente estudo foi desenvolvido com o objetivo de investigar a prevalência de insatisfação com a imagem corporal e sua associação com fatores demográficos, psicossociais, estilo de vida, estado nutricional e maturidade sexual em escolares de Gravataí-RS. Método Foi realizado um estudo transversal, tendo como população alvo 2.282 escolares matriculados, no mês de março de 2005, na sétima série das escolas públicas municipais de ensino fundamental. Para o cálculo do tamanho da amostra, considerou-se uma frequência de 50% para insatisfação com a imagem corporal, um erro máximo de ± 3% e nível de significância de 0,05, estimando-se a necessidade de 728 estudantes. Aplicando-se um efeito de delineamento de 1,5, essa passou para 1.092 alunos, sendo acrescida de 20% para suprir possíveis perdas, totalizando 1.312 escolares. Como esses representavam cerca de metade da população alvo, decidiu-se sortear metade mais uma das turmas de sétima série existentes em cada uma das 15 regiões existentes. Ao final da seleção, obteve-se uma amostra com 1.366 alunos. As perdas existentes foram de 14,3%, tendo sido avaliados 1.170 estudantes. A coleta de dados foi realizada em sala de aula, utilizandose quatro questionários e duas fichas coletivas de registro: ficha antropométrica e ficha de avaliação da maturidade sexual de Tanner. As questões relacionadas à imagem corporal foram coletadas com auxílio do “body shape questionnaire” – BSQ (Cooper, Taylor, Cooper & Fairburn, 1987), validado para adolescentes por Conti, Cordás e Latorre (2009), com bons resultados em termos de validade e confiabilidade (alfa=0,96). Este questionário é composto por 34 perguntas, autoaplicáveis, sendo utilizado para avaliar a preocupação com a imagem corporal, ganho de peso, baixa estima relacionada à aparência física, desejo da perda de peso e insatisfação com o corpo. Segundo os autores, é possível classificar os sujeitos em quatro categorias: 1) não preocupados com a imagem corporal (<80 pontos); 2) levemente preocupados (81 a 110 pontos); 3) moderadamente preocupados (111 a 140 pontos); e 4) extremamente preocupados (>141 pontos). Para fins do estudo de associação com os fatores em estudo, o desfecho foi recategorizado em satisfeitos (< 81 pontos) e insatisfeitos (≥ 81 pontos). Para avaliar a saúde do escolar (uso de álcool, tabaco e drogas ilícitas, início da vida sexual e fatores psicossociais; número de amigos; pais/responsáveis entendem seus problemas; pais/responsáveis sabiam onde estavam; falta às aulas sem permissão; sofrimento de agressão; participação em brigas; tratamento recebido dos colegas; sentimento de discriminação, solidão e tristeza; dificuldade para dormir, ideação e planejamento suicida) utilizou-se o instrumento Global School-Based Student Health Survey-GSHS, elaborado pela Organização Mundial de Saúde (WHO, 2010). 24 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 23-30 A inserção econômica foi avaliada e classificada segundo a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa-ABEP (ABEP, 2010). A atividade física, utilizando os critérios de frequência e duração, foi avaliada através do International Physical Activity Questionnaire- IPAQ (2005). O ponto de corte utilizado para categorizar os fisicamente ativos foi um tempo de atividade física igual ou superior a 300 minutos semanais (Hallal, Bertoldi, Gonçalves & Victora, 2006). Utilizou-se uma ficha de avaliação antropométrica, contendo dados referentes ao peso, altura, cor da pele autorreferida e data de nascimento. Todos os escolares foram pesados em balanças digitais Secas e medidos com fita antropométrica aferida por empresa credenciada pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO). O peso e a altura foram obtidos com o uso de calcinha ou cueca e camiseta (uso exclusivo para o estudo, sendo descontado 200g) em ambiente privado. As técnicas utilizadas são as recomendadas pela Organização Mundial da Saúde para a realização da antropometria (WHO, 1995). Na avaliação do estado nutricional, foi utilizado o índice de massa corporal (IMC), dividindo-se o peso (em quilos) pela altura (em metro) elevada ao quadrado. Inicialmente, foi usada a classificação de Must, Dallal e Dietz (1991), que avalia o IMC segundo faixa etária e gênero, classificando-o em percentis de cinco a 95. No entanto, a classificação de Cole, Bellizzi, Flegal e Dietz (2000) é considerada mais fidedigna para a identificação de sobrepeso e obesidade. Assim, os escolares acima do percentil 50 foram reavaliados segundo esta classificação. O estado nutricional foi categorizado em desnutrição/risco para baixo peso (≤ P14), eutróficos (≥ P15 a ≤ P84) e sobrepeso/ obesidade (≥P85). Para a coleta dos dados referente à cor da pele, foi perguntado ao escolar qual era sua cor, sendo registradas as seguintes categorias: branca, parda, preta, amarela ou indígena. Após, essas foram agrupadas em brancos e não brancos. Os jovens preencheram, com privacidade, a ficha de autoavaliação da maturidade sexual de Tanner (1962), que consiste na avaliação das características de seus órgãos genitais na identificação de figuras semelhantes na ficha. A classificação de Tanner categoriza, segundo o sexo, a maturidade sexual em cinco estágios. Para fins deste estudo, optou-se por trabalhar com três categorias: fase inicial ou pré-puberal (estágio um e dois); fase de aceleração (estágio três); e fase de desaceleração da maturidade sexual (estágios quatro e cinco). Para o sexo masculino, a genitália e os pêlos pubianos são avaliados e, para o sexo feminino, os pêlos pubianos e o desenvolvimento das mamas. Os fatores em estudo foram divididos em cinco grupos: sociodemográficos, psicossociais, estilo de vida, estado nutricional e maturidade sexual. As associações de interesse foram testadas com o auxílio do software STATA 6.0, utilizando a Regressão de Cox bruta modificada para estudos transversais e controlada pelo sexo, sendo que o desfecho foi categorizado em satisfeitos ou insatisfeitos com a imagem corporal. Cinco casos foram excluídos, pois não haviam respondido a todos os itens do BSQ, ficando a amostra composta por 1.165 escolares. Realizou-se reuniões com a direção, professores e funcionários das escolas com o objetivo de esclarecer a relevância deste estudo para a comunidade escolar e solicitar a sua colaboração, convidando também os pais e responsáveis para participar destas reuniões e, ao final, assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição de afiliação dos autores, com o protocolo de número 375H/2004. Resultados Em relação à imagem corporal, encontrou-se 76,4% jovens não preocupados, 14,5% levemente, 6,7% moderadamente e 2,4% gravemente preocupados com sua imagem corporal. Quanto às características dos escolares investigados, a média de idade foi de 14 anos (DP=1,13), variando de 12 a 18 anos; 52,5% eram meninas; 52,5% autorreferiam-se como brancos; e 19,2% eram da classe D+E. No que tange ao estado nutricional, 13,4% encontravamse em risco nutricional/desnutrição, 66,0% eram eutróficos e 20,6% apresentavam sobrepeso/obesidade. Verificou-se que, respectivamente, 47,9% e 41,5% dos alunos estavam na fase de aceleração e desaceleração da maturação sexual, e a minoria encontrava-se na fase pré-puberal. Em relação ao estilo de vida, 79,6% ainda não haviam iniciado vida sexual ativa; 16,7% fizeram uso na vida de tabaco, 59,6% de álcool, 2,3% de outras drogas ilícitas; e 56% eram insuficientemente ativos (tabela 1). A prevalência de insatisfação com a imagem foi 4,6 vezes maior no sexo feminino do que no masculino, porém não foram encontradas diferenças significativas em relação à cor da pele. Os jovens de mais baixa inserção econômica (D+E) apresentaram 47% mais insatisfação dos que os da categoria B. Entretanto, quando essa associação foi controlada pelo sexo, perdeu magnitude e significância estatística (tabela 1). Foram verificadas diferenças na percepção da imagem corporal segundo o estado nutricional. Os jovens 25 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 23-30 eutróficos e os com sobrepeso/obesidade apresentaram, respectivamente, 2,0 e 5,2 vezes mais insatisfação do que os em risco nutricional/desnutridos. Porém, mesmo entre os desnutridos/risco nutricional encontrou-se 8,3% de insatisfação. Quando investigada a maturação sexual, a mais alta prevalência do desfecho (26,8%) foi encontrada entre os jovens no estágio de aceleração, ainda que não tenham sido evidenciadas diferenças significativas (tabela 1). Quanto aos fatores relacionados ao estilo de vida, 24,8% dos que não haviam iniciado sua vida sexual estavam insatisfeitos com a sua imagem versus 18,9% entre os que já haviam iniciado. Apesar disso, não se encontrou significância estatística, semelhante ao ocorrido em relação ao uso de álcool e drogas ilícitas. Diferentemente, na análise bruta, o uso de tabaco na vida e a atividade física associaram-se com a percepção da imagem corporal. Os escolares que fizeram o uso na vida de tabaco manifestaram 50,0% mais insatisfação do que os que nunca experimentaram e os que eram insuficientemente ativos se apresentaram 39% mais insatisfeitos do que os ativos. Ao controlar pelo sexo, a atividade física perdeu a magnitude de sua associação, porém o uso de tabaco manteve sua significância (tabela 1). Nas análises brutas, dos fatores psicossociais apresentados na tabela 2, não se associaram ao desfecho: número de amigos, pais/ responsáveis entenderam seus problemas, pais/responsáveis sabiam onde estava, falta às aulas sem permissão dos pais/responsáveis, agressão e participação em brigas nos últimos 30 dias. Entretanto, quando foi introduzida a variável sexo no modelo, os jovens que faltaram às aulas sem permissão dos pais/responsáveis, os que foram agredidos e os que participarem de brigas nos últimos 30 dias apresentaram 25%, 36% e 42% mais insatisfação, respectivamente, do que seus pares de referência. Ainda que na análise bruta tenha-se encontrado associação entre não se sentir bem tratados pelos colegas nos últimos 30 dias e o desfecho, quando houve o controle pelo sexo, verificou-se a perda da significância dessa associação. Tabela 1 Resultado das análises, brutas e controladas, entre fatores sociodemográficos, estilo de vida e insatisfação com a imagem corporal, em escolares da rede municipal, Gravataí, RS, 2005. Variáveis Total Insatisfação Insatisfação controlada pelo sexo N % n(%) RP IC 95% p RP IC 95% p Sexo Masculino 553 47,5 45(8,1) 1,00 Feminino 612 52,5 230(37,6) 4,61 (3,42-6,22) 0,000 Cor da pele Brancos 611 52,5 140(22,9) 1,00 1,00 Não brancos 554 47,5 135(24,4) 1,06 (0,86-1,30) 0,559 1,10 (0,91-1,34) 0,310 Classificação econômica B 256 22,0 51(19,9) 1,00 1,00 C 685 58,8 158(23,1) 1,15 (0,87-1,53) 0,307 1,10 (0,84-1,43) 0,468 D+E 224 19,2 66(29,5) 1,47 (1,07-2,03) 0,016 1,31 (0,97-1,76) 0,072 Estado nutricional Risco nutricional e desnutrido 156 13,4 13(8,3) 1,00 1,00 Eutrófico 769 66,0 146(19,0) 2,27 (1,32-3,91) 0,003 1,98 (1,16-3,37) 0,012 Sobrepeso e obesos 240 20,6 116(48,3) 5,80 (3,39-9,92) 0,000 5,16 (3,03-8,76) 0,000 Maturação Sexual Estágio Pré-puberal 124 10,6 24(19,4) 1,00 1,00 Estágio de Aceleração 560 47,9 150(26,8) 1,38 (0,94-2,03) 0,098 1,27 (0,88-1,84) 0,187 Estágio de Desaceleração 486 41,5 106(21,8) 1,12 (075-1,67) 0,555 1,30 (0,90-1,90) 0,156 Inicio da vida sexual Sim 238 20,4 45(18,9) 1,00 1,00 Não 927 79,6 230(24,8) 1,31 (0,98-1,74) 0,063 0,90 (0,69-1,17) 0,453 Uso na vida de tabaco Sim 195 16,7 64(32,8) 1,50 (1,19-1,90) 0,001 1,41 (1,13-1,75) 0,002 Não 970 83,3 211(21,8) 1,00 1,00 Uso na vida de álcool Sim 694 59,6 168(24,2) 1,06 (0,86-1,31) 0,558 1,10 (0,90-1,34) 0,343 Não 471 40,4 107(22,7) 1,00 1,00 Uso na vida de drogas Sim 27 2,3 6(22,2) 0,94 (0,46-1,91) 0,865 0,94 (0,50-1,77) 0,868 Não 1138 97,7 269(23,6) 1,00 1,00 Atividade Física Suficientemente ativos 512 44,0 99(19,3) 1,00 1,00 Insuficientemente ativos 653 56,0 176(27,0) 1,39 (1,12-1,73) 0,003 1,02 (0,82-1,25) 0,846 26 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 23-30 Os adolescentes que se sentiram discriminados nos últimos 30 dias; e os que referiram solidão, tristeza, dificuldade para dormir, ideação e planejamento suicida nos últimos 12 meses, apresentaram uma prevalência significativamente mais alta de insatisfação com sua imagem (tabela 2). Tabela 2 Resultado das análises, brutas e controladas, entre fatores psicossociais e insatisfação com a imagem corporal, em escolares da rede municipal, Gravataí, RS, 2005. Variáveis Número de amigos Nenhum ou 1 2 ou mais Pais /responsáveis entenderam seus problemas nos últimos 30 dias Sim Não Pais/responsáveis sabiam onde estava nos últimos 30 dias Sim Não Falta às aulas nos últimos 30 dias sem permissão pais/ responsáveis Sim Não Agressão nos últimos 30 dias Sim Não Participação em brigas nos últimos 30 dias Sim Não Tratado bem pelos colegas da escola nos últimos 30 dias Sim Não Sentimento de discriminação nos últimos 30 dias Sim Não Sentimento solidão últimos 12 meses Sim Não Sentimento tristeza últimos 12 meses Sim Não Dificuldade dormir últimos 12 meses Sim Não Ideação suicida nos últimos 12 meses Sim Não Planejamento do suicidio Sim Não Total n % Insatisfação n (%) RP IC 95% p Insatisfação controlada pelo sexo RP IC 95% p 56 1109 4,8 95,2 16 (28,6) 259 (23,4) 1,22 1,00 (0,79-1,87) - 0,356 - 1,20 1,00 (0,78-1,84) - 0,387 - 906 259 77,8 22,2 217 (23,9) 58 (22,4) 1,00 0,93 (0,72-1,20) 0,605 1,00 1,06 (0,83-1,34) 0,608 958 207 82,2 17,8 223 (23,3) 52 (25,1) 1,00 1,07 (0,83-1,40) 0,569 1,00 1,25 (0,99-1,59) 0,059 236 929 20,3 79,7 63 (26,7) 212 (22,8) 1,16 1,00 (0,91-1,49) - 0,205 - 1,25 (1,01-1,56) 1,00 - 0,046 - 103 1062 8,8 91,2 28 (27,2) 247 (23,3) 1,16 1,00 (0,83-1,63) - 0,361 - 1,36 (1,01-1,84) 1,00 - 0,040 - 221 944 19,0 81,0 57 (25,8) 218 (23,1) 1,11 1,00 (0,86-1,43) - 0,390 - 1,42 (1,13-1,79) 1,00 - 0,002 - 590 575 50,6 49,4 155 (26,3) 120 (20,9) 1,00 0,79 (0,64-0,97) 0,031 1,00 0,96 (0,79-1,17) 0,747 246 919 21,1 78,9 99 (40,2) 176 (19,2) 2,10 1,00 (1,71-2,57) - 0,000 - 1,68 (1,38-2,05) 1,00 - 0,000 - 328 837 28,1 71,9 134 (40,9) 141 (16,9) 2,42 1,00 (1,98-2,95) - 0,000 - 1,83 (1,50-2,23) 0,000 1,00 - 239 926 20,5 79,5 93 (38,9) 182 (19,7) 1,97 1,00 (1,61-2,43) - 0,000 - 1,68 (1,39-2,03) 1,00 - 0,000 - 222 943 19,1 80,9 80 (36,0) 195 (20,7) 1,74 1,00 (1,40-2,16) - 0,000 - 1,41 (1,15-1,73) 1,00 - 0,001 - 127 1038 10,9 89,1 59 (46,5) 216 (20,8) 2,23 1,00 (1,78-2,78) - 0,000 - 1,80 (1,48-2,20) 1,00 - 0,000 - 74 1091 6,3 93,7 30 (40,5) 245 (22,5) 1,80 1,00 (1,34-2,43) - 0,000 - 1,54 (1,18-2,03) 1,00 - 0,001 - 27 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 23-30 A análise do comportamento da percepção da imagem percentuais elevam-se para 13,2% e 32,3%. Por outro lado, corporal, segundo estado nutricional e sexo, mostrou que 73,7% dos meninos com sobrepeso/obesidade estão satisfeitos 4,5% dos meninos em risco nutricional e 3,1% dos eutróficos com sua imagem corporal contra 31,7% das meninas. superestimam seu peso, enquanto que, entre as meninas, esses Tabela 3 Distribuição da percepção da imagem corporal segundo sexo e estado nutricional em escolares da rede municipal de Gravataí, Gravataí, RS, 2005. Variáveis Feminino Masculino Total Insatisfação Satisfação Insatisfação Satisfação Insatisfação Satisfação n (%) n (%) n (%) n (%) n (%) n (%) Estado nutricional Risco nutricional e desnutrido 9 (13,2%) 59 (86,8%) 4 (4,5%) 84 (95,5%) 13 (4,7%) 143 (16,1%) Eutrófico 135 (32,3%) 283 (67,7%) 11 (3,1%) 340 (96,9%) 146 (53,1%) 623 (70,0%) Sobrepeso e obesos 86 (68,3%) 40 (31,7%) 30 (26,3%) 84 (73,7%) 116 (42,2%) 124 (13,9%) Discussão As perdas ocorridas neste estudo não comprometeram a representatividade da amostra, pois se distribuíram igualmente entre os sexos e regiões do município. Em função de características semelhantes, acredita-se que os resultados possam ser extrapolados para adolescentes que estudam na rede pública em municípios com o mesmo perfil populacional. Identificou-se que 23,6% dos escolares apresentaram insatisfação com a imagem corporal. Esse sentimento talvez possa ser entendido como um fenômeno frequente na adolescência, em função do estranhamento do jovem com seu próprio corpo. Entre os jovens estudados, apenas 9,1% tinham de moderada a grave preocupação. A insatisfação com a imagem corporal atinge ambos os sexos, predominando nas mulheres (Conti et al., 2005), mas a preocupação com o corpo também está presente entre os homens (Kakeshita & Almeida, 2006). Pinheiro e Giugliani (2006) descrevem que 43% dos meninos de 8 a 11 anos, em Porto Alegre, desejavam um corpo magro. Em Gravataí, a insatisfação foi quase cinco vezes maior nas meninas do que nos meninos. Campagna e Souza (2006), em estudo realizado com meninas de 12 anos, descreveram que essas, por não terem apoio social para compreender as mudanças no seu desenvolvimento, são mais suscetíveis aos modelos de beleza e de extrema valorização da aparência física veiculada pelos meios de comunicação. No presente estudo, não houve associação entre o desfecho e a cor da pele. Levine e Smolak (2004) apontam que alguns estudos encontraram diferenças na percepção corporal entre as várias etnias, mas acreditam que a insatisfação esteja mais relacionada às condições socioeconômicas e que as de raça branca são as mais insatisfeitas em função da cultura dominante do corpo magro. Constatou-se que os escolares com inserção econômica mais baixa (classe D+E) estavam mais insatisfeitos com sua imagem, semelhante ao encontrado entre escolares finlandeses (Mikkilã, Lahti-Koski, Pietinen, Virtanen & Rimpelã, 2003). Porém, ao ser controlada pelo sexo, houve perda da significância estatística dessa associação. Em estudo realizado com adolescentes de 12 a 19 anos, em seis cidades da América Latina, os autores identificaram que os jovens de classes econômicas mais altas eram os que mais desejavam a perda de peso, porém, semelhante à Gravataí, essa diferença não foi significativa (McArthur, Holbert & Peña, 2005). Em relação ao estado nutricional, verificou-se que os com sobrepeso/obesidade são mais insatisfeitos. Porém, encontrouse também um percentual importante de meninas eutróficas e com risco nutricional/desnutrição que referiram insatisfação com sua imagem, sendo essa mais expressiva do que entre os meninos. Resultados semelhantes foram encontrados por McArthur, Holbert e Peña (2005). É possível que essa variação seja decorrente de peculiaridades socioculturais, influenciando em maior ou menor grau um padrão de beleza relacionado ao corpo magro (Ramalho et al., 2007). Entretanto, a seriedade dessa situação é que a insatisfação de indivíduos eutróficos contribui para o surgimento de distúrbios alimentares entre jovens saudáveis do ponto de vista nutricional. No presente estudo, também se identificou que, dos adolescentes com sobrepeso/obesidade, 68,3% das meninas 28 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 23-30 estavam insatisfeitas e 73,7% dos meninos satisfeitos. Tem sido descrito que as meninas tendem a superestimar seu peso, enquanto os meninos subestimam-no (Kakeshita & Almeida, 2006). Ou seja, para os meninos, é possível que o sobrepeso e a obesidade possam ser considerados como um sinal de força (Conti et al., 2005). Para esses autores, as meninas pós-púberes se mostram mais suscetíveis à insatisfação quando comparadas com as pré-puberes. Porém, entre os meninos, não encontraram diferenças em relação à passagem do corpo infantil para o adulto, sugerindo que esses apresentam maior satisfação com seu crescimento. No presente estudo, não se identificou diferenças significativas da percepção corporal em relação à maturidade sexual. Das variáveis indicadoras do estilo de vida, não se encontrou associação do desfecho com o início da vida sexual e o uso na vida de álcool ou drogas. É possível que o pequeno número de escolares que declararam experiência com drogas tenha contribuído para este resultado. Isso pode ter ocorrido por omissão de informação ou, também, pelo estudo ter sido realizado em ambiente escolar, onde a prevalência do uso de drogas é inferior à população em geral (Vieira, Aerts, Freddo, Bittencourt & Monteiro, 2008). Em relação ao álcool, mesmo que a frequência de uso na vida tenha sido alta, não se encontrou associação. Pesquisa realizada com escolares do sexo feminino na Nova Escócia, Canadá, não encontrou associação de insatisfação com a imagem corporal, com o uso de álcool, tabaco e maconha (Cook, MacPherson & Langille, 2007). Diferentemente, entre escolares do sexo masculino na Suécia (Berg et al., 2005), os obesos consumiam mais drogas ilícitas e eram mais insatisfeitos. Em Gravataí, os adolescentes que fizeram uso na vida de tabaco demonstraram estar mais insatisfeitos com sua imagem corporal, podendo esse consumo de tabaco estar relacionado ao desejo de perder peso. Fernandes (2007), em estudo realizado com escolares de Belo Horizonte, identificou que os tabagistas tinham cerca de duas vezes mais chances de querer perder peso do que os não fumantes. Em relação aos fatores psicossociais estudados, não se identificou associação entre o desfecho e número de amigos dos jovens, sentimento de serem entendidos pelos pais/responsáveis e desses saberem onde estavam em seu tempo livre. Na análise controlada pelo sexo, situações como os jovens terem faltado às aulas sem consentimento dos pais/responsáveis, terem sido agredidos e participado de brigas nos últimos trinta dias se associaram à insatisfação com a imagem. Esses resultados sugerem que as meninas insatisfeitas são as que mais faltam às aulas, envolvem-se em brigas com os colegas e sendo agredidas. Entre os meninos, não foram identificadas diferenças significativas nos níveis de satisfação corporal em relação a essas três variáveis. É possível que a falta às aulas e o envolvimento nessas situações estejam relacionados com a baixa autoestima (Pinheiro & Giugliani, 2006; Tiggemann, 2005) e o sentimento de discriminação. Em outro artigo com a mesma amostra de Gravataí, verificou-se que as meninas sentem-se duas vezes mais discriminadas do que os meninos (Bittencourt et al., 2009). Constatou-se que sentimento de discriminação, solidão, tristeza; dificuldade para dormir; ideação e planejamento suicida tiveram forte associação com insatisfação corporal. Segundo Brausch e Gutierrez (2009), adolescentes que não se sentem confortáveis com a sua imagem corporal e têm autoestima baixa são mais suscetíveis a essas situações de risco. Outros pesquisadores referem que o isolamento social e a pior percepção de sua saúde predominam nos jovens obesos, assim como os com sobrepeso apresentam mais problemas com autoestima e maior prevalência de depressão, ideação suicida e abuso de substâncias psicoativas (Berg et al., 2005; Tiggemann, 2005). Cook et al. (2007) descrevem a depressão, o pensamento e o planejamento de suicídio como comportamentos de risco associados à percepção inadequada do peso. Considerações finais A sociedade atual propõe estereótipos de beleza, relacionandoos ao sucesso, poder e desempenho sexual, não enfatizando os valores que não estão relacionados à aparência física (Ramalho et al., 2007). Para os adolescentes, em especial, a influência da mídia e os fatores socioculturais estão entre as causas de distorção da percepção corporal (Conti et al., 2009). Neste contexto, a insatisfação com a imagem dos jovens, principalmente entre as meninas, deixa-as em situação de vulnerabilidade para o uso de tabaco, diminuindo sua autoestima, associando-se a sentimentos de tristeza, solidão, discriminação e dificuldade para dormir que, por sua vez, aumentam o risco de depressão, ideação e planejamento do suicídio. Essas situações foram identificadas no presente estudo, indicando a urgência no desenvolvimento de ações promotoras da saúde desses escolares. Nesse sentido, recomenda-se que educadores, profissionais de saúde e familiares sejam esclarecidos sobre a importância do reforço da autoestima dos jovens, salientando suas qualidades positivas, incentivando atividades físicas, hábitos saudáveis e convívio social. Com isso, estarão estimulando que os mesmos tenham maior satisfação com a sua imagem corporal e melhor qualidade de vida. 29 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 23-30 Referências ABEP - Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (2005). Critérios de classificação Econômica Brasil. São Paulo [online]. Disponível em http://www.abep.org (acesso 24/08/2010). Berg, I. M., Simonsson, B. O., & Ringqvist, I. (2005). Social background, aspects of lifestyle, body image, relations, school situation, and somatic and psychological symptoms in obese and overweight 15-year-old boys in a county in Sweden. Scandinavian Journal of Primary Health Care, 23, 95-101. Bittencourt, A. 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Recebido em setembro/2011 Revisado em novembro/2011 Aceito em dezembro/2011 30 R E L ATO D E P E S Q U I S A Enfrentamento e câncer de mama: revisão sistemática da literatura nacional Coping and breast cancer: systematic review of national literature Ana Cândida de Aguiar Machadoa*, Priscila Lawrenzb, Luciane Maria Bothc, Fernanda Bittencourt Romeirod, Elisa Kern de Castroe Resumo: O presente estudo objetivou realizar um levantamento dos artigos empíricos nacionais produzidos no período entre 2000 e 2010 sobre o enfrentamento de mulheres adultas frente ao câncer de mama. A busca ocorreu nas bases de dados Lilacs, Scielo e Pepsic e os artigos foram analisados de acordo com os seguintes critérios: 1. Base de dados em que o artigo estava indexado; 2. Título do artigo; 3. Palavras-chave; 4. Revista e ano de publicação; 5. Formação profissional dos pesquisadores; 6. Local de realização da pesquisa; 7. Objetivo; 8. Tema de pesquisa; 9. Delineamento e amostra; 10. Resultado; 11. Conclusão; 12. Disponibilidade de acesso. Foram selecionados seis artigos, todos indexados na base de dados Lilacs. Quatro deles referem-se a estudos empíricos com delineamento qualitativo e publicados em diferentes revistas da área da saúde. Os enfermeiros foram os profissionais que mais publicaram sobre o assunto e a maior parte das pesquisas foi realizada na região Sudeste. Apesar de indicativos importantes, como a relevância da espiritualidade e o papel dos profissionais da saúde para o enfrentamento da crise, não foi possível responder com clareza à pergunta: “quais são as estratégias de enfrentamento utilizadas por mulheres que vivenciam o câncer de mama no Brasil?”. Palavras-chave: Enfrentamento; Câncer de mama; Revisão da literatura nacional Abstract: The present study examined the published papers in Brazil about coping women with breast cancer between 2000-2010. The search was done on the databases Lilacs, Scielo and Pepsic and the articles were analyzed within ten categories: 1) Database where indexed the paper; 2) Paper’s title; 3) Keywords; 4) Journal and year of publication; 5) Author’s professional; 6) Local where the research was carried out; 7) Objective; 8) Topics researches; 9) Design and sample; 10) Results; 11) Conclusion; 12) Availability of access. Six articles were selected and indexed on Lilacs. Four of them are empirical studies, employed qualitative method and published in different journals. Nurses published more about coping to women facing breast cancer and the most research were carried out in the Southeast region. Although important indicators like the relevance of spirituality and the role of health professionals for coping to the crisis, it wasn’t possible clearly answer the question: “Which are the coping strategies used by women with breast cancer in Brazil?”. Keywords: Coping; Breast Cancer; National systematic reviewKeywords: Body image; Adolescent; Student; Sexual maturity a Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista PIBIC/CNPq. *E-mail: [email protected]. b Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista CNPq c Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista PROBIC/FAPERGS d Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista UNIBIC. e Psicóloga; Doutora em Psicologia Clínica e da Saúde (Universidade Autônoma de Madri). Professora Adjunta da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista Produtividade CNPq Sistema de Avaliação: Double Blind Review 31 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39 Nos dias atuais, o câncer é uma das maiores causas de morte no mundo, constituindo-se como um problema de saúde pública em países desenvolvidos e em desenvolvimento (Gonçalves, Padovani & Popin, 2008). Câncer pode ser entendido como o conjunto de mais de 100 doenças caracterizadas pela multiplicação de células anormais do corpo que se espalham desordenadamente originando tumores. Tais tumores podem ser malignos (acúmulos de células cancerosas) ou benignos (células que se multiplicam lentamente e assemelham-se ao tecido original). Células malignas podem migrar para outros órgãos e tecidos do corpo, resultando em um processo denominado metástase. Caso não seja interrompido, esse processo acarreta em sérias lesões que podem levar à morte (Straub, 2005). Entre os diversos tipos de câncer existentes, o câncer de mama é o segundo tipo mais comum no mundo e o de maior incidência entre as mulheres (Nazário &Kemp, 2007). No Brasil, os índices de mortalidade devido a esta doença são altos, devido, especialmente, ao diagnóstico tardio. Para o ano de 2010, a estimativa realizada pelo Instituto Nacional do Câncer (2009) foi de aproximadamente 49.240 novos casos. Se forem desconsiderados tumores de pele não melanoma, o câncer de mama é o mais frequente na Região Sul (64/100.000), Centro-Oeste (38/100.000) e Nordeste (30/100.000). Na Região Sudeste é o câncer de maior incidência entre as mulheres, com risco estimado de 65 novos casos para 100 mil habitantes. Na Região Norte é o segundo tumor de maior incidência (17/100.000) (INCA, 2011a). Apesar da pré-disposição genética ser uma das causas para o surgimento de alguns tipos de câncer, o desenvolvimento da doença está relacionado diretamente a fatores comportamentais e de estilo de vida (Gaviria, Vinaccia & Riveros, 2007). O câncer de mama é uma doença complexa que gera intenso impacto na vida das mulheres por conta dos tratamentos invasivos e da incerteza quanto à cura. É uma doença de maior prevalência entre mulheres a partir dos 40 anos, embora os índices de casos abaixo dessa faixa etária venham aumentando de forma progressiva (INCA, 2011b). De acordo com Bish, Ramirez, Burgess e Hunter (2005), pacientes que apresentam tumores pequenos e localizados possuem um prognóstico melhor se comparadas àquelas em estágios avançados da doença e com metástase. Por isso, a importância do diagnóstico e do tratamento em fases pré-sintomáticas, que se associam à melhores índices de sobrevida. Segundo Boff, Wisintainer e Amorin (2008), mediante o diagnóstico do câncer de mama, a mastectomia (cirurgia de retirada da mama) pode tornar-se necessária, seja ela conservadora (na qual é retirado apenas o quadrante em que se encontra o tumor) ou radical (retirada total da mama). Associam-se à mastectomia tratamentos adjuvantes como a quimioterapia, radioterapia e a hormonioterapia. A relevância social e teórica dos estudos voltados ao enfrentamento de mulheres com câncer de mama baseiase no fato de ser uma doença cada vez mais comum e que afeta diferentes âmbitos da vida da mulher. Além dos comprometimentos físicos causados pelos tratamentos invasivos, pela restrição de movimentos e atividades, pela redução da força do braço e pela mutilação da mama (Negrini & Rodrigues, 2000) surgem, ainda, problemas de ordem emocional e social relacionados ao reconhecimento cultural do seio como aspecto privilegiado da sexualidade, maternidade e feminilidade (Silva, 2008). As dificuldades vão desde a aceitação da doença e das mudanças corporais, até questões relacionadas às alterações ocorridas no cotidiano, nas relações com o parceiro e demais pessoas próximas, sem esquecer o confronto evidente e permanente com a ameaça de morte (Carvalho, 2002; Costa Jr., 2001; Rossi & Santos, 2003). Estudos têm demonstrado que pacientes que enfrentam sua doença de frente possuem melhor prognóstico se comparadas àquelas que se entregam emocionalmente (Straub, 2005). Enfrentamentof é o conjunto de estratégias cognitivas, comportamentais e emocionais utilizadas em resposta a eventos estressantes (Lazarus & Folkman, 1984) que se constitui como um processo autorregulatório (Weis, 2003). Consiste de um processo de mudanças voltadas a lidar com demandas internas e/ou externas que são avaliadas de acordo com os recursos que cada indivíduo possui (Lazarus & Folkman, 1984). A área da Psicologia Clínica e da Saúde relaciona o enfrentamento às adversidades, especialmente às doenças crônicas e intervenções médicas (Faria & Seidl, 2005; Straub, 2005), articulando conhecimentos derivados de áreas como a Psicologia, Fisiologia, Psiconeuroimunologia e Antropologia (Paiva, 2007). As formas de enfrentamento adaptativas estão relacionadas ao uso de estratégias variadas e múltiplas, alinhadas com o estresse da circunstância. O enfrentamento não é um processo individual e sim contextual, no qual deve haver a interação do paciente com o seu ambiente. O apoio e o ambiente social do indivíduo influenciam diretamente o manejo de estratégias de enfrentamento. Anderson (1988) pontua três elementos que fundamentam as técnicas de enfrentamento em pessoas que sofrem com doenças crônicas, as quais seriam: a informação, o sentido de 1 Neste estudo, o conceito de enfrentamento é utilizado como sinônimo do termo coping, definido como esforço cognitivo e comportamental para lidar (reduzir, dominar e tolerar) com demandas externas que sobrecarregam e excedem os recursos pessoais do sujeito (Negromonte& Araújo, 2011). 32 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39 controle e o apoio social. Apesar de ser bastante desvalorizada enquanto técnica de intervenção terapêutica, a informação, se for transmitida de forma adequada, pode ajudar na diminuição dos níveis de ansiedade dos pacientes. A falta de informações e entendimento em relação à doença pode acentuar os sintomas de depressão e o sentimento de frustração e desesperança. Já o controle pessoal e o controle frente à enfermidade são importantes no intuito de proporcionar bem-estar emocional aos pacientes, uma vez que auxiliam no controle e no cuidado com a saúde. O apoio social também pode ser utilizado como recurso de enfrentamento, pois auxilia o indivíduo quanto à adaptação frente à doença. Lazarus e Folkman (1990) afirmam que, com o tempo, os esforços para lidar com as circunstâncias que excedem os recursos pessoais do sujeito são normalmente modificadas através de avaliações e reavaliações a partir dos resultados experienciados em situações anteriores. Tendo em vista que as mulheres com câncer de mama precisam lidar com vários estressores da doença e do seu tratamento, e entendendo que a investigação dos modos de enfrentamento pode auxiliar na compreensão da adaptação à doença dessas pacientes, o presente trabalho tem por objetivo realizar uma revisão sistemática de artigos empíricos nacionais publicados no período entre 2000 e 2010 acerca do enfrentamento de mulheres adultas frente ao câncer de mama. Método Para a busca dos artigos foram utilizados os descritores Câncer de mama and enfrentamento/ Câncer and mama and enfrentamento/ Câncer de mama andcoping/ Câncer and mama andcoping nas seguintes bases de dados: Lilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde), Scielo (Scientific Eletronic Library Online) e Pepsic (Periódicos de Psicologia). O critério de seleção das bases de dados se deu em função delas serem referência em termos de busca de artigos científicos no Brasil. A revisão foi realizada de março a abril de 2011. A partir destes descritores, foram selecionados aqueles artigos empíricos brasileiros publicados entre os anos 2000 e 2010, em português com amostras de pacientes adultos e cujo foco da pesquisa é o enfrentamento de mulheres com câncer de mama submetidas a diferentes tipos de tratamento e em diferentes estágios da doença. Incluiu-se estudos empíricos publicados em revistas científicas com avaliação por pares, excluindo-se artigos teóricos, relatos de experiência, teses e dissertações. Foram excluídas também pesquisas cujo foco principal não era o enfrentamento de mulheres com câncer de mama, o que incluiria o enfrentamento de cônjuges e familiares, assim como da equipe de saúde frente aos cuidados com mulheres com câncer de mama. Na primeira busca, desconsiderando os critérios de exclusão, foram encontradas 70 publicações brasileiras em português nas três bases de dados anteriormente citadas. Em seguida, foram retirados os artigos repetidos nas três bases de dados. Procedeuse da seguinte forma: 1. Na base de dados Lilacs, foram encontradas durante a primeira busca 54 publicações. Dessas, 14 repetiam-se na própria base de dados, restando 40 artigos originais. Os dois artigos publicados antes do ano 2000 foram excluídos, assim como as teses, pesquisas/revisões bibliográficas e relatos de experiências que totalizavam 10 estudos. Os demais artigos foram analisados e pôde-se notar que em 22 deles o foco do estudo não era o enfrentamento de mulheres com câncer de mama. Sendo assim, apenas seis publicações atenderam aos critérios e sua análise foi levada a diante. 2. Na base de dados Pepsic apenas um artigo foi encontrado. Todavia, este foi excluído porque avaliar/compreender o enfrentamento em mulheres com câncer de mama não era o foco da pesquisa. 3. No Scielo foram encontradas inicialmente 15 publicações. Depois de excluídos aqueles que se repetiam, restaram 10. Desses, um foi excluído por tratar-se de uma tese e outro por ter sido publicado antes do ano 2000. Assim como foi realizado nas demais bases de dados, revisou-se o conteúdo dos artigos e constatou-se que os demais não tinham como foco do estudo o enfrentamento de mulheres com câncer de mama. Dessa forma, todos os artigos encontrados na base de dados Scielo foram excluídos. Abaixo, esquema que ilustra a busca e seleção dos artigos (figura 1): Figura 1. Critérios de seleção dos artigos incluídos na revisão sistemática 33 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39 Tendo como base o estudo de Castro e Remor (2004), de mama e enfrentamento não eram os conceitos principais que foram utilizadas as seguintes categorias e subcategorias para norteavam a pesquisa (80%). a análise dos artigos: 1. Base de dados em que o artigo estava indexado; 2. Título do artigo; 3. Palavras-chave; 4. Revista e ano Critérios de exclusão - Scielo de publicação; 5. Formação profissional dos pesquisadores; 6. 10% Local de realização da pesquisa; 7. Objetivo; 8. Tema de pesquisa; 10% 9. Delineamento e amostra; 10. Resultados; 11. Conclusão; 12. Anteriores ao ano 2000 Disponibilidade de acesso. Não eram artigos empíricos Resultados Primeiramente, é importante salientar que a produção de artigos empíricos voltados a investigar e/ou compreender o enfrentamento de mulheres com câncer de mama no Brasil é bastante escasso, o que se pôde notar através do número reduzido de artigos encontrados (seis artigos). Os principais impasses que se apresentam são a falta de clareza na definição do conceito “enfrentamento” e os problemas metodológicos tais como a delimitação do delineamento e da amostra (Cerqueira, 2000; Gimenes, 1997). Como o número de artigos excluídos mostrou-se bastante significativo, os gráficos abaixo apresentam motivos pelos quais foram excluídos segundo cada uma das bases de dados revisadas. Dos 40 artigos encontrados na base de dados Lilacs (figura 2), seis deles foram selecionados. Como se pode observar, a maior parte dos artigos foi excluída porque o foco principal não era avaliar/compreender como se dá o enfrentamento em mulheres com câncer de mama (65%). Outra parcela significativa é de artigos não empíricos, caracterizados por teses, revisões/ pesquisas bibliográficas e relatos de experiência (29%). Critérios de exclusão - LILACS 6% 29% Anteriores ao ano 2000 Não eram artigos empíricos 65% Enfrentamento do câncer de mama não é o foco das pesquisas Figura 2. Inclusão e exclusão de artigos na base de dados Lilacs Nenhum dos 10 artigos encontrados na base de dados Scielo foi selecionado, já que todos eles atendiam aos critérios de exclusão (figura 3). Assim como no caso da base da dados Lilacs, a grande maioria dos artigos foi excluída porque câncer 80% Enfrentamento do câncer de mama não é o foco das pesquisas Figura 3. Inclusão e exclusão de artigos na base Lilacs O Quadro 1 apresenta uma visão geral das principais características dos artigos selecionados a partir de critérios baseados no estudo de Castro e Remor (2004). Como se pode notar, quatro dos seis artigos selecionados consistem de pesquisas com delineamento qualitativo. Ao revisar a formação dos profissionais-pesquisadores, percebe-se que em quatro trabalhos os pesquisadores estão ligados à área da Enfermagem e em dois artigos o estudo foi desenvolvido por equipes multidisciplinares que envolviam psicológos, médicos, enfermeiros, odontologistas e terapeutas ocupacionais. A região do Brasil que mais publicou estudos sobre câncer de mama e enfrentamento durante esse período foi a região Sudeste, com quatro artigos publicados. As seis pesquisas que fazem parte da revisão foram publicadas por diferentes revistas, sendo que duas delas são da área da enfermagem e apenas uma específica da Psicologia. Ainda quanto ao ano de publicação, constatou-se que dois dos estudos foram publicados em 2009 e os demais apresentaram distinção em relação ao período de publicação. Ainda, a partir da análise dos artigos, pôde-se observar que os estudos empíricos selecionados relacionam o enfrentamento em mulheres com câncer de mama a diferentes temas, tais como: o enfrentamento da doença no momento do diagnóstico (Caetano, Gradim & Santos, 2009), a avaliação da espiritualidade como forma de enfrentamento do câncer de mama (Macieira, Cury, Mantese, Novo & Barros, 2007), o enfrentamento e a admissão hospitalar para cirurgia do câncer de mama (Ferreira, Almeida, Kebbe & Panobianco, 2004), o enfrentamento das pacientes em tratamento quimioterápico (Camargo & Souza, 2002), a importância do relacionamento terapêutico entre enfermeiro e paciente para o enfrentamento da situação (Negrini & Rodrigues, 2000) e a relação entre as modalidades de enfrentamento e as variáveis clínicas em mulheres em uso 34 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39 de medicamentos hormonioterápicos (Leite & Amorim, 2009). Entre os principais resultados encontrados a partir desses estudos, a religiosidade, a espiritualidade e a fé aparecem como estratégias fortemente utilizadas para o enfrentamento das situações de crise que envolvem o diagóstico e tratamento do câncer de mama (Caetano, Gradim & Santos, 2009; Ferreira et al., 2004; Leite & Amorim, 2009; Macieira et al., 2007). O apoio despendido pelos profissionais da enfermagem que objetivam dar suporte às pacientes que passam pelo tratamento da doença é, também, lembrado como fundamental para o enfrentamento da situação. Todavia, recomendações são feitas com a finalidade de aprimorar tais cuidados e estender a responsabilidade para as demais áreas da saúde (Caetano, Gradim & Santos, 2009; Ferreira et al., 2004; Negrini & Rodrigues, 2000). Durante a análise dos artigos, observou-se também que não havia consenso no uso do conceito de enfrentamento. Em estudo baseado no pensamento Heideggeriano, por exemplo, buscou-se entender as formas de enfrentemento a partir das singularidades de pacientes em tratamento quimioterápico (Camargo & Souza, 2002). Nesse caso, assim como no estudo que identifica as vivências do processo de diagnóstico e tratamento da doença (Negrini & Rodrigues, 2000), a relação enfermeiro-paciente aparece como protagonista no momento do enfrentamento do câncer de mama. De acordo com Negrini e Fagundes (2000), os enfermeiros seriam os profissionais capazes de atender aos apelos das mulheres que são duramente atingidas física, psicológica e socialmente pelo problema. Na maioria das vezes, essas mulheres não estão preparadas para enfrentar sozinhas tais dificuldades, que incluem a aceitação da nova imagem corporal, mudanças nos projetos pessoais e limitações em diferentes aspectos de vida. Já em outros estudos, conduzidos por equipes que contavam com a colaboração de psicólogos, médicos, odontologistas, enfermeiros e terapeutas ocupacionais, o conceito de enfrentamento como equivalente a coping é retomado. Esse é o caso do estudo que visa identificar as modalidades de enfrentamento relacionando-as às variáveis clínicas de mulheres diagnosticadas com câncer de mama em uso de medicamentos hormonioterápicos (Leite & Amorim, 2009). Nas pesquisas voltadas a investigar o papel da espiritualidade (Macieira et al., 2007) e a admissão hospitalar para realização da cirurgia por câncer de mama (Ferreira et al., 2004), também o conceito de enfrentamento é levantado a partir desse referencial teórico. 35 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39 Revista e ano de publicação Local de realização da pesquisa Objetivo Tema da pesquisa Delineamento e amostra Resultados Quadro 1 – Principais características dos artigos selecionados Palavras-chave Formação profissional Título do artigo Conclusão A doença foi um divisor de águas: elas passaram a ver o mundo de forma diferente, e a maneira como encaram os problemas também foi alterada. O desafio dos profissionais da área da enfermagem é acolher e atender de forma humanizada essas mulheres Estudo qualitativo com amostra de 15 mulheres O diagnóstico despertou nas mulheres sentimentos de desespero e angústia,que foram minimizados na esperança da cura depositada em Deus e na medicina. Passaram a valorizar mais suas vidas e as coisas íntimas do cotidiano Verificou-se que mulheres em uso de tamoxifeno que não apresentaram efeitos colaterais vivenciam mais a busca pelas práticas religiosas, enquanto a maior utilização do foco no problema ocorreu entre as mulheres que foram submetidas apenas à cirurgia e diagnosticadas em estágio I O enfrentamento da doença no momento do diagnóstico Estudo quantitativo com amostra de 270 mulheres O tipo de tratamento realizado, os efeitos colaterais quanto ao uso do tamoxifeno e o estadiamento influenciam o tipo de estratégia de enfrentamento utilizada Os achados sugerem a importância da espiritualidade para mulheres com câncer de mama Projeto Mulher com Câncer de Mama - Universidade Federal de Alfenas, Minas Gerais Estudo quantitativa com amostra de 30 mulheres Não houve diferença significante na utilização da espiritualidade, quando comparadas em relação a renda, religião, grau de instrução e estado civil Revista de Enfermagem Enfermagem UERJ, Rio de Janeiro. 2009 Examinar a relação entre as modalidades de enfrentamento e as variáveis clínicas de mulheres com diagnóstico de câncer de mama em uso de tamoxifeno Avaliação da espiritualidade como forma de enfrentamento do câncer de mama Enfermagem Enfermagem Ambulatório Ylza Bianco, pertencente ao Hospital Santa Rita de Cássia. Vitória, Espírito Santo Avaliar a espiritualidade no enfrentamento das crises físicas e psicológicas causadas pelo diagnóstico e tratamento do câncer de mama Estudo qualitativo com amostra de 10 mulheres Os resultados mostraram que Deus, Os dados apresentam a busca os médicos, a busca interna e outras dessas mulheres pela vida e estratégias foram utilizadas para o também a importância da escuta enfrentamento da situação dos profissionais envolvidos nesse momento, como um instrumento para a instalação de estratégias de enfrentamento capazes de proporcionar uma recuperação mais rápida dessas mulheres Câncer de mama, diagnóstico, enfrentamento, enfermaria Revista Brasileira de Pesquisa em Saúde, 2009 Psicologia, Odontologia e Medicina Ambulatorio de Mastologia da Universidade Santo Amaro, São Paulo; Núcleo de Mastologia do Hospital Sírio Libanês, São Paulo; Grupo de Apoio ao Paciente com Câncer de Recife, Pernambuco O enfrentamento e a admissão hospitalar para cirurgia do câncer de mama A partir do cotidiano existencial, a dimensão ontológica mostrou-se pela possibilidade de ser-aí-com A relação entre as modalidades de enfrentamento e as variáveis clínicas em mulheres em uso de medicamentos hormonioterápicos Psicologia, Enfermagem e Terapia Ocupacional Enfermaria de ginecologia e Descrever as estratégias obstetrícia de um hospital- de enfrentamento escola de Ribeirão Preto, relacionadas ao São Paulo momento da admissão hospitalar para cirurgia por câncer de mama Desvelou-se a emergência das singularidades do ser-aí-mulher enfermeira que cuida e pesquisa Hospital do Câncer III, Rio de Janeiro Descrever o enfrentamento e a possibilidade de desvelar as singularidades que podem envolver profissionais da equipe de saúde e as clientes em tratamento quimioterápico para o câncer de mama Enfrentamento das Estudo qualitativo com pacientes em tratamento amostra de 11 mulheres quimioterápico Enfermagem Clínica Renascer. Araraquara, São Paulo - Câncer de mama: reações e enfrentameto ao receber o diagnóstico Neoplasias de mama, estratégia de adaptação, tamoxifeno Revista Brasileira de Mastologia, 2007 Psicologia Argumento, Curitiba, 2004 Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, 2002 O Mundo da Saúde, São Paulo, 2000 A importância do Estudo qualitativo com relacionamento amostra de 24 mulheres terapêutico entre enfermeiro e paciente para o enfrentamento da situação Conhecer as reações das mulheres ao receberem o diagnóstico de câncer de mama e como enfrentaram a doença e o tratamento A relação entre as modalidades de enfrentamento e as variáveis clínicas de mulheres com diagnóstico de câncer de mama em uso de tamoxifeno Avaliação da espiritualidade Câncer de mama, no enfrentamento do câncer estresse, aspectos de mama psicológicos, espiritualidade, enfrentamento Enfermagem, quimioterapia, cotidiano assistencial, filosofia Enfrentamento e admissão Enfrentamento, hospitalar para realização da admissão hospitalar, cirurgia por câncer de mama câncer de mama Acompanhando mulheres que enfrentam a quimioterapia par o câncer de mama: uma compreensão das singularidades Relacionamento terapêutico Enfermagemenfermeiro-paciente junto a Oncologia, mulheres mastectomizadas comunicação com o paciente – enfermagem Identificou-se sentimentos, reações e necessidades cujo conhecimento é relevante para a adequada assistência de enfermagem. Efeitos positivos de assistência foram observados nas atitudes e comportamentos das mulheres e por elas verbalizados Procurou-se identificar como foi vivenciado o processo de diagnóstico e tratamento do câncer de mama pelas mulheres e identificar as necessidades e os recursos utilizados para enfrentamento da crise 36 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39 Discussão A partir da análise dos artigos nacionais sobre o enfrentamento de mulheres com câncer de mama, constatou-se que o volume de publicações científicas em revistas avaliadas por pares sobre o assunto no Brasil é escasso apesar de constituir-se como um tema de especial relevância, uma vez que a incidência de novos casos de câncer de mama aumenta a cada ano, o índice de mortalidade é alto e as mulheres precisam enfrentar a doença e o tratamento. A Psicooncologia é uma subespecialidade da Psicologia da Saúde com foco no bem-estar e na qualidade de vida do paciente com câncer, além da preocupação com a prevenção e o autocuidado (Carvalho, 2002; Cruzado, 2006). Apesar dessa área estar se desenvolvendo e disseminando de forma significativa nos últimos anos, os psicólogos ainda desempenham papel coadjuvante no cenário da pesquisa em câncer no país (Carvalho, 2002). No caso desta revisão, os enfermeiros são os profissionais da área da saúde que mais publicaram sobre o enfrentamento de mulheres diante do diagnóstico e tratamento do câncer de mama. Dos seis artigos incluídos nenhum foi realizado apenas por profissionais da Psicologia. Em dois deles os psicólogos estavam vinculados a equipes multidisciplinares que contavam ainda com profissionais da Medicina, Odontologia, Terapia Ocupacional e Enfermagem. Da mesma forma como ocorre em outras áreas da saúde, falta no país uma maior aproximação dos psicólogos no desenvolvimento de pesquisas e na geração de conhecimento, ficando a sua atuação bastante restrita à área clínica (Castro & Bornholdt, 2004). De acordo com López et al. (2008) é importante que aspectos biopsicossociais sejam levados em conta quando se trata de pensar o paciente em sua integralidade. Nesse sentido, a Psicologia da Saúde tem muito a contribuir no que tange as políticas públicas voltadas à investigação científica sobre a relevância dos aspectos psicológicos e comportamentais para a prevenção, enfrentamento e reabilitação da doença (León-Pizarro et al., 2007). Se for levado em conta que o conceito de enfrentamento deriva de teorias psicológicas e que o comportamento é um dos principais campos de estudo dessa área, logo se torna ainda mais relevante a participação dos profissionais da Psicologia no desenvolvimento de estudos e pesquisas que envolvam tais aspectos. Contudo, não são apenas os psicólogos que devem atender à tarefa de aprimorar e melhorar o atendimento à saúde. Nenhuma ciência é capaz de dar conta sozinha do entendimento de determinado fenômeno, especialmente quando se trata de uma doença tão complexa quanto o câncer de mama. Por isso a necessidade de investigações desenvolvidas por equipes inter e multidisciplinares, que são capazes de proporcionar variados olhares sobre a questão. O número reduzido de artigos selecionados pode ser entendido como um limitador da análise. Contudo, buscou-se respeitar os critérios de inclusão e exclusão criados anteriormente à revisão. Sendo assim, os achados dão conta do que foi previamente estipulado, representando justamente a escassez de produções empíricas que relacionam enfrentamento e câncer de mama. Os artigos não respondem à tendência internacional onde predominam os estudos quantitativos na área da saúde com pacientes crônicos (Castro & Remor, 2004; Zimpel & Fleck, 2007). No caso desta revisão, predominaram os estudos com delineamento qualitativo. A tendência de desenvolver pesquisas com ênfase exploratória, com o intuito de compreender e conhecer como se dá a relação entre enfrentamento e câncer de mama, talvez possa ser explicada pelo fato do conceito de enfrentamento – assim como é compreendido e estudado pela Psicologia – ainda ser pouco relacionado ao diagnóstico e tratamento de doenças crônicas no Brasil. No entanto, existem lacunas importantes tanto no caso de pesquisas qualitativas e quantitativas que merecem ser supridas com novos estudos e pesquisas nos próximos anos. Quanto às amostras, pode-se notar que uma das pesquisas quantitativas apresenta número bastante significativo de participantes, enquanto a outra esbarra nesse limitador. Além de demonstrar o pouco interesse que ainda há em desenvolver pesquisas nessa área, o fato também evidencia a dificuldade encontrada pelos profissionais da Psicologia em desenvolver pesquisas no âmbito hospitalar, apesar dos avanços ocorridos nos últimos anos. A inserção do psicólogo na área tem crescido cada vez mais, mas ainda merece ser aprimorada também com o intuito de facilitar o contato com os pacientes e ajudar no desenvolvimento de novas intervenções. A região do Brasil que mais desenvolveu e publicou artigos vinculados ao tema foi a região Sudeste. Este dado revela a discrepância que ainda existe em termos de pesquisa no país, sem contar as notáveis diferenças que existem em termos de atendimento e tratamento de mulheres acometidas pelo câncer de mama. Também não há um aumento significativo de publicações nos últimos anos apesar de dois artigos terem sido publicados no ano de 2009. De forma geral, pode-se concluir que há muito pouco conhecimento construído até o momento sobre o enfrentamento de mulheres frente ao câncer de mama com amostras brasileiras. 37 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39 Apesar de aparecerem indicativos importantes, como a relevância da espiritualidade e religiosidade para o enfrentamento da crise e o papel fundamental dos profissionais da saúde enquanto rede de apoio, não se pode, ainda, responder com clareza à pergunta: “quais são as estratégias de enfrentamento utilizadas por mulheres que vivenciam o câncer de mama no Brasil?”. É importante que sejam realizados mais estudos sobre o assunto para conhecer a realidade dessas mulheres, realidade essa que é distinta do cenário internacional não só em função das diferenças culturais entre os países, mas também por conta de questões relacionadas ao acesso ao tratamento de saúde. Para promover maior desenvolvimento de conhecimento nessa área, é de especial importância que se invista em pesquisas. Que estes sejam apenas os primeiros passos para grandes avanços alcançados daqui para frente. Referências Anderson, M. P. (1988). Stress management for chronic disease: an overview. In M. L. Russel (Ed.), Stress management for chronic disease (pp. 3-13). Oxford: Pergamon Press. Boff, R. A., Wisintainer, F., & Amorin, G. (2008). Manual de diagnóstico e terapêutica em mastologia. Caxias do Sul: Mesa Redonda. Bish, A., Ramirez, A., Burgess, C., & Hunter, M. (2005). Understanding why women delay in seeking help for breast cancer symptoms. Journal of Psychosomatic Research, 58, 321-326. Caetano, E. A., Gradim, C. V. C., & Santos, L. E. da S. dos. (2009). Câncer de mama: reações e enfrentamento ao receber o diagnóstico. Revista de Enfermagem UERJ,17(2), 257-261. Camargo, T. C., & Souza, I. E. de O. (2002). 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Recebido em agosto/2011 Revisado em setembro/2011 Aceito em outubro/2011 39 R E L ATO D E P E S Q U I S A Insegurança no trabalho e sua relação com a saúde psicológica do trabalhador Job insecurity and its relationship on psychological health of the worker Marli Appel Silva a*, Irani Iracema de Lima Argimon b, Guilherme Welter Wendt c Resumo: Esse estudo buscou examinar a associação entre a insegurança no trabalho e a saúde psicológica em trabalhadores. A amostra foi composta por 220 pessoas incluídas no mercado de trabalho formal brasileiro, em grandes empresas privadas. Os instrumentos utilizados foram: ficha para levantamento sociodemográfico e o Questionário Psicossocial de Copenhague (CoPsoQ). Os resultados indicaram associações entre a insegurança no trabalho e a saúde psicológica. Conclui-se que tal insegurança, ao gerar sintomas, expõe a vulnerabilização do emprego, por representar queda da produtividade individual no trabalho. Assim, a possibilidade de prejuízos à produtividade organizacional e perdas de recursos financeiros às empresas e ao Estado são ainda debatidas. Palavras-Chaves: Insegurança no trabalho; Saúde; Bem-estar. Abstract: This study aimed to examine the relationship between job insecurity and psychological health in formal workers. Sample was composed by 220 workers of large Brazilian companies. The instruments used were a sociodemographic questionnaire and The Copenhagen Psychosocial Questionnaire (CoPsoQ). The results indicated relationship between psychological insecurity and psychological health. We concluded that insecurity, at the time that generate these symptoms, exposes people to vulnerability and could represent a risk to individual productivity at work. Thus, the harm possibility to organizational productivity and financial losses to businesses and to the government are also discussed. Keywords: Job insecurity; Health; Well being. a Psicóloga (PUC-SP); Mestre e Doutora em Psicologia (PUC-RS com bolsa CNPq); * E-mail: [email protected] b Psicóloga (PUC-RS); Mestre em Educação e Doutora em Psicologia (PUC-RS); Pesquisadora do CNPq. c Bacharel em Psicologia (PUC-RS); Mestrando em Psicologia Clínica (UNISINOS, com bolsa CAPES); Sistema de Avaliação: Double Blind Review 40 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 40-47 A fragilidade nas relações trabalhistas foi uma das características do desenvolvimento histórico do mercado de trabalho brasileiro (Chahad & Menezes-Filho, 2002). Por este motivo, foi presente a sensação, por parte dos trabalhadores, de insegurança em relação à estabilidade e continuidade do próprio emprego. Entre os anos 30 e 80, a industrialização foi acompanhada de políticas governamentais repressivas, pouco propícias a negociações trabalhistas e que priorizavam o poder da empresa. Como consequência, o mercado de trabalho tornou-se pouco estruturado, ou seja, cada empresa dispondo de políticas próprias de alocação de pessoal. A Consolidação de Leis do Trabalho (CLT) apresentou influência insuficiente na estruturação dos empregos setoriais, constituindo relações trabalhistas frágeis. Nos anos 90, uma nova política econômica foi adotada no contextobrasileiro, com foco na abertura externa e racionalização da base produtiva, sendo esse fenômeno também conhecido por internacionalização econômica (Dedecca, 2000). Com essa nova política, houve a desnacionalização de setores produtivos pela fusão ou aquisição de empresas tradicionais, ou mesmo através da associação com grupos estrangeiros. Surgiram grandes conglomerados e, por consequência, o enfraquecimento da empresa nacional, alterando a dinâmica produtiva e econômica do país (Diniz, 1999). Também houve a mudança de um regime de altas taxas inflacionárias para um com estabilidade; a passagem de uma economia fechada para uma economia aberta; a proliferação de formas atípicas de ocupação e de novos contratos de trabalho; a lenta modificação do papel do Estado na sociedade; o processo de inovação tecnológica; e o aspecto demográfico, com o surgimento de grande contingente de pessoas economicamente ativas (Chahad, 2003) e a grande disponibilidade de trabalhadores (Dedecca, 1998). No Brasil, a diferenciação entre emprego “formal” e “informal” deriva de ordem jurídica. O emprego formal é o que se caracteriza pela Carteira de Trabalho registrada e pelas garantias legais concedidas pela CLT. Por sua vez, o emprego informal é regido por uma diversidade de contratações, que podem ser, por exemplo, de natureza cooperativada, terceirizada, ou, inclusive, ilegal e criminosa, como, por exemplo, o trabalho escravo e infantil (Noronha, 2003). Por parte das empresas, houve uma tendência à focalização das atividades, terceirização de produtos e serviços, modernização tecnológica e organizacional. Estas vieram a incidir, portanto, em um mercado de trabalho pouco estruturado, fragilizando ainda mais as relações trabalhistas (Dedecca, 1998). Essas mudanças alteraram as bases produtivas, produzindo fenômenos diversos como a flexibilizaçãodas relações trabalhistas, a ampliação do desemprego e o crescimento da informalidade (Gómez & Thedim-Costa, 1999). Houve, ainda, a redução de 2,5 milhões de empregos formais na década de 90, associado ao aumento dos empregos informais: 43%, em 1992; 50%, em 2000 (Chahad & Menezes-Filho, 2002). Aliada a instabilidade do mercado de trabalho brasileiro, a partir dos anos 90, houve uma redução do investimento nas políticas sociais (Silva, 2001). Dessa maneira, ocorreu maior precarização dos serviços públicos de saúde, intensificando a desigualdade ao acesso a este serviço entre as pessoas incluídas e excluídas do mercado formal de trabalho ou em empregos precários. Em 2004, a população brasileira economicamente ativa era de aproximadamente 94 milhões de pessoas e 51,2% encontravam-se em empregos informais (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, 2006). Assim, a insegurança no trabalho, compreendida como a experiência subjetiva de medo relativa às condições de trabalho, passou a ser fator presente, inclusive, para as pessoas em empregos institucionalizados (Böckerman, Ilmakunnas & Johansson, 2011; Green, 2011). A insegurança como condição estrutural do mercado globalizado e deletéria à saúde do trabalhador passou a fazer parte do cotidiano das pessoas (Facey & Eakin, 2010; Scott, 2004). Desse modo, torna-se importante estudar a relação entre a insegurança no trabalho e a saúde psicológica, considerando, ainda, as possíveis diferenças entre homens e mulheres no tocante às percepções relativas ao trabalho. Assim, o objetivo desse estudo quantitativo transversal foi de verificar a relação entre essas variáveis em trabalhadores que com vínculo empregatício. Método Amostra Participaram desta pesquisa 220 trabalhadores de empresas de grande porte dos setores da indústria, comércio e serviço, todas localizadas na região metropolitana de Porto Alegre, RS. A seleção da amostra foi por conveniência, ou seja, dirigida intencionalmente a um grupo específico de participantes. Das empresas convidadas para participar do estudo, aquelas que responderam positivamente ao convite receberam informações detalhadas sobre a pesquisa, bem como os objetivos e procedimentos. Os critérios de escolha dos participantes foram: ser homem 41 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 40-47 ou mulher; estar na idade adulta (26 e 65 anos); ter nível superior completo; atuar em empregos formais em empresas privadas de grande porte há mais de um ano (regidos pela Consolidação de Leis do Trabalho – CLT). As grandes empresas, em geral, apresentam altas demandas em relação ao desempenho dos colaboradores, razão pela qual optou-se, nesse estudo, por esse tipo de organização. Do mesmo modo, a escolha por pessoas com nível superior de escolaridade foi realizada com base na suposição de maiores responsabilidades atribuídas às funções desempenhadas por colaboradores com essa escolaridade. Instrumentos Além de uma ficha de dados sociodemográficos, utilizou-se o Questionário Método Psicossocial de Copenhague (CoPsoQ). O CoPsoQ se propõe a ser uma medida integrativa de saúde ocupacional e é composto por 95 afirmativas dispostas em uma escala likert de cinco pontos (Instituto Sindical de Trabajo, Ambiente y Salud - ISTAS, 2005). O processo de adaptação semântico-cultural do CoPsoQ foi realizado pelas seguintes atividades: tradução e retrotradução do instrumento; avaliação de juízes especialistas na área de Psicologia do Trabalho e de Adaptação de Instrumentos para a verificação da adequação dos itens Estudo Piloto; e, finalmente, estudo principal. As subescalas Saúde Psicológica e Insegurança no Trabalho, utilizadas para esta pesquisa, evidenciaram coeficiente alpha de Cronbach considerados satisfatórios, 0,72 na subescala Insegurança no Trabalho e 0,89 na subescala Saúde Psicológica. Procedimentos Os participantes responderam aos instrumentos de forma individual, no horário de trabalho habitual. Os dados, após tabulados, foram analisados quantitativamente, por meio de técnicas de estatística descritiva (médias e desvio-padrão) e inferencial (chi-quadrado). Para todas as análises foi utilizado o pacote estatístico SPSS, versão 17.0. O nível de significância adotado foi p ≤ 0,05. Esse estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (protocolo: 06-03232) e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido. de idade de 40,2 anos. Os cargos com maior ocupação foram os técnico-administrativos (55,7%). A renda salarial ficou concentrada entre 5 e 15 salários mínimos (54,4%). O setor econômico do serviço contou com mais pessoas, 43,1%; seguido o do comércio, 32,2%; e da indústria, 24,7%. Tabela 1 Percentuais de respostas dos dados sociodemográficos Homens n % Faixa etária 26-30 anos 19 14,4% 76,5% 31-55 anos 101 56-65 anos 12 9,1% 7 5,3% Faixa Salarial Até 5 s.m. 5-10 s.m. 30 22,7% 16,7% 10-15 s.m. 22 27,3% 15-20 s.m. 36 acima de 20 37 28,0% s.m. 37 28,0% Filhos Não tenho filhos 31 23,5% 1filho 50 37,9% 2 filhos 3 filhos ou 14 10,6% mais 43,2% Nível Administrativo/ 57 Hierárquico Técnico 31 23,5% Gerência Diretoria 44 33,3% 66 50,0% Setor econômico Serviço 30 22,7% Comércio Indústria 36 27,3% Mulheres n % 28,4% 25 63 71,6% 0 0,0% 21 17 8 23,9% 44,3% 19,3% 9,1% 3 3,4% 26 29,5% 20 39 22,7% 44,3% 3 3,4% 61 69,3% 12 13,6% 15 17,0% 52 23 59,1% 26,1% 14,8% 39 13 Insegurança no trabalho A subescala insegurança no trabalho apresenta quatro questões, com respostas dicotômicas, e avalia preocupações com tornar-se desempregado e ser transferido para outro lugar de trabalho contra o consentimento (Kristensen, Hannerz, Hogh & Borg, 2005). As mulheres ocuparam em maior quantidade os cargos administrativotécnicos (59,3% mulheres e 52,9% homens); e os homens, os de gerência (27,7%) quando comparados às mulheres (18,7%). Além disso, houve menor proporção de mulheres nos cargos de diretoria (22,0%, de homens; e 19,9%, de mulheres). A teoria da dupla presença considera que as diferenças relativas ao sexo devem ser necessariamente investigadas nos estudos organizacionais, uma vez Resultados que condicionantes históricos podem operar em desigualdades no trabalho (Amick, Levine, Tarlov & Walsh, 1995). Utiliza-se o termo A amostra deste estudo apresentou mais homens do que “dupla-presença”em alusão à jornada exaustiva da mulher em casa e mulheres (homens, 55,9%; e mulheres, 44,1%). A faixa etária no lar, uma vez que a esta compete, ainda na atualidade, a tarefa de predominante foi entre 31 e 55 anos (77,1%), com média coordenar as atividades domésticas. 42 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 40-47 Tabela 2 Percentuais de respostas nas questões sobre insegurança no trabalho entre homens e mulheres Questões Homem Mulher Total Sim Não Sim Não Sim Não (%) (%) (%) (%) (%) (%) Tornar-se 67,9 32,1 66,7 33,3 67,4 32,6 desempregado Tornar-se desempregado 73,4 26,6 78,0 22,0 74,4 24,6 por causa das novas tecnologias Dificuldade para encontrar outro 66,5 33,5 76,2 23,8 70,8 29,2 trabalho se desempregado Ser transferido para outro lugar 67,3 32,7 80,2 19,8 73,3 27,0 de trabalho contra o consentimento Total 68,8 31,2 75,3 24,7 71,6 28,4 A maioria dos participantes revelou preocupação com a possibilidade de tornar-se desempregado (71,6%). As questões com maior frequência de respostas foram tornar-se desempregado por causa de novas tecnologias (74,4%) e ser transferido para outro lugar de trabalho contra o consentimento (73,3%). As mulheres revelaram maior medo de serem transferidas para outro lugar de trabalho contra a vontade (80,2%) e desemprego por causa de novas tecnologias (78,0%). Os homens apontaram altos índices relativos ao medo de tornarse desempregados por causa de novas tecnologias (73,4%), conforme ilustra atabela 2. Saúde geral O Questionário CoPsoQ, na subescala saúde, afere o bemestar geral - avaliação das condições da saúde como um todo; vitalidade - níveis de energia disponível e de fadiga; bemestar psicológico - sintomas depressivos e ansiosos; estresse geral - condutas de fuga das dificuldades, luta ou contenda (comportamental); sintomas físicos ou psicossomáticos (somático); nervosismo e irritabilidade (cognitivo). Na tabela a seguir, as respostas foram agrupadas de acordo com estas medidas (Kristensen, Hannerz, Hogh&Borg, 2005). Tabela 3 Percentuais de respostas nas questões sobre a saúde geral Variáveis Questões Alta Média (%) (%) Bem-estar geral Saúde geral 72,2 20,0 Vitalidade Grau de energia 52,2 37,6 Bem-estar Ansiedade psicológico 32,8 51,8 Depressão 26,9 59,8 Estresse Tolerância com outras 72,6 19,9 comportamental pessoas Estar um tanto sensível 77,3 18,5 Relaxar ou ter prazer 70,6 24,9 consigo Falta de iniciativa 59,5 28,6 Estresse somático Dor ou problemas de 50,9 32,5 estômago Aperto ou dores de tórax 56,1 32,1 Atordoamento ou confusão mental 59,8 29,7 Tensão em vários músculos 51,4 32,1 Estresse cognitivo Problemas para se concentrar 59,5 31,0 Dificuldade para tomar decisões 43,8 39,7 Dificuldade para pensar 47,0 36,3 claramente Dificuldade para se lembrar 49,7 38,4 Baixa (%) 7,8 8,7 15,4 13,3 7,5 4,2 4,5 11,9 16,6 11,8 10,5 16,5 9,5 16,5 16,7 11,3 A maioria dos participantes indicou boa saúde geral (72,2%) e vitalidade (53,2%). Os sintomas ansiosos obtiveram maior frequência do que os depressivos (15,4% e 13,3%, respectivamente). Os sintomas de estresse foram: dificuldade para pensar claramente (16,7%), dores ou problemas no estomago (16,6%), tensão em vários músculos (16,5%), dificuldade para tomar decisões (16,5%), falta de iniciativa (11,9%) e aperto ou dores no tórax (11,8%). Os participantes apresentaram-se mais vulneráveis aos sintomas ansiosos, depressivos, no bem-estar psicológico (14,4%); e relativos ao estresse (11,4%). As mulheres apresentaram maior frequência de sintomas (13,6%), na saúde geral, do que os homens (8,2%). Elas apresentaram, principalmente, sintomas ansiosos e depressivos, no bem-estar psicológico (mulheres, 21,8%; e homens, 8,7%), e do estresse geral (mulheres, 18,2%; e homens, 6,1%) (ver tabela 4). O teste inferencial qui-quadrado revelou diferença estatisticamente significativa entre a insegurança no trabalho e a saúde geral (X2=1316,67, p≤0,01), o bem-estar geral (X2=346,71, p≤0,01), o bem estar psicológico (X2=649,98, p≤0,01), a vitalidade (X2=460,26, p≤0,01) e o estresse geral (X2=864,96 p≤0,01). 43 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 40-47 Tabela 4 Percentuais de respostas nas dimensões da saúde geral Bem-estar geral Bem-estar psicológico Freq. H M T H M T (%) (%) (%) (%) (%) (%) Baixa 70,7 74,3 72,2 31,8 27,0 29,8 Média 20,7 19,0 20,0 59,5 51,2 55,8 Alta 8,6 6,7 7,8 8,7 21,8 14,4 Nota. As dimensões foram subdivididas em homens (H), mulheres (M) e total (T). Discussão A insegurança no trabalho relacionou-se à saúde geral, indicando que maior insegurança representou menor saúde. Estudos com outras populações apoiaram essa relação (Brand, Warren, Carayon & Hoonakker, 2007; Rugulies, Bültmann, Aust & Burr, 2006;). Os participantes relataram, principalmente, sintomas ansiosos, depressivos e de estresse, relacionados à insegurança no trabalho. Tal insegurança, por longo período de tempo, gerou estresse contínuo, depressão e ansiedade, em concordância com os achados do estudo de Strazdins, D’Souza, Lim, Broom e Rodgers (2004). As relações de trabalho, historicamente fragilizadas no Brasil, ocasionam aos trabalhadores a iminência constante do risco do desemprego. O que representa, objetivamente, a possibilidade de exclusão social ou a inserção no mercado informal, determinando menos acesso aos benefícios sociais, especialmente, o da saúde (Manyo-Gomez & Lacaz, 2005). Como os participantes possuíam famílias constituídas, a maioria com filhos, considera-se que o desemprego representaria fator de empobrecimento e exclusão social também para as suas famílias. O que, possivelmente, aumentou o medo do desemprego. Assim, para os participantes, a prevalência de insegurança no trabalho, na ordem 71,6%, revelou-se acima dos estudos internacionais realizados. A insegurança no trabalho, ao ocasionar sintomas ansiosos, depressivos e de estresse, contribui para a redução da produtividade individual (Brogmus, 1996; Murphy, Duxbury & Higgins, 2006). Tais sintomas associam-se a incapacidade funcional (Egede, 2007) e ao presenteísmo, ou seja, a perda de produtividade no local de trabalho; e o absenteísmo, faltas ao trabalho (Caverley, Cunningham & MacGregor, 2007; Lerner et al., 2004a; Sanderson & Andrews, 2006). Portanto, obtêm-se como hipótese de que os sintomas psicológicos, apresentados pelos participantes, contribuíram para a redução da produtividade individual. A queda da produtividade ocorreu devido ao declínio Vitalidade H (%) 48,8 39,2 9,5 Estresse geral M (%) 57,1 35,3 7,6 T (%) 46,2 37,6 8,7 H (%) 68,4 25,5 6,1 M (%) 45,3 36,5 18,2 T (%) 41,3 30,3 11,4 cognitivo, ocasionado pelos sintomas ansiosos, depressivos e do estresse, nos estudo de Hancock e Vasmatzidis (2003). Estudos comprovam a prevalência de declínio cognitivo associado aos distúrbios psicológicos (Linden, Keijsers, Eling & Schaijk, 2005; Schmidt & Neubach, 2007). Para os participantes, os principais prejuízos cognitivos apresentados foram: dificuldade de pensar claramente, de tomar decisões e de iniciativa, devido ao estresse. O estresse, igualmente, gerou tensão em vários músculos, problemas ou dores de estômago e aperto ou dores no tórax. Estudo de Meerding, Ijzelenberg, Koopmanschap, Severens e Burdorf (2005) revelou que os problemas de saúde, incluindo a dor crônica, reduziram a produtividade individual em cerca de 5% a 12%. Desse modo, os estados de dor relatados pelos participantes também poderiam reduzir a produtividade individual. Outros estudos corroboraram com a hipótese de que a insegurança no trabalho foi um dos fatores contributivo para a queda na produtividade individual. Reisel, Chia, Maloles e Slocum (2007) demonstraram o efeito da insegurança no trabalho na queda da produtividade individual e, indireto, das organizações. A redução da produtividade no trabalho levaria aos prejuízos financeiros importantes. Stewart, Ricci, Chee, Morganstein e Lipton (2003) realizaram a estimativa dos custos com a queda da produtividade individual no trabalho devido à depressão, que foi na ordem de 44,0 bilhões de dólares por ano. A insegurança no trabalho, ao vulnerabilizar a saúde psicológica dos participantes, além de diminuir a produtividade individual, pode comprometer a permanência no próprio emprego. Lerner et al. (2004a) apontaram que parte das pessoas com depressão perdeu, de fato, o emprego ao longo do tempo. Em outro estudo de Lerner et al. (2004b), a queda da produtividade, devido às incapacidades na saúde psicológica, vulnerabilizaram o emprego, principalmente, para pessoas que necessitavam tomar decisões e ter contato com clientes. Ademais, a tomada de decisão representa um fator importante para a manutenção do emprego, mediante a necessidade de mudanças rápidas e da competência que o trabalho flexível exige (Mikkelsen, Saksvik, Eriksen & Ursin, 44 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 40-47 1999). Contudo, a tomada de decisão foi um dos principais declínios cognitivos apresentados pelos participantes, fato que os colocaria sob possível vulnerabilidade do emprego. Campbell, Carruth, Dickerson e Green (2001) encontraram que o medo do desemprego se baseou em avaliações sobre variáveis plausíveis e objetivas. A insegurança foi originada, principalmente, pela observação da fragilidade das relações trabalhistas do próprio emprego. Assim, o maior medo de desemprego representou maior desemprego futuro, já que as avaliações sobre a possibilidade de desemprego basearam-se em fatores contextuais do trabalho. A insegurança no trabalho associou-se a condições precárias de trabalho (Benach & Muntaner, 2007; Strazdins, D’Souza, Lim, Broom & Rodgers, 2004). Aliás, as condições precárias de trabalho, no Brasil, foi um fato historicamente relatado (Gomez & Thedim-Costa, 1999; Seligmann-Silva, 1994). Considera-se, dessa forma, que para a amostra desse estudo, uma vez que possuíam nível superior completo, com cargos administrativotécnicos ou de liderança (gerenciais e de diretoria) e atuavam em grandes empresas, devendo receber bom nível de informações, estavam cientes das contingências do mercado de trabalho brasileiro e do próprio trabalho, revelando significativo medo do desemprego. O principal medo apresentado, pelos participantes, foi relativo ao de serem desempregados devido às novas tecnologias. De acordo com Ferrer (1998), foi a inovação tecnológica que, em alguma medida, propiciou o desemprego estrutural, incluído o Brasil, pois, foi um dos instrumentos que auxiliou nas mudanças do trabalho contemporâneo. As mulheres revelaram que o maior medo foi relativo à transferência involuntária para outro local. Do mesmo modo, neste estudo, as mulheres apresentaram maior insegurança e maior frequência de sintomas relativos ao estresse, ansiedade e depressão. As participantes desse estudo apresentaram menores salários e oportunidades de ascensão profissional, quando comparadas aos homens. Esses fatores podem ter intensificado a insegurança no trabalho e o consequente prejuízo à saúde psicológica observado entre as mulheres participantes do estudo. Embora as mulheres tenham conquistado expressivo espaço no mercado de trabalho, pesquisas revelaram que os papéis de gênero continuaram atuantes, recaindo sobre as mulheres outras questões, como a organização do lar e gerenciamento da família (Perrone, Webb & Blalock, 2005; Carnicer, Sanchez, Perez & Jimenez, 2004). Ao longo das últimas décadas, as mulheres brasileiras continuaram com menores remunerações e possibilidades de ascensão profissional, embora, houvesse uma lenta mudança, no Brasil e em várias partes do mundo, a partir dos anos 90, não suficiente, ainda, para modificar este quadro (Bruschini & Puppin, 2004). Também, os profissionais com mais idade apresentaram maior insegurança no trabalho e maior prevalência de sintomas psicológicos. A idade revelou-se como um fator importante das relações entre essas variáveis, em estudos (Hotopp, 2007; Näswall & Witte, 2003). Ademais, o mercado de trabalho contemporâneo tende a excluir as pessoas mais velhas (Mills, 2004). O mesmo pode ser considerado para os menores cargos e salários, que também apresentaram maior insegurança no trabalho e menor saúde. Estudos realizados corroboraram com esses achados (Campbell et al., 2001; Green, 2011). Desse modo, levanta-se como hipótese que a alta frequência de insegurança no trabalho, associada a menor saúde psicológica, ao desencadear distúrbios psicológicos que reduziriam a capacidade cognitiva, acarretaria em maior vulnerabilização do emprego para as mulheres, as pessoas com mais idade, as com menores cargos e salários. A possibilidade de maior exclusão no trabalho, percebida pelas mulheres, redundou em maior insegurança. Cuyper e Witte (2007) revelaram que as pessoas com empregos permanentes apresentaram maior insegurança no trabalho do que as com empregos temporários. BernhardOettel, Sverke e Witte (2005) indicaram que as pessoas com empregos permanenetes, além de maior insegurança, relatam menor bem-estar associada a esta. Mesmo que o emprego formal tenha representado uma proteção à saúde psicológica, em alguma medida, para os participantes; como contraponto, também propiciou o medo da perda do emprego, representando vulnerabilidade da saúde psicológica e, possivelmente, ao próprio emprego. Pois, eles apresentaram declínios cognitivos que poderiam, provavelmente, ocasionar queda da produtividade individual. Portanto, a insegurança no trabalho, revelou-se fator de vulnerabilidade à saúde e à manutenção do emprego, além de prováveis custos significativos às empresas, ao sistema de saúde e ao Estado. Considerações finais O desenvolvimento histórico brasileiro, delineando relações trabalhistas fragilizadas, é o principal aspecto que contribui para o medo significativo do desemprego, pois este representa a possibilidade de exclusão social para a maioria das pessoas 45 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 40-47 economicamente ativas, que tenderão à inserção no mercado informal, com empobrecimento para elas e suas famílias. Igualmente, o desemprego representa a perda do acesso à saúde de melhor qualidade para as pessoas e seus familiares. O sistema público de saúde brasileiro não é suficiente para atender as demandas existentes, além da precarização desse serviço ao longo do tempo. Esta pesquisa apresenta limitações que devem ser observadas, a primeira é quanto ao seu delineamento transversal que não permite estabelecer relações de causalidade. A segunda é relativa ao tipo de amostra, não representativa, que não permite a generalização de seus resultados. Dessa forma, sugere-se a realização de outros estudos para ampliar o entendimento acerca das interações entre insegurança no trabalho e saúde mental em outros delineamentos, amostras, variáveis associadas e contextos de trabalho. A insegurança no trabalho demonstrou-se deletéria à saúde psicológica. Os principais sintomas apontados foram os depressivos, ansiosos e do estresse, sugerindo um círculo de vulnerabilidade para os participantes desse estudo. Sumariamente, a insegurança no trabalho, ao vulnerabilizar à saúde, gerou o declínio cognitivo, fator de provável queda na produtividade individual, ocasionando, assim, maior vulnerabilidade do emprego. As mulheres, as pessoas com mais idade, as com menores cargos e salários apresentaram maior insegurança no trabalho e menor saúde. O medo do desemprego, para essas pessoas, apresentou-se com base em evidências de risco e insegurança em relação ao próprio emprego. Para os participantes, o maior medo do desemprego foi relativo a ser desempregado por causa da inovação tecnológica. Tal inovação, de fato, foi um dos fatores que contribuíram para o desemprego estrutural nos países industrializados e em industrialização, inclusive o Brasil. Assim, observou-se que os participantes desse estudo estavam cientes das contingências do mercado de trabalho e das próprias condições de trabalho, bem como da vulnerabilidade de seus empregos. Aponta-se, também, a falta de estudos sobre essas questões com populações brasileiras e, inclusive, pesquisas comparativas com outras populações, em outros países. Embora, o campo de estudos sobre a saúde do trabalhador tenha se desenvolvido significativamente nos últimos anos, no Brasil, a insegurança no trabalho, devido a sua importância e complexidade, merece maior aprofundamento em pesquisas. Referências Amick, B., Levine, S., Tarlov, A. R., & Walsh, D. (1995). Introduction. In B Amick, S. Levine, A Tarlov & D. Walsh (Eds), Society and Health (pp.317). New York, NY: Oxford University Press. Benach, J., & Muntaner, C. (2007). Precarious employment and health: developing a research agenda. Journal of Epidemiology and Community Health, 61, 276-277. Bernhard-Oettel, C., Sverke, M., & Witte, H. (2005). Comparing three alternative types of employment with permanent full-time work: how do employment contract and perceived job conditions relate to health complaints? Work & Stress, 19(4), 301-318. Böckerman, P., Ilmakunnas, P., & Johansson, E. (2011). Job security and employee well-being: evidence from matched survey and register data. 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Os resultados indicaram que a utilização de substâncias entorpecentes pela genitora, a instalação de transtorno psiquiátrico decorrente deste hábito e a fragilização dos vínculos familiares e sociais foram os fatores de risco para a criança. Já dentre os de proteção, ressaltam-se: o desejo dos adotantes em proporcionar à criança o convívio familiar, contatos anteriores com portadores de necessidades especiais e amotivação deles para a construção do vínculo de parentalidade através da adoção. Discute-se a necessidade de políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento de crianças soropositivas ao HIV. Palavras-chave: Fatores de risco e de proteção; Criança com HIV; Adoção Abstract: The objective was to investigate the risk and protective factors for HIV seropositive child, covering his life from the early intrauterine, during institutionalization, until her return to family through adoption. Data were obtained through consultation processes involving removal power’s family and adoption, in addition to conducting semiestrutured interviews with their adoptive parents. The results indicated that the use of narcotics of the child’s biological mother, the installation of a psychiatric disorder resulting from this habit and the weakening of their family and social ties were risk factors for the child. But among the protection, we emphasize the desire of the adopters to provide the child living in their family, previous contacts with special needs people and their motivation for building the bond of parenting through adoption. It discusses the need for public policies that foster the development of children HIV positive. Keywords: Risk and protective factors; HIV child; Adoption a Especialista, Psicóloga Jurídica do TJPA; Mestranda no Programa de Pós-Graduação de Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará. *E-mail: [email protected] b Professora Doutora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação de Teoria e Pesquisa do Comportamento e da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal do Pará. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 48 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57 Para Bronfenbrenner (1979/1996), o processo de desenvolvimento humano no decorrer do ciclo vital remete às mudanças progressivas e contínuas na percepção que o ser desenvolvente constrói de seu ambiente ecológico, na relação que estabelece com este e na capacidade de descobrir, sustentar ou alterar as propriedades do seu entorno. Na infância, de forma mais significativa, os processos proximais propulsores do desenvolvimento assumem as particularidades dos contextos nos quais a criança participa, em suas múltiplas dimensões e configurações. A família pode ser compreendida como um potente e universal ambiente primário gerador de desenvolvimento nas sociedades humanas. É nela que a pessoa vivencia estabilidades e mudanças biopsicológicas decisivas para o seu desenvolvimento, sendo este processo favorecido pela presença neste contexto de relações interpessoais marcadas pela proximidade física e afetiva, no transcurso de um dado período de tempo e condições ambientais específicas (Bronfenbrenner, 1979/1996). Todos estes aspectos interagem de forma a proporcionar avanços em termos cognitivos, motores, emocionais e sociais para os que estão envolvidos nessas relações. Contudo, ao examinar estudos sobre os mecanismos processuais do desenvolvimento humano nesse tipo de ambiente, Bronfenbrenner (1979/1996) concluiu que o grupo familiar pode apresentar tanto fatores de risco quanto de proteção. Para o autor, o contexto do desenvolvimento se constitui a partir da interação complexa entre vários elementos nele presentes, tais como as características da pessoa em desenvolvimento, as práticas de cuidado, os estímulos ambientais sociais, dentre outros. Nessa perspectiva teórica, tanto os fatores de risco quanto os de proteção ao desenvolvimento, devem ser entendidos de forma processual e contextual, conforme discutem Morais e Koller (2004) e Siqueira e Dell’Aglio (2006). Isso significa que comparativamente uma mesma experiência ambiental pode atuar mais como fator de proteção para uma pessoa do que para outra. Um exemplo disso refere-se ao acolhimento institucional de crianças motivado pelo uso de substâncias entorpecentes por seus pais. Caso elas tenham vinculação afetiva parental consolidada, o afastamento do grupo familiar, apesar de preventivo contra várias formas de abuso, pode ocasionar manifestações emocionais de angústia e tristeza e até mesmo a emergência de sintomas depressivos. Já para aquelas recorrentemente sujeitas a agressões físicas, conseqüentes desse uso de entorpecentes, a inserção no programa de acolhimento pode contribuir significativamnte para a prevenção de lesões e outrassequelas físicas e psicológicas. O mesmo raciocínio é valido para os fatores de risco. Por essa razão, estudos sobre fatores de risco e proteção preocupam-se não apenas em definir cada um desses termos, mas também apontar para a atualidade das pesquisas que investigam os elementos contextuais a eles associados. A literatura tem dedicado mais espaço à discussão dos fatores de risco a partir de condições ou variáveis associadas a uma maior probabilidade de ocorrência de resultados negativos ou não desejáveis no desenvolvimento. Dentre eles, ressalta-se negligência parental, violência doméstica, padrões parentais de cuidado e supervisão inadequados, escassez de recursos materiais para prover a sobrevivência, rigidez nas práticas educativas e transtornos psiquiátricos (Yunes, Miranda & Cuello, 2004; Algood, Hong, Gourdine & Williams, 2011). Já os fatores de proteção referem-se geralmente às influências que modificam, melhoram ou alteram respostas pessoais a determinados riscos de desadaptação. Todavia, estes fatores podem não apresentar qualquer efeito na ausência de um elemento estressor, pois a função deles é modificar a resposta do indivíduo em situações adversas, mais do que favorecer diretamente o desenvolvimento adaptado, como explicam esses autores. Ou seja, um fator é considerado protetivo quando atenua os prejuízos gerados por uma situação adversa e não quando consegue evitá-la por completo. Na atualidade, dentre os fatores de risco para a manutenção de vínculos familiares, destacam-se aqueles decorrentes do avanço da AIDS em mulheres, na década de 1990. Tal fenômeno tem provocado o aumento do número de órfãos em decorrência do falecimento delas e de seus companheiros, fazendo emergir esta e novas situações de vulnerabilidade para crianças e adolescentes. Dentre outras, menciona-se a transmissão vertical do vírus HIV que pode ocorrer durante a gestação, o parto e a amamentação (Filipe, Moreno & Rea, 2006). No contexto brasileiro, conforme argumentam essas autoras, embora as intervenções preventivas contra a transmissão vertical estejam hoje disponíveis para toda a população de gestantes soropositivas ao HIV e seus filhos, ainda existem muitas dificuldades na rede de saúde que retardam o diagnóstico laboratorial da infecção por este vírus. A cobertura de mulheres testadas no pré-natal é insuficiente, principalmente nas populações socialmente vulneráveis, e a qualidade deste procedimento ainda está aquém do desejável. A administração de zidovudina (medicamento específico utilizado no combate da doença) injetável é realizada em menos de 50% dos partos do total de mulheres estimadas como infectadas pelo HIV (Filipe, Moreno & Rea, 2006). 49 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57 O falecimento dos pais vitimados pelo HIV deixa crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social e pessoal na medida em que a sua guarda e a responsabilidade por seus cuidados diários podem ser sucessivamente transferidos para diferentes membros da família, tornando-os mais suscetíveis a abusos, maus-tratos e abandono por parte dos parentes, o que poderá culminar no seu encaminhamento para instituição de acolhimento, como medida de proteção especial, prevista na Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O Guia de Tratamento Clínico da Infecção pelo HIV em Crianças (n.d), financiado pela Coordenação Nacional de DST e AIDS – SPS do Ministério da Saúde e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) aponta que, nos próximos dez anos, mais de 40 milhões de crianças vão perder um ou ambos os pais por causa da AIDS, principalmente em países em desenvolvimento. Em regiões com uma taxa elevada de HIV, mais de um terço das crianças ficarão órfãos. E o que é mais grave: conforme essa publicação, as consequências prejudiciais à vida dessas crianças têm início desde o momento em que seus pais apresentam doenças relacionadas ao vírus. Isto porque, estando eles próprios doentes, ficam sem condições para trabalhar e prover recursos como alimentos, vacinas e outras formas de suporte à saúde de seus filhos. Diante disso, verifica-se que, quando ficam órfãos, grande parte das crianças e dos adolescentes soropositivos ao HIV, por não terem pessoas que consigam prover seu sustento e os cuidados que lhes são necessários, costumam ser direcionadas para instituições de acolhimento. Os profissionais que atuam nestas organizações realizam várias intervenções, objetivando o seu retorno aos cuidados de parentes biológicos. Todavia, se esta convivência se torna de algum modo inviável, essas crianças e adolescentes são inseridos em famílias substitutas, por meio do instituto jurídico da adoção. Nessas situações, os espaços institucionais com suas características físicas e sociais constituem-se em seu contexto primário de desenvolvimento, e em seguida, as famílias adotivas. É importante notar que os programas de acolhimento têm caráter essencialmente provisório e excepcional, sendo destinados àqueles em situação de risco pessoal e social, nas várias circunstâncias em que seus direitos são violados, conforme preconiza o ECA. Contudo, essa delimitação temporal muitas vezes não tem sido observada quando o caso envolve crianças e adolescentes soropositivos do HIV, que tendem a permanecerem longos períodos em situação de acolhimento institucional, gerando uma série de repercussões em suas vidas. Em outras palavras, a aplicação da medida de acolhimento institucional, como mecanismo de proteção social à criança cujos genitores não estão disponíveis para exercer funções relativas ao cuidado parental, pode não respeitar o caráter provisório da medida que determina a lei. Sabe-se que crianças nessas condições enfrentam várias intercorrências de saúde, necessitam de medicamentos especiais e serviços médicos e terapêuticos especializados. E que as instituições de acolhimento infantil apresentam características ambientais que divergem das condições vivenciadas em família, como por exemplo, a delimitação de uma proporção de cuidadores por criança, horários fixos para realização de alimentação e de brincadeiras, escasso convívio social e comunitário (Cavalcante, 2008; Silva, 2004). A situação tende a se agravar quando se observa que, pelas mesmas razões, a convivência dessas crianças e adolescentes em um lar adotivo é uma realidade difícil sob vários aspectos, sendo reduzido o número de pessoas que se disponibilizam a acolhê-los no seu grupo familiar por meio da adoção. Nacionalmente, Cavalcante (2008), Rizzini (2004) e Siqueira e Dell’Aglio (2006), assim como Spitz (1965/1998) e depois Bronfenbrenner (1979/1996) reuniram várias análises de pesquisas sobre o tema e efetivaram investigações sobre o processo de desenvolvimento infanto-juvenil de crianças e adolescentes acolhidos em ambientes coletivos de cuidados. Seus estudos demostraram que o acolhimento institucional pode ser tanto um espaço de proteção quanto resultar em uma variedade de déficits no processo de desenvolvimento de criança e adolescentes acolhidos. E essa realidade marcada por riscos e ameaças ao desenvolvimento vale para toda e qualquer criança e adolescente, mas em particular aos que apresentam doenças crônicas ou síndromes como a AIDS. Por outro lado, esses mesmos autores contribuem para o entendimento processual das funções exercidas pelas instituições de acolhimento, ao contrário do que havia sido mostrado em pesquisas há mais de meio século atrás, que focalizavam exclusivamente os prejuízos desses ambientes para o desenvolvimento humano. No caso das crianças e adolescentes soropositivos ao HIV, pode-se pensar que o acesso a uma dieta adequada, o engajamento em tratamentos médicos, o recebimento de cuidados especiais por adultos, são recursos muitas vezes indisponíveis nos seus grupos familiares biológicos, mas presentes nas instituições de acolhimento, os quais se constituem como fatores de proteção que podem fazer a diferença na busca por um desenvolvimento o mais saudável possível para tais crianças e adolescentes. Já dentre os fatores de risco, ressalta-se a fragilização dos vínculos sociais e a longa permanência nos programas de acolhimento, que podem agravar 50 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57 o quadro de abatimento psicológico da criança submetida constantemente a baterias de exames e procedimentos médicos. É comum se observar que crianças e adolescentes soropositivos necessitam de cuidados substitutos, porque seus pais estão doentes ou mesmo já faleceram. Assim, como medida de proteção, eles são encaminhados a instituições de acolhimento em busca de melhores condições de tratamento e convivência em família. Nesses espaços, para não permanecerem de maneira prolongada, são realizadas intervenções com o objetivo de colocá-los o mais rápido possível em lares adotivos, conforme prevê a Lei 12.010/2010 (Lépore & Rossato, 2009). Entretanto, se adotar uma criança saudável requer atenção e disponibilidade afetiva do candidato para acolher um ser que foi gerado por outra pessoa e que apresenta uma história pregressa caracterizada por rejeições, negligências, maus-tratos, quanto mais nas situações em que envolvem crianças e adolescentes soropositivas. Assim, quando a criança adotada apresenta déficits e doenças préexistentes, o investimento para a construção do vínculo de filiação tende a ser amplificado, pois são contínuas as demandas de cuidado e atenção necessárias ao avanço do seu processo de desenvolvimento (Fonseca, Santos & Dias, 2009). No caso das crianças e adolescentes portadoras do vírus HIV, eles fazem uso de forma contínua de medicações e, em várias ocasiões, poderão realizar tratamentos específicos, necessitando de cirurgias, fisioterapias, dietas especiais, atendimento em terapia ocupacional, dentre outros. Por isso, é importante que os pais adotivos conheçam profundamente o seu quadro de saúde, tanto no que se refere à extensa rotina de cuidados quanto no que diz respeito aos comportamentos e modo de lidar com filhos nessa condição. Já em relação aos aspectos psicológicos relevantes para esses pais, Serra e Zacares (1991) argumentam sobre a importância da maturidade psicológica no processo de consolidação desta modalidade de vinculação filial. Para estes autores, a maturidade é caracterizada pelo desenvolvimento do afeto, de autonomia, de independência, de responsabilidade, e do reconhecimento de coerências e dissonâncias entre as próprias emoções e comportamentos. Diante de todos os aspectos de vulnerabilidade aos quais estão expostas as crianças e adolescentes soropositivas ao HIV, aliado ao fato de que existe ainda um número reduzido de pessoas habilitadas à adoção nos tribunais de justiça estaduais dispostas a inclui-las em seu grupo familiar, despertou interesse, para fins de pesquisa, a adoção de uma criança negra e soropositiva que tramitou na Vara da Infância e Juventude Comarca de Belém. O estudo tomou como referência investigação anterior realizada por Esteves e Santos (2009), que colocou em discussão a forma como a adoção pode funcionar como medida sociojurídica de proteção, a partir do relato de um caso real que envolveu criança com essa condição específica. No entanto, o presente estudo avançou, em relação ao primeiro, no sentido de descrever de forma mais abrangente as características do caso pesquisado, apontando os fatores de risco e proteção ao desenvolvimento para a criança soropositiva ao HIV. Entre os mais significativos, estão os fatos relacionados à adolescência de sua genitora, passando por seu contexto de vida intrauterina, situação de abandono após o nascimento e posterior institucionalização, até sua reinserção familiar em grupo familiar adotivo, por pessoas sem qualquer laço de parentesco ou amizade com sua família de origem. Método Delineamento da pesquisa e participantes Este estudo consistiu em uma pesquisa qualitativa, cujo delineamento foi de Estudo de Caso (Yin, 2003/2010). A seleção do caso ocorreu por ele se referir à adoção de uma criança negra, com mais de um ano de idade e soropositiva ao HIV. Os participantes deste estudo foram os pais adotivos de Aline. O nome da criança e dos demais citados na pesquisa são fictícios a fim de se preservar a identidade das pessoas envolvidas. Instrumentos Os dados foram coletados através da análise de documentos que constam como peças importantes dos processos judiciais de destituição do poder familiar e de adoção da criança em questão, além da realização de entrevista semidirigida com seus pais adotivos. A consulta aos processos permitiu o acesso à história de vida de Aline (a criança) e Mara (a mãe biológica), assim como informações sociodemográficas de Carlos e Laura (os pais adotivos). Já o roteiro utilizado na entrevista com o casal contemplava questões sobre o modo como tomaram conhecimento do caso e foram se aproximando de Aline, motivações existentes à época para a adoção, atividades cotidianas da criança e perspectiva da revelação a ela sobre a sua história de vida. Procedimentos e análise dos dados Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Medicina Tropical da UFPA (registro nº 22 /2011) e pelo Juiz da 1ª Vara da Infância e Juventude de Belém. Logo depois, teve início a pesquisa documental por meio da análise dos autos dos processos judiciais, o contribuiu para a elaboração do roteiro de entrevista 51 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57 e a definição da ordem das questões a serem formuladas. Em seguida, o casal adotante foi contatado e após esclarecimentos sobre a pesquisa, decidiram prestar as informações solicitadas e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As verbalizações dos participantes foram gravadas e transcritas. A análise dos dados obtidos a partir de consulta aos documentos oficiais foi organizada por meio de categorias no sentido de permitir o registro das histórias de vida de Mara e Aline. Quanto aos dados das entrevistas, as unidades de análise foram definidas posteriormente, efetuando-se recortes dos conteúdos das falas, tais como palavras, expressões ou frases que se referiam aos temas específicos investigados por este estudo (Yin, 2003/2010). Resultados Os resultados serão apresentados a partir de dois eixos de análise. O primeiro refere-se ao período anterior ao encaminhamento de Aline para uma instituição de acolhimento infantil, englobando recortes da história de vida de Mara, a mãe biológica, desde sua adolescência até o período puerperal em que conviveu com a filha. No que se refere ao nascimento de Aline, foram consultados registros sobre seu parto e as eventuais intercorrências neste período até a sua convivência precoce em ambiente hospitalar e instituição de acolhimento. Esses achados foram obtidos a partir da consulta ao processo judicial de destituição do poder familiar. O segundo eixo de análise contempla aspectos referentes à adoção de Aline, compreendendo a história de vida do casal e a convivênciainicial deles com a criança. Essas informações foram retiradas do processo de adoção e de entrevista com Carlos e Laura. 1. Período anterior à institucionalização de Aline Mara, a mãe biológica: Por toda a vida ela vivenciou os efeitos da privação de recursos materiais, residindo sozinha desde muito jovem em imóvel insalubre, desprovido de energia elétrica, saneamento básico e rede de esgoto sanitário. Os documentos consultados apontam mudanças de comportamento dela após o falecimento de sua mãe, em sua adolescência, circunstância em que teria iniciado o uso de substâncias entorpecentes, passando a apresentar agressividade no trato com seus familiares e amigos, gerando a fragilização destes vínculos sociais e afetivos. Além disso, engajou-se em relacionamentos sexuais ocasionais e múltiplos. Tempos depois engravidou de seu primeiro filho, contudo, não o criou, entregando-o aos cuidados de terceiros. Mais tarde, ainda envolta nessa condição de vulnerabilidade social, econômica e familiar, engravidou novamente, desta vez de Aline. Informações indicaram que Mara não realizou exames de pré-natal durante a segunda gestação. Em seu nascimento, Aline manifestou de modo acentuado distúrbios psíquicos caracterizados por articulação verbal desconexa, instabilidade emocional e pequena habilidade para dispor dos cuidados necessários à recém-nascida. Estas constatações preocuparam de imediato a equipe da maternidade, o que gerou o encaminhamento dela a um centro psiquiátrico de referência. A proposta era encaminhá-la para tratamento, a partir do seu acesso a rede de serviços existente no seu município de origem ou mesmo foram dele, na capital do estado, de modo que, ao atingir um nível de estabilidade emocional satisfatório, pudesse ela mesma cuidar de Aline. Complementarmente, a equipe da maternidade verificou se havia a possibilidade de os tios maternos se responsabilizarem pela criança. Contudo, os mesmos alegaram deter um relacionamento conflituoso com Mara e que não possuíam condições materiais necessárias para os cuidados da recém-nascida. Assim, decidiu-se que Aline e sua mãe seriam conduzidas juntas a uma instituição psiquiátrica. Entretanto, como a criança não poderia ser mantida neste local e sua mãe foi considerada incapaz de, naquele momento, prover-lhe os cuidados necessários, a assistente social do hospital psiquiátrico solicitou ao Conselho Tutelar que requeresse uma vaga para a criança em um programa de acolhimento institucional, o que foi feito em setembro de 2007. Durante a internação de Mara foram realizados vários exames especializados, entre eles o Anti-HIV, com resultado positivo. Nessa instituição, ela não se engajou no tratamento psicológico, tentou agredir fisicamente uma enfermeira, o que provocou a sua troca de ala e facilitou sua fuga. Desde então, seu paradeiro tornou-se desconhecido. Não procurou sua família de origem, nem Aline, que, nesse período, já havia sido encaminhada e acolhida institucionalmente. No processo de destituição do poder familiar, não havia registro de contatos telefônicos e/ou realização de visita dela à criança, nem de seus familiares. Diante desse quadro, os profissionais do programa de acolhimento efetuaram contatos com os irmãos de Mara, com o objetivo de tentar novamente a inserção da criança no grupo familiar consanguíneo. Todavia, eles declararam mais uma vez a indisponibilidade para cuidar de Aline. Assim, diante da ausência de Mara, da negativa dos seus irmãos em aceitar a guarda de Aline, os profissionais do programa de acolhimento emitiram parecer favorável ao início 52 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57 dos procedimentos jurídicos para destituição do poder familiar, visando oportunizar a criança condições para o exercício do direito à convivência familiar comunitária. Aline, a criança: Ao dar entrada no programa de acolhimento, Aline foi recepcionada por uma técnica de enfermagem que trabalha na instituição, que após exame clínico registrou no prontuário da criança que ela apresentava condição de saúde satisfatória, com pele limpa e coto umbilical preservado. Após os procedimentoshabituais de higiene pessoal, a criança foi conduzida até o dormitório destinado à sua faixa etária, compreendida entre zero e seis meses. Durante a sua primeira noite no abrigo, Aline apresentou um quadro de febre e vômito, rejeitando o alimento oferecido. Diante desse fato, ela foi encaminhada ao hospital pediátrico, onde ficou internada por dois meses. Realizaram-se vários exames, dentre eles o Anti-HIV, que apresentou resultado positivo. Assim, ela foi engajada em tratamento com antibióticos por 10 dias, vitaminas e curativos no coto umbilical, além de receber AZT por um período de 54 dias. Em novembro de 2007, Aline foi avaliada por um profissional com atuação no centro de referência para doenças infecciosas, para a realização de exames complementares. Após esses, Aline retornou para consulta no centro de referência, quando foi indicada a necessidade de acompanhamento médico até os dois anos de idade, realizando exames anti-HIV periodicamente, com o intuito de observar precocemente indícios da manifestação da doença. Após todos esses procedimentos efetivados em relação à Aline pela equipe do programa de acolhimento e com o deferimento do processo de destituição do poder familiar pelo juiz da 1ª Vara da Infância e Juventude de Belém, a criança ficou disponível então para adoção. 2. Aspectos referentes à adoção de Aline Carlos e Laura, os pais adotivos: O casal residia em São Paulo e foi lá que souberam da existência de Aline: uma menina soropositiva para o HIV, disponível para adoção em um programa de acolhimento infantil de Belém. Mesmo tendo conhecimento das particularidades que envolviam a história de vida dela, o casal entrou em contato com uma advogada local a fim de obterem informações adicionais sobre a criança. Diante dessas, avaliaram que possuíam subsídios suficientes para tomar a decisão de adotá-la, pois, para eles, desde o momento em que souberam da história de vida de Aline, a criança começou ser representada como a filha que eles desejavam ter, conforme declaração contida nos documentos consultados. Adicionalmente, informaram que, desde os tempos de namoro, expressavam o desejo de adotar uma criança. Além disso, na família de Laura já existiam casos de adoção, todos bem sucedidos, o que fortaleceu o projeto do casal. Conforme documentos que constam do processo judicial referente ao caso, o casal iniciou a formalização do pedido da adoção de Aline ainda em São Paulo. Contudo, perceberam que, mantendo-se distantes da cidade de origem da criança, a tramitação do processo seria demorada. Assim, os adotantes providenciaram a documentação necessária e ingressaram com o pedido junto à 1ª Vara da Infância eJuventude em Belém, a fim de que pudessem vir até este município para recebê-la; e, com ela permanecer até que fosse concluído o processo de adoção que tramitou através de um procedimento jurídico denominado Carta Precatóriaa. Posteriormente, segundo relatório da assistente social da Vara da Infância e Juventude de São Paulo, já nos primeiros contatos do casal com Aline, foi evidente a emoção dos adotantes diante da fragilidade física da criança e, ao mesmo tempo, a surpresa com a simpatia da menina, o que propiciou rapidamente estabelecimento de uma relação afetiva entre os três. Os adotantes perceberam que necessitariam direcionar cuidados especializados de saúde à Aline, pelo fato dela ter apresentado sorologia positiva ao vírus HIV. Todavia, os documentos analisados durante a pesquisa mostraram que esses aspectos não os fizeram desistir, mesmo quando advertidos e cientes dos desafios que possivelmente iriam enfrentar no decorrer do processo. Em outubro do ano de 2008 foi concedida a guarda provisória de Aline ao casal, que se direcionou a Belém para conhecê-la e dar início à convivência em família. Dias depois, já na companhia da criança, retornaram a São Paulo a fim de começar um período de convivência familiar com ela. Na capital paulista, a Vara da Infância e Juventude desta cidade assumiu a responsabilidade de acompanhar o período de convivência inicial entre o casal e a criança, através do procedimento de Carta Precatória. Este órgão monitorou a integração de Aline no grupo familiar adotante. A sentença de adoção da criança foi deferida pelo Juiz da 1ª Vara da Infância e Juventude de Belém, em agosto de 2009. Após a obtenção desses dados documentais, foram acessadas informações complementares ao estudo de caso, a a Carta precatória: é o expediente pelo qual o juiz se dirige ao titular de outra jurisdição que não a sua, de categoria igual ou superior à de que se reveste, para solicitar-lhe seja feita determinada diligência que só pode ter lugar no território cuja jurisdição lhe está afeta. O juiz que expede a precatória é chamado de deprecante, e o que recebe denomina-se deprecado. A precatória ordinariamente é expedida por carta. Mas, quando a parte o preferir, ela pode ser enviada por telegrama, radiograma, telefone ou fax. Ou em mãos do procurador. 53 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57 partir da realização de entrevista com Laura e Carlos, as quais serão apresentadas a partir das seguintes categorias: ações efetivadas para conhecer Aline; motivações do casal para adoção; atividades cotidianas da criança; e por fim, estratégias utilizadas pelo casal para discutir com ela aspectos particulares da sua história de vida. O casal iniciou a entrevista explicando as circunstâncias em que tomou conhecimento da existência de Aline, através de informações registradas em um site organizado por grupos de apoio à adoção. Este continha uma breve descrição de Aline: “Criança negra, HIV, Belém do Pará”. Enfatizaram os participantes que o siteconsultado apresentava casos de crianças cuja adoção é menos provável de acontecer, tais como: crianças portadoras de necessidades especiais, grupo de irmãos, adoção tardia. Os adotantes verbalizaram que inicialmente tiveram acesso ao e-mail de uma pessoa que forneceu as primeiras orientações quanto ao processo de habilitação e de adoção. Sobre a questão disseram: “(...) nós ficamos sabendo de Aline por lá. Tinha o contato de e-mail de uma pessoa chamada Paula, que logo perguntou se estávamos habilitados, como falamos que não estávamos ela disse que não poderia fornecer outras informações e orientou para que nos habilitássemos. Isto aconteceu em abril de 2008. Então procuramos o fórum aqui em São Paulo, esperamos um tempão para ser chamados, todo o dia íamos lá, só que depois de muito tempo de espera falaram para a gente que não estavam habilitando” (sic). Conforme foi acessado durante a entrevista, destacase inicialmente a forma diferenciada pela qual o casal teve conhecimento sobre a existência de Aline, demonstrando a informalidade quanto à circulação de informações de crianças acolhidas, o que provavelmente não é de conhecimento do Sistema Jurídico, já que tais ações tramitam em segredo de justiça. No decorrer da entrevista, afirmaram que em julho de 2008 conseguiram obter o número de telefone da instituição onde Aline estaria acolhida e o contato de uma advogada em Belém, com experiência de atuação na área da adoção. Afirmaram ter informado a esta profissional sobre a dificuldade de efetivarem a habilitação para adoção em São Paulo e do interesse deles em adotar Aline, ao que ela argumentou ser possível a solicitação da habilitação Belém, o que foi alcançado em outubro de 2008. Após a solicitação da guarda de Aline, que motivou a vinda do casal ao Pará, eles disseram: “Fomos então para Belém sem mesmo conhecer Aline. Ela estava com um ano e dois meses nessa época. Tivemos o primeiro contato com ela no abrigo, depois uma audiência com a juíza e como Aline estava doente, com 39º de febre, ficamos só 48 horas em Belém, retornando os três para São Paulo. Chegando aqui, fomos direto procurar um centro especializado no atendimento de HIV, onde Aline logo foi atendida e hoje negativou para o vírus. Nesse período, aqui em São Paulo, fomos acompanhados por um ano pela psicóloga daqui do fórum, que sempre nós visitava para saber como Aline estava.” (sic). É interessante perceber a disponibilidade afetiva do casal para receber a criança em adoção, pois mesmo tendo somente informações gerais sobre ela, decidiram vir para Belém, sem nem mesmo conhecê-la. O destaque também se refere à obtenção da Guarda, a qual foi concedida antes desse contato inicial entre o casal e Aline, procedimento que não é muito comum, já que tal medida é fornecida quando oscuidadores já tiveram pelo menos um contato face a face com a criança da qual se tornam civilmente responsáveis. Quando os entrevistados foram perguntados sobre os motivos da adoção, o porquê de terem escolhido Aline e não outra criança, eles disseram não saber explicar tais razões. Porém, falaram sobre seus sentimentos e valores: “Não sabemos explicar exatamente o motivo, mas quando a gente viu a postagem sobre ela na comunidade, ficamos pensando que era uma criança que precisava de uma família... Também a gente sempre quis ter um filho, ela veio para cá, pronto, se tornou nossa filha”. Ao que acrescentaram ainda: “O fato dela ter HIV não nós preocupou, porque nós estamos acostumados a lidar com deficientes, então achamos muito normal e não foi o fato de gente não poder ter filhos, porque nunca tentamos engravidar... Ao contrário, desde que nós namorávamos, sempre falávamos em adoção, então, quando casamos, decidimos que iríamos realizar este projeto” (sic). Essas afirmações dos entrevistados reforçam a particularidade desta experiência de adoção uma vez que, pelo apurado, a adoção de Aline não foi motivada por questões de infertilidade de um dos cônjuges, o que comumente é apontado como o fator principal para construção do vínculo de filiação por adoção. Outra peculiaridade refere-se à convivência anterior com pessoas com necessidades especiais, que parece tê-los auxiliado a reduzir as pré-concepções quanto às diferenças. Sobre as atividades cotidianas de Aline à época da realização da entrevista, relataram: “Durante a semana ela fica o dia todo na escola, de forma integral. No final do dia, ela fica com a gente. Eu trabalho até as quatro horas, então chego em casa, faço o jantar. A aula dela acaba seis horas, quando ela chega, de seis até nove, nós ficamos brincando com ela. A gente se reveza, aí nove horas ela dorme. Já 54 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57 no sábado, de manhã, vai para a natação, almoçamos em casa e à tarde saímos para passear, no shopping, parque, programa de criança. No domingo de manhã a gente vai para igreja e depois vai para a casa de algum parente. Então é assim... A vida de Aline é muito movimentada...” (sic). Nas interações sociais da criança no ambiente religioso, Laura disse: “Aline é muito carismática, na igreja, eu interpreto a bíblia através de libras, aí ela fica me imitando e todo mundo ri. Todo mundo gosta muito dela, não só lá, mas em todo lugar que a gente vai. Ela fala com todo mundo na rua, dá tchau...” (sic). Esses fragmentos da entrevista com Carlos e Laura ilustraram a forma como está ocorrendo o processo de inserção de Aline em vários contextos de desenvolvimento:escola, igreja, família, espaços públicos e comunitários, dentre outros. Tais contatos, pelo que foi informado pelos entrevistados, têm contribuído para a aquisição de habilidades sociais pela menina, uma vez que ela possui participação ativa nas interações que estabelece nesses contextos, potencializando o valor positivo dessas experiências para o seu desenvolvimento. Todavia, eles fizeram questão de destacar que a diversidade dos contatos sociais estabelecidos por Aline foi se constituindo de forma progressiva, o que pode ser percebido a partir da seguinte fala de Laura: “Mas quando ela veio para cá, nós ficamos direto com ela por uns dois meses. Depois o Carlos voltou a trabalhar e eu fiquei por mais seis meses com ela, só nós duas”. E prosseguiu o relato: “Nesse tempo, ela ia para escola para brincar, começou indo duas horas, depois quatro, foi aumentando devagar... aí quando eu voltei a trabalhar, ela passou a ficar o dia todo na escola...agora ela tá estudando em uma escola nova, porque nós mudamos. Esta agora eu até gosto mais que a outra, porque ainda não tem muita aula para ela, é mais brincadeira, tem hortinha, eles aprendem a cuidar, tem aula de balé, de música” (sic). Outro aspecto que foi investigado referiu-se às estratégias utilizadas pelo casal para discutir sobre a temática de adoção comAline, o que inclusive já está previsto em lei, como um direito inalienável da criança. Carlos e Laura afirmaram que têm amigos em São Paulo que também adotaram crianças com necessidades especiais. Um deles os presenteou com um livro que aborda a estória de uma criança que se torna filha por adoção. Esse texto é lido com frequência para Aline, que demonstra apreciá-la. Afirmou Laura: “Eu nunca precisei dizer diretamente para Aline que a história do livro era parecida com a dela, mas ela mesma concluiu ao ouvir a estória, pois uma vez perguntou: Essa é a história de Aline, né mamãe? Eu respondi que sim... Na estória eles falam também sobre aquela questão de mãe do coração. A Aline já até falou para mim: ‘mamãe, você é minha mãe do coração’. Aí eu respondi, não só do coração, mais do corpo todo, sou sua mãe de alma também” (sic). Discussão A discussão será apresentada a partir das duas unidades de análise definidas: fatores de risco e de proteção ao desenvolvimento de Aline. Conforme Morais e Koller (2004), Siqueira e Dell’ Aglio (2006) e Algood et al. (2011), os fatores de risco são condições ou variáveis que estão associadas a uma alta possibilidade de ocorrência de resultados negativos ou não desejáveis no desenvolvimento. Verifica-se que, no caso de Aline, a presença de cada um destes fatores acabou por resultar na violação do seu direito à convivência familiar. A inserção da criança em um programa de acolhimento por um período superior a um ano e desde os seus primeiros momentos de vida, provavelmente contribuiu para a ruptura do vínculo com família biológica. Essas condições adversas vivenciadas pela criança foram agravadas ainda pela ausência de fatores de proteção, que poderiam ter agido reduzindo os efeitos danosos da situação de vulnerabilidade a que esteve exposta desde a gestação. As dificuldades vivenciadas por Aline foram geradas pela escassez de recursos materiais de seu grupo familiar nuclear e extenso, a qual adicionada ao transtorno mental materno, ao desemprego ou subemprego dos parentes, a baixa escolaridade dos responsáveis pela família constitui-se enquanto fatores de risco descritos na literatura e características apontadas como frequentes entre as famílias das crianças e adolescentes institucionalizados (Rizzini&Rizzini, 2004; Silva, 2004), como também na realidade brasileira (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010). Adicionalmente, é importante ressaltar também que as políticas públicas direcionadas ao atendimento de famílias em situação de vulnerabilidade social têm sido caracterizadas pelo aspecto assistencialista e não por investimentos na autonomia das famílias, no desenvolvimento das potencialidades da população e no estímulo ao exercício da cidadania, conforme mostrado por Mariano e Rosseti-Ferreira (2008), após estudo sobre o perfil das crianças entregues em adoção e seus genitores, a partir da consulta a processos judiciais. Logo, processos de destituição do poder familiar, como o que envolveu Mara, 55 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57 são motivados muitas vezes pela ineficiência do Estado em assegurar os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, os quais são explicitados constitucionalmente. Outro fator de risco para o desenvolvimento de Aline referese a sua sorologia positiva ao vírus HIV. Tal fato ocorreu pelo desconhecimento de Mara quanto a sua condição e também por não ter se engajado em consultas e exames pré-natal, já que estes procedimentos possibilitam o diagnóstico precoce da doença, impedindo a contaminação vertical, como mostra Carvalho (2007). Estes obstáculos também são decorrentes da pobreza e do quadro de transtorno psiquiátrico vivenciado por ela. As fontes de evidência consultadas (Yin, 2003/2010) não apontaram fatores de risco para criança adotada nos contextos do programa de acolhimento institucional e da família adotiva. Quanto aos fatores de proteção, destaca-se a reversão da sorologia positiva ao HIV de Aline, graças a intervenções tanto dos profissionais do programa de acolhimento institucional, quanto da família adotiva. No primeiro, foram efetivados vários procedimentos médicos, realizados exames e administradas medicações quepossibilitaram o reestabelecimento da saúde de Aline. Já os pais adotivos proporcionaram a ela atendimentos em um centro de saúde especializado no combate ao HIV, além de alimentação balanceada e hábitos de vida saudáveis. Também foram prováveis fatores de proteção presentes na instituição de acolhimento, as intervenções profissionais que objetivaram a garantia do direito da criança de conviver em família, prioritariamente junto a seus parentes consanguíneos e quando inviabilizada esta primeira opção, a colocação em grupo familiar substituto, através da adoção. Isto foi visualizado quando as profissionais do programa de acolhimento dirigiram-se até o domicílio de Mara e de seus parentes, intervindo para que essas pessoas pudessem cuidar de Aline, conforme estabelece o ECA. Todavia, ao perceberem a impossibilidade destes cuidados, efetivaram com agilidade, ações para a colocação de Aline, em família substituta, ao requererem, junto ao Ministério Público local, a destituição do poder familiar de Mara em relação a sua filha. Contribuíram assim pelo não acolhimento de Aline por vários anos, impedindo que a instituição se tornasse sua referência de moradia e de vida coletiva, agravando possíveis déficits de desenvolvimento, conforme mostraram as pesquisas empreendidas por Bronfenbrenner (1979/1996), Spitz (1965/1998), Siqueira e Dell’Aglio (2006). Na família adotiva também foram percebidos fatores de proteção. O primeiro deles refere-se às motivações do casal para adoção, as quais divergem dos apontamentos de pesquisas anteriores, Camargo (2006), Weber (2004) e Levinzon (2004) que argumentam ser a infertilidade o principal fator evocador da busca pela constituição deste vínculo de parentalidade. O casal expressou valorizar a necessidade de ter um filho, independente da maneira de inserção deste no referido grupo familiar. Assim, os entrevistados disseram ter optado primeiramente pela adoção na realização deste projeto, em detrimento da concepção biológica, a qual também estava acessível a eles. Outro fator de proteção refere-se à disponibilidade afetiva do casal para acolher uma criança com necessidades especiais, nesse caso, com sorologia positiva ao HIV. Uma hipótese que se formulou a partir destas constatações é que esta adoção pode ser explicada pela maturidade psicológica do casal, segundo argumentam Serra e Zacares (1991). Para eles, esta habilidade é resultante de um processo que se estrutura durante o ciclo de vida, resultante da interação entre traços biológicos, psicológicos e sociais, e contempla o estabelecimento de um equilíbrio entre o conceito de si e as mudanças de papel inerentes à vida. Dentre as características desenvolvimentais específicas da maturidade emocional descritas pelos referidos autores, incluem-se o desenvolvimento do afeto, da perspectiva de tempo, da autonomia, independência, responsabilidade, e o reconhecimento de coerências e dissonâncias entre as emoções e os comportamentos. Outra expressão desta maturidade pode ser exemplificada pelo fato de que o casal estabelece interaçõescotidianas com pessoas portadoras de necessidades especiais, as quais possibilitaram a eles desenvolver uma compreensão receptiva sobre diferenças, sendo este fato apontado por eles enquanto facilitador para aproximação de Aline. Sobre a inserção de Aline no grupo familiar adotivo, os adotantes informaram que ela participava ativamente, com o acompanhamento deles, de uma variedade de contextos (escola, família extensa, espaço de lazer, de atividades esportivas, vias urbanas), nos quais tem estabelecido interações afetivas e cordiais com as pessoas presentes nestes locais, o que também se configura como fato de proteção a criança. Deste modo, percebe-se que a inserção no grupo familiar adotivo trouxe vários benefícios para a criança, pois Aline tem participado de diversos ambientes, nos quais vem estabelecendo importantes relações que têm contribuído para seu desenvolvimento. Tais vivências proporcionam ganhos desenvolvimentais crescentes, gerando o avanço deste processo a níveis cada vez mais complexos, conforme argumentou Bronfenbrenner (1979/1996). Por fim, as discussões sobre a adoção com Aline têm sido realizadas de forma espontânea e contínua, conforme os relatos 56 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57 dos entrevistados, através de recursos lúdicos, fotos, diálogos, o que também é um fator de proteção, ao possibilitar a ela amplo acesso a sua história de vida. Assim, o presente trabalho realizou investigações sobre os fatores de risco e de proteção presentes no processo de desenvolvimento de Aline, a partir da história de vida de sua genitora, do contexto de seu nascimento, do período em que permaneceu abrigada, das instituições envolvidas na garantia de seus direitos, do momento de sua adoção e mais recentemente, a sua integração no grupo familiar substituto após quase dois anos de convivência. Estes achados apontam para a necessidade de aprofundamento de pesquisas que investiguem as adoções de crianças e adolescentes com necessidades especiais, dada escassez de produções nacionais e internacionais sobre o tema. A realização desses novos estudos poderá contribuir para a elaboração de legislações que contribuam para efetivação do exercício ao direito da convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes com necessidades especiais, que por uma variedade de motivos, não podem permanecer junto aos seus familiares consangüíneos. Referências Algood, C. L., Hong, J. S., Gourdine, R. M., & Williams, A. B. (2011). Maltreatment of children with developmental disabilities: an ecological systems analysis. Children and Youth Services Review, 33, 1142-1148. Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. (M. A. Veronese, Trad.). Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1979) Camargo, M. L. (2006). 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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010). Censo Demográfico de 2010. Obtido em 27/08/2011, de http://www.ibge.gov.br/ home/ presidencia/noticias/censofamiliashtml.shtm. Lei No. 8.069, de 13 de julho de 1990 (1990). Dispõe sobre a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF. Recuperado em 17 de julho, 2011, de www.presidencia.gov.br Lepore, P. E., & Rossato, L. A. (2009). Comentários à Lei Nacional de Adoção – Lei 12.010, de 03 de agosto de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1, 192. Levizon, G. K. (2004). Adoção. São Paulo: Casa do Psicólogo. Mariano, F. N., & Rossetti-Ferreira, M. C. (2008). Que perfil da família biológica e adotante, e da criança adotada revelam os processos judiciais? Psicologia: Reflexão e Crítica, 21(1), 11-19. Morais, N. A. Leitão, H. S., Koller, S. H., & Campos, H. R. (2004). Notas sobre a experiência de vida num internato: aspectos positivos e negativos para o desenvolvimento dos internos. 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(Trabalho originalmente publicado em 1965) UNESCO e Ministério da Saúde. (n.d.). Guia de tratamento clínico da infecção pelo HIV em crianças, financiado pela Coordenação Nacional de DST e AIDS – SPS. Weber, L. N. D. (2004). O psicólogo jurídico e as práticas de adoção. Rio de Janeiro: NAU. Yin, R. K. (2010). Estudo de caso: planejamento e métodos. (A. Thorell, Trad.). Porto Alegre: Bookman. (Trabalho publicado originalmente em 2003) Yunes, M. A. M., Miranda, A. T., & Cuello, S. E. S. (2004). Um olhar ecológico para os riscos e oportunidades de desenvolvimento de crianças a adolescentes institucionalizados. In S. Koller (Org.), Ecologia do Desenvolvimento Humano – Pesquisa e Intervenção no Brasil (pp.197218). São Paulo: Casa do Psicólogo. Recebido em setembro/2011 Revisado em novembro/2011 Aceito em janeiro/2012 57 R E L ATO D E P E S Q U I S A Profissionais atendem adolescentes ofensores sexuais: da repulsa à esperança Professionals attend sexual offender adolescents: from repulse to hope Liana Fortunato Costaa , Adeli Ribeirob, Monique Guerreiro de Mourac Resumo: Trata-se de pesquisa qualitativa sobre avaliação das questões emocionais, metodológicas e de aprendizagem, realizada com profissionais que atenderam um Grupo Multifamiliar com adolescentes ofensores sexuais e suas famílias. Sujeitos: seis profissionais de Psicologia, duas estudantes de Psicologia e um profissional do Serviço Social. Um questionário aberto foi enviado e respondido por correio eletrônico. Os resultados foram agrupados em 4 zonas de sentido: as reações pessoais, as questões técnicas, o contato direto com o ofensor e sua família e a intervenção em grupo. Os respondentes indicaram um esforço para administrar as próprias emoções e enfrentar as opções técnicas surgidas durante a intervenção em grupo; estar em equipe facilitou o manejo das emoções e dos conflitos; a cumplicidade entre os membros da equipe proporcionou um apoio mútuo. Identificar as emoções e reações dos profissionais frente às situações de violência é fundamental para lidar com esta temática. Palavras-chaves: Adolescente ofensor sexual; Formação profissional; Grupo multifamiliar Abstract: This is a qualitative research about an evaluation of emotional, methodological and learning issues, carried out with professionals who attended a Multifamiliar Group with sexual offender adolescents and their families. The subjects were: six professionals of Psychology, two students of Psychology and one professional of Social Service. An open questionnaire was sent and replied by electronic mail. The results were grouped in 4 sense zones: the personal reactions, the technical matters, the direct contact with the aggressor and his family and the group intervention. The respondents indicated an effort to manage their own emotions and to cope with the technical options arised during the group intervention. To be in a team facilitated the handling of the emotions and the conflicts. The complicity of the members of the team led to a mutual support. To identify the emotions and reactions of the professionals when facing situations of violence is fundamental to cope with this matter. Keywords: Sexual offender adolescent; Professional background; Multifamiliar group a Psicóloga; Doutora em Psicologia Clínica (Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura/UnB). * E-mail: [email protected] b Psicóloga; Centro de Orientação Médico Psico-pedagógico – COMPP - Secretaria de Estado de Saúde e Secretaria de Estado de Educação/ GDF. c Psicóloga da Secretaria de Saúde do Distrito Federal - SES/DF; Mestranda em Desenvolvimento e Políticas Públicas pela Fundação Oswaldo Cruz – (FIOCRUZ/ENSP/IPEA). Sistema de Avaliação: Double Blind Review 58 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 Este texto trata de uma pesquisa qualitativa sobre a caracterização da experiência profissional realizada com profissionais que atenderam um Grupo Multifamiliar (GM) com adolescentes ofensores sexuais e suas famílias, em um ambulatório público de saúde mental infanto-juvenil. Mais especificamente, os objetivos dessa caracterização foram compreender as emoções vividas pelos trabalhadores que atendem esses adolescentes, conhecer as necessárias aprendizagens que essa experiência exige desses profissionais, e a percepção deles sobre o atendimento às situações de violência numa opção metodológica pelo grupo. Esse tema é conhecido na literatura internacional como “vicarious tramatization” (Kadambi & Truscott, 2003; Moulden & Firestone, 2007; Way, Van Deusen, Martin, Applegate & Jandle, 2004), e define os efeitos emocionais sobre o terapeuta que trabalha permanentemente com conteúdos de crueldade e acabam por trazer dificuldades para a construção de um vínculo de empatia com seu cliente. Nos casos de atendimento a ofensores sexuais, a presença de empatia e a conexão afetiva são aspectos fundamentais. Periódicos internacionais oferecem uma enorme gama de textos sobre o tema da avaliação profissional dos trabalhadores com indivíduos violentos, mas em nosso país essa temática ainda se encontra pouco desenvolvida (Por exemplo: Carmel & Friedlander, 2009; Kadambi &Truscott, 2006; Scheela, 2001). Encontramos apenas trabalhos referentes às experiências de enfermeiros que atendem autores de violência (por exemplo, Correa, Labronici & Trigueiro, 2009) e as descrições do se passa com cuidadores de vítimas de violência (Machado & Merlo, 2008). Profissionais que atendem situações de violência É quase inexistente a presença de uma literatura nacional que discuta o tema das reações pessoais dos profissionais que atendem adolescentes que cometeram abuso sexual, até porque também quase não existem oferecimentos de intervenções para esta população. No entanto, podemos apontar alguns estudos como o de Correa et al. (2009), que enfocam as emoções e sentimentos de enfermeiros que atendem adultos autores de violência. Esses profissionais são invadidos por sentimentos como angustia, impotência, consciência daslimitações do trabalho, e principalmente questionamentos sobre sua própria subjetividade. Este aspecto é peculiar porque a formação do enfermeiro nãocomporta necessariamente demanda por terapias pessoais, o que já não acontece com os profissionais da Psicologia, que são demandados e treinados a perceberem sua própria subjetividade, às vezes até em demasia. A percepção do outro, que se constitui num veículo para percepção de si mesmo, é a principal ferramenta para dar conta do que se passa na relação entre o agressor e o profissional. Outras características são: sentir-se pouco resolutivo, medo do futuro, impotência por não conseguir controlar o meio ambiente da vítima. O autoconhecimento é fundamental para ajudar a ação profissional. Machado e Merlo (2008) também discutiram os resultados de uma pesquisa com auxiliares de enfermagem sobre o cuidado dispensado aos pacientes vítimas de violência. Os autores apontam o estresse oferecido por uma atividade que se desenvolve em torno da dor do outro, especialmente quando é um paciente internado em hospital e corre risco de morte iminente. O auxiliar de enfermagem necessita fazer um grande investimento afetivo para cuidar do outro e ainda voltar-se para dar atenção à sua própria dor. O dilema de atender a quem sofre e valorizar o próprio sofrimento é um aspecto inerente a esse profissional, inclusive ao profissional da Psicologia. Com relação à atenção ao profissional que atende ofensores sexuais, vários autores concordam que uma reação empática e calorosa do profissional para com o autor de violência sexual é um fator preponderante para o sucesso do atendimento (Carmel & Friedlander, 2009; Marshall et al., 2005; Oliver, 2007; Way et al., 2004). Por esse motivo, é importante estudar os fatores estressantes que possam impedir a realização dessa qualidade de vínculo terapêutico. Carmel e Friedlander (2009) indicam que os profissionais que possuem mais tempo de experiência, aqueles que têm características pessoais de maior autoconfiança ou ainda aqueles que sentem satisfação com o próprio trabalho, têm melhor percepção dos problemas enfrentados pelos clientes que cometeram violência sexual. Esse resultado não traz diferença no que diz respeito ao sexo do profissional, mulheres e homens relatam dificuldades e estratégias de atendimento, que visem à diminuição dessas dificuldades, de maneira semelhante. É importante assinalar que também vários autores apontam a necessidade de que as pesquisas, nessa área de atenção ao profissional que atende o autor de violência, se voltem para uma abordagem mais qualitativa, no sentido de conhecer quais reações desses profissionais podem interferir na condução do processo terapêutico (Carmel & Friedlander, 2009). Outros autores como Oliver (2007), Marshall et al. (2005) e Way et al. (2004) acrescentam que uma perspectiva qualitativa iria oferecer melhor compreensão darelação e de seus efeitos potencializadores sobre o enfoque terapêutico. Nossa contribuição se alinha nessa direção. 59 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 O Grupo Multifamiliar Os GMs foram conhecidos inicialmente pela denominação de Terapia Familiar Múltipla. As vantagens desta abordagem evidenciam que as famílias se sentem mais à vontade reunidas, quando há maior focalização nas suas interações. Segundo descrição pormenorizada de Laquer (1976/1983), os grupos são abertos, e as famílias vão ingressando ou deixando o grupo conforme necessário; os encontros são semanais com duração de uma hora e meia a duas horas e a coordenação fica a cargo de uma equipe terapêutica com terapeuta, coterapeuta e observadores. O critério para a seleção das famílias pode ser por condições semelhantes de problemas ou a seleção pode ser feita aleatoriamente quanto possível. O principal ganho desta forma de intervenção é quanto à aprendizagem de novas formas de comportamento pela pressão ou aprovação do grupo. Essas mudanças se dão por semelhança e identificação. Por semelhança, quando as famílias presenciam, em outras, seus conflitos, e por identificação, quando pais aprendem com outros pais, mães com outras mães, as soluções já encontradas. As famílias assumem um papel de coterapeutas, na medida em que já alcançaram mudanças, e desse modo funcionam como modelos, criando um foco permanente de excitação, já que sempre existem famílias em estágios diferentes. O Grupo Multifamiliar com adolescentes ofensores sexuais No caso do GM para adolescentes agressores sexuais, o critério de seleção das famílias é por semelhança de problemática. O GM que ora descrevemos baseia-se em Costa, Penso e Almeida (2005) e fundamenta-se nos aportes teóricos: a) da Psicologia Comunitária, b) da Terapia Familiar, c) do Sociodrama e, d) da Teoria das Redes Sociais. O GM para adolescentes ofensores sexuais é uma adaptação proposta como intervenção psicossocial que reúne famílias numa modalidade de atendimento “sob obrigação”, a partir de encaminhamento da Justiça e do Conselho Tutelar. Os adolescentes são encaminhados à instituição como parte do cumprimento de medida socioeducativa (artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, 1990). Essa participação “sob obrigação” é manejada por uma opção metodológica pela presença constante da ludicidade que atenua esse aspecto, e pela utilização de técnicas expressivas como desenhos, colagens e dramatizações que facilitam o acompanhamento do processo interventivo para os adolescentes e as famílias. Na atualidade autores do Reino Unido reconhecem que esses adolescentes se beneficiam sobremaneira de programas de atendimento com ênfase nas relações familiares (Hengeller et al., 2009; Marshall, 2001; Zankman & Bonomo, 2004). A opção metodológica do GM caminha nesse sentido. O GM ocorreu em cinco encontros onde foram desenvolvidos os seguintes temas: Proteção: “Eu devo proteger outras crianças, mas ainda preciso de proteção’’; Sexualidade: “É tempo da sexualidade desabrochar”; Abuso sexual é um crime: “O abuso sexual é um crime e uma violência”; Transgeracionalidade: “Precisamos conhecer nossos antepassados” e Projeto de namoro: “Ainda quero namorar muito”. Os adolescentes participantes e suas famílias tiveram como critério de inclusão no grupo: Adolescentes - sexo masculino; 12 a 18 anos; ser cliente do ambulatório ou ser encaminhado por qualquer entidade pertencente à Rede de Proteção da Criança ou do Adolescente; estar com os vínculos familiares preservados; ter denuncia de envolvimento em situações de violência sexual contra crianças; estar ou não em cumprimento de medida socioeducativa (Liberdade Assistida - LA, Prestação de Serviço Comunitário - PSC ou Semi Liberdade); Famílias – familiares residindo na mesma casa, familiares da família extensa como avós, tios, e outros, com envolvimento no problema, bem como vizinhos ou padrinhos também com envolvimento com o problema. Nesse texto, vamos enfocar os profissionais que desenvolvem ações com adolescentes ofensores sexuais, por meio de um recorte sobre a caracterização da experiência profissional que faz parte de uma pesquisa mais ampla sob o nome de “Grupos Multifamiliares com Adolescentes Agressores Sexuais”, e é realizada numa parceria entre o ambulatório já citado e uma universidade pública. Esse texto pretende contribuir como um estudo que descobre uma área ainda bastante desconhecida que enfoca o adolescente ofensor sexual e aqueles profissionais que os atendem. Para melhor atendimento a essa população é necessário se conhecer o que se passa com seus cuidadores (Marshall, 2001). Método Contexto A pesquisa foi realizada em um ambulatório público de saúde mental, Centro de Orientação Médico Psicopedagógico – COMPP, unidade de Saúde Mental Infanto-juvenil que compõe a Rede de Proteção a Crianças e Adolescentes no que diz respeito ao atendimento às vítimas e vitimizadores sexuais. Esse ambulatório se situa em uma grande capital e atende população 60 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 proveniente de seu entorno. Em nossa realidade brasileira, inexiste estatística apurada sobre o registro de denúncias de abuso sexual contra crianças cometido por adolescentes. Mesmo em países de primeiro mundo, há um reconhecimento de que os registros são falhos. No entanto, Oliver (2007) e Marshall (2001) concordam que 1/3 dos casos de abuso sexual são cometidos por adolescentes. O site da Vara da Infância e da Juventude – VIJ/DF informa dados do CEREVS (Centro de Referência em Violência Sexual) referentes ao ano de 2010 (VIJ, 2010): violência sexual cometido a por irmão – 2,33%; cometida por primo – 5,81%; cometida por tio – 9,30%. Não encontramos números que indiquem a violência cometida por adolescentes. Esse dado seria fundamental para dimensionar adequadamente o fenômeno, pois existem estatísticas para tio, irmão e primo, e esses adolescentes ofensores sexuais, participantes da presente pesquisa, abusaram sexualmente de sobrinhos, irmãs ou irmãos e primos/as. O GM teve a duração de agosto a dezembro de 2009, nas seguintes etapas: agosto – treinamento da equipe e entrevistas com as famílias inscritas no GM; de agosto a dezembro – atendimento e supervisão dos GM com intervalos quinzenais e intercalados com atendimento/supervisão. Os temas desenvolvidos no GM foram propostos em função da experiência das autoras e em complementaridade do oferecimento de GM para vítimas (Costa et al., 2005). Os adolescentes integrantes desse GM tinham entre 14 e 17 anos, com escolaridade entre 5ª série do 1º grau e 3ª série do 2º grau, e renda familiar entre 500 reais e 1500 reais. Participantes Os sujeitos foram os componentes da equipe: 6 profissionais de Psicologia do sexo feminino, 2 estudantes de Psicologia do sexo feminino, 1 profissional do Serviço Social do sexo feminino e 1 profissional do Serviço Social do sexo masculino, no total de 10 participantes. Todos os 10 participantes estiveram presentes em todo o processo do GM, e seu status em relação à instituição está explicitado no quadro 1. Sexo Profissão/ status na instituição Idade (anos) Est. civil Filhos Tempo que atua com vítimas de violência Pós-graduação Tempo de formado Fem Estudante Psicologia/ estagiário 22 solteiro - 2 anos - - Fem Psicóloga da instituição 27 solteiro - 4 anos - 2 anos Fem Psicóloga da instituição 24 solteiro - 1 ano - 6 meses Fem Estudante Psicologia/ estagiário 22 solteiro - 2 anos - - Fem Psicóloga da instituição 50 solteiro - 10 anos Especialização 20 anos Fem Psicóloga supervisora/ academia 61 casado 2 10 anos Doutorado 35 anos Fem Psicóloga da instituição 40 casado 2 2 anos Especialização 16 anos Fem Assistente social da instituição 43 casado 2 8 anos Especialização 16 anos Masc Assistente social, mestrando/ academia 25 casado - 4 anos Graduação em Pedagogia, Aluno de Mestrado em Psicologia 3 anos Fem Psicóloga da instituição 31 casado 3 4 anos - 5 anos Quadro 1 – Informações sobre os participantes 61 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 Instrumento O instrumento constituiu-se em um questionário aberto enviado por correio eletrônico, para ser respondido e devolvido da mesma forma. Os itens constantes deste questionário foram: a) Dados pessoais; Formação; Tempo de atuação com violência; b) Você teve alguma dificuldade na participação do GM em função da presença de um ofensor no grupo? Qual? Por quê?; Como você classifica estas dificuldades: de ordem pessoal, profissional, emocional, etc.?; Ou, ao contrário, você não sentiu dificuldade? Por quê? Neste caso, qual seria o motivo pelo qual foi mais fácil lidar com esta situação; Qual o efeito sobre suas emoções, ao entrar em contato direto com o ofensor no GM?; Qual o efeito sobre seus conhecimentos, ao entrar em contato com o ofensor no GM? ; Qual o impacto sobre sua formação profissional, ao entrar em contato com o ofensor no GM? ; Qual o impacto sobre sua vida pessoal, ao entrar em contato com o ofensor no GM?; Você considera que seus conhecimentos sobre família, violência sexual e a metodologia utilizada foram suficientes para lidar com as consequências da presença do ofensor no GM?; Você sentiu necessidade de aprofundar alguma questão teórica ou metodológica para melhor lidar com a presença do ofensor no GM? ; Como você avalia esta experiência em termos de amadurecimento pessoal e profissional?; Sua visão sobre violência sexual, família, agressor sexual, criança/adolescente abusado mudou no decorrer do contato com o ofensor ? Em que sentido?; Das questões apresentadas pelo ofensor alguma lhe mobilizou mais? Qual? Como? Por que?; Este é um espaço para que você possa colocar alguma informação que ache relevante e que não foi prevista nas questões anteriormente abordadas. Procedimentos Após o término do GM, os questionários foram enviados a todos que participaram do mesmo, pela responsável pela pesquisa, que também foi a pessoa que se encarregou de cobrar e recolher as respostas. Entre o envio e a chegada das respostas passaram-se dez dias. A pesquisa foi inscrita no Comitê de Ética da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS) da Secretaria de Estado de Saúde do Governo do Distrito Federal (GDF) e aprovada com o parecer nº 331/2009. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado antes do envio do questionário. Analise das informações González Rey (2005) propõe uma perspectiva da análise de conteúdo que se apoia na expressão de indicadores, que revelam os fenômenos e são unidades processuais. Os indicadores são produzidos durante o próprio processo de investigação e análise, constituindo-se em ferramentas essenciais para a definição das zonas de sentido. As zonas de sentido são a integração dos indicadores, produzindo sentidos e compondo conjuntos de interpretação, que não possuem a pretensão de generalização, mas produzem um conhecimento que é contextual, próprio da experiência aqui relatada. Na prática, o procedimento para análise ocorreu da seguinte forma: leitura inicial das respostas; apontamento dos indicadores (falas, expressões); construção de núcleos de sentido (zonas de sentido) comum entre os indicadores apontados; interpretação do conteúdo subjacente dentro desses núcleos. Discussão e Resultados Após uma leitura de todos os questionários devolvidos, a partir da percepção dos indicadores, construímos 4 núcleos de sentido: 1) As reações emocionais e sentimentos dos profissionais frente aos atendimentos; 2) As dificuldades e/ou facilidades do enfoque técnico; 3) O contato com o agressor e sua família e 4) As questões relativas à opção metodológica pelo GM que envolve adolescentes e familiares. Em função de que o conjunto das respostas é composto por alunos e profissionais, achamos relevante que os resultados distingam o que pensam estes dois grupos, no conteúdo desenvolvido em cada núcleo de sentido. Inicialmente vamos comentar sobre o conjunto das características da equipe. São 6 psicólogos, 2 assistentes sociais e 2 estudantes de Psicologia, com idades que variam de 22 a 61 anos. Isto parece representar bem a realidade dos ambulatórios públicos de atendimento a esta população: uma maioria de jovens profissionais, com uma formação que se limita mais à graduação, sendo que neste grupo, são 5 graduados, 3 profissionais com especialização, um com mestrado e um com doutorado. Moulden e Firestone (2007), numa revisão de literatura sobre o tema da reação dos terapeutas ao atendimento de ofensores sexuais, indicam que, na realidade de língua inglesa, estes atendimentos são mais realizados por homens do que por mulheres. E ainda, 53% dos terapeutas de ofensores sexuais têm mestrado e recebem, por ano, cerca de 50 horas de treinamento continuado e supervisão. Em relação aos nossos participantes, a média de experiência no atendimento a situações de violência é de 4.7 anos. Temos no Brasil, uma realidade bem diferente na qual os psicólogos atuantes em contexto clínico são mais do sexo feminino do que masculino. Daí, compreendermos porque a supervisão é mencionada como um aspecto fundamental do 62 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 enfrentamento do estresse, como veremos abaixo. A média de idade dos participantes é de 37,62 anos, o que não podemos considerar como pouca idade. A média de idade das estudantes é 22. Nesse quesito entendemos que as idades estão dentro de uma condição razoável, sendo que dos 10 participantes, 4 são casados o que pode indicar uma possibilidade de maior experiência de vida. Sobre a amplitude das idades, estes autores acima citados (Moulden & Firestone, 2007) indicam que os efeitos sobre as emoções e sentimentos destes terapeutas não fazdiferença em relação à idade. O terapeuta com idade mais elevada pode acabar sofrendo de efeitos cumulativos da experiência do atendimento contínuo a esta população. Por outro lado, Carmel e Friedlander (2009) e Kadambi e Truscott (2003) chamam atenção para o fator maior idade como atenuante dos efeitos estressores sobre o profissional que atende tanto vítimas como perpetradores de violência sexual. Isto também está relacionado à distância de 2 a 35 anos da formatura que este grupo de participantes apresenta. Os autores pesquisados (Carmel & Friedlander, 2009; Firestone & Moulden, 2007; Kadambi & Truscott, 2003, 2009; Way et al., 2004) concordam que não necessariamente uma maior idade habilita o terapeuta a lidar melhor com esses conteúdos, mas sim a sua participação em supervisão, em discussão de casos e contato freqüente com colegas. Principalmente, o que temos a comentar é que, em função do atendimento a agressores sexuais estar ainda em um âmbito precário e incipiente em nosso país, necessitamos percorrer um longo caminho e avaliar melhor quais implicações trazem para estes atendimentos as características de formação e qualificação pessoal e profissional dos terapeutas em nossa realidade. Vamos agora apresentar a discussão construída nas zonas de sentido. Em cada zona de sentido vamos apresentar, logo no início, as falas dos participantes que serviram de base para a construção da discussão. 1) Reações pessoais: emoções e sentimentos Nessa zona de sentido vamos comentar sobre as reações apresentadas pelos participantes com relação aos seus sentimentos, às emoções vividas durante o processo do GM, no atendimento aos adolescentes e às famílias. seriam os abusadores. E ao longo dos encontros, fui tomada pela compaixão”. Profissional, feminino, 24 anos: “nos primeiros encontros do grupo, minhas emoções estavam mais voltadas para a vítima no sentido de pensar no sofrimento que a criança poderia estar enfrentando, a família, os pais. Então, os encontros e as discussões tiveram um efeito de mudança na compreensão que o adolescente também estava em sofrimento e desprotegido de sua família”. Profissional, feminino, 61 anos: “inicialmente sim, sentimento de repulsa. Acho que o sentimento veio por conta de imaginar estar diante de criminosos... As emoções foram de nojo no início, para pena no final e esperança no futuro... Pude restabelecer alegria e esperança com o trabalho com o adolescente”. Profissional, feminino, 50 anos: “eu sempre trabalhei com as vítimas me identificando com o sofrimento delas e rejeitando os agressores...O conhecimento subsidiou a atuação trazendo uma visão técnica científica e apaziguando as emoções”. Profissional, feminino, 43 anos: “empatia, pois já conhecia a maioria”. Profissional, masculino, 25 anos: “minha decisão para participação foi exatamente em razão da presença deles (os adolescentes)...a visão desses agressores como detentores de direitos humanos acima de qualquer entendimento reduzido sobre abuso sexual já me faz ter um controle maior das minhas emoções”. Profissional, feminino, 31 anos: “Inicio raiva ...e depois compaixão, vontade de ajudar, fiquei emocionada ... ao perceber o quanto eles queriam ser ajudados, estavam disponíveis ... evitar fazer julgamentos precipitados”. Profissional, feminino, 43 anos: “precisei estudar mais”. Profissional, feminino, 40 anos: Aluna, feminino, 22 anos: “no início, tive receio em como seria trabalhar com os “acredito sejam mais de ordem emocional, porque sempre adolescentes abusadores, mil hipóteses diagnósticas passaram olhei muito mais para o lado da vítima. Eu estava permeada pelo pela minha cabeça... foi uma forma de defesa, de receio, de preconceito cultural, com um misto de medo, repugnância e outros preconceito ... porque me coloquei no lugar da vítima e não sentimentos de desdém, visto que o público a ser trabalhado 63 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 conseguia vê-los como vítimas, tb, só conseguia vê-los como função dos sentimentos desenvolvidos pelo terapeuta sobre agressores”. o ofensor sexual. Neste caso, a falta de uma relação empática pode significar uma recidiva da agressão sexual, fazer mais uma Chama atenção as reações iniciais que são de revolta, vítima e interferir sobremaneira na avaliação de eficácia do repulsa, preconceito, condenação, seja porque já se trabalhou próprio terapeuta (Moulden & Firestone, 2007; Marshall et al., com agressores adultos, seja porque se remetem à vítima. Parece 2005). que a experiência anterior pode influenciar o contato com o Dois aspectos são interessantes e apontados como adolescente, no sentido de privilegiar uma ideia preconcebida de facilitadores: o papel da supervisão que auxilia quando indica delinquente. Foucault (1986) diferencia o sujeito delinquente do leituras e estudo, sobre o tema, e assim amplia o conhecimento sujeito infrator. O infrator é definido como aquele que infringiu prévio; e o fato de se gostar de trabalhar com esta população que as normas jurídicas estabelecidas, enquanto que o delinquente cria outra condição para se ver o adolescente de forma distinta é fabricado e submetido ao sistema judiciário que o nomeia, o em relação à vítima. Moulden e Firestone (2007) apontam estigmatiza e o controla. O que os profissionais relatam é que que a supervisão tem um papel cuidador sobre o profissional conseguiram refazer a trajetória de vê-los como delinquentes diminuindo o efeito estressor sobre ele. Do mesmo modo pensam e revê-los como infratores, principalmente como sujeitos de Carmel e Friedlander (2009), Kadambi e Truscott (2003, 2006). direitos, e reconsiderá-los como sujeitos em formação (Machado, Sobre este tópico ainda é importante notar que não há muita 2003). O conhecimento do que se passa com suas emoções, do diferença entre estudantes e profissionais quanto à expressão sofrimento experimentado em face do contato com agressores dos sentimentos e quanto à possibilidade de reformulá-los sexuais é aspecto fundamental para que haja continuidade no e construir a aproximação pessoal com o sujeito agressor. Na investimento afetivo e de expectativas em relação a esse cliente presente discussão, o que pode fazer a diferença é a fala do (Carmel & Friedlander, 2009; Kadambi & Truscott, 2003; Way et único profissional masculino que diz não ter sentido dificuldade al., 2004). em estar com os sujeitos. Poderíamos pensar em influência de A possibilidade da vinculação afetiva com este adolescente gênero na percepção da avaliação positiva ou negativa? Carmel infrator está ligada a este caminho. Também está presente aí e Friedlander (2009) apontam que as mulheres não diferem a possibilidade de sair do âmbito simplesmente avaliativo e dos homens na possibilidade de fazer um bom vínculo com o recuperar uma trajetória da vida familiar e social do adolescente: agressor sexual, e que também a característica de autoconfiança os adolescentes também são vítimas e também sofrem. É do terapeuta pode significar uma diferença de menor estresse possível sair de uma ideia preconcebida para sentimentos no atendimento. Será esse o caso do assistente social masculino positivos. Carmel e Friedlander (2009) e Kadambi e Truscott que diz “a visão desses agressores como detentores de direitos (2003) enfatizam a presença de um sentimento de compaixão humanos acima de qualquer entendimento reduzido sobre que viabiliza a aproximação do terapeuta com o cliente agressor abuso sexual já me faz ter um controle maior das minhas sexual. Outro aspecto que faz diferença nas reações, ao longo emoções”? do tempo, sobre o estresse dos atendimentos é uma genuína sensação de satisfação com o trabalho executado. Madanes, Keim 2) Questões técnicas: facilidades e dificuldades e Smelser (1997) recomendam o desenvolvimento de algumas habilidades para o atendimento de adolescentes agressores Nessa zona de sentido vamos apresentar como os sexuais: amabilidade, controle das aversões, paciência, visão participantes perceberam os aspectos técnicos do atendimento de aspectos positivos, diminuição da posição crítica e atitude aos adolescentes perpetradores de violência, o que se constituiu acolhedora. O reconhecimentode que a violência não é só do como impasse e como facilitador no processo de contato com o adolescente, mas também da família e do meio ambiente, tema da violência. colabora para esta mudança e auxilia a disponibilidade do profissional para alterar seu ponto de vista. O atendimento Aluna, feminino, 22 anos: terapêutico a ofensores sexuais tem algumas características “... para não serem pegos de surpresa diante de algumas que têm que ser pensadas em particular. A empatia, que é situações, como medo dos agressores”. um sentimento fundamental na vinculação terapêutica, é um aspecto fundamental nesta relação e pode ser dificultada em Aluna, feminino, 22 anos: 64 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 “penso que não senti dificuldade ... esta é uma grande (2009) referem o atendimento às vítimas de violência expõe as oportunidade de crescimento profissional e pessoal”. vulnerabilidades e fragilidades pessoais que são percebidas pelo restante da equipe. Profissional, feminino, 27 anos: O que é interessante notar é que a dificuldade advém não ... pois me sentia incapacitada de lidar com isso não pelo do contato com a dor do agressor, mas sim de uma sensibilidade fator teórico-prático apenas, mas principalmente pelo impacto para a dor da vítima. Os estudos de Kadambi e Truscott (2003) emocional. apontam na direção de que não há muita diferença entre os efeitos estressores de quem trabalha com as vítimas ou com Profissional, feminino, 61 anos: os agressores. Há que haver sempre um espaço de suporte “depois mais fácil à medida que percebi que a violência para ambos os grupos. A supervisão oferece a oportunidade com adolescentes abusadores têm outras implicações que não é das reações que são particulares serem discutidas em grupo, claramente um crime. Consegui recuperar a percepção de que o transformando o contexto em possibilidade. Moulden e adolescente não está pronto, não está formado e ainda precisa ser Firestone (2007) mostram estatísticas que a maioria dos visto como alguém em construção”. terapeutas, que atendem ofensores sexuais, é do sexo masculino e são estes que também atendem adolescentes ofensores Profissional, feminino, 24 anos: sexuais. Já maioria dos terapeutas que atendem as vítimassão “sim, tive dificuldades no trabalho com os adolescentes, mulheres. Estas informações refletem uma realidade americana uma vez que tenho pouca experiência com pessoas dessa fase do ecanadense. Nossa realidade apresenta uma feição inversa, e desenvolvimento... E trabalhar com abusadores sempre mobiliza isto requer que estudos sistematizados e contínuos venham a por causa do aspecto da violência...”. serem estabelecidos, porque não temos nenhum registro dessas proporções em nosso país e nem do que isso traz de significações Profissional, feminino, 31 anos: para o atendimento clínico. As qualidades apontadas por “agora não tive nenhuma dificuldade, acredito que por já Kadambi e Truscott (2003) como desejáveis, capacidade de ter atendido um individualmente. Na ocasião deste atendimento expressar empatia – autoestima alta – capacidade de efetuar individual tive sim dificuldades, receio por não saber quem vinculação, não são necessariamente características ligadas à iria encontrar....as dificuldades anteriormente citadas foram idade ou ao sexo. superadas quando percebi que ele era uma pessoa também em Quando se trata de agressor sexual adolescente, a questão sofrimento, também vitima desta situação”. preventiva é primordial (Oliver, 2007; Sanderson, 2005), por isto é tão importante o atendimento a adolescentes ofensores Profissional, feminino, 43 anos: sexuais. A prevenção é relativa ao próprio adolescente e às “não, pois já trabalhava individualmente com eles e sua crianças, possíveis vítimas. E é interessante porque é também família. Mas quando iniciei nas entrevistas tinha muito receio e este sujeito que, por sua condição de ainda em crescimento, indignação. As supervisões me ajudaram a estar mais segura nos recupera no profissional os sentimentos positivos como atendimentos”. compaixão, para a retomada de uma atitude não defensiva e mais proativa de ajuda. Neste sentido, Oliver (2007) alerta para o Profissional, masculino, 25 anos: possível desconhecimento, por parte do adolescente, do quanto “trabalho com pesquisa sobre agressores sexuais há é errado ou pode causar prejuízo tocar uma criança de forma aproximadamente 4 anos e acredito ter atingido um certo ponto sexualizada. É o reconhecimento da condição não experiente do de segurança emocional e profissional para lidar com o tema, seja adolescente que pode reconduzi-lo ao lugar de direito à proteção direta ou indiretamente”. e orientação do qual este autor enfatiza, e Machado (2003) não abre mão. O que traz dificuldade são os sentimentos paralisantes, De novo, neste item, não há muita diferença entre a como o medo, o receio de entrar em contato com algo que percepção dos alunos e dos profissionais. Talvez, pelo fato de que representa perigo: o agressor sexual. O tema da violência o oferecimento de apoio a agressores sexuais ainda não seja uma mobiliza no sentido de desencadear reações de rejeição pelo ação amplamente sistematizada em nosso contexto psicossocial sujeito agressor e pelo ato cometido. Ou, como Correa et al. jurídico, as reações são bem semelhantes. Os profissionais, 65 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 assim como os alunos, ainda carecem de formação específica e experiência prática para este labor. Como foi dito anteriormente, a média de tempo de trabalho com esse tema é de 4,7 anos. Carmel e Friedlander (2009) concordam que o maior tempo de experiência no trato com agressores sexuais pode significar maior capacidade de lidar com o estresse dos atendimentos. Desse modo vemos como essa lacuna de programas oferecidos a essa população, e por consequência a lacuna de conhecimento sobre os efeitos de maior ou menor experiência do profissional, nos dificulta comentar nossa realidade. 3) As reações ao contato direto com o sujeito ofensor e sua família Nessa zona de sentido vamos apresentar as questões relativas ao contato direto com o ofensor sexual, as contradições presentes na família que comparecem ao GM incluindo um filho ofensor e um filho/a vítima. A ação interventiva sobre adolescente ofensor sexual é um desafio, ainda no momento, pois não temos nem histórico de ações nem descrição de trabalhos dessa natureza. Aluna, feminino, 22 anos: “inicialmente tive insegurança e medo de não dar conta. E pensei até que não me sentiria à vontade ao lado dos meninos...”. Profissional, masculino, 25 anos: “chamou-me atenção o fato de alguns adolescentes mencionarem a figura feminina como cuidadora ou vítima do masculino ... mas me sensibilizou no sentido de reiterar a importância de um profissional homem que ajude, dentre outros aspectos, a ressignificar o lugar o papel masculino”. Profissional, feminino, 31 anos: “... percebi que são todos vitimas e que sofrem pelo ocorrido... Foi muito interessante observar as crianças (irmãos) e vítimas, seu comportamento junto aos meninos e seu sofrimento por ter que estar ali.... a questão da punição imposta pela família, o isolamento... nós erramos mas já tá bom, chega” (referindo-se ao sofrimento imposto pela família). Profissional, feminino, 40 anos: “... pude ver o sofrimento deles, as dificuldades deles, a falta de manejo dos pais, dos familiares... O primeiro impacto é reavaliar a minha forma de realizar a proteção, de estar mais próxima da minha família, de estar com meus filhos, de compartilhar com eles...de ouvi-los...de verbalizar. O segundo é de permitir derrubar os preconceitos... sim, passei a entender a violência como um produto, um resultado e não como apenas um ato “horroroso”. Este conjunto de informações é essencial porque mesmo Aluna, feminino, 22 anos: em outros itens da análise, o contato com a violência e o sujeito “agora, após a participação no grupo, observo-os como agressor foi mencionado com ênfase. Fica clara a perspectiva de parte de um ciclo de múltiplas violências”. rejeição, pelo menos inicial, apontada pelos informantes. Essas falas mostram o quanto é fundamental maior conhecimento Profissional, feminino, 24 anos: sobre o tema “vicarious traumatization”. Mesmo que perspectiva “principalmente pelo fato do adolescente e sua família de rejeição possa ser desconstruída e reconstruída em aceitação estarem em sofrimento e precisarem de ajuda”. e compreensão, é fundamental este reconhecimento porque a vinculação terapêutica depende, em parte, dessa transformação Profissional, feminino, 61 anos: (Madanes et al., 1997; Oliver, 2007; Sanderson, 2005). O que “violência nesse ponto de vida pode não ser definitivo... O proporciona esta mudança é o contato direto com o sofrimento abusador vira vítima tanto quanto a vítima”. da família do agressor e com o sofrimento do agressor em particular. E aí a percepção desse agressor como uma vítima Profissional, feminino, 27 anos: passa a prevalecer, seja pelas dificuldades sociofamiliares, seja “alguns adolescentes tiveram só a punição e falta de apoio pela punição que a família já decretou a ele através de ações, que de suas famílias. E alguns familiares ainda têm dificuldades em são também muito violentas. É como se o adolescente saísse do perceber que os adolescentes também precisam ser protegidos e lugar de “lobo mau da família” para uma situação de igualdade que as mudanças têm que fazer parte de todo o sistema familiar”. de vitimização e sofrimento em relação ao restante dos membros da família. Scheela (2001) comenta que os terapeutas Profissional, feminino, 50 anos: apontam, no início de sua experiência profissional com esse “para minha vida pessoal foi surpreendente o crescimento. Eu tema, uma condição semelhante de rejeição ao trabalho, de tinha uma visão unilateral e preconceituosa”. apreensão quanto ao contato com o agressor, e de sentirem 66 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 muitas interferências em sua vida pessoal em decorrência dos atendimentos. Porém, esses aspectos são transformados em expectativa e disponibilidade à medida que eles compreendem a complexidade dos atendimentos e resgatam a dimensão humana dos sujeitos. Neste sentido, amplia-se a visão do sofrimento de todos com as mudanças nos relacionamentos nos subsistemas, irmãoirmão, mãe-adolescente, pai/padrasto-adolescente. A família, como um todo, passa por uma circunstância desestruturante, assim como acontece com as famílias das vítimas. O adolescente pratica uma violência que o atinge de volta. Este aspecto é relevante, pois aponta que o adolescente agressor sexual permanece sozinho, afastado de suas relações familiares e isto contraria o que coloca Oliver (2007), que enfatiza a importância do adolescente ter com quem compartilhar e conversar sobre suas fantasias sexuais. Este ponto corrobora a importância da relação próxima do profissional com o adolescente. Marshall et al. (2005) percebem como promissor o atendimento ao agressor sexual por meio de uma ação compreensiva, empática e de proximidade afetiva. Ainda outra particularidade diz respeito à reação do único respondente masculino, que disse que ficou impressionado com a crença já arraigada no adolescente de que a figura feminina é quem cuida e é também a vítima do homem. Estudiosos do gênero (Saffioti, 2002; Segato, 2010) argumentam sobre o poder social da construção dessa dependência feminina em relação ao masculino. Mas, parece que o profissional está apontando uma concepção contraditória a esta posição, na qual o homem depende da mulher e ao mesmo tempo é seu algoz. Moulden e Firestone (2007) apontam que não há diferença significativa do surgimento de estresse profissional em terapeutas masculinos ou femininos. O que pode ser importante e representar uma agravante, é a observação de que um terapeuta masculino, ao atender ofensores sexuais, pode desenvolver uma culpa coletiva, resultado de identificação de gênero, que poderá ter consequências sobre sua conduta sexual na vida privada. Ou, ainda, como Scheela (2001) aponta, que os terapeutas masculinos de ofensores sexuais acabam por desenvolver um cuidado maior em suas interações sociais com crianças incluindo preocupação com toques e intimidades. Parece não haver diferença entre as percepções de alunos e de profissionais no que tange aos sentimentos e preocupações pelo atendimento a esse público. Kadambi e Truscott (2003), Way et al. (2004), Carmel e Friedlander (2009) apresentam uma série de comportamentos que são vistos como danosos para o profissional e que são relativos aos efeitos dos atendimentos clínicos realizados pelos profissionais que entram em contato com histórias com conteúdo de crueldade. Esse aspecto não parece variar em função de maior ou menor idade. Todos os profissionais estão sujeitos a essas consequências. No entanto, Scheela (2001), ao fazer uma pesquisa qualitativa sobre esse tema, encontrou uma configuração mais ampla do que somente efeitos danosos. Com o passar dos anos os profissionais também apreendem melhor a complexidade dos comportamentos agressivos sexuais e isso os ajuda a mudarem uma postura de rejeição e sofrimento ante essas histórias. 4) OGM para adolescentes ofensores sexuais: possibilidade de intervenção Nessa zona de sentido apresentamos as reações da equipe diante de uma proposta de atendimento grupal para uma problemática dessa natureza, e a condição de atendimento que se dá a partir do adolescente ser visto em família. Aluna, feminino, 22 anos: “apesar de estar no oitavo semestre eu obtive poucas informações sobre esse tipo de trabalho”. Aluna, feminino, 22 anos: “O vínculo entre mãe e filho abusador... na maioria das famílias há um movimento de exclusão e isolamento desse adolescente... vistos como bandidos e marginais”. Profissional, feminino, 61 anos: “Pensar um trabalho interessante, com técnicas e estratégias lúdicas para adolescente”. Profissional, feminino, 27 anos: Reforço a questão da equipe, da importância das relações que criamos como grupo, de apoio, de compartilhar de aprendizado e experiências...” Profissional, feminino, 50 anos: Vejo o adolescente como alguém ainda em formação e alguns fatores familiares como a inversão de papeis, onde o adolescente fica responsável pelo cuidado dos irmãos menores propiciam o surgimento de situações que ele não sabe bem como lidar. O dormir junto com a irmãzinha, até mesmo para protegê-la de um medo noturno, traz proximidade física...” Profissional, masculino, 25 anos: 67 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 “... Meus conhecimentos sobre família, violências e metodologia estão em crescimento... Ainda preciso de melhor conhecimento de manejo de grupos” (técnicas e instrumentais práticos). Profissional, feminino, 31 anos: “Adotamos uma postura leve e descontraída com os adolescentes o que possibilitou entrar em contato com a temática sem inibir, acusar ou marginalizar. ...Neste sentido a metodologia utilizada foi fundamental, visto que permitiu aos mesmos se expressar e serem ouvidos...” Profissional, feminino, 40 anos: “... Eles conseguiram...me fazer pensar na constante construção do saber que vivemos e que quando achamos que sabemos muito, descobrimos que não sabemos é nada, que precisamos estar mais neutros dentro do grupo. Neutros de teorias e aptos a vivenciar o grupo...” Este item trata das reações frente ao atendimento grupal dos adolescentes e suas famílias, no qual as interações são privilegiadas. Parece quase comum a todos a queixa sobre a necessidade de aquisição de habilidades para atendimento em grupo. Tanto os alunos como os profissionais apontam que se sentem em prejuízo quanto ao manejo de atendimentos grupais. Isto se repete com relação também ao conhecimento específico sobre o tema do abuso sexual. Penso, Costa, Ribeiro, Almeida e Oliveira (2008) criticam o oferecimento de disciplinas clínicas no Curso de Psicologia que se voltam mais para os atendimentos individuais, com pouca consideração pela realidade prática, que indica para o fato de que os trabalhos nos contextos de saúde ou de assistência social atendem demandas excessivas, e não podem se organizar para atendimentos prioritariamente individuais. Parece que esta crítica reflete ainda uma menor preocupação do profissional com alguns anos de formado que não buscou até então um aprimoramento em intervenções grupais. Deste conjunto de pesquisados, apenas uma psicóloga tinha formação para clínica grupal. No entanto, todos responderam sobre a efetividade da intervenção grupal e sobre o quanto a observação das interações familiares afetou positivamente a compreensão deles sobre o adolescente. Ficou patente o quanto o GM proporcionou o conhecimento mais aprofundado sobre a relação entre a mãe e o filho adolescente. Assinalamos que a intervenção grupal requer desenvolvimento de habilidades técnicas para o manejo grupal, em uma abordagem lúdica e dinâmica, pontos importantes para um trabalho com adolescentes. O atendimento em grupo permitiu a responsabilização do ato violento sem abrir mão de uma perspectiva lúdica, necessária para estimular o sujeito alvo da intervenção, e criar um contexto facilitador para o cumprimento da demanda. Dos adolescentes presentes, vários estavam cumprindo medida socioeducativa em regime aberto, decretada pelo juiz. Os programas para essa clientela, desenvolvidos em países como Canadá, Estados Unidos, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia oferecem formação continuada anual para seus profissionais. Esta zona de sentido aponta, diferentemente, as falhas na formação profissional das várias especialidades aqui enfocadas. Trata-se de reconhecer e criticar que as deficiências na formação profissional vão além do não conhecimento sobre atendimento em grupo, mas alcançam limites em relação às temáticas de violência, de execução de políticas públicas e de atendimento aos perpetradores de violência. Ainda cabe acrescentar um aspecto enfatizado por Moulden e Firestone (2007) que é a inclusão na formação profissional de aspectos preventivos e educativos sobre os efeitos danosos na subjetividade dos terapeutas em decorrência do atendimento a esta população de agressores sexuais. Sabemos que ainda temos muito poucas iniciativas de atendimento a este público, e aventamos a hipótese de que se as formações específicas incluíssem estes aspectos talvez mais profissionais se encorajassem nessa empreitada. Considerações Finais Esse texto buscou apresentar aspectos da caracterização da experiência de profissionais e estudantes de Psicologia e Serviço Social sobre atendimento grupal familiar a adolescentes ofensores sexuais. Não há em nosso país outras experiências publicadas o que torna nossa discussão limitada, podemos apenas tecer comentários frente a outras experiências da literatura internacional. Além disso, essa literatura identifica trabalhos a partir de escalas e instrumentos fechados com tratamento estatístico, o que facilita a observação de índices. Desse modo, essas avaliações do desempenho e/ou de necessidades e/ou de formação profissional oferecem maior condição de visualização e indicação de ações de apoio e capacitação a esses profissionais. Moulden e Firestone (2007) defendem que os profissionais que atendem ofensores sexuais devem ter suas reações estudadas diferentemente de outras categorias profissionais de cuidado, em função de um maior desenvolvimento de efeitos traumáticos nesse grupo, por conta do alto impacto sobre suas emoções e do risco de surgimento de traumas a partir da escuta repetida de 68 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 histórias traumatizantes. Conhecer e identificar as emoções e reações dos profissionais frente às situações de violência é fundamental para lidar com esta temática. Para Marshall et al. (2005), as habilidades dos terapeutas representam um importante papel no tratamento destes ofensores, uma vez que estes últimos tentam evitar a responsabilidade de seus atos e/ou minimizam os prejuízos aos ofendidos. Os terapeutas têm função ativa no tratamento, sendo que suas características e estilo terapêutico contribuem para a eficácia no processo terapêutico, ao proporcionar ambientes facilitadores de expressão de sentimentos e seus significados. Scheela (2001) enfatiza o valor da pesquisa qualitativa que poderá elucidar melhor as particularidades desses efeitos traumáticos porque as aprendizagens e ganhos, no trabalho com essa população, também existem. Por isto, queremos enfatizar a contribuição deste texto na ampliação de como os profissionais e estudantes se sentem com o atendimento a esta temática e esta população, e que possa ainda mostrar a necessidade de implantação de políticas de capacitação continuada para esses profissionais. Ademais, queremos também enfatizar o Grupo Multifamiliar como uma metodologia adequada também para este tipo de clientela, em função da construção de um ambiente lúdico e grupal, o que facilita as interações e se vale dos próprios sujeitos como coautores da intervenção, como Zankman e Bonomo (2004), Henggeler et al. (2009) e Marshall (2001) indicam. Referências Carmel, M. J. S., & Friedlander, M. L. (2009). The relation of secondary traumatization to therapists’ perceptions of the working alliance with clients who commit sexual abuse. Journal of Counseling Psychology, 56(3), 461-467. Correa, M. E. C., Labronici, L. M., & Trigueiro, T. H. (2009). Sentir-se impotente: um sentimento expresso por cuidadores de vítimas de violência sexual. Revista Latino-americana de Enfermagem,17(3). Recuperado em www. urp.usp.br/rlae. Acessado em 20 Janeiro 2010. Costa, L. F., Penso, M. A., & Almeida, T. (2005). O Grupo Multifamiliar: um método de intervenção em situações de abuso sexual infantil. 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Recebido em agosto/2011 Revisado em novembro/2011 Aceito em dezembro/2011 69 ESTUDO TEÓRICO Religião na história da psicologia no Brasil: o caso do protestantismo Religion in the history of psycology in Brazil: the case of protestantism Filipe Degani-Carneiroa1*, Ana Maria Jacó-Vilelab2 Resumo: Os diversos segmentos do Protestantismo adquiriram grande destaque no Brasil nas últimas décadas do século XX. Por outro lado, os evangélicos têm realizado um grande investimento na Psicologia, evidenciado no número cada vez maior de profissionais e instituições que articulam atuação profissional e fé religiosa, bem como nos conflitos que estes setores têm enfrentado com os órgãos de regulação profissional. Este trabalho objetiva contextualizar historicamente a interlocução entre o campo religioso (especificamente, o Protestantismo) e a Psicologia no Brasil. Primeiramente, enfocaremos o catolicismo, por sua importância não somente na difusão das ideias psicológicas no Brasil, como também na formação cultural e religiosa nacional. Em seguida, examinaremos o processo de inserção e difusão do protestantismo no Brasil a partir do século XIX. Finalmente, trataremos de suas articulações com o saber psicológico, com enfoque em iniciativas atuais que mesclam elementos religiosos e psicoterapêuticos. Palavras-chave: Religião; Protestantismo; História da Psicologia Abstract: The various segments of the Protestantism have acquired a great emphasis in Brazil over the 20th century’s last decades. On the other hand, the Protestants have invested strongly in Psychology, which is made evident by an ever-increasing number of professionals and institutions that conciliate both professional activity and religious faith, as well as in the conflicts these sectors have faced with professional regulatory bodies. This work aims to contextualize historically the interlocution between religious field (in particular, Protestantism) and Psychology in Brazil. First, we will focus on Catholicism for its importance not only in the diffusion of psychological ideas in Brazil, but also in the cultural and religious national background. Furthermore, we will examine how Protestantism has diffused and inserted itself in Brazil since 19th century. Finally, we examine its articulations under the perception of psychological knowledge, focusing on current initiatives which mix both religious and psychotherapeutics elements. Keywords: Religion; Protestantism; History of Psychology. a Psicólogo; Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (PPGPS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. * E-mail: [email protected] b Psicóloga; Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo; Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (PPGPS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 70 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79 Desde a Antiguidade e através da Idade Média, o pensamento cristão esteve muito próximo ao que se convencionou chamar “história das ideias psicológicas”1. Assim, a concepção de Agostinho, Tomás de Aquino e outros escritores cristãos acerca da relação alma-corpo e da preponderância da primeira é parte relevante do processo de consolidação das noções de interioridade humana e cuidado de si. Além disto, a cisão na Igreja Cristã, representada pela Reforma Protestante no século XVI, é comumente apontada como um dos movimentos fundamentais para a emergência da Modernidade, bem como da categoria moderna de “indivíduo” (Jacó-Vilela, 2001), por diversos fatores. Caracterizada por conflitar com o pensamento católico, por sua defesa da liberdade de consciência, da livre-interpretação da verdade das Escrituras, da salvação mediante a fé individual e do sacerdócio universal dos crentes contra a dependência da autoridade religiosa, a Reforma alterou fundamentalmente a forma de relação do homem com o mundo. “Ao desencantar o mundo da imanente divindade, completando o processo da cristandade iniciado pela eliminação do animismo pagão, a Reforma permitia sua revisão fundamental pela ciência moderna” (Tarnas, 2001, p.263). A clássica obra de Weber (2001/1904) – A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo – difundiu a interpretação que atrela o desenvolvimento do sistema capitalista e da ideologia burguesa moderna à ética protestante, marcada pela racionalização, ascetismo e estímulo ao estudo e trabalho seculares. Além disso, o espírito crítico e secularizado da Reforma alterou a relação do homem com a verdade. Segundo Tarnas (2001, p.262), “a Reforma abriu no Ocidente o caminho para o pluralismo religioso, depois para o ceticismo religioso e, por fim, a um completo rompimento na até então relativamente homogênea visão de mundo cristã”. Diversas interpretações sociológicas vinculam o Protestantismo ao “espírito da liberdade, da democracia, da modernidade e do progresso” (Alves, 1979, p.38). Desta forma, afirmar a importância do Protestantismo na Modernidade vai além de uma análise da difusão das igrejas protestantes após a Reforma e de suas perspectivas teológicas; significa a compreensão de seu “espírito” em seu caráter essencial de protesto contra a ordem institucionalizada e da afirmação da autonomia do indivíduo na sua relação com o sagrado, bem como do destino deste indivíduo para agir em um mundo dessacralizado, desencantado, a ser por ele utilizado. Por outro lado, as condições de emergência da Psicologia (enquanto um saber dessacralizado sobre o homem) estão também intrinsecamente ligadas à emergência da experiência da Modernidade (Ferreira, 2006); a partir dela, as noções de interioridade da alma, em que a vontade é disputada entre o pecado e a fé, bem como discussões sobre o livre-arbítrio assumem outra configuração, centrada na concepção de um novo modelo de indivíduo: definitivamente livre, auto-centrado, medida de todas as coisas, dotado pela Razão do poder de conhecer (e dominar) o mundo e, em certa medida, associal (Dumont, 1985). A Idade Moderna é marcada por um “desencantamento do mundo” – famosa expressão de Weber (2001/1904) – no sentido que o mundo e a natureza deixam de ser regidos pela magia, pelo sagrado, pelo inexplicável e se tornam capazes de serem conhecidos pela racionalidade. Neste período, porém, ciência e religião ainda caminham juntas, uma vez que a regularidade do mundo é explicada em função de Deus. A metáfora mecanicista do mundo sustentado por uma grande engrenagem (semelhantemente a um relógio) evidencia isto, uma vez que pressupõe a necessidade de um elemento superior, não mecânico, para dar inicio ao processo inferior, mecânico. O processo de cisão entre ciência e religião no pensamento ocidental culminará no século XVIII, com o Iluminismo, marcado pela crença de que a Razão libertaria a humanidade dos mitos, da ignorância e da religião, estabelecendo uma radical distinção entre o pensamento científico e as demais cosmovisões. Nietzsche (2001) se refere a este processo como “a morte de Deus”, no sentido de que a divindade perde sua centralidade no mundo ocidental, cedendo lugar aos discursos científicos, como o da Psicologia, no que tange à interioridade humana. Entretanto, é preciso ter claro o que queremos dizer acima. Não há uma substituição de uma cosmovisão, a religiosa, pela racionalidade, no sentido da primeira deixar de existir. Ambas passam a coexistir, com a diferença que a religiosidade começa a restringir-se ao espaço privado, da intimidade, e a racionalidade ocupa o espaço público. Compete às grandes instituições religiosas a disputa política no espaço público com as regras racionais que ali passam a funcionar quando estas atingem o cerne de princípios religiosos2. 1 Tal termo expressa a perspectiva de que se, por um lado, a Psicologia enquanto disciplina científica é um fenômeno histórico recente, do final do século XIX, por outro lado, o pensamento sobre o homem e sua interioridade (ou “ideias psicológicas”) é muito mais antigo, remontando ao surgimento da filosofia na Antiguidade. 2 É o caso atual, por exemplo, da reação de setores católicos e evangélicos contra leis favoráveis ao aborto e ao casamento civil entre homossexuais. A este respeito, ver Machado & Piccolo (2010). 71 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79 A presença católica na história da psicologia no Brasil Além da importância da teologia cristã na construção da visão ocidental de homem, a historiografia da Psicologia no Brasil apresenta como exemplo da relevância da temática religiosa para esta disciplina os estudos acerca da produção psicológica católica nos período colonial e imperial e também sobre os primeiros cursos de graduação em psicologia, abertos em faculdades católicas. As ideias psicológicas em curso na Europa são inicialmente apropriadas no Brasil, já no século XVI, com a vinda dos padres jesuítas que, imbuídos dos princípios pedagógicos e da concepção psicológica presente na filosofia tomista, detiveram a hegemonia da educação ao longo do período colonial3. Durante este período, observa-se, para além da pregação nos sermões (Massimi,2005), a circulação de escritos jesuíticos referentes a processos psicológicos articulados com outros campos, como a teologia, a moral e a pedagogia. Dentre os temas desses escritos, estão o controle das emoções (as “paixões” da alma), ensaios sobre os sentidos humanos e também sobre a formação e desenvolvimento da personalidade da criança4, sua educação e o controle de seu comportamento, visto a catequese dos “curumins” ser o principal objetivo da educação jesuítica (Massimi, 2006). A partir da vinda da Família Real Portuguesa, no século XIX, ocorrem várias mudanças no Brasil, como a criação dos primeiros cursos superiores (até então proibidos pela Coroa Portuguesa), que serão as Faculdades de Medicina de Salvador e do Rio de Janeiro e, já no Império, as Faculdades de Direito de São Paulo e do Recife. A segunda metade do século XIX, especialmente a partir da década de 1870, foi um período marcado por uma efervescência político-cultural em torno do ideal de Modernidade. Sobre este período, é emblemática a citação de Silvio Romero (1851-1914), filósofo, escritor e político brasileiro: “Um bando de ideias novas esvoaçou-se sobre nós vindo de todos os pontos do horizonte” (Romero, 1986). No bojo destas “ideias novas”, conviviam movimentos de retórica modernizante como o abolicionismo, republicanismo, anticlericalismo, liberalismo, positivismo, higienismo e evolucionismo social, ao mesmo tempo em que outros, como o monarquismo, o catolicismo, o latifúndio e o coronelismo, mantinham sua força, ancorados na tradição. 3 A presença dos jesuítas ocorreu durante quase todo o período colonial, até sua expulsão pelo Marquês de Pombal, em 1759. 4 O grande exemplo a este respeito é o livro “Arte de Criar Bem os Filhos na Idade da Puerícia” , do padre jesuíta Alexandre de Gusmão (2004/1685). Sob a influência deste espírito da época, o discurso católico sobre a “alma” se defronta com a emergência de outro discurso análogo, para o qual perde espaço – o discurso médico sobre as localizações fisiológicas e anatômicas dos processos psíquicos (Alberti, 1998). Por meio do discurso médico e, algumas décadas mais tarde, também do discurso educacional, ocorre a entrada no país da psicologia científica (Antunes, 1998). A circulação destas ideias apropriadas da Europa encontrou terreno fértil aqui, ao se unirem ao projeto econômico-social das elites nacionais que empunhavam diversas bandeiras, como a Abolição, a República e a laicidade do Estado, em torno de um mesmo signo discursivo – a modernização da nação, entendida como entrada do Brasil no capitalismo industrial, segundo o modelo europeu e norte-americano. Com a Proclamação da República, o Estado brasileiro se torna oficialmente laico, com o pensamento e as instituições católicas sofrendo cada vez mais contestações no cenário político e intelectual. É nítida a influência do cientificismo e materialismo positivistas que trazem a perspectiva da necessidade de progresso nacional, de superar o “atraso” e elevar o Brasil ao patamar da “civilização”. Assim, o pensamento tradicional (notadamente, o espiritualismo católico) é identificado como um entrave a este progresso, que seria superado pela Razão e pela Ciência em desenvolvimento (a Psicologia, inclusive). A partir da década de 1920, observa-se um esforço de setores católicos para fazer frente a esta progressiva laicização da sociedade brasileira. A Igreja se volta para a reconquista da intelectualidade, reafirmando as posições católicas tradicionais e combatendo mais diretamente o liberalismo e o comunismo. Este movimento teve como principais atores Jackson de Figueiredo5, Alceu Amoroso Lima6 e Padre Leonel Franca7, através do Centro Dom Vital (1922) e da revista A Ordem, com o objetivo de divulgar o ideal católico em aproximação ou adaptação às novas questões científicas da época. 5 Jackson de Figueiredo (1891-1928) – advogado sergipano que, após se converter ao catolicismo em 1918, tornou-se uma liderança do movimento católico leigo, fundando a revista A Ordem (1921) e o Centro Dom Vital (1922). 6 Alceu Amoroso Lima (1893-1983) – intelectual carioca, também conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athayde, converteu-se ao catolicismo na década de 1920, dando continuidade ao trabalho de Jackson de Figueiredo. Foi um dos mais combativos porta-vozes do Centro Dom Vital. Escreveu várias obras de Psicologia. Próximo ao integralismo neste período, tornou-se um valoroso defensor da democracia no período da ditadura militar. 7 Além de sua atuação no Centro Dom Vital, o padre jesuíta gaúcho Leonel Franca (2001/1934) foi um dos fundadores das Faculdades Católicas do Rio de Janeiro (posteriormente, PUC-Rio) e seu primeiro reitor, em 1940. Grande apologista católico, envolveu-se intensamente no debate entre a Igreja Católica e o movimento dos educadores em relação à questão do caráter laico da educação, preconizado por este último. Além disto, em suas conferências e escritos, manteve fortes debates com outros segmentos opostos à Igreja, como os socialistas e os protestantes. É autor de um livro de grande relevância para nosso tema, “A Psicologia da Fé” (Franca, 2001/1934). 72 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79 Nesta mesma década, é criado no Rio de Janeiro o Laboratório de Psicologia da Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro (1923), dirigido pelo psicólogo polonês Waclaw Radecki8, o qual elaborou a primeira proposta de curso de formação de psicólogos no Brasil em 1932, quando o Laboratório foi transformado no Instituto de Psicologia9 (Esch & Jacó-Vilela, 2001). Em que pese seu pioneirismo, o Instituto teve apenas sete meses de duração, sendo desativado pelo Governo Federal, por conta de pressões tanto do setor médico (que se opunha à formação de uma classe profissional que rivalizasse com a medicina no tocante ao tratamento psíquico), como da intelectualidade católica, a qual olhava com desconfiança para este “novo” saber, organicista, materialista, que fazia frente ao espiritualismo católico e à “psicologia da alma” (Centofanti, 2004). Nos artigos de A Ordem, bem como em outras publicações e conferência de intelectuais católicos observa-se a presença de temáticas psicológicas articuladas à teologia católica que continham um elevado aspecto moral e defesa de valores tradicionais, como a família e a religião (Jacó-Vilela & Bitar, 2003). Em“A Psicologia da Fé”(Franca, 2001/1934), por exemplo, Leonel Franca se dedica à análise do ato de fé, sob o ponto de vista psicológico – isto é, de seu dinamismo interior – e localiza a fé duplamente como um ato da inteligência (racionalidade) e da vontade (afetividade). Este é também o momento em que os intelectuais envolvidos no projeto de “civilizar a nação” compreendem que não bastavam as medidas sanitaristas desenvolvidas pelos médicos (Boarini, 2003; Gondra, 2004; Schwarcz, 1993), mas que se fazia necessário também “educar o povo”, como caminho para a transformação do indivíduo e da sociedade como todo (Monarcha, 2009). Esta educação deveria seguir os princípios constantes do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (Azevedo et al., 1932): uma escola pública, gratuita, laica e para todos. A Igreja se posiciona contrariamente, renovando seu investimento no ensino. Desta forma, as reuniões do Centro Dom Vital são o embrião das primeiras faculdades católicas, cuja abertura foi autorizada pelo Governo Vargas em 1942 (Jacó-Vilela et al., 2007). Elas se anteciparam às universidades Waclaw Radecki (1887-1953) é um dos primeiros psicólogos estrangeiros a emigrar para o Brasil, o que fez no final da década de 1910. Dirigiu o Laboratório da Colônia de Psicopatas (1923-1933), onde desenvolveu pesquisas experimentais e formação de profissionais interessados em psicologia. Após o fechamento do Instituto de Psicologia, emigra para o Uruguai, onde criou o primeiro curso de graduação em psicologia. 9 O Instituto de Psicologia foi reaberto em 1937, quando foi anexado à nascente Universidade do Brasil, como órgão suplementar, auxiliando as cátedras de Psicologia da Faculdade Nacional de Filosofia. Somente em 1964 a Universidade do Brasil (atual UFRJ) criaria o curso de graduação em psicologia. públicas na criação de alguns cursos, dentre os quais os cursos de Psicologia. O primeiro curso de graduação em Psicologia no Brasil foi criado em uma faculdade católica: o curso da PUCRio (março/1953). Além deste, foram criados outros cursos em faculdades católicas – PUC-RS (agosto/1953), PUC-Minas (1959), UNICAP (1961) – antecipadamente à regulamentação da profissão de psicólogo (Lei 4119/1962), assim como à criação de cursos de Psicologia nas universidades públicas10. Em ambas as iniciativas – oposição ao curso proposto por Radecki de orientação laica e materialista e a tomada da dianteira na criação dos primeiros cursos de psicologia – está claro o interesse católico em se apropriar do discurso psicológico e, principalmente, da formação profissional. Ao mesmo tempo em que este interesse se insere no contexto mais amplo do projeto de “recatolização” da sociedade brasileira, visando uma reafirmação dos valores católicos frente às “novas questões sociais” trazidas pelo espírito modernista do período, há uma especificidade na relação da Igreja com o saber psicológico, já que este investimento católico não se dirigiu a todas as áreas do conhecimento. Parece-nos que, ao tratar do cuidado de si, da interioridade, da vida em família, a psicologia assume um valor muito especial para a Igreja Católica. Não à toa, a quase totalidade das primeiras turmas de Psicologia da PUC-Rio é composta por mulheres e a estas é dada uma atenção especial em sua formação como futuras esposas e mães. Padre Benko11, diretor do curso de Psicologia, faz as entrevistas de seleção, acompanha os alunos, é presença marcante na vida dos alunos(as) – chegando a celebrar seus casamentos e batizar seus filhos (Jacó-Vilela et al., 2007). Percebe-se, pois, o quanto a marca do catolicismo na formação cultural brasileira permeia o contexto de emergência da Psicologia no país. Apresentaremos a seguir o processo de inserção do protestantismo no Brasil, o qual ocorre durante o mesmo período abordado neste item (último quartel do século XIX) mantendo, pois, relação com a “retórica da modernidade” e o “bando de ideias novas” que abre caminho para a chegada da psicologia científica no Brasil. Seguiremos adiante com a difusão do protestantismo durante a primeira metade do século XX no país. 8 10 O primeiro curso criado em universidade pública foi o da USP (1957). Após isto, outros cursos são criados somente após a regulamentação – por exemplo, os cursos da UERJ e UFRJ, criados em 1964. 11 O curso de Psicologia da PUC-Rio foi criado em 1953, sob a direção de Hanns Ludwig Lippman. Sua substituição pelo padre jesuíta húngaro Antonius Benko (1920) em 1957 sinaliza um aumento do interesse da cúpula (católica) da Universidade pelo curso. Padre Benko reformulou a estrutura do curso, introduziu a psicanálise e criou centros de psicologia aplicada para os alunos realizarem estágio; dirigiu o curso até 1966. 73 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79 A inserção e difusão do protestantismo no Brasil Embora os protestantes tenham estado no território brasileiro durante as invasões francesa e holandesa nos século XVI e XVII, esta presença não deixou legado que fizesse frente ao monopólio do catolicismo, enquanto religião oficial durante todo o período colonial (Ribeiro, 1973). Assim, a chegada do protestantismo ao Brasil ocorre de fato durante o século XIX, depois da chegada de D. João ao Brasil. No contexto da abertura econômica ao capital inglês, por meio dos tratados de Aliança e Amizade e de Comércio e Navegação (1810), foi concedida liberdade de consciência e de culto aos estrangeiros, o que visava, evidentemente, os ingleses anglicanos, cada vez mais presentes. Além de se estender somente a estrangeiros (inclusive com os serviços religiosos ministrados em língua estrangeira), esta liberdade de culto tinha outras restrições: era vedado o proselitismo, bem como a pregação pública contra a religião católica e os locais de cultos não deveriam ter aparência exterior que indicasse sua finalidade. Assim, os ingleses passaram a celebrar o culto protestante, a bordo de navios ou em residências, até que foi inaugurado o primeiro templo anglicano no Rio de Janeiro em 1820 (Ribeiro, 1973). Ao longo do período imperial, imigrantes de outras nacionalidades européias, bem como norte-americanos, pertencentes a diferentes ramos protestantes, vieram para o Brasil. Paralelamente aos imigrantes, chegaram os primeiros missionários protestantes. Desta forma, estabeleceu-se uma classificação comumente empregada para os grupos protestantes que vieram para o Brasil no século XIX: protestantismo de imigração e protestantismo de missão. Por protestantismo de imigração denominam-se os grupos que vieram com o objetivo de estabelecer colônias no país, dos quais se destacam os anglicanos e os luteranos. É importante ressaltar que a primeira iniciativa do governo brasileiro de incentivo à imigração – que levou o estabelecimento da colônia suíça na região serrana do Rio de Janeiro em 1818, ainda no reinado de D. João – teve como condição que estes imigrantes suíços fossem católicos (Ribeiro, 1973). As constantes pressões internacionais (notadamente, inglesas) pelo fim do tráfico de escravos africanos, bem como a expansão da cultura do café na segunda metade do século XIX, aumentam a demanda por imigrantes para suprir a carência de mão-de-obra (Fausto, 2002). A preferência por europeus é, claro, um esforço para “branquear” o país (Schwarcz, 1993). Além da presença anglicana mencionada acima, as primeiras colônias protestantes que se estabeleceram foram as alemãs luteranas em Nova Friburgo (RJ) e São Leopoldo (RS), em 1824 (Mafra, 2001). Em 1827, em Petropólis (RJ), estabeleceuse a Comunidade Protestante Alemã-Francesa, composta por luteranos e calvinistas (Matos, 2010). Diversos outros núcleos de colonos protestantes se estabeleceram durante todo o Império, especialmente no interior de São Paulo e na Região Sul. Estes contingentes imigratórios eram atraídos pelas promessas de cessão de terras e outras subvenções (nem sempre totalmente cumpridas) por parte da Coroa. Os imigrantes protestantes não tinham primariamente uma preocupação evangelística. Seu objetivo era estabelecer comunidades colonizadoras, reproduzindo no interior destas os laços sociais e culturais de seus países de origem. Por falta de ministros ordenados, os imigrantes organizavam sua própria vida religiosa, com colonos assumindo a função de pregadores, realizando casamentos etc. Muitas vezes, as comunidades esperavam anos até que as igrejas europeias enviassem ministros ou mesmo que a Coroa os contratasse. Entretanto, estes imigrantes enfrentaram grande oposição da Igreja Católica. Os registros civis de nascimento, casamento e óbito estavam sob o encargo da Igreja, que frequentemente negava estes atos – que tinham efeito religioso e civil – aos protestantes. A este respeito, Ribeiro (1973, p.91) diz que: “Embora os evangélicos de Colônia não se preocupassem com proselitismo entre brasileiros, contudo inseriamse na organização social do país; interpretavam com liberalidade as restrições constitucionais a seu culto; estabeleciam o culto; ingressavam nas agendas do sistema de parentesco (batismo, casamento, sepultamento) até então monopolizadas pela religião do Estado. Ingressavam nos cenários com seus cemitérios, seus templos, suas casas pastorais, suas escolas. Conservavam a homogeneidade comunitária, educando os seus filhos em suas escolas, sob a direção de professores protestantes. E algumas famílias católicas romanas enviaram seus filhos a essas escolas protestantes”. Desta forma, “uma consequência importante da imigração protestante é o fato de que ela ajudou a criar as condições que facilitaram a introdução do protestantismo missionário no Brasil” (Matos, 2010, [s.p.]), à medida que os imigrantes exigiam garantias legais de liberdade religiosa. Ao longo do Império, algumas comunidades protestantes gozavam do apoio das autoridades, dentre as quais o próprio Imperador Pedro 74 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79 II, e obtiveram direitos, como o de construir templos, escolas e cemitérios protestantes, integrando-se gradativamente à sociedade local. Ainda no período imperial, foram enviados os primeiros missionários protestantes norte-americanos, cuja ação não consistia em realizar pregações e obter prosélitos, mas de percorrer o país, distribuindo Bíblias e observando o cenário sociocultural do Brasil. Neste contexto, destacam-se Daniel Parrish Kidder (1815-1891) e James Cooley Fletcher (18231901). O metodista Daniel P. Kidder foi enviado como agente da Sociedade Bíblica Norte-Americana ao Rio de Janeiro, onde, segundo Matos (2010), criou a primeira escola dominical no Brasil, permanecendo no Brasil de 1835 a 1840. De volta aos EUA, publicou Sketches of residence and travel in Brazil (Reminiscências de viagens e permanência no Brasil), livro em que relata suas observações de viagem12. James C. Fletcher era um pastor presbiteriano que chegou ao Brasil em 1851, enviado conjuntamente por duas organizações – a União Cristã Americana e Estrangeira e a Sociedade de Amigos dos Marítimos. Veio com o objetivo de ser capelão dos marinheiros, porém recebeu o título de adido da Legação Americana (Ferreira, 2008), o que lhe abriu oportunidades de acesso à Corte e ao próprio Imperador. Uma de suas realizações no intuito de divulgar o protestantismo e o progresso foi uma exposição de produtos norte-americanos, para a qual lhe foi cedido um salão no Museu Imperial e Nacional13. Também organizou a vinda da Expedição Thayer (1865-1866), chefiada pelo renomado cientista Louis Agassiz, grande expoente dos estudos sobre raças no século XIX. Fletcher publicou em 1857, em parceria com Kidder, Brasil and the Brazilians (O Brasil e os Brasileiros). Estas viagens foram os primeiros passos que possibilitaram a maciça onda de missionários protestantes que chegaram ao Brasil a partir da década de 1850. O protestantismo de missão, por sua vez, refere-se à imigração de missionários propriamente ditos, o que ocorre após a década de 1850. A primeira denominação protestante missionária foi a dos congregacionais. O escocês Robert Reid Kalley (1809-1888) chegou ao Rio de Janeiro em 1855 e organizou a primeira igreja protestante em língua portuguesa, a Igreja Evangélica Fluminense, em 1858. Por sua vez, o pastor presbiteriano norte-americano Ashbel Green Simonton (1833-1867) se estabeleceu também 12 A edição mais contemporânea em português divide a publicação em dois números, a saber: Kidder (1980a /1845) e Kidder (1980b/1845). 13 Com a proclamação da República, foi denominado Museu Nacional, sendo anexado à Universidade do Brasil (atual UFRJ) em 1937. no Rio de Janeiro em 1859, onde, três anos depois, organizou a primeira Igreja Presbiteriana do Brasil e fundou, em 1864, a Imprensa Evangélica, primeiro jornal evangélico no Brasil. Ainda em relação aos presbiterianos, em 1863 estabeleceu-se em São Paulo Alexander Latimer Blackford (1829-1890). Foi através de seu ministério que, em 1864, converteu-se ao presbiterianismo o padre paulista José Manuel da Conceição (1822-1873), posteriormente o primeiro brasileiro a ser ordenado pastor evangélico. Outras denominações que se inseriram no Brasil no século XIX foram os metodistas e os batistas (Mafra, 2001; Matos, 2010; Ribeiro, 1973). O missionarismo protestante adotava um discurso marcado pela vinculação entre a fé protestante e o “espírito do progresso”, da modernidade. Os relatos dos missionários são marcados por identificarem no povo brasileiro duas características em comum: de um lado, a incivilidade e a tendência ao vício e à imoralidade e, por outro lado, o misticismo e o sincretismo religioso, fatores prejudiciais não somente à salvação, como também à civilidade e ao desenvolvimento nacionais (Carvalho, 2007). Dirigem-se muitas críticas à religião católica, tanto por ser identificada como uma religião mística, irracional, como por considerarem haver corrupção do clero. Os protestantes, em suas atividades missionárias, deram uma grande ênfase ao ensino regular, associando à evangelização a alfabetização, criando colégios de destaque, os quais logo passaram também a receber crianças de famílias não protestantes. Mafra (2001, p. 26) afirma que “desde o início, luteranos, presbiterianos e metodistas procuraram se afirmar na sociedade brasileira, através da construção e manutenção de instituições de ensino”. Evangelizar e civilizar eram duas faces da mesma moeda. Dentre tais instituições, pode-se citar, por exemplo, a Escola Americana (depois Colégio Mackenzie), criada em São Paulo pelos presbiterianos em 1870. Os metodistas, todavia, foram o grupo protestante que mais se destacou no cenário educacional. Em 1881, chegou ao Brasil a professora americana Martha Hite Watts (1845-1910), fundando o Colégio Piracicabano, em Piracicaba/SP; Watts também criou outros colégios metodistas, como o Colégio Americano (1894), de Petrópolis e o Colégio Izabela Hendrix (1904), de Belo Horizonte. No cenário da educação metodista, também se destacam o Colégio Americano Granbery (1889), em Juiz de Fora/MG e o Colégio Metodista Bennett (1920), no Rio de Janeiro. O discurso protestante também foi incisivo na defesa do fim do tráfico negreiro e da própria escravidão, na defesa do regime republicano e da democracia, bem como da liberdade 75 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79 religiosa e da laicidade do Estado. A escravidão e a formação católica foram identificadas como mazelas nacionais e entraves ao desenvolvimento do Brasil (Ferreira, 2008; Mafra, 2001; Vieira, 1980). Desta forma, observamos o estabelecimento de uma aliança entre os protestantes e diversos setores das elites política, econômica e intelectual brasileiras, pois os interesses de ambos os lados se articulavam. Assim, segundo Ribeiro (1973), ao longo da Monarquia, gradativamente foram criadas condições jurídicas que favoreciam a permanência dos protestantes e sua participação na vida social em um Império que tinha o Catolicismo como religião oficial. Este processo gradual foi possibilitado por uma aliança de interesses entre protestantes (tanto os que vieram a negócios quanto como missionários) e políticos liberais, que almejavam tanto a quebra da hegemonia política da Igreja Católica quanto o desenvolvimento econômico nacional e estavam interessados no projeto de modernização que o Protestantismo simbolizava, segundo as aspirações da elite nacional de seguir o modelo dos países protestantes europeus e dos EUA. Em 1890, já na República, o novo governo decretou a separação entre a Igreja Católica e o Estado, assegurando igualdade de direitos e reconhecimento e proteção legais aos protestantes (Matos, 2010). Carvalho (2011, p. 269) aponta que a penetração do protestantismo no Brasil “coincidiu com as transformações políticas de então, como a consolidação do Estado republicano, a dissociação entre este e a Igreja Católica e os projetos civilizatórios centrados na educação e saúde do povo”. Isto pode ser visto, por exemplo, nas estreitas semelhanças entre o discurso protestante acerca da ênfase na educação, no trabalho e em uma vida regrada e o discurso higienista modernizador, hegemônico no cenário político e científico brasileiro no final do século XIX e primeira metade do século XX e que defendia a reordenação do espaço público e dos hábitos privados (individuais e familiares), segundo princípios higiênicos (Boarini, 2003; Monarcha, 2009; Wanderbroock Jr., 2009). Os projetos disciplinares da intelectualidade brasileira, notadamente dos setores da psiquiatria, da higiene mental e da pedagogia, foram muito importantes para a consolidação do saber psicológico (Wanderbroock Jr., 2009). A este respeito, Carvalho (2011) menciona, ainda, ter encontrado nos arquivos do Seminário Presbiteriano de Campinas, fundado em 1888, publicações protestantes nas quais aparecem temas ligados à psicologia e à higiene mental, o que aponta para a existência de uma produção protestante em interface com a Psicologia já na primeira metade do século XX. Após a Segunda Guerra Mundial, o protestantismo no Brasil adquire novas configurações. O pentecostalismo, presente desde 1910 com a chegada de Louis Francescon a São Paulo (criando a Congregação Cristã do Brasil) e de Daniel Berg e Gunnar Vingren a Belém (criando aquela que se tornaria a maior denominação evangélica do Brasil, a Assembléia de Deus), se difunde amplamente, notadamente entre as camadas populares (Mafra, 2001). Além disto, inicia-se uma nova onda missionária norteamericana, atrelada em parte à política norte-americana de ampliação de sua influência na América Latina (como o programa Aliança para o Progresso14), visando o combate ao comunismo. Carvalho (2011, p.268) menciona que esta nova onda missionária traz outra forma de protestantismo, de forte inspiração liberal e “voltada com maior ênfase para os males mundanos da humanidade e, de certa forma, para sua dimensão social, ainda que não as vinculassem a uma luta política e, sim, religiosa”. São os anos 1960, em que ocorrem transformações em âmbito mundial de várias ordens. No caso do Brasil, estas mudanças, se acompanham as internacionais (movimentos pelos direitos civis, Black Power, hippie, feminista, gay, contracultura), têm sua especificidade marcada pela ditadura militar, que começa em 1964 e dura longos 21 anos, e, no caso da psicologia, por uma marca legal importante –a regulamentação da profissão e dos cursos. As iniciativas protestantes de articulação entre fé e psicologia Após a regulamentação da profissão de psicólogo e dos cursos de psicologia (através da Lei 4119, de 27/08/1962), o saber psicológico adquire novo status, marcado de um lado, pela difusão de sua institucionalização – com a abertura de cursos de graduação em Psicologia – e por outro, por um processo de “psicologização da vida cotidiana”, isto é, uma grande difusão de uma “cultura psicológica” entre as classes médias urbanas. É o período do chamado “boom” psicológico: inicialmente com clara hegemonia psicanalítica e posteriormente, a penetração de novas abordagens (Russo, 2002). Isto decorre, sem dúvida, em primeiro lugar do fechamento político do regime ditatorial, levando à dificuldade de acesso ao espaço público, e às suas consequências tecnológicas, como a modernização das comunicações, favorecendo o isolamento e a privacidade/ intimidade. 14 “Aliança para o Progresso” foi um programa do governo dos EUA, lançado por John Kennedy (1961), que visava maior aproximação com a América Latina, através de investimentos nas áreas econômica, social e cultural, como forma de ampliação da influência americana, a fim de fazer frente ao comunismo (especialmente, ao exemplo de Cuba). 76 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79 O missionarismo norte-americano acima mencionado, em interseção com este processo de psicologização cultural, compõe, no campo protestante, “um quadro de investimento progressivo nos saberes e práticas ‘psi’, seja ele voltado para o meio acadêmico seja para o público leigo” (Carvalho, 2011, p. 69). Neste período, são criadas instituições protestantes reunindo profissionais “psi”, como por exemplo, o Centro Acadêmico de Debates e Estudos de Psicanálise (CADEP), em 1965, e o Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), em 1976. O primeiro travou confrontos com o Conselho Federal de Medicina na década de 1970, pelo direito de formar psicanalistas e pela regulamentação desta profissão. O segundo reunia psiquiatras, psicólogos e psicanalistas, com o objetivo de realizar reflexões que articulassem teorias “psi” e teologia cristã15. Nas décadas de 1990 e 2000, o investimento protestante na Psicologia cresceu de forma visível e suscitou confrontos entre setores protestantes (tanto de leigos, quanto de profissionais “psi”) e as instâncias de regulação profissional. Mencionaremos aqui dois exemplos. O primeiro é o caso de cursos de formação psicanalítica abertos por/para pastores evangélicos. Vários pastores protestantes que realizaram cursos de formação no CADEP criaram outras instituições psicanalíticas protestantes, como, por exemplo, a Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil (SPOB), fundada pelo pastor batista Heitor Antonio da Silva em 1996. A SPOB retomou de forma mais sistematizada (e assessorada política e juridicamente) a luta pelo direito de formar psicanalistas e a defesa da regulamentação da profissão de psicanalista. Carvalho (2011) afirma que a SPOB alcançou um rápido crescimento e que sua proposta de“psicanálise para todos” – uma formação mais rápida e mais barata que a das sociedades tradicionais de psicanálise (Becker, 2010) – influenciou a criação de dezenas de instituições formadoras independentes (a maioria, criada por ex-alunos da SPOB), alcançando grande repercussão no meio protestante e suscitando embate com o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e as sociedades de psicanálise16. O segundo exemplo que evidencia o tensionamento desta relação é o confronto, de grande destaque na mídia, ocorrido entre os ministérios evangélicos de ajuda a homossexuais e o movimento LGBT, este contando com apoio do CFP. Para entender a questão, é importante apontar o Ministério Exodus17, criado nos EUA em 1976. Consiste em uma associação 15 Se, por um lado, o CADEP se dissolveu, influenciado o surgimento de outros grupos psicanalíticos (como veremos à frente), por outro, o CPPC existe ainda hoje. 16 Uma análise detalhada acerca do CADEP e da SPOB e dos embates com o CFP e as sociedades de psicanálise é encontrada em Carvalho (2007). 17 O nome “Exodus” é uma referência à saída do povo de Israel do Egito, uma metáfora de vários ministérios e grupos de apoio para indivíduos que desejavam deixar a homossexualidade, mudando a orientação sexual. Em 1988, o Exodus chegou ao Brasil, tendo Rozângela Justino, psicóloga carioca e evangélica, como uma das fundadoras e líder do ministério até 2002. Outra iniciativa semelhante é o Movimento pela Sexualidade Sadia (MOSES), criado no Rio de Janeiro em 1997, tendo João Luiz Santolin (teólogo e pós-graduando em Terapia de Família) como um dos líderes. Ambos os grupos se caracterizam pela evangelização direcionada ao público homossexual, principalmente através de utilização de testemunhos de ex-gays e ex-lésbicas e panfletagem em paradas gays, bem como pelo oferecimento de psicoterapia e grupos de apoio. A realização do III Encontro Cristão sobre Homossexualismo pelo Exodus Brasil, em Viçosa/MG, em 1998, foi o estopim de um conflito (Justino, 2005; Oliveira, 2011). A Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis18 (ABGLT) denunciou o evento junto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), à Secretaria Nacional de Direitos Humanos e ao Conselho Federal de Psicologia (CFP). Respondendo à denúncia, o CFP aprovou a Resolução CFP nº 01/1999, em 22 de março de 1999, que “estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual” (Conselho Federal de Psicologia, 1999). O texto da Resolução afirma que: (...) Art. 2° - Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas. Art. 3° - Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades. Art. 4° - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 1999). empregada para significar uma “libertação” (no caso, da condição homossexual). 18 Atualmente a instituição se denomina Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, mantendo, porém, a sigla ABGLT. 77 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79 A Resolução determina que os psicólogos não podem promover nenhum tratamento que patologize a homossexualidade ou ofereça-lhe cura. Esta restrição, segundo (Natividade, 2011), visa efetivamente combater os programas de cura a homossexuais empreendidos pelos evangélicos. As tensões entre evangélicos e movimento LGBT prosseguiram no início do século XXI. Rozângela Justino fundou a Associação Brasileira de Apoio aos que Desejam Deixar a Homossexualidade (ABRACEH19) em 2005, com a mesma proposta de promover serviços de apoio “para aqueles que desejam voluntariamente deixar a homossexualidade” (Natividade, 2011). Rozângela Justino foi denunciada ao Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ) em 2007 pelo Grupo 28 de Junho, uma ONG representante do movimento LGBT, localizada em Nova Iguaçu/RJ. No final do mesmo ano, recebeu condenação de censura pública, por infração da Resolução CFP 001/1999. Rozângela recorreu da decisão, apelando ao CFP, que, em julho de 2009, manteve a pena. Diversos setores protestantes vieram a público, defendendo Rozângela, questionando a constitucionalidade da Resolução CFP 001/1999 sob diversos argumentos, como os de que a Resolução geraria crise de consciência em psicólogos protestantes; que os mesmos, como Rozângela, estariam sendo alvo de “preconceito heterofóbico” (Cavalcanti, 2005, p.67) por conta da Resolução; e, ainda, de que os pacientes de Rozângela tinham o direito de receber auxílio, uma vez que o procuraram voluntariamente (Justino, 2005). Entretanto, tal questão se encontra distante de resolução, uma vez que a polêmica entre setores evangélicos envolvidos no combate à agenda do movimento LGBT e o CFP ainda permanece em aberto, com constante destaque na mídia. Considerações Finais Vimos que nas últimas décadas, o campo protestante vem demandando cada vez mais uma literatura e aconselhamento psicológicos cristãos. Por outro lado, as instâncias de regulação do exercício profissional do psicólogo têm se defrontado com os limites desta apropriação do exercício profissional. A problemática acima apresentada mostra as tensões entre as relações entre a psicologia no campo protestante e a psicologia nas instâncias reguladoras da profissão. Assim, o interesse no estudo desta temática decorre em grande parte destas tensões que, a nosso ver, evidenciam que esta relação está eivada de 19 A ABRACEH atualmente se denomina Associação de Apoio ao Ser Humano e à Família. generalizações e preconceitos. Por parte do campo protestante, não se pode pensar em uma visão coesa acerca do saber psicológico, dada a grande heterogeneidade daquele campo. De fato, podem ser encontradas perspectivas completamente refratárias à incorporação de um saber “mundano”, defendendo exclusivamente um discurso “sagrado” e, em outro extremo, perspectivas plenamente secularizadas, passando por perspectivas intermediárias e mais conciliatórias entre o “mundano” e o “sagrado”. Em contrapartida, por parte do campo acadêmico, prevalece, em diversas situações, uma ortodoxia científica antirreligiosa, a qual rebaixa o discurso religioso à posição de“senso comum”,“superstição”, ou se debruça sobre o mesmo como mero “objeto” de pesquisa. Especialmente sobre o campo protestante, por vezes o olhar acadêmico é caracterizado por generalizações e visões estereotipadas, que desconsideram a heterogeneidade deste universo ou se limitam a explicações superficiais que identificam o interesse protestante pela Psicologia como uma estratégia de disciplina (no sentido foucaultiano) ou mesmo, de manipulação. São relativamente poucos os estudos em Psicologia dirigidos à temática religiosa no Brasil, não obstante o reconhecimento da grande relevância do tema na cultura e, portanto, nos processos psicossociais. Tal constatação é assustadora quando se compara com a produção a respeito nas ciências sociais e mesmo nas ciências da saúde, onde cada vez mais se tem incorporado a espiritualidade/ religiosidade como fator na análise do processo saúde-doença. É importante ressaltar que o investimento protestante na Psicologia não se limita às polêmicas apropriações acima citadas. De fato, nas últimas décadas, observa-se um crescente interesse protestante pelo estudo e prática da Psicologia. Este interesse se apresenta de diferentes formas: seja como profissão leiga, seja como subsídio a atividades eclesiásticas, ou ainda, por meio de um fato especialmente verificado entre os fiéis protestantes – uma grande demanda por psicoterapia (com a ressalva de que o profissional compartilhe de sua fé). A nosso ver, a história do investimento protestante pela Psicologia (verificado maciçamente após a regulamentação da profissão de psicólogo, na década de 1960) está a ser escrita. Esbarra, evidentemente, na escassez de trabalhos na área da Psicologia sobre sua interface com a religião. Entretanto, as articulações entre religião e psicologia aqui apresentadas evidenciam que há um núcleo comum entre ambos os sistemas discursivos que gera no campo religioso um interesse na apropriação do conhecimento e prática psicológicos. Talvez seja o momento para que este interesse seja despertado na direção inversa: que a Psicologia se volte ao campo religioso, 78 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79 metade do século XX. In J. de S. Bernandes, C. E. & Lang, M. A. T. Ribeiro incorporando em suas análises não apenas a religiosidade dos (Orgs.), A produção na diversidade – compromissos éticos e políticos em sujeitos, mas principalmente a atuação dos grupos religiosos Psicologia (pp. 231-266). São Paulo: Casa do Psicólogo. como atores sociais. Jacó-Vilela, A. M. (2001). Concepções de pessoa e a emergência do indivíduo Referências Alberti, S. (1998). História da Psicologia no Brasil – Origens Nacionais. In A. M. Jacó-Vilela & F. Jabur & Rodrigues, H. de B. C. (Orgs.), Clio-Psyché: Histórias da Psicologia no Brasil. Rio de Janeiro: NAPE/UERJ. Alves, R. (1979). Protestantismo e Repressão. São Paulo: Ática. Antunes, M. A. M. (1998). A Psicologia no Brasil: leitura histórica de sua constituição. São Paulo: EDUC e Ed.Unimarco. Azevedo, F. de et al. (1932). Manifesto dos pioneiros da Educação Nova. Disponível em www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb07a.htm, acessado em 05 de Março de 2012. Becker, C. (2010). A cura pela Palavra. Piauí, 5, 50. Boarini, M. L. (Org.) 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(2001). A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martin Claret. (Obra original publicada em 1904). Recebido em fevereiro/2012 Revisado em fevereiro/2012 Aceito em março/2012 79 ESTUDO TEÓRICO Introdução às Medidas Implícitas: conceitos, técnicas e contribuições Introduction to Implicit Measurements: concepts, techniques and contributions Valdiney V. Gouveiaa*, Rebecca A. A. Athaydeb, Luis Augusto C. Mendesc, Sandra E. A. Freired Resumo: O uso de medidas implícitas tem apresentado um crescimento rápido em Psicologia. Um dos motivos para este fato é a capacidade de aferição de atitudes e construtos correlatos sem vieses deliberados, como a desejabilidade social. Apesar disso, pouco ainda é conhecido a respeito no Brasil. Este artigo objetiva introduzir algumas técnicas de mensuração implícita, indicando suas contribuições. Neste sentido, consideram-se inicialmente os conceitos principais e o histórico de sua utilização, focando nas técnicas de priming e associação implícita. Posteriormente, são discutidas as correlações entre as medidas explícitas e implícitas e a capacidade delas predizerem comportamentos. Em seguida, são listadas críticas sobre a mensuração, a confiabilidade e o uso das técnicas implícitas, com os argumentos em favor delas por parte daqueles que as utilizam. Por fim, são enfatizados o crescimento destas técnicas e o atual estado da arte correspondente, destacando suas contribuições às pesquisas nesta área. Palavras-chave: Medida; Implícita; Explícita; Atitudes; Priming; TAI Abstract: The use of implicit measures has rapidly grown in Psychology. One reason for this is the ability to measure attitudes and related constructs without deliberate bias, such as social desirability. Nevertheless, little is still known about it in Brazil. This article aims to introduce some implicit measurement techniques, indicating their contributions. In this sense, we consider first the main concepts and history of their use, focusing on techniques of priming and implicit association. Later, we discuss the correlations between explicit and implicit measures and their ability to predict behavior. Then, critics are listed on the measurement, the reliability and the use of implicit techniques, with the arguments in their favor by those who use them. Finally, it emphasizes the growth of these techniques and the current state of the art matching, highlighting their contributions to research in this area. Keywords: Measure; Implicit; Explicit; Attitudes; Priming; IAT a Psicólogo; Doutor em Psicologia Social; Docente da Universidade Federal da Paraíba; Pesquisador 1B do CNPq *E-mail: [email protected] b Psicóloga; Mestranda em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba c Jornalista; Doutorando em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba; Docente da Faculdade Maurício de Nassau, João Pessoa, PB d Psicóloga; Doutoranda em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba; Docente da Universidade Federal do Piauí, Parnaíba, PI Nota dos autores: Este artigo contou com apoio do CNPq por meio de bolsas de Produtividade em Pesquisa e Mestrado concedidas ao primeiro e segundo autores, respectivamente. Os autores agradecem a esta instituição. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 80 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 80-92 Muitos dos estudos em Psicologia enfocam construtos latentes (não observáveis diretamente), como atitudes, crenças e valores. Estas são variáveis hipotéticas que explicam tendências subjacentes de pensar, sentir e agir que as pessoas apresentam no seu dia a dia. Neste sentido, tais construtos não podem ser medidos diretamente, mas apenas inferidos a partir de respostas declaradas (auto-informes) ou detectáveis como automáticas (implícitas) (Krosnick, Judd & Wittenbrink, 2005), sejam elas verbais ou não-verbais (Sherif & Cantril, 1946). Portanto, tem lugar a diferenciação entre medidas explícitas (requerem atenção consciente) e implícitas (não dependem da consciência, sendo espontâneas e automáticas). Este primeiro tipo tem dominado a literatura empírica nesta área, sendo bastante popular entre os psicólogos sociais (Gawronski & Bodenhausen, 2006; Maio & Haddock, 2010). As medidas explícitas de atitudes, por exemplo, são acessadas por meio de avaliações feitas acerca de um objeto, evento ou situação, i.e., a autodescrição do posicionamento individual. Usualmente, são medidas de autorrelato, realizadas com instrumentos tipo lápis e papel, em que são expressas opiniões frente à determinado objeto (e.g., drogas, aborto). Das técnicas para este tipo de medida, merecem destaque as propostas feitas por Thurstone, Likert e Osgood (Pimentel, Torres & Gunther, 2011). A primeira (Thurstone) caracteriza a atitude da pessoa por meio de seu posicionamento face a estímulos apresentados, empregando juízes para avaliação; constituiuse na primeira tentativa de mensuração intervalar. A segunda (Likert) é, provavelmente, a mais popular, classificando os itens ao longo de um contínuo de cinco pontos, variando de “concordo totalmente” a “discordo totalmente”. Finalmente, a terceira (Osgood), conhecida como técnica de diferencial semântico sugere um conjunto de adjetivos bipolares que indicam relações de favorabilidade – desfavorabilidade. Existem outras técnicas, como as de Guttman (escalas cumulativas, descrevendo afirmações selecionadas que incorporam o que foi dito pelas anteriores) e Bogardus (predisposição a estabelecer níveis de contato com grupos-alvo), mas as três primeiras são mais conhecidas. É possível observar resultados consistentes com os tipos de medidas supracitadas, porém não se descartam vieses inerentes. Por exemplo, determinados construtos, como atitudes, valores e traços de personalidade estão sujeitos a normas e sanções sociais, e as pessoas podem dissimular suas respostas, mostrando-se como seria socialmente desejável. De fato, quase todas as ações humanas visam mostrar a pessoa de uma maneira favorável, procurando assegurar a aceitação grupal e a autoafirmação (Seisdedos, 1996). Desta forma, é essencial que seja controlada a desejabilidade social, tendência de distorcer autorrelatos para uma direção favorável (Furnham, 1986). Uma forma de controlar esta tendência é por meio de mensuração de atitudes implícitas, que pressupõem diminuição da reatividade da medida. Segundo Bassili e Brown (2005), a consciência de que o pensamento e comportamento da pessoa podem ser influenciados por processos psicológicos implícitos tem sido uma das maiores contribuições e desafios da pesquisa que procura mensurar fenômenos psicológicos. Nesta direção, os psicólogos sociais têm desenvolvido estratégias de respostas visando acessar as associações implícitas, i.e, aquelas que são automáticas e espontâneas, fugindo ao controle consciente do indivíduo (Fazio & Olson, 2003). Estas medidas visam acessar não só as atitudes que os respondentes podem não estar dispostos a falar abertamente, mas também aquelas que eles não estão cientes. Diante destas vantagens e considerando a escassez de estudos no Brasil com medidas implícitas, este artigo objetiva introduzir esta forma de mensuração, explicitando suas bases conceituais, tipos principais e vantagens. Técnicas de Mensuração Implícita Segundo Wittenbrink e Schwarz (2007), a concepção de que o tempo requerido para realizar uma atividade mental revela algo fundamental sobre a mente deve ser creditada aos trabalhos de F. C. Donders, na metade do século XIX. Este pesquisador sugeria que era possível entender processos de pensamento computando o intervalo de tempo entre a apresentação do estímulo e a resposta produzida, descoberta esta que abriu possibilidades para o estudo dos processos mentais. Porém, as pesquisas específicas sobre as medidas implícitas foram introduzidas, principalmente, na década de 1980. O número crescente de estudos para verificar sua eficácia e limitações potenciais tem corroborado a importância desta abordagem de mensuração (Bassili & Brown, 2005). Dentre as técnicas de mensuração implícita com maior destaque, ressaltam-se: (1) a técnica de priming, proposta por Fazio (1995), que cria um contexto-estímulo capaz de produzir determinado tipo de reposta ou efeito; e (2) o Teste de Associação Implícita (TAI; Greenwald, Mcghee, & Schwartz, 1998), que procura determinar a ativação de atitudes por meio do impacto do objeto atitudinal sobre a velocidade com a qual o indivíduo faz julgamentos. Ademais, as técnicas modernas de neuroimagem também são apontadas por Wittenbrink e Schwarz (2007) como uma alternativa de medida implícita, 81 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 80-92 visto que, como medidas de atividade metabólica dependente de órgãos corporais, elas contêm uma riqueza de sinais que não são conscientemente acessíveis ou estão sob o controle do respondente. Contudo, no presente artigo unicamente as duas primeiras técnicas são consideradas. Técnica de Priming Esta técnica parte do princípio de que as atitudes são associações na memória entre um objeto e sua avaliação (Fazio, 1995; Fazio, Jackson, Dunton & Williams, 1995). Estas associações variam em relação à força que possuem, sendo esta o reflexo da acessibilidade de uma atitude na memória e a probabilidade de que a avaliação seja espontaneamente ativada quando se deparar com o objeto atitudinal (Maio & Haddock, 2010; Wittenbrink, 2007). Assim, priming é o fenômeno cognitivo que ocorre quando um estímulo prévio (o prime) ativa conceitos semanticamente relacionados na memória, reduzindo o tempo necessário para sua identificação (Petty, Fazio & Briñol, 2009). A título de exemplo, considere por um instante uma pessoa que odeia insetos; pensar sobre eles desencadeia prontamente reações adversas. No caso, tal pessoa tem uma associação forte na memória entre o objeto atitudinal (insetos) e a avaliação correspondente (ruim). Suponha que esta pessoa também não goste de sapos, porém em nível menor de repulsão. Deste modo, o modelo do priming postula que, caso ela se depare com estes objetos atitudinais, ou seja, solicitada a falar sobre eles, a avaliação dos insetos será ativada mais rápida e espontaneamente do que a do sapo. Este modelo de avaliação ainda afirma que a pessoa é mais rápida em classificar um objeto como positivo (e.g., agradável) depois de ter visto um estímulo prime que gosta, do que depois de ter visto um de que não gosta. Da mesma forma, ela é mais rápida em classificar um adjetivo negativo (e.g., desagradável) depois de ter visto um estímulo que não gosta do que o contrário (Maio & Haddock, 2010). No exemplo anterior, os insetos como prime deveriam diminuir a velocidade de respostas subsequentes para adjetivos positivos, aumentando a correspondente para estímulos negativos subsequentes. Os procedimentos priming usados para medir atitudes geralmente apresentam objetos atitudinais como prime e os emparelham com palavras que variam em sua conotação avaliativa (e.g., agradável, desagradável). O estudo de Fazio (1995) é um exemplo disto. Ele apresentou brevemente aos participantes fotos de pessoas brancas ou negras. Em seguida, as instruiu para que indicassem o significado de adjetivos positivos e negativos (adjetivos-alvo). A propósito, observou que para os participantes brancos a apresentação de faces negras produziu respostas mais rápidas para adjetivos negativos, e mais lentas para os positivos. Fazio (2000, 2001) defende que avaliações automáticas associadas a um estímulo prime são mais vantajosas para a análise de alvos congruentes. Quando a questão envolve um nome, por exemplo, a facilitação gerada pelo prime é vista como o resultado da ativação automática associada ao estímulo, diminuindo a quantidade de ativações adicionais necessárias para alcançar o limiar de resposta, i.e., a exposição ao prime prepara o participante para responder quando for apresentado posteriormente a objetos congruentes. Assim, a ativação automática de uma avaliação gerada pelo prime resultará em uma latência de resposta variável em razão de alvos positivos ou negativos. Nesta direção, Saroglou, Corneille e van Cappelen (2009) observaram que o priming religioso ativa comportamentos e pensamentos submissos, aumentando a acessibilidade de conceitos relacionados à submissão, bem como a sensibilidade a pedidos de vingança, comportamento que é oposto ao perdão que é pregado, mas que tem se mostrado comum na maioria das religiões (Rye et al., 2000). Wittenbrink (2007) identifica duas formas de priming: avaliativo (ou afetivo) e conceitual. No primeiro caso, proposto por Fazio, Sanbonmatsu, Powell e Kardes (1986), o estímulo inicial (prime) é emparelhado com palavras-alvo de valência polarizada (e.g., bom vs ruim, positivo vs negativo) e o participante é solicitado a associar o estímulo com o alvo da forma mais rápida possível. Após algumas exposições testes, o priming atitudinal será verificado de forma positiva ou negativa, considerando a magnitude do tempo de resposta como uma medida de ativação automática dessa relação. Assim, o procedimento investiga a relação avaliativa entre o prime e o alvo (De Houwer, Hermans, Rothermund & Wentura, 2002; Klauer & Musch, 2003). O priming conceitual analisa a relação semântica entre o estímulo prime e o alvo, estimando que o desempenho dependerá do significado do prime em relação ao alvo. Neste caso, podem ser utilizados alvos positivos e negativos que variam quanto à capacidade de descrição do estímulo, estando presentes no contexto-tarefa de decisão lexical. Podem ser utilizados como alvo, por exemplo, atributos conhecidos como parte do estereótipo cultural de determinado grupo (Mcnamara & Holbrook, 2003; Wagner & Koutstaal, 2002). A diferença crítica entre estes dois tipos de priming é que o avaliativo analisa a relação entre o estímulo e o alvo, enquanto que o conceitual avalia a associação conceitual e a relação de significado (Wittenbrink, 2007). Oliveira et al. (2010) identificam outros dois tipos de priming: 82 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 80-92 o repetitivo, em que a apresentação prévia de um estímulo afetará o processamento do alvo, i.e., as experiências posteriores ao estímulo serão processadas mais rapidamente pelo cérebro (Forster & Davis, 1984); e o perceptual, que está baseado na forma do estímulo e sua correspondência com o alvo. Neste caso, pode-se citar como exemplo o uso de uma palavra incompleta como estímulo e sua identificação completa como alvo final. Este teste pode ser influenciado pelo tamanho ou quantidade de letras do estímulo, o que pode ser utilizado como uma evidência significativa de priming (Vasconcelos & Albuquerque, 2006). Outras formas de priming são utilizadas, porém ressalta-se que tanto o termo priming como suas formas podem variar em suas nomenclaturas, dependendo do aporte teórico adotado: priming mascarado. Possui este nome por se utilizar de símbolos (e.g., ####) para mascarar palavras ou pseudopalavras que são utilizadas como estímulo, permitindo diminuir ou aumentar a visibilidade (identificação) do prime, e assim analisar a relação da manipulação na ativação automática do alvo (Ferrand, Segui & Grainger, 1996). Priming de resposta. Atua na percepção visual e no controle motor do participante. A diferença maior é que os alvos são apresentados em sucessão rápida e podem estar associados a respostas motoras idênticas ou correlatas. Portanto, quanto maior a semelhança entre o estímulo e o alvo, mais rápida e eficiente são as respostas da pessoa (Klotz & Wolff, 1995). Priming semântico. O estímulo e o alvo pertencem a uma categoria semântica compartilhada (e.g., boi e búfalo podem ser considerados da mesma família semântica). Assim, quando um participante é exposto a um item de uma categoria, itens semelhantes são estimulados mais rapidamente no cérebro (Ferrand & New, 2003; Salles, Jou & Stein, 2007). Priming associativo. O alvo é uma palavra que está associada com o estímulo, porém eles não precisam estar diretamente relacionados em questões semânticas (e.g., as palavras boi e cavalo podem ser um exemplo desse tipo). Um efeito semelhante acontece com o priming de contexto, em que um contexto (um texto escrito, por exemplo) é utilizado como estímulo para acelerar o processamento de alvos que ocorrem de forma associada com o contexto, i.e., se os alvos são palavras, as que foram utilizadas no texto serão processadas de forma mais rápida (Stanovich & West, 1983). Wittenbrink (2007) afirma que, independente da forma, o resultado do priming pode ser influenciado pela força ou magnitude das atitudes, pelo estímulo (prime) escolhido, as instruções na execução das tarefas e o alvo selecionado. Portanto, a possibilidade de influência deve ser objeto de controle por parte dos pesquisadores, visto que a manipulação intencional de uma destas variáveis pode produzir resultados enviesados ou falseados. A propósito de limitações desta técnica, segundo este autor, duas outras são: (1) a administração do teste, que é considerada relativamente mais complicada que as demais medidas implícitas, exigindo recursos técnicos e experiência no campo da pesquisa; e (2) a tendência a produzir índices baixos de efeito priming e confiabilidade, sendo os resultados de difícil replicação, comprometendo-a como alternativa de mensuração. O estado da arte do priming (Gawronski & Payne, 2010; Olson & Fazio, 2009; Petty et al., 2009; Wittenbrink, 2007) indica que o crescimento rápido do número de pesquisas, em conjunto com a literatura extensa sobre o tema, tem resultado em avanços significativos no entendimento deste procedimento como uma das técnicas mais proeminentes de mensuração implícita. Porém, como anteriormente se indicou, não é a única. Teste de Associação Implícita O Teste de Associação Implícita (TAI; Implicit Association Test - IAT) foi proposto por Greenwald et al. (1998) com base na ideia de que objetos atitudinais podem espontaneamente ativar avaliações, as quais afetam respostas subsequentes, bem como a velocidade destas. Portanto, esta técnica foi elaborada para não requerer a intencionalidade da pessoa, acessando atitudes que elas relutam em dizer ou são incapazes de expressá-las. O TAI pode ter como variável dependente a latência de resposta da pessoa em associar determinados estímulos ou ainda o número de questões completadas em um tempo fixo; estas formas são, respectivamente, a medida computadorizada e a tipo lápis e papel (Greenwald & Farnham, 2000; Lemm, Lane, Sattler, Khan & Nosek, 2008). Estas têm sido utilizadas, sobretudo, quando a desejabilidade social limita a eficácia de medidas explícitas, mas também quando tal preocupação é mínima (Vargas, Sekaquaptewa & Von Hippel, 2007). TAI Computadorizado O TAI foi inicialmente criado para ser executado no computador, onde o tempo de reação é calculado (Greenwald et al., 1998). Esta ideia surgiu com base no experimento de Donders (1969), o qual afirmava que é possível entender processos “invisíveis” computando o tempo que decorre entre a apresentação do estímulo e a produção da resposta; ademais, ele indicou que fazendo com que a pessoa responda com a mão direita estímulos do lado direito e com a mão esquerda 83 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 80-92 estímulos do lado esquerdo, quando o movimento da mão direita for requerido com estimulação do lado esquerdo (ou vice-versa), o tempo de reação vai ser maior e a quantidade de erros também (Lane, Banaji, Nosek & Greenwald, 2007). Neste sentido, o tempo como variável para estimar a natureza dos processos mentais está envolvido em diversas técnicas, como o priming (anteriormente citado) e o TAI. Nesta versão do TAI, o experimento é composto por vários blocos de ensaios. Os participantes observam estímulos (palavras ou fotos), os quais são apresentados no centro da tela do computador. Duas são as chaves de resposta disponíveis às pessoas: chave da esquerda (geralmente a tecla E) e chave da direita (geralmente a tecla I), sendo elas instruídas a responderem o mais rápido possível, buscando não cometer erros (Stüttgen, Vosgerau, Messner & Boatwright, 2011). Considere o exemplo de um estudo utilizando o TAI para verificar atitudes com relação a brancos e negros (Figura 1). No Bloco 1 os participantes são apresentados a uma variedade de palavras referentes à cor da pele. Eles são instruídos a indicar uma resposta, pressionando a tecla “E” quando observam palavras referentes à cor da pele branca, ou a tecla “I” quando as palavras se referirem à cor da pele negra. Todos são instruídos a responder tão rápido quanto possível. No Bloco 2 os participantes são apresentados a uma variedade de adjetivos positivos e negativos. Novamente, eles são solicitados a indicar uma resposta pressionando a tecla “E” quando um adjetivo positivo aparecer na tela ou a tecla “I” quando um adjetivo diferente aparecer na tela. No Bloco 3, eles são informados que verão nomes ou adjetivos, e que deverão pressionar a tecla “E” quando virem algo referente à cor da pele branca ou adjetivo positivo, e pressionar a tecla “I” quando virem algo referente à cor da pele negra ou adjetivo negativo. O Bloco 4 é similar ao Bloco 2, mas agora o participante deve pressionar a tecla “E” quando o adjetivo negativo aparecer, e a tecla “I” quando o adjetivo positivo aparecer. Por fim, o Bloco 5 é similar ao Bloco 3, mas agora os participantes devem pressionar a tecla “E” quando a cor da pele branca ou o adjetivo negativo aparecer, e a tecla “I” quando for a cor da pele negra ou o adjetivo positivo. Tecla de resposta “E” Tecla de resposta “I” Brancos Negros Adjetivos positivos Adjetivos negativos Brancos OU adjetivos positivos Negros OU adjetivos negativos Adjetivos negativos Adjetivos positivos Brancos OU adjetivos negativos Negros OU adjetivos positivos Figura 1. Exemplo de sequência de procedimentos para os cinco blocos do TAI Os Blocos 3 e 5 medem a rapidez de associação entre um objeto atitudinal (e.g., a categoria cor da pele) e a avaliação. Deste modo, indivíduos que têm preconceito com relação a negros (os avaliam mais negativamente), por exemplo, nos ensaios em que aparecem as palavras referentes a pessoas negras associadas a adjetivos positivos, respondem mais lentamente, ao passo que são mais rápidos em responder as associações entre brancos e adjetivos positivos. O bloco com menor média de latência de resposta (menor tempo de reação) é chamado de bloco congruente, enquanto que aquele com maior latência é chamado de bloco incongruente. A forma mais simples de se calcular a associação implícita é pela diferença entre o número de respostas nos blocos congruente (A) e incongruente (B) (TAI = A – B). Desta fórmula decorre que a diferença de latência média de resposta entre os dois pares (A e B) reflete a força relativa de associações subjacentes (Lemm et al., 2008). Não obstante, Greenwald, Nosek e Banaji (2003) introduziram um método mais eficiente de calcular esta pontuação: o escore D. Concretamente, os escores do TAI (equação anterior) são divididos pelo desvio-padrão do indivíduo de todas as latências de resposta, em ambos os blocos. O propósito do escore D é corrigir a variabilidade nos escores devido à diferença na velocidade de processamento de todos os participantes. Deste modo, após responder ao teste, será atribuído a cada participante um escore D que varia de -2 a +2, onde valores próximos a -2 indicam uma atitude implícita muito forte contrária ao objeto da pesquisa, e valores próximos a +2 indicam uma atitude implícita muito forte a favor deste objeto (Cai, Sriram, Greenwald & McFarland, 2004; Greenwald et al., 2003; Stüttgen et al., 2011). Em razão da eficácia dos resultados desta técnica, tem 84 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 80-92 crescido o número de estudos que a utilizam para mensurar vários construtos. Por exemplo, Cvencek, Meltzoff e Greenwald (2011) estudaram a associação implícita de crianças de 6 a 10 anos de idade, no que concerne ao estereótipo cultural de gênero. Por meio do TAI, verificaram que elas demonstraram estereótipo cultural de gênero ao associarem a matemática com os homens, i.e., a matemática como sendo uma disciplina cujo desempenho melhor é alcançado por homens, influenciando seu autoconceito, mesmo não havendo diferença de notas em matemática entre elas em função de seu sexo. Cvencek, Greenwald e Meltzoff (2011) adaptaram o TAI computadorizado para crianças ainda mais jovens, com 4 anos de idade (Preschool Implicit Association Test - PSIAT). Durante o PSIAT, as crianças foram instruídas a categorizar estímulos, apertando o botão do lado esquerdo ou direito, a partir de quatro categorias (flores, insetos, bom e mau), as quais eram representadas por figuras infantis. Além de associar flores e insetos a bom e mau, elas também fizeram associação de gênero (menina/boa e menino/mau e vice-versa). Ao passo que os estímulos eram apresentados no centro da tela, o som das palavras era veiculado em alto-falantes. Observaram que o PSIAT com relação ao gênero se correlacionou com medidas explícitas correspondentes e também com o sexo real da criança (preferência grupal). Assim, os autores propuseram que esta medida pode ser utilizada para investigar o desenvolvimento de atitudes implícitas estereotipadas em crianças mais jovens. Andrews, Greenwald, Hampson, Gordon e Widdop (2010) também apresentaram bons resultados para o TAI em crianças. Eles a adaptaram para medir atitudes frente a fumantes como parte de um programa para prevenção do tabagismo, e observaram que crianças com membros da família que fumavam tinham atitudes implícitas mais favoráveis em relação ao tabagismo. Eles ainda observaram que ao se engajarem em atividades voltadas a percepção do risco da dependência, suas atitudes implícitas tornaram-se menos favoráveis. Ayres, Prestwich, Conner e Smith (2011) utilizaram o TAI computadorizado com um grupo de comedores compulsivos. Além da medida implícita, também foram utilizadas medidas explícitas e comportamentais. Em um primeiro momento, o participante respondia as medidas implícita e explícita (Dutch Eating Behaviour Questionnaire - DEBQ; Van Strien, Frijters, van Staveren, Defares & Deurenberg, 1986) e, ao final, recebia um caderno para escrever o DCC (consumo diário de chocolate, i.e., a medida comportamental), que deveria ser descrito nos sete dias após o experimento. Observouse que o TAI se correlacionou tanto com a medida explícita quanto com o indicador comportamental. Por fim, Leavitt, Fong e Greenwald (2011) realizaram uma pesquisa no âmbito organizacional a fim de verificar as atitudes implícitas de trabalhadores com relação à organização, aos colegas e supervisores como indicadoras de bem-estar. Este estudo demonstrou que o desempenho no trabalho e os comportamentos de cidadania foram preditos por uma combinação de atitudes implícitas e explícitas no trabalho, e que a dissociação entre estes tipos de atitudes gera impactos na identificação organizacional. Além de ter sido empregado nestes estudos, o TAI computadorizado já foi utilizado para estudar diversos construtos, como felicidade e bem-estar (Walker & Schimmack, 2008), preconceito frente ao uso de drogas (Hippel, Brener & Hippel, 2008), autoestima e autoconceito (Greenwald & Farnham, 2000) e personalidade implícita (Schnabel, Asendorpf & Greenwald, 2008). Portanto, é evidente seu valor nas pesquisas em Psicologia. Entretanto, em razão de seus custos, desenvolveu-se uma alternativa que, mesmo não tendo sua precisão, apresenta facilidades em relação a ele, como a seguir é descrita. TAI Lápis e Papel O TAI é tipicamente usado no computador. Porém, as desvantagens desta forma de medição, principalmente no que concerne a necessidade de um laboratório equipado, disposição do programa de análise (e.g., Direct RT, Inquisit, Superlab), dificuldade de alcançar populações não tradicionais e custo temporal devido à aplicação individual, as versões do TAI lápis e papel têm sido desenvolvidas. Estas são fáceis de usar, não requerem equipamento especial e podem ser administradas em grupos de entrevistados ao mesmo tempo, alcançando populações diversas (Lemm et al., 2008; Mori, Uchida & Imada, 2008). Ainda são escassos os estudos utilizando o TAI lápis e papel (Lemm et al., 2008; Mori et al., 2008; Vargas et al., 2007), fato que reitera a necessidade de pesquisas visando testá-la e adaptála a diversos construtos. Mas, sabe-se que ambas as versões (computadorizada e lápis e papel) possuem a mesma lógica subjacente, i.e., não ser susceptível a processos intencionais dos participantes; ademais, em ambas a associação estreita entre os conceitos que compartilham uma resposta deve tornar a tarefa mais fácil, levando a um melhor desempenho (Lemm et al., 2008). Não obstante, enquanto no TAI computadorizado a variável dependente é o tempo de reação frente aos estímulos apresentados, na medida lápis e papel ela diz respeito ao número de respostas concluídas em um tempo fixo, que geralmente é de 85 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 80-92 20 segundos (Lemm et al., 2008). O teste ocorre da seguinte maneira: aos participantes são apresentadas duas folhas, correspondendo aos lados A e B. Em cada lado há os quadrantes explicando em que categoria as palavras se encaixam (os participantes têm 3 segundos para olhá-los antes de começar a tarefa de classificação) e, logo abaixo, duas colunas sequenciais com a tarefa de classificação; o participante é informado para não passar para a segunda coluna sem antes ter concluído a primeira. Esta estrutura é a mesma em ambos os lados; entretanto, na tarefa do Lado A existe, no topo das colunas, o emparelhamento com maior congruência esperada entre os construtos que estão sendo estudados (e.g., branco/positivo e negro/negativo, respectivamente). No centro das colunas, há os estímulos (palavras-alvo) que devem ser associados do lado que corresponda a sua categoria de pertença. Esta tarefa deve ser feita em 20 segundos, sendo os participantes instruídos a irem o mais rápido possível, de cima para baixo, da esquerda para direita, sem pular ou deixar em branco qualquer palavra. No Lado B, apenas há mudança no emparelhamento das palavras (e.g., negro/positivo e branco/negativo), mas a tarefa segue da mesma forma (Lemm et al., 2008; Mori et al., 2008). Geralmente, antes de passar para o experimento em si, há a apresentação da tarefa de teste, correspondente àquela de classificação de flores e palavras, proposta por Greenwald et al. (1998). A forma recorrente de calcular a associação implícita é por meio da diferença no número de palavras concluídas nas duas tarefas de classificação [TAI = (número de palavras concluídas em tarefas positivas) - (número de palavras concluídas em tarefas negativas)], independentemente de erros (Lemm et al., 2008; Mori et al., 2008). Não obstante, deve-se tratar com cautela perfomances excessivas (e.g., 60 palavras marcadas em 20 segundos) ou extremamente baixas (e.g., menos de 10 palavras) ou flutuações entre as tarefas (e.g., 25 palavras no Lado A e 5 no Lado B). De forma geral, recomenda-se eliminar participantes que erram mais de 10% da tarefa, decisão que deve ser descrita no método (Mori et al., 2008). Não obstante, esta forma de análise tem sido criticada devido aos artefatos indesejados inerentes a sua utilização, como a vulnerabilidade às diferenças individuais na velocidade de resposta. Deste modo, Lemm et al. (2008) testaram sete formas de avaliação do TAI lápis e papel por meio de dados simulados: (1) diferença das pontuações (pontuação no Lado A menos pontuação no Lado B); (2) razão simples (A/B – 1); (3) relação máximo e mínimo (X / Y - 1, onde X é o maior valor de A ou B, e Y é o menor valor de A ou B); (4) conversão de latência {1000 * [(1 / B) - (1 / A)]}; (5) produto simples [(A - B) * (X / Y)]; (6) produto: relação ao quadrado [(A - B) * (X / Y)]; e, finalmente, (7) produto: raiz quadrada da diferença [(X / Y) * √(X - Y)]. Eles concluíram que a melhor forma de avaliar este tipo de medida é por meio do produto: raiz quadrada da diferença, que apresentou resultados consistentemente superiores, principalmente para estímulos verbais. É importante salientar que existem duas formas de mensuração de “atitudes” implícitas: uma que considera apenas estímulos verbais e outra que considera figuras na classificação, tal como ocorre mais frequentemente nas versões computadorizadas. No estudo de Lemm et al. (2008), testouse a validade destas duas versões do TAI lápis e papel (com figuras e com palavras) quanto a atitudes raciais, observando-se melhores resultados para os estímulos verbais em detrimento dos figurativos. Estes resultados se repetiram em estudos posteriores (Lemm et al., 2008). No que concerne a comparação entre as medidas computadorizada e lápis e papel, Lemm et al. (2008) foram os primeiros a fazê-la, testando as medidas utilizando os mesmos estímulos (atitudes raciais). Os resultados mostraram que, apesar de estarem correlacionadas (r = 0,51), o tamanho do efeito foi maior na medida computadorizada. Por tal motivo, além de menor precisão da medida (Mori et al., 2008), as versões lápis e papel têm sido preteridas pelos pesquisadores. Ademais, alguns efeitos podem mascarar os resultados do teste, como a ordem de apresentação dos blocos (Lados A e B) e a velocidade de resposta global. Entretanto, estudos empíricos têm mostrado que isto não invalida a medida, que pode servir como uma alternativa para quem deseja trabalhar com medidas implícitas, apresentando resultados que variam de razoáveis a bons, podendo ser utilizadas para corroborar estudos computadorizados ou em combinação com medidas explícitas (Mori et al., 2008). Lemm et al. (2008) demonstraram que, em se tratando do TAI lápis e papel para estímulo verbal, a ordem de apresentação dos blocos não influenciou os resultados, e a velocidade de resposta global, quando lançando mão do algoritmo produto: raiz quadrada da diferença, apresentou resultados satisfatórios. Desta forma, esta técnica pode ser considerada útil, sendo prática, eficaz e de fácil aplicação. Ela já vem sendo utilizada para mensurar, por exemplo, atitudes frente a pessoas gordas e magras (Teachman, Gapinski, Brownell, Rawlins & Jeyaram, 2003), atitudes raciais (Lemm et al., 2008), motivação organizacional (Johnson & Steinman, 2009), autoestima (Karpinski & Steinman, 2006) e preconceito racial (Lemm et al., 2008). Devido a proposta do TAI e aos resultados encontrados, 86 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 80-92 a repercussão desta técnica foi tanta que, uma década após a publicação da pesquisa original, esta foi citada em mais de 900 artigos (Maio & Haddock, 2010), tendo sido desenvolvidos mais de 4.500 testes (Lane et al., 2007). Além dos estudos visando verificar suas propriedades psicométricas e aplicação a construtos variados, tem crescido o desenvolvimento de formas alternativas desta técnica, como o Single Categorie IAT ou SC-IAT (Karpinski & Steinman, 2006), o TAI para crianças e adolescentes (Baron & Banaji, 2006), o teste Go/No-Go (Nosek & Banaji, 2001) e o Filtering Unconscious Matching of Implicit Emotions (o teste FUMIE; Mori et al., 2008). Ademais, em revisão feita por Nosek, Greenwald e Banaji (2007), observou-se que o TAI tem sido aplicado em diversos âmbitos da Psicologia, como social, cognitivo e clínico, além de em disciplinas correlatas (e.g., Neurociência, Marketing), o que reitera sua importância em medir atitudes e outros construtos que se pretenda conhecer sua associação implícita. Capacidade Explicadora das Medidas Implícitas Segundo Greenwald e Banaji (1995), atitudes implícitas podem ser definidas como “traços introspectivamente não identificados (ou erroneamente identificados) de experiências passadas que medeiam um sentimento favorável ou desfavorável, pensamento ou ação em relação a objetos sociais” (p. 11). Elas coexistem com as atitudes explícitas sobre o mesmo objeto, mas diferem em relação ao componente avaliativo, acessibilidade e estabilidade (Stüttgen et al., 2011). Ademais, devido à complexidade de fenômenos que medeiam o comportamento das pessoas, parece razoável sugerir que as atitudes que o influenciam não se restringem ao componente avaliativo; há aspectos implícitos que podem ajudar a prever a diversidade de comportamentos (Vargas et al., 2007). Neste sentido, o fato de as atitudes implícitas nem sempre serem relacionadas às explícitas tem levado os pesquisadores a pensar se as definições de atitudes, as quais envolvem um componente avaliativo (cognitivo), não estariam ultrapassadas (Fazio, 2007). Sendo as atitudes implícitas e explícitas coexistentes, não implica dizer que se referem à mesma coisa; ao contrário, são fatores diferentes, que, por vezes, apresentam-se correlacionados e, em outros casos, mostram-se independentes (Rydell, McConnell & Mackie, 2008). Tais incertezas fizeram com que Gawronski e Bodenhausen (2006) afirmassem que entender o que leva a resultados discrepantes entre atitudes implícitas e explícitas tem estado na vanguarda da investigação da cognição social contemporânea. Por exemplo, Rydeel et al. (2008) estudaram a dissonância cognitiva que se origina a partir da observação de uma incongruência entre atitudes implícitas e explícitas. Eles verificaram que o estado de desconforto produzido pela incongruência e a busca do indivíduo pela homeostase podem levar a uma mudança de atitudes frente ao objeto em foco. No que se refere à capacidade preditiva das medidas implícitas, Fazio e seus colaboradores defendem a necessidade de considerar que os processos de decisão não são puramente espontâneos, nem puramente deliberados (Fazio, 1995; Fazio & Olson, 2003; Olson & Fazio, 2009). Tais processos consideram ambas as características, tanto as automáticas quanto as controladas ou conscientes. Para explicar a relação entre as medidas implícitas e a capacidade preditiva de comportamentos, Fazio e Olson (2003) e Olson e Fazio (2009) defendem o modelo MODE (Motivation and Opportunity as Determinants), um anacrônico da língua inglesa, que pode ser traduzido para o português como motivação e oportunidade como determinantes, significando que as ações podem ser determinadas por motivações e oportunidades situacionais. Este modelo propõe que as atitudes podem exercer influência por meio de processos relativamente espontâneos ou deliberados. Deste modo, os julgamentos e os comportamentos sobre um determinado objeto são influenciados pela interpretação do objeto na situação, ou de forma automática, ativada na exposição a este objeto. Estes autores também utilizam tal modelo para explicar a relação entre medidas explícitas e implícitas, indicando que sua magnitude dependerá da motivação e oportunidade para deliberar. Se a motivação ou a oportunidade de deliberar forem relativamente baixas no momento em que a resposta explícita está sendo considerada, então as medidas apresentarão maior possibilidade de correlação. Porém, quando a motivação e oportunidade de avaliação dos objetos atitudinais são relativamente altas, será menor a possibilidade de correlação. De acordo com o antes indicado, quando a motivação e a oportunidade de deliberar são baixas, o comportamento esperado em relação ao objeto atitudinal deve ser ativado automaticamente e as medidas implícitas apresentarão maior capacidade preditiva. De forma inversa, quando a motivação e oportunidade de deliberar são altas, as medidas explícitas apresentarão maior capacidade de predição, pois serão influenciadas pelas mesmas forças avaliativas. Ressalta-se, então, a importância de considerar processos motivacionais e 87 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 80-92 deliberativos ao examinar a validade preditiva de uma medida implícita quanto aos comportamentos e a sua relação com as medidas explícitas (Olson & Fazio, 2009). Mesmo que as atitudes implícitas sejam consideradas como processos ou preferências automáticos, é necessário considerar o papel da cultura a respeito, pois os protótipos são construídos com base na relação do indivíduo com o meio, i.e., as relações aprendidas culturalmente sobre o objeto da avaliação podem acelerar ou reduzir a velocidade das associações implícitas. Outro fator é a relação direta do indivíduo com o objeto avaliado. Por exemplo, a avaliação implícita de um produto será afetada se a pessoa tiver uma relação alérgica a tal produto. Assim, as atitudes dos outros indivíduos frente a este produto irão divergir quando comparadas com as daquele que é alérgico (Fazio & Olson, 2003). As pesquisas listadas no levantamento de Fazio e Olson (2003) mostram que existe considerável sensibilidade das medidas implícitas ao contexto. Por exemplo, medidas utilizando a técnica do priming revelaram uma evidência relacionada a um maior preconceito em direção a exogrupos quando comparado com os endogrupos (grupos de pertença), principalmente quando existia alguma ameaça a estes. A saliência das categorias utilizadas nos testes implícitos também geram maiores escores nas avaliações. Deste modo, tanto o TAI como o priming pode ser influenciado pelos tipos de informação ou rótulos de categorias ou estímulos envolvidos. De forma geral, estima-se que as medidas que utilizam o TAI podem ser superiores quando na predição de categorias (e.g., apoio a uma proposta de política com responsabilidade social). Já as que utilizam priming podem ser superiores ao prever o comportamento em direção a um exemplar específico da categoria (e.g., o julgamento a um político de forma individual) (Fazio, 1995; Fazio & Olson, 2003). Petty et al. (2009) e Ranganath e Nosek (2008) defendem que as medidas implícitas, indiretas ou automáticas, tendem a explicar melhor comportamentos espontâneos que comportamentos deliberados. Para este segundo caso, as medidas explícitas, diretas ou conscientes, são melhores preditoras. Entende-se, pois, que as atitudes implícitas ou explícitas predirão melhor em função do tipo de comportamento analisado. Finalmente, outro fator considerado na literatura é a estabilidade das atitudes implícitas e a possibilidade de sua mudança. Por serem considerados processos automáticos, tais atitudes tendem a apresentar maior estabilidade que aquelas explícitas. A propósito, Kawakami, Dovidio, Moll, Hermsen e Russin (2000) mostraram que 480 ensaios de rejeição explícita da associação estereotipada foram necessários para produzir uma mudança na ativação dos estereótipos. Porém, os indicadores mostraram posições mais otimistas quanto à possibilidade de mudanças nessas atitudes, principalmente com a criação de novas associações contra-atitudinais ou contra-estereótipos. Críticas e Limitações das Medidas Implícitas Apesar da evolução rápida, as técnicas de mensuração implícitas têm recebido críticas, principalmente o TAI. Fiedler, Messner e Bluemke (2006) afirmam que a mensuração de atitudes implícitas possuem cinco limitações: (1) a assimetria entre as inferências causais e os diagnósticos das medidas implícitas, que tem apresentado divergências entre os resultados de pesquisas; (2) a viabilidade do modelo de possuir associações subjacentes; (3) a falta de um modelo de processo cognitivo e um modelo psicométrico que explique as associações; (4) problemas de pontuações diferenciadas, i.e., a diferença de sensibilidade entre os dois componentes da latência e os fatores incontroláveis; e (5) a suscetibilidade do TAI de deliberar processos falsos e estratégicos. Segundo tais autores, cada um destes problemas está relacionado a um aspecto da técnica; o problema cinco se relaciona com o fato de as medidas serem implícitas; o dois se refere ao fato de ser uma associação; e os demais problemas (um, três e quatro) estão ligados à questão de ser um teste. Quanto à preocupação relativa às correlações baixas entre os tipos de medida, Fazio (1995) afirma que erros de medição ou utilização de estímulos indevidos podem interferir diretamente nas mensurações implícitas. Nos procedimentos priming, por exemplo, a validade da medida dependerá da representatividade dos estímulos escolhidos para servir como prime. Este autor ressalta a relação do priming com as atitudes anteriores que o indivíduo possui frente ao objeto avaliado. Esta avaliação ou classificação anterior, considerada como um protótipo, possui capacidade moderadora na relação entre o objeto atitudinal e o indivíduo que o avalia. Se dois conceitos são altamente associados, as tarefas de classificação implícita serão mais fáceis quando compartilham a mesma resposta do que quando exigem respostas diferentes. Steffens (2004) analisou a capacidade de produzir resultados falsificados em testes explícitos e implícitos. O resultado indicou que o TAI é menos suscetível a falsificações de resultados quando comparado às aplicações de questionários, mas não é totalmente imune. Segundo este autor, a pontuação dos testes implícitos depende das circunstâncias e instruções 88 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 80-92 apresentadas na sua administração e também pode sofrer influência de conhecimento prévio do uso desta técnica. Blanton e Jaccard (2006) consideram o TAI uma medida arbitrária, mesmo sendo avaliada em milissegundos, pois não se pode afirmar com confiança que o ponto zero do teste significa a neutralidade das preferências aferidas, assim os desvios deste ponto, para mais ou para menos, não podem ser determinados como graus de verdade. Outra questão levantada por estes autores está no fato de faltarem às pesquisas uma análise da relação entre os escores do TAI e os comportamentos observáveis dos participantes da pesquisa, o que os leva a afirmar que esta técnica tem uma justificação duvidosa enquanto instrumento de diagnóstico. Arkes e Tetlock (2004), em uma pesquisa sobre preconceito racial e TAI, chegaram às seguintes conclusões: (a) os dados podem refletir estereótipos compartilhados socialmente e não um posicionamento individual; (b) a relação afetiva negativa dos participantes pode ser devido a cognições e emoções que não são necessariamente preconceitos; e, por fim, (c) os resultados devem ser considerados como indicativos de preconceito e não como diagnósticos de comportamento racional. Crítica semelhante foi feita por Wax e Tetlock (2005), os quais indicaram que os escores do TAI refletem apenas a consciência de estereótipos culturais comuns, porém nem todo mundo que conhece os estereótipos necessariamente tendem a apoiá-los. A respeito, comentam que as associações podem refletir apenas a consciência da realidade social, ou seja, alguns grupos são mais desfavorecidos que outros e os indivíduos nestes grupos são propensos a se comportarem de maneiras indesejáveis. Possivelmente, o avanço das medidas implícitas só será possível quando forem discutidos abertamente estes problemas, ao invés de serem minimizados por aqueles que as utilizam. Questões como a falta de padronização na seleção de estímulos, a adequação do modelo de associação subjacente, a propensão do modelo para as diferenças de latência e o papel desempenhado por estratégias autogeradas não devem ser minimizadas; em vez disso, devem ser pesquisadas, servindo como referência para pressupostos teóricos que podem ser testados ou refutados empiricamente (Fiedler et al., 2006). Nesta direção, em resposta às críticas, Greenwald, Nosek e Sriram (2006) defendem que o número de pesquisas e publicações desde 1998 fornecem validade consequencial para as medidas implícitas, o que é corroborado pelos resultados de testes com menores índices de vieses, quando comparados a outras medidas em Psicologia que se propõem a avaliar os mesmos construtos. Finalmente, coerentes com os argumentos dos autores anteriores, Jost et al. (2009) analisaram dez pesquisas publicadas entre 2001 e 2008, considerando as críticas contra as medidas implícitas, tendo verificado que participantes como estudantes, enfermeiros, médicos, policiais e recrutadores de emprego apresentaram preconceitos implícitos em relação à raça, etnia, nacionalidade, sexo e status social, condizentes com suas atividades, i.e., as medidas implícitas apresentaram capacidade preditiva para comportamentos sociais e organizacionais, incluindo o emprego, decisões médicas e eleitorais feitas pelos participantes, o que contraria algumas afirmações dos críticos do TAI. Considerações Finais Claramente, as medidas implícitas são distintas, porém relacionadas com as explícitas, que são aferidas por meio de autorrelatos e passíveis de limitações provenientes da motivação, oportunidade, inibição, incapacidade de expressão ou mesmo falta de conhecimento dos participantes quando têm que reportar o seu conteúdo mental (Nosek, Hawkins & Frazier, 2011; Petty et al., 2009; Ranganath & Nosek, 2008; Ratliff & Nosek, 2010). Estas formas de medida de processos automáticos têm sido valorizadas por serem mais “puras”, fornecendo resultados mais próximos da realidade. Todavia, esta valorização não implica em uma isenção de vieses de medida; superam-se os vieses daquelas de autorrelato, ao passo que se incorporam novos vieses, mesmo que de tipo diferente e em menor número (Lima, 2006), como a dificuldade de comprovação de evidências de sua validade e precisão quando comparada com as medidas explícitas (Stüttgen et al., 2011). Apesar do que previamente se comentou, Nosek et al. (2011) realizaram um levantamento das publicações até 2010, 15 anos após a publicação do artigo Implicit social cognition: From measures to mechanisms (Greenwald & Banaji, 1995), tendo observado que os primeiros anos das técnicas implícitas de mensuração podem ser definidos como a “era das medidas”, uma vez que foram criados mais de 20 procedimentos de mensuração, destacando pesquisas nas temáticas de atitudes, estereótipos, autoestima e autoconceito, envolvendo áreas como comportamentos de consumo, saúde mental e comportamento político. A propósito, busca realizada no site PsycNET (2011), utilizando o termo “priming”, resultou em 1.594 artigos que empregaram ou citaram esta técnica. Entre os assuntos mais abordados nestas pesquisas, destacaram-se processos cognitivos, aprendizagem e memória, percepção visual e linguagem. Isso demonstra a vitalidade desta técnica, que tem 89 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 80-92 sido capaz de atender necessidades metodológicas para o teste de hipóteses científicas em diversas áreas. Por ser uma técnica nova, quando comparada com outras disponíveis na literatura (Pimentel et al., 2011), a mensuração implícita sofre críticas quanto à sua aplicabilidade, mensurabilidade, confiabilidade, poder preditivo e relação com outras medidas, a exemplo daquelas explícitas. Porém, os pesquisadores que utilizam e defendem tal técnica percebem nestas críticas a possibilidade de seu aperfeiçoamento metodológico. Por exemplo, Nosek et al. (2011) entendem que a primeira década e meia desde sua proposição forneceram uma base sólida para a próxima fase das medidas implícitas, que têm como foco principal resolver questões quanto aos seus mecanismos subjacentes e avaliar em que extensão a mensuração proporcionada dos construtos pode influenciar o comportamento. Concluindo, é possível afirmar que mesmo sendo considerada uma técnica nova e em fase de aperfeiçoamento, as medidas implícitas já estão contribuindo para o desenvolvimento da Psicologia, proporcionando recurso objetivo que favorece indicadores válidos e precisos de processos mentais automáticos e, por vezes, inconscientes. Certamente, isso representa um avanço nos âmbitos da avaliação e medida nesta área. Referências Andrews, J. A., Greenwald, A. G., Hampson, S. E., Gordon, J., & Widdop, C. (2010). Using the Implicit Association Test to assess children’s implicit attitudes toward smoking. Journal of Applied Social Psychology, 40, 2387-2406. 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Na tentativa de compreender seu funcionamento, faz-se necessário resgatar o sujeito que está por traz desse campo de conhecimento, inserindo-o numa realidade complexa. Essa inserção tem como resultado um espaço de reflexão que se baseia na idéia de que a ciência que contribui para o funcionamento prático e teórico é construída por pessoas que têm motivações próprias, cuja trajetória pessoal reflete o direcionamento do seu trabalho e o tipo de atuação, assim como a filiação epistemológica, as escolhas e formulações teóricas e, por fim, os caminhos metodológicos. Palavras-chave: Saúde pública; Complexidade; Epistemologia Abstract: The field of Public Health is formed by a set of differing characteristics, compositions, definitions and perspectives. In an attempt to understand how it functions, the subjects behind this field of knowledge need to be retrieved and positioned within their complex realities. This positioning gives rise to a space for reflection based on the idea that the science that contributes towards how the practice and theory is constructed by people who have their own motivations and whose personal paths are reflected in the direction taken by their work and the type of activity, along with the epistemological affiliation, theoretical choices and formulations and, finally, the methodological pathways. Key words: Public health; Complexity; Epistemology a Psicóloga; Doutora em Saúde Pública pela FIOCRUZ, Professora da UFPB. * E-mail; [email protected] b Médico, Doutor em Saúde Pública pela FIOCRUZ; Médico Intensivista do Hospital das Clínicas da UFPE c Antropóloga; Doutora em Antropologia pela PUC/SP; Professora da UFPE. d Médica; Doutora em Ciências Médicas pela UNICAMP, pesquisadora titular da FIOCRUZ. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 93 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 93-98 Será lícito extrapolar do discurso pública e se isolasse das outras áreas de conhecimento científico, científicouma imagem do mundo que como, por exemplo, a educação, desconsiderando as possíveis corresponda aos meus desejos? contribuições que poderiam receber. Dentro dessa realidade, é importante enfatizar o que existe Ítalo Calvino por trás de cada área de conhecimento, das pessoas, cientistas, profissionais, que dão sua contribuição no desenvolvimento do conhecimento científico. O ponto de partida pode ser a Contemplar a realidade do pesquisador no Brasil, de uma questão: até onde vai a contribuição de cada uma dessas áreas forma geral, é se deparar com um conjunto de produções, para o desenvolvimento do conhecimento de forma geral e qual características, composições, definições e perspectivas teóricas a relação direta entre elas e a vida pessoal de cada um que se diferentes, independente da área que atue. Essa diversidade propõe a produzir esse conhecimento? provoca uma busca de compreensão relacionada ao que na Obviamente não há uma resposta imediata para essa questão. verdade rege a vida de cada pesquisador e o que determinada No entanto, é possível refletir a partir do reconhecimento de que, escolhas que estão diretamente ligadas à sua produção científica. se há uma fragmentação, se as áreas de conhecimento não se Talvez o melhor ponto de partida para essa compreensão seja somam ou não reconhecem a contribuição uma das outras para construir questões que possam conduzir a um aprofundamento um melhor desenvolvimento da própria ciência, existem pessoas das reflexões. Para isso, faz-se necessário iniciar essa caminhada por trás de cada uma delas. Pessoas que estão intencionalmente pelas trilhas da ciência e dos homens que fazem a ciência, construindo conhecimentos ditos científicos com algum objetivo tentando entender suas motivações e justificativas. e que utilizam esses conhecimentos com objetivos previamente Levando em conta construções teóricas apresentadas por delineados. Essas pessoas certamente são estimuladas por autores como, Paz (1998), Prigogine (1999), Nogueira (2000), motivações que podem causar questionamentos como: o que os Carvalho (2004), Morin (2005), entre outros, é possível ver impede de reagir a favor de uma integração dos conhecimentos a produção do homem de ciência (assim como ele próprio) produzidos? O que entrava uma sutura entre esses saberes? Mais como expressões de fatores objetivos e subjetivos construídos e que isso: qual o sentido real do que é produzido cientificamente? resgatados durante toda a sua vida. De repente, essa produção Como a ciência é significada e re-significada pela sociedade? e a própria Ciência passam a ter significados e utilidades que (Rosnay, 2002). extrapolam o lugar meramente de construção do saber. Tarride Numa busca de respostas para os questionamentos acima, (1998) discorre sobre essa possibilidade, afirmando que a alguns autores foram consultados e algumas construções foram Ciência, independente de sua área de atuação, muitas vezes, é feitas. O resultado obtido não foi propriamente um composto usada como escudo atrás do qual os cientistas escondem suas de respostas, mas sim um conjunto de novas questões e de um fraquezas: são homens que praticam a ciência e não podem espaço maior de reflexão baseado na idéia de que a ciência que despojar-se de suas responsabilidades, escondendo-se atrás de contribui para uma produção prática e teórica do conhecimento procedimentos, condutas e técnicas. é construída por pessoas que têm motivações próprias, cuja Atitudes como essa, mais comum do que se imagina, podem trajetória pessoal (consciente e/ou inconscientemente) reflete o ser identificadas nas mais diversas áreas do conhecimento. O direcionamento do seu trabalho e tipo de atuação, assim como a mesmo autor usa como exemplo (1998) a área da Saúde Pública, filiação epistemológica, as escolhas e formulações teóricas e, por chamando a atenção mais especificamente para a enorme fim, os caminhos metodológicos. crise que ela tem passado ultimamente. Dentre os motivos responsáveis por essa crise, ele aponta a disputa que ainda I permanece entre saúde pública e medicina preventiva, medicina social, medicina comunitária, materializando o desencontro Entendendo a produção científica como expressão de entre a visão científico-médica da saúde e o caráter social. Ou busca contínua existencial do cientista e do processo interior do seja, a crise se daria também por um desentendimento entre preenchimento de lacunas subjetivas/simbólicas que justificam os conceitos e a compreensão do que é saúde pública. É como essa busca, é no âmbito da história de vida desse cientista que se se cada especialidade citada acima quisesse dar conta sozinha pode compreender melhor sua produção e escolhas, não sendo do vasto leque de conhecimento que está contido na saúde possível desatrelar o cientista e sua obra do seu passado e de sua 94 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 93-98 história (Atlan, 2009). Esse argumento encontra respaldo em O. Paz (1998), quando ele afirma que a obra produzida pelo homem se transforma numa ilustração de sua própria vida. Acrescenta também que o autor de determinada obra produz impulsionado por forças e intenções conscientes e inconscientes, mas os significados, prazeres e surpresas que sua obra causam, nunca coincidem exatamente com esses impulsos e intenções; eles vão mais além, representam muito mais que o momento presente, são uma espécie de resgate de toda uma história de vida, uma busca incessante de respostas, na tentativa de preenchimento de algo intrínseco a si mesmo. É possível encontrar um exemplo expressivo dessa busca repetitiva através da análise feita por Nogueira (2000) sobre a obra do escritor Ariano Suassuna. A autora descreve Ariano como um Sonhador, alguém que, além de sonhar, planeja, elabora, cria, imagina, e vai à busca, na atual realidade, de algo que falta. Essa falta está atrelada à imagem do pai, uma imagem construída e determinada em cima, não apenas do real, mas também de elementos simbólicos e imaginários. É, no mínimo, curiosa essa descrição do autor (Ariano Suassuna) como um sonhador, uma vez que o sonho visto sob o prisma da Psicanálise tem como matéria prima o desejo, o que falta (Freud, 1900): não seria por acaso que o pai, na obra de Ariano Suassuna, se apresenta como um grande representante da busca/falta que se esconde atrás de uma produção brilhante. Talvez seja por isso que Castello (1999) descreve seu trabalho O Inventário das Sombras, como uma procura pelo que não é declarado pelos escritores, justificando essa procura através da crença de que os escritores carregam sonhos além de suas forças. É por isso que o trabalho do cientista / pesquisador / autor, nunca tem um fim, e sua relação com o que produz está sempre inacabada – um projeto concluído é sempre justificativa para um outro que vai começar; uma questão respondida, sempre é argumento para uma outra que se aproxima. Paz (1998) acredita que verdadeiramente existe uma relação entre a vida e a obra do autor, sendo que essa relação de forma nenhuma é simples: a vida não explica inteiramente a obra e a obra não explica a vida em sua totalidade, entre uma e outra há uma fenda, um vazio. Justamente esse vazio é que permite a continuidade do trabalho, da produção; é o que sustenta a vida do cientista: essa busca incessante... A busca de resposta através da ciência parte da idéia de que a ciência é a fonte única e verdadeira de certeza e de que só através dela é que o ser humano pode obter segurança e liberdade. Ilya Prigogine, em seu ensaio O Reencantamento do mundo, faz uma reflexão diante dos questionamentos sobre a utilidade da ciência, deixando de lado a idéia de certeza, como algo extremamente pessimista. É importante chamar a atenção para o fato de que essa idéia dominou a ciência durante séculos, firmada em duas premissas complementares, a teológica (uma ciência de certeza, como uma divindade, não admite dúvida) e a de poder (uma ciência de poder tem um mundo manipulável à vontade própria). Quando o sujeito se propõe a pesquisar e, consequentemente, fazer ciência, ele pode incluir nessa proposta a possibilidade de incutir em sua prática essa certeza científica e com isso avançar em termos de status quo para um lugar inquestionável de poder. Esse lugar, dentro de sua aparente completude, serviria para mascarar qualquer resquício de falta ou lacuna simbólica na vida desse sujeito. Em outras palavras, a certeza científica, entre outras possibilidades, pode ser empreendida como instrumento de negação de um dos elementos que também compõe o homem de ciência: a vida pessoal, carregada de desejos, que impulsionam as escolhas e conduzem seus passos. Dentro da subjetividade intrínseca a cada um, é justamente a incompletude que move, que desperta a curiosidade, que torna legítimo o espírito científico (Bachelard, 2005). A certeza, qualquer que seja, científica ou não, imprime uma estagnação e, como afirma Prigogine, impõe algo de pessimismo em sua conduta. O próprio Prigogine sugere que se busquem novas saídas, que se considerem novas possibilidades, entre elas, a apropriação de uma nova linguagem para a ciência, onde a certeza científica não impere como objetivo absoluto. O desespero do meio científico por essa certeza está atrelado à crença de que a verdade científica absoluta é algo completamente alcançável e é o que legitimamente move o trabalho do cientista. Latour e Woolgar (1997) descrevem, através de uma interessante experiência vivenciada em laboratório, como essa busca pela verdade científica – única verdade considerada real – transforma as relações, não só entre as pessoas, mas nelas mesmas, e conduz a vida de cada um a um emaranhado, construído de competição, desconfiança, ambição e angustias. Há uma busca incessante e compulsiva por resultados inéditos e melhores do que os dos concorrentes, por verbas e financiamentos cada vez maiores, pelo frágil reconhecimento da comunidade cientifica. Latour ilustra essa realidade através da comparação da produção de fatos científicos com um quebra-cabeça quase terminado, que a cada dia tem a possibilidade de ser completado. Sabe-se, baseado no movimento da própria ciência, que esse quebra-cabeça nunca será completado: por mais que se 95 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 93-98 adquira conhecimento, há sempre mais o que descobrir, entender, saber. No entanto, a ilusão da possibilidade de completude é imprescindível para se obter estímulo, para se mover diante de qualquer desafio: é preciso que se acredite que se vai alcançar a completude, para que se possa lutar por ela. Não é por acaso que Atlan (2004) conclui que a existência humana, baseada na ilusão de liberdade, se firma numa busca de perfeição cada vez maior. Obviamente, o homem de ciência, o pesquisador, em seu meio de trabalho/produção, abomina a idéia da existência de uma ilusão relacionada à sua prática. É como se fosse possível alijar a subjetividade, a emoção, o simbólico do mundo de conceitos, fórmulas, concretudes e certezas, compreendido como real. Edgard Morin (2005) chama a atenção para o apego exagerado a esse mundo dito real, onde não há espaço de reflexão, de questionamentos mais profundos, espaço para o simbólico. Essa exclusão expõe a tendência de se acreditar que o pensamento empírico/técnico/racional teria uma linguagem mais clara, mais condizente com a verdade, não contaminada pelo mítico/mágico/simbólico. Para Morin, a excessiva clareza mata a verdade e a excessiva obscuridade a torna invisível. Ele procura mostrar que o pensamento empírico/técnico/racional é, ao mesmo tempo, concorrente e antagônico ao pensamento simbólico/mitológico/mágico. “Nas nossas vidas quotidianas, coexistem, sucedem-se, misturam-se crenças, superstições, racionalidades, tecnicidades, magias, e os nossos objetos mais técnicos (automóvel, avião) estão, por sua vez, embebidos de mitologia” (Morin, 2005, p. 159). Introduz-se aí a idéia de mito1 relacionado à ciência. Obviamente não se vai aprofundar essa relação, muito menos o significado/sentido de mito para o mundo ocidental. No entanto, é possível, partindo do que foi apresentado por Morin (2002a), refletir a partir de um novo prisma. Quando se atribui exagerada expectativa às descobertas científicas ou ao resultado do trabalho de um artista ou político, se está misturando mito e razão: o exagero da espera ou a supervalorização de trabalho estão carregados de símbolos e crenças, ao mesmo tempo em que trazem objetividade e concretude. A busca da cura de uma grave enfermidade é por vezes contaminada com o desejo do cientista de exterminar o mal e consagrar-se como herói. Morin afirma que a própria razão e a própria ciência podem ser apreendidas como mitos na medida em que se impõem como entidades supremas que se encarregam da Salvação da Humanidade: o pensamento mitológico é carenciado se não for capaz de acender a 1 De Mythos, que, significa, na origem da palavra, discurso; discurso da compreensão subjetiva, singular e concreta de um espírito que adere ao mundo e o sente a partir do interior (Morin, 2005, pp. 149). objetividade. Edgard de Assis Carvalho (2004) também trata desse embricamento ao debruçar-se sobre o par de opostos natureza e cultura. Esse homem – homo complexus2 - não pode ser dissociado do meio em que vive nem da história, sua e da sociedade em que está inserido. É isso que será abordado a partir de agora. II A epistemologia da ciência é construída a partir de realidades firmadas em épocas e contextos históricos específicos e diferentes (Chalmers, 1995). Não se pode dissociar as descobertas científicas e os avanços, grandes ou pequenos, da ciência, do meio em que foram produzidos e, principalmente, do sujeito/homem por trás dessa produção. O que significa que, para compreender os rumos que a ciência toma e o seu sentido próprio, é necessário uma tentativa de entender o próprio homem – tarefa que vem se arrastando por toda a história da humanidade, transitando da Filosofia à Medicina, da Antropologia à Psicanálise. Morin (2005), dentro dessa perspectiva, situa o homem historicamente como um ser que expressa sua cultura. Segundo ele é importante para compreender os pensamentos e atos dos indivíduos das diferentes culturas, reconhecer os contextos culturais e as motivações interiores de uma maneira complexa. No entanto, esclarece que compreender não significa explicar, uma vez que o conhecimento complexo admite um resíduo inexplicável. Numa tentativa de compreensão do homem, especificamente, do chamado homem que faz ciência, é possível fazer um recorte e chamar a atenção para o que conduz esse homem. É sabido que a partir de cada produção científica, existe algo que subjaz a conduta do pesquisador, não a conduta técnica e laboral, mas a conduta subjetiva que dá rumo moral às suas ações e ao resultado do seu trabalho. A essa conduta, é possível chamar de ética (Novais, 1992). Sendo o homem/cientista um ser conduzido por uma ética (ou melhor, deveria ser assim), a seguir serão feitos alguns comentários baseados em preceitos apresentados por Edgar Morin (2002b) que mostram aspectos éticos que colocam o homem como um ser complexo e a vida como um leque aberto constituído de infinitas possibilidades de religação. O autor propõe uma ética que considere a cultura psíquica do ser humano e introduz a idéia de que se deve desconfiar dos 2 Ser inscrito numa longa ordem biológica, produtor de cultura. 96 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 93-98 próprios olhos, chamando a atenção para o fato da interpretação estar sempre no que parece objetivo e evidente. Ampliando essa idéia para o campo da produção científica, torna-se difícil reconhecer tal característica, já que no campo científico, a desconfiança dos próprios olhos é mascarada pela rigidez da objetividade, ancorada na credibilidade atribuída à dimensão quantitativa (aos números) e na dita necessidade de impor uma verdade científica segura e irrefutável. No entanto, levar em conta a possibilidade de interpretação vinda do outro e de si próprio, pode ser visto, não como uma maneira de fragilizar resultados ou subjetivar o que necessariamente tem que ser objetivo, mas sim como uma maneira de abrir novas possibilidades de compreensão de resultados, e também de considerar o saber vindo do outro. Essa atitude conduz à ética da responsabilidade, onde o indivíduo/cientista é totalmente responsável pela sua produção (que inclui também palavras e ações), mas não é responsável pelas interpretações nem as conseqüências advindas de seu uso – a ética da responsabilidade protege o indivíduo, sem deixar de colocá-lo numa situação complexa em relação aos próprios atos. Além da ética da responsabilidade, Morin também discorre sobre a ética da religação. Sendo o homem um ser de falta (Freud, 1998), a ética da religação, não só reconhece essa condição, como sugere uma maneira possível de lidar com ela. Se o homem é um ser faltante, ele é faltante em todos os aspectos da vida: nas relações familiares, sociais, no trabalho. E é justamente essa falta que lhe move, que conduz a busca essencial da vida. A busca da ciência, do cientista, também é movida por essa falta; o empenho de dar conta de determinado campo do saber, de responder a questões específicas, de avançar nas investigações e nas análises, não pode ser apreendida como uma tentativa de suprir essa falta, de preencher um pouco àquilo que dá sentido à existência. Nessa perspectiva, pode-se pensar a fragmentação e as especialidades do conhecimento científico como uma das tantas formas de possibilitar o preenchimento dessa falta: quanto mais reduzido o foco sobre este objeto de estudo mais fácil será dar conta do empreendimento. Esse excesso de fragmentação, Morin identificou como perverso, como algo que impossibilita a religação de conhecimentos. Indo um pouco mais além, pode-se dizer que essa fragmentação causa a ilusão da facilidade de preenchimento da falta: quanto mais se fragmenta, mais se fragmenta... mais o conhecimento adquirido se isola e se distancia do mundo e da vida. Mas como a religação de saberes poderia contribuir no preenchimento dessa falta, no facilitar dessa busca incessante? Seria ingênuo pensar num preenchimento total da falta que move o homem ou da busca de conhecimento e consequentemente de realização que move a ciência. Esse preenchimento total é uma espécie de utopia perseguida. Através da ética da religação, Morin ressalta que a maneira de lidar com essa falta/busca é uma expressão da condição humana na medida que pode tornar o homem mais tolerante, mais vigilante e capaz de interagir com o outro. A ética da religação considera como princípio não arrancar ninguém da sua condição humana e está baseada em três tipos de tolerância: direito do outro em exprimir-se; opção democrática pessoal; considerar que há uma verdade na idéia antagônica à idéia de cada um. Esse tipo de tolerância faz com que o sujeito possa agir de maneira que o outro possa aumentar o número de escolhas possíveis, ou seja, pode-se afirmar no caso específico do cientista que, quanto maior o número de escolhas, maior a possibilidade de preenchimento das faltas/ buscas emergentes e consequêntemente maior a condição de se encontrar novos caminhos que levam a novas faltas/buscas num movimento ad infinitum. Esse aumento de formas de escolhas amplia também as maneiras de compreensão desse homem/ciência. Porém, não se pode esquecer o que foi dito anteriormente: dentro da compreensão humana, o conhecimento complexo admite um resíduo inexplicável – algo que escapa, que jamais será alcançado pois a falta é condição sine qua non da vida. Cabe, enfim, ressaltar que a religação de saberes contribuiria para compreender e trabalhar melhor as relações entre as diferentes áreas e o conhecimento científico, colocando o cientista/pesquisador em um lugar mais próximo do que ele verdadeiramente é – humano – deixando em aberto proposta de se investir na sutura de conhecimentos, na integração de áreas, para que se possa fomentar a construção de novos caminhos e possibilidades de saber. Referências Atlan, H. (2009). A ciência é inumana? Determinismo e livre necessidade. São Paulo: Cortez. Calvino, Í. (1993). Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras. Carvalho, E. de A. (2004). Valores Universais e Ética Intercultural. In G. de C. & Florence Dravet, F. (Orgs.), Sob o Céu da Cultura (pp.39-58). Brasília: Casa das Musas. Chalmesrs, A. F (1995). O que é ciência afinal? São Paulo: Editora Brasiliense. Castello, J. (1999). Inventário das Sombras. Rio de Janeiro: Record. Freud, S. (1998a). A Interpretação dos Sonhos (1900). In Obras Completas (Vol. IV), Rio de Janeiro: Imago Editora. Freud, S. (1998b). O id e o ego: O grande reservatório da libido (1923). In 97 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 93-98 Obras Completas (Vol. XIX), Rio de Janeiro: Imago Editora. Latour B., & Woolgar, S. (1997). A Vida de Laboratório – a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. Morin, E. (2005). O Método 6 – Ética. Porto Alegre: Sulina. Morin, E. (2002a). O Método III – O Conhecimento do Conhecimento. Lisboa: Europa-América. Morin, E. (2002b). A Religação dos Saberes. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Nogueira, M. A. L. (2000). O Cabreiro Tresmalhado – Ariano Suassuna e a Universalidade da Cultura. São Paulo: Palas Athena. Novais, A. (1992). Ética. São Paulo: Companhia das Letras. Paz, O. (1998). Prólogo-História, Vida e Obra. In Sóror Juana Inês de la Cruz – As Armadilhas da Fé. São Paulo: Madarim. Prigogine, I. (1999). A Sociedade em Busca de Valores. Lisboa: Instituto Piaget. Tarride, M. I. (1998). Saúde Pública – Uma Complexidade Anunciada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. Recebido em agosto/2011 Revisado em setembro/2011 Aceito em novembro/2011 98 ESTUDO TEÓRICO A técnica das entrevistas iniciais partindo do seriado “Em terapia” Initial interviews technique starting of the television series “In treatment” Leonardo Della Pasquaa1 Resumo: A partir do seriado americano “In treatment”, o autor utiliza um episodio da série para discorrer sobre questões teóricas referentes às entrevistas iniciais em psicoterapia. As idéias apresentadas servem para refletir criticamente sobre como a profissão é exercida. Apesar da dificuldade do caso, pode-se afirmar que Paul Weston foi mobilizado por aspectos internalizados de conteúdo paterno. Convém lembrar, que, no dia da entrevista, o pai do psicoterapeuta está hospitalizado, em estado terminal numa clinica geriátrica e Paul, nunca foi visitá-lo. No decorrer da segunda temporada, o pai de Paul virá falecer e o terapeuta não ficará indiferente ao fato. Esses aspectos transferenciais e contra-transferenciais comprometeram a escuta e as intervenções do psicoterapeuta da série, que mostrou dificuldades em exercer sua função terapêutica de modo eficaz. Palavra-chave: Entrevistas iniciais; Tratamento psicoterápico; Transferência; Contratransferência Abstract: From the American series In Treatment the author uses an episode of the series to discuss theoretical issues related to the initial interviews in psychotherapy. The ideas presented serves to reflect critically how the profession is exercised. Despite the difficulty of the case, one can say that Paul Weston was mobilized by transference internal aspects of parental content. It should be remembered, that on the day of the interview, the psychotherapist father is hospitalized, terminally ill in a geriatric clinic and Paul never visited him. During the second season, Paul’s father died and the therapist will not be indifferent to the fact. These aspects of transference and counter-transference committed to listening and interventions of the psychotherapist in the series, which struggled to exert their therapeutic function effectively. Keywords: Initial interviews.; Psychoterapy treatment; Transference; Countertransference a Psicólogo; Psicanalista *E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 99 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 99-106 In Treatment é um seriado americano dirigido por Rodrigo García, filho do escritor colombiano Gabriel García Márquez. A série televisiva é uma refilmagem da versão israelita Be’Tipul, criada por Hagai Levi. Em palestra no Roma Fiction Fest 2010, o criador do seriado conta que já existem 13 produções da série sendo rodadas ao redor do mundo, desde simples transposições dos episódios para o idioma do país, até as verdadeiras adaptações culturais do roteiro, em relação a vida sócio-econômica-cultural dos personagens. Os episódios em Israel eram submetidos à supervisão de um reconhecido psicoterapeuta do país, que auxiliava na construção do roteiro. Na série americana, Hagai Levi serviu de consultor, um produtor-executivo do programa. Os episódios duram em média a metade do tempo de uma sessão clássica de terapia, ou seja, 23-24 minutos. Esse tempo é também a metade do tempo de um episódio padrão dos seriados, que duram entre 40-45 minutos. A série se passa em um consultório de psicoterapia, onde o terapeuta Paul Weston (interpretado por Gabriel Byrne) atende seus pacientes. Cada dia da semana o psicoterapeuta de orientação psicanalítica atende um paciente diferente. Na Sextafeira é o dia da supervisão-psicoterapia pessoal de Paul, com sua antiga terapeuta Gina, interpretada por Diane Wiest. O consultório de Paul é uma peça de sua própria casa, uma espécie de santuário para ele, onde ninguém de sua família deve tomar parte. Paul é casado e tem três filhos: um filho e uma filha adolescente, além de uma menina pré-adolescente. Seu isolamento profissional dentro da própria casa acaba gerando uma crise conjugal que terminará em divórcio. Paul apresenta dificuldades transferenciais e contra-transferenciais com seus pacientes, o que influencia a sua prática clínica e sua vida pessoal. A série americana tem três temporadas: as duas primeiras são uma transposição da série israelita; a terceira e última temporada é totalmente nova, transformando bastante o produto original. Na palestra de Hagai Levi em Roma, ele ressalta que a série se transformou um sucesso somente após duas ou três semanas de exibição, onde mais pessoas falavam do seriado do que os que realmente o assistiam. Isso teve uma grande repercussão em Israel, pois a procura por psicoterapia aumentou muito durante a exibição da série. Mais pessoas falavam de psicoterapia, mais pessoas resolveram procurar um psicoterapeuta. Perguntado sobre o que pensava que Freud poderia dizer a respeito da série, Levi diz que o método de terapia apresentado é diferente do proposto por Freud, mas crê que ele ficaria satisfeito com o que estaria representado. O que é questionável, pois Freud nunca quis que a psicanálise fosse filmada, porque acreditava ser impossível representar fielmente o que se passa numa sala de análise (Lacoste, 1992). A série não apresenta exatamente o que ocorre em psicoterapia, pois as sessões reais de terapia não são um produto a ser vendido para a grande massa assistir. Nem tudo é interessante e chama a atenção. Hagai Levi sabe bem disso, afirmando que a série não é uma sessão de psicoterapia filmada, mas se aproxima significativamente, cometendo algumas distorções do método terapêutico. É interessante pararmos para pensar sobre esse ponto: em 1926 Karl Abraham e Oliver Sachs, membros do grupo seleto de Freud, serviram de supervisores ao diretor alemão Georg Wilhelm Pabst, para a realização do filme Geheimnisse einer Seele - Os Mistérios da Alma. Freud jamais aprovou o projeto. Eram os anos do cinema mudo e o paciente era um sujeito com uma série de obsessões e compulsões. Os sonhos do paciente foram representados plasticamente, sem a presença da palavra, só com imagens. Nesses anos – anos do nascimento do surrealismo – Freud negou a André Breton a relação existente entre o surrealismo e a psicanálise. “Um Cão Andaluz”, de Luis Buñel e Salvador Dali é de 1929 e é inegável a relação existente entre os dois movimentos. Um procura representar o inconsciente, o outro – a Psicanálise – procura analisá-lo. O filme é mudo e apresenta elementos oníricos em sua forma mais pura, isto é, de forma visual, sem as palavras. Qual a diferença do enquadre psicanalítico freudiano para o enquadre apresentado na série? Em primeiro lugar a freqüência semanal das sessões. Freud via os pacientes diariamente, descansando somente no Domingo. Paul Weston atende todos os pacientes, sem exceção, uma vez por semana. Além disso, a técnica utilizada por Paul apresenta elementos de outras escolas de terapia, como a humanístico-existencial, tão famosa nos Estados Unidos e difundida por autores célebres como Irvin D. Yalom. No método psicanalítico propriamente dito, o utilizo do divã é indicado. Porém análise e psicoterapia de orientação psicanalítica não são a mesma coisa. A análise implica em alta freqüência semanal de sessões e uma atenção à regra básica da psicanálise: a associação livre, o que transforma a comunicação entre analista e paciente diferente das formas cotidianas de comunicação (Etchegoyen, 1989). Apesar das semelhanças na técnica, a utilização das mesmas é diferente – assim como os resultados. Outro aspecto importante a ser ressaltado na fala de Hagai Levi é sua preocupação com o rosto dos personagens. Conforme ele mesmo diz: “como nos episódios acontece pouca coisa de concreto, apenas uma pessoa sentada frente à outra, em uma sala de psicoterapia, eu precisava que o rosto dos personagens 100 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 99-106 capturasse o espectador”1. Já na psicoterapia, é o método de trabalho que captura o paciente, não o rosto carismático do terapeuta. Na análise propriamente dita ele é tirado de cena. Entra em ação o divã, a introspecção, a regressão. É-lhe possível utilizar produtivamente a própria neurose: a análise vai ensinar-lhe a se auto-analisar. Os sonhos e sua interpretação são fundamentais neste ofício. Freud e sua auto-análise nos mostraram que o homem pode ser mais livre, desde que tenha motivação e interesse em se auto-conhecer, enfrentando e aprendendo com os próprios conflitos, não fugindo deles pelo medo da dor psíquica (Jones, 1975). A série serve para pensarmos alguns aspectos técnicos da psicoterapia, em seus acertos e em seus erros. Para exemplificar essas questões, proponho trazer para análise um único episódio do seriado: a 1ª entrevista com um paciente, para pensarmos sobre a técnica das primeiras entrevistas em psicoterapia de orientação psicanalítica. O paciente em questão é um adulto maduro de nome Walter (interpretado por John Mahoney), o 4° paciente do seriado na 2ª temporada. Todas as conclusões tiradas nesse artigo foram o produto da análise dos episódios de todas as temporadas. Aqui é apresentado apenas o 4º episodio da segunda temporada,trf por questão de espaço e praticidade na apresentação do material. Descrição do episódio e comentários iniciais O tema exposto faz referencia ao Seriado “Em Terapia – In Treatment”, 2ª temporada, 4º episódio através da primeira entrevista com Walter, diretor-executivo de uma grande empresa e veterano da guerra do Vietnã. O episódio começa com Paul Weston (o terapeuta), deixando um recado na secretária eletrônica do telefone de Rosie, sua filha adolescente. Quem acompanhou a série sabe que o personagem interpretado pelo ator Gabriel Byrne separou-se da mulher e mudou-se de Washington para o Brooklyn, em Nova York, onde cresceu. Após a vinheta do seriado, Walter entra, dá a mão à Paul e reclama da falta de elevador no prédio. Em seguida pergunta onde deixar o casaco. Paul diz que pode deixá-lo na sala de espera. Walter não aceita, preferindo apoiar o casaco, com bastante cuidado, no sofá e ir sentar-se numa das poltronas da sala. Walter: “É o problema de se ter coisas boas: você tem que se preocupar com elas!” Já neste primeiro fragmento de sessão podemos levantar 1 Entrevista coletiva sobre a série In treatment. Romafictionfest 2010. Created by Amos – Entrevista a H. Levi. http://youtu.be/LxK-CTfmQb4. hipóteses sobre o que trouxe o paciente até Paul. Podemos também ver sinais sobre o tipo de relação tranferencial que o paciente estabelece, que tipo de imagos parentais Paul será solicitado a representar. Walter diz logo o que lhe está acontecendo: ele está sempre preocupado, agora a níveis que não consegue mais suportar. A angústia o paralizou, impedindo que ele produzisse o necessário para a sua posição. Walter é um homem maduro, em final de carreira. Mostra-se imediatamente vigil e crítico com o que está a sua volta (falta de elevador no prédio) e é demandante em relação ao terapeuta. O pedido sobre onde por o casaco bom e caro pode demonstrar o quanto ele está preocupado em saber se ali vai ser ajudado, se pode confiar no terapeuta, se ali vai ser um local onde ele pode deixar as suas coisas boas e ruins. Além disso tem a questão de sua idade e o fato de estar no fim da carreira. Será que Walter está preocupado com a aposentadoria e o que fazer com o tempo livre que terá? Como será reorganizada sua energia pulsional? É importante fazer perguntas nesse momento, sem a ânsia de encontrar as respostas imediatamente. O paciente já funciona desta maneira, não devemos nos sugestionar por seu modo de funcionar. Após relatar a conversa com sua mulher Connie, sobre os motivos de comprar um casaco tão caro, Walter ajeita-se na poltrona. A esposa pensa que um diretor-executivo deva usar roupas condizentes com a própria função. Ficam ambos alguns segundos em silêncio... Walter: “por onde começamos?” Depois de dizer que é necessário saber algumas coisas do paciente, o terapeuta faz uma pergunta comum na 1ª entrevista: Paul, o terapeuta pergunta “O que o trouxe aqui?”, utilizando essa intervenção para abrir a entrevista. Como terapeuta, faz-se uso dessa quando o paciente não fala e precisa de auxílio para tal. Neste caso pode ser útil, mas na maioria das vezes é dispensável. Ele poderia assinalar o fato do paciente estar preocupado, pois já tinha indícios sobre o que poderia ser investigado. Isso seria possível somente se Paul tivesse percebido esse aspecto naquele momento. O que seria possível se sua mente estivesse esperta ou mesmo, alguns anos de prática em psicoterapia. Se não ocorreu a Paul a relação entre a preocupação e o motivo da consulta, ele precisa primeiro ter uma idéia do que pode estar acontecendo e precisa que o paciente fale sobre sua experiência emocional naquele momento de vida, antes de levantar alguma hipótese. Uma verbalização simples, como “e então... (?)”, pode ajudar o paciente a começar a falar. É importante recordar que, já em 1913, Freud em seu artigo técnico “Sobre o início do tratamento” pergunta: “em que ponto e 101 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 99-106 com que material deve o tratamento começar?(...) Deve-se deixar que o paciente fale e ele deve ser livre para escolher em que ponto começará. Desta maneira dizemos-lhe: ‘Antes que eu possa lhe dizer algo, tenho de saber muita coisa sobre você; por obséquio, conte-me o que sabe a respeito de si mesmo’” (Freud, 1988, p. 149). Com a pergunta “o que te trouxe aqui?”, sabe-se algo mais sobre Walter: ele fica surpreso em saber que Paul não sabe quem é ele! Sendo este, o segundo paciente onde tal situação ocorre na série. Alex – o piloto que se suicidou na 1ª temporada – também ficou perplexo porque Paul não sabia quem ele era. Como Alex procurava o “the Best”, o melhor deveria saber quem ele era. Com Walter essa situação volta a ocorrer. São esses exemplos de pacientes narcisistas? Vejamos: Walter: “nunca lê a sessão de negócios? Folha em branco? Sério?” – fica decepcionado: “se acham superiores aqueles que não lêem a sessão de negócios”. Paul percebe a desconfiança de Walter e diz corretamente que tudo o que ele disser sobre seu trabalho será sigiloso. Walter pergunta se pode ter isso por escrito – depois dizendo que não era necessário. Testa as reações de Paul e diz também sentir-se em uma reunião constante. Sabe-se então que a preocupação de Walter produziu um sintoma: a insônia. O que será que está produzindo tanta ansiedade? Porque ele não consegue mais dormir nem sonhar? Walter reage de modo persecutório quando Paul assinala o quanto ele gosta da mulher, Connie: “o que mais descobriu sobre mim?” – pergunta desconfiado. Diz ter tentado tomar Xanax e Ambien, receitados pelo médico da família, em nome de Connie. Isso foi feito para que ninguém pudesse rastrear o fato dos remédios serem para ele. Desistiu de tomá-los, pois não funcionavam ou o deixavam confuso: “Não posso ficar assim. Devo ser capaz de acordar a qualquer hora e estar em alerta! (...) Estou acostumado com estresse e com crises.” Sua mulher Connie brinca com ele, chamando-o de super-homem. O paciente parece tomado por pensamentos persecutórios. Ao que o terapeuta pergunta: Paul: “quando a insônia começou?”. Walter: “que diferença faz?” – fica em silêncio por alguns instantes e fala do livro “Blink – A decisão num piscar de olhos”, de Malcolm Gladwell (2005), onde a teoria de fundo é sobre um especialista que pode identificar um problema num piscar de olhos. É como se dissesse: se você é um especialista, já sabe o que tenho, mas não quer me dizer e fica perdendo tempo com todo esse falatório. Não vim aqui para expor minha vida para você. Vim para resolver meu problema. Paul fala que o processo terapêutico leva tempo, mas Walter não acredita e é ainda mais explícito: “Você tem muita experiência. Use-a! Não fique enrolando. Diga qual é o meu problema e o que eu devo fazer! Se precisar pagar um extra, ok!” – diz o paciente incomodado e irritado com o terapeuta. Está amedrontado. Quer uma solução imediata. É um sujeito do mundo contemporâneo, tem pressa. Esse modo de viver aumenta a sua já elevada ansiedade. Walter: “o que acontece é que preciso estar no meu melhor nível e não consigo isso, uma vez que não consigo dormir. Não sei como o meu problema pode ser mais claro que isso!” – diz o paciente. O que ele não sabe é que a questão não é tão simples assim. Temos que entender o que está acontecendo ao paciente para podermos ajudá-lo. Ele também precisa disso para melhorar. Não é possível começar pelo fim. Walter tem que sofrer uma desilusão em relação ao tipo e tempo de intervenção. Vai ser frustrado na demanda de resultados imediatos. “Na verdade, a pergunta em relação à duração do tratamento é irrespondível” (Freud, 1988, p.143). Se sua experiência emocional não tivesse afetado seu trabalho, provavelmente ele jamais estaria ali, tendo que dizer coisas muito difíceis para um desconhecido. É um baque ao narcisismo de Walter ter que estar naquela sala com Paul. Em relação à seleção de pacientes, Freud [1913] refere que quando conhece pouco um paciente, aceita vê-lo apenas por um período de uma ou duas semanas, numa espécie de ‘tratamento de prova’. “Se se interrompe o tratamento dentro deste período, poupa-se ao paciente a impressão aflitiva de uma tentativa de cura que falhou. Esteve-se apenas empreendendo uma sondagem, a fim de conhecer e decidir se ele é apropriado para a psicanálise” (Freud, 1988, p.140). Etchegoyen (1989) nos ensina que uma norma básica da entrevista, que também faz parte de sua técnica, é a de facilitar a livre expressão dos processos mentais do paciente, o que não se consegue com um enquadre formal de perguntas e respostas. Como nos diz Bleger (1980), é bom diferenciar anamnese, interrogatório e entrevista. A entrevista pretende ver como funciona o indivíduo e não como ele diz que funciona. O que aprendemos com Freud é, justamente, que ninguém pode dar uma informação fidedigna de si mesmo. “Se pudesse, a entrevista não teria razão de ser” (Etchegoyen, 1989, p.28). A entrevista psicológica quer averiguar o que o entrevistado não sabe sobre si mesmo. Sem desqualificar o que ele possa dizer, vai nos ilustrar o que podemos observar no curso da interação. Paul intervém desde o começo da entrevista, tendo a 102 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 99-106 rejeição do paciente. Ele acertadamente passa a investigar a relação de Walter com o trabalho e insiste em saber quando a insônia começou. Walter não lembra. Passa a falar da filha Natalie, a caçula, que tem grande diferença de idade em relação aos irmãos. Walter refere-se a ela dizendo que desde cedo ela tinha pressa: nasceu prematura, falou cedo, andou cedo. Agora ela está numa clínica na Ruanda, país do continente africano. Neste momento Walter pensa ter achado o motivo: “é esse seu diagnóstico rápido? Natalie?” – diz o paciente. O comportamento reticente e cauteloso de Paul, faz com que Walter pergunte, com um chiste, se o terapeuta não está tentando mantê-lo ali para ganhar mais dinheiro em consultas adicionais. Walter não conhece a relação entre a insônia, as preocupações de seu trabalho e os pensamentos que envolvem sua filha Natalie, vivendo em Ruanda. Pensa ter achado a resposta para seus problemas: trazer a filha de volta da África! Desconfia que Paul seja um charlatão, que quer roubar seu dinheiro. Freud aponta em relação duração do tratamento: “Se se propôs um tratamento experimental de algumas semanas, pode-se evitar fornecer resposta direta a essa pergunta, prometendo-se fazer um pronunciamento mais fidedigno ao final do período de prova” (Freud, 1988, p.143). É preciso avaliar antes de prescrever! Paul decide dizer a verdade. Ainda não sabe o que está acontecendo com Walter. Sabe que Walter está com um quadro de ansiedade e que conversar pode ajudar a descobrir o que está causando a angústia. Walter após perguntar se deve dizer o que lhe passa na cabeça dispara: “vou dormir quando morrer”. Não percebe a importância do que diz. Nesse exato momento, recebe uma mensagem via SMS, fato este que interrompe o curso do discurso criado no campo terapêutico. O paciente lê a mensagem e diz que sempre tem que resolver tudo, que gostaria que alguém pudesse resolver alguma coisa sem precisar dele. Como entender esse fenômeno dentro da consulta? O que deve fazer o terapeuta? Ambos ficam em silêncio. Walter fala que gosta de aviões porque lá pode estar tranqüilo, em silêncio. Ele fica tranqüilo quando está em transito. Interessante! Mais mensagens telefônicas chegam... Paul: “está tudo bem?” Walter: “nunca!” Paul pergunta se Walter conta com alguém para falar de seus problemas. Walter diz que não, que não quer preocupar Connie, seus filhos não querem ouvir os problemas de um velho, até porque não entenderiam: “ganharam tudo fácil!”. Só Natalie é diferente, repete ele. Neste momento Walter pede para ler um email da filha, desejando saber a opinião especializada de Paul depois. Em síntese, Natalie conta as dificuldades da vida em Kigali, capital da Ruanda, do quanto sofre com as histórias difíceis dos outros e o quanto está aprendendo com a experiência de ajudar as pessoas. Walter tem uma idealização das capacidades do psicoterapeuta. Pensa que o terapeuta tenha poderes mágicos, que sabe imediatamente quais são os problemas dele e o que ele deve fazer para resolvê-los. Paul frustra as expectativas de Walter e ainda diz que a filha parece perfeitamente saudável. Walter não se sente apoiado em ir até Kigali buscar a filha e pergunta indignado se Paul não ficaria preocupado com a filha lá. “Há uma diferença tênue entre coragem e estupidez” – diz Walter enfurecido. Pensa que Paul está agindo como estúpido. “Nada na vida é tão caro quanto à doença – e a estupidez” (Freud, 1988, p.148). Na transferência, Paul transformou-se precocemente numa das imagos de pessoas estúpidas a não serem levadas em consideração. Em parte isso é devido ao modo do paciente funcionar e em parte porque Paul interviu precocemente, extrapolando suas funções na 1ª entrevista. O primeiro objetivo do tratamento é fazer o paciente se ligar a ele e a pessoa do terapeuta (Etchegoyen, 1989). Para isso é preciso dar-lhe tempo. Alguns pacientes exercem intensa pressão para induzir a direção das sessões, onde a abstinência tem que ser exercida com firmeza. Paul precisa frustrar algumas expectativas de Walter, mas acaba discutindo com ele e tem dificuldades em lidar com a quantidade e intensidade dos conteúdos projetados na sua mente. Coloca-se em oposição ao paciente. Walter não se sente entendido. E tudo isso na primeira entrevista! Freud (1988), em seu trabalho“Sobre o inicio do tratamento”, refere que se o terapeuta demonstrar interesse genuíno pelo paciente, se dissipar as resistências que vão ocorrendo no início e evitar qualquer equívoco que possa surgir, o próprio paciente fará a vinculação do terapeuta com uma das imagos das pessoas por quem estava acostumado a ser tratado com afeição. Ao invés disso Paul diz, “a sua filha parece estável. Você deve confiar nela.”. O terapeuta já quer dizer o que Walter deve fazer, sem apoiá-lo! Walter não gosta. Chegou até ali repleto de resistências, apresentando um comportamento agressivo (de tipo defensivo) desde o primeiro contato com Paul. Está em estado de alerta, alarmado com o que possa acontecer. Walter: “pago pela sua opinião.” Paul: “me pergunto Walter por que é importante que eu lhe apóie nisso?” – uma pergunta interpretativa de conteúdo transferencial sem a autorização do paciente. Precisa-se estabelecer um vínculo e uma aliança terapêutica 103 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 99-106 com o paciente, para que essa intervenção tenha algum efeito terapêutico. É importante não desvirtuar o sentido da entrevista. Se dermos apoio e perguntamos em demasia, tipo interrogatório, expressando simpatia manifesta, desvirtuamos o sentido da entrevista, convertendo-a em um diálogo formal, às vezes até em uma conversação tosca (Etchegoyen, 1989). O paciente sente-se agredido pelas palavras de Paul e diz: “não preciso da droga da sua permissão! Fiz uma simples pergunta. Tenho insônia, um problema sério, que não me deixa trabalhar. Eu cheguei a lhe perguntar o que fazer: exercícios mentais, técnicas de respiração e você me faz ler o email pessoal da minha filha! Eu nem te conheço!” – grita furioso enquanto se levanta, perguntando o quanto deve, pois quer ir embora. Neste momento, sente uma dor no peito e cai sentado na frente do sofá. Paul se aproxima preocupado e pergunta se ele está tomando alguma medicação específica, se quer que ele ligue para algum médico. Walter acena negativamente. Mostra concretamente através do corpo o quanto está mal. Walter: “você está bem Walter... você está bem.” – diz enquanto bebe um copo d’água. “Desculpe o susto. Eu sei que passa. Sempre passa” – diz assustado. Paul: “já aconteceu antes?” – pergunta preocupado. Walter: “isso vai embora.” – diz Walter enquanto sai da sala. Paul senta-se atordoado com o que aconteceu e fica parado pensando.Termina o episódio. Como entender esse último fenômeno? O que estaria representado nesse ataque? É pânico? Perguntas que nos fazemos, sem procurar respondê-las neste momento. É importante aceitar e não interferir na angústia inicial da entrevista. A situação é assimétrica, devido à função de cada um: um terapeuta e um paciente (Etchegoyen, 1989). Uma atitude reservada e cordial, contida e continente – não distante – faz parte do papel do entrevistador. Pode-se iniciar solicitando os dados de identificação do entrevistado, indicando o tempo que durará a entrevista, da possibilidade que esta não seja a única entrevista e que o paciente será convidado a falar. É importante considerar o sujeito que procura psicoterapia, não como paciente, mas como entrevistado, um paciente em potencial. Ele só será realmente um paciente que faz psicoterapia (no enfoque de orientação psicanalítica) após o estabelecimento de um vínculo terapêutico e do contrato de trabalho, onde serão discutidas as regras da terapia, número de sessões semanais, honorários, faltas, férias, etc. Uma questão que não foi discutida na entrevista apresentada e jamais aparece na série é a contratação do tempo e dos honorários do tratamento. “Pontos de importância no início do tratamento são os acordos quanto a tempo e dinheiro” (Freud, 1988, p.142). Falta toda a parte do contrato do período de avaliação e da psicoterapia propriamente dita. Não sabemos como foram contratadas as regras da terapia, nem se foram contratadas. Em um episódio com outra paciente da 2ª temporada, sabemos que Paul colocou um anúncio numa página da internet e que atende por convênios. Na 1ª temporada, Alex joga US$ 150,00 em cima da mesa de Paul ao final de uma sessão, e assim sabemos quanto custa a consulta. São as únicas referências que temos na série em relação a honorários. Freud (1988) se pergunta, em seu artigo de 1913 – “Sobre o inicio do tratamento”, quando devemos começar a fazer nossas comunicações ao paciente. Quando devemos revelar o significado oculto de suas idéias? Quando iniciá-lo aos procedimentos técnicos da análise? Etchegoyen (1989) e Zimerman (1997) consideram útil utilizar interpretações de prova nas entrevistas iniciais, não para modificar a estrutura do entrevistado, nem tampouco para induzir ao insight. Isto não é o que o entrevistado precisa. Tampouco é nossa função na primeira entrevista. O papel do profissional é“cumprir uma tarefa que o informe sobre um tema concreto e circunscrito: se deve fazer um tratamento e qual tratamento lhe convém” (Etchegoyen, 1989, p.32). É interessante usar a interpretação na 1ª entrevista para ver como o entrevistado reage. Uma interpretação simples e genérica, unindo as verbalizações do entrevistado no estilo: “Isso que acabas de dizer não lhe parece ter uma relação com...” pode nos informar sobre a capacidade de insight do entrevistado. Paul já havia tentado este tipo de intervenção quando referiu a importância da esposa Connie para Walter, ocasionando uma reação persecutória por parte do mesmo. Quando o terapeuta investiga a relação com Natalie, Walter utiliza suas indagações para achar uma solução rápida para seu caso. Não parece ter grande capacidade de insight. Parece desejar apenas livrar-se do sintoma da insônia (Etchegoyen, 1989; Zimerman, 1997). Paul deveria ter terminado seus testes por aí, mas ao invés disso utilizou uma pergunta interpretativa de conteúdo transferencial. Intervenção inadequada, que nos mostra o quanto Paul não utilize interpretações de prova, como nos falam R. Horacio Etchegoyen e David E. Zimerman. Paul utiliza verdadeiras interpretações desde as primeiras entrevistas, o que é um erro técnico. Isso pode ocorrer pelo formato televisivo do que é apresentado, pois o tempo televisivo deve ser rápido. Em televisão, os segundos são preciosos, não há tempo a perder. Porém pode ser também por que Paul não conseguiu conter dentro de si os conteúdos que Walter coloca dentro da própria mente, através da identificação projetiva. Paul está passando por um momento existencial delicado, longe da família, com 104 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 99-106 dificuldades de relacionamento com a filha Rosie. Freud, em seu trabalho sobre o inicio do tratamento, nos diz que é importante dar tempo ao paciente, para que ele vincule a figura do analista a uma das imagos das pessoas que o tratavam com afeição. Isso por um motivo bem específico: “É certamente possível sermos privados deste primeiro sucesso se, desde o início, assumir outro ponto de vista que não o da compreensão simpática, tal como um ponto de vista moralizador, ou nos comportarmos como representantes ou advogados da parte litigante – o outro cônjuge, por exemplo” (Freud, 1988, p.154). Outro fator a ser considerado é a motivação do possível paciente. Keidann e Dal Zot (2005) levantam algumas questões que podem nos orientar na definição da motivação das entrevistas iniciais. Essas perguntas foram inspiradas no trabalho de Peter Sífneos sobre psicoterapia breve, datado de 1976, que podem auxiliar no caso de Walter. 1. O paciente busca espontaneamente o tratamento? Walter chegou até Paul por insistência da mulher. 2. Mostra capacidade de reconhecer que seus sintomas são de natureza psicológica? Denota sofrimento? Walter pensa sofrer porque tem insônia e esse sintoma afeta a sua produtividade no trabalho. Não reconhece a natureza psicológica de seu sofrimento... 3. Há tendência à introspecção e a relatar os problemas de um modo honesto? Não parece ser introspectivo. Parece tomar decisões importantes todo o tempo, sem ser honesto em relação a seus problemas. Os remédios para ele são comprados em nome da mulher... 4. Tem vontade de participar ativamente do processo de tratamento? Indica querer saber somente a solução para seu problema de insônia. 5. Expressa curiosidade e desejo em se conhecer? Não. 6. Assume a responsabilidade de modificar as dificuldades que enfrenta, em vez de externá-las e projetá-las nos outros? Este aspecto parece projetado no outros: após ler um sms, Walter diz que gostaria que alguém resolvesse os problemas sem precisar dele, sem pensar na sua responsabilidade pelo que acontece na própria experiência emocional. Não é ele que centraliza as coisas ao redor de si mesmo, são os outros que precisam dele o tempo todo. 7. Apresenta expectativas realistas em relação à psicoterapia? Como afirmado acima, Walter espera resolver rapidamente seu problema de insônia. 8. Há disposição de investir tempo e dinheiro nesta busca? Parece que Walter tem mais disponibilidade financeira do que tempo e investimento psíquico para o processo. “A força motivadora primária na terapia é o sofrimento do paciente e o desejo de ser curado que deste se origina” (Freud, 1988, p.157). Mas o que se deve avaliar nas entrevistas iniciais? Com sua usual didática, Zimerman (1999) nos diz o que o analista deve levar em conta nos primeiros contatos com um paciente: 1) o tipo de encaminhamento; 2) a aparência exterior do paciente; 3) a realidade exterior; 4) o histórico familiar; 5) o grau de motivação; 6) a escolha e estilo de suas relações objetais reais, e; 6) a forma dele se comunicar – verbal e não-verbalmente. Perrotti (2003) afirma que curar significa continuar a verificar, a ver aquilo que os outros não vêem, na esperança que também eles possam ver. Discorrendo sobre a vida de Freud e o método terapêutico que o mesmo desenvolveu, o analista romano nos fala da ‘produtividade positiva da neurose’. Produtividade positiva quando essa se transforma em um instrumento direcionado ao conhecimento e a criatividade, quando o hábito da análise limita o dano no sujeito e inibe a agressividade nociva em relação aos outros. Produção positiva da neurose quando pode transformarse em uma auto-análise – como no caso de Freud – ou em uma análise bem conduzida pelo terapeuta, incrementando o progresso científico e o conhecimento in senso lato. Antes de intervir é preciso escutar, ouvir o que não é dito, intuir o que não é verbalizado. Assim poderemos ajudar o paciente a sentir as próprias sensações e sentimentos, auxiliando-o a escutar a si mesmo. Voltando o olhar para o mundo interno do paciente, sem esquecer do nosso mundo interno enquanto terapeutas, poderemos ‘instruí-lo’, poderemos auxiliá-lo a analisar o próprio funcionamento, estimulando-o a utilizar sua energia psíquica em um modo menos conflitivo, mais saudável e mais criativo para ele mesmo. Considerações Finais O criador do seriado, Hagai Levi, declarou em Roma que, em função da exibição de In treatment, mais pessoas se interessaram pela psicoterapia e muitas delas sentiram-se estimuladas a procurar um psicoterapeuta. Esse fato isolado já justificaria a realização da série. Numa profissão como a nossa, repleta de fantasias e preconceitos sobre sua prática, um programa televisivo sobre o assunto parece ter ajudado a desmistificar o que acontece em um tratamento psicoterápico. Nem o fato do terapeuta apresentar diversos conflitos e dificuldades pessoais influiu negativamente sobre a visão das pessoas sobre a psicoterapia. Pelo contrário, é possível que o fato de ser apresentado de uma forma humana – com crises existenciais e problemas pessoais, como qualquer pessoa – tenha contribuído a estimular mais pessoas a procurar um 105 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 99-106 tratamento. Afinal, é conhecida a curiosidade das pessoas em geral em relação a nossas vidas pessoais e o receio de serem interpretadas quando estão em contato conosco em situações sociais. Não é por acaso que existem 13 versões da série sendo filmadas atualmente no mundo. O seriado serve também para a discussão sobre a técnica da psicoterapia, assim como aspectos clínicos de diferentes situações psicopatológicas. Foi o que tentamos demonstrar neste artigo. As possibilidades de escuta são imensas. Diversos vértices de observação podem ser utilizados. As hipóteses levantadas devem sempre ser comprovadas clinicamente. Sem buscar uma compreensão imediata da totalidade da vida emocional do paciente, precisamos ter uma idéia de como funciona a pessoa que estamos recebendo em nosso consultório. Walter é uma pessoa difícil de atender. Repleto de defesas onipotentes, ele apresenta dificuldade em colocar-se em discussão. A escuta do terapeuta deve ser neutra para não nos misturarmos com os conteúdos do paciente. A impressão é que Walter mobilizou aspectos transferenciais, de conteúdo paterno, em Paul. O pai do terapeuta está internado em estado terminal numa clínica geriátrica, onde ele nunca foi visitá-lo. Mais adiante na temporada, irá morrer e Paul não será nem um pouco indiferente a isso. Nenhum homem é indiferente a morte do próprio pai. “O evento mais importante na vida de um homem” – disse Freud. A relação de Paul com o pai nunca foi tranqüila. Na segunda temporada, para complicar ainda mais a trama e mantê-la interessante para o público, sabemos desde o primeiro episódio que Paul está sendo processado pelo pai de Alex – seu paciente da primeira temporada que supostamente cometeu suicídio em um “acidente” com um avião da aeronáutica. Conhecendo a série, tem-se a impressão que (no que se refere a Walter) a escuta de Paul fica contaminada por questões não elaboradas em relação a seu próprio pai. Além disso, tem as questões referentes à própria filha de Paul, intencionalmente ressaltadas no roteiro como pano de fundo para esse primeiro episódio. Os roteiristas da série sabem o que fazem! Vê-se a mão do supervisor-psicoterapeuta no roteiro. Basta lembrarmos como o episódio começou: Paul deixava um recado telefônico na caixa postal de Rosie, sua filha. Enquanto vemos ele fracassar na tentativa de falar com ela, podemos notar a proteção de tela do computador de Paul, um slideshow com fotos dos filhos. Em relação ao contrato e as regras da terapia, costuma-se dedicar as primeiras consultas para avaliarmos o quadro clínico do paciente, como o mesmo funciona, se somos a pessoa mais indicada para trabalhar com ele, se a dupla paciente-terapeuta trabalha bem, se há empatia em relação a ele, e qual o melhor tratamento para o mesmo. Com um paciente como Walter, um enquadre a uma sessão semanal parece insuficiente. Caso o paciente volte para a segunda entrevista – e Walter volta – um período de prova, a duas sessões por semana, pode ser útil para amenizar as resistências e desconfianças do mesmo. As regras da terapia devem ser trabalhadas com cautela, para não acionar questões de conteúdo persecutório, em relação ao terapeuta e ao tratamento. O mais importante neste primeiro contato é escutar com respeito, interesse e empatia o que o paciente nos trás, trabalhando primeiramente o vínculo entre terapeuta e paciente. As idéias apresentadas neste texto servem somente para introduzir alguns aspectos sobre a prática clínica. Um exercício útil para se refletir criticamente como a profissão é exercida, como é vista pelos outros e como é apresentada pela mídia. Diversos outros comentários podem ser feitos em relação a Walter e sua psicoterapia com Paul. A proposta deste artigo foi analisar um episódio somente. Muitos outros vértices de observação podem ser utilizados, mas isso é assunto para ulteriores discussões. De modo algum se busca encerrar o assunto, sendo este texto apenas um ponto de partida. Referências Bleger, J. (1980). Temas de psicologia: entrevista e grupos. São Paulo: Martins Fontes Editora. Etchegoyen, R. H. (1989). Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas. Freud, S. (1913). Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I). In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em 1988) Gladwell, M. (2005). Blink – a decisão num piscar de olhos. Rio de Janeiro: Ed. Rocco. Jones, E. (1975). A vida e a obra de S. Freud. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Imago. Keidann, C. E., & Dal Zot, J. S. (2005). Avaliação. In C. L. Eizirik, R. W. Aguiar & S. S. Schestatsky (Orgs.), Psicoterapia de orientação analítica: fundamentos teóricos e clínicos (pp. 193-205). Porto Alegre: Artmed. Lacoste, P. (1992). Psicanálise na tela: Pabst, Abraham, Sach, Freud e o filme os segredos de uma alma. São Paulo: Jorge Zahar Ed. Perrotti, P. (2003). Freud e la terapia. In Collana Echi di Psicoanalisi: quaderno 1 – L’Attesa. Roma: Edizione Kappa. Yalom, I. D. (2007). Os desafios da terapia. Rio de Janeiro: Ediouro. Zimerman, D.E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artmed, 1997. Recebido em agosto/2011 Revisado em novembro/2011 Aceito em dezembro/2011 106 ESTUDO TEÓRICO O processo adolescente e as funções parentais na realidade contemporânea The adolescence process and parental functions in contemporary reality Roberta Araujo Monteiroa*, Thomás Gomes Gonçalvesb, Lísia da Luz Refoscoc, Mônica Medeiros Kother Macedod Resumo: A partir de contribuições psicanalíticas é proposta uma reflexão sobre as exigências do cenário contemporâneo e do exercício das funções parentais no proceso de construção da identidade na adolescência. A adolescência é abordada como uma etapa de vida na qual ocorre uma série de acontecimentos, como ressignificações identitárias, emergência de intensas exigências pulsionais, enfrentamento com a complexidade do processo de acesso ao mundo adulto bem como a reedição de conflitos edípicos. O artigo aborda a influência e a ressonância de características do contexto social e da cultura atual nas configurações familiares e nas relações estabelecidas entre os pais e o adolescente. Por meio da descrição do enfraquecimento das funções parentais na família contemporânea, enfatiza-se o enlace entre as exigências atuais, o papel dos pais como figuras de autoridade e agentes de cuidado e a dinâmica dos padecimentos adolescentes. Palavras-chave: Adolescentes; Psicanálise; Funções parentais; Contemporaneidade Abstract: We propose some reflection concerning the demands of the contemporary scenario and the role of the parents in the process of construction of identity in adolescence from a psychoanalytic perspective. In adolescence happens different events as identity reasigment, emergency of intense instincts exigency, facing some struggle concerning the complexity of demands from the adulthood world and the reissue of the oedipal conflicts. The article addresses the influence and the resonance of the features from the social context and the current culture in family and the relationship established between parents and the adolescent. Through the evidence of the weakening of the parent role in the contemporary family, it is addressed the link between the current demands and parents as authority roles and care takers, as well as the adolescent sufferings. Keywords: Adolescents; Psychoanalysis; Parental role; Contemporary a Psicóloga; Psicanalista; Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS; *E-mail: [email protected] b Graduando em Psicologia pela FAPSI/PUCRS; Bolsista de Iniciação Científica BPA/PUCRS no Grupo de Pesquisa Fundamentos e Intervenções em Psicanálise do Programa de Pós-graduação da FAPSI/PUCRS. c Psicóloga; Mestranda em Psicologia Clínica no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Psicologia da PUCRS (Bolsista CAPES). d Psicóloga; Psicanalista; Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Professora Adjunta da Graduação e do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Psicologia (FAPSI) da PUCRS. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 107 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 107-113 Os psicanalistas vêm se confrontando com situações que os convocam a reflexões que dêem conta do entendimento da dinâmica de tempos marcados pelo instantâneo, pela fluidez dos vínculos e pela inalcançável busca de completude. Sobre essa situação, Viñar (2010) refere que a expansão do urbano, a velocidade dos transportes, a instantaneidade da informação, além da multiplicação, fugacidade e superficialidade dos vínculos humanos constituem um mundo cambalache. Segundo o autor, este lugar é caracterizado pela mutação civilizatória do século XXI, assim como pelas mudanças materiais, tecnológicas e pelos referenciais sociais, responsáveis pela organização da mente. Nessa direção, ressalta-se também, a reflexão a respeito das marcas da cultura na constituição subjetiva do sujeito, sendo este um importante tema de discussão nas mais diversas áreas que tem a condição humana como foco de interesse e de estudo. Em especial, os fatores implicados no processo de constituição do sujeito se constituem desde sempre um eixo de interesse da Psicanálise, considerando o valor que essa atribui à singularidade dos processos intrapsíquicos e pela constante dedicação a buscar uma compreensão consistente e profícua a respeito dos efeitos oriundos das transformações sociais, políticas e culturais nos campos intra e intersubjetivo. Como explicita Birman (2006), a subjetividade é uma construção eminentemente histórica e perpassada por valores éticos, estéticos e políticos. A complexidade do processo de constituição do psiquismo implica na consideração de que esse se dá a partir da qualidade do encontro com o outro. Para Bleichmar (2005) a necessidade do ser humano de se humanizar na cultura faz com que a presença do semelhante seja inerente a sua própria constituição. Trata-se de um encontro inaugural sob vários aspectos, sendo que as marcas decorrentes desse trazem desdobramentos e efeitos distintos nas etapas da vida, entre as quais está inscrita a adolescência. Na adolescência, segundo Rother Hornstein (2006), as experiências têm como centro as problemáticas relativas ao próprio Eu, incluindo o desafio de assumir um papel mais ativo em relação a sua vida. Nesse momento, o adolescente se depara com novas conquistas e com possibilidades de investimento num tempo futuro. Por outro lado, ele se enfrenta com a necessidade de dar conta de intensas demandas psíquicas, biológicas e sociais que acarretarão transformações tanto em seu mundo intrapsíquico, quanto em seus processos interrelacionais. Assim, o mundo pulsional se vê diante de novos desafios e possibilidades evidenciando-se o quanto as vicissitudes de seus investimentos estão atreladas às condições de elaboração e metabolização das intensidades psíquicas. Considerando-se não ser possível compreender o adolescente isolando-o do contexto no qual vive, torna-se fundamental situá-lo frente às demandas contemporâneas, retomando, assim, elementos importantes referentes ao processo de construção do si mesmo. Nesse processo, é essencial abordar a relevância das funções parentais, as quais se vêem, igualmente, sob o efeito de demandas próprias deste cenário atual. Impactos da contemporaneidade na vivência adolescente A compreensão do sujeito só é possível, segundo Hornstein (2008, p.17), considerando-o “imerso no históricosocial, entramando práticas, discursos, sexualidade, ideais, desejos, ideologias e proibições”. Logo, refletir sobre elementos referentes à adolescência significa reafirmar sua interrelação com os cenários social, biológico e psíquico. Dessa forma, se associam e se interpenetram os efeitos da dimensão social e da dimensão psíquica no encontro entre marcas de um tempo já vivido e perspectivas em relação a um tempo futuro . O cenário atual pode bem ser definido a partir de conceitos, como sociedade do espetáculo, cultura do narcisismo e tempos líquidos- formulações de Debord (1997), Lasch (1983) e Bauman (2000), respectivamente, - sendo essas intrinsecamente relacionadas à ideia de centramento no Eu e do predomínio da superficialidade e da fluidez dos laços afetivos. A partir disso, Maia (2005) entende que as relações humanas tornam-se formas de obtenção de prazer imediato, e, quando há qualquer ameaça de sofrimento, o outro é, rapidamente, descartado. Dockhorn e Macedo (2008) argumentam que em uma sociedade organizada pelo consumo, a exigência é de estar sempre pronto para o aproveitamento absoluto dos “bens” e para o desenvolvimento de novos desejos frente a incessantes seduções que se apresentam como indispensáveis. O panorama cultural dos dias de hoje, segundo Costa (2005), é marcado pela busca de sensações agradáveis e prazerosas pelo sujeito, sendo que aquilo que demanda tempo para se realizar e/ou o que não traz gozo, é vivido como sensação indesejável. Neste contexto social atual, surge uma nova denominação ao modo de ser adolescente: Geração Y ou Geração Internet. Esta denominação pretende caracterizar a geração nascida entre janeiro 1977 e dezembro de 1997, a qual experenciou mudanças significativas no mundo, como a ascensão do computador, o surgimento da Internet e de outras tecnologias digitais, sendo considerada por Tapscott (2009) como a primeira geração imersa 108 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 107-113 em bits. Seus pais são pertencentes à chamada geração Baby boom, nascidos entre janeiro de 1946 a dezembro de 1964, ou seja, após a Segunda Guerra Mundial, em um contexto no qual se esperava que os homens que estavam na guerra pudessem voltar para casa e constituir uma família. Nesta mesma época, a economia mundial ganhava impulso e se fortificava, deixando as famílias confiantes na decisão de ter filhos. As diferenças entre os Baby Boomers, denominados geração televisão, e seus filhos, a geração Internet (geração Y), segundo Tapscott (2009), passam pela priorização de liberdade, ou seja, a geração Y prioriza a liberdade de escolha e de expressão. Os jovens desta geração gostam de customizar, personalizar o mundo ao seu redor, desde a área de trabalho do computador, o toque do telefone celular, o apelido, as fontes de notícias, entre outros. O autor destaca ainda que a Geração Internet é constituída de jovens que são marcados pela colaboração e pelo relacionamento, ou seja, mandam mensagens em sites de relacionamento, formam uma rede de influência online, jogam videogame com múltiplos jogadores de diversas partes do mundo. A Geração Y é composta de jovens inovadores, que buscam novas formas de colaboração, de diversão, de aprendizado e de trabalho. É uma geração que necessita da velocidade, frente a qual cada mensagem instantânea deve gerar uma resposta instantânea. Esse cenário produz, assim, consequências que tanto podem significar uma amplitude de possibilidades em especial pelo maior acesso à informação, ao conhecimento, a tecnologias, vindo a favorecer e promover novos processos de subjetivação, bem como podem, também, resultar em sujeitos que não toleram frustrações, tendem ao imediatismo, à busca incessante pelo prazer pleno e a vínculos virtuais frágeis e facilmente descartados. Nesta linha de raciocínio, paradoxalmente, em tempos nos quais a felicidade passa a ser uma exigência constante feita ao sujeito, Kehl (2009) assinala a depressão como um sintoma social. A autora enfatiza a influência dessas especificidades do cenário atual na produção de subjetividades e de padecimentos, afirmando que a sociedade contemporânea se caracteriza pela temporalidade acelerada, pelo imperativo do gozo a qualquer custo, pela perda do valor da experiência e da tradição e, pela debilidade de referenciais identificatórios. Ao trazer à discussão a questão do tempo na constituição do aparelho psíquico, a autora refere que um dos efeitos decorrentes da velocidade que caracteriza os tempos atuais são o empobrecimento da imaginação e a presença de sentimentos de vazio. Neste cenário de profundas transformações, cabe também uma reflexão sobre a estrutura familiar nas últimas décadas. De acordo com Birman (2007), a partir de 1950, desencadeouse, no mundo ocidental, um processo radical de alterações na família moderna, a qual perdeu algumas referências fundamentais. O surgimento do movimento feminista, a inserção da mulher no mercado de trabalho, o declínio do poder patriarcal e o surgimento das famílias compostas são exemplos de acontecimentos que promoveram novas configurações familiares. Cabe destacar, conforme ressalta Kehl (2009), que mesmo frente às grandes mudanças nas forças que estruturam o campo social, é necessário considerar a importância da singularidade de um processo de constituição psíquica. Logo, não se pode fazer uma leitura apressada e linear na qual seja atribuída unicamente à cultura a força de produção de um sujeito psíquico. Trata-se de refletir sobre a qualidade de produção psíquica frente a demandas que deixam pouco espaço para a capacidade de experimentar e significar o ser em detrimento do ter. Ao tomar como referência a imagem social contemporânea construída para o sujeito, Maia (2005) salienta o fato de os afetos humanos perderem o seu lugar no mundo. A angústia e a tristeza não podem ser sentidas no ideário pós-moderno e qualquer sinal destas torna-se uma ameaça a ser combatida por meio de dispositivos capazes de neutralizá-las, sejam antidepressivos ou outras drogas diversas. Todas essas características apontam para uma sociedade na qual a ausência de padecimentos ou de faltas parece ser uma realidade plausível na qual a completude ilusória acena como uma condição possível de ser alcançada. No intuito de problematizar essa questão, Edler (2008) ressalta ser justamente a falta que põe o sujeito em ação e em busca de algo, sendo a incompletude lamentada o que revitaliza o sujeito, colocando-o num movimento incessante. Logo, se o outro não pode ser pensado ou desejado desde uma dimensão que reconhece a própria incompletude, torna-se difícil o processo de construção do genuíno acesso à alteridade. Quando a problemática da alteridade, pertinente à contemporaneidade, é abordada em relação à adolescência, outros desdobramentos precisam ser considerados. Abordando o seu entendimento de globalização negativa, Bauman (2007) considera que nela os indivíduos são abandonados à própria sorte, resultando no novo individualismo, no enfraquecimento dos vínculos humanos e no definhamento da solidariedade. Esse cenário traz, também, importantes consequências no movimento que permite ao adolescente fazer a alternância de desinvestimentos e investimentos, fator relevante na promoção de seus projetos. O não alcance das metas ou ideais contemporâneos pode rapidamente associar-se a ideias 109 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 107-113 de fracasso e incapacidade por parte do adolescente. Se a completude é garantia de felicidade, qual o lugar destinado à incompletude? Nessa dinâmica, o vazio e o tédio envolvem a vida do adolescente denunciando o risco dos frágeis e fraturados investimentos e alicerces emocionais resultantes desses tempos de frenética pressa e consumo. Os desafios da contemporaneidade trazem, portanto, repercussões no processo de subjetivação adolescente. Muitas vezes, a desmesura do que o invade expõe a precariedade de suas possibilidades de enfrentamento. A sociedade contemporânea, do consumo e do gozo ilimitados, impõe ao adolescente um modo de se constituir subjetivamente que se relaciona com a escassez na oferta de recursos simbólicos e sublimatórios (Macedo & Refosco, 2010; Pinheiro 2001). A passagem adolescente prevê, conforme salienta Cardoso (2001), importantes e traumáticas rupturas diante da exigência da construção de uma identidade e devendo manter as fronteiras egóicas, o jovem precisa ir ao encontro de um outro. A noção de identidade convoca temas cruciais da psicanálise, como o narcisismo, o investimento libidinal do ego, as identificações inconscientes e os conflitos identificatórios. Adentra-se, assim, no terreno da intersubjetividade, no qual o adolescente alicerça e constrói a história de suas identificações e dos recursos psíquicos que passará a dispor para lançar mão na travessia do mundo infantil para o mundo adulto. Funções parentais e a problemática adolescente A intersubjetividade tem um lugar central na constituição do psiquismo, possibilitando a singularidade de cada história humana. É no processo de historização que fica viabilizado o acesso do sujeito à temporalidade e ao seu projeto identificatório. Tal afirmativa é exemplificada pelo que Rother Hornstein (2006) refere sobre o encontro entre mãe e filho. Nesse encontro, segundo a autora, a mãe confronta a criança com um discurso e, assim, vai impregnando-a de sentidos que abarcam a forma como ela é pensada, falada e desejada pelos seus genitores, incluindo-a em suas histórias, também marcadas pela sua cultura. Isso remete a noção de um trabalho psíquico, necessário na adolescência, relativo à ressignificação da conflitiva edípica. As demandas pulsionais desta etapa reativam a experiência edípica como uma segunda chance de processar psiquicamente questões oriundas dessa vivência infantil, em especial as referentes à construção da identidade e às modalidades de investimentos do sujeito na relação com o outro. Os arranjos familiares contemporâneos denunciam um amesquinhamento sofrido pela autoridade paterna, o qual acarretou no enfraquecimento da figura do pai (Roudinesco, 2000). Além disso, Silva (2010) também refere que as reivindicações por igualdade de poderes feitas pela mulher levam a profundas transformações na ordem familiar, incluindo as relações conjugais e parentais. As funções parentais, na adolescência, estão marcadas pelo interdito edípico e, por isso, devem ser exercidas em outra modalidade. Entende-se que o excesso de presença ou de ausência dos pais, assim como a qualidade com que eles exercem suas funções tem importância vital para o adolescente. Fazendo uma alusão à vivência de satisfação, descrita por Freud (1895/1977) em Projeto para uma psicologia científica, afirmase que a demanda adolescente exige uma ação específica por parte dos genitores. Trata-se de saber identificar a necessidade adolescente a fim de não confundir liberdade com abandono. Nos tempos atuais, como conceitua Bauman (2003), vive-se em tempos líquidos que revelam a fragilidade dos vínculos humanos, marcados pela insegurança e ambivalência de sentimentos frente ao outro. Essa dinâmica acarreta em importantes efeitos na configuração familiar de hoje, ficando em xeque o que diz respeito a pontos fundamentais na criação dos filhos, já que para uma criança, dada a sua condição de fragilidade e dependência, é necessário contar com a disponibilidade e o investimento por parte do adulto. Sabe-se que a dependência de cuidados da infância adquire outras formas no decorrer da vida, fazendo com que do adulto também seja exigida a capacidade de “decifrar” as múltiplas demandas advindas da condição de desamparo da criança. Neste sentido, Cardodo e Savietto (2006,p.41) afirmam que “se as relações objetais primárias não forem capazes de oferecer ao sujeito uma solidificação narcísica, a continuidade do ser não estará assegurada no momento em que o remanejamento identificatório for exigido, isto é, no momento da adolescência. As falhas narcísicas que se desenvolvem a partir do início da subjetivação também vão ressurgir por ocasião da adolescência, quando está em jogo a tensão entre dependência e autonomia”. Logo, as funções parentais se vêem à mercê de uma diversidade de solicitações cujo fundamento está nos recursos de investimento afetivo. Como bem assinala Rother Hornstein (2006, p.131), “a adolescência também põe à prova a capacidade de transformação dos pais”. Relacionando essa questão aos tempos líquidos, percebe-se que conceber um filho, ocupar uma função de outro narcisizante fundamental no processo de constituição psíquica da criança, bem como o envolvimento na sua educação e no processo de formação de sua identidade, demanda aos pais 110 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 107-113 um compromisso amplo e irrevogável, um compromisso que vai na contramão da modalidade contemporânea de vida líquida e de parcos investimentos no outro. O reflexo desse contexto, marcado pelas características do cenário contemporâneo, pode ser visto, também, como destaca Birman (2006), nas exigências de alta performance impostas às crianças e aos adolescentes. Isso acarreta à prevalência da intensa rivalidade em detrimento da alteridade, tornando a solidão uma presença constante nas vidas desses jovens. Com isso, eles são confrontados com a quase ausência de limites, tendo essa frouxidão dos interditos um efeito crucial no seu processo de estruturação psíquica. A família nuclear tradicional, formada por pai, mãe e filhos, deixa de ser a maioria na sociedade contemporânea. O autor entende que a economia dos cuidados no âmbito familiar foi bastante afetada, marcando uma precariedade de investimentos nas crianças e nos adolescentes e, por isso, incidindo diretamente sobre as novas formas de subjetivação. Freud (1913/1977; 1929/1977), em seus textos sobre a cultura, estabelece interessantes relações entre os efeitos decorrentes de características culturais e o processo da constituição do sujeito o que contribui para a compreensão dessas novas modalidades de ser dos tempos atuais. Atravessados pela cultura, os pais são os primeiros a apresentá-la para a criança em constituição. Assim, os efeitos desse encontro primordial terão, necessariamente, esse colorido próprio da cultura na qual estão inseridos. Por outro lado, a singularidade desse encontro dará uma forma única e peculiar ao destino do sujeito frente às demandas de sua vida. Seguindo esse raciocínio, observa-se que se por um lado a civilização é a responsável por estabelecer “diques culturais” que permitem o sujeito viver em sociedade, já no âmbito individual, os pais são peças fundamentais em termos de estruturação psíquica para que os diques sejam constituídos, dando ao ego as primeiras condições necessárias para postergar a satisfação (Freud, 1929/1977). Em ambos os casos, estão presentes ferramentas de regulação que oferecem um “freio” aos impulsos, viabilizando o convívio entre os pares. No texto Totem e Tabu, Freud (1913/1977) apresenta uma interessante metáfora para pensar o complexo de Édipo sob uma outra perspectiva. Ali, essa conflitiva é comparada a um sistema de governo no qual o ministro – mãe – deverá ser o mediador que facilita o acesso do súdito – bebê – ao governador – pai. Quando essa mediação fica impedida, também fica impedido ao súdito o acesso à identificação com esse governante, fundamental para o seu crescimento. Tomando esse modelo para uma leitura da contemporaneidade pode-se pensar que em uma cultura na qual não se quer perder o lugar soberano, ao contrário de viabilizar o crescimento e futuro alcance de novos lugares próprios ao súdito, o governante tem uma necessidade regressiva de se manter no lugar de “Totem”, apresentando-se como inquestionável, completo e exercendo um apoderamento narcísico do outro. Igualmente o ministro – mãe – também pode se utilizar de seu papel de mediador para se manter em um lugar narcisicamente inflado deixando o súdito – bebê – engessado em termos de movimentação psíquica. Assim, podem se apresentar dificuldades não só no acesso ao governante – pai, como também, na forma pela qual esse governante marca seu lugar de poder, oferecendo-se ou não como um objeto de identificação ao súdito – bebê. A “outra face da mesma moeda” pode ser constatada em uma inversão de papéis e funções, tão característica da contemporaneidade, na qual é o bebê que ocupa o lugar totêmico, no sentido de ser quem detém o poder, cabendo aos pais fazer tudo para que essa ilusão de completude se perpetue. Nesse contexto, Mayer (2001) refere que, hoje, se percebe um número maior de pais que se preocupam mais em encher seus filhos com objetos de última geração do que em proporcionar-lhes um espaço na sua vida anímica, onde poderiam se desenvolver como seres diferenciados. Esses pais buscam, a qualquer preço, impedir o registro de falta no seu filho idealizado, dificultando a possibilidade de estruturação do desejo infantil, fundamental para o desenvolvimento humano, para o reconhecimento e para o amor ao semelhante. No delicado equilíbrio entre a oferta de objetos de consumo e o acesso ao reconhecimento da falta, muitos pais tratam de apagar a complexidade inerente a estes processos acreditando que a oferta de bens materiais possa ocupar importante espaço no processo de construção subjetiva dos filhos. Sobrepõemse, desta forma, o que é da ordem da necessidade parental de manutenção de uma ilusória completude àquilo que próprio da condição de acesso ao campo do desejo via necessário reconhecimento da própria incompletude. Ao encontro dessas proposições, Kehl (2009) salienta que atualmente muitos pais se sentem fragilizados com relação aos seus próprios ideais e, então, colocam nos filhos toda a expectativa e a aposta de serem eles próprios reconhecidos por meio do desempenho dos filhos. A fragilidade do pai imaginário contribui para o surgimento de crises depressivas nos adolescentes, bem como o agravamento do estado de desânimo frente à vida daqueles estruturalmente deprimidos. “As crianças ocupam um lugar ambíguo na cultura: como ideal do gozo (perdido) de seus pais, mas também, paradoxalmente, 111 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 107-113 como investimento no ‘mercado de futuros’. Essa espécie de duplo vínculo em que a criança está inserida faz com que os pais procurem, ao mesmo tempo, satisfazê-la plenamente (como se isto fosse possível) para maximizar sua felicidade, e estimulá-la ao máximo a fim de desenvolver desde cedo as potencialidades que deverão garantir uma boa colocação na disputa acirrada do mercado de trabalho. Como essas práticas educativas e amorosas são recebidas do ponto de vista do bebê? Como excesso de demanda” (Kehl, 2009, p. 276). Como efeitos dessas configurações familiares atuais, evidenciam-se padecimentos oriundos da falta de sustentação do lugar parental de autoridade e de responsabilidade na criação dos filhos. Constata-se, da parte de muitos pais, a indisponibilidade de cuidar amorosamente de sua prole no sentido da presença de uma não abertura de espaços em suas vidas para os filhos. Por outro lado, observam-se filhos superinvestidos narcisicamente, representando a única esperança de recuperação narcísica dos pais (Kehl, 2001). Ambas posições mantém os pais desautorizados no exercício de suas funções, na medida em que se submetem a fazer tudo que lhe é solicitado ou ignoram o que lhes é demandado. Assim, rompem-se barreiras de uma assimetria necessária ao genuíno cuidado com o outro. Essa dinâmica no campo intersubjetivo traz consequências significativas na fragilidade ou falência das funções parentais, bem como aporta efeitos relevantes no processo de construção subjetiva dos adolescentes. Na ausência da fala e/ou de um olhar em relação à singularidade das demandas do filho, muitas vezes acabam os pais “apresentando” um modelo do descuido e de substituição do desejado pelo que pode ser facilmente alcançado e obtido. Seja na ausência do exercício de uma função paterna amorosa que tem como sustentação o cuidado, seja na imposição de modelos narcisistas nos quais os filhos representam ideais de completude, o desamparo marca presença. Em ambas as situações, seja na indisponibilidade ou na desautorização dessas funções, a impossibilidade do reconhecimento das diferenças repercute na fragilidade e precariedade da condição dos jovens se posicionarem frente às exigências de suas vidas. Na medida em que se preserva a assimetria e a condição de cuidado entre pais e filhos, também se dá espaço à inscrição da falta e do desejo como possibilidade frente à incompletude. Nessa direção, Cardodo e Savietto (2006,p.40) asseveram que “a fraqueza do poder e da ordem simbólica com a conseqüente privação de possibilidades de mediação, assim como a precariedade, a instabilidade, a vulnerabilidade, a incerteza e a insegurança inerentes ao atual mundo ocidental, parecem contribuir para a intensificação e a manutenção da re-vivência do desamparo na adolescência, assim contribuindo para o incremento do recurso às passagens ao ato”. Sendo assim, se evidencia a necessidade do jovem experimentar um modelo de relação com as figuras parentais que lhe ofereçam as condições necessárias para poder usufruir da sua condição adolescente. Sobre isso, Monteiro (2011) entende ser fundamental que o adolescente conte com um ponto de partida sólido, para garantir que essa referência se constitua como o balizador para o seu caminho de descobertas. A autora ressalta, porém, que a característica itinerante da adolescência pode ter uma direção a favor ou não da vida, já que a qualidade das vias tomadas como itinerário deve ser considerada. Itinerário este que em muito conta das experiências vividas pelos adolescentes nos primeiros momentos das suas vidas, pois é a partir delas que o jovem tem viabilizada a condição de aproveitar a jornada adolescente no melhor que ela possa significar. Considerações Finais Abordar o processo adolescente exige que se amplie o olhar a fim de contemplar temáticas referentes à experiência no cenário biológico, social e psíquico. Assim, à complexidade própria dessa idade da vida, somam-se aspectos essenciais da contemporaneidade que exercem inegável influência no processo de constituição do sujeito nos dias de hoje. Na vigência de tempos nos quais o efêmero, a fragmentação, a frágil ou ausente demarcação de espaços impõem seus efeitos no processo de constituição psíquica e na produção de subjetividades, cabem questionamentos à relação existente entre adolescência e o exercício contemporâneo das funções parentais. Ao considerar que em um tempo primeiro podese receber um legado cuja função de fundante vai possibilitar um posterior questionamento, entende-se que, no caso da adolescência, o amparo e o cuidado recebido, via exercício das funções parentais, viabiliza que, em um segundo tempo, o jovem possa experimentar-se em novos investimentos e condições. Logo, a qualidade do encontro primeiro é fundante de recursos que serão exigidos do adolescente frente a intensidades de reedições e conflitivas com as quais se depara nesse tempo de transição ao mundo adulto. As relações que marcam o campo intersubjetivo encontram na adolescência um importante tempo de ressignificações. Nesta idade da vida, as condições de investimentos psíquicos, tanto no campo endogâmico quanto nos espaços da exogamia, contam de uma história passada e assinalam as condições ou precariedades dos investimentos no devir. Ao abordar as condições da cultura contemporânea e seus 112 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 107-113 efeitos na construção da subjetividade é inegável a constatação do papel relevante destinado ao percorrido identificatório. A necessidade humana de inscrever e elaborar as experiências decorrentes do registro da falta como condição de acesso à alteridade fica plenamente exemplificada nas conflitivas que marcam a adolescência. Mais do que associar a adolescência a um tempo de fragilidade psíquica, trata-se de pôr em evidência as condições de abertura que marcam as proposições da Psicanálise a respeito da singularidade desta etapa da vida. As relações experenciadas com as figuras parentais formam parte fundamental do processo de subjetivação. Logo, a qualidade psíquica do ofertado por estes tem muito a ver com os sentidos que vão dando contorno ao si mesmo do adolescente. Nesta travessia para a adultez, passa a ser da ordem do desamparo e da dor psíquica a experiência de se confrontar com a ausência de um olhar que assegure as diferenças geracionais e as condições de vivenciar investimentos de amor e respeito às diferenças. Frente a significativas demandas contemporâneas de autocentramento e performance, torna-se importante um exercício de constante reflexão sobre a necessidade do sujeito de experenciar este lugar de ser objeto amoroso de outro, como um ponto essencial à produção de sua condição humana. A maior liberdade que a adolescência pode possibilitar é no sentido de que o jovem construa, no tempo presente, uma reserva de capital pulsional que lhe permita investir em um tempo futuro, a partir de um existir ético e autônomo. Referências Bauman, Z. (2000). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Bauman, Z. (2003). Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Bauman, Z. (2007). Tempos líquidos. 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Scarparoc Resumo: O artigo relata e analisa uma experiência realizada em 2009 na qual se estabeleceu a participação e observação do grupo “Movimento Guerreiros do Coração”. Tal Grupo iniciou suas atividades em 1993 e estuda as possibilidades do masculino na contemporaneidade, com ênfase nas relações ao longo da vida e do desenvolvimento da masculinidade. Desse modo, tem como proposta refletir acerca da identidade do homem, dos rituais da masculinidade e da sua integração com outras instancias do self. A análise de registros das observações em diários de campo indicou constantes questionamentos voltados às desconstruções que os fenômenos contemporâneos impõem aos papéis e expectativas sociais para os homens na atualidade. Também se pode observar que o clima de aceitação das diferenças favorece o contato reflexivo com os sentimentos e possibilitam a construção de novas relações e redes de apoio. Palavras-chaves: Identidade masculina; Masculinidade; Self-dialógico Abstract: The article describes and analyzes an experiment conducted in 2009 which established the participation and observation of the group “Movement Warrior of the Heart.” This group started its activities in 1993 and is exploring possibilities in the contemporary male, with an emphasis on lifelong relationships and the development of masculinity. So, has the purpose to reflect on the man’s identity, rituals of masculinity and its integration with other instances of self. The analysis of records of daily observations in the field indicated constant questioning turned to contemporary deconstructions that the phenomena require the roles and social expectations for men today. We can also see that the climate of acceptance of differences favoring the contact with the reflective feelings and enable the construction of new relationships and support networks. Keywords: Male identity; Masculinity; Self-dialogic a Graduando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. *E-mail: [email protected] b Graduando em Psicologia pela FAPSI/PUCRS; Bolsista de Iniciação Científica BPA/PUCRS no Grupo de Pesquisa Fundamentos e (b) Graduando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. c Professora; Doutora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 114 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 114-120 As marcas de modelos hegemônicos de masculinidade estão presentes em diferentes espaços sociais. Como decorrência as ações voltadas para a saúde do homem são fortemente atravessada pelas questões de gênero. A compreensão da constituição desses modelos é fundamental para o surgimento de novas relações do homem com a perspectiva de autocuidado. Desse modo, a implementação de políticas de saúde voltadas para os homens implica a consideração das especificidades dos processos de construção de espaços e modos de ser masculinos em nossa sociedade. A Revolução Industrial, por exemplo, foi vetor de uma série de transformações nas relações sociais. O período que a antecedeu era pautado por relações comunitárias e, conseqüentemente, outras formas de organização apoiadas no sentido de pertencimento e na manutenção de relações de cuidado coletivo (Bauman, 2003). Com a revolução industrial as relações comunitárias cederam espaço à lógica individual, delineando um sujeito como foco no trabalho e nas obrigações e responsabilidades individuais relativas a ele. Assim processos de individualização transcorreram visando à manutenção de uma maneira de produção, marcada pela aproximação de corpos (cidades) e afastamento das pessoas (tornando-os em indivíduos). A partir dessa compreensão fica mais fácil entender o pensamento de Nolasco (1995) que afirma que a crise do homem frente à desconstrução da identidade masculina está diretamente relacionada na literatura e nas ciências humanas com a crise do individualismo. O resultado da radicalização do individualismo é, segundo o autor, um “homem que se vê remetido a si mesmo, buscando o encontro com a própria singularidade e sua capacidade de diferenciação como única possibilidade de situar-se diante de um mundo pluralizado” (p.15). A crise de identidade masculina mencionada pelo autor não tem sido suficiente para que se desconstituam alguns marcadores identitários formulados para os homens na nossa sociedade. Podemos citar como exemplo, a individualidade, em conjunto com a competição, hierarquia, proezas sexuais, racionalidade, distância emocional, dominação e a força corporal (Haenfler, 2004). Em pesquisa publicada recentemente por Nascimento e Gomes (2008) acerca dos discursos de homens jovens sobre papéis sociais vinculados ao masculino, constatou-se a preponderância do papel de provedor (ligado ao trabalho e à família), de dominador (vinculado ao poder e à obtenção de privilégios materiais e culturais em detrimento as mulheres) e de cuidador (tanto de si, como da família) numa perspectiva heterossexual. Embora tais ideias se encontrem de acordo com o modelo hegemônico de masculinidade, foi possível perceber que pequenas mudanças se fizeram presentes nos discursos destes jovens examinados. Os autores ressaltamque enunciados referentes à questão “o que é ser homem” denotam a produção de espaços para interlocução com outras possibilidades de masculinidade. A importância desses movimentos dialógicos, para que ocorram melhores resultados no que tange ao autocuidado do homem, move este trabalho para o objetivo de analisar as diferentes posições acerca da masculinidade. Para isto foi observado um grupo de homens que questiona o ser masculino na atualidade. Self dialógico e saúde masculina Connel (1995) analisou o conceito de masculinidade e, ao passar por definições de diferentes correntes do pensamento, propôs um conceito que se estrutura com base nas posições entre as relações de gênero, as práticas pelas quais homens e mulheres se comprometem com estas posições e os efeitos destas práticas no campo do corpo, personalidade e cultura. O autor apresenta ainda a comparação entre os modelos de masculinidade hegemônica e a marginalizada, no qual se constrói padrões que definem o que torna alguém masculino e se dispensa outros fatores, tendo estes como depositários únicos para o sexo feminino. A elaboração destes modelos permite que em alguns momentos haja transição, desta forma ficando permitido ao “masculino alfa” se aproximar da masculinidade subordinada/marginalizada. Outro item que o autor destaca é que a masculinidade hegemônica não possui um eixo fixo e uniforme no tempo e espaço, isto é, a hegemonia é mutável e dentro da dominação cultural de cada território se moldam novas estruturas hegemônicas. Rocha-Coutinho (2006) afirma também, nessa mesma perspectiva, que o sujeito contemporâneo parece manter uma duplicidade no que diz respeito às identidades que continuamente se formam e se transformam, mudanças essas que se moldam frente às representações do mesmo nos sistemas culturais no qual está inserido. Homens e mulheres aparentam alternar entre atitudes “modernas” e “tradicionais”, sendo as primeiras, atitudes esperadas pelos novos papéis e posições e as segundas relativas às antigas identidades masculinas e femininas. Dentre as atitudes ”modernas” poderíamos mencionar as 115 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 114-120 transformações vividas por homens e mulheres na atualidade. Por exemplo, é atribuído um valor positivo à conquista, por parte das mulheres, da possibilidade de inserção no mercado de trabalho, enquanto a escolha por parte dos homens pelo terreno doméstico é socialmente desvalorizada. Essa distinção de valores está presente inclusive nas classes médias intelectualizadas, nas quais a expressão do “lado feminino” pode estar ligada a uma desvirilização do homem (Rocha-Coutinho, 2006). Ao tratar das questões relativas à formação das identidades masculina e feminina Rocha-Coutinho propõeo conceito de duplicidade, através do qual se habilita a alternância entre modelos tradicionais e modernos de masculinidade. Tal conceito pode ser associado à noção de self dialógico que insere a relação como elemento fundamental da existência humana. Esta nova abordagem teórica dissolve o conceito de um self estruturado, centralizado e de difícil mudança e postula a idéia de um self descentralizado, narrativo e em movimento, isto é, o self passa a se caracterizar pelo constante processo de mudança (Santos & Gomes, 2010). Ainda transitando pelo campo das relações teóricas se percebe a aproximação da dominância existente entre o modelo hegemônico e marginalizado de masculinidade e a sua alternância, conforme apresentado por Connel (1995), com o movimento de posições proposto pelo selfdialógico. A perspectiva dialógica considera que a criação de significados ocorre a partir da comunicação e da relação existente entre um centro, o Eu, e a periferia, que se refere a tudo aquilo que não faz parte desse centro, o Outro. Desta forma, a construção da identidade, assim como o conhecimento, é resultante da interação subjetiva onde o sujeito estabelece o diálogo com os outros, estando estes presentes ou não (d’Alte, Ferreira, Cunha & Salgado, 2007). Se considerarmos a premissa dialógica, o self transita entre posições externas e internas. As posições externas se referem às vozes oriundas de pessoas do seu contexto social, enquanto as internas dizem respeito aos diferentes papéis que constituem o indivíduo como é o caso do papel de pai, filho ou marido. Cabe salientar que as construções narrativas das posições externas não correspondem necessariamente à realidade, ou seja, a narrativa pode ser na sua integralidade fruto da imaginação do sujeito (Santos & Gomes, 2010). O dialogismo por si não exclui modelos monológicos, ou seja, discursos absolutos que busquem a anulação do posicionamento dos seus interlocutores. O ponto que pode gerar discursos monológicos não está vinculado ao conteúdo deste, mas sim ao tipo de relação que estabelece entre o Eu e o Outro (d’Alte et al., 2007). Conforme Hermans (2001), a relação entre as posições responde a uma hierarquia momentânea, onde em alguns instantes as posições se configuram estereotipadas e acabam por excluir narrativas que configurem oposição ao que se apresenta dominante e de menor valência na relação de poder. A partir do instante em que ocorre uma monitoração dessas diversas posições do eu se cria uma outra que ocupa espaço especial dentro do self. Esta, intitulada de metaposição, tem como característica reunir os diversos posicionamentos do self e ao mesmo tempo manter uma distância que permite analisar e avaliar o repertório de posições que o individuo detém (Hermans, 2001). Refletindo sobre a identidade masculina sob a luz do self dialógico é possível comparar a formação das identidades masculina e feminina tradicional e moderna com a construção do self dialógico, pois ambas têm caráter relacional, ou seja, partem da existência de um Eu e de um Outro em interação constante (d’Alte et al., 2007). Entretanto, as perspectivas de entendimento do self masculino, ainda calcadas no modelo hegemônico de masculinidade ocidental, trazem consigo a premissa de invulnerabilidade e exposição a comportamentos de risco, o que reflete diretamente na relação entre masculinidade e políticas de saúde (Figueiredo, 2005). Ambas as questões contribuem para que haja agravo na saúde masculina, porém mesmo existindo indicadores de morbimortatilidade que assinalam o cuidado que os homens necessitariam ter com a saúde não é averiguada proporcionalmenteuma procura destes pelos serviços de atenção à saúde disponível na rede (Laurenti, Mello-Jorge & Gotlieb, 2005). Os dados sanitários, que revelam alta mortalidade de homens e alto adoecimento de mulheres demonstram que mesmo havendo maior mortalidade de indivíduos do sexo masculino estes não se encontram entre os casos relatados de adoecimento na mesma proporção, categoria onde as mulheres obtêm maiores índices (Laurenti, Mello-Jorge & Gotlieb, 2005). O resultado desta desproporcionalidade pode ser devido à baixa procura por atendimento, por parte dos homens, resultando que os mesmos cheguem nos serviços de saúde em um estado de adoecimento mais agravado ou até mesmo não terem este atendimento, enquanto que as mulheres investem no cuidado inicial e preventivo. A partir do reconhecimento que “agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemas de saúde pública” (Ministério da Saúde do Brasil, 2008, p.3), foi elaborada a Política Nacional de Atenção Integral a Saúde do Homem (PNAISH). Essa nova política 116 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 114-120 de saúde tem como objetivo promover ações de saúde que ajudem a compreender a realidade singular masculina em seus contextos sócio-culturais e político-econômicos. Espera-se que estas ações contribuam para o aumento da expectativa de vida e para a redução dos índices de morbimortalidade por causas passíveis de prevenção (Ministério da Saúde do Brasil, 2008). A PNASIH, através de um recorte de amostra de homens de 25 a 59 anos de idade, relata que existem dois principais grupos que determinam barreiras entre o homem e os serviços de saúde: barreiras sócio-culturais e barreiras institucionais. Os dificultadores sócio culturais estão ligados a estereótipos de gêneros que têm origem no patriarcado, que reforça diversos valores e crenças sobre o que é o ser masculino. O principal obstáculo nesse sentido, destacado no documento, é a crença na invulnerabilidade (Gomes, 2003; Gomes & Couto, 2005; Keijzer, 2003; Schraiber), que distancia a maioria dos homens do acesso à atenção primária (Ministério da Saúde do Brasil, 2008). No que tange ao âmbito institucional, os comportamentos evitativos e a percepção de não pertencimento e funcionamento desses espaços de saúde, se apresentam como fatores intervenientes entre homem e o acesso à saúde. Em parte, tais comportamentos masculinos de evitação ao cuidado, mesmo compreendendo a sua necessidade, se explicam através de outro elemento representativo dos estereótipos de masculinidade, que é o vínculo entre o cuidado e a ideia de fragilidade. Os homens percebem o relato de seus problemas de saúde como uma fraqueza ou vulnerabilidade, ambos associados ao que reconhecem como comportamento feminino (Figueiredo, 2005). No que tange ao autocuidado e procurar auxílio junto aos serviços de saúde, dados de Gomes, Nascimento e Araújo (2007) corroboram os de Figueiredo (2005), sobre quais motivos levavam que houvesse menos procura por parte dos homens quando comparados com as mulheres. Dentre as respostas se salientou conceitos do modelo hegemônico de masculinidade (força, poder, provedor, sexualidade mais ativa, características biológicas) e de momentos onde sentimentos e conceitos ligados ao feminino eram vistos como também dos homens, porém estes últimos sofriam interdições devido à necessidade de reafirmar o seu gênero frente à sociedade. Aspectos relativos à organização cotidiana dos serviços também contribuem para o distanciamento/exclusão dos homens da atenção à saúde. O primeiro ponto se refere ao horário de funcionamento, que se torna restritivo aos homens e mulheres que exercem carga horária de trabalho no mesmo período que as unidades estão abertas para o atendimento ao público. A segunda questão é que mesmo quando se rompe com a premissa de invulnerabilidade e busca o atendimento, se verifica a insatisfação por não deter locais especializados para a sua saúde. O sentimento de não pertencimento é justificado pelo atendimento ser realizado predominantemente por mulheres e boa parte da demanda gerada ser também ocupada por esta parcela da população (Figueiredo, 2005). Movimentos de homens O impacto das organizações institucionais nas relações de gênero no campo da saúde é influenciado pelas mudanças culturais e políticas advindas da década de 60, onde a sociedade começou a repensar o conceito de gênero e gradativamente passou-se a reconhecer novas possibilidades identitárias. A partir da década de 70, surgem atividades organizadas, lutas e reivindicações de homens com a masculinidade como principal temática. Estas iniciativas coletivas foram denominadas movimentos e classificadas por Bonino (1998) em cinco tipos principais: - O Movimento Profeminista, ou Antissexista: reconhecem a responsabilidade masculina diante da perpetuação da subjugação das mulheres e exercem uma autocrítica sobre o próprio exercício do poder. - O Movimento Mitopoético: geralmente composto por homens brancos heterossexuais, no grupo também estão presentes movimentos ecológicos e espirituais. Tem como foco o resgate da “energia masculina” nos tempos de ausência paterna, também incluindo na sua prática estudos sobre mitos e ritos de iniciação masculina. - O Movimento das Terapias da Masculinidade: desenvolvido por homens preocupados com a “crise” da masculinidade tinha por objetivo a “reconstrução” e “redefinição” dessa identidade obsoleta frente às mudanças sociais ocorridas. - O Movimento Pelos Direitos dos Homens ou Mens Rights: produto da mistura de homens defensores de direitos patriarcais e de direitos igualitários, o movimento surgiu diante da crescente situação social favorável à mulher. - O Fundamentalismo Masculino: formado por homens tradicionais, defendem os velhos papéis de macho, autoridade e provedor e de fêmea, dona de casa, perpetuando ideais de dominação masculina. Segundo Bonino (1998), os movimentos de homens citados tentam responder à pergunta “o que é ser homem hoje?” tendo como ponto de partida a masculinidade como algo a transformar ou conservar e não algo naturalmente garantido. Todos eles, 117 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 114-120 direta ou indiretamente, representam um posicionamento frente às mudanças sociais decorrentes do feminismo. Nesse relato, avalia-se a experiência em um desses grupos que questiona o ser homem na contemporaneidade. dados percebidos no encontro. Posteriores ao relato descritivo mais abrangente eram registradas entre aspas as falas lembradas de forma literal. As notas reflexivas presentes nesse relato foram sublinhadas visando serem retomadas no momento de análise do material.O material coletado foi analisado sob a vertente teórica do selfdialógico Contexto da experiência e dos estudos de gênero no que diz respeito à construção da masculinidade e seus reflexos no âmbito da saúde, constatando Como citado anteriormente, o objetivo deste relato os diferentes posicionamentos identitários que estes homens de experiência é analisar as diferentes posições acerca da expressavam em seu discurso. masculinidade dentro de um grupo de homens. Visando atender este objetivo se tomou o grupo Guerreiros do Coração Discussão como objeto de estudo. A escolha desse grupo como foco de análise deveu-se à sua proposta de reflexão acerca da identidade Analisando a base teórica dos temas trabalhados no grupo, masculina e seus rituais de funcionamento. bem como seu método de trabalho, é possível compreender o Este grupo iniciou suas atividades em Porto Alegre no funcionamento desse grupo dentro dos Movimentos Coletivos de ano de 1993, surgindo, conforme seus criadores, a partir da Homens descritos por Bonino (1998) anteriormente. Podemos necessidade de autoconhecimento masculino. Tais inquietações situá-lo como relacionado aos Movimentos Mitopoéticos e aos propiciaram a criação de um grupo de apoio e reflexão, composto Movimentos das Terapias da Masculinidade visto que coincide exclusivamente por homens, interessados em discutir as novas com a perspectiva espiritualista e ecológica do primeiro e configurações da masculinidade e suas implicações na vida valoriza, assim como o segundo, a reconstrução ou a redefinição pessoal e familiar contemporânea (Pozatti, 2007). da masculinidade frente às mudanças sociais. O tema da O grupo tem como objetivos formais, o estudo das bases construção de relações mais saudáveis entre homens e mulheres, teóricas físicas, psíquicas, culturais, sociais e espirituais da presente no “Guerreiros do Coração” também se encaixa no perfil realidade e da consciência do masculino. Estuda também as da segunda categoria citada acima. relações durante a sua vida, desenvolvimento do homem, A temática mais discutida nos encontros foi a vinculação utilizando-se de vivências e momentos de partilhas onde os da identidade masculina com os relacionamentos evolutivos participantes podem partilhar experiências e sentimentos acerca de caráter educacionais estabelecidos com os pais, na história do seu próprio desenvolvimento (Pozatti, 2007). O primeiro ciclo de vida dos participantes. Nessas discussões predominavam aborda temas como a relação do homem consigo mesmo, com falas que referiam à ausência do pai no que tange ao cuidado seu pai, com seus amigos, com as mulheres, com sua família, e convivência diária, porém registra-se que a decisão e punições com suas polaridades masculinas e femininas e com a natureza. mais rígidas ficavam a cargo da figura paterna. Para Osherson Os componentes em sua maioria têm como formação (1992), o pai é, geralmente, o referencial masculino primordial mínima o ensino médio, porém o perfil dos participantes do na vida de um homem e o resgate do afeto na relação com grupo é heterogêneo no que diz respeito à área de atuação ele pode significar uma oportunidade de olhar sob uma nova profissional e idade, contando com homens de 18 até 70 anos. perspectiva suas relações masculinas. Segundo o autor, o Os novos participantes geralmente chegam ao grupo por reconhecimento desse afeto contribui para uma flexibilização da indicações de familiares ou amigos próximos que tiveram contato visão sobre a masculinidade. Keen (1991) também cita o resgate com as atividades. O grupo conta com uma sede própria, a qual de uma relação de amorosidade com o pai como um movimento é subsidiada pelo valor pago pelos componentes do Movimento. de reconstrução dos mapas identitários da masculinidade. Embora não haja um número mínimo de participantes para A transição entre o modelo hegemônico de masculinidade formar o grupo, estes costumam ter entre 6 e 20 homens. e as formas marginalizadas desta também se encontra nas A participação dos estudantes de psicologia no grupo ocorreu narrativas expostas no grupo, principalmente no que diz em 6 oportunidades, nas quais os participantes foram devidamente respeito ao questionamento da virilidade e do machismo avisados da presença destese concordaram em compartilhar as suas como equivalente da identidade sexual. Nesse sentido, muitas experiências com os acadêmicos. Logo após o término dos grupos, discussões versaram sobre as rupturas com os modelos os diários de campo eram preenchidos com todas as vivências e tradicionais familiares de masculinidade. Eventos sociais 118 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 114-120 estereotipadamente reconhecidos como campo dos homens, tais como os jogos de futebol, preparo de churrasco aos domingos eram vistos no grupo como pontos de encontro em que se demarcavam o modelo hegemônico. Durante a revisão destas memórias e o questionamento de sua valência se formavam outros significados, estes já permeados por uma maior flexibilidade. Os posicionamentos denotam as características do self como sendo algo a ser analisado dentro da perspectiva temporal e situacional, nas quais posições dominantes ou subordinadas se cruzam em uma rede dialógica, intra e interpessoal de significados (Hermans, 2001). Esta maneira de compreender a identidade ultrapassa a redução do conceito do self às autoimagens fragmentadas e entende que as experiências momentâneas da vida proporcionam novas subjetividades, não separadas das anteriores, e sim fechando uma unidade inteira e não hegemônica com estas (Salgado & Hermans, 2005). No estudo de Bornholdt, Wagner e Staudt (2007), também no contexto gaúcho, são relatadas novas posturas masculinas frente à paternidade, que ilustram sintonia com o que foi trabalhado nos encontros grupais. Foram constatadas vontades por parte desses homens referentes à inclusão e participação no processo de gestação dos seus filhos. Questões sociais também são apontadas, tais como a imagem do pai como principal provedor da família e tendo um papel periférico ou secundário nas suas relações com seus filhos. Bornholdt, Wagner e Staudt (2007) ainda apontam a coexistência de modelos masculinos relacionados com a paternidade na atualidade, exemplificados por desde posturas evitativas até envolvimento intenso com a experiência de ser pai. Ao acompanharem-se as sessões de grupo, tornou-se evidente o jogo de posicionamentos e reposicionamentos pelo qual os participantes passam. Estão presentes o reconhecimento de falas provenientes do modelo hegemônico masculino, caracterizados pela não expressão de afeto, a busca por uma forma de se relacionar mais condizente com um modelo de masculinidade marginalizado, ou seja, que inclua a afetividade na relação entre indivíduos (Salgado & Hermans, 2005). Outro ponto levantado no grupo diz respeito à carência nas relações de amizade. O relato dos homens apontava que o atravessamento do modelo hegemônico como instituinte de vínculos acabava por produzir relações distantes de amizade. Estes não permitem compartilhar para além das relações masculinas enrijecidas. Enquanto que no grupo, as trocas de experiência e sentimentos ocorrem de maneira mais fluida. Essa observação reforça a posição do modelo hegemônico como tentativa de discurso monolítico que visa suprimir outras posições (d’Alte et al., 2007). Os grupos observados denotam a criação de um espaço dialógico, ou seja, se configura em um encontro que favorece a reflexão mútua dos integrantes. Neste item a presença dos facilitadores, componentes mais antigos do grupo, proporciona uma nova posição externa frente ao self dos demais participantes. Essa posição externa adotada pelos facilitadores tem a função de metaposição, a qual auxilia na análise do discurso e na avaliação dos modelos de masculinidade. Posteriormente os componentes do grupo, através do treino de deslocamento de posições e da autorreflexão acerca delas, tendem a realizar esta metaposição sem o auxílio dos facilitadores e incorporá-las a sua vida (Hermans, 2001). Considerações finais No cenário montado neste trabalho, figuram homens em desencontro com a sua masculinidade e homens em busca da reconstrução desta, que obtém como resultado parcial o afastamento destes dos serviços de saúde e cuidado. A inclusão de um grupo de homens que reflitam sobre a identidade masculina dentro da saúde pública, em especial nas Estratégias de Saúde da Família (ESF), pode gerar melhoras não somente nos homens que dele participam como da comunidade local, isto devido às potencialidades de vínculo encontradas nas ESF visto que prestam serviço sempre à mesma população de determinado território. A concentração destas reflexões, em um espaço delimitado e com pessoas deste espaço, podem contribuir para que mudanças ocorram nesta localidade e que os modelos para as novas gerações se constituam mais flexíveis. O Ministério da Saúde ao abordar a temática dos homens e saúde, através da Política Nacional de Atenção Integral a Saúde do Homem, consegue traçar elementos importantes para que haja mudanças neste cenário. Porém, o paradigma da masculinidade, que se configura como fator essencial a ser analisado, ainda apresenta carências no que tange a práticas efetivas dentro dos serviços. Reconhecer os significados pertencentes ao ser homem na contemporaneidade, principalmente desta dificuldade em se abrir para o contato com outras formas de masculinidade, acarreta na busca por intervenções que não pautem pedagogias acerca da saúde, mas que provoque movimentos de abertura para outras possibilidades de se reconhecer como homem. O grupo Guerreiros do Coração se insere na linha de tais mudanças, tendo comprovado nos depoimentos que o trânsito entre as 119 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 114-120 posições reflete em aspectos gerais da vida dos sujeitos que dele participam. Com isso questões que formam barreiras de acesso ao homem entrar em contato consigo mesmo, inclusive com a sua saúde, acabam sendo flexibilizadas. A perspectiva de posicionamento e reposicionamento do self, da teoria de Hermans (2001) contribui com a compreensão da construção e significação do modelo hegemônico de masculinidade como tentativa de impregnação de relações monológicas no campo social. Também demonstra a validade de espaços de discussão com este propósito, que fomentam novas possibilidades do homem frente à sua masculinidade. Por fim, ao analisar de forma ampla as questões debatidas neste texto esclarece-se que grupos que tratem sobre masculinidade se configuram como passo importante no cuidado da saúde de homens. Além destes espaços para reflexão são necessárias estratégias que estejam de acordo com o modus operandi da contemporaneidade, por exemplo, estipulando horários mais acessíveis de atendimento e profissionais capacitados acerca do tema. Referências Bauman, Z. (2003) Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Bonino, L. (1998). Los varones ante el cambio de las mujeres, en Lectora. Revista de Dones i intertextualitat, 4, 12-21. Bornholdt, E. A., Wagner, A. E., & Staudt, A. C. P. (2007). A vivência da gravidez do primeiro filho à luz da perspectiva paterna. Psicologia Clínica, 19(1), 75-92. Connel, R. (1995). La organización social de la masculinidad. In T. Valdes & J. Olavaria (Orgs.), Masculinidad: poder y crisis (pp. 31-38). 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Recebido em setembro/2011 Revisado em novembro/2011 Aceito em dezembro/2011 120 RESENHA Florecer: uma nova compreensão sobre a natureza da felicidade e do bem-estar (362p.) Martin E. P. Seligman Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2012 Tânia Rudnickia* O livro Florecer é produto da experiência e conhecimento do prof. Martin Seligman, autor de bestsellers como Felicidade autentica e Aprenda a ser otimista. Ph.D. em Psicologia nos Estados Unidos, é referenciado por livros sérios e competentes de diferentes áreas do saber. É um dos fundadores de um novo ramo da Psicologia, a Psicologia Positiva, um interessante campo de investigação e intervenção. Historicamente, a preocupação da Psicologia foi investigar doenças, deixando de lado os aspectos saudáveis dos seres humanos. A partir de 1998, Seligman, assumindo a presidência da American Psychological Association (APA) iniciou um movimento denominado Psicologia Positiva, cujo objetivo foi oferecer uma nova abordagem às potencialidades e virtudes humanas, estudando as condições e processos que contribuem para a prosperidade dos indivíduos e comunidades (Paludo & Koller, 2007). Assim sendo, ele apresenta uma nova e revolucionária tese sobre o tema da psicologia positiva, partindo do princípio que sua especialidade deve ir além do alívio ao sofrimento humano, mas também busca elevar o padrão da qualidade de vida individual e coletiva. Além do papel de tratar psicopatias e estados psicológicos negativos, a Psicologia também teria importante contribuição a dar para o desenvolvimento pessoal dos indivíduos, comunidades e nações inteiras (Yunes, 2003). a Psicóloga; Doutora em Psicologia (PUCRS); Diretora Científica da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul/SPRGS. *E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 121 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 121-123 Seligman elege como alvo de prioridade o estudo das emoções positivas, ou seja, dos fatores que levam as pessoas a ter mais felicidade, ao invés de centrar seus estudos nos transtornos mentais, como de praxe na Psicologia. Importa ressaltar que pesquisas envolvendo a teoria da Psicologia Positiva são importantes para o conhecimento e a transformação da nossa realidade, onde as demandas requerem produção de conhecimento científico aplicável, principalmente no que se relaciona a área da saúde. Desta forma, a contribuição da mais nova publicação de Seligman, Florecer, responde a peculiaridades nacionais, onde o trabalho de psicólogos, no campo relacionado à saúde é relativamente novo e necessita ser mais estudado, buscando aprimoramento constante nos serviços prestados (Miyazaki, Domingos & Valério, 2006). Em seu livro Felicidade autentica, assenta a teoria da Psicologia Positiva sobre três pilares: estudo das emoções positivas, estudo dos traços positivos, principalmente as forças e virtudes, e, finalmente, o estudo das instituições positivas – democracia, liberdade, família, todos que sustentam as virtudes, as quais, por sua vez, sustentam as emoções positivas. O livro Florecer: uma nova compreensão sobre a natureza da felicidade e do bem-estar (2011) mostra o amadurecimento dos conceitos e compreensão do campo da teoria. Nesta obra, o autor permeia a discussão sobre a interface de Felicidade Autentica, aprofundando, com evidentes contribuições do conhecimento dos fenômenos psicológicos presentes no contexto laboral do autor. A obra resenhada conta com um único autor, sendo o livro composto por 10 capítulos, um Anexo, contendo o Teste das Forças Pessoais onde é apresentado um exercício para que o leitor possa medir suas forças pessoais, além de dois apêndices, um Agradecimento e o Índice Remissivo. Sua organização segue o modelo biopsicossocial, buscando mostrar formas de agir e interagir na área, visando à integração da Psicologia de uma forma Positiva e voltada aos aspectos mais positivos da vida. Seligman leva o leitor por âmbitos que concernem à saúde e ao bem-estar, tanto no campo teórico como aplicado. Mostra a Psicologia Positiva através de uma importante trajetória de intervenção: a pesquisa científica, bem como são apresentados exemplos práticos que ilustram as possibilidades de intervenção. Os capítulos foram escritos permitindo visualizar a intervenção sob a ótica do descobrimento licenciado pela pesquisa científica. A obra transmite aos profissionais psicólogos, médicos, administradores, coachs, enfermeiros, entre outros, novos e seguros caminhos por onde empreenderem sua jornada. É preciso salientar que o primeiro capítulo do livro apresenta um valioso panorama do percurso do autor, através de uma síntese dos acontecimentos até chegar à possibilidade de desvendar caminhos e divulgar sua teoria, talvez com o intuito de realizar um balanço do próprio desempenho como profissional e pesquisador, buscando mostrar suas opções ao longo do tempo e os resultados alcançados, além de buscar delineamentos futuros. O autor refere que ao escrever Felicidade Autentica, não utilizou o titulo que havia pensado, em função dos editores, não ficando satisfeito com este (Seligman, 2011). Aponta que a psicologia positiva, do modo como ele a concebe, tem a ver com aquilo que a pessoa escolhe por si mesmo. Refere que frequentemente escolhemos o que nos faz sentir bem, mas é muito importante que percebamos que nossas escolhas frequentemente não tem a ver com o modo como nos sentimos. Na teoria da felicidade autentica, a psicologia positiva tem a ver com a felicidade em três aspectos: emoção positiva, engajamento e sentido. E cada um destes elementos é mais bem definido e mais mensurável do que a felicidade. Seligman apontava então que o tema da psicologia positiva era a felicidade e o critério de sua mensuração era a satisfação com a vida. Na obra Florecer, pontua que o tema da psicologia positiva é o bemestar e, o critério para sua mensuração é o florescimento, sendo então, objetivo primordial da Psicologia Positiva, aumentar esse florescimento. O avanço é inegável, tanto na dimensão do aprimoramento quanto na ampliação do conhecimento. Tal mudança reforça a importância do posicionamento do autor, tendo em vista que, no último século, o mundo passou por mudanças radicais, precisando, desta forma processar novas informações (Blanco, Rojas & de La Corte, 2000; Straub, 2005). O livro provoca reflexões a respeito das implicações dos aspectos psicológicos relacionados à melhora da qualidade de vida. A teoria do bem-estar é composta por cinco elementos, que abrangem aquilo que pessoas livres escolherão sendo que, para ser assim considerado cada elemento deve possuir três propriedades: 1) contribuir para a formação do bem-estar; 2) muitas pessoas o buscam por ele próprio; 3) é definido e mensurado independentemente dos outros elementos. Cada um dos cinco elementos possui estas três propriedades, sendo eles: emoção positiva, engajamento, sentido, relacionamentos positivos e realizações. Desta forma, neste primeiro capitulo o autor analisa cada um destes elementos, finalizando com o objetivo maior da psicologia positiva na teoria do bem-estar, qual seja avaliar e produzir o florescimento humano, sendo que seu alcance começa pelo questionamento do que realmente faz a pessoa ser feliz. 122 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 121-123 O capitulo 2 mostra, através de pesquisas cientificas, o funcionamento de exercícios de psicologia positiva que auxiliam no aumento de bem-estar, como a Visita de gratidão, Três bênçãos e exercícios de Forças pessoais. As intervenções psicoterápicas são apresentadas através de fragmentos de relatos de caso. O capitulo 3 trata sobre medicamento e psicoterapia; cura versus alivio de sintomas; exercício sobre resposta ativa e construtiva, aprendendo a lidar com as emoções negativas, psicologia aplicada versus psicologia básica. No capítulo 4, o autor discorre sobre a formação em psicologia positiva aplicada (MAPP) em nível universitário e sobre quem ensinara o bem-estar. Também aborda a transformação pessoal e profissional trazendo informações sobre a utilização da Psicologia Positiva pelo coaching. O capitulo 5 trata do ensino do bem-estar nas escolas. A parte dois do livro trata das formas de florescer. Assim, o capitulo 6 trata de uma nova teoria de inteligência, abordando os temas Garra, Caráter e Realização e suas formas de Avaliação. Os capítulos 7 e 8 versam sobre o ensino do bem-estar no exercito norte-americano. Estes estudos estão voltados ao objetivo de que os jovens da próxima geração floresçam. Ao escrever sobre o programa do mestrado em psicologia aplicada (MAPP), na Universidade da Pensilvânia, trata dos ingredientes da psicologia positiva aplicada, do conteúdo intelectualmente desafiador, de como é transformador, pessoal e profissionalmente e como serve de chamamento para alunos e professores. O capitulo 9 traz sobre a reviravolta na área medica, escreve sobre saúde física positiva: a biologia do otimismo. O conteúdo sobre psicologia da doença traz as origens da impotência aprendida. Relata algumas pesquisas realizadas entre homens e mulheres e algumas doenças orgânicas, como a cardiovascular, câncer e sobre a proteção e bem-estar que o otimismo pode oferecer. São abordadas teorias e descobertas de pesquisas atuais, sendo adicionadas tabelas e figuras atualizadas. Para enriquecer o texto, o autor utiliza exemplos da sua prática pessoal. Suas pesquisas têm como objetivo construir uma metodologia em Psicologia Positiva, sendo que os principais temas estão voltados para a experiência do autor, que aborda as dimensões do seu trabalho como ciência e profissão, através de narração, elaboração e reflexões sobre a Psicologia Positiva. Em suma, encontramos na obra Florecer relevância para o contexto nacional. Alcança mais adequação na formação e atuação do psicólogo brasileiro, do que outras produções redigidas por e para nações já em pleno desenvolvimento social e econômico. Esse é mais outro livro que merece ser lido. É um livro de Psicologia voltado não só para profissionais da área, sendo interessante frisar a metodologia científica com a qual foram elaborados os argumentos que levaram à fundação dessa nova área. Como Felicidade Autentica este não é um livro que fica só na teoria. Ele fornece exemplos práticos revelando muito sobe o bem-estar e o crescimento da pessoa. Não poderia deixar de citar as situações que o autor narra da convivência com seus filhos, mostrando que muitas destas situações despertaram nele o momento “de luz” para diversos aspectos da teoria que explicitava. Referências Blanco A. A., Rojas, D., & De La Corte, L. (2000). La psicología y su compromiso con el bienestar humano. In A. A. Blanco (Org.), Psicología y Sociedad (pp. 9-46). Valencia: Real Sociedad Económica de amigos del País. Miyazaki, M. C. O. S., Domingos, N. A. M., & Valério, N. I. (Orgs.). (2006). Psicologia da Saúde: Pesquisa e Prática. São José do Rio Preto: THS/Arantes Editora. Paludo, S. S., & Koller, S.H. (2007). Psicologia Positiva: uma nova abordagem para antigas questões. Paidéia, 17(36), 9-20. Straub, R. O. (2005). Psicologia da Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas. Yunes, M. A. M. (2003). Psicologia positiva e resiliência: o foco no indivíduo e na família. Psicologia em Estudo, 8(num. esp.), 75-84. Recebido em dezembro/2011 Revisado em janeiro/2012 Aceito em janeiro/2012 123