O 80 fESTIval PalcO gIRaTóRIO/POa vEM aí
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O 80 fESTIval PalcO gIRaTóRIO/POa vEM aí
o 8 festival Palco giratório/POA vem aí 0 Também nesta edição caderno de teatro: Ilo krugli fala de suas andanças pela américa latina Cacá Carvalho completa a trilogia de Pirandello 13 PRIMEIRO SEMESTRE 2013 ISSN 1984-056X DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA 08 34 22 artes cênicas caderno de teatro música 08 A Cia. Mungunzá retorna ao Festival Palco 22 O ator, diretor, dramaturgo, educador, artista 34 Artigo da pesquisadora Ermelinda Paz Giratório com o impactante espetáculo plástico e bonequeiro argentino radicado homenageia o crítico, produtor musical e Luis Antonio-Gabriela no Brasil desde 1961 Ilo Krugli, homenageado compositor Edino Krieger, autor do projeto da no circuito nacional do Festival Palco Bienal de Música Brasileira Contemporânea Giratório 2013, conta episódios de sua (BMBC), o mais antigo, importante e regular itinerância pela América Latina evento do gênero, realizado desde 1975 12 Patricia Fagundes aborda o 14º Simpósio da International Brecht Society no artigo A Cena em Trânisto – Cruzando fronteiras 15 Cacá Carvalho completa a trilogia de Pirandello com umnenhumcemmil 20 Guarda-chuvas invadem a paisagem no projeto {pingos&pigmentos} DIRETORIA O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Zildo De Marchi Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac Everton Dalla Vecchia Diretor Regional Sesc/RS www.sesc-rs.com.br GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura Jane Schöninger Coordenadora de Cultura UNIDADES SESC NO RIO GRANDE DO SUL SESC Alegrete R. dos Andradas, 71 55 3422.2129 SESC Bagé R. Barão do Triunfo, 1280 53 3242.7600 SESC Bento Gonçalves Av. Cândido Costa, 88 54 3452.6103 SESC Cachoeira do Sul R. Sete de Setembro, 1324 51 3722.3315 SESC Cachoeirinha R. João Pessoa, 27 51 3439.1751 SESC Camaquã R. General Zeca Neto, 1085 51 3671.6492 SESC Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 SESC Carazinho Av. Flores da Cunha, 1975 54 3331.2451 SESC Caxias do Sul R. Moreira César, 2462 54 3221.5233 SESC Centro POA Av. Alberto Bins, 665 51 3284.2000 SESC Comunidade POA R. Dr. João Inácio, 247 51 3224.1268 SESC Cruz Alta Av. Venâncio Aires, 1507 55 3322.7040 SESC Erechim R. Portugal, 490 54 3522.1033 SESC Farroupilha R. Coronel Pena de Moraes, 320 54 3261.6526 SESC Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 SESC Ijuí R. Crisanto Leite, 202 55 3332.7511 SESC Lajeado R. Silva Jardim, 135 51 3714.2266 SESC Montenegro R. Capitão Porfírio, 2205 51 3649.3403 SESC Navegantes POA Av. Brasil, 483 51 3342.5099 SESC Novo Hamburgo R. Bento Gonçalves, 1537 51 3593.6700 SESC Passo Fundo Av. Brasil, 30 54 3311.9973 SESC Pelotas R. Gonçalves Chaves, 914 53 3225.6093 SESC Redenção POA Av. João Pessoa, 835 51 3226.0631 SESC Rio Grande Av. Silva Paes, 416 53 3231.6011 SESC Santa Cruz do Sul R. Ernesto Alves, 1042 51 3713.3222 SESC Santa Maria Av. Itaimbé, 66 55 3223.2288 SESC Santa Rosa R. Concórdia, 114 55 3512.6044 SESC Santana do Livramento R. Brigadeiro Canabarro, 650 55 3242.3210 SESC Santo Ângelo R. 15 de Novembro, 1500 55 3312.4411 SESC São Borja R. Serafim Dornelles Vargas, 1020 55 3431.8957 SESC São Leopoldo R. Marquês do Herval, 784 51 3592.2129 SESC Taquara R. Júlio de Castilhos, 2835 51 3541.2210 SESC Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400 SESC Tramandaí R. Barão do Rio Branco, 69 51 3684-3736 SESC Uruguaiana R. Flores da Cunha, 1984 55 3412.2482 SESC Vale do Gravataí R. Anápio Gomes, 1241 51 3497.6263 SESC Venâncio Aires R. Jacob Becker, 1676 51 3741.5668 Hotel SESC Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Hotel SESC Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Hotel SESC Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400 38 48 58 CINEMA ARTES VISUAIS literatura 38 Luis Rubira no artigo Por que realizar ciclos 48 Museu de Arte Contemporânea do Rio 58 Thiago Cruz, no artigo A Descoberta do de filosofia e cinema? faz uma reflexão Grande do Sul (MACRS) completa 21 anos Mundo, faz uma homenagem ao escritor a partir do projeto que desenvolve na e comemora a conquista de uma nova sede francês Albert Camus no ano do centenário Universidade Federal de Pelotas (UFPel), pelo e de importantes aquisições para o acervo de seu nascimento qual já foram exibidos ciclos relacionados 61 Rubem Braga, o cronista que veio da lágrima a cinema político, cinema religioso, cinema 52 Artigo Itinerâncias: As produções infantis psicológico e, em 2013, o cinema existencial em constante movimento analisa os é o artigo de Rubem Penz que marca resultados do projeto Chinelos Itinerantes, os 100 anos do escritor desenvolvido pela equipe de Educação Infantil da Escola de Ijuí 65 Leitura 54 O projeto Cartografias infantis: a cidade pela criança / a fotografia pela infância em artigo de Luciano Bedin da Costa e Larisa Bandeira BALCÕES SESC/SENAC Alvorada Av. Getúlio Vargas, 941 51 3411.7750 Cachoeirinha Av. Flores da Cunha, 1320 Sala 805 51 3438.3249 Caçapava do Sul Av. XV de Novembro, 267 55 3281.3684 Frederico Westphalen R. do Comércio, 1013 55 3744.8193 Gravataí R. Álvares Cabral, 880 51 3043.7916 Guaíba R. São José, 433 Sala 01 51 3402.2106 Itaqui R. Dom Pedro II, 1026 55 3433.1164 Jaguarão R. XV de Novembro, 211 53 3261.2941 Lagoa Vermelha Av. Afonso Pena, 414 Sala 104 54 3358.3089 Nova Prata Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B 54 3242.3302 Osório Av. Jorge Dariva, 941 51 3663.3023 Palmeira das Missões R. Marechal Floriano, 1038 55 3742.7164 Quaraí R. Baltazar Brum, 617 8º andar 55 3423.1664 Santiago R. Pinheiro Machado, 2232 55 3251.5528 São Gabriel R. João Manuel, 508 55 3232.8422 São Sebastião do Caí R. 13 de Maio, 935 Sala 04 51 3635.2289 São Sepé R. Coronel Chananeco, 790 55 3233.2726 Sobradinho R. Lino Lazzari, 91 51 3742.1013 Três Passos Rua Don João Becker, 310 55 3522.8146 Vacaria R. Marechal Floriano, 488 Sala 17 54 3231.5883 Viamão R. Marechal Deodoro, 175 Loja 102 51 3434.0391 NÚCLEO DE ATENDIMENTO SESC São Luiz Gonzaga R. Treze de Maio, 1297 55 3352.7398 Coordenação, execução e produção editorial Pubblicato Design Editorial Rua Mariante, 200 Sala 02 51 3013.1330 90430-180 Porto Alegre/RS Andréa Costa ([email protected]) Diretora de Criação e Atendimento Vitor Mesquita Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396) Edição e Reportagem Grace Prado Revisão de Texto Ideograf Impressão de 1.000 exemplares CAPA Foto de Bob Souza do espetáculo Luis Antonio-Gabriela, da Cia. Mungunzá primeiro SEMESTRE 2013 6 primeiro SEMESTRE 2013 7 Jorge Menna Barreto, Poemas no Chão Foto: Acervo MACRS democratizar o acesso à cultura Propor uma reflexão sobre o cenário cultural gaú- também são temas de artigos publicados nesta cho e brasileiro é uma das finalidades da Revista Revista Arte Sesc. Arte Sesc, que é editada semestralmente e difun- Com as ações do Arte Sesc – Cultura por dida junto à classe artística e demais formadores toda parte, o Sistema Fecomércio-RS tem estado de opinião da área cultural. presente nos 497 municípios gaúchos, levando as O Caderno de Cultura desta edição é com Ilo Krugli, do Teatro Ventoforte, que é o grande mais variadas manifestações artísticas e fomentando a economia das localidades. homenageado do Palco Giratório 2013. E falan- Ampliar o acesso dos gaúchos à produção ar- do em Palco Giratório, o destaque desta Revis- tística e promover a troca de experiências entre os ta Arte Sesc é o 8º Festival Palco Giratório Sesc/ artistas e produtores estão preconizados no planeja- POA, que acontecerá de 3 a 28 de maio, na Capi- mento do programa cultural da instituição. Por meio tal gaúcha. A Cia. Mungunzá e o seu espetáculo de apresentações de dança, artes cênicas e música, ‘Luis Antonio-Grabriela’, assim como o projeto exposições de artes visuais, sessões de cinema, ofi- Pingos e Pigmentos, estão entre as pautas desta cinas e debates, temos procurado seguir os eixos da edição. Simpósio Brecht na América Latina, Edino transversalidade, diversidade e acessibilidade. Krieger, reflexões filosóficas no cinema, fotografia e infância, itinerâncias de produções infan- Boa leitura! tis, centenário de Albert Camus e Rubem Braga Zildo De Marchi Everton Dalla Vecchia Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac Diretor Regional Sesc/RS ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 8 Luis Antonio-Gabriela Aclamada como a mais Meados de 2010. Depois de circular pelo país por tamento e os dois passaram a se corresponder. “A impactante atração do dois anos e ganhar 38 prêmios com o espetáculo partir de documentos, dos relatos e das cartas, foi de estreia Por que a criança cozinha na polenta, desenvolvida a dramaturgia do espetáculo. Tudo 7º Festival Palco Giratório adaptado de um romance romeno sobre uma me- que é falado no palco foi dito por alguém em de Porto Alegre em 2012, nina de uma família de circo que cresceu no perí- algum momento”, diz o ator que interpreta Luis o espetáculo da Cia. odo autoritariamente trágico da cortina de ferro Antonio-Gabriela, Marcos Felipe. do leste europeu, a Cia. Mungunzá, de São Pau- Para o ator, havia um risco muito grande de lo, decide que chegou a hora de entrar na sala de encenar a história, junto com alguém que estava ensaio para fazer um segundo trabalho. O diretor no seio do problema e decide expor isso, sem cair pessoal envolvendo a Nelson Baskerville, de 17xNelson, Camino Real e em clichês. O resultado, porém, é surpreendente, família do diretor nelson também do primeiro espetáculo, conta ao grupo ousado, ora faz rir, ora faz chorar. Todo o espetá- a sua própria história, em que o irmão mais ve- culo foi concebido na sala de ensaios. O diretor lho Luis Antonio, desde criança identificado com musical Gustavo Sarzi compôs a trilha durante o à capital gaúcha na situações femininas, desafia as convenções de uma processo de pesquisa e a executa ao vivo no pia- edição 2013 do evento, família conservadora na cidade de Santos dos anos no. Os atores aprenderam a tocar instrumentos de 1960 e vai para Espanha como Gabriela. Ence- para o espetáculo. A atriz Day Porto é a figura nar a história era como um pedido de desculpa ao emblemática que canta, quase uma performer. irmão de quem não teve notícias por 30 anos – e Pedro Augusto é o técnico performático em cena. nem se importou com isso –, até a sua morte na O artista visual Thiago Hattnher acompanhou Europa. Para a companhia, era uma oportunidade os ensaios para criar 20 telas inspiradas no es- de pesquisa e de provocar o debate sobre um tema petáculo com a intenção de reproduzir o Museu que ainda divide a sociedade contemporânea. Guggenheim Bilbao. “Não nos prendemos a um Mungunzá realizado a partir de uma história baskerville retorna no mês de maio A partir do argumento de Nelson, posterior- dispositivo estético. Se precisar de um vídeo para mente ampliado em um longo relato, o grupo que a história seja mais bem contada, usamos o coletou depoimentos dos principais envolvidos: a vídeo, se precisar cantar uma música para passar irmã, a madrasta e uma travesti de Santos, con- a informação com mais emoção, cantamos a mú- temporânea de Luis Antonio. Depois do boato de sica, então é uma mistura de todas as linguagens: sua morte na Espanha, a fim de resolver questões artes visuais muito forte, música muito forte, burocráticas, a irmã tenta localizá-lo, em vão em performance, projeções de vídeo como se fosse um primeiro momento, até que a embaixada bra- cinema”, destaca o ator. “Já havíamos feito isso sileira o encontra vivo, porém debilitado pela aids. no primeiro espetáculo, mas neste verticalizamos Ela chegou a visitá-lo depois de 30 anos de afas- ainda mais.” ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 Foto: Bob Souza 9 ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 10 A construção do espetáculo recebia um calhamaço de textos. Tínhamos que Brecht. “É muito claro que seguimos esta referên- defender o personagem se não ele não existiria cia, mas têm cenas que é o avesso, uma coisa de no espetáculo. E eu só tinha as cartas, não tinha realismo, Stanislawski. Saímos um pouco do que o relato.” Brecht propõe. Tem cenas de um teatro muito Os ensaios se estenderam por um ano. “Precisa- Embora Luis Antonio-Gabriela seja conside- narrativo, muito inspirado no teatro alemão, em rado um documentário cênico, para Marcos Fe- companhias de dança, de performance, Constan- lipe, o trabalho da Mungunzá não se enquadra za Macras, a companhia belga Need Company, em nenhum gênero específico de teatro, já que bastante ligada à estética que procuramos, que mos de muito tempo pra fazer, pra errar, pra re- tem todas as características de um drama, todas é essa piração visual para levar ao público uma fazer e acertar. Saímos do nada, só do argumen- de comédia, de musical, têm cenas lindas outras história bem contada.” to, todo mundo junto, improvisando, e o Nelson tristes. “Acho que conseguimos quebrar uma coi- O ator admite que, de certa forma, o espe- foi interligando as histórias, alinhavando, tiran- sa careta do teatro, aquela parede, teatro quase táculo é uma poluição visual. São cinco cenas do o que estava demais”, conta Marcos Felipe. como uma obrigação cult, chato, surpreendemos acontecendo ao mesmo tempo, de maneira dife- Com os depoimentos transcritos, o grupo come- a todo momento, divertimos, fazemos chorar, que rente, todas falando do mesmo assunto. “A gente çou a trabalhar as cenas mais plásticas, funda- são funções primordiais do teatro”, avalia. O gru- entende que arte é um reflexo da realidade, então mentais para contar a história, a trilha foi sendo po também não se prende a uma estética, embora joga toda a balbúrdia que vemos no mundo atual inserida, os vídeos, até que o diretor dividiu os tenha sido criado em 2006 por meio da união de pra cena, com pouquíssimos diálogos, quase tudo personagens. “Ele disse: a partir de agora você atores recém-formados, motivados a aprofundar narrado.” A Cia. Mungunzá, formada ainda por é responsável por encaixar esta pessoa dentro as técnicas aprendidas a fim de desenvolver, em Sandra Modesto, Verônica Gentilin (que interpre- da estrutura que a gente inventou, e cada ator especial, um estudo detalhado do Teatro Épico de ta Nelson e assina com ele a dramaturgia), Virgí- ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 11 nia Iglesias e Lucas Breda, mostra em cena fotos, O documentário cênico desenvolvido a partir do argumento do diretor Nelson Baskerville sobre a história de seu irmão Luis Antonio, foi eleito o melhor de 2011 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) documentos, trabalha com luz fria, operada pelos atores do palco, deixando de lado a iluminação convencional. “A gente dança, toca, vai apagar a luz, acende a luz, uma loucura!” Fotos: Bob Souza A Cia. Mungunzá, que tem uma estrutura de cooperativa em que cada integrante assume uma tarefa – assessoria de imprensa, editais, logística, trâmites burocráticos –, estreou Luis Antonio-Grabriela em março de 2011, no Centro Cultural São Paulo. Depois de cinco temporadas, passou a circular pelo Brasil, chegando a Portugal no ano seguinte. Com três indicações, o espetáculo foi eleito o melhor de 2011 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), recebeu cinco indicações para o Prêmio Shell SP e venceu como melhor diretor, entre outros reconhecimentos. Em dois anos, foram mais de 250 espetáculos com um público de 38 mil pessoas. Aventura “almodovariana” POR Nelson Baskerville Em 2002, recebi uma ligação de minha segunda mãe, Doracy – segunda mãe porque minha primeira faleceu após o meu parto, fazendo meu pai, Paschoal, viúvo com seis filhos, casar com a Dona Doracy, viúva com três filhos, quando eu tinha dois anos – ela me ligou pra dizer que Luis Antonio havia morrido na Espanha. Luis Antonio, pra mim, era aquele irmão, oito anos mais velho, que sempre mantive na sombra. Só alguns poucos amigos sabiam da sua existência, ele era aquele que, além de me seduzir, e abusar sexualmente, fazia com que muitos dedos da cidade de Santos fossem apontados pra nós, os “irmãos da bicha”, “a família do pederasta” e outros nomes. Sou obrigado a confessar que a notícia da morte dele não me abalou nem um pouco. Eram quase 30 anos sem saber nada dele, sem saber se ele estava vivo ou morto, enfim, liguei pra minha irmã, Maria Cristina, advogada para passar a notícia pra frente e a preocupação imediata dela foi com os papéis, atestado de óbito, documentação para o espólio, etc. Mas não sabíamos nada do fato e nem ao menos o local exato de sua morte. Maria Cristina empreendeu então uma jornada fadada ao fracasso que era saber notícias do paradeiro dele. Depois de alguns meses, através da embaixada brasileira na Espanha ela o encontrou. Mas não exatamente da forma que esperava. Luis Antonio estava vivo, morava em Bilbao e a partir disso começamos a tentar formar e entender aquela lacuna de 30 anos que nos separavam dele. Minha irmã, numa aventura “almodovariana” foi encontrá-lo. Luis Antonio chamava-se agora Gabriela, tinha sido uma estrela das noites de Bilbao, era viciada em cocaína e a aids era a menor das suas doenças. Através da Maria Cristina, passamos então a ter notícias dele até sua morte, agora verdadeira, em 2006. As perguntas mais frequentes dos amigos ao saberem da história eram: mas vocês nunca mais se viram? Resposta: nunca. Por que não o trouxeram de volta ao Brasil quando o encontraram doente? Resposta: porque não. Você não foi nem ao enterro? Não. Fiz esse espetáculo. ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 POR Patricia Fagundes 12 Diretora da Cia. Rústica de Teatro e professora de Direção Teatral no Departamento de Arte Dramática da UFRGS A CENA EM TRÂNSITO cruzando fronteiras Frente às distâncias e fronteiras impostas de for- lítica, vida e arte, corpo e mente, popular e erudito. entre “nós” e “eles”, eu e o outro, arte ma mais ou menos evidente pelo poder corporati- Nas últimas décadas, tais divisões foram questio- e vida, passa a ser difusa e indefinida. vo, o imaginário de nossa época reage afirmando nadas e profanadas de inúmeras formas dentro do (Gómez-Peña, 2005:24) [1] o desejo de fazer conexões, como evidenciam os contexto das artes cênicas, que ampliou de manei- conceitos recorrentes de rede, comunidade, rizo- ra intensa e significativa os seus próprios limites Atuando dentro do contexto da performance ma; uma espécie de reivindicação da importância de ação. No tecido artístico contemporâneo, dis- art, declara-se um intelectual interdisciplinar, pós- de relações entre o mundo, as pessoas e as coi- seminam-se propostas de habitar fronteiras como -mexicano, performer, ativista, escritor e pedago- sas. Mesmo que esse desejo esteja longe da pos- territórios nômades onde as dicotomias redutoras go; em travessia por perigosas zonas de fronteiras, sibilidade de realização plena, sua potência e sua perdem o sentido e o que importa não é mais a por exemplo, a cisão entre “alta” e “baixa” cultura. extensão não podem ser negadas. Ainda que os “essência”, e sim as relações, “criar espaços livres, Andreas Huyssen denomina a Grande Divisão “o limites geográficos entre países estejam cada vez durações cujo ritmo se contrapõe ao que impõe a tipo de discurso que insiste em uma distinção ca- mais controlados e disputados, fortalecem-se os vida cotidiana, favorecer um intercâmbio humano tegórica entre arte elevado e cultura de massas” movimentos de trânsito e busca de dissolução de diferente das ‘zonas de comunicação’ impostas” (Huyssen, 2002:7), que predominou especialmente fronteiras tanto físicas como subjetivas. (Bourriaud, 2006: 16). no final do século XIX e no período entre guerras do século XX, mas permanece infiltrado no contex- Na arte, com frequência, pretende-se diluir Guillermo Gómez-Peña é um artista que limites, não apenas entre linguagens e especiali- se propõe precisamente a trabalhar em espaços zações, mas também entre velhas dicotomias que fronteiriços entre culturas, idiomas, pessoas, lin- insistem em manter-se: ética e estética, arte e po- guagens artísticas, nacionalidades, gêneros, con- …o dogma do alto modernismo se fez ceitos. O trânsito permanente afirma-se como estéril e nos impede de entender os atu- uma escolha política, artística e vital, que celebra ais fenômenos culturais. Os limites entre contradições, ambiguidade e paradoxos, evitando arte elevado e cultura de massas se tor- homogeneizar diferenças. naram cada vez mais nebulosos, e deve- to cultural contemporâneo. mos começar a considerar esse processo Talvez meu trabalho seja abrir espaços como uma oportunidade no lugar de la- temporais de utopia/desutopia, uma zona mentar a perda de qualidade e a carên- “desmilitarizada” na qual um compor- cia de veia. Muitos artistas incorporaram tamento “radical” significativo e pen- exitosamente em suas obras formas da samentos progressistas são permitidos, cultura de massas, e certas seções da mesmo que apenas durante o tempo da cultura de massas adotaram estratégias apresentação. Nessa zona imaginária, da alta. (Huyssen, 2002: 9-10) tanto artistas como espectadores recebem permissão para assumir múltiplos e Hoje, é praticamente impossível rejeitar toda mutantes posicionamentos e identida- interação com a “cultura de massas”, dado que ela des. Nessa zona de fronteira, a distância está onipresente em nosso cotidiano e se infiltra ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 1 Definição institucional retirada do blog da Escola Sesc de Ensino Médio. Fonte: http://www.escolasesc.com.br/. Acesso: jun.12 Todas as traduções são da autora. em todos os poros de nosso corpo; sem precon- nos perder facilmente em esta casa de ceitos como o que possa ser considerado “eleva- atrações de espelhos virtuais, inversões do”, provocador ou inovador, ao contrário. A cul- epistemológicas e percepções torcidas – tura pop é sedenta de novidades, o que antes era uma zona onde todos os desejos e me- marginal vira tendência, o mainstream devora as dos são imaginários e o “conteúdo” é só margens, quanto mais “radical”, “exótico” ou “alter- uma memória vaga. Se isso acontece, os nativo” é um evento ou artista, mais atraente pode artistas da performance art podem aca- parecer. O conteúdo televisivo (ao qual somos ex- bar sendo apenas outro show “extremo” postos desde a infância), por exemplo, é generoso de variedades, no extensivo e em cons- em escândalos, violência, sexo perverso, apelações tante transformação cardápio da cul- variadas – caracterizando uma oferta que G. Gó- tura globalizada. Que tempos perplexos mez-Peña denomina como o mainstream bizar- para aqueles que pensam criticamente. re. O artista denuncia a devoradora presença do (Gómez-Peña, 2005: 51) 13 “multiculturalismo das grandes corporações”, que absorve e comercializa a diversidade, transforman- São tempos em que as estratégias de controle do a diferença em produto fashion. Em resposta a social não ocorrem tanto pela repressão direta, a este corporate multiculturalism, Gómez-Peña ar- cultura de massas é permissiva, hipersexualizada ticula justamente “extravanganzas épicas que re- e “ousada”, um tentáculo fundamental da socie- produzem suas próprias práticas de representação” dade farmacopornográfica (Preciado, 2008) a (ibid: 50), na forma de extreme fashion-shows, por qual corresponde, onde a vida “está exposta a e é exemplo. Como reação à colonização devoradora, construída por um aparato de autovigilância, pu- outras práticas de canibalismo. No entanto, o artis- blicidade e midiatização globais”, “formando parte ta alerta sobre os perigos de tais trânsitos: de um bordel-laboratório global integrado multimídia, no qual o controle de fluxos e afetos se leva O bizarro hegemônico borrou efetiva- a cabo através da forma pop excitação-frustração” mente as fronteiras entre cultura pop, (ibid:44), em que a sexualidade, o corpo e os de- performance e “realidade”. A nova locali- sejos são hiperexpostos e transformados em mer- zação de outras fronteiras, entre público cadoria. Em reação, B. Preciado propõe “inventar e performer, entre a superfície e o sub- outras formas públicas, compartilhadas, coletivas terrâneo, entre identidades marginais e e copyleft de sexualidade que superem o estreito tendências fashion é ainda incerta. Uma marco da representação pornográfica dominante coisa é clara para mim: os artistas que e o consumo sexual normatizado” (ibid). Ou seja, a exploram as tensões entre estas fron- autora também defende uma estratégia antropo- teiras devem estar atentos. Podemos fágica de resistência, que reproduza, reinventadas, Guillermo Gomez-Peña (ao centro) em La Pocha Nostra Foto: Ana Diez ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 14 as próprias práticas de representação hegemônica, cruzando limites impostos. Ao pensarmos as relações entre ética e estéti- sacreditadas. Brecht e Gómez-Peña se encontram ca, assim como entre arte e política, não podemos em um evento que atravessa fronteiras e que en- Outra divisão questionada no contexto da deixar de considerar o legado de Bertold Brecht, foca o tema do “espectador criativo”, transitando arte e do pensamento contemporâneo se encontra que em seu tempo articulou propostas cênicas entre arte e política. entre ética e estética. Considerando a ética como como ação no mundo e estratégia de transforma- Podemos pensar que onde haja uma frontei- o fator que une um grupo, a “argamassa social”, e ção social; sem dissociar a crítica e a reflexão do ra que se pretenda ser rígida, os artistas cênicos a estética como “a faculdade de experimentar em prazer ou entretenimento, ou a cultura popular da poderiam fazer festas: entre países ricos e pobres, comum”, M. Maffesoli (2007) propõe uma “ética da “seriedade” de propósitos. entre bons e maus, entre corpo e mente, popular e estética”, definida pela “compreensão do vínculo erudito, ética e estética, entre santas e putas, entre social a partir dos parâmetros não racionais que Desde o princípio, o negócio do teatro tu e eu. Dançar até que os limites estreitos se dilu- são o sonho, o lúdico, o imaginário e o prazer dos foi entreter as pessoas, assim como de am, até que o corpo diga a verdade sensível e tro- sentidos” (ibid: 57) e por uma perspectiva que de- todas as outras artes. É essa função pecemos exaustos de toda rigidez. Como o próprio fende a importância do sensível na rede de rela- que lhe confere sua dignidade parti- conceito de relacional sugere, é tempo de cruzar ções sociais, salientando que o ato de experimen- cular; não necessita outro passaporte limites e ampliar as redes de relações – a arte pode tar algo juntos é fator de socialização. que a diversão, mas esta tem que ofe- ocupar um importante papel em necessários mo- recer. Não devemos transformá-lo em vimentos de conexão. Assim, pois, em um movimento circular uma fonte de moralidade se queremos sem fim, a ética, o que congrega e une o elevar seu status, nos arriscaríamos a grupo, se faz estética, emoção comum provocar o efeito contrário, degradá- e vice-versa. Há uma simetria entre es- -lo. […]. O teatro deve permanecer in- ses dois polos, e é a corrente que pas- teiramente supérfluo, ainda que seja o sa entre eles o que determina a maior supérfluo pelo qual vivemos. Nada ne- ou menor intensidade da existência. cessita menos justificativa que o prazer. (Maffesoli, 2007:17). (Brecht, 1964: 180-181) Desde a estética, N. Bourriaud encontra a so- No 14º Simpósio da International Brecht So- ciologia de M. Maffesoli em sua proposta de uma ciety, que acontecerá em Porto Alegre de 20 a 23 arte relacional como o lugar de produção de uma de maio de 2013, o “legado brechtiano” será consi- sociabilidade específica, que estabelece espaços derado a luz das práticas e das reflexões contem- concretos, microterritórios criados a partir de inter- porâneas, em uma programação que inclui confe- câmbios sociais. Em sintonia com esta perspectiva rências, mesas de comunicações e apresentações relacional, que identifica a prática artística como artísticas, articulando trânsitos entre teoria e prá- invenção de relações entre sujeitos e estratégias de tica, tradição e inovação, diferentes nacionalidades BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006. criação de universos possíveis, O. Cornago (2008) e pontos de vista. Outra divisão que as diretrizes BRECHT, Bertold. Brecht on Theatre. Edited and translated by Jonh Willett. Londres: Methuen, 1964. desenvolve a ideia de uma ética do corpo, baseada do simpósio claramente ignoram se situa entre na situação real, concreta e física do encontro, que teatro e performance art: tanto na programação CORNAGO, Óscar. Éticas del Cuerpo. Madrid: Fundamentos, 2008. parte da unidade mínima do corpo e condiciona acadêmica como na cultural, a multiplicidade das “uma política em tom menor que começa pelo eu. práticas cênicas contemporâneas é reconhecida, A ética remete a um espaço de proximidades […] em seus atravessamentos polifônicos e fecunda- na qual o espaço do privado fica ligado ao social” mente impuros. Gómez-Peña, um dos artistas que (ibid:52). Nesse contexto, a cena contemporânea participará da programação por meio do coletivo trataria de “recuperar o corpo como um modo de La Pocha Nostra, considera a fronteira entre tea- pensar e estar frente ao outro” (ibid), em uma di- tro e performance art como especialmente difusa, nâmica em que o discurso ético é gerado “desde o evitando colocá-los em oposição binária. De forma interior da própria obra” (ibid:53). geral, as oposições binárias são formações hoje de- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GÓMEZ-PEÑA, Guillermo. Etcno-techno. Writings on performance, activism and pedagogy. London and New York: Routledge, 2005. GÓMEZ-PEÑA, Guillermo, SIFUENTES, Roberto. Exercises for Rebel Artists. Radical Performance Pedagogy. London and New York: Routledge, 2011. HUYSSEN, Andreas. (1986) Después de la gran división: modernismo, cultura de masas, posmodernism. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2002. MAFFESOLI, Michel. (1990) En el crisol de las apariencias. Para una ética de la estética. Madrid: Siglo XXI, 2007. PRECIADO, Beatriz. Testo Yonqui. Madrid: Espasa Calpe, 2008. www.pochanostra.com www.brechtportoalegre.com ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 15 Cacá Carvalho completa a trilogia de Pirandello com umnenhumcemmil Ator apresenta o espetáculo no 8o Festival Palco Giratório realizado no mês de maio em Porto Alegre ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 16 A relação do ator Cacá Carvalho com o dramaturgo italiano Luigi Pirandello iniciou com a montagem da peça teatral O Homem com a Flor na Boca por sugestão do diretor Roberto Bacci, com quem trabalha há 25 anos na Fondazione Pontedera de Teatro, na Itália. Isso foi há duas décadas. Com a mesma equipe, 10 anos depois, Cacá estreou A Poltrona Escura, inspirado em três novelas cedidas pelo herdeiro legal da obra do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1934. Com a encenação do romance Um Nenhum e Cem Mil, que no espetáculo virou umnenhumcemmil, previsto para o último final de semana do 8º Festival Palco Giratório de Porto Alegre, em maio, o ator encerra a trilogia pirandelliana. Em entrevista concedida à revista Arte Sesc por telefone, Cacá Carvalho fala sobre a trilogia, em especial o último espetáculo, a obra de Pirandello e outras histórias. ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 17 Neste ano, você está se apresentando com as três peças simultaneamente pela primeira vez. como está sendo esta experiência? Agora, é um momento particular porque fiz O Homem com a Flor na Boca, que é uma peça teatral do Pirandello, há 20 anos; A Poltrona Escura, com base em três novelas, há 10, e no ano passado umnenhumcemmil, que é um romance. Todos os espetáculos com a mesma equipe. O que acontece é que estou, desde fevereiro, vivendo a experiência de fazer as três peças juntas. Faz um, desmonta, faz outro e depois o outro e depois descanso. São 125 páginas de texto no total, um dura 1 hora, outro 1 hora e 25 minutos e outro 1 hora e 15. São 3 horas e meia de discurso, de presença. Com esta voz deste homem que é muito partiComo foi que Luigi Pirandello entrou na estudar toda a obra do autor, tinha que dar cular, porque agora estou me dando conta sua vida? respostas àquela ali. do que foi que nós fizemos, tá nascendo um Minha experiência com texto do Pirandello Então, fui começar de fato a me interessar sentido para um trabalho que foi sendo feito foi há 20 anos, quando por sugestão de meu e conhecer, no sentido de ver afinal de que sem o propósito de juntar um com o outro. diretor, Roberto Bacci, nós encenamos O Ho- gigante é este texto, quando eu já estava Quando nos demos conta no ano passado, mem com a Flor na Boca. Naquele momento, no Brasil com o espetáculo. Porque o espe- tínhamos três trabalhos, um espetáculo em a minha cultura sobre a obra do Pirandello táculo estreou na Itália, com a Pontedera, cada gênero distinto. E pensamos como seria era muito curta. Sabia dos textos clássicos: centro de pesquisa teatral com o qual tenho fazê-los e vimos que o espaço, casualmente, Seis Personagens à Procura de um Autor, relação há 25 anos. Hoje, passados 20 anos não foi pensando, é um desdobramento para Esta Noite Improvisa-se. Não sei nem dizer de convívio com a obra te digo que não sei o outro e para o outro, as cadeiras de um hoje, à distância, se eu tinha lido ou se eu sa- o que é para outros atores, mas eu nunca espetáculo servem para o outro, a poltrona bia de tão famosas, sabe aquelas obras que me imaginei fazendo um mesmo autor por de um, encapada vira de outro, é como se você já conhece sem ler? Ou se tinha conta- tanto tempo da minha vida. Hoje tenho 60 esse terceiro fosse uma evolução natural de to, era muito superficial para saber como era e faço desde os 40, um terço da vida. E isso duas coisas que o precedem, como se fosse a dramaturgia. significa, não para minha carreira, isso sig- uma pessoa mais adulta resultado de um Quando começou o trabalho sobre O Homem nifica no meu discurso, no que penso, bem processo de maturidade que chega ao esta- com a Flor na Boca, era tão estranha pra ou mal, é um mantra que você repete por do de um homem de 60 anos. Como se você mim a forma como aquele diretor italiano 20 anos. Não é um play que você dá e parte passasse a vista de um fragmento de vida, me pedia para produzir material, o esquema a coisa, que se repete em cena. Para que um quase que fisicamente. Não sou mais a mes- de trabalho era tão particular, a encenação texto saia, ele sai de um poço que tá dentro ma pessoa com 60 anos, quando comecei eu era tão diferente para o meu modo de inter- de mim, que são acionadas tantas coisas que tinha 40, outra energia, requer outro tipo de pretar que eu tinha muita tarefa para fazer eu não sei quais são que fazem com que ele disposição, mas um aprendizado incrível que e me dediquei unicamente para aquele texto se mantenha crível ou não. Eu sei te dizer a experiência teatral me dá. Não é só Piran- e não para o contexto em que o texto se in- como ele entrou na minha vida, mas não sei dello que me dá, é essa coisa que o Roberto seria, a obra do autor como um todo. Nem dizer tudo o que ele está provocando porque Bacci montou onde eu me confronto com os enquanto me preparava tinha tempo para estou vivendo isso. espectadores. ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 18 Cenicamente, no primeiro espetáculo, eu o faço entre os espectadores, há 20 anos. Então a relação direta com o público estabelece um desnudamento do personagem. Alguns comportamentos, movimento particulares, algumas características são reforçadas no trabalho de interpretação para que o espectador imagine os personagens, mas é meu corpo, a minha voz. Na primeira, não requer nenhuma interação do espectador, eu fico entre eles, mas eles não precisam fazer nada, não é interativo. Na segunda, eu vou até a plateia, numa relação de palco italiano, desço e faço uma longa ação na área chamada zona do espectador. Também não é uma situação de interatividade, mas é uma situação que eu vou para a rua e a rua do espetáculo é a plateia. No terceiro, a plateia tem uma função diferente, ela é a zona da memória do ator, do personagem. É como se ele olhasse para a plateia e visse todas aquelas pessoas que são fragmentos de uma memória, então ele pode se reconhecer em um espectador da fila identidade, não precisa de dinheiro, de família, e ele disse: “Imagina quantas montagens de B, da fila J, da H, determinada pessoa que ele viver como uma pessoa que vive para servir Um Homem com a Flor na Boca já assisti...” imagina ser, alguém que fez parte de seu per- aos outros, uma pessoa que quer simplesmen- Eu e o Roberto Bacci nos olhávamos, nos curso, então este espectador vai sendo con- te passar pela vida, este é nenhumcemmil. abraçávamos, e foi um momento de muita alegria, comoção, porque era um trabalho duzido, de uma forma muito bonita com esse Como foi apresentar O Homem com nosso, feito de um modo muito particular, o especial, uma cadeira do espetáculo, que vai a Flor na Boca na sala da casa em que Roberto era um grande diretor, mas ser re- acontecendo como se eu tivesse refazendo vivia o autor? conhecido por um homem que entende do trabalho do Roberto Bacci, para uma cadeira O Homem com a Flor..., que faço entre os Estava vivo Alessandro D’Amico, era o her- corpo do Pirandello como poucos, foi criado espectadores. Então, desta vez, vai sendo deiro, não de família, o herdeiro legal porque por Pirandello na casa do Pirandello. Fomos remontado o espaço para voltar ao primei- era casado com a neta do Pirandello, a Maria jantar e ele disse: “Vocês precisam conhecer ro para que eu faça o espetáculo entre as Luisa, e fazia a gestão de toda a obra, que obras que normalmente não são reconheci- pessoas escolhidas, eleitas ou reconhecidas ainda não era de domínio público. Eu estava das porque têm um teor de crueldade, um como parte da história de alguém. Isto coloca fazendo O Homem com a Flor na Boca no humor cáustico, uma visão de mundo muito para o público e para o ator uma situação de teatro que fica dentro da Universidade de poética e cruel que são as novelas. O univer- desnudamento absoluto, onde não há inter- Filosofia de Roma. Eu vi aquele senhor, no so das novelas é a fonte de toda a obra.” E pretação, não tem interatividade, pergunta e meio da plateia – lotava muito –, que me nos indicou para ler 10 novelas consideradas resposta, de jeito nenhum, imagina. Como se olhava com um brilho molhado nos olhos, malditas, de poética cruel, e dentre elas es- fosse uma radiografia da pessoa, eu me des- havia um homem naquela plateia de anôni- colhemos três e usamos para fazer A Poltro- nudo no sentido poético para que a história mos, era um brilho particular. Entre os es- na Escura. se faça clara. A história de um homem que pectadores era um espectador comovido de Encontrar com este homem que depois me deseja, que afirma que não quer ser ninguém, um modo particular. E ele veio falar conosco, levou pra fazer o espetáculo na casa dele para um nenhum, um anônimo, sem história, sem identificou-se como herdeiro de Pirandello, a mulher dele que estava acamada foi muito ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 19 No espetáculo umnenhumcemmil, o terceiro da trilogia de Pirandello, a plateia a plateia tem uma função diferente, ela é a zona da memória do ator, do personagem Foto: Lenise Pinheiro comovente. Ele me deu de presente a última Como você avalia a temática da obra de dioso e é breve. E essa condição o teatro, página escrita por Pirandello, e ela está emol- Pirandello? a arte como um todo, tem como obrigação durada e pendurada lá na Pontedera, uma É o tempo que faz um clássico. primeira colocar em questão. Entender o conquista nossa de um grupo que está junto Não apenas as características literárias que de fato me diferencia de um elemento há 20 anos trabalhando sobre a obra de um maravilhosas, mas pelo argumento, pela outro que vive e que não teme esta coisa autor. Motivo de orgulho para Roberto Bacci visão que nos coloca onde nos reconhe- que eu chamo de consciência ou inteligên- e todo o grupo, iluminador, figurino... cemos. Esse reconhecimento provoca uma cia. O que me difere de uma pessoa ou um espécie de abismo dentro, uma espécie de animal que não tem isso? Como sou capaz Fale sobre suas parcerias, em especial, com silêncio, ou uma espécie de um sorriso no de viver e ser tão bárbaro como um outro a Fondazione Pontedera de Teatro. canto dos lábios por reconhecer que ali está que não tem esta consciência ou inteligên- Esta trilogia do Pirandello é resultado de um retratado um hóspede que habita dentro de cia? Será que com 2 mil anos o homem não trabalho em que a Pontedera é fundamental. todos nós. evolui e não aprende a viver em harmonia Eu não faria, simplesmente não faria. Mas Este hóspede é este elemento no estranho com o todo, e não digo só o homem que também um espetáculo não se faz somente que está dentro da obra. está do lado, mas com o todo que é isso porque ele é bom, porque o ator é bom, ele se Os clássicos são todos assim, você reconhe- tudo. faz porque ele pode cativar a plateia e quem ce não apenas o retrato de uma sociedade É esse tipo de coisa que torna uma obra pode viabilizar a continuidade, como o Sesc daquele tempo, retrata o homem que por clássica, ela é um refletor sobre a minha re- de Porto Alegre, são parceiros que ajudam mais que o mundo mude, é este homem alidade, que me expõe quando leio, me re- na estrada, na vida, esta coisa que só vive, perdido que tenta se achar, o homem que vela, me iguala a todo mundo, além de toda se apresenta se é viabilizada. Não é só meu se desencontra, acerta e erra no mesmo a beleza literária, toda a beleza da compo- talento ou a qualidade do trabalho. Se o espe- momento, é este homem que ainda não en- sição das frases, das palavras, das ideias, é táculo chega a algum lugar é graças a quem tendeu o sentido de estar aqui, de viver este um refletor sobre a minha realidade. viabiliza a sua chegada até lá. período aqui, acreditando que é um gran- ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 POR Rita Aquino 20 Artista, educadora e doutoranda em artes cênicas na UFBA. Integrante do Coletivo Construções Compartilhadas (BA), é responsável pela concepção de {pingos&pigmentos}, que inaugura o Circuito Intervenção Urbana do Palco Giratório 2013 Em uma brecha no meio do dia, guarda-chuvas invadem a paisagem Cada cidade organiza-se como um campo de ten- que em nome da conquista do capital, implemen- mendigos, prostitutas e idosos. As crianças por ve- sões. Um campo composto por um arranjo de pes- tam um regime de produtividade que “coloca tudo zes sequer têm a oportunidade de frequentá-las, soas (nós!) onde cada um ocupa determinada posi- em seu devido lugar”. Disseminam-se assim pres- pois os adultos não se dispõem a lhes acompanhar ção na disputa de capital – simbólico, econômico, crições de uso do espaço urbano e de existência devido a sua falta de tempo decorrente do exces- cultural. Por posição, podemos compreender aqui dos próprios sujeitos: por onde andar, o que fazer, so de trabalho ou ao medo de uma violência que pontos no espaço – o local de moradia, a escola, o como se comportar, quais opiniões emitir etc. parece rondar os espaços urbanos “desocupados”. trabalho e tudo o mais que integra a rede pela qual A relação com o tempo parece exemplificar Outro exemplo é o fenômeno da espetacu- nos movimentamos, sempre em busca de melhores bem a questão. Somos cobrados para chegar antes, larização, que igualmente atravessa a cidade e os condições de vida. É a partir destas posições, do lu- mais rápido, primeiro, principalmente em termos corpos. Uma exposição exacerbada à informação, gar onde estamos, que estabelecemos nosso ponto profissionais. Esta aceleração se traduz na trans- predominantemente publicitária, que apela cons- de vista, nossa visão de mundo. Ou seja, nesse jogo, formação dos espaços de permanência da cidade – tantemente aos nossos sentidos em escala macro ao mesmo tempo que as relações entre nós estrutu- como praças e parques – em espaços de passagem, e na direção da idealização da imagem. O espetá- ram a malha da cidade, esta nos pressiona de volta, vias, caminhos para chegar a algum lugar. Isto é, culo normatiza e reduz nossa experiência sensível, influenciando nossos hábitos, afetos e memórias. embora praças sejam construídas para uma efeti- criativa e crítica na vida privada e na relação com o Como campo de tensões, a cidade nunca será va ocupação pública e indiscriminada, seu uso na coletivo. É assim que, em coro, legitimamos a ima- homogênea ou consensual. Contudo, parecem prática se restringe àqueles que estão à margem gem da moça bonita que posa no grande outdoor prevalecer as práticas de ordenação e objetivação, do movimento acelerado da produtividade, como da marca famosa e desvalorizamos qualquer corpo ARTES CÊNICAS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 21 Projeto integra a programação do 8º Festival Palco Giratório/POA que desvie deste padrão consensual, independen- {pingos&pigmentos} é uma das propostas temente de que se aproxime mais de nós mesmos, que desenvolvemos no Coletivo Construções Com- de nossa família, quiçá do conjunto de pessoas partilhadas (BA) para indisciplinar o modo como com quem cruzamos em nosso dia a dia. praticamos a cidade. Trata-se de um conjunto de Foto: Paulo Lima Pois bem, a arte, em sua condição de ques- seis trabalhos, denominado Poéticas de Multidão, Foto: Tiago Lima tionamento de uma determinada realidade, pos- em que, através de ações simples, mobilizamos um sui um grande potencial de interpor-se a estas re- grande contingente de pessoas para intervir em lações. Não por se tratar de um elemento externo sua própria cidade. ao jogo, ao contrário, a arte também faz parte da {pingos&pigmentos} tem início com uma con- cidade e das disputas pelas formas de capital que vocatória para interessados em participar de uma compõem suas tensões. Contudo, por natureza, oficina onde são abordadas questões relacionadas à tem a capacidade de explicitar tais conflitos e for- percepção, composição e ao sentido de coletividade mular outras relações possíveis entre os sujeitos e presente em fenômenos de multidão. A oficina, que o espaço urbano. Incluindo aí críticas a si mesma. possui 8 horas de duração, não apresenta pré-re- O lugar da intervenção urbana é, portanto, quisitos. A partir dela, os participantes tornam-se os de atuar neste campo de tensões, reinventando próprios performers, conjugando, assim, formação o estabelecido, provocando o cotidiano em seu artística, criação e apreciação estética. Foto: Paulo Lima matiz habitual. Não se trata de levar uma obra Portando guarda-chuvas de cor vibrante, de arte concluída para ruas e largos, mas de nossa pequena multidão pontilha, satura e dissolve atualizar a relação com tais espaços produzindo na paisagem, irrompendo o espaço urbano de for- outros sentidos para seus habitantes através da ma poética, onírica e estranha. Uma plasticidade proposição artística. Uma espécie de infiltração que penetra o campo de tensões para sublinhar o na malha urbana que refaz alguns pontos de sua ordinário na cidade e em seus habitantes, exerci- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS tessitura, que propõe outros “nós”. Por isso, não tando uma forma de esculpir o tempo a favor da se pode ignorar a dimensão política contida nesta presença e da percepção. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel e Bertrand Brasil, 1989. reinvenção do espaço coletivo. JACQUES, P. B.; BRITTO, F. D. (orgs). Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2010. caderno de teatro PRIMEIRO SEMESTRE 2013 22 #10 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos e entrevistas com artistas que nos últimos anos participaram do Festival Palco Giratório no Arte Sesc – Cultura por toda parte. Sua edição desempenha um papel fundamental na difusão e no conhecimento. Nas próximas páginas, o ator, diretor, dramaturgo, educador, artista plástico e bonequeiro argentino radicado no Brasil desde 1961 Ilo Krugli conta episódios de sua itinerância pela América Latina. Uma história de vida que se mistura com a arte e que dividiu o teatro infanto-juvenil em antes e depois da criação do Teatro Ventoforte, grupo que já foi agraciado com mais de uma centena de prêmios, incluindo os principais do Brasil. Em 2013, o artista, homenageado do projeto Palco Giratório Nacional, está circulando pelo país com História de Lenços e Ventos, montado pela primeira vez em 1974, com grande impacto, e remontado recentemente, além de As Quatro Chaves. À Vitória e ao Recife, a trupe leva Ladeira da Memória ou Labirinto da Cidade, que concorre a melhor espetáculo jovem de 2012 pelo Prêmio Femsa. O texto foi transcrito a partir da fala de Ilo Krugli, por telefone, à Revista Arte Sesc, em março de 2013. caderno de teatro PRIMEIRO SEMESTRE 2013 23 Por Clarissa Eidelwein Jornalista Ilo Krugli da infância ao teatro ventoforte Fotos: Divulgação Teatro Ventoforte CADERNO DE TEATRO PRIMEIRO SEMESTRE 2013 24 chegavam da Europa. Teatro era uma linguagem O Mistério do Fundo do Pote ou Como Nasceu a Fome próxima, mas eu também desenhava, pintava, Foto: Divulgação Teatro Ventoforte tudo era brinquedo. Na escola primária, eu era um aluno considerado especial porque aproveitava qualquer cantinho do caderno para fazer figuras. Minha professora me iniciou em bonecos, ela vinha de uma tradição – em 1934, 1935, Federico García Lorca esteve por Buenos Aires e, após as apresentações de suas peças, com vários atores, músicos, bailarinos, poetas, subia no palco, era apaixonado por bonecos, fantoches, títeres e fazia improvisações. Meu primeiro teatro era feito com bola de Desta história, sobrou todo um grupo, um movi- gude. Cada bola tinha significado assim como se mento que ficou meio órfão quando ele foi em- fossem personagens, pela cor, pela transparência, bora, e continuou a história. Entre eles, tinha um tamanho, a bola mais quebrada e machucada fa- poeta, Javier Villafañe, que deu continuidade e fa- zia papel de velho, as mais transparentes eram zia oficinas, ensinou minha professora do primário, príncipes e princesas, as bolas parecidas, com a Helena, a fazer bonecos, e foi ela quem me iniciou. mesma cor, formavam um exército. Isto dentro Anos mais tarde, eu já fazia bonecos e pen- da tampa de uma lata de doce de marmelo, la- sava em criar um grupo. Eram bonecos de mão, tas grandes retangulares, a bola se movimentava, a cabeça feita em cima de cuias modeladas com corria, e eu as descartava quando acabava a par- papel machê. Às vezes, na pressa de fazer o es- atravessando fronteiras ticipação do personagem. Era um teatro sem pú- petáculo com as crianças brincando no quintal A primeira fronteira que atravessei foi a rua em blico, às vezes o pessoal de casa, da família, para- da casa, não esperávamos secar e durante a peça frente a minha casa para a calçada do outro lado. va para olhar o meu brinquedo. Lembro que uma os bonecos perdiam a bochecha e outras partes. Claro que recebi um pequeno castigo da minha mãe, prima do meu pai que estava com problemas fa- Mas também fazíamos com a técnica correta. ela tentava me proteger, sem dúvida, mas eu esta- miliares comentou sobre o que daria isso que eu Ainda uso muito boneco de mão, que aqui no va sempre interessado em descobrir espaços novos. estava fazendo sem perceber toda a contradição Brasil chama fantoche ou títere, e o pessoal do Teve outras vezes. Uma vez fugi de casa na periferia e as dificuldades da vida. Mas eu estava ligado, Mamolengo usa muito. Eu, depois de adolescente, de Buenos Aires dizendo que ia procurar outra mãe, escutei e guardei esta colocação que ela fez em jovem, encontrei com Javier algumas vezes, sem não sei que informação eu tinha, tinha ouvido falar cima do meu brinquedo, eu relacionava também. falar que ele havia iniciado minha professora. Ele na Praça de Maio, e corria pelas ruas de pedra, bem Eu morava num bairro com muitos imi- tinha uma história coincidente com o Brasil, pra periferia. Me virava para ver se alguém me seguia ou grantes de muitos lugares. Só tinha argentino não, minha mãe e minha irmã me seguiam, até que de segunda, terceira geração. Na minha rua ha- Javier esteve no Rio de Janeiro, em 1949, e me alcançaram e levei até uma palmada. Eu sabia via polonês judeu e polonês católico, que são deu aula na casa da Maria Clara Machado, para que queria ir longe, mas ao mesmo tempo não que- diferentes. Nós éramos poloneses judeus. Tinha ela e outras pessoas de teatro, entre elas, Tônia ria perder totalmente o núcleo familiar. ucranianos, armênios, italianos, muitos galegos, Carrero, para brincar com bonecos. E saiu viajan- Mas desde criança brinquei muito, acho que de quem eu era muito amigo. Daí começa mi- do até o Nordeste com um artista plástico e jor- a origem da linguagem, da expressão, vem através nha iniciação próxima do português. Falavam-se nalista, Augusto Rodrigues, também autodidata, do brinquedo com o ser humano, com a criança, várias línguas, era uma troca muito grande, foi e quando o espetáculo acabava, colocava papéis o resto que vem depois é ampliação de criações muito rico. Havia um centro cultural onde se fazia no chão e desenhava com as crianças do público. espontâneas com o imaginário, com os outros que muito teatro, era muito importante. Em Buenos Também fiz por um tempo esta intermediação estão em volta. O princípio da expressão através do Aires, só havia quatro teatros, com espetáculos de com as crianças, que desenhavam suas lembran- brinquedo, de improvisação, de dar vida ao imagi- terça a domingo, na língua que o grupo oriental ças do espetáculo. Javier voltou para Buenos Ai- nário, aos objetos. falava. Isso antes da guerra, com companhias que res. E Augusto Rodrigues era mais uma pessoa onde viajava com seus bonecos. CADERNO DE TEATRO PRIMEIRO SEMESTRE 2013 25 a se interessar por arte-educação. Ele fundou a Escolinha de Arte do Brasil, um projeto que em determinada época se estendeu por todo o país. Eu cheguei em 1958. A verdade é que eu estava viajando pelo norte da Argentina, Bolívia e Peru. Na Bolívia, fiz amizade com o pessoal da embaixada brasileira, estava pensando em seguir com meus bonecos até o México, mais tropecei com os adidos culturais brasileiros, um deles era Thiago de Melo, o poeta, de quem fiquei muito amigo. Encontrei também um jornalista que era assessor de Juscelino Kubitschek, fazia os discursos, Carlos Davi. Ele me disse: você deveria ir para o Rio de Janeiro, lá tem um grupo que tem tudo a ver com você. Fronteira Bolívia-Brasil Nessa época, viajávamos, éramos vários, foi diminuindo até ficarmos apenas eu e Pedro Domingues, argentino também, com o Teatro Cocuyo, que é um bichinho parecido com um vaga-lume gigante. Nos lançamos nesta aventura de pegar o “trem da morte”, atravessar a fronteira (Bolívia-Brasil), pegar outro trem até São Paulo, outro trem para o Rio de Janeiro. Carregávamos muitos livros de arte, bonecos, desenhos, pintura – eu desenhava, pintava e era ceramista. Com o estímulo que recebemos, chegamos ao Brasil e nos encontramos com o mesmo Augusto Rodrigues que havia trabalhado com Javier. Ele disse: “Estava esperando por vocês.” Não sei se já sabia da nossa existência ou se, no fundo, os bonecos eram muito bons para trabalhar arte-educação, para o desenvolvimento do imaginário. Fiquei 12 anos trabalhando na escolinha, no Rio de Janeiro, mas viajávamos muito, íamos para Recife, Porto Alegre. A escolinha era ao lado do Teatro São Pedro e tinha várias pessoas que estavam neste movimento de arte-educação, artistas plásticos. Curiosamente, pouca gente fala disso, a própria educação através da arte dentro das universidades lembra muito a escolinha. Eu era autodidata e num momento da vida fiz um poema que falo que saí de Buenos Aires viajando, parti para o mundo, para América Latina, com Herbert Read de baixo do braço e Lorca no coração. CADERNO DE TEATRO PRIMEIRO SEMESTRE 2013 26 Meu interesse pela educação foi muito gran- meu pulso! E sempre sobrevivemos fazendo estes de e por meio das escolinhas, nos comunicamos espetáculos e atividades com crianças, oficinas e frequentemente com projetos de escolas, espaços por aí vai. universitários e viagens também. Depois, com al- Em Cuzco, no Peru, fizemos um trabalho mui- guns dos colegas, ainda do Cocuyo, que se trans- to especial com crianças, artes plásticas, desenho, formou em São Paulo no Teatro de Bonecos de Ilo e pintura, modelagens, colagens. Em 1962, 1963, ini- Pedro, viajávamos para o Nordeste, Alagoas, e nos ciaram os cursos de educação através da arte, de apresentávamos para um público ligado a escolas setembro a dezembro, todos os anos. No primeiro, em espaços bem populares. Na América Latina, fui aluno, depois professor de boneco, trabalho sempre apresentávamos em aldeias de índios, al- com desenho, cerâmica, construção com madeira Meu ponto de partida deias populares, em diversos lugares. Sobreviví- e escultura. Participava de todas as atividades do Durante muitos anos, trabalhamos com bonecos. amos fazendo teatro. Uma vez me perguntaram curso. Sobre eu ser chamado autodidata, talvez Lá no Rio de Janeiro, teve um ano que criamos um quem financiava isso. Eu tirei o relógio do bolso e isso ajude a exprimir: Eu sempre falo que todas as teatro de bonecos no Parque do Flamengo, que mostrei: é o seguinte... – Quando chegava a algum crianças do Brasil são autodidatas, estou queren- ainda existe. Trabalhamos com uma montagem lugar – trabalhei muito nas minas de prata e outras do dizer que entram num processo instintivo, es- muito bonita de uma ópera, O Retábulo de Mestre minas da Bolívia, começávamos a nos apresentar e pontâneo de lidar com as informações, com a arte Pedro, em cima de um tema de Dom Quixote de divulgar na rádio, nos sindicatos. Parávamos junto e com a comunidade, até mesmo a partir de seu Cervantes, quando ele vai ao teatro e brinca com do lugar onde dormíamos, pensão, hotel, pousa- brinquedo. Fiz algumas oficinas no Brasil e com bonecos. Fizemos na inauguração da Sala Cecília da, e já dizia: “Estou hospedado aqui e estamos algumas outras pessoas em Buenos Aires, como Meireles, no Rio, por volta de 1966, com a orques- fazendo um trabalho para o sindicato, vamos nos Cecilia Markovich, que tinha trabalhado até com tra do Teatro Municipal do Rio e cantores que fa- apresentar sábado e, se tiverem interesse, deixo Segall. Um grupo que vinha lá dos anos de 1920, ziam os personagens. meu relógio aqui”. Nosso produtor era o relógio do 1930, do movimento da Semana de Arte Moderna. CADERNO DE TEATRO PRIMEIRO SEMESTRE 2013 27 Trabalhei numa oficina, me interessava por tudo que acontecia em volta. que da Bahia e quase foi ministro, Anísio Teixeira. Depois desta etapa, em 1963 ou 1964, mon- No Rio de Janeiro, comecei a trabalhar muito tamos um espetáculo que ainda faço: Um Rio que com a Escolinha de Arte e junto tinha o Conserva- Vem de Longe, com textos e versos meus e uma tório Brasileiro de Música, onde se iniciaram todos forma de representar que é um teatro de bonecos os trabalhos de iniciação musical com as crianças quase sem bonecos. Utilizo apenas as mãos e um e nos anos de 1970 originou a primeira faculdade ou outro objeto, algumas canções de origem popu- de musicoterapia. Eu fazia parte desse grupo que lar, outras minhas, nessa época comecei a compor. criou a faculdade. Fizemos um trabalho integrado Nos anos de 1970, criamos uma escola chamada em cima das crianças com várias linguagens, entre Núcleo da Atividade Criativa. elas, música e artes plásticas. A proposta era que, Em 1973, viajei ao Chile, na época do Allende. como as linguagens são espontâneas, inatas no Fiquei quase 10 meses, passei pelo golpe do Pino- ser, tinham que ser desenvolvidas simultaneamen- chet. Havia muitos brasileiros. Fazíamos espetácu- te. Como o teatro estava no centro das atividades, los no Museu de Belas Artes, fui preso, muita gen- quem originou este movimento foi Liddy Mignone, te foi presa, alguns foram mortos. Consegui sair a mulher do maestro Francisco Mignone. Também acompanhado por gente das Nações Unidas, senão participei de um grupo de estudos com a Nise da nem sei se teria conseguido sair. Peguei um avião Silveira no Museu de Imagens do Inconsciente. para Buenos Aires. Voltei ao Brasil ainda no fim do Sempre digo que fui um homem de sorte, porque ano, ainda não era cidadão brasileiro – como ti- aquele adido cultural me indicou para trabalhar nha estado no Chile, tive que entrar pela fronteira come esta gente da escola. Trabalhei com Darcy como turista argentino. Eu queria voltar ao Brasil e Ribeiro, com aquele outro que criou a Escola Par- voltei a trabalhar com toda essa gente. O Mistério do Fundo do Pote ou Como Nasceu a Fome (fotos 1, 2 e 4) Ladeira da Memória ou Labirinto da Cidade (foto 3) Fotos: Divulgação Teatro Ventoforte CADERNO DE TEATRO PRIMEIRO SEMESTRE 2013 28 História de Ventos e Lenços situações, acontecimentos que normalmente não humanidade ao mesmo tempo. De alguma forma, No início de 1974, me convidaram para partici- se fala às crianças, perseguições políticas, mas com sempre falavam da fabulação do imaginário, de um par de um festival de teatro de bonecos e teatro uma linguagem muito acessível. quase mitológico simbólico, mas coisas que esta- infanto-juvenil em Curitiba. E eu disse pelo te- Estamos fazendo este espetáculo de novo e vam no nosso dia a dia, de alguma coisa presente. lefone: “Acabei de chegar, é uma história com- vamos viajar pelo Sesc. Já fizemos várias vezes, Este espetáculo interessou muito às crianças, mas plicada, eu não tenho nem grupo, meu grupo se mas agora estamos esquentando para viagem. Tem também, sem dúvida, aos adultos. dissolveu”. A pessoa do outro lado da linha disse: um momento que tem dois personagens Manoel – A minha arte se alimenta de tudo isso, da ex- “Ah, Ilo você tem um boneco...” e me convenceu. aquele que depois se fecha numa mala e não quer periência libertária do boneco, porque ao boneco Em 10 dias, junto com um aluno da musicotera- mais trabalhar – e Manoela. Ela vai passear amea- se permite tudo, tanto que quando ainda estava no pia, um fotógrafo e mais duas moças que eram da çada por um perigo, e ela não quer obedecer, tem Peru, nos apresentamos numa sala da prefeitura escola de teatro da UNIRIO, criamos o espetáculo um lugar que há um poço e ela pode cair, mas os em Cuzco e fazíamos o espetáculo de bonecos tra- Histórias de Lenços e Ventos. Todo mundo gostou, outros personagens dizem pra Manoel deixá-la ir, dicional, com painéis, e em determinado momen- voltamos pro Rio de Janeiro, ensaiamos um pou- pra se despedir dela. Dizem: Dá um beijo nela. E eu to girávamos os painéis e ficávamos trabalhando, co mais e estreamos em maio daquele ano, no digo: Já dei. Quando? Ainda continuo improvisan- fazendo o espetáculo numa sala imaginária, e o Museu de Arte Moderna. O espetáculo realmente do, agora na temporada do Sesc Pompeia, o perso- público assistia a que? Nós brincando com os bo- foi uma explosão. nagem disse: Ah, faz tempo. Mas quando? Ah, na necos, esta linguagem à vista. Quando chegamos caída do muro de Berlim. ao Rio de Janeiro, na primeira vez que fizemos Era um espetáculo que parecia criado frente ao público. O meu boneco iniciava, mas alguns Então é nossa fábula desse século que pas- um espetáculo, as crianças se divertiram muito. falavam que estava dizendo com isso que muita sou, parece uma coisa de um nível especificamente Havia três painéis e saímos de um painel para o gente se fechou, se sentiu proibido de trabalhar político. No domingo passado, me contaram que outro, tirávamos os bonecos, então essa linguagem e o boneco se fechou dentro de uma mala e não um garoto disse: Pai que muro é este que caiu? aberta, próxima do brinquedo interessou muito às queria mais sair. E tentava mostrar um teatro feito Sempre coloco alguma coisa assim. Gosto quando crianças e a todo público. É isso que coloca uma de outra forma, um espetáculo que era feito com as crianças voltam pra casa e perguntam para os liberdade no improviso, na relação com o público. lenço, pedaço de papel, de metal, jornais, bem co- adultos que a acompanharam o que é guerra? O Nesse espetáculo de 1963, Um Rio que Vem lorido. Mas dentro do espetáculo tinha todo um que é fome? O que é perseguição? Disse: Que bom de Longe, tem o ator que faz um barquinho e nos processo que recorria um pouco à história do que isso. Este menino daqui a pouco vai brincar com últimos anos sou eu que faço. O barquinho está estava acontecendo no país e na América Latina. isso, com o muro que caiu. E não sei como esse pai amarrado e não pode sair porque está ancorado e E ao mesmo tempo, com linguagem que era de deve ter falado para ele que era esse muro. Mas nunca havia navegado. Ele não sabe como se sol- grande influência popular, canções... e com uma sem dúvida é muro que divide sempre uma coisa tar, até que alguém retira esta corda, e ele se lan- relação com a criança diferente, um teatro com do lado e do outro. São grandes brincadeiras da ça numa aventura porque viu uma flor. Ele gosta CADERNO DE TEATRO PRIMEIRO SEMESTRE 2013 29 História de Ventos e Lenços Fotos: Divulgação Teatro Ventoforte tanto desta flor que queria ir atrás dela, e ele vai com a correnteza do rio, vai parar no oceano, enfrenta tempestade e quase vai desaparecer quando aparece um marinheiro que tenta ancorá-lo novamente. Ele resiste, ele não quer. Então deixo os atores em cena, vou até a plateia e digo que não quero mais, porque eu já fiquei preso. E pergunto: Alguém aqui já ficou preso alguma vez? Vinte anos atrás tinha gente que balançava com a cabeça tece algumas vezes. Eu detesto quando puxam no mais que atualmente. Porque era preso não apenas público este “começa”. Se o público se manifesta por roubo ou atentando ao pudor, era outra coisa, espontaneamente, tudo bem. Tem muito estereóti- era porque se manifestava publicamente. Hoje, as po em cima do trabalho pra criança. É minimizado, crianças dizem: Eu fiquei preso. Mas quem foi que transformam tudo numa coisa muito simplória, te prendeu? Minha mãe que me botou de castigo com muito diminutivo. Tudo é pequeninho e não no quarto e disse que não podia sair. Ou fiquei pre- sei o que mais. E a gente se coloca para a crian- so no elevador. O ator não quer mais voltar à cena ça quase como para o adulto, a gente enxerga a e o público pede que volte. Ele só volta quando criança, esse espetáculo no Sesc Pompeia está lembram pra ele que não pode desistir desta flor sendo muito interessante. O público sentado num que viu passar e achou tão bonita e se apaixonou. lugar que é de convivência, e a gente percebe a Então, ele volta pra retomar a cena com o perigo criança sentada com alguns adultos em cima de até de ficar amarrado, ancorado. Já me encontra- almofadas no chão e em cadeiras. Mas também há ram na rua e falaram que levaram a questão para jovens. Vi jovens de 17, 18, menos de 20 anos, sen- o psicanalista, que fala: Você é igual ao barquinho tados e chorando, emocionados. É a história de um e se você não se arriscar, nunca se desamarrar, não personagem que se chama Papel e que vai sendo enfrentar a correnteza e a tempestade, não vai po- criado diante do público. Pega-se um jornal com der ser você, não vai poder ser livre. notícia do dia a dia e então um lenço sai voando Essa linguagem que mexe com a história, e é preso pelo Rei Metal Mal na cidade medieval. pra mim, é história pra criança também. O que eu Claro que é uma espécie de alegoria, e o persona- rejeito é que as crianças, puxadas por um adulto, gem que vai libertar a Azulzinha (um lenço) é uma iniciem um coro “Começa! Começa!”, como acon- folha de jornal. Esta folha depois será perseguida PRIMEIRO SEMESTRE 2013 30 CADERNO DE TEATRO CADERNO DE TEATRO PRIMEIRO SEMESTRE 2013 31 Ladeira da Memória ou Labirinto da Cidade Foto: Divulgação Teatro Ventoforte de uma linguagem também. O rei quer fazer um torneio e quem ganhar vai casar com a protagonista que é um lenço azul, a Azulzinha, que está presa no castelo. Os outros lenços também estão todos presos, e na época que fizemos havia muitos presos realmente na América Latina. Mas eu diria que em algumas situações ficamos presos de outra forma, presos ao sistema. Ele entra no castelo, mas como enfrentar o rei? Através de um jogo de sombras. O rei luta ima- e queimada, isto faz alusão a muitas situações e ginariamente com a sua sombra, talvez lembre um em nível simbólico continua acontecendo. A gen- pouco a cena de Chaplin imitando Hitler que brin- te desenha na folha de jornal uns olhos, um nariz ca com o globo terrestre, que cai na bunda dele. e uma boca e o ator vai andando com isto numa O personagem Papel projeta sua sombra. Estamos mão. E a identificação é muito forte, essa emoção dizendo que enfrentar certas forças é muito difícil. do público jovem para mim é importante, os adul- Só podemos enfrentar através do que nós falamos tos também, claro, e crianças, mas o jovem... De com nossa arte. E a sombra é nossa arte e é assim alguma forma a gente tenta colocar ainda que se- que podemos enfrentar, podemos influenciar. E um jam histórias de nível histórico que já aconteceram. ator desliga o foco do rei, e a sombra desapare- Tem uma canção que fala: ce. Ele se sente vencido e procura colocar que só assim conseguimos, retirando a luz de cima deste Se é de papel voa no céu personagem. Então, o Papel resgata a Azulzinha, e Se é de metal brilha na mão eles voltam para o quintal. Com muita música e E se é de jornal me faz chorar poesia – a poesia também é uma linha emocional me traz notícias preciso andar que alcança as pessoas tanto a criança, como o adulto e o jovem. Então, o momento que estávamos viven- Eu faço os textos das músicas, o poema. Tem ciando 40 anos atrás, mas que de alguma forma uma equipe que por anos trabalha comigo, alguns continuamos vivenciando, essa identificação que desde a primeira montagem. Eles colocam meus a gente faz com a possibilidade, com o sonho de versos na música. Nossos cancioneiros do Vento- todo ser de se mover, de amar está presente no forte passam de 200 pessoas. Cantamos músicas texto na forma de representar. O público vê que o nossas e algumas populares que inserimos dentro ator se transforma no personagem, e este diz: Não do espetáculo. Em História de Lenços e Ventos, há vou mais continuar, acabou, nosso herói foi quei- uma citação de um sambista do Rio de Janeiro, mado. E alguém, criança ou adulto, diz: faz outro. Candeia: “deixe me ir preciso andar vou por aí a Mas vai ser queimado novamente. Até que a gente procurar”. E pra quem conhece dá uma mexida... faz outro, porém mais forte e com mais elementos posso mexer e reviver e continuar com a memó- e até com possibilidade de entrar na cidade me- ria, a grande saída pra enfrentar toda a questão dieval, mas daí ele tem que ter elemento da cidade cultural social é que a criança tenha memória, me- medieval, muito metal por cima, um escudo. Mas mória cultural, tudo isso nos fortalece. Há 40 anos, por baixo fica escondido um coração transparente por repressão política, agora por uma situação de de celofane. Tudo isso como contradição de duas sistema social, a nossa memória é anulada, joga- atitudes. Daí decide entrar, mas assim mesmo não da fora, não é queimada, é escondida, desaparece, enfrentamos os soldados diretamente, enfrenta- apenas somos manipulados por uma cultura de mos o Rei Metal Mal através de um jogo teatral, produtos de vendas. CADERNO DE TEATRO PRIMEIRO SEMESTRE 2013 32 Teatro Ventoforte ser uma figurinha e inventei um personagem, o are, Lorca. Quando são meus textos, já surgem Nos anos de 1980, nos transferimos para São Mané. E o Mané nunca fala, ele só fala com o pa- mais ou menos esboçados e vão se complemen- Paulo e depois, numa aventura continuada até lhaço. Cada vez que há um problema, o palhaço tando na montagem. O último acréscimo de agora, ocupamos um espaço no Parque do Povo, coloca a figurinha no ouvido e diz ao público: o Histórias de Lenços e Ventos, por exemplo, foi onde tinha uma comunidade da cidade de Pal- Mané disse que esperança é para esperar, se fa- o beijinho final do Manoel na Manoela, a his- meira dos Índios, em Alagoas, a qual teve Gra- lou em ter esperança, se quer esperança tem que tória do muro, eu como personagem coloquei ciliano Ramos como prefeito. Inclusive estamos saber esperar. Este personagem, nos presídios, na hora, acontece na espontaneidade. Às vezes, preparando uma homenagem a ele e a obra Vi- criava muito impacto. A gente conclui que esses surgem situações novas. Há 40 anos, quando o das Secas. Esta comunidade foi retirada – ainda espectadores são personagens de uma história espetáculo foi montado, e o Papel era queima- há pessoas de lá colaborando com a gente – e que ninguém pergunta, ninguém os escuta, é do, alguns atores levantavam a folha de papel para a criação de um grande parque. Tudo foi re- tudo no silêncio. Então, se identificavam muito e diziam: Eu sou Papel, eu sou Papel... Mas não tirado, e apenas o Teatro Ventoforte permaneceu com este personagem que nunca se escutava dá, vão ser queimados, não adianta, estão quei- porque os políticos disseram que era patrimônio falar. Ao final, quando cumprimentávamos com mando todos os papéis em volta do castelo. Fora cultural do Brasil. Estamos há 28, 29 anos no todos em cena, eles diziam “Mané! Mané!” Então isso, dentro do castelo só entra ouro prata renda espaço realizando trabalhos com diferentes co- colocávamos o boneco no alto para cumprimen- veludo brilhantina botox, não sei o que mais... munidades da cidade, centrando em produções tar e eles ovacionavam o Mané. Aquele que nun- E agora acontece de novo que os atores levantam e apresentações continuadas no Parque do Povo. ca era ouvido, mas de tanto em tanto dava sua o jornal querem ser o personagem pra resgatar a opinião através do clown. Azulzinha, mas não é tão fácil resgatar o prisio- Apresentamos o espetáculo infanto-juvenil O Mistério das Nove Luas nos presídios, em São Nesses anos, também fizemos espetáculos Paulo um pouco e muito no Rio, tanto masculino para adultos, como Victor Hugo, Onde Você Está?, como feminino. É uma espécie de folguedo, um inspirado na literatura do escritor francês. E tam- casamento de duas grandes figuras em cena, e bém vários espetáculos de Lorca. No último ano, a cada cena é colocada uma saia na boneca, que fizemos Ladeira da Memória, chamamos de teatro vai ganhando uma grande barriga e no final ha- infanto-juvenil, mas é muito para jovens e talvez verá um parto. – (Neste momento, cai a ligação e até para adultos. Falamos da história da coloniza- Ilo Krugli atende ao telefone rindo). Estou rindo ção dentro de um sonho que tem um engraxate porque no Lenços e Ventos tem um momento que sonha um dia cavalgar, um cavalo com asas... que o personagem é um guarda-chuva quebra- mas tudo dentro de um espaço de interferências do que fica dançando com um observatório do históricas de colonização, escravatura. Coloca- tempo, e os atores seguram a latinha com duas mos para todas as idades, de 8 a 80. Mas, por lei, pontas. O telefone de um lado e central telefô- toda criança pode entrar no teatro acompanhada nica no outro. E vai passando pelos personagens de adultos, mesmo que tenha menos de 8. São 2 até que uma está em cima da cadeira com a lati- horas e 15 minutos, e as crianças pequenas ficam nha da ponta, e ela cai e se interrompe a ligação. ligadas o tempo todo, dificilmente queram ir em- E a telefonista diz: caiu a ligação. Ela se arruma bora. Pelo tipo de linguagem também, tem esta toda na cadeira e a ligação se restabelece. – Mas coisa visual que vai falando em alguns momentos voltando ao espetáculo O Mistério das Nove brincadas pelo ator, esta linguagem do folguedo Luas, parte é escrito anteriormente e parte é popular, o imaginário e a ficção também estão elaborado durante a peça. Eu fazia uma espécie se mexendo no espetáculo. Não é um espetáculo de clown, me chamava Não Sei. Pensava que ele apenas formativo, com linguagem específica para teria um cachorro que vai puxando – palhaços o adulto. É linguagem do grupo que viajava não antigos sempre carregavam um cachorro que sei quantos séculos atrás, acontecia em praça pú- era um boneco de pano e puxavam pra cima e blica, na frente da igreja, pra todo mundo. diziam fala fulano, fala. Quando fui experimen- Nossos espetáculos vão sendo criados no tar, vi que não podia ser um cachorro, tinha que dia a dia. Ou fazemos adaptações de Shakespe- neiro do sistema, não é. É isso mais ou menos. Ladeira da Memória ou Labirinto da Cidade Foto: Divulgação Teatro Ventoforte CADERNO de caderno DE teatro TEATRO PRIMEIRO SEMESTRE 2013 33 1 Fragmento de um artigo de Ilo Krugli extraído da publicação do projeto nacional do Palco Giratório, que em 2013 homenageia o artista. flores preciosas que renascem e as parcerias, eternas?[1] POR Nelson Baskerville Em nossas itinerâncias giratórias abriram-se espetáculos acontecendo em calçadões, ruas interditadas, para aproximar a utopia até onde o fluxo do trânsito será ocupado pelas emoções tragicômicas, sensíveis e atemporais das invenções teatrais poéticas, seduzindo para que algum dia “ser ou não ser” (seremos) o herói imaginário do sonho e do desejo, podendo ser encarnado com jogos, brinquedos reinventados, sem medo, sem repressões que sinalizem moralidades e condicionamentos sociais. Que repetem: Vocês não são mais crianças! Estão brincando de novo? Sim, somos “brincantes” do teatro popular e do teatro essencial; que se renova no movimento da espontaneidade onde choramos ou rimos com qualquer idade. De todas essas experiências podemos recolher falas e considerações... dignas de deixarem de ser anônimas... Sempre nos espetáculos, em que a criança tem em seu não pudor e vergonha de interagir com a realidade, uma licença eterna para indagar e perguntar ao outro. Nesse universo colhemos algumas pérolas que fazem parte de nosso trabalho, que nos levaram a dramaturgias, a títulos de peças e até mesmo ao nome de nosso grupo. Depoimentos apontam caminhos Uma criança vai se aproximando até a cena e pergunta: “Isso é de verdade?” Outra menina, de cinco anos, em um parque, se aproxima do ator que abandonou a cena e não quer continuar na história. Porque na trama ele estava ancorado, e se voltar ao palco voltará a ficar preso. E a menina pergunta ao ator desertor: “Pode‑se mudar uma história?” Ator: “Claro que pode. Não quero ficar preso!.. Menina: “Mas é de verdade?” Ator (tenta ser sincero. É a primeira vez que lhe fazem esta pergunta): “É, no começo, se não é muito verdadeiro, cada vez será mais de verdade...” Outra menina discute com os soldados que estão perseguindo os poetas em uma de nossas peças que, em determinado momento, todos podem se aliar aos que prendem (os soldados que perseguem artistas) ou aos poetas (os que são fuzilados). E com uma lógica ingênua e ao mesmo tempo corajosa, a criança de oito anos diz aos soldados: “Vocês não podem matar todos os poetas! Porque não podem matar os poetas que ainda não nasceram.” Outra criança (que emoção! Que exigência!): “Quando vocês riem ou choram, é de verdade?” Uma mulher chorando: “Esta é a história da minha vida!” Nesse espetáculo colocamos quatro grandes painéis pintados com figuras diversas com o rosto e as mãos recortados, de modo que tanto atores como público podiam ficar atrás dos painéis assumindo esses personagens. E assumindo também seus desejos! Que atores e público ajudam primeiro a adivinhar e depois a realizá-los, durante a peça. Outra mulher (com uma sacola de supermercado, que estava na rua fazendo compras e se juntou ao público): “Eu nunca fui ao teatro... é a primeira vez. Eu gostei, parecem histórias antigas as que vocês contam... Eu acho que esta noite vou sonhar...”. MÚSICA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 POR Ermelinda Paz 34 Professora e pesquisadora na área de música popular, folclórica e erudita brasileira (http://www.ermelinda-a-paz.mus.br) Edino Krieger, um compositor brasileiro Edino iniciou os seus estudos de violino aos sete elas fazem parte da recente publicação intitulada O Projeto Memória Musical Brasileira (mais anos com o seu pai, compositor e regente Aldo Edino Krieger: crítico, produtor musical e compo- conhecido como Promemus): editou par- Krieger. Hans Joachim Koellreutter foi seu principal sitor, disponibilizada pelo Sesc Nacional no ende- tituras, publicou livros e coleções, abriu con- professor. Estudou com ele harmonia, contraponto, reço www.sesc.com.br/publicacoes/edinokrieger. cursos monográficos e de interpretação de fuga, análise, estética musical e composição. Teve Suas críticas o colocam entre os grandes de seu música brasileira, além de gravar um número uma formação complementar com Aaron Copland tempo, ao lado de Andrade Muricy, Ayres de An- significativo de discos recuperados de arquivos no Berkshire Music Center de Massachussets e, ain- drade, Eurico Nogueira França, João Itiberê da fonográficos oficiais e particulares (Paz, Vol. II, da, na Juilliard School of Music e na Henry Street Cunha, Ondina Ribeiro Dantas, Renzo Massarani, Anexo IX, p. 247 - 263) e os Festivais de Música Selttement, nos Estados Unidos. Em Londres, reali- para citar apenas alguns. da Guanabara (Paz, Vol. I, p. 226 – 233). zou um estágio com Lennox Berkeley. Sua carreira é Dentre suas grandes realizações como pro- A realização do I e o II Festivais de Música coroada de prêmios, distinções e homenagens (Paz, dutor musical destacamos: da Guanabara (1969 e 1970) se transfor- Vol. II, Cap. V, p. 173 – 176). Os Concursos Corais do Jornal do Brasil: maram no grande palco para os novos valores Realizou um trabalho sistemático como contribuíram sobremaneira para o cresci- que surgiam. O evento foi criado pela Secreta- crítico musical nos jornais Tribuna da Imprensa mento do número de corais, bem como o ria de Educação e Cultura da Guanabara, cujo e Jornal do Brasil produzindo aproximadamente aumento da produção do coral em nível na- titular era o professor Gama Filho, e suas duas 700 críticas de grande valor documental, todas cional (Paz, Vol. I, p. 224). realizações foram promovidas pelo Museu da Imagem e do Som (MIS) e pelo seu diretor, Ricardo Cravo Albin, sob a coordenação geral do compositor Edino Krieger. O crítico Antonio Hernandez, em O Globo, de 5 de maio de 1970 (p. 6), sob o título “Um milagre de ativação do meio musical do Rio”, afirma que: A principal garantia da seriedade da realização repousa no nome do maestro Edino Krieger, responsável pela iniciativa e a quem a Secretaria de Educação confiou a coordenação geral do certame que será prestigiado pelas presenças de autoridades respeitadas no mundo inteiro. O incentivo à criação musical sempre mereceu especial atenção por parte de Edino Krieger. MÚSICA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 35 Segundo ele, a criação musical de qualquer país como compositor das VII, X, XI, XIV, XV, XVI e XVII em 8 de novembro de 1985, às 21h. Kenneth Au- se apoia em três fatores básicos: edições. Em depoimento datado de 29 de agosto bouchon, Sebastião Gonçalves e Paulo Roberto de 2012, ele assim se pronunciou sobre esse fato: Mendonça, trompetes; Barbara Nokes, Joel de 1º O talento criador dos seus compo- Souza Coutinho, Roberto Crispin e Ismael de Oli- sitores; 2º O interesse do mercado de Sempre entendi as BMBC como um es- veira, trompas. VIII BMBC Três imagens de Nova consumo interno e externo, represen- paço para os outros apresentarem as Friburgo. Regente: Norton Morozowicz, Orquestra tado pelo público e pelas organizações suas obras e, não, necessariamente para de Câmara de Blumenau. Sala Cecília Meireles, 30 musicais; e 3º A organização do sistema mim. Às vezes, estava na comissão de de novembro de 1989, às 21h. Foram compostas de apoio da produção, como elo inter- organização e de seleção e preferia não por encomenda das secretarias de Cultura de mediário entre a criação e o consumo. participar; em outras ocasiões, os intér- Nova Friburgo e do Município do Rio de Janeiro. pretes me procuravam querendo tocar IX BMBC Imagens – visão coreográfica das Três A Bienal de Música Brasileira Contemporâ- alguma obra minha; em determinado imagens de Nova Friburgo. Atores bailarinos: Ta- nea (BMBC), o mais antigo, importante e regular momento considerava que não tinha bla Rasa. Coreografia: Henrique Schüller e Regina evento no gênero (I BMBC - 8 a 12 de outubro de obra que julgasse relevante; e aconte- Miranda. Organização: Coordenadoria de Dança / 1975; II BMBC - 15 a 23 de outubro de 1977; III ceu, inclusive, de esquecer o prazo de Museu de Arte Moderna (terraço superior), 27 de BMBC - 12 a 19 de outubro de 1979; IV BMBC - inscrição por estar trabalhando muito! outubro de 1991, às 17h30. XII BMBC Concerto 23 a 30 de outubro de 1981; V BMBC - 4 a 12 de para dois violões e orquestra de cordas. Violões, novembro de 1983; VI BMBC - 8 a 17 de novem- Aduzimos, a seguir, as participações de Edino Sérgio e Odair Assad. Regente: José Pedro Boés- bro de 1985; VII BMBC - 5 a 14 de novembro de como compositor, a saber: I BMBC Estro armonico. sio. Orquestra de Cordas da Unisinos. Sala Cecí- 1987; VIII BMBC - 22 a 30 de novembro de 1989; Intérpretes: Orquestra Sinfônica da Rádio MEC. lia Meireles, 2 de novembro de 1997, às 21h. XIII IX BMBC - 18 a 27 de outubro de 1991; X BMBC Regente: Alceo Bocchino. Sala Cecília Meireles, BMBC Fanfarra e sequências. Orquestra Sinfônica - 15 a 23 de outubro de 1993; XI BMBC - 23 a 30 em 12 de outubro de 1975, às 21h. Escrita sob do Paraná. Regente: Roberto Duarte. Theatro Mu- de novembro de 1995; XII BMBC - 25 de outubro encomenda do VIII Festival de Música do Paraná, nicipal do Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1999, a 4 de novembro de 1997; XIII BMBC - 20 a 29 de onde teve a sua primeira audição. Para o musi- às 21h. XVIII BMBC Pequeno concerto para violino outubro de 1999; XIV BMBC - 22 a 31 de outubro cólogo Vasco Mariz, é a obra mais bem realizada e cordas. Violino, Daniel Guedes e naipe de cordas de 2001; XV BMBC - 9 a 16 de novembro de 2003; do compositor. II BMBC Variações elementares. da Orquestra Sinfônica da Escola de Música da XVI BMBC - 4 a 13 de novembro de 2005; XVII Intérpretes: Paulo Moura, sax alto; Nelson Melin, UFRJ. Regente: André Cardoso. Sala Cecília Mei- BMBC - 21 a 30 de outubro de 2007; XVIII BMBC celesta. Com participação especial da Camerata - 23 de outubro a 1 de novembro de 2009; e XIX da Universidade Gama Filho. Regente: Isaac Kara- BMBC - 10 a 19 de outubro de 2011), indo para btchevsky. Sala Cecília Meireles, em 17 de outubro a XX edição em 2013, cujo projeto, de autoria de 1977, às 21h. Primeira audição Washington, de Edino Krieger, foi descoberto pela professora EUA. West Auditorium, 8 de maio de 1965. III Myrian Dauelsberg, que se desincumbia em 1975, BMBC Canticum naturale. I – Diálogo dos pássa- da direção da Sala Cecília Meireles, e que, com ros. II – Monólogo das águas. Intérpretes: Solista sua sensibilidade e competência, tratou de en- Maria Lúcia Godoy, soprano. Orquestra Sinfôni- campá-lo para benefício da música e do músico ca Nacional. Regente: Eleazar de Carvalho. Sala brasileiro. As bienais acolheram compositores de Cecília Meireles, em 12 de outubro de 1979, às todas as tendências e gerações, abrindo espaço 21h. Obra composta por encomenda da Orquestra para talentos jovens e desconhecidos e assegu- Filarmônica de São Paulo para o Sesquicentenário rando ainda espaço para os compositores já re- da Independência. IV BMBC Sonâncias II. Violino, conhecidos nacional e internacionalmente. Edino Jerzy Milewski, e piano, Aleida Schweitzer. Sala trabalhou em diferentes frentes – como membro Cecília Meireles, 23 de outubro de 1981, às 21h. V da comissão organizadora, de seleção e como co- BMBC Três miniaturas. Piano Maria Teresa Madei- ordenador – revelando-se como um dos pilares ra. Sala Cecília Meireles, 7 de novembro de 1983, de sustentação dessa comissão. Não participou às 21h. VI BMBC Fanfarra. Sala Cecília Meireles, Edino Krieger e Ermelinda Paz no lançamento da publicação Edino Krieger: crítico, produtor musical e compositor Foto: Cesar Duarte MÚSICA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 36 Estamos convencidos da importância que as BMBC representam para a música e o músico brasileiro ao longo de seus ininterruptos 36 anos, como um espaço político, cultural e democrático, capaz de assegurar um lugar de destaque para a criação musical contemporânea brasileira, independentemente de escolas, estilos ou linguagens, reafirmando-se como um palco ímpar para abertura de portas aos novos talentos da criação musical brasileira contemporânea, reafirmando, ainda, o potencial criador de nossos artistas. Deixemos que o crivo do tempo ajuíze o caráter de permanência das obras. Do compositor Edino Krieger podemos dizer que suas obras figuram nos programas de concerto de orquestras, conjuntos camerísticos, corais e reles, 30 de outubro de 2009, às 20h. XIX BMBC Em 1997, as dificuldades na montagem da intérpretes solistas, tanto no Brasil quanto no ex- Trio tocata para violino, violoncelo e piano. Rio de BMBC cresceram proporcionalmente, propulsio- terior, sendo longa a lista de intérpretes nacionais e Janeiro, 4 de julho de 2011. Violino, Ricardo Amado; nadas pela burocracia que se coloca sempre na internacionais. (Consultar op. cit. Vol. II, Anexo VIII, violoncelo, Ricardo Santoro; piano, Flávio Augusto. contramão da arte. Ainda, Ripper, acrescenta que: p. 238 – 246). Segundo Paz (2012, Vol. II, p. 17), sua Encomenda da Funarte para a XIX BMBC. “Com a tenacidade e experiência que concreti- obra aparece referenciada em diversos textos mu- Como gestor das BMBC, sua atividade tam- zaram tantos outros projetos, Edino Krieger fez sicológicos, verbetes de enciclopédias e dicionários bém ocorreu de modo ímpar. Alguns depoimen- dessa edição da bienal uma grande celebração da de música, sendo ainda alguns títulos de sua pro- tos por nós colhidos evidenciam a grandeza dessa música brasileira”. O depoente revela que o evento dução alvo de elogiosas críticas nos mais diversos doação em prol da música brasileira. Dentre eles, contou com a presença da maioria dos composi- periódicos do país. Sua obra, apontada como não ressaltamos: tores, transmissão ao vivo pela Rádio MEC e ex- muito extensa em razão da excepcional dedicação celente presença de público. à causa pública, não impede o julgamento do perfil João Guilherme Ripper revela que o con- O compositor Rodrigo Cicchelli Velloso, tam- do compositor, apontados por muitos como pos- tato mais frequente com Edino levou-o bém nos fala um pouco desse Edino criador e coor- suidor de grande equilíbrio formal, além de fino a apreciar ainda mais o compositor e a denador de várias bienais: acabamento que lhe é peculiar. figura humana, dono de uma personali- Várias de suas obras foram alvo de efusivas dade afável, mas fortemente direcionada Qualquer depoimento sobre Edino se- críticas como: Brasiliana para viola e cordas, Di- aos seus objetivos. ria incompleto se não mencionasse a vertimento para cordas, Estro armonico, Ludus Edino transpôs obstáculos que ame- profunda contribuição que ofereceu ao symphonicus, Ritmata, Sonatina para piano, Suíte açavam a realização das bienais. Em idealizar e coordenar as Bienais de Mú- para cordas, Variações elementares e Canticum ambas as ocasiões, a burocracia fez sica Brasileira Contemporânea e tantos naturale. Seu catálogo de obras abarca composi- com que recursos fossem liberados no outros eventos e iniciativas ao longo de ções escritas para cravo, flauta, percussão, piano, último minuto; ainda, greves inopor- sua carreira na Funarte. De fato, não trombone, viola de arame, violão, violino, violonce- tunas fizeram com que a coordenação fosse seu esforço, a música brasileira lo, banda, música de câmara, orquestra de câmara, do evento ficasse reduzida a poucos estaria muito empobrecida. Devemos a orquestra sinfônica, coro e orquestra, coro misto, voluntários e alguns concertos fossem ele a manutenção exemplar e tenaz de coro infantil, canto e piano, música incidental para mesmo cancelados. Entretanto, em um dos poucos eventos em que a pro- teatro, cinema e bailados, sendo algumas delas pre- momento algum não realizar a bienal dução de diversos compositores brasi- miadas. Vasco Mariz citado por Paz (2012, Vol. II, p. foi uma opção. (Comunicação pessoal, leiros pode ser ouvida. (Comunicação 18) revela que: “Ludus symphonicus e as Variações 11 de janeiro de 1998) pessoal, em 20 de agosto de 2000) elementares seriam os trabalhos mais meritórios MÚSICA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 37 dos últimos anos e obtiveram êxito inclusive no ex- Paz (2012, p. 22), falando sobre as diferentes terior. Edino Krieger é um dos poucos compositores facetas da obra de Edino Krieger, revela que elas brasileiros com reais possibilidades de se projetar estão em consonância com o meio musical criador no campo internacional”. José Maria Neves referen- de sua época, assim como a forma de sua obra está ciado por Paz (Idem) afirma que “dentre os compo- alicerçada, relacionando as vivências resultantes de sitores da segunda geração ‘Música Viva’ destaca- sua rica história musical familiar e comunitária, so- -se especialmente o nome de Edino Krieger”. Luiz mando a elas seus estudos, em especial, com Koell- Paulo Horta no Jornal do Brasil de 19 de novembro reutter – responsável por sua sólida base teórica –, de 1986 afirma que: e ainda com Copland, Peter Mennin e Ernst Krenek, Lançamento do livro em Brusque/SC Foto: Nubia Abe que colaboraram para o enriquecimento de sua forSua evolução artística, entretanto, nun- mação ao trabalharem com ele as mais avançadas ca ficou presa a injunções de época ou técnicas de composição. de estilo. Produziu obras de denso ar- Ainda é Paz (2012, p. 23 - 24) quem nos fala: tesanato, como o Ludus symphonicus (1965) e o Estro armonico (1975); e a Sua obra apresenta-se dividida em três verdadeira ‘Sagração da Primavera’ bra- períodos. O primeiro período – de 1945 sileira que é o Canticum naturale (1972). a 1952 – foi predominantemente expe- O produto de suas críticas enseja novos estudos e A obra de Edino não é volumosa; mas é rimentalista e universalista, devido ao formas de repensar a música e tudo o que ela en- um modelo de realização. contato com as técnicas novas da música volve (Paz, Vol. I, p. 75- 215). O produtor musical serial. [...] No segundo período – de 1953 nos deixou um grande legado em forma de livros, Do ponto de vista acadêmico, o compositor a 1965 – prevalecem as formas tradicio- partituras, gravações e eventos (Paz, Vol. II, p. 247- também foi por diversas vezes cotejado, ensejan- nais da sonata e da suíte – todavia sem 263). Quanto ao compositor, deixo que falem os do a realização de importantes trabalhos em nível rigor, com total liberdade tanto harmô- inúmeros programas de concursos, festivais, con- nacional e internacional. Dentre eles ressaltamos: nica quanto formal –, dentro de uma certos e recitais no Brasil e no exterior. Oxalá pos- a obra 36 Compositores Brasileiros – obras para linguagem em que conviviam os idiomas samos ter outros Edinos nos caminhos da música e piano da professora Saloméa Gandelman, que tonais e modais. [...] Dessa terceira fase da educação musical brasileira. reservou um capítulo para a obra pianística do em diante – de 1965 aos nossos dias – compositor e, ainda, três dissertações de mestra- o compositor não mais se preocupa em do orientadas pela citada professora no Programa privilegiar determinadas técnicas, formas de Pós-Graduação em Música da UNIRIO, a saber: ou processos de composição. Vanguarda A questão da afinação no coro infantil discuti- e tradição caminham harmoniosamente. da a partir do Guia Prático de Villa-Lobos e 20 Percebe-se uma busca intencional do Rondas Infantis de Edino Krieger, da professora nacional, porém dentro de um contexto Maria José Chevitarese; a Sonata para piano nº 1 mais universalista. de Edino Krieger: aspectos estruturais e interpre- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HERNANDEZ, Antonio. Um milagre de ativação do meio musical do Rio. O Globo, 5 de maio de 1970, p. 6. tativos, do professor José Wellington dos Santos, Para Paz (2012, Vol. II, p. 35), “a obra de Edino e Obras dodecafônicas para piano de composito- Krieger é excelente representante das práticas mu- HORTA, Luiz Paulo. Edino Krieger: 50 anos de Música. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1986, Cidade, p. 6. res do Grupo Música Viva: H. J. Koellreutter, Cláu- sicais da segunda metade do século XX e primeira dio Santoro, Guerra-Peixe e Edino Krieger – uma do século XXI, tanto no Brasil quanto no exterior”. KRIEGER, Edino. Comunicação pessoal em 29 de agosto de 2012. abordagem interpretativa do professor Roberval Segundo a autora, o compositor tem assegurado, Linhares Rosa. Destacamos, ainda, a tese de dou- de forma inequívoca, um lugar de destaque no pa- torado do pianista Alexandre Dossin na Univer- norama musical de nossos dias. sity of Texas, em Austin, sobre a obra pianística Esse breve ensaio teve como objetivo mos- de Edino Krieger sob a orientação do musicólogo trar a grande contribuição de Edino Krieger para a professor Gerard Behágue. música e sua importância como músico brasileiro. PAZ, Ermelinda A. Edino Krieger: crítico, produtor musical e compositor. Rio de Janeiro: SESC, Departamento Nacional, 2012. Volume I PAZ, Ermelinda A. Edino Krieger: crítico, produtor musical e compositor. Rio de Janeiro: SESC, Departamento Nacional, 2012. Volume II RIPPER, João Guilherme. Comunicação pessoal, 11 de janeiro de 1998. VELLOSO, Rodrigo Chicchelli. Comunicação pessoal em 20 de agosto de 2000. CINEMA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 POR Luís Rubira 38 Doutor em Filosofia pela USP, professor do Departamento de Filosofia da UFPel e autor dos ciclos de Filosofia e Cinema, no Centro de Integração do Mercosul POR QUE REALIZAR CICLOS DE FILOSOFIA E CINEMA? Reflexão filosófica e arte rerum: ensaios sobre o cinema moderno). Surgi- ambiente acadêmico e, pelo contrário, fosse capaz ram, também, obras didáticas sobre o tema e, den- de romper com os muros da academia, voltando- tre elas, a de Julio Cabrera, argentino radicado no -se para a comunidade em geral. Brasil, 100 años de Filosofía. Una introducción a la Já em sua quarta edição, os Ciclos de Filosofia filosofía a través del análisis de películas (O Cine- e Cinema tornaram-se um fenômeno de público, ma pensa. Uma introdução à filosofia através dos consolidando-se como um dos projetos mais bem- No período em que Jean-Paul Sartre atuou como filmes), bem como o livro de Ollivier Pourriol Ci- -sucedidos da UFPel – esta universidade localizada professor no Lycée du Havre, a partir de 1931, ele néphilo. Les plus belles questions de la philosophie no extremo sul do país que, nos últimos anos, por discutia cinema em muitas de suas aulas de filo- sur grand écran (Cinefilô: as mais belas questões meio de uma expansão sem precedentes em sua sofia. Afora o apreço dos alunos pela jovem arte da filosofia no cinema). história (ela conta hoje com 101 cursos de gra- cinematográfica (a “sétima arte”, termo inventado Por essas e outras razões é que, atualmente, duação, 39 de mestrado e 14 de doutorado), vem na França pelo escritor Riccioto Canudo, em 1919), a análise de determinadas obras cinematográficas permitindo que Pelotas sofra uma verdadeira revo- Sartre sofreu duras críticas e a incompreensão por torna-se cada vez mais corrente em aulas de fi- lução cultural por meio de seus mais de 25 mil alu- parte da direção do Liceu, dos pais dos alunos e losofia. Proliferam também mostras e, mais timi- nos e professores das mais diversas partes do país. mesmo de outros professores de filosofia. No en- damente, ciclos de cinema, sobretudo dentro dos tanto, é na própria França, onde os irmãos Lumière departamentos de filosofia. Nesse cenário, todavia, inventaram o cinematógrafo (em 1895), que, qua- faltava uma abordagem da vasta filmografia exis- se 100 anos depois, o cinema vem a ser objeto de tente a partir dos temas de grande envergadura da densa reflexão filosófica por parte de Gilles Deleu- reflexão filosófica: a política, a religião, a psicolo- ze, através da obra L’image-mouvement (Cinema: gia, a arte, a ciência, dentre outros. E foi visando a imagem-movimento). suprir esta lacuna que surgiu em 2010 o projeto de A partir de então se propagaram livros abor- ciclos anuais de cinema promovidos pelo Departa- dando o cinema a partir da filosofia, tal como o mento de Filosofia da Universidade Federal de Pe- ensaio de Slavoj Žižek Lacrimæ rerum: Essais sur lotas, realizados no Centro de Integração do Mer- Kieslowski, Hitchcock, Tarkovski et Lynch (Lacrimae cosul. Projeto este, aliás, que não se restringisse ao CINEMA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 39 Terra em Transe; Che 2 – A Guerrilha; A Batalha de Argel; Che; Z; Memória do Saqueio; Hotel Ruanda Fotos: Divulgação A Filosofia e o Cinema Político: do muro de Berlim com o bloco “Do fim da Guerra Os grandes conflitos da humanidade em 28 obras cinematográficas (I Ciclo de Cinema, 2010) cinema político. Além disso, a guerrilha, em Argel, Fria aos nossos dias”. O filme de abertura não poderia ser outro senão A Batalha de Argel. Isto porque Gilo Pontecorvo é o grande estopim, o cineasta-mestre do chamado terá um papel decisivo sobre aquilo que Ernesto Guevara de La Serna, o “Che”, pouco depois chamará de “A guerra de guerrilhas”. Como o ciclo deveria iniciar em junho e terminar em dezembro, apresen- As interpretações do pensamento de Karl Marx tando um filme a cada sexta-feira, de modo ininter- dividiram o século XX em dois grandes blocos rupto, tínhamos então 28 sessões – critério para a políticos. Acontecimento sem par na história da escolha de 28 obras cinematográficas. humanidade, cujas consequências se fazem sentir Iniciar por A Batalha de Argel, entretanto, no alvorecer do século XXI, o tema central do ciclo significava pensar a França colonialista e a liber- “A Filosofia e o Cinema Político” não poderia ser tação que a Argélia imporá ao jugo imperialista. outro senão a Guerra Fria (1945-1989). Mas como Voltar para a Revolução Francesa e apresentar entender o conflito que dividiu o século XX sem Danton e o Processo da Revolução supunha compreender a Revolução Francesa, o liberalismo, pensar a própria França como aquela que, um a Revolução Russa de 1917, a primeira e a segun- dia, buscou libertar-se da monarquia e da reli- da guerras mundiais? Então se impôs um corte no gião (Voltaire mesmo havia escrito: “O homem programa: primeiro abordar o tema “O mundo du- só será livre quando o último rei for enforcado rante a Guerra Fria”, depois retornar no tempo e com as tripas do último padre”). Então, como a mostrar “Da Revolução Francesa ao fim da década França estava em questão, caberia terminar o de 1940” e, por fim, pensar a atualidade pós-queda ciclo com um filme que tivesse a França como CINEMA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 40 Batismo de Sangue; Netto Perde sua Alma; Os Amantes Constantes; Estado de Sítio; O Ovo da Serpente; Kedma; Bom Dia, Noite; A Chinesa Fotos: Divulgação foco. Imediatamente, então, veio à lembrança guerrilha, revolução, guerra, totalitarismo, fun- uma obra de Mathieu Kasowitz. Um filme que damentalismo, terrorismo, genocídio, intolerân- aborda o conflito nos subúrbios de Paris, nos cia. A intolerância, aliás, parece estar na base de quais a antiga França libertária e colonialista todos os conflitos políticos. Não se pode deixar acabou por aprisionar, dentro de seus próprios de dizer, então, que é um privilégio pensar tantos muros, àqueles que um dia estiveram sob sua temas em tão pouco tempo. E, sobretudo, abordar colonização (como o mundo árabe, africano), um determinado tema, em sua multiplicidade, em ou seja, aqueles que hoje estão no interior dos apenas duas horas. Que capacidade de síntese subúrbios, “Banlieue”, onde vivem, também, os possui, por exemplo, um cineasta como Andrzej próprios franceses. O ciclo, portanto, deveria ter Wajda, para montar uma obra-prima como Dan- a França como pano de fundo. Neste sentido, ton, colocando-nos por dentro de acontecimen- nada melhor para compor o cartaz — a chama- tos determinantes da Revolução Francesa (e de da para o Ciclo do Cinema político —, do que a seu rumo catastrófico para o regime do terror), pintura de Delacroix: La liberté guidant le peu- em pouco mais de duas horas, tendo Robespier- ple (A liberdade guiando o povo), cujo quadro, re como o fio condutor. Temos, então, através do em grandes dimensões, encontra-se no museu cinema, a possibilidade de pensar o processo re- do Louvre. Compreender “O mundo durante a volucionário, a democracia, a ditadura, o regime Guerra Fria” e também a busca do homem pela do terror, o totalitarismo, o fim da monarquia, a liberdade. Eis os móveis do Ciclo “A Filosofia e o descentralização entre religião e estado. Prova- Cinema Político”. velmente, nenhum professor de filosofia conse- A partir disso, os subtemas começaram a guiria fazer melhor em duas horas, até porque ser delineados: ideologia, imperialismo, ditadura, lhe falta justamente o recurso de colocar todos diante das mesmas imagens, dos mesmos argumentos, da temporalidade que é própria do cinema e que captura o espectador pela audição e pela visão (que os antigos gregos definiam como o órgão central para o processo de conhecimento no corpo humano). Alinhar os filmes, em seguida, em ordem cronológica, de modo a poder ver o que aconteceu no mundo durante a Guerra Fria. Tendo na memória a lembrança de Herbert Marcuse e seu CINEMA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 41 “Prefácio Político” para o livro Eros e Civilização, Costa Gavras), algo que levou ao próprio golpe que ainda está longe de alcançar a mesma qua- era preciso perceber como o mundo inteiro esta- de Estado no Chile (Chove sobre Santiago). Mas lidade de um Danton e o Processo da Revolução) va sendo incendiado por conflitos, pela “guerra também levantar voo e ir compreender reali- busca, mesmo assim, abordar o espinhoso tema de guerrilhas”, cujos efeitos explodiriam, como dades distantes como o Camboja (Os Gritos do da Revolução Farroupilha. Do mesmo modo, era ele mesmo previu em 1966, sobre a própria Silêncio), o Líbano (Valsa com Bashir), O Afega- preciso tomar contato com os conflitos que fo- França — onde aconteceria a revolta dos jo- nistão (A Caminho de Kandahar), a África do Sul mentarão a formação do comunismo na Rússia vens contra pais, professores e outros censores (Hotel Ruanda); e ainda deter-se, novamente, na (Os Possessos); dos 10 anos de instauração do do “establishment”. Então iniciar pelos aconte- América Latina para compreender a ditadura mi- comunismo na União das Repúblicas Socialistas cimentos ocorridos na Argélia (1954 e 1956); litar na Argentina (A História Oficial), bem como Soviéticas (e aí preferimos colocar no programa depois ir para Cuba (1956 a 1959, com o filme tudo o que a Argentina (e a América do Sul) a obra Outubro, de Eiseinstein, em vez do clássico Che); pensar os efeitos destes acontecimentos, colheu após as ditaduras militares (Memória do O Encouraçado Potemkin), bem como alguns dos sobretudo no âmbito latino-americano, para o Saqueio, de Pino Solanas). elementos que estariam na base da formação da assassinato de Kennedy, nos Estados Unidos (JFK Mas não poderia faltar, em meio a sobrevoos primeira e da segunda guerra mundiais (A Fita – A pergunta que não quer calar); ver também por países tão distantes, um olhar sobre nosso Branca e O Ovo da Serpente). Por fim, era ne- como todos estes eventos vão estourar na pró- próprio processo revolucionário regional. Então, cessário ver como os Estados Unidos colheriam, pria Europa, com a morte de um político liberal no bloco histórico, que tratava “Da Revolução inevitavelmente, o resultado de todos os seus na Grécia, em 1965 (Z, de Costa Gavras); retor- Francesa ao fim da década de 1940”, e que incluía anos de imperialismo com o atentado de 11 de nar para América Latina, mas desta vez para filmes que iam da União Soviética à formação do setembro (Fahrenheit – 11 de setembro) e como pensar a catástrofe na Bolívia, em 1967 (Che Estado de Israel, foi imprescindível colocar um fil- a própria França, outrora o gigante imperialista, 2 – A Guerrilha); analisar como estes e outros me rio-grandense como Neto Perde sua Alma, o continua a fazer também a dolorosa colheita dos movimentos políticos conduziram os jovens ale- qual de modo corajoso (em vistas da precariedade processos políticos de especulação econômica e mães a formarem o Grupo Baader-Meinhof na orçamentária e mesmo de uma pesquisa histórica de intolerância racial (O Ódio). Alemanha, em 1967; e, antes de adentrar Maio de 68, ver como a Terra estava em transe nestes anos todos (pensar o próprio Brasil pelas mãos de Glauber Rocha na sua obra-prima de 1967, que influenciará cineastas do mundo inteiro). E assim por diante: acompanhar as barricadas francesas (Os Amantes Constantes) em 68; penetrar no regime militar brasileiro (Batismo de Sangue); entender como a CIA armou as ditaduras na América do Sul (Estado de Sítio, de CINEMA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 42 A Filosofia e o Cinema Religioso: O percurso espiritual do homem em 40 obras cinematográficas (II Ciclo de Cinema, 2011) No final do século XIX, Nietzsche diagnosticou a “morte de Deus”. O laudo estava assinado não por um inimigo de Deus, mas, ao contrário, por um filósofo preocupado com o niilismo e os rumos da civilização ocidental. Como bem observou Martin Heidegger, Nietzsche não era um ateu comum. O ateísmo, aliás, mostrara todo o seu desenvolvimento e força entre os séculos XVI e XIX, tendo o seu germe no período da revolução industrial, na Inglaterra, alastrando-se depois com a Revolução Francesa e, por fim, encontrando desenvolvimento na reflexão filosófica dos pensadores alemães, dentre eles Schopenhauer e Feuerbach. É, porém, lhares de pessoas dedica(ra)m suas vidas? Qual nomeada: “A convicção religiosa”, sendo que nela permite ao físico, matemático e astrônomo francês é a diferença entre o Deus cristão e o Deus dos reluzem temas como “crença, dogma, heresia, fa- Pierre Simon Laplace responder, quando interroga- judeus ou dos muçulmanos? Ou seria um único natismo”, e a última denominada “O percurso in- do por Napoleão sobre qual o papel de Deus no seu Deus e diferentes interpretações e poderes ecle- terior”, momento em que aprofundamos temas Sistema do Mundo (1796): “Senhor, eu não tenho siásticos? E de outra parte: como os indivíduos caros ao desenvolvimento espiritual tais como necessidade desta hipótese”. O mesmo estágio que experimentaram o contato com o divino? Temos “a impermanência, o sofrimento, a aceitação e a leva Marx, no século seguinte, a sentenciar que “a um destino ou tudo é fruto do acaso? A religião transcendência”. religião é o ópio do povo”. somente um estágio avançado de ateísmo que é um fenômeno humano? Como compreender a Os dois primeiros blocos de filmes buscam Após séculos de ateísmo, Nietzsche estaria mística de homens como São João da Cruz e os compreender, fundamentalmente, a tradição cris- certo em seu diagnóstico e preocupação? Tra- diferentes caminhos espirituais? Pode a fé ser tã. Não somente porque esta é a tradição que está tar-se-ia do Deus transcendente judaico-cristão compreendida sob a ótica da razão? As pergun- na base do processo ocidental, mas também pelo ou do Deus imanente de Espinosa? Ou de am- tas multiplicam-se. fato de que inúmeros cineastas trataram dela, bos? A constatação também atinge as formas Para nos ajudar a compreender algo desses e sendo o número de obras cinematográficas, por- de religiosidade do Oriente e do continente pré- de outros temas (no Ciclo “A Filosofia e o Cinema tanto, mais expressivo. O último bloco de filmes -colombiano? Como pensar o monoteísmo em Religioso”), convocamos consagrados diretores dedicou-se a apresentar filmes que tratam de relação, por exemplo, a Buda e suas manifesta- da história do cinema, como Bergman, Scorsese, outras tradições religiosas, tais como o budismo, ções seculares ou mesmo à tradição védica de Buñuel, Dreyer, Tarkovski, Rossellini, Bresson, den- o hinduísmo, o judaísmo, as tradições religiosas Brahma, Shiva, Vishnu? Estaria Max Weber com tre outros. Em seguida, considerando as diferen- no Brasil, e ainda realizar abordagens específicas, razão ao dizer, em sua obra A Ética Protestante e tes abordagens que cada cineasta fez da religião por exemplo, a questão da relação entre religião o Espírito do Capitalismo, que, quanto mais a so- ou da religiosidade, separamos os filmes em três e sexualidade. Neste sentido, foi selecionado um ciedade foi envolvendo-se no mundo do traba- linhas principais: a primeira intitulada “O conflito filme para pensar a sexualidade no judaísmo (Ka- lho e dos bens de consumo, mais ela se afastou espiritual”, na qual abordamos temas como “pre- dosh), outro na tradição cristã (O Anticristo) e de Deus? E mais: que Deus é esse ao qual mi- destinação, renúncia, expiação, ascese”, a segunda também na tradição budista (Samsara). CINEMA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 43 Pasolini vem acentuar o aspecto revolucionário de A Última Tentação de Cristo; Persépolis; Coração Satânico; O Sétimo Selo; De Olhos Bem Fechados; Baraka Jesus, fazendo referências à filosofia marxista. Mesmo sendo um ateu, o cineasta não somente realiza Fotos: Divulgação um filme sobre Cristo, mas o dedica ao papa João XXIII, tendo a obra, aliás, sido escolhida pelo Vaticano como um dos melhores filmes religiosos de todos os tempos. É importante, então, notar que, no caso do filme de Scorsese, o cineasta parte de uma obra literária para discutir o lado humano de Cristo, as dificuldades que ele teria atravessado como homem Embora todos os filmes tratem de religião, a fim de realizar seu destino; já Pasolini opta por ser nem todos abordam o tema do mesmo modo. To- fiel ao Evangelho, colocando o foco não nas dúvidas memos, como exemplo, duas obras constantes na existenciais de Cristo, mas no caráter revolucionário programação. No caso de A Última Tentação de Cris- de sua mensagem. to, Martin Scorsese não parte dos evangelhos. Sua Esta diferença de abordagem de um mesmo visão de Cristo está baseada num livro homônimo tema acentua um dos aprendizados em filosofia: de Nikos Kazantzakis. O escritor grego, ao realizar o de saber que um mesmo texto ou um mesmo seu polêmico livro, não o fez sem fundamento. Ele acontecimento podem ter diferentes interpreta- partiu de uma tese religiosa sobre a dupla natureza ções. Levando isto em consideração, optamos por de Cristo (a humana e a divina, aceita no Concílio trazer três versões do mesmo filme, todas baseadas da Calcedônia em 451). Escritor e cineasta, então, no mesmo documento, mas que tiveram aborda- exploram o conflito espiritual que Jesus teria su- gens completamente diferentes. Tal é o caso das portado, desde jovem, para vencer a tentação de distintas obras cinematográficas em torno do ser um homem comum, de modo a realizar seu processo que resultou na condenação da mártir destino messiânico. De outra parte, bem diferente francesa Joana d’Arc. Em 1928, o cineasta Carl Th. é a abordagem que o cineasta italiano Píer Paolo Dreyer realizou o filme O Martírio de Joana d’Arc. Pasolini realiza com sua obra O Evangelho Segundo A melhor tradução para o título em português São Mateus, pois se trata de uma reconstrução fiel desta obra seria A Paixão de Joana d’Arc, pois o do Evangelho de São Mateus, da anunciação à pai- foco do diretor era abordar o tema da paixão (um xão de Cristo. Obra concluída em 1964, momento conceito caro à religião, que nada tem a ver com em que o mundo estava mergulhado na Guerra Fria, o modo como é compreendido cotidianamente) que a jovem teria vivenciado, desde o instante em que começa seu julgamento em 14 de fevereiro de 1431, até ser queimada na fogueira em 31 de maio. Para realizar o filme, Dreyer baseou-se no documento original que registrou o processo contra a donzela de Domrémy. Em sua abordagem, então, ele concentra o foco para mostrar a força da fé e o estado de graça de uma mulher que foi radicalmente incompreendida por teólogos ortodoxos e que foi levada à fogueira pela sentença de juízes que não estavam isentos de interesses políticos. Trinta e quatro anos depois, ou seja, em 1962, outro cineasta, desta vez o francês Robert Bresson, faz uma reconstituição rigorosa do interrogatório CINEMA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 44 e das acusações contra Joana d’Arc. Para mostrar sellini. Em Francisco, Arauto de Deus, obra datada grande sensibilidade, na qual Rossellini apresenta que ela foi injustamente condenada por teólogos da de 1950, Rossellini penetra na simplicidade mística a vida interior daquele que, para ele, foi o único Universidade de Paris aliados à Inglaterra, Bresson de Francisco de Assis (1182-1226). Ele tem como homem que aderiu inteiramente à mensagem de estudou os autos do processo de condenação anu- tema, então, não toda a vida do santo, mas o recor- amor deixada por Cristo. Já em sua obra Santo lados pelo papa em 1456, bem como a canonização te compreendido entre o momento que ele regres- Agostinho, o diretor italiano também se concentra de Joana d’Arc em 1920. O foco de Bresson, reali- sa de Roma e aquele em que, tempos depois, irá no último período da vida de Agostinho, o qual, zando um filme menos espiritual e místico, e mais separar-se de seus discípulos. Não se trata de um convertido ao cristianismo e vivendo na África do agudo na defesa de convicções religiosas e com teor filme baseado em obra biográfica, mas, sim, cen- Norte, é consagrado bispo de Hipona, no ano de político, foi o de mostrar a resistência da fé contra trada nos episódios de um livro anônimo do século 395. Todavia, no caso de Agostinho, Rossellini está a pressão das instituições. Trinta anos mais tarde, XIV. O resultado é uma obra cinematográfica de preocupado em abordar não a vida de um homem em 1992, outro cineasta francês volta ao tema. Luc místico que peregrinava pelo mundo, mas, sim, a Besson, desta vez, buscou reconstituir a trajetória do sacerdote que realizou a síntese entre o pensa- da Virgem de Órleans, de sua infância até à morte. mento antigo e o cristão, um dos principais nomes Reconstruindo com primor as cenas de batalha, ele da história da Igreja na consolidação do cristianis- mostra a jovem que, com 17 anos, levou as tropas mo ocidental. francesas à vitória contra os ingleses no momento A programação do ciclo, portanto, pode ser em que a França atravessava o período mais difícil vista não apenas de modo cronológico, nos dois de sua história. Luc Besson, então, ao contrário dos primeiros blocos, mas também na transversalidade. outros dois cineastas, busca, também, concentrar-se Ao final de cada bloco, ademais, buscamos aportar no fervor religioso, nas dúvidas interiores e na salva- determinados documentários. O primeiro, bastan- ção pela fé da mártir francesa. Três obras, portanto, te raro, é O Grande Silêncio; o segundo, também bastante distintas: algo que educa o olhar do espec- difícil de obter no Brasil, saldo em VHS, é Fé, de tador a perceber diferentes abordagens a partir dos Ricardo Dias; e, por último, um filme-documentá- mesmos documentos. rio, Baraka (cuja capa mostra um índio brasileiro), Do mesmo modo, buscamos trazer para o que representa uma abordagem do fenômeno espectador as diferenças da experiência religiosa religioso, pensado a partir do próprio significado entre os santos da Igreja Católica, tal como ao da passagem do tempo, da história humana, da apresentar duas obras que partiram de um mesmo existência do homem no cosmos. O espectador cineasta, a saber, do diretor italiano Roberto Ros- encontrará, também, obras cinematográficas baseadas em clássicos da literatura (Fausto, Diário de um Padre, A Religiosa), da vida de pintores religiosos (Andrei Rublev), de filósofos (Giordano Bruno). A programação inclui, do mesmo modo, obras de diversos países, destacando-se, no Brasil, o clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol, obra que pode ser também estudada à luz do tema da religiosidade no sertão brasileiro. Quanto ao último bloco de filmes (“O percurso interior”), que não segue ordem cronológica, já indicamos algo sobre as obras que o compõem, mas deixamos ao espectador a sugestão de percorrer a senda e, nela, formular suas próprias conclusões. O processo de Joana D'arc; A Via Láctea; O Anti-Cristo; Laranja Mecânica Fotos: Divulgação CINEMA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 45 A Filosofia e o Cinema Psicológico: A insanidade e o psiquismo humano, em 40 obras cinematográficas (III Ciclo de Cinema) psicanálise destacam-se, sobretudo, Gilles Deleu- internet, nas quais existem centenas de filmes de ze, em especial com sua obra O Anti-Édipo, bem baixa qualidade classificados como “psicológicos”. como, mais recentemente, Michel Onfray. Intensi- Aliás, é evidente que nem toda a obra cinemato- ficam-se, também, movimentos antipsiquiátricos, gráfica é, tão somente, de ordem psicológica (cada em que se destaca, por exemplo, o filósofo Michel cineasta intensifica, ao seu modo, abordagens de Foucault. E prosseguem as batalhas contra o do- outras esferas da dimensão humana, tais como a mínio da psiquiatria, sendo Elisabeth Roudinesco política, a religião, a arte, a ciência etc.) Por fim, um dos principais nomes que saem, contempora- não se trata, também, de um ciclo que está preocu- neamente, em defesa da psicanálise. pado em mostrar como diferentes cineastas foram Em 1965, o filósofo francês Paul Ricouer definiu Longa e permanente é, portanto, a relação tratando da psicologia, de modo cronológico, ao Marx, Nietzsche e Freud como mestres da suspeita. entre a filosofia e a psicologia. Mas são, sobretudo, longo da história do cinema. Nosso foco é outro: O que os três pensadores teriam em comum seria as novas ferramentas conceituais aportadas pela partir da sentença do filósofo e psicanalista Corne- uma crítica radical a concepção de “sujeito” cons- psicologia que nos permitem, hoje, analisar a influ- lius Castoriadis, “o homem é esse animal louco cuja truída por Descartes. Para Marx, não existe um eu ência da sociedade sobre o indivíduo e, ao revés, do loucura inventou a razão”, e concentrarmo-nos na autossuficiente e isolado do processo das relações indivíduo sobre a sociedade. Neste sentido, o Ciclo insanidade e no psiquismo humano. histórico-sociais; para Nietzsche, ele é o resultado “A Filosofia e o Cinema Psicológico” busca tomar A insanidade de algumas pulsões que pro- das pulsões e, mais profundamente, expressão da contato com os distúrbios e transtornos causados movem a guerra (Apocalypse Now, Nascido para vontade de potência; e, para Freud, o resultado de na psique pelos pais, pelo estado, pela cultura, Matar, Ran, Katyn); que criam um aparelho de processos inconscientes. A noção de inconsciente, pelas guerras, enfim, por todas as instâncias da estado que visa condicionar ou permite o condi- é preciso dizer, não foi criada pelo investigador vida em coletividade, bem como, inversamente, cionamento de seus cidadãos (Laranja Mecânica, do “complexo de Édipo”. Por certo, ele aprimorou pensar nas patologias individuais que, embora Assassinos por Natureza, 1984); que tratam a o conceito, retirando-o do domínio da filosofia, e, hiperdimensionadas pela indústria dos fármacos, mente das pessoas como uma latrina, banalizan- com base na análise dos sonhos, fundou um novo possuem a sua realidade, causando sofrimento no do a maior parte dos temas, entre eles a violência, campo do saber no século XX: a psicanálise. Na indivíduo ou trazendo sérios problemas e riscos através dos meios de comunicação (Assassinos por filosofia, por sua vez, a investigação de Schope- para a vida em sociedade. Natureza); que transformam o estado em uma bu- nhauer seria decisiva para pensar a soberania da Não se trata, portanto, de contar a história da rocracia interminável, impessoal (O Castelo, Katyn, vontade sobre o eu. Discípulo de Schopenhauer, psicanálise. Levou-se em consideração a densidade 1984); que lutam autodestrutivamente pelo poder Eduard von Hartmann, em sua obra Filosofia do das obras cinematográficas, tendo em vista uma (Ran); que levam a sociedade gregária ao desprezo, Inconsciente (1869), foi um dos precursores do oposição às longas listas de filmes existentes na à incompreensão e à violência sobre determinados tratamento do inconsciente como tendo uma dimensão autônoma em relação à consciência. Freud foi, ademais, aluno do filósofo Franz Brentano, que com seu conceito de intencionalidade, visava fundar a psicologia como ciência empírica. Após a inauguração da psicanálise freudiana, Alfred Adler funda a psicologia individual, enquanto Carl Gustav Jung, a psicologia analítica. Jung, além disso, considera o inconsciente não somente como algo individual, mas como repositório das experiências humanas: o chamado inconsciente coletivo. A partir de então, a psicologia passa a ser uma das ciências mais importantes do século XX. Surgem dissidências e outras correntes, trazendo nomes como Melaine Klein, Willhelm Reich, Lacan. Dentre os críticos da CINEMA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 46 indivíduos (Taxi Driver, Dogville); que vivem tão so- é preciso perguntar se as pulsões são núcleos fi- ficas tomem a nossa reflexão. Afinal, é preciso a mente da ganância dos bens, espoliando culturas xos no psiquismo ou se foram construídos pela escuta interior para que um novo conteúdo psí- ou países alheios, na forma do colonialismo e do espécie e em circunstâncias histórico-sociais. De quico possa garantir seu espaço no processo de neocolonialismo ou, mais recentemente, da dilace- todo o modo, é inegável que em algumas pessoas expansão da consciência. ração das próprias pátrias, deixando para as gera- acentuam-se determinadas patologias. O proble- ções do presente ou àquelas do futuro o “retorno ma no seu tratamento consiste em que, para além do recalcado” (Aguirre: a cólera dos deuses, Caché, do cuidado com a saúde que todo o profissional O Pântano, Edukators, Watchmen, O Dinheiro); que em psicologia deve ter, outros interesses entram exigem das pessoas uma adequação ao status quo, em jogo: a formação e os limites do analista, a às exigências de classe e posição social (O Adversá- classe social, o processo cultural, a visão de mun- rio); que, no seio familiar, de trabalho ou artístico, do da sociedade e da época, os interesses da in- destroem a individuação (Lavoura Arcaica, Gritos e dústria e do mercado etc. Sussurros, Cisne Negro) ou mesmo desrespeitam os Estamos, portanto, diante de um dos temas limites individuais (Cisne Negro). Isto para ficar em mais instigantes, polêmicos, complexos e essen- apenas alguns exemplos e possibilidades de abor- ciais desenvolvidos no campo do conhecimento dagem do tema e das obras. A Filosofia e o Cinema existencial: “O homem a sós consigo” em 30 obras cinematográficas (IV Ciclo de Cinema, 2013) e do autoconhecimento a partir do século XX. O IV Ciclo de Cinema do Departamento de Fi- Complexo é o psiquismo humano. Via de A bibliografia sobre o tema é farta e altamente losofia da UFPel vem com o tema “A Filosofia e regra, um dos grandes debates em filosofia é a recomendável. Mas deveríamos, também, voltar o Cinema Existencial”. Ao longo de 2013, serão relação entre destino/determinismo/necessidade àquela antiga frase de Heráclito (“eu me busco a exibidas 30 obras cinematográficas, divididas em e liberdade. Se o homem fosse tão somente de- mim mesmo”) ou a de Sócrates (“Conhece-te a dois blocos temáticos e cronológicos: I - Do início terminado por suas pulsões e condicionamentos, ti mesmo”). Evitemos, assim, as nossas próprias ao fim; II - Do fim ao início. então estaria abolida a possibilidade de mudança, projeções sobre os outros e sobre as coisas e dei- O IV Ciclo de Cinema do Departamento de a responsabilidade e a imputabilidade. Ademais, xemos que as projeções das obras cinematográ- Filosofia da UFPel parte da ideia do “O homem a CINEMA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 47 Assassinos por Natureza; Taxi Driver; 1984; Watchmen; A Ilha do Medo; Uma Simples Formalidade; Dogville; Um Corpo que Cai; Cisne Negro; A Dupla Vida de Veronique; Zellig Fotos: Divulgação sós consigo” (Nietzsche), bem como de pensadores da chamada corrente “existencialista” da filosofia, para pensar o valor e o sentido da existência, as vivências que imprimem singularidade e autenticidade, a finitude humana, bem como os caminhos para romper com a solidão existencial. Ao longo de 2013, serão exibidas 30 obras cinematográficas, de cineastas como Michelangelo Antonioni, Louis Malle, François Truffaut, Valério Zurlini, Alain Resnais, Vittorio de Sicca, Andrei Tarkowski, Luchino Visconti, Ingmar Bergman, Michael Haneke, Béla Tarr, Francis Ford Coppola, Walter Salles, Jean-Jacques Beineix, Leos Carax, Karim Aînouz, Krzystof Kieslowski, Carlos Gerbase, Lars von Trier, Denys Arcand, Bernardo Bertolucci, Wim Wenders, Jean-Jacques Brissau e Claude Lelouch. Fica registrado o convite ao leitor para que visite nossa página no Facebook, de modo a conferir a programação e acompanhar os próximos ciclos, tornando-se um amigo do CineFilo: www.facebook.com/cinefilo.ufpel PRIMEIRO SEMESTRE 2013 48 ARTES VISUAIS ARTES VISUAIS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 49 Saint Clair Cemin, sem título (2010) Jorge Menna Barreto, Poemas no Chão Fotos: Acervo MACRS A maioridade do MACRS Dois mil e treze é um ano emblemático para o arte contemporânea, estará inserido nos Cami- Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do nhos Culturais do Centro, assim como o Espaço Sul (MACRS). É o ano da maturidade – a insti- Cultural da Santa Casa, Centro Cultural do IPE-RS, tuição está completando 21 anos –, da definição o Cais do Porto e a Fundação Iberê Camargo. “Es- sobre a sua sede, que será junto ao novo Centro tamos indo para a porta de entrada da cidade”, diz Cultural do Instituto Federal de Educação, Ciência André Venzon, diretor do MACRS. e Tecnologia (IFRS), no prédio da antiga loja Mes- Apesar da importância de ampliar os espaços bla, no centro histórico de Porto Alegre, e também para arte contemporânea – depois de algumas difi- o da aquisição de importantes obras para o acer- culdades, de sua quase extinção e de danos ao acer- vo por meio do Projeto MAC 21. Ainda em 2013, vo, atualmente o MACRS está instalado na Casa de o MACRS está dando início à itinerância da expo- Cultura Mario Quintana –, o diretor lembra que mu- sição A Medida do Gesto pelo interior do Estado, seu é sede, mas também acervo. E nesta área é que em uma parceria com o Sesc. a instituição mais vem investindo. Nos últimos dois Com inauguração prevista para o mês de anos, o acervo triplicou. Grande parte é proveniente março do próximo ano, o IFRS-MACRS, que tem de doações de artistas que participaram de exposi- como propósito unir a cultura, a educação e a ções no museu e até mesmo de outras instituições ARTES VISUAIS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 50 como o Santander Cultural e o Instituto Estadual de zer parte do acervo do museu. E da geração 2000, A exposição A Medida do Gesto, realizada en- Artes Visuais (IEAVi), bem como de artistas e colecio- os representantes são Denise Gadelha, Henrique tre o final de 2011 e o começo de 2012 em Porto nadores. “A arte contemporânea é uma coisa viva, Oliveira, Jorge Menna Barreto, Rodrigo Braga e Alegre e que agora está circulando pelo interior do porém o presente hoje, amanhã é memória, então Rommulo Conceição. As obras adquiridas por meio Estado por meio da parceria com o Sesc, também ao mesmo tempo em que estamos fazendo expo- do projeto com o objetivo de estender o acervo da é vista pelo diretor do museu como um projeto sições e adquirindo obras também estamos catalo- instituição ao século 21 serão expostas ao públi- pedagógico, primeiro no nível universitário, já que gando e conservando”, afirma André Venzon. co em uma exposição no Santander Cultural, logo estudantes do Laboratório de Museografia do Ins- após a 9ª Bienal de Artes do Mercosul. tituto de Artes (IA/UFRGS) acompanharam todos A Associação de Amigos do Museu de Arte os passos para ver como se faz uma exposição. Na Contemporânea do Rio Grande do Sul (AAMACRS), criada em 2003 com o objetivo de incentivar e cap- Projeto Pedagógico segunda etapa, de itinerância, o objetivo é reunir tar recursos às atividades do MACRS, tem colabo- O MACRS tem como proposta pesquisar, preser- professores de artes das redes de ensino para dis- rado fortemente para a realização de exposições, var e divulgar um acervo de arte contemporânea cutir em centros regionais o que é uma exposição programas educativos, palestras, cursos, visitas regional, nacional e internacional, e também de- de arte, desde a curadoria, pesquisa de acervo, guiadas com curadores, todas atividades que pro- senvolver propostas educativas que visem a sua convites e divulgação. “Queremos abordar todas as porcionam a milhares de pessoas oportunidades compreensão em suas várias modalidades. Neste etapas. Este projeto, ao difundir e valorizar o acer- de crescimento pessoal. A associação convida o contexto, a parceria com o IFRS possibilita a rela- vo do MACRS, revela como fazer uma exposição, público a ser contemporâneo participando ativa- ção entre os campos da educação, ciência e tec- como fazer uma curadoria”, diz o diretor. mente do desenvolvimento do museu, e contri- nologia com a arte contemporânea. André Venzon buindo assim para torná-lo nacionalmente uma explica que no centro cultural do instituto existirá referência artística e cultural, motivo de orgulho uma biblioteca, um laboratório de conservação de para o Rio Grande do Sul. papéis, um cineclube, entre outros espaços que Prova deste envolvimento da AAMACRS é o ampliam a esfera de presença da arte contemporâ- Projeto MAC 21. Contemplado com o Prêmio Mar- nea na formação educativa do público. “Será muito cantonio Vilaça da Funarte/MinC, possibilitou ao mais relevante para a educação esta interação. O Museu fazer a inédita aquisição de importantes MACRS não será apenas uma galeria, continuare- obras de 21 artistas contemporâneos. Da geração mos a fazer parcerias com os espaços disponíveis, de 1960 e 1970, o MACRS buscou obras de Paulo da rua à sala de aula, através da possibilidade de Bruscky, Nelson Leirner, Cildo Meireles, Carlos Pas- cursos técnicos na área de gestão cultural, mu- quetti, Regina Silveira e Carlos Vergara. Da geração seologia, montagem de exposições e conservação de 1980 e 1990, Alfredo Nicolaiewsky, Elaine Te- e restauração de acervos no IFRS. Os estudantes desco, Gil Vicente, Lucia Koch, Maria Lucia Cattani, poderão estagiar no museu. Além disso, já estamos Rochelle Costi, Saint Clair Cemin, Rosângela Ren- elaborando o projeto de um curso técnico em arte- nó, Teti Waldraff e Walmor Corrêa passaram a fa- -educação para o público infantil.” ARTES VISUAIS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 51 Rodrigo Braga, Leito (2008) Foto: Acervo MACRS Foto Montagem: espaço da nova Sede do IFRS-MACRS (2013) Foto: Walter Karwatzki ARTES VISUAIS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 POR Andrea de Souza 52 Especialista em Educação Infantil e coordenadora da Educação Infantil do Sesc/RS Loide Pereira Trois Doutora em Educação pela UFRGS na Linha de Pesquisa Estudos da Infância e gerente de Educação e Ação Social do Sesc/RS Larisa da Veiga Vieira Bandeira analista da Gerência de Educação e Ação Social do Sesc/RS e mestranda da Linha Filosofia da Diferença no PPGEDU – UFRGS A arte contemporânea permite às crianças diver- configuram imagens que permitem compartilhar a sas experimentações e outras formas de interação experiência e, ao conversar sobre o realizado, isso com as imagens e os objetos. Os objetos corriquei- favorece o deslizar do pensamento sobre o que re- ros produzem conteúdos que são ressignificados alizaram. Nesse sentido, é o ato de desenhar que constantemente, e a relação com a obra, com os provoca o pensamento conceitual, e não o contrá- acervos e com o próprio artista agora é atravessa- rio. (Barbosa e Richter, 2010, p. 29) da por um olhar interativo. A contextualização da Foi nessa perspectiva que a equipe de Educa- produção artística e a leitura de imagem perpas- ção Infantil da Escola de Ijuí/RS iniciou sua itine- sam os currículos da educação infantil. rância convidando as crianças a tecerem diversas É importante criar experiências e atividades em que a arte não seja pensada como passatem- experiências usando como suporte ou tela o modelo dos chinelos de dedo. po e transcrita por meio de atividades em que o desenhar, o colar, o pintar são destituídos de sig- O currículo aqui é compreendido a nificados, de contextos de interpretação e de apro- partir das intenções evidenciadas nas priação. Ou ainda, usada para ilustrar temas com ações e nas interações constituídas no datas comemorativas ou de decoração das paredes cotidiano. Toda a vida na instituição das salas de aula. transpira este modo de compreender o Pensar a arte como elemento constituinte do currículo. O currículo, portanto, não é fazer pedagógico é pensar num currículo atraves- compreendido neste texto como pres- sado e interpelado pelo cotidiano, pelos fazeres e crição, mas como ação produzida pelos pelas infâncias que acontecem e habitam a escola. educadores em parceria com as crian- Ao desenharem, as crianças não reproduzem ças. (Trois, 2012, p.49) uma cópia do mundo, utilizando os princípios conceituais do desenho, mas produzem traços e Os Chinelos Itinerantes nascem da ideia de reaproveitamento de um material aparentemente des- ITINERÂNCIAS: As produções infantis em constante movimento A vinculação da vida é, cartável que seria inutilizado. Assim, os chinelos que não servem mais para calçar os pés abrigando-os e protegendo-os, passam a abrigar novas possibilidades e novos fazeres criados pelos corpos infantis. Constituiu-se uma série de ações articuladas em que o primeiro passo foi uma campanha de arrecadação de chinelos velhos entre os familiares, os comerciários e a comunidade que utilizava os programas e serviços da unidade do Sesc. Após a arrecadação dos chinelos, iniciou-se o manuseio, a pois, com um itinerário. exploração das possibilidades que estes ofereciam O que importa é o constante para a interferência e a criação. Cunha (2012, p.44) caminhar, que abre os poros, alivia os pulmões, lembra que, “assim como os artistas contemporâneos aproveitam e exploram qualquer material em suas produções, as crianças também podem fazer permite que o sangue flua, o mesmo quando se expressam. Para isso, tanto os dá energia e disposição para usos dos materiais como dos suportes e instrumen- continuar a caminhar. (VIEIRA, 2009) tos devem ser reinventados”. Utilizando diversos materiais, como cola colorida, cola dimensional, lantejoulas, espelhos, boli- ARTES VISUAIS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 53 Fotos: Paulo Hoeper nhas de gude, tinta PVA, barbante, verniz e muitos crianças receberam seus convidados e conversaram diferentes passos coloridos, brilhantes, molhados outros e inspirados em artistas já conhecidos e cujas sobre suas produções. A integração da comunida- de mar, empoeirados de estrada, passos que serão obras circulam nos espaços da escola, as crianças de em muitos momentos desse processo garantiu dados em cada uma das regiões do Rio Grande do começaram as transformações dos chinelos. A es- a acolhida e o compartilhamento das experiências, Sul com suas muitas crianças. Em cada uma das colha do material que desejavam utilizar, explorar, das descobertas e das produções infantis. escolas do Sesc em que a exposição era instalada, aplicar nas suas intervenções propiciou às crianças O que se iniciou como possibilidade de reuti- novos chinelos eram incorporados ao acervo, pro- o manuseio de um suporte com contornos, textu- lização de um material descartável apresentou-se duzidos pelas crianças e também pelos seus pais que ra, dimensões bem distintas das que são oferecidas como possibilidade de transformação, criação de utilizavam espaços das escolas para a produção de pelo suporte da folha de papel. Previa-se nesse mo- novos usos para a forma conhecida anteriormente outros chinelos. mento, que houvesse uma exploração até o esgota- como chinelo. Agora, os chinelos eram telas para A itinerância aqui foi tomada como um modo mento das possibilidades que se ofereciam e que se diferentes cores, tear para diferentes texturas, su- de operacionalizar a circulação da produção das desdobravam em outras tantas. O desenvolvimento porte sinuoso e tridimensional para novos passos. E crianças como território. Para as crianças, a noção desses momentos foi gradativo, ou seja, os chinelos os novos passos foram dados com a circulação dos de território ampliou-se e deu visibilidade às trocas não entraram na escola para dar “passos isolados”, chinelos produzidos em Ijuí para o interior de todo o que são possíveis entre os que o habitam. Expandir tudo que deles decorreu foi interligado e sequen- Estado. Deste modo, a coleção de chinelos foi sendo o território, chegar através dessa itinerância em ou- cial. E essa sequência foi também de “passos” que acrescida de novas produções feitas pelas crianças tras escolas é explorar a potência desse movimento, avançavam e retornavam, “passos compassados”, de diferentes cidades como Tramandaí, Santo Ân- das linhas que foram produzidas nesse deslocamen- rítmicos, com pulsos e repousos de um tempo de gelo, Santa Rosa, Cachoeirinha, Porto Alegre, Ca- to, nesse campo de criação. Pensar uma escola que espera, de um tempo de observação, de um tempo choeira do Sul, Santa Maria, Lajeado, Santa Cruz do não apenas privilegia as produções infantis, mas de repetição. A cada dia, as crianças queriam mudar Sul, Novo Hamburgo, Rio Grande, Carazinho, Bagé e também as coloca em movimento, em relação de algo ou desenhar mais algum detalhe realizando Alegrete. Cidades que constituem a rede de escolas interação. Sendo assim, é pensar em espaços em novas leituras de suas produções. infantis do Sesc e que colocaram em movimento que a sensibilidade está ancorando as relações de As novas leituras, o retorno ao material uti- o conceito de arte e infância. Uma itinerância em convivência, de interação e troca. lizado, a criação de novas possibilidades e a ob- um mapa de infâncias, percorrido pelos muitos e servação dos processos que eram acompanhados atentamente, como o tempo de fixar da cola, o secar da tinta, a transformação de materiais colados, a aplicação da tinta em diferentes texturas fez com que fossem aproveitadas as relações entre causa e efeito. Cunha (2012, p.51) aponta que a combinação entre as diversas modalidades das artes visuais, como colagem, pintura, desenho e montagem tridimensional, provoca as crianças no vivenciar das diferenças e das semelhanças de cada modalidade, descobrindo as possibilidades particulares de cada uma delas. Quando os chinelos ficaram prontos, foi acordada a montagem da exposição, ou seja, era necessário a partilha, o confronto de outros olhares que complementassem as produções e legitimassem a itinerância, o movimento. Esse momento da exposição foi pensado junto com as crianças que atuaram como protagonistas em todo o processo. Foi organizado um vernissage, convidando familiares, amigos e a comunidade para apreciarem as obras. As REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CUNHA, S. (Org) As artes no universo infantil. Porto Alegre: Editora Mediação, 2012. BARBOSA, M. C. E RICHTER, S. Os bebês interrogam o currículo. In: Revista da Educação da Universidade Federal de Santa Maria, v.35, nº.1, janeiro/abril, Santa Maria, 2010. TROIS, L. P. O privilégio de estar com as crianças: o currículo das infâncias. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Tese de Doutorado, 2012. VIEIRA, Rafael A. K. Os modos contemporâneos de gestão do espaço urbano e a invenção de si. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Universidade Estadual Paulista, 2009. ARTES VISUAIS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 POR Luciano Bedin da Costa 54 psicólogo, doutor em Educação e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Larisa da Veiga Vieira Bandeira analista da Gerência de Educação e Ação Social do Sesc/RS e mestranda da Linha Filosofia da Diferença no PPGEDU – UFRGS Cartografias infantis: a cidade pela criança a fotografia pela infância (…) a grama só existe O que se passa quando uma criança pega uma espaços de circulação pública. Neste sentido, a entre os grandes espaços máquina fotográfica e se põe a registrar a ci- cidade se apresenta como espaço estriado, um dade em que vive? Este texto se propõe a apre- rugoso tecido que coloca as ações cotidianas à sentar o projeto Cartografias infantis: a cidade mercê desta organizada engenharia. Falamos da preenche os vazios. Ela pela criança / a fotografia pela infância, financia- cidade como um corpo urbano funcional (ainda brota entre – entre as do pela Fundação Nacional das Artes (Funarte)[1]. que por vezes aparentemente caótico), no qual O nome dado ao projeto é resultante da escolha os lugares são demarcados para que a vida possa pela prática de um olhar cartográfico, o qual se se efetivar com uma suposta segurança. Circula- propõe a apresentar a cidade de Porto Alegre a -se, habita-se, trabalha-se, diverte-se, brinca-se. a tulipa endoidece. partir da multiplicidade de narrativas, olhares fo- O corpo organizado torna estas atividades possí- Mas a grama é tográficos, escritas e desenhos das crianças que a veis, ainda que trabalhe para o esmagamento do habitam. Tomamos como dispositivos duas ofici- campo de possíveis que se abre sempre que estas não-cultivados. Ela outras coisas. A flor é bela, o repolho útil, transbordamento, é uma nas realizadas em janeiro e março de 2011, além são colocadas em movimento. Para cada movi- lição de moral. da oficina germinal, realizada em junho de 2010 mento-criação um código é oferecido. Então, Gilles Deleuze no Hospital Psiquiátrico São Pedro. Todas as foto- circula-se pelos espaços destinados à circulação grafias apresentadas no decorrer do texto fazem (institucionalmente criados para tal): trata-se de parte destas três experiências. praças, calçadas, ciclovias e avenidas. Falamos de sobrecodificações dimensionais e direcionais: Partindo (de) um corpo organizado os espaços se oferecem como espaços ópticos “Somos segmentarizados por todos os lados e em (garantindo-nos a suposta ideia de dimensão) todas as direções”, escrevem Deleuze & Guattari e direcionados (reforçando-nos a crença de que (1996). Esta rede de segmentaridades se volta a estamos sempre entrando-saindo de algo). O todos os estratos que compõem a vida, introdu- Projeto Cartografias Infantis (PCI) assume este zida no seio da vivência privada e ampliada aos corpo organizado como suporte, tomando a geo- ARTES VISUAIS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 1 Os registros cartográficos das oficinas estão disponíveis no site do projeto CARTOGRAFIAS INFANTIS, http://cartografiasinfantis.com.br 55 Crianças registram seu olhar em espaços de circulação pública Fotos: Divulgação do projeto grafia urbana de Porto Alegre como plano inicial. riência cartográfica ganha força em sua coletivi- Elencamos cinco lugares majoritariamente cons- dade, em agenciamentos coletivos de enunciação tituídos na história e cultura de nossa cidade: que maquinam entradas e saídas, compondo um Parque da Redenção, Usina do Gasômetro, Cais mapa com escalas de propagação, um mapa de do Porto, Jardim Botânico e Parque Moinhos de lugares, percursos e deslocamentos multiplicados Vento (Parcão). Falamos de cinco espaços extre- em cada um de seus infantis (nem por isso menos mamente conhecidos, achatados pelos sentidos “políticos”) enunciados. dados, sobrecodificados pelos discursos familiares e pedagógicos. Nossa cartografia partirá dos Anotações num diário de bordo clichês oferecidos pela própria cidade. Quando começamos não imaginávamos tanta preparação. No início, nos primeiros movimentos A escala do PCI, sabíamos muito pouco, talvez pistas do Na ciência cartográfica, quando se projeta um que seria um trabalho de escuta, de prospecção, mapa é preciso informar quantas vezes o terreno de atenção e de observação das crianças no exer- real (no caso a cidade de Porto Alegre ou parte cício de registrar alguns pontos da cidade. Agen- dela) foi reduzido. A cartografia mantém uma cia-se um grupo de crianças para algo que não se relação estreita com as dimensões geográficas sabe ao certo, que se faz de desejos e de algumas propriamente ditas. No caso do PCI, a geografia capturas. Antes, ainda, preparam-se as máquinas, será assumida através dos perceptos (Deleuze & as pessoas que acompanham, e, ainda assim, toda Guattari, 1992) atiçados pelos registros fotográ- a preparação necessária para iniciar demanda ou- ficos e pelos enunciados infantis. A escala – em tras preparações. Para as intensidades que procu- vez de dimensional e direcional – torna-se afeti- ram expressão, a preparação já é um início e um va, embaralhando os códigos comuns e abrindo ato disparatório. [A cartografia definitivamente a cidade para linhas quiçá novidadeiras. A expe- não nos parece um manual de instruções]. ARTES VISUAIS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 56 Oficina 1 bairro Cidade Baixa (Porto Alegre) aproximou o PCI O grupo que participou da primeira oficina, realiza- de um grupo de crianças não previsto no breve cro- da no dia 17 de janeiro de 2011, era formado por 32 nograma traçado para o início do ano. As previsões crianças que frequentavam uma colônia de férias. O iniciais não determinavam um padrão nos grupos local escolhido pelas crianças foi o Jardim Botânico, que participariam, mas sabíamos que os desvios ne- pela proximidade deste com o grupo e possibilidade cessários implicariam outras formas de aproximação de deslocar-se entre dois bairros (Petrópolis e Jardim e que cada uma das novas oficinas demandariam Botânico) sem a necessidade de transporte. O des- outros fazeres e procedimentos práticos. As crianças locamento realizado pelo grupo envolveu algumas desse grupo residem no Quilombo do Areal da Baro- ruas e avenidas. Estávamos (crianças e oficineiros) nesa, localizado no bairro Cidade Baixa. No local, são atentos ao novo que se entranha no já visto muitas aproximadamente 80 famílias que vivem em uma vezes. Uma espécie de estranhamento do óbvio, de das últimas “avenidas” da região, a Luís Guaranha, uma suspeita diante das linhas duras que se atra- historicamente ocupada por famílias negras. A as- vessam na vivência cotidiana da cidade. As crianças, sociação de moradores mantém um projeto musical portando máquinas digitais ou celulares com câme- de ritmistas, composto por 70 crianças e jovens de ra, percorreram o Jardim Botânico sem a mediação 5 a 16 anos. Após contatos telefônicos, fomos con- da escola – e sem fazer uso do percurso pedagógico vidados a participar do “aquecimento” e assistir ao que o próprio local oferece. O grupo enveredou-se desfile das crianças no carnaval de rua. Esse primei- por trilhas que não as demarcadas no mapa dispo- ro encontro resultou na combinação de uma oficina nível aos visitantes. que aconteceria no Parcão. Este aparente “desvio” marcou o que seria a oficina 2 do projeto. O procedimento cartográfico As fotografias resultantes dessa visita foram pré- A oficina 2 -selecionadas pelas próprias crianças, utilizando os A oficina 2 foi realizada no dia 4 de março de dispositivos de suas máquinas, celulares e computa- 2011. O grupo de 18 crianças, entre 4 e 12 anos, dores. Cada uma escolheu cinco fotografias. A sele- partiu do Quilombo com um transporte esco- ção exigiu a atenção e a concentração das crianças, lar, deslocando-se pelos seis quilômetros que tendo em vista a grande quantidade e densidade do separam a comunidade quilombola do Parcão. material produzido. O trajeto foi marcado por conversas animadas, fotografias e filmagens. Esse grupo não possuía Tomando carona numa linha de fuga máquinas digitais ou celulares. A experiência de Em fevereiro de 2011, um convite veiculado na mí- uso coletivo foi organizada com as crianças, um dia-web para um carnaval de rua que acontece no procedimento metodológico foi se criando a par- ARTES VISUAIS PRIMEIRO SEMESTRE 2013 57 tir da necessidade de compartilhamento. As foto- zer obras, ser artistas. A minha mãe disse grafias resultantes desta oficina foram reveladas que eu sou um artista, que estou sempre e apresentadas num segundo encontro, em que fazendo arte. Os cegos não podem fazer o grupo de crianças pôde olhar e escolher os re- por que não enxergam e os débeis men- gistros que gostariam de ver publicados no site. tais também não, porque não podem A primeira oficina foi realizada no Jardim Botânico, local escolhido pelas próprias crianças Fotos: Divulgação do projeto pensar. Eu acho que os cegos podem A oficina germinal fazer, eles só não vão poder ver depois. No dia 9 de julho de 2010, um grupo de 14 Eu vi um cara sem as mãos que pinta- crianças foi visitar uma exposição de arte que va com os pés. Os surdos podem fazer acontecia no Hospital Psiquiátrico São Pedro por que não precisa ouvir para fazer (Porto Alegre). Foi solicitado que as crianças arte. Têm umas obras tri loucas. Louco levassem suas máquinas para registrar a visita. pode fazer arte? Pode, tem um monte de Foi feito também um pedido para que não se fa- artista tri loucão. E o que é ser louco? lasse para as crianças sobre o local. O espaço É atravessar a rua correndo sem olhar que seria visitado faz parte de um imaginário para os lados. É chegar num guarda que urbano conectado a loucura e práticas de en- tá de cavalo e bater no guarda. Eu sou clausuramento; as crianças, destituídas de tais louco, a minha mãe sempre diz: – “tu tá sobrecodificações, visitariam um espaço de ex- louco, guri?” e eu sou artista também. As posição localizado num conjunto arquitetônico obras de arte ficam nos museus, nas es- antigo e grande. Antes de sair fizemos uma roda colas, nos teatros, nos museus, nos hos- para conversar sobre algumas questões: O que pitais. Pintura é arte, cinema e música é arte? Quem faz arte? Quem é artista? O que é não, fotografia é. uma obra de arte? Onde ficam as obras de arte? O material produzido no dia, aparentemen- Polifonias infantis te desconexo e caótico, resultante desta inva- O que se segue é a tentativa de transcrição da são naquele lugar também chamado de castelo, polifônica conversa que tomou conta do grupo: cadeia, prisão, e que ainda assim seria um bom lugar para uma escola foi germinal; ele nos in- A arte é o que está nas obras, no papel, dicou o que necessariamente seria a cartografia: nas telas dos museus. Mas pode estar uma prática de intenso rastreamento, conexões nas ruas, nas estátuas, e tem obras nas desejantes, exploração, tentativas e invenções ruas também. Pode estar no desenho estratégicas. dos tênis e das roupas. Todos podem fa- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol.3). Rio de Janeiro: Ed.34, 1996. DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. DELEUZE, Gilles. PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. literatura PRIMEIRO SEMESTRE 2013 POR THIAGO CRUZ 58 Professor de Filosofia no ensino médio E mestrando em Filosofia pela UFRGS A DESCOBERTA DO MUNDO O ano de 2013 marca o centenário do nascimento teratura. Não que não tivesse lido outros livros. O bairro de Belcourt, teve na figura da mãe a princi- de Albert Camus, um dos maiores escritores do fato, porém, é que somente com as desventuras de pal expressão da vida familiar (embora convivesse século XX, agraciado com o prêmio Nobel de Li- Meursault, o anti-herói desse romance, compre- com o irmão, o tio e a avó na mesma casa): seu pai teratura em 1957 por obras, como O Estrangeiro, endi que a ficção literária pode tirar-nos o sono, fora morto em combate durante a Primeira Grande A Peste e O Mito de Sísifo. inquietar-nos ao extremo, dificultar-nos a respi- Guerra ainda em tempos de sua primeira infância. ração. Minha adesão à obra foi tão visceral que, Não tendo a vida intelectual no horizonte de suas *** mesmo sendo a amizade uma relação recíproca, expectativas – com efeito, nada além do convívio Há alguns dias, fui surpreendido por um con- sentira-me então impelido a situar tanto Camus escolar –, o destino de Camus fora decisivamente vite cujo conteúdo diz respeito muito intimamen- quanto Meursault entre os meus melhores amigos. marcado pela influência de seu professor primá- te ao que ora escrevo: produzir um artigo sobre a De parte esse ardor juvenil, mas em função rio, Louis Germain, que antevira naquele jovem vida e/ou a obra de Albert Camus, escritor franco- daquilo que me tocara tão fortemente, dedicar al- pied-noir algum potencial, orientando-o nos es- -argelino que completaria cem anos em novembro gumas horas a pensar e escrever sobre Camus e tudos. Abria-se, pois, a porta para sua educação próximo. Tal proposta não poderia vir em pior mo- sua obra maior – entre nós também a mais conhe- secundária, um caminho bem diferente daquele mento. Compromissos acadêmicos, profissionais cida – fez-se impositivo, algo de que não poderia a que o curso comum dos eventos o teria levado e pessoais formavam um quadro nada invejável, me furtar. O móbile deste artigo, portanto, não é – um trabalho na oficina de seu tio, um tanoeiro. circunstâncias que se afigurariam mais do que su- senão um sentimento de gratidão. Indo adiante nos estudos, conhece então Jean ficientes para me demover de um interesse inicial Grenier, professor cujos ensinamentos e incenti- nessa empreitada não fosse o enorme sentimento *** de dívida que carrego com a figura e com a obra Albert Camus nasceu em Argel, Argélia, em 7 de Igualmente importante para sua biografia camusiana: há aproximadamente 10 anos, sendo novembro de 1913. Nessa época, o país não era foi a crise de tuberculose que lhe acometeu pela então um adolescente, a leitura de O Estrangeiro mais do que uma colônia francesa no norte da primeira vez aos dezessete anos de idade. Expos- significou para mim a porta de entrada para a li- África. De infância pobre, residindo no operário to à fragilidade de sua existência, impedido de vos levaram-no a graduar-se em Filosofia. literatura PRIMEIRO SEMESTRE 2013 59 tomar sol ou desfrutar dos banhos de mar, algo as qualidades apresentadas pelo protagonista de Sartre, de um grupo de intelectuais, muitos dos que lhe era tão caro, sua convalescença trouxe O Estrangeiro. O horror à morte, o conhecimen- quais escritores, interessados em questões relati- consigo uma grata surpresa: o contato com a li- to de um só tipo de felicidade, inseparavelmente vas à igualdade, à promoção da justiça. Contudo, teratura. Para recobrar a saúde, Camus ficara um ligada à natureza; certo asco pelas convenções à medida que o mundo tomava conhecimento do tempo na casa de seu tio Acault, um açougueiro sociais, uma exasperação ante a atitude sectária, genocídio praticado pela URSS, consciente de que cujo mérito maior (ao menos para a posteridade) tudo isso dificulta a correta interpretação daquela fazia parte de um regime tão criminoso quanto fora possuir uma biblioteca em casa. O fascínio que obra como uma mera ficção – parece haver ali um aquele que pretendia derrubar, Camus sentira-se certas leituras exercem sobre o jovem Camus leva- toque autobiográfico. Com efeito, embora não fos- impelido a afastar-se do Partido. Com a publicação -o a esboçar alguns escritos. Não demora muito, se muito pobre, Meursault nem de longe desfruta de A Peste dera um passo nessa direção. publicam-se seus primeiros ensaios (O Avesso e o das comodidades da vida; e como o próprio Camus Para muitos, o ponto alto do romance, a Direito - 1937); em 1938, atua, então, como jorna- fizera questão de marcar, longe de ter lhe impedido conversa travada entre Rieux e Tarrou apresen- lista no Alger Républicain. Inicia-se uma carreira uma vida feliz, sua condição social predispusera-o ta a clareza com a qual Camus passara a ver as promissora como escritor. à apreciação da natureza, ao gozo dos prazeres do disputas políticas de sua época. No “momento da É nesse momento que a história universal mar e do sol, bens acessíveis a todos os argelinos. amizade”, tal como é descrito pelo narrador, em assume contornos os quais, em grande medida, Assim enraizara-se nele um desapego sincero pe- que pela primeira vez falam de um assunto pesso- determinariam o futuro de Camus: é declarada a las comodidades da vida como algo essencial para al (até então a peste tomava-lhes todo o tempo), guerra. Por questões políticas, o periódico do qual uma verdadeira felicidade. Tarrou confessa a Rieux que na tentativa de com- Camus é colaborador é fechado. Desempregado e Esse culto à natureza, indissociável do Ca- bater assassinatos deliberados por parte do Estado impossibilitado de alistar-se no exército a fim de mus histórico, será marcante em toda a sua obra, acabara participando de um movimento político participar dos combates (em função de sua doen- um traço que extrapola e muito a narrativa de que repousava igualmente em execuções, as quais ça), muda-se para Paris à procura de um local no O Estrangeiro. Cada um a seu modo, tanto o jovem aparentemente poderiam ser justificadas em nome qual pudesse seguir trabalhando. Os frutos colhi- ensaísta de Núpcias quanto o escritor mais madu- de um futuro melhor, da busca por uma sociedade dos por essa opção não tardam a aparecer. Em ro de A Peste consideram o contato com o mundo mais justa. Propondo então uma resistência limpa, 1940, confinado voluntariamente num pequeno sensível indispensável à dignidade humana. Uma sem armas, a toda forma de legitimação do assas- hotel de Montmarte, estando em uma cidade das maiores desgraças de A Peste, aliás, é anuncia- sinato, Camus recebera críticas de todos os lados que lhe proporcionara a solidão necessária para da no começo do romance: Orán, a cidade vitimada na publicação do livro: a esquerda comunista, a ex- produzir, escreve seu primeiro e mais enigmático pela epidemia, fora construída “de costas para o trema direita e mesmo os niilistas acusavam-no de romance: O Estrangeiro. Publicado pela primeira mar”; aos olhos de Camus, uma negação da vida uma ou de outra coisa. Não obstante, essa atitude vez em 1942, essa obra dá uma enorme proje- que, de maneira nada surpreendente, corrobora de repudiar o assassínio e rechaçar as tentativas ção a seu autor, recebendo críticas favoráveis de a visão do homem como um ser essencialmente de justificá-lo em nome seja do que for aparece- intelectuais de grande monta, como o então con- histórico, alguém que, portanto, pode matar ou ra de forma definitiva em 1952, com a publicação sagrado filósofo e romancista Jean-Paul Sartre. morrer por uma ideia: a peste descrita no romance de O Homem Revoltado, obra que rendeu a Camus Como toda grande obra, embora tenham se pas- não é senão uma alegoria da guerra que assola a fortes críticas da revista Les Temps Modernes, da sado muitos anos desde sua primeira aparição, Europa nos anos de 1940. qual Sartre era diretor, em função do que ambos O Estrangeiro continua lido e relido em nossos Tal visão do homem como meio para a obten- dias, sua atualidade não se perde: os problemas ção de uma felicidade futura, a qual se mostrara que mais intimamente tocam a natureza humana tão arraigada nas principais ideologias do entre- Abatido por encontrar-se numa época de não mudam com o passar do tempo. trocaram acusações cujo resultado, sabe-se bem, não foi senão o rompimento da amizade. guerras, recebera especial atenção de Camus. É excessos, na qual qualquer diálogo tornava-se im- De maneira particularmente interessante, é fato que ainda na década de 1930 Camus ligara-se possível e cujo fio condutor não era senão a des- tarefa difícil dissociar as figuras de Camus e de ao Partido Comunista. Preocupado com a condição medida; triste pelo episódio com Sartre, cuja con- seu principal personagem, Meursault: em vários das minorias na Argélia (cujo quadro era extrema- tenda viera a público, o ânimo de Camus sofreu aspectos, há uma notável coincidência entre as mente delicado), esta lhe afigurava uma alternati- outro revés quando fora escolhido para o Nobel disposições, predileções e angústias do escritor e va disponível. Mais tarde, fizera parte, ao lado de de Literatura em 1957. Tal como expressou em seu literatura PRIMEIRO SEMESTRE 2013 60 discurso de agradecimento, fora agraciado com direito de as pessoas sentirem e pensarem como momento independentemente do que fizesse. um prêmio tão distinto por uma obra ainda em de- quiserem e, contudo, censura-se a expressão des- Desse modo, o toque das sirenes anunciando-lhe senvolvimento, em grande medida inacabada. Sem ses sentimentos e pensamentos. Tal perplexidade o derradeiro momento significa, paradoxalmente, julgar o mérito da escolha, parecia a Camus que assume um aspecto cômico quando na prisão, in- um pouco de paz. sua obra se encerrava prematuramente. terrogado pelo juiz de instrução sobre um possível De maneira geral, parece-me que Meursault De forma prematura, também, perdera sua arrependimento em razão do crime que cometera tenderia a suportar mais tranquilamente (embora vida. Três anos mais tarde, em 4 de janeiro de 1960, (objetivamente, Meursault assassinara um árabe não absolutamente) sua condenação se durante o viajando com amigos rumo a Paris, o carro em que na praia sem qualquer motivação), ele responde julgamento o principal argumento da promotoria Camus se encontrava colidiu com uma árvore, viti- que, em vez de arrependimento, sentia na verda- não apontasse para sua insensibilidade. No enterro mando-o imediatamente. Eis o que lhe reservara o de tédio por ter assassinado um homem, e o tédio da mãe, por exemplo, Meursault não chorara um destino. Uma fatalidade. advinha tanto do fato de estar preso, apartado momento sequer e, no dia seguinte, fora ao cine- das coisas que lhe faziam feliz, quanto do caráter ma assistir a uma comédia com uma ex-colega de maçante que assumiam todos os interrogatórios a escritório. Segundo a leitura que o próprio Camus que era submetido. faz da obra, trata-se da história de um homem que *** Se me indagassem sobre o que confere a O Estrangeiro um lugar entre as grandes obras da li- Notadamente, ao mesmo tempo em que é condenado à morte por não chorar no enterro teratura, ficaria tentado a dizer que isso se deve à carece de alguns sentimentos requeridos social- da mãe. Não penso que Camus estivesse disposto construção psicológica que Camus concede a seu mente, Meursault revela muitas das qualidades a sustentar, neste ou noutro lugar, que ninguém protagonista, personagem cuja verossimilhan- que elogiamos em nossos discursos: ele é edu- pode ser responsabilizado pelo que faz, que Meur- ça convence-nos de imediato, impedindo-nos cado, solícito, assíduo no trabalho. Além do mais, sault deveria ser visto como um exemplo de virtu- de classificá-lo em tipos ou de emitirmos juízos gosta de ir à praia, ao cinema; entedia-se aos do- de. O ponto central de O Estrangeiro, no entanto, acerca de seu caráter. Trata-se da apresentação mingos, enoja-se por ter que secar as mãos em é mostrar-nos o absurdo que há em basear uma nua e crua de um indivíduo que carece de sen- toalhas úmidas. Tais características, que acabam condenação – e uma condenação à morte – no timentos tidos na conta de virtudes sociais (ca- por conquistar nossa simpatia, impedem que o fato de uma pessoa ser mais ou menos sensível rência com a qual facilmente nos identificamos) e classifiquemos como um monstro moral mui- aos eventos que a cercam, é pensar que temos o que, não obstante (e aí está um traço distante de to embora ele tenha, efetivamente, assassinado dever de nos sentir deste ou daquele modo, uma nós), jamais se permite mentir sobre as próprias uma pessoa. Ademais, dada a maestria com a exigência que assume contornos exasperantes a emoções, mesmo quando sua vida está em jogo. qual a narrativa é apresentada, somos conven- quem recusa mentir para si mesmo. A obra propõe É a postura coerente de Meursault – cujas ações cidos do caráter fortuito daquele homicídio, que que reconheçamos uma verdade sobre o que nós invariavelmente expressam sentimentos e desejos é um divisor de águas na vida do personagem: somos, uma verdade sobre o que e como sentimos. reais – que nos afronta desde o início do livro: após interrogatórios preliminares, durante um Meursault é um estrangeiro não por carecer dos estivéssemos igualmente comprometidos com a julgamento magistralmente descrito por Camus sentimentos que se lhe exigem, mas por ser inca- verdade, nossa identificação com seus atos seria no qual salta aos olhos o aspecto surreal de uma paz de dissimular, uma qualidade tão essencial à quase completa. das mais importantes instituições da sociedade – vida em sociedade. Sua relação com o mundo é, No entanto, observamos perplexos (e não se o sistema judiciário – Meursault é informado de por isso, de todo indiferente. Não há ninguém que sabe até que ponto uma perplexidade genuína) que, em nome do povo francês, sua cabeça será o entenda e que possa oferecer-lhe certa sensa- a reação de todo indiferente demonstrada por cortada. Daí por diante, padecemos com as refle- ção de pertencimento, o que já seria uma trégua. Meursault ante a notícia da morte da mãe: “Hoje, xões de um indivíduo cuja sina é viver com a cer- Isso talvez explique a atualidade da obra: em maior mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Re- teza da própria morte, que busca refazer mental e ou menor grau, sentimo-nos todos estrangeiros. cebi um telegrama do asilo: ‘Mãe falecida. Enterro sistematicamente cada passo de seu julgamento Ler Camus, portanto, talvez signifique encontrar amanhã. Nossos pêsames’. Isso não diz nada. Talvez a fim de vislumbrar uma mudança no destino. um elo com este mundo – um mundo que nos é tenha sido ontem”. Enunciadas publicamente, essas Infortunadamente, todo esse empreendimento singularmente estranho –, algo que sucedera ao palavras fariam de seu autor um alvo de censuras especulativo não passa de distração, algo de que adolescente que há aproximadamente dez anos as mais variadas não apenas à época em que o li- Meursault se ocupa por não ser capaz de conce- tomara casualmente em suas mãos as páginas de vro fora escrito, mas também em nossos dias, nos ber por muito tempo, em virtude do terror que O Estrangeiro. quais, por assim dizer, concede-se verbalmente o isso lhe causava, que seria executado a qualquer literatura PRIMEIRO SEMESTRE 2013 POR RUBEM PENZ 61 ESCRITOR Rubem Braga, o cronista que veio da lágrima E a lágrima, de homem e de mulher, de alegria ou de tristeza, é sempre reveladora indiscreta, tradutora inconsciente dos segredos d’alma. RB literatura PRIMEIRO SEMESTRE 2013 62 Ainda conhecido por Rubinho, último filho homem O modo de melhor conhecer Rubem é co- te, herda mais: o precioso círculo de amizades que do casal Francisco Braga e Rachel Coelho Braga, o meçar pela linhagem dos Braga. João, Joaquim, Newton deixa para trás ao retornar para Cachoeiro rapazola de quatorze anos incompletos chama a Francisco e Maria da Graça Marques de Carva- e, principalmente, o posto de jornalista. Afinal, não atenção de seu professor com uma surpreenden- lho deixaram Braga e vieram ao Brasil. Porém, tinha pendores para o Direito e sequer o diploma te redação. Assim, em dezembro de 1926, o jornal mantiveram a cidade consigo, adotando-a como de advogado o jovem Rubem busca: não desejava O Itapemirim, órgão oficial do Grêmio Domingos sobrenome. Ao ficar viúva com uma filha no colo outra vida senão a de repórter – escrever sempre Martins, do Colégio Pedro Palácios, publica A Lá- e outro filho no ventre, Anna Joaquina, a irmã foi seu sacerdócio. grima, primeira das incontáveis crônicas que mu- que havia permanecido em Portugal (e que vi- Porém, se por um lado na maturidade é bas- dariam o gênero no Brasil para sempre. Nascia no ria a ser a avó de Rubem) não tem alternativa tante protetor das manas mais novas Yedda e Anna menino tímido e taciturno, cuja aparência e rotina a não ser juntar-se à família. Então, nasce em Graça, por outro Rubem é menos generoso com pouco o distinguiam dos demais amigos de Ca- Guaratinguetá o pequeno Francisco. Crescendo, sua pequena família. Casa-se jovem com a ainda choeiro do Itapemirim, os traços daquele que seria ele encontra um bom motivo para visitar sua tia mais jovem Zora Seljan, pouco mais que uma ado- um dos mais influentes escritores de língua portu- Maria da Graça em Cachoeiro do Itapemirim: lescente e já comunista muito engajada. Ambos guesa do século 20, além de atuar como jornalista, uma moça chamada Rachel, a Neném do Frade, têm um único filho, Roberto, mas não conseguem tradutor, editor e pensador de seu tempo. nome da fazenda de sua família. Casam-se. Arti- construir aquilo que se possa definir como lar tra- culado, culto, informado e com dotes claros para dicional. Ambos sofrem muito com a inconstância Laços de família os meandros da diplomacia política, Francisco de trabalho de Rubem e com a severa perseguição (...) parece que toda minha vida fora Braga é indicado para ser o primeiro prefeito da política do governo Vargas, o que impõe mudanças daqui foi apenas uma excursão confusa cidade. Ao receber um cartório, estabelece-se no constantes para diversas cidades, sempre em bus- e longa; casarão onde nasceriam seus filhos mais novos. ca de trabalho e paz, quando não passagens pela moro aqui. Na verdade, onde posso Entre eles, Rubem Braga. prisão e por outros países. Crianças, aliás, nunca morar senão em minha casa? RB Tal como os laços de sangue determinaram o fizeram parte da vida do cronista: não tinha prazer destino da avó, Rubem Braga costura os caminhos nem paciência com elas e impunha muito medo de sua vida com grande envolvimento entre os ir- aos pequenos. mãos – guiado pelos mais velhos, paternal com as meninas caçulas. Ainda no tempo em que precep- Rubem e seus amores toras iniciavam a educação formal, é a mana Car- Este homem esqueceu, grande mar, mozina quem ajuda em sua alfabetização; é no jor- muita coisa que aprendeu contigo. nal aberto pelos manos Armando e Jerônimo que RB inicia sua vida de cronista regular (estudando em Niterói, publicaria no Correio do Sul suas Cartas do O maior cronista de seu tempo foi um homem Rio); é seguindo os passos de Newton Braga que de múltiplos amores, o que poderia levar à conclu- conclui o curso de Direito em Belo Horizonte. Des- são de que era um homem infiel. Engano: Rubem Braga foi alguém fidelíssimo, dedicado e ciumento com suas paixões. A maior delas, e a mais constante durante a vida, foi o mar: desde criança na casa de verão na praia da família em Marataízes, até fixar residência em Copacabana. Assim descreve o mar da infância que conheceu em companhia dos maratimbas (pescadores da região capixaba): “Mar! Grande e triste mar onde o rio despejava suas águas barrentas, mar branco de espumas, azul, verde ou cor de aço, mar incessante, infinito e eterno, mar de todos os adjetivos e todas as areias, ventos e solidões!” Nutriu o sonho de ter um barco literatura PRIMEIRO SEMESTRE 2013 63 e nele passar longos períodos, uma vida inteira de movimentos repressivos, não importando o matiz, socorrido e socorreu amigos em apuros: fez parte suave vadiagem, o que nunca aconteceu. mantendo-se firme em seus propósitos à custa de da verdadeira teia de auxílio que buscava garantir A natureza, especialmente as plantas, pás- muito sacrifício, inclusive prisões. Segundo Otto integridade física de quem exercia a integridade de saros e estrelas também fizeram parte de suas Lara Resende, foi “o homem mais livre do Brasil”. pensamento. preferências. Desde o pé de fruta-pão defronte ao Dedicou toda sua juventude combatendo de modo sobrado na meninice, passando pela observação incessante o governo Vargas: “ser adversário do Sr. Escrever para sobreviver atenta de pássaros, ventos e astros, até o ponto de Getúlio Vargas é uma boa escola de derrotas”, es- A crônica é sempre pessoal. receber do amigo Augusto Ruschi o nome de uma creveu quando da morte do presidente. RB orquídea (Physosiphon Bragae Rucshi), Braga foi Sua proximidade com os comunistas – a pon- um defensor feroz do meio ambiente. Quem sabe to de se casar com uma militante – foi insuficiente Genial. Com que outra palavra se pode definir venha daí sua extrema sensibilidade ao observar para deter seu senso crítico: sempre achou mui- quem começa a escrever aos treze, torna-se cro- as artes plásticas e, claro, o comportamento dos to estranhas as alianças de conveniência e nun- nista regular aos quinze e correspondente de guer- homens – segundo Nélida Piñon “Rubem não es- ca aceitou que cerceassem a liberdade do pensar. ra aos dezenove anos de idade? Por isso, Rubem crevia sobre aspectos visíveis da cidade e sim sobre Talvez por isso tenha sido considerado subversivo Braga jamais abandonou o ofício – mesmo nos o que há de delicado e ambíguo”. pela direita e inconfiável pela esquerda. Sua breve momentos em que esteve embaixador. Ou quando Com relação às mulheres, Rubem Braga foi passagem pela política partidária se dá no nas- precisou ser um repórter anônimo, especialmente bastante além da observação: esteve no papel de cedouro do PSB (Partido Socialista Brasileiro), na quando apelou a pseudônimos e, com grande bri- profundo apreciador – dedicado e incansável con- qualidade de fundador e organizador do partido. lho, até os últimos dias de vida. Não considerava quistador. Andava sempre envolvido com uma ou Mas pouco permanece. A atividade política mais um trabalho fácil, mas era o que gostava e sabia mais mulheres, todas belas e instigantes. O caso qualificada ocorre nos momentos em que repre- fazer como ninguém. Ainda hoje, ao apanhar uma mais tórrido talvez tenha sido com Tônia Car- senta o país no exterior: durante o governo Café crônica escrita na década de 1930, 40 ou 50, fica- reiro que, para a irmã Yedda, fora o pivô de seu Filho, ocupa importante cargo na Embaixada Bra- mos encantados com a clareza, fluidez e carga de desquite com Zora. Possessivo com suas paixões, sileira no Chile; mais tarde, assume como Embaixa- subtexto contidas nas palavras. Um trânsito perfei- Rubem nutria ciúmes tardios com antigas namo- dor em Rabat, Marrocos. radas e competia arduamente com outros grandes Na maturidade, Rubem Braga se torna uma conquistadores: viveu numa época com muitos voz tão clara e respeitada que pouco sofre durante amigos galanteadores. Motivo para sua eterna an- os anos de Regime Militar pós 1964. Jamais deixa tipatia com Tom Jobim que, além de ter aliciado Vi- de ser contundente no que escreve (e passa por nícius de Moraes para a música, era imbatível pela quase todos os principais veículos da imprensa bela figura e manejo do violão. Mas, na verdade, escrita), mas o fato de ter sido companheiro de poucas resistiram aos encantos do velho Braga. muitos oficiais durante a campanha da FEB durante a Segunda Grande Guerra o deixa menos Um homem político Que Deus e Vargas estejam convosco. A mim ambos desamparam; mas o momento não é de queixas, e sim de luta. RB Considerando a imprensa como um quarto poder em nossa sociedade, teremos em Rubem Braga, com sua coerência e integridade, um raro exemplo aos homens públicos. Solidamente identificado com o que há de mais justo e puro no ideário da esquerda, soube ser crítico a todos os vulnerável. Durante toda sua vida, o cronista foi literatura PRIMEIRO SEMESTRE 2013 64 to entre o coloquial e o sofisticado, entre o super- contrato com a Rede Globo. A adaptação ao ve- ainda mais somando ao grupo Sérgio Porto e ficial e o profundo, entre o original e o consenso. ículo que se tornava hegemônico no jornalismo Nelson Rodrigues (fora os escritores já citados). Uma luz rara sobre os acontecimentos cotidianos. não foi muito fácil, o que fez dele alguém pouco Uma geração de ouro no gênero. Rusgas, quando Até mesmo quando foi correspondente de guer- presente nas redações televisivas. houve, talvez tenham sido motivadas por alguma ra – único repórter que cobriu a rendição alemã Reconhecendo-se “apenas um cronista tri- no Monte Castelo –, tratou de oferecer uma visão vial lírico variado”, Rubem Braga se transformou surpreendente do que vira, presente no livro Com em algo muito maior do que o quieto homem Interessante lembrar que Rubem Braga era a FEB na Itália, crônicas. que, segundo o próprio, se satisfaria em ser um alguém de raros sorrisos e poucas palavras, um maratimba: simples pescador. Tornara-se um dos carrancudo (mais tarde um ranzinza) cercado de intelectuais mais influentes de seu tempo. pessoas. Alguém cuja personalidade se compu- Braga foi cronista e repórter em todas as cidades em que morou – e não foram poucas até se estabelecer definitivamente no Rio de Janei- mulher, uma vez que todos, além de Rubem, eram homens sedutores e orgulhosos disso. nha de paradoxos: num só tempo desorganizado ro, em Copacabana. Esteve em redações de Belo Uma vida entre amigos e produtivo, ensimesmado e popular, urbano e do Horizonte, São Paulo, Porto Alegre, Recife etc., Éramos três velhos amigos e cada um mato, conservador e revolucionário, melancólico algumas cidades em mais de uma oportunida- estava tão à vontade junto dos outros e engraçado, canalha e terno, desapegado e ciu- de. Enquanto escrevia para os veículos de Assis que não tínhamos o sentimento de estar mento... Fiel a si, antes de tudo. E transformava Chateaubriand, suas crônicas eram reproduzidas juntos, apenas estávamos ali. este compromisso em generosidade. em todas as cidades onde houvesse jornais dos RB Diários Associados, algo que o fez reconhecido Uma personalidade tão complexa, aliada a uma mente inquieta e a um corajoso senso de em todo o território nacional. Editou revistas Rubem Braga descobriu muito cedo o sig- liberdade forjaram o cronista mais respeitado, culturais e políticas de maior e menor expressão, nificado das amizades e da boemia: Sérgio Buar- seguido e amado do Brasil recente. À crônica, além de contribuir para periódicos dessa nature- que de Holanda, que vivera um curto período em por ser um gênero ambíguo desde a sua gênese, za. Esteve na revista Manchete desde o primeiro Cachoeiro do Itapemirim, lá formou entre os Ca- é natural ter em Rubem Braga seu nome maior: número, também na Revista Senhor, e escreveu a choeirenses o Clube do Alcatrão (nome dado por ele nasceu para ser cronista. E, tramando para coluna Trivial Variado no Caderno B do Jornal do causa do conhaque São João da Barra). O incrível sua vida um final digno de uma costura perfeita, Brasil, para citar publicações bem representativas. é que entre eles já estava o filho do prefeito, rapa- ao adoecer, ele contrata sua cremação e pede Nem suas estadas no exterior, por Paris, Santiago, zola ainda chamado de Rubinho. Por toda a vida, que as cinzas sejam atiradas no rio da infância, Rabat, o afastaram de seu público leitor. Leitores o cronista estaria cercado de amigos e ocupando sem fotos ou discursos. É o velho Rubinho de que, por sua vez, transformaram seus livros de mesas de bar, dividindo apartamentos e redações, volta ao Itapemirim. E a lágrima ali despejada crônicas em grandes sucessos editorias. frequentando jantares. Seria uma boa tarefa de foi, segundo suas próprias e inaugurais palavras, Sempre atrás do dinheiro que tanto lhe gincana descobrir, entre os escritores, jornalistas, “talismã encantado”. faltava, Rubem Braga atuou também como tra- artistas, músicos, artistas plásticos e personalida- dutor. Mais tarde, em sociedade com Fernando des representativas no século 20, quais não eram Sabino, abriu a Editora do Autor, empresa que ou gostariam de ter sido amigos do ranzinza Bra- nasceu publicando Sartre com enorme sucesso ga. De Clarice Lispector a Rachel de Queiroz, de e, de êxito em êxito, marca a história em sua Álvaro Moreyra a Chico Anysio, de Carlos Scliar época. Depois de vendê-la à Editora José Olym- a Di Cavalcanti, de Dorival Caymmi a Vinícius de pio, casa que abriga muitos dos seus títulos, Moraes, de Drummond a Bandeira, de Carlos Re- como O conde e o passarinho, O homem rouco verbel a João Cabral, de Jorge Amado a Ferreira e A borboleta amarela, a dupla Braga e Sabino Gullar, de Carlos Prestes a Monteiro Lobato, todos lançaria a Editora Sabiá. Esta, reforçando o bom e muitos mais foram próximos de Rubem Braga. olho de ambos para autores em ascensão, trouxe Claro que alguns foram mais achegados. para o Brasil, por exemplo, Cem anos de solidão, Entre eles, os jornalistas Otto Lara Resende, Pau- de Gabriel García Marques. Ao final, com mais lo Mendes Campos, Moacir Werneck de Castro, de cinquenta anos de crônica na bagagem, ain- Antônio Maria e o sócio Fernando Sabino. Aliás, da aceitou o desafio de escrever para a TV, em formaram uma estirpe de cronistas inigualável, LEITURA PRIMEIRO SEMESTRE 2013 65 Criança Pensa Jogo de Varetas Lya Luft e Eduardo Luft Manoel Ricardo de Lima The Pedro Almodóvar Archives The nature of photography Editora Galerinha Record Editora 7 letras Paul Duncan e Bárbara Peiró Stephen Shore Taschen Editora Phaidon Criança pensa é um livro que tenho Quem nunca brincou de jogo de Lançado paralelamente ao seu No livro The Nature of um carinho especial, pois em 2010 a varetas? Eram coloridas, feitas último filme, A Pele que Habito, The Photography, o artista americano Cia. Teatro Novo adaptou esse texto de madeira e não raramente Pedro Almodóvar Archives revisita Stephen Shore propõe uma de Lya Luft e seu Filho Eduardo espetavam a parte inferior da a colorida e subversiva carreira reflexão através de imagens Luft para o teatro, sob direção de unha. Hoje, as varetas são feitas do espanhol Pedro Almodóvar em e textos sobre a natureza da Ronald Radde, em que interpretei de plástico e têm as pontas uma viagem aos bastidores de fotografia nos dias atuais. De três personagens bem diferentes, arredondadas. Jogo de Varetas, seus 18 filmes (longas). Em um que modo olhamos as imagens Tio Bruno, Gigante Dandão e o de Manoel Ricardo de Lima, remix de referências de Douglas hoje e quais as características Filósofo da Floresta, o que me é um convite à leitura afiada. Sirk até John Waters, o universo pertinentes às mesmas, pergunta rendeu um Tibicuera de melhor ator Como as antigas varetas, os contos "almodovariano" experimenta, o artista. Shore descreve aspectos coadjuvante. Essa história mostra que compõem o livro insinuam provoca, perpassando por temas formais de diversas fotografias aos pequenos que Pensar é ótimo! relações, estas sempre abertas difíceis como gênero – assunto buscando encontrar instrumentos Pensar com os outros, com os e oferecidas ao pontiagudo e recorrente em seus filmes – de e estratégias utilizadas por amigos, com os pais, professores e, perigoso jogo de leitura. Suspensos, uma forma pouco usual. Com fotógrafos para a construção e principalmente, consigo mesmo. É os personagens erram por um personagens fortes e complexos, interpretação de imagens. maravilhoso crescer questionando cotidiano que não oferece saídas prostitutas, travestis, freiras, o Para tal, o artista agrupa o mundo, fazendo as perguntas prontas e arredondadas, como o olhar de Almodóvar tornou-se uma fotografias de diversos autores essenciais, mesmo que nem sempre próprio cotidiano. O leitor, ao final, referência cinematográfica, e o em quatro grupos distintos, encontremos a resposta. Nesta dirá que os contos versam sobre espanhol abre seus arquivos com produzindo relações de tensão e busca, filósofos e crianças não amor (ou abandono). fotos inéditas acompanhadas de aproximação entre as imagens. poderiam ser mais próximos. Com Eis a delícia do livro. Ninguém sai textos escritos por reconhecidos Infelizmente, o livro ainda não sensibilidade e bom humor, Lya deste 'Jogo de Varetas' ileso, sem autores espanhóis e pelo foi lançado no Brasil, mas está Luft e Eduardo Luft, que é filósofo, entregar-se um pouco (ou muito). próprio diretor. disponível na Amazon. abrem um espaço para a filosofia e Destaque para a bela capa da artista mostram que criança pensa, sim! portuguesa Rachel Caiano. Leonardo Barison Luciano Bedin da Costa Camila Franco Monteiro Romy Pocztaruk Ator e produtor cultural psicólogo, doutor em Educação Jornalista e mestre em Mídia, Identidade e Tecnologia Artista visual DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA