Artigo IPPAR 2006 PDF
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Património Arquitectónico, registo e interpretação – critérios de intervenção! IPPAR, 16 de Setembro 2005, Museu de Etnologia de Lisboa UMA ARQUEOLOGIA DA COR? Conservação de superfícies e revestimentos no património urbano português. José Aguiar Professor Associado da FAUTL ([email protected]) Que superfícies e cores, quais os revestimentos da s artes da cal e qual o seu papel? Os revestimentos em Arquitectura são camadas sacrificiais - i.e soluções de protecção do que é estrutural, como as alvenarias das paredes - que asseguram funções de expressão e comunicação arquitectural, ou seja, são também soluções que comunicam mensagens de natureza eminentemente estética e artística! Os revestimentos mais correntes, os rebocos, eram feitos com argamassas de cal, executando-se em técnica multicamada, tanto no seu fabrico como nas ocasionais reparações ou até renovações. Raramente se “picava até ao osso”, antes se reutilizavam, reintegrando, as partes que se mantinham coesas, numa sobreposição de modos e tempos que pode (que deve) ser estudada! Na verdade hoje sabemos que a Moderna interpretação da tradição clássica (e dos templos clássicos) como sofisticadas máquinas acromáticas de estética tectónica minimalista, onde a materialidade do objecto arquitectónico coincidiria com a sua forma e “apresentação” visual – constituindo uma primeira “verdade” construtivista do primado relacional entre forma e estrutura - é falsa! Le Corbusier, exaltou esse minimalismo mecanicista em Quand les cathédrales étaient blanches, (Paris, 1937) anunciando um Moderno de verdadeiros e magníficos jogos dos volumes sob a luz! Mas hoje sabemos – redescobrindo por todo o lado - que afinal as catedrais (inclusive as góticas) não eram brancas mas sim policromas, numa quase esquecida Gesamtkunstwerk; numa conjugação entre Arquitectura, Escultura e Pintura, que não era ocasional mas projectada e, evidentemente, reinterpretada pelos diversos tempos que se incorporavam nos monumentos. A este propósito escreveu Alain Erlande -Brandenburg: «Cette polychromie, imaginée par l´architecte pour créer une synthèse entre structure et sculpture, apportait à l´édifice achevé une dimension aujourd´hui disparue» 1. Uma Gesamtkunstwerk que por vezes se quis apagar da história, como ocorreu no primeiro quartel do século XIX na censura das descobertas das policromias de Paestum e sua tradução arqueológica e pictórica por Jacques-Ignace Hitthorf, ou ainda recentemente entre nós pela súbita 1 e abrasiva limpeza dos portais dos Jerónimos que removeram definitivamente os sinais da sua policromia, deixando-nos para sempre na ignorância. David Batchelor (em Chromophobia, Reaktion Books, 2000) apresenta a cromofobia como uma longa patologia da cultura Ocidental, uma continuada fobia à cor da nossa cultura que, em lógica aristotélica, sempre parece preferir a essência do geometrismo, a clareza abstracta da linha, em suma: uma clara preferência pela inteligência minimalista do desenho face à, considerada caótica e descontrolada, expressividade da cor. Uma moral minimalista e obsessiva da cor que continua na arquitectura, sustentada na redução do problema da cor a uma eventual discussão entra a “verdade” expressiva dos próprios materiais contra a “mentira” que seria a de os revestir. Moralismo alicerçado, em grande medida, nas ideias de John Ruskin2. Para Ruskin os revestimentos em arquitectura (i.e. rebocos, pinturas e consequentes técnicas ornamentais) eram sinónimo de indesejáveis “fingimentos” que ocultavam, ou perturbavam, uma relação mais directa entre concepção, produção e percepção visual da imediata materialidade (a “verdade”) das formas; antevendo aqui as respostas essenciais aos novos problemas colocados pelas novas relações projecto e produção que o auge da Revolução Industrial manifestava. Ruskin, filósofo das artes mas não construtor, ignora – como os Modernos irão sistematicamente ignorar, na obstinada procura de materiais que conseguissem ser, ao mesmo tempo, estrutura e forma (na paixão pelo aço, depois pela plasticidade do betão e dos plásticos) – que a cultura da construção pré -industrial se baseia, em grande medida, na utilização de materiais que são porosos, cabendo aos revestimentos a missão de assegurar a durabilidade da construção subjacente, resolvendo os embates dos agentes da degradação, sacrificando-se se necessário, refazendo -se em consequência e ao gosto da moda do(s) tempo(s), o que implicava assegurar uma comunicação arquitectural. Para isso fingiam se necessário, simulando pedra em falsas pilastras ou em quadros de vãos, barramentos que fingem alvenarias de pedra ou de tijolo burro, com cor ou agregados escolhidos fingindo pedra sobre verdadeira pedra; utilizando a cor e as texturas como um sublinhado da permanência de um sentido de ordem, sempre inerente à apresentação da arquitectura, tal como ela se entendia antes da modernidade. A cultura da cal durou, portanto, tanto quanto a cultura do clássico e com a morte de uma, falece a outra também. Todos podemos constatar, olhando para as opções do século XX quanto às decisões de apresentação ao olhar dos nossos monumentos ou edifícios históricos, por vezes em cidades inteiras, como em Portugal a pedra à vista do “picar até ao osso”, ou o inevitável branco (hoje raramente de cal), se tornaram as cores (“não-cores”) de referência para o património histórico e o não histórico. Todos sabemos como discutimos pouco, ou quase nada, a forma como “apresentamos” ao olhar, como damos a ler as nossas cidades e arquitecturas históricas (com que texturas, com que cores, com que relação para com os diversos testemunhos e documentos que nos contam outras histórias sobre as antigas peles e superfícies?). Ou seja, permanece a dúvida: como eram realmente as superfícies, os revestimentos, as cores da nossa arquitectura e núcleos urbanos históricos? Seriam realmente só Brancos de cal no Sul Mediterrânico, e cor de pedra “à vista” no Norte Atlântico?3 2 Alienados da cor pelo monocromatismo higienista do século XIX, depois pela pequenez ruralista do Estado Novo, depois ainda pelo elementarismo moderno, tornamo-nos quase ignorantes da cultura expressiva pré -industrial da cor, que já não aprendemos nos Cursos de Arquitectura, onde quase tudo ainda se ensina a preto e branco, ou em betão e inox, ou aço cortene. E podemos assim constatar um primeiro e fulcral problema: a extrema dificuldade em ver que em Portugal havia cor e o ornamento não era um crime Arquitectónico! A cor de uma arquitectura será sempre a cor dos materiais utilizados na sua construção quando iluminados por uma fonte de luz, ou seja, das soluções com que se materializam as superfícies exprimindo intenções estético-arquitectónicas. Cada região, cada cidade, tinha as suas próprias cores, em cromias específicas, que provinham das diferentes composições dos minerais presentes nos seus solos, do que resultavam ligeiras variações tonais das cores -base das suas arquitecturas (a que os italianos chamam «sfumatura»): um amarelo de Moura nunca será, assim, exactamente igual ao amarelo de Évora, porque distintas eram as terras destas diferentes terras. Mais do que simples pinturas ou rebocos devemos falar, portanto, de linguagens e gramáticas arquitectónicas, que constroem formulações essenciais para a descodificação das mensagens potencias que cada tempo da arquitectura, enquanto arte, inevitavelmente contém na arquitectura que erigimos em monumentos. Estamos agora, dia a dia e pouco a pouco, a redescobrir que nos nossos monumentos ou núcleos urbanos históricos existiram e se manifestaram escolas expressivas, recorrendo intensamente às figurações ornamentais e à cor; manifestando-se uma, até à bem pouco, insuspeitada intensidade artística e revelando-se capacidades tecnológicas inesperadas. Estudos em curso ou recentemente concluídos modificam significativamente a nosso entendimento da imagem urbana das nossas cidades históricas, onde se revelam – para além da tradição azulejar, da qual tão mal cuidamos – outras sofisticadas técnicas de expressão arquitectural nas suas fachadas urbanas 4. Hoje já sabemos que em Évora, apenas por exemplo, os esgrafitos, os ornatos em relevo (stuccos) e os fingimentos arquitecturais atingiram patamares de elevadíssima qualidade e ampla propagação numérica5. Em outros núcleos urbanos históricos, como em Coimbra, os estudos apenas agora começam, mas já começaram a revelar situações similares6. O mesmo se comprova constantemente em intervenções nos nossos monumentos nacionais, como sucedeu com a surpresa extraordinária do restauro das pinturas ocultas da Charola do Convento de Tomar, ressurgindo agora também pinturas em fachadas exteriores, como algumas descobertas recentes ocorridas no Palácio Nacional de Sintra onde – depois de salvos os rebocos originais, quase milagrosamente – se revelam hoje programas complexos e fascinantes de policromia e pintura mural 7. Numa arquitectura urbana, a nossa, que durante demasiado tempo julgamos pobre de expressão, redescobrimos, fascinados, toda uma intensa panóplia de possibilidades comunicacionais – de guarnecimentos e argamassas de cor, simulação de estereotomias e de juntas de pedra, técnicas avançadas de pintura mural, embrechados, fingidos de azulejos, beirados esmaltados e pintados etc., etc. - cujo contributo é essencial para a leitura e entendimento das mensagens transmitidas 3 pelas paisagens urbanas e, obviamente, para os projectos do seu restauro ou reabilitação urbana, nos quais agora publicitamos o nosso nacional empenho. No entanto, se continuamos o desmesurado processo de apagamento da história que anteriores operações promoveram – também elas publicitadas como de “reabilitação urbana” –, conc retizando apenas projectos de renovação pictórica (i.e. “ravalements”, ou seja campanhas sistemáticas de renovação de revestimentos e pinturas urbanas com demasiado rápidos objectivos políticos), praticamente sem nenhum restauro ou programas de conservação integrada, pouco restará em breve que possa relatar toda esta intensa história estética (ainda por escrever). Uma semi-exposta arqueologia da cor Os revestimentos das fachadas urbanas e suas cores, nas suas distintas camadas (raramente obliteradas de forma total), sobrepunham-se, acrescentavam-se, construindo uma sobreposição estratigráfica dos modos e de tempos, que quase sempre se nos revela, quando sondamos com o olhar informado, ou com um bisturi, uma fachada de um edifício histórico e que podemos, que devemos, evidentemente, estudar. Os revestimentos, como os edifícios históricos, são palimpsestos; i.e. são textos que contêm mensagens sobrepostas da história que hoje podemos (devemos) descodificar, interpretar e, quando possível restituir a possibilidade da sua leitura através de projectos de restauro . Como os pergaminhos, ou peles dos animais onde livros foram apagados para poder escrever novos livros, onde textos se sobrepuseram a outros textos, e que hoje com a ciência e os meios tecnológicos de que dispomos (scanners de alta resolução e sofisticado software) podemos de novo (re)ler, os revestimentos e superfícies da arquitectura recolhem a estratificação da história da sua apresentação, ou seja as formas como foi projectada para ser lida. Como um pergaminho raspado onde a pesquisa e a ciência conseguem hoje fazer ressurgir os anteriores textos, os anteriores livros escritos no mesmo livro, o edifício histórico revela a quem o saiba ler (e não é fácil) os textos sobrepostos da sua história! Os revestimentos, as superfícies e as cores são do(s) tempo(s); i.e. cada época possuía a sua cultura arquitectónica, à qual correspondia uma específica cultura cromática. São legados antropológicos tanto quanto instrumentos simbólicos dos poderes, como os áulicos amarelos-ouro do Império dos Habsburgos, os amarelos-terra (colore -leone, colore-matoni) Mussolinianos, ou o Amarelo DGEMN e o Branco-cal do Estado Novo. A popularização da diferença cromática, coincide com a explosão das artes ditas “decorativas” e dos seus ornatos e fingimentos, no exacto momento em que a indústria facilitou o recurso a novas soluções tecnológicas (novas tintas e pigme ntos), o que conduziu à nossa, relativamente recente, democracia consumista de cor, convertendo a pintura dos edifícios numa simples abertura de latas e rolar de rolos, a tradição tornada um mero acto de consumo, por resolver artística e criticamente. A constância das artes da cal e das suas técnicas asseguravam algo de enorme beleza estética: as águas das chuvas, o vento e o sol, a transparência das pinturas de cal e terras revelavam pouco a pouco os tons anteriormente aplicados, numa belíssima sobreposição de modos e de tempos, que asseguravam uma quase natural integração da evolução cromática individual, de 4 cada edifício, no contexto da envolvente dos lugares. As terras que constituíam estas cores eram as terras dos lugares -, com subtis variações tonais de aguarela, numa riqueza cromática que nenhuma tinta actual conseguiu atingir ou, sequer, simular. Qualidade à qual Michael Lencaster chamou, brilhantemente realçando a importância das relações das cores ancestrais com a materialidade geológica dos lugares, de Colore Loci 8. Depois das grandes polémicas do início do século XIX, quando o plural Hittorf (arquitecto-pintorarqueólogo) revelou ao mundo que muita da arquitectura grega e romana tinha cor e que era pintada9 – com grande escândalo de algumas Academias (e apesar do anterior entusiasmo de Quatremè de Quincy pelo tema) -, marcando um relevante interesse da arqueologia pela questão, verificamos como que um adormecimento, ou melhor, um quase esquecimento destas descobertas pela Arquitectura do início do século XX. Foi preciso esperar pelo último quartel do século XX e pela nova sensibilidade pós-moderna para ressurgir, de novo e muito intensamente o tema da cor, reintroduzido agora, não pela Arqueologia (que já o tinha interiorizado desde o Século XIX) – ou antes, pela agora nova Arqueologia da Arquitectura – mas sim pela vontade transgressora do pósmoderno e pela gradual afirmação de uma nova disciplina do conhecimento humano: a Conservação do Património Cultural! Assim, mais do que recorrer ao Método de Harris, a base metodológica para os estudos estratigráficos da cor, na pele das arquitecturas históricas, sustentou-se inicialmente nos fundamentos da Conservação da Pintura Mural, cujas bases, com o enquadramento teórico de Brandi10 e o apoio tecnológico do ICR de Roma, o casal Mora e Philipot fixaram na imprescindível e magistral obra La conservation des peintures murales 11. E porque interessa à preservação dos centros históricos o estudo e a conservação da cor e dos antigos revestimentos? Porque constituem documentos históricos fundamentais, enquanto provas materiais das modificações das formas de comunicação arquitectural ao longo da história, permitindo-nos reconstruir e interpretar criticamente os textos e as mensagens arquitectónicas acrescentadas pelo tempo, ou seja restituem-nos a estratificação da história sedimentada nas sucessivas “apresentações visuais” da arquitectura. Porque são essenciais para leitura, apresentação e para a autenticidade material e estética das arquitecturas históricas realçando as diferentes expressões identitárias das arquitecturas e da cidade histórica. Porque são testemunhos tecnológicos, por exemplo, as distintas argamassas, na análise dos constituintes e da formas da sua execução e aplicação, revelam importantes testemunhos do nível tecnológico e cultural dos povos, dão informações fundamentais sobre o comportamento e durabilidade da construção naquele micro-ambiente específico em que a pretendemos conservar, o que é precioso para a definição de critérios de intervenção actuais e futuros. Porque constituem naturais sistemas de integração das arquitectura e de garantia pelo respe ito do Genius Loci : os materiais de cor, as terras locais, os distintos agregados diferenciavam com matizes específicos a aparência das arquitecturas (o ocre de Moura não era igual ao de Évora). As 5 cores, as superfícies e os revestimentos originais expressam o enraizamento da arquitectura na cultura, nos contextos geográficos e geológicos dos lugares onde assentam. Uma arqueologia da cor que exige novas metodologias de investigação Apesar da explosão em encontros sobre conservação e reabilitação, que temos de agradavelmente constatar no decorrer da última década e meia, temos ainda muito poucas monografias publicadas sobre materiais e técnicas ancestrais, para além das dissertações desenvolvidas em mestrados e cursos de engenharia e essencialmente concentradas no desempenho funcional dos materiais. Também temos estudos históricos e de arquitectura sobre técnicas e alguns materiais específicos (pedra, azulejo, terra, menos de pintura mural) muito atentos ao estudo formal, estilístico, espacial dos seus objectos de estudo...mas pouco centrados no enfoque construtivo ou científico, no tratamento da informação “material” per si. No nosso país ainda está por escrever a sua História da Construção (antes e depois da Indústria) 12, rareiam (para além de algumas recolhas antropológicas locais e pontuais) os Atlas da Construção e as publicações sobre as suas histórias locais ou parcelares, ocorrendo-me aqui a excepção de artigos como o essencial Argamassas na Antiguidade de Jorge Alarcão13 e algumas raras e excepcionais obras, como as cuidadas iniciativas do (agora, extinto?) Centro Regional da Artes Tradicionais (CRAT) e o recentíssimo e meritório esforço da publicação do livro Arquitectura de Terra em Portugal 14. Ou seja ...sabemos ainda demasiado pouco sobre a construção histórica, seus materiais, de como foram utilizados e com que especificidades tecnológicas, pelo que temos muitas dificuldades em conseguir ver, em ler, interpretar e compreender, porque nos falta conhecimento. As primeiras abordagens sistemáticas ao estudo dos revestimentos e da cor no âmbito de projectos e planos de salvaguarda do património urbano ocorrem no início da década de 80, como o pioneiro Plano de Salvaguarda e Recuperação de Beja, que se baseou, no que aos estudos das superfícies e das expressões cromáticas diz respeito, nas metodologias desenvolvidas pelo colorista francês Jean-Philippe Lenclos, inventor do conceito de uma “Geografia da Cor” que traduziu no pioneiro Les couleurs de la France 15. Sob o ponto de vista teórico e crítico importa registar o pioneirismo e a lucidez do discurso teórico de Eduardo Nery, que em 1988, num ensaio sobre A Cor de Lisboa, publicou uma reflexão sobre o tema da cor e a cidade propondo, ao que se sabe pela primeira vez no país, uma metodologia baseada em fundamentação teórica e científica suficientemente amplas e sólidas para permitirem resolver o desenvolvimento de programas orquestrados de investigação, de análise e de planeamento da cor, para os tecidos consolidados das nossas cidades. No mesmo texto Eduardo Nery anunciava uma previsão indiscutível: «(...) o uso da cal perdeu-se por completo em Lisboa, e dentro em breve desaparecerão para sempre os últimos vestígios do cromatismo correspondente à primeira metade do século XX»16. Estas preocupações com as cores e os revestimentos dos núcleos urbanos históricos ampliam-se na década de 90, sobretudo a Sul do país, na década em que o município de Lisboa decide investir de forma decidida na reabilitação dos seus bairros históricos, multiplicando o número de Gabinetes Técnicos Locais (GTL´s), orquestrados por uma pioneira Direcção Municipal de Reabilitação Urbana (DMRU), uma década depois desmantelada. Esse interesse revela-se pela 6 realização em 1993 de diversas exposições, publicações e organizações17, tais como um Seminário Internacional sobre “A Cor de Lisboa”, organizado pela CML-DMRU, ideia retomada seis anos depois pelo Município da Póvoa do Varzim, ao promover o Seminário Internacional A Cidade de Cor, realizado na mesma cidade entre 30 a 31 de Outubro de 1997. A CML reedita em 1993, com textos introdutórios de José Augusto França e Raquel Henriques da Silva, uma célebre separata da Revista Olisipo, que em 1949 amplificou as opiniões sobre a cor da cidade, provindas de um grupo de notáveis “Amigos de Lisboa”18 reagindo orquestradamente a uma “epidemia de amarelo ”, que, uma década antes, começara a cobrir – curiosamente, sabemos hoje, com fundamentação histórica - a Baixa Pombalina e à qual preferiam (na generalidade) o branco. Foi também no decorrer do Seminário A Cor de Lisboa, cujas actas infelizmente nunca foram publicadas, que se divulgam entre nós as primeiras comunicações propondo o recurso e a translação , para o universo do património arquitectónico e urbano da cidade, de metodologias baseadas no estudo estratigráfico da cor cuja origem conceptual provinha dos ensinamentos de Laura e Paolo Mora e Paul Philipot, divulgados através dos célebres, mas infelizmente descontinuados, cursos que o Instituto Centrale del Restauro de Roma (ICR) inspirava e que o ICCROM concretizava pela Europa. Refiro-me aos cursos que começaram em Roma, como os célebres Conservation de Pinture Mural depois, com a primazia anglo-saxónica, designados de Mural Painting Conservation, refiro-me também os estruturais Course on Architectural Conservation e aos mais dirigidos Course on Architectural Surfaces Conservation (e tamb ém a outros, orientados para a conservação de materiais específicos como a Pedra, a Madeira, etc.). Formações avançadas frequentadas por muitos dos actuais protagonistas portugueses do mundo do restauro e da conservação, da investigação da praxis à embrionária investigação científica (por exemplo : T. Cabral, J. Cordovil, J. Caetano, I. Frazão, M. Portela, F. Peralta, F. Henriques, M. Fernandes, F. Marques, F. Pinto , J. Cornélio, J. Aguiar, S. Salema, J. Antunes, A. Barreiros, P. Santa Bárbara, E. Murta, T. Gonçalves, E. Paupério, M. Goreti, etc. etc.). Cursos de conservação baseados num aprender fazendo e na experimentação das mais contemporâneas teorias do restauro e das suas praxis, permitindo a algumas das nossas gerações os primeiros contactos com centros de excelência e com as discussões pluridisciplinares que desde os anos 70 ferviam pela Europa, disponibilizando -lhes os conhecimentos mais avançados existentes ao tempo, além do inexcedível convívio directo com as mais distintas estrelas deste novo universo da nova disciplina da conservação patrimonial (como o saudoso casal Mora, G. Torraca, H. e G. Massari, M. Koller, E. De Witte, J. Jokilehto, etc. etc.). Cursos onde hoje, como feliz indicador do nosso crescimento científico, já não encontramos apenas alunos mas também Professores e Investigadores portugueses, como o Investigador do LNEC Delgado Rodrigues. Do Seminário A Cor de Lisboa destacaria a participação do arquitecto catalão Joan Casadevall Serra (ele próprio um antigo aluno do ICCROM) que ao tempo dirigia o Plano de Cor para os núcleos urbanos históricos da cidade de Barcelona 19 e a comunicação dos Investigadores do LNEC J. Aguiar e F. Henriques “A estratigrafia como método de garantir cientificamente a autenticidade cromática de um edifício”20, que entre nós divulgou o estudo sistemático das provas 7 materiais que sobrevivem nos revestimentos da Arquitectura histórica, como base metodológica de fundamentaç ão das decisões de conservação, restauro e reabilitação de fachadas urbanas com interesse histórico e artístico. Henriques e Aguiar, adaptando metodologias da conservação da pintura mural testadas pelo ICR de Roma, propõem um processo de análise e controlo de informação, de interpretação de resultados e sua integração crítica em projectos de restauro urbano, processo baseado fundamentalmente em provas documentais obtidas através da realização de sondagens estratigráficas, com cuidadoso registo21, procurando determinar os sucessivos conceitos de apresentação das fachada e suas variações no tempo. Internacionalmente ocorriam as publicações - avidamente lidas entre nós - das primeiras monografias sobre Estudos e Planos de Cor desenvolvidos nas décadas de 70 e 80 em cidades históricas europeias, ao mesmo tempo que à Arquitectura a pós-modernidade devolvia o fascínio – por vezes demasiado choking, ou óbvio – da cor. Chegavam-nos também as actas dos célebres convénios de estudo italianos, como os que tradicionalme nte ocorrem em Bressanone e cópias dos célebres mas tão difíceis de consultar artigos dos Bolletinos d´Arte22. E iniciam-se os primeiros trabalhos de investigação sistemática sobre o problema da conservação das superfícies e revestimentos históricos, assim como uma profunda modificação das praxis das instituições públicas directamente responsáveis pela execução da política de conservação (DGEMN e o IPPAR). Modificações na cultura de projecto O LNEC, que tinha já uma sólida tradição na investigação do comportamentos das pedras em monumentos (lembremos Elda de Castro) evolui na década de 90 para a caracterização dos tratamentos possíveis (equipas de investigação dirigidas por Delgado Rodrigues), ao mesmo tempo que ciclicamente promov ia os mais importantes eventos de registo científico quanto à evolução dos saberes e das praxis da conservação patrimonial e da reabilitação urbana, através dos Encontros sobre Conservação e Reabilitação de Edifícios (ENCORE´s). Interesse que culmina na criação de um Laboratório de Revestimentos específico e na organização no interior do próprio LNEC de um grupo multidisciplinar de Investigadores, o Grupo de Estudo para a Conservação das Superfícies Arquitectónicas Históricas (COSAH), cujos elementos promoveram diversos planos de investigação em curso, ou já concluídos, tanto a nível nacional como internacional, iniciativas complementadas com múltiplas iniciativas de divulgação 23. Sucedem-se complementarmente as primeiras teses de Mestrado e de Doutoramento em Conservação , em Universidades portuguesas, multiplicando e amplificando o interesse científico pelo tema da conservação dos revestimentos, interesse complementado pela publicação de um número crescente de artigos, estudos e dissertações24. A década de 90, do último século, marca também o surgimento d e novas relações entre projecto de conservação e a investigação científica, nomeadamente um estreitamento entre a investigação aplicada prestada por estruturas de investigação como o LNEC ou pelos Centros de Investigação de diversas Universidades portuguesas (como o IST), informando intervenções concretas de 8 restauro ou de reabilitação do património urbano , geralmente de apoio a estruturas estatais, como o IPPAR e a DGEMN ou a gabinetes técnicos locais das Câmaras Municipais como a de Lisboa25. O IPPC, depois IPPAR, e a DGEMN modificam profundamente, neste período, a sua praxis de restauro, evoluindo de uma sistemática renovação das fachadas através da substituição dos rebocos, guarnecimentos e pinturas (geralmente recorrendo a cimento Portland e a tintas acrílicas ou vinílicas) para uma repristinação baseada em soluções compatíveis em termos químicos, físicos e estéticos (reintroduzindo as argamassas bastardas e as técnicas da terra e da cal). Os práticos e os científicos trocam-se saberes e experiências, num acompanhamento atento e mais crítico das intervenções de outros: e com elas uma reaprendizagem conjunta do método, testado e construído na estreita colaboração entre projectistas, investigadores e restauradores, para o que foi absolutamente fulcral a colaboração dos técnicos de alguns municípios e, sobretudo, dos mesmos IPPAR e da DGEMN. Surgem verdadeiras obras -laboratório, como a Torre de Belém, os Jerónimos, o Palácio do Marques de Fronteira, o Palácio Nacional de Sintra ou Tibães. No mesmo período alguns municípios lançam operações de reabilitação que incluem planos de cor e projectos de salvaguarda de revestimentos tradicionais, por exemplo Lisboa (Plano Integrado do Castelo), Sintra e Évora26. Numa década, evoluímos do escopro e do martelo e dos ácidos, como método de “limpeza” da pedra, para a utilização do lazer ....e do “picar até ao osso” de rebocos, para as intervenções mínimas, de uma mais cautelosa reparação e restauro, com consolidação das preexistências e colmatação de lacunas, reintegrando texturas, cores e superfícies de fachadas possuidoras de revestimentos de relevante interesse histórico! Aprendemos, pouco a pouco, a urgente necessidade de começarmos a fazer menos em vez do fazer demais, estudando e integrando pouco a pouco as teorias mais contemporâneas do restauro, ao mesmo tempo que surgia um debate, hoje cada vez mais intenso entre Projecto de Arquitectura e Projecto de Conservação e/ou Restauro. O sucesso destas conservações revelaram novas descobertas ...cujo conhecimento poderia ter sido obliterado por anteriores projectos insuficientemente informados, ao mesmo tempo que surgem novas questões teóricas ! Refiro-me, por exemplo, às recentes descobertas de troços de fachadas policromas (provavelmente do início do século XVI) ocorridas no Palácio Nacional de Sintra, que teriam desaparecido sem deixar o menor registo se tivessem prosseguido as intenções de “picar até ao osso” os seus revestimentos. Com estas surpresas aprendemos que interessa estudar antes de projectar ...interessando também projectar o restauro de forma a permitir investigaç ões futuras com novos sabres e meios de estudos que o futuro inevitavelmente disponibilizará (novo busílis para a Arqueologia que tem de desmontar estratos e de uma Arquitectura exclusivista apenas informada do valor do novo). Que vantagens traz a Arqueologia da Arquitectura para o estudo da História e, sobretudo, para a Conservação? Foi na Siena de Ambrogio Lorenzetti e do Palazzo Publico, que há alguns anos assisti a uma conferência de Roberto Parenti sobre o Restauro deste palácio (“Archeologia dell´architettura ... e o restauro da “Facciata di Palazzo Publico”) e, depois, li os textos de um grupo fascinante de 9 investigadores, que só mais tarde vim a saber serem os pioneiros de uma, agora dita, Escola de Siena27! Roberto Parenti:, em Siena; tb. M. Giamello; G. Guasparri; S. Mugnaini; G. Sabatini; A. Sclaa, I colori della facciata del Palazzo Pubblico di Siena nell´e´tà Medevale. (Il colore delle facciate: Siena e L´Europa nel Medioevo, Siena, 2001)! A descoberta, tardia certamente, foi como um abismo que se me abriu, de visões e oportunidades: com o métodos da Arqueologia da Arquitectura poderíamos prorseguir processos mais rigorosos, e portanto mais científicos, de conhecermos os valores essencias do património que nos pedem para conservar. Encontra-se aqui o cerne da questão teórica que neste encontro se debateu: ou seja a discussão de como conhecer – com a eficácia operativa necessária e num tempo útil - os “valores” de um património arquitectónico, num tempo e formas tais que, com eles bem presentes, possamos construir o programa adequado a qualquer projecto de ampliação ou de propagação no tempo de um qualquer património. Importa perceber que a teoria da arquitectura privilegia hoje o primado da estética (a forma) e da organização do espaço (concentrando-se no esclarecimento das relações entre continente e conteúdo), exaltando o primado da ideia (veja-se a nossa obsessão com as questões do autorartista-herói) sobre os processos sociais (a necessidade social que induz, e à qual responde, a arquitectura) e, sobretudo, sobre a cultura tecnológica que a materializa (o saber-ciência disponibilizado no ato de construir). Poderiamos, simplificando, dizer que a Arquitectura sempre PRIVILEGIA O ESPAÇO E se CONCENTRA NO problema dos USOs futuros, neste processo desconsiderando a matéria de que é feita o objecto histórico, ou seja integrando insuficientemente no seu próprio projecto a cultura material que conformou e construiu o objecto que estuda (o objecto patrimonial)! Nos projectos de conservação e restauro, esta forte orientação (diga-se espacial, ou estético-formal, portanto artística e funcional da Arquitectura) pode resultar no descurar do valor DOCUMENTAL da obra (a construção, a materialidade da arquitectura histórica enquanto documento complexo, produto estratificado de diversos tempos e exigências sociais) testemunho essencial para a fundamentação científica da História (da Arte e da Arquitectura) através da própria Arqueologia. Simplificando, de novo, poderíamos dizer que a Arqueologia, por sua vez, parece privilegiar a matéria enquanto texto-documento e, sobretudo, o processo “cognitivo” (a investigação e os seus resultados), concentrando-se nos saberes potencias a adquirir e preocupando-se menos com o “uso” social (a função futura) do objecto, cuja materialidade muitas vezes também acaba até por não sobreviver em prol do ganho de conhecimento (na descida dos estratos)! Nesta conjugação que estamos agora a construir – esta “nova-velha” Arqueologia da Arquitectura – quase esquecemos que o que esclarece o essencial do problema da discussão do(s) “valor(es)” patrimoniais é comum às duas disciplinas: i.e é o eterno processo de apreciação e (re)apropriação social que define e atribui “valores” patrimoniais, sejam eles de “uso” ou “de arte”. E ”Arte” é sempre um especial valor que a sociedade convenciona! É esse interesse social basilar que informa a (também) eterna rescrita da história da cultura; que especializamos em história da arte, história da Arquitectura, do urbanismo, ou até da construção, 10 recorrendo a metodologias cada vez mais sofisticadas e exactas – como a arqueologia da arquitectura – que por sua vez aceleram ainda mais o processo de rescrita da própria história. Assim, poderiamos dizer que CONSERVAMOS porque desejamos prolongar no tempo diversos tipos de valores sociais presentes na arquitectura histórica! A Arqueologia da Arquitectura, introduz novos tipos de rigorismos científicos no estudo histórico – sustenta leitura das estratificações cronológicas em provas concretas, em materiais concretos da história (a construção ela própria) - para além das tradicionais análises que provinham de fontes documentais, de leituras formais ou estilísticas. Em termos metodológicos torna-se imprescindível ao processo de investigação dos valores presentes (...também dos processos que ocorreram no tempo e portanto esclarecendo o comportamento e a patologia da construção) cuja preservação define o objectivo essêncial de qualquer projecto de conservação (ou de restauro, ou de conservação). É a imersão numa nova cultura material, que introduz processos de credibilização dos saberes e das decisões, de limitação de perdas no que se remove e de garantia de propagação futura de valores presentes, que se salvam. A nova-velha conjugação, da “Arqueologia da Arquitectura”, revela-se assim e hoje vital para a Conservação e Restauro, actividades onde é imprescindível o conhecimento preciso do passado através (e não só) dos seus vestígios materiais (objecto da arqueologia) como a conformação das potencialidades das pré-existências para a reorganização dos espaços e seus usos futuros (objecto essencial da arquitectura), numa conjugação de necessidades óbvias! Como escreveu Cesare Brandi (Teoria do Restauro): a qualidade do restauro dependerá sempre e directamente da qualidade do juízo crítico sobre a artisticidade ([portanto também da qualidade da avaliação dos valores históricos e estéticos presentes] do objecto sobre o qual incide! Disse Brandi «(...) o restauro constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dupla polaridade estética e histórica, com vista à sua transmissão ao futuro». O reconhecimento, ou a possibilidade de ler e proceder a esse reconhecimento de obra de arte, de acordo com um processo rigoroso, torna-se, assim, o principal imperativo moral da conservação. Ao informar “o que” e o “como” conservar, a Arqueologia da Arquitectura esclarece-nos o(s) “valor(es)” presentes e propagáveis no tempo tornando-se assim vital tanto para o conhecimento e para o investigar preciso da memória (História) tanto quanto para o transmitir das qualidades assim detectadas (artísticas, funcionais, etc) vitais para o futuro convencionamento dos usos (Arquitectura)! Mas se é fulcral, para perceber e cumprir arquitectura, saber da sua estratificação histórica, não é imediatamente óbvia a transposição dos saberes assim adquiridos para os projectos de conservação. 11 Mostrar, ao mesmo tempo e no mesmo suporte, todos os textos da históra, por maior interesse científico ou pedagógico que possa(m) ter – para a disciplina da história ou da arqueologia – pode resultar em terrível cacofonia! Por vezes o restauro obriga-nos a arriscar escrever palavras nos hiatos interrompidos de texto, para que nos seja devolvidos os poemas, para que aqueles textos históricos possam (re)adquirir sentido. Outras vezes, por imperativo de conservação (uma alvenaria concebida para ser rebocada, por exemplo) a continuidade futura do objecto impõe-nos a necessidade de ocultar os traços da sua história presentes na sua estrutura! Brandi esclareceu lucidamente os processos através dos quais os mecanismos espontâneos da percepção lêem as lacunas como corpos estranhos numa compo sição (baseando -se na «Gestaltpsychologie»), de tal forma que o que é “frente” pode facilmente passar a “fundo” e o fundo a frente (por exemplo as lacunas num painel de azulejos que adquirem um padrão lido pelo olho humano com mais ênfase do que o próprio padrão da composição azulejar), manifestando-se incontroladas (não porjectads) composições de formas e cores, que se podem manifestar absolutamente aleatórias ou independentes da figuração, da imagem ou da composição originais. Ou seja, deixar expostos na fachada de um edifício TODOS os traços do tempo, pode muito facilmente passar de um exercício extraordinário de arte e saber – como os exerceu tão elevadamente Távora – para o projectar de um espantoso queijo suíço, que nada tem a ver com uma lógica, informada e culta, de “apresentar” e dar a ler uma arquitectura! Percebe-se assim que não é nada óbvia nem fácil a transposição ACRÍTICA da informação fornecida pela Arqueologia da Arquitectura para as decisões de PROJECTO, sobretudo quando se referem às superfície s e revestimentos arquitectónicos! Da leitura arqueológica dificilmente se pode deduzir, directamente, o projecto de restauro! Neste, a interpretação crítica da sequência de tempos e dos espaços é vital para permitir potenciar e escolher as possibilidades de leitura que no projecto importa garantir. A oportunidade da afirmação da arqueologia da arquitectura e dos seus debates Periodicamente a Arquitectura e a Arqueologia, distintas disciplinas com específicas metodologias, encontram novos pontos de contacto: o estudo da edificação, é próprio a ambas as disciplinas; ambas igualmente vitais para a conservação e o restauro, actividades onde tanto o conhecimento preciso do passado através dos seus vestígios materiais (objecto da arqueologia) como a conformação das suas potencialidades reorganizando os espaços e pré -existências para usos futuros (objecto essencial da arquitectura) se tem obviamente de conjugar. Trata-se, como todos sabemos de um relacionamento que nem sempre foi tão fácil como ocorreu nos tempos da Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portugueses ). A oportunidade ocorre no momento em que a sociedade portuguesa, deve discutir as formas como promover o bom governo da memória (logicamente contra uma má gestão da memória, como lhe chamava Paul Riceur 28), estendendo-se ao “bom e o mau governo da cidade,” histórica ou não, 12 perante o abandono das bases metodológicas que presidiram a reabilitação urbana em Portugal, baseada no assitencialismos social dos GTL´s, agora substituídos pelo economicistas métodoas das SRU´s! Momento em que o nosso património urbano (objecto do desejo de uma ávida e propagandeada “reabilitação urbana” que na verdade é, na maioria das vezes, “renovação urbana” i.e. deita abaixo e faz de novo ou faz de novo por detrás do antigo cadáver, em fachadismo, portanto) se torna campo florescente de oportunismos políticos e disciplinares! A oportunidade DESTE debate no momento em que, em Portugal, devemos assumir que a cultura da conservação e do restauro são ainda demasiado incipientes entre nós, apesar do sucesso de alguns (poucos) casos, projectos e planos! Afastamo-nos gradualmente das praxis estabelecidas noutros panoramas europeus, ou seja não parecemos hoje perseguir a “conservação” ou o “restauro”, concentrando-nos mais nos processos de “invenção” (inclusive analógica) e de “modificação”, enquanto exigência imperativa que se propõe ao projecto arquitectónico quando incide sobre património histórico! Os nossos (parcos mas poderosos) críticos de arquitectura – convencidos apologistas da contemporaneidade, formados entre o elogio da modernidade e o vale-tudo pós-moderno, hoje, como ontem, absolutamente decisivos nos processos de atribuição dos projectos de conservação patrimonial - continuam a destacar como as mais estimulantes intervenções de projecto, obras que mereceriam, sob o ponto de vista da aplicação das teorias da conservação e do restauro, oposta relevância. A cultura arquitectónica mais divulgada entre nós parece privilegiar hoje um pluralismo consumista, um hedonismo imediatamente gratificante, uma (pseudo)ruptura e a deconstrução ...sobretudo quando se constrói no construído! Dito por outras palavras, a nossa crítica da arquitectura EXALTA o que a teoria do restauro CONTESTA! Por exemplo o projecto de Souto Moura para o Bouro que faz furor entre a crítica e nos cursos de Arquitectura, enquanto referência fulcral para um novo método de projectar no (e “com o”) construído, a mesma obra merece as mais sérias reticências e ferozes críticas (cada vez menos escondidas) dos partidários da conservação e do restauro mais estritos. Mas este debate é oportunidade também para a Arqueologia! Depois da sustentação básica da própria Arqueologia enquanto disciplina do conhecimento humano e ofício com lugar ao sol, feita sobretudo através da demonstração das suas competências no estudo do passado distante (préhistórico, das gravuras e dos estratos onde pode ocorrer Romano – felizmente também já Moçárabe) manifesta-se agora entre nós uma nova (?) Arqueologia da Arquitectura, operativa e metodologicamente concentrada na investigação histórica das paredes e do resto do edificado, enquanto materiais-depósitos-documentos a investigar. Alain Erlande-Brandenburg, Quand les cathédrale s étaint peintes. Paris: Gallimard, 1993. Consulte-se o capítulo sobre a “Lâmpada da Verdade” em: John Ruskin, The seven lamps of architecture. Fac-simili da segunda edição de 1880. Nova Yorque: Dover Publications, 1989. 1 2 Procurei encontrar algumas respostas para estas perguntas na dissertação: Aguiar, J., Cor e cidade histórica. Estudos cromáticos e conservação do património. Porto: Edições FAUP, 2003 (versão corrigida de uma tese de doutoramento, desenvolvida no LNEC, nesta versão com um prólogo de Nuno Portas). Tenho procurado, desde aí, 3 13 apoiar outros estudos sofre este fascinente tema, por parte de outros autores, em trabalhos académicos em cursos de Mestrado e Doutoramento. Idem nota 3. Consulte-se (após a sua discussão pública) a dissertação de Sofia Salema, As superfícies arquitectónicas de Évora. O esgrafito: contributos para a sua salvaguarda. Évora, UE, 2005. Veja -se ainda o estudo de Helena Mourato, Salvaguarda da Imagem Urbana do Centro Histórico de Évora: um Plano de Cor para a Praça do Geraldo. Évora, Universidade de Évora, 2001. Dissertações do Mestrado em Recuperação do Património Arquitectónico e Paisagístico desenvolvidas com a minha orientação. 4 5 Consulte-se, por exemplo, a comunicação de Pedro Providência, A imagem do Centro Histórico de Coimbra, em: Conferência Internacional A Imagem dos Centros Históricos, Bases para a sua salvaguarda. Centro Histórico de Coimbra. Coimbra, CMC, 2005 (policopiado). 6 O IPPAR organizou, em Novembro de 2004, sobre este tema as muito concorridas jornadas: Palácio Nacional de Sintra: novos achados e interpretações. 8 M. Lencaster, Colourscape. Londres: Academy Editions, 1996. 7 Jacques Ignace Hittorff, Restitution du temple d'Empe?docle a?Se?linonte, ou l'architecture polychrome chez les Grecs. Paris: Firmin Didot, 1851; com Ludwig von Zanth, Architecture antique de la Sicile; ou, Recueil des plus inte ?ressans monumens d'architecture des villes et des lieux les plus remarquables de la Sicile ancienne. Paris: Imprime ?chez P. Renouard, 1827; com Ludwig Grüner, Descriptions of the Plates of Fresco Decorations and Stuccoes of Churches and Palaces in Italy During the Fifteenth and Sixteenth Centuries, with an Essay On the Arabesques of the Ancients as Compared with those of Raphael and his School. Londres: J. Murray, 1844. Sobre o impacto destas revelações consultes-se o essencial: J. GAGE, Colour and culture, Practice and meaning from antiquity to abstraction. Londres:Thames and Hudson, 1995. 10 Na sua obra fulcral, C. Brandi, Teoria del Restauro. Turim: Picola Biblioteca Einaudi, 1963 (2ª ed. de 1977), da qual preparamos para muito breve, depois da edição brasileira, uma edição portuguesa. 11 L. Mora; P. Mora e P. Philipot, La conservation des peintures murales, Bolonha, 1977 (também em versão mais recente: The conservation of wall paintings, (1979), 2ª ed., Londres, Butterworts, 1984). 12 Dou aqui como exemplo a obra de António Villalba, Historia de la Construcción Arquitectónica. Quaderns d´Arquitectes. Barcelona, Ediciones UPC, 1995. 13 Jorge Alarcão, Argamassas na Antiguidade, em História , nº 2. Lisboa: Projornal, 1979. 9 G. Teixeira, M. Belém, Diálogos da edificação. Porto: CRAT, 1998; A.A.V.V., Arquitectura de Terra em Portugal. Lisgoa: Argumentum, 2005. 14 J. P. Lenclos, Les couleurs de la France. Paris: Moniteur, 1982. Do mesmo autor, The Geography of Color. Tóquio: San´ei Shobo Publishing Company, 1989. 15 E. Nery, A cor de Lisboa. Em Povos e Culturas, A Cidade em Portugal: Onde se Vive, nº2. Lisboa: Edição do Centro de estudos dos povos e culturas de expressão portuguesa - Universidade Católica Portuguesa, 1987, p. 576. 17 Por exemplo a exposição, seguida de uma notável conferência ocorrida no Institut Franco-Portuguais dos Colorista dos Professores Parisienses Annick e Jean Demier, divulgando os estudos sobre a cor de Lisboa lida pelos olhos e pelos registos dos seus alunos da Escola de Arquitectura de Paris La Villette, seguida de uma comunicação da Arquitecta Clara Vieira, que mais tarde viria a dirigir a DMRU-CML, depois da saída do Arquitecto Filipe Lopes. Sobre o tema, consultar: A. Desmier; J. Desmier, Lisboa, Luz e cor na cidade europeia. Paris, Ed. La Villette, 1993. 16 A.A. V.V., A Cor de Lisboa, em Separata da Revista Olisipo, n.º 45, Lisboa, 1949. Entre os “Amigos de Lisboa” que deixam escrito o seu pensamento sobre a cor de Lisboa encontrava-se Abel Manta, Armando de Lucena, Carlos Botelho, Cristino da Silva, Diogo de Macedo, Gustavo de Matos Sequeira, Martins Barata, Norberto de Araújo, Paulino Montez, etc. A redição de 1993 contou com duas curtas, mas muito interessantes reflexões de José Augusto França e Raquel Henriques da Silva. 19 Apesar de nunca ter sido publicada pela CML, a comunicação de Joan Casadevall Serra, teve um conteúdo muito similar ao seguinte texto: El plan del color en Barcelona. Metodologia para la conservación de los cascos históricos, em Actas do Congresso Internacional de Urbanismo y Conservación de Ciudades Património de la Humanidad. Setembro, Cáceres, 1993. A mesma metodologia pode também ser estudada em: Joan Casadevall Serra, El estudio cromático de las fachadas de Barcelona, em Revestimento y color en la arquitectura, Conservación y restauración, Curso de Restauración Arquitectónica, Março de 1993. Granada: Universidade de Granada, 1996. 18 14 Aguiar, J; Henriques, F., A estratigrafia como método de garantir cientificamente a autenticidade cromática de um edifício, em Encontro Internacional A Cor de Lisboa, CML/DMRU. Lisboa: CML-DMRU, 1993 (policopiado), que depois deu origem ao artigo J. Aguiar, J., Henriques, F., Como conhecer com rigor o passado cromático de um edifício, em Revista Engenheiros e Arquitectos, Nº 2, Fev./Mar. de 1993. 20 21 Em fichas que compilam informação qualitativa e descritiva dos revestimentos - técnicas, texturas, detalhes de execução -, com registo de estratos por comparação com atlas cromático de referência Munsell/NCS, por vezes complementadas com análises de cor efectuadas com espectrocolorímetros e posteriores análises em laboratório (estudos morfológicos, análises geológicas e químicas para caracterização de materiais, etc.). Sem possibilidade de exaustão relevaria aqui as essenciais publicações de M. Koller, Architektur und Farbe, Probleme ihrer Geschichte, Untersuchung und Restaurierung, em Maltechink-Restauro, nº4. Viena, 1975; de G. Brino e F. Rosso, Colore e città, Il Piano del colore di Torino 1800-1850, Comune di Torino. Milão: Ed. Idea Ed., 1980; de L. Mora, Il colore delle superfici architettoniche, em Facciate Dipinte, Conservazione e restauro, Atti del convegno di studi. Génova: Sagep Editrice, 1982; de P. Marconi et al., Il colore nella edilizia storica, e de M. Cordaro, M. Meucci, C. & M. Tabasso, Un metodo di riconoscimento della colorazione originaria di intonici antichi, ambos publicados pelo Bolletino d´Arte, Suplemento 6. Roma. 1984; de P. Natale, e P. Scarzella, Terre coloranti e loro colori, de D. Ferragni, M. Forti, J. Malliet, J. & G. Torraca, Tecniche di conservazione degli intonaci, e ainda de Ivo Hammer, Problemi estetici e technici della conservazione della superficie architettonica intonacata storica, apenas alguns dos fulcrais artigos publicados em L´intonaco: storia, cultura e tecnologia.Atti del Convegno di Studi Bressanone. Padova, G. Biscontin, 1985. Também as actas dos encontros: Richerca di storia dell´arte, Colori, coloriture, restauro, Studi su sgrafifiti, intonaci e coloriture architettoniche, Inerti e leganti dell´affresco, pigmenti industriali, tincture. Roma: La nuova Italia Scientifica, 1984; Intonaco, colore e coloriture nell´edilizia storica, Atti del convegno di studi, Roma 15-17 Outubro 1984, com comunicações publicadas pelo Bolletino d´Arte, supl. 35/36, I-II, 1986; Superfici dell´architettura: le finiture, Atti del convegno di studi, Bressanone, 26-29 Junho 1990. Padova: G. Biscontin, 1991. 22 Laboratório de Ensaio de Revestimentos, do Departamento de Edifícios do LNEC. Destacaria a realização, também no LNEC, do I Encontro Cor e Conservação de Superfícies Arquitectónicas, em 1999; ou a edição de compilações de artigos sobre o tema, como, por exemplo: Revestimentos de paredes em edifícios antigos, em Cadernos Edifícios, nº 2, Outubro. Lisboa, LNEC, 2002. 24 Jorge, Alarcão, Argamassas na Antiguidade, em História, nº 2, Lisboa, Projornal, 1979. 23 Alguns (de um número elevado de) exemplos: J. Aguiar; I. Valverde; M. Tavares; I. Pincho, Análises Cromáticas para o Projecto Integrado do Castelo (CML/DMRU/PIC)., Relatório 239/96 – NA, Lisboa, LNEC, 1996; Veiga, Maria do Rosário, Gonçalves, T.; Aguiar, J., Recomendações sobre as argamassas a usar no restauro do Centro Histórico de Castelo Rodrigo, Lisboa, LNEC, 1997; Aguiar, J.; Tavares, Martha; Valverde, Isabel, Estudos cromáticos para o centro histórico de Sintra, Lisboa, LNEC, 1998. 26 Sobre os projectos de cor na Freguesia do castelo em Lisboa, consulte-se a comunicação de Clara Vieira e Cristina Claudino, Projecto Integrado do Castelo: Estudos Cromáticos, em Seminário Internacional A Cidade de Cor, Póvoa do Varzim, 30 a 31 de Outubro de 1997, p. 2. Aguiar, J.; Valverde, I.; Tavares, M.; Pincho, I., Análises Cromáticas para o Projecto Integrado do Castelo, Relatório 239/96 – NA. Lisboa: LNEC, 1996. Sobre os estudos de cor produzidos pelo LNEC para o município de Sintra consulte-se de J. Aguiar, M. Tavares, , I. Valverde, Estudos cromáticos para o centro histórico de Sintra. Lisboa: LNEC, 1998 (policopiado). Quanto aos projectos de controlo da cor e de salvaguarde de revestimentos tradicionais no Centro Histórico de Évora, consulte-se Aguiar, J., Conservação de revestimentos e imagem urbana. Notas em torno do Projecto integrado para a salvaguarda dos acabamentos tradicionais do Centro Histórico de Évora, conferência a convite das I Jornadas Luso-Brasileiras de Arquitectura, ILARTEC. Porto: Universidade Lusíada, 2003 (em edição); e ainda, do mesmo autor, Cor e conservação de revestimentos, alguns casos de estudo em Évora. Em Workshop Reabilitação e Revalorização do Património. Évora: Fórum Eugénio de Almeida, 2005. 27 M. Giamello; G. Guasparri; S. Mugnaini; G. Sabatini; A. Sclaa, I colori della facciata del Palazzo Pubblico di Siena nell´e´tà Medevale. Em, Il colore delle facciate: Siena e L´Europa nel Medioevo. Siena: Pacini Editore, 2001. 25 28 Paul Ricoeur, Vulnérabilité de la memoire, em Patrimoine et passions identitaires, Actes des entretiens du patrimoine, 6 a 8 Janeiro. Paris: Editions du Patrimoine/Fayard, 1998. 15
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