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ISSN 1517-2422 (versão impressa) ISSN 2236-9996 (versão on-line) cadernos metrópole a saúde na cidade Cadernos Metrópole v. 18, n. 36, pp. 313-608 jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3600 Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–, Semestral ISSN 1517-2422 (versão impressa) ISSN 2236-9996 (versão on-line) A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22 1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles CDD 300.5 Periódico indexado no SciELO, Redalyc, Latindex, Library of Congress – Washington Cadernos Metrópole Profa. Dra. Lucia Bógus Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes 05015-001 – São Paulo – SP – Brasil Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles Av. Pedro Calmon, 550 – sala 537 – Ilha do Fundão 21941-901 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 São Paulo – SP – Brasil Telefax: (55-11) 94148.9100 [email protected] http://web.observatoriodasmetropoles.net Secretária Raquel Cerqueira a ssaúde aúde n na ac cidade idade PUC-SP Reitora Anna Maria Marques Cintra EDUC – Editora da PUC-SP Direção Miguel Wady Chaia Conselho Editorial Anna Maria Marques Cintra (Presidente), José Rodolpho Perazzolo, Karen Ambra, Ladislau Dowbor, Lucia Maria Machado Bógus, Mary Jane Paris Spink, Miguel Wady Chaia, Norval Baitello Junior, Oswaldo Henrique Duek Marques, Rosa Maria B. B. de Andrade Nery Coordenação Editorial Sonia Montone Revisão de português Equipe Educ Revisão de inglês Carolina Siqueira M. Ventura Revisão de espanhol Vivian Motta Pires Projeto gráfico, editoração Raquel Cerqueira Capa Waldir Alves Rua Monte Alegre, 984, sala S-16 05014-901 São Paulo - SP - Brasil Tel/Fax: (55) (11) 3670.8085 [email protected] www.pucsp.br/educ cadernos metrópole EDITORES Lucia Bógus (PUC-SP) Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ) COMISSÃO EDITORIAL Eustógio Wanderley Correia Dantas (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/Ceará/Brasil) Luciana Teixeira Andrade (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Orlando Alves dos Santos Júnior (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Sérgio de Azevedo (Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/ Brasil) Suzana Pasternak (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) CONSELHO EDITORIAL Adauto Lucio Cardoso (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Aldo Paviani (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/ Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, Toluca/Estado del México/México) Ana Cristina Fernandes (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/ Pernambuco/Brasil) Ana Fani Alessandri Carlos (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ana Lucia Nogueira de P. Britto (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Ana Maria Fernandes (Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Andrea Claudia Catenazzi (Universidad Nacional de General Sarmiento, Los Polvorines/Provincia de Buenos Aires/Argentina) Angélica Tanus Benatti Alvim (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Arlete Moyses Rodrigues (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Carlos Antonio de Mattos (Pontificia Universidad Católica de Chile, Santiago/Chile) Carlos José Cândido G. Fortuna (Universidade de Coimbra, Coimbra/Portugal) Claudino Ferreira (Universidade de Coimbra, Coimbra/Portugal) Cristina López Villanueva (Universitat de Barcelona, Barcelona/Espanha) Edna Maria Ramos de Castro (Universidade Federal do Pará, Belém/Pará/Brasil) Eleanor Gomes da Silva Palhano (Universidade Federal do Pará, Belém/Pará/Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Félix Ramon Ruiz Sánchez (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Fernando Nunes da Silva (Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa/Portugal) Frederico Rosa Borges de Holanda (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Geraldo Magela Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Gilda Collet Bruna (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/ São Paulo/Brasil) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heliana Comin Vargas (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heloísa Soares de Moura Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Jesus Leal (Universidad Complutense de Madrid, Madri/Espanha) José Alberto Vieira Rio Fernandes (Universidade do Porto, Porto/Portugal) José Antônio F. Alonso (Fundação de Economia e Estatística, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) José Machado Pais (Universidade de Lisboa, Lisboa/Portugal) José Marcos Pinto da Cunha (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa/Portugal) José Tavares Correia Lira (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Leila Christina Duarte Dias (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Luciana Corrêa do Lago (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luís Antonio Machado da Silva (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luis Renato Bezerra Pequeno (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/Ceará/Brasil) Márcio Moraes Valença (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marco Aurélio A. de F. Gomes (Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria do Livramento M. Clementino (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marília Steinberger (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Marta Dominguéz Pérez (Universidad Complutense de Madrid, Madri/Espanha) Montserrat Crespi Vallbona (Universitat de Barcelona, Barcelona/ Espanha) Nadia Somekh (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Nelson Baltrusis (Universidade Católica do Salvador, Salvador/Bahia/ Brasil) Norma Lacerda (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/Pernambuco/Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Raquel Rolnik (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ricardo Toledo Silva (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Rosa Maria Moura da Silva (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Curitiba/Paraná/Brasil) Rosana Baeninger (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Sarah Feldman (Universidade de São Paulo, São Carlos/São Paulo/Brasil) Vera Lucia Michalany Chaia (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/ Brasil) Wrana Maria Panizzi (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) sumário 321 Apresentação dossiê: a saúde na cidade Living near health at Belo Horizonte 325 Viver próximo à saúde em Belo Horizonte Renato Cesar Ferreira de Souza Veneza Berenice de Oliveira Doralice Barros Pereira Heloisa Soares de Moura Costa Waleska Teixeira Caiaffa Suffering and working in the city in forced march 345 Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada Stela Cris na Godoi Comunidades locais, saúde e os obje vos de desenvolvimento sustentável: o caso de Ribeirão das Neves, Brasil 365 Local communi es, health and the sustainable development goals: the case of Ribeirão das Neves, Brazil Viviane H. França Ulisses E. C. Confalonieri Federa ve coopera on and the health policy: the case of Inter-municipal Health Consor ums in Paraná 377 A cooperação federa va e a polí ca de saúde: o caso dos Consórcios Intermunicipais de Saúde no estado do Paraná Carlos Vasconcelos Rocha Health: social vulnerability, neighborhood and physical ac vity 401 Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e a vidade sica Manoel Carlos S. de Almeida Ribeiro Rita Barradas Barata Intra-urban social inequality: implica ons for the dengue epidemic in Campinas, SP, in 2014 421 Desigualdade social intraurbana: implicações sobre a epidemia de dengue em Campinas, SP, em 2014 Igor Cavallini Johansen Roberto Luiz do Carmo Luciana Correia Alves Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 313-608, jul 2016 319 The urban ques on and popula on aging: brief connec ons between the right to the city and the elderly in the labor market 441 Questão urbana e envelhecimento populacional: breves conexões entre o direito à cidade e o idoso no mercado de trabalho Maura P. Bicudo Véras Jorge Felix Intra-urban inequali es in hospitaliza ons for respiratory and circulatory diseases in an area of the city of São Paulo 461 Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares por doenças respiratórias e circulatórias em uma área da cidade de São Paulo Helena Ribeiro Edelci Nunes Silva Fishermen in Bacia de Campos: health from the perspec ve of food (in)security 481 Pescadores artesanais da Bacia de Campos: a saúde pela perspec va da (in)segurança alimentar Mauro Macedo Campos Moisés Machado Geraldo Márcio Timóteo Paulo Belchior Mesquita Artigos complementares Poverty and income mobility in the Brazilian metropolitan regions 503 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras Lilia Montali Luiz Henrique Lessa Housing and sense of belonging: the defense of the Place of living by social groups undergoing vulnerability processes 535 Moradia e pertencimento: a defesa do Lugar de viver e morar por grupos sociais em processo de vulnerabilização Maria Auxiliadora Ramos Vargas Public policies in the development of large urban restructuring projects. The Case of Puerto Norte in Rosario, Argen na 559 Polí cas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana. Caso Puerto Norte en Rosario, Argen na Cecilia Inés Galimber Expansion dynamics of the Brasília-Anápolis-Goiânia urban-regional arrangement 583 Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia Marcos Bi ar Haddad Rosa Moura 605 Instruções aos autores 320 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 313-608, jul 2016 Apresentação Os campos da saúde e das ciências humanas passaram a ser pensados de maneira relacional desde o século XVIII, quando as práticas preventivas e seus dispositivos sanitários desempenharam importante papel na configuração do espaço urbano e de novas ordens sociais. Tomamos, por exemplo, as intervenções sociossanitárias ocorridas em cidades do continente europeu, que transformaram radicalmente concepções e práticas sobre os cuidados com o espaço urbano e seus desdobramentos na saúde das coletividades. Entre nós, desde a década de 1920, as ciências sociais passaram a problematizar categorias consagradas e conceitos médico-naturalistas do território da saúde numa perspectiva crítica e histórica, ajudando a instituir um novo campo interdisciplinar. Aqui, a concepção de saúde não se restringe à dimensão anátomo-fisiológica e não pode ser pensada sem considerar os valores e os campos de força que constituem as relações sociais. Curiosamente, essa perspectiva tem sido pensada criticamente muito mais no campo conhecido como biomédico, da epidemiologia mais especialmente, do que no campo da sociologia. No entanto, foi com forte apelo às ciências humanas que o discurso teórico da saúde coletiva foi formulado, ultrapassando fronteiras de conhecimento e incorporando recortes sociológicos, antropológicos, filosóficos, psicológicos e históricos na elaboração de ideias e nas contribuições aos debates sobre as práticas de saúde pública, incluindo aí as práticas assistenciais fortemente implantadas nos espaços urbanos nas últimas décadas. Com essas reflexões iniciais, introduzimos as contribuições enviadas pelos autores ao dossiê deste número de Cadernos Metrópole sobre dois campos de reflexão marcados pela amplitude de significados – a saúde e a cidade. A ausência de especificação interna a cada um e da relação entre eles foi intencional, e o conjunto de temas recebidos compõe um rico apanhado de reflexões e de descrições que permitirão aos leitores desde a apreensão da situação de saúde de segmentos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 321-324, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3600 321 Apresentação específicos da população localizada em espaços urbanos, até a institucionalização de sistemas e de serviços de saúde que em muito transformaram a realidade sociossanitária urbana. São análises fundamentadas em sólidos apontamentos, perpassadas pelos debates sobre as iniquidades presentes em espaços urbanos marcados por processos de industrialização e pelas desigualdades nas formas de adoecer e no acesso a bens e serviços essenciais à vida. O artigo Viver próximo à saúde em Belo Horizonte, de Renato Cesar Ferreira de Souza et al., expõe aspectos da territorialização dos serviços de saúde e tem como proposta de análise as unidades espaciais e os determinantes sociais de saúde, colaborando com o debate sobre modelos assistenciais voltados à redução das iniquidades. Ao revisitar a história, o artigo Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada, de Stela Cristina Godoi, coloca em foco a expressão das memórias de metalúrgicos e os relatos orais de motoboys, construindo uma sensível descrição da brutalidade da aceleração do tempo social, do sofrimento e da violência que marcam as experiências de vidas desses trabalhadores em dois cenários metropolitanos. Ao apontar para a localidade como espaço de vida e como entidade federativa definidora de suas próprias necessidades, o artigo Local communities, health and the sustainable development goals: the case of Ribeirão das Neves, Brazil, de Viviane H. França e Ulisses E. C. Confalonieri, traz contribuições ao debate sobre a pobreza e sobre as necessárias respostas às iniquidades por ela engendradas, na perspectiva de atores sociais institucionalizados e atuantes na execução de ações em saúde voltadas à redução das taxas de morbidade e de mortalidade. De forma a oferecer um quadro de análise sobre articulações e novas experiências de relações entre municípios, o artigo seguinte, A cooperação federativa e a política de saúde: o caso dos Consórcios Intermunicipais de Saúde no estado do Paraná, de Carlos Vasconcelos Rocha, oferece importantes elementos conceituais para o entendimento da cooperação federativa e para a consecução das políticas de saúde pelos caminhos da descentralização, da horizontalidade dos arranjos e da criação de meios, para a estabilização de regras e de processos no dinâmico campo da atenção à saúde. O espaço urbano e a autonomia municipal são colocados no centro do debate sobre a responsabilização e a provisão de serviços em saúde. Estruturados sob lentes acuradas que relatam detalhadamente a situação de saúde dos diferentes grupos sociais no espaço urbano, os dois artigos subsequentes apresentam dados esclarecedores. O primeiro, intitulado Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física, de Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro e Rita Barradas Barata, relaciona comportamentos relativos aos cuidados individuais em saúde com o contexto do bairro e as características sociodemográficas dos indivíduos, abrindo a perspectiva de compreensão do conjunto de elementos que podem, ou não, favorecer comportamentos considerados saudáveis. Na sequência, o artigo Desigualdade social intraurbana: implicações sobre a epidemia de dengue em Campinas, SP, em 2014, de Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo e Luciana Correia Alves, constrói, por meio de análise espacial, um interessante percurso de investigação, relacionando a epidemiologia da dengue com o processo de urbanização e as desigualdades sociais. 322 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 321-324, jul 2016 Apresentação A preocupação com aspectos da saúde da população relacionados aos ciclos de vida aponta o envelhecimento como importante processo na atualidade, uma vez que impõe profundas transformações no perfil sociossanitário e, consequentemente, na elaboração e difusão de políticas sociais voltadas a esse grupo. Em Questão urbana e envelhecimento populacional: breves conexões entre o direito à cidade e o idoso no mercado de trabalho, os autores, Maura Pardini Bicudo Véras e Jorge Felix, expõem os efeitos avassaladores dos avanços do capital financeiro e a efetivação de um desmonte do Estado de Bem-Estar Social. Como consequência desse processo, observa-se o crescente processo de segregação nas cidades evidenciando que os idosos mais pobres acabam por ocupar espaços precários, além de assistirem à corrosão de seus direitos previdenciários. A espacialização do adoecimento por doenças respiratórias e circulatórias reflete, por meio da sobreposição comparativa das informações sobre as internações hospitalares, a qualidade socioambiental e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), as desigualdades nos perfis de adoecimento. Conforme o artigo de Helena Ribeiro e Edelci Nunes Silva, Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares por doenças respiratórias e circulatórias em uma área da cidade de São Paulo, piores perfis de qualidade de vida e IDH reduzido evidenciam o peso exercido pelas desigualdades no comprometimento da saúde da população urbana. Encerra o conjunto de artigos sobre saúde na cidade, a proposição de um debate sobre a (in)segurança alimentar. O artigo Pescadores artesanais da Bacia de Campos: a saúde pela perspectiva da (in)segurança alimentar, de Mauro Macedo Campos et al., aborda a discussão da quantidade e qualidade da alimentação da população e dos riscos de adoecimento e morte, evidenciando a intrincada e contraditória realidade de municípios em área de exploração petrolífera que, embora recebam montantes elevados de recursos, parecem não corresponder a um esperado desenvolvimento social. Além desses textos, compõem este número artigos de cunho sociológico cujas análises devem ser pensadas como alicerces do tema proposto. O texto Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras, de Lilia Montali e Luiz Henrique Lessa, questiona se efetivamente tal mobilidade acarretou elevação da condição de vida em vista da persistência de hiatos de acesso a elementos centrais, como emprego, educação, saúde e serviços. Moradia e pertencimento: a defesa do Lugar de viver e morar por grupos sociais em processo de vulnerabilização, de Maria Auxiliadora Ramos Vargas, também coloca em questão outras dimensões relacionais com o espaço no plano dos sentidos atribuídos por populações ameaçadas por processos de desterritorialização. Nessas condições, Lugar reflete formas de escolha e de viver a partir de possibilidades reduzidas. No artigo Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana. Caso Puerto Norte en Rosario, Argentina, a autora Cecilia Inés Galimberti julga os efeitos e os conflitos resultantes da experiência de implantação de grandes projetos urbanos na América Latina. Trata-se de uma abordagem crítico-interpretativa embasada em um relevante estudo de caso realizado na Argentina. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 321-324, jul 2016 323 Apresentação Em Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia, de Marcos Bittar Haddad e Rosa Moura, são apontadas as implicações regionais dessa aglomeração espacial, o que leva os autores a inferir que, por estarem articuladas ao processo de acumulação, a riqueza gerada e a valorização urbana não rompem a desigualdade existente. No campo da saúde coletiva, é comum ouvirmos que a “saúde é a esponja da sociedade”, e a leitura do conjunto dos textos deste número de Cadernos Metrópole expressa bem esse enunciado. Esperamos que seja uma instigante leitura para futuros trabalhos. Cassio Silveira Mara Helena de Andréa Gomes Organizadores Cassio Silveira Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, Departamento de Saúde Coletiva; Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina, Departamento de Medicina Preventiva. São Paulo, SP/Brasil. [email protected] Mara Helena de Andréa Gomes Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina, Departamento de Medicina Preventiva, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. São Paulo, SP/Brasil. [email protected] 324 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 321-324, jul 2016 Viver próximo à saúde em Belo Horizonte Living near health at Belo Horizonte Renato Cesar Ferreira de Souza Veneza Berenice de Oliveira Doralice Barros Pereira Heloisa Soares de Moura Costa Waleska Teixeira Caiaffa Resumo A definição de unidades espaciais como locus preferencial na prestação do cuidado em saúde é desafiadora quando se buscam modelos assistenciais que reduzam as iniquidades de acesso aos serviços de saúde e os humanizem, integrando dados demográficos, socioeconômicos, culturais e ambientais, configurando localmente os determinantes sociais da saúde. Este estudo introduz uma análise da localização das Unidades Básicas de Saúde (UBS) nos distritos sanitários de Belo Horizonte, comparando as divisões administrativas adotadas com as obtidas pelo teste cartográfico de influência de acesso às UBS. Demonstra-se a potencialidade de investigações futuras sobre o território da cidade na busca de melhores localizações e acesso às UBS, acenando para o enriquecimento do debate sobre os rumos da saúde urbana no Brasil. Abstract TThe definition of spatial units as the preferential locus for healthcare provision is a challenging task when we seek healthcare models that humanize the health services and reduce inequities concerning access to them, integrating demographic, socioeconomic, cultural and environmental data, and configuring the social determinants of health at a local level. This study analyzes the location of Primary Care Units (PCU) in the Health Districts of the city of Belo Horizonte, and compares the adopted administrative divisions with those obtained by mapping the influence of shorter distances to the PCU. It demonstrates the potential that further research on the city’s territory has in the search for better locations and access to the PCU, enriching the debate on the future of Urban Health in Brazil. Palavras-chave: análise espacial; espaço urbano; saúde urbana; acesso aos serviços de saúde; sistema único de saúde. Keywords: spatial analysis; urban space; urban health; access to healthcare; Brazil’s National Healthcare System. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3601 Renato Cesar Ferreira de Souza et al. Introdução O Sistema Único de Saúde do Brasil (SUS) é o maior sistema de saúde do mundo com características de universalidade, equidade e gratuidade. Desde sua criação, em 1988, um de seus maiores desafios é garantir o acesso de toda a população aos serviços de saúde com qualidade. Entretanto, ainda há uma realidade desigual e excludente significativa na distribuição desses serviços no País. Tenta-se, então, amenizar esse problema priorizando uma rede de Atenção Primária à Saúde (APS) em nível territorial, seja municipal ou por regiões de saúde, considerando-a como uma melhor porta de entrada para o SUS. As relações do território com vistas à organização dos serviços do SUS foram definidas pelo Decreto 7508/2011, no qual também se renova a importância da APS conforme as recomendações do Relatório Mundial de Saúde de 2008 (OMS, 2008). implementar um modelo de APS que conjugava o critério estabelecido pelo SUS com balizamento do Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) na definição das áreas prioritárias de atuação e do número de equipes de saúde da família para cada UBS. A cidade foi dividida em nove regiões administrativas, os Distritos Sanitários, onde está localizado um número diferenciado de UBS. Esses esforços se direcionaram à oferta de serviços de qualidade, com maior equidade, fácil acesso e em tempo adequado ao atendimento das necessidades de uma porção maior da população. Simultaneamente, visavam fortalecer a atenção aos ciclos da vida, com temáticas diversas, enfatizando-se, por exemplo, as áreas e as populações de maior vulnerabilidade. Esses aspectos conferiram extrema importância à discussão da localização das unidades e serviços da APS no espaço urbano, exigindo a problematização de metodologias para a sua avaliação e implementação. Em Belo Horizonte, o mapeamento da distribuição de recursos humanos, de ações e de serviços de saúde ofertados pelo SUS pas- Problematização sou a ser feito, colocando a estrutura do espaço público e suas dimensões físicas como integra- As unidades da APS são consideradas coorde- doras, com outros aspectos ambientais e de in- nadoras do cuidado e da comunicação com as dicadores de saúde, para nortear a priorização demais redes do SUS e concretizam sua presen- das implementações (Pitchon, 2013). Por essa ça no espaço urbano por meio de sua localiza- razão, apresenta-se como cidade de interesse ção em áreas limitadas denominadas “áreas de na avaliação da configuração de sua estrutura abrangência”. Dois objetivos que integram as espacial de UBS. O critério do número de pes- suas finalidades estabelecem relações com o soas residentes numa determinada localidade espaço urbano de modo explícito: em primeiro foi utilizado na especificação da menor unida- lugar, elas devem oferecer atenção à saúde de de espacial de atuação das equipes de saúde forma completa; e, em segundo, devem favore- da família. cer as condições de integrar-se funcionalmente Na década de 1990, a Secretaria Muni- às outras unidades da rede. Quanto à primeira, cipal de Saúde de Belo Horizonte inovou ao as UBS cuidam hoje da promoção, prevenção 326 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 Viver próximo à saúde em Belo Horizonte e assistência à saúde coletiva, ultrapassando urbano (Weil, 2001) integrado ao ato de resi- apenas a erradicação de doenças (Farias e Bu- dir. Simultaneamente, as UBS demandam uma challa, 2005). Seu sucesso depende, portanto, integração territorial através dos fluxos de da sua localização e das singularidades das pessoas e de coisas, criando uma hinterlândia comunidades onde se inserem, uma vez que a (zona de influência), que fortalece a rede e dis- receptividade dos cidadãos é que as transfor- ponibiliza a tecnologia e os serviços. mam em um elemento da vida urbana local. A importância dos centros de saúde para Ao se integrarem às outras unidades de saúde as vizinhanças, considerando sua proximida- (Temporão, 2010), as UBS tendem a equilibrar a de e inserção como enraizamento, talvez te- distribuição dos recursos necessários para uma nha sido registrada pela primeira vez quando atuação mais profícua, principalmente consi- do chamado Peckham experiment (Pearse e derando que as densidades tecnológicas das Crocker, 2013). Entre os anos de 1926 e 1950, redes de APS diferem entre si, e esse comparti- Williamson e Pearse criaram o Pioneer Health lhamento evita a subutilização e o desperdício. Centre, na vizinhança de Peckham, sudeste de Londres (Figuras 1 e 2). Os objetivos dessa proposta pioneira e radical incluíam despertar nos moradores da região, população socialmente vulnerável, a valorização do cuidado à sua saúde por meio do uso rotineiro das instalações e dos serviços do centro, que incluíam piscinas, equipamentos para exercício físico e locais para a socialização. A proposta visava preservar a Dessa maneira, busca-se congregar uma relação horizontal, contínua e integrada em uma gestão compartilhada em consonância com as vizinhanças onde se localizam as UBS. A apropriação delas pela vizinhança parece ser capaz de proporcionar uma relação mais eficaz, promovendo o enraizamento da população e o uso espontâneo e participativo do ambiente Figuras 1 e 2 – Interior do edifício do Centro de Saúde de Peckham, Londres, hoje transformado em área de lazer privativa para um condomínio de apartamentos Fonte: Internet, acesso em 2016. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 327 Renato Cesar Ferreira de Souza et al. assiduidade ao centro e, com ela, a prevenção, evitando o agravamento de diversas doenças. Nos últimos 15 anos, a análise espacial vem sendo utilizada com ênfase na saúde pa- Uma das primeiras reflexões teóricas so- ra dar suporte ao conceito de risco, em função bre o conceito de espaço aplicado à saúde pú- das múltiplas possibilidades advindas da corre- blica foi a de Snow, em Londres em 1854, por lação de variáveis como localização da popu- ocasião da epidemia de cólera. Desde então, o lação, recursos e fluxos através de sistemas de diferencial de saúde, conforme a localização no informação geográfica (GIS). A espacialização espaço urbano, vem sendo objeto de pesquisas da situação de saúde de uma região urbana so- (Silva, 1997) e, cada vez mais, as abordagens breposta, em seu mapeamento, às espacializa- abrangem campos conjugados para a melhor ções socioeconômicas, sanitárias e ambientais compreensão dos fenômenos territoriais. Em possibilita uma aproximação mais reveladora se tratando da busca de uma totalidade entre do que realmente acontece no espaço urba- o ambiente construído e a saúde das pessoas, no, mostrando-se ser uma grande contribui- Alexander e colegas (Alexander; Ishikawa e Sil- ção (Gondim et al., 2008). Entretanto, o uso verstein, 1977, p. 236) argumentaram sobre a desses procedimentos considera que o territó- necessidade de se construírem as cidades em rio ocupado por uma vizinhança, ao longo do maior consonância com o ciclo vital e a idade tempo, confere-lhe limites territoriais e físicos das pessoas. Vizinhanças poderiam mesclar resultantes da acumulação de situações his- mais e melhor seus indivíduos e reconhecer tóricas, ambientais e sociais. A ênfase a essas os ritmos de passagem de um ciclo etário ao variáveis do enraizamento, entretanto, dá-se outro, com espaços mais apropriados às limita- na consideração de que tais fatores constituem ções individuais, como, por exemplo, a de mo- informação sobre a capacidade de suas carac- vimentos. Aqueles autores também consideram terísticas ativarem condições particulares para que para um sistema de saúde que conseguir a produção de doenças (Barcellos et al., 2002; manter a saúde física e mental das pessoas Gondim et al., 2008). deveria enfatizar ações relacionadas à manu- Igualmente, para que se possa avaliar tenção da saúde e não somente ao tratamento mais precisamente o impacto da localização de enfermidades. Consequentemente, o espaço dos serviços de atenção primária à saúde, é deveria ser fisicamente descentralizado para necessário o reconhecimento de tais territórios se situar o mais próximo possível das ativida- como delimitadores das unidades espaciais des cotidianas, criando estímulos para práticas das vizinhanças. A extensão geométrica mere- diárias que promovessem a saúde, tal como a ce abarcar uma multiplicidade de dados para simples sociabilidade, a natação, a dança, os identificar mais e melhor o perfil demográfico, esportes ao ar livre, além de tratamento mé- epidemiológico, administrativo, tecnológico, po- dico incidental para essas atividades. Os au- lítico, social e cultural que caracteriza seus habi- tores terminam comentando que tais espaços tantes e se expressa em um espaço urbano em sucumbem à percepção geral de que tratam permanente construção (Monken et al., 2008). somente de doenças e casos de enfermidades, e não de saúde. 328 O geógrafo brasileiro Milton Santos, considerado um dos grandes influenciadores Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 Viver próximo à saúde em Belo Horizonte do movimento que compreendeu o processo Como mencionado, a definição da uni- saúde-doença na cidade como manifestação dade espacial do território é ainda controversa social, atenta, em sua vasta bibliografia, para nos estudos das condições de saúde no espaço a necessidade de estudar tal processo através urbano. Um dos principais desafios refere-se de questões espaciais e territoriais (Faria e Bor- ao fato de que os dados dos ERS são coletados tolozzi, 2009). Para auxiliar o estabelecimento segundo a lógica territorial do SUS, que esta- de tais análises, nos últimos anos, possantes belece sua unidade espacial com objetivos ad- ferramentas estão disponíveis para investigar ministrativos. Essa lógica comanda a referência as correlações entre Eventos Relacionados à espacial na visualização dos dados sobre saúde Saúde (ERS) e o espaço urbano. no território, constituindo-se em uma imposi- Entretanto, apesar do crescimento expo- ção administrativa ao sistema privilegiado de nencial do interesse pelo assunto em todo o informação, cujo custo pode mascarar singula- mundo, a maioria das pesquisas continua “não ridades das unidades. espacial” (Auchincloss et al., 2012). Os dados Adotar unidades espaciais diferentes espaciais são subutilizados assim como os ins- abre o caminho para a superação da invisibi- trumentos analíticos disponíveis. A definição lidade de algumas correlações entre saúde e de unidades espaciais tem gerado inúmeras espaço. Este artigo se propõe a apresentar uma bases, posto que várias instituições, ao pesqui- análise de um mesmo ERS, contido em distintos sarem os mesmos dados, criam novos recortes tipos de unidades espaciais, seja uma vizinhan- desconectados intersetorialmente e, por vezes, ça identificável, seja uma bacia hidrográfica, negligentes quanto à interoperabilidade. Esse seja um distrito sanitário, e que possa ser so- descompasso compromete recursos financeiros, breposto aos dados demográficos, socioeco- técnicos, pessoais e retarda a elaboração de nômicos, culturais e ambientais. Esse exercício políticas mais eficazes ou efetivas, negligen- permitirá visualizar a espacialização dos dados ciando certas unidades não cobertas e, portan- de acordo com o interesse do estudo, incorpo- to, não atendidas. rando os preceitos de simultaneidade analítica No Brasil, o uso do ferramental contem- e interação entre escalas diferentes. porâneo também tem se revelado um campo em crescimento (Barcellos e Ramalho, 2002) cuja consolidação tem ocorrido com a disponi- Estudo de caso bilização de dados de qualidade, a ampliação da capacidade computacional disponível e a A unidade de agregação mais adequada para capacitação profissional em GIS aplicado à avaliar o impacto de ações preventivas no es- Saúde. Um dos desafios contemporâneos é a paço urbano parece ser a área delimitada ao pesquisa de novas possibilidades metodológi- redor dos Centros de Saúde (Barcellos e Rama- cas para a compreensão da dinâmica urbana e lho, 2002) – sua hinterlândia, por critérios de o subsídio às ações de atenção à saúde (Perez, abrangência bem caracterizados. A Secretaria 2006), possibilitando uma base de dados dinâ- Municipal de Saúde da cidade de Belo Horizon- mica com coletas e consultas em tempo real. te (SMSA-BH) define as áreas de abrangência Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 329 Renato Cesar Ferreira de Souza et al. por homogeneidade socioeconômico-sanitária, profissionais de saúde, com base no tamanho isto é, áreas que reúnem espaços nos quais se de sua população e em critérios de vulnerabili- concentram grupos populacionais internamen- dade de cada área (ibid.). te homogêneos, tendo em conta as “condições objetivas de existência”. Segundo a SMSA-BH, [...] essas áreas permitem a condução da vigilância à saúde mediante ações interdisciplinares e intersetoriais conforme as características do grupo populacional residente. A microárea tem como unidades internas de análise e acompanhamento a moradia; espaço de vida de uma microunidade social, a família nuclear ou estendida. A moradia é o locus para o desencadeamento de intervenções de saúde, buscando a promoção do bem-estar da população. ( Áreas de Abrangência dos Centros de Saúde | Gestão Compartilhada, s/d) Entretanto, o conceito de abrangência é complexo, baseado no conceito de acesso ao serviço de saúde. Sua discussão, desde a década de 1950 (Travassos e Martins, 2004), constitui ainda hoje um campo fecundo de debate concernente à avaliação dos serviços de saúde. A dimensão tratada aqui é a técnica, relativa à planificação e à organização da rede de serviços, e merece ser incorporada às outras dimensões explicativas, tais como as da política, da economia e da cultura. A tentativa visa articular o referencial teórico e a definição conceitual aproveitando a diversidade de dados disponíveis sobre o tema em termos espaciais, escalares e temporais. Este estudo de caso foi realizado, confrontando a unidade de abrangência definida pela SMSA-BH e uma unidade espacial calcula da pela facilidade e importância no acesso peatonal e motorizado aos 147 UBS administrados pela SMSA-BH (Figura 3). Esses centros se encontram distribuídos em nove distritos sanitários e realizam mais de 2,5 milhões de consultas médicas por ano. No caso de alguma necessidade de tratamento, informações ou cuidados básicos de saúde, a população deve se dirigir ao centro mais próximo de sua residência e, nele, agendar consultas rotineiras e/ou especializadas, fazer exames, acompanhar doenças crônicas, obter vacinas e medicamentos, dentre outros serviços. Cada Método Através da rede viária da cidade foram calculadas as rotas mais econômicas na delimitação das áreas de abrangência de cada UBS. Para sumarizar esse processo, foram detalhadas as etapas a seguir, com a indicação dos comandos para o aplicativo ArcGIS Pro,1 extensão Network Analyst. Tais comandos têm correspondentes bem similares em outros aplicativos, tais como o QGis e o MapInfo, e o detalhamento neste artigo sumariza o método e permite sua adaptação para outras plataformas. ● Mapa das vias públicas UBS tem que cobrir uma área de abrangên- O mapa com a linha central (Centerline map) cia definida, delimitada segundo a densida- representando a rede viária do município de de populacional do distrito sanitário onde se Belo Horizonte foi obtido do site OpenStreet- situa. Essa área é atendida por equipes de Map2 (OSM), do projeto colaborativo para a 330 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 Viver próximo à saúde em Belo Horizonte Figura 3 – Localização dos centros de saúde da cidade de Belo Horizonte Centros de Saúde de BH Áreas de abrangência dos centros de saúde Limites dos distritos sanitários 1. Andradas 2. Céu Azul 3. Jardim Europa 4. Lagoa 5. Mantiqueira 6. Minas Caixa 7. Nova York 8. Santa Mônica 9. Serra Verde 10. Venda Nova 11. V. do Rio Branco 12. Copacabana 13. Jd. Leblon 14. Jd. Comerciário 15. Piratininga 16. Santo Antônio 17. Confisco 18. Don Orione 19. Itamarati 20. Itamarati II 21. Santa Amélia 22. Santa Rosa 23. São Francisco 24. Jd. Alvorada 25. Serrano 26. Pr. Joaquim Maia 27. Santa Terezinha 28. Betânia 29. Cabana 30. Cícero Ildefonso 31. Cj. Betânia 32. Havaí 33. Noraldino de Lima 34. Salgado Filho 35. São Jorge 36. Ventosa 37. Vila Imperial 38. Vila Leonina 39. vista alegre 40. Waldomiro Lobo 41. Palmeiras 42. Cj. Felicidade 43. Aarão Reis 44. Campo Alegre 45. Etelvina Carneiro 46. Floramar 47. Jd. Guanaraba 48. Guarani 49. Heliópolis 50. Jaqueline 51. Jaqueline II 52. Felicidade II 53. MG 20 54. Primeiro de Maio 55. Providência 56. São Bernardo 57. São Tomás 58. Tupi 59. Floramar 60. Novo Aarão Reis 61. Lajeado 62. Bom Jesus 63. Califórnia 64. Ouro Preto 65. Dom Bosco 66. Dom Cabral 67. Ermelinda 68. Glória 69. Jd. Filadélfia 70. Jd. Montanhês 71. João Pinheiro 72. Pe. Eustáquio 73. Pedreira P. Lopes 74. Elza Martins 75. Pindorama 76. Santos Anjos 77. São Cristóvão 78. Carlos Prates 79. Vera Cruz 80. Boa Vista 81. Alto Vera Cruz 82. Granja de Freitas 83. Novo Horizonte 84. Paraíso 85. M.A. de Menezes 86. Pompéia 87. Santa Inês 118. São Tarcisio 88. São Geraldo 119. Santa Lucia 89. Taquaril 120. Sta. Rita de Cassia 90. Horto 121. Cj. S. Maria 91. Mariano de Abreu 122. Carlos Chagas 92. Alcides Lins 123. Miguel Arcanjo 93. Cachoeirinha 124. B. das Indústrias 94. Capitão Eduardo 125. Diam./Teixeira D. 95. Cidade Ozanan 126. Independência 96. Efigênia M. F. 127. Itaipu / Jatobá 97. Cj. Paulo VI 128. Lindéia 98. Dom Joaquim 129. Mangueiras 99. Gentil Gomes 130. Milionários 100. Goiânia 131. Miramar 101. Maria Goretti 132. Pilar / O. d’Água 102. Marivanda Baleeiro 133. Regina 103. Nazaré 134. Santa Cecília 104. Pr. F. de Melo 135. Túnel de Ibirité 105. Ribeiro de Abreu 136. Vale do Jatobá 106. São Gabriel 137. Vila cemig 107. Vila Maria 138. Vila Pinho 108. São Paulo 139. Barreiro 109. Marcelo P. Gomes 140. Bonsucesso 110. Olavo Albino Correa 141. Tirol 111. São Marcos 142. Barreiro de Cima 112. Tia Amância 143. Úrsula 113. Menino Jesus 144. João XXIII 115. Cafezal 146. Leop. de Castro 117. Oswaldo Cruz 147. São José Fonte: os autores, com base em dados IBGE, 2010/PBH, 2014. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 331 Renato Cesar Ferreira de Souza et al. criação de um mapeamento gratuito e editável O cálculo da declividade média de cada de todos os espaços urbanos do mundo. A segmento das vias usou o modelo de cálculo vantagem do material oferecido por esse site mostrado na Figura 6, que é a vista do mode- gratuito é que as informações disponibilizadas lador matemático das operações, e pode ser estão em contínua atualização pelos colabora- compreendido por especialistas. O mapa da dores, com qualidade compatível ao Network centerline já ajustado teve cada um dos 49.885 segmentos de via divididos em três pontos para garantir uma melhor estimação da declividade dos setores de via. A seguir, utilizando o mapa com as feições das curvas de nível do município, foi criado um mapa clinográfico, e a declividade de cada ponto dos segmentos foi capturada numa nova tabela. A Figura 7 ilustra esse processo, apresentando uma camada espacial com a linha central dos segmentos de um trecho urbano. Produziu-se, com isso, um mapa das vias de todo o município de Belo Horizonte, contendo o valor da declividade para os três pontos, dos quais se calcularam a declividade média e o sentido aclive/declive. Analyst ARCmap. ● Composição do banco de dados para a análise da rede de vias públicas A seguir, esse mapa recebeu algumas informações adicionais para compor uma base de dados para o Network Analyst. Foram indicados o tipo de cada segmento (ruas, rodovias, becos, etc.), a velocidade máxima permitida para os automóveis e a declividade do segmento viário. Para que o módulo do Network Analyst funcionasse corretamente, a rede foi dividida em segmentos conectados por vértices, que representam as esquinas e as demais junções (Figura 5). Figura 4 – Todos os segmentos viários do Brasil Figura 5 – Split dos segmentos de vias Fonte: os autores, com base em dados da OSM (2014). 332 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 Viver próximo à saúde em Belo Horizonte Figura 6 – Model Builder ArcGis para determinação da declividade média das vias Vias CenterLine.SHP Feature Vertices To Points (START) Pontos no início dos Segmentos Feature Vertices To Points (MIDDLE) Pontos no meio dos Segmentos Feature Vertices To Points (END) Vias CenterLine.SHP (2) Extract Values to Points (INTERPOLATE VALUES) Create TIN Add Join Pontos no fim dos Segmentos Output raster (2) Curvas de Nível. SHP 3 Pontos de cada segmento com declividade Output TIN TIN do Raster Slope Output raster Vias com Declividades Fonte: os autores. Figura 7 – Ilustração das camadas sobrepostas para identificação de dados para os segmentos viários Fonte: os autores. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 333 Renato Cesar Ferreira de Souza et al. ● Implementação dos dados de impedância motorizado. A seguir, sumarizam-se os ele- A análise de redes viárias pode considerar pe- mentos presentes no cálculo desses dois tipos destres e veículos. Para o primeiro caso, leva de movimentos. em conta a velocidade média da caminhada A resistência oferecida aos pedestres das pessoas, assim como a variação de velo- e aos carros em seus trajetos é denominada cidades conforme a declividade das vias, o “impedância” nos estudos de GIS. Conforme sentido da caminhada (se subida ou descida) se mencionou, devem ser considerados valores e a idade do pedestre. Para o segundo caso, médios para as velocidades das caminhadas consideram-se as informações sobre a hierar- sob influências diversas, desde a declivida- quia das vias, o volume e o sentido do tráfego, de e idade dos pedestres, até a temperatura o sentido das conversões e as velocidades má- e densidade de pessoas nos passeios. Exis- ximas permitidas. tem hoje muitas pesquisas dirigidas ao as- No nosso caso, o movimento peatonal sunto (Daamen; Hoogendoorn e Bovy, 2005; foi prioritário, devido às características da ava- Hoogendoorn e Bovy, 2002; Hoogendoorn; liação do acesso às UBS pelos moradores. Já Bovy e Daamen, 2002). Aqui priorizamos o Grá- as condições de facilidade de movimentação fico 1, que relaciona a declividade em % (x) e a em função dos elementos da logística e do velocidade da caminhada em metros por minu- princípio de compartilhamento de recursos tec- to (y). Os valores negativos referem-se à decli- nológicos e de serviços especializados foram vidade em sentido descendente e os positivos, avaliadas para os valores do cálculo de tráfego em sentido ascendente (Bovy, 1973). Gráfico 1 – Velocidade e declividade no movimento de pedestres Fonte: Bovy (1973). 334 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 Viver próximo à saúde em Belo Horizonte Já, para o estudo de impedância dos análise intrassetorial. Limitamo-nos a indicar automóveis, a tabela dos segmentos viários a existência de uma vasta bibliografia sobre recebeu dados que armazenam a informação o algoritmo de Dijkstra, que pode servir aos acerca do sentido das vias para circulação dos interessados. Tal algoritmo foi aplicado a um veículos, declividade e sentido, largura da via, grande número de problemas a partir de 1956, velocidade e tipologia. Todos esses dados, co- quando foi concebido e se revelou uma formu- mo se disse anteriormente, foram retirados lação lógica e inovadora em diversos campos. do OSM, mas vale comentar que o software No desenho urbano, ele tornou possível várias ArcGIS 10.14 (2016) já permite a conexão do análises sobre a acessibilidade, sendo incorpo- aplicativo em tempo real com os bancos de da- rado em aplicativos contemporâneos (Steinitz, dos atualizados pelas instituições responsáveis 2012), como o ArcGis. pelo controle do trânsito, como acontece em A etapa final consistiu na criação de cidades como Londres e Paris, onde até o vo- duas redes, a partir da camada das vias lume de tráfego é disponibilizado nos sites das implementadas com as informações anteriores, prefeituras. Entretanto, as informações sobre o uma para análise dos movimentos de automó- sentido das vias foram suficientes para finalizar veis e outra para o movimento de pedestres. o conjunto de dados do mapa de segmentos Foi necessária a programação de um roteiro na de vias e possibilitou avançar com a análise linguagem Python4 para reconhecer a sinaliza- de rede através do aplicativo ArcGIS. Aquele ção de sentido das ruas da cidade, no caso da software utiliza algoritmos matemáticos disponíveis no módulo de geoprocessamento Network Analyst,3 os quais são baseados no algoritmo clássico de Dijkstra (Skiena, 1990) que permite o cálculo da rota de menor impedância (custo, esforço) entre um ponto e outro, no interior de uma rede – o que pode gerar uma análise da rede para automóveis. Igualmente, a rede para análise do movimento de pedestres demandou um roteiro associando os dados de velocidade e a declividade dos passeios, como anteriormente dito. A inserção desses roteiros foi feita na etapa do que se chama DataSetNetwork, ilustrado na Figura 9. Figura 8 – Atributos para a avaliação das regras do modelo matemático construído para os automóveis Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 335 Renato Cesar Ferreira de Souza et al. Esses scripts regulam a velocidade dos compreender a influência peatonal, a influência pedestres e calculam o tempo que eles gasta- de motorizado e a análise da localização-distri- riam para percorrer os segmentos de passeio. buição. Então, vejamos. A velocidade é determinada segundo a declividade do trecho, de acordo com o Gráfico 1. A partir disso, avaliaram-se os sentidos dos movimentos dos pedestres, se subida (aclive) ou se descida (declive propriamente dito). ● Influência Peatonal (Service Area)5 Nesta análise foram considerados os dados de pedestres e de automóveis para observar o comportamento no acesso às USB. A Figura 9 mostra o cálculo da área de abrangência das UBS, com tempos de caminhadas dos pedestres Resultados e análises de até 15 minutos. Ressalte-se que os parâmetros para esse cálculo foram as velocidades compreendidas em acordo com a declividade, O conjunto de dados trabalhados e relata- como explicitado anteriormente. Dessa manei- dos para a construção da base nos facultou ra, a Figura 9 mostra um acesso bastante redu- descrever alguns dos resultados para melhor zido pelo trajeto a pé, segundo os parâmetros Figuras 9 e 10 – Service Area com impedâncias de velocidade peatonal, considerando aclive e declive A Curvas isocrônicas de acesso peatonal aos Centros de Saúde – BH Curvas isocrônicas de acesso peatonal aos Centros de Saúde – BH Tempo de percurso a pé Tempo de percurso a pé área de abrangência do CS passeios e ruas áreas alcançadas a 30 min a pé área de abrangência do CS passeios e ruas Fonte: os autores. 336 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 Viver próximo à saúde em Belo Horizonte aqui adotados. Essa situação fica ainda mais e respiratórias. Entretanto, há poucos dados so- crítica nas UBS da Regional Barreiro, que pos- bre o que ocorre no Brasil. suem as menores áreas sob as curvas isocrôni- A junção dos polígonos da Figura 10 cas. Já o resultado mostrado no mapa da Figura sugere a existência de anéis isocrônicos que 10 considera o tempo de caminhada de 30 mi- comunicam as UBS em caminhadas de 30 mi- nutos. A comparação desses dois mapeamen- nutos. A área dos anéis pode se constituir num tos indica uma redução da área de influência indicador, mas ele tem pouca utilidade, uma da UBS e, simultaneamente, pouca correspon- vez que as curvas são calculadas pelo tempo dência em relação às áreas de abrangência de percurso nas ruas e passeios. Algumas UBS determinadas pelo SUS/PBH. Também dela po- do Barreiro, como por exemplo a UBS Olhos de-se concluir a necessidade de pesquisar con- D’água (marcada como A na Figura 9), tem a ceitos relativos às “distâncias caminháveis” na menor área de influência, caracterizada pela cidade – walking distance, walkability (Leslie et interferência da declividade. Finalmente, ou- al., 2007; Murekatete e Bizimana, s/d). Tais con- tra reflexão possível se refere à caracterização ceitos possuem muitas referências na literatura dos pedestres por idade que, numa pesquisa sobre saúde orientadas para doenças cardíacas futura, poderá indicar o estabelecimento de Figura 11 – Service Area de motorizados Curvas isocrônicas de acesso motorizado aos Centros de Saúde – BH Tempo de percurso a pé 5 10 15 área de abrangência do CS passeios e ruas Fonte: os autores. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 337 Renato Cesar Ferreira de Souza et al. velocidades diferentes para a abordagem. No estudo possibilita identificar e listar quais os caso em estudo, o padrão de velocidade foi números de domicílios e outros que estão so- generalizado para ser inclusivo, considerando bre a influência da UBS. Se for considerado pessoas acima de 65 anos. um indicador, será possível determinar quan6 tas conexões com domicílios serão suporta- A Figura 11 exibe o cálculo das áreas de in- das para a capacidade de cada UBS em inter- fluência das UBS acessadas por automóveis. valos temporais. ● Influência de motorizado (Service Area) Um problema relacionado ao estágio tecno- A exemplo de sobreposição de outros lógico do cenário brasileiro é a falta de dados dados, a Figura 13 apresenta o Índice de Vul- sobre otráfego de automóveis e pedestres. O nerabilidade à Saúde (IVS) e a população com volume do tráfego e a densidade peatonal são mais de 65 anos em cada setor censitário. O dados empíricos que necessitam de medição polígono continente de todas as retas de tem- atualizada, frequente e livre, durante todos os po poderia ser o agregador dos dados da po- dias do ano, para que seja possível alcançar pulação idosa, contribuindo para relocalizar se- alguma preditibilidade. No caso, foram consi- tores censitários de forma distinta, produzindo deradas as velocidades máximas dos segmen- áreas de agregação com indicadores que possi- tos de vias, o que não é um estado ideal e, de bilitassem maior homogeneidade espacial. Esta modo algum, preciso. Tal precariedade indica última observação expressa a necessidade de que os instrumentos baseados na impedância análises que favoreçam a reconstrução de no- temporal irão falhar nesse contexto, inviabili- vas unidades de agregação significativas, con- zando a utilização de algumas ferramentas do comitantemente com uma mudança conceitual Network Analyst ArcGIS, que tem potencial, como se mencionou anteriormente, de conectar-se à base de dados em tempo real das instituições reguladoras do trânsito. das UBS na sua relação com as vizinhanças. Conclusões Localização-Distribuição ( Location- Este estudo de caso pretendeu demonstrar a -Allocation) Esse tipo de teste permite visualizar as áreas ótimas de demanda a serem atendidas pela UBS. Essa análise resulta num conjunto de linhas que sintetiza o trajeto pelos segmentos de vias desde a UBS até o ponto de demanda, ou seja, pontos de endereços das edificações que possuem a menor impedância de tempo. A Figura 12 estabelece retas que vão de cada edifício da Regional Barreiro até a UBS mais econômica (menor impedância de tempo a pé). Diferindo da análise de Service Area, este potencialidade de investigações sobre o territó- ● 338 rio e a saúde, no que tange aos possíveis condicionantes espaciais de maior ou menor acesso às UBS em um contexto urbano de vivência, acenando para o enriquecimento do debate sobre os rumos da saúde no Brasil. Preliminarmente, o estudo verificou o conceito do centro de saúde de modo positivo e integrado à vizinhança. A seguir, expôs, de acordo com os parâmetros aqui adotados, um acesso mais reduzido pelo trajeto a pé, além de descrever algumas UBS com restritas áreas de Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 Viver próximo à saúde em Belo Horizonte Figura 12 – Location-Allocation com menor impedância de velocidade peatonal considerando aclive e declive Tempo de caminhada origem nas residências e destino Centro de Saúde Regional Barreiro Área de abrangência do CS Lines Tempo em minutos 10 minutos até 20 minutos até 30 minutos Número do domicílio Edificações Quadras Passeios e ruas Centros de Saúde Fonte: os autores. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 339 Renato Cesar Ferreira de Souza et al. Figura 13 – Location-Allocation sobreposições de dados: população idosa e Índice de Vulnerabilidade à Saúde (IVS) Tempo de caminhada origem nas residências e destino Centro de Saúde Regional Barreiro Área de abrangência do CS Tempo de caminhada aos CS’s 0 a 10 min 11 a 20 min 21 a 30 min Edificações Quadras Passeios e ruas Fonte: os autores. 340 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 Viver próximo à saúde em Belo Horizonte abrangência, sugerindo uma pequena área de O artigo permite concluir sobre a neces- influência e ínfima correspondência com a res- sidade de maior multiplicidade de informa- pectiva área administrativa. Essa ausência de ções de qualidade para o estudo de indicado- sobreposição tende a sugerir limitações entre res de Saúde Urbana através de ferramental as áreas (de influência e administrativa), o que analítico utilizando o GIS. Recomenda-se, compromete a eficácia de políticas planejadas também, a realização de pesquisas sobre para um recorte determinado. Tal descompasso conceitos relacionados às “distâncias cami- possivelmente oculta singularidades de áreas nháveis” e os impedimentos ou barreiras mais próximas ao que, de fato, ocorre na reali- constantes nos percursos, com a imagem da dade, em termos de obstáculos a uma redução cidade (Lynch, 1997). no tempo de deslocamento e de prestação do As reflexões aqui aquecem o debate no serviço. O estudo dos obstáculos do território que se refere às diversas definições e possibili- é assunto que carece de pesquisa longa e pode dades analíticas do que é um contexto urbano, ser tratado com as mesmas bases operacionais seja ele originado de um ponto de vista objeti- aqui descritas, detendo-se em verificações im- vo, como os setores administrativos, seja ele de portantes como modelos de percepção ambien- origem subjetiva, tais como a percepção/convi- tal, cognição e geografia (Wood; Kitchin; Bla- vência da vizinhança pela população adstrita a des, 2002) e saúde. um determinado território urbano. Renato Cesar Ferreira de Souza Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura, Departamento de Projetos, Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Belo Horizonte, MG/Brasil. [email protected] Veneza Berenice de Oliveira Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Medicina, Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública. Belo Horizonte, MG/Brasil. [email protected] Doralice Barros Pereira Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Geografia, Programa de Pós-Graduação em Geografia. Belo Horizonte, MG/Brasil. [email protected] Heloisa Soares de Moura Costa Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Geografia, Programa de Pós-Graduação em Geografia. Belo Horizonte, MG/Brasil. [email protected] Waleska Teixeira Caiaffa Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Medicina, Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública. Belo Horizonte, MG/Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 341 Renato Cesar Ferreira de Souza et al. Notas (1) "ArcGIS Pla orm - Esri", 2005. Disponível em <h p://www.esri.com/so ware/arcgis>. Acesso em: 26 dez 2015. (2) "OpenStreetMap Founda on Wiki", 2015. Disponível em: <h ps://wiki.osmfounda on.org/>. Acesso em: 4 jan 2016 . (3) "ArcGIS Pla orm - Esri", 2005. Disponível em: <h p://www.esri.com/so ware/arcgis>. Acesso em: 26 dez 2015. (4) "Welcome to Python.org", 2004. Disponível em <h ps://www.python.org/>. Acesso em: 20 abr 2016. (5) Service Area pode ser entendida como a área de influência de um determinado serviço ou edi cio. Essa análise considera a impedância para os tempos e deslocamentos de pedestres, conforme explicado. (6) Considerando a impedância para automóveis, como se explicou. Referências ALEXANDER, C.; ISHIKAWA, S. e SILVERSTEIN, M. (1977). A pattern language: towns, buildings, construc on. Nova York, Oxford University Press. 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Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016 Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada Suffering and working in the city in forced march Stela Cristina Godoi Resumo Para a história da cidade no século XX, os trabalhadores metalúrgicos e os motoboys são uma voz arquetípica que retrata a mentalidade de uma época. A cidade vista sob a ótica desses dois grupos profissionais revela a brutalidade do processo de aceleração do tempo social. Assim, neste escrito, as memórias de metalúrgicos do ABC paulista de meados do século XX e os relatos orais de motoboys da Região Metropolitana de Campinas, coletados em duas pesquisas distintas, enlaçam-se em um processo de “escovação da história do sistema de circulação da cidade a contrapelo”. Palavras-chave: cidade; trabalho; violência; automóveis; tempo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3602 Abstract For the history of the city in the 20th century, metallurgic workers and motorcycle couriers (known as “motoboys” in Brazil) are somehow an archetypal voice that portrays the mentality of an entire era. The city viewed in the perspective of these two social-professional groups reveals the brutality of the acceleration process of social time. Thus, in the lines below, the collective memoirs of metallurgic workers of São Paulo’s ABCD industrial belt in the mid-twentieth century and the oral autobiographical reports of “motoboys” in the Metropolitan Region of Campinas, collected in two separate surveys, intertwine in a process of brushing the history of the city’s circulation system against the grain. Keywords: city; labor; violence; cars; time. Stela Cristina Godoi Introdução No século XIX, Paris era considerada a capital da modernidade e, nessa condição, A cidade é “como a lâmpada para a mariposa. exerceu grande influência sobre a configuração Atrai e também mata”, assim afirmou o finado Philadelpho Brás, metalúrgico, sindicalista e memorialista da classe operária paulista, em tom carregado de sabedoria anciã. Por meio da licença poética concedida aos narradores, Philadelpho suscita uma reflexão sobre o caráter contraditório das relações sociais formadoras da cidade. À cidade associa-se a imagem da iluminação, à ideia de iluminação, associa-se a de modernidade. As luzes da cidade como fator de atração a revoadas de migrantes, de mariposas, entre a vida e a morte. Essas mariposas são o Carlitos de Charles Chaplin. Esse “herói solitário e triste” vagando pelo “deserto povoado pela multidão” em que se constitui a cidade (Ianni, 1989). São o homem da multidão de Edgar Alan Poe, o flâneur de Charles Baudelaire ou, ainda, o Mazzaropi, anti-herói caipira da autêntica modernidade brasileira. Mas a cidade não é uma abstração e, enquanto espaço de interação social, só ganha concretude histórica se associada à categoria temporal e se concebida dentro de um sistema social de produção e reprodução da vida. Desse modo, este escrito buscará promover uma reflexão sobre as mudanças na forma de ser-estar da cidade no bojo do desenvolvimento da indústria automotiva no Brasil, tomando o caso da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e da Região Metropolitana de Campinas (RMC) como base empírica dessa análise. Pretende-se, ademais, pensar a cidade como espaço simbólico do mundo moderno, o que torna necessário levar em consideração as metamorfoses da própria ideia de modernidade no interior da processualidade histórica do capitalismo. da vida citadina na RMSP e na RMC. Em mea- 346 dos do século XIX, com as reformas empreendidas pelo prefeito do Departamento de Sena, George-Eugène, o Barão de Haussmann, a cidade de Paris materializou as aspirações iluministas.1 Água, esgoto e gás encanados para evitar epidemias que tinham vitimado centenas de pessoas na primeira metade do século. Incontáveis desapropriações e demolições dos casarios para dar lugar às ruas largas e bem calçadas, aos bulevares e dezenas de novas edificações padronizadas, para evitar motins e barricadas, que num passado recente haviam ocupado o enredado das vielas e das ruas estreitas que caracterizavam a topografia do centro de Paris (Benjamin, s/d). Por sua vez, toda essa nova arquitetura parisiense havia sido inspirada no modelo londrino de urbanização, que estava à frente de toda a Europa na modernização da cidade, sobretudo pelo seu sistema de circulação urbano que, desde o século XVI, já chamava a atenção pela rede de vias fluviais, ferroviárias e rodoviárias que contribuíram para que Londres se tornasse o centro do mercado mundial (Wood, 2000).2 Entretanto, com as destruições promovidas pelas duas guerras mundiais no território europeu e o fortalecimento político-econômico e militar dos Estados Unidos da América, a partir de meados do século XX, a própria ideia de modernidade se metamorfoseia em resposta aos novos interesses de transnacionalização da indústria capitalista taylorista-fordista. Portanto, no contexto de hegemonia norte-americana, as cidades, sobretudo aqueles matizadas Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada pela dominação colonial, vivem uma nova on- todos os antigos bairros de Paris”, representa da de modernização que repercutiu na maior um sentimento de que a cidade antiga “não adequação de seus espaços de circulação para podia mais permanecer como era, mas a nova a espetacularização do consumo de automó- parecia demasiado horrível, sem alma e vazia veis. Ou seja, rodovias, grandes avenidas, mais para se contemplar” (ibid., p. 10). estacionamentos públicos e privados, tudo Todavia, o processo de racionalização para assegurar a livre circulação dessa mer- capitalista não poupou essa cidade industrial, cadoria-símbolo da modernização capitalista ela também foi sendo transformada, ao final no mundo subdesenvolvido. Assim, no Brasil, do século XX, na “cidade-mercadoria” marca- em meados do século XX, os bondes e os trens da por uma segregação de classes ainda maior. foram parando de prestar seu serviço no trans- Por trás dos muros dos condomínios fechados e porte de pessoas e foram sendo substituídos das novas barricadas urbanas dos territórios do pelos ônibus, caminhos, carros e, mais tarde, crime, a produção do espaço urbano, a partir pelas motocicletas. da década de 1990, encarna a face bipolar do Nesse sentido, para se compreender a ódio e da indiferença blasé ao outro (Caldeiras, transformação pela qual passam as cidades 2000). Ademais, a reestruturação produtiva do brasileiras e o modo de vida urbano no bojo capital promoveu uma mudança profunda no do processo em que a indústria automotiva mundo do trabalho e nas referências que pau- foi conquistando papel central no projeto de tavam e ritmavam a vida social. Amplia-se uma desenvolvimento nacional, é preciso levar em desconexão entre trabalho e empresa, tempo consideração a importância desses espaços de trabalho e tempo de não trabalho, formal e de circulação para a economia capitalista. Na informal, emprego e moradia. Nesse sentido, a medida em que a reprodução social desse sis- produção do espaço urbano é também a pro- tema societal depende da realização da mais- dução de determinados percursos instáveis e -valia através da distribuição, troca e consumo desiguais dos sujeitos pelo mundo do trabalho de mercadorias, as cidades tornaram-se o ner- precário e global das prestadoras de serviço vo essencial de uma economia cada vez mais terceirizadas, dos vendedores ambulantes, das capitalista e monetarizada, justamente porque empresas globais num mercado de consumo abrigaram as atividades ligadas à circulação de cada vez mais sedutor (Telles, 2006). bens e, consequentemente, ligadas à circulação de excedente (Santos, 1979). Assim, para pensarmos a violência implicada no processo de compressão do tempo- A década de 1960 é marco temporal im- -espaço que define a produção do espaço urba- portante também para as cidades europeias. no, buscamos compreender essa nova tessitura Com Harvey (2014) podemos asseverar que um entre trabalho e cidade através do aporte de novo cenário urbano reflete não só mudanças uma perspectiva epistemológica que historicize geopolíticas na divisão internacional do traba- a cidade a partir da experiência e da memória lho, como também micropolíticas. A imagem da “gente comum”,3 pois, quando pensamos a estampada em cartaz na década de 1960, de transformação da cidade, não basta fazer uma uma “retroescavadeira devorando vorazmente genealogia das ideias daqueles que, no mundo Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 347 Stela Cristina Godoi acadêmico, tentam compreender o processo. É contramão da marcha do progresso com uma preciso levar em consideração o chave heurística fundamental que foi pensar [...] papel desempenhado pela sensibilidade que surge das ruas que nos cercam, pelos inevitáveis sentimentos de perda provocados pelas demolições, [...], ou o desespero que provém do sombrio desespero da marginalização e da juventude ociosa perdida no puro tédio do aumento do desemprego. (Harvey, 2014, p. 12) a atuação dos sujeitos no processo histórico. Thompson (1981), criticando o estruturalismo althusseriano, propôs a inclusão de um termo ausente no sistema conceptual anterior: “a experiência”. Naquele sistema, a determinação e a autonomia aparecem como as duas pontas de uma mesma cadeia; enquanto, para Marx, segundo Thompson (ibid.), determinação e au- Promovendo nexos entre o passado, o tonomia são as duas formas de dizer a mesma presente e o futuro, Walter Benjamin apresenta coisa. Assim, através dessa outra concepção uma perspectiva histórica dialética que permi- proposta por Thompson, não se compreende te analisar essas metamorfoses da cidade ao a realidade histórico-social como um encadea- longo do desenvolvimento capitalista, de mo- mento mecanicista, mas sim como um processo do que a nostalgia do passado se constitua no histórico aberto. método revolucionário de crítica do presente Desse modo, tomando de empréstimo (Löwy, 2005). Dialogando com os historicistas, essas reflexões de Benjamin e Thompson, nes- refletindo sob o contexto histórico do fascis- te escrito, propõe-se olhar a cidade, bem como mo, Benjamin (1994) ensaia, nas teses “Sobre seus espaços de circulação e formas de sociabi- o conceito de História”, outro conceito de his- lidade, partindo das memórias e das experiên- tória, mediante o qual sejam desnudadas as cias do conjunto de entrevistados dos dois es- ameaças – promovidas pelo contínuo processo tudos desenvolvidos pela pesquisadora, sobre de modernização capitalista – que o progresso os metalúrgicos do ABC de meados do século técnico e econômico faz pesar sobre a humani- XX4 e sobre os motofretistas que atuam hoje dade: a transformação dos seres humanos em em Campinas,5 com vistas a realizar um proces- máquinas de trabalho, a degradação do tra- so de reconstrução da história do desenvolvi- balho a uma simples técnica, a submissão de- mento urbano paulista a contrapelo. sesperadora das pessoas ao mecanismo social. Nesse sentido, Benjamin (1994) alerta para a necessidade de que a história seja vasculhada a contrapelo. Segundo esse autor, partindo do princípio filosófico de que não há luta pelo futuro sem memória do passado, “escovar a história A transformação do transporte urbano no bojo do desenvolvimento capitalista a contrapelo” significa a recusa em se juntar ao cortejo triunfal dos vencedores e possibilita um No Brasil do final do século XIX e primei- salto para fora da marcha do progresso. ra metade do século XX, a ferrovia puxou a Num sentido similar, Thompson contri- expansão da cafeicultura. Na capital paulista, bui com esse esforço de análise histórica na via-se surgir a cada dia uma novidade diferente: 348 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada a eletricidade substituía o lampião a gás, chegavam os primeiros carros, cresciam as linhas de bondes elétricos e construíam-se grandes obras urbanas. Segundo Martins (2004), essas passagens simbolizam transformações sociais importantes, já a sociabilidade produzida pelo uso do bonde e do trem continha traços de uma sociedade tradicional em franca modernização: O bonde junta o que na sociedade tradicional não se juntava: o homem e a mulher desconhecidos, o padre e o protestante antagônicos. As pessoas se tocam, se encostam, empurradas no movimento incontrolável da máquina, da coisa, que simboliza o que a Cidade é. Ela tem força própria, dita o lugar das pessoas, quebra as regras, tumultua, confunde. (p. 203) A viagem de trem, tal como a de bonde, aparece viva na memória da maior parte dos trabalhadores que viveu em meados do século XX. De acordo com Certeau (1994), a viagem de trem expressava simbolicamente a experiência da vida moderna. O trem corta o espaço; a vidraça permite ver e os trilhos atravessar. O vagão alia o sonho à técnica e mergulha o viajante na melancolia de ver aquilo de que está separado (ibid.). Conforme mostra o relato de Philadelpho, a máquina parada parece monumental, um ídolo mudo: Passava um trem de manhã, outro trem de noite. De noite vinha para São Paulo. Então [...] para gente que estava com uns treze anos [...], ver aquelas Marias-Fumaças cheias de metais brilhantes, aquele condutor, o chefe da máquina fardado que parecia um general, era um encanto para alma da gente. Aquele vagão, restaurante que só dava fazendeiro, gente rica. Claro que a gente era pobre, estava lá na gaiola. Viajar de trem, embora a Mogiana Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 não era a melhor [...], aquilo foi a maior aventura de criança para mim [...]. (Philadelpho, metalúrgico, 2006) Assim, é interessante observar acerca das memórias narradas pelos metalúrgicos aposentados da RMSP que, ao mesmo tempo que, no olhar do presente, o trem e o bonde fazem parte de uma sociedade tradicional que remete a um passado pré-moderno, eles compõem também o quadro social da modernidade no Brasil. O estudo de memória desenvolvido por Hadler (2007) sobre a história dos bondes de Campinas também se depara com o mesmo paradoxo. A análise de dois momentos do discurso ideológico da modernidade, no início e em meados do século XX, permite compreender que se a substituição do bonde à tração animal pelo bonde elétrico foi vista, pela ideologia liberal do período, como um avanço na construção de sua modernidade. Sob o contexto mundial de hegemonia norte-americana, esse mesmo bonde elétrico que, há cerca de três décadas, era idolatrado como símbolo de elegância e modernidade pelas elites da cidade, passa a simbolizar o seu atraso (ibid.). Essa transição no sistema de transporte brasileiro pode ser observada também ao se analisar a evolução das redes férreas e rodoviárias ao longo do tempo. De modo geral, as estatísticas históricas do IBGE mostram que, a partir da última década do século XIX e início do XX, a malha ferroviária brasileira deu o seu primeiro grande salto, crescendo em quilômetros continuamente até 1970, quando o País veio a perder 16% da rede ferroviária que tinha uma década antes. Ao longo desse período, os estados de Minas Gerais e São Paulo destacaram-se com as redes mais extensas de ferrovias 349 Stela Cristina Godoi em tráfego, diminuindo em extensão na mesma um projeto de desenvolvimento dependente década em que há um declínio em todo o terri- que aqui se configurou. tório nacional. Assim, em virtude do projeto de desen- Considerando a evolução da extensão volvimento nacional-desenvolvimentista, de da rede rodoviária ao longo do tempo, as esta- caráter dependente, definido a partir da déca- tísticas históricas do IBGE mostram que houve da de 1950 no contexto de hegemonia norte- um crescimento contínuo da rede rodoviária do -americana do pós-Segunda Guerra Mundial, País desde 1954, quando contava com 302.147 as cidades brasileiras se transformaram em km de extensão. Entretanto, foram nos anos de verdadeiras passarelas para o desfile dessa 1965 e 1967 que o salto foi maior, iniciando mercadoria-símbolo da modernização capitalis- a década de 1970 com mais de um milhão de ta na periferia do sistema. quilômetros de via de rodagem, uma extensão Portanto, embora desde o final da Pri- quase quatro vezes maior do que a totalidade meira Guerra Mundial já viesse se dando a da rede férrea naquele período. Essa mudança implantação dessa indústria, foi, a partir do na estrutura do transporte no Brasil, em certa governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), que medida, está relacionada com a própria carac- ela passou a ter um papel de grande destaque terística do transporte ferroviário, o qual, de no desenvolvimento nacional. O automóvel acordo com Kurz (1996), trazia, do ponto de entra na história do desenvolvimento urbano- vista capitalista, uma imperfeição: -industrial brasileiro como o principal símbolo da concepção de modernidade que prevalecia Não no sentido tecnológico, mas, de modo mais fundamental, no sentido econômico e, de certa maneira, até espiritual. [...] Enfim, a ferrovia, do ponto de vista capitalista, possui uma mácula irrecuperável: a de ser necessariamente [...] um“bem público”. [...] A ferrovia é, a longo prazo, incompatível com o capitalismo, tanto em seu aspecto espiritual-intelectual, como no seu aspecto econômico”. (Ibid., p. 3) em meados do século XX. A vinda das montadoras de automóveis para o Brasil, organizadas dentro do padrão internacional de produção taylorista-fordista, atendia aos interesses das próprias corporações norte-americanas e europeias, em seus planos de transnacionalização no pós-1945. Portanto, ao final do governo JK, já existiam instaladas no País cerca de nove montadoras: Ford, General Motors, International Harvester, Entretanto, não se trata apenas de explicar o favorecimento dado ao transporte Mercedes-Benz, Scania-Vabis, Simca, Vemag, Volkswagen, Willys-Overland, dentre outras. rodoviário no desenvolvimento capitalista A respeito dessa enorme influência, eco- no Brasil somente pelo caráter público das nômica e ideológica, exercida por essas monta- ferrovias, uma vez que é sabido que países doras no desenvolvimento capitalista do século europeus totalmente mergulhados nas de- XX no Brasil, vale a pena sublinhar que, a des- terminações do capital continuam até hoje a peito de seu caráter hegemônico, o olhar de um utilizar amplamente o sistema ferroviário de metalúrgico que viveu esse contexto histórico transporte. Ou seja, tratou-se, sobretudo, de mostra as fissuras dessa ideologia: 350 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada Acabaram com as nossas ferrovias para por um produto das multinacionais na estrada [...] Eu acho que no futuro [...] haverá um choque muito grande, viu! Primeiro eu falo, puxa, onde é que vamos por tanta sucata?! Hoje você passa por aí, em qualquer lugar, nessas cidades grandes, o cara está derrubando uma casa antiga, para quê? Para fazer estacionamento. Você sabe que o automóvel[...] é um ícone nos países subdesenvolvidos. Então aqui, o cara só não leva o automóvel para dormir com ele, porque a mulher briga, né! [...] Então, automóveis todo mundo fabrica, no mundo inteiro fabrica, eu quero ver o que vai fazer, vai comer automóvel? Eu falo: “se vai comer automóvel começa pelo pneu e pelo estofamento que é mais mole!”. (Philadelpho, metalúrgico, 2006) consumo, já que o mercado de bens duráveis, como automóveis e eletrodomésticos, que sustentou a expansão econômica do capitalismo industrial até meados do século XX, havia se saturado nas décadas de 1960 e 1970. Nesse sentido, embora a década de 1980 possa ser considerada um marco do relativo recrudescimento da trajetória francamente expansiva da indústria automotiva no Brasil, não se pode afirmar que tal frenagem na produção e no escoamento interno da mercadoria-símbolo da modernidade capitalista tenha levado a uma mudança mais significativa do enfoque do sistema de circulação brasileiro, centrado no transporte rodoviário. Ao contrário, a frota de veículos continuou crescendo em todo o País. Mas, a despeito desses discursos contra- O estado de São Paulo tem atualmente -hegemônicos, a trajetória de crescimento da a maior concentração de automóveis, cami- indústria automotiva no Brasil, definindo os ru- nhões, ônibus e motocicletas do País. Uma mos do desenvolvimento econômico nacional, frota de veículos cerca de 10 vezes maior do manteve-se firme até 1980, quando o quadro que a de estados grandes e populosos, como econômico de estagflação (estagnação da pro- o Rio de Janeiro, conforme apontam os dados dução com inflação) e endividamento externo, fornecidos pelo IBGE-estados referente a 2010. agravado pelo cenário internacional de reces- Por sua vez, é ainda mais alarmante o poder são econômica e social, colocou obstáculo a de mercado da indústria automotiva e de to- essa tendência de expansão de vendas dessas do seu ideário individualizante, que predomina corporações no mercado interno. Desse modo, nas grandes cidades paulistas: o fato de que a os fabricantes de veículos e autopeças aqui cidade de São Paulo sozinha tem uma concen- instalados buscaram intensificar a exportação, tração de automóveis maior do que o Estado em um contexto mundial de transformações inteiro do Rio de Janeiro ou do Paraná. produtivas, que impactaram em exigências Portanto, desdobramento do próprio de preço, qualidade e entregas internacionais crescimento do transporte privado e individua- (Pinto, 2006). lizado de automóveis são os congestionamen- Tais transformações, por sua vez, consti- tos e o aumento da frota de motocicletas. No tuíram-se na resposta do capital diante de sua estado de São Paulo a frota de motos é de crise estrutural, instaurada a partir dos cho- 3.322.544 unidades. Destas, cerca de 20% ques do petróleo de 1973 e 1979, e deviam- se concentram na capital e 3% em Campinas -se, em partes, à saturação da norma social de (89.011unidades). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 351 Stela Cristina Godoi Ou seja, paradoxalmente à resposta dada desse período analisado representava 70% da pelo empresariado diante da crise estrutural do frota total, passou a 58,8% em 2008, as mo- capital – ao reestruturar o padrão de produção tos, que representavam 11,5%, subiu a 24,0%, taylorista-fordista sob influência do ideário aumentando sua representação no conjunto de toyotista, visando à uma aceleração do tempo veículos em circulação. 6 de giro do capital –, o consumo em massa de veículos impôs limites à realização dessa necessidade de maior velocidade-mobilidade, na medida em que os frequentes engarrafamentos de veículos tornaram o “automóvel” um “autoestático” (Kurz, 1996). Desse modo, essa dinâmica contraditória do padrão produtivo que Kurz (ibid.) chamou de “capitalismo automobilístico” produziu não uma superação dessa norma social de consumo de automóveis, mas sim uma nova demanda para o mercado de motocicletas, instaurando uma vivência de mobilidade urbana extremamente conflituosa, em que carros, ônibus, caminhões, vans e motocicletas disputam um espaço. Embora, desde fins da década de 1960, já existissem alguns modelos de veículos de duas rodas em circulação, tal como as lambretas, foi, a partir da década de 1980 e, sobretudo 1990, que a frota de motocicletas cresceu aceleradamente. De acordo com os dados do Mapa da Violência de 2011 sobre o crescimento da frota de veículos na década 1998-2008, nesses anos a frota total do País cresceu uma média de 8,4% a.a., enquanto a frota de automóveis cresceu em média 6,5% a.a. e a de motocicletas, por sua vez, cresceu em média 17,2% a.a., mais do que a média geral. Ou seja, não só o trânsito se tornou mais sobrecarregado por conta do maior número de veículos de todos os tipos que passou a circular, como a tendência de distribuição da frota se inverteu. Enquanto os automóveis, que no início 352 Alguns fatores interferiram para essa mudança de cenário do trânsito. Além do processo de “compressão tempo-espacial” que se acirra na década de 1990, em resposta à crise estrutural do capital, tornando as motocicletas uma opção de transporte mais interessante pelo seu menor custo e maior agilidade, outro fator de estímulo para a massificação de seu uso, a partir dessa década, foi a instalação de indústrias de ciclomotores no País. Desse modo, no conjunto das grandes corporações que contribuíram para o desenho da rede de transporte que se tem hoje no Brasil, estruturando noções de organização eficiente do espaço e aceleração do tempo, a Honda teve liderança desde sua instalação no País, em 1971, apresentando hoje uma dominância de cerca de 90% do mercado brasileiro. A Honda soube explorar de modo exemplar, por meio do slogan “Asas da liberdade!”, o desejo frustrado de liberdade substantiva de que o indivíduo moderno padece, sobretudo no contexto em que o seu direito liberal de ir e vir é questionando pelo caos urbano gerado pelas operações logísticas just in time. Desde o início da crise estrutural do capital e da reestruturação produtiva, passou-se a operar uma transformação qualitativa do complexo produção-circulação de mercadorias. As cidades, antes meros espaços de circulação apartados da produção direta de mais-valia, transformaram-se em extensões da indústria taylorista-fordista toyotizada. A lógica do just in time externalizou os estoques das “fábricas Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada enxutas” para as ruas da “cidade fabricaliza- “outro”, que não conseguem mais reconhecer. da”, saturando a cidade de caminhões e mo- A “cidade-mercadoria” surge como crise. tocicletas obstinados em assegurar o fluxo de Desse modo, conforme afirma Telles mercadorias e informações, ao mesmo tempo (2006), na produção do espaço urbano da “ci- que continuou a gerar incessantemente a ne- dade-mercadoria” que emerge com a globali- cessidade do consumo de meios de transporte zação, o outro lado da “cidade de muros” não individualizados, que permitissem a completa é a suposta (e falsa) democratização da “nova sincronização de toda a população a esse tem- sociedade do consumo”. A questão é outra: po certo (Ferrari, 2012). Assim, levando em consideração essa complexificação da frota urbana de veículos, buscar-se-á desenvolver, a seguir, uma reflexão sobre as repercussões dessas transformações na estrutura do transporte sobre a forma de sociabilidade nos espaços de circulação da cidade, partindo da prerrogativa de que a experiência dos motofretistas, categoria de trabalhadores caricatos do padrão just in time de produção, fornece pistas importantes sobre o modo de ser da sociedade contemporânea. Violência no trânsito e expropriação do tempo na “cidade fabricalizada” [...] Pois nesses tempos de globalização, seguindo os movimentos acelerados de desterritorialização do capital, a riqueza social mobiliza os “artefatos urbanos”, [...] no mesmo passo em que se vai ampliando a inadimplência generalizada. Qualquer um que circule pelos bairros das periferias mais pobres haverá de encontrar a parafernália do consumo moderno e pós-moderno, e haverá de encontrar o morador pobre desses lugares mais-doque-pobres exibindo, junto com a fatura de uma dívida sempre adiada, as versões populares (ou nem tanto) dos cartões de crédito que também chegaram por lá: é a financeirização do popular fiado. (Telles, 2006, p. 6) Assim, como nunca, na atual conjuntura da organização socioeconômica capitalista, a cidade caracteriza-se pela subordinação do es- Demolições, alargamento das ruas, construção paço pelo tempo e pela reificação das relações de shoppings e de estacionamentos fazem par- sociais que coisifica os homens e humaniza as te da memória coletiva daqueles trabalhadores coisas (Ferrari, 2012). da cidade industrial que assistiram à transfor- Tal conjuntura produz uma interação mação da cidade como a sua própria ruína. profundamente hostil entre os condutores de Seus relatos sobre a metamorfose da São Paulo veículos, pedestres e ciclistas que dividem cortada pelas ferrovias à “capital do automó- o espaço das vias públicas, a qual repercute vel” se estruturaram pela vivência do desem- diretamente sobre os motofretistas que tra- prego de seus filhos e netos. Assim, a “cidade- balham nesse espaço antes improdutivo para -mercadoria”, que emerge com a globaliza- o capital, os espaços de circulação da cidade, ção, aparece, na memória dos trabalhadores para onde a produção capitalista se transbor- industriais de meados do século XX, como um da na contemporaneidade. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 353 Stela Cristina Godoi Assim, os inúmeros relatos coletados durante o trabalho de campo da pesquisa, narrando episódios de desentendimento entre motofretistas, caminhoneiros e motoristas de ônibus e carros em Campinas, apontam para essas situações de conflito no trânsito que fazem parte de uma condição de trabalho permanente na vida desses trabalhadores. Sobre isso, Gilberto se recorda de um episódio de que foi vítima de uma agressão verbal: [Um dia] uma senhora de Corolla veio e bateu [em mim]. E eu [estava] parado. [...] Eu olhei para ela e falei: “Minha senhora, a senhora não me viu aqui? A senhora bateu na minha perna, podia ter acontecido uma coisa pior?”. Ela abaixou o vidro, falando no celular e falou um monte de palavrão. É inacreditável. [...] Eu fiquei doido com ela. Eu falei: “Minha senhora, a senhora é doida?”. Aí, os motoqueiros que estavam [perto de mim], [...] viram aquilo e eles ficaram bravos. Eu não precisei tomar atitude nenhuma. [...] Cada um que passava dava um chute. (Gilberto, motofretista, 2010) O mesmo depoente dá um testemunho sobre a inimizade que vem se naturalizando entre caminhoneiros e motofretista, que fornece mais elementos para se analisar os reflexos da reificação do ser social sobre as relações ele tem que fazer o serviço dentro do horário ou ele está fora. (Gilberto, motofretista, 2010) O relato acima aponta, não só para o espectro de hostilidade que ronda as relações sociais no trânsito das cidades, mas também para a subsunção desse espaço de circulação do capital, em que se constitui a malha viária, ao tempo e ritmo impostos pela acumulação flexível, caracterizada pelo ideário da produção just in time. O depoimento mostra a subversão total do controle do tempo a que os motofretistas estão submetidos, “um tempo que não é seu”, um ritmo que lhe é determinado seguir. Esse sentimento de um tempo irrefreável, de um ritmo que não se pode conter, que de certo modo está presente na experiência subjetiva de todos os seres humanos da contemporaneidade, traduz de modo preciso a vida objetiva desses trabalhadores sobre duas rodas, mergulhados no processo contraditório de fabricalização das cidades. Esse processo de fabricalização se constitui, de acordo com Ferrari (2012), em um extravasamento do modo de trabalho dos antigos lugares específicos de produção com vistas a imprimir um ritmo acelerado a todos os contextos sociais e territoriais que compõem o espaço ampliado da produção just in time: que se estabelecem no espaço urbano: Hoje eu trabalho com caminhão e ouço muito os caminhoneiros [dizerem] [...]: “Eu esqueci o meu gancho de pegar motoqueiro lá em São Paulo”. Então assim, [os “motoboys”], eles são muitos, quem dirige em São Paulo vê como eles passam buzinando, desesperados para fazer um trabalho que não é deles, para cumprir uma ordem de estar ali, para cumprir um horário, às vezes não é imprudência dele, 354 O timing necessário e específico ao capital como relação social hegemônica não é imposto apenas no chão de fábrica, ou na suposta loucura das bolsas de valores. A circulação de coisas, pessoas e informações no cotidiano das grandes cidades impõe um ritmo intenso a todos, trabalhem ou não no chão de fábrica, escritórios ou bolsas de valores. Os tempos exigidos para um motoboy entregar um documento, para se desenvolver uma tese acadêmica Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada ou formar alunos no ensino fundamental, médio e universitário são continuamente comprimidos. (Ferrari, 2012, p. 37) Esse extravasamento da produção just in time para toda a sociedade, que define o processo de fabricalização das cidades, deve-se, por sua vez, ao atendimento das necessidades atuais da dinâmica do capital. Após a reestruturação produtiva ter reformulado o processo produtivo do lado de dentro dos muros da fábrica, para sua plena execução fez-se necessário que outras instâncias se sincronizassem a esse tempo tido como certo, como, por exemplo, os fornecedores terceirizados localizados fora das unidades fabris e toda a malha viária das cidades que se transformou em extensão da linha de montagem dessa fábrica supostamente enxuta, limpa e silenciosa, idealizada pelo toyotismo (ibid.). Ou seja, a despeito do discurso ideológico, que engraxa a engrenagem dessa produção “flexível”, sustentar-se na idealização de uma produção essencialmente imaterial e em tempo Desse modo, na medida em que a produção e reprodução da vida material da sociedade não prescindem da sua materialidade no espaço e no tempo, o conjunto de meios de racionalização e sincronização de tempos de trabalho e fluxos de mercadorias, que se constituiu no componente técnico-organizacional do ideário toyotista de uma produção sem estoque e no tempo certo, implicou a transferência do ônus das operações logísticas para a sociedade civil e seu poder local. Segundo Ferrari (ibid., pp. 42-43): Na era dourada do capital, as cidades sediavam fábricas consideradas lugares relativamente à parte; hoje, tornaram-se espaços de estoques das mercadorias em trânsito, receptáculos de verdadeiras esteiras fordistas estendidas entre as fábricas. Ao contrário de serem sóbrias, limpas ou de serviços, são cidades fabricalizadas, que acolhem atividades de todo tipo como extensões urbanas da própria fábrica, acolhendo um imenso proletariado urbano que cada vez mais se multiplica e se fragmenta. real, conforme afirmam os ideólogos de uma concepção de sociedade da informação que prescinde do trabalho: Com o extravasamento da produção para além dos muros das fábricas tratou-se, portanto, de socializar os custos da gestão do Sabemos que, pelo menos por enquanto, pessoas, cachorros, automóveis e outros valores de uso não trafegam por fibras óticas. [...] Caminhões, automóveis e motos existem de modo presencial, não virtual, transitam em espaços físicos (não em fibras óticas), percorrem vias em tempo material não nulo, além de transportarem mercadorias que, para serem produzidas, ocuparam também tempos de produção e espaços concretos, materiais [...]. (Ibid., p. 48) Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 caos dos tempos e dos espaços urbanos. Desse modo, a aparente desordem que domina o cenário urbano é a ordem do capital na contemporaneidade, é a ordem da cidade fabricalizada (ibid., 2012). Nesse sentido, a hostilidade que permeia a vida social nos espaços públicos da cidade e que atinge tão diretamente os motofretistas, na forma de ameaça física e psíquica permanentemente enfrentada em seu processo de 355 Stela Cristina Godoi trabalho, não pode ser explicada sem se levar como um fator de doença física e psíquica, co- em consideração essa determinação objetiva mo fator de sofrimento. da atual forma de ser do modo de produção e reprodução social do capital. Esse tipo de constrangimento com vistas a intensificar o trabalho não se constitui, toda- Além desses testemunhos acima analisa- via, em uma particularidade vivenciada indivi- dos em que os motofretistas figuraram como dualmente pelos trabalhadores entrevistados, vítima de agressões de outros condutores de mas se trata de um aspecto geral da organiza- veículos, muitas vezes a situação se inverte, e o ção do trabalho nos espaços de circulação da motofretista aparece como o agressor, impulsio- cidade fabricalizada, conforme atenta Ferrari: nado por essa sociabilidade urbana marcada pela hostilidade, conforme mostra o relato abaixo: Esses tempos atrás eu fiquei com dó do cara, mas ao mesmo tempo eu fiquei com raiva dele, eu quebrei o retrovisor dele, ali na Bambini. Eu estava com pressa para fazer o serviço, isso já era quase seis horas da tarde. Eu precisava fazer, devolver ao Banco para sair e voltar para casa. Aí eu vi que ele me viu no retrovisor, [...] [mas] na hora que ele viu que eu ia encostar, ele me fechou. Aí não teve jeito, pus os dois pés na frente e acelerei a moto. Ao invés de eu parar a moto, eu acelerei. O pior é que eu quebrei o retrovisor dele e de um coitado que estava no lado que não tinha nada a ver, então me deu dó do rapaz que estava do lado. Na cabeça eu fiquei pensando, porque ele fez isso? Pra quê? Eu estou trabalhando! Não estou me divertindo, isso não é uma diversão. Talvez o cara pensa que é diversão. É uma profissão igual a todas as outras. (José, motofretista, 2010) Assim, o sentimento de irritação e cansaço que resulta da vivência desse ambiente de hostilidade e do frequente risco que os motofretistas correm ao terem que disputar as ruas da cidade com os carros, ônibus, peruas, cami- Para realizarem as entregas no almejado tempo certo e manterem a continuidade do fluxo da produção, trabalhadores viário e rodoviário de carga, por exemplo, enfrentam toda sorte de obstáculos. Além de intensificação do trabalho pelo aumento do número de viagens/dia, esses trabalhadores chegam a ser pessoalmente penalizados com multas por atrasos – racionalidade interiorizada e justificada como garantia de eficácia do processo produtivo. [...] A adoção atual do lema “tempo é dinheiro” resulta na compressão do espaço pelo tempo. (Ibid. p. 27) Esse cenário descrito acima por Ferrari aparece, por sua vez, exemplarmente retratado no relato de um entrevistado do estudo que comenta sobre o desgaste que sente em sua profissão: É estressante! E é complicado por causa disso, porque há cobrança. Porque hoje em dia, infelizmente, se [você] pega três serviços para fazer e pergunta qual é mais urgente. Vão te responder: “Todos, todos são urgentes!”. Todo mundo hoje tem pressa, porque o tempo, hoje em dia, nada mais é que dinheiro! (Paulo, motofretista, 2010) nhões, em condições completamente desfavo- Esse relato deixa claro que, se o ritmo ráveis ao respeito mútuo, apresentou-se como acelerado da atividade de motofrete é uma um aspecto marcante da experiência deles, decorrência da própria dinâmica atual do 356 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada processo de reprodução ampliada do capital, Como consequência dessa mudança es- na conjuntura da subsunção do espaço am- trutural na experiência temporal, uma nova pliado da produção ao ideário do just in time, subjetividade precisa ser moldada. O novo ti- o risco de morte a que os motofretistas estão po de consentimento construído pelo toyotis- submetidos é consequência direta da pressão mo pressupõe uma sociedade com indivíduos exercida pela organização do trabalho para condicionados a permanecer em sincronia a execução do trabalho numa cadência sin- constante com esses ritmos de trabalho (ibid.). cronizada a um tempo definido como certo, a Conforma, portanto, um novo tipo de subjetivi- cadência da realização da mais-valia dentro da dade moldada pela máxima: Right man in the atual dinâmica da acumulação. rigth place, on the right time, a qual é caricaturalmente representada nas exigências feitas aos motofretistas na contemporaneidade. Para explicar essa dimensão da produção just in time que se transborda para a vida interior do sujeito, Alves (2005) cunha um conceito que contribui para o entendimento do desgaste psíquico que decorre das condições de trabalho enfrentadas nas cidades fabricalizadas. Em uma reflexão sobre o impacto da compressão do tempo e do espaço na organização do tráfego corpo-mente, o autor refere-se a um processo de “compressão psicocorporal”, como uma forma de moldagem do corpo rígido do taylorismo-fordismo, para a flexibilidade do toyotismo, mantendo, ao mesmo tempo, esse corpo útil ao novo modo de produção e alargando o raio de ação do sofrimento do trabalho por meio de seu deslocamento para a mente. Assim, buscando aprofundar o entendimento desse mecanismo de “compressão psicocorporal”, é importante chamar a atenção para os dois elementos ontológicos que compõem esse binômio sugerido no conceito, corpo e psique. O corpo, “elemento ineliminável do sujeito” (ibid.), pressupõe uma materialidade que ocupa lugar no espaço. Por sua vez, o tempo é a “a condição ontológica do psiquismo” (Kehl, 2009). Por fim, cabe chamar a atenção para o fato de que, ainda que a morte não seja um desfecho obrigatório dessas trajetórias de trabalho na cidade fabricalizada, diante dessa conjuntura de pressão da organização do trabalho, somada ao espectro de hostilidade e violência que, de modo geral, permeia a sociabilidade urbana, o resultado não poderia ser outro para aqueles que passam aproximadamente 15 horas de seu dia sobre uma motocicleta: memórias de muitos acidentes, vividos ou assistidos, corpos e mentes, marcada intensificação do trabalho. Então, é nesse jogo arriscado de desafiar o perigo, no limite entre a vida e a morte, que esses homens e mulheres vêm realizando o seu trabalho, numa sincronização alienante ao tempo exigido pela produção just in time. Desse modo, a cidade que “se assimila – e se desenvolve, contraditoriamente, na medida de um tempo real tornado expressão mítica das sociedades contemporâneas” (Ferrari, 2012, p. 37), produz efeitos psíquicos devastadores, que podem ser sentidos, não só por essa categoria profissional, mas por tantas outras que estão submetidas ao mesmo processo de compressão dos intervalos de tempo, tais como os operadores de telemarketing, os bancários, os caminhoneiros, os corretores de bolsa, etc. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 357 Stela Cristina Godoi Desse modo, o acirramento da compres- Diante da imersão de toda a sociedade são do espaço pelo tempo não poderia deixar nessa relação brutal com o tempo, que pro- de ter impactos acentuados sobre a vida psí- move um processo de banalização da morte quica dos sujeitos, como mostram não só os no seu sentido mais abrangente, os motofre- relatos dos trabalhadores entrevistados, como tistas buscam, na solidariedade entre seus também a própria epidemia social de depres- iguais, um refúgio. Os inúmeros episódios de são e outras formas de mal-estar emocional mútuo socorro em situações de acidentes ou da civilização contemporânea. A organização conflitos no trânsito, que são tão característi- toyotista da produção e da vida social amplia cos da experiência de classe dessa categoria, o sofrimento para a mente, uma vez que abala constituem-se, portanto, numa resposta a esse justamente a qualidade da experiência do tem- cenário de insegurança, solidão e sofrimento po. De acordo com a análise de Kehl acerca da psíquico que aflige de modo muito intenso es- depressão na contemporaneidade: ses trabalhadores. [...] é razoável supor uma relação entre o aumento dos casos de depressão e a urgência que a vida social imprime à experiência subjetiva do tempo. A temporalidade tecida de uma sequência de instantes que comandam sucessivos impulsos à ação, não sustentados pelo saber que advém de uma prévia experiência de duração, é uma temporalidade vazia, na qual nada se cria e da qual não se conserva nenhuma lembrança significativa capaz de conferir valor ao vivido. (2009, p. 116) Ou seja, na medida em que essa temporalidade contemporânea, vivida como pura pressa, atropela a duração necessária para o exercício do compreender, é possível se ter a dimensão do sofrimento que a exigência de execução das tarefas no menor tempo causa sobre os motofretistas, impulsionando-lhes para a morte, do corpo e da mente. Segundo Kehl: [...] mal nos damos conta dela, a banal velocidade da vida, até que algum mau encontro venha revelar a sua face mortífera. Mortífera não apenas contra a vida do corpo, em casos extremos, mas também contra a delicadeza inegociável da vida psíquica. (Ibid., pp. 16-17) 358 Desse modo, a atitude corporativa, e por vezes agressiva, dos motofretistas em seus enfrentamentos nas trincheiras da cidade, que incomoda a sociedade e indigna a opinião pública, deve ser entendida como uma compensação psíquica necessária para suportar viver um tempo que autodisciplina o corpo e o espírito para o consentimento ao próprio sofrimento, que fragmenta a luta política em busca de melhores condições de trabalho e que, sobretudo, corrói o tempo, o “tecido da vida”,7 do qual depende a qualidade do tráfego corpo-mente. Assim, trata-se de compreender que essa experiência de aceleração do tempo, que influenciou o próprio desenvolvimento da atividade de motofrete, delimitou não apenas uma mudança técnica ou econômica na forma de produção e circulação de mercadorias, mas implicou, sobretudo, uma nova tessitura da vida social e psíquica, que produziu desdobramentos profundos de ordem cultural. A transformação do tempo em velocidade e do espaço em simples meio de circulação produziu uma experiência social marcada pelo “apagamento de milhares de percepções instantâneas às quais nos limitamos a reagir Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada rapidamente para em seguida, com igual ra- o estresse da vida urbana na “cidade fabricali- pidez, esquecê-las” (Kehl, 2009, p.17). Assim, zada”, permite-se que uma determinada men- imersos no torpor da vida cotidiana, ainda que talidade se perpetue. A concepção metódica, o encontro com um acidente de trânsito envol- racional e disciplinada de vida que Max Weber vendo um motoqueiro ou o reconhecimento do considerou a alavanca principal do capitalismo, sofrimento emocional de um entregador que se metamorfoseou-se em uma forma de domina- perdeu no transporte de sua mercadoria des- ção legitima sobre os corpos que disciplina, oti- pertem, no exato momento, algum sentimento miza seus movimentos, reprime e viola direitos de compaixão e identificação, no instante se- civis e humanos. guinte será esquecido pela sequência irrefreável de intervalos de tempo vazio. Os motofretistas interpelam, portanto, Considerações finais sentimentos de inveja pela sua capacidade de fluir pelo caos urbano como ninguém consegue Este escrito buscou reconstruir o longo perío- e de indignação pela sua falta de compostura do histórico de constituição e crise da vida social ao realizar o tempo definido como o cer- citadina, em duas importantes metrópoles do to. Mas seu modo de ser e de agir provoca a sociedade, sobretudo, porque a “loucura” de sua pressa aponta o dedo para a “loucura” que é de todos, ou seja, coloca todos os indivíduos na posição incômoda de ter que se defrontar com a feiura e a brutalidade de sua relação com o tempo, com o espaço e com a vida social. Ademais, a experiência de violência nesse contexto histórico em que se dá a formação da categoria motoboy e que é partilhado por todos nós na experiência urbana, é uma experiência de violação de direitos individuais ou civis de grande extensão. A violência urbana analisada por Caldeiras (2000), manifesta-se sobre os corpos de cada um (não só dos motoboys) e produz certo tipo de “corpo político”, o “corpo não circunscrito”. A nossa “democracia disjuntiva”, em que se expandem direitos políticos e sociais enquanto se desrespeitam direitos civis e humanos, corpos simbólicos são eleitos como a essência do mal. Os motoboys, no cenário da “cidade fabricalizada”, vêm operando esse tipo de mecanismo simbólico. Ao simbolizar todo sudeste brasileiro (RMSP, RMC), erguidas sobre Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 os interesses de mercado das corporações do automóvel, desde a sua implementação em território nacional no contexto do padrão de produção taylorista-fordista até a sua adequação ao ideário da produção just in time. Tratou-se, desse modo, de uma análise da forma de ser-estar dos espaços de circulação da cidade a partir da experiência de duas categorias de trabalhadores que foram capazes de representar os elementos contraditórios da sociabilidade no Brasil que se pretendeu moderno: os metalúrgicos e os motofretistas. Para além de uma história da cidade, os acontecimentos vivenciados e relembrados pelos sujeitos dessa história, apesar de dispersos no tempo e no espaço, integraram-se, permitindo apreender o processo de formação da classe trabalhadora urbana brasileira, para o qual as migrações se constituíram em ingrediente demográfico e cultural fundamental. Por sua vez, ao voltar-se para as experiências recentes de trabalho dos motofretistas, observou-se 359 Stela Cristina Godoi também que grande parte desses trabalhado- Nesse sentido, na condição de elos da res sobre duas rodas tem um passado migra- produção capitalista cindida pela reestrutu- tório, de tal forma que a noção de que o de- ração produtiva, que externalizou parte da senvolvimento urbano-industrial não pode ser produção em nome de um ideário de fábrica explicado sem considerar as migrações, defen- enxuta, limpa e silenciosa, esses trabalha- didas por Hobsbawm (2000), foi reforçada. dores sobre duas rodas asseguram a atual Debruçando-se sobre a experiência des- logística da acumulação, caracterizada pelo ses que realizam o transporte de mercadorias e processo de compressão do espaço pelo tem- documentos utilizando suas motocicletas, per- po. Seu papel social é, acima de tudo, viabi- correndo os espaços de circulação das cidades lizar a aceleração do processo de produção- em um contexto em que a mobilidade urbana -distribuição-troca-consumo. Assim, o que é permanentemente ameaçada pelo inchaço se espera deles é velocidade e, por isso, eles da frota de veículos, foi possível refletir sobre têm pressa. Portanto, seu modo de trabalho as repercussões de longo prazo do processo de é a caricatura, frequentemente renegada pela modernização capitalista dentro de uma eco- sociedade, de uma sociabilidade hostil e des- nomia dependente, reverente aos interesses de gastante, fundada na sincronização alienante mercado das grandes corporações, tais como a ao tempo, cada vez mais curto, da realização indústria automotiva. da mais-valia. Stela Cristina Godoi Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Faculdade de Ciências Sociais. Campinas, SP/Brasil. [email protected] Notas (1) “A ideia de sociologia é contemporânea da ideia de modernidade. Ambas nascem na cidade. Formam-se principalmente em Paris, capital do século XIX, em meados daquele século. Aí se decantavam as mais novas e picas realizações materiais e espirituais da sociedade moderna.” (Ianni, 1989, p. 7) (2) “A centralização polí ca do Estado inglês nha fundamentos materiais e corolários. Primeiro, já no século XVI, a Inglaterra possuía uma rede impressionante de estradas e de vias de transportes fluviais e marítimas que unificavam a nação de modo bastante excepcional para o período. Londres cresceu numa taxa muito acima das outras cidades inglesas e do crescimento total da população (transformou-se na maior cidade da Europa) e tornou-se o centro de um mercado nacional em desenvolvimento”. (Wood, 2000, p. 9) 360 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016 Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada (3) Thompson (2001) u liza essa expressão no ar go “A história vista de baixo”, extraído de The Times Literary Supplement, de 7 de abril de 1966, traduzido por Antonio Luigi Negro e reunido na coletânea de textos de Thompson organizada por Antonio Luigi Negro e Sergio Silva, in tulada As peculiaridades dos ingleses e outros ar gos. (4) Esse estudo, que resultou na dissertação de mestrado in tulada A roça e o aço: as experiências e as resistências operárias no Brasil Moderno (1954-1964), foi desenvolvido a par r da metodologia da história oral, por meio da qual foram coletadas memórias de homens que migraram das zonas rurais do País para empregar-se nas indústrias da cadeia produ va de automóveis na condição de metalúrgicos. Desse modo, por meio desse processo mnemônico, tratou-se de analisar as experiências desses trabalhadores e as formas de resistência co dianas forjadas por eles no amálgama cultural do mundo da roça do qual par ram e do mundo do aço no qual ingressaram, colocando em relevo as contradições da cidade erguida sob o ideário da ordem, do progresso e da soberania (Godoi, 2007). (5) Esse estudo, que resultou na tese de doutorado No tempo certo, sobre duas rodas, um estudo sobre a formação e a exploração dos(as) motofre stas de Campinas-SP, dedicou-se a analisar o processo de trabalho desses trabalhadores que se constituem hoje numa engrenagem fundamental da acumulação capitalista regida pelo ideário da produção just in me, sobretudo considerando o contexto de crise de mobilidade urbana que resultou do consumo em massa de automóveis produzida pela força de mercado assumida por essas corporações no Brasil. Através da análise das experiências de alguns motofre stas e de uma única motofre sta, foram apreendidas algumas determinações do processo de formação dessa categoria profissional em Campinas, bem como foram compreendidos os traços mais marcantes que caracterizam a forma de ser da exploração dessa força de trabalho e de dominação desses trabalhadores (Godoi, 2012). (6) De acordo com Marx (1984), o tempo de produção associado ao tempo de circulação forma o conceito de “tempo de giro do capital” que é de extrema importância para o processo de acumulação. (7) Essa expressão metafórica para o tempo foi re rada da análise de Kehl (2009), ao parafrasear Antônio Candido, para quem o tempo é o “tecido da nossa vida” (p. 111). Referências ALVES, G. (2005). Trabalho, corpo e subje vidade: Toyo smo e formas de precariedade no capitalismo global. Trabalho, Educação e Saúde. Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, pp. 409-428. BENJAMIN, W. (1994). “Sobre o conceito de História”. In: BENJAMIN, W. 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Realizou-se uma pesquisa exploratória empregando um questionário validado em amostra de 336 domicílios caracterizados como extrema pobreza em um município brasileiro. Essa pesquisa compreendeu um estudo observacional, transversal, e a realização de entrevistas com profissionais de saúde e assistência social. O abuso de drogas e álcool foi identificado como o maior problema para obter melhorias na qualidade de vida. A prevalência por incapacidades foi 14%. A redução das taxas de óbito por crimes e a prevenção de incapacidades deveriam ser incluídas como alvo desses objetivos. Abstract Health is part of the Sustainable Development Agenda adopted by the United Nations and local communities have an important role in the definition of their own development needs and in the discussion of the post-2015 Sustainable Development Goals. A field survey using a validated questionnaire was applied to 336 extremely poor households in a Brazilian municipality. The survey was a cross-sectional and observational study and included interviews with healthcare professionals and social workers. Drug/ alcohol abuse was pointed as the major problem to obtain improvements in quality of life. The prevalence of disability was 14%. A reduction in rates of deaths caused by crimes and prevention of disabilities should be included as health targets under the SDGs. Palavras-chave: promoção da saúde; desenvolvimento sustentável; qualidade de vida; determinantes sociais da saúde; pobreza. Keywords : health promotion; sustainable development; quality of life; social determinants of health; poverty. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3603 Viviane H. França, Ulisses E. C. Confalonieri Introduction Methods The importance of sustainable development This study has a qualitative-quantitative, for the promotion of human health is a well- exploratory-descriptive approach and has established fact. Health, in association with followed two distinct phases: an epidemiological poverty, education and nutrition, is one of the description and a comprehensive-interpretative key dimensions of human development. Also approach from the social sciences. This design well recognized is the critical role of local aimed at a comprehensive understanding level initiatives in designing and implementing of the reality and quality of life of a group local development strategies to achieve the of families living in extreme poverty. This Sustainable Development Goals (United community is located in the municipality Nations, 2014). of Ribeirão das Neves, in the metropolitan Latin America is characterized by a high area of Belo Horizonte, state of Minas Gerais degree of social inequality. Approximately (Southeastern Brazil). In the quantitative 29% of its population is below the poverty phase, a representative sample of 336 heads line, 30% of the regional population do not of families was investigated, whereas in have access to healthcare services due to lack the qualitative phase, 27 professionals from of financial resources, and 21% do not have health and social services, as well as from effective health assistance due to geographical the Municipal Education Department, were barriers (Organización Mundial de la Salud – interviewed. OMS; Banco Mundial, 2013). In Brazil, about For the interpretation of primary data, 8.5% of the population (16.27 million people) the theoretical approach was the concept is classified as poor (Instituto de Pesquisa of health promotion from the field of Public Econômica Aplicada – Ipea, 2014). Although Health. The assumption is that social and the Brazilian Constitution establishes universal economic determinants strongly influence access to a public and decentralized healthcare the health and disease patterns of a society. system, the effective provision of services is The health status of a community is directly often hindered by lack of funding and local linked to the economic investments that have organizational problems. been made to promote social and human Using empirical data collected at an development and to reduce social inequalities. extremely poor community in Brazil as a Therefore, health promotion depends on the starting point, this paper aims to discuss integration of different fields of knowledge and health aspects of the Sustainable Development on an interdisciplinary professional practice Goals proposed by the Open Working Group supported by shared principles committed to on Global Governance for Health. The authors sustainable changes in the society (Carvalho et of the present paper assume that vulnerable al., 2004). groups can contribute to the definition of the Within a cross-sectional observational SDG; furthermore, they have an active role in approach, previously validated questionnaires monitoring the implementation of these goals. were administered in September/October 366 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016 Local communities, health and the sustainable development goals 2014. A stratified and proportional sample was and 5 in the Education Department. Six among obtained from three administrative regions of them had completed High School; 22 had the municipality of Ribeirão das Neves, with university degrees and, among these, 14 had a total number of 2,605 households. Data for postgraduate degrees. The average age of the sampling were obtained from the Registry the interviewed individuals was 35 years and of the local Social Work Department. All the their age ranged from 25 to 63 years. Among 336 individuals who were interviewed were them, 17 lived in municipalities located in the older than 18 years and were in charge of their metropolitan area of Belo Horizonte, and 10 households. The main criterion for inclusion lived in Ribeirão das Neves. was a monthly per capita income of R$77.00 (around US $22.00) or less. This study is part of a research and extension project funded by Fundação de To collect additional information Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais on local problems and to investigate the (Fapemig – Minas Gerais Research Foundation). pattern of health and social interventions Its main objective is to assess the quality of targeted at these households, interviews life of the extremely poor population of the were performed with members of a multi- municipality of Ribeirão das Neves, Minas professional team involved in the planning Gerais. All ethical requirements established and operation of actions directed to these by Resolution 466/2012 (National Health extremely poor communities. The number of Council) were met. This project was approved interviews was established by the criterion of by the Research Ethics Committee of the René theoretical saturation, in which the continuity Rachou Center, through Resolution nº 188.866. or interruption of the interviewing process The formal cooperation with the Municipal depends on the recurrence of the themes Departments of Health, Education and Social obtained in the answers. The semi-structured Work was established through an Institutional interview included the following topics: health; Declaration of Co-participation. All subjects quality of life; available public services; main participating in this study were previously problems as perceived by the families; local informed of the aims of the interviews and public policies and their effects on health their authorizations were formally obtained and livelihoods; suggestions to improve the when they signed a consent document. individuals’ health status and the quality of their lives. The collected data were processed through the technique of Content Analysis, with the use of systematic procedures for the organization, coding and classification of the Characterization of the community ideas in order to identity meaningful indicators. The social and demographic profiles The municipality of Ribeirão das Neves of the interviewed professionals were the (322,659 inhabitants in 2015) is part of the following: 11 professionals worked in the Health metropolitan area of Belo Horizonte, the Department, 11 in the Social Work Department, capital city of Minas Gerais, in Southeastern Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016 367 Viviane H. França, Ulisses E. C. Confalonieri Brazil. This metropolitan area (about 5 million (9.8%). Journeys to healthcare centers lasted inhabitants) includes 37 municipalities, many of an average of 30 minutes for 26.1% of the which have a critical shortage of public services households and between 40-90 minutes (transportation, healthcare, social work) and for 48.6% of them. For about 14.3% of the a high degree of population migration from households, the journey lasted more than 120 rural areas. Furthermore, Ribeirão das Neves is minutes. characterized by the presence of a state-owned prison complex with five large institutions. As part of this survey, the interviewees were asked to report their perception in relation The sampled community included three to quality and access to public services in the residential district areas in the periphery of region, as well as to report health problems the city and the participants in the survey and environmental issues, overall quality of life, were enrolled in the Brazilian Federal Program and priority issues for development. of cash transfer “Brazil Sem Miséria” (Brazil A list of twenty-four types of services was without Misery), created in 2011. Eligibility for presented to the interviewees and only 8.6% inclusion in this program was per capita income indicated that these services fulfill all needs of below the “extreme poverty” line, set around the community. Table 1 provides a summary of US$ 20.00 per month as of September 2015. these services and the access to them. The general social-demographic characteristics of the surveyed population were: As for the subjective perception of the overall quality of life in the municipality, it was rated as ● Average age: 41 years and 2 months. good by 12.5% of the households, medium by ● Illiteracy rate: 13%. 36.9% and poor/extremely poor by 49.5%. ● Average number of residents/household: 3.92. ● in the community, 39.6% of the households Percentage of individuals born at that municipality: 6.3%. ● 14% were handicapped. ● Completed ● primary school: 58%. 50.6% were doing informal work (no formal employment). ● Sanitation infrastructure (piped water + effluent collection): 77% of coverage. ● With regard to the perception of poverty About 30% have never received social benefits from the government. Regarding the daily journey to and from indicated that it has decreased in recent years, 46.1% informed that it has not changed, and 13.7% reported that it has increased. When asked to indicate the main socialenvironmental problems of the community, the following answers were obtained: ● Security / Violence issues – 66.7% ● Unpaved streets – 64% ● No job opportunities – 47% ● No leisure areas – 58.6% ● Absence of pre-primary schools – 47.3% the workplace, 55.2% reported a duration of Table 2 presents the main health more than 120 minutes. The children’s daily problems as reported by the heads of journey from home to school and back lasted households, whereas Table 3 presents the an average of 30 minutes (45.1%), from 40 to overall determinants of poor health as reported 90 minutes (36.6%) or more than 90 minutes during the interview. 368 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016 Local communities, health and the sustainable development goals Table 1 – Physical infrastructure of services and access to them in the community Presence in the residential area (%) Effective access to service (%) Primary School 86.9 55.0 Healthcare Center 86.3 86.9 Police Station 25.3 15.0 Public Transportation 87.5 90.0 Garbage Collection 93.5 92.0 Green Areas 18.8 14.9 Type of service Table 2 – Main health problems as reported by the heads of households Main health problem 1st Drug/ alcohol abuse and addiction 2nd High blood pressure 3rd Asthma / bronchitis 4th Dengue fever 5th Influenza / common cold 6th Diabetes 7th Depression 8th Chronic diseases in the elderly Table 3 – Overall determinants of poor health as reported by the heads of households Most important determinant of poor health 1st Drug/ alcohol abuse 2nd Poor healthcare infrastructure 3rd No job / income 4th Lack of social support 5th Family stress/ emotions 6th Security issues/ violence 7th Air pollution Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016 369 Viviane H. França, Ulisses E. C. Confalonieri When asked to indicate the main priorities for the improvement in their quality of life, the following answers were obtained: ● Job 5) primary care actions with poor resolution 6) lack of inter-sectoral policies capable of benefiting the community’s health status. / income – 44.6% ● Better health – 40.5% ● Education – 37.8% ● Improvement ● Leisure in security– 44.9% Discussion / Culture – 35.5% ● Better housing – 35.1% It was observed that economic, political ● Better nutrition – 36.3% and cultural aspects have locally influenced ● Improved ● urban infrastructure – 33.9% Social support / assistance for vulnerable families – 24.7% the health status as well as the livelihoods of the poor community investigated in the municipality of Ribeirão das Neves. A high level In these communities, well-known of social inequality and deprivation of services problems associated with poverty were and material goods strongly contribute to a found, such as unemployment, poor urban poor quality of life, as reported by the major infrastructure, and difficult access to public part of the interviewees. services. The notable exception was a relatively In 2011, Brazil hosted the World good coverage of sanitation infrastructure Conference on Social Determinants of Health, in the households (better than the Brazilian promoted by the World Health Organization. national average). It is important to note a In this event, the document “Rio Political strong emphasis on alcohol and drug abuse Declaration on the Social Determinants of as serious problems in the community, as well Health” was produced. It emphasized the as the associated problems of family stress/ need for a better equity in health as a way disruption and violence. Also important was to promote wellbeing and quality of life the typical association of a heavy burden of and, therefore, global peace and security chronic diseases (for example, hypertension) (Organização Mundial de Saúde - OMS, 2011). with poverty-related infectious diseases, such as dengue fever. The Social Determinants of Health range from experiences in early childhood, in family The main problems mentioned during life, to access to education, economic stability, the interviews performed with the healthcare employment and community interactions. professionals serving in this community were: Other aspects that contribute to health status 1) deficiencies in the coverage and quality of primary healthcare strategies 2) lack of a comprehensive diagnosis of the priority health issues for the community 3) poor provision of human resources, funding and technologies 4) poor infrastructure of the local services 370 are related to environmental degradation and inequalities in societies, as all these factors, in varying degrees, affect fundamental rights, citizenship, human dignity and self-esteem and can generate “worsening of the living condition and degradation of health and social protection services” (OMS, 2011). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016 Local communities, health and the sustainable development goals Simultaneously with a worldwide reduction in the incidence of diseases due to trend to stimulate governments, institutions, environmental contaminants, and training of professionals and the general population health professionals in developing countries to develop health promotion actions by (United Nations, 2014). modifying the Social Determinants of Health, Some of these are difficult to tackle global movements have emerged aiming in most developing countries due to lack of at the elimination of poverty. After the reliable epidemiological data. This is the case Millennium Development Goals (MDG), set of the effects of environmental pollutants, since to be achieved in 2015, the new document the fraction of the disease burden or mortality Sustainable Development Goals is promoting a attributable to these hazards is not part of the global agenda through its 17 main objectives national health information systems. It would and 169 goals, including some that were not be better to set as a target a reduction in the achieved by the MDG. The first objective of exposure to these chemicals, which is much the SDG is the “eradication of poverty in all its easier to measure. dimensions, including extreme poverty”, which In the specific study described here, has been considered “the greatest global it is noteworthy the large proportion of the challenge and an indispensable prerequisite community members that referred to two for sust ainable development” ( United frequently associated problems in poor areas: Nations Development Programme – UNDP; drug and alcohol abuse and social violence. In Netherlands Development Organisation – SNV, an analysis of violence data from 169 countries, 2009; United Nations, 2014). it was found that homicide, robbery and assault The Sustainable Development Goals correlated with low income, while alcohol proposed by the Open Working Group of consumption was associated with assault the United Nations have raised criticism due globally (Wolf, Gray and Fazel, 2014). to their general nature, to the inclusion of Violence is widely acknowledged as targets difficult to be attained, and to the lack being an important public health problem of stakeholders’ participation in the process due to a high loss of disability-adjusted life (Horton, 2014; Brolan et al., 2014; Yamey, years (Krug, Mercy and Dahlberg, 2002; WHO, Sheretta and Binka, 2014). The proposed 17 2002). If we take homicides as an example, goals can be classified as having predominantly a report has shown that Latin America is the an economic focus (goals 1,8,9,10,12), a continent with the highest homicide rates social-political focus (goals 4,5,7,11,16,17) globally, reaching 28/100,000 inhabitants, or an environmental focus (goals 6,13,14,15). compared with a global average rate of Health aspects predominate in goals 2 and 3. 6.7/100,000 , for the year 2012 (WHO/UNDP/ In these, the specific targets range from aspects UNODC, 2014). included in the MDG, such as reduction in In Brazil, homicides in 2012 reached the mortality rates and in the incidence of specific rate of 24.3/100,000 inhabitants. For the age diseases, to newly included aspects, such group 0-19 years, homicides accounted for as the need for universal health coverage, 16.3% of the deaths, while traffic accidents Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016 371 Viviane H. França, Ulisses E. C. Confalonieri accounted for 8.1% of the total (2013) WHO/ and services, that contribute to a decreased UNDP/UNODC, 2014; Waiselfisz, 2015a). quality of life (Gopinathan, Cuadrado, Watts Particularly in the municipality of Ribeirão et al., 2014). das Neves, for the years 2010-2012, the average In view of their high prevalence, their homicide rate for the age group 15-29 years social and economic impacts, and their absolute was 79.1/100,000 inhabitants (global average: numbers, a target dealing specifically with 10.9 for 2012) (Waiselfisz, 2015b). prevention of disabilities should be included in Most poor communities in developing goal number 3 of the proposed SDG. countries are affected by high rates of crime In the Open Working Group’s SDG and violent deaths, especially among young proposal, although there was a reduction in men. Although mortality due to traffic the number of goals explicitly referring to accidents is an important item in the global health when compared to the former MDG, health agenda – as stated in item 3.6 of the some of the 17 proposed goals are directly SDG –, we propose that violent deaths should relevant to the promotion and preservation also be included due to their relevance to of the human population’s health. This is the developing countries. The new target would case of food security and nutrition, water and be “To reduce the rate of violent deaths and sanitation, equitable education, and the end of premature mortality due to crime”. poverty. However, several non-health sectoral Also important in the studied community policies contribute to general wellbeing and, is the observed high rate of disabilities (14%), consequently, to healthy lives: employment, a situation that reflects the Brazilian national adequate infrastructure, gender equality, and rates – 29.1% for the age group 15 years and environmental conservation. Therefore, it is older –, as reported by the 2010 population possible to say that, in general, these goals census. The national survey included several contribute to health promotion, and some types of disabilities, ranging from mental adjustments to the specific health targets illnesses to visual deficiencies and physical under goal “3” would contribute to build a handicaps (Instituto Brasileiro de Geografia e stronger health agenda. As has been pointed Estatística – IBGE, 2012). out, health issues cannot be approached in There are many determinants of disabilities and most of them should be the isolation from other sectors (Gopinathan, Cuadrado, Watts et al., 2014). concern of preventive medicine strategies at both the primary and secondary levels. The global prevalence has been estimated to be 15-19% of the world’s population (WHO; World Conclusion Bank, 2011). Lower income countries have a higher The recently proposed SDG and their associated disability rate than higher income countries, targets address different policy areas that a factor that adds to other aspects, such affect health and also include some specific as poverty and inadequate infrastructure health promotion objectives. 372 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016 Local communities, health and the sustainable development goals We have used information collected from a Brazilian community living in extreme poverty by another one which is more relevant to that social context. to suggest the review of some health targets B- A reduction in the death rates caused based on this reality and on some priorities by crimes, especially among young adults, indicated by the community’s inhabitants. should be included as a new target, due to This was an opportunity for the participation the social impacts caused by social violence of a vulnerable group not only in establishing in poorer countries. its own local development needs but also in C- Also deserving more attention is the contributing to a more general discussion on prevention of disabilities and an improved the new SDG. assistance to disabled persons in less developed From the survey, we raise the following issues with regard to the health targets under SDG goal 3, “Ensure healthy lives and promote wellbeing for all at all ages”: countries. This entails a range of actions from primary prevention to adequate rehabilitation. The health targets newly proposed here – reducing the number of homicides and paying A- Due to its difficult measurement and attention to the disability issue - fit well some because it is relevant to poor communities in of Horton’s six “dimensions of sustainability” developing countries, the proposed health (Horton, 2014), especially the dimensions target dealing with death and illnesses caused related to “capabilities”, “wellbeing”, and the by hazardous chemicals (3.9) could be replaced “strength of the civilization”. Viviane H. França Hospital Público Regional Prefeito Osvaldo Rezende Franco, Betim, MG/Brazil. [email protected] Ulisses E. C. Confalonieri Centro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz. Belo Horizonte, MG/Brazil. [email protected] Note (*) Funded by Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), Brazil, process # APQ-02940-2013. Cad. 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Tomando a institucionalização da cooperação federativa como uma forma de estabilização de regras e processos, a questão que orientará o trabalho é verifi car como, ao longo do tempo, os atores, seus interesses e suas agendas de problemas têm incidido sobre a cooperação intermunicipal na produção da política de saúde. Palavras-chave: relações intergovernamentais; descentralização; cooperação intermunicipal; políticas de saúde; consórcios de saúde. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3604 Abstract The objective of this paper is to discuss and evaluate factors that have hindered or facilitated a “horizontal cooperation” for the production of public policies in the area of health. Specifically, it aims to analyze the factors that enabled the dissemination of Inter-municipal Health Consortiums in the Brazilian state of Paraná. Viewing the institutionalization of federative cooperation as a way of stabilizing rules and processes, the question that will guide the study is to investigate how, over time, the actors, their interests and their problem agendas have focused on inter-municipal cooperation in the production of health policies. K e y w o r d s : intergovernmental relations; decentralization; inter-municipal cooperation; health policies; health consortiums. Carlos Vasconcelos Rocha Introdução considerando o caso dos CIS no estado do Paraná. O trabalho se encerra com uma síntese das conclusões. No Brasil, como forma de enfrentar os efeitos fragmentadores do processo de descentralização das políticas públicas, foram adotadas diversificadas experiências de cooperação intermunicipal para a produção compartilhada de múltiplas modalidades de políticas públicas. Tal A origem do problema: descentralização e cooperação federativa tendência expressa uma tentativa de encontrar uma dimensão territorial “adequada” na pro- A discussão sobre a reforma do Estado brasi- dução de cada política pública específica, em leiro, que entrou na agenda política do País a contraste com a distribuição do poder federa- partir da década de 1980, colocou em relevo tivo brasileiro entre o governo central, os esta- o tema da descentralização. Como reação ao dos e os municípios. regime autoritário, caracterizado pela concen- Nesse sentido, na área da saúde, foram tração de poder no governo central e por uma desenvolvidas experiências de cooperação in- tendência à organização hierárquica das rela- termunicipal, com a difusão dos consórcios de ções federativas, diversos setores da sociedade saúde por todo o Brasil. O Paraná foi um dos brasileira passaram a reivindicar a descentra- estados brasileiros em que a difusão desses lização político-administrativa como forma de esquemas de cooperação foi mais significativa. adequar o desenho das instituições públicas Este trabalho pretende analisar os fatores que aos requisitos de uma democracia. Em termos possibilitaram o desenvolvimento desse pro- federativos, esse movimento visou fortalecer a cesso de reterritorialização na área de saúde autonomia de estados e municípios em reação no estado do Paraná, com a criação dos Con- ao “federalismo nominal” característico do pe- sórcios Intermunicipais de Saúde (CIS). ríodo autoritário, baseado na centralização do Inicialmente o trabalho apresenta as ca- poder no governo federal. Nesse sentido, com a racterísticas gerais da federação brasileira e a Constituição Federal de 1988, o Brasil avançou problemática envolvida na descentralização a construção de um federalismo “de fato”. O e na cooperação federativa. Posteriormente, poder foi redistribuído em favor dos estados, serão expostas as características das políticas do Distrito Federal e dos municípios – hoje 27 de saúde no Brasil, enfatizando seus aspectos estados, incluso o Distrito Federal, e 5.565 mu- federativos e territoriais. O surgimento dos CIS nicípios1 –, que passaram a ser definidos como será ressaltado como uma das formas adota- entes da federação, configurando um federalis- das de cooperação intermunicipal na produção mo tripartido. das políticas de saúde. Em seguida, serão apon- No plano normativo, a descentralização tados e discutidos os fatores que facilitam ou difundia-se como uma panaceia para todos os dificultam a cooperação intergovernamental, males, sendo relacionada a uma multiplicidade 378 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 A cooperação federativa e a política de saúde de objetivos e significados, segundo os inte- Resulta que, com a descentralização, resses e valores de diversos atores distribuídos foi se afirmando a necessidade de maior pelo espectro ideológico nacional. Para os se- coordena ção federativa na produção das tores mais à esquerda, a descentralização era políticas públicas, tanto em seu sentido verti- vista como uma estratégia de democratização cal, articulando União, estados e municípios, tanto política como social; para os setores mais como, também, em seu sentido horizontal, à direita, era tomada como uma estratégia de estruturando esquemas de cooperação entre racionalização técnico-administrativa, visando estados e, principalmente, entre municípios. alcançar maior eficiência nas ações públicas. Mostrou-se indispensável, portanto, produzir Essa crença inicialmente difundida se desdobrou, em seu aspecto federativo, na relações mais complexas e matizadas entre os entes federados. concepção de que os municípios deveriam Assim, como se reconhece amplamente resolver da forma mais autônoma possível hoje, o processo de reforma do Estado, notada- os seus problemas, resultando no que Daniel mente em federações, requer o equacionamen- (2001, p. 14) denominou “municipalismo au- to de graus e mecanismos diversificados de tárquico”. Tal concepção instaura as bases de centralização e descentralização. Esse balanço um federalismo competitivo, no qual há pou- não pode ser definido a priori e de forma abs- cos incentivos para que os municípios estabe- trata, pois exige um amplo aprendizado e algu- leçam ações cooperativas. ma criatividade dos atores sociais.2 Demanda Contudo, ao longo da implementação uma articulação de funções e um compartilha- dessas reformas, a experiência mostrou que mento de recursos entre os níveis de governo, elas podem gerar resultados opostos aos espe- de maneira a se criarem condições propícias rados. No caso brasileiro, a grande maioria dos à democratização e à ampliação da eficácia e municípios padece de precariedade técnica, da eficiência das políticas públicas, antes vistas administrativa e financeira. Nesse contexto, a como efeitos diretos da descentralização. descentralização tende a fragilizar ainda mais a Como resultado desse aprendizado por provisão de serviços estatais, por repassar prer- diversos atores envolvidos no processo de rogativas para municípios sem condições de reforma do Estado brasileiro, diversas moda- exercê-las integralmente e por fragmentar as lidades de cooperação federativa surgiram. ações públicas de forma a comprometer uma Especificamente, no plano horizontal, foram escala adequada da oferta de serviços. Ade- instituídas câmaras, redes, agências, associa- mais, como se sabe, a superação ou minimiza- ções, fóruns, empresas e autarquias intermuni- ção das desigualdades regionais existentes no cipais (Cruz, 2001; Abrucio e Soares, 2001). No Brasil exige a adoção de mecanismos de coor- entanto, a experiência mais relevante de ação denação federativa e de fomento à cooperação cooperativa horizontal foi a dos consórcios in- intergovernamental, além da implementação termunicipais, notadamente aqueles relaciona- de políticas compensatórias em favor dos entes dos com a provisão de bens e serviços na área mais necessitados (Arretche, 1996). da saúde. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 379 Carlos Vasconcelos Rocha A viabilização da cooperação intermunicipal para a produção de políticas públicas não é, no entanto, algo trivial. Requer, no seu aspecto territorial, a definição de novos padrões de regionalização que, no caso dos CIS, são Políticas de saúde e o desafio da regionalização: contextualizando o surgimento dos CIS supramunicipais. A cooperação, no caso, demanda uma recriação do desenho territorial do Com a Constituição Federal de 1988, momento federalismo tripartido brasileiro, baseado na de consolidação do processo de democratiza- União, nos estados e nos municípios. ção política no Brasil, foi adotado um Sistema Esse esforço de remapeamento encontra Único de Saúde (SUS) inspirado no National obstáculos de diversas naturezas. Os muni- Health Service, da Inglaterra, fundado nos princípios da universalidade, equidade, integralidade, com gestão descentralizada e participativa. A tentativa de reproduzir esse modelo numa federação – em comparação a um país unitário como a Inglaterra – reveste-se de especial complexidade: no caso, na produção das políticas públicas a questão sobre “quem deve fazer” se sobrepõe à de “o que fazer” (Pierson, 1995). Ainda mais no caso do sistema público de saúde brasileiro, um dos maiores do mundo em termos de número de usuários e com responsabilidades divididas entre os três níveis de governo. Os desafios colocados para a estruturação dessa política são, portanto, imensos. Coerente com o princípio da descentralização federativa – tomado como meio de democratização e de eficiência na gestão pública –, o primeiro decênio da implantação do SUS priorizou a municipalização da saúde. Instaurou-se, assim, um processo de intensa transferência de competências e recursos, antes concentrados no governo central, em direção aos municípios, através de instrumentos normativos como as Normas Operacionais Básicas (NOB) e as Normas Operacionais de Assistência à Saúde (Noas), utilizados pelo Ministério da Saúde para estruturar o setor. cípios, como entes federados, são, em última instância, autônomos para adotar, ou não, esquemas cooperativos em diversas áreas nas quais são detentores de prerrogativas. Se, por um lado, pelos requisitos técnicos da produção de políticas públicas, encontram incentivos para a cooperação (visando ganhos de escala, por exemplo), por outro, são impelidos a competir, no contexto federativo, em diversos aspectos, especialmente na esfera político-eleitoral.3 Essa problemática da cooperação federativa incita um amplo debate. Nesse sentido, o estudo de caso aqui proposto faz emergir duas questões. A primeira, que será desenvolvida neste artigo, diz respeito aos fatores que facilitam ou dificultam a cooperação intergovernamental. A segunda, desenvolvida em Rocha e Castro (2015) – e sinteticamente exposta neste trabalho –, refere-se aos motivos pelos quais determinados padrões de regionalização são adotados no contexto da cooperação intermunicipal. Antes de desenvolver a análise do problema proposto, no tópico seguinte serão apresentadas as características das políticas de saúde no Brasil, enfatizando seus aspectos federativos e territoriais. 380 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 A cooperação federativa e a política de saúde Sendo assim, os municípios passaram a assu- federalismo tripartido brasileiro na área das mir progressivamente a gestão dos serviços de políticas de saúde. Prover os serviços para a saúde em seus territórios. população requer, portanto, um planejamento À medida que a descentralização ia se que considere uma escala adequada de oferta consolidando, essa ênfase no papel dos muni- dos serviços. Isso demanda uma territorialida- cípios começou, no entanto, a demonstrar os de que pode abranger vários municípios, mais problemas que foram expostos genericamen- de um estado ou mesmo partes de municípios. te no tópico anterior. Primeiramente, a hete- Daí a necessidade de acordos políticos para a rogeneidade de capacidades financeiras e ad- institucionalização de formas de cooperação ministrativas dos municípios para assumirem horizontal e vertical entre os entes federados. a gestão da saúde acabou conflitando com o Na verdade, a consciência da necessi- princípio da equidade. Além disso, instaurou- dade dessa regionalização existia antes do -se uma tensão entre a lógica da descentrali- surgimento dos efeitos fragmentadores da zação e os requisitos técnicos do sistema de descentralização: esse pressuposto técnico era saúde. Em outras palavras, essa tensão se parte de um estoque de conhecimento com- deve ao fato de que a descentralização res- partilhado há muito tempo, pois constitutivo, ponde ao objetivo político de afirmação da por exemplo, do modelo de saúde da Inglater- autonomia dos estados e municípios, ao mes- ra, inspirador do SUS. No plano da formulação mo tempo que a lógica da política de saúde da reforma da saúde, já havia a convicção de demanda um funcionamento coordenado de que a demarcação territorial na produção da relações intergovernamentais visando cum- política deveria adotar a concepção estratégica prir os objetivos sistêmicos de universalidade, de distritos sanitários, como denota uma reso- equidade e integralidade. lução da VIII Conferência Nacional de Saúde,4 A fragmentação territorial resultante realizada ainda em 1986 (Keinert, 2001, p. 21). da afirmação das prerrogativas políticas dos Consagrando essa concepção, o princípio da municípios como gestores da saúde acabou, regionalização foi inscrito na Constituição Fe- portanto, contraditando os princípios do SUS, deral de 1988 como mecanismo da descentrali- por demandar outro tipo de organização ter- zação, integralidade e hierarquização da saúde. ritorial. Um aspecto dessa inadequação, por Tal princípio se desdobrou em toda uma legis- exemplo, revela-se no fato de que, no sistema lação derivada. Por exemplo, a Lei Orgânica da único e universal de saúde do Brasil, as frontei- Saúde n. 8080/1990 afirmava a necessidade da ras político-geográficas não delimitam o fluxo regionalização como princípio de organização de pacientes, já que cobrem todo o território e do sistema, mas não aprofundava seu signifi- toda a população, ao passo que a oferta dos cado, aspecto que, naturalmente, não foi efe- serviços é fragmentada pelas unidades políti- tivado. Posteriormente, a Norma Operacional co-administrativas. de Assistência à Saúde (Noas) – SUS 1/2001 Nesse sentido, foi ficando cada vez propunha a criação de regiões de saúde, só que mais clara a necessidade da configuração de de maneira formalista e rígida, sem resultar em arranjos cooperativos visando remapear o avanços significativos. Em 2006, o Pacto pela Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 381 Carlos Vasconcelos Rocha Saúde, composto por um conjunto de portarias, o sistema de saúde é facilmente contestada pe- foi mais realista, procurando induzir os entes lo território usado, isto é, pelo território vivo” federados a estabelecerem pactos visando à (Viana et al., 2008, p. 94). adoção de “regiões de saúde”, de gestão in- Dadas essas dificuldades, um efetivo pro- tergovernamental regional e de planejamento cesso de regionalização só vai surgir em mea- conjunto. Apesar de ter tido significativa ade- dos dos anos de 1990, com a difusão dos CIS, são dos municípios, isso ocorreu mais no pla- por alguns fatores conjugados. De um lado, os no da formalidade. Ainda nessa linha, através mecanismos indutores da cooperação vão pau- do Decreto 7.508/2011, o Ministério da Saúde latinamente se fortalecendo, por parte tanto adotou o Contrato Organizativo da Ação Pú- do governo central como dos estados, fruto do blica (Coap), visando induzir acordos de cola- aprendizado acumulado por esses entes e do boração firmados entre os três entes federati- convencimento da sua necessidade. De outro vos, no âmbito de uma Região de Saúde, com lado, do ponto de vista dos municípios, num o objetivo de organizar e integrar as ações e contexto de crise econômica e de restrições fis- os serviços de saúde e garantir a integralidade cais, nos anos de 1980 e 1990, a incapacidade da atenção à saúde da população no território de fornecer respostas individuais às pressões (Viana et al., 2008; Santos e Andrade, 2009; Li- do eleitorado por acesso aos serviços de saúde ma et al., 2012). induz à consciência de que diversos problemas Tais tentativas tiveram, por motivos va- de gestão só poderiam ser equacionados de riados, resultados práticos muito limitados. Es- forma cooperativa. Além do reconhecimento pecificamente, nas décadas de 1980 e 1990, a dessa incapacidade, nesse momento um requi- regionalização tinha um relevante obstáculo de sito político para a cooperação estava dado: natureza política. Enquanto o governo federal a ênfase na “distribuição de poder”, que diz buscava, num crescendo, induzir a regionaliza- respeito à afirmação da autonomia dos muni- ção da saúde através de ampla legislação, os cípios como forma de superar a centralização municípios procuravam afirmar a sua autono- federativa do regime autoritário, encontrava-se mia, com o respaldo da Constituição. Esse mo- relativamente resolvida. Com suas garantias vimento contraditório fez com que as tentativas de autonomia satisfatoriamente consolidadas, do governo central de organizar a regionaliza- já que arrefecidos os conflitos em torno da ção da saúde não alcançassem seus objetivos. “distribuição” do poder federativo – questão Na outra ponta, os municípios interpretavam prioritária ao longo da democratização –, os essas tentativas como ameaça a sua almejada municípios podiam concentrar-se nos requi- autonomia. Essa distância entre o normativo e sitos técnicos necessários para a produção de o efetivo é expressão de uma tensão entre os políticas públicas de maior qualidade. A lógica requisitos técnicos de uma política pública e aí envolvida é expressa por Scharpf (1988), ao os imperativos da política, que é uma questão dizer que “eficiência e flexibilidade são subor- que baliza toda a problemática da cooperação dinadas às garantias procedurais de acomo- 5 intergovernamental. Em outros termos, ocorre dação política” (apud Pierson, 1995, p. 459).6 que “uma visão estritamente normativa sobre As políticas que visam garantir dois objetivos, 382 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 A cooperação federativa e a política de saúde metas substantivas e proteção de posições institucionais, tendem a ser menos efetivas do que as que visam apenas ao primeiro objetivo. Como salientado anteriormente, dentre as variadas modalidades de cooperação fede- O caso do Paraná: algumas reflexões exploratórias acerca das possibilidades de cooperação intermunicipal rativa, os consórcios intermunicipais foram das mais relevantes. Os consórcios intermunicipais O estado do Paraná, localizado na região Sul, é constituem uma forma de associação ou união um dos 27 estados brasileiros (incluindo o Dis- entre municípios, calcada na percepção de um trito Federal). É o 15º em dimensão territorial, o compartilhamento de interesses e propósitos, 6º em população, com cerca de 11 milhões de articulados nos mais diferentes âmbitos, visan- habitantes, e tem o 5º maior PIB do País. O es- do ao provimento de serviços públicos como tado tem 399 municípios, conforme demonstra tratamento e destinação do lixo, cultura, lazer, o Mapa 1. educação e merenda escolar, além da realiza- No Paraná, a partir do início de 1990, ção de obras públicas, agricultura e desenvolvi- foram constituídos progressivamente 26 CIS mento sustentável (Cruz, 2001; Vaz, 1997). (ver Anexo I). As primeiras experiências se de- Um Consórcio Intermunicipal de Saúde senvolveram nos municípios pequenos do norte (CIS), por sua vez, é a união ou associação de e nordeste do estado, com estruturas adminis- dois ou mais municípios visando à resolução de trativas precárias, e, posteriormente, se difun- problemas e à busca de objetivos comuns no diram para a quase totalidade do estado. Hoje, setor, mediante a utilização conjunta dos re- dos 399 municípios, 390 integram pelo menos cursos humanos e materiais disponíveis (Brasil, um CIS. Ou seja, 97,5% dos municípios parana- 1997, p. 10). enses estão consorciados, com uma média de A difusão dos CIS teve início em meados dos anos de 1990 em alguns estados brasilei- 16 por consórcio. O menor tem três municípios e o maior tem 30. ros. Esse processo se deu de forma heterogê- Em relação ao conjunto dos CIS, é neces- nea, pois dependeu, em grande medida, das sário apontar algumas peculiaridades. Dos 26 características políticas específicas dos estados, CIS, o Consórcio Paraná Saúde é atípico. Con- variável explicativa relevante para a difusão da gregando 394 municípios, ele reproduz quase cooperação, como será tratado a seguir. Dois que perfeitamente o padrão de territorialização dos casos de maior sucesso foram dos estados do próprio estado, tendo como único objetivo de Minas Gerais e do Paraná, este último obje- comprar e distribuir medicamentos entre os seus to dos próximos tópicos.7 integrantes. Ao contrário, todos os outros CIS Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 383 Carlos Vasconcelos Rocha Mapa 1 – Estado do Paraná e municípios Limite de Estado Limite de Município Sede de Município Fonte: Mapa elaborado pelo prof. dr. José Flávio Morais Castro, da PUC Minas. Mapa 2 – Consórcios Intermunicipais de Saúde (CIS) do Paraná Limite de Estado CIS duplo Limite de Município CIS Paraná Centro Limite de CIS CISGAP Sede de Município CISVAP Fonte: Mapa elaborado pelo prof. dr. José Flávio Morais Castro, da PUC Minas. 384 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 A cooperação federativa e a política de saúde definem formas de regionalização mais restritas se encontram com hachuras no Mapa 2. Por e buscam fornecer um amplo leque de serviços. sua vez, o Conins tem sete de seus 20 municí- O Cislipa também é específico, pois suas pios pertencentes ao estado vizinho de Santa funções são bastante limitadas se comparadas Catarina,8 o que o torna especialmente com- com as dos outros CIS. Seu objetivo é com- plexo, pois o CIS se relaciona com dois gover- partilhar o Serviço de Assistência Médica de nos estaduais simultaneamente. Urgência (Samu), que visa fornecer transporte A criação dos CIS envolveu uma lógica e primeiros socorros para casos de urgência. política, permeada por conflitos e consensos, Esse CIS está localizado no entorno da Região dependente, em última instância, de acordos Metropolitana de Curitiba, que é a região com entre os prefeitos, o que é evidenciado pelo maior concentração de população e recursos largo período de tempo que perpassou sua di- econômicos do estado, características que fusão pela quase totalidade dos municípios do desestimulam a cooperação, conforme será de- estado, conforme demonstra o Quadro 1. São diversas as explicações para esse senvolvido adiante. Além disso, há 18 municípios que parti- processo. A seguir, serão desenvolvidas algu- cipam de mais de um CIS, configurando con- mas considerações sobre os fatores – que se sórcios sobrepostos no território. É o caso do entrelaçam – que facilitaram ou dificultaram o Cisvap, do CIS Paraná Centro e do Cisgap, que consorciamento no estado. Quadro 1 – CIS por ano de implantação Ano CIS 1992 1 1993 3 1994 1 1995 5 1996 3 1997 3 1998 4 1999 1 2002 1 2009 1 2010 2 2014 1 Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Acispar (s/d); Lima (1998) e Paraná (2009). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 385 Carlos Vasconcelos Rocha A cooperação como resultado da ação dos policy entrepreneurs e do movimento sanitário Teixeira, 2012; Rocha e Faria, 2004). No limite, faziam política através de um discurso técnico, difundindo ideias elaboradas coletivamente em diversos âmbitos, cristalizadas principal- A constituição dos CIS, no Paraná, resultou de um processo de aprendizado envolvendo políticos, técnicos e setores da sociedade civil, como prefeitos, secretários municipais e estaduais de saúde, técnicos da Sesa e dos municípios, movimentos de profissionais da área da saúde e partidos políticos. Atuando dentro de contextos específicos, ao longo do tempo, os atores envolvidos teceram relações horizontais, conectando municípios, e verticais, articulando municípios com o âmbito estadual. Em grau relevante, desenvolveram uma teia de relacionamentos, muitas vezes informais, que vitalizou a dimensão formal dos CIS. Além das regras pactuadas que orientam a cooperação, desenvolveram uma confiança, principalmente entre as burocracias municipais e estadual, exercitada no trato frequente das questões relativas à gestão da saúde, o que remete ao importante aspecto da construção de capital social, que diz respeito “a características da organização social, como confiança, normas e sistemas que contribuam para aumentar a eficiência da so- mente nas Conferências Nacionais de Saúde. Portanto, eram portadores de concepções sobre como estruturar as políticas de saúde e trabalhavam para concretizá-las. Tais personagens podem ser classificados como policy entrepreneurs. Conforme exposto por Mintrom, Os policy entrepreneurs podem ter um papel fundamental na identificação de problemas relacionados com as políticas públicas, de modo que tanto atraem a atenção dos decision makers como indicam respostas apropriadas às políticas. Os policy entrepreneurs devem desenvolver estratégias para apresentar suas ideias para os outros. É por isso que eles gastam tanto tempo intercomunicando-se “dentro” e ”em torno” do governo. Assim fazendo, eles captam a ”visão de mundo” de vários membros da policy-making community e tecem contatos que os ajudam a afirmar a sua credibilidade. Fazer esses contatos permite que possam determinar quais argumentos irão persuadir os outros para que apoiem suas ideias.9 (1997, p. 739) ciedade, facilitando as ações coordenadas” (Putnam, 1996, p. 177). Esses policy entrepreneurs surgem no Especificamente, alguns personagens contexto de um movimento coletivo mais am- especiais foram fundamentais na difusão plo, de âmbito nacional, que foi o movimento dos esquemas de cooperação. Técnicos com dos sanitaristas. O Movimento Sanitário, que profunda dedicação à causa da saúde públi- surgiu no Brasil nos anos de 1970, era compos- ca, com capacidade de articulação política, to especialmente por profissionais da saúde, mediaram as relações entre autoridades mu- com o objetivo de defender a saúde pública nicipais de partidos variados, buscando con- como direito universal, e se baseava nos prin- vencê-las da relevância da cooperação para a cípios de integralidade, equidade e descentrali- produção das políticas públicas (Laczynski e zação. Além de constituir um movimento social 386 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 A cooperação federativa e a política de saúde com a característica clássica de direcionar sanitaristas nos seus quadros, passaram a re- demandas ao Estado, através de um leque de crutar equipes técnicas multiprofissionais para estratégias de pressão, os sanitaristas procura- a Sesa, que foram distribuídas pelo território ram também desenvolver sua atuação nos par- do Paraná. Esses técnicos cumpriram um papel tidos políticos – quase sempre de esquerda – e fundamental no enfrentamento da situação de ocupar cargos governamentais. Como autores carência de estrutura de oferta de serviços de de ideias sobre a reformulação do sistema de saúde, especialmente por parte dos municí- saúde brasileiro, atuaram também em univer- pios menores. Seja pela formação anterior, no sidades, desenvolvendo pesquisas e formando âmbito das universidades ou dos movimen- 10 profissionais. Considerando o caso do Paraná, tos sociais, seja pelo esforço do próprio poder são vários os exemplos da atuação desses per- público em qualificar seus funcionários, esses sonagens, como será apontado à frente. profissionais difundiam as ideias forjadas pelo A constituição dos CIS teve origem em movimento sanitário. ações desenvolvidas tanto no plano estadual Por exemplo, os técnicos que entravam como no plano dos municípios. Num primeiro para a Sesa tinham que fazer um curso inten- momento, a cooperação intermunicipal foi obra sivo de três meses, de 40 horas semanais, em de atores que atuavam no âmbito dos municí- centros cuja orientação se baseava nos princí- pios; posteriormente, o papel indutor dos go- pios do pensamento sanitarista. Essas pessoas vernos estaduais foi fundamental. Em ambos estavam, em grande parte, alocadas nas Regio- os níveis, no entanto, a presença dos policy nais de Saúde (RS) da Sesa,11 quando se desen- entrepreneurs foi decisiva. Como se disse, direta ou indiretamente esses agentes são forjados no movimento sanitarista, constituído na sociedade civil com o objetivo de articular demandas ao Estado. No entanto, o impacto das suas ações se potencializa quando eles passam a compor a burocracia estatal ou a assumir posições de mando nos governos. A necessidade dos governos estaduais e municipais de estruturarem a área da saúde através do recrutamento de técnicos preparados coloca em relevo os participantes do movimento sanitário, que forneciam uma concepção elaborada sobre um modelo de organização do setor. No plano do estado, a partir de 1983, os governos estaduais consecutivos do PMDB (José Richa, Álvaro Dias e Roberto Requião), partido que abrigava um amplo contingente de volve o processo de implementação do SUS. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 Criou-se, assim, uma massa crítica de técnicos, distribuídos por todo o território do estado, que utilizavam as RS como suporte para suas ações, conectando o governo estadual com conjuntos de municípios, que compartilhavam das mesmas ideias e que, no futuro, teriam um papel crucial na criação dos CIS. No plano dos municípios, esse processo teve também os seus desdobramentos. Devido à precariedade técnica de grande parte das administrações municipais, no sentido de cumprir a sua recente prerrogativa de gerir os serviços de saúde, vários prefeitos passaram a recrutar esses atores para cargos de direção na área da saúde (Dowbor, 2014). Assim, técnicos dedicados à causa da saúde pública, com alta capacidade de articulação política, passaram a ocupar espaços na burocracia e em cargos de 387 Carlos Vasconcelos Rocha direção nos governos municipais. Levaram, por- faziam parte de CIS, até o ano 2000, predomi- tanto, para os espaços de tomada de decisões navam aqueles com população de até 50 mil suas convicções sobre a política de saúde e, habitantes (Lima e Pastrana, 2000, p. 9). especificamente, sobre a relevância da coope- Segundo o Ministério da Saúde, para os ração intermunicipal para estruturar essa políti- municípios de pequeno porte, o CIS viabiliza a ca setorial (Laczynski e Teixeira, 2012; Rocha e oferta de um atendimento de melhor qualida- Faria, 2004). Nesse caso, privilegiavam a atua- de e de maior complexidade à sua população. ção nas Associações de Municípios (AMs),12 vi- Oferecer serviços de saúde em todos os níveis sando convencer os prefeitos a estenderem a representa, para a maioria dos municípios, en- cooperação para a área da saúde. cargos superiores à sua capacidade financeira. Portanto, o processo de criação dos CIS Esses municípios são incapazes de ofertar cer- envolveu a ação dos atores em duas dimen- tos serviços por problemas de escala. A presta- sões: no âmbito dos municípios – especialmen- ção de serviços de forma regionalizada evita a te dos menores – e no do estado, através do sobrecarga do município na construção de no- seu papel indutivo. Nos tópicos seguintes serão vas unidades de oferta de serviços ambulato- expostas essas dimensões. riais e hospitalares, na contratação de recursos humanos especializados e na aquisição de equipamentos de custos elevados. O CIS pos- As experiências pioneiras de Consórcios Intermunicipais de Saúde: uma estratégia capitaneada pelos municípios menores sibilita, ainda, uma utilização mais racional da rede disponível (Brasil, 1997; Diniz Filho, 2006). Mendes caracteriza bem esse primeiro momento, em que as iniciativas surgem no nível dos municípios: A experiência do Brasil, em geral, e do Paraná, em particular, parece corroborar a tese de que municípios pequenos encontram maior necessidade de cooperação (Cruz, 2001, p. 12), seja em função da maior dificuldade de resolução de seus problemas, devido à sua maior carência de recursos financeiros e administrativos, seja pela necessidade de potencializar sua capacidade de negociação com os outros entes, já que tendem a ter menor poder de barganha ante os governos estaduais e federal. No Brasil, nos a crescente fragilidade das secretarias estaduais de saúde fez com que elas fossem, gradativamente, retirando-se da prestação de serviços secundários e terciários ou tornando esses serviços de tão baixa qualidade, que obrigou os municípios a suprir essas deficiências dos sistemas. [...] Os Consórcios Intermunicipais surgem espontaneamente das necessidades dos municípios em resolver problemas e não como resultado de políticas nacionais ou estaduais deliberadas. (1996, p. 287) primeiros anos de implantação dos CIS, 60% No caso do Paraná, na criação dos pri- dos municípios consorciados possuíam menos meiros CIS, as iniciativas vieram de policy entrepreneurs que atuavam no âmbito dos municípios do norte e noroeste do estado – região composta majoritariamente por pequenos de 10.000 habitantes, enquanto somente 5,5% tinham uma população superior a 50.000 habitantes. No caso do Paraná, dos municípios que 388 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 A cooperação federativa e a política de saúde municípios –, através do convencimento de de outros consórcios, instaurando um processo autoridades municipais da necessidade de co- de aprendizado envolvendo tanto políticos co- operarem na gestão da saúde. As caracterís- mo técnicos. Nesses spillover effects, a fórmula ticas dessas regiões explicam de certa forma adotada por alguns conjuntos de municípios a busca de ações cooperativas. Os municípios era avaliada como promissoras, o que fortale- do norte e noroeste se caracterizam, histo- cia o discurso dos policy entrepreneurs e, con- ricamente, pelo relativo atraso econômico e sequentemente, convencia mais políticos das administrativo em relação aos municípios do vantagens de repeti-la (Kingdon, 1995). litoral, implicando precariedades derivadas de Assim, os CIS são criados tomando como carências de recursos e, portanto, dificulda- referência esquemas de cooperação anterior- de de fornecer respostas individuais aos seus mente constituídos que tiveram êxito. Na ver- problemas. Resta, dessa forma, a cooperação dade, a experiência pioneira de cooperação in- como forma de enfrentar essa situação de fra- termunicipal na área da saúde, no Brasil, ainda gilidade dos municípios. no início da década de 1980, é a de Penápolis, Desse esforço inicial, foram criados os município do estado de São Paulo, onde um primeiros CIS: Cisamunpar, com sede em Pa- prefeito, que era enfermeiro, reuniu diversos ranavaí, com 28 municípios; Ciscomcam, com municípios para gerir uma Santa Casa que se sede em Campo Mourão, com 25 municípios; encontrava em grande dificuldade. Vários ges- Cisamerios, com sede em Umuarama, com 21 tores municipais de saúde do Paraná, quando municípios; e Cismepar, com sede em Londrina, da articulação dos CIS, tinham como referência com 21 municípios. Em cada um desses casos – inicial essa experiência inovadora. e, em geral, no caso de todos os CIS – fica mui- Essa maior propensão de cooperação en- to clara a presença desses policy entrepreneurs, tre municípios menores pode ser evidenciada que compartilhavam algumas características: por exceções que confirmam a tendência. No faziam parte do movimento sanitarista; tinham caso do Cismepar, Londrina, na época o maior algum contato com os centros de produção município brasileiro participante de um CIS, de ideias, como universidades, Conferências com aproximadamente 412 mil habitantes (Li- de saúde e associações profissionais da área; ma, 2000, p. 988), articulou a cooperação com tinham algum tipo de envolvimento na políti- seus municípios vizinhos, todos de pequeno ca partidária, visando implementar suas ideias porte, muito pelo papel da Faculdade de Medi- sobre as políticas de saúde; eram parte da bu- cina localizada em seu território, em que havia rocracia da saúde e/ou ocupavam cargos de di- uma forte militância sanitarista, cujos membros reção no estado ou em municípios. atuaram no sentido de estruturar consórcios Criados os primeiros CIS, instaurou-se em toda a região. um movimento mimético que envolveu um No caso do Cisamunpar, Paranavaí, um processo acumulativo em que cada um que se município com cerca de 75 mil habitantes, re- constituía incentivava a criação de outros. Em siste consorciar com municípios vizinhos, todos cada novo CIS que surgia, a rede de apoio e com menos de 5 mil habitantes. No entanto, de difusão de ideias se afirmava na reprodução acaba cedendo pela pressão exercida pelos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 389 Carlos Vasconcelos Rocha membros da AM da região – do qual era um dos integrantes – que, em votação visando decidir sobre a criação de um CIS, derrotam Paranavaí por 27 a 1, o que leva o município a Em cena o governo estadual: o papel da indução na formação dos Consórcios Intermunicipais de Saúde participar do consórcio. Considerando os municípios não consor- Se, num primeiro momento, os CIS foram ciados, ou aqueles que se consorciaram tardia- criados por iniciativa de atores no âmbito de mente devido a pressões do governo estadual, alguns municípios, posteriormente, irão se a mesma lógica permanece. A Região Metro- difundir devido ao papel indutor dos gover- politana de Curitiba, e seu entorno – justa- nos estaduais. mente por ser aquela em qual a oferta de ser- Na década de 1990, com o processo de viços é comparativamente maior e a estrutura municipalização da saúde, as secretarias esta- de transporte permite fácil mobilidade no seu duais entraram em crise de identidade, já que território –, é onde se concentra a quase tota- o governo federal passou a se relacionar dire- lidade de municípios não consorciados, ou se- tamente com os municípios. Houve, portanto, ja, seis municípios do total de nove. Ademais, uma fragmentação na produção das políticas sintomaticamente, foi a última região do esta- de saúde, na medida em que os municípios do em que os CIS se difundiram: o Cislipa, o passaram a ser vistos como unidades gestoras Comesp e o Cimsaúde começaram a funcionar do setor. depois de 2010 (Paraná, 2009; Lima, 1998). Como uma das formas de retomar um Na verdade, Curitiba formou um consórcio, papel relevante na política de saúde, os gover- o Comesp, por indução do governo estadual. nos estaduais buscaram exercer a coordenação Além disso, como notado anteriormente, o das ações municipais. Em grande medida, isso Cislipa tem funções limitadas, qual seja, a de foi feito a partir da constatação de que os mu- gerir o Serviço de Assistência Médica de Ur- nicípios individualmente não dariam conta de gência (Samu). fornecer serviços de saúde compatíveis com Dentre os três municípios não consorcia- as demandas de suas populações. Alguns go- dos que se encontram fora da Região Metropo- vernos estaduais, em geral, e o do Paraná, es- litana, pelo menos um, Foz do Iguaçu, também pecificamente, passaram, assim, a desenvolver é um caso de município que não tem incentivo mecanismos de indução para a cooperação in- para a cooperação, pois é dotado dos requisi- termunicipal nas ações de saúde. tos para gerir de forma mais autônoma a sua No Paraná, o governo de Jaime Lerner política de saúde. Com a sétima população dos (DEM), eleito em 1994 e reeleito em 1998, municípios do estado (cerca de 270.000 habi- priorizou o consorciamento na área da saúde. tantes), Foz do Iguaçu é o segundo destino de Reproduzindo uma tendência que acontecia no turistas no Brasil, contando, portanto, com fon- plano dos municípios, indicou como secretário te de renda significativa, além de ser servido de saúde o médico Armando Raggio, que era por um grande hospital da Usina Hidrelétrica seu assessor desde o período em que o então 13 de Itaipu. 390 governador era prefeito de Curitiba, capital do Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 A cooperação federativa e a política de saúde estado, nos anos de 1980. Apesar do caráter constituição dos CIS foi fundamental na criação conservador do partido do governador, o secre- e no funcionamento deles. tário tinha um passado de militância no movi- Alguns exemplos do papel indutor do mento sanitarista, tendo sido ator relevante na governo estadual podem ser fornecidos. O pri- criação do SUS.14 Com a autonomia dada pelo meiro é a própria criação do CIS Paraná Saúde, governador, o secretário adotou a concepção como salientado anteriormente, composto pe- de distrito sanitário como parâmetro para a la quase totalidade dos municípios do estado, organização dos serviços em escala supramuni- com a função de gerir medicamentos. Até 1998 cipal, visando ganhos de escala e efeitos redis- a política de programação, aquisição e distri- tributivos. Assim os CIS criados anteriormente buição de medicamentos estava centralizada se estabeleceram como experiências a serem no governo federal, através da Central de Me- difundidas para todo o estado. dicamentos (Ceme). O processo de descentrali- A partir desse momento, o papel do go- zação da gestão teve início com a implantação, verno estadual tornou-se progressivamente em 1999, do Incentivo à Assistência Farma- proeminente no fomento da cooperação inter- cêutica Básica (Iafab), que transferia recursos municipal.15 Conforme demonstrado no Qua- financeiros aos municípios para a aquisição dro I, no período dos dois mandatos do gover- de medicamentos na atenção básica de saú- nador Jaime Lerner (1995-2002), foram criados de, permitindo a autonomia dos municípios na 17 CIS, ou seja, 65% do total, evidenciando a coordenação de ações e atividades relaciona- relevância da ação indutora do governo esta- das aos medicamentos. Um dos resultados foi dual na difusão dos CIS. a deficiência de escala na compra dos medica- Nessa ação indutora, a Sesa utilizou- mentos, com consequente aumento de custos, -se do pessoal lotado nas RS – como indica- uma vez que 79% dos municípios paranaenses do, anteriormente, defensores da cooperação são constituídos por uma população de menos intermunicipal na gestão da saúde – visando de 20.000 habitantes. Com o objetivo de oti- convencer os prefeitos a se consorciarem. Para mizar os recursos da assistência farmacêutica tal, além dos argumentos e da difusão de in- básica, em junho de 1999, cerca de 99% dos formações, disponibilizou recursos financeiros municípios do estado do Paraná criaram o Con- e materiais extras para os municípios que se sórcio Paraná Saúde, devido, fundamentalmen- consorciassem. Mais que isso, a referência es- te, ao papel exercido pelo governo estadual. tabelecida pelo estado foi organizar os CIS com Seria pouco provável que um número tão gran- representação do governo estadual, criando as de de municípios articulasse um esquema coo- chamadas Comissões Bipartites. Houve reação perativo de forma autônoma, dados os custos dos municípios a essa presença do governo es- de transação envolvidos. tadual na composição dos CIS, com o argumen- Outro exemplo do papel indutor do go- to de que seria uma ingerência na autonomia verno estadual foi a criação da Associação dos dos municípios (Keinert, 2001, p. 26). Reação Consórcios e Associações Intermunicipais de sem resultados práticos, no entanto. Assim, Saúde do Paraná (Acispar), em 2001, cujo obje- o papel do governo estadual do Paraná na tivo é representar o conjunto dos CIS no estado. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 391 Carlos Vasconcelos Rocha No caso, o governo do estado apoiou fortemen- Essa tendência de reprodução dos mes- te a criação da associação, com objetivo de se mos padrões territoriais para esquemas de relacionar de forma mais orgânica com o con- cooperação de naturezas diferenciadas pode junto dos CIS do estado. Foi, por exemplo, por ser explicada em termos da lógica definida co- intermédio da Acispar que a Sesa implantou o mo path dependence, cujo significado Pierson Programa Estadual de Apoio aos Consórcios (2004, p. 21) apresentou da seguinte maneira: Intermunicipais de Saúde, visando, através de incentivos técnicos e financeiros, a ampliação da oferta de serviços de forma regionalizada. Sintoma da estreita cooperação entre o governo do estado e os CIS é o fato de que a sede da Acispar se localiza na antessala do gabinete do secretário estadual de saúde e, ainda, tem assento e voto no Conselho Estadual de Saúde. Deve-se registrar, no entanto, que, se na Na presença de feedback positivo, a probabilidade de novos passos na mesma trajetória aumenta com cada passo dado nesse percurso. Isso porque os benefícios relativos da atividade atual, comparados às opções anteriormente disponíveis, aumentam com o tempo. Dito de outra maneira, os custos de transação para uma alternativa previamente possível aumentam.17 maioria dos casos o governo do estado teve papel fundamental no momento de criação dos No caso dos CIS no Paraná, formas de CIS, em vários deles, com o passar do tempo, a cooperação anteriores fortaleceram esquemas experiência local ganha dinâmica própria, com cooperativos futuros. Assim, a atuação dos os municípios assumindo autonomia significa- policy entrepreneurs, dos políticos e das burocracias municipais não se deu num vazio. Sua ação ocorreu a partir de um padrão de institucionalização territorial fornecido pelas formas anteriores de regionalização. Isso significa que, ao longo do tempo, laços de colaboração estabelecidos entre grupos de municípios, num dado momento, facilitaram outras formas de cooperação posteriores, pois diminuíram os custos de transação entre os envolvidos. Ou seja, ao partir de esquemas cooperativos consolidados anteriormente, o número potencial de atores envolvidos na barganha pela criação de um CIS torna-se limitado e envolve pessoas que desenvolveram, ao longo de certo tempo, relações de confiança, gerando, assim, uma expectativa positiva sobre o cumprimento futuro de novos acordos celebrados (North, 1994, pp. 11-12). Em geral, os policy entrepreneurs comprometidos com a difusão dos CIS procuraram tiva na gestão dos mesmos. Path dependence, cooperação e territorialização A criação dos CIS suscita outro problema analítico, relacionado aos padrões territoriais adotados pelos consórcios. No caso do Paraná, esses padrões dependeram de duas formas de territorialização que antecederam à experiência dos CIS, ou seja, as RS e as AMs. Comparando os padrões das três modalidades de territorialização, nota-se que há uma reprodução exata do mapeamento de 18 CIS (72% do total) com o padrão de determinadas RS e AMs.16 Isso significa que a composição da maioria dos CIS, em termos de municípios participantes, é réplica exata de determinadas RS e AMs. 392 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 A cooperação federativa e a política de saúde convencer autoridades municipais, que já -territoriais definidas pelos municípios. Com os conviviam nas RS e nas AMs, a cooperarem progressivos avanços científicos e a especia- na gestão da saúde. Buscaram, portanto, lização cada vez mais presente na oferta dos aproveitar-se de esquemas antecedentes de serviços, a política de saúde apresenta aos go- cooperação. Assim, a regionalização institu- vernos o desafio de traduzir na oferta dos ser- cionalizada pelas RS e AMs facilitou a ação viços o crescente cardápio de especialidades. indutora desses policy entrepreneurs, já que Esse desafio exige cooperação entre governos forneceu suportes institucionais para a difu- para ser enfrentado com algum sucesso. são da ideia dos CIS num contexto em que Como a sensibilidade do eleitorado para os atores cooperavam em outros âmbitos. a qualidade da oferta dos serviços de saúde é Em geral, o governo estadual, através da sua alta, os prefeitos se veem constrangidos e in- burocracia, utilizou-se das RS como suporte centivados a superar os obstáculos oriundos institucional para induzir a cooperação entre de suas diferenças político-partidárias com go- municípios que já compunham cada regional; vernantes de outros municípios. Isso pelo custo e, paralelamente, aqueles atores que atuavam político de se negar acesso à população de um na sociedade civil buscavam arregimentar os direito estabelecido constitucionalmente. No prefeitos para a criação dos CIS no âmbito do caso em questão, a incapacidade de coopera- esquema territorial das AMs. ção pode produzir situações nas quais todos os Apesar dos aspectos específicos relati- principais atores políticos acabam perdendo. vos a cada caso, essa dinâmica incidiu sobre a Como se disse, os sanitaristas eram técni- constituição da quase totalidade dos CIS. Pode- cos fazendo política, no sentido mais geral, mas -se ressaltar, portanto, que a cooperação inter- também no sentido mais estrito de disputar es- municipal nos CIS foi facilitada ao se aproveitar paços no aparato estatal. Ao se investirem da de formas de cooperação anteriores. autoridade governamental, buscavam concretizar suas metas de regionalização, o que, no caso dos CIS, exigia certo insulamento da política Os Consórcios Intermunicipais de Saúde e a competição político-eleitoral eleitoral, já que os consórcios dependiam da cooperação de prefeitos potencialmente competidores na esfera político-eleitoral. Diante do dilema apontado constatou-se, A cooperação intermunicipal é problemática na no Paraná, a tendência dos políticos se posicio- medida em que exige acordo entre atores que, narem de forma equidistante do processo de pela lógica político-eleitoral, são concorrentes gestão dos CIS, reforçando a posição dos téc- em potencial. Porém, as características ob- nicos.19 Visavam, assim, deslocar a competição jetivas da área da saúde tendem a demandar eleitoral para outras arenas. 18 cooperação, pois a adequação da oferta dos Como esse processo de insulamento serviços à necessidade de se gerar ganhos de dos embates políticos é variavelmente precá- escala exige organizar o sistema em um âmbito rio, os CIS acabam apresentando equilíbrios que extrapola os limites das divisões político- mais ou menos instáveis, pois sempre está Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 393 Carlos Vasconcelos Rocha presente a possibilidade de partidarização O caso do Paraná mostrou que a coo- das relações entre as lideranças municipais. peração dependeu tanto da ação autônoma Assim, além de fomentar o estabelecimento de atores no plano dos municípios – especial- de acordos de cooperação entre os prefeitos, mente dos menores –, como do papel indutor os policy entrepreneurs acabam tendo a fun- dos governos estaduais. Em ambos os níveis, a ção de mediar conflitos entre eles, visando presença dos policy entrepreneurs foi crucial. garantir a prevalência dos pressupostos técni- Atuando com base em suportes institucionais cos da cooperação. fornecidos por esquemas de cooperação ante- Em alguns casos, a politização acabou riores – as RS e as AMs –, esses atores, pro- redundando no fracasso da cooperação, como tagonistas do movimento sanitário, buscavam no caso do Cisamusep, com sede em Maringá, convencer os governantes da relevância da onde o Centro Regional de Especialidades era criação dos CIS. “aparelhado” por um deputado, no sentido da Assim, a dependência de políticas pú- sua utilização para fins eleitorais, dificultando a blicas anteriores mostrou-se fundamental. cooperação dos municípios integrantes do CIS. Apropriando dos efeitos das ações de políticas Nas ocorrências de conflitos e impasses entre públicas herdadas de governos passados, em as autoridades políticas municipais, especifica- termos de construção de capital social, a ins- mente prefeitos, o papel de mediação exercido titucionalização dos CIS expressa, em grande pelos policy entrepreneurs mostra-se como fun- medida, os padrões de territorialização estabe- damental para a manutenção dos CIS. lecidos pelas RS e AMs. Nesse processo foi fundamental limitar a influência da lógica da competição eleitoral Considerações finais sobre a gestão da saúde. Estabeleceu-se, portanto, certo consenso, notadamente entre os prefeitos, de reforçar a posição dos técnicos na Com que o que foi apresentado anteriormente, administração dos CIS. podemos pontuar que o desenho das institui- Enfim, o processo de reestruturação ções estatais não é algo que possa ser tomado das instituições estatais ou, mais especifica- exclusivamente a partir de um modelo pronto. mente, de definição de relações federativas As relações federativas, como o caso da saúde que sejam virtuosas, exige experimentação e mostra, são construídas tendo uma referência criatividade dos atores políticos. Nesse senti- nacional, mas, ao mesmo tempo, dependem do, os resultados aqui expostos pretendem, das características dos estados e dos municí- além de jogar luz sobre um aspecto pouco pios. Envolvem, portanto, relações governa- explorado do federalismo brasileiro, auxiliar mentais, com aspectos cooperativos e compe- a busca de caminhos para enfrentar nossos titivos, vertical e horizontalmente. desafios sociais. 394 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 A cooperação federativa e a política de saúde Carlos Vasconcelos Rocha Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Pós-Graduação em Ciências Sociais. Belo Horizonte, MG/Brasil. [email protected] Notas (*) Este artigo é resultado de uma pesquisa mais ampla financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien fico e Tecnológico (CNPq). Em parte, contou também com recursos de uma bolsa de pesquisa concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Agradeço o apoio dessas ins tuições. Além disso, é importante registrar a contribuição dos pareceristas desta revista, além dos comentários de colegas por ocasião da apresentação de partes da pesquisa no grupo de polí cas públicas da Alacip e nos encontros da Rifipp. Naturalmente o resultado final aqui apresentado é de responsabilidade do autor. Agradeço prof. dr. José Flávio Morais Castro, da PUC Minas, pela elaboração dos mapas incluídos aqui. (1) IBGE: Censo Demográfico 2010. (2) Ao contrário do difundido anteriormente, foi se consolidando a ideia de que centralização e descentralização não são conceitos e prá cas que se excluem mutuamente. São necessariamente complementares. Tal situação é definida por Hommes (1996, apud Tendler, 1999, p. 43) como o “paradoxo da descentralização”: o esforço de descentralização demanda dimensionar o que vai ser centralizado, pois a qualidade desse processo depende das habilidades polí cas do nível central de governo. (3) Em um sistema eleitoral proporcional de lista aberta, como o brasileiro, a competição entre polí cos locais é significa vamente acirrada. (4) As Conferências Nacionais de Saúde foram ins tuídas no final dos anos de 1930 e representam uma instância de par cipação de diversos segmentos sociais visando avaliar e propor diretrizes para a formulação da política de saúde. No período da democratização, nos anos de 1980, estabeleceram-se como importante espaço de ação dos movimentos sociais. A VIII Conferência estabeleceu as bases do SUS. (5) De forma resumida e simplificadora, pode-se dizer que a decisão técnica é fundada num processo de ordem intelectual, baseada na análise racional, que busca levantar dados e construir uma visão geral de um problema e de suas alterna vas, a par r de teorias existentes. As decisões políticas, por sua vez, surgem da interação de objetivos de grupos e indivíduos, que visam maximizar suas posições de poder, seja compe ndo, seja cooperando com outros atores. Essa dis nção é claramente um instrumento metodológico, no sen do de um po ideal weberiano, já que na realidade não se pode dis nguir claramente uma lógica da outra. Sobre o assunto, ver, por exemplo, Lindblom (1981). (6) Traduzido do original: “efficiency and flexibility are subordinated to poli cal accommoda on and procedural guarantees”. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 395 Carlos Vasconcelos Rocha (7) Em 1999, por exemplo, Minas Gerais foi o estado com maior porcentagem de municípios consorciados na área da saúde, 92,4% do total, sendo seguido pelo Paraná, com 77,6%. O Brasil apresentava 31,5% dos seus municípios consorciados (Cruz, 2001, p. 74). Para o caso de Minas Gerais, ver Rocha e Faria (2004) e Diniz Filho (2006). (8) Esses municípios são: Campo Erê, Coronel Mar ns, Galvão, Jupiá, Novo Horizonte, São Bernardino, São Lourenço do Oeste. (9) Traduzido do original: “Policy entrepreneurs can play a key role in iden fying policy problems in ways that both a ract the a en on of decision makers and indicate appropriate policy responses […] policy entrepreneurs must develop strategies for presen ng their ideas to others. This is why policy entrepreneurs spend large amounts of me networking in and around government […]. In so doing, they learn the ‘world views’ of various members of the policy-making community and make contacts that can help build their credibility. Making these contacts allows policy entrepreneurs to determine what arguments will persuade others to support their policy ideas”. (10) Uma evidência da relevância do movimento sanitário na organização dos municípios foi o seu protagonismo na criação do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), em 1988, principal espaço de mobilização dos gestores municipais da saúde (Dowbor, 2014, p. 110). Aliás, evidência da relevância do caso do Paraná, é que de lá surge a proposta de criação do Conasems, a par r da experiência da Associação de Secretários Municipais de Saúde do Paraná, criada no início dos anos de 1980. (11) As Regionais de Saúde (RS) foram fixadas pela Sesa, que definiu recortes territoriais agregando grupos de municípios, em espaços geográficos con nuos, com base em uma série de informações técnicas, visando induzir o mapeamento de regiões de saúde, como referência territorial para a organização das ações de saúde no estado. (12) As AMs, criadas a partir do início da década de 1960 em diversos estados brasileiros, visam à promoção do desenvolvimento regional, através do planejamento e da cooperação intermunicipal. (13) Além desses, sobram apenas mais dois municípios não consorciados: Cruzeiro do Oeste, com 21.149 habitantes e Palmas, com cerca de 47.000 habitantes, configurando casos bastante específicos. Desentendimentos polí cos com os outros municípios geralmente explicam esses casos discrepantes, mesmo porque há certa instabilidade ao longo do tempo: em 2009, esses municípios estavam integrados, respec vamente, ao Cismerios e ao Conims e, por outro lado, nesse mesmo ano Pato Branco, sede atual do Conims, não estava par cipando de qualquer CIS (Paraná, 2009). (14) Um dos dirigentes da Sesa daquele período, entrevistado para este trabalho, afirmou que Lerner dizia que: “a saúde fica com a esquerda, que ela resolve. Ainda mais que os sanitaristas dominam no governo federal, que tem recursos financeiros para a implementação de suas ideias”. Desde o início dos anos de 1980 os sanitaristas ocupavam cargos de direção da área da saúde no governo federal (Dowbor, 2014, p. 94) (15) Uma pesquisa de Lima e Pastrana (2000, pp. 14-15) demonstrou que diversos gestores de consórcios entrevistados revelaram ter recebido apoio estadual durante a sua fase de implementação. Para 53% deles houve cooperação com as Secretarias Estaduais de Saúde, cujas formas mais comuns foram: “repasse de recursos, [...] cessão de equipamentos, estrutura sica, recursos humanos e assessoria técnica”, e ainda “fiscalização de contas, controle e avaliação”. 396 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 A cooperação federativa e a política de saúde (16) Ver a demonstração dessa similitude em Rocha e Castro (2015). (17) Traduzido do original: “In the presence of posi ve feedback, the probality of further steps along the same path increases with each move down that path. This is because the rela ve benefits of the current ac vity compared with once-possible op ons increases over me. To put it a different way, the costs of switching to some previously plausible alterna ve rise.” (18) Em um sistema eleitoral proporcional de lista aberta, como o brasileiro, a compe ção entre polí cos locais é significa vamente acirrada. (19) Essa percepção foi compar lhada pela totalidade dos entrevistados. Um deles, que foi secretário estadual da saúde, afirmou que “os polí cos davam autonomia aos técnicos, visando faturar com o bom funcionamento da polí ca de saúde”. Referências ABRUCIO, F. L. e SOARES, M. M. (2001). Redes Federa vas no Brasil: Cooperação Intermunicipal no Grande ABC. São Paulo, Fundação Konrad Adenauer. ACISPAR - Associação dos Consórcios e Associações Intermunicipais de Saúde do Paraná. (s/d.). 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Anexo I Consórcios Intermunicipais de Saúde do Paraná: Associação Regional de Saúde do Sudoeste (ARSS) Associação Intermunicipal de Saúde do Centro Oeste do Paraná (Assiscop) Consórcio Intermunicipal de Saúde dos Campos Gerais (Cimsaúde) Consórcio Intermunicipal de Saúde (CIS 22ª R. S) Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região Centro Sul do Paraná (Amcespar) Consórcio Intermunicipal de Saúde (Cisamerios) Consórcio Intermunicipal de Saúde (Cisamunpar) Consórcio Intermunicipal de Saúde do Setentrião Paranaense (Cisamusep) Consórcio Intermunicipal de Saúde do Centro Oeste do Paraná (CIS Centro-Oeste) Consórcio Intermunicipal de Saúde do Centro Noroeste do Paraná (Ciscenop) Consórcio Intermunicipal de Saúde da Comunidade dos Municípios da Região de Campo Mourão (Ciscomcam) Consórcio Intermunicipal de Saúde Costa Oeste do Paraná (Ciscopar) Consórcio Intermunicipal de Saúde Guarapuava/Pinhão (Cisgap) Consórcio Intermunicipal de Saúde do Iguaçu (Cisi) Consórcio Intermunicipal de Saúde do Médio Paranapanema (Cismepar) Consórcio Intermunicipal de Saúde do Norte do Paraná (Cisnop) Consórcio Intermunicipal de Saúde do Norte Pioneiro (Cisnorpi) Consórcio Intermunicipal de Saúde do Oeste do Paraná (Cisop) Consórcio Intermunicipal de Saúde do Vale do Iguaçu (Cisvali) Consórcio Intermunicipal de Saúde do Vale do Paranapanema (Cisvap) Consórcio Intermunicipal de Saúde do Vale do Ivaí e Região (Cisvir) Consórcio Metropolitano de Saúde do Paraná (Comesp) Consórcio Intermunicipal de Saúde (Conims) Consórcio Intermunicipal de Saúde do Litoral do Paraná (Cislipa) Consórcio Intermunicipal de Saúde (CIS Paraná Centro) Consórcio Intergestores Paraná Saúde (Paraná Saúde) Texto recebido em 23/dez/2015 Texto aprovado em 23/fev/2016 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016 399 Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física Health: social vulnerability, neighborhood and physical activity Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro Rita Barradas Barata Resumo Este artigo analisa a associação entre atividade física, grau de vulnerabilidade social e vizinhança na área central de São Paulo. Foram estudados os níveis de atividade física de adultos moradores em setores censitários vulneráveis e não vulneráveis relacionando esse comportamento com o contexto do bairro e com características sociodemográficas dos indivíduos. A distribuição dos níveis de atividade física foi diferente para os dois grupos, predominando, no grupo vulnerável, as pessoas ativas no trabalho sem relação com as condições de vizinhança. Já no grupo não vulnerável a atividade física estava dividida entre lazer e trabalho, e a maioria é pouco ativa. Nesse grupo há associação entre atividade física e gênero, não ter carro e sensação de segurança à noite no próprio bairro. Abstract The article examines the association between physical activity, social vulnerability level and neighborhood in São Paulo’s downtown. Physical activity levels were studied in adults living in vulnerable and non-vulnerable census tracts, and physical activity practice was related to neighborhood characteristics and to the individuals’ sociodemographic variables. The distribution of physical activity levels was different for the two groups: in the vulnerable group, active people at the workplace predominated, unrelated to neighborhood conditions. In the non-vulnerable group, physical activity is divided between leisure and work, and most are somewhat active. In this group, there is an association between physical activity and gender, not having a car and sense of security at night in one’s own neighborhood. Palavras-chave: vulnerabilidade social; vizinhança; atividade física; saúde urbana. Keywords: social vulnerability; neighborhood; physical activity; urban health Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3605 Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata Introdução chegados para trabalhar na indústria automo- O padrão de urbanização acelerado imprimiu as transformações econômicas, novos “cen- às grandes metrópoles periféricas algumas ca- tros” foram se delineando na cidade, abando- racterísticas comuns, tais como a precariedade nando o centro histórico que passou por gran- da expansão da área urbana e a transformação des transformações (Iglesias, 2002). tora e de bens duráveis. Progressivamente, com permanente dos espaços intraurbanos geral- Como as outras grandes metrópoles mente marcados por processos de segregação mundiais, São Paulo enfrenta os problemas de- socioespacial e por impactos negativos sobre o correntes dessas transformações econômicas meio ambiente. que resultaram em profunda modificação do As décadas de 1980 e 1990 modificaram mercado de trabalho, gerando desemprego es- substancialmente a região metropolitana da trutural de parcela considerável dos trabalha- Grande São Paulo. De uma região basicamen- dores não qualificados e crescimento das rela- te industrial até a década de 1970, ela passou ções informais e da precarização das condições a ser um polo de atividades concentradas no de trabalho. Territorialmente, esses processos setor terciário e quaternário da economia, al- se refletem em segmentação e diferenciação terando o processo de uso do solo e a divisão dos espaços urbanos com desigualdades mar- socioespacial do trabalho, que no período ante- cantes no provimento dos serviços essenciais, rior havia determinado a ampliação da perife- tais como saneamento, limpeza urbana, trans- ria da cidade e a formação de anéis concêntri- porte viário, habitação e urbanismo. O cenário cos em torno do centro expandido (Bousquat e urbano é fortemente marcado pelos contrastes Nascimento, 2001). sociais e pelas desigualdades entre a extrema Durante todo o século XX, a história da riqueza e a extrema pobreza, geralmente se- urbanização de São Paulo foi marcada por um gregadas espacialmente, mas em certas situa- processo de periferização da pobreza e pela ções, como no distrito do Morumbi, convivendo criação e abandono de diversas centralidades lado a lado (Barata; Ribeiro e Cassanti, 2011). (Iglesias, 2002). Na primeira metade do século A região central de São Paulo, consti- XX, a urbanização da cidade separou as elites tuída por 11 dos 97 distritos que compõem a econômicas, que ficavam nas chamadas partes cidade, é um exemplo típico de território mar- altas da cidade (Campos Elíseos, Higienópolis, cado por extrema heterogeneidade no qual Avenida Paulista), e alguns segmentos pro- coexistem diferentes grupos sociais com perfis fissionais, que ficavam nos bairros operários demográficos e socioeconômicos bastante di- habitados predominantemente por imigrantes versos. Alguns bairros, como Higienópolis, ain- europeus (Brás, Bom Retiro, Barra Funda, Be- da conservam parte da população mais rica da lém, Mooca, Pari). A partir da década de 1960, cidade, enquanto outros, como o Brás e o Bom a expansão das periferias pobres se deu em Retiro, sofreram profundas transformações todas as direções com maior adensamento nas com a presença cada vez maior de migrantes zonas sul e leste do município, onde se concen- estrangeiros. A área central concentra grande traram as grandes levas de migrantes nacionais parte dos moradores em situação de rua, que 402 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física estão entre os grupos mais marginalizados da equivalente à de um município de grande cidade (Prefeitura do Município de São Paulo, porte. A população é estacionária, com 14,5% 2001). Na última década, a população em de idosos e 14,5% de jovens (ibid.). A renda per capita média é muito variável entre os distritos. Quatro deles apresentam valores inferiores à média municipal, e os demais apresentam renda per capita variando entre 1,36 e 3,36 vezes a média municipal, em valores nominais de 2010 (ibid.). situação de rua cresceu 65%, e 55% dela se concentra na região central da cidade (Fundação Seade, 2015). Os distritos que constituem a zona central reúnem 4,25% da população de São Paulo, cerca de 492 mil habitantes, população Figura 1 – Mapa dos distritos administrativos da área central do município de São Paulo Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 403 Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata A saúde é resultante de um processo multidimensional envolvendo condições de vida e contextos sociais nos quais os grupos Vulnerabilidade social: moradores da área central sociais vivem (World Health Organization, 2007). O perfil epidemiológico, ou seja, as As condições de vida dos grupos humanos necessidades de saúde dos diferentes grupos que vivem na área central da cidade de São sociais, depende de um conjunto amplo de Paulo impactam o estado de saúde e acabam determinantes estruturais e intermediários, por determinar, através dos processos de re- além das características individuais. Dentre os produção social, situações que favorecem a determinantes estruturais, merece destaque o ocorrência de doenças e problemas de saúde, contexto socioeconômico e político definido mas também situações que podem favorecer pelas condições de governança; políticas ma- a manutenção da saúde, em um processo con- croeconômicas; políticas sociais relacionadas traditório de elementos positivos e negativos, ao mercado de trabalho, moradia e ocupação que acaba por conformar o perfil epidemioló- do solo urbano; políticas públicas relaciona- gico dos diferentes grupos (Castellanos, 1997 das a educação, saúde e proteção social e os e Paim, 1997). valores culturais da sociedade. Esse contexto, O índice Paulista de Vulnerabilidade So- por sua vez, determina a estrutura de classes cial – IPVS construído a partir da composição sociais, as relações de gênero e etnia e a es- de variáveis socioeconômicas e variáveis de- tratificação por educação, ocupação e renda. mográficas permite a estratificação dos setores Os determinantes intermediários referem-se censitários em seis diferentes grupos, desde às situações materiais de vida, os comporta- aqueles com baixíssima vulnerabilidade social mentos e os fatores biológicos e psicossociais até aqueles com vulnerabilidade social muito que podem favorecer a manutenção da saúde alta, possibilitando, assim, uma ferramenta pa- ou facilitar o surgimento das doenças. Os con- ra a análise de diferentes grupos de moradores textos de vulnerabilidade social correspondem segundo sua vulnerabilidade social (Fundação a esse nível intermediário de determinação. O Seade, 2010). próprio sistema de saúde é considerado um Para contrastar diferentes situações so- dos determinantes intermediários, uma vez ciais, os autores realizaram inquérito domiciliar que sua forma de organização e as ações que em amostra de moradores adultos dos 356 se- ele desenvolve podem contribuir para reduzir tores censitários classificados como de baixíssi- ou para intensificar as desvantagens produzi- ma vulnerabilidade social e em amostra de mo- das pelos determinantes estruturais. As con- radores dos 48 setores censitários classificados dições e características de vizinhança também entre aqueles com vulnerabilidade média, alta fazem parte dos determinantes intermediários, e muito alta. podendo afetar vários comportamentos relacionados com a saúde. 404 O cálculo inicial da amostra previa a realização de 500 entrevistas em cada estrato. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física A partir da listagem dos setores censitários, de 40 domicílios (20 + 20 reservas). Os 20 foram sorteados 25 setores em cada estrato, domicílios reservas eram utilizados quando utilizando um procedimento sistemático com não se conseguia completar a amostra com os partilha proporcional ao tamanho da popula- 20 domicílios, em função de recusa ou após ção. Os dados dos setores censitários foram ob- três visitas malsucedidas. tidos do censo de 2000. Dessa forma, avaliou- Foi entrevistado um indivíduo por do- -se necessário realizar um arrolamento para a micílio, sorteado a partir da enumeração dos atualização de todos os domicílios dos setores moradores elegíveis daquele domicílio. Dessa censitários sorteados. forma, foram realizadas 917 entrevistas (92% O arrolamento permitiu compor uma do previsto), sendo 428 entrevistas (86%) no listagem com todos os 16.872 endereços dos estrato de setores censitários sem vulnerabili- domicílios de cada setor. A partir dessa lista- dade social pelo IPVS e 487 (97%) no estrato gem, procedeu-se a um sorteio sistemático com setores com vulnerabilidade social. Tabela 1 – Características sociodemográficas dos grupos de moradores em setores censitários sem ou com vulnerabilidade social, centro da cidade de São Paulo, 2008 Grupo sem vulnerabilidade (% e IC95%) Grupo com vulnerabilidade (% e IC95%) Idade Jovem Adulto jovem Adulto Idoso 10,2 (7,6 – 13,4) 35,6 (31,1 – 40,2) 33,0 (28,7 – 37,5) 21,2 (17,5 – 25 2) 17,1 (14,5 – 21,2) 44,1 (39,8 – 48,7) 29,2 (25,3 – 33,2) 9,0 (6,7 – 11 8) Sexo Masculino Feminino 54,0 (49,2 – 58,6) 46,0 (41,4 – 50,8) 57,1 (52,7 – 61,4) 42,9 (38,6 – 47,4) Escolaridade Sem escolaridade Ensino fundamental Ensino médio Ensino superior 0,9 (0,3 – 2,2) 16,6 (13,2 – 20,4) 20,8 (17,1 – 24,7) 61,7 (56,7 – 65,9) 5,7 (3,9 – 8,1) 52,0 (47,5 – 56,5) 30,4 (26,4 – 34,6) 11,9 (9,3 – 15,0) Classes de consumo E D C B A 4,4 (2,7 – 6,7) 43,6 (38,6 – 48,0) 17,8 (14,3 – 21,5) 21,1 (17,3 – 25,0) 13,1 (10,1 – 16,5) 24,1 (20,2 – 27,8) 66,6 (61,6 – 70,1) 6,4 (4,4 – 8,8) 2,3 (1,2 – 3,9) 0,6 (0,2 – 1,6) Renda familiar (SM) Até 1 1-2 3-5 6 - 10 11 ou mais 1,7 (0,7 – 3,2) 13,7 (10,1 – 16,5) 18,8 (14,5 – 21,8) 29,8 (24,3 – 32,8) 36,1 (30,0 – 39,0) 12,4 (9,1 – 14,8) 57,3 (49,6 – 58,4) 19,6 (15,2 – 22,1) 8,3 (5,7 – 10,5) 2,4 (1,2 – 3,9) Característica Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 405 Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata O grupo vulnerável era composto predo- comportamentos e os estilos de vida condicio- minantemente por indivíduos jovens e adultos nados pela inserção social e pelo contexto local jovens, sem escolaridade ou com ensino fun- que podem ou não favorecer a prática de com- damental, pertencentes aos estratos D e E das portamentos saudáveis. classes de consumo, com renda familiar inferior a três salários mínimos. O grupo sem vulnerabilidade social era composto predominantemente por indivíduos Vizinhança: contextos urbanos da vida cotidiana adultos e idosos, com escolaridade de nível superior, pertencentes às classes de consumo A, B Vizinhança é um espaço geográfico demarcado ou C, com renda familiar superior a cinco salá- no qual os moradores compartilham as con- rios mínimos. dições de vida cotidiana (Boclin; Faerstein e As condições de vizinhança constituem Leon, 2014). O ambiente ou espaço construído outro dos determinantes intermediários e re- refere-se às qualidades estéticas, físicas e fun- ferem-se ao entorno mais imediato no qual as cionais dos bairros ou da vizinhança em que as atividades da vida cotidiana se desenvolvem. A pessoas vivem, incluindo o padrão de uso da partir de 2007-2008, pela primeira vez na his- terra, o padrão de construções e o arruamento tória, metade da população mundial tornou-se que juntos podem oferecer oportunidades ou urbana e, embora a maioria do mundo desen- colocar obstáculos para o deslocamento ativo volvido tenha se tornado altamente urbanizado das pessoas e para a prática de atividades fí- há bastante tempo, as transformações mais rá- sicas, além de acesso a alimentação saudável, pidas e numericamente importantes ocorreram, espaços de lazer e oferta de bens e serviços na última década, nos países de renda média (King e Clarke, 2015). ou baixa (Vlahov, 2015). Além das características mencionadas, Esse processo acelerado de urbanização, outros aspectos da vizinhança, tais como sen- de forma desordenada e sem que a infraes- sação de segurança para pedestres, ausência trutura urbana fosse capaz de acompanhá-lo de delitos, existência de edificações degrada- representa um enorme desafio principalmente das e pichações, a confiança nos vizinhos tam- para os grupos socialmente mais vulneráveis, bém contribuipara gerar um ambiente mais ou em áreas em que as desvantagens ambientais, menos saudável nas áreas urbanas (Jongennel- sociais e econômicas de encontram concentra- -Grimen et al., 2014). das (ibid.). Em pesquisas empíricas, a vizinhança ou As desigualdades sociais apresentadas ambiente construído tem sido operacionalizado pelos distintos grupos urbanos evidenciam-se através de seis dimensões: densidade residen- também como desigualdades espaciais entre cial, conectividade, acessibilidade a serviços e os diferentes bairros e áreas de vizinhança, destinos, facilidades para caminhada e ciclismo, refletindo, em seu perfil epidemiológico, não qualidade estética e segurança (Meng et al., apenas as diferenças de exposição a agentes 2014). Os mecanismos através dos quais a vizi- físico, químicos e biológicos, mas também os nhança pode influenciar o perfil epidemiológico 406 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física dos moradores podem incluir processos de A área central da cidade de São Paulo é mediação, tais como estilo de vida, comporta- bastante heterogênea quanto às características mentos saudáveis, oportunidade para realizar de vizinhança. Os setores censitários classifica- atividades físicas, acesso a alimentos saudáveis dos nos estratos de média, alta ou muito alta e a serviços de saúde, além de efeitos das nor- vulnerabilidade social apresentam caracterís- mas sociais locais ou de efeitos cumulativos do ticas muito distintas daqueles classificados no stress crônico (Boone-Heinonen et al., 2011) estrato de baixíssima vulnerabilidade social. Tabela 2 – Aspectos de vizinhança dos grupos sem ou com vulnerabilidade social no centro da cidade de São Paulo, 2008 Grupo sem vulnerabilidade (% e IC95%) Grupo com vulnerabilidade (% e IC95%) Satisfação com o bairro Insatisfeito Satisfeito Muito satisfeito 1,4 (0,5 – 2,8) 73,7 (69,4 – 77,7) 24,9 (20,9 – 29,1) 18,4 (15,1 – 22,0) 70,5 (66,2 – 74,3) 11,2 (8,5 – 14,2) Ruas pouco iluminadas Não Sim 74,1 (69,8 – 78,1) 25,9 (21,9 – 30,2) 43,3 (38,9 – 47,7) 56,7 (52,3 – 61,1) Há muito barulho Não Sim 35,3 (30,9 – 40,0) 64,7 (60,0 – 69,1) 43,6 (39,3 – 48,1) 56,4 (51,9 – 60,7) Há poluição ambiental Não Sim 15,1 (11,9 – 18,7) 84,9 (81,3 – 88,0) 13,2 (10,4 – 16,4) 86,8 (83,5 – 89,6) Há lixo e entulho nas ruas Não Sim 60,1 (55,4 – 64,7) 39,9 (35,3 – 44,5) 25,3 (21,5 - 29,3) 74,7 (70,6 – 78,4) Faltam espaços verdes Não Sim 48,1 (43,4 – 52,8) 51,9 (47,1 – 56,5) 28,2 (24,3 – 32,3) 71,8 (67,6 – 75,6) Há risco para pedestres e/ou ciclistas Não Sim 13,6 (10,5 – 17,0) 86,4 (82,8 – 89,5) 24,1 (20,4 – 28,0) 75,9 (78,5 – 85,3) Caminhar à noite dá sensação de: Muita segurança Segurança Insegurança 4,7 (2,9 – 7,0) 17,3 (13,9 – 21,1) 78,0 (73,9 – 81,7) 4,1 (2,6 – 6,2) 21,3 (17,8 – 25,1) 74,5 (70,5 – 78,2) Medo de assalto Todo o tempo Frequentemente Nunca 5,8 (3,8 – 8,3) 68,3 (63,7 – 72,5) 25,9 (21,9 – 30,1) 20,5 (17,2 – 24,3) 44,4 (39,9 – 48,7) 35,1 (30,9 – 39,4) Aspectos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 407 Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata O grupo com vulnerabilidade social ava- Vizinhanças mais degradadas são menos liou sua vizinhança como pouco iluminada, atrativas para pessoas com renda mais alta, mais barulhenta, com presença de lixo e entu- levando, assim, a um processo de segregação lho nas ruas, sem espaços verdes como parques espacial no qual as pessoas com melhores e jardins, com maior risco para pedestres e ci- condições socioeconômicas tendem a residir clistas, insegura à noite, e maior proporção de em espaços urbanos que apresentam melho- pessoas relatou ter medo de assalto o tempo res condições estéticas, físicas e de segurança todo, quando comparado com o grupo sem vul- (Hofelmann et al., 2013) nerabilidade social. Mesmo assim os morado- Nos dados da área central da cidade de res referiram estarem satisfeitos com o bairro São Paulo, chama à atenção a grande sensa- em que vivem, embora maior proporção, em ção de insegurança referida pelos moradores comparação ao grupo sem vulnerabilidade, re- dos dois grupos. Praticamente não há diferen- feriu estar insatisfeita. ças importantes entre os grupos com relação Vizinhança sem vulnerabilidade Vizinhança com vulnerabilidade As vizinhanças nestas áreas não vulneráveis tende a ser arborizadas com calçadas e ruas limpas e em bom estado. No geral são áreas residenciais com comércio e serviços locais. As vizinhanças em áreas vulneráveis são pouco ou nada arborizadas. Espaços verdes são menos frequentes e em pior estado de conservação. As calçadas e as ruas são mais degradadas. Não há lixo na rua e as edificações estão em bom estado. Há lixo na rua e as edificações mais simples apresentam um estado razoável de conservação. Moradores em situação de rua são ocasionalmente encontrados nesta vizinhança. Moradores em situação de rua, profissionais do sexo e usuários de drogas são compõem um contingente importante de excluídos em uma área vulnerável. Pichações ocasionais compõem uma paisagem urbana, estruturada que passa uma sensação de segurança. 408 Pichações são frequentes nessa paisagem urbana e degradada. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física à sensação de segurança para andar à noite físicos, violência urbana e sensação de insegu- pela vizinhança e ao medo de assalto. Embo- rança são aspectos que podem reduzir a pro- ra este seja mais intenso no grupo socialmente porção de adultos ativos (Jongennel-Grimen vulnerável, também é bastante expressivo no et al., 2014; Fernandes et al., 2015; Johnson- grupo não vulnerável. Assim, como muitos au- -Lawrence et al., 2015). tores mencionam, a percepção das condições Se considerarmos o ambiente urbano de de vizinhança deve ser considerada além das grandes cidades como um determinante estru- características materiais do ambiente construí- tural no processo saúde-doença e a posição do, já que aparentemente mensura dimensões social dos indivíduos (vulnerabilidade social) e diferentes (ibid.). o espaço socialmente construído onde habitam (vizinhança) como determinantes intermediários que condicionam o cotidiano dos grupos Atividade física: vulnerabilidade e vizinhança e dos indivíduos que os compõem, a atividade física pode ser pensada como um determinante proximal, decorrente do comportamento em re- Inatividade, obesidade, tabagismo e consumo lação à saúde moldado pelos processos sociais de álcool estão entre os fatores de risco rela- de nível intermediário e pela macroestrutura. cionados aos comportamentos e estilos de vi- Na amostra estudada pelos autores, da que participam da determinação social das havia 25,6% (IC95%: 22,9 – 28,5) de adultos doenças crônicas e problemas de saúde mental inativos, 41,1% (IC95%: 38,0 – 44,3) de adul- (Zanchetta, 2010). tos pouco ativos e 33,3% (IC95%: 30,3 – 36,4) Atividade física é um comportamento de adultos ativos. No inquérito de saúde de que envolve diferentes atividades executadas adultos da Califórnia (Meyer; Castro-Schilo e no ambiente de trabalho, no trajeto para o tra- Aguilar-Gaxiola, 2014), em 2009, a prevalên- balho ou na realização de serviços domésticos cia de pessoas ativas (20,0%) foi menor do e também no lazer. Combinando a intensidade que a observada na amostra do centro de São e a duração dos diferentes tipos de atividades Paulo, a proporção de pessoas pouco ativas foi físicas, é possível classificar os indivíduos em semelhante (44,0%) e a de inativos foi mais inativos, pouco ativos e ativos. alta (36,0%). No cotidiano das grandes cidades, a ado- O nível de atividade física foi medido ção de um estilo de vida ativo não depende por meio da aplicação International Physical apenas do conhecimento sobre os benefícios Activity Questionnaire (Ipaq) versão curta, que indaga sobre as atividades realizadas na última semana, levando-se em consideração o tempo e a intensidade. Os moradores da área central da cidade de São Paulo mostram distribuição diferente do grau de atividade física e também na composição dessa atividade entre trabalho ou lazer. que a atividade física pode trazer, mas principalmente das condições concretas para sua prática por diferentes grupos sociais. A ausência de equipamentos e espaços sociais para a prática de esportes e exercícios físicos, poluição sonora e atmosférica, excesso de tráfego de veículos motorizados, degradação dos entornos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 409 Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata Tabela 3 – Grau de atividade física, atividade física no trabalho e ter carro para moradores da área central da cidade de São Paulo, grupo sem ou com vulnerabilidade social, 2008 Atividade física RP* (IC95%) Grupo sem vulnerabilidade Grupo com vulnerabilidade Grau de atividade Inativo Pouco ativo Ativo 0,5 (0,4 – 0,6) 0,8 (0,7 – 1,0) 2,0 (1,6 – 2,6) 34,4 (30,0 – 39,0) 44,2 (39,5 – 48,9) 21,4 (17,7 – 25,5) 17,9 (14,7 – 21,5) 38,4 (34,1 – 42,8) 43,7 (39,4 – 48,2) No trabalho Não Sim 0,3 (0,2 – 0,4) 1,9 (1,6 – 2,3) 59,5 (54,8 – 64,1) 40,5 (35,9 – 45,2) 20,7 (17,3 – 24,5) 79,3 (75,5 – 82,7) Carro Nenhum Um Dois ou mais 2,1 (1,8 – 2,6) 0,4 (0 3 – 0,5) 0,2 (0,1 – 0,4) 35,5 (31,1 – 40,1) 47,9 (43,2 – 52,6) 16,6 (13,3 – 20 3) 76,9 (73,0 – 80,5) 19,0 (15,7 – 22,6) 4,1 (2,6 – 6,2) * Razão de prevalência. A posse de carro pode reduzir a atividade física melhor vizinhança e maior atividade física, no nos deslocamentos ativos e também apresenta entanto é preciso considerar que o grupo sem distribuição desigual entre os grupos. vulnerabilidade social tinha distribuição etária A razão de prevalência permite compa- com menor proporção de jovens e maior pro- rar as duas distribuições considerando o grupo porção de idosos, o que afeta a distribuição do sem vulnerabilidade social como o grupo de grau de atividade. referência, ou seja, aquele não exposto a con- Dos adultos entrevistados, 72% disseram dições sociais adversas. É possível observar que estar satisfeitos com as condições do bairro em o grupo com vulnerabilidade social apresentou que moravam. No entanto, 42% mencionaram menor probabilidade de ter indivíduos inativos que as ruas são pouco iluminadas, 60% afir- (valor menor que 1,0) e maior probabilidade maram haver muito barulho, 86% poluição do de ter indivíduos ativos (valor maior que 1,0). ar, 58% presença de lixo ou entulho nas ruas Quanto aos indivíduos pouco ativos, eles tive- e 62% consideram que faltam parques, jardins ram proporção semelhante nos dois grupos (di- e outros espaços verdes em sua vizinhança. ferenças não significativas). Quanto à percepção de aspectos relativos à se- Os resultados também mostram que o gurança, 81% acreditam que as ruas e calçadas grupo com vulnerabilidade social tem maior oferecem riscos para os pedestres, 76% sentem- probabilidade de ser ativo no trabalho e/ou no -se inseguros de andar à noite na vizinhança e trajeto para ele, uma vez que foi mais provável 56% têm frequentemente medo de ter a casa para esses indivíduos não terem carro. assaltada. Desse modo, as condições na área Os dados parecem contradizer a associação esperada entre melhores condições sociais, 410 estudada parecem pouco propícias às atividades físicas no lazer em sua própria vizinhança. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física Tabela 4 – Prevalência de atividade física segundo características da vizinhança de moradores da área central da cidade de São Paulo, 2008 Vizinhança Inativo Pouco ativo Ativo Satisfação com o bairro Insatisfeito Satisfeito Muito satisfeito 15,8 (9,4 – 24,1) 26,6 (23,3 – 30,1) 26,7 (20,3 – 33,9) 36,8 (27,6 – 46,8) 43,0 (39,3 – 46,8) 36,6 (29,5 – 44,3) 47,4 (37,5 – 57,4) 30,4 (26,9 – 33 9) 36,6 (29,5 – 44,3) Ruas pouco iluminadas Não Sim 29,4 (25,6 – 33,4) 19 ,9 (16,2 – 24,3) 40,7 (36,6 – 45,0) 42,0 (37,1 – 46,9) 29,9 (26,1 – 33,9) 38,1 (33,3 – 43,0) Há muito barulho Não Sim 29,9 (25,4 – 34,8) 22,8 (19,5 – 26,5) 37,6 (32,8 – 42,7) 43,5 (39,4 – 47,6) 32,4 (27,7 – 37,4) 33,7 (29,8 – 37,7) Há poluição ambiental Não Sim 26,4 (19,3 – 34,5) 25,4 (22,5 – 28,6) 41,9 (33,6 – 50,5) 41,0 (37,6 – 44,4) 31,8 (24,2 – 40,2) 33,6 (30,4 – 37,0) Há lixo e entulho nas ruas Não Sim 32,0 (27,5 – 36,8) 21,2 (17,9 – 24,8) 36,2 (31,5 – 41,1) 44,8 (40,4 – 48,9) 31,8 (27,2 – 36,5) 34,3 (30,3 – 38,4) Faltam espaços verdes Não Sim 30,5 (25,8 – 35,5) 22,7 (19,4 – 26,3) 43,0 (37,8 – 48,3) 39,9 (35,9 – 43,9) 26,5 (22,0 – 31,3) 37,4 (33,5 – 41,4) Há riscos para pedestres e/ou ciclistas Não Sim 24,0 (18,1 – 30,7) 26,0 (22,9 – 29,2) 41,1 (34,0 – 48,5) 41,0 (37,5 – 44,5) 34,9 (28,1 – 42,1) 33,0 (29,7 – 36,5) 37,5 (23,6 – 53,1) 46,9 (39,6 – 54,3) 40,1 (36,5 – 43,7) 40,0 (25,8 – 55,6) 39,0 (32,0 – 46,3) 31,6 (28,2 – 35,1) 47,2 (38,6 – 56,0) 41,8 (37,6 – 46,2) 37,2 (31,7 – 42,9) 36,8 (28,7 – 45,5) 26,9 (23,2 – 30,9) 42,9 (37,2 – 48,7) Caminhar à noite dá sensação de: Muita segurança Segurança Insegurança 22,5 (11,6 – 37,3) 14,1 (9,5 – 19,8) 28,4 (25,1 – 31,8) Medo de assalto Todo o tempo Frequentemente Nunca 16,0 (10,3 – 23,2) 31,2 (27,3 – 35,4) 19,9 (15,5 – 24,8) Alguns resultados parecem contradizer de iluminação, o barulho, a poluição do ar e a o senso comum, no entanto é preciso consi- presença de lixo nas ruas não parecem alterar derar que predominam condições insatisfató- a distribuição dos níveis de atividade dos in- rias, e parte considerável da atividade física, divíduos. Entretanto, os dados não permitem nessa população, relaciona-se com o trabalho avaliar se haveria maior proporção de pessoas e não com o lazer. Assim, a satisfação com a ativas caso as condições de vizinhança fossem vizinhança não parece estar associada ao nível mais favoráveis. Coerentemente, os mais ativos de atividade física, provavelmente porque a sa- foram aqueles que mais perceberam a falta de tisfação pode estar referida a outros aspectos espaços verdes. Como a maioria dos entrevista- que não as condições físicas do entorno. A falta dos considerou que as ruas são pouco seguras Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 411 Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata para os pedestres, essa percepção não parece naquelas consideradas mais insatisfatórias, alterar a distribuição dos níveis de atividade fí- sugerindo que a necessidade de deslocamen- sica. Novamente, não foi possível avaliar se a to, provavelmente para o trabalho, impõe-se proporção de ativos seria maior em condições aos grupos com maior vulnerabilidade social. de menor risco. Em San Diego, Califórnia, auto- Em locais em que as condições são melhores, res observaram que a percepção de segurança a sensação de insegurança desempenha um ou o risco para os pedestres foi menos relevan- papel importante na redução da prática da ati- te para determinar os níveis de atividade física vidade física. do que as condições das calçadas (Bracy et al., Em Curitiba, analisando apenas atividade 2014). Em Chicago, para os participantes do física no lazer e caminhadas em particular, os estudo multiétnico de aterosclerose (Mesa), autores encontraram associação entre os níveis os autores observaram que alterações na per- de atividade física no lazer e a sensação de cepção de segurança ou nos registros policiais segurança, aspectos estéticos da vizinhança e sobre crimes não estavam associadas com o acesso a espaços como parques e jardins (Rech transporte ativo ou atividade física no lazer, et al., 2014). exceto em áreas em que houve aumento de Estudo multicêntrico envolvendo 16 cida- assassinatos, nas quais foram observados gran- des em 11 países, incluindo Curitiba no Brasil, des declínios no deslocamento ativo dos mo- encontrou grande variabilidade nos níveis de radores (Kerr et al., 2015). Finalmente, a per- atividade física em modelos ajustados e não cepção de insegurança para andar à noite e o ajustados para as características de vizinhança. medo frequente de assalto parecem reduzir de A variável que mostrou a maior correlação com modo significativo entre a proporção de ativos, níveis satisfatórios de atividade física foi o uso ou as pessoas mais ativas tendem a perceber misto, residencial e comercial, do espaço cons- sua vizinhança como segura. truído. A sensação de segurança na vizinhança Resultados semelhantes foram observa- foi mais importante para alcançar níveis mais dos em Detroit (Kwarteng et al., 2013), onde altos de atividade física. Os aspectos estéticos apenas as condições das calçadas mostraram como encorajadores da prática de atividade fí- associação com o nível de atividade física. Em sica são particularmente importantes em cida- Calgary (Jack e MCCormack, 2014), os pesqui- des norte-americanas (ibid.) sadores observaram que há boa correspondên- Tendo em vista que, na área central cia entre as informações dos entrevistados e a da cidade de São Paulo, as condições de vi- observação direta sobre as condições de vizi- zinhança são distintas nos setores censitários nhança. Entretanto, notaram maior influência sem vulnerabilidade e naqueles classificados dessas condições sobre o transporte ativo do como tendo média, alta ou altíssima vulnera- que sobre as atividades físicas no lazer, princi- bilidade social e que os resultados observados palmente no que se refere à duração. Como no em diferentes cidade e grupos populacionais estudo realizado em São Paulo, o nível de ati- são muito variáveis, é provável que a me- vidade física foi menos influenciado pelas ca- diação exercida pelas condições de vizinhan- racterísticas físicas de vizinhança exatamente ça sobre os níveis de atividade física varie 412 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física para esses diferentes grupos populacionais funcionários de uma universidade pública ca- (Boclin, Faerstein e Leon, 2014). Além disso, rioca (ibid.). Algumas das características de é importante lembrar que, nos setores sem vizinhança, como a percepção ou não de po- vulnerabilidade, a atividade física distribuía- luição atmosférica e de risco para pedestres -se igualmente entre atividade no trabalho e e ciclistas, não mostraram associação com os no transporte ativo, por um lado, e lazer, por níveis de atividade física em ambos os grupos. outro; enquanto nos setores vulneráveis ape- Ou seja, tanto nos setores sem vulnerabilida- nas um quarto das atividades físicas estavam de social quanto naquele com vulnerabilidade associadas ao lazer. Resultados semelhantes social, a distribuição dos níveis de atividade foram encontrados no estudo Pró-Saúde em física não foi afetada. Tabela 5 – Nível de atividade física segundo características de vizinhança para grupo sem ou com vulnerabilidade social na área central da cidade de São Paulo, 2008 Vulnerabilidade e vizinhança Inativo Pouco ativo Ativo Satisfação com o bairro Insatisfeito* Satisfeito Muito satisfeito 33.3 36.9 (31.7 – 42.3) 27.1 (19.3 – 36.1) 50.0 44.8 (39.4 – 50.3) 42.1 (32.9 – 51.5) 16.7 18.5 (14.3 – 22.8) 30.8 (22.6 – 40.1) Ruas pouco iluminadas Não Sim 39.0 (33.7 – 44.4) 20.7 (13.9 – 29.0) 41.2 (35.9 – 46.7) 53.2 (43.9 – 62.3) 19.8 (15.7 – 24.5) 26.1 (18.6 – 34.8) Lixo e entulho nas ruas Não Sim 38.4 (32.5 – 44.4) 28.7 (22.3 – 35.8) 38.0 (32.2 – 44.0) 53.8 (46.3 – 61.2) 23.6 (18.7 – 29.1) 17.5 (12.4 – 23.8) Caminhar à noite dá sensação de: Muita segurança* Segurança Insegurança 35.0 17.6 (10.1 – 27.5) 38.0 (32.9 – 43.3) 40.0 52.7 (41.3 – 63.8) 42.5 (37.2 – 47.8) 25.0 29.7 (20.1 – 40.8) 19.5 (15.5 – 23.9) Medo de assalto Todo o tempo* Frequentemente Nunca 28.0 39.9 (34.4 – 45.6) 21.6 (14.7 – 30.0) 64.0 42.3 (36.8 – 48.0) 45.0 (36.0 – 54.3) 8.0 17.7 (13.7 – 22.4) 33.3 (25.0 – 42.4) Há muito barulho Não Sim 25,0 (19.5 – 31.1) 12,4 (8.9 - 16.7) 33,5 (27.3 – 40.1) 42,3 (36.6 – 48.2) 41,5 (35.0 – 48.2) 45,3 (39.4 – 51.2) Faltam espaços verdes Não Sim 21,9 (15.6 – 29.4) 16,3 (12.7 – 20.5) 40.9 (32.8 – 49.3) 37,2 (32.3 – 42.4) 37.2 (29.4 – 45.5) 46,4 (41.2 – 51.7) Sem vulnerabilidade Com vulnerabilidade * número muito pequeno. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 413 Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata Outras características mostraram asso- menor de inativos justamente para os que re- ciação em apenas um dos grupos. A maioria feriram considerar as ruas pouco iluminadas delas não alterou a distribuição dos níveis de (RP=0.53 IC95%: 0.33-0.82). Esse resultado atividade física nos setores censitários vulne- poderia também estar indicando que justamen- ráveis, enquanto várias foram relevantes nos te os indivíduos mais ativos valorizam mais a setores censitários não vulneráveis. questão da iluminação das ruas. Os resultados do inquérito de saúde da A presença de lixo e entulho nas ruas Califórnia, em população adulta, reforçaram a esteve associado apenas no caso das pessoas hipótese de que altos níveis socioeconômicos pouco ativas, em que a proporção foi maior estavam associados com maior sensação de exatamente nos locais com maior presença de segurança e com maior atividade física no la- lixo e entulho nas ruas. Para os ativos e os ina- zer, que, por sua vez, estava associada a me- tivos, as diferenças não foram significativas. lhor estado de saúde autorreferido e melhor A sensação de segurança para caminhar saúde mental. Os autores verificaram, ainda, à noite pelo bairro influenciou a proporção que o modelo foi válido independentemente da de inativos na direção esperada, isto é, a pro- idade, do gênero e da etnia. No nosso estudo, porção de inativos foi maior nas áreas consi- considerando a atividade física total, os maio- deradas mais inseguras (RP=2,16 IC95%:1,26 res níveis foram observados para os grupos – 3,99). Para as pessoas ativas, observou-se socialmente vulneráveis, e a associação com distribuição contrária, porém, dado o pequeno sensação de segurança só foi significativa no número delas, a razão de prevalência não foi grupo não vulnerável (Meyer, Castro-Schilo e significativa. Estudo realizado em Cuernavaca, Aguilar-Gaxiola, 2014). no México, no qual os setores censitários foram A satisfação com a vizinhança só este- estratificados em oito grupos de acordo com ve associada aos níveis de atividade física nos dados socioeconômicos e condições favorá- setores censitários sem vulnerabilidade social. veis à caminhada, os autores observaram que Como poucos indivíduos disseram estar insa- o nível de atividade física referente ao deslo- tisfeitos com seu bairro, as diferenças foram camento ativo não se associou à percepção de observadas para aqueles satisfeitos versus os segurança do bairro. Entretanto, como a amos- muito satisfeitos. Os indivíduos pouco ativos tra era pequena, os dados devem ser analisa- foram a categoria mais frequente em ambos dos com cautela (Salvo et al., 2014). os subgrupos, e a diferença entre eles ocor- Com relação ao medo de assalto, obser- reu em relação aos ativos que foram mais fre- vou-se maior proporção de inativos nas áreas quentes entre os muito satisfeitos (RP=1,69 em que os indivíduos têm frequentemente me- IC95%:1,09-2,58), do de assaltos (RP=1,85 IC95%:1,21 – 2,92) e Quanto à iluminação das ruas, o resulta- maior proporção de ativos nas áreas em que do foi paradoxal, sugerindo a interferência de os indivíduos referiam nunca ter medo de as- fatores de confusão. Não houve diferença sig- saltos (RP=1,87 IC95%:1,22-2,86). A chance nificante para pouco ativos e ativos segundo de ter indivíduos inativos foi 1,85 vezes maior iluminação das ruas, e observou-se proporção nas áreas em que eles têm medo de assaltos 414 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física enquanto a chance de ter indivíduos ativos foi associada foi a observação de outros mora- 1,87 vezes maior nas áreas em que eles nunca dores caminhando na área (Timperio, Veitch e têm medo. Carver, 2015). Para os setores censitários com vulnera- Como muitas das características de vizi- bilidade social, apenas dois aspectos estiveram nhança apresentam alguma correlação entre associados com o nível de atividade física: ruí- si e a atividade física pode sofrer a influência do e falta de espaços de lazer, como parques e de características sociodemográficas dos mo- jardins. A referência a excesso de barulho, prin- radores além das influências contextuais da cipalmente relacionado ao tráfego de veículos, vizinhança e da vulnerabilidade social, os resul- associou-se com a proporção de inativos, mas tados foram modelados através de uma regres- na direção contrária ao esperado, uma vez que são nominal, a fim de identificar a importância foram observados mais inativos nas áreas em das diferentes variáveis sobre o nível de ativi- que o ruído não foi considerado um problema. dade física. Para os pouco ativos e ativos não houve diferença significativa quanto ao ruído. Para os moradores nos setores censitários vulneráveis, o nível de atividade física só Com relação à falta de espaços para a mostrou associação com idade, nível de ruído e prática de atividades físicas no lazer, como par- falta de espaços verdes na vizinhança. Apenas ques, jardins e outros, a maioria reconheceu a entre os idosos observou-se menor proporção escassez desses espaços no bairro. A diferença de ativos e maior de inativos, mas a amostra entre aqueles que perceberam essa falta e os era constituída por apenas 44 idosos, número demais não foi significativa para nenhum dos insuficiente para a modelagem. Quanto à asso- níveis de atividade física. ciação com ruído, ela foi contraditória havendo Em inquérito realizado com população menos inativos nas áreas mais barulhentas. A adulta de três cidades norte-americanas, a percepção da falta de espaços verdes, embora única associação significativa encontrada foi significativa em termos de ocorrência, não se entre percepção de segurança para pedestres e mostrou significante na força de associação. Os transporte ativo. No entanto, tal associação só autores optaram então por não fazer a modela- foi verificada para indivíduos com maior grau gem para esse grupo. de escolaridade e maior renda (Carlson, 2014). Para os moradores nos setores censitários Em amostra de mulheres em idade repro- não socialmente vulneráveis, os níveis de ativi- dutiva, residentes em áreas socialmente vulne- dade física foram ajustados por idade, gênero, ráveis, no estado de Victoria na Austrália, os au- escolaridade, nível de consumo, ter carro, renda tores encontraram 44,2% de mulheres ativas, familiar e características de vizinhança, exceto valor semelhante ao observado em São Paulo ruído, poluição e espaços verdes que não mos- para o grupo vulnerável. O nível de atividade traram associação na análise bivariada. física nesse grupo se associou positivamen- Após o ajuste realizado através do mode- te com a percepção de segurança pessoal no lo de regressão, as variáveis que se associaram bairro e com o nível de confiança nos vizinhos. com o nível de atividade física foram identifica- Outra variável que se mostrou positivamente das para pessoas pouco ativas e pessoas ativas. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 415 Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata Tabela 6 – Razão de chances e intervalo de confiança de 95% para a associação entre características sociodemográficas e vizinhança e nível de atividade física para moradores dos setores censitários sem vulnerabilidade social obtidos por meio de Regressão Logística Multinomial* Variáveis Odds Ratio IC95% Pouco Ativo Homens Sem carro Sensação de segurança à noite 2,90 5,52 3,14 1,78 – 4,72 2,56 – 11,91 1,48 – 6,67 Ativo Homens Sem carro Sensação de segurança à noite 2,85 6,85 2,62 1,58 – 5,15 2,73 – 17,17 1,11 – 6,14 *Regressão Logística Multinomial é uma técnica estatística utilizada em análise multivariadas para investigar a associação de um conjunto de variáveis independentes e uma variável desfecho com três ou mais categorias. No caso, a variável desfecho é o nível de atividade física e a categoria inativo foi utilizada como referência. Portanto, das variáveis analisadas, após o residência (crimes, roubos, tráfico de drogas e ajuste para as demais, foram associadas posi- homicídios) não mostraram associação com ne- tivamente com o nível de atividade física: ser nhum dos tipos de atividade física (Mendes et homem, não ter carro e se sentir seguro para al., 2014). andar à noite em sua vizinhança. Não mostra- As relações entre nível socioeconômico, ram associação a idade, a escolaridade, a renda características de vizinhança e atividade físi- familiar, o nível de consumo e as característi- ca são bastante complexas e difíceis de serem cas físicas da vizinhança. As mesmas variáveis apreendidas adequadamente. As motivações aumentaram a chance de ser pouco ativo em para a prática de atividade física e as condições comparação com os inativos ou de ser ativo, objetivas para seu exercício são distintas nos isto é, alcançar os níveis de atividade física diferentes grupos sociais. Entre a população considerados mínimos para produzir impactos mais vulnerável, a maior parte da atividade fí- positivos sobre a saúde em geral. sica está relacionada com o trabalho. Esse fato Em Pelotas, os autores identificaram co- tem duas implicações importantes: primeiro, ao mo mais ativos no lazer os homens com maior considerar em inquéritos populacionais, reali- nível de escolaridade, renda mais alta e resi- zados em países de média ou baixa renda, a ta- dentes na área central da cidade. Com relação xa de pessoas inativas, pouco ativas ou ativas, ao transporte ativo, os autores encontraram sem separar os diferentes grupos sociais, as como mais ativos os homens mais jovens e medidas tenderão a estar superestimadas, uma com menor renda média. As variáveis relati- vez que a maioria da população pertence aos vas à percepção de insegurança no bairro de grupos com piores condições socioeconômicas; 416 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física segundo, a atividade física despendida no tra- Por fim, é preciso ainda considerar as li- balho parece desestimular a prática de ativida- mitações próprias de estudos transversais de- de física no lazer, como uma espécie de meca- senvolvidos por meio de inquérito domiciliar. nismo de compensação. Um aspecto é o chamado viés de sobrevivência, Assim, para os grupos mais vulneráveis, ou seja, apenas indivíduos não institucionaliza- as características físicas da vizinhança parecem dos e vivos, no momento da pesquisa, podem não ter importância no estímulo ou desestímu- ser alcançados pelas entrevistas. Essa seleção lo de atividade física no lazer, com exceção tal- poderia subestimar as associações estudadas. vez do grupo mais jovem. Outro aspecto foi a taxa de recusa maior entre Para os grupos com melhores condições as pessoas com melhores condições de vida. socioeconômicas, a atividade física total é di- O processo de amostragem buscou minimizar vidida entre atividade física no trabalho e no esse efeito. Houve, contudo, menos entrevistas lazer, podendo haver maior influência do con- em estratos sem vulnerabilidade social. Acre- texto de vizinhança sobre a atividade no lazer. ditamos, no entanto, que a comparação entre No entanto, esse grupo, justamente por sua os estratos não deve ter sido influenciada por situação econômica, pode fazer uso de outros esse aspecto, diferentemente do que ocorreria recursos, tais como clubes, parques e outros es- na produção de uma estimativa geral. paços de lazer que não necessariamente este- De todo modo, é importante considerar, jam localizados no bairro de residência. Em um quando se trata de saúde urbana, a complexi- município como São Paulo, com alta densida- dade dos processos sociais e ambientais que de de edificações nos bairros situados na área podem contribuir para a manutenção do esta- central, é menos provável a existência desses do de saúde ou para a produção das doenças equipamentos públicos ou privados no bairro nos diferentes grupos sociais que comparti- de residência. lham o espaço urbano. Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Departamento de Saúde Coletiva. São Paulo, SP/Brasil. [email protected] Rita Barradas Barata Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Departamento de Saúde Coletiva. São Paulo, SP/Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 417 Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata Referências BARATA, R. B.; RIBEIRO, M. C. S. A. e CASSANTI, A. C. (2011). 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Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 419 Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata VLAHOV, D. (2015). A pivotal moment for urban health. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 31, sup. pp. S7-S8. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Commission on Social Determinants of Health (2007). A conceptual framework for ac on on the social determinants of health. Geneva. ZANCHETTA, L. M.; BARROS, M. B. A.; CESAR, C. L. G.; CARANDINA, L.; GOLDBAUM, M. e ALVES, M. C.G. P. (2010). Ina vidade sica e fatores associados em adultos, São Paulo, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia. São Paulo, v. 13, n. 3, pp. 387-399. Texto recebido em 16/fev/2016 Texto aprovado em 6/abr/2016 420 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016 Desigualdade social intraurbana: implicações sobre a epidemia de dengue em Campinas, SP, em 2014 Intra-urban social inequality: implications for the dengue epidemic in Campinas, SP, in 2014 Igor Cavallini Johansen Roberto Luiz do Carmo Luciana Correia Alves Resumo Este trabalho investiga se a segmentação dos grupos sociais no tecido urbano, com acesso diferenciado aos recursos e serviços da cidade, pode influenciar na distribuição espacial e temporal dos casos de dengue. O local de estudo é o município de Campinas, no estado de São Paulo, no qual foram analisados os casos de dengue notificados durante os meses de janeiro a dezembro do ano de 2014. Para tanto, foram aplicadas ferramentas de geoprocessamento e análise espacial. As conclusões indicaram que a desigualdade social pode estar condicionando a distribuição dos casos de dengue em conjunto com outros fatores que contribuíram à deflagração da maior epidemia registrada na história de Campinas até então. Abstract This paper investigates whether the segmentation of social groups in the urban fabric, with differential access to the city’s resources and services, can influence the spatial and temporal distribution of dengue cases. The study’s site is the city of Campinas, state of São Paulo, in which we analyzed the dengue cases reported from January to December 2014. For this purpose, geoprocessing and spatial analysis tools were applied. The findings indicated that social inequality could be conditioning the distribution of dengue cases in conjunction with other factors that contributed to the occurrence of the largest epidemic recorded in Campinas so far. Palavras-chave: urbanização; desigualdade social; dengue; Campinas; análise espacial. Keywords: urbanization; social inequality; dengue; Campinas; spatial analysis. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3606 Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves Introdução processo de urbanização acelerado, incompleto A dengue representa um grande problema de to, 2003; Bueno, 2008; Rolnik, 2009). e desigual (Costa e Monte-Mor, 2002; Marica- saúde pública em regiões tropicais e subtropi- Essas condições ambientais urbanas cais do planeta. Trata-se de uma doença viral favoráveis ao vetor da dengue são também transmitida por mosquitos que apresentou um potencializadas pela gestão inadequada dos aumento de 30 vezes em sua incidência global ambientes domésticos por parte da própria po- nos últimos 50 anos. A Organização Mundial pulação, que não atribui a atenção necessária à de Saúde estima que ocorram entre 50 e 100 água acumulada em vasos de plantas, baldes e milhões de infecções a cada ano e que quase calhas. Conjuntamente, (des)organização urba- metade da população mundial reside em países na e comportamento humano são fatores-cha- onde a dengue é endêmica (OMS, 2012). ve para compreender a manutenção e expan- Os mosquitos vetores dessa doença, o são do vetor da dengue nas cidades da América Aedes aegypti e o Aedes albopictus, são altamente adaptados às dinâmicas sociais e ao ambiente das cidades, o que faz da dengue uma enfermidade típica de áreas urbanas com características específicas. O desenvolvimento do mosquito necessita de espaços com água parada e limpa, apesar de também já terem sido encontrados ovos do vetor em água suja, o que demonstra sua grande capacidade adaptativa a condições adversas (Tauil, 2002; Andrade, 2009). O padrão de urbanização brasileiro e latino-americano baseia-se na distribuição desigual do acesso aos recursos e serviços urbanos entre os grupos sociais que ocupam os diferentes espaços intraurbanos. Cita-se, a título de ilustração, o abastecimento irregular de água, assim como a coleta de lixo que, quando existe, é quase sempre acompanhada pela destinação inadequada – como lixões a céu aberto em vez de aterros sanitários. Em geral os grupos populacionais com acesso restrito à infraestrutura urbana são aqueles em piores condições socioeconômicas e residentes em áreas de ocupação, espaços produzidos por um Latina como um todo e no Brasil em particular 422 (Satterthwait, 1993; Castro, 2012; OMS, 2012). Vários pesquisadores analisaram as epidemias de dengue no Brasil. Barreto et al. (2011) indicaram que as taxas de incidência e o número de municípios com alta densidade de mosquitos aumentaram dramaticamente no País durante os últimos 30 anos. Isso ocorre porque o número de municípios com elevada densidade de Aedes aegypti – que é o principal transmissor da doença nas Américas (Barreto e Teixeira, 2008) – tem aumentado constantemente entre 1985 e 2010. Campinas é o maior município em volume populacional e espaço geográfico da Região Metropolitana de Campinas (RMC). Conta com mais de 1,1 milhão de habitantes (IBGE, 2014) e área de 795 km² (IBGE, 2015). Está localizado a 95 km da capital do Estado, a cidade de São Paulo. No ano de 2014, foram notificados mais de 42 mil casos autóctones de dengue em Campinas, maior registro de casos da doença na história do município até então e também maior número de notificações ante outros municípios brasileiros naquele ano. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 Desigualdade social intraurbana A proposta deste trabalho é investigar expansão urbana, enquanto nos subdesen- se a segmentação dos grupos sociais no tecido volvidos o processo é explosivo, mais localiza- urbano, com acesso diferenciado aos recursos do, seletivo e, consequentemente, criador de e serviços da cidade, pode influenciar na distri- descontinuidades. Esse fenômeno explica as buição espacial e temporal dos casos de den- desigualdades impressas nos espaços nacional gue. O local de estudo é o município de Cam- e regional, bem como no interior das cidades pinas, no estado de São Paulo, no qual foram dos países subdesenvolvidos. Assim, a noção analisados os casos de dengue notificados du- de urbanização desigual tornou-se uma das rante os meses de janeiro a dezembro do ano bases teóricas para análises subsequentes de 2014. sobre o processo de desenvolvimento urbano nos países ditos periféricos. De acordo com Cano (2011), a Cepal já Construção do marco teórico: a urbanização desigual e a segmentação social no tecido urbano mostrava que o subdesenvolvimento da América Latina tinha fortes vínculos com um passado socioeconômico de atraso e miséria, situação que se torna ainda mais aguda pela convivência interna entre um setor moderno industrial e uma agricultura retrógrada. Em realidade, as Nesta seção apresentam-se aspectos históricos contradições também estavam presentes no in- relacionados ao processo de urbanização no terior da própria agricultura: o atraso agrícola Brasil, inserido no contexto latino-americano, e em certas áreas convivia com a modernização como os resultados da expansão das áreas ur- agrícola em outras. banas podem guardar relações com a ocorrência e a manutenção de epidemias de dengue. A modernização do campo ocasionou imenso êxodo rural nos países latino-ameri- Urbanização desigual é um conceito de canos, inclusive no Brasil, transformando po- Milton Santos, em obra que foi originalmente pulações predominantemente rurais em ma- publicada em francês, no início da década de joritariamente urbanas. Assim a urbanização 1970, e que foi lançada no Brasil na década latino-americana teria acontecido de forma seguinte (Santos, 1980). O autor analisa o fe- completamente distinta da observada nos Esta- nômeno urbano nos países desenvolvidos e dos Unidos e nos países europeus. Lá, a moder- subdesenvolvidos (termo corrente à época). Ou nização da agricultura também gerou grande seja, investiga em profundidade, de forma com- êxodo rural, mas esse efeito foi suavizado, em parativa, o processo de urbanização tanto nas primeiro lugar porque a economia industrial foi economias altamente industrializadas quanto capaz de incorporar boa parte dos migrantes; e, naquelas que se vinculam de modo dependen- em segundo, porque a migração europeia para te aos centros hegemônicos do capitalismo. o Novo Mundo conseguiu absorver parte im- Ressalte-se, da argumentação do autor, portante do excedente demográfico. Assim, nos o fato de que nos países desenvolvidos exis- países desenvolvidos, a urbanização percorreu te um processo cumulativo de capital e de um longo caminho histórico e muito menos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 423 Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves abrupto que o observado no mundo em desenvolvimento (Cano, 2011). Rolnik (2009) chama a atenção para o fato de que, durante os anos 1960, com grandes fluxos populacionais rumando do campo em di- se restringiu a São Paulo, atingindo os principais centros urbanos do país. À medida que se avançou na década de 1970, mudou a adjetivação: de “problema urbano” passaria a ser, rapidamente, “caos urbano”. (Cano, 2011, p. 132) reção às cidades na América Latina, a falta de apoio governamental teria levado à autocons- Desse modo, a década de 1970 apresen- trução de moradias, desprovidas de infraestru- tou elevadas taxas de crescimento da produ- tura urbana: ção e emprego, mas a situação urbana brasileira agravou-se. Isso ocorreu porque, durante A falta de políticas urbanas ou de habitação, bem como a falta de políticas fundiárias para permitir que essa nova população urbana, em sua maioria pobres, tivesse acesso a terra urbanizada, significou que a maior parte dessa nova população urbana foi principalmente alojada em assentamentos informais de autoconstrução caracterizados por habitação precária e uma grave falta de serviços básicos e infraestrutura. (Rolnik, 2009, p. 11, tradução livre) 1 No Brasil, a expansão urbana, diante desse processo acelerado de êxodo de populações rurais para as cidades, em um contexto de planejamento pouco eficaz, culminou em uma situação que passou de “problema urbano” a “caos urbano”: Essa expansão urbana, embora em alto ritmo, foi suportável, até meados da década [de 1960]. Contudo, a ausência de um planejamento eficaz, a crise econômica que se manifestou entre 1962 e 1967 e a postura autoritária do Estado, relegando a segundo plano as questões atinentes aos problemas sociais, permitiram que essa urbanização se desse de forma desorganizada, gerando aquilo que se convencionou chamar de ”problema urbano”, ou seja, carência e deficiência de infraestrutura e de atendimento às demandas sociais urbanas. O fenômeno não 424 o “milagre brasileiro”, os problemas sociais foram tratados como questões de segunda ordem. Nesse contexto, o padrão de vida urbana apresentou ainda maior deterioração (Kowarick, 1979). Lago (2000) aponta que entre os anos 1970 e 1980 foi dominante, na literatura crítica sobre a questão urbana, a ideia de dualização do ambiente urbano construído para designar o padrão de organização espacial das metrópoles brasileiras a partir dos anos 1950. Por um lado, observou-se a segregação da população pobre nas precárias periferias e, por outro, a expansão nas áreas mais centrais da forma empresarial de produção de residências. Maricato (1996) e Rolnik (2009), por sua vez, defendem que o crescimento das periferias brasileiras é resultante da lógica da ação especulativa do mercado imobiliário, de modo que as áreas com melhor infraestrutura e mais bem localizadas são ocupadas por camadas de poder aquisitivo mais elevado, enquanto grupos de menor renda são empurrados para locais mais distantes. Esse processo seria a base do surgimento das aglomerações de baixa renda nas franjas urbanas, onde existe maior presença de loteamentos clandestinos, com pior acesso a serviços básicos, compreendendo ocupações irregulares, precárias e informais. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 Desigualdade social intraurbana A crise econômica de 1981-1984 teria provocado o maior desemprego aberto que já se teve notícia no País. A crise foi severa: desemprego, subocupação e menor salário real, defrontando-se com uma sociedade urbana desaparelhada e desassistida (Cano, 2011). Esse foi mais um evento histórico que deixou suas marcas sobre o rápido processo de formação das cidades brasileiras. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 1950 A literatura sobre o tema associa a expansão da mancha urbana à ameaça de ecossistemas importantes, como mangues, várzeas, manchas de mata, áreas de encostas e montanhas. As consequências são variadas: fragmentação de ecossistemas; eliminação de matas ciliares; redução de biodiversidade; aumento do risco de enchentes e desabamentos, além do incremento dos riscos para a saúde humana derivados da presença de vetores de doenças transmissíveis. (pp. 130-131; grifo nosso) e 2010 a população urbana no Brasil aumentou em mais de 140 milhões de habitantes, Assim, o rápido processo de urbaniza- com 160 milhões residindo em áreas urbanas ção brasileiro, social e historicamente pro- em 2010. Nesse período, a proporção de pes- duzido, culminou na segmentação de grupos soas que vivem em cidades saltou de 36% pa- sociais, com base no princípio da desigual- ra 84%. A projeção das Nações Unidas (ONU, dade. Essa desigualdade na distribuição de 2014) é que, no ano de 2050, 91% da popu- grupos populacionais com perfis socioeconô- lação brasileira resida em cidades, o que com- micos distintos também significa disparidade preenderá mais de 210 milhões de pessoas, no acesso aos recursos e serviços urbanos, representando um incremento de cerca de 50 como saneamento ambiental, repercutindo milhões ainda a ser acomodado nas áreas ur- sobre o padrão de distribuição das doenças banas brasileiras nas quatro décadas entre no tecido urbano. 2010 e 2050. Ou seja, é um processo que ainda Dessa forma, ainda no século XXI as vai continuar expressivo nas próximas décadas. Doen ças Relacionadas ao Saneamento Am- Um dos principais resultados desse cres- biental (DRSAI) continuam a gerar adoeci- cimento veloz das áreas urbanas brasileiras foi mentos e mortes nas cidades brasileiras, in- a ampliação de periferias, com consequências clusive nas regiões metropolitanas, atingin- preocupantes em termos de degradação am- do principalmente os grupos populacionais biental. Isso porque, a expansão da periferia mais pobres. Entre as doenças decorrentes leva a consequências ambientais importantes, de problemas na infraestrutura urbana de como redução das áreas verdes, aumento da saneamento estão a filariose, a esquistos- densidade populacional das áreas construídas, somose, a hepatite infecciosa, a poliomie- comprometimento das condições de moradia e lite, a febre amarela e também a dengue intensificação de riscos socioambientais (Faria, ( IBGE, 2011; Vilani, Machado e Rocha, 1991; Martine, 1993; Hogan, Marandola Jr. e 2014; Nugem, 2015). Este trabalho se de- Ojima, 2010). Nesse sentido, afirmam Torres e dica a analisar essas relações enfatizando o Sydenstricker-Neto (2012): caso da dengue. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 425 Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves Urbanização e dengue em Campinas em áreas urbanas. O crescimento da população urbana do município entre 1970 e 1980 foi de 5,8% a. a. e, entre 1980 e 1991, de 3,4% a. a. Campinas saltou de uma população total de Esse processo está relacionado à descon- cerca de 376 mil habitantes em 1970 para al- centração industrial da Região Metropolitana go em torno de 665 mil em 1980, chegando de São Paulo em direção a outras localidades a 2010 com mais de 1 milhão de habitantes. do País. Essa desconcentração, todavia, traz Campinas cresceu mais entre os anos de 1970 como marca principalmente uma redistribuição e 1980 que a população do Estado e do Bra- das atividades produtivas industriais pelo inte- sil (5,9% de crescimento populacional ao ano rior paulista, contexto em que ganham espaço, nesse município diante de 3,5 e 2,5, no Estado por exemplo, Campinas e São José dos Campos, e no País, respectivamente). O mesmo ocorreu tornando-se polos atrativos de investimentos e, entre os anos de 1980 e 1991: Campinas – consequentemente, de população (Neri, 1996). 2,5% a. a., estado de São Paulo – 2,3% a. a. e Assim, conforme indica a Figura 1, Campinas Brasil – 2,1% a. a. Muito desse crescimento po- já possuía, no ano de 1970, 89% de sua po- pulacional em Campinas, entre 1970 e 1991, é pulação em áreas urbanas, enquanto São Paulo decorrência da expansão da população vivendo apresentava 80%, e o Brasil, 56%. Fgura 1 – Grau de urbanização, Campinas, estado de São Paulo e Brasil 1970-2010 Grau de urb (%) Campinas – SP São Paulo Brasil Fonte: IBGE (1970; 1980; 1991; 2000; 2010). Nota: Grau de urbanização: percentual de população vivendo em área urbana. 426 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 Desigualdade social intraurbana O acompanhamento da série histórica e DEN-1 (2014). As elevadas taxas de incidên- através dos cinco censos demográficos permi- cia mensais de dengue em 2014 mostram uma te observar que a ordem continua a mesma ao população que nunca havia tido contato mas- longo do período, com Campinas apresentando sivo com o vírus DEN-1. Sabe-se que a popu- maior proporção de população urbana que as lação suscetível é um elemento essencial para demais localidades selecionadas. Desse modo, o desencadeamento de uma grande epidemia no ano de 2010, Campinas possuía 98% de sua (Chiaravalloti-Neto et al., 2015). É verdade população vivendo na área urbana, enquanto também que nenhum dos outros sorotipos o estado de São Paulo apresentava 96%, e o apresentou até então uma presença tão osten- Brasil, 84%. siva no município, o que leva a crer que gran- O histórico da dengue no município, por des epidemias dos demais sorotipos de dengue sua vez, teve início a partir de meados da déca- não podem ser completamente descartadas pa- da de 1990. Conforme Lima et al. (2004), desde ra os próximos anos. o ano de 1996, Campinas apresenta transmis- Da Região Metropolitana de Campinas, são autóctone da dengue, ou seja, casos em composta por 20 municípios, apenas America- que o vírus foi contraído por residente no inte- na apresentou taxa de incidência de dengue rior do próprio município (o outro tipo é o caso autóctone superior à de Campinas em 2014 importado, em que o residente contrai o vírus (3.969 casos por 100 mil habitantes em Ame- fora do município). ricana diante de 3.643 em Campinas). Naque- A Figura 2 evidencia a taxa de incidên- le ano, a terceira maior taxa de incidência da cia de dengue por mês no município entre os RMC ocorreu em Pedreira (2.684 casos por anos de 1999 e 2014. Chamam à atenção es- 100 mil habitantes) e a quarta em Santo An- pecialmente as taxas de incidência de dengue tônio de Posse (1.754 casos por 100 mil habi- nos anos de 2007 a 2014, as duas maiores tantes). Nos anos de 2013 e 2014, a média da epidemias do município, sendo este último ano taxa de incidência de dengue entre os muni- bastante acima dos níveis verificados em toda cípios da RMC ultrapassou o limite epidêmico a série histórica. Por essa figura também é pos- de 300 casos para cada 100 mil habitantes, sível perceber a sazonalidade da dengue, com a com forte destaque para 2014, quando se concentração das mais elevadas taxas de inci- atingiram mais de 1.000 casos para cada 100 dência da doença no primeiro semestre de ca- mil habitantes. da ano, especialmente entre fevereiro e maio, Em 2014, Campinas se destacou no ce- como fica explícito na epidemia de 2014. Vale nário da dengue na medida em que possuía ressaltar, também, a mudança de sorotipos cir- volume de população e também número de ca- culantes no município ao longo desse período. sos autóctones da doença muito maiores que Até o momento todos os sorotipos de dengue Americana. Esta notificou 9.009 casos autócto- já se fizeram presentes no município: DEN-1, nes diante dos 42.059 de Campinas. Campinas DEN-2, DEN-3 e DEN-4. apresentou, em 2014, além da maior epidemia As duas maiores epidemias foram cau- da sua história até então, também o maior nú- sadas predominantemente pelo DEN-3 (2007) mero absoluto de casos de dengue notificados Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 427 Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves Figura 2 – Taxa de incidência de dengue (casos por 100 mil habitantes), por mês, e principais sorotipos circulantes em cada ano, Campinas 1999-2014 Fonte: Taxa de incidência de dengue – Prefeitura Municipal de Campinas (2015). Sorotipos circulantes – Apresentação em Power Point de autoria de/e cedida por André Ribas de Freitas – Departamento de Vigilância em Saúde. Dengue – Sala de situação, 3 de junho de 2015. 428 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 Desigualdade social intraurbana entre todos os municípios do Brasil naquele Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Funda- ano (Brasil, 2014). ção João Pinheiro.2 Pela demonstração da importância epi- Neste estudo sobre a dengue em Cam- demiológica da dengue em Campinas durante pinas, utilizou-se para análise a Unidade de o ano de 2014, tanto na Região Metropolita- Desenvolvimento Humano (UDH) do Atlas do na a que pertence quanto no Brasil como um Desenvolvimento Humano nas Regiões Me- todo, este foi o município selecionado para o tropolitanas Brasileiras. A UDH compreende o presente estudo. Vale ressaltar que em 2015 a agrupamento de setores censitários com ho- epidemia de dengue no município superou a de mogeneidade socioeconômica e contiguidade 2014, atingindo mais de 66 mil casos autócto- espacial. Em Campinas, por exemplo, o Censo nes confirmados (Brasil, 2015). Compreender Demográfico de 2010 (IBGE) dividiu o municí- a epidemia de 2014 é um passo fundamental pio em 1.749 setores censitários. As UDHs são para evidenciar os fatores que têm propiciado agrupamentos desses setores, totalizando 187 a ocorrência de sucessivos recordes de notifica- unidades de análise. ções de dengue no município. O outro banco de dados deste estudo A seguir são apresentados os dados e compreende os endereços do local de residên- métodos utilizados para a operacionalização cia dos casos autóctones de dengue do muni- do conceito de urbanização desigual e também cípio de Campinas de janeiro a dezembro de para possibilitar a análise da segmentação dos 2014,3 obtidos do Sistema de Informação de grupos sociais no tecido urbano vis-à-vis a dis- Agravos de Notificação (Sinan) através da Se- tribuição dos casos de dengue. cretaria de Saúde de Campinas. Foram geocodificados, ou seja, transformados em referências espaciais de latitude e Estruturação do banco de dados longitude, os casos de dengue por endereço do paciente. O processo de geocodificação foi realizado de uma forma geral em duas etapas. As análises são realizadas a partir de dois A primeira consistiu na padronização do ende- bancos de dados. Um deles é o Atlas do De- reço. Processo que utiliza heurísticas para con- senvolvimento Humano nas Regiões Metropo- verter representações de endereço (R. = Rua, litanas Brasileiras e suas respectivas Unidades Av. = Avenida, Pça = Praça, entre outros) em de Desenvolvimento Humano (UDH). O Atlas um padrão que será utilizado na fase seguinte. compreende 20 regiões metropolitanas (RM) Na segunda etapa, ocorreu a geocodificação de brasileiras, trazendo mais de 200 indicadores fato, na qual se realiza uma busca de texto do de demografia, educação, renda, trabalho, endereço padronizado em uma base de dados habitação e vulnerabilidade, com dados ex- de mapas de ruas. traídos dos Censos Demográficos de 1991, A geocodificação dos endereços de 2000 e 2010. Foi lançado em 2014, tendo sido casos da doença foi extremamente comple- elaborado pelo Programa das Nações Unidas xa, tendo em vista os problemas de preen- para o Desenvolvimento (Pnud), Instituto de chimento e digitação das informações rua e Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 429 Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves número de residência na ficha de notificação Brasileiras, foi inserida uma nova variável com de dengue. Dos 48.085 casos de dengue re- o somatório do número de casos de dengue gistrados no Sinan, 42.059 foram autóctones dentro de cada Unidade de Desenvolvimento de município de residência, foco deste estudo. Humano. Calculou-se, então, a variável taxa Retirando os endereços de pacientes sem rua de incidência de dengue para cada unidade e sem número, restaram 40.337 casos para de análise, utilizando a informação do número geocodificar. Destes, foram localizadas com de casos conformados de dengue, provenien- sucesso as coordenadas dos endereços de tes do Sinan (referente a 2014), e volume to- 39.965 casos (99% dos 40.337 casos, portan- tal de população, a partir do Atlas (referente to perda de 1%; ou 95% do total de autócto- a 2010). A tentativa de realização da projeção nes, os 42.059, ou perda de 5%). De Boni et populacional de 2010 para 2014 pelo método al. (2010), analisando os acidentes de trânsi- AiBi para pequenas áreas, frequentemente to e sua relação com bares em Porto Alegre, utilizado pelo IBGE, não obteve sucesso. Isso apresentaram perda de 7,5% na geocodifica- porque algumas unidades de análise apresen- ção dos casos de acidentes; Hino et al. (2006), taram decréscimo de população entre os anos geocodificando endereços de pacientes com censitários que foram referência para a proje- cólera em Ribeirão Preto, encontraram uma ção (2000 a 2010), e uma extrapolação com perda de mais de 10%; Galli e Chiaravalloti- base nessa tendência culminou em áreas com -Neto (2008) geocodificando endereços de população muito rarefeita em 2014. Por esse casos de dengue em São José do Rio Preto, motivo, de modo a garantir a qualidade do depararam-se com uma perda de mais de dado, optou-se por utilizar como referência a 15%. Portanto, a perda de 1% entre os ende- população de 2010 para o cálculo da taxa de reços que efetivamente eram factíveis de lo- incidência de dengue em 2014. calização ou de 5% diante do total de casos autóctones de dengue em Campinas supera os padrões observados na literatura. As perdas neste estudo foram em decorrência de endereços genéricos como Rua A, Índice de Desenvolvimento Humano Municipal e Taxa de Incidência de dengue em Campinas Viela 1, Lote 5, etc. A análise das perdas, por área do centro de saúde em que se localizam, Para ilustrar o conceito de urbanização desi- constatou que elas não se concentraram em gual e da segmentação dos grupos sociais no nenhuma região específica do município. São tecido urbano foi utilizada, do Atlas do Desen- esses 39.965 casos geocodificados com suces- volvimento Humano nas Regiões Metropolita- so que compreenderam os casos autóctones nas Brasileiras, a variável Índice de Desenvol- de dengue por local de residência do paciente vimento Humano Municipal (IDHM) referente analisados nessa investigação. ao ano de 2010. O Índice de Desenvolvimento A partir do software ArcMap, versão Humano (IDH) é um indicador composto que 10.3, no banco de dados do Atlas do Desenvol- sintetiza informações de renda, escolaridade e vimento Humano nas Regiões Metropolitanas esperança de vida. É normalmente empregado 430 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 Desigualdade social intraurbana pela Organização das Nações Unidas para de análise deveria ser de 8.262 metros. Por fim, avaliar o nível de desenvolvimento dos países no cálculo do Índice Local de Moran, obteve-se (ONU, 2015). Neste estudo se utiliza o Índice de o resultado apresentado na Figura 3. Desenvolvimento Humano Municipal, que com- A rodovia Anhanguera é representada no preende uma adaptação do IDH, também com- mapa por meio de uma linha que perpassa o binando informações de renda, escolaridade município na direção sudeste a noroeste. O que e esperança de vida. A diferença é que, nesse se observa são dois agrupamentos separados caso, o indicador é calculado para o nível in- pela Anhanguera: ao norte da rodovia, existem tramunicipal, tomando como principal fonte de áreas “similares” com alto IDHM (em verde es- informações os dados do Censo Demográfico curo), enquanto na porção sul existe uma gran- de 2010. O IDHM (assim como o IDH) varia de 0 de concentração de áreas com baixo IDHM (em a 1, sendo 0 menor e 1 maior desenvolvimento vermelho escuro). Chama a à atenção também humano. Através dele é possível analisar as de- a existência de outliers: ao norte, áreas com sigualdades no que diz respeito à composição baixo IDHM (vermelho claro) em proximida- socioeconômica dos grupos sociais no interior de do grande agrupamento de áreas com alto do município de Campinas. IDHM (verde escuro). Note-se que o contrário Considerando que as variáveis IDHM e não ocorre, ou seja, não se veem áreas com taxa de incidência de dengue possuem especi- alto IDHM na porção sul, em proximidade ao ficidades, a análise de cada uma conta com um grande agrupamento de unidades com baixo método distinto. IDHM. As áreas mais claras são aquelas que Assume-se o IDHM como estático no tempo, pois esse dado não muda durante to- não apresentaram significância estatística no cálculo do Índice de Moran. do o período de análise. Isso ocorre porque A taxa de incidência de dengue, por sua cada Unidade de Desenvolvimento Humano vez, apresenta modificações em seu valor em apresenta o mesmo IDHM durante todos os cada unidade de análise de um mês para o meses de 2014. Para a análise dessa variável, outro. Por exemplo: pode-se ter uma Unidade utilizam-se então os Índices Global e Local de Desenvolvimento Humano com alta taxa de de Moran. incidência de dengue em janeiro, e, em feverei- O Índice de Moran permitiu identificar ro, haver um arrefecimento dessa taxa naquele agrupamentos de áreas próximas com alto ou local e um crescimento em outra unidade de baixo índice de desenvolvimento humano. Um análise. Isso ocorre porque os casos de den- teste inicial com o Índice Global de Moran gue não necessariamente ficam concentrados apontou um valor positivo (0,170), indicando sempre em um mesmo lugar, eles podem ser a existência de clusters de valores. O z-score mais numerosos em determinado local em da- da análise foi de 8,159, apresentando p-valor do período, depois apresentar redução ali e < 0,01. Conclui-se, assim, que os dados com- aumentar em outro ponto do município. Para põem agrupamentos estatisticamente signifi- analisar essa dinâmica da taxa de incidência cativos. Na busca pelo maior z-score possível, da dengue no espaço e no tempo utiliza-se o encontrou-se que a distância entre as unidades software SaTScan. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 431 Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves Figura 3 – Índice Local de Moran para o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, Campinas-SP – 2010 De acordo com Block (2007), SaTScan é Foram identificados dois trabalhos no um programa desenvolvido em parceria entre Brasil que analisam a dengue e se utilizam, pa- Martin Kulldorff (Universidade de Harvard), o ra tanto, do software SaTScan. Um deles analisa Instituto Nacional de Câncer dos Estados Uni- os casos de dengue na cidade de Lavras-MG en- dos e Jarzad Mostashari, do Departamento de tre 2007 e 2010 (Ferreira, 2012). O outro busca Saúde e Higiene Mental da cidade de Nova a detecção de clusters com base na sazonalida- 4 York. Trata-se de um software livre. Esse pro- de da dengue nos municípios brasileiros entre grama permite a identificação de clusters tem- 2007 e 2011 (Lewkowicz, 2013). Ferreira (2012) porais, espaciais ou espaçotemporais. Como analisa, para o período entre 2007 e 2010, resultado são indicados círculos ou elipses de todos os 1.236 casos de dengue notificados em uma área contínua com tamanho variável na Lavras, utilizando o SaTScan como ferramenta área de estudo. complementar após a aplicação do Índice de Trabalhos pioneiros demonstrando a via- Moran. Lewkowicz (2013), por sua vez, inves- bilidade do uso do SaTScan para análises es- tiga tendências de distribuição espaçotemporal paçotemporais em saúde podem ser encontra- da dengue no nível de município, sem observar das em Kulldorf e Nargawalla (1995), Kulldorff especificidades no interior de cada uma das (1997) e Kulldorff et al. (1998). áreas urbanas com casos de dengue. 432 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 Desigualdade social intraurbana Este trabalho sobre dengue em Campinas a variável resposta de interesse se refere-se a difere dos demais ao propor o uso do SaTScan uma contagem de eventos que ocorrem em um com um conjunto grande de casos de dengue determinado intervalo de tempo e espaço. (39.965), geocodificados de modo a permitir A aplicação do modelo rejeitou a hipó- a análise de diferenciais intraurbanos em uma tese nula de que o número de casos em cada cidade heterogênea em termos de composição área é proporcional à sua população, caso em da população. que não haveria clusters. A rejeição da hipótese A saída do software indica os clusters nula indica que existem clusters de áreas com numerados apontando as localidades incluí- alta taxa de incidência de dengue e que, por- das em seu raio, período de ocorrência do tanto, a análise estatística pode prosseguir. cluster de alta taxa de incidência, número de Nesta análise foram selecionados apenas casos de dengue observados, número de ca- os primeiros cinco clusters entre os que apre- sos esperados, risco relativo e p-valor, entre sentaram significância estatística (p-valor < outras informações. 0,01). Estes podem ser observados na Figura 4. O SaTScan utilizou um modelo discreto Em termos de distribuição espacial, de Poisson, que é comumente utilizado quando observam-se quatro agrupamentos de áreas Figura 4 – Clusters espaçotemporais mais significativos (SaTScan) e taxa de incidência de dengue, Campinas – janeiro a dezembro de 2014 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 433 Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves com alta taxa de incidência de dengue localizados ao sul da rodovia Anhanguera e um, Conclusões ao norte. Quanto à distribuição temporal, a Cano (2011) apresentou as características do análise indica que o primeiro cluster de áreas processo brasileiro de urbanização em face do com alta taxa de incidência em 2014 ( Cluster massivo fluxo populacional do campo para as 1 – círculo vermelho) foi identificado ao sul cidades no Brasil a partir da segunda metade da Anhanguera, na região dos bairros Cida- do século XX. Esse crescimento das cidades de Satélite Íris, Residencial Campina Verde e pôde ser constatado a partir dos dados do Jardim Florence, tendo ocorrido de fevereiro a IBGE. Kowarick (1979) assim como Maricato maio de 2014. Os demais clusters foram iden- (1996) e Rolnik (2009) indicaram aspectos tificados no período de março a maio daquele como a autoconstrução, a espoliação urbana ano, como é o caso do Cluster 2 (em verde) na e a especulação imobiliária como fatores que região dos bairros Friburgo e Fogueteiro, ex- condicionaram e impulsionaram a expansão tremo sul do município, e do o Cluster 3 (em das periferias urbanas, gerando segregação azul escuro), que compreende os bairros Real espacial e sendo relegados à população pobre Parque, Independência, Recanto Yara, Ciatec I os espaços mal providos ou completamente e Parque das Universidades, apenas para citar desprovidos de infraestrutura urbana. Lago alguns. Tem-se ainda o Cluster 4 (em azul cla- (2000), nesse sentido, apontou a dualização ro), compreendendo o Residencial Jardim Ma- do ambiente construído – população pobre nas racanã, Campos Elíseos e Cidade Jardim, e o periferias versus grupos populacionais mais Cluster 5 (em rosa), que abrange localidades como o Novo Campos Elíseos, Jardim Alvorada, Parque Ipiranga, Jardim Capivari e Jardim do Lago Continuação. A mesma figura apresenta a taxa de incidência de dengue no acumulado de janeiro a dezembro. Os intervalos entre as classes da legenda, de verde a vermelho, são separados pela técnica de quebras naturais ou natural breaks, que busca minimizar a variância intraclasses e maximizar a variância interclasses. Vale observar que os clusters do software SaTScan coincidem com as áreas de elevada taxa de dengue (áreas em amarelo, laranja e vermelho). Isso indica que, de fato, os clusters provenientes do software SaTScan foram sensíveis o suficiente para abarcar as unidades de análise mais relevantes em termos de taxa de incidência de dengue. afluentes nas áreas centrais – como marca do 434 padrão de organização das metrópoles brasileiras a partir dos anos 1950. O município de Campinas encontra-se localizado nesse cenário: expansão urbana sem planejamento satisfatório, que culmina na ampliação das áreas de ocupação e, consequentemente, no incremento de populações vivendo sem acesso adequado aos equipamentos e serviços urbanos. Uma das grandes marcas da separação entre grupos sociais no município é a rodovia Anhanguera. Um conjunto de autores já se dedicou à análise sobre as diferenças entre as áreas mais desenvolvidas ao norte e menos ao sul dessa rodovia que também é chamada de “cordilheira da pobreza”, por marcar uma das principais segmentações dos grupos populacionais no município (Nepo e Nesur, 2004; Cunha et al., 2005; Cunha e Jiménez, 2006). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 Desigualdade social intraurbana Neste trabalho, a utilização do Índice de sul onde se localizam os segmentos popula- Desenvolvimento Humano Municipal e a apli- cionais com menor Índice de Desenvolvimento cação do Índice de Moran para identificar clusters evidenciou a segregação dos grupos populacionais no interior do município, seguindo a lógica da separação geográfica promovida pela rodovia Anhanguera: ao norte os grupos em melhores condições de vida e, ao sul, aqueles com pior nível socioeconômico. A desigualdade social do ponto de vista geográfico não ocorre, portanto, de forma concêntrica, ou seja, do centro para as bordas do município, mas sim através da clara delimitação espacial por essa que é uma das principais rodovias do estado de São Paulo. Para avaliar os diferenciais da taxa de incidência de dengue no nível intramunicipal em Campinas no ano de 2014, utilizou-se o software SaTScan. Essa análise é fundamental tendo em vista que, apesar de a deflagração de casos dessa doença infecciosa ser perpassada por várias escalas espaciais (local, regional, nacional e global), é no âmbito local que os casos de dengue ocorrem. Assim, é nessa esfera que os principais condicionantes da doença se fazem presentes, tanto sociais quanto ambientais. Consequentemente, é também na escala local que políticas focalizadas em espaços e segmentos populacionais específicos podem ser aplicadas no sentido de equacionar o problema dos recursos escassos diante de um vasto território a ser compreendido no controle da dengue. Esta análise possibilitou concluir que os principais clusters espaçotemporais de elevada taxa de incidência de dengue se concentraram na região sul do Município (apenas um foi encontrado ao norte da rodovia Anhanguera). Conforme observado, é exatamente na porção Humano Municipal e, portanto, onde estão con- Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 centradas as piores condições socioeconômicas e de acesso a recursos e serviços urbanos, fatores que apresentam influência sobre o nível do IDHM. Viu-se também que todos os clusters encontrados ficaram restritos à primeira metade do ano de 2014, contexto em que, historicamente, a sazonalidade da dengue aponta para a maior ocorrência de casos, em especial devido a condições adequadas de temperatura e pluviosidade (Confalonieri, 2003; Grassly e Fraser, 2006; OMS, 2012). Neste trabalho foram utilizadas como unidade de análise as Unidades de Desenvolvimento Humano. Essa unidade possibilitou comparar os diferenciais intraurbanos de níveis de Índice de Desenvolvimento Humano Municipal e a taxa de incidência de dengue, algo nunca antes investigado, nessa escala, para um município brasileiro. Vale notar, todavia, que a variável IDHM não é suficiente para explicar a taxa de incidência de dengue em Campinas no ano de 2014. Isso porque, para compreender uma doença multicausal como a dengue, são necessários mais elementos explicativos, relativos não apenas às características da população, como também do ambiente urbano e das interrelações daquela com este. A análise pormenorizada de todos os elementos causais relacionados à epidemia histórica de dengue no município de Campinas foge ao escopo deste trabalho. Ainda assim, é importante citar alguns elementos que ajudam a compreender esse crescimento de casos de dengue em 2014, 435 Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves como: 1) a existência de um grande volume de fatores a partir de estudos específicos, mas a pessoas suscetíveis ao sorotipo que circulou no compreensão do processo epidêmico e a for- município (DEN-1) nesse ano; 2) a qualidade da mulação de políticas públicas eficazes somente estruturação dos espaços e dos serviços urba- ocorrem a partir de uma análise global que nos prestados à população; 3) as intempéries considere todos os elementos relacionados à sofridas pelo Programa de Controle da dengue cadeia de causalidade da dengue. diante da instabilidade política pela qual o mu- Atualmente o mosquito vetor da den- nicípio passou nos anos recentes; 4) a demora gue, o Aedes aegypti, também preocupa por para a reposição de profissionais do controle veicular duas novas doenças no País: a febre da dengue após a finalização do convênio com chikungunya e o zika vírus. A chikungunya causa sintomas mais intensos comparativamente à dengue, enquanto o zika vírus pode apresentar associação com problemas de nascimento, resultando em um aumento de bebês com microcefalia. Compreender as condições socioeconômicas da população e os aspectos do ambiente urbano que propiciam o desenvolvimento desse mosquito, assim como o processo de expansão espaçotemporal das doenças que ele transmite, é um passo fundamental no controle de tais enfermidades e na proteção efetiva de todos os grupos populacionais. o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira; 5) a incerta colaboração da própria população no descarte adequado de resíduos associado à falta de uma política mais efetiva para o setor; 6) a especulação imobiliária que mantém imóveis fechados por longos períodos de tempo; e 7) a mobilidade populacional, que possibilita o aumento do número de casos e sua redistribuição nos níveis inter e intramunicipal (Correio Popular, 2014; G1 Campinas e Região, 2015; Ministério Público, 2015). O aprofundamento pode ser realizado em cada um desses Igor Cavallini Johansen Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Demografia. Campinas/SP, Brasil. [email protected] Roberto Luiz do Carmo Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Demografia. Campinas/SP, Brasil. [email protected] Luciana Correia Alves Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Demografia. Campinas/SP, Brasil. [email protected] 436 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016 Desigualdade social intraurbana Notas (1) Citação original: “The lack of urban and housing policies, as well as the lack of land policies to enable this new urban popula on, mostly poor, to access urbanized land, meant that the majority of this new urban popula on was mostly housed in self-built informal se lements characterized by precarious housing and a severe lack of basic services and infrastructure”. (2) Para mais informações, consultar: Pnud, Ipea e FJP (2014). Existe um site dedicado à explicação sobre o estudo e também disponibilização dos dados para download: h p://www.atlasbrasil. org.br/. (3) Lembrando que caso autóctone é aquele contraído na localidade onde a pessoa habita (Valle, Pimenta e Cunha, 2015). (4) Disponível para download em: h p://www.satscan.org. Referências ANDRADE, V. R. (2009). Distribuição espacial do risco de dengue em região do Município de Campinas. Tese de Doutorado. 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De forma resumida, evidencia-se o efeito do capital financeiro, nos séculos XX e XXI, sobre o espaço urbano, o trabalho e a seguridade social. Defende-se que a perda do direito à cidade é o último estágio do desmonte do Estado de Bem-Estar Social. Com o avanço do capital imobiliário, amplia-se a segregação dos moradores, e os mais pobres se alojam em condições precárias nas cidades, onde vivem 84% dos idosos brasileiros. Esse processo contribui, assim, para a construção de um discurso paradoxal sobre a velhice, sobretudo, no que diz respeito ao direito ao trabalho e à postergação da aposentadoria diante da maior longevidade. Produz-se hipótese a ser explorada em pesquisa posterior sobre o papel do ambiente construído na decisão de aposentadoria. Abstract In this paper, we discuss the urban question and its relation to population aging. We show, in a summarized way, the effect of financial capital, in the 20th and 21st centuries, on urban space, labor and social security. We argue that the loss of the right to the city is the last stage of the dismantling of the Welfare State. With the advance of the real estate capital, the segregation of residents increases, and the poorest ones settle in precarious conditions in the cities, where 84% of Brazilian elders live. Thus, this process contributes to the construction of a paradoxical discourse about old age, especially with regard to the right to work and the postponement of retirement due to increased longevity. We have produced a hypothesis to be explored in further research regarding the role of the built environment in the decision about retirement. Palavras-chave: questão urbana; desenvolvimento econômico; envelhecimento populacional; mercado de trabalho; previdência social. Keywords: urban question; economic development; population aging; labor market; social security. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3607 Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix Introdução quer nos bairros de melhor qualidade urbana; Na análise da pós-modernidade, dois fenôme- ricas, com deficiência de serviços e equipamen- nos saltam como protagonistas para o entendi- tos, em combinação perversa de fatores ligados mento da dinâmica capitalista contemporânea: à concentração de renda e da propriedade do o processo acelerado de urbanização e o tam- solo com ingredientes ligados simbolicamente bém acelerado processo de envelhecimento da a cor/etnia, origem e práticas culturais, pois população. Do ponto de vista socioeconômi- incluem-se valores, hábitos, costumes e signifi- co, esses temas se apresentam dialeticamen- cados de todo um fazer humano com suas ex- te relacionados ao avanço do capital finan- pressões individuais e distinções sociais. o espraiamento da pobreza para zonas perifé- ceiro, hipertrofia da sociedade de consumo, Pode-se dizer, assim, que a cidade con- individualismo, insegurança pública, efeitos da temporânea não apenas reflete as desigual- mundialização1 e do liberalismo; além disso, os dades geradas em outras esferas, como, por tempos atuais carregam significados ligados exemplo, a distribuição de renda, mas que ela à valorização da liberdade, da construção da mesma é produtora de desigualdades. Nesse identidade, assim como de questões de gênero sentido, o direito à cidade e ao lugar, como es- e etnia, entre outros tópicos caros aos analistas paço identitário, é o que lhe possibilita aos in- da sociedade dos séculos XX e XXI. Do ponto divíduos ser mais ou menos cidadão e lhe per- de vista do aumento da população em cidades mite o acesso a direitos e à participação políti- brasileiras, essa proporção chegava a 84% em ca (Santos, 1987). Como nos diz Harvey (2012), 2010 e foi estimada em 86% em 2015 (IBGE, a cidade capitalista global, sustentada pelos 2011; Ipea, 2014). De 1991 a 2011, a expectati- fortes pilares do livre mercado, transformou-se va de vida do brasileiro ampliou-se em 9 anos, em um bem de consumo, e seus habitantes vi- saltando de 66,9 para 74,1 anos e, atualmente, vem dependendo de sua capacidade de consu- 84% da população com mais de 60 anos vive mir o que a cidade lhes oferece. Nesse cenário, 2 nas áreas urbanas (IBGE, 2011). insere-se a questão do envelhecimento. No caso das cidades sob o impacto O envelhecer nas grandes cidades tem do neoliberalismo nessa primeira década do sido um objeto de pesquisa cada vez mais pre- século XXI, pode-se questionar e constatar as sente na Sociologia e outras áreas. O interesse formas pelas quais se persevera a desigualda- crescente no tema surgiu, entre outros marcos, de social, mesmo quando ocorrem substanciais a partir do documento da Organização Mun- progressos econômicos e apesar de algumas dial de Saúde, publicado em 2008, “Cidade ferramentas de proteção social. A desigual- Amiga do Idoso” (OMS, 2008). Desde então, dade urbana é estável, resistente, mesmo que as áreas de economia, urbanismo, direito, mutante. Acompanham tais contrastes sociais, sociologia, saúde e gerontologia voltaram- o esvaziamento do espaço público; a prolifera- -se ao tema seja para avaliar a execução de ção de moradias precárias; a autossegregação políticas públicas destinadas a atender às das elites, quer nos condomínios fechados, recomendações da OMS em busca do bom 442 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 Questão urbana e envelhecimento populacional envelhecimento, seja para fazer conexões en- O objetivo é analisar, portanto, como o tre essas recomendações e a realidade pro- movimento do capital financeiro, em forma de porcionada pela configuração da economia no sua fração imobiliária, interfere na construção século XXI. Por exemplo, no direito à moradia. do espaço urbano de maneira que limita as É o caso de Rolnik, quando destaca que o au- possibilidades do viver do trabalhador idoso (60 mento da propriedade privada da moradia, vis anos ou mais) nas grandes cidades.5 A hipótese à vis os modelos de moradia social do pós-Segunda Guerra Mundial, e a mobilização crescente desse patrimônio imobiliário como forma de riqueza “coincidem com o processo de envelhecimento da população e com a enorme pressão que isso representou para os sistemas públicos de aposentadoria”. A casa própria, destaca a autora, transformou-se em um estoque de riqueza para a vida mais longa devido à aposta em sua valorização ao longo do tempo, que acaba sendo efetivada pela ampliação da especulação imobiliária, e, na prática, termina por substituir os sistemas públicos de previdência (Rolnik, 2015, p. 38). A intenção aqui é estabelecer relações entre a dinâmica demográfica, o “uso do ambiente construído”, no dizer de Harvey (1982), e o discurso econômico defensor da postergação da aposentadoria como um impositivo para uma suposta necessidade de dar sustentação ao sistema de previdência social público (e por repartição). A questão previdenciária em si – quanto ao equilíbrio orçamentário do sistema – está fora do âmbito deste texto, estando presente apenas no bojo do que se entende como Estado do Bem-Estar Social.3 É válido, porém, destacar a existência de profícua literatura sobre o componente político e ideológico na análise de seu financiamento dentro de cada concepção de Estado.4 a ser discutida é como essa “construção” corro- Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 bora para a decisão de antecipação da aposentadoria e desmistifica o discurso de uma possibilidade universal, diante da maior longevidade, de uma reinvenção do trabalhador na fase pós-laboral, por meio de uma segunda carreira profissional. Esses dois pontos (postergação da aposentadoria e nova carreira) foram selecionados por sua relevância no debate econômico internacional sobre o fenômeno do envelhecimento da população, estabelecido sobretudo na defesa da adoção de idade mínima para a elegibilidade aos sistemas de aposentadoria. Na próxima seção será feita uma exposição breve do desmonte do Estado do Bem-Estar Social a partir do fim dos anos 1970 e, sobretudo, depois da crise financeira de 2007/2008. Em seguida, serão relatadas a construção de uma nova velhice na pós-modernidade e o uso desta representação no discurso da economia mainstream6 em relação ao mundo do trabalho e à aposentadoria. Na quarta seção, será analisado como o avanço do capital financeiro constrói o ambiente à sua mercê e em detrimento da “classe-que-vive-do-trabalho” (Antunes, 2011). Na última seção, à guisa de considerações finais, será discutida a dissonância cognitiva do discurso econômico neoliberal sobre o alongamento da vida laboral com a realidade imposta pela questão urbana. 443 Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix A construção do Estado do ‘Mal-Estar Social’ e sistemas de saúde, e que, de forma ampliada, pode ser detectada em serviços sociais que dizem respeito à educação, moradia, arte, cultura, aparelhos para recreação situados em No entender de Oliveira (2004), a América La- subúrbios, transportes públicos subsidiados e tina jamais conheceu um Estado do Bem-Estar até mesmo nos subsídios agrícolas (Judt, 2007, Social como este se apresentou aos europeus p. 87). Ou seja, participava da construção do no pós Segunda Guerra Mundial, seja qual for ambiente rural e urbano. O chamado Welfare o modelo usado como referência (continental, State – dispensável despender energia aqui para defini-lo em detalhes – foi, portanto, um conceito amplo na busca do bem-estar, com voluntarismo do Estado, e resultou em um amortecedor na relação entre o capital e o trabalho, acomodando a principal contradição capitalista em uma sociedade dita salarial (Castel, 2012, p. 463). Bauman lembra ainda que o estado de bem-estar social foi concebido a fim de reabilitar os temporariamente inaptos e estimular os que estavam aptos a se empenharem ainda mais (1998, p. 51). Longe de ser caridade, sublinha o autor, era um direito [grifo dele] do cidadão e não o fornecimento de donativos individuais. Era uma forma de seguro coletivo. Ainda válido destacar, em sua análise, que o estado de bem-estar arcava com os custos marginais do capital pelo lucro e assumia o papel de garantir que a mão de obra deixada para trás se tornaria novamente empregável – um esforço pecuniário ao qual o capital se recusava a empreender sozinho. O principal exemplo de Bauman para essa desconstrução, a partir dos anos 1980, são os sistemas de previdência social, “difamados como sendo um sorvedouro do dinheiro dos contribuintes” (ibid., p. 52). Embora o Brasil sustente ainda a previdência pública por repartição, o sistema sofreu, como mencionado, inúmeras transformações nas reformas de 1998 e 2003, entre outras anglo-saxão ou escandinavo).7 De acordo com o autor, o caso latino-americano sempre se pareceu mais com o “Estado do Mal-Estar Social”. Mesmo com essa assimetria, acentuada a partir da década de 1970, com a fase chamada de “reestruturação do capital”, a América Latina sofre igualmente, ao lado da Europa, com o desmonte da proteção social erguida desde o século XIX por Otto von Bismark (1815-1898) e ampliada no pós-guerra. Tanto em um continente quanto no outro, esse processo se agrava na década de 1990 e radicaliza-se após a crise financeira de 2007/2008 com a política de austeridade fiscal, especificamente na questão de Previdência Social. Enquanto, na Europa, vários países promoveram reformas e elevação da idade mínima para a aposentadoria, no Brasil, completou-se a reforma de 2003 com a aprovação da lei que cria os fundos de pensão para os funcionários públicos (Lei n. 12.618/2012) e alteraram-se, mais uma vez, as regras do Regime Geral de Previdência (Lei n. 13.183/2015), com adoção de alternativas ao fator previdenciário para o contribuinte aposentado por tempo de contribuição. O que é relevante destacar, neste artigo, é aquela rede de proteção construída no pós-guerra que cruzava as fronteiras de seguro desemprego, assistência social, previdência 444 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 Questão urbana e envelhecimento populacional mudanças pontuais, porém relevantes, 8 na e produzem, em contrapartida, segregação, onda do domínio da finança sobre a produ- gentrificação, precarização, além de usurpar o ção. Essas alterações se impõem, no entender direito à cidade daqueles que dependem da in- de Chesnais (2005), pela dinâmica do “capital termediação do Estado para acessar seus locais portador de juros” na mundialização finan- de trabalho, lazer ou moradia que, por força ceira da economia contemporânea a partir da das novas formas espaciais urbanas, passam a década de 1970. Esse movimento caracteriza ser cristalizados na concepção mental do espa- um modelo de capitalismo patrimonialista que ço urbano como o longe. tem como combustível os investidores institu- Esse aspecto será mais bem explorado cionais, incluindo nessa categoria os fundos de adiante. Por ora, é necessário abordar como a pensão e de previdência por capitalização e os pós-modernidade forja a nova velhice assim per- fundos mútuos. Rica literatura (Castel, 2012; mitindo uma análise em paralelo dos dois temas Castells, 1999; Antunes, 2006 e 2008) relata deste artigo, envelhecimento e urbanização. 9 o impacto dessa financeirização também no mundo do trabalho de forma tão eficaz a ponto de providenciar uma nova categoria: o precariado (Paugam, 2000; Standing, 2013). Em poucas palavras, aquele trabalhador sem garantias da seguridade social e mergulhado na imprevisibilidade e incerteza. Se o capital financeiro é o agente para a dissolução dos alicerces do Estado previdenciário ou a regulação do mundo do trabalho, sua fração imobiliária atua para materializar esse processo patrimonialista no espaço urbano (Gottdiener, 1993 apud Véras, 2000, p. 107). É preciso lembrar que nessa fração imobiliária estão inclusos, quase invariavelmente, recursos de investidores institucionais, pois estes são financiadores de empreendimentos. 10 Esse conluio endógeno é que realiza o “Estado do Mal-Estar Social” no século XXI nas chamadas cidades globais (Sassen,1998) ao agir para a construção de um ambiente propício ao fluxo do capital. Essa nova paisagem, tal como prevista desde o fim do século passado (Véras, 2000, p. 106), constitui-se de prédios luxuosos, condomínios fechados, shoppings que alimentam a insaciabilidade do capital imobiliário Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 A construção de uma nova velhice A expansão do capital, depois dos anos 1970, além de produzir uma metamorfose no mundo do trabalho, no Estado do Bem-Estar e no espaço urbano, como resumido acima, simula uma nova representação para a existência humana. Quanto a gênero, por exemplo, o chefe de família perde o papel de male breadwinner, e a mulher amplia, numa intensidade inédita, sua participação no mercado de trabalho, provocando uma revolução na família, na taxa de fecundidade, e impondo “uma nova ordem social” (Esping-Andersen, 2009, p. 1). Muitas outras formas dessa reformulação poderiam ser mencionadas, mas, dentro do propósito aqui estabelecido, a que nos interessa é a velhice. Ao mesmo tempo que auxilia o avanço tecnológico possibilitando à humanidade uma vida mais longa, o capital financeiro age para cobrar a fatura, exigindo, em contrapartida, também o prolongamento da vida laboral. Essa 445 Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix cobrança chega justificada por um discurso de um idoso “fonte de recursos sem fim” ou de que se vive mais e melhor, o que é verdadeiro, “pura potência”. Mas, ao assumir uma velhice porém carregado de simbologias. Debert (1999, saudável, sustentável e a longevidade possível p. 20) fez o diagnóstico dessa reinvenção da como destino inexorável do ser humano do sé- velhice ao apontar a sua “reprivatização” co- culo XXI, a sociedade atribui ao indivíduo um mo consequência da atuação do capital em domínio total sobre o seu ciclo de vida, sem a áreas nunca antes mercantilizadas . interferência do Estado e a despeito, que é o Até a primeira metade do século XX, a importante neste texto, do tipo de interação velhice era responsabilidade quase exclusiva que mantém com o “ambiente construído” das da família, que estava estabelecida em um ar- cidades. O discurso de universalização de uma ranjo sustentável. Num período posterior, relata velhice saudável, sem necessidades, dispensa Debert, o Estado do Bem-Estar Social dividiu o Estado de suas atribuições mais básicas e com as famílias o risco da velhice. Num terceiro exclui a velhice do leque de preocupações da período, sob pressão para reduzir seus gastos e sociedade (Debert, 1999, p. 191). atuar com responsabilidade fiscal, a fim de ga- No espaço concreto, porém, o trabalha- rantir uma suposta estabilidade econômica, o dor idoso enfrenta uma existência, defende-se Estado transferiu ao cidadão as responsabilida- aqui, em três dimensões. A primeira, a do invisí- 11 des, se possível de maneira integral, de suas demandas e obrigações relativas à qualidade de vida e à reprodução da força de trabalho. vel em suas necessidades básicas.14 A segunda, a do visível-sujo, a ser eliminado da paisagem em nome do que Bauman O discurso do envelhecimento ativo, 12 denomina “sonho de pureza” (1998, p. 13). segundo Debert (ibid., 162), “transforma o di- Nessa dimensão, o idoso é visto como um reito de escolha num dever” de todo cidadão. estranho pelas “pessoas do lugar” Ele vai No entanto, a liberdade de escolha que essas ocupar espaços privilegiados na fila do banco, palavras supõem é distribuída igualmente entre por exemplo, no estacionamento do shopping, a população, ao contrário dos recursos públicos no transporte público, portanto, é visto como e privados exigidos para o seu exercício (ibid., um estranho a quebrar a harmonia do am- p. 230).13 Segundo Guillemard (2013, p. 17), o biente. Ele é, de acordo com o raciocínio do conceito do envelhecimento ativo foi estabe- autor, um “consumidor falho”. Defende-se lecido por uma retórica econômica ambiciosa aqui que ele só deixa essa dimensão quando que jamais encontrou ressonância em políticas tem renda para “participar do jogo consumis- públicas, com exceção “no limitado domínio do ta” (ibid., p. 24). emprego para manutenção dos idosos no mer- A terceira dimensão é a do visível-limpo, cado de trabalho” sem conseguir construir uma na qual o idoso consegue manter sua força de “cultura da idade” de forma favorável. trabalho e seu potencial de consumo. São os É evidente que se deve levar em conta a chamados seniores ou os tratados com o eufe- heterogeneidade desse segmento populacio- mismo de “terceira idade”. Manter-se nessa úl- nal, sem aceitar pré-noções de obrigatoriedade tima condição é a única estratégia para o idoso de uma velhice paupérrima ou, ao contrário, escapar do “autismo social” (Ianni,1994, p. 36) 446 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 Questão urbana e envelhecimento populacional ou do ar blasé (Simmel, 1979, p. 18), atitudes à mobilidade urbana, o que será feito na pró- típicas do ser da metrópole. xima seção. No discurso da economia mainstream, porém, existe apenas essa terceira dimensão. O idoso, portanto, de forma linear, como pessoa bem envelhecida e saudável – porque afi- A construção do ambiente pelo capital nal dispôs de toda sorte de ferramentas para alcançar o estágio do envelhecimento ativo –, As cidades são atores sociais complexos e as- estaria apto a ampliar sua vida laboral e, as- sim se expressam na medida em que articulam sim, cooperar com a sustentabilidade dos sis- e interagem com administrações públicas, temas de previdência que, agora, no século agentes econômicos públicos e privados, orga- XXI, são raramente públicos de forma integral. nizações sociais e cívicas, setores intelectuais A maioria deles é mista, sendo cada vez maior e profissionais, meios de comunicação e o a parcela dos contribuintes filiada apenas aos próprio cidadão, ou seja, instituições políti- sistemas privados. Como alerta Debert (1999), cas e sociedade civil (Borja e Castells, 1996, todavia, essa situação de conto de fadas está p. 152). A partir da crise econômica da década distante de ser uma opção. Se não o é para paí- de 1970, as cidades, primeiro as europeias, fo- ses onde predominou o amplo Estado do Bem- ram empurradas para o papel de motores do -Estar Social no pós-guerra, é menos ainda pa- desenvolvimento econômico. Nascia o concei- ra um País com a desigualdade social do Brasil, to das Eurocidades. O mesmo ocorreu na Ásia onde 63,7% dos idosos são chefes de família, (Seul, Taipei, Hong-Kong, Cingapura, Bancoque, 51,9% têm renda abaixo de um salário míni- Shanghai, entre outras) e, como citado acima, mo e escolaridade média de 3,9 anos de estudo logo se tornou tendência mundial. (IBGE, 2011). No mundo da economia global, desta- Esses dados, embora confirmem uma ex- cam Borja e Castells, a velocidade da informa- tensão da fase produtiva, embaçam a imagem ção sobre os mercados internacionais, flexibi- dessa velhice que o discurso mainstream assu- lidade das estruturas produtivas e comerciais me, realidade única e como capaz de protelar determinam o sucesso ou o fracasso. No “siste- a decisão de passar à aposentadoria formal e ma cidade”, os tecidos urbano e econômico se de fato. Os números pouco revelam sobre as confundem sem, no entanto, conseguir evitar condições de inserção do idoso no mercado de “altos custos sociais”. Estes, porém, são insu- trabalho e, menos ainda, explicam o impacto portáveis a longo prazo, pois sua persistência do espaço urbano nessa suposta escolha de implica fatores de dissuasão para a atrativida- postergar o fim da fase laboral. No empenho de da cidade e não qualifica suficientemente de tornar essa relação social menos abstrata, os recursos humanos (1996, p. 153). De acordo é preciso analisar melhor as cidades a partir com os autores, um plano estratégico de cidade desse ponto de vista. Em outras palavras, o seria inevitável para atender a demandas hete- quanto a cidade interfere na condição de tra- rogêneas, a partir de um consenso social para balho do idoso, sobretudo no que diz respeito refazer sistemas de convivência. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 447 Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix Nas últimas décadas, porém, essas pos- público no desenvolvimento urbano entre os sibilidades se constituem cada vez mais impro- anos de 1999 e 2008, a desigualdade intraur- váveis. A sensação de crise funcional das gran- bana resiste em virtude da reestruturação so- des cidades tem se ampliado no século XXI, ciorreprodutiva e territorial do capital, verifica- com a imposição da lógica da “cidade global” da desde o fim dos anos 1970. (Sassen, 1998), na qual prevalece a tendência De acordo com o Relatório das Cidades dos agentes públicos de darem prioridade aos no período 2002-2006, analisado pelos auto- fluxos favoráveis às necessidades do capital res, persiste no Brasil a centralidade Sul-Sudes- na era da mundialização. Essa atitude promo- te e, quanto à possibilidade de desenvolvimen- ve uma metamorfose das grandes cidades em to dos municípios, aparece, de forma crônica, espaços construídos para facilitar o funciona- a dependência da variável localização no ter- mento dos sistemas econômicos transnacionais ritório nacional. Esse diagnóstico é replicado na desregulamentados, financeirizados e sempre configuração intraurbana. O estudo, a partir de carentes de mais urgência em sua atuação em projeções com base na Pesquisa Nacional por tempo real. A imagem das “elites voadoras” de Amostra de Domicílios (IBGE) para o ano 2010, Bauman (2003, p. 102) resume essa realidade. constatou que apenas 33% dos domicílios bra- Essa cidade é forjada para o comportamento sileiros eram totalmente adequados, em 30,5 individualizado, em busca da segurança, com milhões de moradias havia alguma inadequa- a ilusão de pertencimento ou, para usar a pa- ção e nenhum município apresentava 100% de lavra predileta desse autor, um pertencimento seus domicílios plenamente adequados (p. 95). líquido à comunidade. Como esse diagnóstico se aplica à realidade brasileira e interfere nos temas centrais deste artigo? Seria possível incluir aqui literatura teórica para destacar o poder que tem esse movimento do capital no espaço urbano em usurpar o direito à cidade, como Kowarick (2000 e 2002), Harvey (1982, 2012 e 2014), Castells (1981) e Lefebvre (1991). No entanto, abre-se mão do enfoque teórico em benefício da exposição do atual estágio das cidades brasileiras, privilegiando-se, assim, o debate contemporâneo sobre a exclusão territorial. Em análise sobre a precariedade das cidades quanto à condição de domicílio, Rolnik e Klink (2011) destacam que, a despeito do avanço institucional da Constituição de 1988 quanto à função social da propriedade (artigo 5º, inciso XXIII)15 e do aumento “espetacular” do gasto Na pesquisa, foram considerados adequados os 448 domicílios com infraestrutura básica, abastecimento de água, saneamento, luz elétrica, localização, coleta de lixo e densidade populacional da moradia. Os autores destacam que o dinamismo dos circuitos econômicos foi incapaz de produzir cidades com urbanidade e lembram que Oliveira (2003, p. 78), em sua crítica à razão dualista cepalina, que afirma que um segmento atrasado dificulta o avanço social, já ressaltava que esse mesmo imbricamento entre o atraso e o moderno é encontrado nas cidades brasileiras. De acordo com o autor, mesmo entre 1945-1980, o nível do salário real nas cidades se descolou do ritmo de crescimento econômico,16 deixando o trabalhador com renda abaixo da necessária para a reprodução da força de trabalho urbana. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 Questão urbana e envelhecimento populacional Ao analisarem a evolução da massa sala- 1988 e obrigatória para cidades com mais de rial por empregado e o crescimento do PIB per 20 mil habitantes (art. 182, §1º). No entanto, capita nas cidades mais dinâmicas do País, no como sentencia Villaça (2000), expressões co- período 2002-2006, Rolnik e Klink concluem mo “crescimento anárquico, caótico ou desor- por uma provável distribuição funcional da ren- denado”, que acompanham a ideia de “plano da, ou seja, aquela entre salários, lucro e renda diretor”, alimentaram um “mito” de que esse da terra, em favor do capital e em prejuízo do instrumento possa realmente configurar-se trabalho, logo, em uma solução para a questão urbana. Em [...] na ausência de mecanismos compensatórios, o dinamismo econômico e a distribuição funcional de renda distorcida compõem um coquetel perverso, tendendo a agravar a situação do trabalhador pela exclusão socioespacial, alimentada pela valorização especulativa da terra. (2011, p. 101) sua visão, o “anárquico” e o “excludente” são resultados de uma vontade política de investimentos e escolhas quanto à ocupação do solo, independentemente de plano. Se o fosse, questiona, por que os bairros de alta renda cresceriam de forma ordenada e os de baixa renda de forma desordenada? O planejamento urbano, conclui, é usado de maneira ideológi- Antes de prosseguir com a avaliação de ca, com a contribuição da imprensa, mais para outra questão fundamental, a mobilidade ur- esconder do que para resolver os problemas bana, é preciso destacar que, segundo Rolnik urbanos na contemporaneidade.18 e Klink,17 a intervenção do Estado por meio Isto significa dizer que, em suas várias de financiamentos, ampliação de crédito e es- possibilidades de intervenção, por meio de pecificamente o Programa de Aceleração do programas de obras, crédito, financiamento Crescimento (PAC), nos últimos 7 anos, apenas ou plano diretor, o Estado, a depender dos ampliou as consequências de fragmentação do compromissos de gestão, comparece muito território urbano. Ou seja, o caminho assumi- mais como um fator de desintegração do que do pelo poder público é o oposto ao “plano de integração. Ou melhor, de divergência do estratégico” de cidade defendido por Borja e que de convergência, por mais que visões Castells, como citado acima. Como nos ensi- como a de Villaça possam ser relativizadas, nam Véras (2000) e Campos Filho (1989), há pois a execução de um plano diretor atende várias visões conflitantes sobre a construção a inúmeros interesses e lobbies, mas alguma sociológica da cidade e o que vem a ser pla- coisa sempre sobra para o eleitor. Ao longo nejamento urbano. Seja qual for a visão, uma das últimas décadas, o ambiente tem sido construção democrática e inclusiva depende de construído majoritariamente pelo interesse do um processo “participativo”, de novo segundo capital imobiliário (Rolnik, 2015) e com o Es- Borja e Castells, para haver chance de atingir o tado, quase sempre, à frente e possibilitando consenso social. intervenções do mercado, o que produz maior Um dos instrumentos para tal seria o segregação e desigualdade. É o caso de outro chamado “plano diretor”, ferramenta de parti- ponto caro ao objetivo deste texto: a mobili- cipação popular instituída pela Constituição de dade urbana. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 449 Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix Villaça (2011) expõe ainda a importância subúrbios ou periferias, desperdiça o dobro ou do controle do tempo de deslocamento para a o triplo desse tempo.19 Com o baixo investi- produção do espaço das cidades. Os homens, mento público nos sistemas de transporte ao lembra ele, atuam sobre o espaço como meio longo das últimas décadas, os tempos de via- de atuar sobre o tempo. O tempo de desloca- gem casa-trabalho nas regiões metropolitanas mento, como consequência da segregação no triplicaram, e houve um crescimento da motori- ambiente da metrópole, reflete a desigualdade zação individual, com destaque para a compra socioeconômica e, sobretudo, concentra os em- de motocicletas pela parcela de baixa renda da pregos (principalmente do setor terciário, mas população,20 e da degradação dos meios cole- também no secundário) cada vez mais distan- tivos que se tornaram, inclusive, áreas de inse- tes do local de residência dos pobres e, vicio- gurança e risco, principalmente para mulheres samente, próximos daqueles habitantes “mais vítimas de abuso sexual. ricos”, segundo o autor, e, portanto, com maior Esse espaço de risco é intensificado ain- musculatura financeira para enfrentar a espe- da mais com a resposta do Estado às deman- culação imobiliária em seus bairros de residên- das de melhoria da mobilidade. Essa resposta cia. A classe dominante, conclui ele, manipula foi antecipada, de forma profética, cabe aqui a produção desse espaço priorizando sempre a registrar, por vários autores ao longo da última otimização dos seus tempos de deslocamento década. Para Castel (2012), (p. 53), assim [...] a temporalidade se faz presente nas sociedades que precisam sempre produzir mais e nas quais o trabalho de cada um, heterogêneo, qualitativo, transforma-se em quantidade de tempo [...] um continuum rígido. Essa temporalidade, pois, domina o sujeito: o tempo se transforma em espaço [...] Essas reflexões tomam o caráter abstrato da quantidade de tempo: no mundo espacializado do trabalho, o homem, indivíduo pessoal, afetivo, pouco importa [...] _só a engrenagem produtiva é relevante. (Véras, 2001, p. 7) a anomia suscita a violência [e acaba] desembocando não em uma “Grande Noite”, mas em numerosas noites violentas, [e][...] uma sociedade democrática estaria, então, completamente desprovida, ou completamente desonrada diante da exigência de enfrentar essas desordens. Não comportam, com efeito, nenhuma outra resposta possível senão a repressão ou o fechamento em guetos. (p. 568) Para Chesnais (2005), a concentração de riqueza provocada pela finança dominante, que interfere em todas as áreas, colocaria a sociedade Embora os dados oficiais registrem um das grandes cidades, moradores dos chamados diante de uma situação propícia à acentua ção do militarismo, assim como ao reforço dos métodos militares e de segurança para o controle político e social, tanto no plano internacional quanto no doméstico. (p. 57) 450 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 tempo médio de deslocamento casa-trabalho (somente ida) da maioria da população (66,9%) de até 30 minutos (Ipea, 2014), como mostrado no Gráfico 1, o segmento mais pobre Questão urbana e envelhecimento populacional Gráfico 1 – Tempo gasto no deslocamento casa-trabalho (somente ida) Fonte: Elaboração própria, a partir de Ipea (2013), com microdados da Pnad (2009). Bauman (1998) já havia constatado que o “problema” dos pobres fora remodelado como a questão da lei e da ordem, e os fundos sociais outrora destinados à recuperação de pessoas temporariamente desempregadas (em termos econômicos, a reacomodação da mão de obra) são despejados na construção e modernização tecnológica das prisões ou outros equipamentos punitivos e de vigilância. (p. 78) Estado aos protestos, como tentativa de impor a legitimidade perdida com o exercício do monopólio da violência. De acordo com o autor, vários foram os motivos para os protestos pelo mundo desde 2010 na Tunísia, mas a questão urbana estava subjacente a quase todos – sobretudo no Brasil. Ao usarem a internet, razão de ser da denominada sociedade informacional, os manifestantes, na interpretação de Castells, buscaram se organizar para ocupar um espa- O propósito das citações foi registrar os ço que consideravam ilegitimamente ocupa- alertas para a militarização da questão social do pelas autoridades, governos e empresas, e da gestão urbana como consequência da vistos como responsáveis pela produção de financeirização. Como constatado por Castells (2013), as manifestações que varreram o mundo no início deste século foram alimentadas pela resposta violenta desproporcional do “contradições entre uma democracia baseada Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 no cidadão e uma cidade à venda pelo lance mais alto” (ibid., p. 177). A despeito de esses movimentos levantarem várias bandeiras, 451 Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix insinuando uma união frágil, Castells alerta o trabalhador idoso é obrigado a adaptar-se para o fato de a mobilização ser permanente, a esse ambiente (re)construído. Ele habita, por meio da rede virtual, e a qualquer mo- compartilha e frequenta diariamente o espaço mento se materializar no espaço físico. Essas público para exercer seu direito ao trabalho ou cobranças por ocupar, portanto, resultam em para atender a essa nova requisição do Estado, ambiente de constante tensão nas cidades, nos cada vez mais propício a enxergar o envelhe- bairros nevrálgicos, nas avenidas principais, no cimento da população com lentes puramente transporte público ou na periferia. Viver na ci- fiscalistas, de protelar sua aposentadoria for- dade passa a ser a convivência com um estágio mal, estender sua vida laboral ou reinventar-se de violência perene e muito além do risco tra- como nova força de trabalho depois do marco dicional de assaltos. cronológico dos 60 anos. Em outras palavras, o Analisando o segmento idoso no cenário desmonte do bem-estar social faz desaparecer da cidade, em seus fluxos e velocidade, Gue- aquela seguridade coletiva do passado e al- des (2014), ao pesquisar as atitudes para com cança um último estágio ao negar-lhe o direito o idoso no Metrô de São Paulo, relatou como à cidade. este se insere nas redes e itinerários, quais as representações sobre ele, como é percebido e tratado pelos demais usuários do Metrô. A sua questão central era apreender a produção da alteridade, ou seja, perceber como as pessoas concebem algumas como semelhantes, como um nós, parte do mesmo grupo social, ou porque outras são excluídas, tratadas como diferentes e categorizadas como eles. O autor coletou depoimentos que identificam as dificuldades no cotidiano das viagens pendulares casa e trabalho: “falta de respeito... convivência mais conflituosa que construtiva... reações de intolerância e discriminação”: Eu acho que em horários de pico os lugares preferenciais deveriam ser liberados! Pois a gente sai cansado do serviço e tem de dar lugar para os idosos que se prevalecem da idade e muitas vezes estão vindo de passear porque não tem nada para fazer em casa. (Apud Guedes, 2014, p. 78) Considerações finais Em muitas análises sobre a velhice, o idoso é abordado quase como um ser à parte, uma autonomização da existência humana, sem ciclo de vida. Neste texto, ao analisar a cidade como um “ambiente construído”, procurou-se mostrar que a questão urbana interfere na construção das possibilidades da velhice. Se vive na cidade, logo, assim como todos os outros fatores relacionados com a determinação do bem-estar na fase idosa, como alimentação, exercício físico, educação, vícios, prevenção, o meio urbano também influencia as condições do envelhecimento. O objetivo aqui foi questionar, especificamente, qual o papel do espaço urbano na decisão individual de prolongar a vida laboral ou para o trabalhador escolher o momento da aposentadoria formal. Em sua empreitada de manter-se na Foi analisado o papel do capital finan- terceira dimensão da velhice, a visível-limpa, ceiro no desmonte do Estado do Bem-Estar 452 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 Questão urbana e envelhecimento populacional Social, sobretudo a partir dos anos 1970 e, considerada precoce pelos parâmetros que o principalmente, depois de 1990 e nos dias próprio Estado, pressionado pelas exigências atuais, dominados pelos efeitos da crise mun- do capital, procura estabelecer como regra de dial deflagrada em 2007-2008. Foi visto como idade mínima. Ainda que permaneça, no mer- a dinâmica da financeirização promove uma cado de trabalho na condição de aposentado, metamorfose na representação da velhice, to- o trabalhador maduro opta pela aposentadoria mando como universais as possibilidades do para abrir alternativas de sobrevivência, in- envelhecimento ativo. O capital financeiro, como agente do desmonte do Estado do Bem-Estar, atua – em sua fração capital imobiliário – para forjar a cidade como “ambiente construído” e, portanto, reduzindo as oportunidades de bem-estar durante todo o ciclo de vida do trabalhador urbano, limitando, assim, suas possibilidades na velhice. A hipótese suscitada pela pesquisa bibliográfica, mesmo que seja explorada em ocasiões posteriores, é que a degradação da vida urbana, a segregação e a exclusão, provocadas pelo predomínio dos interesses do capital imobiliário, são fatores que contribuem para a antecipação da aposentadoria formal. A situação das cidades penaliza ainda mais o usuário vulnerável do transporte coletivo e/ou o morador de menor renda. No caso do trabalhador idoso, ele é obrigado a se submeter a toda sorte de risco no espaço público sem chance de escolhas, logo, opta por livrar-se tão logo seja possível dessa condição. Registra-se que a idade média de aposentadoria no Brasil é de 54 anos – um ano a mais do que era em 1998, data da primeira reforma da Previdência Social, que instituiu o fator previdenciário (Camarano et al., 2012). O aumento dos custos sobre moradia e transporte, principalmente, mas também lazer, saúde e outras despesas, antes divididas com o Estado e hoje mercantilizadas, estariam empurrando o trabalhador para a aposentadoria fluenciadas pela degradação das cidades, como Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 reduzir seu tempo de mobilidade com a obtenção de um emprego mais próximo de seu local de residência – na maioria das vezes em condição informal – ou buscar empregabilidade em cidades menores. Mesmo com o valor de seu benefício reduzido, ao incidir o fator previdenciário sobre o cálculo, o trabalhador opta pela aposentadoria considerada precoce. Um dos fatores determinantes de sua decisão seria “se livrar” da agrura de ida e vinda diária ao local de trabalho na grande cidade. Seu benefício reduzido, então, passa a ser uma complementação da renda vislumbrada pela permanência no mercado de trabalho em situação informal, no caso dos menos qualificados, como afirmam Camarano et al. (ibid.). Uma das hipóteses para essa renda é ajudar a sustentar os custos crescentes de morar na cidade (média ou grande), onde as condições de se reinventar na velhice podem ser mais promissoras. Vale destacar ainda o duplo papel do capital financeiro a produzir um discurso e uma ação paradoxal sobre o sistema de aposentadorias. De um lado, o capital atua para construir um ambiente urbano a favor de sua reprodução e acumulação em detrimento do bem-estar do trabalhador. De outro, sob a justificativa da existência de um novo envelhecer ou do envelhecimento populacional, exige a protelação da aposentadoria em favor 453 Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix do equilíbrio fiscal ou mesmo vislumbra reti- confronto na prática e resultam no efeito con- rar do Estado a responsabilidade previdenciá- trário, ou seja, um estímulo adicional à anteci- ria. No entanto, as duas atuações entram em pação da aposentadoria. Maura Pardini Bicudo Véras Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Sociologia, Departamento de Ciências Sociais. São Paulo, SP/Brasil. [email protected] Jorge Felix Universidade de São Paulo, Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. São Paulo, SP/ Brasil [email protected] Notas (1) Os termos “globalização” e “mundialização” são, muitas vezes, usados como equivalentes, porém são falsos sinônimos. O primeiro tem origem nas escolas de administração de empresas norte-americanas, e o segundo é de formulação de economistas franceses (mondialisa on). Os que cunharam o primeiro concebem o mundo contemporâneo como um globo plano e assumem que todos os agentes econômicos dispõem de iguais oportunidades de compe ção; os que usam o segundo entendem que o mundo é um espaço hierarquizado, cujas regras são as que mais convêm às potências capitalistas centrais. Ver Chesnais (1996, p. 24) e S glitz (2007, p. 411). (2) Optou-se aqui por usar os dados do Censo. No entanto, na Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, a expecta va de vida do brasileiro ao nascer, em 2014, era de 75,1 anos contra 74,9, em 2013, e 74,6 em 2012 (IBGE, 2015). (3) No caso do Brasil, Seguridade Social, como delimita o Ar go 194 da Cons tuição Federal, isto é, saúde universal, previdência social e assistência social. (4) Ver Esping-Andersen (2008), Palier (2003), para o contexto internacional, e Felix (2012), para o nacional. (5) Estabelece-se como definição de idoso e “trabalhador idoso” a pessoa com mais de 60 anos de idade, como determinam o marco legal brasileiro e a Organização das Nações Unidas. Nos países ricos, a ONU estabelece a idade de 65 anos para considerar a pessoa idosa. 454 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 Questão urbana e envelhecimento populacional (6) O discurso econômico mainstream é entendido, aqui, como a narra va sobre a polí ca econômica que se tornou hegemônica na mídia internacional e nos organismos mul laterais, como Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário Internacional, a par r do fim dos anos 1980 quando este úl mo adotou um receituário com dez recomendações econômicas, conhecido como Consenso de Washington, para todos os países da América La na. Essas ideias, porém, também foram empreendidas na economia europeia promovendo a desconstrução do Estado do Bem-Estar Social do pós- Segunda Guerra Mundial. Essa “receita única” para esses países alcançarem o equilíbrio macroeconômico previa austeridade fiscal, redução da carga tributária, câmbio flutuante, “juros de mercado”, abertura comercial, eliminação de restrições ao Investimento Estrangeiro Direto, desregulamentação financeira, direito à propriedade intelectual (patentes) e privatização das estatais e dos sistemas de previdência social. Esse discurso domina o ambiente entre 1978 até a crise financeira de 2008, período ba zado de “Trinta Anos Neoliberais” (Bresser-Pereira, 2015, p. 17). (7) Ver Esping-Andersen (2008) ou quadro esquemá co em Guillemard (2010, p. 106). (8) Ver detalhes em Ba ch (2010) e Felix (2012). (9) Ver Chesnais (2005). (10) A empresa PDG, por exemplo, líder do setor imobiliário da América Latina, tem a seguinte composição acionária: 15,74% Orbis Investment Management Ltd; 10,53% Vinci Equi es Gestora de Recursos Ltd; 9,13% Vinci Capital Partners II Fundo de Inves mento em Par cipações; 5,39% Pla num Investment Management Ltd; 5,31% Bank of America; 5,15% Skopos Investment Ltd; 0,51% diretoria; e 48,24% Outros, de acordo com informações do site da empresa acessado em 24 de outubro de 2014:. http://ri.pdg.com.br/conteudo_pt.asp?idioma=0&conta=28&ti po=32510. Acessado em: 24 out 2014. (11) Cita-se aqui, a tulo de ilustração, o exemplo do Chile, que priva zou totalmente a previdência e, parcialmente, a saúde e a educação. (12) Ver OMS (2002). (13) Sobre escolhas, do ponto de vista da Economia Social, ver Sen (1999, pp. 141-142). Vale a citação de Bauman (1998, p. 118): “A liberdade de escolha, eu lhes digo, é de longe, na sociedade pós-moderna, o mais essencial entre os fatores de estra ficação”. (14) Ver Berzins e Borges (2012); Camarano (2010) e Hirata e Guimarães (2012). (15) Os autores citam ainda os ar gos 182 e 183 da CF (capítulo Polí ca Urbana) e o Estatuto da Cidade (Lei Federal 11.257/2001). (16) Ver Pochmann (2007), para obter dados sobre o poder de compra do salário mínimo no período (p. 118) e em relação à renda nacional (p. 122). (17) Para sustentar a afirmação, os autores citam Leitão (2009). (18) Outras crí cas ao planejamento urbano são feitas por Senne (1988), ao tratar das ranias da in midade e do esvaziamento dos espaços públicos, pois o planejador, ao tentar oferecer praças, melhorar a qualidade de vida, não consegue ler as enfermidades sociais e acaba por encontrar nos munícipes desconfiança em relação aos outros ou uma perversão do que entendem por vida comunitária ”[...]cria a própria esterilidade que poderia estar querendo evitar” (p. 380). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 455 Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix (19) É importante destacar que esse percentual se refere a toda área urbana do país, metropolitana ou não. Até 1h são 23,6%, enquanto 8,4% demoram de 1 a 2 horas e 2,1% mais de 2 horas. (20) Mais da metade (54%) dos domicílios brasileiros têm um automóvel ou motocicleta. De 2008 para 2012, o percentual de domicílios com esses pos de veículos subiu nove pontos percentuais (45% em 2008 para 54% em 2012). As motocicletas veram o maior incremento, e os acidentes são responsáveis por 12 mil mortes por ano. No estrato de renda de até um quarto do salário mínimo per capita, 28% das famílias possuem carro ou moto, e nessa população há maior ocorrência de posse de motocicleta. De 2008 a 2012, a posse de veículos privados na camada mais pobre subiu 10 pontos percentuais. Das famílias abaixo da linha da pobreza (até meio salário mínimo per capita), 35% já usufruem de veículos privados, 12 pontos percentuais acima do índice de 2008 (Ipea, 2013, p. 3). Referências ANTUNES, R. (2006). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo, Boitempo. ______ (2008). O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo, Boitempo. ______ (2011). Adeus trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo, Cortez. BATICH, M. (2010). “A previdência social sob a mira dos fundos de pensão”. In: MARQUES, R. M. e FERREIRA, M. R. J. (orgs.). O Brasil sob a nova ordem, a economia brasileira contemporânea, uma análise dos governos Collor a Lula. São Paulo, Saraiva. BAUMAN, Z. (1998). O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Zahar. ______ (2003). Comunidade, a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro, Zahar. BERZINS, M. V. e BORGES, M. C. (2012). Polí cas públicas para um país que envelhece. 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Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016 459 Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares por doenças respiratórias e circulatórias em uma área da cidade de São Paulo Intra-urban inequalities in hospitalizations for respiratory and circulatory diseases in an area of the city of São Paulo Helena Ribeiro Edelci Nunes Silva Resumo As dinâmicas existentes em áreas urbanas apresentam consequências à saúde, relacionadas aos determinantes sociais e ambientais, à promoção da saúde e à atenção primária. O artigo mapeia e analisa as internações hospitalares por doenças respiratórias e circulatórias de idosos e respiratórias em crianças por distritos em área da cidade de São Paulo, comparando-as com a distribuição espacial do índice de desenvolvimento, da qualidade socioambiental, da presença de favelas, a partir de dados secundários públicos e do georreferenciamento com o programa ArcGis 9.2. As internações por doenças do aparelho circulatório e respiratório em idosos apresentaram padrão socioespacial. Maiores taxas estão relacionadas aos distritos com pior perfil socioambiental e baixo IDH e taxas menores estão associadas aos distritos com melhor perfil socioambiental e alto IDH. Não houve um padrão socioespacial definido das internações de crianças. A espacialização da morbidade refletiu as desigualdades na cidade de São Paulo. Abstract The dynamics that exist in urban areas present consequences to health, related to social and environmental determinants, health promotion and primary care. The article maps and analyzes hospitalizations for respiratory and circulatory diseases in elderly individuals and for respiratory diseases in children by district in an area of the city of São Paulo. It compares them to the spatial distribution of the human development index, of socio-environmental quality, and of the presence of slums, using public secondary data and georeferencing through the software ArcGis 9.2. Hospitalizations due to circulatory and respiratory diseases among the elderly showed a sociospatial pattern. Higher rates occur in the districts with worse socio-environmental profile and low HDI, and lower rates occur in districts with better socio-environmental profile and high HDI. No socio-spatial pattern was found for children’s hospitalizations. The space distribution of morbidity reflected inequalities in the city of São Paulo. Palavras-chave: saúde urbana; desigualdade; internação hospitalar; doença respiratória; doença circulatória. Keywords: urban health; inequalities; hospitalization; respiratory disease; circulatory disease. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3608 Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva Introdução “O município de São Paulo, impulsionado pelo A cidade de São Paulo, com aproximadamente migratório, teve como consequência concentrar 12 milhões de habitantes (IBGE, 2015) e uma pessoas, riquezas, mas também desigualdades” área de 1.521 km², incorporou as novas de- (Peres e Ruotti, 2015). desenvolvimento econômico e pelo amplo fluxo mandas do modelo econômico global e reafir- A cidade tem, portanto, nos seus interstí- mou seu status de metrópole global. É o centro cios, um mosaico complexo de espaços ricos e de comando, de negócios e de fluxos de infor- pobres, altamente segregados. Há presença de mações, que concentra atividades de serviços bairros nobres lado a lado com favelas; espa- e constitui um importante polo econômico, no ços verticalizados e consolidados com presença País e no mundo. de cortiços e de sem-teto. As favelas crescem Até a década de 1970, a organização do na periferia, mas também estão presentes nos espaço da cidade baseou-se no padrão centro- setores ricos, recém-incorporados pelo capital -periferia, ou seja, as áreas centrais e dotadas (Taschner, 2001; Santos e Silveira, 2001e Al- de infraestrutura urbana foram destinadas à meida, 2001). Como em outras regiões metro- população de mais alta renda, enquanto as politanas do País, “crescem as áreas habitadas áreas periféricas, distantes do centro, e caren- por pessoas em moradias precárias, formando tes de infraestrutura foram ocupadas pelas ca- ocupações irregulares que afetam as condições madas mais pobres da população. de saúde da população” (Aith e Scalco, 2015). Nas décadas seguintes, as transforma- Há, concomitantemente, uma tendência ções foram impulsionadas pela globalização de modificação do perfil populacional. A popu- contemporânea, “um fenômeno multifacetado lação da cidade vem envelhecendo. O percen- com dimensões econômicas, sociais, políticas, tual da população acima de 60 anos aumen- culturais, religiosas e jurídicas interligadas de tou, entre 1970 e 1991, de 6,08% para 8,08% modo complexo” (Souza Santos, 2002). O au- (Taschner, 2001, p. 35): em 2007, representava mento de abertura das fronteiras ao comércio 11% da população total (IBGE, 2007) e, em e aos fluxos de capital econômico, a crescen- 2015, a população de idosos correspondia a te incorporação tecnológica, a ampliação dos 13,5% (Seade, 2016). Na periferia, o percentual meios de comunicação a novas tecnologias di- também vem aumentando. Nas décadas ante- gitais, a migração de populações, em busca de riores a 1991 era 3%; em 1991, 4,60%; e, em melhores condições de vida e trabalho (Ribeiro 1996, 4,99% da população tinha 60 ou mais e Vargas, 2015), provocaram a modificação do anos (Taschner, 2001, p. 35). padrão centro-periferia. As novas necessida- Essa dinâmica espacial e populacional se, des do mercado e do capital levaram à incor- por um lado, cria uma cidade heterogênea, por poração e a investimentos em novas áreas e à outro, concentra, em algumas áreas “nobres”, desvalorização de algumas regiões centrais, já dotadas de serviços e infraestrutura, a popula- consolidadas. Esse modelo se caracterizou pe- ção afluente e áreas com população de baixa lo aprofundamento do processo de segregação renda, com todo tipo de carência – de mora- intraurbana e pela polarização da vida social. dia, de emprego, serviços, infraestrutura básica, 462 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares... como água, esgoto, etc. e de saúde, educação, populacionais, sociais e ambientais, ocorrido cultura, lazer – aprofundando os problemas nas áreas urbanas e, mais especificamente, nas sociais e mantendo a população na espiral da cidades dos países em desenvolvimento, nas pobreza (Santos, 1996, p. 10) últimas décadas do século XX e início do século Uma das dimensões da degradação das XXI (Opas, 2011). condições de existência são as condições socio- As dinâmicas existentes, em áreas ur- ambientais e de saúde a que estão submetidas banas, apresentam consequências à saúde, parcelas da população, revelando mais uma relacionadas aos determinantes sociais e am- dimensão da pobreza e da iniquidade urbanas. bientais, à promoção da saúde e à atenção pri- Ribeiro (2006) e Santos (2003) ressaltam, mária. O crescimento urbano não planejado e porém, que a urbanização em si não é um mal. insustentável exerce pressão sobre os serviços Os autores argumentam que, do ponto de vista básicos e dificulta o atendimento de necessi- da saúde, a urbanização trouxe muitos benefí- dades de uma população diversa, fazendo com cios, tanto no nível individual, quanto no cole- que as disparidades sociais aumentem no inte- tivo. De modo geral, houve queda nas taxas de rior das cidades, com repercussões importantes mortalidade, mortalidade infantil tardia e au- na saúde (ibid.). Em 2011, a Organização Pan- mento na expectativa de vida, em função dos -americana de Saúde aprovou Estratégia e Pla- vários benefícios trazidos pelos equipamentos no de Ação sobre a Saúde Urbana para atender urbanos, como o acesso a água potável, sanea- às necessidades sanitárias específicas da po- mento básico, energia, bem como pelos pro- pulação urbana das Américas, com base em 5 gramas de vacinação, de complementação ali- princípios orientadores: equidade, sustentabili- mentar, acesso aos serviços médicos, educação, dade, desenvolvimento sustentável, segurança informação, etc. humana e bom governo. O provimento de serviços de saneamen- Para atender ao princípio da equidade, é to e de saúde pública, ainda que de forma não necessário que se conheça a situação de saúde universalizada, levou a uma mudança no perfil da população urbana e de sua relação com o da morbimortalidade. Nas cidades, o surgi- espaço social e ambiental. mento e o agravamento das patologias estão Apesar de os registros das informações muito ligados ao modo de vida, às desigualda- em saúde, no Brasil, disponibilizarem os ban- des sociais e ambientais (Ribeiro, 2006; Jara et cos de dados de mortalidade e internações al., 2010). hospitalares na rede mundial de computado- No meio urbano paulistano, “as patolo- res, permitindo verificar sua distribuição espa- gias mais relevantes estão relacionadas às fai- cial, poucos estudos têm sido feitos analisan- xas etárias, ao ambiente social e aos impactos do a distribuição espacial intraurbana, para ambientais das diversas poluições” (Ribeiro, identificar e entender as desigualdades em 2006, p. 292). saúde no interior das cidades. Barata (2012) A apreensão dos impactos do ambiente ressalta a importância da análise dos eventos na saúde deve, portanto, considerar esse com- de saúde, em relação ao local de moradia, to- plexo processo de transformações: espaciais, mando o espaço geográfico como indicativo Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 463 Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva das condições de vida da população que nela se determinar a magnitude das iniquidades reside, para abordar as desigualdades sociais em saúde é a medição das desigualdades. Elas no plano de agregados. podem indicar as necessidades não satisfeitas Esses dados, contudo, apresentam limita- de serviços de saúde, assim como populações ções. Por exemplo, os dados de internação são vulneráveis (Loyola; Castillo-Salgado; Nájera- tratados para efeitos de pagamento e repasse -Aguilar et al., 2002). de recursos financeiros do Sistema Único de Este trabalho tem como objetivo verificar Saúde aos hospitais, e não com fins epidemio- a distribuição espacial de residentes internados lógicos; e os dados de mortalidade estão dis- em hospitais públicos, em uma área da cidade poníveis, somente, na escala temporal mensal. de São Paulo, Brasil, com mapeamento de da- Mesmo assim, é possível realizar estudos com dos de internação hospitalar por doenças res- essas informações, que indicam diferenças es- piratórias, em crianças; e respiratórias e circula- paciais, e correlacioná-los com outras variáveis. tórias, em adultos maiores de 60 anos, utilizan- A saúde depende de características individuais, do a série temporal de 2003 a 2007. Essa série físicas e psicológicas e, também, do ambiente temporal foi utilizada porque os dados finaliza- mais próximo das pessoas, do ambiente ma- dos de internação hospitalar, por endereço de crorregional e do global (Aith e Scalco, 2015). residência dos pacientes, demoram a ser dispo- Os registros existentes e disponíveis nibilizados pelo Datasus aos pesquisadores, por referem-se à ponta do iceberg das condições algumas razões: dependem da alta do paciente de adoecimento, de modo que pequenos incô- para que os dados consolidados sejam proces- modos e problemas de saúde, que não levam à sados, e esta pode demorar, em alguns casos; internação hospitalar, requerem a realização de dependem de verificação e correção do endere- inquéritos de saúde, os quais podem ser muito ço de residência dos pacientes; só são liberados custosos e demorados. em casos especiais de pesquisa científica, em Sendo assim, a cartografia, e, principal- que os endereços individuais não sejam revela- mente, os Sistemas de Informação Geográfica dos, por questões éticas. Nesse caso, os dados SIG/GIS, consiste em ferramenta importante foram obtidos para tese de doutorado, reali- para os pesquisadores, pois, através dela, é zada na Faculdade de Saúde Pública da USP, e possível localizar o evento no espaço e rela- serão publicados após a defesa. cioná-lo às variáveis socioambientais, a fim de lançar hipóteses sobre o porquê de sua ocorrência ou de obter explicações relacionadas Metodologia aos fatores espaciais, permitindo melhorar o conhecimento dos processos de saúde e de Para a realização do presente estudo, foram doença. Adicionalmente, os SIGs permitem mo- utilizados dados secundários de morbidade nitorar as desigualdades em saúde, ao fazer si- referentes às internações hospitalares regis- multaneamente, uma análise múltipla de vários tradas nas AIHs – Autorização de Internações determinantes de saúde, em diferentes níveis Hospitalares – obtidos no Sistema de Informa- de agregação. Um dos primeiros passos para ções Hospitalares do Sistema Único de Saúde 464 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares... (SIH/SUS) (Datasus, 2016), de pessoas residen- e, por isso, os distritos escolhidos são repre- tes em 14 distritos do município de São Paulo: sentativos de condições climáticas semelhan- Cidade Ademar, Cidade Dutra, Campo Belo, tes, mas de perfil sociodemográfico diverso Campo Grande, Cursino, Socorro, Itaim Bibi, do município de São Paulo. Ou seja, a área de Jabaquara, Moema, Pedreira, Sacomã, Santo estudo abrange distritos com excelentes a pés- Amaro, Saúde e Vila Mariana (Figura 1). simas condições socioambientais e, por isso, foi Esses distritos foram escolhidos por con- selecionada para pesquisar desigualdade em terem, no seu território, duas estações meteo- saúde, tendo o clima como controle. Segundo rológicas representativas das características cli- Barata (2012, p. 35), “a vantagem de utilizar máticas da cidade de São Paulo. O clima é um espaços geográficos como indicadores de con- indicador ambiental importante na avaliação dições de vida está em tomar a complexidade do desencadeamento das doenças estudadas de organização social em seu todo”. Figura 1 – Localização dos distritos estudados no município de São Paulo Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 465 Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva A fim de nortear as análises da distribuição espacial das internações hospitalares, um determinado ano, os dados foram reunidos em uma planilha única (2003 a 2008). informações sobre os aspectos dos distritos fo- O georreferenciamento dos dados foi fei- ram mapeadas: concentração de favelas, perfil to a partir do Código de Endereçamento Pos- socioambiental, índice de desenvolvimento hu- tal (CEP) de residência do paciente, utilizando mano – IDH e população. o programa ArcGIS versão 9.2. Foi utilizada a A população estudada foi de crianças base de ruas com projeção SAD69. Nesse pro- menores de 5 anos, para as internações por cedimento, houve perda de informações devido doen ças respiratórias, e o grupo etário de à não localização dos CEPs. Os endereços cujos 60 anos ou mais, para doenças do aparelho CEPs não foram localizados e as informações circulatório e respiratório. São os 2 grupos etá- duplicadas foram excluídos da análise. rios com maior vulnerabilidade aos impactos negativos do ambiente. Apesar de ser possível a desagregação da informação até o nível do setor censitário, A partir do conjunto de dados do esta- no presente trabalho, optou-se por utilizar a do de São Paulo, foram selecionadas as infor- escala do distrito por duas razões: a) falta de mações relativas ao município de São Paulo – informação sobre a projeção populacional no código 355030 e, posteriormente, as doenças nível do setor censitário; e b) muitos dados de conforme a versão 10 da Classificação Inter- internação se concentraram no setor censitário nacional de Doenças – CID 10 – Capítulo 9 – dos hospitais. Doenças do Aparelho Circulatório (I00 – I99) e As internações por doenças do apare- Capítulo 10 – Doenças Respiratórias (J00-J32; lho circulatório – Capítulo 9 – correspondem J40-J47; J80-J99) de 2003 a 2007. a 24.318 casos, ou 8,6% do total de todas as O SIH-SUS é um banco de dados adminis- internações no período de 2003 a 2007, no se- trativo, cujo objetivo é viabilizar o pagamento tor estudado. As doenças respiratórias corres- dos serviços prestados pelo Sistema Único de pondem a 12.269 casos de crianças menores Saúde – SUS e que contém informações sobre de 5 anos, ou 5,0%; e 8.894, ou 3,7% do total as internações hospitalares. Assim, uma inter- de internações de pessoas acima de 60 anos, nação ocorrida em um determinado ano pode respectivamente. ser processada no ano seguinte à internação ou As taxas anuais foram calculadas, por nos anos subsequentes. Por exemplo, no banco distrito, e padronizadas por idade, conforme de dados de 2004, há informação de interna- fórmula abaixo: ções ocorridas em 2003, 2002, 2001, 2000, e assim por diante, ou seja, as informações referem-se ao ano em que os procedimentos com a Tx. = número de internações/ano no distrito _____________________________ x 10.000 hab. população da faixa etária no distrito internação foram pagos, e não ao ano em que ela ocorreu. Dessa forma, para obter o conjunto das informações de internação ocorridas em 466 Os mapas temáticos foram feitos no software ArcGIS versão 9.2. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares... Características dos distritos A região selecionada é cortada por importantes vias e de tráfego intenso – como a Avenida Nações Unidas (marginal do Rio Pinheiros), a Avenida dos Bandeirantes, a Rodovia Imigrantes, que faz ligação com o Litoral de São Paulo, entre outras – e tem presença significativa de favelas. Áreas de favelas estão em todos os distri- concentram, em seu território, maiores quantidades de favela. A Figura 5 mostra a proporção, por distrito, da população (%) de crianças residentes, em relação ao total da população do setor estudado. A distribuição mostra que os distritos mais centrais apresentam menores taxas de população infantil (menos de 5%), enquanto os distritos do Sacomã, Jabaquara, Cidade Dutra apresentam até 15% da população de crianças menores de 5 anos, e o distrito de Cidade Ade- tos selecionados, exceto o distrito de Moema. mar apresenta a maior proporção de crianças Na Figura 2 é possível verificar a maior concen- menores de 5 anos, com percentual acima de tração, em número e em tamanho, de áreas de 15% do total da população do setor. favelas nos distritos do Jabaquara, Cidade Ademar, Cidade Dutra, Pedreira e Sacomã. A Figura 6 mostra que a população de mais de 60 anos está concentrada nos distritos O IDH apontou os distritos do Ibirapuera de Vila Mariana, Sacomã e Jabaquara – mais e de Moema com os melhores indicadores de de 10% da população do setor –, enquanto os desenvolvimento humano (alto nível). Por ou- distritos de Socorro e Pedreira contêm menos tro lado, os distritos de Cidade Ademar, Cidade de 5% da população com mais de 60 anos. Os Dutra e Pedreira apresentam os piores indica- distritos restantes abrigam até 10% da popula- dores (nível baixo) (Figura 3). ção de mais de 60 anos em seus territórios. Os distritos de Santo Amaro, Socorro, Estudo sobre os usuários do Sistema Campo Belo e Moema são aqueles que apre- Único de Saúde (SUS), no município de São sentam melhor qualidade socioambiental, Paulo, indicou que, aproximadamente, 50% da situando-se nos primeiros grupos. Os distritos população residente depende exclusivamente de Campo Grande, Itaim Bibi, Vila Mariana, do atendimento do SUS, mas a distribuição é Cursino, Saúde, Pedreira e Cidade Dutra são desigual. Nos distritos estudados, 7 têm por- aqueles que apresentam características inter- centagem de usuários inferior a 40%: Moema, mediárias, do ponto de vista socioambiental; Itaim Bibi, Campo Belo, Vila Mariana, Morumbi, enquanto os distritos de Sacomã, Jabaquara e Santo Amaro, Saúde. Os distritos com usuários Cidade Ademar são os que apresentam as pio- acima de 40% são Cursino, Socorro, Sacomã, res condições socioambientais, segundo a clas- Jabaquara, Cidade, Dutra, Cidade Ademar, e so- sificação da Secretaria do Verde e Meio Am- mente o distrito de Pedreira tem mais de 60% biente do Município – SVMA (Sepe e Tokiya, da população residente usuária exclusivamente 2004) (Figura 4). do Sistema Único de Saúde (CEInfo, 2010) Trata-se, também, de uma região muito diversificada, em relação ao padrão de ocupação. Pode-se, em um mesmo distrito, Os distritos de Cidade Ademar, Cidade Dutra e Pedreira apresentam os piores indicadores de IDH e socioambiental, bem como Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 467 Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva Figura 2 – Distribuição das áreas de favelas, por perímetro (m), no setor, município de São Paulo, SP Fonte: Base Cartográfica Digital das Favelas do Município de São Paulo (PMSP/CEM, 2003). Figura 3 – Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no setor, município de São Paulo, SP, Brasil no ano de 2000 Fonte: www2.uol.com.br/aprendiz/n_noticias/.../id150802.doc 468 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares... Figura 4 – Perfil socioambiental no setor, município de São Paulo, SP, Brasil Fonte: SVMA (2004). Figura 5 – Proporção da população (%) estimada de crianças menores de 5 anos, por distrito, no setor, município de São Paulo, SP, no ano de 2005 Fonte: Fundação Seade (2009). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 469 Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva Figura 6 – Proporção da população (%) estimada de idosos, por distrito, no setor, município de São Paulo, SP, no ano de 2005 Fonte: Fundação Seade (2009). encontrar áreas residenciais nobres, como os Fontes do Ipiranga, onde se localizam o Parque bairros arborizados, com residências baixas Zoológico e o Jardim Botânico – e as áreas de ou verticalizados; áreas industriais mais anti- ocupação mais precárias – como as favelas e gas, como a região de Santo Amaro, Interla- os bairros de ocupação mais recente nas bor- gos; áreas com forte adensamento de cons- das das represas Guarapiranga e Billings. trução e verticalização, como o eixo da Av. Luiz Carlos Berrini. Há, igualmente, amplos espaços verdes preservados – como a região do Parque das 470 Esse mosaico confere, aos distritos, perfil heterogêneo, com relação a todas as variáveis: população, ambiente, grau de urbanização, entre outros (Figuras 7 e 8). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares... Figura 7 – Vista parcial do distrito de Moema, melhor condição socioambiental, abril de 2010 Fonte: Silva, E. N. Figura 8 – Vista parcial do distrito de Cidade Ademar, pior condição socioambiental, abril de 2010 Fonte: Silva, E. N. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 471 Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva Resultados e discussão melhores posicionados e aos piores indicadores socioambientais. Os mapas (Figuras 9, 10 e 11) apresentam a Os distritos com as menores taxas de in- espacialização das internações hospitalares por ternação – entre 74,6 a 150,0 internações por doenças respiratórias, em crianças e idosos, e 10.000 habitantes – foram Ibirapuera, Moema, por doenças circulatórias em idosos. Saúde, Campo Belo, em todo o período estuda- Os distritos Sacomã, Jabaquara, Cidade do. O distrito Cursino apresentou taxas baixas, Ademar, Pedreira e Cidade Dutra foram aque- no ano de 2003 e 2004, e o distrito Socorro, no les que apresentaram as mais altas taxas de ano de 2003. Os distritos restantes apresenta- internação por doenças circulatórias, no pe- ram taxas intermediárias de internação, em to- ríodo de 2003 a 2006. As maiores taxas res- do o período (Figura 11). tringiram-se aos distritos do Jabaquara, Cida- Desde 1940, estudos têm sido realizados, de Ademar e Pedreira. Esses distritos contêm em São Paulo, a fim de compreender as causas maior concentração de favelas da área estuda- das cardiopatias. A hipertensão foi apontada da, menores índices de IDH, correspondendo à como principal causa das doenças do coração metade do indicador em relação aos distritos à época (Chiaverini, 1951). Estudo, recente, Figura 9 – Internações por doenças do aparelho respiratório em crianças menores de 5 anos, no setor Sul-Sudeste, município de São Paulo, 2003 a 2007 Taxa de internação por 10.000 hab 28,8 - 150,0 150,1 - 250,0 250,1 - 500,0 500,1 - 750,0 750,1 - 1500,0 472 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares... Figura 10 – Internações por doenças do aparelho respiratório em pessoas de 60 e mais anos, no setor Sul-Sudeste, município de São Paulo, 2003 a 2007 Taxa de internação por 10.000 hab 28,8 - 150,0 150,1 - 250,0 250,1 - 500,0 500,1 - 750,0 750,1 - 1500,0 Figura 11 – Internações por doenças do aparelho circulatório em pessoas de 60 e mais anos, no setor Sul-Sudeste, município de São Paulo, 2003 a 2007 Taxa de internação por 10.000 hab 74,6 - 150,0 150,1 - 250,0 250,1 - 400,0 400,1 - 650,0 650,1 - 1000,0 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 473 Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva apontou o aumento das doenças hipertensivas na população brasileira, no período de 2000 a 2010 (Luiz et al., 2015). Atualmente, sabe-se que a etiologia da doença é múltipla e extremamente complexa, e alguns de seus fatores de risco clássicos são: o hábito de fumar, dieta rica em gorduras e carboidratos refinados, sedentarismo e consequentemente a hipertensão, a diabetes e a obesidade (ibid.). Estudo realizado pela Inteheart (Rosengren et al., 2004), em 52 países, mostrou que os fatores psicossociais estressantes, como: estresse no trabalho, tristeza, depressão, tensão, ansiedade devido a fatores externos, estão homens e 180 por 100.000 mulheres. (Luiz et al., 2015, p. 345) Os estudos mencionados apontam que as regiões mais ricas do País – Sul e Sudeste – apresentam um declínio mais acentuado na mortalidade por doenças cardiovasculares desde 1990. Os pesquisadores consideram que, nessas regiões, maior acesso à tecnologia médica (medicamentos, diagnósticos, etc.), programas de atendimento, além das campanhas de conscientização relacionadas ao hábito de fumar, podem estar relacionados ao declínio mais acentuado. Além disso, a distribuição espacial de in- relacionados ao maior risco de ocorrência do ternações por doenças circulatórias, apresenta- infarto do miocárdio. da neste estudo, aponta um padrão socioespa- Estudos recentes mostram que a taxa cial, ou seja, maiores taxas estão relacionadas de mortalidade por doenças do aparelho cir- aos distritos com pior perfil socioambiental e culatório, mais especificamente, as cardiovas- baixo IDH, e taxas menores estão associadas culares, vêm decrescendo no País (Luiz et al., aos distritos com melhor perfil socioambien- 2015; Curioni et al., 2009; Ripsa, 2008) e na ci- tal e alto IDH. Barata (2012) argumenta que dade de São Paulo (Lotufo, 2004). Curioni et al. a produção e a distribuição das doenças e (2009) mostraram que houve queda, em média eventos relacionados à saúde são fenômenos de 3,9% ao ano, nas taxas de mortalidade por complexos e nem sempre as explicações de sua doenças cardiovasculares em todas as faixas ocorrência revelam-se a partir dos comporta- etárias, entre 1980 e 2003. Dados do estudo de mentos individuais, da estratificação de classe, Luiz et al. (2015) apontam redução de 10% nas por exemplo. A autora aponta que a utilização mortes por doenças circulatórias, no País, no da categoria espaço geográfico como indica- período de 2000 a 2010. dor das condições de vida constitui uma vantagem para compreender a complexidade da [...] nossos dados mostram que a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório vem caindo. Com 226 óbitos por 100.000 homens e 169 por 100.000 mulheres no ano de 2010, as informações aqui apresentadas são semelhantes às estimadas pela Organização Mundial de Saúde para maioria dos países da Europa Ocidental e Austrália, cujas taxas se situam em torno de 240 por 100.000 474 relação saúde-doença. Na presente pesquisa, a distribuição espacial das internações hospitalares aponta para a desigualdade em saúde, indicando que os processos da produção do espaço estão relacionados às condições de saúde da população. Esse mesmo padrão foi observado em Silva e Ribeiro (2009) para os dados de Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares... mortalidade por doenças circulatórias, no mu- maior poder aquisitivo da população residente nicípio de São Paulo, no mesmo período. O ma- em distritos de melhor condição socioeconômi- peamento indicou diferença socioespacial nos ca, permitindo o uso de sistema ou de planos padrões de adoecimento e morte. Os dados de privados de saúde. Considerando a última hipó- mortalidade representam universo mais amplo, tese, ressalta-se que dados sobre internações ou seja, todos aqueles residentes da área que hospitalares realizadas na rede privada não morreram pela doença no período. Similar- constam neste estudo, o que é uma limitação mente, o mapeamento mostrou que a taxa de dos dados. mortalidade por doenças do aparelho circula- A Figura 9 apresenta os mapas de inter- tório é mais elevada nos distritos com piores nação por doenças respiratórias, em crianças indicadores sociais, econômicos e ambientais. menores de 5 anos. O distrito de Santo Amaro Os distritos de Santo Amaro e Cidade Ademar apresentou as maiores taxas de internação, por apresentam taxas elevadas de mortalidade por todo o período estudado – entre 750,1 e 1500,0 doenças circulatórias no período de 2003 a internações por 10.000 habitantes –; seguido 2007 (Silva e Ribeiro, 2009). do distrito do Jabaquara, que apresentou ta- A distribuição das internações por doen- xas entre 500,1 a 750 internações por 10.000 ças do aparelho respiratório em pessoas de habitantes. Esses distritos não apresentam os 60 anos ou mais é apresentada nos mapas da piores indicadores de IDH e socioambiental, Figura 10. Nota-se que as maiores taxas de e somente o distrito do Jabaquara apresenta internação não obedecem a um padrão homo- grande concentração de áreas de favela em seu gêneo, no período de 2003 a 2007. O distrito território. Os distritos do Ibirapuera, Moema, do Jabaquara apresentou as maiores taxas, no Saúde, Campo Belo, Cursino, Campo Grande e período de 2004 a 2007; o distrito de Pedreira, Sacomã apresentaram taxas baixas por todo em 2003, e o distrito Cidade Ademar em 2004. período estudado – 2003 a 2007 – entre 28,8 e Os distritos do Ibirapuera, Moema, Campo Be- 150,0 internações por 10.000 habitantes. lo, Saúde e Cursino apresentaram as menores A espacialização dos dados apontou taxas de internação durante todo o período es- que não há um padrão socioespacial definido tudado. Esses distritos apresentam as melhores das internações de crianças. Em outras pala- condições de IDH e a menor concentração no vras, taxas elevadas podem ocorrer tanto em número de favelas no interior do distrito. distritos com baixo IDH e pior perfil socioam- Nesse caso, também a distribuição espa- biental, como em distritos de médio e alto IDH cial aponta a desigualdade em saúde, ou seja, e de melhor perfil socioambiental. Nesse sen- maiores taxas relacionadas aos distritos com tido, ressaltam-se as taxas elevadas ocorridas pior perfil socioambiental e baixo IDH e meno- no distrito de Vila Mariana de alto padrão em res taxas relacionadas aos distritos com melhor 2003, 2005 e 2006. perfil socioambiental e alto IDH. Considera-se, No município de São Paulo, dois inqué- porém, que essa distribuição pode estar rela- ritos realizados entre 1984/1985 e 1995/1996, cionada com o aumento mais recente da popu- que avaliaram a evolução das doenças res- lação idosa em distritos mais pobres ou com o piratórias em crianças menores de 5 anos, na Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 475 Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva cidade, observaram aumentos substanciais e Outros fatores, como a poluição atmosférica, a generalizados para doença respiratória alta e presença de ácaros no domicílio e a frequência para a doença respiratória baixa sem chiado. A em creches, tendem a aumentar com o progres- pesquisa mostrou um acréscimo de 71% para so econômico das sociedades e dos indivíduos, o conjunto dos casos, de 66% para os casos de evidenciando a não simplicidade dessa relação doença alta ou de doença baixa sem chiado, (Benicio et al., 2000). e 250% para os casos de doença baixa com chiado, cujo aumento foi muito grande para as crianças pertencentes ao terço mais pobre da Conclusões população (Benicio et al., 2000; Barata et al., 1996; Monteiro e Benicio, 1987). Este trabalho mostrou a desigual distribuição Estudo apontou a densidade de ocupa- espacial das internações hospitalares de idosos ção no domicílio como um dos fatores do au- e crianças, em hospital público, em 14 distritos mento das doenças respiratórias em crianças. do município de São Paulo. O georreferencia- Contudo, a evolução das condições socioeco- mento, por endereço de residência do paciente, nômicas e as condições de salubridade do foi possível devido à disponibilidade dos dados meio ambiente, contraditoriamente, não foram de internação diários, com Código de Endere- capazes de explicar a duplicação da doença çamento Postal (CEP) de residência, na rede respiratória baixa na população das crianças mundial de computadores. Esses dados permi- menores de 5 anos, da cidade de São Paulo tem localizar, no espaço, um grande volume de (Benicio et al., 2000). informações sobre determinados desfechos de Estudo, que analisou a associação en- saúde – nesse caso internações hospitalares tre morbidade, variáveis climáticas e índice de por doenças do aparelho respiratório e circula- conforto, apontou que extremos de frio e de tório – e contribuem para a identificação das calor representaram maior risco para interna- desigualdades e iniquidades. ções de idosos, e os distritos com piores con- A disponibilidade de dados e a facilidade dições sociais e ambientais (Silva e Ribeiro, de acesso às informações permitem estudar a 2012). No entanto, a associação dessas variá- distribuição e a magnitude das doenças crôni- veis atmosféricas com as internações de crian- cas, em diversas escalas espaciais, bem como ças com doenças respiratórias e menores de 5 associá-las a fatores de risco, a fim de melhor anos residentes não apresentou diferença em entender seus determinantes e poder planejar relação às condições socioambientais (Silva e e direcionar as ações de promoção de saúde e Ribeiro, 2013). de busca da equidade. Os resultados relacionados à internação O estudo demostrou que a distribuição de crianças por doenças respiratórias, nos dis- espacial das taxas de internação hospitalar tritos apresentados, ressaltam a complexida- não apresenta padrão homogêneo entre os de do fenômeno saúde-doença, pois esta não distritos. No entanto, deve-se ressaltar que, no apresentou uma relação causal direta entre in- município de São Paulo, 50% dos residentes ternações e piores condições socioambientais. são usuários exclusivos do SUS e também que 476 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares... não estão distribuídos igualmente no espaço. O sadio” (Barata, 2012). As desigualdades evitá- maior número de usuários do SUS está concen- veis são aquelas para as quais existem tecno- trado em distritos de pior condição socioeco- logias médicas e de saneamento, que poderiam nômica, refletindo as desigualdades sociais na evitar o adoecimento de um grupo populacio- cidade de São Paulo. Além disso, o SUS baseia- nal, mas que não estão disponíveis àquele gru- -se nos princípios de universalidade, equidade po, por conta de sua posição social, renda ou e integralidade, visando à superação das ini- local de moradia. quidades, que são as desigualdades injustas e No entanto, o padrão de espacialização evitáveis, em saúde. As diferenças em “saúde intraurbano da morbidade, no setor da cidade injustas são aquelas que estão associadas a estudado, aponta para diferenças importantes características sociais que sistematicamente e que merecem aprofundamento na investiga- colocam alguns grupos em desvantagem com ção e atenção de gestores de saúde pública pa- relação à oportunidade de ser e de se manter ra seu enfrentamento. Helena Ribeiro Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, Departamento de Saúde Ambiental. São Paulo, SP/Brasil. [email protected] Edelci Nunes Silva Universidade Federal de São Carlos, Centro de Ciências Humanas e Biológicas, Departamento de Geografia, Turismo e Humanidades. Sorocaba, SP/Brasil. [email protected] Referências AITH, F. e SCALCO, N. (2015). Direito à saúde de pessoas em condições de vulnerabilidade em centros urbanos. Revista USP, n. 107, pp. 41-54. ALMEIDA, E. (2001). “Refuncionalização da metrópole no período técnico-cien fico-informacional e os novos serviços”. In: SANTOS, M. e SILVEIRA, M. L. O Brasil. Território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro/São Paulo, Record. BARATA, R. C. B. et al. (1996). Gastroenterites e infecções respiratórias agudas em crianças menores de 5 anos em área da região Sudeste do Brasil, 1986-1987. I- Infecções respiratórias agudas. Revista de Saúde Pública, v. 30, n. 6, pp. 553-563. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016 477 Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva BARATA, R. B. (2012). 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Alimentação regular, em quantidade suficiente e com qualidade, é o primeiro passo contra a morbidade ou os fatores que levam ao adoecimento e à morte. A pesquisa de campo analisou as condições de SAN da população de pescadores artesanais de sete municípios localizados na Bacia de Campos. Os achados são preocupantes. Não condizem com os recursos recebidos pelos municípios, em termos de royalties e participações especiais, que se somam a outros repasses e fontes de arrecadação. Chama à atenção a urgência de programas de abastecimento alimentar. Os dados fazem parte do Projeto Pescarte, uma parceria entre UENF/Petrobras/Ibama. Abstract This article assumes that Food and Nutrition Security is a basic condition for a healthy life. Regular food in sufficient quantity and quality is the first step against morbidity, or against factors that lead to illness and death. The field research analyzed the Food and Nutrition Security conditions of the population of artisanal fishermen from seven municipalities located in Bacia de Campos, state of Rio de Janeiro. The findings are worrisome, as they do not match the resources received by the municipalities, in terms of royalties and special participations, which are added to other transfers and sources of revenue. Food supply programs are urgently needed. The data are part of the Pescarte Project, a partnership among UENF/Petrobras/Ibama. Palavras-chave: recursos públicos municipais; pescadores artesanais; segurança alimentar e nutricional; insegurança alimentar; saúde dos pescadores. Keywords: municipal resources; artisanal fishermen; food and nutrition security; food insecurity; fishermen’s health. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3609 Mauro Macedo Campos et al. Introdução Os dados relativos à dimensão “acesso” é que orientaram os argumentos deste artigo, no que tange à SAN junto às comuni- Este artigo pretende trazer os resultados das dades pesqueiras. É um pressuposto básico da pesquisas referentes à Segurança Alimentar e SAN, reafirmando a variável renda individual Nutricional (SAN), junto às comunidades pes- ou familiar como fatores limitadores a esse queiras localizadas na Bacia de Campos (BC), acesso (Consea, 2004). Dadas a abrangência região Norte do estado do Rio de Janeiro. O e profundidade propiciadas pela pesquisa que estudo contempla sete municípios afetados orienta este artigo, pode-se verificar, por ou- pelas ações do complexo produtivo de petróleo tros ângulos e indicadores, questões ligadas e gás. Busca, assim, aproximar os achados da diretas ou indiretamente à SAN, do ponto de pesquisa com o conceito mais amplo de saúde, vista do “acesso”, tais como renda/condições não limitando unicamente à ausência de doen- de vida, acesso a políticas públicas de saúde e ça. Trata-se de um esforço de analisar o cotidia- educação, entre outros. no de pescadores artesanais, para que se possa Em termos conceituais, a legislação as- identificar as condições de suas famílias no que sentada na Lei Orgânica de Segurança Alimen- diz respeito ao acesso à alimentação de quali- tar e Nutricional (Losam) considera que a SAN dade e às consequências para a saúde desses se manifesta “na realização do direito de todos trabalhadores da região. Tem por objetivo sis- ao acesso regular e permanente a alimentos de tematizar os trabalhos e resultados das pes- qualidade, em quantidade suficiente, sem com- quisas referentes às atividades dos pescadores prometer o acesso a outras necessidades es- artesanais dessa região e às suas condições de senciais [...]”. Tem como base o uso de práticas vida, uma vez que que são considerados “gru- promotoras de saúde, com respeito à “diversi- pos vulneráveis” pelo Diagnóstico Participativo dade cultural e que sejam social, econômica e (DP) do Programa de Educação Ambiental da ambientalmente sustentáveis” (Brasil, 2007). Bacia de Campos (PEA-BC). A Losan define também as condições de am- Tomamos como referência, portanto, as pliação do acesso, “por meio da produção, em respostas dos pescadores e de suas famílias, especial da agricultura tradicional e familiar, afetadas pelas indústrias de petróleo e gás da do processamento, da industrialização, da co- Bacia de Campos, em que pesem suas percep- mercialização” (2004, p. 4). Nessa abrangência ções sobre o consumo e acesso a alimentos e conceitual é que se inserem os propósitos do sobre as condições de saúde. Vale ressaltar que presente artigo, que trata do acesso aos ali- os pescadores artesanais e as populações ribei- mentos pelos pescadores artesanais e da vul- rinhas, indígenas, quilombolas, etc. são consi- nerabilidade dessas famílias. deradas prioritárias para as ações de combate O caráter variado do enfoque de SAN à pobreza e à fome pelo Conselho Nacional de reflete-se em alguns apontamentos dados pe- Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e, lo Consea com relação a indicadores básicos, por suposto, para o Ministério de Desenvolvi- sendo agregado em dimensões distintas: (a) mento Social e Combate à Fome. produção, (b) disponibilidade de alimentos, 482 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 Pescadores artesanais da Bacia de Campos (c) renda/condições de vida, (d) acesso à alimentação, (e) políticas públicas relacionadas à SAN, (f) saúde e acesso a serviços de saúde e (g) educação. Dessas dimensões, para o Caracterização da área de estudo: o campo e a pesquisa desenvolvimento do presente artigo, foi utilizada a dimensão do “acesso à alimentação”, Apesar dos impactos deletérios no meio am- usando-se a metodologia da Escala Brasileira biente, a pesca constitui-se, ainda, um conjun- de Insegurança Alimentar (Ebia) adotada pelo to de atividades significativas para a economia IBGE no Suplemento de Segurança Alimentar local, destacando-se como um importante ve- da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicí- tor para a promoção de emprego e de renda, lios (Pnad, 2004 e 2009). em especial para as populações mais vulnerá- As informações tomam por base duas veis que subsistem unicamente dessa atividade fontes empíricas: a primeira valeu-se dos ques- tradicional, nos municípios da Bacia de Cam- 1 tionários aplicados durante o “Censo” realiza- pos. Nesse espaço geograficamente definido, do com os pescadores e suas famílias, em 207 evidenciam-se três atividades em grande ex- localidades, espalhadas em 39 comunidades, pansão: o turismo, a aquicultura e o petróleo com ao menos três famílias de pescadores, dis- (Walter, 2010). A despeito da radicalidade das tribuídas nos sete municípios. A segunda consi- transformações econômicas e sociais da paisa- derou as informações obtidas nas reuniões com gem do norte Fluminense e dos muitos proble- os pescadores das comunidades. mas ambientais que já se registram na região, A metodologia para o desenvolvimento a prática da pesca artesanal ainda se beneficia desse artigo toma como base a Ebia, que busca da conformação dos ecossistemas costeiros mensurar a percepção das famílias em relação encontrados ali. Os diversos rios que irrigam ao acesso aos alimentos. A partir dessa noção, o norte do estado do Rio de Janeiro descarre- este texto traz alguns dados da Ebia, coletados gam na costa uma quantidade de nutrientes no campo junto às comunidades pesqueiras. importantes para a manutenção da cadeia Da mesma forma pretende-se sistematizar os nutricional da vida marinha. Porém, a sobre- resultados da pesquisa, em termos de interpre- vivência desse ecossistema depende em gran- tação da situação de SAN dos pescadores ar- de medida da preservação do meio ambiente, tesanais da Bacia de Campos. De acordo com principalmente, das áreas de mangue, que são essas questões, este artigo propõe trazer à bai- o berçário de muitas espécies, das atividades la a discussão sobre o acesso à alimentação de da Petrobrás, da qualidade da água dos rios, qualidade por parte de comunidades que, pa- além do despejo nos mananciais de esgotos e radoxalmente, produzem alimentos. A maneira resíduos sólidos não tratados (UFRJ/Soltc/Polo mais adequada para isso é ouvir o objeto dessa Núatico/Nupem). ação: os pescadores. Com base nessa orienta- Dito isso, cabe definir o recorte espacial ção de caráter mais empírico, é que se pretende que contempla os municípios selecionados a dar forma para este artigo. partir de informações coletadas em Reunião Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 483 Mauro Macedo Campos et al. Temática sobre Pesca e Educação Ambiental observado para todos os municípios da Bacia na Bacia de Campos. O recorte foi definido de Campos. Essa área se caracteriza por ser pelo critério de interferência com a atividade uma região de grandes investimentos estatais pesqueira na área de influência dos empreen- e privados, além de apresentar uma rica bio- dimentos da Petrobras. Tem por objetivo siste- diversidade. Compreende uma estrutura sedi- matizar os trabalhos e resultados das pesqui- mentar, localizada na costa brasileira, que se sas realizadas por pesquisadores do Projeto estende do norte do estado do Rio de Janeiro Pescarte,2 vinculados à Universidade Estadual até o sul do estado do Espírito Santo. Trata-se do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), em do maior reservatório de petróleo do Brasil, res- parceria com a Petrobras e o Instituto Brasileiro ponsável por mais de 80% de toda a produção do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Re- offshore,4 chegando a 3,031 milhões de barris de óleo equivalente (BOE) por dia.5 No Quadro 1 podemos observar a localização dos campos de petróleo descobertos e em atividade de exploração da Bacia de Campos. Nesse cenário, a Petrobras assume o papel de liderança nesse setor, além de ser a maior empresa brasileira, com destaque na exploração em águas profundas e com elevado potencial de produção. A Bacia de Campos nováveis (Ibama). Além dos critérios de impacto que orientam o recorte da pesquisa, outros foram adicionados, como o volume médio de pescado desembarcado em toneladas, o número de pescadores e a renda familiar.3 O Quadro 1 apresenta os valores, por critério, relativos à atividade de pesca artesanal em cada um dos municípios. Os dados são trabalhados em percentual, em relação ao total Quadro 1 – Critérios de seleção de municípios para o Pescarte Volume médio de Sobreposição das atividades do espaço pescado desembarcado por mês(2) (em %) marinho(1) (em %) Arraial do Cabo Cabo Frio Campos dos Goytacazes Macaé Quissamã São Francisco de Itabapoana São João da Barra Número de pescadores(3) (em %) Renda familiar(4) (em %) 2,8 17,9 7,4 42,0 11,9 40,0 12,6 20,0 0,0 20,4 20,8 76,0 36,4 34,2 23,3 25,0 0,0 16,2 1,5 48,0 40,6 24,1 23,3 68,0 8,4 35,7 9,1 27,0 Fonte: PCRs – Petrobras/Projeto Pescarte (2013). [1] Dados do registro de avistagens das plataformas da Petrobras e abordagens dos navios de pesquisa sísmica dos barcos de pesca artesanal dentro da área de exclusão no período de 2007-2012 na Bacia de Campos. [2] Dados retirados do Relatório do Projeto de Caracterização Regional da Bacia de Campos (PCR-BC). [3] Dados do Ministério da Pesca e Aquicultura de 2013. [4] Dados retirados do Relatório do Projeto de Caracterização Regional da Bacia de Campos (PCR-BC) considerando o número de famílias no município com renda de até R$ 600,00. 484 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 Pescadores artesanais da Bacia de Campos possui atualmente 55 campos de petróleo, com Trata-se de um ambiente em que convi- 826 poços exploratórios. Esses poços estão vin- vem essas grandes corporações que vivem da culados a 45 plataformas marítimas, sendo a exploração de petróleo e gás com as comuni- maioria (41 plataformas) de produção e quatro dades que sobrevivem da pesca artesanal, que- de processamento. Essa fração do litoral brasi- chegaram muito antes da descoberta do petró- leiro é um ambiente socioeconômico complexo, leo na região. É para essas comunidades que se cuja principal atividade econômica é a explora- fazem mais prementes intervenções do Estado, ção das reservas de hidrocarbonetos. Operam via políticas públicas. São, também, “alvos” conjuntamente com a Petrobras outras cinco dos projetos privados de responsabilidade so- gigantes corporações do setor petrolífero: (a) cial, mitigação socioambiental e compensação, HRT Participações em Petróleo; (b) OGPar Óleo praticados pelas empresas que “dividem” com e Gás Participações; (c) Chevron Corporation eles esse espaço. Brasil; (d) Shell Brasil; e (e) Statoil. Destas, as No que se refere à ação do Estado duas primeiras são formadas por consórcios brasileiro, para lidar com as questões concer- com capital nacional. nentes à exploração e produção de petróleo Figura 1 – Mapa da Bacia de Campos Campos descobertos até 1984 Campos descobertos de 1984 até 2001 Campos descobertos de 2002 até 2005 Campos definidos em 2006 Descobertas de óleo & gás em avaliação Fonte: http://www.petroleoetc.com.br/ Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 485 Mauro Macedo Campos et al. e gás, o Ibama se vale da Coordenação Geral São considerados no cômputo da fis- de Petróleo e Gás (CGPEG), gerência respon- calização pelo Ibama: a) a gestão ambiental sável pela emissão das Notas Técnicas, que re- compartilhada, de poder e responsabilidade gulam, dentre outras questões, os Programas entre Estado, setores de maior vulnerabilida- de Educação Ambiental, implementados nas de socioambiental e outros segmentos sociais; bacias petrolíferas brasileiras. É o braço do b) o diagnóstico participativo; c) o projeto de Estado que regulamenta e controla as ações mitigação; d) o projeto de compensação; e) o de impactos ambientais (e, nesse caso, tam- programa de educação ambiental; f) a linha de bém social). Vale ressaltar que o Ibama não ação, com orientações que permitem o desen- reconhece as ações pautadas pelo conceito de volvimento de projetos de educação ambiental; responsabilidade social como ações de mitiga- e g) o projeto de educação ambiental, que é ção de impactos. Ou seja, mais um ingredien- composto pelas atividades que serão desenvol- te que se mistura a esse conjunto de ações, vidas a partir de determinada linha de ação. A atores e indivíduos em um ambiente extrema- Figura 2 destaca os projetos vigentes na Bacia mente competitivo. de Campos. Figura 2 – Mapa dos projetos de educação ambiental na Bacia de Campos Fonte: CEGPEG/Dilic/Ibama. 486 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 Pescadores artesanais da Bacia de Campos Recursos públicos e prioridades de investimentos locais municípios em responder às necessidades das Uma vez apresentados os critérios para a es- em políticas públicas que, de alguma forma, colha da região e os municípios a serem es- possam minimizar os impactos com o futuro- tudados, cabe trazer algumas informações -fim da exploração desse recurso não renová- adicionais que podem ajudar na construção vel. O período analisado, de 2013 a 2015, cor- dos argumentos deste artigo. Para a análise e responde ao início da construção da proposta compreensão das políticas e ações em segu- do Projeto Pescarte, junto à Petrobras. O Qua- rança alimentar e nutricional e dos impactos dro 2 destaca o volume desses recursos para os diretos e indiretos, na promoção da saúde das municípios sob análise. populações impactadas pela exploração de petróleo e gás e, ainda, priorizar investimentos famílias de pescadores artesanais, é essencial A queda abrupta no último ano da série que se evidenciem a capacidade orçamentária é um efeito imediato da redução do repasse desses municípios e o que é destinado às polí- dos royalties do petróleo, que foi, em média, ticas de saúde. de 47%. Esse cenário não aponta um horizonte Dito isto, cabe lembrar que esses muni- tranquilo para esses municípios, que depen- cípios contam com a chamada “sorte geográ- dem, em larga escala, dessa commodity.6 Ainda fica”, que os coloca como receptores privile- assim, representa um expressivo aporte finan- giados de royalties de petróleo e participações ceiro adicional ao orçamento desses municí- especiais. Em outras palavras, os propósitos pios, chegando a mais de 70% de dependência, aqui são ilustrar a capacidade potencial desses como é o caso de São João da Barra. Quadro 2 – Royalties e participações especiais: 2013 a 2015 (em R$7) Royalties (+) Participações Especiais Município / Ano Arraial do Cabo Cabo Frio Campos dos Goytacazes Macaé Quissamã 2013 2014 2015 44.443.942 46.109.384 24.466.844 329.883.324 304.805.596 117.911.385 1.303.272.972 1.208.366.996 550.787.779 516.455.723 542.656.872 310.654.749 94.737.917 95.103.720 49.098.371 8.292.812 8.870.045 5.618.221 228.789.216 237.085.764 140.098.706 São Francisco de Itabapoana São João da Barra Fonte: http://inforoyalties.ucam-campos.br/ Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 487 Mauro Macedo Campos et al. De qualquer forma, esse incremento dos desagregados a partir das contas de transferên- royalties compõe o volume de recursos orçamentários que se adiciona às transferências constitucionais,8 como pode ser observado no Quadro 3. Vale chamar a atenção para a soma do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que representa a quase totalidade das transferências, em média 99%. Para o período analisado, diferentemente do repasse dos royalties, que teve um decréscimo considerável, houve uma elevação média de 7%, nas transferências orçamentárias, entre os anos analisados. Em que pesem os propósitos do artigo, considerar o volume de recursos disponíveis para dar conta das políticas públicas locais é uma variável essencial para que se possa identificar a capacidade do poder público em atender às demandas da sociedade. O Quadro 4 aponta os valores agregados do Sistema Único de Saúde (SUS) repassados a esses municípios, no período analisado. Não se considerou, aqui, a adesão ao tipo de gestão do SUS a que cada município está vinculado. O que se pretendeu foi apenas destacar o volume de recursos transferidos para o custeio e investimento na saúde. Mas o que se pode observar é uma elevação média dos repasses, com destaque para Cabo Frio, São Francisco do Itabapoana e São João da Barra. Esses três municípios tiveram repasses expressivos nesses três anos. O Quadro 5 apresenta os repasses do SUS por categorias. Esses valores foram cia do SUS. De maneira geral, os repasses do SUS 488 concentram-se nos níveis de “atenção básica“ e na “média e alta complexidade”, que em conjunto representam, em média, mais de 80% dos recursos destinados pelo SUS aos municípios. Os dados apresentados nesta seção referem-se à capacidade orçamentária desses municípios e os valores reais destinados às políticas locais de saúde. No entanto, a despeito do volume de recursos repassados a esses municípios para o custeio e investimentos em saúde, os reflexos, na ponta, não são percebidos de forma tão clara. O Gráfico 1 traz as respostas dos entrevistados a respeito dos equipamentos de saúde dos sete municípios de forma agregada. Foi solicitado aos entrevistados que fizessem uma avaliação dando uma nota de zero a dez. Considerando a nota cinco uma avaliação razoável, verifica-se que 35,8% tem uma avaliação negativa (1 a 4) e menor que a positiva (6 a 10). Por município, com exceção de Quissamã (15,6%), a avaliação razoável ficou em torno de 20%. Arraial do Cabo, Cabo Frio e Quissamã tiveram a avaliação péssima, em torno de 22%. Nota 10, acima de Campos (37%), Macaé (15,9%) e São João da Barra (15,3%). Regra geral, talvez possamos considerar que a população tem uma avaliação razoável dos equipamentos nos sete municípios, a despeito do volume expressivo de recursos disponíveis para investimentos e custeio com a saúde local. As administrações dos equipamentos não são uniformes nos municípios, talvez isto explique alguns dos extremos de opinião em cada um deles. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 Pescadores artesanais da Bacia de Campos Quadro 3 – Transferências orçamentárias constitucionais aos municípios: 2013 a 2015 (em R$) Transferências orçamentárias Município / Ano 2013 2014 2015 22.812.600 24.830.110 26.308.492 Cabo Frio 130.804.973 142.153.602 148.389.781 Campos dos Goytacazes 200.876.818 210.102.619 215.783.462 Macaé Arraial do Cabo 134.895.266 148.166.489 159.604.198 Quissamã 21.758.004 23.687.054 25.148.264 São Francisco de Itabapoana 36.110.125 38.234.218 41.471.768 São João da Barra 29.590.585 33.518.221 36.314.987 Fonte: http://www3.tesouro.gov.br/estados_municipios/municipios_novosite.asp Quadro 4 – Transferências de recursos do SUS aos municípios: 2013 a 2015 (em R$) Repasses financeiros / SUS Município / Ano 2013 Arraial do Cabo Cabo Frio Campos dos Goytacazes Macaé 4.948.640 2014 5.683.319 2015 5.570.259 20.637.905 53.488.962 66.561.303 113.913.504 132.351.981 137.943.501 42.765.692 44.375.408 42.563.033 Quissamã 6.303.430 6.349.160 6.341.714 São Francisco de Itabapoana 3.961.968 6.839.306 7.739.206 São João da Barra 3.213.281 4.847.434 6.113.128 Fonte: http://aplicacao.saude.gov.br/portaltransparencia/index.jsf Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 489 490 9.845.095 13.466.90 10.225.939 2.367.544 2.308.877 2.464.154 Cabo Frio Campos dos Goytacazes Macaé Quissamã São Francisco de Itabapoana São João da Barra 2.634.594 2.943.069 2.163.627 11.330.989 16.082.655 10.519.422 2.295.613 2014 3.062.192 2.747.813 2.290.546 12.288.024 15.820.326 11.105.620 2.441.584 2015 20 282.869 3.077.070 27.583.960 91.194.909 6.124.793 1.945.605 2013 50.240.461 110.309.748 26.137.352 3.483.043 3.380.186 2.438.561 108.712.662 29.268.561 3.351.870 2.486.008 1.440.447 2.280.560 2015 37.065.374 2.143.634 2014 Média e alta complexidade Fonte: http://aplicacao.saude.gov.br/portaltransparencia/index.jsf 2.197.125 2013 Atenção básica Arraial do Cabo Municípios / Contas 287.914 267.943 105.436 1.195.750 2.372.755 1.210.976 142.378 2013 276.494 255.943 105.814 1.203.408 2.387.248 1.213.018 142.851 2014 317.411 235.615 96.992 1.155.624 2.188.307 1.204.429 130.947 2015 Assistência farmacêutica 0 0 0 36.000 80.000 40.000 20.000 2013 0 0 16.000 0 20.000 185.000 20.000 2014 Gestão do SUS 0 0 0 0 27.000 34.000 18.000 2015 262.734 341.829 200.460 2.168.290 4.504.266 1.817.201 221.833 2013 236.859 311.885 199.719 1.839.532 4.424.349 1.643.548 218.221 2014 237.124 316.793 197.533 1.901.291 4.692.813 1.649.806 227.257 2015 Vigilância em saúde Quadro 5 – Transferências de recursos do SUS aos municípios: 2013 a 2015 (em R$) 198.460 760.450 516.920 1.511.753 2.334.667 1.619.840 441.700 2013 259.040 826.400 528.130 712.917 560.067 3.027.600 883.000 2014 Investimentos 57.840 1.058.800 273.600 1.053.743 4.898.306 2.342.986 489.911 2015 Mauro Macedo Campos et al. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 Pescadores artesanais da Bacia de Campos Gráfico 1 – Avaliação dos equipamentos de saúde nos municípios analisados. (Exemplos: posto de saúde, hospital público, farmácia municipal, ambulância) Fonte: Censo PEA-Pescarte (2015). Por fim, para o que se pretende neste As seções que seguem foram construídas artigo, a saúde deve ser expressa no seu con- com base nas informações colhidas durante a ceito mais amplo: “não apenas a ausência de realização do Censo com os pescadores artesa- doenças, mas o bem-estar físico e mental”. nais (de novembro de 2014 até dezembro de Faz sentido, então, considerar os princípios de 2015). O epicentro da pesquisa é a aplicação segurança alimentar e nutricional, como par- da metodologia definida pela Ebia, junto às te desse entendimento. É o que procuraremos famílias dos pescadores artesanais nos municí- apontar nas próximas seções do artigo, a partir pios selecionados. dos recortes espaciais já definidos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 491 Mauro Macedo Campos et al. Pesquisas de percepção de insegurança alimentar e fome a realização, nos anos de 1990, de pesquisas que levaram à construção de escalas, metodologicamente complexas e empiricamente fundamentadas de insegurança alimentar. Em termos práticos, esse método consiste na apli- Os métodos baseados na percepção da inse- cação de questionários que, com uma série de gurança alimentar foram inicialmente desen- perguntas, cobrem uma escala que vai desde a volvidos para aplicação na América do Norte e percepção de preocupação e angústia adiante estavam voltados para as redes de programas da possibilidade de não dispor de alimentos de proteção alimentar. Levavam em conta as regularmente até a percepção de problemas questões sociais e também biológicas. Pessoas na adequação da dieta (na diversidade e/ou na que não tenham meios para adquirir alimentos quantidade de alimentos) que, no limite, levam em quantidade suficiente podem se considerar à fome e a problemas de saúde. em insegurança alimentar, ainda que não apre- No Brasil, essa metodologia foi aplica- sentem sinais clinicamente reconhecíveis de da em escala nacional em 2004, 2009 e 2013 desnutrição. Além disso, mesmo não passando pelo IBGE, no âmbito da Pesquisa Nacional de fome, algumas pessoas podem sentir um medo Amostras Domiciliares (Pnad) tendo como um justificável de privações futuras. Representam, suplemento a Ebia. Esta visa detectar e dimen- portanto, elementos centrais na composição sionar os problemas de insegurança alimentar analítica referente à saúde dos trabalhadores no País, permitindo classificar as unidades do- (Machado, 2010). miciliares em situação de segurança alimentar, Cabe ressaltar que as pesquisas de inges- esta classificada em leve, moderada ou grave. tão domiciliar de alimentos conseguem perce- Por esse método, a insegurança alimentar ber o fenômeno da “insegurança alimentar” é percebida em vários níveis, que vão da preo- com maior fidelidade, pois procuram examinar cupação de que o alimento acabe antes que os hábitos de ingestão alimentar das famílias. haja dinheiro para comprar mais – dimensão No Brasil são realizadas como estudos pontuais psicológica da insegurança alimentar –, pas- por institutos de pesquisa e universidades. Uma sando, pela insegurança relativa ao comprome- vantagem desses métodos é que se fundamen- timento da qualidade da dieta, sem restrição tam na avaliação direta da ingestão de alimen- quantitativa, chegando ao ponto mais grave tos. Em função do perfil do Projeto Pescarte, que é a insegurança quantitativa, situação em tais métodos não foram utilizados. Portanto, no que a família passa por períodos concretos de que se refere à qualidade da alimentação inge- restrição na disponibilidade de alimentos para rida pelos pescadores, esse dado não foi com- seus membros, destacando-se a situação em putado na pesquisa. que as crianças são atingidas como a mais gra- A necessidade de disponibilizar indica- ve das condições de insegurança alimentar. dores sensíveis de insegurança alimentar que A principal vantagem desse método pro- fossem direcionados para a pobreza e não vém do fato de as medidas qualitativas apreen- se limitassem às definições clínicas, motivou derem, como elemento essencial, o modo como 492 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 Pescadores artesanais da Bacia de Campos as pessoas mais atingidas percebem a insegu- A outra consiste na leitura individual das rança alimentar. Esse método permite captar, respostas às 14 perguntas formuladas aos não só as dimensões físicas, mas também as entrevistados. Esse método possibilita a dimensões psicológicas da insegurança alimen- identificação percentual das famílias que são tar; e permite ainda classificar os domicílios de submetidas às condições de privação severa acordo com sua vulnerabilidade ou nível de ex- de alimentos, como é o caso apontado pelas posição à insegurança alimentar. Seus limites questões 7 e 13 da tabela Ebia. Seguiremos à são dados pelo caráter “subjetivo” da insegu- segunda análise proposta. rança alimentar, que dificulta comparações e A partir dessas questões, é possível não permite captar a dimensão da segurança mensurar o que se tem sobre a percepção em dos alimentos, ou seja, a qualidade sanitária relação ao acesso à alimentação. É uma me- (Pnad, 2013). dida, portanto, da expectativa dos indivíduos. Em suma, destaca-se que as diversas me- Os resultados medidos pela Ebia mostram uma todologias de medição de segurança alimentar associação forte entre a insegurança alimentar são complementares ao evidenciar distintos e os baixos rendimentos. A participação da so- níveis de agregação geográfica e demográfica, ciedade civil tem um papel essencial na con- bem como seus indicadores diretos e indiretos. dução das políticas públicas de SAN. É nesses Esses indicadores refletem o sentimento de in- termos que ganham cada vez mais importância segurança alimentar dos entrevistados, de for- os conselhos participativos. Isso se evidencia ma a fazer uma gradação em relação à sua se- no fato de que, dos sete municípios analisados, gurança de obter e consumir alimentos. Trata- apenas dois não têm conselhos de SAN: Arraial -se de uma escala de 14 perguntas. O número do Cabo e São Francisco do Itabapoana. Ain- de respostas “sim” permite uma classificação da nesses termos relativos à participação da que vai da segurança alimentar até a insegu- sociedade civil na condução das políticas de rança grave. O Quadro 6 apresenta as questões SAN, pode-se afirmar, com certa segurança, centrais para que se possa identificar a grada- que a pesquisa desenvolvida pelo Projeto Pes- ção da percepção dos indivíduos em relação à carte, conduzida pela UENF/Petrobras/Ibama, sua insegurança alimentar. seja a de maior abrangência, em uma comu- O processo de análise dos resultados da nidade específica – caracterizada entre povos aplicação da tabela Ebia pode seguir dois mo- e comunidades tradicionais considerados pelo delos distintos. O primeiro (Tabela 1) avalia a Consea Nacional. Nas próximas seções serão presença de respostas “sim” ao questionário, apresentados os resultados da aplicação da considerando sua presença como um fator metodologia da Ebia, parte integrante dos revelador das condições de baixa ou nenhu- questionários do Censo junto às localidades ma nutrição entre a população investigada. pesqueiras cobertas pelo Projeto Pescarte. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 493 Mauro Macedo Campos et al. Quadro 6 – Questionário da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar 1) Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram a preocupação de que a comida acabasse antes que tivessem dinheiro para comprar mais comida? 8) Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade ficou um dia inteiro sem comer ou teve apenas uma refeição ao dia, porque não tinha dinheiro para comprar comida? 2) Nos últimos três meses, os alimentos acabaram antes que os moradores deste domicílio tivessem dinheiro para comprar mais comida? 9) Nos últimos três meses, os moradores com menos de 18 anos de idade não puderam ter uma alimentação saudável e variada, porque não havia dinheiro para comprar comida? 3) Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio ficaram sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada? 10) Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18 anos de idade comeu menos do que você achou que devia porque não havia dinheiro para comprar a comida? 4) Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio comeram apenas alguns poucos tipos de alimentos que ainda tinham, porque o dinheiro acabou? 11) Nos últimos três meses, foi diminuída a quantidade de alimentos das refeições de algum morador com menos de 18 anos de idade, porque não havia dinheiro suficiente para comprar a comida? 5) Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade deixou de fazer alguma refeição, porque não havia dinheiro para comprar a comida? 12) Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18 anos de idade deixou de fazer alguma refeição, porque não havia dinheiro para comprar a comida? 6) Nos últimos três meses, algum moradores de 18 anos ou mais de idade comeu menos do que achou que devia, porque não havia dinheiro para comprar comida? 13) Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18 anos de idade sentiu fome, mas não comeu, porque não havia dinheiro para comprar mais comida? 7) Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade sentiu fome, mas não comeu, porque não tinha dinheiro para comprar comida? 14) Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18 anos de idade ficou um dia inteiro sem comer ou teve apenas uma refeição ao dia, porque não havia dinheiro para comprar comida Fonte: Núcleo de Estudos em Pesquisa em Alimentação/MDS, 2010. Respostas Sim (1) e Não (0) Escore para classificação = somatória de respostas positivas (de 0 a 14) Tabela 1 – Pontos de corte para classificação dos domicílios EBIA Classificação Domicílios com menores de 18 anos Domicílios sem menores de 18 anos 0 8 Insegurança leve 1-5 1-3 Insegurança moderada 6-9 4-5 10 - 14 6-8 Segurança alimentar Insegurança grave Fonte: Núcleo de Estudos em Pesquisa em Alimentação/MDS (2010). 494 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 Pescadores artesanais da Bacia de Campos Resultados do censo artesanais dos sete municípios pesquisados Ao longo desta seção, serão apresentados os vidido em dez blocos temáticos.9 Dentre eles,a resultados encontrados pelas pesquisas consi- SAN foi abordada no bloco relativo ao “Inqué- derando o seu limite temporal. Parte dos argu- rito Alimentar”, tendo por base as questões já mentos que justificam a escolha desse público validadas pela Ebia. Foram utilizadas também, pode ser apontada pelo próprio Ministério da informações coletadas em outros blocos do Pesca e Aquicultura (MPA), ao destacar que questionário, como “Identificação Socioeconô- a pesca artesanal é uma das principais ativi- mica”, “Caracterização Familiar” e “Avaliação dades sociais, econômicas e ambientais reali- de Serviços Públicos”. na Bacia de Campos. Esse questionário foi di- zadas no Brasil, com um milhão de pescado- Nas tabelas a seguir, apresentamos os re- res artesanais e com cerca de 3,5 milhões de sultados das perguntas 1, 7 e 13 da Ebia, pois, pessoas vivendo, direta ou indiretamente, da elas vão da condição leve de insegurança ali- renda na atividade pesqueira. Contudo, esse mentar, que é o temor da falta de alimentos, número pode conter variações. Como no caso à condição mais severa, que representa a com- da região lindeira à Bacia de Campos, os dados pleta falta de alimentos por, pelo menos, um do IBGE (Censo, 2010) apresentam um total dia nos últimos três meses. A seguir se observa de 3.020 pescadores, enquanto as Colônias o percentual de famílias de pescadores artesa- de Pesca afirmam possuir, em seus cadastros, nais, distribuídos nos sete municípios, no que 14.730 pescadores. tange a falta de alimento. Vale ressaltar que os dados do Censo fo- A Tabela 2 aponta para uma situação ram obtidos por meio de um questionário am- extremamente grave quando consideramos plo, construído e aplicado pelo Projeto Pescarte, que estamos falando de produtores de alimen- junto a todas as localidades de pescadores tos, pois, temem passar forme. Como pode-se Tabela 2 – Respostas questão Ebia-1 Município do estudo Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram a preocupação de que a comida acabasse antes que tivessem dinheiro para comprar mais comida? Total (%) Sim (%) Não (%) Não respondeu (%) Campos dos Goytacazes 62,4 37,0 0,6 100,0 Macaé 31,9 65,3 2,8 100,0 São Francisco do Itabapoana 37,5 62,0 0,5 100,0 São João da Barra 45,3 54,5 0,2 100,0 Arraial do Cabo 33,8 63,9 2,3 100,0 Cabo Frio 46,7 50,2 3,1 100,0 Quissamã 32,2 67,8 – 100,0 Fonte: Censo PEA-Pescarte/2015. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 495 Mauro Macedo Campos et al. observar, os municípios de Campos dos Goyta- comprar comida. Em seguida, Cabo Frio apre- cazes, Cabo Frio e São João da Barra apresen- senta um percentual de 10,1% de indivíduos tam, respectivamente, as situações mais gra- famélicos, e Arraial do Cabo revela que 9% de ves, pois 62,4%, 46,7% e 45,3% das famílias pessoas acima de 18 anos sentiram fome sem temem passar forme pela falta de recursos para terem condições financeiras para saciar sua aquisição de alimentos, antes do término do vontade de comer. Os demais municípios, Ma- mês. Os demais municípios apresentam, tam- caé, São João da Barra, São Francisco e Quissa- bém, resultados expressivos, e o município de mã, apresentam, respectivamente, 7,2%, 6,9%, Macaé apresenta o menor resultado, 31,9%. 5,9% e 2,8%, mas, apesar de terem resultados Na Tabela 3, encontram-se os dados de restrição alimentar severa, caracterizada pe- mais baixos, não deixam de apresentar situações preocupantes. lo fato de os indivíduos terem experimentado Já, a Tabela 4, que corresponde à 13ª a ausência de alimentos por pelo menos um pergunta da Ebia, apresenta a situação em que dia sem terem recursos para providenciar sua indivíduos menores de 18 anos sofreram restri- alimentação. Assim, Campos dos Goytacazes, ção alimentar severa. Campos dos Goytacazes reconhecido como o município da região com apresenta 8,3%, e Macaé e Arraial do Cabo, maiores recursos, provenientes das rendas pe- 5,8% e 5,7%, respectivamente, os maiores ín- trolíferas, atingindo a cifra de R$ 2,4 bilhões ao dices. Contudo, em se tratando da condição ano, apresenta um percentual de 16,7% de fa- de ausência de alimentos, qualquer indicativo mílias de pescadores artesanais com membros deve ser considerado grave, como ocorre nos maiores de 18 anos que sentiram fome e não municípios de Cabo Frio, com 4,1%, São João puderam comer pela ausência de dinheiro para da Barra, com 3,9%, Quissamã, com 2,7% e Tabela 3 – Respostas questão Ebia-7 Município do estudo Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade sentiu fome, mas não comeu, porque não tinha dinheiro para comprar comida? Sim (%) Não (%) Não respondeu (%) Total (%) 16,7 82,5 0,8 100,0 Macaé 7,2 90,4 2,4 100,0 São Francisco do Itabapoana 5,9 93,1 1,0 100,0 São João da Barra 6,9 92,7 0,5 100,0 Campos dos Goytacazes 9,0 88,2 2,9 100,0 Cabo Frio 10,1 86,8 3,1 100,0 Quissamã 2,8 97,2 – 100,0 Arraial do Cabo Fonte: Censo PEA-Pescarte/2015. 496 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 Pescadores artesanais da Bacia de Campos Tabela 4 – Respostas questão Ebia-13 Município do estudo Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18 anos de idade sentiu fome, mas não comeu, porque não havia dinheiro para comprar mais comida? Total (%) Sim (%) Não (%) Não respondeu (%) Não sabe (%) Campos dos Goytacazes 8,3 87,8 3,6 0,4 100,0 Macaé 5,8 90,5 2,9 0,7 100,0 São Francisco do Itabapoana 1,9 95,8 2,1 0,2 100,0 São João da Barra 3,9 93,6 2,5 – 100,0 Arraial do Cabo 5,7 87,9 5,7 0,6 100,0 Cabo Frio 4,1 87,6 7,0 1,2 100,0 Quissamã 2,7 94,7 2,7 – 100,0 Fonte: Censo PEA-Pescarte/2015. São Francisco do Itabapoana, com 1,9%. Cabe ressaltar que os dados apresentados são, per- Considerações finais centualmente, quase a metade daqueles verifi- A proposta deste artigo foi conciliar os obje- cados pelos indivíduos com idade acima de 18 tivos centrais do Projeto Pescarte, que tem anos. Isso pode ser um indicativo de que os in- como foco a educação ambiental das famí- divíduos adultos buscam, na maioria das vezes, lias dos pescadores afetados pelas atividades alimentar primeiramente as crianças e os ado- da Petrobras na Bacia de Campos, com as lescentes. Essa realidade informa que, quando condições básicas de saúde. Nesse sentido, constatamos a presença da fome em menores buscou-se trazer os resultados coletados pe- de 18 anos, aqueles indivíduos com idade supe- la pesquisa junto aos pescadores artesanais rior já estão em processo de restrição alimentar dos sete municípios da Bacia de Campos, de há mais tempo. modo que se pudesse chamar a atenção para Por fim, tem-se, dessa forma, que os da- uma questão relevante que afeta a saúde des- dos relativos a SAN dos pescadores artesanais sas pessoas. Para tanto, o mote utilizado foi de Bacia de Campos, apontados pela pesquisa, o acesso a alimentos pelas famílias cobertas confirmam a situação de restrição alimentar. pelo Projeto. Os dados relativos à Segurança Pode-se dizer, assim, que boa parte do que foi Alimentar e Nutricional (SAN) dos pescado- evidenciado pode ser reflexo de insuficiência res artesanais da Bacia de Campos apontam a de renda para adquirir alimentos em quantida- necessidade de se tomar medidas que possam de suficiente. debelar a insegurança percebida pelas famílias Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 497 Mauro Macedo Campos et al. dos pescadores quanto a se alimentar regular- e com excesso de açúcar. Tem, portanto, um mente, em quantidade suficiente e qualidade. impacto direto na saúde dessas famílias. Afi- A incerteza, com relação a ter o que comer, nal, se “uma boa saúde começa pela boca”, permeia o cotidiano de um número expressivo tal condição está longe de ser o ideal para um de pescadores. E as respostas evidenciam que conjunto de pecadores artesanais da Bacia de as famílias sofrem por saber que amanhã po- Campos. Pois bem, a produção de alimentos e derá faltar alimentação suficiente ou por sua seu consumo também podem ser trabalhados falta regularmente, causando-lhes sobressal- pelo foco da questão ambiental: a alimenta- tos e angústias permanentes. Além dos efeitos ção dos pescadores e o alimento produzido psicológicos desse sentimento. por eles dentro de critérios sustentáveis para O que se tem como resultado analíti- o meio ambiente e que podem melhorar sua co, em que pesem os recortes definidos pelo renda. Não é demais dizer que o mercado, ho- escopo da pesquisa, é que parte das famílias je conhecido como “justo”, tem valorado, com não se alimenta bem. Não só por insuficiência dignidade, os alimentos produzidos dessa for- de renda, mas por se alimentar mal, despen- ma, o que atende conjuntamente duas metas dendo seus escassos recursos financeiros em do Pescarte: educação ambiental e melhoria alimentos prejudiciais à saúde, gordurosos de renda dos pescadores. Mauro Macedo Campos Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política. Campos dos Goytacazes, RJ/Brasil. [email protected] Moisés Machado Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política. Campos dos Goytacazes, RJ/Brasil. [email protected] Geraldo Márcio Timóteo Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico. Campos dos Goytacazes, RJ/Brasil. [email protected] Paulo Belchior Mesquita Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Centro de Ciências do Homem, Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado. Campos dos Goytacazes, RJ/Brasil. [email protected] 498 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 Pescadores artesanais da Bacia de Campos Notas (1) Os dados do Censo foram considerados, para este ar go, até o dia 17 de dezembro de 2015, tendo o seu início em novembro de 2014. (2) O Pescarte é um projeto de mi gação ambiental e obedece aos parâmetros estabelecidos em Plano de Trabalho formulado a partir das condicionantes oriundas da Nota Técnica CGPEG/ Dilic/Ibama nº 1/2010, Linha “A”, e do Diagnós co Par cipa vo do PEA-BC. O projeto é fruto do Plano de Caracterização Regional da Bacia de Campos (PCR-BC) e tem como obje vo a execução de ações de mi gação decorrentes da exploração e produção de petróleo e gás na Bacia de Campos (BC), desenvolvidas pela Petrobras, tendo como foco as comunidades de pescadores artesanais circunscritas em sete municípios da BC no estado do Rio de Janeiro. (3) Os critérios rela vos ao “volume médio de pescado desembarcado” e “renda familiar” foram usados, pelo Pescarte, como subsídio de dados do Projeto de Caracterização Regional da Bacia de Campos (PCR-BC). (4) As plataformas de extração de petróleo podem ser no continente, em terra firme, sendo denominadas “plataforma onshore”, ou no mar, que são as chamadas “plataforma offshore”, possuindo uma estrutura moderna de perfuração em alto mar, abrigando trabalhadores e equipamentos necessários na perfuração de poços, além da extração de petróleo e gás. Tais plataformas podem ser fixas no solo marinho ou flutuantes. (5) O dado de 3,031 milhões de barris de óleo equivalente (BOE) por dia refere-se à produção recente, extraído como um elemento informa vo para o ar go em 4 de abril de 2015. Ver em: h p://www.msatual.com.br/2015/04/03/petroleo-e-gas-no-pais-alcancou-a-marca-de-3031milhoes-de-barris/ (6) Recentemente o barril de petróleo a ngiu a sua pior cotação em mais de uma década, fechando abaixo de US$35.00 o barril. Ver em h p://g1.globo.com/economia/mercados/no cia/2016/01/ petroleo-fecha-abaixo-de-us-35-pela-1-vez-em-11-anos.html. (7) Vale ressaltar que os valores em reais apresentados nesta e nas demais tabelas não foram deflacionados. Correspondem à moeda corrente do respec vo ano. (8) A composição das transferências constitucionais são: Fundo de Participação dos Municípios (FPM); Imposto sobre propriedadeTerritorial Rural (ITR); Imposto sobre Operações Financeiras (IOF); Imposto sobre propriedade Territorial Rural (ITR); Lei Complementar 87/1996, Lei Kandir; Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE); Auxílio Financeiro para Fomento das Exportações (FEX); Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef); Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). (9) O questionário Pescarte contou com os seguintes blocos de questões: Bloco 1: Identificação socioeconômica – Caracterís cas demográficas; Bloco 2: caracterização familiar; Blocos 3 e 4: Avaliação de serviços públicos; Bloco 5: Trabalho e trajetória profissional; Bloco 6: Caracterização da atividadepesqueira; Bloco 7: Capital social e laços de família; Bloco 8: Gênero; Bloco 9: Caracterização da educação ambiental na Bacia de Campos; Bloco 10: Inquérito alimentar. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 499 Mauro Macedo Campos et al. Referências BRASIL (2006). Lei Orgânica de Segurança Alimentar Nutricional. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional-SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União. ______ (2007). Insegurança Alimentar no Brasil: do Desenvolvimento do Instrumento de Medida aos Primeiros Resultados Nacionais. 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Novos Usos e Novos Mercados: Qual sua influência na dinâmica da cadeia produ va dos frutos do mar oriundos da pesca artesanal? Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Texto recebido em 8/jan/2016 Texto aprovado em 10/abr/2016 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016 501 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras* Poverty and income mobility in the Brazilian metropolitan regions Lilia Montali Luiz Henrique Lessa Resumo A questão da pobreza tem sido um dos principais temas na agenda pública da política brasileira e integra compromisso com as Metas do Milênio firmado no ano 2000. A pobreza entendida como resultante de carências múltiplas vem se reduzindo enquanto resultado de um conjunto de políticas sociais e da retomada do crescimento econômico. O objeto deste ensaio é interrogar se a mobilidade de renda observada entre 2001 e 2012 (série Pnad-IBGE) é acompanhada de melhora em algumas das dimensões que possibilitam a elevação da condição de vida da população nas regiões metropolitanas e de mudanças que permitam a discussão de mobilidade social. Constatou-se a mobilidade de renda, quando parcelas da população metropolitana se deslocam dos dois primeiros decís de renda per capita domiciliar para os subsequentes, e a persistência dos hiatos de acesso ao emprego, educação, saúde e serviços urbanos. Abstract The question of poverty has been one of the main topics on the Brazilian political agenda and is among the Millennium Development Goals, a document that was signed in 2000. Poverty, understood as the result of multiple needs, has been decreasing due to a set of social policies and to the resumption of economic growth. The objective of this essay is to discuss whether the income mobility verified between 2001 and 2012 (Pnad-IBGE series) was accompanied by improvements in some of the dimensions that enable better living conditions to the population in Brazil’s metropolitan regions and by changes that allow the discussion of social mobility. Income mobility was verified when sectors of the metropolitan population rise from the two lowest deciles of per capita household income to higher deciles. The persistence of gaps in access to jobs, education, health and urban services was also noted. Palavras-chave: pobreza; desigualdade; mobilidade de renda; metrópoles. Keywords: poverty; inequality; income mobility; metropolises. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3610 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa Introdução sociais. A desigualdade também apresenta ten- A pobreza e a permanência de elevados índi- níveis elevados. Dentre as políticas sociais re- ces de desigualdade social têm se mostrado centes com maior impacto sobre a redução da como temas relevantes da agenda pública da pobreza e da desigualdade, na primeira década política brasileira na última década. Em 2000 o do século XXI, merecem destaque a política de Brasil aderiu às Metas do Milênio (Pnud ONU, recuperação do salário mínimo (SM), as medi- 2000), com os demais 190 países membros da das para a recuperação do emprego e a política ONU. Esse documento estabelece medidas e de transferência condicionada de renda. dência declinante, ainda que se mantenha em metas que deverão ser atingidas até 2015 para Indaga-se, neste ensaio, se a mobilidade se reduzir a extrema pobreza e a fome, assim de renda observada a partir de 2004 – período como promover a igualdade entre os sexos, em que se iniciam a retomada do crescimen- entre outras. As metas de redução da pobreza to econômico no País e também a ampliação e do número de pessoas subalimentadas fo- e o aperfeiçoamento das políticas de combate ram atingidas pelo Brasil, segundo o relatório à pobreza –, é acompanhada de melhora em da ONU “O Estado da Insegurança Alimentar algumas das dimensões que possibilitam a ele- no Mundo 2015”.1 Nesse período, também foi vação da condição de vida da população nas confirmada a redução da pobreza e da extrema regiões metropolitanas, além de mudanças que pobreza, através de análise dos microdados permitam a discussão de mobilidade social. da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí- A análise tem por foco as regiões metro- lios de 2014, IBGE, realizada pelo Ministério politanas brasileiras e privilegia como eixos o de Desenvolvimento Social (MDS). Tal análise nível educacional e as formas de inserção no mostra redução das taxas de pobreza extrema mercado de trabalho, bem como os indicadores de 7,6% da população, em 2004, para 2,8%, de qualificação profissional. As regiões metro- em 2014, e das taxas de pobreza de 22,3%, em politanas4 brasileiras apresentam-se como es- 2004, para 7,3% da população, em 2014.2 A paços importantes para o estudo da problemá- continuidade da redução da pobreza até 2014 tica envolvida no comportamento da pobreza também é apontada pelo relatório da Cepal e da desigualdade de renda, porque se, por um “Panorama Social da América Latina 2015”.3 lado, agregam as principais aglomerações ur- Segundo Laís Abramo, diretora da Divisão de banas do País, sendo responsáveis por cerca de Desenvolvimento Social da Cepal, a diminuição 40% do PIB nacional, por outro, apresentam mais acentuada da pobreza entre os indigentes permanência de elevada proporção de pobres mostra, a eficácia e a importância dos progra- (Rocha, 2003; 2010; 2013) e da desigualdade mas de combate à extrema pobreza que exis- de renda que, embora em queda, é, em mé- tem atualmente no País. dia, superior à nacional (Montali et al., 2014). A análise do ano de 2012, aqui apresen- Deve-se ainda ressaltar que as regiões metro- tada, mostra que a pobreza entendida como re- politanas brasileiras (RMs) evidenciam as mes- sultante de carências múltiplas se reduz no País, mas tendências apontadas na literatura para o como resultado de um conjunto de políticas Brasil com relação à redução da desigualdade 504 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras de renda a partir de 2004, que resultam da elevação da renda domiciliar per capita e do crescimento mais acentuado do rendimento médio Desigualdade de renda nas metrópoles brasileiras dos domicílios nos decis inferiores de renda. O presente ensaio refere-se ao período A análise da primeira década do século XXI entre 2001 e 2012, e o fato de sua publicação evidencia a tendência de redução da desigual- ocorrer em 2016 nos obriga a registrar que dade de renda, a partir de 2004, no País e nas essa tendência virtuosa de elevação do em- regiões metropolitanas. O Índice de Gini,5 en- prego formalizado e do rendimento domiciliar tretanto, mostra queda da desigualdade menos per capita, observada até o ano de 2014, sofre uma inflexão no decorrer do ano de 2015, como decorrência de uma conjunção desfavorável provocada por crise política e econômica que se instaura no País e permanece até o momento atual. A conjuntura de crise e recessão se acentua no ano de 2016 e é possível que afete negativamente os indicadores de pobreza alcançados. Entretanto, este ensaio retrata um momento de crescimento econômico e de redução da desigualdade de renda resultante de políticas econômicas e sociais, que tiveram êxito na redução da pobreza. Ele é composto por três partes. Na primeira parte são apresentadas as regiões metropolitanas brasileiras e sua heterogeneidade e é justificada a escolha do agregado de regiões metropolitanas do Sul e do Nordeste, por apresentar situações contrastantes em relação à renda domiciliar per capita. Na segunda parte, são indicadas as principais políticas sociais responsáveis pela redução da pobreza na primeira década dos anos 2000. Na última parte, é apresentada a análise comparativa dos dados da Pnad relativos ao período de 2001 a 2012 com o intuito de identificar as características da pobreza no Brasil naquele momento, considerando-se como indicadores a renda, o vínculo contratual de trabalho, o nível educacional e o acesso a serviços urbanos. acentuada nas regiões metropolitanas que a Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 observada para o País e também se observa a manutenção de elevada proporção de pobres nessas regiões. Estudo de longo prazo sobre pobreza no Brasil, feito por Rocha (2013), mostra que, entre 1970 e 2011, ocorreu tendência de redução do número absoluto de pobres e de redução sustentada da pobreza, que se apresentava como tendência desde 1997.6 Mostra, ainda, que se altera o perfil da pobreza, que deixa de ser predominantemente rural para se tornar mais elevada nas áreas metropolitana e urbana. Esse fato se relaciona às mudanças ocorridas no País. O Brasil, que em 1970 apresentava elevada proporção de população rural (45%), bem como elevada prevalência de pobreza, torna-se, no decorrer do período, predominantemente urbano e metropolitano. Outra tendência relevante apontada é a convergência da proporção de pobres segundo os locais de residência. Durante o período referido, a redução da pobreza rural é provocada por diversos fatores, desde mudanças no processo produtivo, como medidas de políticas públicas, com destaque para a ampliação da previdência rural. Observa-se, também, o aumento da pobreza metropolitana a partir das décadas de 1980 e 1990, períodos de baixo crescimento econômico e de migração em direção às regiões 505 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa metropolitanas da região Sudeste (São Paulo de pobres cai de forma sustentada em todas as e Rio de Janeiro). Segundo Rocha, os momen- áreas de residência analisadas, quais sejam, tos de crise econômica dessas duas décadas metropolitana, urbana e rural.7 Entretanto, de baixo crescimento afetaram de forma mais comparativamente, é menor a queda no es- aguda as metrópoles primazes de São Paulo trato metropolitano, que se mantém apresen- e Rio de Janeiro. Além disso, nesse período, tando a maior proporção de pobres em sua ocorre a “metropolização da pobreza”, quando população, ou seja, esta passa de 38,8%, em a proporção de pobres nos espaços metropo- 2004, para cerca de 27% em 2008; enquanto, litanos passa de 29% em 1981, para 32% em na população brasileira, essa proporção cai de 1993 (Gráfico 1). 33,3% para 22,8%. Entretanto, a autora alerta No período entre 2004 e 2008, caracte- para a heterogeneidade das regiões metropoli- rizado pela expansão da economia e pela im- tanas brasileiras e para seu comportamento na plementação de políticas sociais de combate à retomada do crescimento econômico a partir pobreza, Rocha (2010) mostra que a proporção de 2004. Gráfico 1 – Proporção de pobres segundo estrato de residência (%) Brasil – 1970-2010 85 75 65 55 45 35 25 15 5 1970 1972 1974 1976 1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2003–2011 1953–2003 1980–1993 1970–1980 Brasil Urbano Metropolitano Rural 2006 2008 2010 Fonte: Pnad, elaboração de Rocha (2013, p. 21). 506 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras Ainda merece destaque que a renda per As áreas metropolitanas brasileiras fo- capita domiciliar média das regiões metropoli- ram afetadas com mais intensidade do que tanas é mais elevada que a média do País e que as áreas urbanas não metropolitanas e as a média das áreas não metropolitanas (Gráfi- áreas rurais pelo processo de reestruturação co 2). Além de ser mais elevada, a evolução da produtiva e organizacional. Além disso, esse renda domiciliar per capita metropolitana apre- processo, que se intensifica a partir da década senta oscilações mais acentuadas relacionadas de 1990 no País, atuou de forma diferenciada, ao crescimento da economia. Assim, observa-se entre as regiões metropolitanas, relacionada que a queda no PIB ocorrida em 2003 se reflete à organização das atividades econômicas em nos menores valores de renda per capita me- cada uma delas. Associada ao baixo ritmo de tropolitana em 2003. Nota-se também, para o crescimento da economia, a reestruturação total metropolitano, que a elevação da renda é produtiva elevou o patamar de desemprego e mais rápida nos anos de recuperação da eco- implicou crescente precarização das relações nomia a partir de 2004 (Gráfico 2). de trabalho com redução do assalariamento Gráfico 2 – Rendimento domiciliar per capita médio Brasil, regiões metropolitanas e não metropolitanas, 2001-2012 Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2001-2012). Elaboração Nepp/Unicamp. Valores atualizados para 2012 (INPC). (1) O Total Metropolitano inclui as nove regiões metropolitanas e o Distrito Federal. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 507 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa regulamentado e com aumento de vinculações economia, expressa-se nos valores mais ele- menos protegidas. Nesse período, acentuou-se vados do rendimento domiciliar per capita do o empobrecimento nessas regiões. A partir de ano de 2009, com continuidade até o ano de 2004, quando se inicia a recuperação econô- 2012 (Tabela 1) . mica, ampliam-se o emprego e as contratações Um dos indicadores da heterogeneidade regulamentadas, e ocorre elevação gradual nos existente entre as regiões metropolitanas – rendimentos dos ocupados e nos rendimentos nestas incluindo o Distrito Federal (DF) – ex- familiares (Montali, 2008). plicita-se na análise da renda domiciliar per A inflexão observada nos valores do capita média. Ressalta-se que a renda domici- rendimento domiciliar per capita no ano de liar per capita do Distrito Federal (R$2.012,90 2004 reflete a conjuntura de baixo crescimen- em 2012, equivalente a 3,2 salários mínimos to, de elevado desemprego e de deterioração vigentes)8 é bastante superior ao rendimento do mercado de trabalho que marcou o início domiciliar per capita das demais regiões es- da primeira década do século XXI no País e tudadas (Tabela 1). Em segundo lugar, apare- se estendeu até o ano de 2003. Já o período ce a RM de São Paulo com o valor médio de entre 2004 e 2009 de maior dinamismo da R$1.485,20 no mesmo ano. Seguem-se a esta Tabela 1 – Rendimento domiciliar per capita médio e Índice de Gini Brasil e regiões metropolitanas, 2001-2012 Valores em reais 2001 Brasil 2004 2009 Índice de Gini 2012 2001 2004 2009 2012 0,5939 0,5705 0,5401 0,5277 758,9 728,6 910,6 1.036,3 1.047,4 964,5 1.183,5 1.340,7 – – RM Belém 631,3 601,8 712,8 833,3 0,5845 0,5416 0,5122 0,5213 RM Fortaleza 655,5 601,8 754,8 805,3 0,6321 0,5999 0,5542 0,5217 RM Recife 682,5 645,8 790,1 816,1 0,6215 0,6269 0,5676 0,5431 RM Salvador 788,4 657,6 967,8 1.080,3 0,6216 0,588 0,58 0,5613 RM Belo Horizonte 868,8 876,3 1.193,3 1.419,3 0,5584 0,556 0,5303 0,5244 RM Rio de Janeiro 1.115,9 1.076,60 1.313,5 1.340,3 0,5719 0,5555 0,5563 0,5428 RM São Paulo 1.166,3 1.011,80 1.198,1 1.485,2 0,5679 0,5424 0,5142 0,5067 RM Curitiba 1.091,5 1.106,60 1310 1.420,2 0,5615 0,5635 0,5052 0,4804 1192 1.095,00 1.236,3 1.421,9 0,5625 0,5377 0,5126 0,5083 1.453,2 1.416,60 1.995,4 2.012,9 0,6203 0,6256 0,619 0,5822 Total Metropolitano RM Porto Alegre Distrito Federal – – Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração: Nepp/Unicamp. Indice de Gini: elaboração Ripsa – IDB – Brasil, 2012, Site Ministério da Saúde. Valores atualizados para 2012 (INPC). 508 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras as RM de Porto Alegre, Curitiba e Belo Horizonte, com valores de rendimento domiciliar per capita cerca de R$1.420,00, no último ano. Essas RMs do Sudeste e do Sul são as que, após o DF, apresentam maiores valores médios, cerca de 2,3 salários mínimos. E as RMs do Norte e Salário mínimo e as políticas sociais de transferência de renda: efeitos sobre a diminuição da desigualdade de renda Nordeste apresentam os menores valores, variando entre R$1.080,00 ou 1,7 SM (Salvador) A importância do salário mínimo e R$816,00 ou 1,3 SM (Recife). O Índice de Gini evidencia a tendên- Nos anos da década de 2000, período em que cia de redução da desigualdade entre 2001 e ocorre a recuperação do salário mínimo, esta- 2012, tanto para o País como para as regiões belece-se um debate, com concordância entre metropolitanas brasileiras. A queda da desi- diversos analistas, que o aumento do salário gualdade de renda foi da ordem de 11% para o mínimo tem impacto nas remunerações pa- País, no período entre 2001 e 2012, e de 7,5% gas, com maior ênfase nas remunerações mais entre 2004 e 2012 (Tabela 1). Entretanto, para próximas ao seu valor, mas com efeitos que o conjunto das regiões metropolitanas brasilei- alcançam remunerações mais elevadas, ainda ras, a queda foi menor para ambos os períodos que com uma intensidade menor. Além disso, a indicados. Apenas três entre as nove RM e o política de recuperação do valor real do salário Distrito Federal apresentam redução da desi- mínimo se reflete no sistema previdenciário e gualdade maior que a observada para o País. se discute sobre a importância do salário míni- São elas RM de Fortaleza e Recife, na região mo como uma política pública capaz de mitigar Nordeste, e de Curitiba, na região Sul. a desigualdade de renda no País.9 A Constitui- As disparidades de renda e as carac- ção Federal de 1988 instituiu mudanças que terísticas do desenvolvimento regional defi- ampliaram o alcance do salário mínimo. Além niram a escolha neste ensaio em detalhar a de servir como um instrumento regulador das análise para dois conjuntos correspondendo remunerações no mercado de trabalho, ele foi às regiões metropolitanas do Sul (Curitiba e adotado como piso para uma série de benefí- Porto Alegre) – dentre os níveis mais elevados cios sociais, dentre os quais os previdenciá- de rendimento domiciliar per capita e com me- rios urbano e rural e o Benefício de Prestação nor desigualdade de renda – e às regiões me- Continuada (BPC). tropolitanas do Nordeste (Fortaleza, Recife, O salário mínimo foi instituído no Brasil, Salvador) com valores menores de rendimento em 1936, por meio da lei nº 18510 e foi um dos domiciliar per capita e indicador de desigual- direitos trabalhistas estabelecidos pela Conso- dade de renda superior ou semelhante ao na- lidação das Leis do Trabalho.11 Desde sua cria- cional. Procura-se identificar distinções entre ção, é possível identificar cinco momentos que esses dois conjuntos de regiões metropolita- refletem as principais mudanças no seu valor nas nas tendências da mobilidade de renda e real, como mostra o Gráfico 3. No período que nas características da pobreza. vai da criação do salário mínimo em 1940 até Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 509 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa início dos anos 1950, não há novos reajustes, que visava fortalecer a opinião dos poderes o que leva a uma queda do seu valor. Num se- Executivo e Legislativo acerca da importância gundo momento, há uma tendência de cresci- social e econômica da proposta de valorização mento que vai até o Golpe Militar de 1964. A do salário mínimo. Também como resultado partir de então, ele sofre uma queda acentua- dessas negociações, foi acordada uma política da, mas que se estabiliza em 1967 e que dura permanente de valorização do salário mínimo. até a crise econômica do início dos anos 1980. Segundo nota do Dieese (2010), o salário míni- Durante essa década, a inflação corrói ainda mo teve um aumento real de 53,7% durante o mais seu valor real, que só volta a crescer a governo de Luiz Inácio Lula da Silva (de abril de partir de 1995, devido à estabilidade da moeda 2003 a janeiro de 2010), abrangendo cerca de e à redução da inflação, obtidas a partir do pla- 46,1 milhões de pessoas que têm rendimentos no Real e por diversas políticas de estabilização referenciados no salário mínimo. Apenas isso já subsequentes a ele. bastaria para justificar a importância e valori- A atual política de valorização do salá- zação de sua manutenção como política públi- rio mínimo estabelecida pelo governo federal ca de regulamentação do mercado, mesmo que respondeu à reinvindicação de movimento aproximadamente metade dos trabalhado- articulado em 2004 pelas Centrais Sindicais, res brasileiros se encontre na informalidade. Gráfico 3 – Valor real do salário mínimo, mensal, 1940 – agosto/2011 Fonte: Ipeadata (apud Montali et al., 2012). 510 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras As análises do Ipea indicam que as famílias que 1995, foram implementados em âmbito muni- tiveram uma mudança efetiva de sua condição cipal, programas de transferência de renda de de extrema pobreza ou pobreza foram as que forma pioneira em Campinas e Ribeirão Preto, tiveram, dentre seus membros, alguém que no estado de São Paulo, e em Brasília (DF), se- conseguiu um emprego regulamentado nesse guidos por outros municípios em diversos esta- período ou que tinham algum familiar que re- dos brasileiros. O sucesso dessas experiências cebesse benefícios sociais, como o BPC, no va- levou o governo federal a criar, em 1997, o Pro- lor de um salário mínimo (Ipea, 2007). grama Federal de Garantia de Renda Mínima que consistia no cofinanciamento de até 50% dos programas instituídos nos municípios que Os programas de transferência de renda e o objetivo de erradicação da pobreza não tivessem recursos suficientes. Por ter como critério de seleção os municípios que tivessem baixo IDH, era difícil conseguir municípios que tivessem capacidade e disposição de financiar Os atuais programas de transferência de renda a contrapartida exigida. Por esse motivo, o go- no Brasil têm suas origens na década de 1990. verno federal criou, em 2001, o Programa Na- As medidas neoliberais implementadas, tanto cional Bolsa Escola, cujo objetivo era garantir no Brasil como nos demais países da Améri- acesso à escola da totalidade da população ca Latina, por um lado provocaram profundas de 7 a 14 anos, mediante a concessão de uma mudanças no mercado de trabalho e deterio- bolsa complementar, até o limite máximo de ração do emprego e empobrecimento massivo três crianças por família. O cadastramento das dos trabalhadores; por outro, no caso brasileiro, famílias e das crianças era de responsabilida- interferiram nos direitos sociais que deveriam de das prefeituras municipais, que também se ser garantidos sob a égide da Constituição comprometiam a desenvolver atividades socio- Brasileira de 1988. Segundo Ivo (2011), o ca- educativas em horário complementar às aulas, minho encontrado pelos governantes foi uma sem receber qualquer repasse financeiro do tendência de restrição dos custos da “segurida- Governo Federal. de social de perspectiva universalista e inclusi- No governo de Luiz Inácio Lula da Silva, va para a assistência focalizada sobre aqueles a rede de assistência social iniciada no gover- em situação de pobreza e de pobreza extrema, no Fernando Henrique Cardoso foi ampliada com base na gestão dos mínimos sociais”. em relação tanto ao seu volume de gastos em Nesse contexto, surgem no Brasil di- programas de transferência de renda quanto versos programas de auxílio focalizados nos ao número de beneficiários. Em 2003, foi criado setores mais vulneráveis da população, ainda o Programa Bolsa Família, o que representou no período do governo de Fernando Henrique um esforço do governo federal em unificar, in- Cardoso. No âmbito federal foram instituídos, tegrar e ampliar a experiência dos programas em 1996, dois programas: o BPC (Benefício de sociais anteriores, através de um cadastro 12 Prestação Continuada) e o Peti (Programa de único dos beneficiários formulado pelo MDS Erradicação do Trabalho Infantil) em 1996. Em e aplicado pelas prefeituras dos municípios. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 511 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa Segundo Fonseca e Roquete (2005, p. 133), os a 2009, a pobreza e a extrema pobreza tor- fundamentos inovadores do Programa Bolsa naram-se cada vez menos determinadas pelo Família em relação aos demais programas re- baixo valor do rendimento per capita dos mem- sidem em quatro aspectos: 1) a família como bros da família e cada vez mais determinadas unidade básica receptora dos benefícios e do pela exclusão desses membros do mercado de cumprimento das condicionalidades; 2) a in- trabalho, sugerindo que o Bolsa Família e de- clusão prioritária dos membros das famílias em programas e políticas que permitam uma saída do programa; 3) a descentralização pactuada com os estados e municípios da federação; e 4) o cadastro único dos programas sociais como ferramenta de planejamento e controle dos cadastrados no programa. O principal objetivo do programa residia na mitigação da pobreza, porém seus programas complementares, a exigência do cumprimento das condicionalidades e as ações focalizadas geraram inúmeras consequências positivas, tais como: criação de possibilidades de emancipação sustentada dos grupos familiares; incentivo ao desenvolvimento local dos territórios; prioridade assegurada aos mais pobres; estabelecimento e busca do princípio de equidade; aumento da eficiência e a efetividade do uso dos recursos; e unificação, ampliação e racionalização dos programas de transferência de renda. Os estudos realizados a partir dos dados da Pnad mostram que o programa Bolsa Família obteve sucesso quanto a sua capacidade de focalizar suas ações nos estratos mais vulneráveis da população brasileira. Desde a implementação do programa, em 2004, diversas pesquisas têm registrado uma melhoria nas condições de vida dos setores mais pobres, com redução de desigualdades sociais e aumento de renda, embora inconclusivas na afirmação acerca da existência de uma tendência permanente de redução da pobreza no País. Segundo o informe do Ipea (2011a), no período de 2004 mais programas, como o BPC, têm sua eficácia 512 melhorada em associação com a renda oriunda do trabalho. Nesse sentido, as políticas públicas que permitem a criação e o incentivo de empregos regulamentados, tais como a qualificação profissional e o aumento do salário mínimo, são fatores importantes para que se acelere a saída das famílias do programa, tornando-as emancipadas economicamente. Algumas iniciativas buscaram perseguir esses objetivos, embora sem sucesso. Segundo estudo de Sergei Soares “Distribuição de Renda no Brasil de 1976 a 2004” apontado por Weissheimer (2010), o programa foi responsável por um terço da queda na desigualdade no Brasil, logo no início de sua criação, e impactou diretamente na melhoria da nutrição infantil e também, de modo indireto, na redução do trabalho infantil. O mercado de trabalho teria sido o responsável pelos outros dois terços de queda na desigualdade, segundo estudo realizado pelo Ipea (2006). De acordo com a pesquisa, a desigualdade caiu por ano em média 0,7 pontos percentuais do Índice de Gini. Considerando que a pobreza é um fenômeno multidimensional, o governo Dilma Rousseff lançou, em junho de 2011, o Programa Brasil Sem Miséria, que visava identificar e combater a extrema pobreza no Brasil, cuja concentração é mais elevada principalmente nas áreas rurais do Norte e Nordeste. Esse programa apresenta um conjunto de medidas Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras que não considera exclusivamente o critério de aos choques econômicos e à sazonalidade da transferência de renda como instrumento de economia, mostrando que a renda familiar per combate à pobreza. Segundo informe do Minis- capita dos inseridos no mercado de trabalho tério do Desenvolvimento Social (MDS, 2012), o informal flutua continuamente, o que leva, por- programa visa retirar a população extremamen- tanto, a uma variação na dependência ou não te pobre de sua condição, rompendo o círculo das famílias ao programa, como aponta estu- vicioso da exclusão social, que, segundo o Cen- do do Ipea (2007, p. 12). Em certos períodos, so de 2010, era cerca de 16 milhões de pessoas: inclusive, é possível que alguns beneficiários A insuficiência de renda é um relevante indicador de privações, mas não é o único. Fatores sociais, geográficos e biológicos multiplicam ou reduzem o impacto exercido pelos rendimentos sobre cada indivíduo. Entre os mais desfavorecidos faltam instrução, acesso à terra e insumos para produção, saúde, moradia, justiça, apoio familiar e comunitário, crédito e acesso a oportunidades. (p. 6) tenham uma renda que ultrapasse os limites de corte adotados para a concessão do benefício, mas que, no momento da entrada no programa, cumpriam integralmente todos os critérios para a inclusão. Por avaliar esses aspectos o Programa Brasil Sem Miséria incluiu a possibilidade de desligamento voluntário do programa com retorno garantido no prazo de 3 anos. Dessa forma, permitia que, em caso de perda do emprego, a família pudesse retornar imediata- De acordo com o informe, o objetivo do mente ao Programa Bolsa Família. Brasil Sem Miséria é promover a inclusão social e produtiva da população extremamente pobre, tornando residual a percentagem dos que vivem abaixo da linha da pobreza. Ele atua Mobilidade de renda no período de 2004 a 201214 com base em três eixos específicos: 1) elevar a renda familiar per capita; 2) ampliar o acesso A partir de 2004 até 2009 (ano da crise finan- aos serviços públicos, às ações de cidadania e ceira), o Brasil retoma um período de cresci- de bem-estar social; e 3) ampliar o acesso às mento econômico com aumento do emprego oportunidades de ocupação e renda através de assalariado protegido pela legislação traba- ações de inclusão produtiva nos meios urbano lhista. Há continuidade dessas tendências até e rural (ibid., p. 2).13 2012, embora com menor ritmo do crescimento Considera necessário levar em conta ou- da economia. tros mecanismos, além da simples transferên- Como já mencionado, este ensaio interro- cia de renda, que permitam uma diminuição da ga se a mobilidade de renda observada, a partir miséria e que ajam em conjunto com ela, uma de 2004 (período em que ocorre a retomada do vez que apenas a transferência de renda é in- crescimento econômico no País e do emprego, suficiente para promover uma estável seguri- além da ampliação e do aperfeiçoamento das dade social às famílias beneficiadas. Os dados políticas de combate à pobreza), é acompanha- mostram que as rendas das famílias continuam da de melhora em algumas das dimensões que sujeitas à rotatividade dos empregos precários, possibilitam a elevação da condição de vida da Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 513 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa população nas regiões metropolitana, assim características contrastantes em relação aos como também de mudanças que permitam a níveis de pobreza, apresentadas no item “Desi- discussão de mobilidade social. Objetiva, ainda, gualdade de renda nas metrópoles brasileiras”. identificar as características da pobreza no Bra- A partir da mudança observada no período sil, com base nos recortes de pobreza extrema entre 2004 e 2012, há indícios de que, à me- e de pobreza (um quarto de SM e meio SM, res- dida que há a redução da incidência de pobre- pectivamente), através da análise consideran- za (considerando-se a insuficiência de renda), do-se os decis da distribuição de renda. mais caracterizada ela se torna em relação aos Optou-se por utilizar, como recurso para indicadores das demais carências. análise, a distribuição por decis de renda – que consiste em dividir a renda per capita total em grupos que variam entre os dez por cento Brasil: indicadores de renda e pobreza mais pobres até os dez por cento mais ricos, obtendo, com isso, uma escala de distribuição Através da análise dos valores de corte dos de renda com dez divisões. Para este trabalho, decis de renda per capita domiciliar do Bra- utilizou-se a renda per capita domiciliar como o sil, é possível constatar indicações de que as critério de referência para investigar a mobili- proporções mais elevadas de aumento do ren- dade de renda, ainda que o objetivo seja identi- dimento ocorridas entre 2004 e 2012 se en- ficar o perfil dos indivíduos que integram esses contram nos decis inferiores, com crescimento domicílios.15 A escolha por se trabalhar com as cerca de 40%; enquanto, nos decis de renda divisões por decis de renda difere da metodolo- mais elevados, o aumento foi de 20%, reafir- gia de linhas de pobreza adotadas por Rocha, mando que o crescimento econômico do País mencionadas em item anterior. Mesmo sendo no período tendeu a beneficiar os mais pobres consideradas as limitações existentes por conta (Neri, 2006).16 da diversidade regional, foram adotados, nes- Os Gráficos 4 e 5 apresentam a distribui- te ensaio, os mesmos cortes de renda indica- ção segundo cortes dos decis do rendimento tivos de pobreza utilizados na formulação das per capita domiciliar para o total dos domicílios políticas públicas, para identificar a gravidade do Brasil e para o total dos domicílios das áreas da pobreza e a elegibilidade dos beneficiários. metropolitanas brasileiras, e sua análise indi- Assim, considera-se, nesse estudo em condição ca mobilidade de renda.17 Pode-se notar para de pobreza, os “extremamente pobres” ou in- as áreas metropolitanas que o valor de renda digentes – indivíduos em domicílios com renda domiciliar per capita correspondente à pobreza per capita inferior a um quarto do salário míni- (inferior a meio salário mínimo – R$311,00 per mo – e os “pobres” – aqueles com renda entre capita para valores de 2012) estava localizado no quarto decil, em 2001 e 2004. Assim, entende-se que entre 2001 e 2004, são considerados pobres os domicílios com rendimento de até meio salário mínimo situados no quarto decil e abaixo dele. Em 2009, o corte de rendimento um quarto e meio salário mínimo, deflacionado para os valores de 2012 (R$622,00 per capita). São comparadas as informações relativas ao Nordeste Metropolitano e ao Sul Metropolitano. Optou-se por comparar duas regiões com 514 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras Gráfico 4 – Valor dos decis de rendimento domiciliar per capita (R$) Brasil – 2001-2012 Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração: Nepp/Unicamp. Valores atualizados para 2012 (INPC). Gráfico 5 – Valor dos decis de rendimento domiciliar per capita (R$) Brasil Metropolitano – 2001-2009 Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração: Nepp/Unicamp. Valores atualizados para 2012 (INPC). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 515 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa correspondente à pobreza encontrava-se no Nordeste Metropolitano terceiro decil, nas áreas metropolitanas e também para o total da população brasileira, e no segundo decil, no ano de 2012, também para ambas. Esses dados indicam progressiva redução da proporção de domicílios pobres, pois eles estão cada vez mais se limitando aos primeiros decis da distribuição de renda domiciliar per capita. Ressalta-se que, para o total da população brasileira, comparativamente à população do Brasil Metropolitano, é maior a mobilidade de renda, pois nesta os domicílios pobres (com rendimento de até meio salário mínimo) estão situados no quinto decil e abaixo deste em 2001 e 2004; e passam a estar no terceiro decil, em 2009, e no segundo decil em 2012. A análise da faixa de renda domiciliar correspondente à extrema pobreza (inferior a O crescimento econômico do Nordeste Metropolitano foi durante muito tempo influenciado pelas atividades agrícolas voltadas para a exportação. Com a decadência da economia nordestina, ainda no século XIX, nessas regiões, que outrora foram o centro da economia colonial, iniciou-se um grande ciclo de decadência; e, do acúmulo de riqueza, elas passaram a concentrar pobreza. A industrialização ocorrida no eixo sudeste só atingiu a região muito mais tardiamente, e ela sempre dependeu dos investimentos estatais para se desenvolver na região, através de incentivos fiscais e financeiros, como a Sudene. A industrialização incentivada pelo Estado e a descentralização da indústria do eixo Sudeste ocorrida nos anos recentes dinamizaram a economia metropolitana Nordestina, um quarto de SM – R$155,00 per capita) mostra que ela se situava no segundo decil para as regiões metropolitanas, tanto em 2001quanto em 2004. Entre 2009 e 2012, o valor de corte do primeiro decil supera o valor correspondente à extrema pobreza e restringe os domicílios nessa condição no primeiro decil (Gráfico 5). A distribuição de domicílios em extrema pobreza para o total da população do Brasil apresenta comportamento semelhante quanto à sua distribuição por decis de renda (Gráfico 4). Ou seja, observam-se indicações de recuperação da renda domiciliar per capita e de redução dos níveis de pobreza através da análise da evolução da proporção de domicílios em situação [...] mas logrou quantidade de empregos líquidos inferior ao planejado [...]. Por outro lado, o setor público transformou-se no gerador privilegiado de ocupações da classe média, motivado pelos gastos em infraestrutura, em políticas sociais (expansão de todos os níveis educacionais) e na expansão das autarquias e das empresas estatais. Porém, dinamizar a economia não foi suficiente para equacionar a desigualdade social nessas localidades, intensificada com a ampliação das atividades informais e do subemprego na década de 1990, ocupações de refúgio dos trabalhadores marginalizados na frágil estrutura produtiva. (Falvo, 2011, p. 125) de pobreza e de extrema pobreza, segundo os Dessa forma, foi somente após os anos decis de renda per capita média dos domicílios, 2000 que a Região Metropolitana do Nordeste considerando-se a população brasileira e a po- registra um aumento na renda dos mais pobres pulação das regiões metropolitanas brasileiras. devido ao crescimento econômico gerador de 516 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras empregos, em concomitância às políticas de metropolitanas do Nordeste se encontram em transferência de renda focalizadas do governo, situação de pobreza. reduzindo-se a desigualdade de renda. A faixa de renda domiciliar correspon- Nas regiões metropolitanas do Nordeste dente à extrema pobreza (inferior a um quar- é bastante elevada a proporção de domicílios to de SM – R$155,00 per capita) situava-se no pobres, e também há indicações de progressiva terceiro decil para as regiões metropolitanas do redução da proporção de domicílios nessa con- Nordeste, tanto em 2001 quanto em 2004. Já dição. Entre 2001 e 2004, os domicílios consi- os domicílios em extrema pobreza se situavam derados pobres (com rendimento de até meio no segundo decil e, em 2012, no primeiro decil salário mínimo) estão situados entre o quinto e (Gráfico 6). Essas informações apontam para a o sexto decis e abaixo destes, significando que redução dos níveis de pobreza, ainda que ela metade ou mais dos domicílios dessas regiões permaneça elevada. metropolitanas se encontravam em situação O Gráfico 6 apresenta o valor da renda de pobreza. Em 2009, o corte de rendimento domiciliar per capita do Nordeste Metropoli- correspondente à pobreza desloca-se para o tano distribuída por decis. Chama a atenção a quarto decil e, no ano de 2012, encontra-se no evolução do valor do corte dos três decis infe- terceiro decil, significando, neste último ano, riores, que apresentam uma elevação da renda que cerca de 30% dos domicílios das regiões superior a 100% entre 2001 e 2012. Gráfico 6 – Valor dos decis de rendimento domiciliar per capita (R$) regiões metropolitanas do Nordeste – 2001-2012 Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração: Nepp/Unicamp. Valores atualizados para 2012 (INPC). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 517 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa Entre os anos 2001 e 2004, a faixa de elevação na proporção dos inativos, ambos renda correspondente ao valor do salário mí- em 3 pontos percentuais. No ano de 2012, a nimo estava situada entre o sétimo e oitavo PIA do primeiro decil mantém perfil bastante decis; em 2009, esse valor se situava no sétimo específico, mas apresenta elevação da propor- decil e, em 2012, no sexto decil. Pode-se in- ção de ocupados não precários, não ultrapas- terpretar a elevação do rendimento per capita sando 5%, e redução gradual da proporção dos três decis inferiores de renda no período dos ocupados precários; observa-se, no en- de 2004 a 20012 como um dos efeitos das po- tanto, para o primeiro decil a redução no total líticas de transferência de renda, bem como de ocupados (Tabela 2). também da ampliação das oportunidades de A comparação dos decis inferiores de trabalho nos anos 2000. Além disso, a polí- renda com aqueles acima da mediana e o to- tica de valorização do salário mínimo permitiu tal da PIA das RM do Nordeste indicam, para que aqueles domicílios que tinham a renda per estes, maior proporção em desemprego e em capita média igual a um salário mínimo apresentassem mobilidade de renda e deixassem de se situar entre o sétimo e oitavo decis, do início da década, para se situarem no sexto decil no final do período analisado. A análise da distribuição do perfil da PIA do Nordeste Metropolitano reflete, em 2004, a crise do emprego do início da década, bem como do aumento do emprego precário, tendências apresentadas por todos os decis e para o total da PIA nesse ano. A partir desse ano e no decorrer da década, cresce a proporção de ocupados e de ocupados não precários e cai a proporção em desemprego. Nota-se, entretanto, a permanência de cerca de um quarto em ocupações precárias, e, entre 2004 e 2012, a taxa de inatividade cerca de 40%. Em 2004, a PIA do primeiro decil é composta de apenas 2,4% de ocupados não precários, 26% de ocupados precários e de 21% de desempregados, assim como também de uma proporção de inativos de 50%. Ainda que reflita a conjuntura de crise do emprego e o início da recuperação, esse quadro permanece semelhante para 2009, com pequena redução da proporção de desempregados e com inatividade e, também, menores proporções 518 de ocupados. Observa-se, entretanto, que não são muito distintas as proporções de ocupados precários, a partir do segundo decil em direção aos superiores, diminuindo no decorrer da década para todos os decis. Esses indicadores apontam para a permanência nos primeiros decis de pessoas com maiores dificuldades para a inserção no mercado de trabalho Considerando o total da PIA, no período entre 2004 e 2012, cresce a proporção de ocupados nas RM do Nordeste, com destaque para o aumento de ocupados não precários (6 p.p) e queda no número de desempregados (4 p.p). Ainda que as características da PIA tenham se alterado pouco no período, esses indicadores apontam para uma melhora na qualidade das ocupações. A análise da escolaridade do Nordeste Metropolitano (Tabela 3) evidencia, em relação ao primeiro decil, desigualdade bastante acentuada e permanente, no período de 2001 a 2012, e uma melhora bastante tímida quanto aos indicadores educacionais. No primeiro decil, cai em 4 p.p. a proporção de analfabetos, entre 2001 e 2004, e 4,5 p.p. entre 2004 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras Tabela 2 – Distribuição da PIA (pessoas 10 anos e mais) por situação ocupacional e condição na precariedade da ocupação segundo decis do rendimento domiciliar per capita. Regiões metropolitanas do Nordeste – 2001-2012 50% mais pobres 10% 20% 30% 40% 50% 50% acima da mediana Total 2001 2,9 9,0 11,3 15,7 19,0 29 19,2 Ocupado precário 19,3 23,3 27,6 27,4 29,1 24,7 25,0 Ocupado 22,2 32,3 38,9 43,1 48,2 54 44,2 Desempregado 15,3 9,3 8,5 7,5 7,4 4,4 7,3 Ocupado não precário 62,5 58,4 52,6 49,4 44,5 42 48,5 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100 100,0 2,4 10,8 13,9 17,0 22,4 33 22,0 Ocupado precário 25,7 27,1 29,9 29,0 30,7 25,9 27,3 Ocupado 28,1 37,9 43,9 46,0 53,1 58,7 49,4 Desempregado 21,5 14,8 12,0 11,0 8,9 6,2 10,3 Inativo 50,4 47,3 44,1 43,0 38,0 35,1 40,4 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100 100,0 Inativo Total 2004 Ocupado não precário Total 2009 2,7 13,2 16,8 22,0 27,4 38 26,1 Ocupado precário 24,7 25,7 31,5 28,0 30,2 25 26,5 Ocupado 27,3 38,9 48,3 50,0 57,6 62 52,5 Desempregado 19,5 12,1 10,8 9,6 7,4 4 8,4 Ocupado não precário Inativo 53,1 49,0 40,9 40,5 35,0 33 39,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100 100,0 5,4 15,3 19,0 25,0 30,9 39,4 28,2 Ocupado precário 18,9 24,2 24,1 26,7 27,7 24,2 24,3 Ocupado 24,3 39,5 43,2 51,8 58,6 63,7 52,5 Desempregado 16,6 10,1 8,7 7,1 5,2 3,0 6,6 Inativo 59,1 50,3 48,2 41,2 36,1 33,3 40,9 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Total 2012 Ocupado não precário Total Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração: Nepp/Unicamp. Excluídos da análise de domicílios: pensionistas, empregados domésticos residentes e parentes dos empregados domésticos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 519 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa Tabela 3 – Escolaridade da população de 10 anos e mais, segundo decis do rendimento domiciliar per capita. Regiões metropolitanas do Nordeste – 2001-2012 50% mais pobres 10% 20% 30% 40% 50% 50% acima da mediana Total 2001 Analfabeto 20,6 16,5 14,4 12,5 11,6 6,3 11,4 Ensino Fundamental Incompleto 67,5 269,1 66,2 63,3 58,2 40,5 54,6 Ensino Fundamental Completo 3,0 2,9 3,7 4,4 5,7 3,8 3,8 Ensino Médio 8,6 11,2 15,2 19,2 23,5 33,4 23,0 0,3 0,2 0,5 0,7 1,0 16,0 7,2 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Analfabeto 16,9 13,4 11,9 11,1 9,8 5,5 9,8 Ensino Fundamental Incompleto 68,1 66,4 63,1 58,0 52,1 34,7 50,6 Ensino Fundamental Completo 3,1 4,0 4,4 5,4 5,9 5,2 4,8 11,4 15,8 19,9 24,4 30,2 35,4 26,3 0,4 0,4 0,8 1,0 2,0 19,2 8,5 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Analfabeto 12,4 11,4 10,7 8,9 8,4 4,8 8,1 Ensino Fundamental Incompleto 57,9 53,9 50,6 46,2 42,2 27,8 41,0 Ensino Superior Total 2004 Ensino Médio Ensino Superior Total 2012 Ensino Fundamental Completo Ensino Médio Ensino Superior Total 5,5 6,3 5,6 6,1 6,1 5,6 5,8 22,3 27,1 30,9 35,4 37,5 37,0 33,1 2,0 1,4 2,2 3,4 5,8 24,8 12,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração: Nepp/Unicamp. Excluídos da análise de domicílios: pensionistas, empregados domésticos residentes e parentes dos empregados domésticos. e 2012, exibindo valores superiores a 10% nos decis inferiores, da ordem de mais de 50% das três primeiros decis, tanto em 2004 quanto em pessoas de 10 anos e mais, o que coincide com 2012. As alterações em relação aos perfis dos a PIA, indicando limitações para esse segmen- 50% mais pobres são bastante tímidas, no en- to nas possibilidades de inserção de qualidade tanto há um aumento na escolaridade para es- no mercado de trabalho e de elevação da ren- se grupo, com aumento do ensino fundamen- da domiciliar. tal completo e ensino médio. Entretanto, per- Em relação ao grupo com renda acima manece extremamente elevada a proporção da mediana, embora menores, são ainda ele- com ensino fundamental incompleto nos três vadas as proporções com ensino fundamental 520 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras incompleto, cerca de 28% em 2012. No perío- A análise da distribuição da renda domi- do, pode-se destacar, para estes, o aumento do ciliar per capita do Sul Metropolitano por de- ensino superior, que alcança 25% em 2012, em cis mostra no período, para os decis inferiores, contraste com cerca de 2% nos três primeiros elevação no valor de corte superior a 50%. O decis no mesmo ano, reiterando as desigualda- primeiro decil, correspondente aos 10% mais des educacionais no período. pobres, apresenta um ganho de renda de 65% no período, entre os anos de 2004 e 2012, e 75% considerando-se desde 2001. Essa ten- Sul Metropolitano dência de aumento cerca de 50% permanece até o quarto decil e diminui para pouco mais de Os valores dos cortes dos decis de renda domi- 40% no quinto decil (Gráfico 7). ciliar per capita do Sul Metropolitano indicam Entre 2001 e 2004, a faixa de renda cor- menor pobreza, se comparados ao Nordeste respondente ao valor do salário mínimo estava Metropolitano. Estudo aponta, para a região situada entre o quinte e sexto decis;, em 2009, Sul, as maiores quedas na proporção de pobres esse valor se situava entre o quarto e quinto entre 1995 e 2008 (Ipea, 2010), da ordem de decis e, em 2012, entre os 3º e 4º decis. A po- 47% em relação à taxa de pobreza absoluta lítica de valorização do salário mínimo permi- (rendimento domiciliar per capita de até meio tiu que aqueles domicílios que tinham a renda SM) e 59,6% em relação à taxa de pobreza ex- per capita média igual a um salário mínimo trema (rendimento domiciliar per capita de até apresentassem mobilidade de renda e também um quarto de SM). Segundo projeções desse orientou a renda dos decis inferiores para cima estudo, em 2016, a região Sul poderá ser a pri- (“efeito farol”). meira localidade do País a superar a condição A análise da distribuição do perfil da de pobreza absoluta. No mesmo período, a re- PIA do Sul Metropolitano não apresenta mu- gião Nordeste poderá apresentar creca de 28% danças acentuadas, ainda que reflita as ten- de sua população em pobreza absoluta. dências, a partir de 2004, do crescimento da Nas regiões metropolitanas do Sul, há in- proporção de ocupados e de ocupados não dicações de progressiva redução da proporção precários, assim como também de redução de domicílios pobres, pois eles estão cada vez da proporção em desemprego observados no mais limitados aos primeiros decis da distribui- País. A taxa de inatividade também cai, entre ção de renda domiciliar per capita (Gráfico 7). 2001 e 2004, com tendência de elevação no Ou seja, entre 2001 e 2004, os domicílios con- final do período. siderados pobres (com rendimento de até meio A análise da evolução da PIA entre 2001 salário mínimo) estão situados no terceiro decil e 2012 evidencia, principalmente para os pri- e abaixo deste. Já, em 2009, o corte de rendi- meiros decis da distribuição da renda domici- mento correspondente à pobreza encontra-se liar per capita, comparando os anos entre 2004 no segundo decil e, no ano de 2012, no primei- e 2009 (Tabela 4), uma queda expressiva de ro decil, caminhando no mesmo sentido das ocupados precários, o que mantém, em todos projeções feitas por Ipea (2010). os decis de 2009, uma distribuição próxima à Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 521 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa Gráfico 7 – Valor dos decis de rendimento domiciliar per capita. Regiões metropolitanas do Sul – 2001-2012 Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração: Nepp/Unicamp. Valores atualizados para 2012 (INPC). proporção total (24,3%), apresentando queda precários, entre 2004 e 2009, e de 7 p.p. entre mais acentuada, em 2012, e proporções pró- esse ano e 2012; no período de 2004 a 2012, ximas de 20%. Observa-se, ainda entre estes, apresenta ainda as tendências de redução do elevação das proporções de ocupados com vin- total de ocupados e de elevação da proporção culações contratuais não precárias até 2012. em inatividade. Esses dados sugerem que, no Considerando-se o total da PIA, bem como os período entre 2004 e 2012, em consequência 50% acima da mediana, essas mudanças não da mobilidade de renda em direção aos decis são acentuadas. superiores, permanecem nos decis inferiores as Entretanto a PIA do primeiro decil registra uma queda de 6 p.p. entre os ocupados 522 pessoas com maiores restrições para se inserirem no mercado de trabalho. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras Tabela 4 – Distribuição da PIA (pessoas 10 anos e mais) por situação ocupacional e condição na precariedade da ocupação segundo decis do rendimento domiciliar per capita. Regiões metropolitanas do Sul – 2001-2012 50% mais pobres 10% 20% 30% 40% 50% 50% acima da mediana Total 2001 7,0 14,8 21,1 26,1 30,4 35,7 26,9 Ocupado precário 23,6 26,1 24,3 27,5 27,2 24,7 25,1 Ocupado 30,6 40,9 45,4 53,6 57,6 60,5 52,1 Desempregado 11,7 7,3 6,5 5,7 4,4 5,7 5,2 Ocupado não precário Inativo 57,7 51,8 48,1 40,7 38,0 33,8 42,7 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100 100,0 9,2 19,1 26,3 31,4 36,0 42 32,4 Ocupado precário 29,9 30,1 28,2 27,2 27,6 23,6 26,4 Ocupado 39,1 49,2 54,6 58,6 63,7 65,7 58,7 Desempregado 13,2 8,0 6,7 6,9 4,4 2,7 5,5 Inativo 47,7 42,8 38,7 34,5 31,9 31,5 35,7 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100 100,0 Ocupado não precário 12,1 21,5 31,1 30,7 38,8 43 34,1 Ocupado precário 23,6 23,9 25,7 23,1 26,5 24 24,3 Ocupado 35,7 45,4 56,8 53,8 65,3 67 58,3 Desempregado 14,1 8,0 5,5 4,8 3,6 2 4,9 Total 2004 Ocupado não precário Total 2009 50,3 46,6 37,8 41,5 31,0 31 36,7 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100 100,0 Ocupado não precário 14,3 28,8 36,7 32,1 45,1 38,2 38,2 Ocupado precário 16,7 20,7 22,4 19,9 22,0 21,0 21,0 Ocupado 31,0 49,5 59,1 52,0 67,1 59,1 59,1 Inativo Total 2012 Desempregado Inativo Total 8,7 4,4 5,0 2,5 2,2 3,2 3,2 60,3 46,2 35,9 45,5 30,8 37,6 37,6 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração: Nepp/Unicamp. Excluídos da análise de domicílios: pensionistas, empregados domésticos residentes e parentes dos empregados domésticos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 523 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa A Tabela 5 mostra lenta mudança no per- incompleto – cerca de 27% em 2012. No pe- fil da escolaridade das pessoas no Sul Metropo- ríodo, pode-se destacar para esse grupo, o litano. A queda na proporção de analfabetismo aumento do ensino superior, que alcança 33% no período entre 2001 a 2012 pode ser consi- em 2012, em contraste com cerca de 3% nos derada o elemento de melhora de maior signi- dois primeiros decis no mesmo ano, reiterando ficância (pouco menos que 5 p.p.), no entanto, as desigualdades educacionais nas regiões me- ainda é elevada a proporção de analfabetos tropolitanas do Sul. entre o primeiro e o terceiro decis. A compara- Para finalizar, é possível observar que ção entre o primeiro decil e o total da PIA das o acesso aos serviços públicos urbanos apre- regiões metropolitanas do Sul revela que a pro- senta progresso entre 2001 e 2012, porém porção de analfabetos no primeiro decil é mais permanece marcante a pior condição de aces- que o dobro maior que a média metropolitana, so nos quatro decis inferiores de rendimento evidenciando a desigualdade social nesses es- domiciliar per capita em ambos os conjuntos paços e contribuindo para explicar as restrições de regiões metropolitanas analisados (Tabelas para a inserção no mercado da PIA do primeiro 6 e 7). decil de renda. Também em ambos os casos e, especial- As alterações em relação aos perfis mente, para os 4 decis inferiores de renda é dos 50% mais pobres são bastante tímidas, pior o acesso aos serviços de coleta de lixo e no entanto observa-se um aumento na esco- à rede coletora de esgoto, especialmente nas laridade para esse grupo, com aumento do regiões metropolitanas do Nordeste, marcan- ensino fundamental completo e ensino médio. do negativamente as condições de vida des- Entretanto, permanece extremamente elevada ses domicílios. a proporção com ensino fundamental incom- Deve ser ressaltado, no entanto, que, no pleto nos 3 decis inferiores, da ordem de mais período analisado, tornou-se quase universal de 50% das pessoas de 10 anos e mais em o acesso à água canalizada, em ao menos um 2012. Esse fato somado ao elevado nível de cômodo do domicílio, e à energia elétrica, analfabetismo reforçam as dificuldades para embora com menor atendimento do acesso esses segmentos obterem inserção de quali- à água canalizada, indicando melhora subs- dade no mercado de trabalho e e elevação da tantiva nas condições de vida das populações renda domiciliar. metropolitanas e ampliaçãoda possibilidade Em relação ao grupo com renda acima de acesso a bens, como eletrodomésticos, que da mediana, embora menores, são ainda ele- permitem maximizar o uso do tempo e am- vadas as proporções com ensino fundamental pliar horizontes. 524 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras Tabela 5 – Escolaridade da população de 10 anos e mais, segundo decis do rendimento domiciliar per capita. Regiões metropolitanas do Sul – 2001-2012 50% mais pobres 10% 20% 30% 40% 50% 50% acima da mediana Total 2001 Analfabeto 24,6 18,5 14,9 10,7 11,3 4,6 11,4 Ensino Fundamental Incompleto 62,9 64,5 61,3 56,3 53,4 37,8 50,5 Ensino Fundamental Completo 4,7 5,7 6,6 8,5 7,5 5,3 5,9 Ensino Médio 7,0 10,4 15,6 22,8 24,7 29,4 21,4 Ensino Superior 0,8 0,8 1,5 1,7 3,2 23,0 10,8 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Analfabeto 21,3 14,3 10,9 9,1 6,9 3,4 9,0 Ensino Fundamental Incompleto 62,6 61,8 56,7 52,4 46,7 31,4 46,1 Total 2004 Ensino Fundamental Completo Ensino Médio 5,4 7,7 8,6 8,3 9,7 6,9 7,5 10,0 15,1 22,2 26,6 30,9 30,5 24,5 0,7 1,1 1,6 3,6 5,7 27,9 13,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100 100,0 Analfabeto 14,1 9,9 7,4 6,8 5,3 2,8 6,3 Ensino Fundamental Incompleto 59,3 53,9 47,5 52,3 42,3 27,2 41,0 Ensino Fundamental Completo 7,3 8,2 9,5 8,1 9,6 6,5 7,6 16,5 24,9 30,0 25,9 34,0 30,1 27,6 2,8 3,1 5,6 6,9 8,7 33,4 17,4 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Ensino Superior Total 2012 Ensino Médio Ensino Superior Total Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração: Nepp/Unicamp. Excluídos da análise de domicílios: pensionistas, empregados domésticos residentes e parentes dos empregados domésticos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 525 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa Tabela 6 – Proporção de domicílios com acesso a serviços urbanos, segundo decis de rendimento domiciliar per capita (%). Regiões metropolitanas do Nordeste – 2004-20012 Água canalizada Decil de renda 2001 2004 Rede elétrica 2012 2001 2004 Coleta de lixo 2012 2001 2004 Rede de esgoto 2012 2001 2004 2012 1º 74,3 80,3 92,2 98,4 99,1 99,5 84,6 88,5 94,1 35,5 42,5 59,0 2º 80,7 87,2 94,5 98,8 99,2 100,0 84,4 88,1 95,0 33,9 46,4 60,1 3º 85,6 87,8 96,1 99,1 99,8 99,8 87,5 93,0 95,7 38,0 46,3 62,4 4º 88,2 90,3 95,8 99,3 99,6 100,0 91,9 93,4 96,3 40,4 48,3 65,4 5º 91,4 93,2 96,4 99,5 99,8 100,0 92,6 94,7 96,1 46,9 50,6 63,4 6º 90,0 92,7 95,4 99,2 99,7 99,8 93,8 94,8 96,8 46,5 55,7 65,5 7º 94,2 95,9 97,1 99,8 99,9 100,0 95,4 96,9 98,0 51,4 62,8 71,6 8º 96,5 97,2 98,5 99,8 99,9 99,9 97,2 97,6 98,8 58,4 67,6 73,7 9º 98,9 98,6 98,9 100,0 99,8 100,0 98,9 98,7 99,6 70,0 73,8 81,3 10º 99,2 99,5 99,0 99,9 100,0 100,0 99,3 99,1 100,0 79,1 81,8 88,0 Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração: Nepp/Unicamp. Tabela 7 – Proporção de domicílios com acesso a serviços urbanos, segundo decis de rendimento domiciliar per capita (%). Regiões metropolitanas do Sul – 2004-2012 Água canalizada Decil de renda 2001 2004 Rede elétrica 2012 2001 2004 Coleta de lixo 2012 2001 2004 Rede de esgoto 2012 2001 2004 2012 1º 90,6 93,5 98,1 96,8 98,3 99,6 92,7 93,8 97,3 58,9 65,9 77,2 2º 96,0 97,7 98,5 99,7 99,7 100,0 96,1 96,3 98,4 68,6 69,6 81,8 3º 97,2 97,8 98,9 99,6 99,7 99,9 96,5 96,9 98,7 70,5 73,4 83,2 4º 97,2 98,6 99,1 99,2 100,0 99,8 95,3 98,3 98,5 72,6 81,2 81,3 5º 98,5 98,9 99,4 99,5 99,8 100,0 97,9 99,0 98,9 78,2 82,8 84,2 6º 97,8 99,8 99,3 99,7 99,9 100,0 97,2 98,9 99,5 79,7 82,7 87,2 7º 98,8 99,2 98,8 99,9 100,0 100,0 98,8 98,5 98,3 83,3 84,9 86,3 8º 99,7 99,7 99,5 99,8 100,0 100,0 99,4 98,9 99,7 89,8 88,9 89,4 9º 99,4 99,8 100,0 100,0 99,9 100,0 99,3 99,8 99,6 90,9 92,8 93,3 10º 99,7 99,8 99,9 99,8 100,0 100,0 99,9 99,9 99,9 95,0 94,7 96,5 Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração: Nepp/Unicamp. 526 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras Considerações finais mais confunde do que ajuda a distinguir o que de fato aconteceu no período de crescimento. No Brasil, de forma semelhante ao que acon- Para as análises deste projeto, foram es- tece em diversos países da América Latina e colhidos dois conjuntos de regiões metropoli- nos demais países emergentes, são analisados tanas com características contrastantes: as re- aspectos que indicam o crescimento da classe giões metropolitanas do Nordeste e as regiões média, ainda que com características distintas metropolitanas do Sul. O primeiro conjunto da classe média tradicional (Birdsall, 2013). concentra muito mais pobreza que o segundo, Atualmente, é assunto comentado na mídia no entanto, por serem regiões metropolitanas brasileira e também oficialmente reconhecida intensamente urbanizadas, apresentam ca- por parte de órgãos governamentais para a racterísticas, em comum, além da densidade definição de suas políticas públicas, a “nova populacional, a complexidade econômica (va- classe média” brasileira, que teria surgido no riedade de serviços e empregos) e os mesmos período recente de crescimento pelo qual atra- problemas de várias regiões metropolitanas: vessou o País, principalmente a partir de 2004. periferias com altas concentrações de pobreza Essa nova classe emergiu da pobreza e se inte- em contraste com bolsões de habitação de po- grou aos circuitos de consumo médio do País, pulação de rendimentos mais elevados. frequentando escolas particulares, shopping É inegável que, nesse período de cresci- centers, universidades e financiando a casa própria; trilhando, assim, o caminho da ascenção social, outrora possibilidade impensada para tal contigente de pessoas pauperizadas, cuja única preocupação se resumia à sobrevivência imediata. Dessa forma, convencionou-se, por parte da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), chamar de “nova classe média” todos aqueles que recebem uma renda mensal per capita entre R$291,00 e R$1.019,00, que é aproximadamente metade da População Economicamente Ativa (PEA) do País. Esse valor se situa entre 0,46 e 1,6 salários mínimos, considerando-se o SM vigente em 2012 (R$622,00), ou seja, abarca diversos perfis ocupacionais e situações sociais. Desconsiderando as implicações que esse termo trouxe para a compreensão (ou falta dela) da realidade econômica do País, é inegável que ele mento (2004-2012), houve aumento na renda Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 domiciliar per capita entre os grupos mais pobres da população, como ficou claro nas distribuições de renda por decis, mas não se pode afirmar que esses grupos possam fazer parte de uma suposta “nova classe média”. Embora as faixas de renda que correspondem a um valor igual ou pouco superior ao salário mínimo integrem os decis menos pobres da população, isto só reafirma a desigualdade social que continua a marcar o País como um dos mais desiguais do mundo, mesmo com a recente queda do Índice de Gini. O aumento do emprego entre as ocupações menos remuneradas foi um dos fatores de maior peso para o aumento de renda no período. No entanto, para os decis de renda mais baixos, há pouco a ser comemorado, uma vez que as taxas de desemprego e as ocupações precárias são altíssimas. Segundo Pochmann 527 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa (2012), em seu livro Nova classe média?, o terceirizados de empresas que cumprem diver- atual ciclo de crescimento econômico foi mar- sas tarefas em indústrias. Esse movimento que cado por três fatores principais: 1) crescimen- aumentou a proporção de ocupações não pre- to do trabalho assalariado formal e protegido cárias se deve à formalização das ocupações de por lei na base da pirâmide social brasileira; 2) baixa remuneração, pois, ainda que sejam mal criação de emprego em ocupações que pagam remuneradas, as mínimas garantias e direitos até 1,5 salário mínimo; e 3) deslocamento da oferecidos pelos empregos registrados em car- dinâmica da geração de postos de trabalho da teira são suficientes para garantir alguma me- indústria (décadas de 1970 e 1980) para o setor lhora na vida dos trabalhadores que ocupam de serviços (anos 1990 e 2000). Dessa forma, a base da pirâmide social (o direito ao auxílio com a valorização do salário mínimo e o au- desemprego é um deles, por exemplo). Dessa mento do emprego, permitiu-se a esse enorme forma, os empregos que exigem baixa qualifi- contingente de trabalhadores conquistar um cação foram os que mais influenciaram a mobi- padrão de consumo relativamente inédito na lidade de renda verificada no período. Assim se história nacional, o que possibilitou-lhes uma mantêm os “gargalos” que travam a ascenção percepção de futuro mais positiva do que antes. social, sendo um exemplo o não preenchimen- O crescimento do emprego (principal- to de vagas em empregos que oferecem melhor mente no setor de serviços) na base da pirâmi- remuneração e exigem qualificação mais alta de social brasileira no período de 2004 a 2009 que a média. tem a ver com um processo de desindustrializa- A pobreza é entendida, neste trabalho, ção intenso que atingiu o País principalmente como um fenômeno multidimensional, do qual a partir da década de 1990. Os setores indus- a falta ou ausência de renda é apenas um de triais ofereciam melhor remuneração, e muitos seus elementos. O aumento da renda regis- dos trabalhadores dessas indústrias faziam trado no período não foi acompanhado por parte da então tradicional “classe média” da melhorias substanciais em outros indicadores, população, tendo em vista que, para ocupar como a qualidade do emprego e da educação, tais empregos, era necessário determinado co- que são excelentes parâmetros de condição so- nhecimento técnico, o que, portanto, exigia for- cial. O progresso registrado no período de cres- mação educacional mais elevada. Atualmente, cimento pré-crise foi pontual, e há dificuldades esses setores médios se encontram principal- estruturais que dificultam o avanço dos indica- mente no setor público ou no setor de serviços dores educacionais, apesar das diversas políti- privado, em que se localizam os empregos de cas de inclusão. melhor remuneração, uma vez que houve que- As condições de vida urbana ainda evi- da nos empregos gerados pela indústria. As- denciam a permanência da desigualdade, em- sim, restou, aos estratos mais vulneráveis da bora haja a quase universalização do acesso à população, os empregos que oferecem menor energia elétrica e à agua. Permanece marcante remuneração e que exigem baixa ou nenhu- a pior condição de acesso aos serviços urbanos ma qualificação profissional, setores tais co- para os quatro decis inferiores de rendimento mo telemarketing, atendentes de comércio e domiciliar per capita em ambos os conjuntos 528 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras de regiões metropolitanas analisados, especial- isto é, na capacidade que a pobreza tem de se mente no acesso aos serviços que impactam reproduzir entre as gerações das famílias em nas condições de saúde: rede de esgoto e co- situação de vulnerabilidade. leta de lixo. No referido período de crescimento, re- As mudanças observadas na elevação da gistrou-se aumento na renda dos mais pobres, renda se relacionam principalmente ao cresci- mas a questão da desigualdade social perma- mento econômico combinado com as políticas nece. Assim, ainda que a elevação da renda de valorização do salário mínimo e de transfe- familiar tenha favorecido o acesso a bens e rência de renda. Espera-se, contudo, que essas serviços para segmentos mais amplos da popu- mudanças possam levar a uma alteração no ci- lação, permanecem os hiatos de acesso a em- clo intergeracional de transmissão da pobreza, prego, educação, moradia e saúde. Lilia Montali Universidade Estadual de Campinas, Núcleo de Estudos de Políticas Públicas. Campinas/SP, Brasil. [email protected] Luiz Henrique Lessa Universidade Estadual de Campinas, Núcleo de Estudos de Políticas Públicas. Campinas/SP, Brasil. [email protected] Notas (*) Trabalho apresentado no VI Congresso da Associação La no-americana de População, realizado em Lima, Peru, de 12 a 15 de agosto de 2014. Seção 5.3: “Pobreza e vulnerabilidade social: aproximações conceituais e medição na úl ma década na América La na”. (1) O Objetivo de Desenvolvimento do Milênio (ODM) era de reduzir pela metade a fome, e a meta estabelecida pela Cúpula Mundial de Alimentação era reduzir pela metade o número absoluto de subalimentados. O Brasil é um dos 29 países que conseguiram alcançar essas duas metas. O País reduziu em 82,1% o número de pessoas subalimentadas no período de 2002 a 2014. O documento aponta ainda que ele alcançou as metas estabelecidas pelas Nações Unidas em relação à fome nos Obje vos do Desenvolvimento do Milênio e nos Obje vos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de 2015. Esses dados estão disponíveis em h p://www.fao. org/hunger/es/ El estado de la inseguridad alimentaria en el mundo 2015 e foram divulgados em 27/5/2015. Também foram divulgados Via Portal Planalto, em 28/5/2015, h p://www2. planalto.gov.br/no cias/2015/05/fome-cai-82-em-12-anos-no-Brasil-afirma-onu. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 529 Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa (2) IBGE mostra um país cada vez menos desigual: pobreza extrema cai a 2,8% da população. Ministério do Desenvolvimento Social. Disponível em: h p://mds.gov.br/area-de-imprensa/ no cias/2015/novembro/um-pais-menos-desigual-pobreza-extrema-cai-a-2-8-da-populacao/ view. Acesso em: 13 nov 2015. (3) Cepal-ONU. Panorama Social da América La na 2015. Disponível em: h p://www.cepal.org/ptbr/node/36488. Acesso em: 25 mar 2016. (4) São analisadas informações rela vas ao conjunto de nove regiões metropolitanas brasileiras (RMs) contempladas pelo desenho amostral das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (Pnad), possibilitando a análise dos microdados (IBGE, 2009): Belém, Belo Horizonte, Curi ba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, ins tuídas nos anos 1970, e o Distrito Federal (DF), ainda que atualmente no Brasil existam 35 regiões metropolitanas oficialmente ins tuídas. (5) O Índice de Gini mede a desigualdade de renda, e seu valor quanto mais próximo de 1, indica maior desigualdade e quanto menor, indica menor desigualdade de renda. (6) A metodologia para medir a pobreza u lizada por Rocha constrói linhas de pobreza baseadas no custo de cesta de consumo diferenciada por áreas de residência e por região; pode ser encontrada em Rocha (2003). (7) Segundo Rocha (2010), a evolução da proporção de pobres entre 2004 e 2008 para a população brasileira é de 33,3% para 22,8%; para as áreas metropolitanas cai de 38,8% para 27,1%; para as urbanas: de 29,6% para 19,9%; para as rurais cai de 35,4% para 24,3%. (8) O valor do salário mínimo (SM) vigente em 2012 era de R$622,00. (9) Sistema zação do debate salário mínimo pode ser encontrada em Montali et al. (2012, capítulo 2). (10) h p://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.ac on?id=21191. Acesso: dez 2011. (11) O salário mínimo (SM) é definido como: “A contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo empregador a todo trabalhador, inclusive ao trabalhador rural, sem dis nção de sexo, por dia normal de serviço, e capaz de sa sfazer, em determinada época e região do País, as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte” (Brasil, Lei nº 5.452, 1º de maio de 1943). Entretanto, após a implementação, o salário mínimo atuou no sen do de fixar um custo mínimo para a reprodução da força de trabalho brasileira. (12) BPC é uma transferência monetária no valor de um salário mínimo nacional, des nado a idosos acima de 65 anos e a portadores de deficiência, em famílias com rendimento domiciliar per capita de até um quarto de salário mínimo. Trata-se de um direito constitucional. O Peti é uma transferência monetária direta às famílias com crianças em trabalho infan l, vinculada à par cipação em a vidades complementares à jornada escolar. (13) h p://www.brasilsemmiseria.gov.br/documentos/Car lha_20X20.pdf. Acesso em: ago 2012. (14) Uma primeira versão dessa análise, para o período entre 2004 e 2009, pode ser encontrada em Lessa (2012). (15) A inves gação se baseia nos microdados da série Pnad-IBGE (2001-2012). 530 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016 Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras (16) Para uma discussão mais aprofundada acerca do crescimento pró-pobre que teria ocorrido no período, ver artigo publicado pelo Centro de Políticas Sociais da FGV em parceria com a Interna onal Poverty Centre (órgão da ONU), que define como pró-pobre o crescimento que a nge proporcionalmente os mais pobres do que os não pobres. Assim, o crescimento própobre diminui a desigualdade, enquanto o an pobre a aumenta (Neri, 2006). (17) Consideram-se como“extremamente-pobres” os indivíduos em domicílios com renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo (R$155,50); como “pobres” aqueles com renda entre um quarto e meio salário mínimo (R$311,00) em valores deflacionados para 2012; salário mínimo: R$622,00. Referências BICHIR, R. M. (2010). O Bolsa-família na Berlinda? Os desafios atuais dos programas de transferência de renda. Novos Estudos Cebrap. São Paulo. BIRDSALL, N. (2013). The middle class in developing countries – Who they are and why ma er. Poverty in Focus, n. 26. Interna onal Policy Centre for Inclusive Growth. Disponível em: www.ipc-undp. org. Acesso em: mar 2014. DEDECCA, C. S. (2006). “A redução da desigualdade no Brasil: uma estratégia complexa”. In: BARROS, R. P.; FOGUEL, M. N. e ULYSSEA, G. (orgs.). Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília, Ipea. ______ (2007). “A redução da desigualdade no Brasil: uma estratégia complexa”. In: BARROS, R. P.; FOGUEL, M. 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Este artigo se propõe a refl etir sobre a experiência de grupos afetados por desastres e em processo de vulnerabilização social: a defesa da permanência no seu Lugar de viver e morar se contrapondo à ameaça de desterritorialização vivenciada. Trata-se da experiência de moradia a partir da evidenciação de sentidos que são atribuídos à casa e ao Lugar, apontando para outras dimensões relacionais com o espaço. O Lugar revela a adoção de formas de viver, morar e se relacionar com o ambiente nem sempre escolhidas ou revela escolhas que se dão a partir de reduzidas possibilidades, desenhando o desigual acesso a bens e serviços oferecidos pela cidade. Abstract Housing is a broad theme that may be viewed from different perspectives. This article aims at reflecting on the experience of groups affected by disasters and undergoing social vulnerability processes: they defend the right to remain in their own Place of living in opposition to the experienced threat of deterritorialization. This is about the living experience based on the revelation of meanings that are attributed to the house and to the Place, which point to other dimensions of relations to the space. The Place either reveals the adoption of ways of living and relating to the environment, which, sometimes, have not been chosen, or reveals choices based on reduced possibilities, designing an unequal access to the goods and services offered by the city. Palavras-chave: moradia; vulnerabilização social; desastre; desterritorialização; resistência no lugar. Keywords: housing; social vulnerability; disaster; deterritorialization; resistance in the place. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3611 Maria Auxiliadora Ramos Vargas Quando a seca chega e leva embora as águas do rio Uruguai, as pessoas de Pueblo Federación regressam à sua perdida querência. As águas, ao ir embora, deixam nua uma paisagem de lua; e as pessoas voltam. Elas vivem agora numa aldeia que também se chama Pueblo Federación, como se chamava a sua velha aldeia antes que a represa de Salto Grande a inundasse e a deixasse debaixo das águas. Da velha aldeia já não se vê nem mesmo a cruz no alto da torre da igreja; e a aldeia nova é muito mais cômoda e muito mais linda. Mas eles voltam à velha aldeia que a seca lhes devolve enquanto dura. Eles voltam e ocupam as casas que foram suas casas e que agora são ruínas de guerra. Ali, onde a avó morreu e onde aconteceram o primeiro gol e o primeiro beijo, eles fazem fogo para o chimarrão e para o churrasco, enquanto os cães cavam a terra em busca dos ossos que tinham escondido. Eduardo Galeano (2005) Desastre, vulnerabilização social, desterritorialização sobre como tais processos agregam, também, expressões de luta por permanência e defesa do seu território, ainda que sob contestação dos diagnósticos técnicos oficiais. Os cenários de desastres socioambientais têm, Reportando-nos às reflexões de Qua- como uma de suas principais e mais dramáticas rantelli (2005) e Valencio (2010), temos que expressões, o comprometimento da experiên- desastres, para a Sociologia, designam aconte- cia de moradia e de vinculação com o Lugar1 cimentos trágicos e podem ser descritos como de parcelas sociais significativas, sinalizando fenômenos adversos que geram processos de para a sua possível associação com proces- ruptura da rotina, de lugares, fazeres e práti- 2 sos de vulnerabilização social. Tal afirmativa cas, envolvendo uma configuração espaço- revela, já de início, uma adesão à abordagem -temporal e sócio-histórica para manifestar-se, sociológica acerca dos desastres, sendo essa levando-nos a perguntar “o quê?”, “onde?”, interpretação apenas uma das que, no debate “quando?” e “com quem?”, considerando a contemporâneo, integram a disputa pela clas- adoção dos conceitos de tempo e espaço so- sificação de tal fenômeno (Bourdieu, 2005). In- ciais – em detrimento dos de tempo e espaço trodutoriamente, objetiva-se esboçar o concei- geográficos –, assim como observando a rela- to de desastres para a Sociologia, o ambiente ção entre o referido fenômeno e os processos de disputa por sua classificação e, por fim, sua de desenvolvimento. relação com processos de vulnerabilização e de Apesar da não existência de consenso ruptura de rotinas, práticas e lugares, revelan- sobre o conceito, Quarantelli constatará a pre- do a realidade de desterritorialização experi- sença de um paradigma básico implícito na mentada pelos que são severamente afetados. área dos desastres, envolvendo uma série de Tal ensejo quer instigar, sobretudo, a reflexão noções inter-relacionadas, cujo destaque recai 536 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 Moradia e pertencimento sobre duas delas, a saber: 1) os desastres são e as perdas para processos sociais contínuos, fenômenos inerentemente sociais e 2) a origem pois, não havendo consequências sociais nega- dos desastres se encontra na estrutura social tivas, não há desastre. ou no sistema social. Para o autor, antes de Buscamos fazer a associação entre o serem “naturais”, os desastres são essencial- desastre e os processos experimentados por mente políticos, permitindo a problematização grupos sociais específicos, através das noções do subdesenvolvimento, da insustentabilidade de vulnerabilização, como processo, e vulnera- ambiental e da pobreza como suas principais e bilidade, como relação – conforme contribuição mais imediatas causas. oferecida por Acselrad (2006). Nessa formula- As afirmativas até aqui expostas se reve- ção, o foco é retirado do indivíduo e deslocado lam como um contraponto à construção hege- para a desigual proteção ou para os mecanis- monicamente feita sobre esse conceito quando mos que tornam os sujeitos vulneráveis. Desta- originado de outras clivagens e racionalidades. ca-se o que lhes é devido em termos de prote- Porém, as chamadas “ciências da natureza” ção social e de direitos, revelando, pois, como não respondem à totalidade das formas cien- tais elementos integram o desastre.3 tíficas de argumentação a respeito do fenôme- Não só no âmbito de sua definição, mas no desastre. Há uma diversidade de agentes também das práticas daí decorrentes, explici- que configuram a luta pela sua classificação. tam-se conflitos, confrontos, tensões que ten- Cabe-nos indagar: “quem são e de que lugar dem a impor o discurso oficial do risco sobre esses agentes anunciam suas verdades?”. Há territórios específicos e, por consequência, so- também uma diversidade de compromissos de bre seus agentes, aqueles que neles vivem e atuação e de fazeres que não se dão da mes- moram, determinando sua desterritorialização. ma forma. Associada a tais agentes e posicio- Há, tendencialmente, um esforço de desquali- namentos, está a luta social situada entre dois ficação do território e de seus moradores. Tal domínios distintos: do espaço social propria- prática tende a “coisificá-lo”, destituindo-o da mente dito e da esfera simbólica, no sentido do diversidade da experiência social que o consti- confronto de discursos e projetos que disputam tui. O “território condenado” resume-se, pois, legitimidade e reconhecimento, em processos às suas benfeitorias, edificações e equipamen- intimamente conectados. tos de infraestrutura coletiva, passíveis de cál- Ao admitir e trabalhar sob essa perspec- culos de indenização, em grande parte, referen- tiva, a pesquisa sociológica apresenta mudan- ciados em baixos valores, porque se associam ças e ampliações importantes, permitindo a à indenização de “áreas pobres” e, até então, constatação de que os desastres se originam desvalorizadas no que se refere às disputas do da própria natureza dos sistemas sociais, sen- mercado imobiliário. Pelo lado da significação do, pois, manifestações ostensivas de latentes identitária que os territórios adquirem, tais vulnerabilidades da sociedade, das deficiências indenizações, somadas à forma de se traduzir nas estruturas ou em sistemas sociais. Por isso, esses Lugares, são incompatíveis com o sentido não devem ser vistos como resultantes de uma de pertencimento que enraíza seus moradores forma externa. Deslocam-se o foco das vítimas a partir de uma trajetória de vida e vinculações. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 537 Maria Auxiliadora Ramos Vargas Sendo assim, é necessário permitir que destruição física e também simbólica registra- os sentidos do Lugar e de pertencimento pos- do. O território periférico deteriorado e impac- sam ser também revelados a partir das narra- tado pelo desastre não é revisto por aqueles tivas dos afetados em desastres, resgatando que o têm como referência de moradia e de as estratégias que contribuirão para o escla- cotidiano, no sentido de sua desqualificação, recimento de uma das perspectivas que essa o que se confronta com a categoria “área de disputa assume. Nesse contexto, o Lugar como risco” cunhada para esses mesmos locais pela espaço do pertencimento se apresenta, ora co- versão perita. mo estratégia, ora como tática resistente à im- Em analogia à perspectiva trabalhada posição do ordenamento exógeno proposto ao por Zhouri e Klemens (2010),4 identificamos território. Tendo, pois, como eixo central o âm- a existência de estratégias argumentativas bito socioespacial, a concepção de Lugar pode de aniquilação do Lugar (predominantemente ser utilizada como relação entre sujeito afeta- via discurso oficial) versus a estratégia argu- do e o espaço onde vive, como expressão de mentativa de reafirmação do Lugar (via re- práticas cotidianas na relação com esse espaço sistência dos moradores locais). Enquanto os (Certeau, 2009) e da luta pelo direito de acesso afetados buscam situar o ocorrido dentro de à cidade (Lefebvre, 1991). O Lugar ganha não certa generalização dos fatores de ameaça e só significação, como se revela resultante de da afetação – não particularizando o proble- uma absoluta determinação, ou seja, da neces- ma no seu espaço e com a expectativa de sua sidade da adoção de formas de viver, de morar recuperação e permanência nele –, a análise e se de relacionar com o ambiente, nem sempre técnica incluirá, no rol de sua cartografização escolhido, ou de escolhas que se dão a partir de e de diagnósticos, essas novas áreas, até então, uma gama reduzida de possibilidades. Trata-se “livres” dessa forma específica de controle.5 de um conjunto de determinações que desenha a desigualdade para além da possibilidade de escolha consciente desses sujeitos. Assim, é facilitado o entendimento da construção que os agentes fazem do desastre. Então, a categoria Lugar deve ser explorada e Morar: a perspectiva de reafirmação do Lugar – densidade e ambivalência perpassada para clarear as vinculações estabelecidas entre agente e território, agentes entre O contexto dos desastres – nominado comu- si e entre interpretação do desastre e o sofri- mente “tragédia” na retórica dos afetados –, mento social por ele aguçado. permite a evidenciação de sentidos que são Nesse debate, é importante que o Lugar atribuídos ao Lugar por aqueles que nele vivem, possa ser pensado como forma de enraizamen- apontando para outras dimensões relacionais to que precede o “trágico” e o desastre como com o espaço. Inicialmente, é possível mencio- a ameaça de dissolução desse Lugar e, ainda, nar elementos, quase não explorados na litera- a existência de uma luta pela manutenção de tura recorrente acerca do tema, constituintes da seus sentidos, independentemente do grau da perspectiva traçada pelos moradores vinculados 538 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 Moradia e pertencimento a essas áreas – as denominadas “áreas de ris- Colabora com essa reflexão a categoria co” –, uma vez que são contrapontos à versão “tática”, em Certeau (2009), ou a ação calcula- perita para tais territórios: o desvelamento de da que é determinada pela ausência de um uma esfera coletiva das representações do ter- próprio, ou seja, do lugar do poder ou do que- ritório como passível de produção de um Lugar; rer próprios, como supomos se constituir predo- a revelação de um mundo significativo na roti- minantemente o universo dos grupos afetados na da periferia que é também “seguro” e “ri- severamente pelos desastres no caso brasileiro. co” – dentro da precariedade socioambiental O autor tratará das formas utilizadas pelo “ho- das áreas sujeitas a deslizamentos, enchentes mem ordinário” para escapar à conformação e afins – ou processos de disrupção do cotidia- esboçada pela razão técnica que acredita orga- no – aspectos que apontam para a existência nizar da melhor maneira coisas e pessoas. Esse de um imaginário social capaz de construir en- escape silencioso se traduz na reinvenção do dogenamente sentidos para um Lugar fora do cotidiano graças a táticas de resistências que escopo da deterioração. permitem a reapropriação do espaço e do uso a [...] Eu sinto falta da roça, eu me sinto presa agora [morando em apartamento de aluguel] . Tô num lugar que não tem espaço, meus netos não têm espaço. Eu me sinto muito presa, sempre gostei de ter as minhas coisas, graças a Deus. O Senhor me deu! Ganhei muita coisa depois da tragédia. Mas tá faltando sair pra um cantinho que tenha mais espaço que a gente possa se alegrar mais. Eu gosto da roça, dos bichos, de cuidar da terra com foice, facão, tudo na mão. (Entrevistado 13 – Bairro Caleme)6 A insistência na permanência ou no retorno ao local de moradia e na reconstrução em territórios tecnicamente condenados aponta para a importância de “um Lugar seu”, evidenciando a luta por pertencimento e vinculação, diante da despossessão vivenciada – inclusive a espacial. Estamos tratando de cenas urbanas e rurais que trazem a dimensão tanto da dominação quanto da desigualdade para o primeiro plano. Esses locais se configuram em Lugar na medida em que é necessário tornar o mundo plausível, vivenciável: uma escolha dentro de uma gama reduzida de possibilidades. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 seu jeito. Certeau afirmará: Nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é um movimento “dentro do campo de visão do inimigo” [...] e no espaço por ele controlado. Ela não tem, portanto, a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. Esse não lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no voo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém 539 Maria Auxiliadora Ramos Vargas espera. É astúcia. Em suma, a tática é a arte do fraco. (Ibid., p. 95) Há, pois, um conjunto de determinações que desenha a desigualdade para além da possibilidade de escolha consciente desses sujeitos. Retomaremos o recurso sociológico de associação do desastre ao paradigma da vulnerabilidade social. Quando Acselrad (2006) anuncia que a vulnerabilidade é uma relação e não uma “carência”, objetiva, acima de tudo, reafirmar que não poderá ser atacada através da oferta compulsória de bens, mas que deverá considerar as relações e os contextos, as diferentes situações e condições que se articulam nos distintos momentos e localizações (p. 5). Decorre daí que o consentimento para com os riscos e danos impostos será tanto maior quanto maior for a destituição (ibid., p. 3). Entram, no âmbito dessa análise, as possibilidades concretas que estão colocadas para certos segmentos populacionais que vivem frequentemente nos limites das condições físicas de reprodução, ou seja, como resultado de uma situação sócio-histórica marcada pela ausência absoluta de opções e de moradia inclusive. Este é um fator que evidentemente impulsiona e cria o pano de fundo da dinâmica de ocupações tidas como “ilegais” e/ou “predatórias” e tão fortemente condenadas pelos discursos técnicos e oficiais, principalmente quando da ocorrência dos desastres. As consequências colocam-se no restrito quadro de oportunidades de localização para os mais pobres, fruto de padrões de produção do ambiente construído e de formas de produção e distribuição desigual da riqueza. que, nele, uns apresentam maior capacidade para se proteger enquanto outros, nem tanto. No primeiro caso, essa proteção é possível pela mobilidade ou pela influência que certos grupos têm no controle do mercado das localizações. No segundo caso, tal proteção se afugenta para aqueles que não a possuem ou que a possuem em baixa ou descendente escala numa dada condição de existência. Segundo Haesbaert (2004), a natureza dessa mobilidade se faz representar pelas possibilidades relacionais estabelecidas no território. Alguns são protegidos pela experiência da “multiterritorialização”; outros sofrem os limites impostos pela lógica capitalista hegemônica que os atrela ao “território unifuncional”. Para o autor, Desde a origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra- territorium quanto de terreo-territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do terror, do medo – especialmente para aqueles que, com essa dominação, ficam alijados da terra, ou no territorium são impedidos de entrar. Ao mesmo tempo, por extensão, podemos dizer que, para aqueles que têm o privilégio de usufrui-lo, o território inspira a identificação (positiva) e a efetiva “apropriação”. Território, assim, em qualquer acepção, tem a ver com poder, mas não apenas ao tradicional “poder político”. Ele diz respeito tanto ao poder no sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no sentido mais simbólico, de apropriação. (p. 1) Lefebvre (2000) destaca o sentido sim- Situando a proteção social no âmbito bólico das “marcas do vivido” que o território mais objetivo desse processo, pode-se afirmar assume e que nos permite falar de apropriação 540 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 Moradia e pertencimento em contraposição à dominação: no sentido de apropriação, estariam embutidos o valor de uso e, como tal, a multiplicidade, diversidade e complexidade que o território assume; na segunda, qual seja, na dominação, estaria embutida a sua funcionalidade ou o seu valor de troca. Para Lefebvre, a acumulação capitalista sufoca as possibilidades de “reapropriação” dos espaços que são transformados em mercadoria, impedindo a prevalência da apropriação sobre a dominação. Essas considerações, ainda que preliminares, mostram-se fundamentais no entendimento do que aqui chamamos de Lugar – e dos saberes nessas condições gerados –, no reconhecimento de práticas cotidianas na sua dimensão espacial; tudo isso atrelado à experiência de enfrentamento do desastre que traz em seu bojo a constante ameaça de desterritorialização. No âmbito dos fatores subjetivos, podemos considerar as diferentes construções socialmente feitas acerca do que é “tolerável” ou “intolerável”, do que é “arriscado” ou “seguro”, ante condições determinadas de existência. Registra-se certa convivência com eventos pretéritos tidos como ameaçadores que geram sua relativização. As narrativas mostram-se esclarecedoras, evidenciando certa recorrência de fenômenos que marcam a experiência no sentido de sua apreensão e de seu enfrentamento pela necessidade da permanência no Lugar: [...] a gente pensava que era o rio que estava subindo, que era só água! É onde que, pra baixo, todo mundo morreu, por causa disso. Caso entrasse água, ia acabar com os móveis, mas no outro dia estava tudo bem! Mas aí, não foi só isso. Foi as pedras que veio matando todo mundo! É onde que acabou tudo!! [...] A gente Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 pensava que era enchente, só enchente! (Entrevistado 28 – Campo Grande) [...] meu pai sempre fala com a gente: “choveu, de vez em quando, dá uma olhada no rio, apesar dele tá longe”, porque isso aqui é um valão, é morro de um lado e de outro e aqui é uma descida, e aqui é um bairro que tem muita água. Se você andar por essas trilhas, eu te levo em lugares que tem muita água, tem cachoeira. Então, quer dizer, eu não sei na cabeça dos outros, mas meu pai sempre foi uma pessoa assim, apesar que a gente sempre morou perto de rio, ele sempre falou: “se ver que a chuva não tá normal, sempre dar uma olhadinha, sempre ter uma atenção!” (Entrevistado 21– Bairro Campo Grande) Conviver com tais fatores de ameaça faria parte daquilo que Vargas (2006) menciona como sendo lidar apenas com mais um elemento componente do cenário de privações e demandas que está no plano mais imediato – ameaças, pois, que se tornariam contornáveis e passíveis de convivência. Então, não se trata da negação desses fatores, como se pode num primeiro momento inferir, mas de sua secundarização.7 A leitura dos “sinais da natureza” e a apreensão de elementos que caracterizam a paisagem, sua constituição biofísica, na tentativa de seu “controle”, mostram-se como um misto entre convivência e observação do Lugar e noções apreendidas, ainda que, parcialmente, do próprio discurso perito (geológico, meteorológico, originadas da geotécnica, entre outros). Nas narrativas seguintes, moradores e um técnico interpretam os territórios e suas características geológicas revelando uma convergência para a leitura produzida pela geologia: 541 Maria Auxiliadora Ramos Vargas Teresópolis é um lugar que está sobre a pedra. É uma cidade alta. Essas pedras já estão aqui há milhões de anos [...] durante esse tempo foram sendo depositadas sobre essa laje de pedra materiais... essa área todinha tem pedra embaixo. Mas você vê vegetação em cima da pedra, vê que tá na terra acumulada sobre a pedra ao longo dos anos. É pedra com camada de terra e vegetação. Se chove muito, ela vai lavar isso. Olha aquela montanha: pedra pura! Essa outra aqui do lado, também... Essa base nossa aqui é de pedra e é continuação daquela montanha, etc. O que está aqui foi depósito feito ao longo dos anos: depósito de poeira que veio ao longo dos anos, a gente não sabe quantos e que se acumulou. (Entrevistado 6 – Bairro Caleme) técnicas, ainda que isso não seja claro para os [...] e as pessoas se perguntam: “de onde veio tanta pedra?” Foi por isso que até se fez pesquisas com os geólogos e tudo, pra mostrar qual era o tipo de relevo mesmo de Teresópolis. E aí, se descobriu que Teresópolis é uma grande pedra. Debaixo de toda a cidade você tem uma camada de terra relativamente pequena. Aí, os engenheiros, arquitetos é que devem explicar. Parece que realmente não é nada muito profundo e você tem muita pedra indo diretamente a essa camada, então, qualquer chuva, qualquer coisa maior faz com que aquela terra que é muito pequena, desça e apareçam as pedras. (Entrevistado 16 – Secretaria de Desenvolvimento Social/PMT) convergência para o conteúdo das referências Mas olha, a pesquisa tá tão evoluída. Um exemplo: a sombra da minha mão é o Caleme e aqui tem uma nuvem. Eles sabem qual é o tamanho e a grossura dessa nuvem. Sabem a distância entre a nuvem e o chão se é de 12 km, 15 km. Eles sabem onde ela tá estacionada e ela estava da Várzea [bairro central] pra cá... Sabe por que eles sabem? Nós estamos aqui conversando. Eu te garanto que eles nos lugares de pesquisa mais evoluídos sabem que eu tô sentado aqui e ele está em pé. Eles dizem até o que você está comendo. É satélite! Então, o cara não sabe que vai chover? Diz pra ele, quantos minutos o satélite leva pra dar uma volta na terra? Se você reparar no jornal quando eles mostram aquela foto de satélite, ele dá a cada 11 minutos uma volta na terra, ele anda na mesma velocidade de uma espaçonave quando está em órbita e leva 11 minutos pra dar a volta ao redor da terra. Já pensou? Em cada 11 minuto você está aqui de novo. Então, a cada 11 minutos o cara tem a previsão daquela área onde passou. Ele passa investigando a área 542 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 Os elementos mencionados até aqui compõem a noção de Lugar pelos agentes, e a retórica perita/técnica envolverá, direta ou indiretamente, tais construções. Qual seja, tratamos de perspectivas que, num dado momento das narrativas, fazem certo movimento de agentes e que essa forma específica de entendimento não use dos jargões da ciência, necessariamente. Haveria, pois, uma apropriação do ambiente influenciada pelas estratégias discursivas oficiais, fortemente divulgadas, principalmente por ocasião da deflagração do desastre. A força que a gestão e a tecnociência (Valencio, 2012) ganham contribui para a projeção de ideias, noções, ferramentas específicas que impregnam o imaginário social e interferem na forma de os agentes mais diretamente afetados pelo processo o traduzirem, ainda que sua ótica e experiências não sejam consideradas diante das decisões que afetam o seu cotidiano e o da comunidade à qual pertencem. Moradia e pertencimento todinha, então, como a altura dele é muita, ele vê onde tá acontecendo. (Entrevistado 6 – Bairro Caleme) Nessa reflexão, as narrativas contam aos poucos a história de vinculação com o Lugar, de apropriação do território que está diretamente associada aos processos de desenvolvimento e ao ordenamento territorial mais geral. Os dois territórios urbanos envolvidos na pesquisa – Caleme e Campo Grande – situam-se em finais de vales que foram ocupados há aproximadamente 50, 60 anos e forma adensados nos últimos 30 anos, conforme relato de seus moradores mais antigos. Originada de um integrante da gestão municipal, a narrativa seguinte facilita o entendimento acerca das características que marcam o adensamento que a cidade como um todo viveu nas últimas décadas: Eu vim do Rio de Janeiro por conta de violência! Tudo bem que 20 anos atrás nem era esse tanto de violência que é hoje, mas a gente já veio com essa visão de sair do Rio por conta da violência. E hoje em dia é muito maior a proximidade de Teresópolis com Rio de Janeiro. A gente leva uma hora e meia, duas horas de ônibus: é o tempo que você leva da Barra da Tijuca até o centro da cidade morando dentro do Rio. Então, você tem uma qualidade de vida melhor em Teresópolis por causa do clima, um ambiente mais seguro para os filhos adolescentes, ainda se pode andar de noite na rua. Você não tem arma na cabeça quando para no trânsito, não tem caixa eletrônico explodindo, enfim, você tem uma certa segurança aqui ainda. Existem aqui os traficantes, enfim, mas é em menor escala e, aí, você faz com que Teresópolis lote de gente. Qual é o grande problema de Teresópolis? As pessoas procuram os centros urbanos que é onde tá centralizada ali toda parte de comércio, Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 banco, as unidades, órgãos públicos.Teresópolis tem uma área rural muito boa, muito grande, até eu tinha uma grande vontade de morar pra Vargem Grande. Depois do negócio que aconteceu em janeiro, eu mudei de ideia, mas você não tem essa área rural muito habitada. Tem uns condomínios maiores de uns 5 anos pra cá. Você tem uma leva de condomínios de classe média, classe alta pra esses locais. Se você andar aqui, você vai ver bastante de Albuquerque pra lá em direção a Friburgo bastante condomínio de casas grandes, você vê que já é gente que tá morando mesmo, nem usa só pra veraneio, não! Gente que mora e desce pro Rio, vem pro centro e tal! Mas assim, é isso! Eu acho que Teresópolis tem uma população pobre muito grande por conta: primeiro pela topografia da cidade, não tem jeito, você vai morar naquilo mesmo e até gente aqui que mora na Várzea que é a parte baixa do centro da cidade, que é o reto, você vê que não é tão reto assim. Aqui, por exemplo, na nossa Secretaria tem uns morrinhos aqui do lado e nós estamos, teoricamente, na parte baixa, né? Há pouco tempo, por conta da tragédia, eu até fui em algumas reuniões do Ministério Público e tal, e ela tava mostrando uns mapas, mostrando como que é o terreno de Teresópolis: a camada de terra que tem aqui é muito pequena em profundidade. Em Teresópolis, como é região serrana, parece que é a característica dos três municípios: Teresópolis, Petrópolis e Friburgo. (Entrevistado 16 – Secretaria de Desenvolvimento Social/PMT) No entanto, quando nos atentamos às narrativas dos moradores, encontramos certa disposição em interpretar “seus Lugares” não a partir da ênfase em possíveis carências ou irregularidades existentes – ainda que possam ser objetivadas e componham seu quadro de 543 Maria Auxiliadora Ramos Vargas vulnerabilização –, mas sim das vinculações materiais e também de natureza simbólica já criadas. Ao contarem as histórias de ocupação/formação dos seus bairros, realçam, antes de tudo, a perspectiva relacional, cotidiana, as conquistas (pessoais e coletivas) e mesmo o sentido de “oportunidade” (Vargas, 2006) que tal inserção simbolizou na sua trajetória de vida – e que se mantém na luta travada pela permanência no Lugar. Tem de 32 a 33 anos que eu moro aqui. Quando eu vim pra cá não tinha muitas casas, a rua não era calçada, não tinha ônibus até aqui. Eu só saio daqui direto pro lugar pra onde nós vamos todo mundo [...]. Foi meu pai que me deu essa terra aqui. Ele morreu aqui e minha mãe também, aqui é de família, entendeu? E tenho meus amigos, a molecada toda gosta de mim. É só você perguntar: “onde mora o velho” que todo mundo me conhece. Aqui eu crio minhas galinhas e outros bichos e tenho meus pés de fruta. (Entrevistado 2 – Bairro Caleme) O bairro cresceu tem uma faixa de uns 50 anos, né? Tô aqui há uns 50 e poucos anos [...]. Quando eu vim pra cá pro Caleme eles estavam ainda querendo construir a barragem. Então, que cresceu mesmo esse bairro aqui tem uns 30 anos que começou a evoluir. Aqui era quase só parente antes. Depois começou a evoluir, o tio dela arrumou um carrinho, o primo lá embaixo comprou um carrinho. Já tinha um carrinho pra sair aí pra fora, viajar. Eu acho que cresceu devido ao fato do lugar ser muito tranquilo. Muita gente veio, começaram a vender os terrenos. Esse terreno aqui, a gente não tinha escritura de nada. Alguém aí tem um papel e diz que tem escritura do terreno, mas não tem nada! Era de uma Cia que tinha aqui em Teresópolis. Depois, a casa da Cia pegou 544 fogo e os documentos sumiram tudo. Então, ficou esse lugar aqui assim. O pessoal começou a tomar conta do pedaço. Meu sogro mesmo, pegou daquela ponte que tem abaixo da padaria até lá em cima. Isso aqui era dele, ninguém mexia. Cada um pegava um pedaço, cercava e dizia: “é meu!” E foram fazendo casa e começaram a vender. Meu sogro mesmo vendeu isso tudo aqui, ali pra baixo. Trocava por qualquer coisa. Trocou por material que nem tinha valor nenhum. (Entrevistado 17 – Bairro Caleme) Moro aqui há 44 anos. Vim do Rio pra cá com 1 ano de idade. Aqui, eu já morei no haras que tem perto do campo, lá em cima. Daí, me casei e fui morar lá embaixo em Santa Rita e depois vim pra cá [Fazenda Alpina]. Nessa casa tem 4 anos que eu vivo. Aqui a gente fala Fazenda Alpina. Santa Rita fica mais pra baixo, lá embaixo. Mas Fazenda Alpina faz parte de Santa Rita. Antigamente, chamavam “Engano”, depois Fazenda Alpina. Aí fala: Fazenda Alpina/Santa Rita. (Entrevistado 31 – Bairro Santa Rita) Evidencia-se, nesse conjunto, o movimento de crescente ocupação física com ênfase na constituição da moradia e dos serviços que são destacados como os mais essenciais no cotidiano dos moradores: o transporte, a educação, o pequeno comércio, os mesmos mencionados como as principais carências para os que permaneceram nos locais impactados, gerando, entre outros, um sentido de “vazio” e de “solidão” enquanto simbologia de rompimento também dos fluxos do Lugar, qual seja, de mobilidade, liberdade de ir e vir, possibilidade de manutenção de hábitos cotidianos, como comprar o pão no comércio mais próximo, e do lazer e diversão (futebol, sinuca), assim como da manutenção da dinâmica alegre da reunião Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 Moradia e pertencimento de crianças e de adolescentes nas manhãs e tardes de entrada e saída da escola local. [...] Eu tive que passar setenta dias fora, depois eu voltei pra cá, mas estou sentindo falta do movimento, daquela bagunça, daquela gente que descia pra jogar futebol, porque tinha um campo que a gente, às vezes, vinha bater uma bola. Olha, muita gente diz que Campo Grande tinha três mil pessoas, mas eu calculo que devia ser duas mil pessoas. Quando veio o dia da tragédia, eles não foram embora de noite, porque não tinha como eles ir, tava chovendo, aí a chuva acabou já tava quase amanhecendo, aí eles não iam descer sem caminho, no escuro. Eu cheguei ali e vi pouca gente, morreu muita gente, eu calculo umas mil pessoas, ou umas mil e duzentas pessoas. Mas a água aqui passou por cima de casa de dois andares. Inclusive tinha um casal que tava na praia, eles vieram pra cá naquela noite, e viram eles em cima da casa. Então, o pessoal pensava que eles não estavam em casa, viram eles em cima da casa, o casal com duas crianças, e quando dava um relâmpago eles gritavam pedindo socorro, e ouviu uma vez. Mas quando deu o relâmpago de novo, eles não tava mais, a água passou por cima da casa, eles chegaram em casa de noite e não amanheceram em casa. É triste, não é? Eu acho que aquele povo, muita gente não vai ter nunca mais, eu acho que esse ônibus nunca mais vai até lá em cima [antigo ponto final]. Eles tão indo lá pra cima pra derrubar as casas, eles não fazem nada pra ajudar a consertar a rua. Bom, eu gosto daqui, a água aqui é muito boa porque é de uma nascente ali em cima. Aqui é um lugar muito sossegado, aqui a gente pode dormir com o portão aberto entendeu? Não tem perigo nenhum, aí quando o meu filho sai e deixa a porta aberta, a pessoa pode chegar e entrar. Eu fiquei muito tempo Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 sem sair de casa, pra ir ao médico o meu filho arrumava um carro. Aí o ônibus tá vindo até aqui em cima agora, agora ficou bom de novo. Mas agora a gente tá esperando que eles asfaltem a rua aqui e que afundem o rio porque quando enche o rio, desce pela rua e estraga a rua tudo de novo. Olha, eu tô achando que é muito ruim pra gente sair de noite, fazer compra: se voltasse aquele mercadinho aqui embaixo seria bom, melhorar a rua, aí eu preferia ficar aqui. Tava muito bom! Aqui tinha uma padaria que vendia todo tipo de fruta, uma birosca lá em cima e lá tinha uma mesa de sinuca. E o pessoal se divertia muito. Aqui tinha até o grupo das mulheres que a gente jogava bola no sábado. (Entrevistado 26 – Bairro Campo Grande) As considerações compreendem a perda de fixos e fluxos, assim como a perda “dos outros”. Então, o desastre é “a falta de todo mundo”, a dificuldade de manutenção da vinculação com o Lugar e com as pessoas que o integram, porque morreram ou porque, aos que permaneceram vivos, não foi permitido o retorno. Na conformação do Lugar que se faz identitário, é interessante observar certa convergência entre as três localidades pesquisadas esboçadas nas narrativas – Bairros Caleme e Campo Grande e Distrito de Santa Rita –, principalmente considerando a mobilidade já experimentada por alguns entrevistados entre as três áreas, assim como por vínculos de parentesco existentes nas outras localidades ou mesmo apenas pelo conhecimento que se tem das histórias locais, com as quais é possível verificar forte identificação. Na verdade, são territórios que apresentam características semelhantes no que se refere a histórico e tempo de ocupação, padrões construtivos, 545 Maria Auxiliadora Ramos Vargas infraestrutura e formas de vida, de maneira Pensar essas localidades nos permite geral, facilitando certa aproximação identitá- avançar em traços particulares de sua cons- ria com seu próprio Lugar. tituição. Elemento fundamental na caracte- Quando dos relatos acerca do ocorrido em rização dos vínculos formados diz respeito à 12 de janeiro de 2011, foi comum o deslocamen- conservação de fortes traços suburbanos e to de suas interpretações para o outro território, relações sociais ainda bastante tradicionais e no sentido do reconhecimento de um também familísticas, nos termos de Martins (2010). sofrimento experimentado por “semelhantes”. Lá no Campo Grande acabou. Eu não tive coragem de ir lá. Muita, muita gente conhecida da gente! Uma família toda conhecida da gente! Foram membros da Igreja junto com a gente. Filho, neto da irmã da Igreja. Lá foi muita gente conhecida, não tenho vontade de ir lá. Tem um mês, encontraram o corpo de uma senhora lá, perfeitinho. (Entrevistado 17 – Bairro Caleme). 546 Aqui a gente conhecia os mais velhos, os mais novos, quem casava, quem tava namorando, quem tava esperando neném [...]. Aqui, quando uma fazia uma arte, todo mundo ficava sabendo: “ih, tá namorando escondido”. Era assim. (Entrevistado 27 – Bairro Campo Grande).8 Nesse conjunto de importâncias e reflexões, destacamos o papel da casa como “espaço vital” e a forma própria como é feita O meu filho trabalha lá pro lado de Fazenda Alpina/Santa Rita. Ele disse que lá choveu mais do que aqui. Lá, no Caleme, os primeiros moradores de lá do Caleme foi meu avô, o José Francisco de Melo. Papai foi criado lá. Todos lá, a maior parte é meus primos que eu nem conheço. Lá foi aumentando e tá quase uma cidade, né? (Entrevistado 26 – Bairro Campo Grande) e habitada, contribuindo para o entendimen- Lá em Campo Grande era meu mesmo, foi a primeira casa que eu comprei [...]. Nossa, lá eu conhecia as casas a dedo! Eu conhecia tudo. Depois lá foi crescendo. Agora, nessa época, fiquei um bom tempo fora e ali já tinha bastante gente que eu não conhecia. Não consegui voltar lá depois do que aconteceu. Eu tenho uma conhecida lá que tá sumida. Eu fui até o ponto final [do ônibus] mas não consegui: só em ver a primeira casa ali do ponto da igrejinha... (Entrevistado 13 – Bairro Caleme) mais enfatizado do que a casa. Na perspec- to do enraizamento dos sujeitos, tanto nesse espaço mais restrito, como na sua extensão mais coletiva ou na experiência comunitária, reproduzindo-se de acordo com todas as dialéticas da vida, segundo Bachelard (1998). Talvez não haja, no âmbito dos fixos presentes na análise dos desastres, componente tiva do autor, a moradia está relacionada à proteção e é concebida simbolicamente como “concha”, ou seja, o “primeiro universo”, um “cosmos”, nosso “canto no mundo”. Considerada para além de ser um objeto, expande-se de sua positividade para o mundo dos sonhos, no qual “as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam tesouros dos dias mais antigos” (p. 25). Bachelard quer mostrar que Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 Moradia e pertencimento [...] a casa é uma das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes que não raro interferem, às vezes se opondo, às vezes excitando-se mutuamente. Na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano [...]. A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa. (Ibid., p. 26) Apropriando-se do autor, (2012) ilumina essa reflexão considerando que: [...] a construção inicial de identidade e as relações fundamentais com o outro, em termos de cuidados mútuos, solidariedade e afetividade, são protegidas pela moradia [...], concebida como um locus onde a intimidade é resguardada para o repouso, o devaneio, a satisfação das necessidades básicas, dentre outros.Trata-se de uma referência espacial essencial dos residentes para dar materialidade aos seus valores, desejos, aspirações, fantasias, sentimentos, assim como para exercitar as tensões e conflitos que, porta afora, estarão igualmente presentes na esfera pública. É, ainda, a referência espacial relevante na sociabilidade praticada com os demais membros de sua rede primária, desde os oriundos da família nuclear como da extensa, como os amigos e vizinhos. A referência alargada da moradia, que faz a ponte entre a esfera privada e a pública, as práticas pessoalizadas e as impessoais, é a comunidade, cujo sistema de objetos com significados compartilhados viabiliza a coesão e rotinas de convivência entre conhecidos e desconhecidos. (p. 68) Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 Campo Grande foi um bairro que revelou a característica da sociabilidade levantada pela autora, apontando para conjuntos de moradias que agregavam toda a família: E lá era assim: tudo perto, em família. Era um terreno que tinha cinco casas: a minha sogra, a minha cunhada, minha outra cunhada, eu e meu marido e tinha um sobrinho dele que tinha uma casinha lá também [...]. (Entrevistado 4 – Bairro Campo Grande) Eram 4 casas: da minha cunhada e meu cunhado... eram, na realidade, 5 casas porque o outro cunhado solteiro ele tava construindo por cima da casa do irmão dele, já tava com meia parede de tijolo levantada; como a casa do irmão dele foi levada por inteiro, a dele foi junto. Só a que ficou inteira e não caiu nada foi a minha casa e a do meu sogro. Já a da minha cunhada que era no segundo andar, a sala foi destruída e a garagem, a cozinha, banheiro e quarto. A varanda da cozinha, onde ela até tinha uma lojinha de doce ficou intacta, só atingiu mesmo a sala e a garagem. (Entrevistado 20 – Bairro Campo Grande) O terreno era assim: a gente fala que é meu, mas como dizem, a gente não tem nada, aqui é de Jesus. Jesus emprestou pra gente viver até agora, né! Então, tinha a casa dele, que é da minha filha, e tinha a casa do outro filho que eu deixei ele fazer em cima da minha, e eu morava na de baixo. E foi tudo embora numa pedrada só! Tinha outra mais pra baixo que meu genro tinha acabado de construir. Já tinha gastado um dinheirão, estava quase pronta, só faltava botar porta e a cerâmica. Aí levou tudo! Já tinha gastado 15.000,00. (Entrevistado 27 – Bairro Campo Grande) 547 Maria Auxiliadora Ramos Vargas A perda da moradia, ou do sentido de de oferta de imóveis para aluguel, pela alta dos proteção da “concha”, torna-se, pois, um for- preços dos existentes ou, ainda, pela resistên- te componente do sofrimento experimentado cia do município em firmar esse contrato com no contexto de desastres, passando a repre- parcelas dos grupos afetados, conforme denun- sentar a maior expressão da luta dos grupos ciado pela Associação das Vítimas das Chuvas sociais afetados na reconstituição das refe- do Dia 12 de Janeiro de 2011 em Teresópolis rências perdidas. – Avit); e, ainda, o total descompasso entre as A perda da casa – por danificação, destruição ou interdição desse espaço pelas autoridades públicas – é a perda de uma possibilidade de recolhimento do eu no espaço de sua intimidade, isto é, naquele que lhe permite o repouso, o devaneio, o ato amoroso, o exercício experimental dos papéis na vida pública – enfim, o que Levinas denomina como a interioridade do ser; e o que Bachelard já havia refletido ao destacar que a casa e o corpo se confundem e qualquer desventura que abale os alicerces da casa abala o sujeito que nela vive, ali delineia sua identidade e em cujos porões são guardados os seus medos indizíveis. [...] tirar a casa de alguém é uma expressão de poder, para lembrar que quem dali é expulso não tem mais raiz e está solapado no direito de reivindicar refúgio e proteção. A perda da casa por um ato de força [...] significa também atacar o mundo interno do morador, colocá-lo a nu e lançá-lo ao exílio, impedi-lo de defender-se do ataque das tempestades da natureza e das tempestades da vida. (Valencio, 2014, p. 304) expectativas dos afetados e as propostas de reassentamento via programas de moradia planejados unilateralmente pelo Estado. A defesa do Lugar passará pela luta na busca pelo seu refazimento: este é fato recorrente nesses cenários e se torna o mote dos movimentos desencadeados a partir dos desastres, de maneira geral. Os moradores contestam as experiências de demolição das edificações atingidas no desastre e/ou daquelas condenadas pela avaliação técnica de risco por diferentes razões, principalmente: por não verem, em grande parte dos casos, a necessidade, em se tratando daquelas edificações que permaneceram intactas e que têm “indicação preventiva de demolição” – e, daí, é revisto todo o sacrifício que a conquista da moradia representa historicamente para esse segmento social; e porque as demolições agregam mais componentes ao aspecto de destruição e desertificação do Lugar, tudo isso se somando à ausência de ações de recomposição local por parte do Estado, traço marcante do caso da Região Três grandes enfrentamentos parecem Serrana do Rio de Janeiro – o que só reforça o nascer daí: a passagem pelos abrigos públicos aspecto de disruptura social característico dos temporários (na condição denominada “de- desastres – num plano mais imediato, materia- sabrigados”) ou o alojamento na residência lizado pelo meio físico. O Lugar é tratado como de conhecidos ou familiares (na condição de impossibilidade. “desalojados”); a inserção nos programas de No referido contexto, a expressão “lá fo- aluguel social, estes geradores de profundas ra” foi sempre utilizada nas narrativas para o inseguranças e desconfianças na relação com o tratamento de qualquer outro ponto da cidade Estado (agravado, naquele município, pela falta que não fosse o seu próprio Lugar, criando certa 548 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 Moradia e pertencimento distinção acerca do espaço “conquistado” e “seguro”, no sentido de lhe ser pertencente, acima de tudo, pela identidade e pela proximidade com seus hábitos, relações, afinidades e, mesmo, com as táticas que envolvem sua sobrevivência. O aspecto outsider9 presente na perspectiva tanto da “área carente” como da “área de risco” – agregado a tais territórios a partir da retórica oficial – é ressignificado quando a vida e o cotidiano se revelam atrelados a aspectos que lhes asseguram o sentido de pertencimento. Não se quer aqui afirmar o sentido de Lugar isento de restrições, uma vez que não é traduzido nas narrativas como “idealização romantizada” e inclui o reconhecimento das limitações que lhe são impostas (e os próprios aspectos classistas inerentes a essa condição). Contudo, cabe enfatizar: os sentimentos de pertencimento e segurança permanecem diretamente associados a esse “Lugar identitário”, ainda que, em muitos aspectos, explicitamente restrito e segregado. É um bairro de pessoas pobres, muitos aqui não estudou. Então, eram pessoas que realmente viviam aqui dentro do bairro: a gente tinha um mercado; bem ou mal, vinha um pediatra, vinha um ônibus de dentista, então, assim, muita coisa a gente tinha aqui dentro do bairro. O que você realmente tinha que fazer lá fora, você ia fazer. Só porque aconteceu aqui [o desastre], não quer dizer que seja só aqui. Isso acontece em vários lugares. Então, um dos objetivos de voltar pra Campo Grande, além de amar realmente muito esse bairro, não só eu, mas os meus filhos também, o meu maior princípio, eu conversei muito com Deus e falei: “Deus, se for da Tua vontade que a minha casa seja liberada, se for da Tua vontade que eu venha pra ajudar o povo, porque eu não Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 perdi nada, mas eu quero ajudar quem perdeu. As únicas coisas que eu perdi foram os meus vizinhos, os meus amigos, isso sim, porque se eles tivessem aí, já tava bom. O pobre já tá acostumado a sofrer, a lutar, isso a gente reconstrói com o passar do tempo. A gente sente a falta de todo mundo. Porque sexta, sábado e domingo as crianças tavam na pracinha brincando, soltando pipa, né? Todo mundo era conhecido. Aqui é tranquilo. As pessoas lutam, mas, se o Governo não ajudar a gente, o que é que adianta? Se tirar daqui vai colocar onde? Vai enfiar onde? As pessoas que receberam dinheiro aqui não tão conseguindo nem comprar uma casa. Você vai comprar num bairro que não é como aqui, que tem tiroteio direto, tem drogas. Aqui era um bairro mais família, mais roça, mais tranquilo. Mesmo antes da tragédia, o silêncio que você tá vendo aqui, era assim. O agitamento maior era depois das cinco porque as crianças começavam a sair do colégio e nos finais de semana, porque aí as crianças saíam correndo. Aqui sempre tem a época de pipa, de pião, de gude, então, as crianças corriam pra lá e pra cá. [...]. É um bairro que tem reconstrução, se não dá onde tinha as casas, tem outros lugares que dá pra fazer. Qual é a do Governo? Não tá se importando de te tirar daqui, se você vai ter casa pra morar, onde você vai enfiar seus filhos. Tem gente aqui que tá sem o aluguel social, e tá lá fora pagando do bolso, passando uma dificuldade danada, né? Então, fica complicado. (Entrevistado 21 – Bairro Campo Grande) “Lá fora” compõe, então, o discurso de reafirmação do Lugar em contraponto a outras e diferentes ameaças: ao que está distante e desassociado e, até mesmo, ao estranhamento que as tramas da cidade podem gerar às suas práticas sociais específicas. A precariedade 549 Maria Auxiliadora Ramos Vargas objetivada é amenizada pelo sentimento de pertença e o contrário também se revela: a precariedade ganha, de fato, maior relevância quando se pensa a experiência “fora do seu Lugar identitário”.10 Quando a gente morou “lá fora”, eu não me adaptei de jeito nenhum! Tem gente que não quer voltar [para o bairro de origem], mas eu, depois que voltei, eu durmo melhor. A gente vive mais tranquilo. Aqui tem muitas pessoas conhecidas [...], eu me sinto bem, em paz, tranquila. Fora daqui é difícil! (Entrevistado 20 – Bairro Campo Grande) O sentido de Lugar se traduz, pois, de diferentes formas. Como tais territórios possuem fortes características interioranas e suburbanas, é registrada a ênfase na tranquilidade que Eu te digo na honestidade, eu quase não saio do bairro. Às vezes eu chego lá na cidade e penso: “fizeram essa obra, e fizeram isso aqui” e as pessoas falam “R., mas tu mora em Teresópolis”. Aí eu: “é, eu moro lá em Teresópolis, mas eu adoro ficar lá no meu bairro, e minha vida é lá, eu gosto de estar com os amigos, gosto da tranquilidade, eu não me vejo no meio de muita agitação, eu gosto da paz de saber que eu vou sentar num lugar pra conversar, vou rir, não tenho que me preocupar com nada, porque infelizmente, o mundo de hoje te obriga a trabalhar. Te obriga a viver aquela vida estressante e, de repente, você sabe que você tem o seu bairro e é tranquilo e calmo, tu sabe que você vai ficar ali na tranquilidade. Eu pelo menos gosto. Nada muito cheio, muito movimentado. (Entrevistado 21 – Bairro Campo Grande) o cotidiano permite (silêncio, liberdade, simplicidade, informalidade no trato) e na pessoalidade das relações. Isso se opõe às características tidas como próprias do ambiente urbano, ou seja, o “tumulto da cidade”, os desafios colocados por uma dinâmica não absorvida, a invisibilidade das pessoas. “Aqui é bom, é tran- quilo, sossegado. Não tem violência e a gente se sente à vontade.” (Entrevistado 5 – Bairro Caleme). O “interior” – outra expressão localmente usada para se referir à zona rural, mas que também converge claramente para os fragmentos territoriais urbanos que não estão na área central do município – é traduzido pelo que proporciona em termos das redes de sociabilidade que facilitam a sobrevivência e suprem, até certo ponto, a ausência ou precariedade do trabalho/renda e das políticas voltadas à reprodução social, de maneira geral. 550 Eu gosto muito dali [local onde morava]. Meu caso é ficar ali. Se caso não tiver outra solução, tenho que aceitar para onde me mandarem ir. Mas o meu marido não, ele chega a passar mal quando fala que ele tem que sair dali. Passa mal mesmo, ele desce fica lá pensativo no que fazer. Nos primeiros dias depois da tragédia eu fiquei no hospital com o menino dois dias [...]. Quando eu vim os vizinhos me contou que ele ficava sentado chorando. Já tem 33 anos que ele mora aqui. Construímos do começo até o fim. (Entrevistado 3 – Bairro Caleme) Movimento, muito bom! Aqui tinha movimento, festa... Esse meu cunhado que morreu, ele tinha uma birosquinha. Ele fazia forró, festa junina. Era normal. Vinham uns caras de fora cantar! Agora... Quem tem televisão fica dentro de casa vendo TV, quem não tem, vai dormir. De Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 Moradia e pertencimento vez em quando ainda tem uma festinha na casa de amigo, um churrasquinho... Mas mudou muito, muito, muito! Encontrei esses dias uma amiga minha. Quando ela me viu, ela me deu aquele abração: “pensei que você tivesse morrido!”. Porque falaram que Santa Rita acabou, que todo mundo morreu. Morreu muita gente, mas não foi todo mundo. É difícil! Porque é interior, a gente é unida, se gosta, todo mundo se comunica um com o outro. Todo mundo se dá, graças a Deus! Às vezes tem até uma maldade, mas é gente de fora quando vem. Pessoal daqui, que foi criado aqui, todo mundo se dá bem. Vamos supor: se alguém tá com um carro, uma moto quebrada no caminho, para pra ajudar. Se alguém passa mal e não tiver carro, pode ir no vizinho que ele leva, entendeu? (Entrevistado 31 – Bairro Santa Rita) É possível reconhecer nessa interpretação, ou na crítica dos afetados, um descolamento entre a ideia técnica de risco fortemente propagada e a defesa de reconstituição do Lugar. Toda a discussão acerca da moradia é perpassada pela constatação da existência daquilo que consideram equívocos ou morosidade/ineficiência na atuação do Estado, levando a manifestações de total desconfiança com re- só juntaram o lixo mais ou menos e tá assim horrível. Porque, às vezes, as pessoas chegam e não sabe se foi pela chuva, porque muitos que vêm aí perguntam se foi a chuva. Aí, eu falo: não, foram as máquinas! (Entrevistado 20 – Bairro Campo Grande) A Defesa Civil interditou algumas casas. Depois, voltou ao local e liberou a casa. O dono da casa não quer mais a casa, pediu pra marcar e destruir. E por que não distribuir essas casas pra quem perdeu as suas? Derrubaram casas boas, que estavam liberadas e têm pessoas esperando casas pra morar. Eu moro no Loteamento do Feu, minha casa não aconteceu nada e tá lá marcada pra derrubar. Já estiveram lá, já mediram, tô esperando me chamar. Se me der um dinheirinho de acordo, eu vendo a casa, se não der, não tem condições. Lá perto de casa têm casas que foram liberadas, o dono não quer mais, falou com a Defesa Civil pra marcar e derrubar. Ele tá recebendo aluguel e certamente vai receber um apartamento desses que tão prometendo aí, que é difícil. Poderiam aproveitar essa casa, inclusive eu tenho vizinhos lá que aceitam a casa. Se vai derrubar a casa, que não derrube, mas dê pra outros. (Participante da Audiência Pública 2) lação à efetividade das ações prometidas. Subitamente, passam a interagir com frações desse Estado que, até então, não integravam suas experiências no Lugar, revelando inclusive a dificuldade de assimilar suas identidades e papéis. [...] Agora é a tal do Inea. Agora é esses, só que esses demoliram a casa aqui de baixo e eles limparam. Eles falou que o negócio deles é demolir limpo; os primeiros, não: você pode ver aqui em cima que as casas que eles demoliram e Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 Quero fazer uma pergunta para as autoridades competentes: “quando vai acabar de ser feita a infraestrutura dos bairros, do Poço dos Peixes onde a obra começou e parou, a limpeza de rio, barranco?”. E quero repetir a pergunta que já foi feita sobre as casas que pediram pra serem marcadas: se tem como fazer uma reavaliação e dar as casas pra quem tá precisando. (Participante da Audiência Pública 2) 551 Maria Auxiliadora Ramos Vargas São interpretações que se opõem à forma utilitária como o Lugar é tratado pelas instituições do Estado na sua lógica de “refazimento do cenário destruído pelo desastre”. A significação que a conquista da moradia tem mata no rio. E outra: as casas de Vieira, as pessoas de Vieira não querem sair de lá, querem continuar plantando, e nós precisamos saber como vai ficar a situação do 3º distrito, dos agricultores do 3º distrito. (Integrante da Avit – Audiência Pública 2) e a necessidade de garanti-la se mostra contundente nas estratégias discursivas utilizadas pelos agentes desse Lugar. O tratamento dado, pois, pelas instituições do Estado é contestado, uma vez que sua ação se rebate no cotidiano de diferentes formas: através do seu esvaziamento, na ainda maior redução da mobilidade e no isolamento, sentimento de solidão e abandono para os que ficam e de desvinculação para os que são obrigados a sair definitivamente através das remoções compulsórias. São serviços públicos essenciais e práticas de trabalho interrompidos e não reativados com base em argumentos não assimilados por quem se vê em situação de abandono e negligência pelo ente público. As ações públicas direcionadas O meu assunto é a creche Carinha de Anjo. Essa creche foi dada por uma ONG e, de 2 em 2 anos, troca o responsável. Agora eu estou lá. E o que aconteceu? Em janeiro aconteceu a tragédia também em Granjas Florestal e não sei porque a Defesa Civil, Emop, prefeitura não se interessaram em abrir a creche. São 44 crianças, a maioria vai lá mais pra se alimentar, vocês sabem que são crianças pobres. A Emop diz que tem uma casa caindo lá no alto do morro. Nós já estamos há 10 meses com essa casa caindo. Eu gostaria que alguém pudesse responder. Sr. deputado, eu gostaria que o Sr. me desse uma resposta. Criança sem estudo, como é que vai ficar? Aí, não tem resposta, claro, né? (Participante da Audiência Pública 2) aos segmentos afetados revelam a sua perspectiva classista, ou seja, a que setores da cidade e frações sociais a atenção e proteção são efetivamente dispensadas – uma recorrência no caso brasileiro. Eu reclamo hoje das estradas, né? Porque agora, com qualquer chuva, enche. Domingo agora encheu! Eu fiquei apavorada! Muita gente que veio pra igreja não pode voltar! Os que vieram visitar a família não puderam ir embora. Tem um monte de máquinas, mas tão paradas. Ponte que não tem. [...] já tem um ano e eles não fizeram nada! (Entrevistado 31 – Bairro Santa Rita) As perguntas são rápidas: “quando vamos ter o projeto do Rio Vieira?” Nós precisamos dessa informação pra que nós possamos plantar em volta do rio, recriar nossa 552 É muito bonito ouvir o discurso das nossas autoridades, porque eles chegam e fazem uma síntese da nossa dificuldade, mas a gente tem olho. Olha só, falaram em 10 pontes, nós temos 54 pontes no nosso município. O trabalhador, o agricultor, pra ele transportar uma caixa de tomate ele tem que andar debaixo do rio, entrar dentro do rio pra encontrar uma estrada ali. Voltam novos discursos: não queremos discurso, queremos objetividade, uma resposta. (Sindicato da Indústria Têxtil – Audiência Pública 1) Esse conjunto de enunciações destaca, de maneira direta, os elementos que constituem a experiência de abandono vivenciada: máquinas paradas, baixa mobilidade e o reconhecimento do tratamento que é dispensado aos afetados. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 Moradia e pertencimento Nas palavras de Zhouri (2010, p. 453), configu- ressignificado (Vargas, 2006) – isto é, são atri- ra-se uma resistência legitimada pelo discurso buídos novos sentidos ao ambiente periférico dos moradores através do testemunho pautado deteriorado a partir de muitos fatores. Territó- na observação e na vivência, em contraponto rios estrutural e ambientalmente degradados ao posicionamento das autoridades e de suas passam a ter a conotação de “espaços desejá- retóricas denunciadas como “a síntese da nos- veis” a partir da ausência de alternativas, e de- sa (sua) dificuldade”. “[...] a gente tem olho!”. “Não queremos discursos, queremos objetividade, uma resposta!”. corre daí a valorização de um patrimônio construído que se confronta e “supera” a noção técnica de risco, revelando-se como uma opção legítima (ou uma “oportunidade”) diante da total falta de opção. Os vínculos de sociabili- Considerações finais dade sobrepõem-se a partir de relações primárias, familiares ou comunitárias, que são traços A moradia se revela elemento de fundamen- culturais relevantes em tais grupos e, também, tal importância para a reprodução social. Na a partir da possibilidade de se contar com re- experiência de muitos, esse bem só poderá cursos adicionais para sua reprodução social, ser acessado via autoconstrução e a partir de em contextos de ausência de políticas sociais processos que envolverão a irregularidade na efetivas de apoio à sua reprodução social. forma da apropriação da terra. Essa é uma rea- O Lugar representa, também, a expressão lidade fortemente presente nas cidades da pe- de uma luta pela permanência ante ameaça de riferia do capitalismo, desencadeando cenários desterritorialização pelo Estado. Entre outros e simbologias que nos desafiam a compreen- fatores, isso se associa à necessidade da segu- são. Uma das características que esse contex- rança da posse, da propriedade, ainda que ela to permite identificar é que buscamos realçar se origine da “invasão dos locais disponíveis neste artigo, qual seja, a relação de certos para os pobres”, na expressão dos afetados grupos com o espaço, revelando enraizamen- (ibid.). A isso também se associam a insistência to e pertencimento, identidade, ainda que seja pelo retorno e reconstrução em locais tecnica- tecnicamente condenado ou pejorativamente mente condenados e a busca por alternativas traduzido pelas suas possíveis limitações e ca- individualizadas de minimização dos danos racterísticas de precariedade. através de pequenas obras de reparo e recupe- É relevante dizer que, antes de um terri- ração da edificação, dos equipamentos, viabili- tório ser a “área de risco”, tecnicamente classi- zando, ainda que precariamente, a permanên- ficada, ele representa o Lugar de viver e morar cia. Na verdade, a ausência sistemática de uma de certos sujeitos sociais, ou seja, representa rede de proteção social gera formas próprias de a relação desse sujeito coletivo com o espaço. entendimento do mundo e práticas próprias de Isso nos remete a trajetórias de vida e a pro- convivência com as ameaças. cessos de vulnerabilização (Acselrad, 2006). Quando do desencadeamento do desas- Não se trata de dizer que o suposto “risco” tre, esses Lugares se projetam como objeto de que leva à condenação seja negado, mas, sim, contestação, o que só reforça a sua já condição Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 553 Maria Auxiliadora Ramos Vargas de segregação e estigmatização: aquilo que oposição ao que se constata na atuação do Valencio e outros (2008) tratam como trans- Estado em face do desastre, a força desses posição da “área carente” para a “área de significados traduz uma densidade por par- risco”. É acionado o reconhecimento das fron- te dos afetados (como bem explicitado em teiras opositivas em relação a grupos sociais suas narrativas anteriormente registradas), específicos e seus projetos de inserção no Lu- que se contrapõe à ambivalência originada gar, na cidade, que são projetos antagônicos à do comportamento da autoridade, porque é noção da ordem social vigente. A enunciação referendada pelo testemunho e pela vivên- originada no discurso oficial enseja a tentativa cia no Lugar. Tal autoridade é incisiva sobre de anulação do Lugar calcada no discurso do a realidade, afirma-se antes os recursos e risco. Porém, as estratégias discursivas, e não sobre o meio com a finalidade de ordená- só elas, são mobilizadas também pelos grupos -lo, enquadrá-lo e se impor sem, no entanto, localizados e organizados em função da resis- necessariamente entendê-lo. É ambivalente, tência – que se revela nesta pesquisa também pois, porque age sem a densidade que é cor- como “resistência cotidiana” (Scott, 2002). respondente aos Lugares que sofrem a inter- Em Teresópolis/RJ, a experiência da Avit, em venção, caindo em esvaziamento, violência, associação com outros movimentos regionais inadequação – desautorizando-se e deslegi- e nacionais, traduz-se como um esforço pela timando diante do contexto e do seu próprio afirmação de direitos, num contraponto sen- papel. O Lugar na discussão do desastre – em sível às formas de gestão do desastre naquela analogia a Zhouri (ibid.) quando de suas ar- região. Como afirma Zhouri (2010), a forma- gumentações no debate ambiental – deixa de ção de mobilizações locais e a reconstrução ser categoria residual, ganhando novos con- do território (ou “a luta por”, num esforço tornos, tonalidades, potencialidades, repre- de revisão da agenda pública) colocam em sentando a inserção da diversidade e a hete- pauta o esforço desses grupos em articular rogeneidade dos sujeitos, de suas formas de seu problema como um fato coletivo de on- viver e morar, ante a imposição de verdades de emergem novas identidades políticas. Em que querem se fazer únicas. Maria Auxiliadora Ramos Vargas Universidade Salgado de Oliveira, Curso de Serviço Social. Juiz de Fora, MG/Brasil. [email protected] 554 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 Moradia e pertencimento Notas (1) A categoria “Lugar” aparecerá no corpo do ar go com a inicial maiúscula, como um destaque que obje va enfa zar e resguardar sua associação com a ideia de iden dade e pertencimento. (2) Este ar go resgata reflexões que integram a tese de doutorado "Da chuva a pica” à “falta de todo mundo”: a luta pela classificação de um desastre no município de Teresópolis/RJ”, disponível em www.bdtd.ufscar.br/htdocs/tedeSimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=7786. A pesquisa foi desenvolvida no município de Teresópolis/RJ, no segundo semestre de 2011 e no mês de janeiro de 2012, envolvendo ins tuições diversas, a observação de 2 grandes audiências públicas e entrevista com moradores de 3 dos bairros Caleme, Campo Grande e Santa Rita, cujas narrativas, pelo teor do artigo, tiveram prioridade. Todos estavam envolvidos direta ou indiretamente no desastre desencadeado em janeiro de 2011 na Região Serrana do Rio de Janeiro. (3) Reafirma-se a importância de serem consideradas as vulnerabilidades estruturais somadas àquelas que as mudanças climá cas possivelmente farão emergir e a necessária observação de outras variáveis implicadas no referido contexto. (4) Reflexões sobre os a ngidos por barragens no Vale do Jequi nhonha/MG. (5) Vale ressaltar que os diferentes entrevistados mencionam que os territórios, nessa pesquisa considerados, não recebiam a classificação de “áreas de risco” até a ocorrência deflagrada em janeiro de 2011. Esse dado está respaldado pelo Mapeamento de Risco do município e incrementa o debate no que diz respeito à confiabilidade desses diagnós cos para a população e mesmo para alguns técnicos. (6) Optou-se por manter, nos depoimentos deste ar go, as caracterís cas da linguagem oral. (7) Rosa (2006, p. 8) apresenta dados de pesquisa desenvolvida num assentamento precário de Teresópolis, enfa zando que a secundarização de fatores de ameaça se revela recorrente: “É interessante destacar dados de pesquisa realizada na Coreia, um dos assentamentos informais de Teresópolis, que ocupa parte da área do Parque Estadual do Três Picos, unidade de conservação cujos mananciais abastecem as Regiões Serrana e do Grande Rio. Quando os moradores foram perguntados sobre os principais problemas que enfrentam, na ordem de prioridade, o primeiro lugar ficou com a pavimentação. Somente em úl mo lugar aparece a preocupação com os riscos sicos que os ocupantes sofrem devido à construção de suas casas em encostas íngremes e, muitas vezes, acima ou abaixo no nível das vias e servidões [...]”. (8) Foi recorrente a confirmação da informalidade como traço marcante, o acolhimento à pesquisa (em alguns casos sem agendamento prévio), o agrupamento espontâneo de pessoas num ímpeto de colaboração na produção das narra vas, sendo em suas próprias moradias ou em locais públicos, como a rua. O espaço público, o cole vo e o âmbito privado se mesclaram como possibilidade de abertura quase incondicional ao diálogo e ao relato tão “necessário” das versões diversas acerca do ocorrido, possibilitando a expressão da dor, do sofrimento, da solidariedade, assim como das diferentes interpretações da chamada “tragédia da Região Serrana”. Cabe destacar que a demanda pela escuta foi algo marcante, ainda que passados 6 meses entre o nominado “impacto” e o início da pesquisa. Por essa razão, ou seja, pautadas na iden ficação de um grau de sofrimento e abandono explícitos, as narra vas deram-se com bastante fluidez, confirmando uma boa convergência entre as demandas dos grupos de moradores e a proposta da entrevista em profundidade, inclusive para a apreensão de elementos da subje vidade de tais grupos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 555 Maria Auxiliadora Ramos Vargas (9) Referenciado na obra de Elias e Scotson (2000), que usam o termo para se reportarem àqueles es gma zados por um grupo estabelecido, como pessoas de menor valor humano, carentes da virtude humana superior – o carisma grupal dis n vo – que o grupo dominante atribui a si mesmo. “Os grupos mais poderosos [...] veem-se como pessoas ‘melhores’, dotadas de uma espécie de carisma grupal, de uma virtude específica que é compar lhada por todos os seus membros e que falta aos outros. Mais ainda [...], os indivíduos ‘superiores’ podem fazer com que os próprios indivíduos inferiores se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes – julgando-se humanamente inferiores” (p. 20). (10) Foi recorrente ouvir relatos informais de indivíduos residentes nos locais da pesquisa que nunca saíram de seus bairros para a região central da cidade. Referências ACSELRAD, H. (2006). 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Da “chuva a pica” à “falta de todo mundo”: a luta pela classificação de um desastre no município de Teresópolis/RJ. Tese de Doutorado. São Carlos, Universidade Federal de São Carlos. ZHOURI, A. e KLEMENS, L. (orgs.) (2010). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte, Editora UFMG. Texto recebido em 30/set/2015 Texto aprovado em 31/mar/2016 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016 557 Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana. Caso Puerto Norte en Rosario, Argentina Public policies in the development of large urban restructuring projects. The Case of Puerto Norte in Rosario, Argentina Cecilia Inés Galimberti Resumen El presente artículo se propone reflexionar críticamente sobre el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana, focalizando en el rol de las políticas públicas y los efectos y conflictos en torno a los mismos. Para lo cual, se toma como caso de estudio el Plan Especial de Puerto Norte en Rosario, Argentina. A través de su análisis crítico-interpretativo, se focaliza en los impactos producidos en relación a: la actualización normativa; la segregación socio-espacial; la recuperación de espacios públicos y la valoración patrimonial/identitaria. Las reflexiones resultantes de este caso contribuyen al conocimiento y al debate sobre la experiencia de Grandes Proyectos Urbanos en América Latina, especialmente en torno a la importancia del abordaje multi-actoral y multisectorial que requieren sus problemáticas complejas. Palabras clave: políticas públicas; grandes proyectos urbanos; segregación; espacio público; patrimonio. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3612 Abstract This article intends to critically reflect on the development of large urban restruc turing p r oje c t s , f o c u sin g o n t h e r o l e of p u b lic policies and the effects and conflicts related to them. Our case study is the Special Plan of Puerto Norte in Rosario-Argentina. Through a critical-interpretative analysis, we focus on the impacts relating to: regulatory update; sociospatial segregation; recovery of public spaces and the valuation of heritage /identit y. The reflections resulting from this case contribute to knowledge of and debate on the experience of L arge Urban Projec t s in L atin America, especially concerning the importance of the multi-sectoral and multi-actor approach that their complex problems require. Ke y w o r d s : p u b li c p o l i c i e s ; l a r g e u r b a n projects; segregation; public space; heritage. Cecilia Inés Galimberti Introducción políticas estatales tienden a facilitar estos Los cambios producidos por las nuevas sean sociales, económicos y/o territoriales. desarrollos que producen efectos diversos, ya dinámicas del mercado, el capital, las El presente artículo plantea analizar reestructuraciones económicas y la críticamente las políticas públicas en torno globalización ocasionan efectos socio-políticos- a los grandes proyectos de reconversión territoriales particulares en cada ámbito urbana; tomando como caso de estudio territorial. Especialmente en América Latina el sector de Puerto Norte en la ciudad de se registra un desfasaje entre las plusvalías Rosario, Argentina. El mismo abarca un área obtenidas producto de las reconversiones de más de 100 hectáreas que comprende urbanas y su redistribución homogénea a la instalaciones industriales, ferroviarias y sociedad. En las últimas décadas, tienden a portuarias localizadas estratégicamente profundizarse los espacios de desigualdad y las sobre el río Paraná a inmediaciones del centro fragmentaciones socio-territoriales. Es decir, urbano de Rosario. Si bien desde mediados del como explica Haesbaert (2011), se produce siglo XX, y reiteradamente con el transcurrir el agravamiento de la exclusión mediante la de los años, se plantea la liberación de estas concentración del capital y renta, junto con la infraestructuras con el fin de reinsertar este carencia de políticas públicas de redistribución espacio a las dinámicas urbanas en nuevos efectivas. Las inversiones se vuelcan más usos para toda la sociedad, como la creación a la especulación financiera que al sector de parques públicos; recién comienza su productivo de generación de empleos y al reestructuración en la primera década del aumento de la calidad de vida de todos los siglo X XI. Sin embargo, contrariamente ciudadanos. al impulso inicial, se proyectan en estos En este contexto, resulta un caso espacios, nuevos condominios residenciales emblemático de estudio las actuaciones privados, edificios de oficinas y servicios de re-funcionalización territorial en áreas comerciales destinados principalmente a ce nt rale s d e las ciu d ad e s , co m o p o r sectores de alto poder adquisitivo. ejemplo la realización de nuevos complejos En este sentido, el desarrollo de esta residenciales destinados a sectores de alto investigación comienza con la presentación poder adquisitivo en áreas correspondientes a de un breve estado de situación en el que se grandes componentes productivos obsoletos. desarrollan los proyectos de renovación urbana Desde fines del siglo XX, numerosas ciudades en las últimas décadas, especialmente en en todo el mundo llevan a cabo procesos de relación al rol del mercado, las políticas públicas recuperación de superficies subutilizadas y los actores intervinientes. Seguidamente, localizadas en áreas urbanas estratégicas, se presenta el caso de estudio propuesto, a como resultan las instalaciones portuarias y través de una síntesis de su proceso histórico ferroviarias en desuso. Estos nuevos proyectos de transformación, como también de las se caracterizan por un rol predominante diversas políticas propuestas para el mismo a del mercado inmobiliario, mientras que las través de los años. Posteriormente, se focaliza 560 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana en el análisis crítico-interpretativo de los Estos proyectos de renovación posibilitan efectos e impactos resultantes de este Gran rediseñar fragmentos del tejido y repensar el Proyecto Urbano (GPU), a través del estudio rol y la organización de toda el área que rodea particularizado de: la actualización normativa; al propio sector de transformación. Si bien por los procesos derivados de segregación un lado, se permite imaginar la recuperación socio-espacial; la recuperación de espacios del acceso público a estos lugares a través del públicos y las políticas de preservación de desarrollo de nuevos espacios abiertos para los componentes productivos identitarios. la comunidad. Por otro lado, también resulta Finalmente, se realiza una reflexión conclusiva un estímulo expectante para la especulación en relación a lo expuesto, con el fin de del mercado inmobiliario. Siguiendo a Carlos contribuir al conocimiento y al debate sobre el De Mattos (2008); existe un gran aumento de desarrollo de grandes proyectos de renovación la relevancia cualitativa y cuantitativa de la urbana, especialmente en el contexto de inversión inmobiliaria privada en las nuevas América Latina. dinámicas de las ciudades, lo que conduce a la imposición de lógicas de índole capitalista en el desarrollo urbano contemporáneo que El rol del mercado en la definición de políticas públicas en torno a los proyectos de renovación urbana generan cambios en las políticas públicas y en las morfologías urbano-territoriales. Se registra así, una gran diversidad de conflictos de intereses en la realización de estos grandes proyectos, ya que existen diversas miradas contrapuestas y generalmente contradictorias entre sí. Administradores Desde las últimas décadas del siglo XX, se públicos, políticos, ciudadanos, empresarios, producen nuevas reorganizaciones territoriales entidades económicas, entre otros, se convierten vinculadas a las nuevas lógicas del capitalismo en nuevos actores clave con distintos objetivos y la globalización. Diversas ciudades en todo el para el destino de estas áreas. mundo se enfrentan en este período al desafío Estos espacios tienden a ser de la reconversión de instalaciones productivas refuncionalizados con nuevos usos, ya que degradadas y en desuso, mayormente en gran medida estas áreas -anteriormente localizadas en áreas urbanas centrales. productivas- son reconvertidas en nuevos Resultan ejemplo de esto, las instalaciones ámbitos residenciales para sectores de alto portuarias, ferroviarias e industriales obsoletas poder adquisitivo, oficinas para empresas ubicadas en sectores estratégicos. Por lo internacionales, hoteles de alto standard, entre cual, a nivel global se afrontan diversos otros. Por ejemplo, en los últimos cuarenta años, proyectos de renovación y reutilización de a nivel mundial se desarrollan diversos casos estas infraestructuras, frente al gran potencial emblemáticos que se constituyen en referentes que poseen las mismas para la realización de para otras reconversiones posteriores como nuevos programas. resultan: los Docklands en Inglaterra, el Kop Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 561 Cecilia Inés Galimberti Van Zuid , en Rotterdam; el Baltimore Inner Harbour en Estados Unidos, el Battery Park en Nueva York, entre otros, – dentro del contexto europeo y norteamericano. En A méric a L atina , t am bién son numerosas las ciudades que afrontan la reconversión urbana de diversos sectores e st raté gico s , como ejem plo p o d emo s mencionar los casos de: Puerto Madero en Buenos Aires, Argentina; Rivera Norte en Concepción, Chile; Santa Fe en Ciudad de México; México; el Transmilenio en Bogotá, Colombia; Operación Urbana Faria Lima en San Pablo y Juegos Panamericanos Río 2007 en Río de Janeiro, Brasil. En los ámbitos latinoamericanos estos grandes proyectos de renovación urbana, se desarrollan en un ámbito particular, que si bien genera oportunidades de integración internacional, también denotan desigualdades y procesos de exclusión económica y cultural. Siguiendo a García Canclini (2008, p. 21) , esto sucede en un contex to de “vaciamiento simbólico y material de los proyectos nacionales” dado el debilitamiento progresivo del Estado, especialmente desde finales de los ochenta junto a la adhesión de políticas neoliberales. Frente a las presiones del mercado global, los gobiernos nacionales tienden a resultar meros administradores de decisiones ajenas y a “atrofiar su imaginación socioeconómica y a olvidar las políticas planificadoras de largo plazo”. Es decir, existe una ruptura en la relación Estadosociedad, la cual se reestructura en relación a las nuevas demandas. Según sostiene García Delgado: 562 [...] la relación Estado-sociedad se modifica y el Estado se reestructura en función de nuevos factores internos y externos, adoptando un paradigma ideológico o neoliberal, privilegiando la economía del mercado y los intereses de los sectores dominantes de una manera mucho más contundente que en el modelo anterior, relativamente redestribucionista. (García Delgado, 1994; apud Ciccolella, 2011, p. 16) En este sentido, Cicolella (2011, p. 18) plantea que “el capital se transterritorializa, pero los beneficios de la reestructuración no se transocializan”. Por lo cual, desde finales del siglo XX, los procesos de reestructuración económica global han influido a la transformación de la relación entre economía, sociedad y espacio. Se generan por un lado, nuevas estructuras territoriales de producción, circulación y consumo, mientras que por el otro lado, se producen nuevas formas de fragmentación socio-territorial. Esta nueva dimensión aborda entonces profundos procesos de exclusión social, ampliando la brecha entre las funciones más valorizadas y las más degradadas, coexistente en el mismo ámbito territorial. Las mismas se desarrollan simultáneamente, a veces sin articularse, sin verse. Por un lado, grupos sociales detentadores de riqueza, considerados ciudadanos de la aldea global, y por el otro, grupos sociales excluidos, marginados. Estos efectos característicos de la ciudad dual aún pueden ser revertidos a través de la creación de políticas socio-territoriales que amortigüen los procesos que conducen a esta fragmentación (Castells e Borja, 2000). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana En Argentina, especialmente desde o a transformar estas áreas en estructuras fines de la década de 1980, con la adhesión parecidas a un parque de diversiones. Como ex trema de políticas neoliberales y la explica Bruttomesso (1993), al visitar estas reforma del Estado se tiende a producir nuevas re-urbanizaciones muchas veces se está un desdibujamiento de los límites entre lo ante la presencia de un deja vu, una sensación privado y lo público, comenzando a afirmar de ya haber estado allí o de no identificar un modelo de ciudadanía privada basada en exactamente en qué parte del mundo uno la auto-regulación. Estas nuevas modalidades se encuentra. Ya que, con el fin de obtener de urbanización y de grandes proyectos de las mayores plusvalías posibles, tienden a renovación en áreas centrales de las ciudades, realizarse operaciones de destrucción del siguiendo a Maristella Svampa (2001), se patrimonio existente como de las marcas de vinculan directamente con el aumento de las identidad propias del lugar y a desencadenar, desigualdades sociales y la crisis del Estado por ejemplo, procesos de gentrificación, es para garantizar la equidad y la seguridad a decir, los habitantes del sector son desplazados todos los ciudadanos. La consolidación de estos por otros de mayor poder adquisitivo. procesos está vinculada a la concentración Los GPU, siguiendo a Carlos Vainer de la riqueza para algunos actores, mientras (2012), también resultan intervenciones que que otros sectores profundizan su nivel de producen e incrementan rupturas urbanas empobrecimiento. De este modo, se ocasionan en diversos temas; por ejemplo, se producen fuertes desigualdades y contrastes en la rupturas: institucionales, políticas, urbanísticas, calidad de vida de la población como también legales, del valor del suelo, simbólicas, se intensifica el debilitamiento de los vínculos escalares, entre otras. Pero las mismas sociales. presentan resultados diversos en cada proyecto Estos proyectos traen consigo numerosas particular. Por lo cual, si bien estos grandes oportunidades de transformación para las proyectos de renovación urbana se han llevado ciudades donde se encuentran, sin embargo, a cabo en numerosas ciudades, es importante para que su resultado sea exitoso, en relación reflexionar sobre cómo y qué efectos producen al incremento de la calidad de vida de todos los mismos en el ámbito local. Para lo cual sus habitantes, se requiere la escucha atenta es necesario discernir si estas intervenciones de todos los sectores de la sociedad y la responden a modelos y demandas exógenas articulación e integración de diversas políticas o si parten de la revalorización de la identidad e intervenciones estratégicas. La experiencia ha local y de la escucha atenta de los reclamos de demostrado, en muchos casos, que las acciones sus ciudadanos. A respecto de estas cuestiones, propuestas se enfocan a responder únicamente vamos a detenernos a continuación en el a determinados intereses económicos, a análisis de los impactos y efectos resultantes repetir modelos genéricos ya realizados en del caso de Puerto Norte en la ciudad de otros países, generalmente muy distintos, Rosario, Argentina. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 563 Cecilia Inés Galimberti Caso Puerto Norte de Rosario productividad, este sector requiere la conexión Proceso de transformación del área de Puerto Norte: de barrio productivo a Gran Proyecto Urbano a estas industrias, se articula un complejo con el resto del país. Es así que, conjuntamente sistema ferroviario2 y se instalan los Talleres del Ferrocarril Central Argentino.3 Sin embargo, con el transcurrir de los En Rosario, es representativo el caso de Puerto años, frente al gran crecimiento que tiene Norte, un sector ubicado estratégicamente en Rosario, especialmente entre la segunda el frente costero de la ciudad con una extensión mitad del siglo XIX y las primeras décadas del de más de 100 hectáreas. El mismo, desde la XX, estas instalaciones quedan localizadas conformación urbana a mediados del siglo XIX, cercanas al área central de la ciudad, resulta un ámbito de fuerte carácter productivo, produciendo diversos conflictos urbanos. industrial, ferroviario y portuario. Debido a Por lo cual, parte de la sociedad comienza a sus características, como la accesibilidad al reclamar estos espacios ribereños estratégicos río Paraná y la altura de sus barrancas, se para uso colectivo. De manera que, el Plan instalan diversas industrias, por ejemplo la Regulador de 1952, denominado “Plan primera refinería de azúcar de Argentina en Rosario” y aprobado por Ordenanza nº 1.030, 1886. Este perfil productivo se consolida en propone trasladar las instalaciones del Puerto los años siguientes, con nuevas instalaciones Norte hacia el sur de la ciudad. No obstante, industriales 1 y portuarias, consolidando un diversas vicisitudes político-institucionales barrio obrero industrial. Dado su alto nivel de postergan dicho objetivo. Figura 1 – Ubicación Puerto Norte en la ciudad de Rosario, Argentina Fuente: Elaboración propia. 564 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana Posteriormente, esta decisión es ratificada Sin embargo, durante el régimen de por el Plan Regulador Rosario del año 1967. dictadura militar entre los años 1976-1983, se Este documento plantea “el desmantelamiento suceden numerosas y diversas violaciones al de todas las instalaciones portuarias existentes Plan Regulador y al Código Urbano de 1968. en el Área de Puerto Norte, que incluye sectores Por ejemplo, en el sector de estudio, se otorgan de propiedad privada también destinadas al como cesión gratuita terrenos de propiedad uso portuario, reemplazándolas por nuevas del Estado Nacional a firmas privadas, como instalaciones, a construir, en el Puerto Sur”, a Genaro García S.A., a fin de posibilitar el fin de recuperar “un amplio frente urbano que emplazamiento de nuevas instalaciones posibilite la parquización de espacios libres” portuarias en este sector. También, durante (Municipalidad de Rosario, 1967). Asimismo, este período se concreta la adquisición de la este plan propone una reestructuración Unidad 1 del puerto por parte de la Federación ferroviaria a través de la simplificación de esas Argentina de Cooperativas Agrarias – F.A.C.A, infraestructuras. De manera que, el Código también en discrepancia con las disposiciones Urbano, instrumento clave del Plan Regulador normativas mencionadas anteriormente. de 1968, identifica al área de Scalabrini Ortiz No obstante, con el retorno democrático y Puerto Norte, como distrito R5, identificado definitivo para Argentina, en 1983, se retoman como sector de reserva urbana. las disposiciones de liberar este sector de Figura 2 – Foto aérea antes del comienzo de la renovación urbana Plan Especial de Puerto Norte: Barrio Refinería, Talleres F.C.C.A, unidades productivas-portuarias Puerto Norte Fuente: Elaboración propia en base a archivo Secretaría de Planeamiento MR, Museo Itinerante Barrio Refinería. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 565 Cecilia Inés Galimberti actividades productivas y se apela a recuperar Ferrocarriles Argentinos en 1996 posibilitan dichas tierras para nuevos usos. De manera la ejecución de proyectos de reestructuración que, luego de décadas de litigio legal, se ferro-urbanística, a fin de avanzar en la logra liberar este sector de usos productivos- desafectación de instalaciones y terrenos portuarios y se desarrolla, desde la Secretaría ferroviarios para su utilización en diversos de Planeamiento de la Municipalidad de proyectos urbanos. Rosario, un nuevo modelo de gestión y Desde el Municipio de Rosario se concertación público-privado a través de propone la refuncionalización de este ámbito, elaboración del Plan Especial de Puerto Norte. para lo cual se realizan diversas fases de En el mismo se divide al sector en unidades transformación. El primer paso de reconversión de gestión que se proyectan en sucesivos se realiza bajo el proyecto denominado Planes de Detalle. El proceso normativo que “Centro de Renovación Urbana Scalabrini posibilita la reestructuración de esta zona Ortiz”, a través del programa de urbanización urbana estratégica comienza a vislumbrarse especial aprobada su Fase n. 1 en 1996 y su en la década de 1990. La Ley Nacional de Fase n. 2 en el año 2005, por Ordenanza n. Cesión de Tierras de 1992 y el Convenio 7.892, conocida comúnmente como “Plan Marco entre la Municipalidad de Rosario y Especial de Puerto Norte”. Figura 3 – Primera y segunda fase Plan Especial Puerto Norte Unidades de Gestión Fuente: Elaboración propia. 566 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana La primera fase se aprueba por la 4 dicha normativa, la propuesta es “ofrecer Ordenanza n° 6.271/96, y en la misma se un programa alternativo y complementario especifican diversos equipamientos urbanos, a los valores existentes en el área central, servicios y demás ámbitos públicos a crear, un lugar para los nuevos temas y no para como los nuevos usos e índices edilicios el traslado de los existentes (…) constituir permitidos. La Ordenanza n° 6.895 / 99, una alternativa de modernización del centro aprueba el anteproyecto urbanístico de esta tradicional de la ciudad”. 5 primera etapa. La segunda fase, consiste en En el año 2004, se realiza un convenio la reestructuración de Puerto Norte, Patio entre la Municipalidad de Rosario y el Colegio Cadenas y Balanza Nueva. En la misma se de Arquitectos de la Provincia de Santa Fe para define al nuevo sector de Puerto Norte como la organización del “Concurso Nacional de un parque poli-funcional que contemple la Anteproyectos e ideas para la definición del construcción de viviendas, parque público Plan General para la segunda fase del Centro y edificaciones destinadas a otros usos, de Renovación Urbana Scalabrini Ortiz”. En el especialmente recreativos. Según plantea mismo, obtiene el primer premio el equipo de Figura 4 – Imágenes del proyecto ganador del Concurso Internacional de Ideas para Puerto Norte Fuente: Archivo Secretaría de Planeamiento MR. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 567 Cecilia Inés Galimberti trabajo liderado por el Arq. Juan Munuce. La memoria descriptiva del proyecto propone: Nos interesa construir un trozo incompleto de ciudad…un tanto defectuoso…inconcluso…que se mezcle con ese tiempo [el tiempo acumulado y con la vaguedad formal del área] sin dar demasiadas lecciones acerca de la ciudad futura. […] Pensamos que esta arquitectura debería tener un descanso merecido, por eso solo limpiamos los medianeros de chapas oxidadas para construir el vacío necesario. […] El edificado es concebido como un plegado que varía su altura produciendo llenos y vacíos que son patios y terrazas de casitas sobre un jardín de silos abandonados. […] Este proyecto quiere ser un vacío sobre el vacío existente. Nos interesa construir el baldío en el baldío. Un trozo donde la ciudad se suspende alegremente para inquietar los ojos aturdidos de tanta ciudad reglada de tanta libertad vigilada… (Munuce, 2004) En el año 2005, a través de la Ordenanza N° 7.892, se aprueba la segunda fase de esta renovación urbana. Ésta comprende tierras del Estado nacional administradas por el ONABE (Organismo Nacional de Administración de Bienes del Estado) y predios privados sujetos a reconversión, correspondiente en su mayoría a empresas cerealeras: FACA S.A., A.F.A, SAFAC S.A., Agroexport, Servicios Portuarios Unidad III, Inversiones y Mandatos S.A., Silos Minetti S.A. Se definen así, a través de convenios público-privados nuevos indicadores urbanísticos, usos del suelo y modalidades de ocupación admitidos. Éstos se fijan en relación a las previamente definidas “Unidades de Gestión”.6 El cuerpo normativo completo de Puerto Norte queda compuesto entonces, por una ordenanza básica y siete ordenanzas complementarias, vinculadas a cada unidad de gestión. El Plan Especial de Puerto Norte se encuentra en distintas etapas de desarrollo, El jurado de dicho concurso considera ya que si bien algunas unidades de gestión se acertada la revalorización de los edificios encuentran finalizadas, otras están en proceso patrimoniales propuestos, como también de construcción, mientras que hay unidades la permeabilidad espacial y visual que se todavía en estudio normativo. Sin embargo, a logra según el emplazamiento de las nuevas pesar de que este gran proyecto de renovación construcciones. No obstante, plantean que urbana se encuentra en curso, podemos realizar existen falencias e indefiniciones, por lo cual diversos análisis críticos en relación a diversos recomiendan al municipio a profundizar y impactos normativos, económicos, sociales, definir técnicamente esta propuesta. Sin territoriales y materiales. De manera que a embargo, paradójicamente, la nueva propuesta, continuación, vamos a focalizar el estudio de dista ampliamente del proyecto ganador del las políticas públicas de la renovación urbana concurso y se establecen incluso directrices de Puerto Norte a través del análisis crítico de opuestas a las establecidas en el mismo. los siguientes temas: 568 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana Figura 5 – Unidades de Gestión Fuente: Elaboración propia en base a Secretaría de Planeamiento MR. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 569 Cecilia Inés Galimberti Actualización normativa. Nuevos condominios privados frente a procesos de segregación social mayores distorsiones en el siempre contradictorio funcionamiento del mercado de tierra urbana al nivel general. (Lungo, 2005, p. 56) Los GPU contemporáneos, como explica En este sentido, la Secretaría de Vainer (2012), nos presentan nuevas formas Planeamiento de la Municipalidad de innovadoras de relación entre capitales Rosario, desarrolla diversos instrumentos privados y gobiernos a través de las particularizados para llevar a cabo proyectos asociaciones público-privadas. No obstante, las específicos de renovación urbana. En Puerto mismas encubren conflictos duales y efectos Norte, se aplica la figura de Plan Especial, contradictorios. Ya que, si bien este instrumento definido como el “instrumento técnico para posibilita al Estado llevar a cabo grandes programar la transformación física y funcional proyectos –“con una eficacia gerencial”– que se propone para un determinado sector de que no podrían efectuarse, en los mismos la ciudad”, que se aplica para la “reconversión términos, sin la participación privada; por de grandes áreas urbanas que se encuentran otro lado, el rol del Estado se desdibuja frente desafectadas de su uso original o vacantes a los intereses especulativos del mercado de uso” (Municipalidad de Rosario, 2011). inmobiliario, tendiendo a posicionarse como A través de este instrumento, se establecen un mero facilitador de los mismos. Por ejemplo, indicadores diferenciales al resto de la ciudad se conforma un nuevo espacio normativo “a para reconvertir esta área desafectada de su medida” que genera una ruptura con el marco uso original y definir nuevas directrices para su normativo general. reurbanización. Debido a que la propiedad de la tierra en este sector corresponde tanto a actores públicos como privados, se aplican instrumentos de gestión para la concertación, especialmente bajo la figura de los Convenios Urbanísticos. 7 Ésta figura normativa resulta el medio a través de la cual se establece el acuerdo entre la Municipalidad de Rosario y los actores privados para la reconversión de dichos predios, sectorizados en unidades de gestión. Este acuerdo se encuentra íntimamente asociado a la rentabilidad del suelo, al rol de los promotores inmobiliarios y a la tendencia de las políticas públicas a ser reguladas bajo lógicas empresariales. Según explica Cuenya (2012), se registra un nuevo paradigma empresarial en el sector público, frente a De este modo, se crean nuevas reglas particulares para estos espacios – en relación a las alturas permitidas, los índices edilicios y de ocupación del suelo, la autorización de nuevos usos, entre otros –, que generalmente carecen de un estudio particularizado respecto al entorno del sector en cuestión. Es decir, se denota la carencia de una estrategia de buffer zone a través de la cual se produzca una transición armoniosa con la regularización vigente del resto de la ciudad. Dado que, como explica Lungo: [...] en la medida en que los grandes proyectos urbanos no se articulen a una estrategia para el conjunto de la ciudad, se pueden generar consecuencias negativas de distinta índole, e introducir 570 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana las asociaciones entre actuaciones públicas cual, éste también demanda beneficiarse de las e inversiones privadas, dado que se tiene plusvalías resultantes. como objetivo la atracción de promotores No obstante, como señala Cuenya para financiar el desarrollo urbano, generar (2009), generalmente los mecanismos que ventajas competitivas y asegurar una imagen dispone el Estado para la captación de atractiva de la ciudad a fin de crear nuevas plusvalías no están adaptados para ese fin. Es estrategias de marketing urbano. El Estado, decir, se registra tanto una carencia de criterios entonces, se encuentra influenciado por e instrumentos adecuados para dimensionar las lógicas del sector privado y a través de en términos económicos los beneficios diversos instrumentos propone obtener resultantes, como también de estrategias parte de los beneficios de rentabilidad que para efectivizar su distribución y equidad en sus regulaciones normativas e inversiones términos socio-territoriales. contribuyen a generar. En palabras de Cuenya: Conceptualmente la noción de nueva política urbana del gobierno local sintetiza los nuevos ingredientes que adquieren particularmente las políticas de regeneración urbana en las últimas décadas: por un lado, un fuerte apoyo estatal al capital privado para la revitalización de la ciudad, en donde ésta aparece como “negocio”. Por otro lado, un régimen político urbano en el cual los intereses públicos y privados se amalgaman para definir las decisiones de gobierno. (2012, p. 35) En este caso particular estudiado, la Municipalidad de Rosario crea instrumentos de captación de beneficios del Desarrollo Urbano a través de la figura denominada “Uso del mayor aprovechamiento urbanístico”, a través de la cual los actores beneficiados por las nuevas normas deben efectuar un aporte económico a modo de “precio compensatorio”, que será derivado a un fondo para la construcción de diversas obras para beneficio público, ya sea en el mismo sector o en otro. Sin embargo, es importante remarcar que estos instrumentos han sido desarrollados En este sentido, estos grandes proyectos durante el transcurso de la ejecución del Plan de renovación urbana resultan medios de Especial Puerto Norte – Fase II. Por lo cual, en generación de plusvalías urbanas, 8 en los las primeras unidades de gestión realizadas no cuales el Estado cumple un rol central. Por fueron aplicados; y en el resto de las unidades, un lado, éste suele ser propietario, al menos al encontrarse mayormente en curso, todavía en parte como ocurre en Puerto Norte, de los no se puede medir su éxito – en relación grandes sectores a refuncionalizar. Por el otro, a la equidad distributiva de los beneficios como ya mencionamos, es el encargado de resultantes a toda la sociedad en su conjunto. establecer nuevos indicadores normativos que Además, es importante señalar que inciden en gran medida en los cambios de la mayor parte de las unidades de gestión valorización del suelo. Asimismo, también el proponen en sus proyectos condominios Estado es el responsable de la realización de privados para clases de alto poder adquisitivo, obras e infraestructuras que contribuye a la en conjunto con sectores comerciales y de valorización progresiva de estas áreas. Por lo servicios de alta categoría. De manera que, si Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 571 Cecilia Inés Galimberti bien este Plan Especial se encuentra todavía en De manera que, siguiendo a Cuenya construcción, las rejas perimetrales de aquellas (2004), del otro lado se ubican diversos actores unidades ya terminadas recuerdan las barreras perjudicados, entre los que se encuentran: pertenecientes a las instalaciones ferro- los habitantes localizados en asentamientos portuarias negadas durante tantas décadas. irregulares dentro de las parcelas de La situación se agrava frente a la renovación urbana -o sectores aledaños a las segregación social existente en este sector, mismas-; los residentes del barrio en el cual dado que, por fuera de dichas rejas, estas se localiza el desarrollo del GPU, que frente unidades de desarrollo inmobiliario para clase a la suba de los valores del suelo, pueden ser alta y media-alta lindan con asentamientos afectados por procesos de gentrificación; y, los irregulares y unidades habitacionales precarias, actores vinculados a actividades usuales del que simplemente han sido dejadas de lado área, que cambia su dinámica tradicional por en el desarrollo del proyecto general. Con lo nuevas demandas. cual, se agrava el escenario de desigualdad y exclusión que padecen estos grupos sociales. Parecería, entonces, que los límites presentes en este sector urbano han cambiado Figura 6 – Condominios privados junto a asentamientos irregulares Fuente: Fotografías de la autora. 572 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana de dueño y de nombre, pero siguen presentes, Sin embargo, el proyecto de Puerto Norte material e inmaterialmente, en el imaginario con el transcurrir de las décadas termina siendo colectivo y en el reclamo por la apropiación de absorbido por la maquinaria inmobiliaria estas tierras para la sociedad en su conjunto. especulativa. Gran parte del espacio destinado Frente a la realidad político-económica a usos recreativos propuesto en 1999 es de Argentina en las últimas décadas, los posteriormente privatizado quedando dentro modelos de “gestión empresarial” afrontados de las unidades de gestión mencionadas y, el por parte de la administración pública espacio público resultante – con excepción del lamentablemente tienden a profundizar la parque Scalabrini Ortiz –, en términos generales brecha entre las desigualdades urbanas y a resulta una sumatoria de espacios intersticiales contribuir a la fragmentación por sobre la y de componentes viales, sin equipamiento articulación del territorio. apropiado a fin de garantizar una apropiación colectiva del mismo. De manera que, en este caso de estudio Recuperación de espacios públicos los intereses privados tienden a producir una topofagia urbana del espacio público. Puerto norte se posiciona desde mediados Es importante remarcar que la recuperación del siglo XX en un tema de reclamo continuo cuantitativa de éste no asegura una verdadera de parte de diversos actores que solicitan publicidad 9 del espacio. Producir espacio público requiere intencionalidad, proyecto, escucha atenta a las voces colectivas – de quienes eligen y se apropian del mismo cotidianamente. Es decir, su definición no se limita a aquello que no corresponde a la propiedad privada, sino que debe incluir intrínsecamente en su desarrollo al rol de la identificación territorial y al intercambio con el otro. Esta marginalización del espacio por sobre el poder de la especulación, como explica Alberto Magnaghi (2011) ha generado, por un lado, la hipertrofia de la funcionalidad y del tráfico operativo y, por el otro, la hipotrofia de las relaciones sociales y del habitar. Si entendemos al espacio público como “un espacio simbiótico en el sentido que genera integración, articulación, encuentro y conectividad de los distintos”; lo cual se logra a través de dos determinaciones: 1) “Que le da recuperar el frente fluvial y grandes áreas urbanas centrales para uso público, a fin de restituir el anhelado diálogo con el río Paraná. Este reclamo se registra tanto desde el público en general, como en los instrumentos técnicos de planificación estatal. La sucesión de planes urbanos desde 1952 así lo registra. Como propone el Plan Director de 1999: La renovación de Puerto Norte es una aspiración histórica y representa una de estas oportunidades a las que un Plan debe estar atento, y porque también significa el lugar capaz de catalizar el ideario colectivo de recuperación de la costa y modernización de la ciudad (…) con paseos y avenidas junto a la costa, parques y ramblas sobre la barranca, donde descubrir una perspectiva inédita de la ciudad y el río. (Municipalidad de Rosario, 1999) Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 573 Cecilia Inés Galimberti Figura 7 – Rejas y reclamos de la transformación del Plan Especial de Puerto Norte Fuente: Fotografías de la autora y argentina.indymedia.org sentido y forma a la vida colectiva mediante la integración de la sociedad”, y 2) “que le da un orden y unidad a la ciudad a través de su cualidad articuladora estratégica” (Carrión, 2005, p. 46); el rol del mismo y su producción debe resultar de atención prioritaria en el desarrollo de los GPU. Según exponen Borja y Muxi (2000), el espacio público debe garantizar la apropiación de diferentes colectivos sociales y culturales en términos de igualdad. A través de éste se define la calidad de la ciudad, la democratización de la misma. En este sentido, estos autores plantean que: La paradoja de la ciudad de economía capitalista ( Har vey) es que por una p a r te n e c e sit a e l e s p a cio p ú b lico 574 para su funcionamiento y para la gobernabilidad del territorio y por otro lo niega tendiendo a convertirlo en un espacio residual o “especializado” […]. La separación espacio privado- e spacio público y el d ominio d el primero sobre el segundo, la reducción de los espacios públicos a funciones monovalentes y la multiplicación de espacios segregados y privatizados de todo tipo son indicadores de una sociedad urbana clasista y desigual. […] En consecuencia el objetivo común democrático de los gobiernos locales, de los movimientos sociales y de los profesionales del urbanismo es desarrollar políticas y proyectos que den prioridad al espacio público. (Borja y Muxi, 2000, p. 76) Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana El sector de Puerto Norte representa una gran marca identitaria del territorio a priori por éste último, y 3) El que el Estado cede ante la presión del mercado inmobiliario. metropolitano. Siguiendo el pensamiento de Se considera que forman parte del primer Solá Morales (1996), consideramos que para grupo, las propuestas de preservación cuyo actuar desde la arquitectura y el urbanismo en leitmotiv consiste en conservar el patrimonio para las generaciones futuras a través de una respetuosa valorización de su existencia. Esto se logra a través de una mirada atenta al mismo en relación a su historia y a la identidad propia del territorio. Para lo cual, es necesaria la participación activa de todos los ciudadanos – y no sólo de técnicos o promotores inmobiliarios. Esto sucede cuando la propia comunidad se involucra en el reclamo de la valorización de las huellas territoriales. Por ejemplo, en el sector de estudio, se destaca la rehabilitación y puesta en valor del Complejo Arquitectónico Patrimonial “Parque Scalabrini Ortiz”.11 En el segundo grupo se encuentran aquellas intervenciones en las que, si bien la presión del capital y del poder privado sea muy fuerte, el Estado prevalece en la definición de los lineamientos de preservación patrimonial. Resulta ejemplo de esto, la primera fase del Programa de Urbanización especial del Centro de Renovación Urbana Raúl Scalabrini Ortiz – Área Talleres (Sector 4 – Distrito R5-2c).12 Finalmente el tercer grupo, comprende los casos de recualificación urbana en donde la presión del mercado inmobiliario arrasa con las huellas identitarias, las lógicas propias del barrio y sus habitantes. Es decir, se utilizan los recursos patrimoniales como una estrategia de marketing comercial. En estos casos se denota un débil accionar del Estado, ya que éste sucumbe a las demandas del privado. Por ejemplo, la reconversión urbana que sucede en las siete unidades de gestión del Plan Especial Puerto Norte. En estos espacios, vacíos urbanos, es necesario partir de la escucha atenta de los flujos, las energías, los diversos ritmos que ha establecido el paso del tiempo y la pérdida de los límites. La ordenación urbana de estos ámbitos no puede consistir en una mera reordenación urbanística para que se integren nuevamente a la trama eficiente y productiva de la ciudad – aquella ciudad reglada de tanta libertad vigilada que se hacía referencia en el proyecto ganador del concurso nacional de ideas. Consideramos que de hacerlo, corremos el riesgo de cancelar el poder y la riqueza de la ausencia y el vacío. Por lo tanto, resulta necesaria una atención integrada, tanto desde las nuevas arquitecturas y la innovación como de los valores de la memoria, a fin de mantener viva la expresión urbana de este territorio. Sino, podemos caer en la tentación de convertir este lugar en otro. Políticas de preservación de los componentes productivos identitarios Los lineamientos de preservación resultan muy diversos y arbitrarios en este sector. Identificamos, a nivel general, tres modelos de protección patrimonial,10 o bien, tres modos de posicionarse frente al mismo: 1) El promovido desde el Estado como defensor de los bienes colectivos; 2) El que se encuentra en litigio entre la presión del mercado y el poder público, pero que prevalecen los criterios considerados Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 575 Cecilia Inés Galimberti Figura 8 – UG 2: Ciudad Ribera. Fragmentos a preservar Fuente: Ordenanza n° 8.237/08 – Municipalidad de Rosario. Figura 9 – UG 2: Ciudad Ribera. Fragmentos preservados – estado de situación año 2014 Fuente: Fotografías de la autora. 576 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana este caso, el conjunto unitario existente de instalaciones productivas-portuarias resulta Reflexiones finales desmembrado, seccionado y demolido sectorialmente. Se dejan algunos fragmentos Frente a los cambios acontecidos en las de algunos componentes edilicios históricos últimas décadas, vinculados a las dinámicas perdidos entre nuevas masas edificadas. Se económicas, del mercado y la globalización, “preservan” pequeños pedazos inconexos, se producen transformaciones en las políticas inconclusos. Por ejemplo en la Unidad de públicas locales. Por ejemplo, en gran parte Gestión n° 2 – sector 2 llamada “Ciudad de las ciudades a nivel mundial se realizan Ribera”, se mantiene sólo un fragmento reconversiones de áreas degradadas, de los silos existentes en el predio, como localizadas en sectores estratégicos, con el también sólo una fracción de otra edificación fin de dar lugar a nuevos usos. Es así que la considerada de valor patrimonial. generación de nuevos condominios privados, Estas políticas se avalan a través para sectores de alto poder adquisitivo, resulta de la Ordenanza n° 8.237/08, en la que a uno de los programas más elegidos en estas pesar de definir a este sector como Área de operaciones de renovación urbana, tal es el Preservación Histórica: “reconociendo en la caso de Puerto Norte en Rosario. Si bien este suma de edificios de Valor Patrimonial un sector es reclamado durante décadas por conjunto de gran significación histórica, donde gran parte de la ciudanía – para la creación se encuentren numerosos testimonios de los de nuevos espacios públicos –, el mercado procesos productivos que se dieron en este inmobiliario finalmente se posiciona como sector de la costa”, únicamente se considera motor principal en su transformación definitiva. la preservación de tramos discontinuos. Ahora bien, ¿qué lecciones nos brinda Un tratamiento similar de preser vación este caso de estudio? ¿Qué aportes otorga patrimonial se realiza en el resto de las al debate en torno a grandes proyectos de unidades de gestión. Este accionar nos llama renovación urbana? Son diversas las temáticas, a reflexionar sobre nuestro legado histórico y involucradas en el desarrollo del proyecto de sobre la presión del laissez-faire de la economía Puerto Norte, que contribuyen a generar nuevas y de la predominancia de los intereses privados reflexiones en pos de mejorar los efectos por sobre los bienes colectivos. El debate del resultantes de los GPU. Entre ellas podemos significado de la revalorización patrimonial mencionar: a) el rol de los Concursos de Ideas y sobre “¿qué estamos preservando?” debe y la importancia que éstos sean vinculantes ser un debate vivo, activo – no de puertas al desarrollo del proyecto. Recordemos que, cerradas –, en el cual deben participar todos en este caso de estudio, se establecieron los actores de la sociedad y no sólo los grandes lineamientos contradictorios a los propuestos grupos económicos. por el proyecto ganador, por ejemplo en Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 577 Cecilia Inés Galimberti relación a la preservación de la identidad sectores involucrados y otras más atentas a las del sector; b) la necesidad de profundizar presiones económicas. los instrumentos de gestión, planificación y Vemos entonces, que el poder del capital captación de plusvalías; y estudiarlos, como sus y las potenciales plusvalías urbanas influyen posibles efectos e impactos, a priori del inicio ampliamente en la definición y delineación del desarrollo del proyecto; como también, de las políticas públicas. De manera que, focalizarse en la articulación de estas normas la administración estatal se posiciona específicas con el resto de la normativa general como medio posibilitante de la maquinaria de la ciudad. En Puerto Norte, la figura del especulativa inmobiliaria, cediendo ante la Plan Especial se inserta generando una gran presión de los grandes promotores. Si bien el ruptura frente al resto de la ciudad donde Estado aplica instrumentos de captación de se localiza; produciendo diversos impactos plusvalías para beneficio público, los mismos y efectos, gran parte de ellos negativos. Por no resultan suficientes para contrarrestar este motivo, se considera necesario el estudio las problemáticas que suceden en las áreas de los sectores de transición, buffer zone, con lindantes a estos proyectos. A su vez, durante el fin de lograr una articulación urbana más el desarrollo de la definición de las políticas armoniosa; c) la obligación de fortalecer el a aplicar no se realiza un análisis crítico rol del Estado en todo el proceso, tanto en complejo que involucre los diversos temas y las definiciones proyectuales iniciales, como sectores, perjudicados y beneficiarios, que durante el proceso de desarrollo y ejecución. conforman la ciudad. En este aspecto, resulta esencial la atención Se comprueba que, a pesar del acerca del desarrollo de espacio público y de aparente éxito de estos grandes proyectos infraestructuras para beneficio de todos los de renovación – ya sea por la rehabilitación ciudadanos y no sólo de aquellos vinculados de sectores degradados, la generación de específicamente al proyecto especial; d) una nueva imagen de marketing urbana, incrementar el consenso, coordinación y la obtención de plusvalías, entre otros –, participación multiactoral durante todo el también se desencadenan diversos efectos proceso, escuchando todas las voces existentes negativos. Por lo cual, estos conflictos en la ciudad; e) los Grandes Proyectos Urbanos, deberían ser previstos a través de un amplio deben resultar atentos a la identidad del sector y detallado análisis de los diversos temas donde se localizan. Para lo cual, se requiere claves tanto en las etapas de proyecto como fortalecer estrategias de preservación de las de desarrollo. Los instrumentos de gestión no marcas materiales e inmateriales existentes. deben centrarse únicamente en la definición Vemos que en Puerto Norte, se han tomado de indicadores edilicios, de usos, factores decisiones muy diversas respecto a esta de ocupación del suelo y de las plusvalías problemática, algunas de escucha atenta a los resultantes. Sino, deben abordarse desde las 578 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana problemáticas complejas y multisectoriales de transformación de la ciudad, sino en que implican los mismos, tanto a corto, el reclamo y control del cumplimiento de mediano como a largo plazo. los intereses colectivos. Ya que cuando el En este sentido, resulta fundamental el Estado es liderado por lógicas empresariales papel activo y permanente de la participación y pone en riesgo los recursos públicos, sólo pública y de todos los ciudadanos. No el accionar social colectivo puede frenar y solo en la definición de las propuestas revertir procesos en curso. Cecilia Inés Galimberti Universidad Nacional de Rosario, Facultad de Arquitectura, Planeamiento y Diseño, Área de Teoría y Técnica Urbanística y Área de Historia de la Arquitectura. Rosario, Argentina. [email protected] Notas (1) Por ejemplo: la Cervecería Quilmes, la Arrocera Argen na, la aceitera Santa Clara y posteriormente la Maltería SAFAC, en la ex Refinería de azúcar. (2) Son tres las empresas ferroviarias que atraviesan este sector: Ferrocarril Córdoba/Rosario, Ferrocarril de la Provincia de Santa Fe y Ferrocarril Rosario/Buenos Aires. (3) Por este mo vo, la urbanización que surge en torno a estas instalaciones se denominan Barrio Refinería y Barrio Talleres. (4) Como se establece en la Ordenanza n° 6.271/96, se define a la primera fase del Desarrollo del Centro de Renovación Urbana Scalabrini Ortiz “al proyecto de urbanización de la vialidad primaria estructural, de los servicios y equipamientos urbanos concentrados y de los ámbitos públicos a crear que, sobre las áreas inicialmente disponibles, permita originar condiciones de nuevas centralidades urbanas y locales capaces de equipar y caracterizar en sus valores urbanos las sucesivas fases de desarrollo”. (5) Las instalaciones y vías ferroviarias existentes en este sector que incluyen Playa Balanza Nueva y Pa o Cadenas, junto con la ya recuperadas de Talleres, el ahora Parque Scalabrini Or z, suman 148 Has. (6) Las mismas se demarcan según siete polígonos y se las identifica como unidades de gestión, en función de la propiedad de la erra o de las diferentes modalidades de organización entre propietarios, las cuales se aprueban en normas complementarias. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 579 Cecilia Inés Galimberti (7) Responde a las asociaciones público-privadas que nos referíamos en los párrafos anteriores. Esta figura es un instrumento que formaliza el acuerdo entre la Municipalidad de Rosario y organismos públicos y/o actores privados o mixtos, para impulsar acciones de nueva urbanización, reconversión, reforma, renovación, rehabilitación y/o sus tución urbana. (8) Se en ende por plusvalías urbanas a “la valoración del suelo que se genera durante el proceso de producción de los proyectos, en función de los cambios urbanís cos notables que enen lugar en las áreas estratégicas donde ellos se localizan” (Cuenya, 2012, p. 14). (9) Referido al carácter público del espacio. (10) Es de remarcar que consideramos que las intervenciones que corresponden a uno u otro modelo no se definen ni por la propiedad jurídica del inmueble, ni por el grado de preservación propuesto. Es decir, no se considera que las obras que prác camente no pueden modificarse corresponden al primero y las que se permite un alto grado de cambio forman parte del tercer modelo. Sino, se iden fican estos modelos en relación a qué es definido patrimonio y cómo es tratado este recurso en pos del beneficio de toda la población. (11) Se destaca la refuncionalización de los ex talleres del Ferrocarril Central Argen no en un nuevo complejo educa vo en los que se localizan la sede de la Regional VI del Ministerio de Educación y los talleres de las escuelas técnicas n° 471 y n° 467. Este proyecto ha sido realizado desde una mirada sensible a las marcas patrimoniales. Si bien se readapta a nuevos usos, en relación a las necesidades actuales de la población, se ha restaurado respetando las lógicas propias de los componentes. Es decir, la nueva construcción no interviene en los muros existentes en la inauguración de los talleres; se restauran todas las fachadas conservando las aberturas originales; se readecuan los accesos reinsertándolos en la trama urbana, pero respetando la jerarquización del conjunto edilicio; se pone en valor la totalidad de la estructura metálica original; entre otras acciones. Es de remarcar que aún se encuentran en curso diversos proyectos de rehabilitación patrimonial de este complejo; por ejemplo, el plan de revalorización del denominado barrio inglés, a través del cual se plantea restaurar los edificios residenciales del Ba en Co age y el Morrison Building. (12) Este sector urbano, perteneciente al Estado nacional, es adquirido por firmas privadas, Alto Palermo S.A. y Coto C.I.C.S.A, a fin de realizar un centro comercial. A pesar de las disputas en torno a las demandas del privado versus los lineamientos planteados por el Estado, éste úl mo define previamente las polí cas de intervención y los componentes patrimoniales a restaurar y preservar. Referencias BORJA, J. e MUXI, Z. (2000). El espacio público, ciudad y ciudadanía. Barcelona, Electa. BRUTTOMESSO, R. (1993). Waterfronts. A new urban fron er for ci es on water. Veneza, Centro Internazionale Ci a d’acqua. CARRIÓN, F. (2005). “El centro histórico como objeto de deseo”. In: CARRION, F. y HANLEY, L. (eds.) Regeneración y revitalización urbana en las Américas: hacia un Estado estable. Quito, Flacso. 580 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016 Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana CASTELLS, M. e BORJA, J. (2000). Local y Global. México, San llana Ediciones Generales. CICCOLELLA, P. (2011). Metrópolis la noamericanas: más allá de la globalización. Quito, Olacchi. CUENYA, B. (2009). 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Configuram-se sob célere qualificação/desqualificação de espaços pela redefinição de funções, criando territórios extensos, permeados por vazios. São representativos do estágio contemporâneo da metropolização, que passa a engendrar novas morfologias urbanas, articuladas e densas, ao mesmo tempo descontínuas, que sustentam a ampliação geográfica do processo de acumulação. Tomando como objeto o arranjo Brasília-Anápolis-Goiânia, discutem-se, neste artigo, suas atuais dinâmicas de expansão, a ação do setor imobiliário, sob forte influência da renda gerada pelo agronegócio, e as implicações regionais. Com particularidade no modelo de expansão de Goiânia e Anápolis, busca-se mostrar que a riqueza gerada no entorno induz a valorização urbana, contudo não rompe a desigualdade existente, que se acentua ao serem criados espaços cada vez mais fragmentados. Abstract Urban-regional arrangements are a socio-spatial category that articulates agglomerations and centers in one unit. They are configured under a fast qualification/disqualification of spaces through redefinition of functions, and create extensive territories permeated by urban voids. This category is representative of the contemporary stage of metropolization, which has started engendering new urban morphologies that are articulated and dense, but discontinued, and support the geographical enlargement of the accumulation process. Having as object the Brasília-Anápolis-Goiânia arrangement, we discuss, in this article, its current expansion dynamics, the action of the real estate industry, under the strong influence of income generated by agribusiness, and regional implications. Specifically in the expansion model of Goiânia and Anápolis, we attempt to show that the wealth generated in the surroundings induces urban valuation without reducing the existing inequality, which is intensified when increasingly fragmented spaces are created. Palavras-chave: arranjo urbano-regional; expansão urbana; mercado imobiliário; Brasília; Anápolis; Goiânia. Keywords: urban-regional arrangement; urban expansion; real estate market; Brasília; Anápolis; Goiânia. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3613 Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura O arranjo espacial em análise compreen- Introdução de mais que essas cidades polos, englobando O arranjo urbano-regional formado por Bra- os municípios de suas regiões de articulação sília, Anápolis e Goiânia caracteriza-se pela imediata (IBGE, 2013). Conforma uma área conectividade e forte dinâmica entre esses nú- extensa, permeada por fluxos e conexões mul- cleos urbanos. Fruto de uma intensa exploração tidirecionais que evidenciam forte grau de arti- capitalista, sobretudo imobiliária, a realidade culação entre si, em um complexo universo de existente nessas cidades tem se transformado relações econômicas, sociais e institucionais. 1 cotidianamente. Em sua composição destacam- Esse padrão de configuração espacial, -se duas cidades construídas para serem capi- morfologicamente descontínuo e expandido, tais: Brasília, capital federal, e Goiânia, capital peculiariza o atual estágio de metropoliza- de Goiás. Anápolis, cidade mais antiga, serviu ção no Brasil e constitui a localização mais de apoio durante o processo de construção propícia para a acumulação do capital, fun- dessas outras duas. O fato de se tratar de ci- damentalmente o ligado à produção imobi- dades planejadas, construídas por intervenção liária. Cabe anotar que, sem a intervenção do poder público, sugere que tais construções de políticas públicas, o espaço objeto desse também tiveram o intuito de favorecer a valori- estudo jamais existiria. Em outras palavras, a zação do capital imobiliário. realidade presente e em constante alteração As políticas de desenvolvimento nacio- no planalto central brasileiro deve-se direta- nal, desde a Marcha para o Oeste, tentavam mente à intervenção estatal, em parceria com fazer dessa região uma grande produtora de o capital privado. alimentos. Após a construção de Brasília, a Tendo como objetivo demonstrar a for- região integrou-se ao restante do País por mação e a composição desse arranjo espacial, uma malha rodoviária, o que favoreceu as mi- o presente artigo estrutura-se em três partes. grações. O caráter econômico, que a princípio Na primeira, apresentam-se o arranjo em si, o sempre se quis dar à região, consolidou-se, a surgimento de cada cidade e seu gradual cres- partir dos anos 1990, com o agronegócio, que cimento. Na segunda busca-se explicar que a contribuiu com o crescimento do mercado imo- dinâmica imobiliária presente nessas cidades, biliário, principalmente nas cidades e em seus em especial em Goiânia e Anápolis, em muito arredores, caso de Goiânia e de Brasília. Com o se parecendo com o que ocorre nas demais ci- tempo, essas cidades foram absorvendo parte dades médias ou grandes do País, é fortemente da renda originada pela dinâmica econômica influenciada pela renda gerada pelo agronegó- que se consolidava na Região Centro-Oeste, cio brasileiro, que no momento é uma das mais oriunda da intensificação do agronegócio, importantes atividades econômicas do País. Na baseado numa produção de commodities al- terceira parte, usando de várias referências es- tamente tecnificada, majoritariamente volta- pecificas, discute-se como a dinâmica apresen- da para o mercado externo e geradora de alta tada expressa a configuração contemporânea renda, particularmente aos empresários da da metropolização, que se sintetiza em morfo- agricultura e pecuária. logias urbanas expandidas. 584 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia Apresentação do arranjo ferroviário e aéreo, fruto de parceria entre o governo federal e estadual, sendo a única experiência desse modelo no País, o que reforçará O surgimento das cidades de Anápolis, Goiâ- a cidade em sua condição de centro logístico nia e Brasília, embora relativamente próximas, de distribuição. deu-se sob circunstâncias diferenciadas no es- Goiânia foi fundada em 1933, para ser a paço e no tempo. Criadas em diferentes épocas, nova capital de Goiás, e é considerada a pri- beneficiaram-se de políticas públicas voltadas meira ação do programa Marcha para o Oes- para grandes projetos que possibilitaram a ins- te, do Governo Vargas, que tinha por objetivo talação de uma infraestrutura que alavancou ocupar a vasta extensão de terras desabitadas seu crescimento. no interior do País. Inicialmente planejada pa- Anápolis tem sua história marcada por ra abrigar 50 mil habitantes, até a década de ter sido ponto de apoio à construção de duas 1970 era considerada uma cidade de médio capitais: Goiânia, de 1933 a 1942, para ser a porte. Sua população não apresentava ten- nova capital de Goiás; e Brasília, de 1955 a dências de crescimento relevante, mas, após o 1960, a nova capital federal. Como ponto fi- surgimento de Brasília e o desenvolvimento do nal da estrada de ferro Mogiana, posição que agronegócio no Centro-Oeste, a imigração para ocupou por muitos anos, por Anápolis chega- Goiânia intensificou-se e ela tornou-se polo de vam pessoas, mercadorias e quase todo o ma- convergência de fluxos populacionais, superan- terial utilizado para a construção dessas novas do, em 2010, 1,2 milhões de habitantes. Nesse cidades. Há que se observar que Anápolis era a processo, passou a configurar uma aglomera- maior cidade do estado de Goiás e por ser pon- ção metropolitana e, com os municípios de sua to final da estrada de ferro funcionava como vizinhança, passou a experimentar grande cres- um polo comercial que abastecia todo o centro cimento populacional. norte de Goiás. Brasília tem origem na concretização de Em 1976, recebeu a instalação do Distrito proposta do Governo de levar a capital fede- Agroindustrial de Anápolis (Daia), primeiro dis- ral para o interior do Brasil. Essa intenção era trito industrial de Goiás, com objetivo de abrigar manifestada desde 1750, ainda no Império, e as indústrias que forneceriam suprimentos para se incluiu na Constituição de 1891; mas so- Brasília, atendendo, assim, à demanda do gran- mente foi executada por Juscelino Kubitschek de surto migratório pelo qual passava a região. nos anos 1950. Construída em um local pra- Por sua privilegiada posição geográfica, ticamente isolado, a nova capital brasileira, Anápolis tem firmado sua condição de impor- inaugurada em 1960, foi projetada para abri- tante ponto logístico, onde se fixam grandes gar 700 mil habitantes em seu Plano Piloto. A empresas nacionais e internacionais que en- população excedente seria destinada a cidades contram facilidades para distribuir seus pro- satélites dentro do próprio Distrito Federal. Aos dutos. Está em fase de implantação, na cidade, poucos, incentivada pela propaganda governa- a Plataforma Logística Multimodal, que reu- mental, foi ganhando população, fundamental- nirá as modalidades de transporte rodoviário, mente migrantes em busca do sonho da “terra Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 585 Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura prometida”. Nos primeiros dez anos, a popu- econômicas complementares se alocaram. Se lação ultrapassou os 500 mil habitantes. Parte a sede dos governos federal ou estadual se dessa grande massa não encontrou espaço nas estabeleceu respectivamente em Brasília e em terras esperadas e teve que migrar para regiões Goiânia, nas cidades vizinhas se instalaram próximas. Esse fato foi provocando, aos poucos, serviços, motivados, muitas vezes, por maio- uma ocupação não planejada ao redor da nova res incentivos governamentais, como obriga- 2 capital federal o que impulsionou a expansão ções fiscais reduzidas e população residente. demográfica de Anápolis e Goiânia, que apre- Para esta, mesmo exercendo atividade econô- sentavam melhores estruturas e se localizavam mica na capital, como trabalho e estudo, era com relativa proximidade. As três cidades cres- preferível pagar menos pela moradia, fazendo ceram juntas a partir da fundação de Brasília, crescer a população dessas cidades periféricas. sob uma dinâmica de crescimento entre as Anápolis, não sendo sede de governo, abrigou mais elevadas do País, trazendo com ela a cres- uma indústria que também fez, crescer dentro cente inserção de municípios periféricos. de seu território ou em seu entorno, atividades Das três cidades, Brasília já nasceu maior terciárias e população. que Goiânia, com quase 30 anos de existên- Proporcionalmente, a Região Integrada cia, e com muita expressividade no cenário de Desenvolvimento do DF (Ride) cresce mais nacional. Em 40 anos, a população de Brasília que a capital (Quadro 2). Brasília, de 1970 se quadruplicou (Quadro 1). Goiânia, relativa- a 2010, teve aumento em sua população na mente, cresceu menos, mas também quadri- ordem de 359,44%, enquanto toda a Ride plicou sua população nesses anos. Anápolis aumentou em 369,05%. Já, em Goiânia, esse manteve crescimento menor que as capitais. aumento foi de 229,99% e 312,71%, respecti- Mesmo assim, de 1970 a 2010, a população vamente para a cidade e sua Região Metropo- anapolina triplicou. litana (RM). Dos três aglomerados, Anápolis foi Essas cidades não cresceram sozi- o único que cresceu mais que seu entorno, na nhas. Em seus entornos foram surgindo cen- ordem de 208,77%, enquanto sua microrregião tros urbanos onde população e atividades sequer dobrou de tamanho, cresceu 86,70%. Quadro 1 – Crescimento populacional das cidades de Brasília, Goiânia e Anápolis (1970 a 2010) Cidade 1970 1980 1991 2000 2010 Brasília 537.492 1.176.908 1.601.094 2.051.146 2.469.489 Goiânia 380.773 717.519 922.222 1.093.007 1.256.514 Anápolis 105.029 180.012 239.378 288.085 324.303 Fonte: Censos Demográficos IBGE. 586 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia Quadro 2 – Crescimento populacional do arranjo espacial Brasília-Goiânia-Anápolis (1970 a 2010) Arranjo 1970 1980 1991 2000 2010 Ride DF/GO/MG 761.961 1.520.026 2.161.709 2.958.196 3.574.040 RM Goiânia 509.570 897.382 1.312.739 1.743.297 2.103.083 MR Anápolis 250.014 307.664 352.080 408.484 466.792 Fonte: Censos Demográficos IBGE. A nova dinâmica econômica do Centro-Oeste brasileiro: o agronegócio Os efeitos dinamizadores desse novo modelo de desenvolvimento tiveram impactos significativos na história econômica brasileira e em especial na região Centro-Oeste, pois a demanda por alimentos foi estimulada pela Não restam dúvidas da importância de Brasília ampliação do mercado interno e pela intensifi- para a transformação e o desenvolvimento do cação do setor industrial. Assim, ampliaram-se Centro-Oeste. Além de tornar a região o centro os vínculos das regiões mais desenvolvidas, co- das decisões políticas e administrativas do País, mo o Sul e Sudeste, com as áreas de produção possibilitou sua integração por meio de uma agropecuária. Esse fator motivou a implanta- malha de rodovias que surgiram no intuito de ção das políticas nacionais de colonização, cujo ligar a nova capital federal às demais regiões exemplo pioneiro foi a Marcha para o Oeste. brasileiras. Não apenas essa rede de transpor- No caso específico do Centro-Oeste, as tes, mas também as diversas políticas públicas políticas propostas pelo Estado nacional sobre- federais que surgiram após a mudança da capi- puseram à formação econômica e social que tal favoreceram as diversas alterações no qua- fora constituída durante o período da minera- dro econômico e social da região. ção, agricultura e pecuária extensivas, já existentes no território, fazendo com que a região passasse a ter maior presença no cenário na- O surgimento de uma nova dinâmica econômica do Centro-Oeste cional. Seu perfil, tanto físico-territorial como produtivo, foi gradativamente sofrendo alterações, na medida em que a oferta elástica de A partir da década de 1930, o Estado brasileiro terras estimulava a penetração de colonos do foi o grande organizador da acumulação indus- Sul e Sudeste e também de estrangeiros, como trial, instituindo políticas de caráter nacional, alemães e japoneses. e promotor da integração do mercado interno, Após o declínio da mineração, a região tornando-se o responsável maior pela abertura se configurou como produtora nos setores de e ampliação das fronteiras de acumulação. pecuária (corte e leite) e agricultura (alimentos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 587 Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura básicos) extensivas. Mais recentemente, a tem integração e interiorização da economia, a se tornado a grande produtora de grãos do fundação de Brasília e a modernização das Brasil (sobretudo soja e milho); além de abrigar vias de transportes, das bases energéticas e várias agroindústrias e algumas consideráveis das telecomunicações. experiências isoladas de indústrias com maior Essa intervenção do Estado brasilei- necessidade de uso de tecnologias, como a far- ro ocorreu através dos diversos programas macêutica e a automobilística. públicos, com destaque aos constantes no I Com o avanço da economia cafeeira de e II PND – Plano Nacional de Desenvolvimen- São Paulo, as transformações na região tiveram to. Eram programas de incentivos fiscais, im- impulso pela necessidade de incorporar novas plantação de infraestrutura básica, pesquisas áreas para abrir novas rotas de penetração. A agropecuárias para melhoramento dos solos ferrovia foi decisiva para impulsionar tal dinâ- dos cerrados e controle de imigrações. Co- mica. À medida que o Centro-Oeste foi sendo mo resultado, nas décadas de 1970 e 1980, o ocupado, passou também a ocupar espaço es- Centro-Oeste passou a apresentar crescimen- pecífico na divisão territorial do trabalho, como to populacional e produtivo mais substanciais. produtor de alimentos e matérias-primas para Importantes empresas agroindustriais de ca- alimentar populações e a indústria do Sudeste. pital nacional ou estrangeiro foram para a re- A modernização das estruturas pro- gião, transformando-a na maior produtora de dutivas do Centro-Oeste começa a mudar a alimentos do Brasil, com estrutura baseada no partir do final da década de 1960, marcada latifúndio e totalmente voltada para o merca- pelo ingresso de novos migrantes e novos pro- do externo. dutos – sobretudo soja –, deslocando os produ- Diante das mudanças nas políticas ma- tos tradicionais de abertura de fronteira, como croeconômicas, que intensificaram a finan- arroz, milho e feijão. Essa ocupação “moderna” ceirização da economia e renovaram as bases promoveu a expropriação de camponeses e pe- produtivas, elevou-se a inserção do País na quenos agricultores tradicionais, literalmente economia internacional, provocando alterações expulsando populações originais e condenando importantes nos padrões de comércio exterior à extinção as economias naturais preexistentes. e alterando as dinâmicas regionais. O territó- As políticas de incentivos públicos também fo- rio brasileiro recebeu diretamente os impactos ram decisivas nesse processo. de uma economia que passa a ser orientada Assim, as décadas de 1960 e 1970 viram por uma nova ordem mundial, inserindo-se de difundir rapidamente, sobretudo nas áreas de maneira passiva no processo de globalização. cerrado do Centro-Oeste, um novo modelo O Brasil passa a atender diretamente aos inte- produtivo com práticas transformadoras da resses do grande capital privado internacional, realidade até então existente. Nesse período, com uma nova estrutura econômica e um novo constituíram-se as bases para a introdução ordenamento territorial (Macedo, 2010). das frentes modernas, que impactaram vigo- O Centro-Oeste, região que sofreu “in- rosamente a economia e a estrutura urbana, volução econômica após a efervescência da como as políticas nacionais de colonização, mineração no século XVIII” (ibid., p. 191), foi 588 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia inserido ativamente nesse processo. Nas duas lavoura rica em técnicas. A terra passa a ficar últimas décadas vem se destacando como a re- mais concentrada e valorizada, e a produção gião mais dinâmica do agronegócio brasileiro, cresce gradualmente ano a ano, de forma tão concentrando produção e renda. É a segunda extraordinária quanto o seu crescimento de- região brasileira em extensão territorial e em mográfico, queconfirma o caráter produtivo da grau de urbanização, porém é a que apresenta região. De 1965 até 2010, a região elevou sua menor densidade demográfica. Considerando área de plantio de pouco mais de 2 milhões pa- que se trata de uma exploração agrícola desa- ra 16 milhões de hectares (Quadro 3). gregadora que, além de não gerar empregos, Em 1965, o Centro-Oeste participava expulsa as pessoas do campo, “a região Cen- com 6,8% das áreas plantadas no território tro-Oeste é a que melhor sintetiza o esforço de brasileiro. Proporção que se eleva para 25,3% inserção comercial do país” (ibid., p. 190). em 2010. Percebe-se que esse crescimento da A chegada de novos agentes à região área plantada no Centro-Oeste se centrou em promoveu a substituição de antigas atividades um único produto: as tradicionais lavouras de de subsistência e economia natural por moder- arroz. Utilizadas para a ampliação da fronteira nas produções do agronegócio internacionali- agrícola, essas lavouras ofereciam o principal zado. Tudo provocou uma completa redefinição produto da pauta produtiva do Centro-Oeste. do uso e de ocupação do solo e consequente- Mas, com a intensificação da agricultura de mente a reorientação de sua organização espa- exportação, implantada sobretudo nas décadas cial (ibid.). Assim, o território do Centro-Oeste de 1980 e 1990, elas perderam espaço para a deixa de ser usado para o plantio extensivo de lavoura da soja, produto mais valorizado no lavouras ou pastagens e dá lugar a uma nova mercado internacional (Quadro 4). Quadro 3 – Área colhida na Região Centro-Oeste e Brasil 1965 a 2010 (por hectares) Estado / Região Distrito Federal Goiás 1965 1980 1990 2000 2010 6.770 26.868 89.227 84.690 121.989 1.584.762 2.202.921 2.527.421 3.080.405 4.446.308 1.740.011 2.041.128 1.863.740 3.040.623 Mato Grosso do Sul Mato Grosso 621.355 1.209.343 2.476.614 4.811.557 8.753.926 Centro-Oeste 2.212.887 5.179.143 7.134.390 9.840.392 16.362.846 32.521.457 49.517.480 50.514.696 50.197.379 64.450.342 Brasil Fonte: Ipeadata. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 589 Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura Quadro 4 – Área colhida pelos principais produtos agrícolas do Centro-Oeste 1965 a 2010 Produto Arroz Cana de açúcar Milho Soja Algodão 1965 1980 1990 2000 2010 1.174.222 2.367.091 772.771 915.649 417.378 43.519 49.505 215.983 373.396 1.023.738 514.829 941.123 1.416.480 1.803.292 3.431.652 804 1.130.093 3.810.153 5.530.455 9.861.994 69.342 80.295 123.451 403.730 449.129 Fonte: Ipeadata. Todo esse processo produtivo, seja via Tal realidade foi fortemente percebida produção ou processamento de alimentos, fez no arranjo Brasília-Anápolis-Goiânia. Como elevar também as atividades voltadas para essas cidades exercem centralidade no de- a prestação de serviços, devido à grande mo- senvolvimento econômico do Planalto Central vimentação promovida pelo agronegócio. A brasileiro, naturalmente receberam grandes in- crescente industrialização, sobretudo no estado vestimentos em empreendimentos imobiliários, de Goiás, o forte comércio, particularmente em devido à alta concentração de população con- Goiânia e Anápolis, e os serviços públicos em sumidora de imóveis. Brasília também são fatores que em muito con- Nos últimos dez anos, o setor imobiliário tribuíram para a elevação do setor de serviços. dessas cidades passou por inovações da gestão Porém, a lógica atual de inserção externa, que empresarial dos negócios. Nesse período no- fez do Centro-Oeste o grande exportador brasi- vas formas de atuação foram introduzidas na leiro, mantém a economia da região fortemen- indústria da construção civil local, fortemente te pautada na venda de produtos primários marcada pela entrada de capital externo que se para o exterior. funde com grandes grupos nacionais e locais. Surgiram, assim, diversos empreendimentos voltados para o consumidor de nível mais ele- Os impactos do agronegócio no ambiente urbano do arranjo vado (Moysés e Borges, 2009). Todos os novos empreendimentos que surgiram em áreas de expansão das cidades, Ao longo da primeira década dos anos 2000, seja em Águas Claras, Sudoeste, Lago Norte ou o mercado imobiliário brasileiro experimentou Noroeste, regiões administrativas de Brasília, intenso período de expansão. Esse movimento, seja no Setor Bueno, Parque Flamboyant, Alto que se iniciou timidamente na década anterior, da Glória ou Jardim Goiás, em Goiânia, ou no principalmente pós Plano Real, teve seu auge Bairro Jundiaí, em Anápolis, obtiveram gran- entre 2001 e 2007. de êxito de vendas, com os empreendimentos 590 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia tendo 98% de suas unidades vendidas na mes- equipamentos. O primeiro Plano Diretor (1969) ma semana de lançamento da obra, conforme definiu os vetores para o desenvolvimento da informação das entidades que representam cidade, limitando seu crescimento, de maneira o setor imobiliário, como Secovi (Sindicato da a mantê-lo ordenado. A expansão urbana deve- Habitação do Estado de Goiás) e Ademi (Asso- ria direcionar-se a norte, ao longo do Rio Meia ciação das Empresas do Mercado imobiliário Ponte, e a leste, ao longo da BR-153. A cidade de Goiás). Trata-se de empreendimentos caros, poderia crescer para o sudoeste, e a estrutura dotados de completa infraestrutura, conforme viária seria realizada pelos eixos leste-oeste e os novos conceitos de cidade construída para norte-sul. Esses preceitos só ocorreram em par- atender às classes mais abastadas da socieda- tes. A construção de viadutos na BR 153 permi- de local. tiu que a cidade expandisse muito para o leste. Tanto Goiânia como Brasília cresceram As obras no perímetro urbano da BR para além do seu território planejado. Esse fa- 153/060 atenderam a exigências da nova di- to, bastante comum em muitas capitais, não foi nâmica que a região leste da cidade passou a previsto no planejamento dessas cidades. No enfrentar a partir de 1981. A implantação do Shopping Flamboyant, às margens dessa rodovia, começou a alterar a dinâmica dos bairros adjacentes, como Alto da Glória e Jardim Goiás. Esse shopping, o primeiro de grande porte do estado de Goiás e segundo do Centro-Oeste,3 favoreceu a valorização das terras dessa região da cidade, pertencentes a um único proprietário, que também foi o fundador do shopping. A movimentação desse centro de compras atraiu para as proximidades lojas de grandes redes varejistas, e a região, hoje, detém grande centralidade e passa por constantes transformações.4 Após a chegada do comércio, instalaram-se na região condomínios residenciais verticais, de alto padrão, e em seguida condomínios horizontais fechados, tanto de capital local como externo. Nessa região, pratica-se o metro quadrado mais valorizado da Região Metropolitana, representando grande status para quem nela reside. Ações do poder público favoreceram essa dinâmica e sua consequente valorização. Na década de 1970, foram implantados, na região, o Estádio Serra Dourada e o Autódromo da caso de Brasília, seu formato de cruz limita a quantidade de unidades para habitação. Como as cidades-satélites ficam distantes do Plano Piloto e as mais próximas, como Taguatinga e Guará, rapidamente se esgotaram, foi preciso abrir novas áreas para a expansão imobiliária, como os Lagos Sul e Norte, o Sudoeste e, mais recentemente, o Noroeste. Todos esses novos “bairros” da capital federal são habitados por população de elevado padrão de renda, que se nega a residir em lugares mais distantes. Em Anápolis, a única das cidades não planejada, portanto sem limites para seu crescimento, é onde possivelmente reside uma população mais tradicional que a de Brasília e Goiânia. Os grandes empreendimentos imobiliários chegaram mais tarde, basicamente após 2006, quando grandes investimentos passaram a provocar alterações fundamentais na paisagem local. Ao contrário de Brasília, que surgiu com áreas valorizadas pelo próprio desenho urbano, Goiânia foi direcionando a ocupação e valorizando seu território a partir da implantação de Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 591 Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura Cidade.5 Depois disso, vieram os investimentos O bom desempenho e a preocupação privados, como o shopping e os condomínios com a saturação da ocupação dessa área residenciais e comerciais. A partir de 2006, no- acabaram por favorecer a abertura de novas vas intervenções públicas voltaram a acontecer, frentes de expansão e valorização imobiliária elevando ainda mais sua valorização. A primei- em outras regiões de Goiânia. São bons exem- ra foi do governo estadual, que inaugurou, no plosa região do Parque Vaca Brava, a partir de trevo da BR 153/060 com a GO 020, o Centro 1996, e do Parque Cascavel e do Macambira Cultural Oscar Niemeyer, em 2006. Em 2009, a Anicuns, a partir de 2009, todas elas na porção prefeitura inaugurou, não muito distante dali, o centro-oeste da cidade. A partir de 2013, foi Parque Flamboyant, o que permitiu a constru- inaugurado outro grande shopping na região ção, em seus arredores, dos apartamentos mais norte, pertencente ao maior grupo industrial valorizados da cidade. de Portugal, em sociedade com empresários É nas imediações dessa região sudeste estadunidenses. O empreendimento está alte- de Goiânia que se localiza o maior número de rando a configuração da área, até então uma condomínios horizontais fechados de toda a das menos valorizadas, e levando o poder local RM. E os mais valorizados também. A expan- a tomar inciativas para acompanhar essa trans- são do perímetro urbano acabou tendo que formação, como a abertura de grandes aveni- ser aprovada para acompanhar essa demanda das (caso da ampliação da Goiás Norte, pela existente por novas áreas para a instalação de prefeitura) e instalação de viadutos (como os mais condomínios residenciais. O caso mais bi- da Perimetral Norte, pelo governo estadual). zarro ocorreu no Plano Diretor de 2006, quan- Em 2013 a prefeitura municipal enviou à do, para incluir uma área onde seria instalado Câmara de Vereadores projeto de lei para ex- o suntuoso condômino Goiânia Golf Residen- pandir mais ainda o perímetro urbano de Goiâ- ce, fez-se um “apêndice” no mapa da cidade. nia, no sentido norte. Esta é a única região da Essa área ficou conectada ao restante da zona cidade que ainda não se encontra totalmente urbana apenas pela linha que demarca uma na zona urbana e onde estão as reservas flores- rodovia municipal; literalmente, pendurada à tais e o reservatório de águas que abastece a zona urbana. região metropolitana. Daí o motivo de tal pro- A maioria desses empreendimentos, na região Sudeste de Goiânia, foi lançada por in- jeto ter gerado grande polêmica e ainda não ter sido viabilizado. corporadores locais, nacionais ou estrangeiros, Já a região sul da cidade desenvolveu-se em parceria com a família proprietária das bem antes. Por ter se conurbado a Aparecida áreas. Ou seja, pelo mesmo proprietário do de Goiânia, segundo maior município da RM shopping, que já havia, anteriormente, “cedido” terras para a implantação de grandes equipamentos urbanos. Não restam dúvidas de que se trata do maior latifúndio urbano da história da cidade. e de Goiás, os empreendimentos imobiliários 592 ali se instalaram principalmente no final da década de 1990, quando também se instalou um shopping . Desde então, essa região se tornou alvo de especulação e investimentos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia imobiliários tão vultosos como os da região su- negócios que surgem constantemente, favore- deste. Porém, os empreendimentos da região cem essa efervescência imobiliária. Ao mesmo sul não são voltados para as classes mais ricas. tempo, a demanda por menor rendimento am- Nessa região, alto do Setor Bueno, entorno da plia as áreas de expansão das cidades. Avenida Rio Verde, Parque Amazônia, habita Brasília tem sua dinâmica própria de ca- uma população classe média a média alta, e a pital federal. Concentra a sede de grandes em- região está altamente verticalizada. presas nacionais (públicas ou privadas), grande Conforme a prefeitura de Goiânia, en- número de funcionários públicos que, em geral, tre 2000 e 2011, foram construídos na cidade possuem alta renda. Tudo isso faz com que o 423 condomínios habitacionais (denominados Distrito Federal (DF) tenha um terciário forte, “habitação coletiva”). Destes, 187 (44%) eram gerando riquezas, empregos e atraindo cada voltados para moradores de “alto padrão” e vez mais trabalhadores e consumidores. Quem se localizam em bairros mais valorizados. Mais possui renda melhor adquire um apartamento, recentemente, houve o aumento da construção no Plano Piloto (Asas Sul ou Norte), em Águas de edifícios, sobretudo residenciais, em bair- Claras, Sudoeste, Noroeste, ou uma casa nos ros antes tradicionalmente horizontais, como Lagos. Quem não tem mora nas cidades-saté- Negão de Lima, Nova Vila e Leste Universitá- lites dentro do próprio DF. Os mais desprovidos rio. Esses bairros ficam na região centro-leste moram em Goiás, na região conhecida como da cidade e próximos da BR 153/060 ou da Entrono do DF, que é detentora de graves pro- Perimetral Norte. Sem condição de habitar um blemas socioespaciais. imóvel de “alto padrão” na valorizada região Nota-se que o Distrito Federal tem sofri- sudeste, essa população encontra essas alter- do perda, cada vez maior, de população para nativas mais acessíveis também às margens da os municípios vizinhos goianos. Entre 1970 e rodovia. Toda essa oferta habitacional atrai co- 1980, a população do DF cresceu 8,15%; entre mo moradores pessoas que precisam se deslo- 1980 e 1991, 2,84%; entre 1991 e 2000, 3%; e, car entre as cidades da RM e para além de seus entre 2000 e 2010, 1,81%, sendo este o menor limites, como Aparecida de Goiânia, Senador crescimento registrado na história do DF. Nes- Canedo e principalmente Anápolis. Dá origem se período, a microrregião goiana do Entorno a uma multiplicidade de fluxos – muitos reali- do DF foi uma das que mais cresceu, conforme zando comutação cotidiana – que articulam o o IBGE. Entre 1991 e 2000, aumentou sua po- arranjo sob um novo tipo de integração entre pulação em 72,55% e, entre 2000 e 2010, au- espaços polinucleados. mentou 29%. Porém, esses municípios goianos O mercado imobiliário, como qualquer acabam por se tornar apenas “cidades-dormi- outro mercado, acompanha as demandas da tório”. Essa população, afugentada pelo alto população pela busca de qualidade. Para isso, preço da terra do DF e que passou a residir em adapta-se às novas tendências e aos novos Goiás, em municípios com pouca infraestrutura, estilos de consumir. A alta renda gerada pelo continua trabalhando e desempenhando suas agronegócio e a migração crescente de pessoas principais atividades cotidianas no DF, tornan- que vão para a região, levadas pelos novos do a mobilidade uma necessidade essencial. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 593 Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura As pressões por moradias populares no Cidade Ocidental, todas goianas. Pela BR 060, DF são crescentes, elevando as ocupações ir- a expansão de Samambaia tende a se unir com regulares. No início do planejamento do DF, Ceilândia (DF), ultrapassar os limites do DF e foram destinadas nas cidades-satélites áreas alcançar Águas Lindas de Goiás, que é umas para assentar a população que não tivesse das cidades que apresentou o mais elevado condição para ocupar o Plano Piloto. Anos de- crescimento demográfico nas últimas décadas. pois o Governo do Distrito Federal (GDF) con- Os empreendimentos que surgem na BR 040 tinuou com esses programas, que, entre 1989 são mais populares, como os decorrentes do e 1994, deram origem às regiões administra- Programa Minha Casa Minha Vida, voltados tivas de Paranoá, Santa Maria e Samambaia. para segmentos de baixa renda ou de classe Eram regiões distantes do Plano Piloto. Para média. Na BR 060, surgem os condomínios de os mais ricos, o GDF criou o Sudoeste, prati- alto padrão. camente anexo à Asa Sul – separados apenas Pode-se afirmar que uma das forças que pelo Parque da Cidade e Águas Claras, anexo a impulsiona a expansão e o mercado imobiliá- Taguatinga e não tão distante da Asa Sul. Hoje rio do DF é a presença de funcionários públicos essas regiões se encontram totalmente ocupa- de renda elevada, ligados ao Governo Federal, das. Mesmo Samambaia, que de início era vol- como também de executivos de empresas ter- tada para baixa renda, experimenta uma verti- ceirizadas. Pelo fato de Brasília concentrar um calização que tem alterado completamente o relevante polo de serviços, também estimula ambiente. Até meados dos anos 2000, ela po- os produtores rurais, assim como ocorre em deria ser comparada a uma favela. Localizada Goiânia, a buscarem a capital federal como bem na entrada de Brasília, para quem chega um bom lugar para residência de suas famílias de Goiânia ou Anápolis, sua arquitetura era e, com isso, trazem para seu território a renda basicamente composta por casebres de pape- do agronegócio. lão ou madeira, cobertos de palha ou telha de Isso é mais antigo em Goiânia, onde a amianto, e o que mais chamava a atenção era dinâmica já é toda voltada para a lógica do o amontoado de fios elétricos e antenas de TV. agronegócio. Inicialmente a cidade era habi- Hoje o cenário é completamente diferente. A tada por fazendeiros locais; proprietários que, entrada do empreendedorismo imobiliário em mesmo possuindo fazendas no interior do Es- Samambaia afastou a população pobre e alte- tado ou no Pará, Mato Grosso ou Tocantins, rou o estilo arquitetônico do bairro, tornando- viviam em Goiânia com suas famílias. Assim, a -o praticamente uma extensão dos valorizados renda gerada nas fazendas era empregada na Águas Claras e Taguatinga. cidade, desenvolvendo nela o setor de serviços, Mais recentemente, nota-se a formação fundamentalmente educacional e de saúde, e o de uma nova expansão urbana no DF, também comércio varejista, e tornando-a referência pa- em direção a Goiás. Uma nova conurbação, ao ra grande parte do centro-norte brasileiro. As- longo da BR 040, tende a se formar entre Santa sim, Goiânia tornou-se uma forte centralidade Maria (DF), Valparaíso de Goiás, Novo Gama e com grande região de influência. Hoje, os ricos 594 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia pecuaristas goianos são os investidores do se- nessas cidades e modificou cada vez mais suas tor imobiliário local, seja na aquisição de imó- realidades. Ademais, desencadeou um efeito veis seja na parceria com os capitais externos. dominó de valorização do solo e de desbrava- Também em Goiânia houve valorização mento de novas periferias, dando maior den- da terra, e o crescimento dos empreendimen- sidade e estendendo a continuidade da área tos voltados às pessoas de maior renda fez construída que interliga essas aglomerações e com que a classe média se afugentasse para dá o conteúdo de uma unidade espacial. os arredores da cidade. Aparecida de Goiânia e Observa-se, na análise dessas três Senador Canedo foram os municípios que mais aglomerações altamente urbanizadas, que o receberam população e igualmente podem ser empreendedorismo urbano, considerado um enquadrados como “cidades-dormitório”. A importante negócio capitalista, passou a admi- valorização do preço da terra na capital permi- nistrar as cidades como se fossem empresas, tiu que famílias comprassem dois ou mais imó- tornando secundários os interesses apenas veis em áreas menos valorizadas e elevassem o locais em função de se tornarem negócios patrimônio familiar. Dessa maneira, cresceram globais; a serem vendidas como mercadoria, os centros menores ao redor de Goiânia, como “sobretudo uma mercadoria de luxo, destinada ocorreu em Brasília. a um grupo de elite de potenciais comprado- Anápolis possui dinâmica diferente, res: capital internacional, visitantes e usuários mesmo tendo seu perímetro urbano em con- solúveis” (Vainer, 2000, p. 83). Como merca- tínua valorização, pois a cidade sempre apre- doria, a cidade passa a buscar maior competi- sentou forte posição comercial. A instalação tividade na atração de investimentos públicos de novas indústrias e mais recentemente os e privados, que sejam capazes de torná-la um preparativos para a implantação da Platafor- espaço “eficiente” para a propagação e repro- ma Logística Multimodal de Goiás atraíram dução do capital. Os agentes privados, atuan- nova leva de migrantes, ampliando a demanda do com respaldo da política urbana praticada por áreas de moradia, aumentando ainda mais nas cidades, são os maiores beneficiados des- os preços da terra e fazendo surgir na cidade sa realidade. Novos espaços se tornam, cada uma verticalização que não era vista até mea- vez mais, subordinados à dinâmica imposta dos da década passada. pelo mercado imobiliário. Tanto em Goiânia como em Anápolis ou Esse processo de reprodução do espaço Brasília, a pujança do mercado imobiliário, mo- pode parecer contraditório com o sentido no tivada pela renda das fazendas das famílias lo- qual Goiânia e Brasília foram planejadas – den- cais, agora inseridas na lógica do agronegócio, tro dos pressupostos da cidade ideal. Porém, no a chegada de novas empresas e a abertura de sistema capitalista, mesmo uma cidade plane- novos postos de trabalho públicos têm levado jada não está isenta de sofrer as interferências à região novos hábitos e tendências de morar, de um urbanismo guiado por ações políticas, alterando a mentalidade local e mantendo ele- econômicas e técnicas. O território urbano é vado o preço da terra. Um novo urbano surgiu fragmentando, tornando o local de habitar um Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 595 Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura “fetiche”, definindo, desse modo, a relação Nas aglomerações metropolitanas de Brasília social entre coisas, mais real do que entre ho- e de Goiânia e na própria cidade de Anápolis, mens (Marx, 2006). esse modelo se apresenta com todas as suas Nas cidades analisadas, as administra- peculiaridades, estreita continuamente o fluxo ções atuam na promoção da imagem de “efi- de relações entre elas e as faz inserir-se em um ciência administrativa” (Compans, 2005), o arranjo espacial. que favorece uma enorme adesão social a esse Na contemporaneidade, a expansão da modelo de gestão do urbano (Sánchez, 2003). ocupação urbana apresenta características de Tal modelo de empreendedorismo urbano – diversificação socioeconômica, porém segue apontado nas cidades analisadas – impulsiona associada ao valor da terra e a projetos imo- o surgimento de uma hierarquia de espaços biliários altamente especulativos, com as áreas na cidade, qualificados pela dotação de inves- incorporadas demarcando uma expansão peri- timentos públicos e privados, favorecendo o férica, permeada por vazios urbanos mantidos surgimento de um terciário qualificado e, para- como reservas de valor. Consolida-se a partir lelamente, de especificidades no modo de viver da ação dos vários capitais, com ênfase no dos habitantes (Borja, 1997). Hierarquização da imobiliário, pela dispersão ou relocalização de cidade que cria uma fragmentação, pois gera atividades econômicas e expansão da ocupa- valorização diferenciada para cada parte dos ção residencial, que, no caso brasileiro, associa espaços urbanos, pautada pelo padrão de con- grandes condomínios fechados ou conjuntos sumo (Harvey, 2005). habitacionais de baixa renda a ocupações informais nas franjas das cidades, resultantes da segregação e da exclusão dos mercados for- Morfologias expandidas e o debate teórico e conceitual mais de moradia. São relevantes a distância cada vez maior das novas ocupações e a elevação da mobilidade, não só no interior dos aglomerados, criando A dinâmica de expansão da ocupação urbana, laços de interação entre eles. No debate teórico com a presença de capitais do setor imobiliá- atual, essa transformação – metamorfose pa- rio externos à região, e o desbravamento de ra alguns autores (Lencioni, 2011; De Mattos, novas áreas, distantes das já consolidadas, 2014) – pela qual passa o espaço urbano se para construção de unidades para diversos funda na ampliação geográfica do processo segmentos de renda, caracterizam o modo de acumulação desse estágio do capitalismo. capitalista de produção do espaço urbano na Uma ampliação que induz a formação de mor- contemporaneidade. Elemento fundamental fologias urbanas descontínuas, dispersas, sem nesse processo são as vias de circulação – ro- limites precisos, porém muito mais articuladas dovias ou vias urbanas – e o massivo uso do e densas. Essas morfologias são engendradas automóvel para garantir a conexão entre o pela dispersão de processos produtivos, empre- lugar da moradia, do trabalho e do consumo. sas, filiais, fornecedores, que acionam o capital 596 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia imobiliário a ativar negócios na produção imo- de reflexão nos vários continentes (Ciccolella e biliária, e de infraestruturas indispensáveis à Vecslir, 2010; De Mattos, 2014; Lencioni, 2011; valorização do espaço urbano. Pradilla Cobos et al., 2010; Scott et al., 2001). Abre-se, pois, um novo ciclo capaz de Alguns aspectos particulares demarcam enfrentar as contradições que comprometem a o caso brasileiro. O padrão de expansão dos reprodução do capital, fundado na importância aglomerados urbanos em direção a áreas ad- dos negócios oriundos da produção imobiliária jacentes, interconectando pequenos centros e das condições de infraestruturas indispensá- pree-existentes e integrando seus territórios veis para que se efetivem a metropolização e a graças a novas capacidades comunicacionais, valorização do espaço metropolitano. configura desde simples eixos bipolarizados até complexos macrometropolitanos. O arranjo A forma que a metrópole assume, de maior escala territorial, ao expandir sua região, é central para a acumulação porque ela vem acompanhada da possibilidade de oferecer sobrevida às relações capitalistas, uma vez que a valorização imobiliária que acompanha o espraiamento territorial da metrópole se constituiu numa das principais estratégias para a produção e concentração da riqueza social, uma vez que o predomínio da descontinuidade é estratégico para a reprodução do capital. A sua forma descontínua, por assim dizer, é a expressão, no limite último, da força desmedida do espaço-mercadoria, instrumentalizado pela valorização imobiliária do capital. [Essa] se coloca como possibilidade de [...] superar o estrangulamento que pode comprometer o fôlego necessário para dar continuidade ao processo capitalista de desenvolvimento. (Lencioni, 2011, pp. 55-56) Brasília-Anápolis-Goiânia encontra completa consonância com as análises e considerações teóricas sobre os processos contemporâneos da metropolização, com forte presença do capital imobiliário nas configurações morfológicas urbanas e dos aglomerados. Porém, observa-se nele um peso ainda mais expressivo da ação do Estado (seja por meio de investimentos, seja pela adequação normativa), como indutor da expansão urbana e regional, e uma crescente oferta de consumidores de novas áreas urbanas, particularmente associada ao entorno, dedicado ao agronegócio – gerador de elevados excedentes. Haddad (2011), em sua dissertação sobre o recorte objeto de análise, o denomina “eixo Goiânia-Anápolis-Brasília”, considerando a relação entre espaço e transportes. Admite que, desde a escola clássica da análise espacial, Essas aglomerações “espichadas” ao representada por Von Thunen, Losch, Weber e longo das vias de circulação, quando próxi- outros, atribui-se ao transporte e à acessibili- mas, desenvolvem intensa conexão entre si, dade a função de definir e explicar configura- estimulando a alocação, nas vias de interli- ções territoriais. Perroux (1964), ao tratar do gação, de serviços e posteriormente de novas conceito de polos de desenvolvimento, afirma áreas de moradia, consumo e lazer. Em pouco que eles não existem de forma isolada, mas se tempo dão lugar a arranjos espaciais caracte- ligam à sua região por canais em que se propa- rísticos do processo de metropolização con- gam preços, fluxos e antecipações. Essa propa- temporâneo. Esse processo vem sendo objeto gação dá origem ao que ele chama de eixo de Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 597 Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura desenvolvimento, salientando que o eixo não é que potencializem o desenvolvimento. Funcio- apenas uma estrada, mas que, “ligado à estra- nam como atores decisivos do novo fenômeno da, deve haver todo um conjunto de atividades de desenvolvimento, com influência crescente complexas que indicam orientações determina- no mundo globalizado. Lencioni (2006) aplica das e duráveis de desenvolvimento territorial e a expressão cidade-região para o caso do com- dependem, sobretudo, da capacidade de inves- plexo macrometropolitano de São Paulo; Soa- timento adicional” (Andrade, 1987, p. 66). res (2012), para a articulação da aglomeração Tanto na visão de Perroux como de vários 6 outros autores, um eixo não pode prescindir metropolitana de Porto Alegre às aglomerações urbanas circunvizinhas. de bens que o complementem, como energia, Especificamente em relação ao caso bra- transporte, crédito e capacidade técnica. Não sileiro, Moura e Lira (2011) identificaram um é apenas uma estrada, mas pressupõe deter- conjunto de configurações expandidas e arti- minado corte espacial, com a presença de um culadas ou “arranjos espaciais”. São arranjos conjunto de atividades complexas que indicam diversos que compõem, desde simples aglome- desenvolvimento territorial. Portanto, pode-se rações urbanas interconectadas, até aglomera- afirmar que um eixo de desenvolvimento sur- ções metropolitanas expandidas descontinua- ge em um espaço onde estejam presentes: uma mente em direção a aglomerações urbanas ou a cadeia de núcleos urbanos, de diferentes tama- outras aglomerações metropolitanas, algumas nhos, situados ao longo das vias de transporte; conformando eixos, como o recorte em análise vias de transporte de alta capacidade, como neste trabalho. Os autores apontam que esses rodovias duplicadas, ferrovias modernas e in- arranjos se estruturam cada vez mais a partir fovias; cabos de fibra ópticas, telefonia, rede de relações em rede, sob múltiplas escalas e de computadores; e um sistema de transporte muitos sujeitos atuantes, e pela convergência adequado, que favoreça a dinâmica econômica das relações verticais e horizontais, que provo- dos centros urbanos, principalmente no tocan- cam uma forte hibridização da condição urba- te à localização das mais diversas atividades na e regional. Assim, extrapolam a dimensão industriais. Todas essas leituras destacadas se da cidade e da aglomeração e incorporam, no ajustam à noção do arranjo espacial, que incor- mesmo fato urbano-metropolitano, a dimensão pora a noção de eixo e que se materializa no regional, o que torna sua natureza complexa e recorte espacial analisado. peculiar (Moura, 2009). Nesse sentido, há um Ajustam-se também à concepção de cida- entrecruzamento entre as noções de unidades de-região (Scott et al., 2001), que faz referência concentradoras formadas por aglomerações a uma categoria espacial que absorve desde urbanas ou metropolitanas, em sua versão des- aglomerações metropolitanas comuns, domina- contínua e fortemente estruturada por eixos de das por um núcleo muito desenvolvido, até uni- circulação que garantem comutação e conecti- dades geográficas policêntricas, compondo ter- vidade, e a noção de desenvolvimento regional, ritórios diversos e desiguais, morfologias que para a qual a configuração axial articulando transcendem espacialmente o âmbito urbano aglomerações vem se tornando objeto de aná- compacto ou disperso e que exigem estratégias lise da economia. 598 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia O arranjo Brasília-Anápolis-Goiânia in- desempenho econômico e social do Centro- sere-se entre aqueles apontados com natureza -Oeste brasileiro, que sustenta a divisão social urbano-regional, pois se caracteriza como uni- do trabalho em sua perspectiva hegemônica. dade concentradora de população, relevância Alguns municípios foram beneficiados pela econômico-social e infraestrutura científico- inversão de capitais (estatais e privados), en- -tecnológica, com elevada densidade urbana, quanto outros, longe de se qualificarem em forte articulação regional e extrema complexi- condições técnicas, científicas, institucionais e dade, devido à rede de fluxos multidirecionais, culturais para participar dessa dinâmica e con- particularmente de pessoas, e pela multiplici- tribuir no processo de transformação, perma- dade escalar. Participa de modo mais integrado, necem à margem do processo. Tal comporta- nos âmbitos estadual, nacional e internacional, mento reforça a hipótese de que a presença do como elo de inserção nos estágios mais avan- Estado foi imprescindível para a sustentação çados da divisão social do trabalho e represen- do desenvolvimento regional, e que se tornam ta o principal centro de decisão política e insti- necessários grandes empreendimentos sociais tucional do País. Nele, os padrões de expansão, e de infraestrutura situados fora do âmbito da com forte presença dos excedentes gerados pe- iniciativa do mercado para conquistar maior lo agronegócio regional, cada vez mais conso- igualdade entre os municípios. lidam as características descritas pela teoria e A dinâmica do agronegócio no Centro- aproximam a configuração espacial resultante -Oeste, especialmente no estado de Goiás, e de uma grande região urbana com ampla ex- os empregos gerados pelo governo no Distrito tensão territorial no Planalto Central do Brasil. Federal fizeram nascer um terciário qualificado que atraiu para a região moradores de alto padrão, impulsionando a oferta de imóveis, Considerações finais serviços e equipamentos comerciais que promoveram a expansão da área ocupada e a va- A análise realizada detalha o processo de ex- lorização do solo. Pode-se inferir que o antigo pansão urbana e a valorização de três cidades capital rural acabou reproduzindo e se tor- e suas aglomerações, Anápolis, Brasília e Goiâ- nando o capital investidor de novos imóveis nia, e mostra que suas dinâmicas correspon- que, associado ao capital externo, mudam o dem a um processo comum, presente no modo cenário e o modo de habitar nessas cidades. de produção capitalista da cidade. Avança nes- O local de morar tornou-se símbolo de status. se entendimento ao mostrar que esse processo O poder público, por sua vez, propiciou ou de expansão articula as três aglomerações e permitiu que a iniciativa privada provesse os condiz com um novo momento de reprodução grandes equipamentos que valorizaram o es- e acumulação do capital, que vem dando ori- paço urbano, atraindo consumidores cada vez gem a uma urbanização muito mais estendida, mais exigentes. formatada em arranjos complexos. É certo que nem só esses novos morado- O arranjo em análise corresponde à res consomem nessas cidades. A diversificação porção mais concentradora e com melhor da oferta de moradias, para vários padrões de Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 599 Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura renda e diferentes perfis de consumo, também configuração do arranjo espacial, pois ativa a se faz presente na expansão periférica e na inversão de capitais e estimula a circulação e formação de cidades-dormitório nas metrópo- a mobilidade entre os centros, articulando-os les analisadas. Conclui-se que a riqueza gera- espacialmente em uma unidade, fortalecida da no entorno vem induzindo a qualificação e pelas várias formas de conexão e interação en- valorização dos espaços urbanos, sem romper tre lugares, atividades e pessoas. No entanto, as condições de desigualdade existentes, pelo as várias escalas institucionais (Ride, RM, RAs, contrário, acentuando-as ao criar espaços cada entre outras) não permitem que se produza um vez mais fragmentados. território, tornando muito mais complexa e de- Ao mesmo tempo, essa riqueza é um dos elementos a impulsionar a própria safiadora qualquer tentativa de gestão desse amplo espaço articulado. Marcos Bittar Haddad Companhia Metropolitana de Transportes Coletivo, Região Metropolitana de Goiânia. Goiânia, GO/Brasil. [email protected] Rosa Moura Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Programa Nacional de Pós-Doutorado. Curitiba, Paraná/Brasil. [email protected] Notas (*) Este ar go dá con nuidade e resgata alguns conteúdos das análises sobre o arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia, iniciadas e debatidas no XIII Seminário Internacional da Red Iberoamericana de Inves gadores sobre Globalización y Territorio (Salvador, 2014). Foi selecionado para apresentação e publicação nos anais do 55º Congreso Internacional de Americanistas, Simpósio “Difusão do agronegócio e novas dinâmicas socioespaciais na América La na”(San Salvador, 12 a 17 de julho de 2015). (1) Uma discussão sobre a configuração de arranjos espaciais e uma revisão da literatura per nente podem ser encontradas em Moura (2009). (2) Na opinião de alguns autores, como Moraes (2006), Paviani (1991) e Gouvêa (1991), Brasília já nasceu segregando população. (3) O primeiro shopping do Centro-Oeste é o Conjunto Nacional de Brasília, cuja construção se iniciou em 1971. 600 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016 Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia (4) Redes como Carrefour e Walmart, ambas internacionais e Tend Tudo,capital regional, e redes nacionais de hotéis são estruturas instaladas nessa região, consolidando sua centralidade para compras, lazer e moradia. (5) Tanto a área escolhida para a instalação do autódromo quanto a área para o estádio foram “cedidas” pela família proprietária das terras. Porém, tal cessão foi fruto de negociação com o poder público, às custas de acerto de contas de tributos devidos. (6) Bordo (2004), Hernández (1998), Nasser (2000), Pontes (1974), Souza (1993), Sposito e Matushima (2002). Referências ANDRADE, M. C. de (1987). Espaço, polarização e desenvolvimento: uma introdução à economia regional. São Paulo, Atlas. BORDO, A. (2004). Os eixos de desenvolvimento e a estruturação urbano-industrial do Estado de São Paulo, Brasil. Scripta Nova. 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A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema político-institucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão, baseados na governança urbana. CHAMADA DE TRABALHOS A revista Cadernos Metrópole é composta de um núcleo temático, com chamada de trabalho específica, e um de temas livres relacionados às áreas citadas. Os textos temáticos deverão ser encaminhados dentro do prazo estabelecido e deverão atender aos requisitos exigidos na chamada; os textos livres terão fluxo contínuo de recebimento. Os artigos podem ser redigidos em língua portuguesa ou espanhola. Os artigos apresentados em outros idiomas serão traduzidos para o português. AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS Os artigos recebidos para publicação deverão ser inéditos e serão submetidos à apreciação dos membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos receberão duas avaliações e, se necessário, uma terceira. Será respeitado o anonimato tanto dos autores quanto dos pareceristas. Caberá aos Editores Científicos e à Comissão Editorial a seleção final dos textos recomendados para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta sua consistência acadêmico-científica, clareza de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema. COMUNICAÇÃO COM OS AUTORES Os autores serão comunicados por e-mail da decisão final, e a revista não se compromete a devolver os originais não publicados. OS DIREITOS DO AUTOR A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. Cada autor receberá dois exemplares do número em que for publicado seu trabalho. h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2014-3 NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS Os trabalhos devem conter: • título, em português, ou na língua em que o artigo foi escrito, e em inglês; • texto, digitado em Word, espaço 1,5, fonte arial tamanho 11, margem 2,5, tendo no máximo 25 (vinte e cinco) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras, referências bibliográficas; as imagens devem ser em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm; • resumo/abstract de, no máximo, 120 (cento e vinte) palavras em português, ou na língua em que o artigo foi escrito, e outro em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave em português, ou na língua em que o artigo foi escrito, e em inglês; • referências bibliográficas, conforme instruções solicitadas pelo periódico. Os trabalhos submetidos à Cadernos Metrópole devem ser enviados pelo sistema, da seguinte maneira: (1) se o/s autor/es não possuir/em cadastro ainda, favor clicar aqui; (2) no cadastro, preencher principalmente os seguintes campos: nome, e-mail, instituição (vínculo), e no campo “Resumo da Biografia” definir sua titulação mais alta, lugar de trabalho e função de cada um; (3) depois de cadastrado, o autor deve acessar o sistema clicando aqui. Importante: • A autoria NÃO DEVE constar no documento. As informações a seguir devem ser preenchidas no passo 3 da submissão (Inclusão de Metadados): nome do autor, formação básica, instituição de formação, titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha, unidade e departamento, cidade, estado, país, e-mail, telefone e endereço para correspondência. • É imprescindível o envio do Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Autorais, datado e assinado pelo(s) autor(es). O documento deve ser transferido no passo 4 da submissão (Transferência de Documentos Suplementares). Em caso de dúvida, consulte o Manual de Submissão pelo Autor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS As referências bibliográficas, que seguem as normas da ABNT adaptadas pela Educ, deverão ser colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções: Livros AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Capítulos de livros AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR (org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar. Artigos de periódicos AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo. Exemplo: TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28. Trabalhos apresentados em eventos científicos AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final. Exemplo: SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília, MPAS/ SAS, pp. 193-207. Teses, dissertações e monografias AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição. Exemplo: FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo. Textos retirados de Internet AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso. Exemplo: FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em: 8 set 2005. Rede Observatório das Metrópoles Estado Instituição Coordenador Baixada Santista Universidade Federal de São Paulo Marinez Villela Macedo Brandão Belém Universidade Federal do Pará Juliano Ximenes Pamplona Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Alexandre Magno Alves Diniz Brasília Universidade de Brasília Rômulo José da C. Ribeiro Curitiba Universidade Federal do Paraná Olga Lucia C. de Freitas Firkowski Fortaleza Universidade Federal do Ceará Maria Clélia Lustosa Costa Goiânia Universidade Federal de Goiás Celene Cunha Monteiro A. Barreira Maringá Universidade Estadual de Maringá Ana Lucia Rodrigues Natal Universidade Federal do Rio Grande do Norte Maria do Livramento M. Clementino Porto Alegre Universidade Federal do Rio Grande do Sul Paulo Roberto Rodrigues Soares Recife Universidade Federal de Pernambuco Maria Angela de Almeida Souza Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Marcelo Gomes Ribeiro Salvador Universidade Federal da Bahia Inaiá Maria Moreira Carvalho São Paulo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Lucia Maria Machado Bógus Vitória Instituto Jones dos Santos Neves Pablo Silva Lira Cadernos Metrópole vendas e assinaturas Exemplar avulso: R$20,00 Assinatura anual (três números): R$54,00 Enviar a ficha abaixo, juntamente com o comprovante de depósito bancário realizado no Banco do Brasil, agência 3326-x, conta corrente 10547-3, para o email: [email protected] Assinatura referente aos números ____, ____ e ____. 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