Revista Educare - Março/2011 - Colégio Militar de Fortaleza

Transcrição

Revista Educare - Março/2011 - Colégio Militar de Fortaleza
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
CMF
Colégio Militar de Fortaleza
EDUCARE
Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza
Publicação Semestral
Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
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Colégio Militar de Fortaleza
Av. Santos Dumont, 485 – Aldeota
Fortaleza – CE – CEP: 60150-160
www.cmf.ensino.eb.br
E-mail: [email protected]
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EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
EDUCARE
Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza
Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
ISSN: 1984-3283
COLÉGIO MILITAR DE FORTALEZA – CMF
(Es M do Ceará / 1889)
CASA DE EUDORO CORRÊA
Diretor de Ensino: Cel Luciano José Penna
Chefe da DEC: TC Wallace Cunha de Oliveira
CONSELHO EDITORIAL
C ap Janote Pires Marques (Editor-chefe)
Anete Barbosa Fritz Neves
Lissa Mara Saraiva Fontenele
1º Ten Margaret Corchs
Regina Cláudia Oliveira da Silva
Renata Rovaris Diorio
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA / PERMUTA
Colégio Militar de Fortaleza
Divisão de Ensino e Cultura (DEC) – Seção de Expediente
Av. Santos Dumont, 485 – Aldeota
Fortaleza – CE – CEP: 60150-160
Correio eletrônico: [email protected]
Educare: Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza, Fortaleza, CE, v. 3, n.3, 186 p., Mar. 2011.
Publicação Semestral
ISSN: 1984-3283
1. Educação. 2. Ciências. 3. História. 4. Literatura. I. Colégio Militar de Fortaleza. II. Título.
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia ou escrita.
Todas as informações dos artigos são de responsabilidade dos respectivos autores
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
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Profa. Dra. Ana Elisa Ferreira Ribeiro – CEFET/MG
Profa. Dra. Ana Maria Iório Dias – UFC
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Profa. Dra. Fernanda Nunes Guimarães Vieira – CMF
Profa. Dra. Filomena Maria Cordeiro Moita – UEPB
Prof. Dr. Júlio César Rocha Araújo – UFC
Prof. Dr. Luiz Botelho Albuquerque – UFC
Profa. Dra. Lynn Rosalina Gama Alves – UNEB
Prof. Dr. Marcelo El Khouri Buzato – UNICAMP
Profa. Dra. Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu – UERJ
Profa. Dra. Meize Regina Lucena de Lucas – UFC
Prof. Dr. Messias Holanda Dieb – UFC
Prof. Dr. Nilton Mullet Pereira – UFRGS
Prof. Dr. Samuel Edmundo Lopez Bello – UFRGS
Profa. Dra. Silvia Elisabeth de Moraes – UFC
Profa. Dra. Vera Lucia Menezes de Oliveira e Paiva – UFMG
Prof. Dr. William James Mello – INDIANA UNIVERSITY
Profa. Dra. Zilda Maria Menezes Lima – UECE
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
EDITORIAL
A Educare, revista científica do Colégio Militar de Fortaleza, instituição do Sistema Colégio Militar do Brasil do Exército Brasileiro, teve sua primeira publicacão em maio de 2009, por ocasião da comemoração dos 90
anos da “Casa de Eudoro Corrêa”, antigo “Casarão do Outeiro”. A Educare
tem periodicidade semestral, com publicações em março e setembro.
A proposta da Revista Educare é incentivar os professores e demais
componentes da “Casa de Eudoro Corrêa” a serem, também, pesquisadores. Nesse sentido, a Revista Educare não se limita a um tema específico e
nem se restringe a determinado campo do conhecimento. Propõe-se, portanto, uma abordagem multidisciplinar e mesmo interdisciplinar, considerando
as mais diversas áreas, como História, História da Educação Militar, Educação Física, Matemática, Geografia, Língua Portuguesa, Línguas Estrangeiras, Química, Física, Artes, Formação de Professores e tantos outros assuntos relativos à seara da Educação.
Visando contribuir para a divulgação de pesquisas ligadas à Educação e buscando um diálogo com outras instituições de ensino, a Educare
aceita trabalhos de autores vinculados a outros estabelecimentos de Ensino
Básico e Superior, desde que esses trabalhos de alguma forma contemplem
conteúdos relacionados à área Educacional.
Conselho Editorial
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.........................................................................................
7
Diretor de Ensino: Cel Luciano José Penna
ARTIGOS....................................................................................................
11
1. A GINÁSTICA E O ESPORTE NOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO MILITAR DO CEARÁ: o legado militar na constituição da educação
física cearense.............................................................................................
13
Ariza Maria Rocha
2. MEDIAÇÃO DA APRENDIZAGEM PARA TEXTOS DO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA DO 6º ANO DA BIBLIEX........................................
27
Regina Cláudia Oliveira da Silva
3. ACORDO ORTOGRÁFICO E A QUESTÃO DO HÍFEN NOS COMPOSTOS............................................................................................................
39
Vicente Martins
4. FAMÍLIA E DOCENTES EM BUSCA DE RESULTADOS SATISFATÓRIOS EM EDUCAÇÃO................................................................................
55
Olidnéri Bello
5. USO DE TÉCNICAS DE RESPIRAÇÃO PARA O CONTROLE DO ESTRESSE EM CRIANÇAS............................................................................
63
Francisca Elsenir Porfírio dos Santos
Analuce de Macêdo e Silva Caneca
6. LIDERANÇA AUTÊNTICA NUMA AMOSTRA DE ORGANIZAÇÕES
ESCOLARES DO NORDESTE BRASILEIRO (FORTALEZA E RECIFE)
77
António V. Bento
7. O CURRÍCULO DO ENSINO MÉDIO........................................................
Raimundo Plácido Melo Soares Lima
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87
8. O PAPEL DOS MATERIAIS DIDÁTICOS NO ENSINO DE LE................
97
Mirla Maria Furtado Miranda
9. A PERCEPÇÃO VISUAL, A IMAGEM E A LINGUAGEM POÉTICA........
109
Anete Barbosa Fritz Neves
10. LER E FILOSOFAR: a possibilidade do ensino da Filosofia a partir do
texto filosófico.............................................................................................
123
João Batista de Andrade Filho
11. AS VIRTUDES JUSTIÇA E AMIZADE SEGUNDO ARISTÓTELES.........
131
Maria Regina Ponte da Silva
12. UMA PERSPECTIVA DO GROTESCO, DO BELO E DO SUBLIME.........
141
Maria Alexandrina de S. Rodrigues
13. DAS ORIGENS DO YOGA AO YOGA INTEGRAL DE SRI AUROBINDO
155
Andréa Rebouças Matias da Silveira
14. AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA DO ALUNO SURDO............................
171
Andréa Michiles Lemos
CHAMADA PARA PUBLICAÇÃO E REGRAS DE SUBMISSÃO..............
183
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APRESENTAÇÃO
Cel Luciano José Penna
Diretor de Ensino do CMF
O Colégio Militar de Fortaleza é uma instituição educacional de ensino básico,
que tem como proposta educacional o desenvolvimento de atividades que vão além
das previstas no currículo oficial. Assim, ao longo do ano letivo, são desenvolvidas
várias atividades, dentre as quais destacamos as feiras (ciências e do livro), as olimpíadas (matemática, física, química, língua portuguesa), os jogos olímpicos, o acompanhamento e incentivo de alunos na participação de concursos, como os de redação,
Soletrando, entre outros, a Semana de Arte e Cultura, os clubes (de matemática, de
leitura, de geografia, história, filosofia e sociologia, de línguas estrangeiras), os grêmios (Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia, Material Bélico, Naval e Santos
Dumont), o coral, a banda de música, o grupo de teatro, o Programa de Enriquecimento Instrumental (PEI), o Simpósio de Educação e o Curso de Pós-graduação Lato-sensus em Língua Portuguesa com ênfase em Multiletramentos (atividade voltada
para os docentes) etc.
É nesse contexto multidisciplinar, e, muitas vezes interdisciplinar, que os profissionais da Educação, pertencentes à instituição, normalmente desenvolvem seus
projetos e pesquisas.
Entretanto, até 2009, ano de publicação do primeiro número da Revista
Educare, o Colégio não dispunha de um espaço formal para a divulgação dos trabalhos desenvolvidos. A ideia da criação da revista foi, portanto, motivada pelo desejo
de alguns professores em divulgar suas pesquisas e experiências, vivenciadas no meio
educacional.
Dessa forma, a Revista Educare teve e tem como proposta uma abordagem
multidisciplinar; não se limitando, pois, a um tema ou mesmo à determinada área do
conhecimento.
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Vale ressaltar que a revista, apesar de ter sido criada para atender a uma necessidade interna, recebe, para submissão, artigos de pesquisadores de outras instituições, desde que esses trabalhos, de alguma forma, contemplem conteúdos teóricos
ou práticos, aplicados à área Educacional.
Seguindo essa proposta, a 3ª edição também apresenta artigos em que os autores narram suas experiências e reflexões que, ora explicitamente, ora implicitamente,
nos remetem ao universo educacional.
Nesse sentido, convidamos o leitor a acessar esse universo, por meio da leitura
dos 12 artigos aqui propostos:
•
No enfoque de análise da Educação Militar, a autora Ariza Maria Rocha, traz-nos o trabalho A ginástica e o esporte nos estabelecimentos
de ensino militar do Ceará: o legado militar na constituição da educação cearense, cujo objetivo é discutir a propagação da ginástica escolar
pelo instrutor-militar no período que contempla o final do século XIX e
o início do século XX.
•
Regina Cláudia Oliveira da Silva, com Mediação da aprendizagem para textos do livro didático de História do 6º ano da BIBLIEX, apresenta propostas de atividade mediada para três assuntos de História do
Brasil do livro-didático de História do 6º ano do Ensino Fundamental
do Sistema Colégio Militar do Brasil (SCMB), com fundamentação teórico-metodológica baseada na teoria de Modificabilidade Cognitiva Estrutural (MCE) e na Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM), de
Reuven Feuerstein, que visa promover a metacognição do aluno através
da construção de significados cognitivos e da capacidade permanente
de transcendência do conhecimento construído no processo de mediação.
•
Acordo ortográfico e a questão do hífen nos compostos é um trabalho
muito interessante em que Vicente Martins objetiva fazer uma análise
do processo de lematização dos compostos antes e depois do Acordo
Ortográfico (2008).
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•
Refletir sobre o papel familiar na condução da educação de crianças e
adolescentes é um dos objetivos propostos por Olidnéri Bello no trabalho Família e docentes em busca de resultados satisfatórios em educação.
•
Francisca Elsenir Porfírio dos Santos e Analuce de Macêdo e Silva Caneca, em Uso de técnicas de respiração para o controle do estresse em
crianças, nos mostram um trabalho feito com crianças, na faixa etária
entre 10 e 13 anos, alunos do 6º ano do Ensino Fundamental de uma
escola pública de Fortaleza – CE.
•
Com Liderança autêntica numa amostra de organizações escolares do
Nordeste Brasileiro (Fortaleza e Recife), António V. Bento nos
apresenta uma investigação, de carácter descritivo e exploratório, que
teve como objectivos essenciais conhecer as percepções dos professores-estudantes (Nordeste Brasileiro) de uma pós-graduação em Ciências da Educação, sobre os seus líderes, medidas e avaliadas através do
Authentic Leadership Questionnaire (ALQ).
•
Trazendo-nos um trabalho de pesquisa bibliográfica, Raimundo Plácido Melo, em O currículo do ensino médio, aborda a educação nacional,
o currículo do ensino médio no Brasil e as bases legais.
•
Na área de Língua Estrangeira, o trabalho O papel dos materiais didáticos no ensino de LE, de Mirla Furtado Miranda, tem como objetivo
verificar o posicionamento de Língua Estrangeira (LE) frente aos materiais disponíveis no mercado.
•
Na área da arte literária, Anete Fritz faz uma breve análise da relação
entre a linguagem poética e a imagem. O artigo A percepção visual, a
imagem e a linguagem poética propõe inicialmente uma leitura das
concepções sobre o sentido da visão em Platão e Aristóteles para depois
focar as reflexões propostas por Merleau-Ponty sobre a sensação, o
corpo e o mundo percebido.
•
Em Filosofia, João Batista de Andrade Filho considera que é por meio
da leitura dos textos filosóficos que se dá o próprio fazer filosófico.
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Nessa perspectiva, o artigo Ler e Filosofar: a possibilidade do ensino
da filosofia a partir do texto filosófico, propõe reflexões instigantes sobre o ensino dessa disciplina no Ensino Médio.
•
Maria Regina Ponte da Silva também faz um passeio pela Filosofia e
nos propõe o trabalho As virtudes: justiça e amizade, segundo Aristóteles.
•
Apresentar uma visão do Grotesco e do Belo, a partir da ideia dos contrários e da necessidade do ser humano de se ver sempre no outro ou
em algo que julgue bom para ele, é a proposta do artigo Uma perspectiva do Grotesco, do Belo e do Sublime, de Maria Alexandrina de S.
Rodrigues.
•
Das origens do Yoga ao Yoga integral de Sri Aurobindo, de Andréa
Rebouças, é um artigo que, por meio de minucioso levantamento bibliográfico, convida-nos a fazer uma viagem ao longo da história e dos
princípios do Yoga.
•
As estratégias de leitura do aluno surdo, artigo de Andréa Michiles
Lemos, fecha a revista, propondo-nos a investigar como a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS – pode intervir no processo de aprendizagem
de leitura do surdo e quais as estratégias utilizadas por ele para atingir
desempenho na leitura de textos em português.
Em síntese, os artigos, aqui reunidos, pautados nas experiências dos autores,
convidam o leitor a interagir, a ver e a compreender cada um, como a consciência do
outro e do seu mundo.
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ARTIGOS
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1. A GINÁSTICA E O ESPORTE NOS ESTABELECIMENTOS
DE ENSINO MILITAR DO CEARÁ:
o legado militar na constituição da educação cearense
GYMNASTICS AND SPORTS EDUCATION
INSTITUTIONS IN THE MILITARY CEARÁ:
the legacy of military education in the c
onstitution of Ceará
Ariza Maria Rocha1
Resumo. Este trabalho tem o objetivo de discutir a propagação da ginástica escolar pelo
instrutor-militar no período que contempla o final do século XIX e o início do século XX. A
investigação está fundamentada na pesquisa documental e utilizei livro de memória (MENESES, 1982), periódicos (REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ, 1959), Revista do Grêmio
Literato do Colégio Cearense do Sagrado Coração, Verdes Mares (1923-1939), a iconografia.
Por fim, consultei a internet como importante comunicação em rede, que não se limita apenas às fontes secundárias, mas também disponibiliza fontes primárias em sites institucionais,
governamentais ou não, como, por exemplo, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (http://
www.bn.com.br). A intenção dessa escolha está na possibilidade de explorar as potencialidades das informações nelas contidas ou subentendidas, bem como compensar as dificuldades
encontradas, seja pela má conservação ou até mesmo pela ausência de documentos que impediam a elaboração, análise e produção do conhecimento histórico. Por essa via, foi possível
conhecer a trajetória da ginástica escolar e acompanhar a participação do instrutor–militar
na consolidação dessa disciplina na instituição educacional militar e civil.
Palavras-chave. Ginástica – Instrutor-militar – Fortaleza
Abstract. This work has the objective to argue the propagation of the pertaining to school
gymnastics for the instructor-military man in the period that contemplates the end of century
XIX and the beginning of century XX. The inquiry is based on the documentary research and
used book of memory (MENESES, 1982), periodic (REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ,
1959), Reviewed of the Literato Bosom of the Pertaining to the state of Ceará College of the
Sacred Heart, Greens Seas (1923-1939), the iconography. Finally, I consulted the Internet as
important communication in net, that is not limited only to the secondary sources, but also
primary sources in institutional, governmental sites or not, as, for example, the National Library of Rio de Janeiro (http:// www.bn.com.br). The intention of this choice is in the possibility to explore the potentialities of the information in contained or implied them, as well as
compensating the found difficulties, either for me the conservation or even though for the
document absence that hindered the elaboration, analysis and production it historical knowledge. For this it saw, it was possible to know the trajectory of the pertaining to school gymnastics and to follow the participation of the instructor-military man in the consolidation of
this disciplines in the educational institution to militate and civilian.
Keywords. Gymnastics – Instructor-military man – Fortaleza´s City
1
Professora Doutora em Educação Brasileira. Universidade Regional do Cariri-URCA.
Contato: [email protected]
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Introdução
A herança militar é facilmente observável na Educação Física brasileira. No Ceará, a participação militar não foi diferente. Da instituição militar, saíram os primeiros instrutores de ginástica do Liceu, Escola Aprendizes de Artífices, Escola Normal, Colégio Cearense do Sagrado Coração, Colégio Castelo Branco, entre outros estabelecimentos educacionais.
Em outros termos, das atividades corriqueiras da formação militar, tais como a instrução
militar, ginástica, treinamento físico e esporte, saiu o instrutor de ginástica do ensino civil, no
final do século XIX e início do século XX.
Nesta direção, o instrutor-militar foi a autoridade consagrada que, inclusive, formava outros formadores, como, por exemplo, as normalistas. Saliento que com a inclusão da ginástica na
formação das normalistas, essas também passaram a ministrar aulas de ginástica nas escolas primárias. Neste contexto, foi possível reconstituir, um pouco, da ginástica nessas instituições militares e o papel do instrutor - militar no ensino da ginástica escolar.
Este trabalho tem o objetivo de discutir a propagação da ginástica escolar pelo instrutormilitar no período que contempla o final do século XIX e o início do século XX. Essa investigação está fundamentada na pesquisa documental e utilizei livro de memória (MENESES, 1982),
periódicos (REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ, 1959), Revista do Grêmio Literato do
Colégio Cearense do Sagrado Coração, Verdes Mares (1923-1939), a iconografia.
Por fim, consultei a internet como importante comunicação em rede, que não se limita
apenas às fontes secundárias, mas também disponibiliza fontes primárias em sites institucionais,
governamentais ou não, como, por exemplo, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (http://
www.bn.com.br).
A intenção dessa escolha está na possibilidade de explorar as potencialidades das informações nelas contidas ou subentendidas, bem como compensar as dificuldades encontradas, seja
pela má conservação ou até mesmo pela ausência de documentos que impediam a elaboração,
análise e produção do conhecimento histórico.
Este trabalho está dividido nos seguintes tópicos: 1) Do Além-Mar ao Brasil: o legado das
artes liberais na constituição da Ginástica Militar; 2) A ginástica e o esporte nas instituições de
ensino militar em fortaleza e, por último, algumas considerações. Para tanto, recorro, a uma breve
retrospectiva para evidenciar a participação dos militares na formação física do fortalezense.
Do além-mar ao Brasil: o legado das artes liberais na constituição da ginástica militar
Ao lado da Família Real portuguesa, em 1808, desembarcava, entre outros, os mestres de
Artes Liberais (dança, equitação, esgrima) que atuavam no Real Colégio dos Nobres de Lisboa
(1761-1837)2. Essa instituição destaca-se por ter sido o primeiro estabelecimento oficial a possuir,
no seu curriculum, as disciplinas de dança, equitação e esgrima na formação dos meninos da aristocracia.
2
HASSE, 1981.
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A extinção do referido Colégio, no ano de 1837, proporcionou a divisão de suas atividades entre a Academia dos Guardas Marinha e o Colégio Militar em Portugal. Os citados estabelecimentos influenciaram fortemente à formação militar do Brasil. Exemplo disso está na foto abaixo que possibilita constatar a proximidade do fardamento do primeiro regimento de milícias
(Bahia, 1806) com o uniforme dos alunos do Colégio Militar português.
Figura 1. FONTE: RIBEIRO, Carlos 1º Regimento de Milícias (Baía - Brasil - 1806) [Visual gráfico / Carlos Ribeiro.
- [Lisboa]: Rev. Defesa Nacional, [ca 1937?] (Lisboa: Lit. de Portugal). - 1 rep. de obra de arte: color. 29x27cm
http://purl.pt/1161 - Data provável baseada no período de publicação da rev. Defesa Nacinonal - Rep. de desenho
Ficha Bibliográfica (visualização ISBD) [611849]CDU 356(81)”1806”(O84.1).
Figura 2. FONTE: Ficha Bibliográfica (visualização ISBD) 611865] RIBEIRO, Carlos. Alunos do Colégio Militar
(1816) [Visual gráfico / Carlos Ribeiro. - [Lisboa]: Rev. Defesa Nacional, [ca 1936?] (Lisboa: Lit. de Portugal). - 1
rep. de obra de arte: color; 29x17 cm http://purl.pt/1165. Data provável baseada no período de publicação da rev.
Defesa Nac.- Rep. de desenho CDU 355.1(469)"1806"(084.1) http://www.bnd.br
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No Brasil, a chegada da realeza promoveu à criação de vários órgãos, entre eles, o Exército brasileiro que se formou da junção das tropas portuguesas com as forças locais, como também, a criação da primeira Escola Militar, denominada, então, de Academia Real Militar pela Carta Régia de 4 de dezembro de 18103.
O propósito da referida Escola era formar quadros nacionais como “hábeis oficiais de artilharia, engenharia, oficiais da classe de engenheiros geógrafos e topógrafos”, além de “dirigir
objetos administrativos de minas, de caminhos, portos, canais, pontes e calçadas” (MAGALHÃES, 1949, p.532). Importante lembrar que, o modelo do curso ministrado aqui, vinha da
Europa (Op.Cit).
No Brasil, a Constituição de 1824 legitimou, juridicamente, o Exército Brasileiro o que
causou grande entusiasmo e a preocupação com a formação do quadro de oficiais. Nessas condições, os militares foram mandados à Europa para “se instruírem nas diferentes escolas militares”
(Op. cit, p.540), como, por exemplo, a Alemanha que foi um dos países escolhidos para o envio
de oficiais brasileiros para aprender o uso das grandes manobras militares e que constituiu o método ginástico alemão, inclusive, no Brasil.
Por aqueles dias, na então Corte Imperial, a ginástica era ministrada pelo instrutor militar
no Colégio D. Pedro II. Importante destacar que, no citado estabelecimento, os “exercícios gymnasticos”, perduram do período de 1841 a 1870, anterior, portanto, ao Decreto de 17 de fevereiro
de 18564.
Já nos estabelecimentos militares, o Decreto n. 2.116, de 11 de março de 1858, instituiu a
esgrima e a natação nos Cursos de Infantaria e Cavalaria da Escola Militar5, além de estabelecer o
acréscimo da prática da ginástica nos Cursos Preparatórios à Escola Militar (Decreto n.3705, de
22 de setembro em 1866). Oito anos depois, a ginástica, esgrima, equitação e a natação foram
inseridas nos cursos da Escola Militar e regulamentadas pelo Decreto n. 5.529, de 17 de janeiro
de 1874.
Como já foi citado, os métodos ginásticos viam do exterior, entre eles, saliento a influência do método alemão de ginástica6, nos meados de 1860 até 1912, nos quartéis brasileiros. Ocasião em que foi nomeado, ”Pedro Guilhermino Meyer, alemão, para a função de contra - mestre de
Ginástica da Escola Militar”7, sem desconsiderar a contribuição dos imigrantes alemães e dos
soldados prussianos da Guarda Imperial8 na implantação desse método no Brasil.
Segundo Soares (1998, p.70), o método ginástico alemão apoiava-se nos ensinamentos de
Jahn, Guts Muths e Spiess. A autora afirma que, “quanto às escolas primárias, o método alemão
não é considerado pelos brasileiros como o mais adequado. Rui Barbosa o combateu para as escolas preferindo que as mesmas adotassem o método sueco”.
3
Ressalto que a Escola Militar iniciou suas atividades, somente, em 23 de abril de 1811.
CUNHA JUNIOR (2003).
5
MARINHO, [S.D], p.25.
6
Ver também SOARES (1994).
7
Consultar CASTELLANI FILHO, 1994, p.34.
8
SOARES, 1994, p. 70.
4
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16
Ainda nos passos dessa trajetória, a Constituição de 24 de fevereiro de 1891 eliminava o
recrutamento militar forçado (§3º) e para ampliar o contingente nos quartéis, o Art. 86 obrigava
todos brasileiros a prestar “o serviço militar, em defesa da Pátria e da Constituição, na forma das
leis federais. À vista do exposto, a cargo da União estava a “instrução militar dos corpos e armas
e instrução militar superior” (§ 2º).
Como efeito do disposto na Constituição, o ensino militar passou pela reforma de “desdobrando-se a Escola Militar da Côrte, em Escola Militar para a formação de oficiais de infantaria
e cavalaria, e em Escola Superior de Guerra, para a de oficiais de artilharia, estado maior e engenheiros” (Ibidem). Nessas condições, no Ceará, foi criada a Escola Militar para a formação de
infantes e cavalarianos do Estado e de onde saíram importantes representantes na política e na
vida social de Fortaleza, entre eles, o instrutor-militar nas escolas da Capital cearense.
Por esta breve retrospectiva, friso a proximidade da relação dos instrutores militares com
a ginástica escolar brasileira. A esse respeito, Ferreira Neto (1999) lembra que “em todos os Regulamentos do Ensino no Exército, entre 1905 a 1945, há um componente curricular de Instrução Física, Ginástica ou mesmo Educação Física” e, esse será o objeto das considerações das
paginas adiante.
A ginástica e o esporte nas instituições de ensino militar em Fortaleza
O ensino militar no Ceará teve estabelecimentos distintos, a saber: Escola Militar do Ceará (18899-1897); Colégio Militar do Ceará (1919-1938), Escola Preparatória de Fortaleza (19421961) e o Colégio Militar de Fortaleza (1962 aos dias atuais). Embora em conjuntura distinta, a
“ritualística militar”, segundo Marques e Klein Filho (2007, p. 179), foi contínua.
Este estudo contempla apenas o final do século XIX e início do século XX, período que
destaco “fases” da ginástica (anos à frente, passa a ser denominada de Educação Física) e, que de
tão atrelada ao treinamento militar, passou, muitas vezes, despercebida no curricular escolar, por
ser vista como uma prática corriqueira.
A primeira Escola Militar do Ceará10 teve o predomínio do ensino teórico (Regulamento
de 12 de abril de 1890) com a seguinte programação escolar: ”1º Ano - Aritmética, Português
(gramática), Francês (gramática) e Geografia; 2º Ano - Álgebra, Português (complementar), Francês (complementar) História e Desenho; 3º Ano - Geografia, Inglês, Alemão, Noções Concretas
de Ciência, Física e Naturais” (REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ, 1959, p.170). Seu
primeiro comandante foi o Tenente-Coronel do corpo de Estado-Maior da Primeira Classe João
Nepomuceno de Medeiros Mallet, mais tarde, tornou-se General da Divisão e Ministro da Guerra
do Governo de Campos Sales (REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ, 1959, p.115).
9
Lei Imperial de 1888 (SILVA, 2001).
Não me deterei em um estudo aprofundando dessas instituições, apenas tratarei o papel do instrutor militar
e sua relação da ginástica em algumas escolas de Fortaleza. Recomendo, para maior aprofundamento, consultar: SOUZA (1950); CASTELO (1970); SILVA (2006); REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ (1959); MENESES (1982);
SOUSA ( S/D), CASTELO (1970).
10
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No quadro docente da instituição estava: Coronel José Freire Bezerril Fontenele, Major
José Faustino da Silva e Capitão Benjamin Barroso (Matemática); Tenente-Coronel Pedro Augusto Borges, Major Manuel Nogueira Borges e Francisco Joaquim da Rocha (Português); Capitão
Marcos Franco Rabelo, Candido de Holanda da Costa Freire E Tomás Pompeu Pinto Acioly
(Francês); Ernesto de La Riviere (Inglês); Capitão Victor Guilhobel. (Desenho); Joaquim de Oliveira Catunda e Manuel Magalhães (Alemão); Thomaz Pompeu de Sousa Brasil (Geografia); Antonio Augusto de Vasconcelos (História) e o Capitão Victor Guilhobel (que assumiu, interinamente, a cadeira de Ciências Físicas e Naturais) 11.
Contava, também, com oficiais instrutores coadjuvantes, a exemplo, do “Tenente Francisco Batista Torres de Melo, Mestre de Esgrima de Espada e Florete; Tenente Frederico Augusto de Albuquerque Melo, Mestre de Ginástica e Natação; Tenente Antonio Pereira da Silva Leitão, exercendo, interinamente, as funções de instrutor de Infantaria, na ausência do Capitão Francisco Benévolo, no ano de 1897 (REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ, 1959, p.121). No
geral, o quadro docente se manteve até o ano de 1897, ano em que foi extinta.
Embora a ginástica estivesse na programação da escola destaco que, neste período, a então Escola Militar (1889-1897), teve dificuldades de instalar a gymnastica devido à precariedade
registrada no Relatório de 1891 (REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ, 1959, p.121). Foram
corriqueiras as reclamações da carência de materiais, ausência de cômodos para o regime internato, de uma biblioteca, do gabinete de ciências e, principalmente, o prejuízo da realização dos trabalhos de fortificação, ginástica e esgrima.
Após um período desativado12, o ensino militar na Capital ressurgiu como Colégio Militar,
em 1919, (Decreto n. 3674 de 07 de janeiro de 1919, Art.65) e seguia as mesmas diretrizes das
Escolas de Porto Alegre e Barbacena. Nesse período, o primeiro corpo docente do Colégio foi
nomeado em caráter provisório13, entre eles, estava Miguel Hoerhaun, o “mestre de gymnastica e
natação”14 compondo o quadro da instituição.
Na direção do Colégio seguiram os seguintes comandantes: Tenente-Coronel de Engenharia Marciano de Oliveira e Ávila (1919-1921), Tenente – Coronel Salvador Uchoa Cavalcante
(1921-1923), Tenente-Coronel Engenheiro Eudoro Corrêa (1923-1936), Coronel de Infantaria
Alcebíades Dracon Barreto (1936-193815).
11
MARQUES e KLEIN FILHO (2007, p.58).
Somente em 26 de março de 1919, instalou-se o Colégio Militar do Ceará, permanecendo até fins de 1938,
quando foi extinto. Maiores informações em MARQUES e KLEIN FILHO, 2007, p.58.
13
Com a seguinte constituição: 1ªSeção: Sylvio Julio de Albuquerque Lima, professor de Português; Guilherme
Moreira da Rocha, professor de francês; Julio de Matos Ibiapina, professor de inglês; Artur Adauto Pereira de
Mello, adjunto; Artur Stuart, adjunto. 2ª Seção: Alexandre Barreto, professor de aritmética; Raymundo Eurico
13
Cavalcante , de álgebra; major reformado Galdino Tavares de Sousa, adjunto; major reformado Joaquim Potygara de Macedo, Affonso Feijó da Costa Riveiro e Nilo Barroso, adjuntos. 3ª Seção: Mariano Martins Lisboa
Netto, professor de Geografia; Artur da Silva Jucá, de História Geral; Domingos Olympio Braga Cavalcante (Magistrado e romancista cearense, autor de “Luzia-Homem”), adjunto; Fernando Moreira, adjunto. 4ª Seção: Luiz
Liberato Barroso, professor de Desenho; João Marinho de Albuquerque Andrade, adjunto. Ob. Cit.
14
Ver MARQUES e KLEIN FILHO (2007).
15
MARQUES e KLEIN FILHO explicam que: ”Em 1938, o Colégio Militar do Ceará foi extinto e o seu patrimônio
entregue ao Ministério da Educação, que ali instalou um colégio civil mantido pelo Governo Federal, o Colégio
Floriano de curta duração, desaparecido em 1941” (2007).
12
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18
Destaco que, na gestão de 1921-1923, o curso tinha a duração de 06 anos e programas trienais. Destaco a 3ª secção do Curso composta pelas “Sciencias Physicas e Naturaes” destinadas
ao Ensino Prático de Infantaria, Tiro ao Alvo, Equitação, Esgrima, Gymnastica, Natação e Música,
conforme aponta a ilustração:
Diretor-Tenente-Coronel Salvador Barbalha Uchoa Cavacanti
Fiscal - Capitão Fco. Vasconcellos
Ajudante - Capitão Hugo de Alencar Mattos
Secretário - Primeiro Tenente Augusto de Oliveira Góes
Sub - Secretário – Primeiro Oficial Presciliano Almada Rodrigues
Segundo – Official – Luiz Baptista Vieira;
Terceiro – Official - Manoel Nazareno da Silva
Bibliotecário - João Anuário de Araújo
Intendente – Primeiro Tenente Laurindo Ferreira da Silva Junior
Commandante da Primeira Companhia e Interino da Segunda – Primeiro Tenente Ildefonso Gomes Jardim
Sargento da Primeira Companhia - Primeiro Sargento Jonas de Moraes Colares
Sargento da Segunda Companhia – Segundo Sargento Jose Alves de Lima
Porteiro – Francisco Baptista de Vasconcellos
Corpo Docente:
Professor de Português – Antonio Ferreira dos Santos
Professor de Francez - Dr. Carlos da Rocha Fernandes
Professor de Inglez - Pedro Albano de Aritmética
Professor de Aritmética – Primeiro Tenente Eurico de Figueiredo Sampaio
Professor de Álgebra – Primeiro Tenente. Viçar Parente Paula Pessoa
Professor de Geometria - Major André Bernardino Chaves
Professor de Desenho – Primeiro Tenente Heitor Gonçalves de Araújo
Professor de Geographia - Capitão Caio Lustosa de Lemos
Professor de História Geral - Dr. Waldemar Crowell do Rego Falcão
Adjuntos da Primeira Secção
Professor de Língua – Drs. Guilherme Moreira e Beni Carvalho;
Adjuntos da Segunda Secção (Mathematicas e suas Applicações) – Drs. Henrique de
Alencastro Autran, Manoel Ávila Goulart, Major Eudes de Andrade; da 4ª (Geographia, Corographia e História do Brasil) Capitão José Lessa Bastos, da 5ª (desenho) - João
Marinho de Albuquerque Andrade.
Prof. Supplementares: de Physica – Capital Álvaro Bittencourt de Carvalho;
Adjunto – Capital Cezar Monte; de História Natural - Dr. Roberto Lisboa.
A 3ª secção comprehende as Sciencias Physicas e Naturaes e ao 6ª e a 7ª o Ensino Prático de Infantaria, Tiro ao Alvo, Equitação, Esgrima, Gymnastica, Natação [grifo
meu] e Música.
Mestre de gymnastica e natação [grifo meu] – Lafayette Tapioca
Mestre de Música - Euclydes da Silva Novo
Corpo de Saúde
Médico – Capitão – Dr. Cesário de Arruda
Pharmaceutico – Primeiro Tenente Arnalpho Pamplona Filho
Pratico de Pharmacia - Álvaro Craveiro
Enfermeiro – Manoel de Almeida Mattos
Pessoal Auxiliar
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Inspectores de Primeira Classe - Candido de Cerqueira Lima, Eleutério Antonio dos
Santos, Emygdio Ferreira Lobo e José Feijó.
Inspectores de Segunda Classe - Agnel Conde, Francisco Belmino da Silva, Norberto
dos Santos Carvalho, Pierre Pereira da Luz e Jayme Pereira Braga.
Feitor - Nestor da Silva Oliveira
Fiel - Paulo Vieira da Costa
Contínuos-Antonio Pedro de Lima e João Ramalho de Castro (REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ, 1959, p.176).
A ilustração revela a presença, não somente da ginástica, mas também da natação ao lado
da equitação e esgrima consideradas fundamentais para a formação militar e na responsabilidade
pela ginástica estava o mestre Lafayette Tapioca.
Compondo o programa da ginástica escolar, saliento a presença da pirâmide humana tão
difundida em vários estabelecimentos educacionais do país como “arte que utiliza as formas
humanas para a criação de padrões simétricos e belos” (PRICE, 1940, p.50). A seguir, um exemplo da pirâmide:
FIGURA 3. Ginástica dos Alunos do Colégio Militar, em 1924.
Fonte: MARQUES e KLEIN FILHO, 2007.
A construção da pirâmide humana tinha fins demonstrativos em ocasiões festivas no calendário da escola, além do objetivo de desenvolver o espírito criador, formação do líder e trabalho cooperativo do grupo. O sucesso dessa expressão dependia de vários fatores, entre eles, uma
base firme formada pelos mais fortes e pesados enquanto os meninos menores, geralmente os
mais novos e franzinos ficavam no topo. Tal prática foi muito difundida nas aulas de alguns estabelecimentos cearenses, entre eles, o Colégio Cearense, como, segue a ilustração abaixo:
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FIGURA 4. Acrobacia “Pirâmide” no Colégio Cearense. Fonte: REVISTA VERDES MARES, 1934.
Disponível na Biblioteca Pública do Estado do Ceará.
Como aconteciam em outras instituições, os exercícios ginásticos seguiam as orientações
dos instrutores militares que eram os responsáveis pela disciplina escolar. Semelhante às aulas do
Colégio Militar, os alunos eram (e ainda são, em muitas aulas de Educação Física Escolar nos dias
de hoje) dispostos em fileiras e acompanhavam os exercícios com a precisão dos gestos e movimentos em sintonia, cadência, organização e ritmo, conforme, exemplifica a demonstração abaixo:
FIGURA 5. Aula de Ginástica dos Alunos do Colégio Militar. Fonte: MARQUES e KLEIN FILHO, 2007.
Na gestão de Eudoro Corrêa, o Colégio recebeu melhoramento, tanto interno como externamente, como, por exemplo, o picadeiro para exercício de equitação, a construção de vinte
baias para os cavalos do Colégio, o prédio para a banda de música, construção da quadra de esportes constituída de “pistas, caixas de salto, campos de vôlei e basquete, existentes entre a fachada principal e o muro externo” (MARQUES e KLEIN FILHO, 2007, p. 28).
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Com esse apoio, o esporte, no Colégio, cresceu, tendo até, em 1924, a formação de equipes esportivas em cada modalidade esportiva, conforme ilustração abaixo:
FIGURAS 6 e 7. Aulas de Ginástica dos Alunos do Colégio Militar.
Fonte: MARQUES e KLEIN FILHO, 2007.
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FIGURAS 8, 9, 10. Aulas de Ginástica dos Alunos do Colégio Militar.
Fonte: MARQUES e KLEIN FILHO, 2007.
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A direção do Colégio incentivava todas as modalidades esportivas, com exceção do futebol,
considerado “jogo de vagabundo” e feria tanto as normas de posturas da cidade16 como as da
instituição. Ao aluno desobediente aplicava o seguinte castigo:
CASTIGO DISCIPLINAR
É privado de sahir por 15 dias, o alumno n. (...) por ter-se portado mal na rua
jogando foot-ball descalço e sem camisa, acompanhado de alunos de outros
collegios e vagabundos (BOLETINS de 16 de jun. de 1919. In: MARQUES e
KLEIN FILHO, 2007, p. 72).
Isto posto, o que estava em discussão era a transgressão causada às posturas da Cidade
que, na ideia de civilidade, impera regras únicas, padronizadas e sérias do vestir, comportar e sentir. No caso do futebol em Fortaleza, a relação de mão dupla extrapola os limites da rua e da escola, e se, inicialmente, era uma prática considerada perigosa, vadiagem e nociva, aos poucos, o
futebol foi incluído na programação de muitos estabelecimentos educacionais.
Conclusão
Em largas linhas, foi possível acompanhar uma via, entre outras possíveis, o caminho da
ginástica na Capital cearense que conta com a participação de mestres de esgrima, equitação e
dança no Real Colégio dos Nobres. A partir de então, o ensino das citadas Artes Liberais proliferou nos serviços militares, academia e até nas escolas. Este legado estendeu-se à composição da
educação corporal e na constituição da gymnastica escolar brasileira.
No final do século XIX e início do século XX, a ginástica estava presente nas principais
escolas particulares e públicas da capital e tendo o instrutor-militar na consolidação dessa disciplina na instituição educacional militar e civil.
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16
Consultar BARBOSA (2003).
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24
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2. MEDIAÇÃO DA APRENDIZAGEM PARA TEXTOS DO
LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA DO 6º ANO DA BIBLIEX
MEDIATION OF LEARNING TO TEXTS OF TEXTBOOK
OF HISTORY OF THE 6TH YEAR BIBLIEX
Regina Cláudia Oliveira da Silva 1
Resumo. Este artigo apresenta propostas de atividade mediada para três assuntos
de História do Brasil (História, Economia Açucareira e Política Interna no Primeiro Reinado), escolhidos pela sua representatividade de conteúdo que constam no
livro-didático de História do 6º ano do Ensino Fundamental do Sistema Colégio
Militar do Brasil (SCMB). Justificam-se estas propostas de aulas mediadas pelas
dificuldades apresentadas pelos alunos do 6º ano do Colégio Militar de Fortaleza
(CMF), turma de 2008, na leitura e aprendizagem com o livro-didático, através dos
métodos tradicionais de ensino e aprendizagem. A fundamentação teóricometodológica baseia-se na teoria de Modificabilidade Cognitiva Estrutural (MCE) e
na Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM), de Reuven Feuerstein, que visa
promover a metacognição do aluno através da construção de significados cognitivos e da capacidade permanente de transcendência do conhecimento construído
no processo de mediação. Conclui-se que a prática mediadora é uma ferramenta de
aprendizagem possível para o SCMB e cada vez mais indispensável quando se pensa em ensinar o aluno a aprender a aprender.
Palavras-chave. História – Aprendizagem mediada – Livro didático
Abstract. This paper presents proposals for mediated activity on three subjects
concerning the subject Brazilian History (History, Brazilian Sugar Plantation Period Economics and Domestic Politics for the First Brazilian Kingdom Era), chosen
by their importance in content representation, as they appear in the History textbook for the 6th year of Junior High School level students in the Brazilian Military
School System (BMSS). To justify these proposals for mediated classes by the difficulties the students from the 6th year of Junior High School level in the Military
School in Fortaleza have presented, class of 2008 in reading and learning from the
textbook, by means of traditional teaching and learning methods. The theoretical
and methodological reasons based on Reuven Feuerstein’s Theory of Structural
Cognitive Modifiability (SCM) and the Mediated Learning Experience (MLE),
which seek to promote the student’s metacognition through the construction of
cognitive meanings and the permanent capability of transcendence of knowledge
built by the mediation process. We come to the conclusion that the mediating
practice is a possible learning tool for the BMSS and is increasingly indispensable
when one thinks of teaching the student to learn how to learn.
Keywords. History – Mediated learning – Textbook
1
Mestre em Letras, pós-graduada em Administração Escolar e graduada em História pela UFC. Mediadora
do PEI I e II. Professora de História do Colégio Militar de Fortaleza. Contato: [email protected]
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
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1. Notas introdutórias
A falta do hábito de leitura da maioria dos alunos é uma das maiores aflições porque
passam os professores da área das ciências humanas, sobremaneira os de História. Não fosse a
limitação do costume de ler, há também o embaraço daqueles que leem e são abatidos pela
pequena capacidade de interpretação da leitura, de extração daquilo que é relevante, de encontrar significado no texto lido, de transcendê-lo.
Com o passar do tempo, na disciplina História, a cada ano escolar, isso se torna mais
exacerbado, visto que o conteúdo se torna cada vez maior, as teorias são revisitadas, questionadas, ganham novas roupagens. Fatos que há décadas são repetidos e respeitados nas comunidades científicas e acadêmicas ganham renovadas abordagens teóricas e metodológicas e
novos assuntos alcançam espaço investigativo.
Toda essa composição de fatores tem que se adequar à estrutura escolar e à metodologia de ensino que, no caso do Sistema Colégio Militar do Brasil, tem toda uma configuração
específica. A primeira constatação que fazemos é que ainda trabalhamos a disciplina História
da maneira mais ortodoxa possível, pelo menos no que toca à sua divisão por ano do Ensino
Fundamental, período que nos deteremos, visto que nosso objeto de análise é o livro de História do 6º ano.
Estudamos História do Brasil, do Descobrimento à Abdicação, no 6º ano, e, no 7º ano, da Regência aos dias atuais. Nos 8º e 9º anos vemos História Geral, divididas em PréHistória, Antiga, Medieval e Moderna até Reforma Protestante no 8º ano, e Moderna, a partir
de Formação dos Estados Nacionais, e Contemporânea até Crise do Socialismo Real no 9º
ano. Indubitavelmente a cultura estabelecida ainda por meio da “Reforma Capanema”, que
implantou a cisão entre História Geral e do Brasil, deixou marcas indeléveis sobre um modo
determinado de conjecturar e discutir as temáticas históricas: tão somente findado o estudo
sobre o Brasil, é proporcionado ao aluno entrar no mundo das temáticas vinculadas à História
Geral, como se uma não se relacionasse à outra. Esse panorama, baseado em uma avaliação
eurocentrista do tempo histórico, atrelou-se, por fim, mesmo que sob diversos recortes temáticos, a uma abordagem dos programas marcada pela valorização da identidade nacional, por
meio da inserção dos conteúdos de História do Brasil a partir do segundo segmento do ensino
fundamental, ou seja, do 6º ano em diante.
Hoje, boa parte das coleções de História utilizam-se de uma organização dita integrada,
porque articulam o conteúdo de História Geral com História do Brasil e História da América.
Este tipo de abordagem oferece primazia ao entendimento do processo histórico em seu contexto mais geral, encaminhado por um fio condutor numa perspectiva cronológica e sucessiva,
definida a partir da evolução da civilização europeia (novamente o caráter eurocentrista), integrando-se, as demais culturas, cronologicamente, ao epicentro europeu. Apesar das críticas que
são feitas a essas coleções, em nosso entendimento elas ganham em introduzir a História do
Brasil num contexto mais amplo, dando a oportunidade ao aluno de fazer maiores relações e
entender melhor a História do Brasil enquanto parte de um processo integrado a uma totalidade.
Definido que o conteúdo de História do 6ª ano do SCMB é História do Brasil, do
Descobrimento à Abdicação, em uma análise geral do livro, editado pela Biblioteca do ExérciEDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
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to (BIBLIEX), em comparação com outras coleções do mercado editorial, com volumes que
atendem do 6º ao 9º ano, do ponto de vista editorial e técnico, podemos dizer que a coleção
da BIBLIEX é simplória. Em se tratando do conteúdo programático, há um volume considerável de correções a serem feitas. Entretanto, no geral, atende perfeitamente às necessidades
dos Planos de Disciplinas (PLADIS) e Planos de (PLAEST) do Sistema Colégio Militar do
Brasil (SCMB) e à formação conteudista reconhecidamente de excelência dos nossos alunos.
No entanto, o que nos chamou atenção no ano de 2008 foi o volume de reclamações,
por parte dos alunos e de muitos pais, quanto ao entendimento do livro, pois diziam ser trucado, complexo, desconexo e desestimulante. Fosse uma reclamação isolada, teríamos apenas
contornado individualmente, mas era uma reclamação geral, o que nos levou a tomar duas
atitudes, com relação ao livro, principalmente depois do resultado da primeira Avaliação de
Estudo (AE), baseada exclusivamente no seu uso como material de apoio, que por pouco não
nos levou a uma Pesquisa Pedagógica sobre Resultado de Prova (PPRP): inserir outros materiais (textos e outras fontes de pesquisa) e procurar tornar o livro mais agradável, possível de
uma leitura e aprendizagem mediada que fizessem surgir no aluno uma possibilidade maior de
significado cognitivo e de transcendência.
O que pretendemos é que o aluno seja capaz de compreender a História como processo, de fazer relações, de emitir opiniões sobre os acontecimentos, sem ter a necessidade de tão
somente memorizar e repetir fatos desconexos, sem integrá-los à sua totalidade histórica. Não
se trata de desqualificar a memorização, pois sem a mesma a aprendizagem não seria possível,
sabemos. Queremos dar à memorização o seu verdadeiro mérito, como nas palavras de Fonseca:
Dos processos de memória, sem os quais a aprendizagem seria impossível,
aos processos transientes perceptivos, imagéticos, simbólicos e conceituais
(Fonseca, 1998), passando pela resolução de problemas, até a expressão de
informação e sua concomitante prestação comportamental, o que exige a rechamada e a recuperação da mesma, a sua fluência ou disfluência e a sua metassincronização e metacoordenação ilustram necessariamente a eficácia ou
ineficácia das diferentes habilidades cognitivas que a sustentam (FONSECA,
2002, p. 58).
Atingir tudo isso deve ser a meta do professor de História, que o aluno não perceba a
matéria como “decorativa”, porque não é possível decorar tudo, memorizar nomes, datas e
eventos para que ele, aluno, seja capaz de atingir uma nota máxima a cada bimestre, alcançar
um “alamar” ou mesmo ser um destaque anual, ou até, no futuro de sua carreira escolar, atingir os seus maiores sonhos acadêmicos. Ele não vai conseguir isso tudo apenas “decorando”.
Imagine, então, se o aluno ingresso no SCMB, recém-concursado, ou mesmo amparado, ansioso, feliz, deparando-se com um mundo novo, cheio de sonhos, encontra-se com as dificuldades da História, apresentada a ele de maneira mais científica e, pior, com um livro que ele julga
dificílimo, quase impossível de entender. O cume dessa situação pode ser desastroso: o difícil
momento da prestação de notas, o recebimento da prova, quando se espera o 10,0 e se recebe
o 8,0 ou 7,0, quando muito, ou notas abaixo da média... É uma desilusão. O grande perigo não
está no fato dos alunos desgostarem do professor, mas de criarem uma antipatia com a disciplina História, ou estudarem por obrigação, levando a um possível trauma ou a um quadro de
dificuldades por toda a vida. Mas a gênese dessa grande estorvo pode estar no ato de ler, em
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seus mais diversos meandros, o que pode significar mais uma categoria de Feuerstein, a síndrome de privação cultural, quando o indivíduo pode ter sofrido uma ausência de mediação
cognitivo-cultural dos adultos responsáveis pela sua aprendizagem (a não intermediação), independentemente de qualquer conotação econômico-social.
Os alunos, pelos mais variados motivos, realizam com muita dificuldade ou
precariedade a leitura. Até mesmo a decodificação de palavras e frases é feita
com limitações, trazendo sérias repercussões para a compreensão do que se
lê. [...] Como muitos autores já observaram, só se aprende o que pode ser decodificado pela linguagem (em suas diversas formas de expressão), e não por
outro motivo ela é o principal suporte para os saberes escolares. [...] Como
consequência, os professores especialistas de cada disciplina, que ministram
aulas de Geografia, Matemática, Ciências e outras, precisam agregar ao rol de
variáveis que orientam seu trabalho mais uma: uma metodologia para o desenvolvimento da linguagem, particularmente daqueles aspectos que são
próprios da sua área, em que predominam textos expositivos/dissertativos.
Cabe aos professores de História uma enorme colaboração nessa tarefa
(SILVA, 2004, p. 70-71).
Diante do quadro apresentado, nos propusemos a, com alguns textos do livro, tentar
uma aula diferenciada, mediada, que aqui apresentamos.
2. Aprendizagem mediada
Fundamentamos nossa proposta de mediação na teoria de Reuven Feuerstein: Modificabilidade Cognitiva Estrutural (MCE), um permanente e autorregulador processo de mudança e transformação do ser humano que contempla condições fundamentais que efetivam a
relação íntima entre o todo e as partes, em sua totalidade enquanto ser, cujo único caminho
possível é a mediação de qualidade, pois, através dela, o indivíduo poderá operacionalmente
reagir a estímulos, construir ações conscientes, significativas cognitivamente e transcender
através do conhecimento adquirido. Visando transmitir além do conteúdo, a Experiência de
Aprendizagem Mediada (EAM) é um processo em que se reelabora, reestrutura um vínculo de
aprendizagem entre emissor e receptor, transforma-se o modo de perceber a realidade, detendo-se na observação mais precisa e detalhada, na atenção mais exata e dirigida, na intenção
permanente de análise, no envolvimento motivacional e na construção de um significado para
todo evento cognitivo.
No entanto, as interações necessárias para mediar mudança comportamental, processual, não são suficientes, se não ponderarmos que através do processo de metacognição, arremate da mediação, o mediado encontrará o conteúdo, terá sido afinal capaz de identificar e
trabalhar com aquilo a que se destinou, desde o princípio, o momento mediacional. Aqui a
EAM está ligada a uma descrição das funções necessárias que o indivíduo deve adquirir e usar
em sua interação com o mundo dos objetos e eventos. A delimitação e descrição das funções
cognitivas de Feuerstein servem de base para a intervenção do professor-mediador, uma vez
que identificam as informações relevantes que devem ser tomadas e, em transformadas, no
plano interno, elaboradas em informações significativas, alçadas à profundidade do entendimento e das respostas adequadas por meio da comunicação efetiva, correspondem essencialmente à mudança comportamental do indivíduo.
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Feuerstein acredita que existem duas modalidades de aprendizagem: uma abordagem direta e uma abordagem mediada. A abordagem direta é baseada
na fórmula S-O-R de Piaget, significando que o organismo (O), ou aprendiz,
interage diretamente com o estímulo (S) do mundo à sua volta e dá a resposta (R). Nesse tipo de interação com o ambiente a aprendizagem é incidental
[...] e, de acordo com Feuerstein, não é suficiente para assegurar a ocorrência
de uma aprendizagem efetiva (MENTIS, 2002, p. 18).
Isto posto, do esquema proposto por Piaget para explicar o ato de aprender, o ato decorrente da influência mútua direta do organismo-aprendiz (O) com os estímulos (S) que produzem uma resposta (R), no modelo S ↔ O ↔ R, Feuerstein, considerando tal modelo
insatisfatório, construiu seu próprio, acrescentando ao de Piaget a função do mediador humano, identificado como H, perfazendo o esquema S ↔ H ↔ O ↔ H ↔ S.
A EAM foca substancialmente a intencionalidade na interação humana, a significação,
a transcendência de ações. A produção proposital de significados ocorre através de uma relação dialógica, transcendendo o conteúdo e reorganizando-o, conduzindo à flexibilidade e à
autoplasticidade da existência humana, à possibilidade de modificabilidade constante do indivíduo, porque todo organismo está disposto à permanente transformação para sobreviver às
pressões externas e internas, e, para adaptar-se com sucesso, desenvolve pré-requisitos cognitivos afetivos e motivacionais.
Baseia-se a mediação na transmissão e construção de significados, dentro da cultura do
indivíduo, quando um ser humano se coloca entre outro organismo e o mundo, incitando e
acessando sua capacidade de aprender, de reagir e fazer juízo próprio daquilo que está em torno de si. É a preparação do indivíduo para a aprendizagem. Como salienta Feuerstein (1994, p.
6) “é a figura do mediador que intervirá, que induzirá à análise, à dedução e à percepção. Ele
transmitirá as motivações e estratégias. Ajudará a interpretar a vida”.
Como já vimos, Feuerstein sofreu influência das considerações de Piaget, e não podemos deixar de citar as semelhanças com a teoria de Vygotsky. Sobre isto, afirma Varela,
[...] percebe-se que Feuerstein e Vygotsky desenvolveram suas teorias sob
forte influência de Piaget. Contudo, começaram a perceber que certos aspectos da diretriz piagetiana poderiam ser esquecidos. Para Vygotsky, a insatisfação estava no individualismo epistemológico da teoria de Piaget e na negligência da mediação social. Para Feuerstein, havia a questão dos mecanismos
concretos da aprendizagem em relação à mediação de outro ser humano
(VARELA, 2007, p. 126).
A EAM apresenta parâmetros denominados por Feuerstein como critérios de mediação, itens de atenção prementes por parte do mediador, sempre interligados, de tal ordem que
qualquer atributo pode surgir em qualquer ponto dentro da experiência de mediação, quais
sejam: intencionalidade do mediador e reciprocidade do mediado, por meio da formação
de vínculos entre ambos; significado, quando o mediador incita a construção de significados,
por meio de valores, atitudes culturais, laços sociais e outros elementos que desenvolvam no
mediado um processo de construção de um sentido de vida, de uma visão de mundo – é a
compreensão das partes que vai levar à totalidade concreta; e transcendência, quando o momento da mediação extrapola-se e o conhecimento adquirido, através da ação mental, projeta
generalizações, estendendo-se no tempo e no espaço – é a capacidade de síntese que adquire o
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indivíduo, para toda a vida, levando definitivamente à modificabilidade. Esses são os três mais
importantes. Compõem o quadro de critérios: competência, autorregulação e controle de
comportamento, compartilhamento, individuação, planejamento de objetivos, automodificação, e desafio.
Faz parte da teoria de Feuerstein o conceito de funções cognitivas, entendidas como
processo estruturado, complexo de relações, onde cada função em si já é um processo complexo, não redutível, que se liga a outras funções também complexas e não redutíveis. Sendo
um elemento estrutural, composto por partes em uma totalidade, é dialético, produto da relação dinâmica entre o biológico e o cultural. As funções compõem o ato de aprender, o ato
mental. O objetivo é corrigi-las, quando se apresentarem deficientes.
Feuerstein divide-as em três fases: input, que incluem todas aquelas deficiências qualitativas e quantitativas da informação recolhida pelo indivíduo e que se manifestam quando ele
tem que identificar, considerar ou resolver algum problema; elaboração, que incluem os fatores que impedem o sujeito de fazer uso eficaz da informação coletada; e output, que podem
ser as responsáveis pela comunicação insuficiente por parte da pessoa, pois embora tenha percebido a situação problema, analisado-a de forma adequada, o indivíduo não consegue expressar-se de maneira clara e precisa.
As funções cognitivas estão diretamente ligadas às operações mentais, que são um conjunto de ações interiorizadas, coordenadas e organizadas pelos quais se elaboram as informações provenientes de fontes internas e externas de estimulação. Podem ser simples, como identificação e comparação, ou bastante complexas, como raciocínio analógico, hipotético,
silogístico, e aquelas que mais interagem com a construção do saber histórico, como a análise e
a síntese.
Como nosso propósito maior neste artigo é fazer algumas considerações a respeito da
possibilidade de mediação com o livro de História do 6º ano do SCMB aliado à teoria de Feuerstein, não vamos listar as funções cognitivas, pois nem todas estão diretamente envolvidas
com os nossos objetivos e, à medida que explanarmos nossas ideias, as que se relacionarem
com a mediação em História surgirão naturalmente.
3. Proposta Mediacional
Esta proposta mediacional, além de alicerçar-se na MCE e EAM de Feuerstein, buscou
suporte metodológico no manual de Aprendizagem Mediada Dentro e Fora da Sala de Aula
elaborado pelo Programa de Pesquisa Cognitiva da Divisão de Educação Especializada da
Universidade de Witwatersand da África do Sul, sob coordenação de Mandia Mentis. A edição
do livro do 6º ano que utilizamos foi a de 2004, visto que a maioria dos alunos a possuía. Escolhemos apenas três textos do livro devido à questão da operacionalidade espacial do artigo,
porém buscamos dar a maior representatividade possível do conteúdo abordado na série.
Haverá o destaque para os três principais critérios de mediação (intencionalidade/reciprocidade, significado e transcendência) em nossa análise, no entanto outros critérios
de mediação serão citados quando oportunamente forem necessários. Salientamos que para
uma mediação de sucesso, é necessário que o professor disponha de aulas geminadas.
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3.1. História, p. 14-15
O texto, em linhas gerais, apresenta alguns conceitos de História, mostra uma linha do
tempo dividindo a História da humanidade em antes e depois de Cristo e ensina a fazer a contagem e a identificação dos séculos. Como é a aula introdutória da disciplina, acreditamos que
o cuidado do professor-mediador deve ser maior, para despertar no aluno um potencial de
reciprocidade e de geração de significado para a utilização do livro-didático e para a disciplina
como um todo que possa perdurar para todo o ano letivo.
•
Mediar intencionalidade e reciprocidade tentando chamar a atenção para o que realmente
interessa no texto: o que temos de novidade nesse texto? O que vocês pensam que é História? (Na fase de elaboração, pedir ao aluno para criar seu próprio conceito). Observando bem a gravura da linha do tempo, o que podemos dizer dela? (Para conferir a percepção do aluno, lembre a ele que antes de responder, certifique-se que considerou todas as
fontes de informação, pois assim também estará mediando auto-regulação e controle de
comportamento). Vocês viram a tabela dos séculos, entenderam sua lógica? (Numa situação de impulsividade, muito comum em situações com 6º ano, o professor-mediador deve buscar maior sistematização tentando focar uma informação de cada vez. Quando aparecerem respostas corretas, então poderá haver a mediação de competência, quando se
pode reforçar uma habilidade particular: diga-nos como você sabe disso!)
•
Mediar significado nesta aula é importante e pode implicar para o processo de aprendizagem da disciplina para toda a vida do aluno. Quem sabe poderemos evitar situações futuras de perguntas desconcertantes, como: “Professor (a), pra que estudar História?” Aqui o
professor-mediador deve dar a chave para o significado do estímulo, abrindo e interpretando o contexto cultural em que se insere o aluno, portanto sua mediação deve ser cognitiva e afetiva: “estudamos História para entendermos o nosso passado, vivermos um
presente mais tranquilo e construirmos um futuro melhor”; “nós somos seres históricos,
construímos nossa própria história”. O que significa a.C e d.C? É possível recuperar a
História passada? É possível fazer uma linha do tempo da sua vida? (O professormediador pode sugerir a elaboração de um mapa mental da vida do aluno, dos fatos mais
relevantes de sua vida, o que também seria mediação de planejamento de objetivos e de
autoconhecimento). Com relação aos possíveis erros com os cálculos dos séculos, é importante deixar que os alunos reflitam sobre seus trabalhos e descubram as causas dos
seus erros, destacando novamente a importância da coleta sistemática de dados: “vamos
ver porque esta resposta não está precisa” (o mediador estará mediando competência).
•
Mediar transcendência é generalizar e é fundamental que numa aula mediada a generalização e a construção de princípios sejam feitos. Nesta aula, transcendência já veio com a
construção dos significados, quando destacamos que: “a História ensina a aprender com o
passado e a construir um futuro melhor”, “o ser humano é um ser social e constrói a sua
própria história” (a elaboração da linha do tempo da vida do aluno pode ser fonte de uma
variada constituição de princípios). Um aluno chama atenção para o dinossauro que está
desenhado no início da linha do tempo e o professor-mediador pode generalizar abrindo
um pequeno debate sobre a extinção dos dinossauros, pedindo para que os alunos pesquisem sobre o assunto (neste caso, estará mediando desafio). O quadro da leitura complementar também pode ser utilizado para rica reflexão de transcendência, uma vez que
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mostra como contam o tempo outros povos não-cristãos. Pode haver aí um momento de
transcendência sobre relações humanas e religiosidade.
3.2. A Economia Açucareira, p. 129-133
Esse texto é um pouco maior que o anterior, mas ele só será visto no final do 2º bimestre. Se o hábito da mediação se constituir, acreditamos que será muito mais simples mediálo, tanto para o professor-mediador quanto para o aluno. O texto explica o porquê da escolha
da cana-de-açúcar para o Brasil e a favorabilidade dessa cultura agrícola na região da Zona da
Mata (há um mapa), o sistema de plantation, a distribuição física do engenho colonial (há uma
gravura), o comércio e a distribuição do poder (há um quadro explicativo), o comércio triangular metropolitano (há um quadro explicativo e uma gravura de mercado de escravos) e explica em linhas breves a crise da economia açucareira.
•
Mediação de intencionalidade e reciprocidade: o que há de novo nesse texto (sistema de
plantation, comércio triangular, engenho colonial)? É importante observar individualmente
cada mapa, quadro e gravura para fazer o aluno retirar o máximo de informações relevantes possíveis, a fim de promover a conduta sistemática na captação de dados, a autoregulação e controle de comportamento e aprender a lidar com mais de uma fonte de informação. Observe o mapa da Região Açucareira: quais as regiões produtoras? Onde havia maior concentração de produção? Como há muitas imagens no texto, o professormediador pode mudar da modalidade texto para a modalidade imagem quando do processo de mediação, pois a variação de estímulos pode favorecer a reciprocidade.
•
Mediação de significado: por que devemos estudar a economia do Brasil colonial? (É o
momento de darmos significado à importância do estudo da economia de toda sociedade
para a compreensão de sua História, estimulando a análise e o pensamento reflexivo).
Vamos descrever a gravura do engenho colonial. O que tem no texto, vemos na gravura?
Quem já visitou um engenho colonial? (Pode-se mediar individuação, solicitando ao aluno
para explanar sua experiência). Vamos descrever o quadro da página 137. Haveria outro
jeito de fazê-lo? Qual? (a multiplicidade de respostas favorecerá a mediação do controle
da impulsividade, o planejamento de objetivos e a competência). No quadro do comércio
triangular, você é capaz de identificar quem levava vantagem? Por que? (Encorajar os alunos a perceberem as nuances desse comércio, identificando as incongruências, comparando os dados, para que eles possam examinar através da imagem, o que provocará a análise, o pensamento reflexivo, hipotético-inferencial e a síntese).
•
Podemos começar a mediação de transcendência estimulando o pensamento hipotéticoinferencial: e se a África não tivesse contribuído com a mão-de-obra escrava, qual seria a
situação do continente africano hoje? E a colonização no Brasil sem o sistema de plantation teria sido possível? (A estratégia do mediador não deve ser a de estimular aleatoriamente o “e se”, mas demonstrar que o estudo da História nos mostra que, mesmo não podendo ser mudada, muita coisa poderia ter sido diferente se o homem, em seu momento
histórico, tivesse tomado outras atitudes, pois na História, como em tudo na vida, há consequências para os nossos atos. Assim, para explicar a difícil situação do continente africano hoje, temos que remontar ao período colonial e ao comércio triangular, como para
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entendermos a economia brasileira, é importante resgatarmos a economia colonial). A
forma como você refez o quadro da p. 137 é aplicável a outros quadros explicativos? (O
professor-mediador encoraja o aluno a aplicar em situações correlatas o bom trabalho feito e também pode mediar o compartilhamento, levando ao conhecimento dos outros a
nova forma criada, provocando também o conhecimento dos esquemas criados pelos outros).
3.3. A Política Interna no Primeiro Reinado, p. 196-200
O texto trata dos partidos que se formaram durante o Império e traz um quadro explicativo das correntes que se formaram dentro desses partidos ao longo de todo o Império, não
apenas no Primeiro Reinado. Em seguida trata da Assembléia Constituinte de 1823 e de sua
dissolução e da Constituição de 1824 e suas características, com um quadro explicativo sobre
os poderes da Constituição.
•
Mediação de intencionalidade e reciprocidade: mesmo sendo um assunto do último bimestre, e mesmo partindo do princípio de que o costume de aulas mediadas já tenha sido
construído, não será uma tarefa fácil mediar esse tema, devido à sua inerente complexidade, e principalmente no tocante à reciprocidade, na qual provavelmente teremos mais dificuldades. Às vezes, por motivos diversos, como muitas atividades de final de ano, preocupação com notas de outras matérias, cansaço acumulado, mesmo que a aula esteja bem
preparada, mas a motivação não foi despertada, por qualquer motivo subjetivo, não se dará a reciprocidade. Neste caso, para evitar o fracasso da mediação, o professor-mediador
deve variar a linguagem, o ritmo e o gestual para realçar a intencionalidade, ampliar o máximo possível o estímulo, variando a modalidade, repetindo, até promover a interação necessária que resulte na reciprocidade. Neste caso, consideramos importante o uso dos
quadros explicativos das páginas 197 e 199. O quadro dos partidos do Império é muito
complexo e envolve matéria do 7º ano, o que pode ser um forma de despertar o interesse
e provocar a reciprocidade. A pergunta clássica “o que temos de novo nesse quadro?”
pode funcionar muito bem. A complexidade do quadro só será dirimida se o aluno compreender que ele terá que sistematizar a análise dos dados, portanto é preciso traçar estratégias para obter a precisão da resposta (mediação de auto-regulação e controle de comportamento). No quadro comparativo dos poderes da Constituição, também há uma certa
complexidade que deve ser mediada, como a busca de estratégias para a análise dos poderes e sua composição e de sua hierarquia. Só o fato de ser a primeira Constituição do Brasil já é um grande elemento que pode provocar excelente reciprocidade, pois sem dúvida a
novidade desperta o interesse do aluno. Nesse caso, o professor-mediador pode mediar
novidade e desafio ao encorajar os alunos a comparar a Constituição de 1824 com a atual
e a pesquisar todas as constituições do Brasil, elaborando um quadro comparativo geral.
•
Mediação de significado: nos dois casos citados acima, poderíamos aperfeiçoar nesta mediação, ou seja, estimulando o aluno a adotar um comportamento comparativo espontâneo, o professor-mediador pode encorajá-lo a comparar os atuais poderes constitucionais
com os da Constituição de 1824 que adotava o Moderador, explicando o significado histórico deste poder em sua época e a impossibilidade de sua existência em uma sociedade
democrática atual. Quanto aos partidos políticos, o mesmo pode ser feito, estabelecendo
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uma relação com a distribuição pluripartidária atual, proporcionando o debate, com estratégias para uma comunicação madura, não egocêntrica.
•
Mediação de transcendência: a adoção do comportamento comparativo espontâneo é um
bom caminho para generalizar com esse texto, pois se pode estimular o aluno a comparar
a atitude de D. Pedro I ao fechar a Constituinte de 1823 com uma situação dessas nos dias de hoje, no Brasil, promovendo também mediação de novidade e desafio. O professormediador incita a necessidade do comportamento somativo espontâneo, estimulando o
aluno a sintetizar o conteúdo estudado de maneira que sejam enumerados e relacionados
elementos efetivamente relevantes para a construção do conhecimento histórico. Também aqui é importante a correção de qualquer inabilidade para internalizar eventos, pois
já se estará no final do ano letivo e já se abordará conteúdo que será retomado no 7º ano,
portanto é fundamental proporcionar ao aluno vocabulário relevante para analisar, sintetizar e generalizar, através de instrumentos verbais expressivos adequados Uma forma de
transcendência é proporcionar um pequeno debate onde um grupo defenda a atitude de
D. Pedro I em relação à Constituinte e outro o acuse, ou mesmo alguém assuma o papel
dele próprio em defesa de suas atitudes. Se um bom nível de reciprocidade houver sido atingido, isso não será difícil e será exemplo da prática de expressão clara e concisa de ideias em situações do cotidiano e de improviso, funcionando também como mediação de
competência e compartilhamento, além de uma transcendência inquestionável.
4. Conclusão
Com este trabalho pretendemos apenas fazer uma pequena mostragem do que é possível construir a partir da perspectiva da MCE e da EAM dentro da sala de aula, em qualquer
disciplina. Utilizamos História porque é nossa área de atuação, mas o objetivo maior é mostrar
que a partir do processo mediacional, seguindo os critérios de Feuerstein, podemos encorajar
o aluno a ir muito além do conteúdo, ajudando-o a encontrar, num mundo de tantas informações, aquilo que realmente é relevante, despertando nele a capacidade de análise e síntese, e a
construção do significado cognitivo, bem como a transcendência a partir do mesmo. O sistema de Feuerstein, como ele mesmo afirma, é um sistema de crenças, e nós acreditamos nele.
Não é fácil mediar sempre, mas quando é possível, não é difícil mediar. Sabemos que na estrutura que trabalhamos não teríamos condições práticas de viabilizarmos todas as aulas em processo mediacional, por isso sugerimos que o método seja adotado para assuntos essenciais de
cada uma das unidades dos nossos PLADIS, que poderiam ser escolhidos após estudo prévio.
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5. Referências bibliográficas
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3. ACORDO ORTOGRÁFICO E A QUESTÃO
DO HÍFEN NOS COMPOSTOS
AGREEMENT AND SPELL THE ISSUE THE HYPHEN IN COMPOUND
Vicente Martins1
Resumo. Este trabalho tem como objetivo de estudo analisar o processo de lematização dos compostos antes e depois do Acordo Ortográfico (2008). Como aporte
teórico e metodológico, recorremos às postulações lexicográficas de José-Alvaro
Porto Dapena (2002) e à teoria da composição e de sinapsia em Benveniste
(2006). Os resultados nos permitiram observar que, por força do princípio composicionalidade, composto como pé de moleque, formado a partir do lexema pé, passou a ser considerado, pelo Dicionário Houaiss (2009), como unidade fraseológica
do tipo locução e não mais como uma simples palavra composta por justaposição.
Palavras-chave. Compostos – Sinapsia – Lexicografia – Dicionários - Acordo
ortográfico
Abstract. This paper aims to study the process of analyzing elaboration compounds before and after the Orthographic Agreement (2008). As the theoretical
and methodological problems, we use the lexicographic postulations of
José-
Alvaro Porto Dapena (2002) and the theory of composition and synapses in Benveniste (2006). The results allowed us to observe that, under the principle of compositionality, composed as foot kid, graduated from the lexeme foot, came to be
considered by the Houaiss Dictionary (2009), as phraseological unit type phrase
and not as a simple word composed of juxtaposition.
Keywords. Composites – Synapses – Lexicography – Dictionaries – Spelling
agreement
1
Professor assistente do Curso de Letras da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), em Sobral. Mestre
em educação brasileira e doutorando em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Ex-aluno do
Colégio Militar de Fortaleza no período de 1976-1982. Contato: [email protected]
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Compostos como suboficial, subtenente, tenente-coronel, capitão-aviador, entre outros relacionados à terminologia militar pouco sofreram com as novas bases do Acordo Ortográfico, mas não se pode dizer o mesmo dos compostos ligados à culinária brasileira, por exemplo: pé de moleque, antes com hífen, agora é uma palavra encontrada, nos dicionários,
como locução nominal. As regras do emprego do hífen, segundo o novo Acordo Ortográfico,
aplicam-se, além dos compostos, às locuções e aos chamados encadeamentos vocabulares,
uma inovação na terminologia da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB).
No campo educacional, as instituições de ensino já ensaiam atividades preparatórias
para o adequado emprego das regras da reforma ortográfica a partir de 2012 e os dicionários
gerais, por sua vez, apressam-se em lançar suas novas versões voltadas para o público escolar e
demais consulentes que lidam a língua materna como jornalistas, juristas, professores etc. Enfim, todos procuram, de uma forma ou de outra, se adaptar à nova Ortografia. As alterações
efetuadas pelo Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia para a confecção do seu novo Dicionário Houaiss, edição de 2009, adaptada à nova ortografia da língua portuguesa, reduziram
não apenas o número de páginas com relação a sua edição de 2001, mas encurtaram, também,
o número de entradas ou verbetes. Na edição de 2001, por exemplo, Houaiss contava com
2.922 páginas e o grande volume resultava do número de entradas, que caracteriza sua macroestrutura. Em 2009, o número de páginas caiu para 1.986, transformando muitas entradas da
edição anterior em subentradas, agora, com menos informações lexicográficas e registradas na
parte horizontal das colunas.
Especulamos, de logo, que a queda do número de páginas, na edição de Houaiss de
2009, ocorreu por conta do novo Acordo Ortográfico: compostos nominais, até então, com
entradas próprias, portanto, sendo parte da macroestrutura do dicionário, na nova versão de
Houaiss (2009), perderam este status lexicográfico e passaram a ser subentradas durante a lematização. Na edição atualizada do Houaiss (2009), uma palavra como pé de moleque não
unicamente perdeu os hífens, mas deixou de oferecer aos consulentes informações como: datação, ano, fonte, análise morfológica, informação gramatical e plural.
Este estudo procura, pois, apontar que o deslocamento do composto nominal pé-demoleque, com hífen, para a categoria de locução nominal pé de moleque, sem hífen, resultou
de uma arbitragem de ortógrafos e filólogos do Brasil e de Portugal, e, a rigor, esta prescrição
não levou em conta a repercussão lexicográfica na estruturação das novas edições dos dicionários gerais.
O hífen, no âmbito das reformas ortográficas, sempre foi um nó górdio das gramáticas
normativas, com pugilatos e controvérsias motivadas por questões fonéticas, fonológicas,
morfológicas, etimológicas e, por vezes, semânticas, como no caso das homonímias.
Na
história da ortografia da língua portuguesa, o hífen cumpriu três funções léxicas: a de ser marca de translineação; a de ser marca de composição lexical e a de ser marca de relações morfossintáticas (GONÇALVES, 2003, p. 573). Graças ao emprego hífen, muitos lexicógrafos resolveram, no primeiro momento, a problemática da grafia de muitas formas linguísticas que, com
significados diferentes, tinham a mesma forma gráfica e fônica ou apenas fônica, como no
caso dos homônimos. Numa palavra, para o estabelecimento do sentido de uma palavra composta ou de um sintagma, o emprego do hífen se fazia necessário ou, por vezes, determinante
para a definição de sua denotação, conotação, designação, sentido ou referência, especialmente
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no caso das taxionomias ou linguagem técnica ou, ainda, nos casos da idiomaticidade e metaforicidade das unidades fraseológicas, como descrevemos a seguir: a) O sintagma pé de moleque, sem hífen, significa, ao pé da letra, o membro inferior de um garoto da cor negra e 2) péde-moleque, com hífen, tem a acepção de tipo de doce. Com o fim do uso do hífen, em pé de
moleque, o fenômeno de homonímia superpõe o sintagma ao composto e o sentido literal ao
não literal, este, somente dissipado no contexto linguístico.
Consideramos que houve um equívoco gramatical por parte dos “acordistas” ao abolirem o hífen de pé de moleque, sem levar em conta critérios linguísticos da criação léxica que
dele resultou ou, senão, e mais precisamente, não foram observados critérios lexicológicos
quando do tratamento dos compostos nominais e das próprias locuções nominais na metalexiografia. Mas, claro, aqui, ao longo do texto não nos posicionamos contra ou a favor do uso
do hífen em compostos nominais, como é o caso de pé de moleque, e sim, questionamos da
validade de tal medida ortográfica, pensando não apenas na simplificação da indústria editorial
ou informática, mas no consulente, especialmente os educandos, no processo de formação
escolar e de aquisição de vocabulário da língua.
O certo é que, quando abolimos o hífen em palavras compostas por justaposição e
lhes são dadas um tratamento de unidades fraseológicas, imediatamente o lexicógrafo as coloca na microestrutura dos dicionários seguindo todos os critérios da lexicografia clássica. Numa
última palavra, para tomarmos a lição de Porto Dapena (2002, p.136), quando o composto péde-moleque, antes do Acordo Ortográfico, hifenizado, traz, na sua composição lexical, o hífen, como traço de uma entrada propriamente dita, configura um enunciado ou cabeça do
verbete, na macroestrutura do dicionário. Quando pé de moleque perde o hífen, por imperativo do Acordo Ortográfico, passa a ser subentrada e a pertencer à microestrutura do dicionário, não estando mais sujeito à lematização, portanto, a vida da palavra agora está com menos
história, com menos etimologia, sem registro de nascimento ou morte da forma linguística.
Nessas alturas, convém, então, colocarmos algumas novas questões para melhor delinearmos o percurso dessa discussão: com o novo acordo ortográfico, um substantivo composto como pé de moleque, sem hífen, por exemplo, alterou sua classificação morfológica,
passando a ser locução nominal ou unidade fraseológica? Qual a repercussão do Acordo Ortográfico na lematização das unidades léxicas formadas por justaposição nos dicionários gerais? Respondemos, de pronto: sim, pé de moleque não é à luz da lexicografia classificada como composto, mas como locução ou unidade fraseológica. Sua lematização é precária e portanto perde seu caráter enciclopédico em se tratando de informação ao consulente.
Após a promulgação do Acordo Ortográfico (2008), no Brasil e nos países lusófonos,
observamos, por exemplo, quanto à palavra pé de moleque (um tipo de doce muito conhecido
na região nordeste do Brasil), agora, grafada sem hífen, o seguinte em termos de registros lexicográficos: (1) a palavra pé de moleque, sem hífen, portanto, seguindo as prescrições da base
XVI do Acordo Ortográfico (1990), lematizada como entrada (lema) na página 964 do Dicionário Escolar da Língua Portuguesa(2008). (2) a palavra pé de moleque, sem hífen, portanto,
seguindo as bases do Acordo Ortográfico, lematizada como subentrada na página 1453 do
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2009). Vale salientar que, no caso de Houaiss, pé
de moleque, como subentrada, é classificado como locução e não como substantivo masculino
ou palavra composta. (3) na página 631 do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, pé
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de moleque aparece sem hífen, com status de entrada, seguindo, também, as bases do Acordo
Ortográfico e classificada como substantivo masculino.As duas ocorrências, no nosso entendimento, trazem implicações importantes para a lexicografia e análise linguística da unidade
léxica pé de moleque, sinteticamente assim: a) como entrada, deve ser, morfologicamente,
classificada como substantivo composto e b) como subentrada, deve ser, morfologicamente,
classificada como locução nominal.
Pé de moleque: gramática e lexicologia tradicional
De há muito, a gramática, especialmente a normativa ou prescritiva, e a lexicologia
andam juntas quando nos referimos à estruturação dos dicionários gerais. A linguística descritiva, por exemplo, define gramática como “estudo objetivo e sistemático dos elementos (fonemas, morfemas, palavras, frases etc.) e dos processos (de formação, construção, flexão e
expressão) que constituem e caracterizam o sistema de uma língua”. É também a linguística
que define Lexicologia como “estudo do vocábulo quanto ao seu significado, constituição
mórfica e variações flexionais, sua classificação formal ou semântica em relação a outros vocábulos da mesma língua, ou comparados com os de outra língua, em perspectiva sincrônica ou
diacrônica”, aproximação de objetivos e objetos, conforme podemos comprovar acima nos
verbetes de Houaiss (2009) ao definir os dois termos linguísticos.
A lexicologia, enquanto teoria da lexicografia, datada de 1858, por Houaiss, é nova no
âmbito dos estudos linguísticos. Assim também o é termo lexicografia, enquanto estudo científico e analítico dos princípios de seleção do vocabulário, de classificação dos vocábulos, de
definição e descrição dos significados. Na elaboração dos dicionários gerais, durante muito
tempo, a lexicologia foi dependente dos conceitos gramaticais, especialmente os de gramática
normativa. Isto ocorria porque a lexicologia era considerada como parte da gramática que estudava as palavras isoladas, consideradas em si. Dizendo de outra forma, a lexicologia se confundia com a própria noção de morfologia que temos hoje.
Uma das gramáticas mais antigas da língua portuguesa, a de Eduardo Carlos Pereira,
denominada Gramática Expositiva: curso superior, cuja primeira edição é datada de 1907,
portanto, no início do século passado, define lexicologia como parte de gramática que encarada as palavras isoladamente em seus dois elementos fundamentais: em sua parte material que
são os sons ou as letras, conforme se trata da palavra falada ou escrita, e em sua ideia ou significação” (PEREIRA, 1957, p.21). O gramático divide o estudo da lexicologia em duas partes:
fonologia e morfologia. Na seção dedicada à sintaxe irregular ou figurada de regência, são estudados os idiotismos léxicos e os idiotismos fraseológicos (p.258 e 259). Estas últimas, segundo Eduardo Carlos Pereira, “ refratárias à análise” sintática.
Havia, segundo a lição de Carlos Eduardo Pereira, três maneiras de se efetuar a
jusposição das palavras na formação dos compostos: (a) por coordenação ou concordância,
em que os elementos componentes são coordenados ou apostos, sendo o determinante ou um
adjetivo ou um substantivo aposto, como era (e é ainda), por exemplo, o caso de pontapé
(golpe com a ponta ou com o peito do pé; chute, formada pela composição de ponta (< latim
tadia puncta,ae 'estocada, golpe') + pé cujas formas históricas eram, em 1720 pontapê,;
em1789 pontapé); (b) por subordinação ou dependência em que o elemento determinante
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
42
está subordinado ao elemento determinado, em relação complementar (por exemplo, “pé-degalinha”, conjunto de rugas formadas em torno dos olhos datada de 1899, por Cândido
Figueredo) e (c) por meio de locuções ou frases verbais, exemplificada em locuções do tipo “o
lava-pés”, esta, registrada na 6ª edição, datada de 1858, do Diccionario da Língua Portugueza ,
este publicado, anteriormente, em 1789), de Antonio de Morais Silva, segundo informações do
próprio Houaiss (2009).
A influência de concepções do processo de composição, em gramáticas posteriores a
de Eduardo Carlos Pereira, pode ser sentida, ainda hoje, em gramáticos ortodoxos e os ditos
“menos doutrinários”, isto é, mais modernos e influenciados pelo estruturalismo ou gerativismo como Celso Ferreira da Cunha, em sua Gramática de Base, (1982), que define composição como um processo de formação de palavras que uma nova palavra é formada pela união
de dois ou mais radicais: “A palavra composta representa sempre uma ideia única e autônoma,
não raro dissociada das noções expressas pelos seus componentes” (CUNHA, 1982,
p.72).Como insistiremos neste artigo, faz e fez bastante diferença quando os ortógrafos, lusitanos e brasileiros, que estabeleceram as bases do Acordo Ortográfico e os lexicógrafos da
Academia Brasileira de Letras passaram a classificar pé de moleque como locução nominal e
não como composto nominal. Pela definição de locução e pelo próprio exemplário de palavras, entre parênteses, apresentados por Houaiss (2009), pé de moleque se enquadraria como
uma locução do tipo substantiva. No Dicionário da Real Academia Espanhola (2009), locução
é, também, definida como “combinação fixa de várias palavras que funciona como uma classe
especial de palavras”. No caso de espanhol, uma palavra bem próxima da noção que temos de
pé de moleque é “ tocino de cielo”, segundo o Dicionário da Real Academia Espanhola um
“dulce compuesto de yema de huevo y almíbar cocidos juntos hasta que están bien cuajados”.
Pé de moleque: brasileirismo e cultismo linguístico
O Dicionário Houaiss (2009) traz as seguintes acepções para a locução nominal pé de
moleque: (a) doce consistente feito de açúcar ou rapadura com amendoim torrado, iguaria
presente na culinária regional do Brasil. (b) bolo feito de mandioca, fubá, coco e açúcar, presente na região nordeste do Brasil e (c) calçamento de rua com pedras irregulares de tamanhos
diversos, tipo de pavimentação encontrada em Minas Gerais e no Centro do Oeste do Brasil.
Para nosso estudo, tomaremos, para análise, a primeira acepção de pé de moleque:
“doce consistente feito de açúcar ou rapadura com amendoim torrado. Expressões como “doce consistente feito de açúcar” e “rapadura com amendoim torrado” nos sugerem ser o pé de
moleque uma iguaria de fabricação caseira, tradicional e extremamente popular no Brasil. O
doce pé de moleque é bastante relacionado às culturas caipira e açoriana, isto é, tem uma origem na culinária de origem caipira (brasileirismo) e açoriana (lusitanismo).
No âmbito da gramática tradicional e da linguística estrutural, o composto nominal ou
a locução nominal pé de moleque, com e sem hífen, antes e depois do Acordo Ortográfico, é
tipicamente português, portanto, vernacular. Diríamos, a rigor, que pé de moleque, grafado,
antes do Acordo Ortográfico e depois do Acordo Ortográfico, traz traços lexicológicos do
plebeísmo, brasileirismo e populismo.
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
43
Pé de moleque, por ter mais de uma acepção, o ideal de uma reforma ortográfica mais
ampla e com base nos fundamentos da linguística contemporânea, especialmente a Lexicologia
e Semântica, é que levasse em conta que um composto desta natureza morfológica tem, pelo
menos, três acepções de acordo com cada contexto, o que, naturalmente, justificaria as duas
grafias com e sem hífen para cada sentido: (a) doce consistente feito de açúcar ou rapadura
com amendoim torrado, registro no vocabulário da culinária regional do Brasil (grafado com
hífen); (b) bolo feito de mandioca, fubá, coco e açúcar, registro no vocabulário da culinária do
Nordeste do Brasil (grafado com hífen); e (c) calçamento de rua com pedras irregulares de
tamanhos diversos, registro no vocabulário regional de Minas Gerais, Centro-Oeste do Brasil
(nesse caso, o ideal é que fosse grafado sem hífen). Mas, nessas alturas, poderíamos levantar
uma nova pergunta: como, realmente, arbitrar o uso do hífen na composição do composto
como pé de moleque levando em conta suas diversas acepções ou motivações semânticas?
Com a datação em 1899, pé de moleque, até 2008, era grafado com hífen, indicando
claramente seu processo de composição lexical, isto é, sua gênese de criação lexical. Há aspectos extralinguísticos também a considerar na criação lexical da palavra pé de moleque, com ou
sem hífen, uma vez que é uma forma linguística própria do dialeto social da população com
pouca instrução e que não faz parte do uso culto formal. Não se trata de uma palavra estigmatizada por um preconceito linguístico, mas ao se ler ou ouvir a palavra pé de moleque sabemos
que estamos diante de uma palavra de feição popular. Um rápido levantamento de outras
unidades lexicais, relacionadas a doces, oriundas da cultura popular, confirmarão nossa postulação da natureza popular a ser atribuída ao composto, senão vejamos: baba-de-moça, beiçosde-moça, beijo-de-estudante, bolo-de-beata, bolo-de-estouro, bolo-de-sogra, busca marido,
engorda marido, espera marido, orelhas-de-burro, pão-de-ló, pudim come-e-cala, puxa-puxa,
quero-mais.
Para melhor compreensão do composto pé de moleque e de outros compostas formados a partir do lexema pé, como “pé de burro”, “pé de cabra”, “pé de cachorro”, recorremos à hipótese Sapir-Whorf. Por esta hipótese, postularíamos que, para o caso de pé de
moleque, a língua portuguesa traz uma infra-estrutura (pé+de+moleque) que determinam a
natureza das culturas brasileira (caipira) e lusitana(açoriana), isto é, os elementos da palavra pé
de moleque, de motivação icônica (a forma do doce evoca a perna de um garoto da raça negra), induzem a forma das representações do sujeito falante e até mesmo as determinam profundamente.
A palavra pé de moleque, enquanto subentrada, nos atuais dicionários gerais, do lexema pé, exerce o papel de determinado, contendo a ideia geral do composto e se caracteriza,
em se tratando de contexto linguístico, como um elemento que precede o determinante. E o
que justificaria pé ser entrada e não subentrada? Cremos que o fato de ser uma palavra de origem latina. Ao contrário da palavra pé de moleque, de origem vulgar e com características
formais (e rudimentares) do português brasileiro, em geral, marcado por construções lexicais
hifenizadas.
Por fim, diríamos que antes e depois do Acordo Ortográfico(2008), as palavras, formadas a partir de pé, por via erudita ou formadas a partir do modelo da composição latina,
preservaram sua autonomia de entrada própria no processo de lematização dos dicionários.
Enfim, a este respeito, podemos supor que uma das explicações para esse fenômeno lexicográEDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
44
fico estaria na ideia de que tudo aquilo que a língua portuguesa traz por herança latina, por
meio do acusativo, na lexicologia, ainda com feição conservadora, sugere a linguagem escorreita, correta, sem estrangeirismos na pronúncia ou na lexicalização. É, em substância, a força do
cultismo linguístico, em que o componente linguístico lexical ou morfológico é introduzido ou
mantido nos dicionários, seguindo o rigor da inspiração purista na seleção das entradas dos
dicionários gerais das línguas modernas ou neolatinas, como é o caso do português, espanhol
ou italiano.
Pé de moleque: cognição e lexicologia
A questão da composição é um das categorias centrais da linguística cognitiva. Alias,
quando o lexicógrafo transforma, por exemplo, no processo de lematização, o composto nominal pé-de-moleque, com hífen e com entrada própria, em locução nominal pé de moleque,
sem hífen, portanto, fazendo a conversão de composto justaposto para uma unidade fraseológica do tipo locução, procede assim com base no princípio da composicionalidade ou na análise composicional do léxico, tomando como referência os portes da Semântica e da Linguística
Cognitiva.
Quando dizemos que pé de moleque é um tipo regional de doce ou bolo ou, ainda um
tipo de calçamento, distanciando seu significado do sentido literal que os seus componentes
sugerem (pé X moleque), este significado baseia-se no principio da não composicionalidade,
caracterizado, como bem define Frank Neveu (2008), “por uma opacidade semântica que varia
principalmente em função do grau de cristalização das expressões e pelas restrições sintáticas”
(p.74). Como se trata de um composto, diríamos que essas restrições a que Neveu faz referência são, na verdade, princípios da ordem ou sequencialidade do sintagma nominal.
A linguista Nicole Delbecque (2008) afirma que, na estrutura interna dos compostos
nominais, por exemplo, há uma estreita dependência do significado de base das diferentes
classes de palavras que se combinam. Uma palavra como pé de moleque, nesse caso, denotaria
algo de caráter estável, por oposição, por exemplo, numa frase como fazer finca-pé, que nos
sugere “manter-se firme em resolução, em opinião; fincar-se, obstinar-se, teimar”, que evocaria coisa menos estável.
Com base ainda nas postulações cognitivistas de Nicole Delbecque, postularíamos que,
no grupo dos compostos nominais, entre os quais podemos encontrar como palavras como
pé de moleque ou pé de negro, ambos, iguarias, há toda uma espécie de relações semânticas
entre os dois componentes, indicando o princípio de iconicidade observado no estabelecimento de “uma certa semelhança entre a forma do enunciado e aquilo que ele representa”
(DELBECQUE, 2008, p.26).
Esse princípio de iconicidade se manifesta ainda, do ponto de vista cognitivo, através
de três outros princípios de estruturação da linguagem: (a) princípio da ordem linear, onde
observamos, no caso de pé de moleque, com ou sem hífen, a disposição linear dos componentes no interior do vocábulo (pé + de + moleque); (b) princípio da distância, em que pé de moleque, com ou sem hífen, pode ser flexionado pés de moleque, a partir do que entendemos
como sendo um elo conceitual. Nesse caso, se o plural fosse pé de moleques ou pés de moleques, estaríamos, a rigor falando de perna de garotos negros ou pernas de garotos negros e
não do doce e, por último, (c) princípio de quantidade, em que, para o caso de pé de moleque,
com ou sem hífen, tem três acepções: doce, bolo e calçamento isto é, uma grande quantidade
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
45
de forma é associada a uma grande qualidade de significado. No levantamento de lexemas
feito a partir entrada de pé, em Houaiss (2009), encontramos, pelo menos, 23 acepções (por
exemplo, em domínios relacionados com anatomia botânica, construção, geometria, artes gráficas, metrologia, versificação, decoração, anatomia zoológica), mas quando diante da lista de
locuções ou unidades fraseológicas o número de ocorrência salta para, pelo menos, 118 expressões fixas. Vejamos os quadros comparativos de entradas e subentradas antes e depois do
Acordo Ortográfico:
QUADRO I
71 COMPOSTOS COM PÉ, HIFENIZADOS, ANTES DO ACORDO ORTOGRÁFICO (HOUAISS: 2001)
1.
3.
5.
7.
9.
11.
13.
15.
17.
19.
21.
23.
25.
27.
29.
31.
33.
35.
37.
39.
41.
43.
45.
47.
49.
51.
53.
55.
57.
59.
61.
63.
65.
67.
69.
71.
Pé-de-alferes
PE-de-altar
Pé-de-amigo
Pé-de-anjo
Pé-de-atletaz
Pé-de-banco
Pé-de-bezerro
Pé-de-bode
Pé-de-boi
Pé-de-briga
Pé-de-burrinho
Pé-de-burro
Pé-de-cachorro
Pé-de-cana
Pé-de-carneiro
Pé-de-carneiro
Pé-de-cavalo
Pé-de-chinelo
Pé-de-chumbo
pé-de-elefante
Pé-de-escada
Pé-de-galinha
Pé-de-galinha-verdadeiro
Pé-de-galo
Pé-de-gancho
Pé-de-garrafa
Pé-de-gato
pé-de-lebre
Pé-de-lobo
Pé-de-lugar
Pé-de-macaco
Pé-de-meia
Pé-de-mesa
Pé-de-moleque
Pé-de-mosca
Pés-de-cabra
2.
4.
6.
8.
10.
12.
14.
16.
18.
20.
22.
24.
26.
28.
30.
32.
34.
36.
38.
40.
42.
44.
46.
48.
50.
52.
54.
56.
58.
60.
62.
64.
66.
68.
70.
Pé-de-negro
Pé-de-oiro
Pé-de-ouro
Pé-de-ouvido
Pé-de-papagaio
Pé-de-parede
Pé-de-pato
Pé-de-pau
Pé-de-pavão
Pé-de-peia
Pé-de-perdiz
Pé-de-poeira
Pé-de-pomba
Pé-de-pombo
Pé-de-rabo
Pé-de-rola
Pé-de-serrense
Pé-de-valsa
Pé-de-vento
Pé-direito
Pé-duro
Pê-efe
Pê-efe
Pê-eme
Pé-encarnado
Pé-fresco
Pé-frio
Pé-lavado
Pé-leve
pé-na-cova
Pé-no-chão
Pé-quebrado
Pé-quente
Pé-rachado
Pé-rapado
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
46
QUADRO II
COMPOSTOS COM PÉ, HIFENIZADOS, DEPOIS DO ACORDO ORTOGRÁFICO (HOUAISS: 2009)
19 entradas
pé-atrás
pé-cascudo
pé-d'água
pé-de-bezerro
pé-de-boi
pé-de-cabra
pé-de-chumbo
pé-de-galinha
pé-de-galo
pé-de-gato
pé-de-meia
pé-de-pau
pé-direito
pé-encarnado
pé-frio
QUADRO III
UNIDADES FRASEOLÓGICAS COM PÉ, SEM HÍFEN, DEPOIS DO ACORDO ORTOGRÁFICO (HOUAISS: 2009)
1.
3.
5.
7.
9.
11.
13.
15.
17.
19.
21.
23.
25.
27.
29.
31.
33.
35.
37.
39.
41.
43.
45.
47.
49.
51.
a pé
a pé de
a pé de galo
a pé firme ou quedo
abrir no pé
ao pé da letra
ao pé de
ao pé do ouvido
apertar o pé
bater (o) pé
botar o pé na fôrma
botar o pé no mundo
cair de pé
com o pé atrás
com o pé direito
com o pé esquerdo
com o pé no estribo
com pés de lã
com pés de ladrão
com um pé nas costas
dar no pé
dar pé
de pé
de pé atrás
de pé quebrado
de quatro pés
2.
4.
6.
8.
10.
12.
14.
16.
18.
20.
22.
24.
26.
28.
30.
32.
34.
36.
38.
40.
42.
44.
46.
48.
50.
52.
pé cavo
pé chato
pé de alferes
pé de altar
pé de amigo
pé de anjo
pé de árvore
pé de arvoredo
pé de atleta
pé de banco
pé de bode
pé de boi
pé de briga
pé de burro
pé de cabra
pé de cachorro
pé de cana
pé de carneiro
pé de chinelo
pé de chumbo
pé de escada
pé de galinha
pé de gancho
pé de garrafa
pé de mato
pé de mesa
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
47
53.
55.
57.
59.
61.
63.
65.
67.
69.
71.
73.
75.
77.
79.
81.
83.
85.
87.
89.
91.
93.
95.
97.
99.
101.
103.
105.
107.
109.
111.
113.
115.
117.
dez pés em quadrão
do pé para a mão
em pé
em pé de guerra
em pé de igualdade
em pés de lã
encher o pé
encostado ao pé da embaúba
estar com o pé na cova
fazer pé atrás
fazer pé de alferes a
ficar no pé de (alguém)
ir aos pés
ir e vir num pé só
ir num pé e vir no outro
ir num pé e voltar no outro
ir num pé só
jurar de pés juntos
lamber os pés de
largar do pé de
meter o pé (em)
meter o pé no atoleiro
meter o pé no lodo
meter o pé no mundo
meter os pés em
meter os pés pelas mãos
não arredar pé
não chegar aos pés de
negar a pés juntos
passar o pé adiante da mão
pé ambulacrário
pé ante pé
pé calcâneo
54.
56.
58.
60.
62.
64.
66.
68.
70.
72.
74.
76.
78.
80.
82.
84.
86.
88.
90.
92.
94.
96.
98.
100.
102.
104.
106.
108.
110.
112.
114.
116.
118.
pé de pato
pé de pau
pé de pavão
pé de peia
pé de poeira
pé de rabo
pé de valsa
pé de vento
pé equino
pé na cova
pé na tábua
pé no chão
pé torto
pé valgo
pé varo
pegar no pé
pegar pelo pé
perder (o) pé
pés de lebre
pés e pelos
pés no chão
pisar no pé
sofrer que só pé de cego
ter os pés fincados na terra
ter os pés na terra
ter os pés no chão
ter pé
ter um pé na cova
tirar o pé da lama
tirar o pé do lodo
tomar pé
tomar pé em ou de
um pé lá, outro cá
Pé de moleque: de composto à locução nominal
Para uma discussão linguística ainda mais apurada sobre o destino lexicográfico da
palavra pé de moleque, postularíamos, com base em Émile Benveniste (2006), que, por meio
da sinapsia, houve, por força das novas bases do Acordo Ortográfico, a transformação do
composto pé-de-moleque, nominal, justaposto e hifenizado, em locução nominal, grafado sem
hífen. Para Benveniste, palavras compostas como pé de moleque, pé de negro, pé de cachorro,
pé de cabra, entre tantas, presentes na língua portuguesa, caracterizam-se por sua polilexicalidade não unida no plano formal, o que nos leva a supor que a supressão do hífen em palavras
acima referidas, não interferiu na sua idiomaticidade, cristalização e na sua nãocomposicionalidade semântica.
Como vimos, anteriormente, a palavra pé de moleque, com ou sem hífen, respectivamente, antes ou depois do Acordo Ortográfico (2008), é classificada pelos gramáticos como
um composto nominal, formado por dois radicais, por meio da justaposição. O normativismo
vê, na composição de pé de moleque, uma “união, em uma só palavra com significado indeEDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
48
pendente, de palavras distintas que conservam, cada uma, sua integridade fonética”. Para os
ortógrafos do Acordo Ortográfico (2008), lexicógrafos da Academia Brasileira de Letras e os
dicionaristas do Instituto Houaiss de Lexicografia, ao contrário dos gramáticos, pé de moleque, depois de obedecidas as bases do Acordo na formação das palavras, é, com a perda do
hífen, uma unidade fraseológica do tipo locução nominal.
Não é, todavia, uma questão do hífen nos compostos não é fácil de ser solucionada ou
esclarecida. Até aqui temos feito um esforço para dirimir esta dicotomia: composto X locução,
sem que isso, claro, afetemos as acepções tradicionamente à atribuídas à palavra pé de moleque. Certo é que pé de moleque é, na longa tradição das gramáticas prescrtivas, uma palavra
classificada como composto nominal. Hoje, classificá-la como locução nominal não traz implicações semânticas, mas traz discrepância ou divergência na estruturação da macro e microestrutras dos dicionários gerais, especialmente em se tratando da perda de informações culturais
e enciclopédicas sobre o verbete.
Explico melhor: Como composto nominal, antes do Acordo Ortográfico, pé-demoleque, com o diacrítico hífen, usado para unir os elementos de palavras compostas, tinha
entrada própria no Dicionário de Houaiss (2001). Dizer que tinha entrada própria significa que
pé de moleque abria um verbete nos dicionários gerais, verdadeiramente, uma unidade léxica
ou cabeça. Isso acontecia com outras dezenas de palavras, conforme demonstraremos em
quadro mais adiante. Portanto, pé-de-moleque se enquadrava, no dicionário de Houaiss, como
entrada pertencente a uma estrutura ordenada de todas as entradas (nominata). Pé-de-moleque,
enfim, fazia parte de um item na relação de entradas de Houaiss.
Depois do Acordo Ortográfico, pé de moleque, sem hífen, passa a ser subentrada da
cabeça pé, conforme podemos atestar em Houaiss (2009). Em que ou quem, então, se respaldar para a mudança classificação de pé de moleque e de outras com a mesma forma de composição lexical? Como tentamos até aqui mostrar, com o novo Acordo Ortográfico, a palavra
pé de moleque passou a fazer parte da microestrutura do dicionário, entendida aqui como item
pertencente a estrutura interna da unidade básica de referência (o verbete pé).
O processo de lematização de pé-de-moleque, com hífen, pertencente à macroestrutura de Houaiss à forma pé de moleque, sem hífen, pertencente à microestrutura do referido
dicionário, apaga uma série de informações, conforme podemos observar nos quadros comparativos a seguir:
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
49
QUADRO IV
O LEXEMA PÉ-DE-MOLEQUE, COM HÍFEN, ANTES DO ACORDO ORTOGRÁFICO (HOUAISS: 2001)
ENTRADA
Pé-de-moleque
(HOUAISS: 2001, p.2163)
Microestrutura
1. Datação:
1.1.
Ano: 1899
1.2.
Fonte: CF
2. Acepções:
2.1.
Morfologia: substantivo masculino
2.1.1.
Rubrica: culinária.
2.1.1.1.
Regionalismo:
2.1.1.1.1.
Brasil: doce consistente feito de açúcar ou
rapadura com amendoim torrado.
2.1.1.1.1.1. Nordeste do Brasil: bolo feito de mandioca,
fubá, coco e açúcar
2.1.1.2. Angola: amendoim torrado, descascado e triturado
posto em calda de açúcar temperada com erva-doce até o
ponto de cortar; feito em torrões (colocados em cartuchos
cônicos) ou placas triangulares ou retangulares
2.2.
Regionalismo:
2.2.1. Minas Gerais, Centro-Oeste do Brasil. calçamento de rua com pedras irregulares de tamanhos diversos
3.
Gramática
3.1.
Plural: pés-de-moleque
QUADRO V
O LEXEMA PÉ DE MOLEQUE, SEM HÍFEN, DEPOIS DO ACORDO ORTOGRÁFICO (HOUAISS: 2009)
ENTRADA
PÉ: substantivo masculino: 1.Rubrica: anatomia humana.extremidade do membro inferior
abaixo da articulação do tornozelo e terminada pelos artelhos, assentada por completo no
chão, e que permite a postura vertical e o andar. Datação: século XIII. Etimologia: lat.
pes,pèdis 'pé'
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50
Microestrutura
SUBENTRADA
Pé de moleque
(HOUAISS: 2009, p. 1453)
3. Datação: Ø
Ano: Ø
1.3.
1.4.
Fonte: Ø
4. Acepções:
2.2.
Morfologia: Ø
3.1.1.
Rubrica: culinária.
Regionalismo:
3.1.1.1.
3.1.1.1.1.
Brasil: doce consistente feito de açúcar ou rapadura com amendoim torrado.
2.1.1.1.1.1. Nordeste do Brasil: bolo feito de mandioca, fubá,
coco e açúcar
3.1.1.2. Angola: amendoim torrado, descascado e triturado
posto em calda de açúcar temperada com erva-doce até o ponto de cortar; feito em torrões (colocados em cartuchos cônicos) ou placas triangulares ou retangulares
3.2.
Regionalismo:
3.2.1. Minas Gerais, Centro-Oeste do Brasil.
calçamento
de rua com pedras irregulares de tamanhos diversos
4.
Gramática: Ø
4.1.
Plural: Ø
Pé de moleque: o fenômeno da catacrese
Do ponto de vista estilístico ou retórico, o composto pé de moleque pode ser analisado, semanticamente, como fenômeno de catacrese, com ou sem hífen. Houaiss (2009) define catacrese como um tipo de “metáfora já absorvida no uso comum da língua, de emprego
tão corrente que não é mais tomada como tal, e que serve para suprir a falta de uma palavra
específica que designe determinada coisa”. Aqui, mais uma vez, voltamos a questão da composicionalidade semântica: o processo de formação do composto indica três itens: pé + de +
moleque.
O primeiro item, o substantivo pé, nos remete à anatomia humana: “extremidade do
membro inferior abaixo da articulação do tornozelo e terminada pelos artelhos, assentada por
completo no chão, e que permite a postura vertical e o andar”. O segundo item, a preposição
de, cuja função essencial é a de relacionar palavras por subordinação e expressar os sentidos”. No caso específico de pé de moleque, a preposição “de” expressa semelhança, isto é,
uma parecença (ou analogia) do formato do doce com o formato do pé de um moleque. Finalmente, o terceiro item, moleque, a partir de acepções do regionalismo brasileiro, o sentido
de menino novo, de raça negra ou mista; garoto de pouca idade ou criado à solta; menino de
rua ou ainda, garoto travesso.
O que justificaria então apontarmos, na composicionalidade de pé de moleque, um
fenômeno catacrésico? Respondemos que foi determinante para o fenômeno de catacrese o
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fato extralinguístico de darmos, metaforicamente, ao composto pé de moleque um novo sentido, por meio de uma translação, em que designa um tipo de doce, consistente e feito de
açúcar com amendoim torrado, com configuração física semelhante a um membro inferior(pé)
de um garoto de pele negra ou mestiça. Em substância, o fenômeno de catacrese em pé de
moleque indica, claramente, que o sentido que damos a este composto não pertence ao sistema da língua, mas está associado, semântica ou metaforicamente, à aplicação deste na produção e na compreensão do composto no que tange ao sujeito ou à situação, e ao conhecimento
de mundo que os falantes do Nordeste do Brasil, Minas Gerais e Centro-Oeste do Brasil
compartilham entre si.
Considerações finais
Com este estudo, chegamos à conclusão de que o Acordo Ortográfico, promulgado,
em 2008, pelo governo brasileiro e ratificado pelos países lusófonos, trouxe importantes repercussões na elaboração dos dicionários gerais. Como composto nominal, observamos que
as principais características de pé de moleque eram: (a) Realização gráfica: ligação com um
separador (um espaço ou um hífen; (b) Contém dois ou mais morfemas léxicos (unidade significativa); (c) Variação (aleatória) em um mesmo estágio da língua (sincronia); (d) Formação
resultante da polilexicalidade (sinapsia); (e) Cristalização; (f) Neutralização das propriedades
combinatórias das unidades constituintes e (g) Não composicionalidade do sentido.
Registramos, depois da aplicação do Acordo Ortográfico (2008) à formação léxica dos
compostos, as seguintes características fraseológicas, como, por exemplo, o caso de pé de moleque: (a) Unidade polilexical do tipo sintagmático; (b) Constituintes não objeto de uma atualização separada; (c) Anunciam um conceito autônomo; (d) Bloqueio da propriedades combinatórias e transformacionais e (e) Não-composicionalidade de sentido.
A partir do conceito de composição em Benveniste (2006), verificamos que, pelo processo de sinapsia, a palavra pé de moleque e outras congêneres, antes e depois do Acordo
Ortográfico passaram a apresentar os seguintes traços sinápticos: (a) a persistência do traço
sintagmático verificado na ligação entre os componentes (pé+de-moleque); (b) A permanência, depois da reforma ortográfica, do emprego de juntores para esse efeito, sobretudo as preposições DE e A ; (c) A permanência, por princípio de natureza cognitiva, da ordem determinado + determinante dos membros (pé/ de+moleque, onde pé é determinado e de+moleque,
o determinante); (d) Pé, por força do processo de sinapsia, caracteriza-se por sua forma lexical
plena, e a livre escolha de qualquer substantivo ou adjetivo (pé de cabra,em pé de guerra, ir
num pé e voltar no outro etc); (e) Como subentrada, pé de moleque não traz artigo antes do
determinante (pé de moleque); (f) Possibilidade de expansão de um ou outro membro (pés de
moleque ou os pés de moleque) e (g) Caráter único e constante do significado: doce, bolo ou
calçamento. Pé de moleque, assim, não é, depois do Acordo Ortográfico, um composto, mas
uma locução ou uma sinapsia.
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4. FAMÍLIA E DOCENTES EM BUSCA
DE RESULTADOS SATISFATÓRIOS EM EDUCAÇÃO
FAMILY AND THE QUEST FOR TEACHERS
SATISFACTORY RESULTS IN EDUCATION
Olidnéri Bello 1
Resumo. Com o presente artigo, pretendemos tecer algumas reflexões sobre o
papel familiar na condução da educação de crianças e jovens, assim como definir a
importância da parceria família e escola para a obtenção de resultados satisfatórios
no processo ensino-aprendizagem. Faremos, ainda, alguns comentários acerca da
conduta comportamental das crianças e dos jovens com o objetivo de refletirmos
sobre o papel que os adultos têm em relação à formação da juventude em idade
escolar.
Palavras-chave. Papel familiar – Conduta comportamental de crianças e jovens
– Educação.
Abstract. With the present article, we intend to weave some reflections on the
family role in the guidance of the children and youngsters education, as well as
defining the importance of the partnership between family and school for the attainment of satisfactory results in the process of teach-learning. We’ll also make
some commentaries concerning the way children and youngsters behave in order
to reflect on the role adults have in the formation of the youth in their school age.
Keywords. Family role, the way children and youngsters behave, education.
1
Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialista em Supervisão Escolar pelo Centro de Estudos de Pessoal e Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialista em
Português: Linguística do Texto pelo Centro de Estudos de Pessoal e Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Graduada em Letras – Português/ Inglês e respectivas Literaturas pela Universidade Estadual de Ponta
Grossa. Professora do Colégio Militar de Fortaleza. E-mail: [email protected]
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1. Introdução
É lugar comum dizer que o significado de uma escola são os alunos. É para eles que os
docentes se empenham, estudam e buscam alternativas pedagógicas. Essas buscas são perenes
uma vez que crianças e jovens estão em constante transição comportamental em face de um
mundo midiático e de valores cada dia menos sustentáveis.
Do lado familiar, estão os pais que depositam, na escola, a esperança da futura realização profissional e até mesmo pessoal de seus filhos. E, como os envolvidos são seres humanos, há uma gama de sentimentos e expectativas que se entranha no processo ensinoaprendizagem. Logo, gerenciar sentimentos e conduzir o discente a construir o saber não é
tarefa simples; exige dedicação, empenho e união de todos os partícipes desse processo.
Pensando assim é que pretendemos refletir sobre o porquê de, em alguns momentos,
pais e professores se debaterem sobre o rendimento escolar obtido pelos alunos. Preocupanos observar a existência de uma percepção, no mínimo, equivocada do que vem a ser aprendizagem para alguns discentes. Parece-nos, ainda, que a escola precisa trabalhar melhor o significado de avaliação. Um resultado, ou seja, um grau ou uma menção podem representar apenas uma fagulha do conhecimento construído pelo aluno. O grau registrado em um boletim
escolar pode não significar a confirmação plena de quanto um discente conseguiu de construção de sua própria autonomia e do quanto consegue relacionar-se com o mundo por meio da
capacidade de ser um indivíduo verdadeiramente letrado, apto a identificar, classificar, julgar e
analisar os diversos signos que dão sentido ao saber construído pela humanidade.
O ego juvenil não deve ser sustentado pela facilidade de se obter um grau cinco em
cada uma das diversas disciplinas que compõem um currículo escolar, mas sim ser desafiado
pela humildade advinda da consciência de que quanto mais se aprende, mais há o que se aprender.
Com base nesses pensamentos, questionamo-nos sobre que atitudes os docentes e os
responsáveis devem assumir a fim de que o entendimento de construção de aprendizagem
ocorra na forma mais clara possível para o aluno. Um resultado satisfatório em educação, em
nosso entendimento, seria aquele que garantiria ao discente passar de um ano escolar a outro
com conhecimentos básicos entendidos e, portanto, construídos, já que a pura memorização
de assuntos resulta em futuro esquecimento.
Não queremos eximir o docente da responsabilidade de verificar o estado de prontidão do aluno para construir novos saberes; nem furtar-lhe a obrigação de estimular o interesse
e prover todos os meios e metodologias para que o discente atinja cada objetivo previsto no
programa da disciplina que leciona.
O que os educadores almejam é a possibilidade de, com o auxílio de todos os envolvidos no processo educacional, que vai do aluno aos pais e/ou responsáveis e de funcionários à
Direção do Estabelecimento de Ensino, realizar um bom trabalho e ver o país em destaque no
Setor da Educação, com um expressivo índice de desenvolvimento da Educação Básica.
Isso porque julgamos ser por meio da educação que um povo é capaz de prover melhores condições de vida para si mesmo e garantir um futuro mais promissor às gerações vindouras, apesar de consideramos que a escola e a família não são as responsáveis maiores pelos
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problemas sociais da atualidade, além de que ambas não conseguirão resolver sozinhas, de
acordo com o nosso pensamento, tais problemas, pois estes são de ordem política, cultural, de
segurança pública, entre outros; no entanto, verificamos que todos os setores são dirigidos
e/ou compostos por homens “escolarizados”, influenciados por currículos formais e ocultos;
currículos indicadores da identidade de uma elite. É essa elite que precisa agir a favor de uma
sociedade melhor, enquanto isso não acontece, vamos trabalhar juntos: escola e família.
2. Pontos de reflexão
Apelos instigadores a uma vida destituída de valores não faltam à humanidade e, podemos afirmar que o homem sempre está diante de uma bifurcação; se escolher o lado errado
poderá destruir a história de sua própria existência ou, no mínimo, macular o desenvolvimento
da sociedade a qual pertence.
Entre tantas escolhas, que se pense nas consequências de apenas algumas delas, como
o filho vindo em plena adolescência dos pais; a torneira não fechada hoje que diminui a possibilidade de a sede não ser saciada amanhã; o lixo jogado na rua que causa repugnância a quem
queria apenas fazer de sua cidade o tapete de recepção ao turista e o caminho agradável para
se darem os passos do cotidiano.
Diante de tais constatações, encontramos uma afirmação que, infelizmente, se exemplifica com a realidade de grande parcela da sociedade brasileira. Essa afirmação é do autor
Alvin Toffler. Ele diz que: “Nossos filhos são supersofisticados em relação a drogas, sexo ou lançamentos
especiais; alguns sabem muito mais sobre computadores do que seus pais. Mas as notas nas provas escolares
caem.” (1998:136).
Além de as notas caírem, há um outro problema advindo da conduta de alguns pais
e/ou responsáveis que, talvez por excesso de amor aos filhos, acreditam piamente em “suas
crianças”, esquecendo-se de que o verdadeiro amor paternal e maternal os obriga a tratar essas
crianças como seres em formação; seres que se deslumbram com ilusões; jovens que sonham
e, portanto, carentes de uma mão adulta e firme que os aprume para os verdadeiros valores
integradores de uma vida de cidadão digno, um futuro almejado pelos pais e/ou responsáveis
por jovens.
Em meio a tantas reflexões sobre como educar os jovens e como a educação formal
deve ser, surge um lema, no mundo do comércio, que diz: “O cliente sempre tem razão.” Esse
dito, por motivos não justificáveis e por certos posicionamentos vistos pelos profissionais de
muitas escolas, é repassado para a educação. Esse lema não pode ser levado, na íntegra, ao
espaço escolar. O autor Jung Mo Sung fala sobre isso:
(...) a educação pressupõe que o educando nem sempre tem razão e, por isso, precisa ser educado. O menino quando vai a uma lanchonete como um
cliente, tem “razão” ao pedir o sanduíche que lhe apetece, mas quando ele
está na escola, mesmo na condição de cliente, ele não tem razão em pedir
uma prova fácil só para ter a satisfação de uma nota alta (2006:83).
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Percebe-se, então, que há entre os indivíduos uma carência de compreensão do verdadeiro significado de educação. O fato de se estudar em um estabelecimento de ensino, não dá
direito ao estudante de tentar “burlar o sistema” (naturalmente que essa ação não é praticada
porque o aluno possui um desvio de caráter ou qualquer outra falha comportamental; é fruto
de um ser em formação que age, imaturamente; que não tem noção plena das consequências
de seus atos). Acrescida à imaturidade do aluno, há o espírito desafiador, por parte de alguns
estudantes, que os levam a não respeitar as regras disciplinares da escola; além de possuírem o
“eterno desejo de testar o professor” e, com esse espírito são capazes de cometer algumas
ações inadequadas, como, por exemplo, o ato de copiar trabalhos da internet, no sentido de
querer provar a todos que o professor não lê o que produzem. O engodo maior parece-nos
que não é ao professor, mas sim a história de formação desses mesmos alunos.
Jung Mo Sung afirma que o problema de valorização do ensino tem início no estímulo
ao interesse pelo estudo dado às crianças e aos jovens. O autor expõe que:
Um dos discursos mais comuns para incentivar ou obrigar crianças e jovens
pobres a levarem a sério o estudo é: “se não estudar, não vai conseguir bom
emprego e não vai poder comprar as coisas que você deseja comprar!”
Esse tipo de “incentivo” pressupõe e veicula duas ideias básicas: a) o sentido
de estudar é somente ou fundamentalmente ganhar mais dinheiro; b) o sentido último da vida é consumir o que deseja ou o que a mídia lhe indica como o caminho para ser reconhecido na sociedade e para a sua humanização
(2006:84).
Esse tipo de estímulo oferecido às crianças e aos jovens não pode, a nosso ver, ser
considerado um erro dos pais, mas sim uma confirmação de que esses pais estão inseridos em
uma sociedade capitalista e regidos, muitas vezes, pela mídia. Como almejar uma formação
educacional de qualidade se o que vemos é a pregação do culto, por exemplo, à posse da roupa de grife; a necessidade da aquisição da condução própria ou de outro bem material qualquer?
O saber ocupa um espaço não imediatamente visível ao outro com o qual convivemos.
Logo, o dinheiro destinado à formação educacional é mais fácil de ser desviado para a aquisição de bens materiais. Afinal as cidades parecem-nos construídas para quem tem posses, pois
os lares necessitam de segurança e a condução mais adequada para a locomoção do trabalhador é o seu próprio automóvel, já que é quase impraticável andar em coletivos urbanos lotados. Isso apenas para citarmos alguns exemplos.
O professor trabalha nesse contexto, portanto a prática profissional que exerce sofre
com as condicionantes sociais, como é visto na explanação da Doutora em Educação, Inês
Assunção de Castro Teixeira:
A condição docente não é um dado fixo e acabado, assim como não resulta
somente das vontades. Ela vai ganhando conteúdo e forma na complexa relação entre as estruturas e os agenciamentos humanos que compõem a vida
social, tal como se vê nos territórios da escola. Nela interferem os sujeitos
sócio-culturais implicados na relação, sujeitos múltiplos e diversos, tanto
quanto as condições materiais e simbólicas em que suas interações e trocas
se realizam, assim como os parâmetros de sua institucionalidade (2007:434).
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Segundo, ainda, a mesma educadora, essa escola da modernidade enfrenta problemas,
porque:
Independentemente das diferentes teorizações e expressões que a denominam – sociedade globalizada; sociedade do espetáculo; sociedade em rede;
sociedade pós-industrial, sociedade da informação; modernidade líquida;
pós-modernidade, entre outras –, a contemporaneidade trouxe e continua
trazendo novos fatos e questões que interpelam a escola e os professores,
colocando-os sob fogo cruzado (2007:438).
Paralelamente às ideias expostas acima, vamos verificar o pensamento de outra personalidade ligada ao ensino, a educadora Dulce Moreira Sampaio, ela nos alerta sobre o que advém do trabalho profissional, fazendo a seguinte argumentação:
O trabalho profissional, aquele que escolhemos por inclinação, interesse ou
por qualquer circunstância, representa uma escolha nossa e faz parte integrante da nossa vida. Representa ainda os mecanismos, sem que tenhamos
consciência, de desenvolvimento de atividades, comportamentos e responsabilidades sociais e afetivas que exercem influência sobre nós mesmos e
sobre todas as pessoas que nos cercam (2007:55).
Essa influência de que Sampaio fala, acreditamos que ganha corpo quando o docente
recebe o apoio tanto dos demais profissionais da escola (direção, coordenação pedagógica,
supervisão escolar...) quanto da família dos alunos. Afinal a família, involuntariamente, expõese por meio de quem é o próprio discente, pois, ainda citando Sampaio:
Não podemos esquecer que amar inclui lidar com o medo, a frustração e a
agressividade. A afetividade aproxima o eu e o outro, a agressividade afasta.
Sendo a escola uma instância educativa, é óbvio que os alunos revivem e elaboram com seus professores e colegas o modelo familiar (2007:71)
Quando um docente, em sala de aula, depara-se com uma classe em que alunos não
possuem um caderno com as anotações organizadas, além de nem portarem o material didático básico para uma aula, chega-se a que o autor Cortella disse:
As sociedades ocidentais contemporâneas transferiram, pouco a pouco, os
cuidados com as crianças das famílias para as escolas; a formação e informação cognitiva, moral, sexual, religiosa, cívica etc., passou a ser entendida como uma tarefa essencial do espaço escolar, em substituição a uma convivência familiar cada vez mais restrita em qualidade e quantidade.
(...) Há, assim, uma crescente sacralização do espaço escolar como sendo um
lugar de proteção, formação, salvação e, por consequência, uma maior responsabilização das educadoras e dos educadores na guarida das gerações
vindouras; no entanto, essa responsabilização beira a culpabilização, como
se a escola e os profissionais nela presentes tivessem, isoladamente, o exclusivo dever de dar conta de toda a complexidade presente na educação da juventude (2006:47-48).
Pensamos que a culpabilização falada por Cortella seja, entre outros, um ponto a ser
pensado por toda a comunidade escolar. Muitas pesquisas apontam para a crise da docência,
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como lembra a educadora Inês Teixeira, ao associar os traços da sociedade com as dificuldades
de relação docente/discente, considerando tal associação problemática. Diz a autora:
Esta problemática, constitutiva da condição docente em suas formas de realização nas sociedades contemporâneas, talvez possa auxiliar-nos na compreensão do que as pesquisas têm denominado como mal-estar docente e
como crise da docência. Ou, ainda, como nostalgia, como síndrome da desistência, como desmotivação e cansaço demonstrados pelos professores em
vários países (2007:440).
Voltamos ao autor Cortella para identificar alguns traços da sociedade que podem interessar mais amiúde à comunidade escolar, pois o entendimento sobre como a vida se manifesta na contemporaneidade pode auxiliar na construção de vínculo entre família-escola-aluno.
Esse autor fala da alteração comportamental da sociedade, em especial, da relação entre pais e
filhos:
(...) O número de vezes e a intensidade em que o pai ou a mãe encontra o
filho é muito rápido; há, inclusive, um fato tristemente inédito: nas metrópoles, somos a primeira geração de adultos que sai mais tarde que os filhos. Por muitos e muitos anos, séculos até, os adultos acordamos as crianças (filho vai para a escola, toma café, toma banho, olha a camiseta); hoje, o filho levanta sozinho e sai às 6h30 ou 6h45 na van ou no ônibus, e o
pai e a mãe, acordando mais tarde saem para trabalhar às 7h30, 8h... Assim, essa família quase não se encontra, filhos são “criados” por outras
pessoas e isso resulta em um impacto negativo na consolidação de uma
comunidade afetiva (2006:93).
Percebemos que pode ser por meio do desvendamento de como são estabelecidas as
relações humanas que a comunidade escolar poderá dialogar melhor com todos os seus membros. Quanto aos pais, a escola deve proporcionar-lhes um diálogo sincero, amigo e de alerta,
um diálogo em que mensagens lhes sejam transmitidas, entre as quais, acreditamos que a do
autor Cury seja uma das significativas. O autor nos fala que:
Pais brilhantes dão algo incomparavelmente mais valioso aos filhos. Algo
que todo dinheiro do mundo não pode comprar: o seu ser, a sua historia, as
suas experiências, as suas lágrimas, o seu tempo (2003:21).
Outro autor que consideramos significativo é Guilherme Schelb. Esse Procurador da
República, Mestre em Direito Constitucional e especialista em segurança pública, afirma que
as crianças e os jovens necessitam de um acompanhamento cuidadoso dos pais, isso porque
“Por sua própria natureza, eles são ‘provisórios’ e ‘inconstantes’, pois estão descobrindo sua própria personalidade e caráter.” (pág. 50). Acrescenta, também:
Deve ser garantida à criança e ao adolescente a possibilidade de exercer livremente sua autonomia, de modo a estimular sua individualidade e sua visão pessoal do mundo. É dever da família, porém, estabelecer limites para o
desenvolvimento da individualidade do jovem, por que não há como estabelecer um padrão da liberdade ou de comportamento. Nesse sentido, cabe igualmente ao pai e à mãe dirigir a educação dos filhos, tendo-os em sua
companhia e sob sua guarda, e podendo exigir deles obediência, respeito e
serviços próprios à sua idade e condição (2008: 132).
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O autor apresenta, também, conselhos aos pais, os quais transcrevemos neste artigo:
Se você é pai ou mãe, tenho dois conselhos estratégicos para você:
1º Conselho: O professor de seu filho é seu maior aliado.
Você nunca será capaz de “ver” seu filho como ele realmente é. Você sempre vai precisar do auxílio de alguém para poder educar e orientar seu filho.
Aconselhamos que seja a professora dele. Ela é preparada para observar e
orientar seu filho, de uma maneira muito especial.
2º Conselho: Não seja amigo de seu filho.
Pais e mães deveriam deixar para ter amizade com seus filhos, quando eles
fizerem 25 ou 30 anos... Mas até lá, estejam atentos, imponham limites, estabeleçam regras de convivência e de responsabilidade. Quando seu filho sofrer emocionalmente pelos erros que cometer, esteja do lado dele, dê conforto emocional, mas jamais justifique is erros que ele cometer (pág.147148).
É preciso resgatar o valor do docente para que esse profissional possa ter ânimo necessário, pois é alguém que possui uma missão complexa e ao mesmo tempo nobre.
Queremos, ainda, registrar, no presente trabalho, que os argumentos expostos não são
destinados a culpar os envolvidos no processo educacional, mas confirmar a importância de
todos – sociedade, família, escola e aluno. Todos são importantes, todos têm um papel a desempenhar. Quanto ao docente, nas palavras de Paulo Freire, registramos os princípios éticos
da existência, como se vê no trecho abaixo:
O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a
sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda
que “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima,
tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de
propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência (1996:59).
3. Conclusão
A sociedade tem se demonstrado complexa e, portanto suscetível a crises diversas. Os
homens parecem ser vulneráveis a essas crises, por isso, diante desse cenário, encontramos a
instituição escolar e, como representante da própria sociedade, enfrenta problemas diversos.
De todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem, o aluno é quem está a cada
dia mais necessitado de adultos que o apoiem e de uma escola que lhe proporcione situações
educativas e formadoras, ou seja, o discente é o sujeito sócio-cultural mais necessitado de
construir saberes mediados pelos adultos, tanto professores, quanto pais. O papel dos responsáveis pela juventude brasileira é sério e de real significado na formação dos homens do amanhã, porque as crianças e os jovens enfrentam um mundo capitalista no qual se valoriza mais o
ter do que o ser, além de enfrentarem uma mídia que, a qualquer custo, deseja impor um modelo de existência. Só a escola não consegue dar conta de todo esse trabalho, assim como acreditamos que a família também não é suficiente, no entanto se ela se unir à escola, as condições de trabalho escolar será mais firme. Acreditamos que os pais devem ser os sócios do diálogo promovido pela instituição escolar. O abandono da escola pela família pode ocasionar o
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próprio enfraquecimento da escola e, por consequência, o fracasso escolar. Não é para esse
fim que nós - os professores - trabalhamos.
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5. USO DE TÉCNICAS DE RESPIRAÇÃO PARA
O CONTROLE DO ESTRESSE EM CRIANÇAS
FAMILY AND THE QUEST FOR TEACHERS
SATISFACTORY RESULTS IN EDUCATION
Francisca Elsenir Porfírio dos Santos 1
Analuce de Macêdo e Silva Caneca2
Resumo. Este artigo tem a intenção de mostrar um trabalho feito com crianças
que apresentavam comportamento indicativo de estresse. O público alvo foi criança com faixa etária entre 10 e 13 anos, alunos do 6º ano do Ensino Fundamental
de uma Escola Pública de Fortaleza – CE. As atividades foram desenvolvidas durante um período de seis meses e constou de exercícios de alongamento, práticas
respiratórias, relaxamento, caminhadas e passeios.
Palavras-chave. Trabalho – Criança – Comportamento – Stress – Respiração –
Relaxamento
Abstract. This article intends to show a work done with children who had an indicative behavior of stress. The target puplic was students aged between 10 and 13
years old from a 6th grade public junior high school in Fortaleza - CE.Brazil. The
curriculum was developed over a period of six months and consisted of stretching
exercises, breathing practices, relaxation, and hiking.
Keywords. Work – Child – Behavior – Stress – Breathing – Relaxation
1
Bióloga, Especialista em Planejamento Educacional pela Universidade Salgado de Oliveira Filho e Atualização Pedagógica pelo Centro de Estudos de Pessoal do Exército CEP/EB). Professora de CFB e Biologia do
Colégio Militar de Fortaleza. Contato: [email protected]
2 Especialista em atualização pedagógica pelo Centro de Estudos de Pessoal do Exército (CEP/EB) e Psicodrama Pedagógico pela Universidade Estadual do Ceará. Professora de CFB e Biologia do Colégio Militar de
Fortaleza. Contato: [email protected]
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1.
Introdução
Só se vê bem com o coração.
O essencial é invisível aos olhos.
Saint-Exupéry
Pela possibilidade de execução desse trabalho
seremos eternamente gratas ao professor
Antônio Augusto Pimentel de Souza
e à companheira de jornada
Francisca das Chagas Soares Reis.
A sociedade moderna tem produzido bons frutos com o desenvolvimento tecnológico,
porém, a facilidade com os recursos tecnológicos trouxe outras preocupações em consequência da carga exaustiva de trabalho, alta competitividade, muita pressão, agitação, cobranças em
vários níveis, não sobrando tempo para o cuidado com o próprio corpo e o respeito ao descanso, bem como o cuidado com a família, pois muitas vezes, mesmo estando em férias, levam consigo o trabalho. Essa falta de cuidado acaba levando as pessoas a vários tipos de doenças tão frequentes hoje em dia.
Encontram-se, nos mesmos moldes, as crianças, além de estarem voltadas às tarefas
escolares, muitas vezes excessivas, que exigem muito esforço e dedicação para se classificarem
em primeiro lugar, ainda são inseridas em outras atividades para ocupar-lhes o tempo, o qual
deveria estar disponível para brincadeiras. O resultado disso são crianças estressadas e ansiosas que acabam apresentando um quadro clínico que antigamente era caracterizado como doença de adulto, por exemplo, pressão alta, dores de cabeça, enxaqueca, rinite, problemas digestivos, herpes, gripes constantes, dores nas costas, hipertensão, diabete, enfarte, depressão,
síndrome do pânico entre outras.
Ao longo de vários anos de prática em sala de aula, foi observado que o
comportamento das crianças vem se modificando, percebe-se com frequência muita
irritação, briga com os colegas, reclamações exageradas, brigas com professores, pedidos
frequentes de atendimentos na enfermaria da escola. As crianças, na maioria das vezes, se
apresentam irrequietas, tensas e ansiosas, gritam, choram e se descontrolam com muita
frequência, apresentando dificuldade de atenção. Isto motivou a realização de um trabalho que
pudesse minimizasse esse problema.
O trabalho tem por objetivo principal reconhecer os efeitos das técnicas de respiração
e relaxamento na redução do estresse em crianças. Os objetivos específicos pretendem
identificar os efeitos do estresse no organismo humano; investigas as causas do estresse em
crianças; identificar os problemas apresentados por crianças estressadas e conhecer as
mudanças produzidas após o uso das práticas respiratórias e relaxamento.
Foi feita uma avaliação com 95 crianças, do total de sujeitos avaliados foram
selecionados 40, com idade variando de 10 a 13 anos, do 6º Ano do Ensino Fundamental de
uma Escola pública em Fortaleza.
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O trabalho usou técnicas básicas de exercícios respiratórios e relaxamento visando à
diminuição do estresse e a transformação de hábitos como o cuidado com o corpo,
fornecendo assim, suporte para as mudanças em suas vidas em busca de uma existência plena
e saudável.
2. Fundamentação teórica
O termo estresse é definido como o conjunto de reações do organismo a agressões de
ordem física, psíquica, infecciosa e outras, capazes de perturbar-lhe a homeostase, segundo o
dicionário Novo Aurélio de Aurélio Buarque de Holanda.
As primeiras referências à palavra “stress” significando aflição e adversidade datam do
século XIV (LAZARUS E LAZARUS,1994 citado por LIPP, 1996) mas o seu uso era esporádico e não–sistemático.
No século XVII, o vocábulo, que tem origem no latim “stringere”, passou a ser usado
em inglês para designar “opressão”, desconforto e adversidade (SPILBERGER, 1979 citado
por LIPP, 1996).
O termo estresse vem da física, e neste campo do conhecimento tem o sentido de grau
de deformidade que uma estrutura sofre quando é submetida a um esforço (FRANÇA E
RODRIGUES, 1996, p. 17).
A definição de estresse, apontada por Cardoso (2000), é concebida como uma relação
de desequilíbrio entre exigências ambientais e recursos pessoais, , em que os indivíduos percebem exigências que esgotam ou excedem os recursos de que julgam dispor frente a uma situação que avaliem como ameaçadora do seu equilíbrio.
Rodrigues (1997) traz uma definição de estresse como “uma relação particular entre
uma pessoa, seu ambiente e as circunstâncias às quais está submetida, que é avaliado pela pessoa como uma ameaça ou algo que exige dela mais que suas próprias habilidades e recursos e
que põe em perigo o seu bem-estar” (op. cit., p.24). Esta é uma visão biopsicossocial do estresse, que considera os estímulos estressores provenientes tanto do meio externo (estímulos
de ordem física ou social, como o trabalho), quanto do interno (pensamentos, emoções, fantasias e sentimentos como angústia e tristeza.
O stress é um reflexo do nosso organismo, um dos mais antigos, que tem por finalidade preservar a nossa vida identificando os perigos internos e externos. Gera uma reação que
modifica nosso organismo como um todo, altera nossa forma somática temporariamente para
enfrentar o perigo, com comportamento de luta ou de fuga. Quando o perigo passa, o organismo volta ao estado de atividade normal. No entanto, nem sempre a coisa acontece redondinha assim, e a reação que altera nossa forma, e modifica nosso organismo como um todo,
persiste e se estabelece, pois a sensação de perigo não passa, até que se torne um padrão de
nossa estrutura somática (FERRAZ, 2007, p.19).
A base do moderno significado da palavra estresse como problema psicológico foi
estabelecida na virada do século, por Walter B. Cannon, um filósofo de Harvard. Ele foi o
primeiro a descrever a “resposta lutar ou fugir” como um conjunto de mudanças bioquímicas
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que nos preparam para lidar com as ameaças. O homem primitivo precisava de rápidas descargas de energia para lutar ou fugir de predadores. Atualmente, quando os hábitos sociais nos
impedem de lutar ou fugir, o estresse desencadeia uma resposta mobilizadora que não tem
mais nenhuma utilidade. Na verdade, uma resposta lutar ou fugir crônica pode ser bastante
prejudicial, física e emocionalmente (DAVIS, 1996, p. 9,10).
Todos os autores de estudos sobre estresse concordam em relação ao papel do estresse na manutenção da vida, e esta concepção deriva-se das afirmações de Claude Bernard sobre
a busca do equilíbrio interno do organismo, a homeostase, como um mecanismo de adaptação: “O estresse fisiológico é necessário ao ritmo biológico, à coesão do meio interno”; consequentemente, a privação ou ausência do estímulo ou ausência de estresse seria a morte. Esta
foi a constatação que deu origem à crença de um eustresse (STORA, 1991). Contudo, o excesso
de estimulação é nocivo e perigoso quando se torna maior do que a capacidade do organismo
em assimilá-lo e adaptá-lo na busca do equilíbrio (ARANTES E VIEIRA, 2010, p.40).
Em 1965, Hans Selye usou o termo stress para designar o estado de tensão do organismo quando era submetido a um agente que ameaça a sua integridade. Ele chamou esta reação de luta ou fuga de General Adaptation Syndrome (SGA).
A síndrome passa então a ser conhecida como contendo três fases:
•
A fase (ou reação) de alarme;
•
A fase de resistência;
•
A fase de exaustão.
Trata-se de uma síndrome geral, porque é provocada por agentes que afetam grandes
porções do corpo, causando uma defesa generalizada, uma defesa sistêmica. É de adaptação,
porque ajuda na busca e na manutenção de um estado de equilíbrio. e finalmente é chamada
de síndrome, porque as manifestações são coordenadas e parcialmente interdependentes (ARANTES, 2010, p. 29).
Na primeira fase, ou fase de ALARME: o organismo como um todo libera substâncias
químicas e altera a sua forma para enfrentar o agente agressor. O organismo se prepara para
lutar ou fugir. A fase de RESISTÊNCIA: segunda fase e se caracteriza pela construção de atitudes adequadas para superar o agente estressor. se houver sucesso nesta fase, o organismo
retorna à atividade normal sem problemas. Mas, se a fase de enfrentamento não gerar atitudes
que possam desativar o estado de alerta, a sensação de perigo permanece, e o organismo continua produzindo uma sobrecarga. Essa contínua sobrecarga gera uma EXAUSTÃO: que é a
terceira fase, em que a capacidade imunológica do organismo fica reduzida, aumentando a
possibilidade do aparecimento de doenças (FERRAZ, 2007, p. 19,20).
Passando esses conceitos para a prática, imagine que você é uma zebra, um leão acabou de pular em você, rugindo e prestes a retalhar o seu estômago, você precisa dar no pé
rápido. Instantânea e instintivamente o seu corpo fica pronto para “lutar ou fugir”. O seu cérebro ativa o sistema nervoso simpático que por sua vez, ativa as glândulas supra–renais. A
adrenalina, hormônio do estresse, é secretada no sangue para colocar seu corpo em marcha.
Seu coração começa a bater mais rápido e os pulmões respiram mais rápido para lhe dar mais
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oxigênio. Seu fígado usa o glicogênio que está armazenado e o transforma em suporte glicose
para lhe dar energia instantânea. No caso de o perigo persistir e você precisar ainda de mais
energia, suas supra-renais secretam um outro hormônio do estresse, o cortisol,e seu fígado
começa a mobilizar suas reservas de gorduras para queimar mais combustível. O seu cérebro
vai a mil por hora, de modo que você possa pensar rápido nessa emergência. Os seus músculos contraem-se formando uma couraça, para protegê-lo dos ferimentos. O seu sistema imunológico é colocado em alerta para que não haja inflamação (ANDREWS, 2003, p. 24,25).
O mesmo mecanismo que desencadeou a resposta de estresse pode eliminá-la. Assim
que decidimos que uma situação não é mais perigosa, o cérebro pára de enviar sinais de emergência para o tronco cerebral que, por sua vez, pára de enviar mensagens de pânico para o
sistema nervoso. Os hormônios e as substâncias químicas que levam o corpo a um estado de
alerta são rapidamente metabolizados. Três minutos depois de pararmos de enviar mensagens
de perigo ao corpo, a resposta lutar ou fugir se extingue e retornamos ao estado normal. Infelizmente, se a mensagem para eliminar a resposta lutar ou fugir não ocorrer e se as mudanças
bioquímicas e hormonais que acontecem durante a resposta lutar ou fugir continuarem, pode
resultar o estresse crônico. Atualmente, quando os hábitos sociais nos impedem de lutar ou
fugir, o estresse desencadeia uma resposta mobilizadora que não tem mais nenhuma utilidade.
Na verdade, uma resposta lutar ou fugir crônica pode ser bastante prejudicial, física e emocionalmente (DAVIS, ESTHELMAN e MCKAY, 1996, p.10).
Aparentemente, as crianças estavam a salvo de tudo isso. Mas recentes pesquisas têm
descoberto que elas também têm sido afetadas por esse mal, pois também tem problemas de
adaptação, compartilham com os problemas familiares, portanto, sofrem choques e traumas.
Existem estudos considerados pioneiros no Brasil na área do estresse infantil. Por exemplo, Grunspun (1980); Wolff (1981) e Elkind (1982) já se referiam ao estresse da infância,
mas havia considerável dificuldade em mensurá-lo e diagnosticá-lo.
Em 1987, Lipp e Romano publicaram uma versão preliminar de um Inventário de
Sintomas de Estresse, o qual veio a ser validado por Lucarelli em 1997 e deu origem a Escala
de Stress Infantil (Lucarelli, 1998; Lipp & Lucarelli, 1998) que veio viabilizar os estudos de
levantamento do estresse em crianças.
Nos últimos anos, várias Dissertações de Mestrado da PUC Campinas tem estudado
diversos aspectos do problema. Por exemplo, Vilela (1995) comparou o nível de estresse em
crianças do primeiro grau de escolas particulares e públicas, Tricoli (1997) averiguou a sintomatologia em escolares, Pereira (1996) averiguou a correlação entre estresse e dor abdominal
sem causa física em crianças de 7 a 14 anos, e Bignotto (1997) estudou a contribuição do estresse para a obesidade infantil. Adicionalmente, Alcino (1996) comparou a reatividade cardiovascular de crianças filhas de pais hipertensos com as de filhos de pais normotensos em momentos de estresse social, tendo concluído que filhos de hipertensos reagem com aumentos
pressóricos significativos quando estão sujeitos a situações estressantes.
Embora as fontes de estresse infantil sejam necessariamente muito diferentes, na criança, o que mais cria stress é a morte de um dos pais ou a morte de um irmão. O divórcio dos
pais ou brigas constantes entre eles, assim como atividades em excesso também podem criar
uma tensão muito grande. A gravidez da mãe, o nascimento de um irmão, uma disciplina conEDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
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fusa por parte dos pais, uma hospitalização, uma mudança de escola, o início de novas atividades extracurriculares e a mudança de babá podem estressar a criança (LIPP, 2008, p. 20).
O estresse pode estar relacionado a fatores internos e externos. Os fatores internos referem-se às características de personalidade, pensamentos e atitudes da criança, diante de várias situações que ela precisa enfrentar na vida.
As fontes internas são: ansiedade, depressão, timidez, desejo de agradar, medo do fracasso e de punição divina, preocupação com mudanças físicas, dúvidas quanto à própria inteligência, medo de ser ridicularizados por amigos.
As fonte externas são devidas às mudanças significativas, responsabilidades e atividades em demasia, brigas ou separação dos pais, algumas escolas, morte na família, disciplina
confusa por parte do pais, pais ou professores estressados, medo de pai alcoólatra etc.
Independentemente da causa, o estresse infantil pode levar a problemas mais sérios,
tais como: asma, úlceras, alergias e distúrbios dermatológicos. Isto parece ocorrer em virtude
da disfunção ocorrida em alguns órgãos, ocasionada por um esforço demasiado, feito pelo
organismo para lidar com o estresse. Quando o estresse é prolongado, o sistema imunológico
é afetado devido a produção excessiva de corticosteróides pelo córtex da glândula supra-renal.
Quando isto ocorre, a resistência da criança é reduzida e ela se torna vulnerável a qualquer
vírus que esteja exposta, seja da gripe ou outro mais sério. Além disso úlceras, hipertensão
arterial, enfarte, obesidade, urticária, psoríase e bronquite podem ter como elemento desencadeador uma crise de estresse excessivo e prolongado (LIPP, 1991, p. 51).
Gagueira e tiques nervosos podem também ser desenvolvidos durante períodos difíceis para a criança. Agressividade, irritabilidade, modos exagerados, depressão, ansiedade surgem também com bastante frequência. Na adolescência, o abuso de drogas, os comportamentos de risco, a depressão e o cinismo podem surgir como consequência de um stress muito
grande. Com tantas dificuldades que surgem como resultado do stress infantil excessivo, não é
de se surpreender que o stress cause problemas interpessoais. Quando a impaciência, a irritabilidade, a hostilidade, o desânimo e a apatia ocorrem, como se pode esperar que a criança se
relacione bem com amigos, irmãos, pais e professores? (LIPP, 2008, p. 36).
Então, o que fazer? Como podemos ajudar crianças a terem um padrão de vida melhor? Para que possam ter um desenvolvimento bem estruturado?
A resposta é simples: a respiração, relaxamento, atividades lúdicas e prazerosas.
Respirar corretamente é a chave para o sistema nervoso autônomo e pode eliminar vários distúrbios relacionados ao estresse, tais como hipertensão, depressão, ansiedade, pânico,
dores, problemas de menopausa, menstruais, sexuais etc.
Todos os bebês nascem com padrões naturais de respiração abdominal, usando o diafragma, um grande músculo abaixo dos pulmões. Os bebês, assim como os animais, inspiram
distendendo o diafragma para baixo, de modo absorver o máximo de oxigênio nos pulmões, e
expiram pela contração do diafragma, puxando-o para cima, de modo a expelir o dióxido de
carbono e as toxinas para fora dos pulmões (ANDREWS, 2003, p. 72, 73).
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Especialmente nas crianças, quando cronicamente estressadas, os padrões de respiração tornam-se habitualmente “invertidos” – inspirando com o estômago para dentro e expirando com o estômago para fora. O estresse na infância, cria padrão impróprio de respiração
que dura a vida inteira. O diafragma fica contraído para cima, a capacidade dos pulmões é
limitada, fazendo com que menos oxigênio seja absorvido. Como resultado, somos privados
de energia: sentimo-nos continuamente cansados, ansiosos e deprimidos, com concentração e
energia mental baixas (ANDREWS, 2003, p.73).
Todos nós sabemos, por experiência própria, como as rupturas no padrão respiratório
estão associadas com a dor ou com fortes emoções. Um soluço de tristeza, um arquejo de
pavor e as respirações profundas e trêmulas de raiva são exemplos bem familiares de como as
emoções podem afetar a respiração. Mas as inter-relações vão muito além disto porque uma
mudança no padrão respiratório também pode alterar um estado emocional bem como efetuar
mudanças fisiológicas no corpo (RAMA,1979, p. 22).
Dos vários tipos de respiração, o mais adequado para o funcionamento relaxado do dia-a-dia é a respiração diafragmática. Nela, a expansão dos pulmões é focalizada em suas áreas
mais baixas, sujeitas a ação da gravidade, onde as trocas de oxigênio podem processar-se com
mais eficiência. Além de constituir uma excelente modalidade de funcionamento regular, a
respiração diafragmática demonstrou o seu potencial como resultados favoráveis nos casos de
hipertensão essencial (pressão arterial alta de causa desconhecida), empregando-se um regime
diário de respiração diafragmática (RAMA, 1979, p.22).
Levar o ar até os recessos mais profundos dos pulmões é saudável sob todos os aspectos. Uma vez que o pericárdio – a membrana que envolve o coração – repousa sobre o diafragma e, uma vez que o processo da respiração profunda faz com que o diafragma desça na
direção do abdômen, o coração é arrastado simultaneamente com ele, para baixo. Quando os
pulmões estão cheios de ar, desde a base até o ápice, eles comprimem o coração massageandoo levemente. À medida que o diafragma contrai e relaxa, ele também massageia o coração, o
fígado e o pâncreas auxiliando as funções do baço, do estômago, do intestino delgado e do
abdômen como um todo (RAMA, 1979, p.48).
Se a criança aprender, desde cedo, a respirar corretamente, ela estará menos sujeita a
crises de ansiedade e medo. Exercícios de respiração ajudam a criança a usar o diafragma para
respirar e induz o relaxamento, diminui o medo, a ansiedade, e a irritabilidade. Além disto,
exercícios de respiração profunda ajudam a melhorar a habilidade de concentração da criança
(LIPP, 1991, p. 90, 91).
3. METODOLOGIA
A metodologia utilizada para o desenvolvimento do trabalho teve como base a
observação diária, com relação ao comportamento dos alunos em sala de aula, no que diz
respeito à interação com os colegas, com os professores, e o desempenho nos estudos.
Verificou-se que algumas crianças apresentavam comportamento diferente, daí surgiu a idéia
de fazer uma atividade que ajudasse aquelas crianças. Inicialmente foi feita uma intervenção
breve discutindo a respeito da vida moderna e saúde do homem, como estamos inseridos
nessa situação e como podemos nos livrar do estresse. Em seguida foi aplicado um
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questionário, o qual iria fornecer subsídios necessários para mapear de forma consistente o
problema.
Participaram como sujeito da pesquisa 95 crianças. O instrumento utilizado foi o
Inventário de Sintomas de Estresse Infantil (mostrado em anexo), produzido por Lipp e
Colaboradores (1991, p.26, 27, 28). Este inventário tem por objetivo verificar a existência ou
não de estresse em criança de 6 a 14 anos, possibilitando que determine o tipo de reação mais
frequente na criança, o que facilitará o controle adequado do estresse. O teste apresenta um
sintoma e ao lado tem um círculo dividido em quatro partes, que serão pintadas pelas
crianças conforme a intensidade dos sintomas sentidos. A equipe, que elaborou o
questionário, orienta que, dependendo da categoria em que a criança se enquadra, são feitas
as seguintes recomendações:
3.1.
Nota alta em Cognitivos – baixa em Somáticos
Incentivar a criança a jogos e atividades que exijam concentração, assim como: quebra cabeça,
vídeo-game, banco imobiliário, incentivo à leitura, levá-la ao cinema, teatro ou alguns
programas na televisão.
3.2.
Nota baixa em Cognitivo – alta em Somático
Incentivar a criança para atividades físicas como: natação, passeio de bicicleta, jogar
bola, pular corda, judô, dança, ginástica olímpica etc.
3.3.
Nota igual em ambos
Incentivar atividades que exijam alguma concentração e esforço físico, como: tênis de
mesa, tênis, futebol, vôlei etc.
A apuração dos resultados foi feita da seguinte forma: para cada parte preenchida, em
cada ciclo, soma-se um ponto. Calcula-se o total e observa-se a que categoria a criança
pertence. Do total de 95 crianças foi observado o seguinte:
Crianças
95
CRIANÇAS
41
2
Suposto estado de
estresse
43
Percentual
45,26%
RESULTADO
Alta em Cognitivo – baixa em Somático
Baixa em Cognitivo – alta em Somático
A aplicação do questionário foi o passo inicial para estudo do caso, em seguida
foram feitas reuniões e conversas com os pais e com os psicólogos da escola. Inicialmente elas
foram convidadas a participarem de um programa, após o início das atividades se
intensificaram as observações no dia a dia da escola.
O grupo se reuniu no período da tarde duas vezes por semana, durante uma hora.
Inicialmente foram feitos exercícios de respiração; relaxamento e auto-massagem. Fora da
escola foram realizados passeios no Parque Adail Barreto e trilhas na serra de Maranguape.
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A identificação dos efeitos das técnicas utilizadas, além da ajuda familiar, foi observado
após meses depois, através do comportamento das crianças e conversas com os pais, os quais
observaram várias mudanças em seus filhos. Além disso foi coletado relato dos próprios
alunos, os quais são registrados a seguir:
“O projeto representou para mim uma coisa muito boa, pois com ele consegui relaxar e diminuir
minhas preocupações. As professoras foram muito dedicadas e graças a isso estou mais
tranquila”.
A.T.L.
“Foi um momento de relaxamento que eu tive, pois hoje em dia está muito difícil conseguir
relaxar”.
J. S. A.
“Eu adorei participar este projeto, pois aprendi muito com ele e baixei meu nível de “stress” e
ainda me familiarizei com pessoas que ainda não conhecia”.
B. B. M.
“Neste dia de encerramento gostaria de dizer que gostei muito deste ano porque pude participar
desse projeto, o qual foi o melhor que participei. Nunca esquecerei as aulas em que aprendi ser
uma pessoa melhor”.
F. A. R.
“Embora não tenha participado do início, gostei muito, pois eu consegui trabalhar melhor meus
aborrecimento e obtive melhora na dor de cabeça. Muito obrigada”.
R. S. M.
“Gostei de todos os momentos do projeto, fora a péssima idéia da realização daquele passeio em
Maranguape, eu gostei muito”.
L. F. C.
4. Considerações finais
Houve uma grande evolução, ao longo de mais de um milhão de anos, o homem passou de caçador-coletor, numa era primitiva onde a principal ameaça à sobrevivência era encontrar alimento e proteger-se dos animais selvagens à uma vida pós- moderna com desafios
mentais onde depara-se com outros valores, como por exemplo, escolhas em demasia, convivência em grupos diversificados, diversos afazeres, preocupações com a família, o trabalho, o
dinheiro e a saúde, porém não conseguiu desenvolver estratégias adequadas para lidar com o
estresse.
Em 2007 o ISMA – International Stress Managemente Association – realizou uma
pesquisa e descobriu que 70% dos trabalhadores brasileiros vivem estressados, perdendo apenas para o Japão, onde o índice é de 85%.
Esse dado é preocupante, visto que, como foi relatado, o estresse conduz a pessoa a
outras doenças, urge que se atitudes sejam tomadas para mudança desse quadro que é muito
perigoso. Ouve-se muito falar em qualidade de vida porém, observa-se que o brasileiro não
está conseguindo fazer uso de atividades simples que podem mudar esse quadro.
É impossível se pensar num mundo sem preocupações, os obstáculos estão no dia a
dia de cada indivíduo, porém é preciso que se desenvolva estratégias para que possa conviver
bem com o estresse e torná-lo um aliado no desenvolvimento psicológico, sem adquirir doenEDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
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ças. Se os pais e professores são estressados a criança também acaba entrando no mesmo
sistema, e se a criança não receber subsídios para lidar com as dificuldades da vida, certamente
será um adulto doente, nervoso ou ansioso.
Faz-se necessária a compreensão de pais, professores, psicólogos, pedagogos, instrutores, pessoas envolvidas com a educação infantil que há uma responsabilidade com relação à
condução no desenvolvimento da criança, a qual, muitas vezes, depende da forma cormo o
processo de educação foi conduzido. É muito importante que quando forem observadas
mudanças significativas no comportamento da criança, perceber que isso funciona como um
sinal de alerta, aí é possível utilizar técnicas bem estruturadas que forneçam suporte para superação de crises.
A respiração é essencial à vida. A respiração adequada é um antídoto contra o estresse.
Com práticas simples de relaxamento, respiração, caminhadas, momentos de lazer em contatos com a natureza é possível reduzir quadro de estresse, porém é importante lembrar que
pode acontecer casos em que a criança sofreu traumas graves, aí urge um tratamento com
avaliação médica e psicológica, pois como foi falado, pelos estudiosos, o estresse crônico pode trazer transtornos graves na vida de uma criança.
Este trabalho teve como principal intenção mostrar a importância da escola no desenvolvimento integral do indivíduo, é importante lembrar que a escola e a família integradas contribuem de forma substancial na estrutura do caráter do indivíduo em desenvolvimento. Isso
demonstra uma preocupação: a saúde das gerações futuras em busca de uma sociedade justa e
harmoniosa.
Pais e professores têm um papel fundamental na saúde mental da criança, pois Ensinar é um exercício
de imortalidade. De alguma forma, continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela
magia de nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais” (ALVES, 1994, p.3).
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5. Referências bibliográficas
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ARORA, HARBANS LAL; VED KUMARI ARORA & ARORA ANMOL.
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Paulo, Summus, 1998.
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2010.
DE LUCA, MÁRCIA & BARROS, LÚCIA. Ayurveda: Cultura do Bem Viver. São Paulo,
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6. Anexos
INVENTÁRIO DE SINTOMAS DE ESTRESSE INFANTIL
A seguir se encontra uma lista de sintomas que as crianças, às vezes, experimentam
quando têm estresse. Preencha os desenhos abaixo indicando a frequência com a qual você
sente o que é descrito. Se nunca sente, deixe em branco; se sente raramente, preencha só uma
parte
;sente às vezes, preencha duas parte s ; se sente com frequência, preencha três partes ; e se sente isto sempre, preencha o desenho todo
.
01. Meu coração bate depressa, mesmo quando não corro ou não pulo
02. Tenho dor de barriga
03. Não consigo ficar parado e quieto num mesmo lugar por muito tempo.
04. Quando fico nervoso durante o dia, molho a cama à noite.
05. Minhas mãos ficam suadas.
06.
Quando fico nervoso, gaguejo.
07. Tenho tique nervoso
08. Tenho medo.
09. Tenho vontade de chorar.
10. Fico preocupado com coisas ruins que possam acontecer.
11. Tenho dificuldade de prestar atenção.
12. Eu me sinto triste.
13. Sou tímido.
14. Eu me sinto assustado na hora de dormir.
15. Raspo um dente no outro, fazendo barulho.
16. Sinto aflição “por dentro”
17. Sinto que tenho pouca energia para fazer as coisas.
18. Tenho dificuldade para respirar.
Fonte: LIPP, M. N. e ROMANO, A.S.F. (1987). O Stress Infantil. Estudos de Psicologia, 4 (2), 42 –
54.
SOMÁTICOS
1)
2)
3)
4)
5)
6)
7)
15)
18)
TOTAL
COGNITIVOS
8)
9)
10)
11)
12)
13)
14)
16)
17)
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74
CÍRCULO VICIOSO DO ESTRESSE
Sistema nervoso
Simpático estimula as glândulas
supra-renais
Reação de
Lutar ou Fugir
SINTOMAS PSICOSSOMÁTICOS
• Perda do apetite
• Insônia
• Perda de memória
Tudo isso causa
mais estresse
ENFERMIDADES
CRÔNICAS
• Ataque cardíaco
• Úlcera
• Asma
PROBLEMAS FÍSICOS
• Palpitação cardíaca
• Acidez estomacal
• Deficiência respiratória
1º ESTÁGIO: PSICOSSOMÁTICO
Perdemos o apetite e a memória, sentimo-nos ansiosos, fatigado e sofremos de insônia. Alguma coisa está errada, mas não sabemos exatamente o quê.
2º ESTÁGIO: FÍSICO
A reação ao estresse causa distúrbios, em algum órgão enfraquecido, e problemas físicos reais
começam do tipo palpitação, a acidez e dificuldade em respirar.
3º ESTÁGIO: PROBLEMAS CRÔNICOS
Esses problemas resultam em problemas crônicos, como doenças cardíacas, úlcera e asma que,
por sua vez, causam ainda mais estresse, instalando um círculo vicioso.
FONTE: Andrews, Susan. Stress a seu favor: Como Gerenciar sua Vida em Tempos de Crise. 2003, p.
39.
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
75
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
76
6. LIDERANÇA AUTÊNTICA NUMA AMOSTRA
DE ORGANIZAÇÕES ESCOLARES DO NORDESTE
BRASILEIRO (FORTALEZA E RECIFE)
AUTHENTIC LEADERSHIP IN A SAMPLE
ORGANIZATIONS CHILDREN IN NORTHEASTERN
BRAZIL (FORTALEZA AND RECIFE)
António V. Bento1
Resumo. Esta investigação, de carácter descritivo e exploratório, teve como
objectivos essenciais conhecer as percepções dos professores-estudantes (Nordeste
Brasileiro) de uma pós-graduação em Ciências da Educação, sobre os seus líderes,
medidas e avaliadas através do Authentic Leadership Questionnaire (ALQ) e
verificar se existiam diferenças entre as organizações escolares públicas e privadas
nas quatro características definidas pelo ALQ: a) autoconsciência; b) transparência;
c) moral/ética; d) processamento equilibrado. Foi seleccionada uma amostra não
probabilística por conveniência constituída por 86 participantes naturais do Brasil.
Os resultados desta investigação mostram que o nível de autenticidade do líder, nas
quatro características definidas pelo ALQ, na percepção dos respectivos liderados,
está acima do moderado. Tendo em conta o tipo de organização escolar não se
registaram diferenças estatisticamente significativas nos níveis das quatro
características definidas pelo ALQ muito embora os líderes das escolas privadas
demonstrassem possuir valores ligeiramente mais altos nos quatro domínios
analisados.
Palavras-chave: Liderança. Liderança autêntica.
Questionnaire. Escolas Públicas. Escolas Privadas.
Authentic
Leadership
Abstract. This research study, descriptive and exploratory in nature, had as essential objectives to know the perceptions of teacher-students (Northeast of Brazil) of a
pos-graduate course in Sciences of Education, about their school leaders, measured
and evaluated through the Authentic Leadership Questionnaire (ALQ) and to verify
if existed differences between the public and private school organizations in the four
characteristics defined in the ALQ: ) Self-conscience; b) Transparency; c)
Moral/ethics; d) Balanced processing. A non probabilistic and convenient sample
was selected consisting of 86 Brazilian participants. The results of this research study
show that the level of authenticity of the leader, in the four characteristics defined by
the ALQ, in the perception of the led teachers, is above the moderate level. Having
into account the type of school organization, there were no significant differences in
the four levels defined by the ALQ although the leaders of the private schools demonstrated slightly higher values in the four domains analyzed.
Keywords: Leadership. Authentic leadership. Authentic Leadership Questionnaire
(ALQ). Public schools. Private Schools.
1
Doutorado em Educação pela Universidade de Massachusetts – Lowell, Estados Unidos. Professor Auxiliar
de Administração e Gestão Escolar na Universidade da Madeira (UMa) (Portugal). É membro do Centro de
Investigação em Educação (CIE-UMa). Colabora no programa de acesso ao Mestrado pela UMa no Brasil
(Protocolo DH2-UMa). Contato: [email protected] - http//www3.uma.pt/bento
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
77
1. Introdução
O Avolio et al (2004) definem o líder autêntico como sendo aquele que é
profundamente consciente de como pensa e se comporta e é percebido pelos outros como
tendo esta consciência não só de si próprio, mas também dos valores morais e das
características pessoais dos outros. O líder autêntico, por um lado, age de acordo com seus
profundos valores e convicções para construir a credibilidade e ganhar o respeito e a confiança
de seus subordinados. Por outro lado, encoraja diversos pontos de vista e cria uma relação de
colaboração entre os seus subordinados. Preocupa-se com o bem-estar dos outros, por
acreditar que cada um tem a sua dignidade (Eboli, 2010). Para Avolio (2010) a liderança
autêntica é uma forma de se conhecer a si próprio, de ser coerente consigo mesmo, ter uma
orientação positiva e ter força para seguir uma direcção baseada no seu desenvolvimento e no
desenvolvimento dos outros. Os líderes conhecem e defendem os seus valores e tomam as
suas decisões com base nestes. Os liderados identificam no seu líder um elevado nível de autoconsciência relativamente aos valores, crenças, emoções, auto-identidade e habilidades
(Laguerre, 2010). Na opinião de Yuhl (2010) as acções do líder autêntico são fortemente
determinadas pelos seus valores e pelas suas crenças. Roux (2010) considera que os líderes
autênticos agem de acordo com valores profundos e convicções pessoais, para construir a
credibilidade, o respeito e a confiança dos seus seguidores, incentivando pontos de vista
diversos e a construção de redes de colaboração fazendo com que os seguidores o
reconheçam como um líder autêntico. Avolio et al. (2007) consideram que a autenticidade de
um líder pode ser avaliada através de uma escala constituída por 16 itens na qual se podem
destacar quatro características fundamentais:
a) A Autoconsciência
O líder tem plena consciência das suas forças e fraquezas, o que na opinião de
Gardner et al., (2005), Avolio et al. (2007) e Raham et al. (2010) permite ao líder, por um lado,
ter consciência dos seus pontos fortes e limitações, bem como saber como é encarado pelos
outros líderes. Raham et al. (2010) argumenta que ter auto-conhecimento de como as suas
acções são entendidas pelos outros, ajuda a melhorar a acção e a forma de comunicação do
líder permitindo-lhe ser mais eficaz na construção de uma equipa.
b) A transparência
Gardner et al. (2005) entendem como transparência a coerência entre o discurso do
líder e as suas acções. Segundo Rahman (2010) a transparência no contexto da educação
democrática traduz-se na tomada de decisões participada, de acordo com regras claras e éticas.
c) A moral e a ética
Os líderes autênticos têm padrões e valores morais que enfatizam os interesses
colectivos (Avolio & Gardner, 2005; Gardner et al, 2005). As suas acções e decisões baseiamse nesses valores e convicções (Shamir & Eilam, 2005; Yuhl, 2010).
d) O processamento equilibrado
Os líderes analisam com grande objectividade todas as informações relevantes antes de tomar
uma decisão (Gardner et al., 2005). Quando um líder toma uma decisão, tem acesso a variadas
perspectivas. Contudo, o indivíduo evita a distorção e tenta ser objectivo na análise da
informação que tem disponível (Kernis, 2003).
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
78
2. Objectivos do estudo
Este estudo tem como objectivo fundamental analisar a autenticidade dos líderes na
perspectiva dos seus liderados, medida através do Authentic Leadership Questionnaire (ALQ version
1). Basicamente, pretende-se quantificar o nível de autenticidade do líder em quatro domínios
distintos, nomeadamente, auto-consciência, transparência, moral/ética e processamento
equilibrado. Com a aplicação do ALQ aos alunos que frequentam uma pós-graduação na área
das ciências da educação, no ano lectivo de 2010-2011 e, que têm como profissão “professor”
procura-se dar resposta às seguintes questões:
1) Na perspectiva do liderado qual é o nível de autenticidade do líder da sua organização
escolar?
2) O nível de autenticidade do líder é diferente caso se trate de uma escola pública ou de
uma escola privada?
3) Importância do estudo
Um estudo desenvolvido por Walumbwa et al. (2008), em cinco amostras obtidas na
China, Quénia e Estados Unidos, demonstrou que o nível de satisfação e o desempenho do
liderado é tanto maior quanto maior é o nível de autenticidade do líder. Mundialmente, é
reconhecido o contributo dado pela liderança para a obtenção de bons resultados escolares
(Horn & Marfán, 2010) e para adopção de estratégias que permitem uma escola melhor
(Anderson, 2010). Segundo Leithwood et al. (2004) a liderança é o primeiro factor, depois do
trabalho docente, que mais contribui para a aprendizagem do aluno.
Os principais resultados de um estudo levado a cabo por Rahman (2010) evidenciam a
importância da liderança autêntica para o desenvolvimento quer, de seguidores autênticos,
quer de escolas onde as decisões são participadas. Avolio & Walumbwa (2006) argumentam
que as organizações escolares com líderes autênticos fornecem ambientes abertos que
permitem acesso à informação, recursos, apoio e oportunidades iguais para todos aprenderem.
Por outro lado, possibilitam o desenvolvimento de capacidades, quer do líder, quer dos seus
seguidores para a realização eficaz do trabalho. Isto significa que para ser eficaz os líderes
organizacionais devem proporcionar um clima organizacional que permita, ao líder e aos
seguidores uma aprendizagem e um crescimento continuado (Roux, 2010).
Neste contexto e, dado que na última década tem havido uma grande preocupação em
melhorar os resultados escolares, designadamente, combater o analfabetismo e o abandono
escolar, diminuir a insatisfação dos professores, diminuir o absentismo dos professores, entre
outros, parece-nos pertinente esta investigação, apesar de, exploratória. Segundo Luthans &
Avolio (2003) a atitude positiva do líder autêntico fomenta as emoções positivas nos
seguidores, o que se traduz num maior envolvimento e comprometimento com o trabalho e
resultando um melhor desempenho.
4)
Revisão da Literatura
A liderança autêntica, que é uma derivação e um aperfeiçoamento da liderança
transformacional, tem adquirido grande relevância nos últimos anos devido às mudanças
imprevisíveis que as organizações e as sociedades contemporâneas sofreram. Para os autores
inspiradores desta nova abordagem à liderança (Luthans & Avolio, 2003; Avolio & Gardner,
2005; Avolio & Luthans, 2006) o líder autêntico desenvolve um clima positivo na sua
organização gerando autoconfiança nos seus liderados e focando-se dum modo essencial na
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
79
transparência, na ética, na moral, na auto-consciência e na colaboração. Deste modo, o
modelo de liderança autêntica é um modelo recente que tem sido desenvolvido e estudado
tanto a nível teórico como a nível empírico e que, de certo modo, como já afirmado, vem
complementar os trabalhos elaborados sobre a ética e a liderança transformacional
(Walumbwa et al., 2010). Assim, a liderança autêntica é um estilo ou modelo de liderança no
qual o líder é verdadeiro consigo próprio enquanto lidera e é percepcionado pelos seus
liderados como uma pessoa sincera, honesta e íntegra. Luthans & Avolio (2003) definiram a
liderança autêntica como um processo que gera capacidades psicológicas positivas e um
contexto organizacional altamente desenvolvido que facilitam o desenvolvimento do autoconhecimento e comportamentos positivos auto-regulados tanto no líder como nos liderados.
Ainda, segundo os mesmos autores, Luthans & Avolio (2003), podemos reconhecer um líder
autêntico se nos ativermos a determinadas características: a) Conhecem-se bem e sabem bem
aquilo em que acreditam; b) mostram transparência e consistência entre os seus valores éticos
e as suas acções; c) focam-se no desenvolvimento de qualidades psicológicas tais como,
confiança, optimismo, esperança, e resiliência neles e nos seus liderados; d) são conhecidos e
respeitados pela sua integridade. Assim, a credibilidade que o líder transmite aos liderados
passa por falar a sua própria voz e por alinhar as acções pelos valores partilhados como
afirmam Kouzes & Posner (2002) de modo a que o líder modele o caminho para os outros o
seguirem.
Vários autores focaram a importância do auto-conhecimento para a autenticidade dos
líderes quer seja em relação aos valores (Bass & Steidlmeier, 1999), ao propósito (George,
2003), à coerência das palavras com as acções (Kouzes & Posner, 2002) ou aos estados
psicológicos positivos (Luthans & Avolio, 2003). Os líderes autênticos norteiam-se por valores
claros e conscientes e por valores morais que consideram de primordial importância para os
interesses dos grupos que lideram e das organizações que dirigem. (Howell & Avolio, 1992;
Luthans & Avolio, 2003).
Num estudo recente sobre a liderança autêntica, realizado por Walumbwa et al. (2010)
com 387 empregados e os seus 129 supervisores imediatos foi concluído que a liderança
autêntica estava positivamente relacionada com a cidadania organizacional e com o
envolvimento no trabalho.
5) Metodologia
5.1. Participantes
A população que é objecto deste estudo é constituída por todos os estudantes que
frequentavam uma pós-graduação em Ciências da Educação no ano lectivo de 2010-2011 e
que são professores em qualquer nível de ensino (pré-escolar, fundamental, médio, técnico,
pós-médio e superior).
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
80
Quadro 01 - Distribuição dos inquiridos por região, sexo, tipo de escola e tipo de
ensino
Variáveis
Região
Fortaleza
Recife
Sexo
Masculino
Feminino
Tipo de escola
Pública
Privada
NR
Tipo de ensino
Pré-escolar
Fundamental
Médio
Técnico
Pós médio e superior
NR
Frequência
Absoluta (N=86)
Frequência
relativa (%)
32
54
37,2
62,8
32
54
37,2
62,8
50
32
4
58,1
37,2
4,7
11
35
27
7
14
9
12,8
40,7
31,4
8,1
16,3
9,3
Foi seleccionada uma amostra não probabilística por conveniência constituída por 86
professores-estudantes, dos quais 62,8% são do género feminino e 37,2% são do género
masculino, que frequentavam, no ano lectivo 2010-2011, a pós-graduação na área das Ciências
da Educação, em duas localidades do Brasil, designadamente, Recife e Fortaleza.
O quadro 01 mostra como estão distribuídos os inquiridos tendo em conta a região de origem,
o sexo, e o tipo de escola onde leccionam (pública ou privada). Verifica-se pela leitura do
quadro 01 que 62,8% dos respondentes trabalham na localidade do Recife, em organizações
escolares públicas, leccionam ao ensino fundamental e são na sua maioria do sexo feminino. O
tempo do líder, do inquirido, à frente da organização escolar varia entre 1 a 36 anos e é em
média de 7, 2 anos, havendo uma grande dispersão do tempo como líder em relação à média
(DP=7,5 anos).
5.2.Instrumento
Para a recolha de dados foi utilizado o Authentic Leadership Questionnaire (ALQ version 1)
um instrumento desenvolvido por Avolio et al. (2007). De acordo com o autor a autenticidade
do líder manifesta-se segundo quatro características, tal como já foi referido, que resultam da
agregação de variáveis tal como mostra o quadro 02. Cada variável independente tem uma
unidade de medida de cinco pontos numa escala tipo Likert (0 - Nunca; 1 - Ocasionalmente; 2
- Algumas vezes; 3 - Muitas vezes; e, 4 - Frequentemente), o que significa que o ponto médio
de intervalo da resposta é igual a 2,0 (moderado).
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
81
Quadro 02 - Agregação das afirmações do questionário de acordo com a prática de
liderança
1. Transparência
1. O meu líder diz exactamente o que pretende dizer
2. O meu líder admite os erros quando cometidos
3. O meu líder encoraja toda a gente a falar abertamente
4. O meu líder diz a verdade “nua e crua”
5. O meu líder mostra as emoções de acordo com os seus sentimentos
2. Moral/Ética
6. O meu líder demonstra crenças consistentes com as suas acções
7. O meu líder toma decisões baseado nos seus valores fundamentais
8. O meu líder pede que se tomem posições baseadas em valores fundamentais
9. O meu líder toma decisões difíceis com base em altos padrões de conduta ética
3. Processamento equilibrado
10. O meu líder solicita pontos de vista que desafiem as suas tomadas de posição
11. O meu líder analisa dados relevantes antes de tomar uma decisão
12. O meu líder presta atenção aos diferentes pontos de vista antes de chegar a conclusões
4. Auto-consciência
13. O meu líder procura feedback para melhorar as interacções com os outros
14. O meu líder descreve com precisão a forma como os outros percepcionam as suas capacidades
15. O meu líder sabe quando é a altura de reapreciar a sua posição em questões importantes
16. O meu líder mostra que compreende como acções específicas afectam os outros
5.3.Procedimentos
A recolha de dados realizou-se no Brasil em Dezembro de 2010 em duas localidades
diferentes, Fortaleza e Recife. O questionário foi auto-administrado em contexto de sala de
aula sob a supervisão de um professor/investigador, o qual estava disponível para esclarecer
qualquer dúvida. Antes do preenchimento do questionário os alunos foram informados que a
resposta ao questionário era voluntária, confidencial e anónima. O tempo total de
preenchimento do questionário foi de cerca de 10 minutos.
O programa informático utilizado para editar e tratar os dados foi o PASW (Predicte
Analitics Software). Recorreu-se à a) estatística descritiva para caracterizar a amostra; b) análise
da confiabilidade do questionário para analisar a consistência das respostas. c) aplicação do
teste estatístico t-Student para comparar a frequência da utilização das práticas de liderança
entre os dois grupos independentes (Tipo escola: Pública e Privada). Antes da utilização dos
testes paramétricos foi testada a normalidade dos dados e a homogeneidade das variâncias
através dos testes de Kolmogorov-Smirnov e Levene, respectivamente. Para todos os testes foi
considerado o nível de significância de 5%.
6) Resultados
A consistência interna do questionário é de 0.966 (tendo em conta os 16 itens). Para as
características de autenticidade, tal como pode ver-se no quadro 03, o Alpha Cronbach varia
entre 0.855 e 0.944. A consistência interna e o desvio padrão de cada uma das práticas de
liderança provam o nível razoável de fiabilidade e a validade dos dados.
Questão 1: Na perspectiva do liderado qual é o nível de autenticidade do líder da sua
organização escolar?
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
82
Com a primeira questão desta investigação pretende-se conhecer o nível de
autenticidade do líder, na perspectiva dos respectivos liderados, nas quatro características
definidas pelo ALQ. Tendo em conta as características associadas à autenticidade do líder,
pode ver-se pela leitura do quadro 03 que a característica que mais se destaca é a moral e a
ética (média=2.61), seguido da transparência (média=2.45), do processamento equilibrado
(média=2.3) e, por fim, a auto-consciência (média=2.2). Pode dizer-se que na opinião dos
inquiridos, estas características encontram-se, no seu líder, desenvolvidas acima do nível
moderado e são colocadas em prática frequentemente.
Quadro 03 – Medidas de tendência central, dispersão e Alpha Cronbach das
características do líder autêntico
Características
Média
Desvio Padrão
Alpha Cronbach
Transparência
Moral/Ética
Processamento equilibrado
Auto-consciência
2.45
2.61
2.30
2.22
1.05
1.03
1.26
1.11
0.855
0.855
0.916
0.944
Questão 2: O nível de autenticidade do líder da escola pública é diferente do nível de
autenticidade do líder da escola privada?
Relativamente à segunda questão desta investigação foi utilizado o teste t-Student para
verificar se existiam diferenças nos níveis de autenticidade do líder, nas quatro características
definidas no ALQ, em dois grupos independentes (escola pública e escola privada). Tal como
mostra o quadro 04, apesar do nível de autenticidade, nas quatro características, ser
ligeiramente superior nas escolas privadas, essas diferenças não são estatisticamente
significativas. Isto significa que em termos estatísticos o nível de autenticidade do líder é igual,
nas quatro características definidas no ALQ, independentemente, da organização ser pública
ou privada.
Quadro 04 - Nível de autenticidade do líder, nas quatro características definidas pelo
ALQ, por tipo de escola
Propriedades
N
Média
Desvio Padrão
t-Student
Pública
Privada
Pública
Privada
Pública
Privada
Teste
p
Autoconsciência
50
36
2.10
2.40
1.13
0.93
1.34
0.186
Transparência
50
36
2.30
2.62
1,10
0.91
1.12
0.268
Moral/Ética
50
36
2.50
2.80
1.34
1.16
0.85
0.400
Processamento
equilibrado
50
36
2.19
2.43
1.20
0.99
1.20
0.236
7. Conclusão
Este estudo de investigação teve como objectivo primordial analisar a autenticidade
dos líderes de escolas públicas e escolas privadas (na perspectiva dos seus liderados), medindose o índice de autenticidade através do Authentic Leadership Questionnaire (ALQ version 1).
Pretendeu-se quantificar o nível de autenticidade dos líderes em quatro domínios distintos,
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
83
nomeadamente, auto-consciência, transparência, moral/ética e processamento equilibrado. A
amostra deste estudo consistiu em 86 docentes de várias escolas públicas e privadas situadas
no Nordeste Brasileiro. As questões de investigação centrais de estudo eram: a) Determinar o
nível de liderança autêntica dos líderes escolares e, b) Avaliar as diferenças existentes a nível de
liderança autêntica entre os líderes das escolas públicas e das escolas privadas.
Os resultados desta investigação mostram que o nível de autenticidade do líder, nas
quatro características definidas pelo ALQ (percepção dos respectivos liderados), está acima do
nível moderado. Por outro lado, e atendendo ao tipo de organização escolar, não se registaram
diferenças estatisticamente significativas nos níveis das quatro características definidas pelo
ALQ muito embora se observasse que os líderes das escolas privadas demonstraram possuir
valores ligeiramente mais altos nos quatro domínios analisados como se pode confirmar com
as médias encontradas: 1) Autoconsciência: Escola Pública – 2.10 e Escola Privada – 2.40; 2)
Transparência: Escola Pública – 2.30 e Escola Privada 2.62; 3) Moral/Ética: Escola Pública
– 2.50 e Escola Privada 2.80; e, 4) Processamento Equilibrado: Escola Pública – 2.19 e
Escola Privada - 2.43.
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7. O CURRÍCULO DO ENSINO MÉDIO
HIGH SCHOOL CURRICULUM
Raimundo Plácido Melo Soares Lima1
Resumo. Este artigo aborda a educação nacional, o currículo do ensino médio no
Brasil e as bases legais. Trata-se de um trabalho de pesquisa bibliográfica sobre o
currículo do ensino médio, fundamentado na visão de autores renomados, dentre
os quais se destacam Carneiro (2002), Kuenzer (2001), Libâneo (2001), Lopes e
Macedo (2005), Macedo (1997), Machado (1999) entre outros estudiosos que tratam do assunto, bem como de documentos legais como a atual LDB e a Resolução
do CEB/CNE nº 03.
Palavras-chave. Currículo – Bases legais – Documentos
Abstract. This article is about the national education, the curriculum of the secondary school in Brazil and its legal basis. This is a bibliographical research about
the curriculum of the secondary school, granded on the vision of famous writers,
among which are highlight Carneiro (2002), Kuenzer (2001) Libâneo (2001),
Lopes e Carneiro (2005), Macedo (1997), Machado (1999), and studious others
that deal with the matter, as well as of legal documents such as the recent LDB and
the resolution of CEB/CNE number 3.
Keywords. Curriculum – Legal basis – Documents
1Especialista em Administração Escolar pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Licenciado em Química
pela Universidade Federal do Ceará. Graduado em Engenharia de Pesca pela Universidade Federal do Ceará.
Professor de Química do Colégio Militar de Fortaleza. Contato: [email protected]
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Introdução
Aborda-se como objeto de pesquisa no presente trabalho “o currículo no ensino médio”, um trabalho que mostra a tríplice natureza do ensino médio: pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para a cidadania e a qualificação para o trabalho, além de abordar definições doutrinárias a serem utilizadas nas escolas com princípios norteadores: a substituição da
repetição pelo aprender criativo, a política de igualdade e a ética, além das áreas curriculares
trabalhadas na Base Nacional Comum: Linguagem, Códigos e suas Tecnologias. Ciência da
Natureza, Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias.
1. A Educação Nacional e o Ensino Médio
No mundo de transformação acelerada, de produção de bens, serviços e conhecimentos, faz-se necessário a ampliação de oportunidades do aluno continuar aprendendo e desenvolver a capacidade de assimilar mudanças tecnológicas e adaptar-se a novas formas de organização do trabalho.
Segundo preceitos da atual Lei de Diretrizes e Bases (LDB nº 9.394/96) em seu artigo
2º, a finalidade da educação Nacional é de tríplice natureza: “[...] o pleno desenvolvimento do
educando, o preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. (BRASIL, 1999. p. 50).
O pleno desenvolvimento do educando deve propiciar o nível cognitivo em evolução
voltando-se para assimilação de certos conhecimentos e de certas operações mentais numa
trajetória harmoniosa com o mundo real, adquirindo formas de fazer e aplicar conhecimentos
adquiridos: “o alcance do pleno desenvolvimento do educando encontra sustentação no Artigo 3º Inc X, quando preconiza a valorização da experiência extra-escolar e no artigo 13º Inc
III, que os docentes incumbir-se-ão de zelar pela aprendizagem dos alunos” (BRASIL, 1999,
p. 50).
A esse respeito, aponta Heiller (apud CARNEIRO, 2002, p. 40) “[...] O homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade”.
Assim, valorizar o extra-escolar é atribuir valor educativo ao cotidiano do homem inteiro.
Neste processo educativo o professor, como agente de mediação e equilíbrio, deve
estar bem preparado, bem remunerado e estimulado para não praticar um ensino desqualificado com aprendizagem opaca.
Como destaca Carneiro (2002, p. 33), o conceito de cidadania centra-se na condição
básica de ser cidadão, isto é, titular de direitos e de deveres a partir de uma condição universal
“[...] porque assegurada na carta de direitos da ONU – e de uma condição particular – porque
vazada em cláusula sétima da Constituição Federal: todos são iguais perante a lei”.
A Educação como um dos direitos de todo cidadão é considerada na atualidade um
indicador de competência social e, ao mesmo tempo manancial para o exercício da cidadania.
Segundo João Paulo II (apud CARNEIRO, 2002, p. 34), “[...] cada um se faz homem,
entre outras coisas, através do trabalho”.
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Funcionando como uma espécie de oxigênio social, a educação e a escola devem permear valores pedagógicos contextualizados com a prática e vida social para que o fazer-se homem expresse a finalidade principal de todo processo educativo.
No artigo 13º, Inc II, da atual LDB nº 9394/96 (BRASIL, 1999, p. 54), segundo texto
exposto, “[...] as responsabilidades deixam de ser de cada um, para ser coletiva. A ação do professor, segundo Carneiro (2002, p. 71): “[...] deixa de ser solitária para ser solidária”.
Combinando o Inc II ao Inc VI do artigo 13º, encontramos na integração escola/família/comunidade que o professor incutir-se-á de articular a possibilidade de reconstruir
o saber no cotidiano escolar. (BRASIL, 1999).
Na visão de Carneiro (2002 p. 71), “[...] Em nível de preocupação inicial, qualquer tentativa de uma educação para o trabalho deve envolver, obrigatoriamente, quatro instâncias,
inseparáveis na abordagem da questão: a família; a escola; as empresas; a comunidade”.
Como célula-mater da sociedade e elemento de plasmação do caráter individual onde
se estabelecem os primeiros padrões de conduta, é a família, que deve consubstanciar uma
articulação permanente com cada professor para que os conteúdos assumam caráter globalizados através de instrumentalização extra-escolar, que venha a refletir uma relação entre educação e trabalho, ampliando o espaço de conscientização de uma educação para o trabalho.
Em relação às escolas, é necessário que o atual sistema de coação de aprendizagem
ceda lugar a atitudes ativas: como sua autonomia, sua educabilidade e mecanismo de aprendizagens. Substituir a pedagogia dos conteúdos pela pedagogia dos objetivos evitando o enciclopedismo.
Como a produtividade não é somente um problema de quantidade e qualidade de equipamentos, mas muito mais de recursos humano, deveria ser de sua política um reinvestimento para a expansão futura da empresa e, em relação à comunidade é inspirada segundo a
qual é a própria comunidade que educa gerações.
Caracterizada as finalidades da Educação Nacional, faz-se necessário observar a composição dos níveis escolares da mesma, que segundo artigo 21º da atual LDB, compõe-se de
educação básica (formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e educação superior. (BRASIL, 1999).
Segundo Carneiro (2002, p. 87), “[...] O Brasil embora signatário do Estatuto Universal
dos Direitos Humanos de 1948, exibe um dos mais reduzidos tempos de permanência do aluno na escola”.
Tal posição é renunciada quando no artigo 24º Inc I ao estabelecer uma carga horária
mínima anual de oitocentas horas, distribuídas por um mínimo de duzentos dias de efetivo
trabalho escolar para a educação básica que combinado ao artigo 35º que fixa uma duração
mínima do ensino médio de três anos estabelece, ao sair de setecentos e vinte horas para oitocentas horas anuais e de cento e oitenta para duzentos dias letivos um ganho inestimável. Ao
final do Ensino Médio, terá duzentos e quarenta horas adicionais de estudo, o equivalente há
dois meses extras de escolaridade.
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Como a escola do Ensino Médio deve alocar o ganho de carga horária exposto anteriormente para cumprir as finalidades da Educação nacional é o que nos mostra o artigo 35º da
LDB 9394/96 através das finalidades expostas nos Inc I a IV. (BRASIL, 1999, p. 61).
Ao tratar o Ensino Médio, etapa final da educação básica “[...] dá uma identidade epistemológica com precisão semântica” ou segundo Deleuze (apud CARNEIRO, 2002, p. 107),
“com paisagem decifrável”.
Ao resgatar a nomenclatura deste nível, o artigo 35º define com clareza a finalidade do
Ensino Médio: “[...] consolidar conhecimentos adquiridos, preparar o cidadão produtivo, implementar a autonomia intelectual e formação ética, e, ainda contextualizar os conhecimentos”. (BRASIL, 1999, p. 61).
As finalidades do Ensino Médio se resumem no compromisso de educar o aluno para
participar com comportamento ético, e compromisso político nas relações sociais concretas
com autonomia intelectual e moral através da oferta de conteúdos contextualizados.
Na visão de Carneiro (2002, p 108), “[...] a interdisciplinaridade dos conteúdos, a flexibilidade do currículo e no trabalho em equipe são estratégias fundamentais de organização e
funcionamento da escola do Ensino Médio”.
Estas são as questões consideradas centrais para a compreensão das novas concepções
da nova LDB e a reforma curricular do ensino médio e seus principais elementos.
2. O Currículo do Ensino Médio no Brasil e as Bases Legais
Enquanto da combinação dos artigos, 24º, 25º e 26º da atual Lei de Diretrizes e Bases
estão instituídas as linhas básicas que norteiam a configuração funcional do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, o artigo 36º desdobra à luz de linhas de procedimento a formulação do currículo do Ensino Médio. (BRASIL, 1999).
O Inc I do artigo 36º distingue ciência de tecnologia sem isolar os dois conceitos, pois
o fazer tecnológico não se esgota num conteúdo, mas se sustenta num saber tecnológico. É
fundamental que o currículo através de um saber e linguagem comum propicie a incorporação
de habilidades tecnológicas nos alunos, desenvolvendo atitudes mentais coerentes com o processo de mudança acelerada de tecnologias.
Na visão de Carneiro (2002, p. 109), no fundamental, “[...] o aluno adquiriu meios para
interpretar as linguagens básicas de representação e suas significações, que se convertem em
organizadores do pensamento, ou seja, em instrumentos aptos para representar a realidade”.
A práxis educativa da escola e do professor deve permitir ao aluno uma relação proveitosa e prazerosa com o conhecimento na perspectiva do seu desenvolvimento individual e
social. Como o ato de conhecer não prescinde do trabalho intelectual, teórico que se dá no
pensamento onde são construídos os significados, nele interfere os afetos e valores, percepções e intuições, se faz necessário uma avaliação do aluno como um todo para construção da
sua autonomia intelectual e ética.
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Com a globalização da economia e o avanço das relações internacionais, a exigência do
que estabelece o Inc III do artigo 36º “[...] será incluída uma língua estrangeira moderna, como
disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo,
dentro das disponibilidades da instituição”, é de valor indiscutível, pois e provável que cada
um se torne cada vez mais um cidadão do mundo. (BRASIL, 1999, p. 62).
Segundo Carneiro (2002, p. 110). “[...] A Filosofia e a Sociologia se complementam e
complementam a educação para a cidadania racional, oriunda de percepções, sentimentos e
intuições que permitam aprender o novo”.
A escola até então faz prevalecer o princípio educativo tradicional, de base tayloristafardista, em que os processos pedagógicos privilegiam a repetição e memorização que não leva
a produção do conhecimento, que é um movimento do pensamento.
Nesse mesmo contexto, destacam Lopes e (2005), que “[...] o pensamento curricular
contemporâneo caracteriza-se por uma diversidade de questões marcadas pelo hibridismo
teórico”.
Notadamente, as visões das referidas autoras apontam que anteriormente o campo do
currículo era delineado pelo enfoque técnico e instrumental, múltiplos enfoques teóricos se
entrelaçam e se desdobram em uma pluralidade de concepções curriculares. Em síntese, desse
contexto híbrido e plural, foram selecionados importantes debates que refletem a atualidade, a
fim de apresentar alguns textos sobre o currículo ao tempo em que possa propiciar uma reflexão àqueles que atuam na educação. Tendo em vista ainda que, o currículo vem adquirindo
tamanha centralidade nas políticas educacionais, desenvolvidas sem o devido diálogo com os
pesquisadores do campo e com aqueles que de fato realizam o currículo no cotidiano escolar.
Segundo Kuenzer, (2001, p 77), “[...] o ponto de partida do pensamento é idêntico ao
ponto de chegada, uma vez que, em seu movimento em espiral crescente, e ampliada, o pensamento chega a um resultado que não era conhecido inicialmente, e projeta novas descobertas”.
Da articulação entre teoria e prática, entre sujeito e objeto e entre indivíduo e sociedade em um dado momento histórico, os significados vão sendo construídos através do deslocamento incessante do pensamento, estimulando a iniciativa dos alunos para aquisição de conhecimentos significativos.
Assim, aponta Machado (2010), que entre as mudanças que estão sendo encaminhadas
pelo Ministério da Educação para o Ensino Médio, sobressai a proposta de organização dos
conteúdos a serem ensinados em quatro grandes áreas (Linguagens, Matemática, Ciências
Humanas e Ciências Naturais), em vez de apresentá-los subdivididos em até 12 disciplinas.
Em sua visão, em um primeiro momento, parece razoável, uma vez que o excesso de fragmentação disciplinar é um dos problemas mais facilmente reconhecíveis no panorama atual do
ensino médio, no entanto, contextualiza que os índices dos livros didáticos, ou os programas
dos exames vestibulares, espelham tal excesso, registrando tópicos sobre os quais, mesmo um
cidadão bem formado, alguns anos após abandonar a escola, tem dificuldades em recuperar os
significados correspondentes, olvidados ou escondidos em porões da memória, onde jazem os
temas inertes.
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A esse respeito, Machado (2011), contempla sobre o Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM, que inicialmente cercado de expectativas, compreendendo o Ensino Médio
como a etapa final da Educação Básica, o projeto do ENEM visava avaliar a formação pessoal
dos alunos, não sendo adequado para a utilização como processo seletivo, como os vestibulares, muito menos para a avaliação de instituições escolares. Hoje, o ENEM encontra-se duplamente descaracterizado. Em primeiro lugar, sua utilização em substituição aos exames vestibulares é absolutamente inconsistente, uma vez que ele não tem poder de discriminação tão
fino quanto tais exames exigem. No máximo, poderia ser utilizado em sintonia com indicadores mais específicos para as diversas carreiras, incluindo-se as entrevistas. O desvio mais grave
de função, no entanto, ocorre na utilização do ENEM para a construção de rankings das escolas básicas.
Discorre, portanto, o referido autor que, o ENEM pode ser importante para a avaliação de uma escola, mas jamais poderia ser utilizado como indicador único. Ao referendar o
absurdo dos rankings, o ENEM pode estar minando sua credibilidade como instrumento de
avaliação.
Do mesmo modo, refere Macedo (1997), que no cenário atual, torna-se necessário
buscar clarificar e construir uma proposta curricular e pedagógica que priorize o conhecimento e a competência. À luz de Habermas, discorre a referida autora, que sua teoria aponta para a
interdisciplinaridade, em que por meio da cooperação entre as diversas ciências, se possa retomar a unidade e a universalidade tanto no mundo objetivo quanto social e estético.
Nessa compreensão, Harbermas (1990), aponta para a ação comunicativa e para a criticidade, ou seja, os conteúdos aceitos socialmente como conhecimento objetivo devem ser
objeto do processo educativo, e a postura do professor deve ser assumida frente a eles no
intuito de descobrir quais os interesses que os condicionam e quais os processos sociais que os
legitimam. O ponto que emerge de tal postura conduz à necessidade de do domínio dos consensos e da linguagem na qual estão estabelecidos para sua posterior problematização.
Contextualizando essa visão, a proposta de Morim (2003), é reformar o pensamento.
Ele defende a interligação de todos os conhecimentos, com até o reducionismo instalado em
nossa sociedade e valoriza o complexo. A palavra complexidade pode, de início, causar estranhamento. O ser humano tende a afastar tudo o que é (ou parece) complicado. Prega que se
faça, com urgência, uma modificação nessa forma de pensar. "Só assim vamos compreender
que a simplificação não exprime a unidade e a diversidade presentes no todo" (MORIN, 2003,
p. 18-25).
Cabe complementar que, na posição de alguns estudiosos os enfoques históricos sobre
currículo transformam o foco de atenção para a interdisciplinaridade, colocando novos questionamentos e instigando ao desenvolvimento de novos métodos de ensino, na análise de propostas curriculares e na constante e necessária reflexão sobre as práticas escolares em diferentes níveis e contextos.
Assim, retomando sobre a proposta curricular, segundo Vygotsky (apud KUENZER,
2001, p 81), “[...] a cultura fornece os sistemas simbólicos (códigos de leitura, operações fundamentais e de apropriação do contexto). No Ensino Médio, vai aprofundar esses meios para
interpretar os conteúdos tecnológicos básicos que se dão na área do conhecimento”.
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Nesta perspectiva, o currículo do Ensino Médio salta de uma formação tradicional
passiva do aluno que só pensa no vestibular, do aluno especialista em macetes para o aluno em
reciclagem permanente. É necessário um currículo do Ensino Médio reconceituado que leva
em conta os processos históricos da evolução do conhecimento onde as letras e as artes representam o próprio dinamismo da transformação da sociedade e cuja compreensão está no domínio da língua portuguesa.
O Inc II do artigo 36º representa uma verdadeira reação à pedagogia do clone em que
na atual escola o aluno é treinado a repassar conhecimentos e macetes em avaliações de ensino. É necessário superar o enciclopedismo e academicismo dos currículos de finalidade exclusivamente propedêutica.
Para Kuenzer (2001, p. 76), “[...] a metodologia da ciência não se esgota no pensamento lógico-formal”. Será preciso complementá-la com outra lógica, não com a agregação dos
diversos conhecimentos adquiridos na escola fortalecidos por uma visão crítica, a autoavaliação do aluno sobre a validade social do seu aprendizado é fundamental para definir sua
postura ética.
É interessante observar que as atividades de avaliação nunca se esgotam em si mesmas
e que devem pressupor uma clara articulação entre objetivos, metodologia e instrumentos, não
só para o professor, mas como para o grupo de alunos. E ter em mente a meta pedagógica de
que avaliação tem função formativa para viabilizar a autonomia de quem aprende.
Segundo Ministério da Educação o artigo 36º da atual LDB nº 9.394/96, estabelece os
princípios científicos e tecnológicos da produção no nível de domínio, reforçando a importância do trabalho no currículo, reitera a importância da formação geral a ser assegurada e define
a equivalência de todos os cursos do Ensino Médio para efeito de continuidade de estudos.
De acordo com o artigo 26º, “[...] os currículos do Ensino Fundamental e Médio devem ter uma base nacional comum complementada por uma parte diversificada” e que de
acordo com o MEC, a Base Nacional comum deverá ocupar, no mínimo, 75% do tempo legalmente estabelecido como carga horária mínima do Ensino Médio. (BRASIL, 1999, p. 58).
Instituída pela resolução CEB/CNE nº 3 no artigo I, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino Médio/DCNEM representam definições doutrinárias a serem observadas
no currículo de cada escola que apresenta os seguintes princípios norteadores:
-
a estética da sensibilidade busca substituir a repetição e padronização pelo aprender
criativo, bem como a curiosidade humana, o desenvolvimento da afetividade e a forma de conhecer o mundo com ludicidade.
-
a política da igualdade através do acesso aos bens culturais e sociais, no respeito ao
patrimônio, público e na intolerância com todas formas de discriminação.
-
a ética da identidade permeada de elementos de solidariedade, espírito público e reciprocidade, qualidades que devem acompanhar as ações da vida cotidiana, profissional,
social e civil. (BRASIL, 1998).
-
As áreas curriculares trabalhadas na Base Nacional Comum, porque presentes nas próprias DCNEM, são:
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
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-
Linguagem, Códigos e suas Tecnologias com competências e habilidades na área de
conhecimentos de língua portuguesa, de língua estrangeira moderna, de educação física, de arte e de informática para inserção cada vez mais do conhecimento e dos símbolos.
-
Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias com competências e habilidades
na área de conhecimentos: de biologia, de física, de química e de matemática para resolução de problemas concretos, mobilizando tecnologias disponíveis ou adequando
tecnologias.
-
Ciências Humanas e suas Tecnologias com competências e habilidades na área de conhecimentos; de história, de geografia, de sociologia, antropologia e política e de filosofia para instrumentalizar, sinalizando e clarificando o pensamento e o conhecimento
nas transações e confrontações da atividade humana.
A atual LDB ao preservar, no seu artigo 26º, a autonomia da proposta pedagógica para
contextualizar os conteúdos curriculares de acordo com as características regionais, locais e da
vida dos alunos inserir a parte diversificada como uma dimensão do currículo, entretanto não
podendo ocorrer no currículo à dualidade: Base Nacional Comum/Parte diversificada. (BRASIL, 1999).
Ao contrário da grade curricular tanto as DCNEM como os Parâmetros Curriculares
Nacionais apontam um currículo em ação cujo enriquecimento ocorre na realidade de cada
contexto. Podendo ser organizado por disciplinas com relação dinâmica ou por áreas com
diálogo entre as diferentes áreas do saber. Como a incumbência de elaboração e execução do
currículo é de cada escola, não há uma distribuição legal de tempo para cada área.
De acordo com Carneiro (2002), toda a legislação atual e orientações da educação e,
sobretudo, a LDB, as DCNEM e os PCN, chamam atenção para a interdisciplinaridade e para
a contextualização como princípios de organização do currículo do Ensino Médio no Brasil.
Conclusão
No presente trabalho abordou-se através da pesquisa bibliográfica a importância da
natureza tríplice do currículo no ensino médio, bem como seus princípios norteadores e suas
áreas curriculares trabalhadas na Base Nacional Comum voltadas para a interdisciplinaridades
e contextualização como princípios de organização do currículo no ensino médio.
Importante observar que embora aplicado na práxis escolar, o seu enriquecimento
ocorre na realidade de cada contexto.
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8. O PAPEL DOS MATERIAIS DIDÁTICOS
NO ENSINO DE LE
THE ROLE OF EDUCATIONAL MATERIALS THE TEACHING OF FL
Mirla Maria Furtado Miranda1
Resumo. O presente artigo, que tem como objetivo verificar o posicionamento de
professores de Língua Estrangeira (LE) frente aos materiais didáticos atualmente
disponíveis no mercado, está dividido em dois momentos: no primeiro, é feito um
relato, como fundamentação teórica, sobre o papel desses materiais no processo
ensino-aprendizagem de língua estrangeira e, no segundo, é apresentado, através
de uma análise crítica, o resultado de uma pesquisa realizada com professores de
LE de diferentes instituições de ensino (públicas, privadas, institutos de língua e
universidades) enfocando questões como: o papel do livro didático e de materiais
suplementares no ofício do professor, o grau de importância desses materiais, seus
critérios de escolha e avaliação, seu tempo de uso, e como os professores interagem
com os mesmos em suas salas de aula. Os resultados demonstram que, apesar dos
professores fazerem uso de diferentes materiais de ensino, o livro didático continua a ocupar o centro da cena.
Palavras-chave. Materiais Didáticos, Processo Ensino-aprendizagem, Língua
Estrangeira
Abstract. The present article aims to discuss foreign language teachers’ opinions
about teaching materials presently available in the market. It is divided into two
parts: the first one reports on the role of those materials in the teaching and learning process and the second part presents the results of a research accomplished
with foreign language teachers of different schools (public, private, language institutes and universities) about questions such as the role of the text book and supplementary materials, their criteria of choice and evaluation, their period of use
and the way teachers deal with them in their classrooms. The results show that
despite the teachers’ use of different teaching materials, the text book still is the
centre of the stage.
Keywords. Teaching Materials, Teaching and Learning Process, Foreign Language
1
Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual do Ceará, professora de Língua Inglesa da rede
pública municipal de ensino de Fortaleza/CE. Contato: [email protected]
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
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1. Introdução
Quando nos referimos ao processo de ensino e aprendizagem de qualquer disciplina
do currículo escolar, geralmente a primeira visão que nos vem à mente é a de um professor
com seus alunos, atrelados a algum material didático, que possa viabilizar a efetivação desse
processo. Este material didático tem sido, na grande maioria das vezes (sobretudo em escolas
de ensino fundamental e médio), o livro didático, visto como principal ferramenta para o sucesso da aprendizagem. No entanto, segundo pesquisadores da área, além do livro didático,
há, atualmente no mercado, uma série de outros materiais de ensino que também podem facilitar o ensino e a aprendizagem. Isto porque, a partir da década de 80, a ênfase que antes era
dada ao “como” aprender e ao aluno passou a ser dada ao “que” ensinar, o que despertou,
juntamente com a evolução tecnológica dos últimos anos, o interesse de muitos estudiosos e
pesquisadores em criar materiais que facilitassem o ensino e a aprendizagem, visto ser este um
processo bastante complexo. Além disso, “o próprio aprendiz passou a ser mais exigente e
sofisticado, principalmente por causa da influência da televisão e, mais recentemente, dos jogos de computador, esperando, assim, materiais de ensino de mais alto padrão de produção e
apresentação” (CUNNINGSWORTH, 1995, p.1).
Neste artigo, nos limitaremos a discutir sobre os materiais de ensino de língua estrangeira, ressaltando, em primeiro momento, o papel que eles desempenham no processo de ensino-aprendizagem. Em seguida, apresentaremos e discutiremos os resultados de uma pesquisa
realizada com professores de LE de diferentes instituições de ensino, apontando os posicionamentos desses professores frente a esses materiais e o papel que eles exercem na prática
docente.
2. O Papel dos Materiais Didáticos na aprendizagem de LE
Antes de refletirmos melhor sobre a questão, é importante esclarecer que, quando nos
referimos ao termo “materiais de ensino” ou “materiais didáticos”, estamos falando, a exemplo de Tomlinson (1998, p.2), de qualquer coisa utilizada pelos professores ou aprendizes para
facilitar a aprendizagem de uma LE, que é o principal objeto de reflexão deste trabalho, como
de qualquer outra disciplina do currículo escolar. Diferentemente do que normalmente se pensa, material de ensino/aprendizagem não inclui somente o livro didático, mas também atividades, jogos, músicas, vídeos, dicionários, gramáticas, cartazes, paradidáticos, DVDs, CD-Roms,
jornais, revistas, fotografias, exercícios fotocopiados, internet e etc, ou seja, materiais que apresentam diferentes maneiras de conceber, organizar e transmitir conhecimentos relevantes.
Porém, é importante ressaltar que o livro didático, embora seja um material de ensino como
qualquer outro citado acima, deve ser encarado de forma diferente, principalmente em relação
àqueles que se valem da imagem, como o filme, o vídeo, a foto e outros, pois, segundo Rangel
(2002) “ele é um legítimo produto da tecnologia da escrita. Por isso mesmo, é possível ter-se,
por meio dele, um acesso efetivo à cultura letrada” e, sendo o Brasil um país com grandes
defasagens de letramento, “essa característica do livro didático pode significar, se bem utilizada, uma grande vantagem, tanto por seu significado cultural quanto por seu valor individual”
(Ibid). Além disso,
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ele é capaz de reunir e organizar, em sistema, os saberes que se pretende ensinar/aprender, assim como indicar, na forma como se apresenta, o tratamento a ser dado à matéria em sala de aula. E com a vantagem adicional de,
em função de sua atual produção em massa e de suas características físicas,
permitir consultas individuais diretas, rápidas e continuadas, especialmente
se o volume for de uso pessoal do sujeito (Ibid).
No caso específico do ensino de línguas, ele pode oferecer um conjunto variado e heterogêneo de textos; formas possíveis de organizar conteúdos; sugestões de atividades, de esquemas de progressão da aprendizagem, de formas de avaliação, etc. Enfim, o livro didático
pode, mais que outros materiais, refletir a organização e os movimentos do processo de ensino-aprendizagem, tanto que se tornou um manual organizador do trabalho em sala de aula,
constituindo-se num roteiro de atividades para alunos e professores. Talvez seja por isso que,
mesmo em realidades culturais materialmente desenvolvidas, o livro didático ainda ocupa o
centro da cena.
Por outro lado, é importante termos em mente que ele precisa e deve passar por uma
profunda e séria avaliação, principalmente no sentido de se verificar sua adequação aos objetivos do curso e às necessidades dos alunos. Sem essa avaliação e sem uma escolha consciente e
criteriosa, o livro pode passar de um recurso a favor da aprendizagem para um recurso contra
a aprendizagem. Por esta razão, a escola e o professor devem se precaver, cuidando de: 1)
escolher de forma mais qualificada, consciente e criteriosa possível os seus livros didáticos; 2)
utilizá-lo de forma crítica e, portanto, como apoio didático, e não como substituto do planejamento didático e do professor; 3) fazê-lo interagir com todos os demais materiais didáticos
disponíveis e entendidos pelos professores e pela escola como pertinentes para a consecução
dos objetivos estabelecidos para o ensino da disciplina curricular ou da língua estrangeira, caso
específico dos institutos de línguas.
Refletindo melhor sobre o segundo ponto abordado acima, é importante ressaltar que
o papel do professor é de fundamental importância para a efetivação da aprendizagem em sala
de aula, pois é dele a função e a responsabilidade de administrar os conteúdos do livro didático e pôr em prática todas as ações que nele possam estar inseridas. Na realidade, nenhum material, por mais eficiente que seja, é capaz de se auto gerenciar. Nessa perspectiva, torna-se
infundada qualquer possível teoria de que um bom livro ou qualquer outro material didático
pode substituir o professor. Por outro lado, não se pode negar que o professor “sozinho”,
sem o auxílio e apoio de materiais, possa falhar na sua função de ensinar, pois a falta de recursos variados e adequados às diferentes necessidades dos alunos pode acarretar um ensino cansativo, monótono, e desestimulante, portanto, ineficaz. Cabe mencionar que o aluno, por sua
vez, também precisa ser participante ativo no seu processo de aprender e, assim como o professor, deve buscar materiais que possam contribuir para a sua própria aprendizagem. Em
outras palavras, é importante que o aluno queira aprender, pois, conforme nos alerta Allwright (apud BOHN, 1988, p. 294), “o professor somente conseguirá ensinar por ‘consentimento’ do aluno e o papel do aluno, por mais acomodado que seja, é ainda crucial”. De fato, o ato
de ensinar e aprender deve contar com a participação efetiva e dinâmica, tanto dos professores
e alunos, como de diferentes materiais de ensino, todos integrados harmonicamente, cada um
com suas respectivas funções e atribuições.
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99
Analisando mais profundamente o papel do aluno na situação de ensino e aprendizagem e tomando por base o pensamento de Allwright, é necessário compreendermos que nem
todos os alunos se motivam e aprendem melhor da mesma maneira e com os mesmos materiais, embora assim o queiram. Um CD-Rom (que pressupõe escola equipada com computadors), por exemplo, assim como uma música ou um texto de revista ou jornal pode atingir e
motivar determinados sujeitos, mas não outros. Nesse caso, o professor pode, em outra oportunidade, utilizar outro recurso material, de forma a satisfazer os gostos e motivar a aprendizagem dos demais alunos. Dessa maneira, fica mais fácil compreendermos a importância de a
escola disponibilizar diferentes materiais de ensino para o professor, embora este deva saber
quais materiais utilizar em cada momento específico do processo ensino-aprendizagem, a necessidade de cada um deles, como e para que utilizá-los. Nessa perspectiva, é interessante refletirmos sobre como fica a situação do ensino e da aprendizagem de LE em escolas públicas
que, nem sempre, disponibilizam materiais de ensino de LE, sobretudo livro didático, ou
quando o disponibilizam, este não foi avaliado e indicado pelo professor, mas pelas Secretarias
de Educação, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)2.
Em suma, os materiais de ensino são, principalmente no atual contexto mundial e educacional, importantes facilitadores do ensino e da aprendizagem. De acordo com Bohn (1988,
p. 294), “são vistos também como uma fonte inspiradora dos atos de linguagem, frutos da
interação do professor com seus alunos e dos alunos com os seus colegas”. No caso específico
da LE, eles podem (ibid, p. 293): “1) ajudar a estabelecer objetivos; 2) aumentar a quantidade
de linguagem disponível em sala de aula; 3) contribuir para a determinação de um conteúdo de
um curso”. Além disso, eles devem ser selecionados, sobretudo, a partir do levantamento e do
conhecimento das necessidades de aprendizagem de LE dos alunos ou da comunidade educativa e dos objetivos especificados para o curso. É importante, pois, que esse levantamento seja
feito pelo próprio professor, uma vez que são eles que participam diretamente do processo de
ensino e, por tal razão, devem conhecer os materiais que melhor irão atender às suas necessidades e às necessidades de seus alunos.
Segundo Tomlinson (1998, p. 7-21), os materiais devem também seguir alguns princípios básicos e relevantes para o ensino de línguas, como:
1) causar impacto nos alunos através: da abordagem de assuntos, ilustrações e atividades incomuns; do uso de diferentes tipos de textos, retirados de fontes diversas; do uso de diferentes vozes nas gravações das fitas; de uma atraente apresentação; e de assuntos de interesse dos
aprendizes;
2) ajudar os alunos a se sentirem mais confortáveis e tranquilos para aprenderem uma LE, isto
é, sem pressão ou censura;
3) ajudar os alunos a se sentirem confiantes através do uso de atividades desafiadoras e problematizadoras, porém alcançáveis;
2
Neste ano de 2010, foram indicadas, para adoção nas escolas da rede pública municipal de ensino de Fortaleza, a partir de 2011, apenas duas coleções de livros didáticos de língua Inglesa. No entanto, não existe
conhecimento, por parte dos professores, dos critérios utilizados nessa escolha. Cabe ao professor a única
tarefa de indicar, entre as duas coleções, a de sua preferência.
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100
4) abordar conteúdos que sejam percebidos pelos aprendizes como relevantes e úteis à vida
prática, de maneira que possam justificar a aprendizagem de uma língua estrangeira;
5) expor os alunos ao uso autêntico da língua através da escuta de músicas, de entrevistas originais e informais na língua alvo, de textos autênticos escritos ou orais, etc;
6) fornecer oportunidades aos alunos de usar a língua alvo para alcançar propósitos comunicativos;
7) levar em consideração os diferentes estilos de aprendizagem dos alunos e, portanto, providenciar atividades diferenciadas que atendam a esses diferentes estilos;
8) não forçar os alunos, no início de um curso, a falarem prematuramente na língua alvo sem
antes terem tido contato suficiente com a mesma e nem adquirido confiança suficiente para
entendê-la, como também não induzi-los ao silêncio;
9) não confiar muito na prática controlada, ou seja, em exercícios do tipo “drills” e diálogos
repetitivos;
10) oferecer oportunidades aos alunos de resposta (feedback) na língua alvo, embora não necessariamente correta. É importante que eles sintam que estão progredindo de alguma forma.
Os princípios acima são apenas sugestões dadas por Tomlinson (1998), que podem ser
levadas em consideração por elaboradores de materiais de LE, mas não necessariamente quer
dizer que todos os materiais utilizados pelos professores devam obedecer aos mesmos, sobretudo porque necessário se faz observar a realidade contextual3 onde a língua está sendo ensinada. Além disso, segundo esse mesmo autor (ibid, p.22), os elaboradores de materiais devem
prestar mais atenção naquilo que os professores e aprendizes acreditam ser as melhores formas de aprender uma LE e também naquilo que eles querem dos materiais utilizados.
Finalmente, percebemos que, para o papel que hoje a educação e o ensino de línguas
estrangeiras exercem, não só no Brasil como no mundo todo, os materiais de ensino são ferramentas cada vez mais úteis para favorecer a aprendizagem, embora seja sabido
que nenhum material didático pode, por melhor elaborado que seja, garantir,
por si só, a qualidade e a efetividade, quer do ensino, quer da aprendizagem.
Afinal, por mais que estejam desenvolvidas as tecnologias educacionais, não
há ensino nem aprendizagem instantâneos e automáticos. Por outro lado,
quanto mais especializado é um recurso material utilizado no processo de
ensino/aprendizagem, mais ele tende a carregar, em seus conteúdos, em suas formas e em suas funções, as marcas da situação: as características dos sujeitos, o ‘nível’ envolvido, os pressupostos teóricos, as crenças da época, os
métodos adotados, etc (RANGEL, 2002).
3
Segundo pesquisa de Miranda (2005), em contexto de escola pública, ou seja, um contexto difícil e limitado, a aprendizagem de uma LE se limita à aprendizagem de regras gramaticais, de vocabulário e à prática da
habilidade escrita. O desenvolvimento da habilidade de fala, embora vista como essencial pelas professoras
participantes da pesquisa, é totalmente inviabilizada. Nesse sentido, um material que priorizasse o desenvolvimento da fala seria inadequado nesse contexto.
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101
3. Metodologia da pesquisa
A pesquisa foi realizada com 25 professores de LE (21 de Inglês e 4 de Espanhol) de
diferentes instituições de ensino de Fortaleza, sendo 8 professores de escolas públicas, 8 de
Institutos de línguas, 5 de escolas particulares de ensino regular e 4 de universidades. Destes
25, 21 têm experiência superior a 5 anos na função e com os seguintes graus de instrução:
mestre (2), especialista (4), graduado (17) e não graduado (2). Esse levantamento se faz importante a partir do momento em que passamos a conhecer, pelo menos em termos de qualificação, o grau de conhecimento e experiência dos professores entrevistados e que, de alguma
forma, pode justificar suas respostas.
O instrumento de coleta de dados foi um questionário estruturado, do tipo múltipla
escolha (com opção de mais de uma resposta) versando sobre os seguintes assuntos: o tipo de
material didático utilizado, o papel do livro didático, o seu grau de importância, o(s) responsável (is) pela sua escolha e os fatores que a influenciam, o seu tempo de uso e as formas de reavaliação do mesmo. Outras questões abordaram também os fatores considerados na elaboração de material instrucional para os alunos, as fontes usadas, o tipo de material suplementar
utilizado e as maneiras de reavaliar o material didático. Para efeito de análise, foram consideradas as respostas com maior e menor grau de incidência, o que nos permitiu chegar aos resultados, que serão apresentados a seguir.
4. Resultados da pesquisa
Quanto aos resultados, constatamos que o livro didático ou livro texto aparece, por
unanimidade, como o material de ensino mais importante na prática docente e, portanto, não
dispensável, talvez pelo fato de que, conforme mencionado anteriormente, “este seja, ou por
seu vínculo com a escrita ou por sua estruturação como livro, capaz de reunir e organizar em
sistema os saberes que se pretende ensinar/aprender” (RANGEL, 2002). Vale salientar, ainda,
que a importância do livro didático está estreitamente relacionada à intensidade da atividade
profissional. Muitas aulas a serem dadas por dia, às vezes, em diferentes séries de ensino, acabam obrigando o professor a trabalhar com os alunos as atividades ou tarefas propostas pelo
livro. Além disso, a escassez de outros recursos didáticos de LE, sobretudo em escolas públicas, parece levar o professor a apoiar-se exclusivamente no livro.
Por outro lado, há também de se considerar o fato de que esse valor exacerbado dado
ao livro didático pode terminar por limitar o papel tanto do professor quanto do aluno no
processo de ensino-aprendizagem, cabendo ao professor, segundo Fontenele (2009, p.86), o
papel de “regente” do livro, simples transmissor de um conteúdo incontestável e, ao aluno,
observar, analisar, preencher, responder, escrever, cooperar com o que é pedido no livro didático, sem, para isso, fazer uso de sua imaginação e interpretação. Por conta disso, importante
se faz que os professores e alunos ultrapassem os limites do livro didático, buscando uma participação mais ativa e criativa na busca do conhecimento. O professor, em particular, como diz
Moraes (2006, p. 94), sobretudo estando na era da informação e da tecnologia, “deve sair da
passividade, como o sujeito que só ‘ensina’, para buscar as informações e, a partir delas, criar
alternativas para aprendizagens significativas”, o que significa dizer não limitar-se a uma única
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fonte de pesquisa. O aluno, por outro lado, deve desenvolver mais sua autonomia, procurando
gerenciar sua própria aprendizagem, sem esperar que o professor assim o faça.
A pesquisa também revelou que, além do livro didático, outros materiais são também
adotados por alguns professores, embora com menor frequência. São eles: cadernos de exercício, com 5 menções; livros diversos, músicas e CD-Roms, com 4 menções; e CDs, fitas e vídeos, com 3.
Observa-se, de qualquer forma, que, embora os outros materiais não sejam utilizados
com a mesma intensidade que o livro didático, eles também fazem parte do dia a dia dos professores, o que demonstra a versatilidade do trabalho docente e certo grau de preocupação
deles em tornarem suas aulas mais diversificadas.
A grande surpresa, porém, reside no fato dos CDs e vídeos praticamente não serem utilizados como material didático, pois, uma vez que no ensino de LE geralmente a prática do
listening exige gravações em CD ou vídeo, seria bastante comum e necessário o uso quase que
constante desses recursos didáticos durante as aulas, principalmente dos CDs, pela facilidade
de manuseio. Além do mais, esses materiais normalmente acompanham e fazem parte do próprio material didático, tanto para o professor como para o aluno. Isso também pode ser um
indicativo de que a atividade de listening seja muito pouco enfatizada, até mesmo nos institutos
de língua, ou talvez porque a atividade docente esteja muito mais restrita ao uso de um livro
didático.
No que se refere à escolha do livro texto, percebemos que, quase na sua totalidade, os
professores assumem essa tarefa, e isso revela um aspecto bastante positivo, principalmente
porque são eles que, de fato, utilizam esse material em sala de aula, além de que, ao fazerem
essa escolha, eles baseiam-se nos objetivos estabelecidos para o curso ou naquilo que eles acreditam ser necessário à aprendizagem dos alunos.
Quanto aos fatores que influenciam nessa escolha, a adequação aos objetivos do programa do curso, a organização dos conteúdos e a variedade de assuntos, conteúdos e atividades foram os itens mais citados, revelando compromisso e seriedade dos professores com a
escolha de um livro que realmente satisfaça às necessidades do ensino e da aprendizagem ou
àquilo que foi pensado em termos de conteúdo para o curso. Fora isso, fatores como layout e
ilustrações e adequação ao programa do curso foram também fortemente considerados e isso,
até certo ponto, é esperado, principalmente no que se refere ao layout e ilustrações, visto que
esses aspectos, por envolverem a percepção visual, realmente servem como motivadores do
interesse dos alunos e, consequentemente, de sua aprendizagem.
Como diz Tomlinson (1998, p.7), os materiais de ensino, entre eles o livro didático,
devem causar impacto, ou seja, atrair a curiosidade, o interesse e a atenção do aluno e isto
acontece, entre vários aspectos, através de uma boa apresentação (uso de cores atrativas, de
fotografias e de muitos espaços em branco). Nesse sentido, um material sem um bom layout e
sem boas e atraentes ilustrações provavelmente não responderia ao que os alunos (sobretudo
crianças e adolescentes) esperam de um bom livro didático.
Em contrapartida, o preço do livro, que talvez devesse ter um peso significativo, dada
as condições econômicas da sociedade brasileira, surpreendentemente não foi tão considerado.
Isso pode representar uma preocupação excessiva dos professores com a qualidade do livro
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em relação aos seus aspectos conteudísticos e/ou simplesmente um descomprometimento
com as condições financeiras da clientela, sobretudo dos pais. A meu ver, o preço do livro
deveria ter um peso substancial ou mesmo ser um pré-requisito para a avaliação de diferentes
livros didáticos. Talvez essa condição forçasse as editoras a diminuir suas margens de lucro e a
não fazer dos materiais de ensino apenas comércio. É possível, diante da grande variedade de
livros didáticos disponíveis hoje no mercado, escolher um que tenha preço acessível e que
atenda, ao mesmo tempo, a outros fatores pedagogicamente importantes.
No que se refere ao tempo de uso do livro didático adotado, parece haver uma consciência “positiva” sobre a necessidade de utilizá-lo por um período de, no mínimo, dois anos,
tempo também mínimo para se verificar a sua verdadeira eficácia. Há de se considerar também
a questão do gasto financeiro de uma família com a compra de um novo livro em pouco tempo, o que impede que o anterior seja reutilizado por outros membros da mesma família ou
vendido a outrem.
Outro dado da pesquisa diz respeito à elaboração de materiais instrucionais/pedagógicos para os alunos. Dos 25 professores, apenas 4 de institutos de língua e 1 que
não respondeu, também de instituto de língua, não o fazem, o que nos permite concluir que o
livro didático não tem sido e nem é o único material utilizado para a realização do processo
ensino-aprendizagem de LE. Isto revela também certo grau de preocupação desses profissionais em tornar suas aulas mais diversificadas e menos centradas no livro, embora não possamos dizer, por meio desta pesquisa, a frequência de uso desses materiais.
Já no que diz respeito aos fatores que mais pesam para os professores na elaboração
desses materiais, podemos destacar: em primeiro lugar, por unanimidade, o assunto de interesse dos alunos; em segundo lugar, a fonte (autêntica, adaptada) e, em terceiro lugar, o vocabulário familiar. Sem dúvida, percebemos, com esses dados, que os professores estão verdadeiramente engajados na tarefa de atrair seus alunos e de motivá-los através de materiais que despertem o seu interesse, o que também pode ser feito através do uso de textos ou atividades
autênticas ou adaptadas ao nível dos alunos.
Quanto às fontes de pesquisa para elaboração desses materiais instrucionais/pedagógicos, a pesquisa revelou que quase todos os professores recorrem igualmente a
diferentes livros didáticos e a internet. A novidade é saber que o computador tem se constituído para os professores, inclusive os de escolas públicas, um recurso bastante presente no seu
trabalho. Isto mostra também que o professor está procurando cada vez mais atualizar e aprimorar seus conhecimentos e, em consequência, sua prática docente. Além dos livros didáticos
e internet, as revistas foram também apontadas como fontes de pesquisa, ao contrário dos
jornais, livros diversos e enciclopédias, estas últimas raramente utilizadas (dados da pesquisa).
No que diz respeito aos materiais suplementares (aqueles usados para enriquecer as aulas e reforçar os conteúdos trabalhados), as músicas, seguidas de vídeos e jogos foram os mais
citados, e isto talvez se justifique pelo fato de serem materiais que divertem e atraem a atenção
e o interesse dos alunos. Outros materiais como revistas, flashcards e livros também são utilizados, mas não com a mesma intensidade dos primeiros. Por outro lado, jornais e internet não
tiveram nenhuma indicação, o que nos mostra, principalmente no caso da internet, que o
computador é apenas uma fonte de pesquisa para os professores, mas não um material suplementar utilizado por eles como ferramenta para facilitar a aprendizagem dos alunos em sala de
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aula. Talvez porque este seja, ainda, apenas um recurso presente nas escolas (sobretudo públicas) e em seus laboratórios de informática, mas não uma realidade na prática diária dos professores, conforme constatado por Moraes (2006). Como diz a autora (ibid, p.93), apesar de vivermos em uma sociedade tecnológica, “os alunos e professores continuam sendo excluídos
da era digital. Infelizmente, apesar de existir uma política de informatização das escolas (PROINFO), nem todas possuem laboratório de informática” e, quando contrário, nem sempre há
profissionais qualificados para desenvolver as atividades pedagógicas utilizando a internet como ferramenta pedagógica. Diante dessa realidade, importante e necessário se faz que as escolas assumam uma nova postura, buscando inserir, no seu Projeto Político Pedagógico, o uso
efetivo das ferramentas tecnológicas (incluindo a internet) como instrumentos facilitadores do
ensino e da aprendizagem e que as Secretarias de Educação, tanto dos Estados quanto dos
Municípios, agilizem os processos de seleção, contratação e qualificação de profissionais, que
possam ocupar esses espaços nas escolas. Da mesma forma, caberá ao professor também
assumir um novo papel, ou seja, “ser ativo, criativo, criar situações de desafios, buscar soluções, sentir prazer pela busca de conhecimento, sair da passividade, como o sujeito que só
‘ensina’, para buscar as informações e, a partir delas, criar alternativas para aprendizagens significativas” (MORAES, 2006, p. 94). Para isso, “é imprescindível que o professor, no atual
contexto, conheça as multimídias e que tenha o computador e a internet como mais um aliado
na sua prática docente, pois, parte dos alunos já conhece os recursos da informática e, em
muitos casos, superam o próprio professor (MORAES, 2006, p. 95).
Para finalizar a análise, cabe ressaltar um fato bastante interessante e satisfatório em relação ao assunto “materiais de ensino” aqui abordado. Dos 25 professores entrevistados, 23
disseram reavaliar o material didático utilizado em sala de aula, da mesma forma que 19 professores disseram considerar o feedback de seus alunos. Estas são, sem dúvida, atitudes bastante
positivas, uma vez que reavaliar o material que se usa e considerar os resultados apresentados
pelos alunos, embora negativos, são provas de respeito ao pensamento dos alunos, humildade,
coragem, compromisso e vontade de acertar. Também mais uma oportunidade do professor
reavaliar a sua própria prática.
5. Conclusão
Qualquer estudo que se faça sobre os materiais de ensino, utilizados atualmente nas
escolas, é, além de estritamente necessário, de extrema valia, visto que, à medida que a sociedade evolui, novas tecnologias vão surgindo e provocando nos profissionais da educação a
necessidade de aperfeiçoarem seus conhecimentos e métodos de ensino. Atualmente, já não se
concebe, principalmente com a existência de computadores, internet etc., métodos de ensino e
aprendizagem baseados simplesmente no uso do livro didático como única ferramenta facilitadora do ensino e da aprendizagem dentro e fora de sala de aula, logo porque, ele sozinho,
pode não atender a todos os objetivos do curso e necessidades relativas aos conteúdos.
Na realidade, existem, no contexto ensino-aprendizagem e na sala de aula, diferentes
sujeitos com diferentes níveis e maneiras de aprender. Para uns, o livro didático pode ser suficiente para sua aprendizagem, para outros não. Daí a necessidade de outros materiais de ensino que possam atender às peculiaridades individuais de cada aprendiz. Além disso, diferentes
materiais didáticos fornecem aos alunos mais informações e conhecimentos e, dependendo do
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tipo de material, podem favorecer uma aprendizagem mais prazerosa e menos enfadonha.
Exemplos desses materiais são: jogos, músicas, vídeos, brincadeiras, atividades diversas (inclusive com textos) e a própria internet, embora esta última ainda seja um recurso, apesar de disponibilizado em muitas instituições de ensino, pouco utilizado. Talvez pelo fato do computador exigir dos professores uma clareza de seu uso, de seus potenciais e limites, exigência esta
nem sempre atendida pelos professores, visto que muitos ainda não dominam tal ferramenta.
No entanto, acreditamos que esta seja uma realidade propensa a mudanças, uma vez que, com
o rápido avanço tecnológico e a grande facilidade de acesso à informação e ao conhecimento
sistematicamente elaborado, maiores serão as exigências em relação ao professor no processo
de ensino/aprendizagem, como também em relação ao aluno. Consequentemente, maior probabilidade teremos de ter professores e alunos bem mais autônomos e independentes do livro
didático.
Em suma, o livro didático desempenha um importante papel no processo ensinoaprendizagem, mas não se deve esquecer que ele, também, tem algumas limitações. Portanto, é
de grande importância que os professores fiquem atentos a essas limitações e procurem interagir com ele, preenchendo as lacunas que este possa ter e, assim, promover um ensino criativo e efetivo em suas salas de aula. Nessa perspectiva, a função do professor é, sem dúvida,
decisória para tornar um livro didático mais eficiente ou menos eficiente, embora não devamos esquecer que muitos outros fatores, intrínsecos e extrínsecos aos alunos, têm um peso
significativo no processo ensino-aprendizagem.
É importante, também, que os professores assumam uma postura imparcial, cautelosa
e criteriosa na hora de escolher o livro didático que irão usar, pois o sistema de valores, tanto
social como cultural, de um livro didático pode influenciar as percepções e atitudes dos aprendizes de modo geral e em relação à aprendizagem de LE.
Para finalizar, ressaltamos que os dados aqui apresentados foram oriundos da fala dos
sujeitos participantes, o que não nos permite garantir que, na prática, estas falas se concretizem. Para isso, aconselhável seria que estas falas fossem verificadas em contexto real de sala
de aula, no intuito de identificar o verdadeiro grau de importância atribuído pelos professores
de LE ao livro didático e aos materiais suplementares por eles mencionados neste estudo.
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MIRANDA, Mirla Maria Furtado. Crenças sobre o ensino-aprendizagem de Língua Estrangeira (inglês)
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9. A PERCEPÇÃO VISUAL, A IMAGEM
E A LINGUAGEM POÉTICA
VISUAL PERCEPTION, IMAGE THE LANGUAGE AND POETRY
Anete Barbosa Fritz Neves1
Resumo. Concebendo que a percepção visual tem se caracterizado como uma inesgotável fonte de conhecimento e de produção de sentidos e que a arte literária
é a expressão de um ser vidente, objeto visível e ser de linguagem, este artigo propõe uma reflexão sobre a percepção visual, principalmente a concepção de Merleau-Ponty do perceber e do percebido, no intuito de fazer uma breve análise da relação entre a linguagem poética e a imagem. Nesse passeio pela percepção, a leitura das concepções sobre o sentido da visão em Platão e Aristóteles é a primeira
parada sugerida ao olhar do leitor, para, em seguida, focar as reflexões propostas
por Merleau- Ponty sobre a sensação, o corpo e o mundo percebido. A análise da
relação entre linguagem poética e a imagem é um convite para um passeio pelo
visível, invisível e sensível mundo das palavras/imagens.
Palavras-chave. Percepção – Imagem – Linguagem poética
Abstract. Conceiving that visual perception has been characterized as an inexhaustible source of knowledge and sense production and that the literary art is an
expression of a being who can see, a visible object and a linguistic being, this article proposes a reflection about visual perception, mainly Merleau-Ponty’s conception of perceiving and being perceived, in order to briefly analyze the relation
between poetic language and image. Strolling into perception, my reading of Plato’s and Aristotle’s conceptions of the sense of view is the first stop suggested to
the reader’s eyes, so that, afterwards, we can focus on the reflections proposed by
Merleau-Ponty about sensation, the body and the perceived world. The analysis of
the relation between poetic language and image is an invitation to a stroll into the
visible, invisible and sensitive world of words and images.
Keywords. Visual perception – Image – Poetry language
1
Mestre em Teoria Literária da Universidade de Brasília (UNB). Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela UNEB- Brasília. Professora do Colégio Militar de Fortaleza. Contato: [email protected]
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Introdução
Os olhos e o olhar têm sido objeto de investigação e expressão de diferentes áreas do
saber humano. Filosofia, Psicologia, Medicina, Arquitetura, Literatura, Pintura, entre outras,
analisam e se expressam a respeito dessa área dos sentidos que intriga inúmeros estudiosos.
Vemos as coisas? O mundo é aquilo que vemos? E como vemos as coisas? São interrogativas
levantadas tanto pelo homem comum como por aqueles que voltam seu interesse para uma
reflexão mais profunda sobre o mundo percebido e sobre o próprio ato de olhar o mundo.
Dentre essas áreas do conhecimento, a literatura, enquanto manifestação artística, apresenta inúmeras obras que suscitam uma reflexão sobre o ato de ver -ou não ver - o mundo,
pois os escritores, consciente ou inconscientemente, expressam sua visão das coisas, demonstrando que esse ato perceptivo é de vital importância para o estar no mundo, já que o olhar
integra os cinco sentidos.
Concebendo que a percepção visual tem se caracterizado como uma inesgotável fonte
de conhecimento e de produção de sentidos e a arte literária, como a expressão de um ser vidente, objeto visível e ser de linguagem, esse artigo propõe uma breve reflexão sobre a percepção visual, sobre a concepção de Merleau-Ponty do perceber, do percebido e da sensação
e, finalmente, sobre a relação entre a linguagem poética e a imagem.
1 - A percepção visual
De acordo com Alfredo Bosi2, a cultura grega enlaçava pelos fios da linguagem o ver
ao pensar, já que o termo Eidos é um termo afim a Idea. Eidô, segundo Marilena Chauí, 3é o
verbo grego que exprime esse laço entre o ver e o conhecer, pois Eidô significa ver, observar,
examinar, fazer ver, instruir, instruir-se, informar, informar-se, conhecer, saber. Observa que
video, no latim, tem a mesma raiz de video - ver, perceber e olhar-e viso – visar, ir olhar, ir ver,
examinar, observar.
Esse laço entre o ver e o conhecer é, segundo José Martins Salgado4, rejeitado por Platão ao conceber que eidos significa aquilo que jamais é percebido pelos olhos do corpo, pois a
ideia não designa apenas o aspecto não sensível do que é visível, mas a essência daquilo que se
pode escutar, ver , tocar e sentir. A ideia vem expressar as essências existentes das coisas do
mundo sensível, onde os seres ou as coisas contempladas não passam de sombras efêmeras,
transitórias e imperfeitas reproduções das ideias puras, perfeitas eternas, inacessíveis, indissolúveis e imutáveis. Na esteira de Parmênides, Platão concebe a teoria dos dois mundos: o
mundo sensível e o mundo inteligível, em que o primeiro é o mundo do movimento e da multiplicação das coisas, das aparências e das ilusões dos sentidos. Contudo, sobre esse mundo de
sensações, há o mundo do pensamento, o mundo inteligível, presidido pela razão, pelos pensamentos lógicos intrínsecos ao próprio pensamento.
2
BOSI, Alfredo “Fenomenologia do olhar”. In: O olhar. Org. Adauto Novaes, 1988, p. 65.
CHAUÍ, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. In O olhar. Org. Adauto Novaes, 1988 , p. 35.
4
MARTINS, José Salgado. Preparação à Filosofia, 1992, p 31. “A ideia vem expressar “as essências existentes das coisas do mundo sensível. A cada coisa no mundo sensível corresponde sua ideia no mundo inteligível”.
3
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O pensamento platônico defende que por meio da razão é possível chegar ao conhecimento, a ideia vem, desse modo, expressar as essências existentes das coisas do mundo sensível. A cada coisa no mundo sensível corresponde sua ideia no mundo inteligível.
Entretanto, a esse pensamento platônico, Aristóteles5 operou uma revolução ao considerar puramente imaginativa a concepção dos dois mundos: o mundo inteligível e o mundo
sensível. Aristóteles propôs o realismo das coisas em detrimento ao realismo das ideias. Seu
esforço foi trazer essas ideias que são transcendentes para o mundo sensível das coisas, tornando-as imanentes às próprias coisas. Para Aristóteles, o homem era um misto: pensamento
estreitamente unido a um corpo. À pergunta – O que existe realmente no mundo, ele respondeu que havia as coisas que vemos e tocamos.
Nota-se, portanto, que na História, essas duas concepções filosóficas estão nitidamente delimitadas, e que além de Platão a Aristóteles, muitos outros pensadores já se debruçaram
em torno da ideia e do sentido, estabelecendo múltiplos conceitos e teorias. Percebe-se também que, em relação aos outros sentidos, a visão sempre teve uma posição de destaque, apesar
de que em muitos estudos o tato foi o ponto de partida para as análises da visão.
Segundo Aristóteles 6o sentido da visão é superior aos demais sentidos, pois permitiria
uma melhor compreensão e conhecimento perfeito do mundo:
O homem naturalmente deseja o conhecimento. Uma indicação disso é nossa veneração pelos nossos sentidos, pois, à parte de seus usos, nós os veneramos por sua própria existência, e o mais venerado de todos é o sentido da
visão. De modo geral, não só quando com vista para a ação, mas mesmo
quando não há ação para ser contemplada, preferimos a visão entre todos os
outros sentidos. A razão disso é que dentre todos os sentidos a visão melhor
nos ajuda a conhecer as coisas e revela muitas diferenças.
A primazia da visão, de acordo com G.N. A Vesey, 7pode ser comprovada por meio
do contraste entre o tato e a audição. Propõe que a diferença do sentir pelo toque e do ver
está no fato da sensação de sentir estar relacionada a uma parte específica do corpo, enquanto
que a experiência visual não é limitada aos olhos, pois é possível uma mente desencarnada ter
experiência visuais, mas não táteis. A visão difere não só do sentir pelo toque, mas também do
ouvir. O que denota essa diferença é o tempo, pois para se ouvir uma música, ou mesmo sentir o formato de um objeto demora um tempo, porém uma paisagem pode ser vista instantaneamente.
Desse modo, o imediatismo da visão quando comparado com a audição e com o tato
pode em parte explicar o fato de acreditarem que a visão seja o melhor dos sentidos.
Para a compreensão da percepção visual, a Filosofia, a Psicologia e outras áreas do conhecimento propuseram inúmeros modos de análises, descrições e explicações, por isso há um
universo muito amplo de informações a respeito da visão. Assim, no sentido de restringir o
5
Apud José Salgado Martins, Id., ibid., p. 34. “Aristóteles considerou puramente imaginativa a distribuição
dos dois mundos. Ao realismo das ideias opôs o realismo das coisas. À pergunta –O que existe realmente no
mundo? – respondeu Aristóteles: - “existem as coisas que vemos e tocamos””
6
Apud T. Aquinas. Aquinas Commentary on Aristoteles Metaphysics, 1995, p. 4 e 5.
7
VESEY, G.N.A. “Vision”. IN: The encyclopedia of Philosophy . Org. Paul Edwards.
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campo da pesquisa, o estudo, aqui proposto, visa apenas levantar alguns aspectos da percepção visual.
Nesse caso, o estudo fenomenológico da percepção pode ser de grande valia para a realização dessa proposta. Motivo que justifica uma leitura mais atenta das teorias de MerleauPonty, no sentido de focalizar a descrição que esse filósofo faz da Visibilidade.
Segundo Marilena Chauí8, em oposição aos pensamentos que levam em consideração a
cisão entre a faticidade e a essência, ou entre a experiência e o conceito, Merleau-Ponty oferece uma reflexão que parte do interior do que chama mundo operante, onde a essência não é
eidos ou noema, não é produto de operações intelectuais da pertencência ao mundo, não é o
correlato dos atos e posições, não é tese, mas é a relação e a articulação entre o pensamento e
o mundo. Assim sendo, a experiência possui interior e essência, em vez de ser síntese acabada
e pura interioridade, pois se abre para o exterior e o tempo, como descreve Merleau Ponty9:
“tudo o que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão ou de uma experiência do mundo, sem a qual a ciência e os símbolos não poderiam dizer nada”.
Nesse sentido, é a experiência que inicia o homem ao que ele não é, o abre para a essência. Concepção que leva o filósofo a rejeitar a cisão entre a percepção e a ideia, entre o espírito e o corpo, entre a visão e o visível. É negando todas as teorias que estão construídas em
torno das formas de pensar e na multiplicidade dos dados sensoriais, que Merleau Ponty 10procura mostrar uma identificação entre o sujeito e o objeto, isto é, procura sublinhar os aspectos
reflexivos da percepção, a conivência entre a vidência com o visível, em que um busca capturar o outro numa fuga constante, onde as posições do sujeito e do objeto se alternam e entrelaçam. Alternância e entrelaçamento que remete a ideia de que a experiência e a essência são
dois círculos, turbilhões, ou mesmo duas esferas concêntricas, porém nitidamente descentradas.
Para refletir a percepção visual é necessário transitar esse caminho, que é o terreno
ambíguo entre o perceber e o percebido. Porquanto, a primeira via de acesso à essa reflexão
é a sensação.
2 - A sensação
Em Fenomenologia da Percepção, Merleau- Ponty11 abre seu estudo, criticando as análises
clássicas que admitem na linguagem a noção de sensação como impressão pura, pois acredita
que a sensação é tão rica e tão obscura quanto o objeto ou o espetáculo perceptivo inteiro,
8
CHAUÍ, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau- Ponty. 2002, p. 41.
PONTY- MERLEAU, Maurice. Fenomenologia da Percepção, 1999, p. 03.
10
PONTY-MERLEAU, Maurice. Visível e invisível. 1962, p. 135. “Mas meu corpo vidente subtende esse corpo
visível e todos os visíveis com ele. Há recíproca inserção e entrelaçamento de um no outro. Ou melhor, se
renunciarmos como é preciso ainda uma vez, ao pensamento por planos e perspectiva, há dois círculos, ou
dois turbilhões, ou dus esferas concêntricas, quando vivo engenuamente e, desde que me interrogue, levemente descentrados um em relação ao outro...”
11
PONTY-MERLEAU, Maurice. Fenomenologia da percepção. 1999, p.24. “Iniciando o estudo da percepção,
encontramos na linguagem a noção de sensação, que parece imediata e clara: eu sinto o vermelho, o azul, o
quente, o frio. Todavia, vamos ver que ela é mais confusa que existe, e que por tê-la admitido, as análises
clássicas deixaram escapar o fenômeno da percepção”.
9
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invalidando dessa forma a delimitação das sensações. Postula que ver é obter cores ou luz,
ouvir é obter sons e que sentir é obter qualidades, porém admite que para saber o que é sentir,
não é suficiente o ver e o ouvir, já que as cores e os sons não são sensações, mas sensíveis, e a
qualidade não é um elemento da consciência, é uma propriedade do objeto.
A percepção, dessa maneira, é construída com o percebido, pois é o percebido que é
evidentemente acessível através da percepção. A impossibilidade da partilha da visão do visível, da aparência e do ser faz com o corpo abarque em si mesmo duas características: é vidente
e visível ao mesmo tempo. Rejeitando todo o formalismo da consciência, Merleau –Ponty
concebe o corpo como o sujeito da percepção, como deixa claro, ao dizer: 12
Aquele que sente e o sensível não estão um diante do outro como dois termos exteriores, e a sensação não é uma invasão do sensível naquele que sente. È o meu olhar que subentende a cor, é o movimento de minha mão que
subentende a forma do objeto, ou antes meu olhar aclopá-se a cor e ao mole, e nessa troca entre o sujeito da sensação e o sensível não se pode dizer
que um aja e o outro padeça, que um dê sentido ao outro. Sem a exploração
de meu olhar ou de minha mão, e antes que meu corpo sincronize a ele, o
sensível é apenas uma solicitação vaga.
A apreensão da sensação, na perspectiva dos fenômenos corporais que a preparam,
não encontra um indivíduo psíquico, mas uma formação ligada a um conjunto e já dotada de
um sentido, pois a experiência sensível é visto como um processo vital. A visão, nesse caso, é
tomada ou se faz no meio das coisas, havendo uma indivisão do senciente e do sentido, pois o
corpo que olha todas as coisas também pode se olhar e reconhecer no que vê o seu poder de
vidente.
A percepção aparece então como a razão das experiências que o sujeito tem, teve ou
poderia ter, constituindo dessa maneira a sua história perceptiva. Só por meio dos sentidos é
que o sujeito pode ter acesso ao mundo das coisas ou dos objetos, por isso o sentir é comunicação vital entre o mundo percebido e o sujeito que percebe. A percepção é construída com o
percebido, que só é evidentemente acessível através da percepção, por isso a dificuldade em se
compreender os dois.
Ver um objeto, para Merleau Ponty13, é possui-lo a margem do campo visual e poder
fixá-lo, ou então corresponder à solicitação de vê-lo, fixando-o. Essa parada do olhar é considerada apenas uma modalidade de seu movimento, pois para se olhar o objeto é preciso entranhar-se nele. Como os objetos formam um sistema em que um não pode se mostrar sem
esconder os outros, a visão é um ato de duas faces, em que o olhar pode sobrevoar todos os
objetos, porém para realizar uma exploração mais detalhada do objeto, há a necessidade de
fixá-lo , fechando a paisagem. O fixar o objeto consiste em separá-lo do resto do campo visual, ou seja, substituir a visão global por uma visão local, governada pelo próprio sujeito. A qualidade sensível torna-se, desse modo, um produto particular de uma atitude de curiosidade ou
observação. Ela aparece quando o sujeito volta-se para si próprio, perguntando: “o que vejo
exatamente?”. A qualidade sensível figura como a resposta a uma questão do olhar, como o
12
13
Id. , ibidem., 1999, p. 04.
Id., ibidem. 1999, p. 104.
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resultado de uma visão secundária ou uma crítica que procura se conhecer em sua particularidade.
Hugo Mustenberg14 denomina essa forma de perceber o mundo como atenção voluntária, na qual o indivíduo se acerca das impressões com uma ideia pré concebida de onde quer
colocar o foco. A observação dos objetos do mundo fica então impregnada de interesse pessoal, de ideias próprias, o que motiva o vidente a ignorar tudo aquilo que não satisfaça aquele
interesse específico.
Merleau- Ponty 15acredita que a atitude de curiosidade ou observação faz com que o
sujeito rompa com a estruturação total da visão e inicie um processo de interrogação sobre ela,
no sentido, de testar suas possibilidades, de desfazer os elos entre a sua visão e o mundo, entre
si mesmo e sua visão, na tentativa de surpreendê-la e descrevê-la. Para isso, o mundo se pulveriza em qualidades sensíveis e a unidade natural do sujeito perceptivo se rompe, levando-o a
possibilidade de ignorar a si mesmo enquanto sujeito de um campo visual.
Para que o ato de ver não seja disperso e o sujeito da experiência perceptiva não tenha
consciência de nada, é necessário que ele saiba que olha o objeto, que se conheça olhando, e
que seu ato seja inteiramente dado a si mesmo. A consciência do objeto pressupõe a consciência de si, sendo uma é sinônima da outra. É a consciência do ligado pressupõe a consciência
do ligante e do ato de ligação, como explicita Merleau-Ponty16por meio do relato de uma experiência perceptiva:
Percebo esta mesa na qual escrevo. Isso significa entre outras coisas, que o
meu ato de percepção me ocupa suficiente para que eu não possa, enquanto
efetivamente percebo a mesa, perceber-me percebendo-a. Quando quero fazê-lo, deixo por assim dizer de mergulhar na mesa através de meu olhar, volto-me para mim que percebo, e me dou conta então de que minha percepção precisa atravessar certas aparências subjetivas, interpretar certas sensações minhas, enfim ela aparece na perspectiva de minha história individual.
É a partir do ligado que tenho, secundariamente, consciência de uma atividade de ligação, decompondo a percepção em qualidades e sensações e
quando, para encontrar a partir delas o objeto, no qual primeiramente eu estava jogado, sou obrigado a supor um ato de síntese que não é senão a contrapartida de minha análise.
Todavia, não é o ato perceptivo que efetua a síntese, já que a percepção, mesmo vista
do interior, pelo próprio sujeito, exprime uma situação dada, pois o fato de o sujeito ver as
coisas está ligado ao fato de ser sensível a elas. É pela sensação que o sujeito apreende, à margem de sua vida pessoal e de seus atos próprios, uma vida de consciência dada, da qual emergem a vida de seus olhos, das suas mãos e de seus ouvidos.
A sensação, desse modo, não é uma experiência própria do sujeito, de sua responsabilidade e decisão, mas pertence a um outro eu que já tomou partido pelo mundo, que já se abriu e sincronizou a alguns aspectos dele. A sensação, portanto, é uma modalidade da existên-
14
MUNSTERBERG, Hugo. “A atenção”. IN: A experiência do Cinema. Org. Ismail Xavier, 1983, p.28.
PONTY- MERLEAU, Maurice. Fenomenologia da Percepção, 1999, p. 104.
16
Id., Ibidem., 1999, p. 319.
15
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114
cia, já consagrada a um mundo físico, que faz parte do sujeito, por isso mesmo ele não pode
ser o seu autor.
Toda percepção, por acontecer em uma atmosfera de generalidade e se dar ao sujeito
como anônima, é também parcial. Esse fato se dá porque toda sensação pertence a um campo
visual que dá ao sujeito o acesso e abertura a um sistema de seres visuais que estão disponíveis
ao olhar em virtude de uma espécie de contrato primordial, por um dom da natureza, não
exigindo nenhum esforço do senciente. Essa visão, que pode ser considerada pré–pessoal, é
também limitada, já que existe em torno de si um horizonte de coisas vistas ou mesmo não
visíveis. Sendo assim, a visão pode ser concebida como um pensamento - sujeito a certo campo chamado de sentido. Concepção que leva o senciente a dizer que têm sentidos e que eles o
fazem ter acesso ao mundo, demonstrando sua capacidade de encontrar um sentido para certos aspectos do ser.
Na visão, o olhar se apóia em um fragmento da paisagem, enquanto os outros objetos
que compõem essa mesma paisagem recuam para a margem e adormecem, sem, contudo saírem dali. Por isso, ver é entrar em um mundo de seres que se mostram e não se mostrariam
se pudessem estar escondidos uns atrás dos outros ou de si mesmos e para olhar um objeto é
preciso habitá-lo e apreender dele todas as coisas, segundo a face que elas mostram. Ao olhar
um objeto, é possível atribuir-lhe não só as qualidades visíveis a partir do lugar onde o observador se encontra, mas também as qualidades que outros objetos podem ver, conforme exemplifica Merleau-Ponty:17
Quando olho o abajur posto em minha mesa, eu lhe atribuo não só as qualidades visíveis a partir do meu lugar, mas ainda aquelas que as paredes, a mesa podem “ver”, o verso do meu abajur é apenas a face que ele mostra a lareira. Portanto, posso ver um objeto enquanto os objetos formam um sistema, um mundo e enquanto cada um deles dispõe dos outros em torno de
si como espectadores de seus aspectos escondidos e garantia de sua permanência. Qualquer visão de um objeto, reitera-se instantaneamente entre todos os objetos do mundo, que são apreendidos como coexistentes, porque
cada um deles é tudo que os outros “veem” dele.
Para Merleau-Ponty, conforme propõe Paulo Cunha e Silva18, a percepção visual é o
processo por meio do qual o corpo mergulha no mundo e o mundo faz sentido, logo não se
configura como um fenômeno frio que corresponde à estimulação de uma realidade objecta lo corpo- por outra realidade objectal -o mundo.
A percepção visual, assim, resulta de uma construção subjetiva, de uma significação,
sendo consequentemente, um processo ativo, e não uma mera atitude contemplativa.
17
18
PONTY- MERLEAU, Maurice. Fenomenologia da Percepção, 1999, p. 105.
SILVA, Paulo Cunha. O Lugar do corpo.1999, p. 57.
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A visão desse modo constitui como um resultado a partir de um olhar ativo, de um
“ver-depois-de olhar”19·, contrapondo-se ao olhar passivo, que recebe as imagens involuntariamente.
3 - O corpo e o mundo percebido.
A concepção Merleau-Pontyanna de que o corpo é ao mesmo tempo vidente e visível
consiste em não tomar o corpo como propriamente uma coisa, uma matéria ou um tecido
conjuntivo, mas de concebê-lo como um “sensível exemplar”, que capacita a quem o habita e
sente de sentir tudo o que de fora se assemelha. O corpo, como uma folha de papel, apresenta
duas faces, um lado é coisa entre as coisas e o outro é aquilo que se vê, sendo essa dupla referência que possibilita ao corpo olhar todas as coisas, poder se olhar e reconhecer no que vê o
outro lado do seu poder de vidente. E dessa maneira, o corpo se vê vidente, se toca tocante, é
visível e sensível para si mesmo. Contudo, mesmo sendo o corpo coisa entre as coisas, ele se
salienta em relação a elas, e por isso delas se separa, já que não é mais coisa vista de fato, mas
visível de direito. Ao apalpar e ver os objetos, ele próprio é visível e tangível, pois utiliza seu
ser como meio para participar do deles.
Marilena Chauí 20postula que o vidente não está no corpo como numa caixa, e nem é
dessa maneira que está no mundo. E que o mundo não está no corpo e no vidente como uma
caixa, pois não existe entre eles uma relação de continente e conteúdo. Acredita sim num encaixe entre os dois. Aspecto que possibilita conceber o corpo como vidente que subtende o
corpo visível e todos os visíveis com ele.
Essa junção do corpo e o mundo, segundo Merleau Ponty 21, figura como o direito e o
avesso, ou mesmo, como dois segmentos de um único percurso circular, que do alto vai para a
esquerda e para a direita, e, de baixo, da direita para a esquerda, o que constitui um único movimento em duas fases. Essa representação é uma tentativa de ilustrar que o corpo sentido e o
corpo que sente estão numa relação recíproca de inserção e entrelaçamento. É ao ver o próprio mundo, o mundo de todos, sem ter que sair de si mesmo, que o corpo não é nem apenas
coisa vista, nem apenas vidente, mas sim a Visibilidade, ora errante, ora reunida.
Nesse sentido, conforme Paulo de Cunha e Silva22, a “carne do corpo” e a “carne do
mundo” cruzam-se num jogo de dependências, porque o mundo só é “carne” quando o sujeito nele se coloca. O sujeito é o ponto visível no mundo em que o mundo se torna visível e o
corpo é a maneira de estar no mundo, de experimentar e de pertencer ao mundo, logo o corpo
é o ponto de vista do sujeito no mundo.
E por ser o corpo o ponto de vista do sujeito no mundo, é que a percepção é uma ação, um movimento, em que o corpo se acha comprometido com o mundo quando o sente.
19
BOSI, Alfredo. “Fenomenologia do olhar”. In: O olhar. Org. Adauto Novaes, 1988, p.66. “Em suma, há um
ver-por-ver, sem o ato intencional do olhar; e há um ver como o resultado de um olhar ativo....Ver –por-ver
não é ver-depois-de-olhar.”
20
CHAUÍ, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau- Ponty. 2002, p. 105.
21
PONTY- MERLEAU, Maurice. O visível e o invisível. 1962 , p. 134.
22
SILVA, Paulo Cunha. O Lugar do corpo. 1999, p. 57.
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Dessa maneira, a motricidade é, segundo Manuel Sérgio23, uma intencionalidade operante, que
faz ver o corpo, não como uma porção do espaço, um feixe de funções, um trançado de visão
e movimento, mas um corpo móvel. Corpo, que como diz Merleau-Ponty, 24conta com o
mundo visível, faz parte dele e por isso pode ser dirigido no visível.
A visão, desse modo, depende do movimento, pois “só se vê o que se olha”. No corpo operante, a percepção corresponde a uma construção subjetiva, determinada por uma significância motora, ou seja, é um corpo móvel que atua com significado, com aptidão, com
competência e propósitos.
O fato do corpo se mover e se ver é o que possibilita manter as coisas ao seu redor,
como um anexo, um prolongamento dele, por isso, o mundo é feito do mesmo estofo do corpo. O mundo não está diante do sujeito, mas sim ao seu redor, de forma que o espaço é contado a partir do sujeito como ponto ou grau zero de espacialidade, como propõe MerleauPonty:25
Já que as coisas e o meu corpo são feitos do mesmo estofo, cumpre que sua
visão se produza de alguma maneira nelas, ou ainda que a visibilidade manifesta delas se acompanhe nele de uma visibilidade secreta: “a natureza está
no interior, diz Cézanne. Qualidade, luz, cor, profundidade que estão a uma
certa distância de nós, só aí estão por despertarem um eco em nosso corpo,
porque este as acolhe.
Porquanto, as coisas não existem em si, em seu lugar, em seu tempo, mas são experimentados pela interioridade de um sujeito que está entre elas, em que elas se comunicam por
seu intermédio como coisas sensíveis. Assim, o espaço e o tempo não são vistos como envoltórios exteriores, mas como vivência interior, pois estão englobados no sujeito.
O fato dos olhos que iveem, da mão que toca, também poderem ser vistos e tocados
demonstra que os olhos iveem e tocam o visível e o tangível pelo interior, já que, como diz
Merleau-Ponty, 26é a carne que atapeta e envolve todas as coisas visíveis e tangíveis, visto que
está envolvida, por isso o mundo e o sujeito é um no outro, e do percipiere ao percipiri não há
anterioridade, mas simultaneidade ou mesmo atraso.
O peso do mundo já é, portanto, o peso do passado, por esse motivo, cada paisagem
da vida do vidente, por ser segmento da carne durável do mundo, está prenhe, como visível,
de muitas visões além daquela que acredita ser visão sua. Nesse sentido expõe Merleau
Ponty:27
O meu corpo no visível. Não quer dizer simplesmente é um pedaço do visível, lá existe o visível e aqui( como variante do lá) meu corpo. Não, ele está
rodeado pelo visível. Isso não passa em um plano em que ele seria um embutido, mas ele está realmente rodeado, circundado. Quer dizer: vê-se, é um
visível, mas vê-se vendo, meu olhar que lá o encontra sabe que está aqui, do
lado dele – assim o corpo é posto de pé diante do mundo e o mundo de pé
23
Apud SILVA, Paulo Cunha. Id. Ibid, 1999, 57.
Apud SILVA, Paulo Cunha, Id. Ibid, 1999, p. 57.
25
PONTY- MERLEAU, Maurice. O olho e o espírito, 1962, p. 16.
26
PONTY- MERLEAU, Maurice. O olho e o espírito, 1962, p. 16.
27
Id. Ibidem 1962, p.243.
24
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diante dele, e há entre ambos uma relação de abraço. E entre estes dois seres
não há fronteiras, mas superfície de contato. A carne = o fato de que meu
corpo é ativo-passivo(visível-vidente), massa em si e gesto. A carne do
mundo = Horizonthaftigkeit(horizonte exterior e interior) rodeado de uma película do visível estrito entre esses 2 horizontes. A carne = o fato de que o
visível que eu sou vidente(olhar) ou, o que vem a dar no mesmo, tem um
dentro + o fato de que o vidente exterior é também visto, i.e, possui um
prolongamento, no recinto do meu corpo, que faz parte do meu ser. A imagem especular, a memória, a semelhança: estruturas fundamentais( semelhança de coisa e da coisa vista). Por que derivam da relação corpo-mundoos reflexos assemelham-se aos refletidos+ a visão começa nas coisas, algumas coisas ou casais de coisas chamam a visão- mostrar que toda nossa concepção do espírito é tomada de empréstimos a essas estruturas: por ex., reflexão.
O vidente, dessa maneira, não possuindo a si mesmo em toda a sua realidade, pode falar de uma percepção de si , por meio do interior, a partir de um sentido interno, como um
“analisador” de si mesmo, que vai mais ou menos longe do conhecimento de sua vida e de seu
ser. Ao qualificar a si mesmo como o sujeito da visão, o vidente, por meio da reflexão, prolonga seu ser visto para além do seu ser-visível para si mesmo.
4 - A imagem e a linguagem poética.
As imagens produzidas pela linguagem poética, segundo Octávio Paz28, têm sentido
em diversos níveis, pois em primeiro lugar possuem autenticidade, o poeta as viu e as ouviu,
portanto são a expressão genuína de sua visão e experiência de mundo. Em segundo lugar,
essas imagens constituem também uma realidade objetiva, que é válida por si mesma, já que é
uma obra. Assim sendo, o poeta enquanto ser vidente, objeto visível e ser de linguagem, cria
com sua arte poética realidades que estão imbricadas em sua própria existência.
Ao passar das ordens dos acontecimentos vividos para o da expressão, o poeta não
muda de mundo, pois os mesmo dados aos quais estava submetido tornam-se sistema significante. Mesmo quando esses acontecimentos são aprofundados, metamorfoseados, trabalhados
pelo interior e libertos do peso sobre o indivíduo, por meio da linguagem poética, são capazes
de esclarecer não só os aspectos do mundo que se lhes assemelham, mas também expressar a
vivência do artista, enquanto vidente e objeto visível do mundo.
Entretanto, a linguagem poética possibilita também ao vidente despertar e reconvocar
o poder de se expressar para além das coisas já vistas, pois quando percebe um objeto qualquer, este se apresenta ante ao seu olhar como uma pluralidade de qualidades, sensações e
significados, que se unifica instantaneamente no momento da percepção. Esse elemento unificador de todo esse conjunto de qualidades e de forma, segundo Octávio Paz, 29é o sentido,
pois as coisas possuem sentido.
28
29
PAZ, Octavio, O Arco e a Lira. 1956, p. 130
PAZ, Octavio, O Arco e a Lira. 1956, p. 131.
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Merleau-Ponty30 propõe que é necessário reconhecer sob o nome de olhar, de mão e
de corpo em geral um sistema de sistemas voltado à inspeção do mundo, capaz de transpor as
distâncias, de desvendar o futuro perspectivo, de desenhar na uniformidade o inconcebível do
ser, cavidades e relevos, distâncias e afastamentos, um sentido. Acredita que qualquer percepção, qualquer uso humano do corpo já é expressão primordial, é expressão primária que de
início constitui signos em signos, faz o expresso habitar neles apenas pela eloquência de sua
disposição e de sua configuração, implanta um sentido naquilo que não tinha, e que assim,
longe de esgotar-se na instância em que ocorre, inaugura uma ordem, funda uma instituição,
uma tradição.
O corpo humano é linguagem, podendo o sujeito, por meio dele, revelar o mundo e si
mesmo como objeto do mundo. Portanto, as imagens do mundo e do eu-lírico, expressas na
literatura, por meio da linguagem poética, são carregadas de sentidos, que de certo modo,
revelam a vivência do poeta, no mundo percebido, por meio do olhar.
Segundo Otávio Paz31, a linguagem é significado, sentido disso ou daquilo. Contudo
por ser um conjunto de signos dotados de certa mobilidade, há na linguagem uma infinita
possibilidade de significados, por isso quando o poeta procura expressar sua visão de mundo
por meio da linguagem poética, ele ultrapassa o círculo dos significados relativos, o isto ou o
aquilo, e diz o indizível: as pedras são plumas, isto é aquilo.
A linguagem poética instala, dessa forma, o sujeito em um mundo no qual ele não tem
a chave para abri-lo, ensinando assim o vidente a ver e finalmente pensar. Nessa perspectiva,
Merleau-Ponty32 postula que não se veria nada, se não houvesse, com os olhos, o meio de surpreender, de interrogar e de ordenar configurações de espaço e de cor em número indefinido,
que nada se faria se não houvesse no corpo a condição de saltar por cima de todos os meios
nervosos e musculares do movimento para se alcançar o objetivo.
A linguagem literária assim desempenha o mesmo ofício da percepção, pois pode
transportar o sujeito do mundo já dito, já visto, para o mundo não dito e ainda não visto, do
dizível para o indizível, do visível para o invisível.
Essa concepção pode ser remetida a José Saramago33 quando relaciona a linguagem à
imagem: “para mim linguagem e imagem estão ligadas, isto é, o verbo é cego, mas é o verbo
que torna visível, pois sendo cego, o verbo torna visível, cria imagens. Graças ao verbo, temos
as imagens”.
Expõe ainda que Michelangelo, apesar de não ter visto Moisés, de não tê-lo seguido no
Monte Sinai e não ter visto como decálogo foi lançado sobre o bezerro de ouro, ele leu o texto
e visualizou as imagens.
Essa relação entre a linguagem e a imagem também suscitou em Drummond algumas
reflexões, conforme fica expresso em “Paisagem Revista”, no livro O Observador no Escritório: 34
30
PONTY- MERLEAU, Maurice. O olho e o espírito, 1962, p. 99.
PAZ, Octavio, O Arco e a Lira. 1956, p. 137.
32
PONTY- MERLEAU, Maurice. O olho e o espírito, 1962, p. 112.
33
JARDIM, João e CARVALHO, Walter. Documentário: Janela da Alma. 2003.
34
ANDRADE, Carlos Drummond. O Observador do Escritório. 1985, p.66.
31
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
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Fevereiro, 9 – Sensação, diante de paisagem contemplada pela primeira vez,
de que já a víramos antes (as três árvores entrevistas por Marcel Proust no
decorrer de um passeio de carro). Jean Pommier (La Mystique de Marcel
Proust) sugere em primeiro lugar a explicação das vidas sucessivas que tivemos, cara aos místicos. A paisagem teria sido vista em existência anterior a
do observador. Vem depois a explicação do sonho, que equivale a uma existência, não anterior à atual mas alternando com esta. As mesmas árvores
poderiam ter sido vistas antes em sonho. Terceira explicação: a paisagem
fora construída antes pela imaginação, e agora é conferida ao vivo. O observador a compusera espontaneamente ou graças a repetida e poderosa sugestão- pela leitura, por exemplo. Assim, podemos reconhecer de repente a
sala de jantar descrita no poema de Baudelaire, a rua que aparece num romance de Flaubert, etc. última explicação proposta: a diplopia, ou fadiga da
visão, que faz ver em dobro no tempo, como às vezes se vê em dobro no
espaço(Ribot, Les Maladies de la memóire). Acredita-se que um estado um estado realmente novo fora experimentado anteriormente, de sorte que parece
repetir-se quando produzido pela primeira vez. Leon Daudet (Études et Millieux Littéraires) aventa outra hipótese: herdamos de nossos antepassados
não só inclinações e estados de espírito, como também paisagens. A memória hereditária pode transmitir a uma geração algumas dessas emoções mais
intensas, que duas ou três vezes na vida foram experimentadas por ancestrais de duas ou três gerações anteriores. Mas pra que tantas explicações, se
o fato emocional, poético e perturbador, do reconhecimento insólito, é das
mais belas sensações da vida?
Nessas colocações, Drummond considera o aspecto emocional e poético como o elemento preponderante da relação do homem com a percepção e com a própria linguagem, sugerindo que não há necessidade de tantas explicações para esse reconhecimento da imagem da
paisagem, pois basta apenas senti-la por meio do emocional, das sensações.
E, nesse sentido, Octavio Paz 35postula que na experiência poética, a imagem não explica, mas convida o sujeito a recriá-la e literalmente a revivê-la, por isso a arte da poesia, conforme Merleau-Ponty propõe36, não consiste em descrever didaticamente as coisas ou de expor ideias, mas de criar uma máquina de linguagem que, de maneira quase infalível, coloque o
leitor em determinado estado poético.
Estado poético que pode ser experimentado também na história de um filme, pois o
filme não deseja exprimir nada além do que ele próprio, pois, como expõe Merleau-Ponty37, o
filme não é pensado, mas sim percebido.
Desse modo, tanto a arte do cinema como a arte literária, não falam a uma inteligência
isolada, mas se dirigem ao poder de decifrar tacitamente o mundo e os homens e de coexistir
com eles.
Luis Buñuel38 acredita que a invenção do cinema parece ter sido voltada para a expressão da vida subconsciente, tão profundamente exposta na poesia. Expõe ainda que o cinema é
35
PAZ, Octavio, O Arco e a Lira. 1956, p. 137.
PONTY- MERLEAU, Maurice. “O Cinema e a Nova Psicologia”. IN: A experiência do Cinema. Org. Ismail
Xavier, 1983, p.113.
37
ID.,Ibidem, 1983, p. 113.
38
BUÑUEL, Luis. “Cinema: Instrumento de Poesia”. IN: A experiência do Cinema. Org. Ismail Xavier, 1983,
p.333.
36
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uma arte magnífica, pois é o melhor instrumento para exprimir o mundo dos sonhos, das emoções e dos instintos.
Esse aspecto da arte cinematográfica é também sugerido nos textos literários, principalmente quando procura focalizar não só o visível, mas também aquilo que parece invisível
aos olhos humanos. É ao ver a si mesmo captando as imagens do mundo, por meio de seu
interior, de suas relações emocionais com o mundo, que o poeta aproxima-se da linguagem
cinematográfica, já que sugere uma imagem em close-up de si.
Assim sendo, o poeta, por meio do texto literário, expressa, a partir do interior, a visão do mundo e de si, enquanto objeto do mundo, por esse motivo as imagens reveladas por
meio do seu olhar são carregadas de emoções, de sonhos e de vivências, pois a poesia, conforme escreve Eliot39, pode ajudar a romper o modo convencional de perceber e julgar e faz
ver as pessoas, o mundo com olhos novos ou descobrir novos aspectos deste. De quando em
quando, ela pode dar-nos uma consciência mais ampla dos sentimentos profundos, ignotos ,
que formam o substrato do nosso ser, ao qual bem raramente acedemos; por que nossa vida é
, em geral, uma contínua evasão de nós mesmos e do mundo invisível e sensível.
6 – Referências bibliográficas.
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39
Apud BOSI, Alfredo. Leitura de Poesia. 2001, p.31.
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1976.
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122
10. LER E FILOSOFAR: a possibilidade do ensino
da Filosofia a partir do texto filosófico
READ AND PHILOSOPHY: the possibility of teaching
Philosophy from the philosophical text
João Batista de Andrade Filho1
Resumo. No rol das disciplinas do Ensino Médio, a Filosofia, bem como outras
disciplinas, defronta-se com a apatia dos alunos em relação ao hábito da leitura.
Ora, não seria possível o alcance de uma competência sem o desenvolvimento de
uma habilidade, no âmbito de qualquer disciplina. Portanto, a aquisição do referido hábito seria uma tarefa posta aos próprios educandos, e aos educadores, como
uma busca constante por novas metodologias, instigada pela disciplina em questão, certamente a partir daquilo que corresponde ao seu conteúdo específico, ou
seja, o próprio texto filosófico. Nesse ponto, a Filosofia apresenta um diferencial
em relação às outras disciplinas, que é a relação que a mesma mantém com sua
história, sempre retornando aos seus textos clássicos para descobrir sua identidade, atualidade e sentido. De acordo com a proposta apresentada no presente trabalho, disso ela não poderia prescindir, pois, é através da leitura dos textos filosóficos que se dá o próprio fazer filosófico.
Palavras-chave. Ensino Médio – Filosofia – Conteúdo específico – Leitura
Abstract. In the list of school subjects, philosophy and other disciplines are facing the apathy of students in relation to the habit of reading. It would not be possible to attain a competence without the development of a skill, within any discipline. Therefore, acquiring the habit would be a task to put the learners themselves,
and the teachers, as a constant search for new methodologies, instigated by the
discipline in question, certainly from what corresponds to its specific content, in
the philosophical text itself. At this point, the philosophy has a differential in relation to other disciplines, which is the relationship that it enjoys with its history,
always returning to its classical texts to discover their identity and meaning today.
According to the proposal presented in this work, we could not overlook, because
it is through reading of philosophical texts that philosophy acts.
Keywords. School – Philosophy – Content specific – Reading
1
Licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará, Especialista em Ensino de Filosofia pela Universidade Gama Filho, Mestrando em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Professor da Rede
Oficial de Ensino do Estado do Ceará. Contato: [email protected]
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1. Introdução
No meio escolar, a relação mais conflituosa talvez seja a de professor e aluno, principalmente quando a disciplina a ser ensinada, por exigir leitura, parece enfadonha e tediante.
Assim, é bastante comum ouvirem-se reclamações de alunos dizerem que o professor ensina
mal, ou a disciplina é chata, ou professores dizerem que os alunos são indolentes e têm preguiça de ler e escrever, que não possuem nenhuma intimidade com os textos vistos em sala de
aula, sendo inaptos à compreensão e ao domínio da escrita.
Notadamente esta regra tão comum e disseminada, parece portar um teor maior de
verdade se se refere à disciplina Filosofia porque, sendo eminentemente discurso, talvez requeira uma habilidade maior das competências acima referidas.
Porém, em toda e qualquer disciplina, o desafio de ensinar parece passar primeiro pela
resolução desses conflitos, porque negligenciá-los acarretaria em não aprendizado, e isso não
condiz com os preceitos traçados para a educação dos jovens em nosso país.
Vale ressaltar ainda que, no Brasil, assiste-se a um processo de massificação pelo qual
o ensino médio passa a receber estratos sociais menos privilegiados, que antes não tinham
acesso a ele, e que esse segmento social chega à escola média, pública especificamente, com
uma grande carência cultural e deficiências educativas de vários tipos. (RODRIGO 2007).
Apesar disso, os professores não podem ver nesse perfil a justificativa para abrir mão de metodologias que exijam dos educandos uma postura diferenciada para enfrentar esses tão temidos obstáculos. Notadamente, o professor de Filosofia jamais poderá prescindir da leitura
porque seus alunos não acompanham o nível do discurso filosófico. Seria privá-los de, no
mínimo, tentar romper as barreiras que os conservam nas condições de perscrutadores de
sombras.
Para o ensino da Filosofia, o Ministério da Educação (MEC) recomendou, através dos
Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (1999), dentre outras competências e
habilidades, ler textos filosóficos de modo significativo e elaborar, por escrito, o que foi apropriado de modo reflexivo. Compreende-se que tais atividades estão atreladas: bons leitores
geralmente estarão aptos a serem bons escritores. Porém, sendo a leitura, já por si, uma atividade negligenciada, porque “desinteressante” e, por isso mesmo, um grande obstáculo a ser
superado por quem se propõe a ensinar Filosofia, imaginar-se-á, então, que o exercício do
domínio do pensamento através da escrita será encarado como um outro grande desafio a ser
transposto no ensino da referida disciplina.
Á Filosofia, através de seus textos, caberia então o papel de orientar o caminho para
elevar o nível intelectual dos educandos. Bem parafraseando a máxima kantiana, o papel de
retirada do homem de sua menoridade, ou seja, de sua incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo (KANT apud RODRIGO, 2007).
Espera-se da Filosofia, como foi apontado anteriormente, o desenvolvimento geral de competências comunicativas, o que implica um tipo de leitura
envolvendo capacidade de análise, de interpretação, de reconstrução racional
e de crítica. Com isso, a possibilidade de tomar posição por sim ou por não,
de concordar ou não com os propósitos do texto é um pressuposto necessário e decisivo para o exercício da autonomia e, por conseguinte, da cidadania. (BRASIL. 2008, p. 30-31)
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Ao professor de Filosofia, o papel de estimular, através do exercício de leitura, reflexão e domínio da escrita, a entrada nesse caminho para que os mesmos não se percam na
aventura da descoberta de si como seres autônomos. Desafio posto, aliás, aos próprios professores, como leitores, produtores e adaptadores de textos.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio,
propostos pelo Ministério da Educação, os alunos devem se apropriar de
determinadas habilidades e competências inerentes ao campo filosófico,
dentre elas a leitura e a escrita reflexiva. Ora, o desenvolvimento de tais habilidades e competências será possível a partir do empenho do professor na
busca por elementos que darão aporte a tal desenvolvimento, experienciando, ele próprio, junto aos educandos, os principais problemas enfrentados
no ensino de sua disciplina.
Destarte, a sala de aula deve funcionar como um bom termômetro da própria prática
docente, pois, baseando-se neste fato, professores comprometidos podem vislumbrar necessidades de renovação constante de ações metodológicas a fim de estimular a aprendizagem.
Poderíamos acrescentar que, quanto maior é a distância entre o ponto de
partida cultural do aluno e as exigências inerentes ao saber filosófico, maior
é a importância dos procedimentos didáticos, o que significa dizer a importância do trabalho docente. Diante de um estudante que não possui as qualificações requeridas para a apropriação do saber filosófico, compete ao professor produzir mediações pedagógicas capazes de reduzir a distância entre
o precário universo cultural do aluno de nível médio e as exigências de reflexão filosófica (RODRIGO, 2007, p.42).
No rol das disciplinas do Ensino Médio, a Filosofia, bem como outras disciplinas, defronta-se com a apatia dos alunos em relação ao hábito da leitura. Ora, não seria possível o
alcance de uma competência sem o desenvolvimento de uma habilidade, no âmbito de qualquer disciplina. Portanto, a aquisição do referido hábito seria uma tarefa posta aos próprios
educandos, e aos educadores, instigada pela disciplina em questão, certamente a partir daquilo
que corresponde ao seu conteúdo específico, ou seja, o próprio texto filosófico. Nesse ponto,
a Filosofia apresenta um diferencial em relação às outras disciplinas, que é a relação que a
mesma mantém com sua história, sempre retornando aos seus textos clássicos para descobrir
sua identidade, atualidade e sentido (BRASIL. 2008). Disso ela não poderia prescindir, pois, é
através da leitura dos textos filosóficos que se dá o próprio fazer filosófico.
...não se pode esquecer que a leitura filosófica retém o essencial da atividade
filosófica. (...) A leitura filosófica não se esgota na simples aplicação de metodologias de leitura; ela é um ‘exercício de escuta’ (no sentido psicanalítico).
O texto fala a partir da relação que se estabelece com ele: o que há nele, a
linguagem nele articulada, não se manifesta senão quando a leitura funciona
como elaboração, desdobrando os pressupostos e subentendidos do texto.
Esse exercício (de paciência) permite que o leitor se transforme na leitura,
pois interfere nos modos habituais da recepção. A leitura como compreensão (e interpretação) é uma atividade produtiva que ‘reconstrói um imaginário oculto, sob a literalidade do texto’. (FAVARETTO 1995, pp. 80-81).
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Se o ensino da Filosofia deve se dar através dos próprios textos filosóficos, especificamente, que textos darão suporte às aulas de Filosofia se, empiricamente, no registro do
cotidiano de sala de aula, como aludido anteriormente, fala-se de uma generalizada apatia dos
educandos com o exercício da leitura e da escrita? Faz-se necessária uma avaliação de textos
que sejam mais adequados à realidade do aluno, de forma que proporcionem aos educandos a
capacidade de relacionar os principais temas da Filosofia com problemas do cotidiano.
Assim, analisar a proposta de leitura de textos filosóficos como possibilidade na aula
de Filosofia, significa dizer que a referida disciplina tem um conteúdo próprio e que seu conteúdo muitas vezes se confunde com sua própria metodologia. Ler filosoficamente implicaria
em filosofar. Para isso, será necessário habilmente mostrar aos educandos do Ensino Médio a
importância da Filosofia e dos temas a ela concernentes.
Na presente proposta de trabalho, a busca pela análise da possibilidade metodológica
no tocante ao ensino de Filosofia, particularmente no que se refere à leitura de textos filosóficos, caminhará no sentido de aprofundar o tema, verificando o posicionamento de vários
autores consagrados que se debruçaram e se debruçam sobre as principais problemáticas dele
originadas. Daí a necessidade, para fundamentar tal iniciativa, de uma pesquisa de cunho bibliográfica, de forma a permitir um diálogo com o que autores consagrados disseram, e dizem, sobre o tema corrente.
2. Importância da leitura
Das muitas dificuldades apresentadas pelo ensino, notadamente no ensino médio, estampa-se a da leitura. Ler tornou-se a atividade na qual talvez os educandos menos se envolvam.2 Daí a preocupação de muitos professores, em todas as disciplinas, em despertarem para
isso. De acordo com Silva (2002, p.43) “ao experienciar a leitura, o leitor executa um ato de
compreender o mundo”. De fato, o propósito básico de qualquer leitura é a apreensão do que
se plasmou através de experiências objetivas ou subjetivas, a concretização de significados
fixados no exercício da escrita, ou seja, pretende-se alcançar a compreensão dos horizontes
inscritos por um determinado autor, numa determinada obra.
No mundo contemporâneo, de acordo com a imposição de um ritmo imposto às pessoas, a leitura parece ter se tornado uma atividade em desuso. O frenesi, experimentado e
comprovado pelo pulsante deslocamento vertical e horizontal nas metrópoles, ditando o estilo de vida das pessoas, parece não dar trégua. Nesse mundo que não pára, é possível o cultivo
do hábito da leitura?
Sabe-se que as informações estão em toda parte e, a todo instante, as pessoas, no ritmo frenético, notadamente das grandes cidades, são bombardeadas por toda sorte de informação. O mundo atual tem se caracterizado pelo desenvolvimento acelerado do campo in2
De acordo com o escritor de literatura do ensino médio, Professor Orlandi apud Rizzo (1998, p.34), “os
alunos não leem praticamente nada, nem jornais nem revistas; têm nenhuma intimidade com o texto, com
a palavra escrita. Tentei incentivá-los a ler revistas sobre assuntos de que gostam como cinema, esporte,
equipamentos eletrônicos, mas não adiantou. Nem identificar as áreas de interesse eles conseguem”.
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formacional. Afirma Cavalcanti (1999, p.9) que “(...) a virada para o século XXI traz (...) marca patenteada no cartório da história: o século do saber, do conhecimento, da tecnologia”, e
Bajard (2001, p.9), comenta que “o mundo da escrita está hoje em plena mutação”.
Apesar da existência de tecnologia que facilita ou cria novas formas de comunicação, as exigências de leitura são cada vez maiores. Assim, com o apogeu da tecnologia do mundo atual, ao contrário do que muita gente pensa,
torna-se impreterível a integração desta com a leitura. Tecnologias como a
televisão, o cinema, o radio, o computador não têm usurpado o lugar privilegiado da palavra escrita, pelo contrário, eles aumentaram as demandas da
leitura feitas aos cidadãos para se integrarem na sociedade contemporânea,
pois o indivíduo que pode fazer uso de todas as vantagens de uma tecnologia como o computador, por exemplo, é aquele indivíduo que é leitor (e que
escreve). Para muitos, a carta perdeu seu papel fundamental na comunicação
à distância, mas, no seu lugar tornou-se necessário redigir uma mensagem
no correio eletrônico, que exige rapidez de pensamento e capacidade de síntese (KLEIMAN, 1990, p.90-92).
Sendo a leitura uma atividade essencial a qualquer área do conhecimento, particularmente ao ensino da Filosofia, ela é uma atividade essencial à vida do ser humano, porque ler é
presentificar-se na história (CAVALCANTI, 2002, p.13). Da mesma maneira, entende-se a
Filosofia como leitura que permite a compreensão da realidade na qual estão inseridas pessoas em suas mais diferentes experiências.
3. O texto filosófico e a aula de filosofia
Não é consenso, entre os professores de Filosofia que trabalham no Ensino Médio, o
uso do texto propriamente filosófico como recurso em sala de aula. Isso porque a realidade
escolar brasileira tem mostrado uma enorme dificuldade para a produção e desenvolvimento
de leitores3, entendendo-se aqui o sentido comum da palavra.
Imaginar-se-á, então, se este sentido for alargado ao âmbito filosófico. Onde a leitura
tem um papel essencial do qual não se pode abrir mão. Mesmo assim, a escola tem um papel
fundamental quanto ao incentivo à leitura. Claro que ela não deverá ser somente o marco
inicial, pois a leitura depende de hábito, que se deve procurar formar desde a infância.4
Ler sempre representou uma das ligações mais significativas do ser humano
com o mundo. Lendo reflete-se e presentifica-se na história. O homem,
permanentemente, realizou uma leitura do mundo. Em paredes de cavernas
ou em aparelhos de computação, lá está ele reproduzindo seu “estar-nomundo” e reconhecendo-se como capaz de representação. Certamente, ler é
engajamento existencial. Quando dizemos ler, nos referimos a todas as formas de leitura. Lendo, nos tornamos mais humanos e sensíveis (Cavalcanti,
2002, p.13).
3
“Constata-se um déficit alarmante em relação à leitura; as estatísticas mostram um quadro desanimador:
o Brasil consome 2,3 livros per capita ao ano, índice bem distante dos de muitos países como a França e os
Estados Unidos que, respectivamente consomem ao ano 6 e 11 livros per capita. De acordo com a mesma
fonte, a situação no Brasil torna-se ainda mais agravante pelo fato de que os livros vendidos pelo país, em
torno de 60% são os chamados de ‘consumo obrigatório’ ou seja, os livros didáticos e paradidáticos, dos
quais grande parte é sempre adquirida pelo próprio governo nas escolas.”(RIZZO, 1998, p. 30)
4
MINDLIN, José. O exemplo dos Lusíadas. Educação, São Paulo, v. 25, nº. 207, p. 66, jul. 1998.p. 66
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Notadamente, estimular os educandos à leitura do texto filosófico no intuito de se nutrirem de ferramentas capazes do exercício constante da reflexão e da problematização como
elementos constituintes de suas autonomias é ato de coragem que requer, acima de tudo, o
exercício da referida atividade por parte dos próprios professores.
Nos últimos anos, o debate relativo ao ensino de filosofia tem resultado em
novas posturas, assim como no abandono de velhas concepções. Pouco a
pouco, vai sendo superada a ideia de restringir o ensino de filosofia no nível
médio aos textos de manuais, ao mesmo tempo em que ganha força a proposta de promover um contato direto do aluno com o pensamento dos filósofos. Um saldo positivo desse debate reside na ideia de que a leitura do texto filosófico, ou pelo menos de alguns trechos, deve ocupar um lugar importante no ensino da filosofia. Isso porque só o contato direto com o texto
dos pensadores originais propicia, mais do que mera informação filosófica,
um efetivo exercício de reflexão mediante o contato direto com o pensamento de um autor, conhecendo-se o interesse que o move em direção a determinada pesquisa, suas indagações e os argumentos que fundamentam e
justificam suas teses. Aliás, faz-se necessário o lançar-se na defesa de tal metodologia a fim de possibilitar o acesso dos educandos no mundo da cultura
filosófica (RODRIGO, 2007, p.47-48).
Para Buzzi (2007, p. 12) “ler, ouvir, falar, raciocinar, escrever são os exercícios de aprendizagem em sala de aula. Exercícios acadêmicos, mas que desenvolvem nos educandos o
cultivo do pensamento.” Daí porque, considerando-se que todos os conteúdos filosóficos
(como de resto, todos os conteúdos teóricos) são discursos, veremos que o ensinar Filosofia
no Ensino Médio converte-se, primariamente, na tarefa de fazer o estudante aceder a uma
competência discursivo-filosófica conhecendo o pensamento dos filósofos que buscaram
respostas aos problemas relevantes de suas épocas, desenvolvendo e sistematizando teorias,
conceitos e métodos de reflexão que contribuíram, de uma maneira ou de outra, para o desenvolvimento da humanidade.5
De um ponto de vista propedêutico, a conexão interna entre conteúdo e método deve tornar-se evidente: que o estudante tenha se apropriado significativamente de um determinado conteúdo filosófico significa, ao mesmo tempo, que ele se apropriou conscientemente
de um método de acesso a esse conteúdo.6 Segundo Silveira (2007, p.81), “filosofar exige o
estudo atento e rigoroso da história da filosofia e das obras dos principais filósofos, tarefa
que, convenhamos, nem sempre consegue ser agradável e prazerosa”.
Portanto, a competência de leitura significativa de textos filosóficos consiste, antes de
qualquer coisa, na capacidade de problematizar o que é lido, isto é, apropriar-se reflexivamente do conteúdo.
É salutar, portanto, para o ensino da Filosofia que nunca se desconsidere a
sua história, em cujos textos reconhecemos boa parte de nossas medidas de
competência e também elementos que despertam nossa vocação para o trabalho filosófico. Mais que isso, é recomendável que a história da Filosofia,
5
SILVEIRA, Renê José Trentin. Teses sobre o ensino de Filosofia no nível médio. In. SILVEIRA, Renê J. T. GOTO, Roberto. (Orgs.). Filosofia no ensino médio; temas, problemas e propostas. São Paulo: Edições Loyola,
2007, p.81.
6
BRASIL. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. Brasília: MEC, 1999, p.116.
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ainda que a perspectiva adotada pelo professor seja temática, não sendo excessivo reforçar a importância de se trabalhar com os textos propriamente
filosóficos e primários, mesmo quando se dialoga com textos de outra natureza, literários e jornalísticos, por exemplo, o que pode ser bastante útil e
instigante nessa fase de formação do aluno. Porém, é a partir de seu legado
próprio, com uma tradição que se apresenta na forma amplamente conhecida como História da Filosofia, que a Filosofia pode propor-se ao diálogo
com outras áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar na
formação do educando (BRASIL, 2008, p.27).
Assim, se realmente é importante que a Filosofia ajude a desenvolver nos educandos
a capacidade de reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas de sua realidade,
superando o senso comum e adquirindo uma consciência mais crítica, dado que o exercício
dessa reflexão supõe contato com as obras filosóficas, tais obras devem constituir o conteúdo
específico do ensino dessa disciplina. Há, pois, o que aprender, há o que deve ser ensinado e
o que deve ser exercitado, e se isso não for feito nas aulas de Filosofia não o será em nenhuma outra disciplina.7
3. Considerações finais
Com a elaboração da presente proposta de trabalho espera-se uma efetiva contribuição para a ampliação dos conhecimentos e das possibilidades metodológicas para a aula de
Filosofia. Aliás, a referida disciplina, apesar de passar por um momento favorável pelo fato de
estar retornando ao Ensino Médio, carece de metodologias apropriadas ao seu ensino. Juntando-se a isso, algo ainda mais danoso ao seu desenvolvimento é ser ministrada por quem
não tem o devido respaldo acadêmico para ensiná-la e, portanto, acha que pode fazê-lo de
qualquer forma. Diante de certas “resistências” de saída da condição de admiradores de sombras, por parte dos educandos, geralmente buscam-se caminhos mais “fáceis” e menos tortuosos. Não vislumbram que educar para a inteligibilidade, contribuir para a constituição de
uma retórica, de elementos que permitam o desenvolvimento de seres discursivos, necessariamente passa por conduzir os alunos a descobrir encadeamentos, os elos que estão nos discursos elaborados deixados como legados pela História da Filosofia.
“Evita-se, assim, que as aulas sejam preenchidas pelo discurso vazio(geralmente do professor), por simulacros de reflexão, ou então se tornem
apenas um lugar para se ‘discutir’, de ‘criticar’ etc. Pois, educar para a inteligibilidade significa reafirmar que a crítica não vem antes das condições que a
tornam possível. Portanto, mínimo no ensino de filosofia não é, certamente,
este ou aquele conjunto de tópicos, problemas ou partes da filosofia. Não é,
também, uma coleção de conceitos, textos ou doutrinas. O que interessa é o
foco do trabalho com os alunos: o que é preciso fazer para o desenvolvimento das condições de inteligibilidade? (FAVARETTO, 1995, p.80).
Assim, contribuir, consideravelmente, com o aprimoramento do debate acerca das
propostas de novas metodologias de ensino da Filosofia, é atribuição dos próprios professo7
SILVEIRA, Renê José Trentin. Op. Cit., p. 87.
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129
res de Filosofia. Visualiza-se que uma metodologia para o ensino efetivo da referida disciplina
deve priorizar o conteúdo inerente ao seu próprio conjunto e, portanto, jamais deve abrir
mão do exercício do filosofar que deverá ter como ponto de partida a leitura do próprio texto
filosófico. Segundo Silveira (2007, p.85), “para ter lugar assegurado na escola, a Filosofia precisa se configurar como um saber elaborado, sistemático, erudito, isto é, como um conteúdo
curricular específico, cuja socialização seja relevante para a produção da existência humana e
para a vida em sociedade.
4. Referências bibliográficas
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130
11. AS VIRTUDES JUSTIÇA E AMIZADE
SEGUNDO ARISTÓTELES
THE VIRTUES OF JUSTICE AND FRIENDSHIP BY ARISTOTLE
Maria Regina Ponte da Silva1
Resumo. Este artigo tem como objetivo analisar a concepção de justiça e amizade
segundo o filósofo Aristóteles baseado em sua obra Ética a Nicômaco. Segundo
Aristóteles, de todas as virtudes que o homem almeja a justiça representa a virtude
mais aprimorada. Ela reuni os adjetivos do equilíbrio, da justa proporção, em dar a
cada um o que lhe é devido. Sendo assim, se contrapõe a toda sorte de vícios que se
configuram pelo excesso ou pela falta.
Palavras-chave. Filosofia. Virtude. Justiça.
Abstract. This article aims to analyze the concept of justice and friendship
according to the philosopher Aristotle based on his book Nicomachean Ethics.
According to Aristotle, among all the virtues which men crave, justice is the virtue
most improved. It grabbed the adjectives of balance, the fair proportion, to give
each one his/her due. Thus, it is opposed to all sorts of vices that were shaped by
the excess or lack.
Keywords. Philosophy. Virtue. Vice.
1
1º Tenente OTT. Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), professora de Filosofia
do Colégio Militar de Fortaleza (CMF), Fortaleza, Brasil. Contato: [email protected].
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131
1. Introdução
1.1.
ARISTÓTELES VIDA E OBRA (384 a.C – 322 a.C)
Aristóteles não nasceu em Atenas. Ele era natural da Macedônia. Nasceu em 384 a.C.,
em Estagira e morreu em 321 a.C., aos 63 anos. Sua mãe chamava-se Phaestiso (ou Festias) e
seu pai Nicômano, médico de renome, cientista da natureza, por isso o maior interesse de
Aristóteles era sobre a natureza viva.
Nicômaco era médico de Amintas, rei da Macedônia, daí os primeiros estudos de Aristóteles eram voltados para a biologia, a botânica, a medicina. Mas Aristóteles perdeu o pai aos
sete anos e por isso foi educado pelo seu tio, com sua módica fortuna. Aos dezoito anos
transferiu-se para Atenas, onde ingressou na Academia de Platão. Ali permaneceu por mais de
vinte anos, até a morte de Platão. Em virtude de Aristóteles não ser nativo de Atenas, mas ser
estagirita, este não pode suceder a direção da Academia.
Em 342 a.C. Aristóteles foi convidado por Felipe, rei da Macedônia, para ser tutor de
seu filho, Alexandre. Quando Alexandre acendeu ao poder e mandou matar, sob acusação de
traição, o historiógrafo Calístenes, que compartilhava algumas ideias aristotélicas, Aristóteles
se sentiu ameaçado e partiu Atenas, onde fundou o Liceu, em 335 a.C. O Liceu possuía um
jardim e uma alameda para passeio, em grego- perípatos, o que permitia que os alunos desta
escola realizassem caminhadas filosóficas, os peripatéticos.
A rotina da escola do Liceu era bem organizada. Pela manhã Aristóteles dava aulas
sobre assuntos mais difíceis (lógica, física, matemática e teologia), para um público menor. À
tarde e à noite, ele ensinava retórica e dialética para um público maior, devido ao menor grau
de dificuldade.
Nesse período, Aristóteles pode compilar os conhecimentos adquiridos ao longo dessas aulas, colecionando mapas, espécies de animais e plantas que foram recolhidos durante o
império de Alexandre. Além disso, Aristóteles fixou a classificação da fauna e flora em ordem
de complexidade e variedade, formando o currículo escolar do Liceu.
Em 323 a.C. morre Alexandre influenciando sentimentos anti-macedônicos. Conspirase nesse momento, uma repulsa as ideias aristotélicas, visto que Aristóteles tinha ligações com
a Macedônia e que o Liceu não representava a autenticidade filosófica, a existência da Academia e da escola de retórica de Isóscrates se intitulavam verdadeiros representantes do mundo
grego e ateniense. Assim, os ateniense começaram a julgá-lo de traição e foi acusado de impiedade. Aristóteles receoso resolveu abandonar Atenas, estabelecendo em Cálcis, na Eubéia,
segundo ele “para evitar outro crime contra a filosofia”, já que o primeiro fora a condenação à
morte de Sócrates.
Aos sessenta e três anos, em 321 a.C., Aristóteles falece de uma doença no estômago
que já possuía durante muito tempo.
2. O que é um homem virtuoso?
Segundo Aristóteles a intencionalidade da ação humana consiste em alcançar o Sumo
Bem, o Bem mais desejado por todos, a felicidade. Mas a felicidade não pode ser produto da
sorte ou da eventualidade, ela deve ser resultado do exercício pleno da faculdade de avaliar a si
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mesmo, de desviar os atos ruins, definir os projetos, reconhecer as falhas. Ela deve ser resultado do trabalho esmerado, gradativo e contínuo daquele que almeja uma transformação para o
melhor que pode ser. Sendo assim, resta ao homem conhecer suas atitudes, orienta-las para a
superação dos limites, planejando, cogitando e direcionando suas ações. Se tornar um homem
virtuoso, não é questão de sorte, mas de prática. Através da capacidade de deliberação, de análise das próprias ações, da reta razão o homem pode direcionar suas ações, corrigindo-as sempre que necessário, desviando do excesso e da falta e alcançando o equilíbrio. Esta justa medida não precisa ser necessariamente uma média aritmética, mas um equilíbrio direcionado
para a proporção ideal. Por exemplo, quando falamos na virtude da coragem, reconhecemos
seus opostos no vício do excesso de coragem: a temeridade e no vício da falta: o medo. Mas a
coragem não é a ausência do medo, mas a certeza de que existe um objetivo que deve ser alcançado, mais forte que o medo. Também a coragem não é a falta de iniciativa, mas a justa
medida que se inclina mais na direção da temeridade enquanto capacidade de iniciativa e disposição para arriscar.
Desta forma, para ser um homem virtuoso é necessário ser responsável pelas atitudes,
conhecer as consequências das atitudes, treina-las para almejar o equilíbrio, fazendo uso da
reta razão, exercendo a deliberação a cada situação e transformando tudo isso em hábito.
É por isso que Aristóteles é conhecido como criador da filosofia prática. Ele supera as
utopias e os idealismos platônicos e põe a razão a serviço de nossas escolhas, de nossas ações.
Somos o que escolhemos e escolhemos a todo instante. É o que diz Aristóteles no livro II da
Ética a Nicômaco: ”a virtude é uma disposição constante para agir de um modo deliberado,
consistindo numa medida relativa a nós, racionalmente determinada e tal como seria determinada pelo homem prudente”2.
Um exemplo de virtude em relação ao tratamento com o outro é a amizade, como
vício do excesso temos a condescendência e como falta temos a indiferença. Em relação ao
comportamento diante da opinião com o público em relação a fama temos a magnificência
como virtude, a vaidade como vício pelo excesso e a humildade como vício pela falta.
Para alcançar o justo meio o homem deve acionar sua capacidade deliberativa de ser
prudente, evitar os excessos, controlar seus ímpetos e seus instintos mais vorazes. É a sabedoria prática, a reta razão, condição de coroamento de todas as virtudes. A phrónesis ou prudência
deve ser acionada pela inteligência humana. Os prudentes são capazes de calcular implicando
em um fim honesto, eles deliberam sobre as coisas boas e úteis, por exemplo coisas boas para
a saúde e para o bem viver em sua totalidade. A força motriz da prudência é a moderação, a
atitude mediada, cautelosa.
Entretanto, muitas circunstâncias não dependem de nós. Aristóteles alerta que para a
existência de situações contingentes. Se não temos o poder de controlar o que pode acontecer, como podemos escolher? A ação ética só poderá ser mediada quando ela estiver em nosso
poder de decisão, quando as circunstâncias não forem lançadas de forma imprevisível. Nesse
sentido, só temos uma ação ética quando podemos escolher voluntariamente, sem imposições
ou contextos inesperados. Assim, não deliberamos sobre a natureza, a eternidade do mundo, a
2
Aristóteles, Ética a Nicômaco, Martin Claret, p. 54
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falência do corpo, a fatalidade, as catástrofes ambientais. Deliberamos sobre o possível, o preferível, o necessário, o indispensável.
Deliberamos sobre o provável ou o que acontece com uma certa frequência. Decidimos sobre o fim e não sobre os meios, ou seja, pensamos nos meios para alcançarmos os fins,
visto que o fim é o objeto do desejo. Como exemplo temos o médico que pensa nos meios de
como deve curar seu paciente. Nesse sentido, a escolha pode ser entendida como um desejo
deliberado do que podemos fazer e não um desejo passional que busca o indeterminado.
Um desejo ligado a ação, uma afetividade consciente, intencional, acompanhado de
uma auto-análise, um acordo entre razão e desejo.
O que Aristóteles queria dizer, mas ainda não era tema corrente é a ideia do uso consciente do livre arbítrio.
3. A justiça e a amizade: transição da ética para a política
A justiça esta intimamente ligada a ideia de virtude. Sendo a justiça o meio termo entre
os extremos, entre os vícios derivados do excesso e da falta. No livro V de Ética a Nicômaco
Aristóteles inicia a argumentação sobre o conceito de justiça. Dentre todas as virtudes a mais
nobre é a justiça, pois ela representa todas as outras, na medida em que é a justa proporção, no
discernimento de dar a cada um o que lhe é devido: “ela é completa porque a pessoa que a
possui pode exercer sua virtude não só em relação a si mesmo, como também em relação ao
próximo, uma vez que muitos exercem sua virtude nos assuntos privados”.3
A excelência desta virtude consiste no ponto comum entre a ética e a política que orientam para o bem comum. A justiça é nobre por almejar o bem do outro e o melhor para todos. Para isso, requer discernimento e orientação para a vontade geral, independente da classe
social e do status dos indivíduos.
Ora, aplicar a justiça significa fazer o bom uso da razão, discernindo o certo do errado,
respeitando o direito a igualdade, pois atribui a cada um o que lhe é devido. Além disso, devese agir com coragem para agir conforme a lei e com temperança para acertar a justa medida. É
desta forma, que o homem justo deve agir como se espera, atribuindo inclusive a si mesmo o
que corresponder a seus méritos e deméritos.
O oposto do homem justo é o indivíduo que exerce sua deficiência moral tanto em
relação a si, como em relação aos seus amigos, este é o pior de todos os homens. É por isso
que a virtude da justiça é completa, parte inteira da virtude mais nobre.
Segundo Aristóteles a justiça pode ter diferentes intenções. Fazer justiça pode ser entendido como: dar a cada um o que lhe é devido; não violar a lei e realizar a igualdade. Já a
acepção mais generalizada de justiça seria cumprir a lei.
Aristóteles elenca diferentes tipos de justiça. A mais comum é a justiça distributiva ou
equitativa, que consiste em estabelecer uma igualdade de proporções entre as razões. Temos
3
Aristóteles, Ética a Nicômaco, Martin Claret, p. 105
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também a justiça corretiva, nela se recorre ao juiz, como uma espécie de justiça animada, ele é
um intermediário entre os indivíduos e as cidades-Estado.
Já a justiça política consiste na virtude instituída pela polis, por convenção, mas também possui uma parte natural. A parte institucional ou legal é formada por prescrições e decretos. Neste caso, a virtude consiste no valor atribuído pelas convenções históricas e culturais
de uma determinada época. Sendo assim, podemos reconhecer que o valor em determinada
época e lugar não irá coincidir com a justiça convencionada por outra época e lugar.
Por exemplo, a pena de morte é aplicada na China por crimes que aqui no Brasil poderiam ser considerados culposos, ou seja, sem intenção de praticar o mal. Com o crescimento
populacional da China a pena de morte hoje é uma forma de manter a ordem, a disciplina e o
controle populacional. Sendo assim, os valores convencionados por um país são relativos,
dependendo das circunstâncias históricas, econômicas, políticas e sociais.
Mas se o homem para ser justo deve fazer o que a lei ordena, o que devemos fazer?
Aristóteles afirma que a lei prescreve uma maneira de viver, orientando-nos para atitudes virtuosas e nos desviando dos vícios.
Mas nem sempre o equitativo é o justo conforme a lei, ele pode ser apenas um corretivo da justiça legal. A força motriz que irá direcionar para a decisão equitativa, na justa medida
e proporção será prhonesis, ou prudência. Tal disposição pode se transformar em hábito –
hexis, uma disposição estável, gradativa e permanente, ou uma potência para agir. Tal disposição deve atingir tanto os atos universais como os particulares.
Ora sendo a ética uma razão prática, a prudência só poderá ser adquirida através do
constante exercício da ação, mediada pela razão, pelo discernimento e pelo ajuste de nossas
atitudes para o meio termo, o equilíbrio, a justa medida, alcançando finalmente a justiça, a
prudência em nossas ações.
4.
A amizade
A amizade é, pois, uma virtude extremamente necessária à vida. Mesmo que possuamos diversos bens, riqueza, saúde, poder, ainda assim, não será suficiente para nossa realização plena, pois nos falta a essencial e indispensável amizade. Na ética aristotélica, quanto mais
influência e poder manipular um homem mais necessidade ele terá de ter amigos. A justiça e a
amizade possuem os mesmos fins, mas considera-se a amizade superior a justiça, pois a justiça
é utilizada para contornar nossos atos em relação ao próximo que não conhecemos. Com os
nossos amigos não precisamos de justiça, pois a natureza da amizade nos é completa, como
mais autêntica forma de justiça.
De acordo com a proporção da faixa etária de cada indivíduo, a amizade apresentará
uma função específica. Para os jovens ela ajuda a evitar o erro, para os mais velhos serve de
amparo para as suas necessidades e suprime as atividades que declinam com o passar dos
anos, porque dois que andam juntos são mais capazes de agir e pensar.
Sua utilidade se estende ainda mais, ela mantém cidades unidas, pois assegura a unanimidade e repele o faccionismo. Por conta disso, afirma Aristóteles:
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A amizade não é apenas necessária, mas também nobre, pois louvamos os
homens que amam os seus amigos e considera-se que uma das coisas mais
nobres é ter muitos amigos. Ademais pensamos que a bondade e a amizade
encontram-se na mesma pessoa.4
A condição necessária e basilar para se formar uma amizade se dá pelo conhecimento
de uma a outra pessoa que desejam entre si reciprocamente o bem. Assim como a condição
específica para ser objeto de amor é ter um caráter bom, agradável e útil.
Acrescenta Aristóteles que deve existir mais de uma forma de amizade, neste sentido
apresenta três espécies de objetos de amor: o que é bom, ou o agradável, ou útil.
Destes três objetos nascem três espécies de amizade. Encontra-se em situação de superioridade aquela que é motivada pelo bem, pois é duradoura. Enquanto a agradável está relacionada aos jovens e a terceira parece existir principalmente entre as pessoas idosas, pois nesta
idade buscam não o agradável, mas o útil. Nestes tipos de amizades as pessoas buscam seus
próprios interesses para terem alguém que lhes proporcionem prazer ou alguma utilidade. Não
ama o amigo por ele mesmo, mas na medida em que ele pode proporcionar algum bem, utiliza
a amizade para conseguir outra coisa, de modo que o amigo é tido como um meio; não como
um fim. O verdadeiro amigo quer as coisas para as pessoas a quem ele ama, o amigo por acidente as quer para si.
Segundo Aristóteles, o requisito essencial para a amizade é “a consciência, a qual só é
possível se duas pessoas são agradáveis e gostem das mesmas coisas”. Entretanto, se a ausência é demorada parece provocar o esquecimento da amizade.
A amizade perfeita é aquela que existe entre homens que são bons e semelhantes na
virtude, ou seja, há a reciprocidade de caráter e de objetivos, consequentemente portará a tendência de ser perene. Sua exigência peculiar resume-se em tempo e intimidade e a verdadeira
amizade é invulnerável a calúnia.
Há uma outra espécie de amizade que envolve a desigualdade entre as partes, por exemplo, a amizade entre pai e filho, entre velho e jovem, entre marido e mulher, e em geral a
amizade entre quem manda e quem obedece. Como tornar proporcional a amizade entre os
desiguais?
São consideradas amizades acidentais aquelas que se fundamentam no interesse derivada do amor a utilidade e não ao outro por si mesmo, assim elas são facilmente capazes de se
fragmentarem quando uma das partes cessa de ser agradável ou útil, pois existia apenas como
um meio para se chegar a um fim.
Já que a igualdade é característica essencial da amizade e que ela exerce os mesmos
atos também na justiça, aquele que for melhor para com o outro deverá receber mais amor,
para que assim estabeleça-se a proporção.
Por outro lado, ser amado é algo bom em si mesmo, e por isso parece ser melhor ser
amado que receber honras, consequentemente a amizade parece ser desejável por si mesma.
4
Aristóteles, Ética a Nicômaco, Martin Claret, p. 173
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Mas a natureza da amizade consiste muito mais em amar do que ser amado, por exemplo, o
amor de uma mãe pelo seu filho. É dessa maneira que pessoas desiguais podem ser amigas,
sendo possível a igualdade entre eles. Desta forma, a amizade que se forma entre contrários
visa à utilidade.
Em resumo, podemos concluir, a partir de Aristóteles, que “amar assemelha-se à atividade, e ser amado à passividade: amar e ter várias formas de sentimentos amistosos são atributos dos homens mais ativos”.5
4.1. A amizade x benevolência
A amizade pode cessar quando a reciprocidade de interesses é desvinculada. Esses
fatos ocorrem quando o amante ama o amado visando o prazer, e o amado a utilidade, e nenhum deles possuem as qualidades que deles se espera. Ou seja, nenhum deles amava o outro
por si mesmo à vista que suas qualidades não eram duradouras.
Nesse sentido, os desentendimentos ocorrem quando o que as pessoas obtêm é algo
diferente daquilo que desejam.
Enquanto a amizade envolve a intimidade, a benevolência pode surgir subitamente,
como acontece com os adversários em uma competição. Assim, ela pode ser o início de uma
amizade, do mesmo modo que o prazer com os olhos é o início do amor. Logo, podemos
sentir benevolência por uma pessoa, na medida em que o tempo trará a intimidade para ratificar o amor.
Assim, afirma Aristóteles:
Por uma extensão da palavra amizade, poderíamos dizer que a benevolência
é a amizade inativa, não obstante, quando se prolonga e chega ao ponto da
intimidade, ela passa a ser amizade verdadeira. Mas não se trata da amizade
baseada na utilidade ou no prazer, pois a benevolência não se manifesta em
tais condições.6
5. Conclusão
Através deste estudo podemos perceber que a postura de Aristóteles além de ser ética,
procura atualizar o homem com a natureza da pólis, por conta disso, ele deve dominar a natureza, como também a cidade. Essa legitimação se edifica quando ele é capaz de agir conforme
suas virtudes interagindo com a sociedade, de forma justa, amável, amiga e política.
Logo, a Ética a Nicômaco se apresenta como a legitimação do Estado grego como
uma instituição organizada. Nesse sentido, o homem será um ser sociável que está envolvido
com a política e deve constituir relações amigáveis.
São definições aristotélicas, caracterizadas por valores como a unanimidade, a responsabilidade, a companhia, o convívio que se compromete com o bem comum e, caracterizam o
5
6
Aristóteles. Ética a Nicômaco, Martin Claret, p.206
Aristóteles. Ética a Nicômaco. Martin Claret. p.203
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prazer perfeito que é durador, recíproco, uma atividade de partilha entre outras determinações
das virtudes que é agradável e aprazível em si.
No livro VI, Aristóteles louva a justiça como condição necessária para si e para os outros, justificando, então, sê-la a justa medida nas ações dos homens. É através dela que se distribui os bens, as vantagens, os ganhos, as perdas. Nesse sentido, sua utilidade perpassa uma
condição meramente disciplinadora, para ser o argumento ético capaz de estabelecer o equilíbrio na sociedade. De modo mais existencial, Aristóteles define: ela é vista como disposição de
caráter que possibilita as pessoas a fazerem o que é justo.
No livro X, capítulo, tem um conceito mais triunfante da justiça, como a plenitude das
ações do homem. Dessarte, encontramos a conexão entre prazer e justiça. Para Aristóteles, o
prazer jamais pode ser separado das atividades racionais. Embora exista o prazer de maior e
menor grau. Como as atividades são diferenciadas com respeito à bondade e à maldade, e uma
é digna de escolha, enquanto a outra deve ser evitada. As que são escolhidas é porque são justas, então, entre eticidade e prazer existe uma ação do homem justo. Sem nos esquecermos
que todas as atividades nobres e dignas têm o seu próprio prazer. Mas os prazeres que acompanham as atividades são mais próprios destas do que os desejos.
Aparece no pensamento de Aristóteles, mais uma característica de prazer como algo
próprio do homem como ser pensante, ser racional, onde as atividades efetivadas na sociedade
grega passam pela esfera da eticidade, tornando os homens melhores, com uma vida boa e
feliz.
De forma psicanalítica, a ideia de justiça já se remete à lei, transportando pressupostos
de disposição repressora. Contudo, além da lei instituída pelo Estado temos as leis naturais
que portam de maneira intrínseca no íntimo de cada indivíduo, ou seja, gravado na consciência. Portanto, inserido na mente das pessoas o prazer complementa a convivência na sociedade. Por isso, existe a diferença entre prazer e vício.
Essa relação entre prazer e justiça é uma ligação voluntária. Assim como a justiça serve
para contrapor a injustiça na convivência mútua entre os homens. Por ausência de justiça se
determina a lei para justificar o justo e condenar o injusto como uma necessidade para o equilíbrio da sociedade. Porque a lei é universal e não depende da racionalidade, ou seja, justa e
para todos os homens. A mudança somente se processa através dos critérios que interagem de
acordo com o lugar, nesse sentido, as leis humanas.
No entanto, as leis naturais são baseadas nos próprios princípios universais naturais
existentes em qualquer lugar. Não dependem da racionalidade humana, nem das convenções
socais.
O ponto em comum que se estabelece à relação entre ambos é o bem. A ordem do
prazer. Por isso, o prazer na medida em que deve ter um lugar em nossa vida deve ser regrado
pela justiça, pela razão, pela inteligência. Dessarte, ele é, então, a consequência e não princípio
do bem moral, porque a vida é regulada por uma ordem ideal
Ela, é ao mesmo tempo, o fundamento da alegria e do prazer. Não é o prazer que
proporciona o bem, antes é o bem que causa o prazer, trazendo consigo um sentimento de
algo agradável.
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Logo, podemos concluir com Aristóteles:
Também o fato de um amigo ser diferente de um adulador parece mostrar
com toda a clareza que o prazer não é um bem ou que os prazeres diferem
em espécie, pois se acredita que o amigo busca o nosso convívio visando o
bem e o adulador visando o nosso prazer, e um censurado por sua conduta,
ao passo que o outro é louvado, partindo do princípio que os dois buscam o
nosso convívio com propósitos distintos.7
Contudo, o que fundamenta o sentido de felicidade na vida comunitária é a justiça.
Apesar disso, as pessoas de um modo geral costumam denominar bem aquilo que parece ser
para elas, mas na verdade, não são: a saúde, a beleza, a riqueza, as vantagens do corpo, a posição e o poder conducente à satisfação de todos os desejos, uma vida longa, mesmo imortal, se
possível fosse.
Deus é universal e fonte de todos os prazeres. Na verdade, não só como fonte, mas
também como origem do bem.
Consequentemente, o prazer e a justiça se congregam e se absorvem na totalidade do
homem. Porque ele fazendo justiça tem prazer em cumprir e fazer com que os outros cumpram, isso também é prazer.
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7
Idem, capítulo X, p. 220
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12. UMA PERSPECTIVA DO GROTESCO,
DO BELO E DO SUBLIME
A PERSPECTIVE GROTESQUE, THE BEAUTIFUL AND THE SUBLIME
Maria Alexandrina de S. Rodrigues*
Resumo. Este artigo em como objetivo apresentar uma visão do Grotesco e do
Belo a partir da ideia dos contrários e da necessidade do ser humano de ser ver
sempre no outro ou em algo que julgue bom para ele. Assim, o Grotesco e o Belo
serão apresentados de forma a conduzir o leitor na compreensão de seus
verdadeiros sentidos.
Palavras-chave. Belo – Feio – Bem – Mau
Abstract. The purpose of this article is to present a vision of the Grotesque and
the Beautiful starting from the idea of the opposites and from the human beings'
necessity of always seeing themselves in one another or in something which they
consider as being good. Therefore, the Grotesque and the Beautiful will be shown
in a way to lead the reader to an understanding of their real meanings.
Keywords. Beautiful – Ugly – Good – Evil
*Mestra em Literatura Brasileira. Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo - Universidade de Brasília. Professora de Literatura no Colégio Militar de Brasília. Contato: [email protected]
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01 – Introdução
Diante de tudo que temos ao nosso redor, naquilo que pensamos ou mesmo naquilo
que somos, estão registrados os contrários: feio X bonito ou Belo X Grotesco. A linguagem
pode mudar, mas o sentido permanece, o quê há no feio que amedronta, mas atrai? E no Belo
que, muitas vezes também amedronta, mas atrai menos?
É constante a procura por definições sobre o Grotesco e o Belo. Entretanto, esses
vocábulos podem assumir o mesmo significado. Basta observarmos uma obra de arte em que
alguma atrocidade tenha sido retratada. Nesse momento a visão do belo é o feio. Este, por
exemplo na pintura, assume a dimensão do Belo devido à leveza, as cores, enfim a beleza que
o artista atribui ao seu trabalho.
Nesse sentido, a arte parte do Grotesco e assume seu contrário, o Belo. Entretanto, o
ser humano procura sempre o Belo, não o Feio e esta é a questão contemporânea. Como
mediar os contrários e atingir o Belo, a perfeição, o bem?
02 – Sobre o Grotesco
O termo tem origem no Renascimento, do italiano grotta (gruta), seguido do sufixo
formador de adjetivo – esco, o grottesco. Também aparece como crotesque ( neste caso a
derivação é do latim crypta que, por sua vez, vem do grego Kryptós) em francês, em autores
como François Rabelais e Montaigne. A palavra inaugural do estilo grotesco surge a partir das
escavações feitas em 1480, em Roma, no local onde hoje é o parque de Oppius. Vitrúvio,
arquiteto romano, autor do Tratado de Arquitetura, já havia deixado o documento mais importante sobre
o impacto dos grotescos da Dumus Aurea, ao relatar sobre as pinturas de monstros nas paredes e de
talos no lugar das colunas.
Visualização do quimérico, do monstruoso, o grotesco escolhe da Natureza os répteis
e animais noturnos (víboras, aranhas, sapos). Tem preferência pelo crânio humano, pelo
macabro em geral. Traduz a angústia não perante a morte, mas perante a vida, o que gera a
destruição de toda ordem ou orientação no tempo e no espaço.
Pode-se afirmar que o belo e o feio são relativos aos tempos e às culturas, entretanto,
desde sempre tentou-se definir padrões em relação a um modelo estável.
Na atualidade, o termo grotesco assume o sentido de bizarro, extravagante, caprichoso,
mau gosto, irregular e, mesmo, ridículo. Os artistas costumam denunciar em suas obras
atrocidades de nossa sociedade e para isso utilizam como recurso o feio. Nesse sentido, o feio
revela a presença do mal. Entretanto, o terror é apreciado num filme com excitação e interesse
por muitos. Há pessoas que relaxam diante de um bom filme de terror, mas também
reconhecem o sentido de emoções estéticas diante de uma bela paisagem ou de uma pessoa
que desperte algum interesse mais profundo.
Para melhor compreensão do conceito de beleza na arte, parece importante partir do
grotesco, uma vez que o contrário é necessário para que se entenda o outro, no caso, o Belo.
Ao examinar os sinônimos de belo e feio tem-se que belo é aquilo que é bonito, prazeroso,
atraente, tudo que se relaciona à beleza, ao bem. O feio é aquilo que é repelente, horrendo,
asqueroso, todo o universo voltado à repulsa, ao mal.
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Nesse sentido, Kayser define o grotesco: “O grotesco é “sobrenatural” e “absurdo”,
isto é, nele se aniquilam as ordenações que regem o nosso universo.”1
O ser humano, em geral, não procura o feio, mas o belo. Entretanto, como caracterizar
o Belo, sem a ideia do feio? Numa obra de arte, por exemplo num texto escrito, a criação não
se apresenta inteiramente bela. O feio existe ao lado do belo numa descrição, por exemplo, o
grotesco está contido no verso da visão sublime. O mal desaparece, numa determinada
personagem para que o bem, o belo, a contagie e a ideia que representa a verdade vença a do
mal e, portanto, a do grotesco.
A ideia do bem acima do mal contagia também o leitor e pode, se for verdadeira,
mudar o olhar de muitos, humanizar as pessoas e, ainda, ser responsável, até mesmo, pela
questão educacional, cultural, de uma determinada camada social.
Para compreender melhor isso, basta pensar na realidade brasileira. Nesta sociedade,
poucos são os que têm acesso ao teatro, à leitura de poesias ou mesmo a qualquer exposição
artística.
Assim, as pessoas não assistem às peças, não leem um poema e não veem uma obra
artística com seus próprios olhos, mas assistem, apenas, ao resultado do olhar dos outros, pela
telinha da televisão. Ou ainda, numa conversa informal ouvem comentários, críticas sobre
assuntos importantes que surgiram numa novela ou na política do país. Em ambos os casos, as
pessoas assumem posturas que não são as suas e, de certa forma, entendem que suas próprias
opiniões não são importantes para ninguém, nem mesmo para elas.
Nada contra a televisão, mas contra a forma de manipulação que ela exerce nas vidas
de muitas pessoas. A arte modifica o ser, apresenta um grande poder de transformação
cultural que é responsável pela noção de mundo sensível, divino, daquilo que está para além
das coisas naturais. Entretanto, para que esta modificação ocorra, efetivamente, nas pessoas, é
necessário que a imaginação seja, de alguma forma, aguçada. A pessoa precisa aprender a
pensar por si mesma, elevar-se para perceber a arte em sua própria vida.
Trata-se de acontecimentos para os quais a natureza não tem explicações e que só
ganham vida na arte trágica. Essa questão não pode ser percebida, nem avaliada a partir do
olhar de outrem, como ocorre na televisão, mas é preciso que as pessoas vejam por si mesmas
uma encenação trágica para que possam aferir, compreender o bem e o mal dentro de si e, a
partir desses conceitos, autoavaliar-se.
Há uma relação dominador (a mídia) e dominado (as pessoas) em que o primeiro
prevalece, mas não tem força suficiente para ensinar o bem, talvez espalhe muito mais o mal
entre os conceitos ditos modernos que encobrem os sentimentos mais fortes ou os mais
verdadeiros que sobressaem nas pessoas.
Sempre que ocorre algum ato extremamente feio e a mídia o apresenta, principalmente
pela televisão, é comum que outros atos iguais ocorram em lugares diversos. Por que isso
ocorre? Fica clara a força do grotesco e da mídia que o destaca, como se precisasse, cada vez
mais desse ato para afirmar-se diante de uma camada expressiva da sociedade. Assim, as
pessoas, acostumadas a acreditar no olhar de estranhos, copiam e cometem a mesma
atrocidade que a televisão insiste em mostrar de forma enaltecedora. O grotesco, segundo a
1KAYSER, Wolfgang, O Grotesco, p.30
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sensibilidade de F.T.Vischer, mostra “um caráter macabro, alheado e desumano”,2 conforme o
comportamento social acima descrito.
Entende-se que a mídia exerce um importante papel hegemônico na questão política,
social, econômico-cultural e ideológica numa sociedade. É preciso, portanto, enfatizar e
reestruturar a relação, no caso citado, entre o domínio público (a televisão) e o privado (seres
sociais). Muitas vezes, o assunto é interpretado e mostrado pela mídia de forma exagerada ou
com ênfase intencional, tendo em vista levar a população a maior comoção e, evidentemente, a
promoção do meio de comunicação .
Há que se alertar a população, pois tudo que a televisão mostra é como se atingisse
diretamente determinadas pessoas, que não são habituadas a pensar sobre o que veem, mas a
imitar as cenas que lhes são apresentadas e a agir por instinto. Essa relação televisão/público
precisa ser melhor questionada e trabalhada na sociedade brasileira.
Caso as pessoas fossem melhor educadas em nossa sociedade poderiam observar que
estamos cercados por espetáculos horríveis em nosso cotidiano. Vemos ou sabemos de
crianças que morrem de fome, ou que saciam sua fome no lixo, ou ainda aquelas que morrem
por total falta de atendimento médico-hospitalar. É fato, que esses e outros casos deploráveis
são reconhecidos como feios e não possuem valores estéticos, nem causam prazer.
Entende-se que se as pessoas tivessem mais acesso à arte poderiam avaliar melhor a
representação do feio e compreenderiam a deformidade como drama humano porque a arte
tem a ver com a Filosofia, é para ser pensada. Haveria, portanto, uma chance para que as
pessoas pudessem desenvolver suas próprias ideias e se auto afirmassem diante de si e da
sociedade. Enfim, poderá ocorrer, também, que esse expectador, diante do jogo cênico,
esqueça-se de estabelecer relações entre sua própria vida e apenas ria mediante a revelação do
ato animalesco na caricatura humana.
A arte existe dentro de um sistema e só assim é reconhecida como obra de arte e por
isso é capaz de emocionar e modificar o ser humano que demonstra a todo instante sua falta
de amadurecimento intelectual.
Segundo Victor Hugo, o grotesco existe na forma de comédia. Então, o feio está na
arte e é capaz de causar muitos risos, no teatro, ao criar o disforme e o horrível que gera o
cômico. Na literatura, o escritor, com sua imaginação, cria demônios pavorosos, sombras que
rondam pessoas e as amedrontam. Enfim, se essa imaginação fosse questionada como
realidade, muitas paródias de seres humanos estariam evidentes e aquilo que amedrontava,
inicialmente, poderá ser visto de outra forma, a partir de um olhar mais direto e real e sugerir
que nem tudo que ameaça é verdadeiro.
Nesse sentido, o Sublime é visto a partir do grotesco, da representação do feio, que
não cumpre sua função de amedrontar, de abalar seus leitores ou expectadores, no sentido de
que esses modifiquem seus pensamentos. A citação de Kayser confirma essa ideia: “o humor
despedaça a realidade, inventando as coisas mais inverossímeis, reunindo à força tempos e
2 In O Grotesco, op.cit.
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objetos separados, alheando tudo o que existe; rasga o céu e mostra 'o mar imenso do vazio'; é
a expressão da discrepância entre o homem e o mundo, é o rei do inexistente”.3
É compreensível que o grotesco exista de muitas formas, e seres representando bestas
humanas sejam mais frequentes na sociedade. Os seres puros, que representam os encantos, a
beleza são cada vez mais escassos. Seriam necessárias muitas Julietas e Belas, heroínas de
Shakespeare e do conto da escritora Leprince de Beaumont, respectivamente, para espalharem
mais encantos, ternura, beleza, que os grotescos. Enfim, todas as graças dos espíritos dessas
personagens não seriam suficientes para libertar este mundo de todas as injúrias, de todos os
ridículos e de todas as desumanidades que se observam diariamente.
Victor Hugo descreveu a criação do feio na arte e sua propagação pela humanidade
como algo necessário, pois a ideia do feio faz com que as pessoas pensem, avaliem mais a si
mesmas e a tudo que têm ao redor e procurem a harmonia com a Natureza como objetivo
relevante.
O belo tem somente um tipo; o feio tem mil. É que o belo, para falar
humanamente, não é senão a forma considerada na sua mais simples relação,
na sua mais absoluta simetria, na sua mais íntima harmonia com nossa
organização. Portanto, oferece-nos sempre um conjunto completo, mas
restrito como nós. O que chamamos feio, ao contrário, é um pormenor de
um grande conjunto que nos escapa, e que se harmoniza, não com o
homem, mas com toda a criação. É por isso que ele nos apresenta, sem
cessar, aspectos novos, mas incompletos.4
Parece correto afirmar que, nesse sentido, a vida é um bom exemplo de grotesco e de
belo da seguinte forma: o nascimento simboliza a beleza, a incorporação da alma, o divino, de
forma geral as pessoas esperam com ansiedade e alegria o nascimento. Já o desenrolar da vida
presume a chegada da morte, porque as pessoas, de forma geral, não se consideram felizes por
toda a sua vidas e muito menos esperam, com alegria, a morte. Nessa visão toda a vida estaria
baseada no feio, pois a vida representaria a expectativa para a morte, fato contraditório, pois a
vida pode representar o Belo, muitas vezes. O fato é que não se pergunta para alguém se quer
nascer e nem quando deseja morrer e todos devem seguir com essa contradição.
A questão é que por mais próximo que se possa estar do grotesco e, portanto da
dissolução da lógica, o sonho pode surgir como fonte criadora e os assuntos enfatizados na
forma do grotesco conduzirem para outros domínios que não os do grotesco, mas o da
'descoberta'.
Todo o drama pelo qual o homem passa, todas as dores, as tristezas, enfim tudo o que
contrarie a sua alegria de viver, de alguma forma, é representado pelo feio, e seu contrário está
na alegria que existirá após algum sofrimento. Nesse instante, o belo será criado e a alegria do
momento de renovação deverá ser o norte do homem que será autor de própria obra de arte
que será mensurada pelo seu gosto. Sobre a questão do juízo de gosto, Kant em sua 'Analítica
do Belo' discorre:
Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo
3 O Grotesco, op.cit. p. 135
4 HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime, p. 36
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entendimento ao objeto em vista do conhecimento, mas pela faculdade da
imaginação (talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao seu sentimento
de prazer e desprazer. O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de
conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se
entende aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão
subjetivo.5
Ressaltamos que nesse momento não iremos nos ater à questão paradoxal existente
entre a noção de 'subjetividade' e de 'gosto' aqui estabelecida por Kant, por não se tratar de
nosso foco de discussão.
É preciso compreender que a Ideia representa o objeto da arte e que a arte existe
acima do tempo; não se detém a relações, nem à razão. A Ideia é apreendida somente pela
contemplação que exige a pura disposição objetiva que move o gênio, isto é a Vontade.
A obra de arte é concebida no momento em que o gênio, em sua criação, excede sua
própria faculdade do conhecimento, esquece de si próprio. É compreensível que a pessoa ao
entender uma obra de arte precise compartilhar com o gênio um pouco, um mínimo de sua
Vontade. Isso quer dizer que nem todos terão capacidade para compreender arte e, claro, nem
o próprio mundo em que vive. É preciso uma fagulha de genialidade para entender a Ideia que
a arte expõe.
Na concepção de Schopenhauer, o trágico tem como base o conceito de verdade. A
Vontade para esse filosófico, é “a coisa em si, a fonte de todo o fenômeno”, é unívoca.
A partir dessa ideia de Vontade, explica-se a questão sobre as ações imitadoras de uma
outra realidade trágica, trazida ao público pela televisão ou mesmo pelos desencontros da vida.
O que ocorre nesses casos é a objetivação da Vontade, que é destituída de conhecimento e
consiste apenas em um impulso cego, incontrolável de praticar determinados atos. Trata-se de
conhecimento adquirido por meio do mundo da representação, da visão de outrem sobre um
determinado assunto.
Fica clara, então, a influência do grotesco na arte e na essência do próprio ser humano.
Há predominância do mal sobre o bem, pois na natureza e na vida, tudo nasce, transforma-se
e morre.
Cabe às pessoas, de forma geral, meditarem sobre sua existência, modificarem-se e
rirem de suas próprias tristezas ou quaisquer sofrimentos que lhes acometam. O grotesco é,
pois, a estrela de todo drama apresentado a partir de nossa própria existência.
O trágico aparece como a solução para um determinado problema, ou para o próprio
sofrimento. Assim, a Arte do Feio apresenta-se tão Bela quanto a Arte do Belo. Determinados
artistas e escritores possuem espíritos mais dionisíacos e sentem-se atraídos pelo grotesco,
pelos elementos ligados à feiúra e à desordem da vida. Essa atração ligada a uma revolta diante
dos acontecimentos faz com que artistas produzam Artes Belas a partir do Feio.
03 – Sobre o Sublime
Foi Longino, autor da época alexandrina, o primeiro a tratar sobre o Sublime. Ele
considera o Sublime uma expressão de grandes e nobres paixões que elevam os sentimentos
5 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo, pp.47/48.
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do sujeito. O Sublime anima a criação artística e leva os ouvintes ou leitores ao êxtase. O
Sublime é, portanto, um efeito da arte. Etimologicamente, sublime vem do latim sublime e
significa aquilo que é dotado de uma elevação excepcional. Tem relação com estilo nobre, que
se observa nas produções literárias e artísticas de relevo e brilho fora do vulgar. Algo que
atingiu grande perfeição intelectual ou material; grande, majestoso, magnífico.
Edmundo Burke contribui para explicar o Sublime com a obra Pesquisa filosófica sobre a
origem de nossas ideias do Sublime e do Belo em l759. Ele atribui a questão do Sublime à capacidade
de sentir do ser humano: “... é aquilo que produz a mais forte emoção que o espírito é capaz
de sentir”. Burke opõe o Belo ao Sublime. A Beleza é acima de tudo uma qualidade objetiva
dos corpos, “ graças à qual eles despertam o amor” e o Sublime é “tudo aquilo que pode
despertar ideias de dor e perigo”. Nesse sentido, o ser humano, por meio dos sentidos, capta
as ideias da Beleza, típicas de graça, delicadeza, pureza e as de vastidão, infinito desencadeadas
por paixões como o terror e a aspereza que prosperam na obscuridade. O Sublime representa
o não-finito, a dificuldade, a aspiração a algo sempre maior.
Em Kant, o Sublime nomeia experiências como tempestades violentas ou edifícios
enormes que parecem subjugar-nos. Kant nota que a experiência da subjugação deveria ser
acompanhada pelo sentimento de medo ou, pelo menos, de desconforto. No entanto, o
sublime pode ser uma experiência agradável que acomete a mente das pessoas. Ele apresenta
também a oposição entre o belo e o sublime: a percepção do belo depende do entendimento,
a do sublime, da razão. Na Crítica da Faculdade do Juízo, ele diz que “sublime é o que somente
pelo fato de poder também pensá-lo prova uma faculdade de ânimo que ultrapassa todo o
padrão de medida dos sentidos”. Parece complexo apreender um claro conhecimento do que
seja o Sublime. Em seu tratado, Longino refere-se ao Sublime na natureza do homem, em sua
empolgação pelo verdadeiro. Sublime, no sentido de encher-se de orgulho, de alegria por algo
que contempla.
Infere-se daí que se um leitor, diante de um texto literário, elevar sua alma, refletir além
dos significados das palavras, tiver pensamentos sobre algum outro assunto, relacionado ao
tratado no texto, a elevação total para um plano diferenciado de seu aqui e agora, a questão do
sublime terá sido alcançada. Entretanto, se o leitor delimitar-se à compreensão dos
significados que as palavras assumem no texto, sem reflexão, sem necessidade alguma de
elevação, o tempo e o espaço serão os mesmos, nada sofrerá alteração, nenhuma reflexão
sobre quaisquer assuntos surgem, a leitura pode não ter atingido, verdadeiramente, o leitor ou
este pode, por qualquer outro motivo, não ter compreendido o sublime no texto.
Para Longino, um texto será Sublime quando agradar sempre a todos. E, para que isso
ocorra, o texto precisa ser escrito numa linguagem Sublime, ou seja, o escritor carece,
essencialmente, do que Longino chama de “ o dom da palavra” para exaltar pensamentos
sublimes e transmitir muita emoção inspiradora ao texto. Saber usar bem as palavras e ungi-las
de emoção constitui um dom inato a poucos. Esses seriam os sábios, os gênios porque eles
trazem uma obra de arte com energia concentrada, em que passado, presente e futuro, num só
momento, dão juntos uma resposta a questões levantadas pelo leitor. Ainda de acordo com
Longino, o Sublime também pode ser adquirido pela prática que irá moldar imagens a partir
do trabalho com as palavras, no caso do texto.
... duas nascentes do sublime são na maior parte inatas; já as demais se
adquirem também na prática, nomeadamente determinada moldagem das
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figuras (estas talvez sejam de duas ordens, as de pensamento e as de palavra)
mas, além dessas, a nobreza da expressão, da qual, por sua vez, fazem parte a
escolha dos vocábulos e a linguagem figurada e elaborada. A quinta causa da
grandeza, que encerra todas as anteriores, é a composição com vistas à
dignidade e elevação. 6
Parece que a ideia de Longino com relação a necessidade de uma “composição com
vistas à dignidade e elevação” pode ser compreendida pela consciência moral que estabelece o
valor ético de uma ação. Esse valor não depende dos seus resultados externos, mas da vontade
interior que lhe dá origem e deve respeito à lei moral. Não há, portanto, interferências de
quaisquer tipos.
A questão que Longino discute é como e até que ponto se pode estimular os dons
naturais de alguém. O problema central disso está na relação da natureza (dons de alguém)
com a arte (técnica, elaboração de meios e regras). Na percepção dele há somente duas formas
de fazer-se grande: pela natureza e pela arte. Da união entre natureza e arte surge um gênio e
dessa articulação, uma obra de arte Sublime. No caso dos escritores, saber usar bem as
palavras e ungi-las de emoção constitui um dom inato a poucos, esses seriam os Sábios.
Longino ainda relaciona a questão do Sublime à oratória não ao texto do discurso,
está centrado nos efeitos que o discurso causa nos ouvintes. Não se trata, neste caso de
contemplação, o Sublime atinge o ouvinte.
Dessa forma, um grande orador não será mediano, mas grandioso, imortal no sentido
de que suas frases sublimes atingirão pessoas, ouvintes de sentimentos elevados.
Modernamente, esse conceito sublime de oratória continua muito forte na política
brasileira. Os melhores oradores políticos são aqueles mais votados, considerados excelentes
por grande parte da população, independente de sua moral ou de sua ética demonstradas ao
longo de suas vidas. O importante é o tom com que ele fala naquele momento, a verdade da
voz desse político ecoa nas pessoas como uma promessa de um futuro promissor. Há um
sentimento de atração e de harmonia que domina e ultrapassa a sensibilidade do ouvinte.
Essa ideia de 'verdade' refere-se ao fato das promessas agradarem a uma grande
camada da população por que atingem a sensibilidade de muitos, a partir da comoção de
alguns. Kant, ao descrever essa complacência, remete-nos à ideia do belo como a melhor
forma de ação, de aceitabilidade:
De cada representação posso dizer que é pelo menos possível que ela (como
conhecimento) seja ligada a um prazer. Daquilo que denomino agradável
digo que ele efetivamente produz prazer em mim. Do belo, porém, se pensa
que ele tenha uma referência necessária à complacência. Ora, esta
necessidade é de uma modalidade peculiar: ela não é uma necessidade
objetiva teórica, na qual pode ser conhecido a priori que qualquer um sentirá
esta complacência no objeto que denomino belo; nem será uma necessidade
prática, na qual, através de conceitos de uma vontade racional pura7.
6 Aristóteles, Horácio, Longino. A poética clássica, pag. 77
7 Crítica da faculdade do juízo, op.cit.p.82
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Pode-se compreender que a antinomia vivida por quem se deixa ludibriar por políticos
imorais remete-nos a uma consciência estética que incita à reflexão. Então, desde que
aceitemos refletir encontraremos a verdade em nós mesmos, essa seria a questão subjetiva do
gosto kantiano.
Schopenhauer, em sua Metafísica do Belo, descreve o Sublime como o momento de
contemplação do Belo, o deleite, o prazer do espectador diante do objeto. O espectador estará
num estado de elevação sobre si, num instante em que nenhum outro conhecimento ou sua
própria vontade poderá interromper, pois se isso ocorrer, ele não atingirá o Sublime.
Nesse momento, o homem será puro sujeito do conhecer e atingirá sua plenitude, o
momento de êxtase da criação artística, o tempo e o espaço estão suspensos e o instante da
concepção surge. Trata-se de uma modificação através do tempo, um instante em que se pode
sentir todo o tempo e não somente o instante presente.
Os sentimentos do Sublime e do Belo são esteticamente objetivos, não há vontade
própria do ser, ou seja, o indivíduo cedeu lugar para o sujeito puro do conhecer. Esse irá, a
partir da contemplação do objeto, conhecer sua Ideia, distante da vontade, o que permitirá ao
sujeito o conhecimento do Belo.
Já o Sublime, o estado do conhecer puro, é percebido pelo ser consciente que diante
de relações conhecidas como desfavoráveis do objeto observado com a vontade, consegue
elevar-se e se relacionar com esse objeto. Essa elevação deve ser conquistada e mantida com
consciência pelo ser.
A Ideia que o objeto desperta no ser está além da razão dele. O sentimento do Sublime
destaca-se para elevar-se além da já conhecida relação homem e objeto contemplado com a
vontade do ser. O fortalecimento dessa relação existente entre o observador e a obra modifica
o Sublime e, então, acontece a passagem do Belo para o Sublime e também o contrário poderá
ocorrer.
No estado sublime o ser apresenta-se tranquilo, apreende as Ideias, está livre e alheio a
tudo que possa sentir ou querer. O Sublime é a experiência do infinito e não existe apreensão
para ele. Isso quer dizer que a apreensão intuitiva tem limite e quando esse limite é forçado,
causa desprazer e ocorre o fracasso da imaginação. Esse é o triunfo da racionalidade no jogo
entre razão e imaginação, porque é a razão que exige da imaginação uma imagem que ela não
pode dar, pelo simples fato de que ela não está contida nas formas. A imaginação transcende
as ideias e vê além do horizonte. O sujeito é determinado e deve dobrar-se diante do infinito,
reconhecer sua pequenez; é o que lhe resta. Ver as coisas a partir do que elas próprias mostram
é a ideia original.
Quando nos encontramos diante de uma cúpula enorme, como a Catedral de São
Pedro, em Roma, o sentimento do Sublime é representado pela percepção do nada advindo de
nosso corpo em face da grandeza do espaço.
Entretanto, é o próprio sujeito quem irá sustentar o conhecimento desse espaço
enorme. As pessoas são grandes ou pequenas devido ao valor cultural e moral que
apresentam. O grande homem não é o que põe como meta sua própria vida, não se direciona
para o individual, para o subjetivo, mas o que é objetivo. Sua meta é o outro, ele empenha suas
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forças para diminuir o sofrimento alheio. Então, alguém é grande caso não sinta vaidade,
quando sua vida e sua pessoa são meios para um objetivo. Schopenhauer concluiu que ser
bom é preferível a ser grande. Em geral, os homens são pequenos e dificilmente serão grandes
porque não trazem em si a essência do que é ser bom.
Nesse sentido, é preciso pensar sobre a questão da cobiça que estimula as pessoas e
entender que o sentimento do sublime surge quando um objeto hostil, de relações
desfavoráveis, torna-se objeto de contemplação estética.
O Sublime não é o objeto, mas uma faculdade da mente. Tanto o Sublime quanto a
imaginação manejam as ideias e estas não são identificáveis, não há como intuí-las, as
faculdades do homem é que irão determiná-las. A satisfação do ser diante do Sublime é
decorrência do livre jogo entre imaginação e razão, vencido por ele.
Para compreender melhor essa explicação, pode-se lançar mão do recurso da
contraposição com o sentimento do Belo. Este gera prazer, pois nele existe a possibilidade da
exposição do conceito e a correspondência a esse conceito, enquanto no caso do Sublime
ocorre o fracasso dessa tentativa.
04 – Sobre o Belo
Michaelis define o vocábulo belo, do latim bellu, com o sentido de beleza; que tem
proporções harmônicas; robusto; vigoroso.
Segundo Schopenhauer, “toda coisa existente é bela” no sentido de que a ideia da
beleza advém da coisa, do objeto, não sofre alterações externas, nem internas do receptor, mas
é o próprio objeto que transmite essa ideia que se apresenta totalmente objetiva.
Dessa forma, o mesmo objeto deverá transmitir esse conceito de Belo a um outro
receptor, entretanto, a visão será única para cada ser, porque a ideia do objeto é uma revelação
que pode apresentar-se diferente, dependendo de suas relações espaciais e, ainda assim ser
Belo. Nesse sentido, a Ideia é aquilo que permanece em toda a concepção do objeto. O
conceito está relacionado com a vontade do sujeito e a Ideia é a manifestação da Vontade do
objeto.
Quando Schopenhauer chama um objeto de Belo, está dizendo que o considera
esteticamente e, então, há duas observações a serem feitas: que a consciência individual do
sujeito não existe, portanto a vontade do sujeito não prevalece e que não se está reconhecendo
o objeto isolado como Belo, mas o que se reconhece nele é a sua própria Ideia.
Nesse momento, não é a consciência do indivíduo que estabelece o conceito de Belo,
mas o puro sujeito do conhecer que cada um traz dentro de si. Pode-se ter certeza disso
quando, diante da obra de arte, o indivíduo não seguir a luz de sua razão, nem sua visão
exterior, mas considerar somente o próprio objeto; então, essa será a visão do Belo na obra.
Assim, um objeto será dito Belo quando sua visão não sofrer restrições por parte do
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observador. Este, nesse momento, não é um indivíduo, o tempo e o espaço não irão interferir,
pois, o que importa no momento é a Ideia pura do conhecer, é o conceito artístico do
observador diante do objeto num dado instante, em que ele se identificará com a genialidade
do objeto.
Em oposição, Kant diz que o conceito de Belo deve vir da representação que a
faculdade da imaginação envia para alguém a partir do objeto. Se o sujeito sentiu prazer diante
do objeto é porque ele é Belo, caso contrário, o conceito, diante do desprazer, será o do feio.
O juízo do gosto é, portanto, estético, contém sensação, é subjetivo, no sentido de que
o sujeito irá lançar mão de suas faculdades mentais para apreender o sentido de Belo. A Beleza
de uma obra independe de todo o interesse sensível ou racional que ela possa despertar
porque essa Beleza não diz respeito ao expectador, mas à própria obra.
Percebe-se, em Kant, que o interesse que alimenta o sujeito do Juízo Estético do Belo
acentua um prazer interior gratuito, desinteressado. Logo, o que move o sujeito a entender um
objeto como Belo não são as características desse objeto, mas o envolvimento de sua
consciência no julgamento do Belo.
Ainda na visão kantiana, há uma Beleza vaga e outra aderente cuja distinção é bastante
válida para nosso objetivo porque influenciará na compreensão artística contemporânea. Kant
considera que a Beleza vaga está ligada às artes abstratas (relativas à arte ou ao artista que se
abstém de representar a realidade sensível), que representam formas puras, destituídas,
portanto, de fins utilitários. Retrata o prazer “puro” do contemplador que não sofre influência
direta do conceito do objeto contemplado. A Beleza vaga está nas flores, em alguns animais,
nos objetos de juízo estético puro. Já a Beleza aderente é assim chamada por que “adere” ao
conceito das coisas representadas na obra. A beleza de uma pessoa ou de um edifício é
aderente e não constitui objeto de um juízo estético puro.
Essa ideia sobre a Beleza vaga e aderente de Kant revela, afinal, um conceito de
contemplação interessada ou não num fim, e atribui valor estético à Beleza pura. A questão
que deve ser pensada, neste momento, está em torno da “pureza” como valor estético maior.
O juízo estético puro é independente do conceito de perfeição. O artista, no momento de
produção, não segue uma ideia pré-concebida em sua arte, mas a razão está presente nela.
A partir do exposto, pode-se inferir que o sujeito diante de um determinado objeto, ou
construção, não deve considerá-lo Belo pelo próprio objeto que tem diante de si, mas pela
referência que, a partir da contemplação, tal coisa suscitou nesse sujeito. A referência do
objeto ao sujeito remete-o a algo mais que a impressão produzida num órgão dos sentidos por
um objeto exterior ao ser. Trata-se da satisfação, do gosto íntimo despertado no ser, a partir
do objeto e que ocorreu sem interferências de julgamento.
Em outras palavras: a Beleza alcança uma finalidade sem procurá-la, pois traz consigo
essa finalidade na representação de uma construção ou de uma obra artística que se mostra a
um expectador. Essa questão foi assim descrita por Kant:
Há duas espécies de beleza: a beleza vaga (pulchritudo vaga) e a beleza
simplesmente aderente (pulchritudo adhaerens). A primeira não pressupõe
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nenhum conceito do que o objeto deva ser: a segunda pressupõe um tal
conceito e a perfeição do objeto segundo o mesmo. Os modos da primeira
chamam-se belezas (por si subsistentes) desta ou daquela coisa; a outra,
como aderente a um conceito (beleza condicionada), é atribuída a objetos
que estão sob o conceito de um fim particular.8
A Beleza que perseguimos nos parece muito próxima da visão kantiana. Diante de
determinada construção o que deverá nos atingir não será a questão do conceito, da utilidade,
mas algo maior que, apesar de todas as considerações ditas pela razão ou pelos sentidos, nos
interesse, nos mova e nos dê prazer diante de tal edifício.
A sensação de agrado ou desagrado deverá ser considerada inicialmente, porém,
numa análise mais profunda do objeto escolhido, ela não dominará porque o sujeito não se
prenderá à natureza do objeto, mas se entregará a ele. O objeto possui uma superioridade da
natureza racional e representará o limite para a natureza sensível do observador.
05 - Conclusão
Diante do exposto, infere-se que cada coisa apresenta sua própria beleza, não apenas
os seres orgânicos em sua individualidade, mas também cada ser inorgânico, cada artefato, no
sentido de que todos apresentam uma Ideia, que será captada ou não, mas estão na Vontade
que se exibirá em harmonia com a natureza. Nesse sentido, a Ideia representa a genialidade
que se firmará naquele que desvelar, descobrir a arte, a beleza das coisas. Essa beleza
coincidirá com a verdade das coisas porque representará a própria coisa, em sua manifestação
sensível.
Kant nas explicações sobre sua analítica dos conceitos diz que “o entendimento em
geral pode ser representado como uma faculdade de julgar”. Pode-se dizer que pensar é
julgar, quer dizer, que enquanto se pensa sobre algo, estabelecem-se vínculos entre
representações e então, poder-se entender algo ou determinada obra.
Assim, quando se está diante de uma ponte, edificada com grandes medidas de pedra,
ferro, areia, enfim, todo material que se presume numa grande construção, por onde irão
passar milhões de pessoas e que, por isso, necessita de qualidade para que sua condição seja
preservada e, principalmente, a vida daqueles que por ali irão passar. Esse fim não é estético,
mas a forma com que o peso dessa ponte será sustentado, para que possa ser utilizada, sim.
O espectador quando olhar para uma construção dessa, não estará pensando na obra
em si, mas naquilo que vê e sente diante de tal obra. Nesse sentido, ela será tão Bela quanto
mais prazer causar em seu expectador. Na visão deste, cada parte observada na construção
deverá despertar-lhe a noção de grandeza e forma numa mesma proporção.
Desse modo, o todo não existiria sem alguma parte. A harmonia entre as partes é
fundamental para sua existência. Vale ressaltar que a luz tem um efeito importante nas
construções arquitetônicas Belas.
8 KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo, pag. 75
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Então, há de se levar em conta, numa construção Bela, a posição geográfica. A luz
solar torna a construção mais aprazível à medida que torna visíveis todas as suas partes e
relações. O prejuízo da visão por falta da claridade impede que o espectador observe por
completo a obra, o que lhe proporcionará a preensão da Ideia do Belo.
Após o exposto sobre o Belo e o Sublime nota-se uma diferença essencial; o
sentimento do Belo depende do entendimento e o do sublime, da razão. O Sublime é
essencialmente espiritual; esse sentimento eleva o ser e mostra-lhe uma sensibilidade infinita
que não pode ser atingida pelos sentidos, pois tem uma potência superior.
Fica claro também que a estética está vinculada à moral e o homem precisa estar
consciente de sua própria impotência diante de determinados fatos ou objetos. O homem sem
cultura, sem educação moral, não pode pensar e por isso é incapaz de perceber o Belo e o
Sublime e irá apenas distinguir o que ele chamará de “bonito” e “feio”. A questão é que para
analisar um determinado objeto e entrar em contato com sua essência exige uma percepção
harmônica e uma sensibilidade que só poderá ocorrer a indivíduos que desenvolvem o
entendimento e a razão.
Assim, observa-se uma grande quantidade de pessoas que se deixa levar por outros
que são mais cultos ou que se julgam superiores e não têm, sequer, sua capacidade de
cidadania exercida com plenitude.
A realidade e a vida das pessoas precisariam ser tomadas mais pelo Belo que pelo
Grotesco, pois dessa forma, pouco a pouco o espírito das pessoas seria convencido de que as
imagens belas possuem valor maior de realidade e não o contrário.
O problema da grande interferência ocasionada pelo absurdos decorrentes de ações
que parecem ameaçar os princípios morais de nossa sociedade, no sentido de que a liberdade
do ser estaria, de certa forma, cerceada. A solução apresentar-se-ia à medida que as pessoas
pudessem relacionar mais seus sonhos à realidade.
Entretanto, para essa percepção as pessoas necessitam ter maior acesso à cultura, de
forma ampla e irrestrita no sentido de que sempre há necessidades a serem preenchidas num
ser. E, talvez essa ânsia precisaria ser saciada mais pelo Belo e menos pelo Grotesco. Essa
ideia deverá ser analisada de acordo com a vontade e cultura da sociedade em questão. O Belo
agrada sempre, o Grotesco, às vezes, mas isso não quer dizer que o Belo sempre deverá
predominar.
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06 - Referências bibliográficas
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2004.
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13. DAS ORIGENS DO YOGA AO YOGA
INTEGRAL DE SRI AUROBINDO
THE ORIGINS OF YOGA YOGA SRI AUROBINDO'S INTEGRAL
Andréa Rebouças Matias da Silveira¹
Resumo. A origem do Yoga se perde ao longo das lendas e das civilizações indianas que
ocuparam o vale do Indo, cerca de 5000 anos antes de Cristo. A mitologia atribui ao
diálogo de Shiva com sua consorte Parvati, os primórdios dessa arte. Segundo o mito,
Shiva transmitia à sua esposa a sabedoria dos mistérios Divinos, mostrando-lhe as
potencialidades espirituais através da intuição pelo movimento do inconsciente. Em
algum momento da história esses conhecimentos filosóficos, fruto da civilização INDOSARASVATTI, passaram a ser denominados de integração ou união, em sânscrito, Yoga. A
cronologia histórica do Yoga nos permite estabeler duas grandes divisões a saber: o Yoga
Antigo, influenciado pela filosofia Sámkhya, subdividido em dois períodos o yoga préclássico (5000 a.C) e o yoga clássico (século III a.C) e o Yoga Moderno, influenciado pelo
vedanta, subdividido em yoga medieval (séculos VIII d.C / XI d.C) e yoga contemporâneo
(séculos XIX /XX d.C), este último tendo origem e influência de Sri Aurobindo, defendia
uma desmistificação do yoga que passou a ser definido como um processo de
transformação integral do ser para realização divina na Terra. Nesse contexto, o presente
artigo, através de minucioso levantamento bibliográfico, viaja ao longo da história e dos
princípios do Yoga, apresentando uma visão geral dos yogas mais tradicionais (Raja yoga,
Kundalini yoga, Karma yoga, Mantra yoga, Hatha yoga, Tantra yoga, Bhakti yoga e Jnana
Yoga) e do yoga contemporâneo, o Purna yoga ou Yoga Integral de Sri Aurobindo.
Palavras-chave. Yoga – Príncipios – Práticas – Linhas
Abstract. The origin of Yoga is lost along the Indian legends and civilizations that have
occupied the Indus valley around 5000 years before Christ. The mythology attaches to
dialogue between Shiva and his consort Parvati, the origins of this art. According to the
myth, Shiva conveyed to his wife the wisdom of the Divine mysteries, showing the spiritual
potential through intuition by the movement of the unconscious. At some point in history
such philosophical knowledge, the fruit of civilization INDO-SARASVATTI, came to be
called integration or union in Sanskrit, Yoga. The historical chronology of the Yoga allows
us to establish two main divisions namely: Ancient Yoga, influenced by the Samkhya philosophy, subdivided into two periods yoga Preclassic (5000 BC) and classical yoga (third
century BC) and Modern Yoga, influenced by Vedanta, yoga subdivided into medieval
(VIII centuries AD / XI AD) and contemporary yoga (XIX / XX AD), the latter having origin and influence of Sri Aurobindo who advocated a demystification of yoga that has become defined as an integral transformation process of the being to divine realization on
earth. In this context, the present work, with careful literature, travels through the history
and principles of Yoga, presenting an overview of the more traditional Yogas (Raja Yoga,
Kundalini yoga, Karma yoga, Mantra yoga, Hatha yoga, Tantra yoga, Bhakti Yoga and
Jnana Yoga) and Yoga contemporary, or Purna Yoga Integral Yoga of Sri Aurobindo.
Key-words. Yoga – Principles – Practices – Lines
__________________________________
1
Especialista em Ciência do Yoga, Uniaméricas, Fortaleza, Brasil. [email protected]. Professora
de Biologia no Colégio Militar de Fortaleza.
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1 – Introdução
A ioga (expressão portuguesa para o termo hindu original yoga) é uma das escolas de
pensamento que integra o pensamento védico. Representa um processo consciente através do
qual se consegue a maestria sobre a mente, harmonizando o físico, emocional, intelectual e o
social, liberando o potencial criativo para o bem do indivíduo e da sociedade.
O yoga clássico, segundo a tradição, foi criado por Hiranyagarba, muito embora, os
pesquisadores afirmarem que o yoga sistematizado por Patanjali representa o clímax no longo
e contínuo desenvolvimento desta filosofia. De suas origens nas escolas filosóficas da Índia,
dársanas, até sua difusão no ocidente, em especial no Brasil, o yoga passou por um processo
de evolução e interação com as novas culturas nas quais foi se inserindo, não perdendo, no
entanto, seus princípios e/ou pilares. Mesmo sem sofrer alterações em seus princípios filosóficos, no ocidente ainda se percebe muita confusão e desconhecimento sobre o que é o yoga e
sobre quais os seus princípios filosóficos e finalidades.
Há milênios que os sábios e mestres do oriente, principalmente na Índia, dedicam-se às
práticas meditativas (dhyanas), físicas (àsanas) e respiratórias (pranayamas) e aos efeitos psicofísicos dessas técnicas em nossos corpos físicos, energéticos e sutis. Esses conhecimentos, de
cunho prático-filosóficos, foram passando pelas várias gerações e civilizações. A experiência
adquirida e repassada através dos séculos chegou ao ocidente e interagindo com esse novo
mundo, foi se estabelecendo e adaptando-se a esse novo contexto filosófico e cultural. No
entanto, a expansão do yoga não significou a compreensão de seus princípios e propósitos.
Embora trate do desenvolvimento físico, o yoga possui aspectos psíquicos e energéticos que
possibilitam a integração do ser. Desconhecer a filosofia milenar que alicerça o Yoga, associála exclusivamente à princípios religiosos, realizá-la apenas como atividade de preparação do
corpo físico, significa subutilizar todo o potencial do Yoga.
Diante do número crescente de adeptos e praticantes do yoga, esse trabalho busca trazer um pouco de luz a evolução do Yoga desde sua origem, enquanto um dársana, até a sua
prática nos espaços especializados para este fim.
Dentro deste contexto, o presente artigo tem como propósito: Apresentar o yoga em
seus aspectos históricos, mitológicos e filosóficos. Para cumprir a finalidade desse estudo,
foram delimitados como objetivo geral e específico, respectivamente:
- Realizar o levantamento bibliográfico sobre as origens do yoga, os estilos e/ou linhas do
yoga tradicional e do Purna Yoga de Sri Aurobindo;
- Caracterizar os princípios filosóficos e metodológicos das diversas linhas do Yoga Tradicional e do Purna Yoga de Sri Aurobindo.
Nas linhas que se seguem, mergulhando na história e na evolução do Yoga, percorrendo seus passos da antiguidade ao mundo contemporâneo, abre-se uma fresta que lança um
pouco mais de claridade sobre o Yoga, seus princípios e práticas.
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2 - Das Origens do Yoga
O yoga, em seus princípios e métodos, teve sua origem e evolução ao longo da história, da filosofia e da cultura de um povo que surgiu às margens do rio Saraswati, a civilização
hindu ou indiana. Chegando ao ocidente, em especial ao Brasil, dentro de um contexto esotérico/espiritualista e sendo muitas vezes reduzida a uma prática estritamente física, ela passou a
ser incompreendida em sua essência. Apesar de já existirem textos falando sobre a filosofia e a
prática do yoga, poucos são os textos que aliam essas duas temáticas em um texto único. Em
função da peculiaridade do assunto, optou-se por construir as bases históricas, mitológicas e
fisiológicas do yoga e apresentar as linhas do yoga tradicional e do yoga contemporâneo, o
Purna Yoga ou Yoga Integral de Sri Aurobindo.
2.1. A origem histórica do yoga
O yoga, termo sânscrito associado ao conceito de união, é um movimento cultural que
se desenvolveu ao longo de milênios na região que hoje é a Índia. As origens dessa prática
estão diretamente ligadas ao Hinduísmo, vale ressaltar que, o que se denomina hinduísmo é
mais do que uma simples religião e a melhor forma de compreendê-lo é considerá-lo como um
processo sociocultural complexo que marcou a formação e a evolução cultural da Índia. O
desenvolvimento histórico da Índia hindu, que se entrelaça com as origens e a evolução do
yoga, apresenta-se dividido em nove períodos: Era Pré-védica (6500 – 4500 a.C.), Era Védica
(4500 – 2500 a.C.), Era Brahmânica (2500 – 1500 a.C.), Era Pós-Védica ou Upanishádica
(1500 – 1000 a.C.), Era Pré - Clássica (1000 -100 a.C.), Era Clássica (100 a.C. – 500 d.C.), Era
Tântrica ou Purânica (500 – 1300 d.C.), Era Sectária (1300 – 1700 d.C.) e Era Moderna ( a
partir de 1700 d.C.). Cada período da história da Índia se expressa em estilos culturais distintos
e essas diferenças influenciaram profundamente o Yoga.
Em sua mais antiga forma conhecida, o yoga parece ter sido uma prática associada aos
rituais de sacrifício apresentados nos quatro Vedas, textos sagrados do hinduísmo.
Os Vedas contêm vários aspectos (filosóficos, científicos, culturais, medicinais e religiosos) da civilização do Indo-Saraswati (rios cujas margens foram o berço da ocupação do subcontinente indiano), também denominada civilização arcaica da Índia. Essa origem relacionada
ao hinduísmo, no entanto, não torna o yoga uma exclusividade da abordagem hindu, uma vez
que os métodos yogues são também encontrados no Jainismo e no budismo que surgiram
após os mais antigos upanishads (comentários dos Vedas e localizados ao final destes). A literatura específica do yoga pouco fala sobre sua origem histórica, boa parte das referências sobre o tema são obtidos por meio de alusões contidas nas citações dos textos védicos ou tântricos. O yoga enquanto sistema filosófico compõe um dos seis dársanas (pontos de vista) da
cultura indiana, tendo sido escrito em língua sânscrita por famílias ou grupos que habitavam o
noroeste da Índia. Segundo alguns estudiosos do yoga, os chamados “Kavis” (recitadores) do
período védico foram os responsáveis por estabelecer as formulações sobre o yoga, passando
pelos hinos do Rig-Veda, pelas Upanisads até os sutras, sendo esses últimos, aforismos que
notabilizaram o sistema do Yoga.
Os primórdios do yoga se perdem na obscuridade da Índia pré-histórica. O BhagavadGita, épico indiano datado de 600-500 a.C., já traz referências do yoga como arcaico (purâtaEDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
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na). Estudos recentes demonstraram que as sementes do yoga (proto-yoga), enquanto conjunto de doutrinas e métodos, já existia na época do Rig-Veda e que a composição deste, um dos
mais importantes cânones védicos, data de um período anterior a 1900 a.C. Os registros fósseis, encontrados nos sítios arqueológicos de Harapa e Mohenjo-Daro em 1921, e as citações
do próprio Rig-Veda indicam que as origens históricas do yoga se encontram nas tribos arianas-vêdicas que, a partir de um ramo proto-indo-europeu, veio a ocupar o subcontinente indiano antes de 1500 a.C. A maior parte dos estudiosos contemporâneos concorda em que, existem vestígios de um yoga primordial, o proto-yoga, e que nos textos sagrados dos Vedas, bem
como nos artefatos do Indo-Sarasvati são encontradas noções desse “proto-yoga” (BORELLA, 2007; FEUERSTEIN, 2005; DE ROSE, 2004). Vale ressaltar que contextualizar as datas
da história da Índia e do yoga não é algo simples devido aos paradoxos das pesquisas em
arqueologia e da própria história indiana. Segundo as teorias de Max Miller (estudioso do
Hinduísmo e tradutor de textos védicos), sobre os primórdios das civilizações indianas, as
descobertas nas escavações do Vale do Hindu corroboram a teoria de que o Yoga já era
praticado de alguma forma no mínimo há 5.000 anos antes de Cristo.
2.2. As raízes mitológicas do yoga
As teorias e práticas do yoga encontram-se vinculadas as quatro “forças propulsoras”
do pensamento indiano que por sua vez nos apresentam ao coração da espiritualidade indiana:
karman (lei de ação e reação), maya (o estado de ignorância), nirvana (a realidade absoluta) e o
yoga (os meios de se adquirir a liberação, ou seja, moksa). Portanto, o que caracteriza o yoga
não é só seu lado prático, mas também o caráter iniciático e preparatório aos estados de superconsciência. Nesse contexto, os textos tântricos apresentam as origens do yoga ao conhecimento revelado por Shiva, o transformador, à sua consorte, Parvati, à beira de um rio.
Segundo Borella, 2007, p.39:
Desatenta da importância do presente que seu esposo lhe ofertava, ela adormeceu profundamente. Um peixe, embevecido com as inspiradas palavras do Maháyogi (grande yogi, Shiva), ergueu-se acima das águas agitadas
do rio para que nenhuma das palavras do mestre se perdesse. Apiedado da
criatura que se tornará um discípulo insólito, Shiva o transformou em homem, Matsyendra (o soberano dos peixes) e o primeiro mestre de yoga da
linhagem Natha.
Na passagem transcrita, observa-se uma ilustração de um dos temas mais profundos
do yoga: a natureza da consciência e de suas alterações. O sono de Parvarti refere-se ao nosso
estado de avidya (ignorância) principal obstáculo para nossa liberação (moksa). Matsyendra
representa o discípulo que atento e receptivo aos ensinamentos do mestre emerge da escuridão. Reforça-se nessa representação o “corpo místico” que possibilita ao yogi se inserir no
modo de ser transcendente e que, sob esse ponto de vista, o yoga retoma o simbolismo arcaico e universal da iniciação da tradição bramânica (Mircea Eliade, 1996, p.21). Outra versão
mitológica atribui à origem do yoga a insatisfação de Shiva que, após assistir a criação do universo por Brahma, considera injustas as condições as quais estão submetidas às criaturas. Shiva, depois de garantir uma sobrevivência compassiva aos seres, oferece aos humanos uma
forma de elevação evolutiva, uma via de liberdade por meio do conhecimento da realidade
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absoluta. Essa forma de evolução integral do ser é o yoga que permite a dissolução dos véus
ilusórios de maya desvendando a consciência superior e infinita de nosso próprio ser. As influências culturais entre as diversas tradições que se desenvolveram na Índia conduziram a
representação da essência do yoga na figura arquetípica de Shiva. Representando a transformação e a impermanência, observa-se no arquétipo de Shiva a representação da morte e da
destruição como etapas a serem alcançados pela prática do yoga. Destruição de avidya possibilitando o estado de samadhi ou nirvana. Em outras palavras o re-nascimento iniciático definido por todas as formas de yoga como acesso a um modo de ser não profano, expressos e vivenciados em asamskrta, nirvana, etc.
2.3. O hinduísmo e as raízes filosóficas do yoga
O hinduísmo constitui-se em uma tradição religiosa que se originou no subcontinente
indiano sendo frequentemente denominado de “sanátana dharma” por seus praticantes, uma
frase que, em sânscrito, significa “a eterna lei”. Os principais textos dessa tradição são: vedas,
upanisads, mahabharata e ramayana. Essas escrituras contêm hinos, poemas, rituais e histórias
nas quais se baseiam a filosofia hindu. Em seus preceitos, o hinduísmo tem uma visão bem
diferente da humanidade. Brahma é tudo e toda realidade fora de Brahma é considerada uma
simples ilusão. O objetivo espiritual de um Hindu é de se tornar um com o Brahma, deixando
então de existir em sua forma ilusória de "ser invidual". Essa liberdade é conhecida como
“moksha”. Até o estado “moksha” ser alcançado, se acredita que a pessoa vai continuar reencarnando para que possa trabalhar em se tornar auto-realização da verdade (a verdade de que
apenas Brahma existe nada mais). Como cada pessoa reencarna é determinado pelo Carma, o
qual é um princípio de causa e efeito governado pelo equilíbrio da natureza. O que uma pessoa fez em seu passado afeta e corresponde ao que lhe acontecerá no presente e/ou futuro, ou
seja, suas vidas passadas e futuras. Dentro desse viés o Yoga seria um dársana (ponto de vista
ou caminho sugerido) nessa jornada. Os dársanas compõem-se de seis sistemas filosóficos
ortodoxos (Astika), unidos em pares complementares, que visavam re-interpretar as verdades
presentes nos Vedas: Vaiśeśīka e Nyāya, Vedānta e Mīmāmsā, e Sānkhya e Yoga. O sistema Yoga
mostra o caminho ascendente (nirvrtti mārga), tendo surgido da filosofia Sānkhya. Diferente dos
outros darśanas ortodoxos da filosofia hindu, que são meramente especulativos, o yoga é um
conjunto sistematizado de técnicas que visam alcançar o estado não-condicionado de superconsciência (samādhi) e auto-realização (moksa), ou seja, através de uma ética, usando o corpo
físico e a mente em meditação, o yoga visa atingir a Verdade Suprema. A importância que todas as metafísicas indianas dão ao conhecimento, incluindo as técnicas de ascese e o método
de contemplação que é o yoga, se explica mais facilmente quando se leva em conta as origens
do sofrimento humano. A miséria da vida humana é a ignorância, uma ignorância de ordem
metafísica que conduz ao não reconhecimento do verdadeiro “si mesmo”. Para o Sankhya a
libertação vem pela gnose, enquanto para o yoga para se chegar ao estado de moksa é necessário a prática disciplinada e a concentração meditativa.
Segundo Usha Chatterji, 1958, p.88:
O Yoga prepara o caminho que conduz à iluminação espiritual e finalmente
à salvação. O que quer dizer que o yoga pretende dar ao espírito o bem supremo, que transforma os obstáculos materiais em aliados, de tal forma que
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a própria natureza se encontra finalmente exaltada com sua luz própria e se
retira do campo de batalha.
A relação entre o hinduísmo e as raízes do yoga nos conduz a esses dois dársanas
complementares: o sankhya e o yoga. O primeiro (sankhya) estabelece os princípios sobre os
quais o segundo (yoga) baseia suas práticas e define com clareza o objetivo que ele terá como
alvo. Em termos filosóficos, ratifica-se que as disciplinas propostas pelo Yoga ficam desprovidas de sentido, se não compreendermos o Sankhya.
3. O Yoga Tradicional
3.1. Raja yoga
O Raja - yoga (do sânscrito rāja: real, completo e yoga: união), um dos mais significativos
ramos do yoga, busca o domínio interno das atividades da mente. Conhecido como o Yoga de
Patañjali ou Yoga Clássico, compõe-se de um sistema de técnicas e recomendações descrito
nos Yoga Sutra de Patañjali (Aforismos do Yoga) para se alcançar o Samadhi. Patanjali, uma
figura lendária que teria vivido entre 500 e 200 a.C., não criou o yoga, ele apenas codificou
todo o conhecimento sobre a ciência do yoga em 196 sutras.
Conforme citação de Arruda, 2007, p.26:
Historicamente, situa-se Patanjali entre os séculos IV e II a.C.. É sabido que,
algo chamado yoga já existia antes dessa época e, portanto, fica claro que o
sábio não é o criador do yoga. Seu grande mérito reside na qualidade do trabalho que ele realizou como codificador e expositor sobre esse tema. Podemos atribuir-lhe a fundação de um Dársana, palavra sânscrita que significa
“ponto de vista” e coincide com o que ocidentalmente se denomina escola
filosófica.
Nos 196 aforismos do yoga, divididos em quatro partes, a saber: samadhi pada, sadhana pada, vibhuti pada e kaivalya pada, Patanjali tanto define o que é o yoga, quanto ordena em
oito etapas (asthanga) a conquista do seu objetivo máximo: a Iluminação da Consciência. Conforme cita Patanjali, através da supressão das funções da mente (Yoga-chitta-vritti-nirodhah),
o Contemplador, ou seja, o "Eu" transcendente do homem, que habita eternamente além dos
sentidos e da mente e que é Consciência Pura brilha intensamente. Portanto, fica claro que
para o Raja-Yoga, o objetivo final é a libertação (Kaivalya), estado alcançado através da prática
dos oito angas que são: Yama (Restrições), Niyama (Observâncias), Asana (Posturas Psicofísicas), Pranayama (Controle da Respiração), Pratyahara (Introspecção dos Sentidos), Dharana
(Concentração), Dhyana (Meditação) e Samadhi (Iluminação). O astangayoga, assim definido e
apresentado, pode ser compreendido como um caminho óctuplo a ser percorrido pelo aspirante (sadhaka). As duas primeiras etapas, yamas e nyamas, configuram o código de ética do
hinduísmo. Os Yamas são cinco práticas que retificam as nossas relações com o próximo:
ahimsa (não violência), satya (a pratica da verdade), asteya (não roubar), brahmacarya (conduta
sexual virtuosa) e aparigraha (prática do desapego). Os niyamas retificam as relações entre os
diversos níveis de nosso ser, ajudando a realizar a harmonização entre os instintos: sauca (purificação física, mental, etc.), santosa (prática do contentamento), tapas (prática da disciplina),
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svadhyaya (estudo dos textos e de si mesmo), isvara-pranidhana (prática da auto-entrega ao
divino). Sobre as etapas seguintes do caminho óctuplo de Patanjali, os àsanas visam preparar o
corpo físico para o estado de meditação, os pranayamas possibilitam ao praticante exercer o
controle na distribuição do prana (energia vital) através do corpo; pratyahara refere-se a pratica
de abstração dos sentidos, em outras palavras, a retirarada da mente para dentro de si mesma;
dharana significa concentração e dhyana meditação, estando esses três últimos passos intrinsecamente relacionados à consecução do estado de samadhi, oitavo anga do caminho proposto
por Patanjali. Em síntese, o raja yoga, proposto por Patanjali, tem como foco central o
silenciar completo da mente atuando diretamente sobre o movimento dos processos da
consciência e visando diminuir progressivamente a dispersão, focalizando a atividade mental
em um único ponto e então parando o processo mental. Com isso desaparece o ahankar (eu
temporal) e vigora Purusha ( a Consciência Divina).
3.2. Kundalini yoga
O Kundalini Yoga (do sânscrito kundal: enrolado) representa uma tradição ancestral,
transmitida oralmente de mestre a discipulo há mais de 7.000 anos. Textos antigos
relacionados ao tantra apresentam indícios de que o kundalini yoga foi muito difundido na
Índia, Tibete e Nepal e que essa prática tinha por finalidade permitir aos praticantes experienciar e expressar seu Eu Maior – física, mental e espiritualmente. De acordo com algumas tradições esse yoga constitui-se em uma ciência espiritual pura que depende da execução de técnicas, “shaktipat”, obrigatoriamente orientadas por um mestre ou guru espiritual e capazes de
conduzirem à iluminação. Incluem posturas, pranayamas, bandhas, mudras, mantras,
prathyahara, dharana, dhyana, danças meditativas, sat nam rasayam ( transmissão de energia
pelas mãos) e kriyas que estimulam a convivência em grupo e buscam a vivencia do yoga em
toda a sua plenitude, sem que para isso seja necessário retirar-se do mundo. Apresentando-se
como uma disciplina física e meditativa associada ao hatha yoga mas também estreitamente
relacionada ao tantra, o kundalini yoga descreve um conjunto de exercícios de yoga e meditação, os kriyas, que visam despertar o potencial ilimitado que existe dentro de cada ser humano, sendo por isso chamado de "o yoga da consciência". Levando-se em consideração os aspectos energéticos e psicofísicos, o kundalini yoga é o yoga que trata da kundalini shakti (energia de criação) e de sua ascensão pelos seis centros de energia espiritual (chakras), sendo seu
objetivo o despertar dessa energia, uma forma concentrada de prana ou força vital, “kundalini
shakti”, em muladhara chakra e sua união com o senhor Shiva em Sahasrara chakra. De acordo com algumas tradições, as técnicas de Kundalini só podem ser transmitidas pelo mestre
uma vez que o discípulo seja considerado apto, pois o despertar dessa energia poderia causar
danos irreparáveis ao yogi. No entanto, c alguns textos antigos, o despertar da kundalini quando devidamente orientado, traz consigo a alegria pura, o conhecimento puro e a integração do
ser. Vale ressaltar que essa integração do ser também é o objetivo do hatha e do tantra yoga
sendo, por isso, também responsável pelas frequentes associações entre as três técnicas. Segundo alguns estudiosos, pode-se considerar que essas duas últimas são tipos de kundalini
yoga. Porém, vale frisar que essa associação, hatha - tantra - kundalini, deve-se a similaridade
não só de objetivos, mas também das práticas utilizadas para mobilização do prana e dos ares
vitais (vayus) visando à unificação de prana e apana. Observe-se, portanto, que o kundalini
yoga ratifica o princípio da união como consequência da integração e harmonização da tríade
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corpo-mente-espírito através da expansão da consciência, o que para o raja yoga corresponderia ao estado de samadhi.
Segundo Yogi Bhajan, guru do kundalini yoga, responsável pela difusão dessa tradição
no ocidente:
O Kundalini Yoga é uma arte antiga, uma ciência de vida com alteração e
expansão de consciência, é o despertar e a elevação da energia Kundalini na
espinha através dos chacras, ativando-os. Através da prática do Kundalini
Yoga o individuo pode unir sua consciência com a Consciência Cósmica.
Percebendo rapidamente o movimento de energia dentro e fora de seu ser e
tornando-se um co-criador com Deus.
3.3. Karma yoga
A palavra karma (ou karman) tem origem no sânscrito, sendo derivada do radical “kri”
que significa fazer ou criar, portanto, karma yoga é literalmente o yoga da ação. O primeiro
texto sagrado a falar sobre o karma yoga foi a Bhagavad Gita. Essa obra tem sua origem no
Mahabharata, épico indiano, que relata a guerra entre os kauravas e os pandavas. Na Bhagavad
Gita trava-se o diálogo entre o deus Khrisna e seu discípulo Ajurna, onde o primeiro ensina ao
segundo a importância do agir, não no sentido da realização de uma ação qualquer, mas um
tipo específico de ação. Khrisna propõe à Arjuna uma atitude interior perante a ação, a renúncia aos frutos da ação, em outras palavras, o agir com desapego.
Nos termos do Bhagavad Gita:
Portanto, sempre realiza com desapego a ação apropriada (kârya), pois o
homem que age com desapego alcança o supremo (3.19).
Cumprindo sempre todas as ações e refugiando-se em mim, atinge-se por
minha graça o Estado eterno e imutável (18.56).
O karma yoga tem em seu fundamento, a liberdade na ação e a superação das motivações advindas do ego. O princípio da transcendência do ser e a ideia de não abster-se da ação
e sim do apego aos frutos do agir, confere ao karma yoga o sentido de união e integração do
ser individual ao Ser cósmico. A ação praticada no espírito de renúncia se torna uma ardorosa
disciplina (tapas) de autotranscendência, devendo ser esse o caminho (sadhana) do karma yogi.
Nesse sadhana, a Índia moderna teve como maior exemplo desse yoga, Mohandas Karamchand Gandhi, o “Mahatma” Gandhi. O mais perfeito modelo de um karma yogi, Mahatma
Gandhi trabalhou incessantemente para melhorar a si mesmo e para o bem da nação indiana.
Conforme citação de Feuerstein, 2005, p.89:
Ao pôr em prática o elevado ideal do karma yoga, Gandhi teve de renunciar
à sua vida, e o fez sem o mínimo rancor, com o nome de Deus – “RAM” –
em seus lábios. Entregou-se ao seu destino, confiante que nenhum dos seus
esforços espirituais se perderia, como promete solenemente o Senhor Khrisna na Baghavad Gita (...) Gandhi cria na inevitabilidade ou inflexibilidade do karma, mas cria também na liberdade da vontade humana.
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A palavra karma traz em si, o princípio de que somos o que somos em consequência
do que fazemos ou do modo pelo qual fazemos. O vínculo entre a ação e seus efeitos reativos
é concebido, não só para as escolas do hinduísmo, do budismo e do jainismo, como uma lei
inflexível, uma lei de causalidade moral. Nesse viés, o eixo do karma yoga é a ideia de que
podemos transcender toda a necessidade kármica na nossa consciência. Um aspecto interessante desse yoga, é que o mesmo surge na Índia quando havia um crescente movimento social
de abandono das coisas do mundo em busca do ideal asceta. Para alguns pesquisadores, o
karma yoga foi uma resposta das forças conservadoras da Índia antiga, a imposição de uma
doutrina integral que primava pela transcendência sem o abandono da vida convencional. Talvez, por isso, o karma yoga seja o mais fundamentado de todos os sadhanas yogues, sendo o
seu ideal da “inação na ação” (naishkarmya-karma) tão cabível hoje quanto era há mais de dois
mil anos.
3.4. Mantra Yoga
Mantra (do sânscrito Man mente e Trâna ato de salvar ou liberar) é uma sílaba ou
poema religioso normalmente grafado na escrita sânscrita e entoado como um som de forte
vibração. Os mantras tiveram sua origem no hinduísmo sendo conhecidos e já utilizados pelos
yogins da Índia antiga e medieval. A utilização desses sons, sobretudo em caráter repetitivo,
justificava-se pelo fato dos mesmos afetarem os estados de consciência. A entoação dessas
expressões vocais sagradas, um som numinoso e dotado de poder psicoespiritual é o que se
denomina de “Mantra Yoga”. O objetivo dessa prática seria, através das vibrações sonoras,
religar o homem à divindade. Os primórdios do mantra yoga situam-se na Era védica, sendo
um produto das mesmas forças filosóficas e culturais que deram origem ao Tantra na Índia
medieval. Existem vários textos que tratam especificamente dessa prática yogi, entre os quais o
Mantra-Yoga-Samhitâ, compêndio escrito no século XVII ou XVIII e o Mantra-Mahodadhi
escrito por Mahîdhara em fins do século XIX. De acordo com o Mantra-Yoga Samhitâ, as
práticas de mantra yoga tem dezesseis partes, destacando-se entre essas a devoção, a
purificação, os ásanas que trazem estabilidade ao corpo durante a entoação dos mantras, os
rituais de respiração, a execução de mudrás, as recitações que podem ser mentais (mânasa),
silenciosa (upâmshu) ou em voz alta (vâcika), a meditação e o êxtase ou samadhi. Essas
práticas tinham por fim único a dissolução da mente no Supremo como uma forma de
manifestação do absoluto. No Sanatana Dharma e nos seus principais Darshanas, a prática do
mantra-yoga ou japa-yoga exerce importância singular por dois grandes motivos,
primeiramente, por tratar-se de Angas, partes ou sequências dos hinos dos livros sagrados
(Vedas ou derivações autorizadas dos Mesmos, como os Upanishads), e também por se tratar
de instruções na forma de palavras ditadas diretamente pelos Rishis ou sábios, e, em segundo,
por tratar-se da personificação do Nome do Senhor Supremo ou Brahman em Si mesmo, na
forma escrita e articulada sonoramente.
Para Yogi Bhajan, 1969, p 27:
...ao entoar um mantra que captura o padrão do Infinito, o sistema nervoso
começa a sincronizar-se e o fluxo de pensamentos move-se com o Ser
Superior em você. Então o ego relaxa e o mantra é vibrado em cada célula
em todas as coisas no universo. Você flui e o silêncio se instala. Então se
pode sentir, ouvir e agir guiado pela Alma”. Isto é Yoga do Som.
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O mantra-yoga ou japa-yoga, não diferindo dos outros yogas, exige de seus adeptos a
mesma disciplina (tapas) e o desenvolvimento do mesmos processos psicofísicos que
conduzirão o yogi à transcendência do jogo das atenções e a realização no supremo SerConsciência-Bem-Aventurança.
3.5. Hatha Yoga
O hatha yoga é um dos mais antigos processos de Yoga. Nasceu no Tantra pré-védico
e manteve-se secreto por muito tempo, ressurgindo em torno dos séculos X e XI, com
Goraksha Nath, um um Mestre Tântrico que fundou a ordem dos Yoguis Kanphata. O Hatha
Yoga Pradipika (escrito pelo sábio Swatmarama, por volta do século XV), o Gherandha
Samhita (diálogos do sábio Gheranda com seu discípulo Chanda Kapali) e o Shiva Samhita são
os textos fundamentais usados na transmissão do Hatha Yoga. No entanto, dentro da tradição
do hatha yoga, os mestres ou gurus podem e devem, segundo as escrituras, atualizar e
modificar a prática para adequar às pessoas, ao lugar e ao momento mantendo vivo o ideal do
yoga com o seu poder transformador e tendo em vista sempre a Meditação e o Samadhi. Na
prática do hatha yoga, dá-se muita importância a execução de ásanas (posturas físicas), pranayamas (exercícios respiratórios), Sat-karma (purificações corporais), mudrás (gestos reflexológicos) e bandhas (pressões e contrações), haja vista a tecnologia psicoespiritual de a prática
girar em torno do desenvolvimento do potencial do corpo, para que o mesmo seja capaz de
suportar a força e o peso da realização transcendente, em outras palavras, visa trabalhar para
fortalecer o corpo físico, pois os estados de emancipação ou iluminação acontecem em todas
as dimensões do Ser. Alguns textos mais recentes dão ênfase à execução dos ásanas e dos pranayamas. Nesses escritos afirma-se que os ásanas atuando sobre o corpo físico e os
pranayamas influenciando a dinâmica do Prana ou energia vital proporcionariam a ativação e a
canalização de todas as energias humanas facilitando assim, a realização da finalidade essencial
do Yoga: O samadhi.
Etimologicamente, a palavra Hatha é formada de duas palavras sânscritas “Ha”, que
significa Sol e “Tha”, que significa lua. Por sol entende-se o princípio positivo, ativo e
masculino da criação e, por lua, o princípio negativo, passivo e feminino. “Hatha” seria,
portanto, a união consciente dos princípios que compõem a dualidade básica do humano:
espirito – matéria. De um ponto de vista experimental, podemos tentar definir essa prática
como uma técnica de integração ou unificação natural do homem mediante a progressiva
purificação do corpo, o desenvolvimento de suas potencialidades, a perfeição de seu
funcionamento e a crescente integração e harmonização da mente. Tradicionalmente o hathayoga é um caminho amplo, por isso considerado holístico, contêm princípios de disciplina
moral, posturas e técnicas de controle respiratório através dos quais, vai se alcançando progressivamente o controle a mente. Apesar da ênfase no Ocidente ser o trabalho com o físico
pela execução ásanas, o sistema hatha Yoga tem uma proposta ampla, e inclui profundo respeito e amor por Deus. Muitas escolas modernas de hatha yoga derivam da escola de Sri Tirumalai Krishnamacharya, que ensinou de 1924 até sua morte em 1989. Outra influência importante foi Swami Sivananda (1887-1963) e seus muitos discípulos. No Brasil, o hatha yoga
passou a ser conhecido e praticado na década de 60 (sessenta) através de seus dois principais
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expoentes à época, os professores e autores de uma vasta bibliografia em Língua Portuguesa
sobre o yoga, José Hermógenes e Caio Miranda.
3.6. Tantra Yoga
O tantra yoga, do sânscrito Tan expansão e Tra liberação, é uma filosofia comportamental, ritualística e matriarcal que tem por objetivo o desenvolvimento integral do ser humano nos seus aspectos físicos, mental e espiritual. Essa prática comportamental foi severamente
combatida na Índia hinduísta, durante o período medieval, passando a ser fortemente espiritualizada a partir de então. Mitologicamente suas origens remontam ao culto de Shiva e Shakti,
o tantra visualiza o Brahman definitivo como Param- Shiva, manifesto através da união de
Shiva (a força ativa, masculina, de Shiva) e Shakti (a força passiva, feminina, de sua esposa,
conhecida também como Kali, Durga, Parvati e outras). As práticas do tantra yoga estão
voltadas para o desenvolvimento e o despertar da kundalini, a “serpente” de energia ígnea, de
natureza biológica e de manifestação sexual, situada na base da coluna que ascende através dos
chacras para fusão de Shiva e Shakti no topo da cabeça, onde localiza-se o sahasrara chacra,
levando ao estado de superconsciência ou samadhi. Historicamente, não se sabe ao certo a
idade do tantra. Alguns de seus ritos e mitos são do período Paleolítico. Vale ressaltar que,
uma possivel invasão da Índia por volta de 1500 a.C., por povos indo-europeus, os chamados
arianos, teria influenciado o tantrismo, dando-lhe aspectos mais ritualísticos. As práticas
tântricas envolve a utlilização de bhutá suddhi, que são as técnicas de purificação dos
elementos, a entoação repetitiva de mantras, a elaboração e a prática meditativa nos yantras,
que são esquemas de representação simbólica dos chacras, a execução de gestos
reflexologicos, os mudrás, e a realização de Panca-makara., técnicas de purificação corporal.
Todos esses rituais e práticas estão resguardados em escritos chamados, Tantras, mas há uma
quantidade enorme de outras obras, tanto comentários quanto composições originais. Estas
compreendem monografias (prakarana), manuais (paddhatti), resumos (nibandha nirnaya),
dicionários (niganthu), hinos (stora) e obras de magia (kavaca). A tradição tântrica também
engloba composições aforísticas, como o Shiva Sutra de Vasugpta e textos upanishadícos
como o Tripura- upanishad. Dentro da tradição kaula, um dos textos mais importantes é o
Kulârnavatantra, provavelmente composto entre 1000 a.C e 1400 d.C. Essa escritura tântrica,
apresenta o caminho do yoga como a trascendência através da contemplação do Ser Supremo,
alcançando-se o Ser-Consciência-Beatitude. De fato, para o tantra yoga, o yoga é a identidade
(aikya) da Psique com o Si mesmo transcendente. Essa identidade só pode ser alcançada
quando se mobiliza as energias humanas em todos os níveis e funções. Nas duas linhas de
tantra yoga, Vamacharya (esquerda) e Dakshinacharya (direita), há referências, inclusive, da
mobilização da energia sexual para fins de ecese. Distinguindo-se Vamacharya e
Dakshinacharya pela utilização do Maithuna (união sexual) na primeira escola supracitada. O
objetivo do Trânta é a dissolução de ahankar (ego) em mahat (a grande inteligência além da
mente) para através das forças adindas da criação (prakriti) se alcançar o Yoga (união) em
Brahman.
3.7. Bhakit Yoga
O Bhakti Yoga, o poder transcendente do amor, almeja a realização do Si mesmo pela
força emocional do ser humano que é purificada e canalizada para o Divino. Em sua disciplina
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de autotranscendência, a Realidade transcendente é concebida, em geral como uma Pessoa
suprema, e não como um Absoluto impessoal. Portanto, no Bhakti Yoga não se fala de uma
identificação total com Deus e sim de uma comunhão parcial e uma atitude devocional à
Brahman. O termo Bhakti, do sânscrito, deriva da raiz Bhaj compartilhar, sendo geralmente
traduzido por devoção ou amor. Esse yoga, é, portanto, o yoga da dedicação amorosa à Pessoa
Divina e da participação do amor dessa Pessoa. É a via do coração, entendido como a força de
ecese emocional. É o apego ao Divino que não reforça a personalidade egóica e o destino
dessa. No Bhakti Yoga, o praticante é sempre o devoto, o amante, e Deus é sempre o Bemamado. O Bhakti Sutra do sábio Narada é um dos sutras que apresentam o caminho
devocional. Esta obra muito popular,foi provavelmente composta por volta do ano de 1000
d.C. Portanto, é posterior ao Bhakti Sutra de Shandilya, obra que envolve os aspectos mais
técnicos do sadhana do bhakti yogi. O caminho do bhakti formaliza-se em nove estágios a
saber: a audição dos nomes do Senhor (Shravana), o cantar canções devocionais (Kirtâna), a
lembrança meditativa amorosa de Deus (Smarana), o serviço aos pés do Senhor (Pâda-sevana),
o cumprimento dos ritos religiosos prescritos (Arcâna), a prostração perante a imagem divina
(Vandana), a devoção e o anseio da companhia do Senhor (Dâsya), o sentimento de amizade
com a Divindade (Sâkhya) e a oferta de si mesmo (Âtma-nivedana). Esses noves estágios são
descritos no Bhakti Rasa Amrita Sindhu (Oceano da essência Imortal de Devoção) de Rupâ
Gosvâmin. A história do Bhakti é vasta e complexa, e os estudos mais recentes ainda são
muito rudimentares nesse mister. O que fica claro na evolução desse Yoga é que ele
acompanhou a própria história da Índia e que os Bhaktis yogis representavam a forte
religiosidade dessa nação. Para os mestres do bhakti yoga, o caminho devocional é a via mais
fácil para se alcançar a emancipação. O verdadeiro bhakta (praticante de Bhakti Yoga) age
sempre para fazer aquilo que o Divino faria para si mesmo. Isto é servir ao Divino. Agir como
uma parte integrante Dele, para Ele. A devoção dissipa o ego e desvela o Divino como o
Único Eu. Então a Unidade aparece. A mesma realização do Jnana ocorre através do Bhakti
Yoga por processos diferentes. Quando o Coração se abre completamente, a mente se aquieta.
Quando a mente se aquieta, o Coração se abre. A Sabedoria e o Amor são aspectos de uma
mesma Consciência.
3.8. Jnana Yoga
Jnana do sânscrito conhecimento, intuição ou sabedoria, relaciona-se com aquilo que
os gregos chamavam de “gnosis”, um tipo de conhecimento ou intuição com poder libertador.
Assim posto, o Jnana Yoga apresenta o caminho da realização do Si Mesmo através do
exercício da compreensão gnóstica, ou, melhor dizendo, da sabedoria do discernimento entre
o Real e o irreal. A primeira referência do Jnana Yoga surgiu na Bhagavad Gita, quando
Khrisna afirma para Arjuna que o Jnana Yoga se destinaria aos sâmkyas e não aos karma yogis,
ou seja, é o caminho dos seguidores da tradição Sâmkya para os quais a liberação vem do
discernimento contemplativo entre os produtos da natureza e o Si Mesmo transcendente. Ao
contrário do Raja Yoga, que se fundamenta em uma metafísica dualista (dvaita) que distingue
entre os muitos Seres transcendentais e a nautreza, a metafísica do Jnana Yoga é não dualista
(advaita) tendo, portanto, uma relação tênue com a tradição vedanta, onde os ensinamentos
constam nos Upanishads, também conhecidos como jnana marga (via da sabedoria). Na
prática, o jnana yogi faz da força de vontade (iccha) e da razão inspirada (buddhi) os dois
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princípios pelos quais a iluminação pode ser alcançada. O Tripura Rhasya, importante tratado
de Jnana Yoga, classifica os aspirantes em três tipos conforme sua disposição psíquica. O
primeiro tipo sofre com o orgulho que bloqueia a perfeita compreensão da doutrina da não
dualidade. O segundo tipo sofre com as ações e/ou atividades pois acredita ser um “sujeito
agente”, uma personalidade egóica que atua no mundo, o que lhe impossibilita alcançar a
equanimidade e a lucidez, fundamentos da verdadeira sabedoria. O terceiro tipo sofre com os
desejos (sede de poder, fama, busca desenfreada pela satisfação sexual, etc.) que nada mais são
do que motivações que se opõem ao caminho da liberação. Para esses jnana yogis as
orientações são o cultivo da confiança na doutrina e no mestre, a entrega ao divino e o cultivo
ao desapego. Somente pelo esforço nesses três pilares poderá o aspirante discernir entre o
Real e o ilusório. O sadhana do Jnana Yoga enumera quatro meios para emancipação e seis
perfeições para se alcançar a bem aventurança transcendente. Os quatro meios são: o
discernimento (viveka), a renuncia ao fruto das ações (viraga), a prática das seis perfeições
(shat sampatti) e a aspiração espiritual (mumukshutva). As seis perfeições são: tranquilidade
(shama), controle dos sentidos (dama), abster-se de ações que não se relacionem à busca
espiritual (uparati), a resignação (titiksha), concentração mental (samadhana) e a fé (shraddha).
O Jnana Yoga não é uma erudição ou a simples adesão a conceitos pré-estabelecidos. Seu
propósito é o trabalho com a mente que, como citada no Amrita-Bindu-Upanishad, cria
continuamente qualidades, diferenças, ações, razões e resultados. A mente ilude a forma livre
da Consciência pura, isto é, o Si Mesmo. Aquele que busca a iluminação deve dedicar-se com
diligência à purificação da mente, chegando desse modo ao estado de Buddhi ou sabedoria.
Estado onde o jnana yogi, livre das ilusões, acessa o conhecimento distintivo que se encontra
oculto em todos os seres e obtém o que Shankara, o grande preceptor do vedânta, chamou de
“a Jóia do Conhecimento”.
4. O Purna Yoga: O Yoga Integral de Sri Aurobindo
O Purna Yoga ou Yoga Integral é uma combinação flexível de métodos específicos
designados a transformar cada aspecto do indivíduo: físico, vital, mental, psíquico e espiritual.
É um sistema científico, desenvolvido por Sri Aurobindo com o apoio de Mira Alfassa (A
Mãe), que integra os vários aspectos do yoga com o objetivo de levar o indivíduo a um
desenvolvimento completo e harmonioso. Sri Aurobindo, Aravind Ackroyd Ghose, nasceu em
Calcutá, Índia, em 1872. Aos sete anos de idade foi estudar na Inglaterra, onde adquiriu
profundo conhecimento da cultura européia e fluência em diversas línguas e dialetos.
Retornou à Índia em 1893, indo trabalhar no serviço administrativo e educacional do estado.
Tendo recebido, conforme orientação expressa de seu pai, o médico Khrisna Dhan Ghose,
uma educação inteiramente ocidental, ao voltar à Índia Sri Aurobindo procurou compensar
sua deficiência de conhecimento da cultura indiana. Foram anos de aprendizado cultural e de
criação literária. Em 1906, Sri Aurobindo integra-se ao movimento de libertação da Índia e
rapidamente tornou-se um líder dentro do movimento. Sua luta ostensiva e aberta o levou ao
cárcere por um ano, entre 1908 e 1909. Nesse período de detenção Sri Aurobindo inicia-se na
prática do Yoga e uma série de experiências espirituais mudam o curso de sua vida. Em 1910,
respondendo a um chamado interior, ele recolhe-se a Pondicherry, ao sul da Índia, para
dedicar-se exclusivamente à sua vida espiritual e ao desenvolvimento de um método completo
de Yoga que pudesse transformar a natureza humana e divinizar a vida. Nesse sadhana, Sri
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Aurobindo contou com a colaboração de sua discípula, Mira Alfassa, que mais tarde passou a
ser conhecida como “A Mãe”. Mirra (ou Mira) Alfassa nasceu em 1878, na cidade de Paris,
França. Desde muito cedo vivenciou experiências de transe e permanência em êxtase. Essas
experiências psíquicas e espirituais, lhe revelaram a existência de Deus e da poossibilidade de
unificação com Ele. Por volta de seus dezenove anos, Mira Alfassa descobre o Raja Yoga de
Vivekananda e pouco tempo depois começa seus estudos sobre o Bhagavad Gita. Por volta de
1914, em sua chegada à Pondicherry, Mira Alfassa teve seu primeiro encontro com Sri
Aurobindo e, nessa ocasião, reconheceu nele o mestre que sempre lhe aparecia nos estados de
transe e nas permanências em êxtase.
Ao chegar em Pondicherry, reconheci em Sri Aurobindo aquela figura
asiática de meus sonhos, aquele mestre a quem eu denominava de Khrisna.
A partir desse encontro meu pensamento deixou de ser executado, minha
mente tornou-se calma. Iniciei um recolhimento dinâmico e ao final restava
em mim apenas o silêncio e a consciência yogi (Mira Alfassa, 1914, p.13).
Sri Aurobindo e A Mãe desenvolveram o Purna Yoga ou Yoga Integral, cujo o
objetivo é a realização divina integral, ou seja, trazer para a matéria, para a vida, a mente e o
corpo, o poder da consciência Divina. Com o Yoga Integral ou Purna Yoga de Sri Aurobindo
entramos na modernidade pois esse yoga se destaca pela reformulação do Yoga de acordo
com as necessidades e as capacidades do homem moderno. Diferente do Yoga tradicional que
fundamentavam-se em um “verticalismo” ou seja caminhos que conduzem a realidade
transcendente concebido como algo separado do mundo material, o Purna Yoga tem a
finalidade explícita de fazer descer a Consciência Divina para o corpo e a mente humanos e
para vida comum. Em outras palavras o Yoga Integral rompe com o paradigma que opõe o
espirito à material. A crítica que Sri Aurobindo faz da metafísica e do Yoga tradicional, conduz
o yogi a um novo caminho: o processo de evolução, entendido aqui como uma transformação
contínua da vida terrestre. O “paraíso” está aqui na Terra não cabendo uma atitude negativa
em relação ao mundo e, sim, a busca de uma existência totalmente transmutada. O Purna
yoga, definido como a transformação integral do Ser para realização divina na Terra, visa não a
uma fuga do mundo e da vida para o céu ou nirvana, mas uma mudança de vida e existência,
não como algo subordinado ou incindental, mas como um objetivo distinto e central. O
objetivo procurado não é uma aquisição individual da realização divina para o bem do
indivíduo, mas algo a ser adquirido para consciência-terra. Deve-se conseguir trazer o poder
da consciência, o que Sri Aurobindo chama de o “Supramental”, ainda não organizado ou
diretamente ativo na natureza-terra, mesmo na vida espiritual, para ser tornado diretamente
ativo. O Yoga Integral tem como características: a realização divina, o respeito à
individualidade, o yoga coletivo, a consciência do Ser Integral e a metodologia integral. O
Purna Yoga, em síntese, é um processo de educação integral do ser onde existe um esforço
metodizado em direção à auto-perfeição, através da expressão das potencialidades latentes no
ser. Para isso, conforme, cita A Mãe, o caminho para o auto-conhecimento e o
desenvolvimento integral de nosso ser passa pela educação dos cinco aspectos principais do
ser humano: o físico, o vital, o mental, o psíquico e o espiritual. O resultado desse processo de
educação integral não é simplesmente uma formação progressiva da natureza humana, e um
crescente desenvolvimento de suas faculdades latentes, mas uma transformação da própria
natureza, uma transfiguração do ser em sua totalidade, uma ascensão nova da espécie,
finalizando com o aparecimento de uma “raça” divina sobre a Terra. O caminho do Yoga de
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Sri Aurobindo e de Mira Alfassa é o caminho do auto-consciência. Nas palavras da Mãe, ser
consciente, primeiro que tudo. Somos conscientes apenas de uma insignificante porção de
nosso ser, pois na maior parte somos inconscientes. É essa inconsciência que nos mantém
sujeitos à nossa natureza irregenerada e impede a sua mudança e transformação. É através da
inconsciência que as forças não divinas nos fazem escravos. Ser consciente de nós mesmos,
estar despertos para nossa natureza e para nossos movimentos, sabendo o como e o porque
agimos, reconhecendo nossos impulsos e motivações esse é o caminho do Purna Yoga. A
dualidade se apresentará a cada passo e a cada escolha a possibilidade de despertos sermos
trabalhados pela vontade divina.
Conforme afirma Gupta, 1991, p.33:
O Yoga da Realização Divina foi desenvolvido por Sri Aurobindo com o
objetivo diferente daquele que é comum aos Yogas Tradicionais, não para
renúncia do mundo, mas como centro e campo de prática para a evolução
de uma outra espécie e forma de vida que, no seu tempo final, será movida
por uma consciência espiritual mais elevada e corporificará uma vida maior
do espírito.
Assim chegamos ao Yoga moderno, um yoga que não se limita aos ‘Ashram’ e que se
relaciona a vida no aqui e no agora. O Yoga da vida divina sobre a Terra onde o caminho é
estar inteiramente e integralmente consciente de si e da verdade toda de seu ser. É o emergir
perfeito da consciência individual, e é em direção a isso que a evolução tende. Para Sri
Aurobindo e para Mira Alfassa, a Mãe, todo ser é um, e estar plenamente consciente significa
estar integrado com a consciência de todos, como o si, a força e a ação universais.
5. Considerações finais
Yoga do sânscrito Yuj atrelar, unir, juntar pode ser compreendido como um processo
que possibilita despertar, descobrir e transformar o ser humano em todos os seus aspectos. É
um caminho para transformação pessoal, cultural e universal. Tendo suas origens há 5000
anos a.C., o yoga possui inúmeras técnicas que ajudam o homem no seu processo de
transformação. Os diferentes ramos do Yoga trazem em si o objetivo de realizar a união do
ser individual (jivatman) ao Ser Supremo (paratman). Apesar dessa interseção, objetivo maior
de unificação através do Yoga, cada ramo engloba técnicas e caminhos diferenciados que se
adaptam aos tipos de personalidade e às necessidades individuais especificas. Seja para o asceta
renunciante ou para o yogi na vida do aqui e agora, o sadhana do yoga nos permite alcançar
um elevado nível de percepção que possibilita a compreensão do significado de sua vida em
relação a vida dos outros e ao universo em geral. Mesmo que no ocidente o yoga tenha se
destacado como uma prática física capaz de desenvolver a saúde física, mental e psíquica,
contribuindo no combate ao estresse, promovendo maior eficiência nas atividades do dia-a-dia
e melhorando a qualidade do descanso, inevitavelmente, a prática do Yoga vai nos conduzindo
para um progressivo equilíbrio interior, mesmo que esse não seja a meta do praticante. No
presente trabalho, descrevemos as origens e a evolução do yoga ao longo da história, da
mitologia, das filosofias e dos seus métodos. Apresentando os diversos caminhos dessa prática
milenar, estabelecemos o que separa cada ramo e o que os unifica. Reconhecer o Yoga como
sendo apenas uma atividade física ou encará-lo como uma seita ou ritual religioso é tirar-lhe a
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
169
essência transformadora e evolucionária. Os diferentes ramos ou sadhanas do Yoga justificamse pela diversidade humana, mas não retiram sua ação unificadora e libertadora.
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EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
170
14. AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA DO ALUNO SURDO
READING STRATEGIES FOR THE DEAF STUDENT
Andréa Michiles Lemos*
Resumo. O objetivo do artigo é investigar como a Língua Brasileira de Sinais –
LIBRAS - pode intervir no processo de aprendizagem de leitura do surdo e quais
as estratégias utilizadas por ele para atingir bom desempenho na leitura de textos
em português. Optamos trabalhar com o referencial teórico de Kleiman, Solé e
Moreira. Com base nesse referencial propomos uma atividade de predição de leitura, em suas três fases - o ato de inquirir, o processamento da informação e a validação das respostas. Organizamos um roteiro de entrevista constando de cinco
perguntas para melhor entendermos a relação do surdo com a língua escrita. As
atividades foram realizadas com cinco alunos surdos do curso de Licenciatura em
Letras/Libras.
Palavras-chave. Estratégias de leitura – Língua de Sinais – Português segunda
língua.
Abstract. The aim of this paper is to investigate how the Brazilian sign language LB - may intervene in the learning process of reading of deaf people and the strategies they use to achieve good performance in reading texts in Portuguese. We
chose to work with the theoretical framework of Kleiman, Solé and Moreira. Based
on this, we propose a benchmark for a predicting activity of reading in three phases - the act of inquiry, information processing and validation of responses. We
arranged an interview schedule consisting of five questions for better understanding the relationship of deaf people with the written language. The activities were
held with five deaf students of the Bachelor's Degree in Languages.
Keywords. Reading strategies – Sign Language – Portuguese a second language
1
Andréa Michiles Lemos graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista em
Ensino de Língua Portuguesa pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e mestranda do Programa de PósGraduação em Linguística da UFC. Atualmente, atua como professora/tutora do curso de Letras/Libras
(UFSC/UFC). Email: [email protected]
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171
1. Introdução
Um dos problemas que necessita ser minuciosamente pesquisado, em relação ao ensino da língua portuguesa para os surdos e, mais especificamente, à prática de leitura realizada
na escola, é como as pessoas surdas se apropriam da língua portuguesa e que relação elas fazem entre essa língua e a língua de sinais.
Considerando que a LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais - é a língua natural dos surdos e que a realidade visual do surdo a legitima, entendemos que o ensino do português para
esses sujeitos deve acontecer de forma diferenciada, utilizando outra metodologia de ensino e
de aplicação da língua. Acreditamos que o português deva ser ensinado como segunda língua
e não como primeira, pois a primeira língua dos surdos é a língua de sinais1. Levamos em consideração que, se trabalharmos com duas línguas de estruturas diferentes (tendo em vista que
uma língua tem o canal de comunicação oral-auditivo e a outra viso-espacial), não poderemos
utilizar a mesma metodologia de ensino. Ao fazermos uso da mesma metodologia, recorrendo
às mesmas estratégias de ensino para o aluno ouvinte e para o aluno surdo, estaremos negando a este o direito à condição bilíngue2.
Por causa dessa inquietação é que nos propusemos a investigar como acontece o processo de leitura no sujeito surdo, mediado pela intervenção de duas línguas que estão em contato o tempo todo, e quais estratégias ele utiliza para ler os textos em português. Que tipos de
inferências ele faz ao ler um texto em português? Como a língua de sinais pode ajudar no processo de aquisição da leitura? São questões como essas que tentaremos responder nesse artigo.
Segundo Solé (1996) o processo de aprendizagem da leitura não difere muito de qualquer outro processo de aprendizagem da escola. Este processo requer que o aluno atribua
sentido ao que lê e para isso é de fundamental importância que o leitor aprendiz possa contar
com a ajuda de um adulto que acredite na sua competência leitora e que possa fazer intervenções para estimulá-lo cada vez mais. Nesse processo contamos com as experiências, as motivações e o conhecimento de mundo do aprendiz, que somados à ajuda do educador determinarão o ritmo de aprendizagem de cada um. No caso do surdo, para que a aprendizagem aconteça é necessário que a língua de instrução seja a língua de sinais, é através dela que o aluno surdo tem acesso ao conhecimento.
Este artigo é relevante para mostrar o quanto a língua de sinais é fator de fundamental
importância no processo de aprendizagem de leitura do surdo.
2. Estratégias de leitura
Numa perspectiva não tradicional de leitura, “ler é atribuir diretamente um sentido a
algo escrito. É questionar algo escrito como tal a partir de uma expectativa real (necessida1
É interessante esclarecer que as línguas de sinais não são meras transposições da língua majoritária para
o canal gestual. Ao contrário, há grandes diferenças estruturais entre a língua oral de um país e sua língua
de sinais.
2
Falando de Educação de Surdos, o termo bilíngue pode ser visto sob duas formas: a primeira envolve o
ensino da segunda língua, no caso do surdo o português, quase de maneira concomitante à aquisição da
primeira língua (língua de sinais); e a outra se caracteriza pelo ensino da segunda língua somente após a
aquisição da primeira língua.
EDUCARE – Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza – Ano 3 – Nº. 3 – Mar. 2011
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de/prazer) numa verdadeira situação de vida” (JOLIBERT, 1994, p.15). A leitura passa a ser
meio e não fim, ela não precisa da intermediação, nem da decifração e nem da oralidade para
acontecer plenamente; a leitura passa a envolver escritos reais: é lendo que se aprende a ler
(JOLIBERT, 1994).
Há vários modelos a partir dos quais a leitura tem sido explicada. O modelo que apresentaremos nesse artigo é o modelo interativo de leitura, principalmente, baseado nas ideias
de Kleiman (1989; 2004) e Solé (1998) que afirma ser a leitura um “processo mediante o qual
se compreende a linguagem escrita” (SOLÉ, 1998, p. 23).
O modelo interativo de leitura, segundo Solé (1998), não se centra exclusivamente
nem no texto, nem no leitor, muito embora este considere o leitor e seus conhecimentos prévios de fundamental importância para a compreensão de um texto. Para Solé, (1998) o processo de leitura segundo esta perspectiva seria:
Quando o leitor se situa perante o texto, os elementos que o compõem geram nele expectativas em diferentes níveis (o das letras, das palavras...), de
maneira que a informação que se processa em cada um deles funciona como
input para o nível seguinte; assim, através de um processo ascendente, a informação se propaga para níveis mais elevados. Mas simultaneamente, visto
que o texto também gera expectativas em nível semântico, tais expectativas
guiam a leitura e buscam sua verificação em indicadores de nível inferior (léxico, sintático, grafo-tônico) através de um processo descendente (SOLÉ,
1998, p. 24).
Por isso, para interpretar o que se lê o leitor utiliza simultaneamente seu conhecimento de mundo e seu conhecimento do texto. Para desenvolver a compreensão na leitura é preciso tratar a obtenção de informação, muito mais do que como um mecanismo de coletar
informações, mas como um modo de desvendar a tessitura linguística do texto.
Sobre compreensão de texto, Kleiman (1989) afirma que “é um processo altamente
subjetivo, pois cada leitor traz à tarefa sua carga experimental que determinará uma leitura
para cada leitor num mesmo momento e uma leitura diferente para o mesmo leitor, em momentos diversos” (KLEIMAN, 1989, p. 151).
Para Solé (1998), a compreensão depende de três pontos básicos que o leitor precisa
ter: 1) clareza e coerência do texto que lê; 2) conhecimento da sua estrutura e do léxico, sintaxe e coesão interna; 3) conhecimento prévio do conteúdo do texto, estratégias para lembrar o
que lê, assim como para compensar possíveis erros de compreensão.
Hittleman (1978) apud Moreira (1984) sugere algumas técnicas que ajudam o aluno a
adotar estratégias de leitura e compreensão e estratégias de predição de um texto. Essas estratégias têm o objetivo de tornar o leitor independente e maduro. Algumas das estratégias de
leitura e compreensão citadas por estes autores são: o reconhecimento do significado de palavras; o reconhecimento do significado de frases; a compreensão de parágrafos e a reconstrução do significante do texto3.
3
Para ler informações mais detalhadas sobre as estratégias de leitura e compreensão, ver Moreira, 1984.
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A atividade de predição centra a atenção do aluno para a informação fornecida pela língua e ajuda-o a estabelecer propósitos para a leitura, já que o ato
de predizer concebe-se como a avaliação sistemática de alternativas e a seleção daquelas que melhor combinam com as expectativas do leitor em relação ao significado do autor (MOREIRA, 1984, p.66).
A estratégia da predição permite ao aluno ser mais independente em sua leitura, uma
vez que não será mais passivo diante de uma informação dada. Mas, ao contrário, ele fará
inferências e terá maior responsabilidade quanto à seleção da informação relevante.
Para Kleiman (2004), ao falarmos de estratégias de leitura, falamos de:
operações regulares para abordar o texto. Essas estratégias podem ser inferidas a partir da compreensão do texto, que por sua vez é inferida a partir do
comportamento verbal e não verbal do leitor, isto é, do tipo de respostas
que ele dá a perguntas do texto, dos resumos que ele faz, de suas paráfrases,
como também da maneira com que manipula o objeto: se sublinha, se apenas folheia sem se deter em parte alguma, se passa os olhos rapidamente e
espera a próxima atividade começar, se relê (KLEIMAN, 2004, p. 49).
Conforme essa autora, as estratégias de compreensão aparecem integradas no decorrer
de todo o processo de leitura, mas podem agrupar-se em: as que acontecem previamente à
leitura e durante a mesma, como as que permitem a determinação do objetivo da leitura e o
conhecimento prévio sobre o assunto; as que acontecem durante a leitura, como as que permitem fazer previsões, inferências, rever e comprovar a compreensão e as que acontecem
durante e após a leitura, como as que permitem recapitular e resumir o conteúdo e ampliar o
conhecimento.
O leitor eficiente desenvolve a habilidade de perceber sua própria compreensão e,
quando ele percebe que sua leitura não tem sentido, ele busca meios para resolver a questão.
Concluímos que as habilidades de um leitor proficiente que caracterizam o processo de leitura
são: conhecimento da língua; conhecimento geral prévio; conhecimento do assunto e do texto; e as estratégias de leitura.
2.1. Estratégias de leitura em alunos surdos
De acordo com Lebedeff (s/d), os problemas que os surdos enfrentam durante o processo de aquisição da leitura em português são vários, entre eles: habilidades linguísticas inadequadas, em razão do reduzido input linguístico; metodologias de ensino inadequadas, por
causa das dificuldades de comunicação e da falta de apreciação da complexidade da aquisição
de linguagem; focalização pelos professores muito mais da estrutura da sentença do que dos
aspectos de uso da linguagem, como, por exemplo, a realização de inferências, a estrutura do
parágrafo e da história e a conversação como transmissão de informação sequenciada.
Estudos com crianças surdas provenientes de famílias na qual a primeira língua é a
língua de sinais trazem à tona a possibilidade de equiparar os níveis de leitura de crianças surdas fluentes em língua de sinais e de crianças ouvintes (FERNANDES, 1999; QUADROS,
1997a e 1997b).
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174
Buscávamos, entretanto, saber de que maneira a fluência em sinais pode ser responsável por uma maior habilidade em leitura, visto que muitas pessoas ouvintes fluentes em sua
língua podem apresentar dificuldades na leitura, ou seja, sabemos que não é somente a língua
de sinais que cria esse diferencial, mas outros fatores co-ocorrentes contribuem também para
o bom desempenho em leitura.
Não podemos esquecer que a leitura em português para o surdo passa obrigatoriamente pela tradução, mas ele não tem consciência desse processo e muitas vezes não sabe
fazer a separação entre o que é língua de sinais e o que é português. Então, o que acontece
com o surdo quando se depara com um texto em português?
Com base nos estudos de Moreira (1984), decidimos aplicar em nossa pesquisa uma
atividade de leitura utilizando a estratégia de predição que envolve três etapas: o ato de inquirir, o processamento da informação e a validação das respostas. Pretendíamos com essa atividade observar se o aluno surdo faz ou não uso dessa estratégia para compreensão em sua
leitura. Pretendíamos também observar que outras estratégias, atravessadas pela língua de
sinais, esses sujeitos utilizavam para ler em uma segunda língua que lhe é tão familiar e tão
estranha ao mesmo tempo.
Havíamos observado em trabalhos anteriores, em sala de aula, realizados com alunos
surdos, que estes utilizavam alguns recursos e estratégias de leitura que lhe são particulares.
Um desses recursos é o da soletração da palavra em alfabeto digital4, que acreditávamos ser
um recurso utilizado com muito mais frequência por surdos iniciantes na prática da leitura ou
por “maus” leitores. Esse recurso parece enfatizar, chamar a atenção para uma palavra nova
e/ou desconhecida, ou ainda, para demonstrar equivalências entre a língua oral e a língua de
sinais. Nesse último caso, após a digitalização da palavra se realiza o sinal. Um segundo recurso observado é o que alguns autores chamam de “ataque às palavras” 5, ou seja, os surdos ao
lerem um texto utilizam a estratégia de traduzir palavra por palavra, tendo como foco a tradução individualizada de cada palavra por um sinal, ação que dificulta a compreensão do texto
como um todo. E o terceiro recurso observado é o de ler o texto buscando a compreensão do
todo, ou seja, o significado do texto como uma unidade e não de cada palavra em particular.
Acreditávamos que esse recurso seria muito mais utilizado por surdos que tivessem uma vivência maior com a leitura, os considerados “bons” leitores, pois o que se propõe é uma prática de leitura a qual ler é traduzir, e não decifrar.
4
Os usuários das línguas de sinais utilizam-se de um alfabeto digital, baseado nas letras do alfabeto comum,
de A a Z, que permite a soletração e a tradução para o português ou qualquer outra língua alfabética.
5
‘Ataque às palavras’ é um tipo de estratégia utilizada na leitura que funciona como uma tradução literal
do que é lido. A cada palavra lida o leitor surdo relaciona um sinal, as palavras que não têm um correspondente direto na língua de sinais ficam sem tradução (chamamos de tradução, pois o processo de leitura
para o surdo envolve duas línguas, no nosso caso, a língua de sinais e a língua portuguesa). Dessa forma a
compreensão do texto fica comprometida, tendo em vista que uma tradução nunca deve ser feita ao ‘pé da
letra’.
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175
3. A pesquisa
Os sujeitos dessa pesquisa foram cinco alunos surdos do curso de Licenciatura em Letras/Libras6. Os alunos pesquisados, com faixa etária entre 20 e 46 anos, são provenientes de
escolas especiais de surdos7 e de escolas regulares. Para a escolha desses alunos utilizamos o
seguinte critério: alunos que considerávamos “bons” leitores e alunos que considerávamos
“maus” leitores, dentro da perspectiva de leitura que a universidade exige.
Para realização da pesquisa, elaboramos um roteiro de entrevista constando cinco perguntas que envolviam o tema leitura, com o objetivo de entender como o sujeito pesquisado
se relaciona com a leitura e com as dificuldades encontradas no ato de ler. Escolhemos o texto de uma das disciplinas do curso, Escrita de Sinais I, disciplina que no momento da pesquisa
ainda era inédita para os alunos. O texto foi retirado, na sua íntegra, da Hipermídia8 do Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem – AVEA9.
Iniciamos a pesquisa com uma conversa informal entre pesquisador e pesquisado, na
qual foi explicado o objetivo da pesquisa e a atividade que íamos desenvolver. Primeiramente,
fizemos uma atividade simples de predição que foi desenvolvida com a leitura inicial do título
do texto: “O surdo e a escrita”. Depois propiciamos um momento de leitura do texto na sua
íntegra e a partir daí pedimos que eles explicassem o que haviam compreendido e se o que
tinha no texto condizia com suas hipóteses iniciais. No momento seguinte, solicitamos que
eles comprovassem no texto o que tinham acabado de explicar. Durante todo o momento da
pesquisa, e depois dela, tentamos observar – seja através das perguntas ou da própria observação – que estratégias de leitura esses sujeitos utilizaram para construir o sentido do texto.
Diante da atividade de leitura que propomos, fizemos uma análise comparativa entre
os sujeitos pesquisados, tentando categorizar quais estratégias de leitura eles utilizaram para
produzir sentido e qual foi a estratégia mais relevante.
Vejamos como um dos sujeitos pesquisados respondeu a indagação feita a partir do título do texto:
L – Bom, primeiro... O português para o surdo, quando ele vai escrever troca todas as sentenças de lugar. O
surdo é assim! É próprio dele escrever dessa forma... estrutura da Libras é assim, diferente do português.
.... No Letras/Libras escrevemos várias coisas e é bom... no inicio é difícil, mas é preciso treinar e fazer muitas leituras aí se torna fácil...
P – Certo. Mas você acha que esse texto fala sobre o quê?
6
O curso de Letras/Libras é um projeto da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC em parceria com
mais dezoito Instituições Federais de Ensino Superior e o MEC. Este curso surgiu para contemplar o decreto
n º 5626/04 da Lei Federal 10.436/02 que tem por objetivo formar professores surdos e ouvintes (priorizando o surdo) para ministrarem a disciplina de Libras nas universidades de todo o país. Inicialmente, é um
curso realizado a distância, o pólo gerador é a UFSC. Atualmente, atuo no pólo UFC como professora tutora
desse curso.
7
Infelizmente, estudar em escola de surdo não é a garantia que se tenha a língua de sinais assegurada.
8
Material didático idealizado em recursos computacionais, que faz uso de diferentes mídias e de hipertextos.
9
O AVEA é o espaço onde acontecem quase todas as interações dos alunos com as disciplinas, com os outros alunos, com os tutores e com os professores e monitores das disciplinas.
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L – Ah, entendi... é para explicar sobre o texto?
P – (Confirmo com a cabeça).
L – Esse (aponta para o texto) é bom... escrever... porque o surdo pode escrever, ler, organizar e mandar por
e-mail... é importante escrever no AVEA, histórias...
P – Sim, você escreve no AVEA, mas e o texto “o surdo e a escrita” fala sobre o quê?
L – Esse texto aí? (apontando para o papel) Eu vou ler?
P – Sim. Você ainda vai ler, mas você acha que o texto fala de quê?
L – Ah! Eu acho que o texto... Explica sobre surdo e escrita. Eu acho... a leitura para os surdos que usam
sinais... professor ensina diferente... surdo escrever para quê? Antes não tem que escrever, não tinha escrita
própria para surdo.
Podemos observar que as respostas iniciais de L parecem um pouco confusas e ele parece não ter entendido a nossa pergunta. Inicialmente, suas respostas parecem ser aleatórias e
descontextualizadas. Após análise das mesmas percebemos que não se tratavam de respostas
aleatórias, mas que esse sujeito foi buscar em sua vivência no curso do Letras/Libras as razões pelas quais a leitura e a escrita eram importantes para ele. Observamos que todos os sujeitos pesquisados iniciaram suas predições falando da dificuldade do surdo com a escrita,
com certeza, instigado pelo título e pelas suas experiências com a escrita.
Verificamos no último trecho transcrito que diante da nossa insistência em saber de
que se tratava o texto, ele vai buscar respostas em sua vivência com a leitura e a escrita, além
de também insinuar que os surdos antes não escreviam porque não existia uma escrita própria
para a língua de sinais e que por isso o surdo não precisaria escrever. Em sua fala, busca elementos para justificar o fato de o surdo não escrever bem e justifica dizendo que “agora o surdo
escreve, antes não escrevia nada, só usava a língua de sinais... é novidade o surdo usar a escrita, por isso ele
troca tudo, não escreve português certo, mas parece que escreve português igual fala a Libras”. Na fala de L,
observamos que ele percebe com clareza a fase de interlíngua pela qual o surdo passa antes de
chegar à escrita padrão do português, embora ele não tenha consciência do que seja essa fase
de interlíngua
Vejamos a resposta dada por outro sujeito:
Lu10 – “O surdo e a escrita...” Não tenho ideia do que fala.
P – Do que você acha que trata?
Lu – Posso “inventar”?
P – (confirmo com a cabeça que sim).
Lu – Eu acho que o texto fala sobre o problema do surdo com a escrita. Porque o surdo escreve tudo trocado,
fora de lugar... Porque a Libras é diferente do Português. Ou também pode falar sobre o Sign Writing (SW)
11
. Pode ser um ou outro assunto.
10
Pedagoga formada pela Faculdade Christus.
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P – Tente detalhar um pouco mais sua opinião.
Lu – Pode falar que surdo tem problema em aprender o português... faz uma confusão com as regras gramaticais, mistura português e Libras... Quando o professor lê o texto de um surdo e não entende, taxa imediatamente de errado e não se preocupa em ver quais as causas disso. E às vezes, o texto tem significado se avaliado
o sentido e não os erros ortográficos e gramaticais.
Vimos na fala de Lu uma objetividade em nos responder. Embora inicialmente tenha
hesitado em falar, mas logo se arriscou e palpitou sobre o que estaria escrito no texto, para
isso utilizou o seu conhecimento e a sua experiência sobre o assunto. Ainda ousou se arriscar
um pouco mais e, baseada na informação de que o texto seria de uma disciplina futura – informação dada a todos os sujeitos –, arriscou dizer que o texto poderia ser sobre o SW, já que
era um texto sobre surdo e escrita.
Todos os pesquisados ofereceram certa resistência em predizer o conteúdo do texto, a
partir do título. Constatamos que nenhum deles tinha a prática de utilizar a atividade de predição como estratégia de leitura, e se mostraram resistentes a atividade. Quase todos os pesquisados falaram da dificuldade do surdo perante a leitura e a compreensão da mesma.
Acreditamos que não foi aleatoriamente que dois dos pesquisados fizeram referência
ao SW. Não somente baseados na informação de que o texto seria de uma futura disciplina,
informação que implicitamente aponta para a disciplina de Escrita de Sinais (SW) – que seria
estudada no próximo semestre – mas acreditamos que, além de baseados nessa informação,
eles citaram o SW porque acreditam que a leitura em sua própria língua facilitaria o aprendizado da leitura em uma segunda língua, como é o caso da língua portuguesa.
Além das estratégias de leitura e compreensão citadas por Kleiman (2004), Moreira
(1984) e Solé (1998), buscamos através dessa investigação, comprovar ou não o uso dos recursos e das estratégias de leitura, antes observados em salas de alunos surdos, – a soletração
digital, o “ataque às palavras” e a busca do significado na unidade do texto – por surdos universitários, que teoricamente têm um nível de leitura mais elevado.
O texto apresentado aos sujeitos foi disposto de maneira semelhante à forma como é
encontrado no AVEA, ou seja, quando imprimimos o texto, o link que existia no hipertexto
foi posto em evidência sob forma de negrito e sublinhado, e logo abaixo do texto principal, o
conteúdo do link foi colocado sob forma de glossário.
No momento da leitura, observamos que apenas um dos sujeitos, considerado “mau”
leitor, percebeu logo na primeira leitura que os termos negritos e sublinhados do texto faziam
referências às explicações que vinham logo em seguida no glossário. Todos os outros, apesar
da intimidade com os textos do AVEA, não perceberam os “links” na primeira leitura. E apenas um sujeito, considerado “bom” leitor, não percebeu os links em momento algum e fez
uma leitura corrente sem perceber as paradas que o texto exigia.
Várias foram as estratégias e os recursos de leitura e de compreensão utilizadas pelos
indivíduos no momento da leitura. Dentre eles, os citados por vários autores (KLEIMAN,
2004; MOREIRA, 1984 e SOLÉ 1998): passar o dedo sob o trecho lido, recurso utilizado
11
Sign Writing – O termo em inglês de Escrita de Sinais.
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178
apenas por um sujeito – interessante observar que esse recurso é considerado como sendo
utilizado mais por leitores iniciantes e observamos que ele foi utilizado pelo leitor que considerávamos ‘proficiente’ –, confirmar ou negar com a cabeça o entendimento do texto, franzir
de testa, releitura de partes não entendidas e o reconhecimento de palavras e frases, este último percebido pela sinalização realizada pelo sujeito após a leitura da palavra ou trecho.
Houve, ainda, outro recurso de compreensão leitora que foi utilizado por dois dos sujeitos pesquisados. Em determinado momento da leitura eles pronunciaram, oralmente, palavras ou trechos do texto na tentativa de confirmar ou buscar entendimento sobre o que liam.
Acreditamos que esse possa ser um recurso utilizado principalmente por surdos oralizados.
Não podemos esquecer que a oralidade, de uma forma ou de outra, acaba fazendo parte da
vida de pessoas surdas, seja porque são filhos de pais ouvintes que não sabem sinais, ou porque convivem com pessoas ouvintes que também não sabem a língua de sinais e precisam se
comunicar, ou ainda, porque fizeram fonoterapia, em escolas ou em clínicas fonoaudiológicas,
quando eram crianças.
A respeito das três estratégias ora comentadas, das quais acreditamos serem exclusivas
do leitor surdo, durante o momento da leitura e a análise posterior, observamos o seguinte: na
primeira delas, soletração em alfabeto digital, a qual acreditávamos ser utilizada apenas por
“maus” leitores ou por leitores iniciantes. Observamos que, ao contrário, foi a estratégia utilizada por todos os sujeitos pesquisados. Vimos que a soletração digital era utilizada pelos sujeitos sempre que o texto apresentava uma dificuldade maior de compreensão. Normalmente,
antes de soletrar a palavra ou parte de um trecho, eles franziam a testa e faziam uma expressão de que não estava entendendo.
A soletração digital também apareceu sempre que surgiu um termo completamente
novo ao sujeito. Eles reagiram a esses novos termos de duas maneiras: 1) tentaram levantar
hipóteses sobre o significado dos novos termos, para isso baseavam-se em informações textuais; 2) perguntaram a pesquisadora o significado dos termos não entendidos, mas como não
obtiveram respostas às suas questões, pularam partes do texto nas quais não havia compreensão.
Outra observação foi que essa estratégia da soletração era utilizada apenas na primeira
leitura do texto, não se repetindo durante a segunda leitura.
Não observamos em nenhum sujeito pesquisado a utilização da estratégia “ataque às
palavras”, pelo menos não da maneira que costuma acontecer, como uma tentativa de traduzir
palavra a palavra buscando a compreensão do texto. Acreditamos que os sujeitos da pesquisa
já são leitores maduros, mesmo os considerados “maus” leitores, no sentido de entender que
para buscar a compreensão do texto não é necessário saber o significado de cada palavra, mas
compreender a mensagem no seu contexto e a partir daí buscar os significados dos termos
não conhecidos.
Mesmo cientes desse processo de entendimento do texto, nenhum dos sujeitos pesquisados foi capaz de ler fazendo a tradução12 do todo, não atingindo assim uma compreensão plena do texto. Alguns sujeitos conseguiram traduzir e compreender, satisfatoriamente,
alguns parágrafos, mas ficou comprometido o entendimento geral do texto. Os sujeitos ao
12
A leitura em português, para o surdo, é um processo de tradução entre línguas.
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esbarrarem em termos não conhecidos, ficavam perdidos e realizavam traduções literais que,
na maioria das vezes, não condiziam com o real; ou usavam o recurso de tentarem traduzir
palavras da sentença na busca do significado do todo, algumas vezes sem sucesso.
As estratégias de leitura, para Kleiman (2004) e Solé (1998), são ações que envolvem
cognição e metacognição. As estratégias de leitura apontadas por nós, como estratégias utilizadas pelos leitores surdos, não poderiam ser diferentes. Podemos observar que essas estratégias são cognitivas ou metacognitivas dependendo da proficiência em língua portuguesa do
leitor surdo. Por exemplo, alguns dos sujeitos surdos, ao lerem o texto, utilizavam a estratégia
da tradução espontaneamente, utilizando-a de forma inconsciente para o entendimento do
texto; enquanto outros não, buscavam conscientemente elementos no texto que pudessem
traduzir para conseguirem entender o conteúdo lido. Observamos que ao encontrar obstáculos no texto eles buscavam estratégias conscientes de leitura, que pudessem ajudá-los na compreensão do mesmo.
O momento de confronto entre o entendimento do texto e a informação do próprio
texto foi mais complicado para alguns sujeitos. Alguns apresentaram uma resistência maior
nesse sentido, e continuaram buscando respostas em seus conhecimentos de mundo.
Como o sujeito L não conseguiu confirmar nem confrontar, no texto, suas hipóteses
levantadas inicialmente nem o que disse ter entendido a partir da leitura, ele abandonou o
texto e se apoiou muito mais em conhecimentos anteriores do que no texto para uma tentativa de confirmação “textual”. Então, seu momento de confronto textual acabou sendo ‘fracassado’.
No caso dos outros sujeitos, o confronto e a comprovação aconteceram mais correntemente, embora também tenha havido alguns contratempos. Por exemplo, Lu ao tentar explicar e comprovar textualmente o que disse sobre o segundo parágrafo, ignorou a primeira
parte do parágrafo, pois não havia entendido e baseou-se somente em elementos da segunda
parte do parágrafo para comprovar o que falou. Após uma intervenção nossa, ela voltou à
primeira parte do parágrafo e tentou reler para explicá-lo. Já em outros momentos, ela leu
sinalizando, fazendo a tradução, e depois explicou o que acabara de ler, ou seja, nesse momento, ela fez uma leitura já buscando através da língua de sinais um sentido para o que estava lendo em português. Não achamos necessário pedir comprovação textual, pois ela já havia
feito no momento em que leu e traduziu apontando no texto o que estava dizendo.
Sabemos que a trajetória escolar do surdo, geralmente, não favoreceu e não favorece a
esse sujeito um acesso eficiente e, principalmente, prazeroso à leitura. Pensando nisso, nosso
último momento da pesquisa foi um momento de entrevista, no qual buscamos compreender
qual é a relação desse indivíduo surdo com o texto escrito e com a leitura em língua portuguesa. Para isso, organizamos um roteiro com cinco13 perguntas envolvendo questões relacionadas à leitura e as dificuldades com a mesma.
Um aspecto interessante observado nessa entrevista é que todos os sujeitos pesquisados têm uma espécie de relação “profissional” com a leitura, todos eles responderam gostar
13
As perguntas do roteiro: 1) O que você entende por leitura? 2) O que você mais gosta de ler? Por quê? 3)
O que você faz quando não entende um texto que leu? 4) Você se considera um bom leitor? Por quê? 5)
Que tipo de dificuldades você encontra nos textos acadêmicos? O que você faz para superá-las?
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de ler, apesar das dificuldades, e ressaltaram, a todo instante, a importância da leitura para o
aprendizado, para a aquisição de conhecimento, para aprender a escrever, entre outros; nenhum deles ressaltou a importância da leitura para o entretenimento, para o momento de lazer
e nenhuma outra atividade que não tivesse relação com a escola.
Embora a revistinha em quadrinhos tenha aparecido como a leitura preferida da maioria deles, o objetivo pretendido por eles ao lerem esse gênero não é de se divertir, mas de aprender novas palavras, adquirir maior vocabulário em português. Todos eles definiram leitura a partir da sua importância para o conhecimento; descoberta, principalmente, das palavras
em língua portuguesa. Além do gibi, outros gêneros que apareceram como preferidos dos
sujeitos pesquisados foram revistas, jornais (caderno de política), textos das disciplinas da
faculdade, AVEA e livros sobre surdez.
No momento da entrevista encontramos um elemento (externo), o qual nós não havíamos considerado antes, que funcionaria como um tipo de “estratégia de leitura” e poderia
favorecer os momentos de leitura do surdo. Esse elemento do qual estamos falando é o “uso”
do intérprete. Todos os sujeitos pesquisados fizeram referência a essa “estratégia” nos momentos de dificuldades de leitura, principalmente em leituras acadêmicas. Mas, não iremos
aprofundar essa questão, pois merece estudos posteriores.
4. Considerações finais
Em nosso estudo, confirmamos que as hipóteses levantadas sobre as estratégias de leitura e de compreensão, que são de uso exclusivo do sujeito surdo, são realmente utilizadas
como elemento facilitador para a compreensão da leitura em língua portuguesa. Dependendo
do nível de conhecimento em português que o surdo tenha, ele usará mais uma estratégia do
que outra. Um surdo que tem um bom domínio sobre a língua portuguesa fará leituras usando
a estratégia de buscar no texto como um todo o significado do mesmo, para isso ele faz uso
da técnica da tradução, utilizando em poucos momentos a estratégia da soletração digital. Essa
técnica será usada, por esse sujeito, sempre que o texto apresentar uma dificuldade maior em
relação a termos que possam ser desconhecidos. Ao contrário, o surdo que tem um domínio
menor sobre a língua portuguesa, usará a estratégia da soletração com muito mais frequência.
Verificamos, então, que o recurso da soletração digital é usado pelos dois tipos de leitores e
não apenas pelo que domina menos o português como inferimos anteriormente.
A certeza de que a língua de sinais marca, atravessa o processo de leitura e escrita do
surdo é uma premissa que assumimos desde o início da nossa pesquisa. De fato a nossa investigação foi orientada sempre pela intenção de perceber como a língua de sinais participa da
construção do significado do texto escrito, já que o surdo, geralmente, não tem intimidade
com a língua portuguesa. Percebemos que os conhecimentos de mundo e de língua de sinais
que esse indivíduo tem influenciam diretamente na construção do sentido do texto.
As dificuldades que os surdos apresentaram em relação à predição e a interpretação de
texto certamente apontam para a relação diferente que ele tem com a língua portuguesa, mas
principalmente parecem ser consequência das limitações da escola em lidar com essa diferença. Apesar de todos os fracassos, a escola ainda insiste em alfabetizar o surdo nos mesmos
moldes aplicados ao ouvinte, utilizando a fala, o som como pauta de compreensão da escrita,
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estabelecendo formas de análise do texto e da palavra a partir de unidades da fala como o
fonema ou a sílaba. Os surdos, na sua grande maioria, não fonetizam a escrita, o que torna
todas essas estratégias inócuas e confirmam a inadequação de se ter procedimentos metodológicos que preconizam o (bom) desempenho oral como requisito indispensável à alfabetização.
Concluímos que a língua de sinais é um apoio indispensável para que o surdo se aproxime da língua escrita. É através dela que ele atribui sentido e reflete sobre esse objeto de conhecimento, e que, além disso, funciona como inspiração para construir estratégias e hipóteses que ajudam a entender a escrita. A língua de sinais motiva o surdo a compreender a escrita
como representação da linguagem e possibilita que, através dos pontos reais de interface entre
as duas línguas ele consiga predizer a escrita.
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de uma aproximação. In: SKLIAR, C. (org.) Atualidade da educação bilíngue para surdos. Vol.II.
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