leve literatura - Jornal Plástico Bolha

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leve literatura - Jornal Plástico Bolha
plástico bolha
www.jornalplasticobolha.com.br | jornalplasticobolha.blogspot.com
Há três anos, em um dia úmido de verão, voavam folhas
carregadas por uma brisa bem leve, na justa medida para
alçá-las no ar, nos corredores da PUC do Rio de Janeiro. Os
passantes que esbarravam com os papéis ou que se davam
o trabalho de recolhê-los do chão deparavam-se com uma
grande folha aberta envolvendo palavras. De maneira
aparentemente insólita, eles começavam a ler aquelas
palavras e logo percebiam que estavam tendo contato
com a primeira edição do jornal Plástico Bolha. Cada um
formava sua opinião; alguns riam, alguns comentavam e
alguns simplesmente não pensavam no assunto, pois o que
é involuntário quase sempre também é literário. Hoje, após
três anos, algumas folhas a mais e muitas conquistas, vários
daqueles passantes e muitas outras pessoas continuam
lendo, levando e, algumas vezes, até participando. A grande
diferença é que o vento não mais consegue carregar estas
dezesseis páginas nas suas mãos ou na internet, por mais
generosas que sejam; somente quem consegue são os nossos
leitores que, depois de todo este tempo, permanecem fiéis ao
leve estouro do Plástico Bolha.
Distribuição Gratuita
Ano 4 - Número 25 - Fevereiro/Março de 2009
leve literatura
Heinz L
anger
Clint Eastwood
importante esperar pelo último minuto,
DESTAQUES
Entrevista com
pela dor inexplicável que nos fará jus
à cruz que carregamos, invisível ferro,
que gela nas artérias e antecipa o tiro. Silviano Santiago, por Luiz Coelho
importante esperar pelo momento vazio
na coluna “Puzzles”
em que a dor trespassa então por pouco
A continuação de Jean Paul Sartre
e já não é mais dor, é tensão do mundo,
na coluna “Oráculo”
enxergar sem rédeas o terreno aberto. Antonio Mattoso fala sobre novo cd de Adriana Calcanhotto
A música em análises, notas e previsões por
Santuza C. Naves, Mauro Ferreira & Raïssa Degoes
textos de
não se colocar entre este e aquele século.
seguir sem nome (pois o nome na pele)
então engolir os séculos, regurgitar mais. Camila Justino, Ciro Trevisan, Fábio Reis Vianna,
para remexer o caldo fundo sob a terra
Camila Felicori, César Urbano & Laura Erber
aparentemente árida, de cerne difícil,
Poemas de
e só então cuspir fora o sumo — dar o tiro.
Ramon Mello, Catharina Wrede, Ismar Tirelli Neto,
Aline Miranda, Letícia Simões & Ricardo Domeneck
Leonardo Marona
BOLHETIM
O jornal Plástico Bolha começou a circular em março
de 2006, com quatro páginas e uma tiragem de
duas mil edições. Ao longo destes anos, passamos
por muitas transformações. A tiragem foi crescendo
aos milhares até atingir as oito mil cópias no número
11, edição que também ficou marcada pelo fato de
o jornal dobrar de tamanho, vindo agora com oito
páginas. Assim ficamos até o número 17, quando
novamente acrescentamos mais uma folha ao jornal,
passando a ficar com doze páginas. A terceira grande transformação ocorreu no número 22, que, além
do novo projeto gráfico, passou a vir com dezesseis
páginas. No número 23, a tiragem cresceu para os
dez mil exemplares e, desde a edição passada, já
estamos com treze mil. E vocês, estão curiosos para
saber onde é que isso vai parar?
Cartas
Olá,
Conheci recentemente o trabalho do jornal e muito me felicitei ao ler palavras em versos num jornal,
coisa que há muito se perdera.
Me comovi, me animei, me inspirei.
Gostaria de enviar alguns textos meus para vocês por puro deleite.
Ler que, além de montarem um jornal com poesias, vocês abrem espaço para ler os versos dos leitores
e deixam a palavra fluir entre os que gostam foi realmente gratificante.
Quem ama a palavra entende do que falo.
Estão de parabéns!
Anita Coutinho
via e-mail
Blog do Bolha
Agora é de vez! O jornal Plástico Bolha chega
com tudo na internet e, além do nosso site
(www.jornalplásticobolha.com.br), temos um
blog: o Blog do Bolha. Lá, nossos leitores podem
encontrar parte do conteúdo que não saiu no
jornal e informações sobre os nossos autores
consagrados. Além disso, o espaço é usado para
a divulgação de lançamentos, shows e eventos.
Tudo regado a muita poesia!
Daniel Piras
jornalplasticobolha.blogspot.com
EDITORES Lucas Viriato | Paulo Gravina Editora-Assistente Marilena Moraes
Conselho Editorial Luiz Coelho | Gregório Duvivier | Isabel Diegues
Comissão Avaliadora Constanza de Córdova | Carlos Andreas | Nadja Voss | Mauro Rebello | Letícia Simões | Maria Silvia Camargo
Alice Sant’Anna | Bruna Piantino | Edson Santana | Manoela Ferrari | Cristiane Mendes | Rosimery Trindade | Nathanna Alves | Raïssa Degoes
Coordenação Daniela Pinheiro | Lucas Viriato
Revisão Marilena Moraes | Rubiane Valério | Rafael Anselmé | Gabriel Matos
DIAGRAMAÇão Mariana Castro Dias
Equipe Márcia Brito | Beatriz Pedras
Agradecimentos Carlos AA. de Sá | Jovino Machado | Maria Peres da Silva | Marília Rothier
DISTRIBUÍDO no estado do Rio de Janeiro e nas cidades de Belo Horizonte, Vitória, Brasília, Salvador e Porto Velho | TIRAGEM 13.000 | IMPRESSO na CUT Graf
ENVIE SEUS TEXTOS PARA [email protected]
2
O Plástico Bolha
já adotou a
nova ortografia.
Encontre as
grafias novas!
2 poemas de Letícia Simões
Noite
saí tropeçando
fuligens.
rastro de pólvora
cola, descola
medo da sua língua
na minha — segurei.
a mão
quente
medrosas gotículas brotaram
do útero.
essa flor
é
para você.
Angelo Abu
Sopros
escrevi bolhas de sabão.
pois tive medo das palavras
ficarem marcadas em sangue.
e você bem sabe como é difícil
limpar manchas vermelhas
em pele tão branca.
[email protected]
Derradeira madrugada
Não tinha por que chorar, tudo já estava resolvido dentro do peito. Este ponto de ônibus neste nada, escuro e no meio de tudo. Porque o mundo está desabado bem aqui na minha cabeça. Mais
uma vez, esperando a Kombi que me levará para a estação das barcas, neste ponto de ônibus de
cimento, caindo aos pedaços e rodeado por mato com cheiro de queimado. Talvez este cheiro não
me deixe nunca mais. Não é só cheiro de mato queimado, sinto também cheiro de pneu queimando misturando-se ao lixo. Aqui algumas pessoas transformam terreno baldio em depósito de lixo,
depois ateiam fogo. O cheiro é horrível, mas não sei, acho que sentirei saudades.
Sim, ela é a única pessoa que um dia me entendeu. Aquele sorriso sarcástico, a mão direita a segurar
o cigarro e o olhar de pomba-gira rindo da minha desgraça. Mas ela entendia, e ria, porque talvez a
desgraça dela fosse maior, e quando ela caía em desgraça era um pote cheio de mágoa; me ligava a
qualquer hora da madrugada. Nós somos seres da madrugada. A lua sempre nos acolheu.
Esta noite houve a conversa derradeira, acabou. Ao me despedir, antes de cruzar a porta, ela estava
com os olhos marejados; então os virou, olhou para o chão e deu uma tragada.
Caminhei pela estrada de terra até o ponto de ônibus. Foi ela quem terminou, disse que estava apaixonada por um cara, um cara mais velho. Sinto uma tristeza profunda, mas ao mesmo tempo certo
alívio, não sei, é tudo muito forte, tanto que cansa.
É como se estivesse voltando da guerra, meu corpo está pesado. Não há ninguém neste ponto de
ônibus, apenas uma alma perdida, a minha. O céu, cheio de estrelas, parece que vai me engolir. Hoje
é sábado, duas da madrugada, e as pessoas devem estar se divertindo.
www.leonardodavinci.com.br
Av. Rio Branco, 185 – Subsolo – Ed. Marquês do Herval
Centro – Rio de Janeiro/RJ Tel.: (21) 2533-2237
Avisto uma Kombi ao longe. Ao entrar, peço ao motorista que me deixe na estação das barcas. As ruas estão
desertas, os subúrbios distantes do Rio de Janeiro, estão todos assim. A Kombi para. Um grupo de pessoas
entra. Estão todos animados, parece que estão retornando de um baile funk. Conversam alto e riem. Eu
estou lá atrás. Sinto-me protegido pela Senhora Madrugada, ela nunca me faltou. Rumo a Copacabana.
Fábio Reis Vianna
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PUZZLES
por Nastassja Saramago de A. Pugliese
Jean-Paul Sartre: condenado à liberdade — Parte II
A náusea é uma experiência que representa a fonte
da percepção existencial; vem a ser um símbolo de
autenticidade por revelar o âmago da sensação de
existir. Deste modo, ela acaba por anular o peso de
todo o valor pré-estabelecido. Fugir da existência
é impossível, “existir é ser, apenas. Tudo é gratuito,
este jardim, esta cidade, eu mesmo. Quando acontece de nos darmos conta, isso nos torce o coração e
tudo passa a flutuar”. Essas são as questões existencialistas por excelência: como lidar com a liberdade
absoluta e com o absurdo que é estar vivo. A filosofia existencialista se sustenta o tempo todo sobre
essas bases. Nas memórias de Simone de Beauvoir,
companheira de Sartre, ela relata que Raymond
Aron, amigo do casal, quando volta de Berlim para
Paris, vai com eles ao bar. Ali Simone se dá conta do
que ela procurava na filosofia. Aron, tomando um
coquetel de abricó, aponta para seu copo, olha para
Sartre e diz: “Como vê, meu caro, fazer fenomenologia é ser capaz de falar deste coquetel e, dele, fazer
filosofia”. Simone se emociona diante do que vê;
porque, para ela, fazer filosofia era justamente isto:
recriar a experiência cotidiana voltando-se para as
coisas e capturando-as exatamente do modo como
ao lado dos trabalhos propriamente literários, havia
elas se apresentam para as ideias.
o resto, quer dizer, tudo: o amor, a amizade, a política,
Depois da guerra, ele funda a revista Les Temps Mo- as relações comigo mesmo... o que é que eu sei?”
dernes. Muitos acusavam Sartre de ser uma influência O ser e o nada foi escrito ao mesmo tempo que o
perniciosa para a juventude. Violentamente atacado, nazismo ocorria e foi publicado em 1943, no auge
ele também foi extremamente mal interpretado. da Segunda Guerra Mundial. A principal tese do livro
Sartre recebeu críticas ferozes como esta que saiu no está exposta na conferência “O Existencialismo é um
jornal de direita Le Figaro: “Não há obra mais ofensiva Humanismo”. Seu princípio é “a existência precede a
ao ser humano, mais degradante que a sua. O ódio é essência”, que quer mais ou menos dizer que a realia sua profissão e escrever é o seu hobby”. Isso porque dade concreta é anterior a qualquer abstração sobre
queria desconstruir os costumes, dissolver as institui- ela. A primazia da existência sobre a essência implica
ções e preconizar a imoralidade. Mas Sartre era sério a condição inacabada do homem, que precisa se
por demais e sua ética era muito mais dura do que a criar, se fazer, se definir em sua própria existência.
de qualquer moralista da época. Se não há lei moral a Desse modo, Sartre afasta-se de uma tradição que
ser corroborada e se cada um deve viver sob a égide afirma que o homem possui uma essência intrínseca
de seu próprio bom senso, a responsabilidade sobre e prévia e por isso está limitado e determinado por
as ações recai toda sobre o indivíduo que a pratica. ela. Sartre assume que, na consciência do homem,
refletir e existir são o mesmo e, portanto, é sua consPortanto, não há desculpas.
ciência que determinará o correr de suas ações e o
Sartre escrevia em meio ao público, sentado em sentido de sua própria vida. Desse modo, denuncia
seus cafés prediletos em Saint-Germain-des-Prés. Ao que o homem erra ao acreditar que deus o criou.
contrário da maioria dos filósofos, que se recolhem Para ele, é o homem que cria a ideia de deus. Nesse
em bibliotecas e trabalham imersos em solidão e sentido, cada um é responsável pela realidade que
silêncio, Sartre achava propício escrever em lugares cria para si próprio e pelos efeitos que essas formulotados de gente. “A única tarefa de minha vida lações causam no mundo. O homem deve, portanto,
era escrever. Eu queria escrever e isso não era uma assumir sua condição de liberdade e, virtuosamente,
questão, isso não foi jamais uma questão. Apenas, ter uma existência autêntica.
4
Pequena advertência teórica:
Existem vários tipos de existencialismo e é
falaciosa a ideia de que Sartre inaugurou o
movimento. Kierkegaard foi inspiração para
as reflexões existencialistas, e suas ideias chegaram à França nos anos 1920 e 1930, graças
aos imigrantes russos Nicolau Berdiáev e Leon
Chestov. Mas as maiores influências foram Heidegger e Husserl. Este, tendo como lema “de
volta as coisas mesmas”, desenvolve o método
fenomenológico, na intenção de superar a
oposição entre sujeito e objeto, entre realismo e
idealismo. Para Husserl, a consciência se caracteriza pela intencionalidade e sua experiência
reflexiva, em que o mundo, para ser capturado
e ter seu modo de constituição apreendido,
precisa “ser colocado entre parênteses”. Mas
a filosofia existencial de Sartre é singular e por
isso vai além: ele não apenas coloca o mundo
entre parênteses, mas captura-o em hífens,
infere travessões, joga-o frente ao vazio dos
dois-pontos e deixa as interpretações terminarem em reticências...
Sugestões de Leitura:
Sartre, Jean-Paul. O muro.
—A náusea.
— Entre quatro paredes
— Idade da razão
— O existencialismo é um humanismo; A imaginação; questão de método in Os
pensadores. Editora Abril, 1973.
— O ser e o nada.
Da Penha, João. O que é existencialismo. Coleção
Primeiros Passos, Editora Brasiliense, 1992.
Rowley, Hazel. Simone de Beauvoir e Jean-Paul
Sartre Tête-a-Tête. Editora Objetiva, 2006.
COHEN-SOLAL, ANNIE. Sartre Un Penseur pour
le XXIe Siècle. Decouvertes, Gallimard, 2005.
MULHERES-DAMAS
por Nicole O’Hara
Carmem Miranda
Veio Maria do Carmo
Logo ganhando outra alcunha
Mira como anda
Essa tal Carmem Miranda
Cabrocha que veio do Porto
Trazer pra cidade
O samba rasgado
Veja o que ela usa
Essa cabeça cheia de frutas
Com sua boa vizinhança
Fez-se um raio de esperança
Explodindo em música
Terminando barbitúrica
Depois do fim
Para ler em voz alta
por Vivian Pizzinga
Mala desfeita
Abrindo a mala, desfez-se de tudo, desfez-se da mala, das roupas, da vida. A
mala vazia, diante de si. A mala aberta, vazia e calada. Abriu-se de tudo que
antes trazia, fechou-se de ontens, de dias, de quases. Queria um novo espaldar.
Cadeiras quebradas não a sustentavam. A casa vazia e a mala aberta, a vida
murchava. A mala murchara, a casa embargara. A vida alongava-se pra frente
e pra trás, a vida era aberta, era incerta, era torta, era morta. A mala já morta
olhava sem rumo, a mala opaca de dias felizes. A mala encarnava um passado
distante. A mala cansada de muitas viagens, abrira-se toda. E ela, diante da mala,
diante de si, diante da casa, vazia, silente, sonâmbula, pensava em bobagens.
Abria-se a mala sem nada a lhe dar. E ela, então, levantou-se. Diante da mala,
diante de si e diante da vida, guardada na casa, deserta. Olhou para os lados,
míope que era. Via-se toda, e sem nada por perto, e sem nada por dentro.
Via-se ausente. E a mala também. E a casa, de vidro. Paredes translúcidas. Não
havia mais nada. Apenas ela, apenas a mala. Sobre o chão, descascado, azedo.
E a vida, descascada, amarga. E a mala, sem casca, sem casa, sem rumo. Ela e
a mala, dentro da casa, cansadas da vida, viagens, visões, não tinham o quê.
Não tinham qualquer. Não sabiam de onde, não sabiam pra onde. Não se sabiam, tampouco. Não havia o que fazer, e o mundo caía. Sobraram lembranças,
soçobraram vinganças — a vida era rouca, a mala era surda, a casca era tênue.
Acabara-se o prumo, a casa apagou-se. joguei fora a carne seca que apodrecia
sob o sol poeirento do meio-dia
no meio da sala do apartamento
no corredor que leva aos quartos empurrei o primeiro cristal
que derrubou o segundo que derrubou o terceiro
até que sobrou só o ruído dos meus passos
pisando o vidro
entrei no quarto
tirei o sapato
e comecei a dançar
Renato Nogueira Neto
Na casa de minha avó tinha aquele espelho grande
com dois espelhos móveis laterais.
Eu os abria e me via refletida ali,
infinitamente.
E brincava com os diversos ângulos
que meu rosto poderia ter.
Aline Miranda
5
BOLHAS GERAES
Amores d’além mar
Mudo
Acordou pensando ter escutado seu nome, mas era
apenas o despertador que o chamava para mais
um dia naquele lugar estranho. Londres era fria e
não tinha sonhos durante a maior parte do ano.
Sentia vontade de chorar, mas não fazia seu gênero.
Era forte. Nem mesmo sua despedida havia sido
melancólica. No fundo, sentia, realmente, vontade
de chorar.
Foi ontem; eu descobri que não tenho mais voz. Eu
empurrava minha própria cabeça no travesseiro.
Eu me erguia de costas. Fechava os olhos. Sentia o
calor da grama no meu corpo. Inspirava profundo
e sentia o cheiro da terra molhada pela chuva.
Hoje mesmo eu me vi, estou tão cansado. Hoje
mesmo eu me vi, eu não tenho mais rosto, eu
não tenho corpo. Eu descobri que eu choro por
um olho só. O corpo na minha frente, as palavras
escorregavam. Eu tinha logo um tumulto. Meu
corpo, minha mente, toda bagunçada. Que perda
de tempo. Eu não sirvo pra nada. Você tá me
ouvindo? Claro que não, ontem eu descobri que
eu sou mudo. Tá vendo esta marca no meu rosto?
Este corte no meu peito? Pois é, eu sou mudo. E eu
acho que é até prazeroso permanecer calado. Esse
lugar parece uma montanha, seu corpo parece
uma montanha. A televisão continua falando. E
continua chovendo. Acho que nunca vai parar de
chover. E a culpa é minha. Talvez minha dor de
cabeça seja só um aviso. Esta lágrima, este pranto
todo diz alguma coisa. Não diz? Hoje mesmo, eu
me olhei no espelho. Talvez eu seja mais bonito
que eu imagino. Tá chovendo, está tudo sumindo,
está sumindo sem fazer nenhum barulho. E eu
estou entendendo. Eu acho o amor uma mentira.
Eu acho felicidade uma mentira. Eu acho que já
está amanhecendo. Tem cheiro de morte saindo
da terra. E talvez este bicho, este verme que está
me comendo vivo seja prazer. Aquele aperto no coração havia lhe perturbado outrora, tanto que já, até mesmo, havia sido indicado a
um cardiologista, mas este teimava em atestar que
era forte como touro.
Sentia falta de lugares d’além mar. Sentia falta daquele cheiro. Sentia falta dos seus sonhos. Sentia
falta daqueles cabelos longos em sua cara todas as
manhãs. Eram lindas aquelas manhãs. Aquela terra
fria não era bem o que sonhara. Quando pequeno,
sonhava em morar em uma praia cheia de palmeiras
verdejantes. Adorava clichês. Com o passar do tempo
os sonhos foram se desgastando assim como a idade.
Não aguentava mais ouvir falar em sonhos. Deixara
tantos para trás que nem mais se importava se ainda
tinha algum em sobejo nos confins da alma.
Não somente sonhos deixara para trás. Pessoas
também. Morria de vontade de ligar e falar que
sentia falta, mas era deveras orgulhoso. Saudade
era uma palavra que não falava mais, no máximo
dizia um singelo miss you. Nem de longe tinha o
mesmo impacto.
Ainda deitado, perdido em seus próprios pensares,
não fazia questão de levantar, não fazia questão de
acordar. Perdera toda a noite anterior olhando as estrelas e fazendo contas para descobrir quanto tempo
levaria para nadar todo oceano de volta pra casa. Sim,
era o que pensava, seria impossível. Quando chegasse,
se chegasse, já estaria velho demais até mesmo para se
reconhecer no espelho, mais ainda para reconhecê-la.
Depois de tanto tempo nem a voz adocicada, que no
passado o conquistara, seria a mesma.
O telefone tocou. Nunca o chamavam. Podia ser
ela. O que diria? O que conversariam? O telefone
tocou mais uma vez. Como ela estaria? Estaria com
alguém? Mais um toque. Estariam realmente felizes?
... Fez-se um silencio mórbido. O pior que já escutara.
O telefone não tocava mais. Caiu-lhe uma lágrima
perdida. Outro dia começava. Será melhor assim —
pensou. Levantando-se, não percebeu, mas deixara
mais um sonho para trás — talvez, não só um sonho,
mas deles, o último.
César Urbano
6
Ciro Trevisan
O outro
Carmelina gostava de procurar cacos seus nos
outros. De modo contente e alegre, ela sabia
sempre os melhores caminhos, os melhores
percursos, para chegar aonde quer que fosse.
Às vezes caminhava muito, mas chegava, ela
sempre chegava, e o que lhe permitia certa
tranquilidade, aquilo chamado pelos gregos
de ataraxia, era a quase certeza que chegaria.
Isso porque se considerava uma moça de sorte,
tudo acabava dando certo e se ajeitando; a única
coisa que não era definitivamente ajeitada era
ela: cabelos despenteados, rosto de expressão
cansada, corpo trêmulo, mas sempre um sorriso,
um sorriso verde que refletia sempre a sua
tranquilidade esperançosa. Para ela, era como se
não houvesse liberdade, portanto ela não teria
que se preocupar com quaisquer escolhas que
fizesse, pois, ao final, ela sempre chegaria ao
mesmo lugar. Com essa visão determinista da
vida, ela não via motivos para se afligir e assim
seguia a vida, sorrindo.
Um dia, seguindo um dos caminhos que
escolhera, se deparou com o espelho. Levou um
susto enorme ao enxergar não apenas cacos de
si, mas ela toda, completamente traduzida em
um outro, o seu outro. No primeiro momento
não se assustou, apenas pensou tranquilamente,
[que pessoa estranha esta que acabei de
conhecer], mas logo percebeu o que ocorria.
Não era ele, não outro, mas ela, completamente
identificada, em um espelho no qual poderia
tocar, sentir, ouvir, um eu-outro completamente
externo a ela.
Começou, então, a sentir-se incomodada com
o sorriso esverdeado dele e com toda a leveza
como ele via as coisas, a vida e as cores, e teve
uma vontade imensa de fugir. Olhou para
os lados e viu não haver qualquer obstáculo
que a impedisse de fugir e, logo em seguida,
percebeu viver um momento muito distante da
ataraxia, outrora imperativa em sua vida. Sentiu
uma pequena dor no peito quando ele a olhou
com aqueles dois olhos imensos. Totalmente
vulnerável, pensou o que lhe poderia dizer, mas
não conseguia dizer, nem correr, nem fugir. Ficou
ali em pé, parada, tremendo, violeta, brilhante.
Olhou para o chão e ali encontrou algum apoio
para o que sentia, o chão não refletia sua imagem,
o problema era o espelho, o espelho logo
descobriria todos os seus segredos e ânsias, todo
o seu sofrer sorridente, toda sua alegria lenta,
toda sua presença aparentemente tranquila, mas
verdadeiramente leve.
Ele a olhou e viu uma pessoa totalmente diferente
dele, totalmente outra, [que mulher estranha esta
que me olha assim, tão assustada, como se eu
fosse capaz de feri-la, de parti-la em pedaços].
Olhou para os lados e não havia ninguém
perto que o pudesse ajudar na compreensão
daquela estranha tremendo frente a ele. Que
novidade era esta de momentos estranhos como
aqueles? Pensou em dizer algo para expressar
o estranhamento, mas isso poderia parecer a
ela um pouco... rude. Olhou-a novamente e
logo o sentimento de estranhamento mudou.
Vontade de apreender aquela alteridade e buscar
compreender-se a partir dela. Ensaiou um sorriso,
sentiu vontade de abraçá-la e assim o fez. Ela, que
não teve forças para desvencilhar-se nem sorrir,
deixou-se abraçar e chorou todas as lágrimas de
sua presença ambígua. Camila Felicori
CONTOS INSÓLITOS
Ovulação
segundo dia de Ovulação
ninguém dá um vintém para minha ovulação. o mundo
não se importa porque todos estão com contas atrasadas para pagar, todos têm que se preparar para o verão
malhando numa bicicleta que não sai do lugar sem
perceber se o vento lá fora está soprando mais forte. se
a tempestade está chegando. não querem saber se a
reação química do meu corpo é magia divina, é dádiva
da vida, assim tão cheia de complexidades simples. tão
puro-cheio. não. de jeito maneira, o dia tem 24 horas, o
ano, 365 dias e corre porque agora é agosto, depois é
dezembro e existem filas pra enfrentar trânsito, ponte
aérea, reunião, médico, dentista, buscar o filho na escola,
ligar pro marido comprou o rabanete? e eu. eu ovulando tentando captar uma borboleta voar, eu carrego a
esperança dentro de mim. eu acalmando meus óvulos
inquietos. eu tentando entrar nos olhos do guardador de
carro, eu estou ovulando, percebe? não. o importante é
que o contrato milionário está para ser fechado. e o meu
contrato em aberto só segue ao que não existe no papel,
ao que não depende de ponteiro, de pontuação ou de
qualquer assinatura. é o meu corpo se desenrolando no
seu ritmo próprio. calmamente e pulsante. mas é besteira
porque é preciso atender o telefone. ligação de gente
importante. internacional, tá sabendo? então fechado.
ah! e não esquece de avisar pra empregada arrumar
aquela baderna, uma incompetente, não faz nada do jeito certo. eu ovulando. as pessoas se cruzando na rua, no
ônibus, no carro, o tempo passando, o dia chegando ao
fim. é mais importante do que pensar que o mundo está
quase no fim. as estrelas aparecem mas a janela deve ser
fechada porque o tiro pode chegar pela culatra ou não,
ele chega, não se sabe de onde. as portas trancadas. os
sonhos perdidos. as preocupações. emergências devem
causar insônia. eu deixando de ovular. amanhã tem que
acordar cedo. e comprar rabanete.
como se deu a Ovulação
acordei sonhando que meu ginecologista subia em cima de mim, eu cedia passivamente a cada movimento
que ele insinuava. depois de breviamente sóbria, um
leve susto pairando: de onde tirei esse sonho? depois
de pôr o pé no assoalho frio, depois do banho, do pão,
de bochechar Colgate, de pentear o cabelo, e, logo em
seguida, uma chacoalhada nos fios dando um ar natural,
suuuper natural, e de passar o olho no jornal, as últimas
notícias, as de sempre. parti. parti para a jornada com
o Carlton aceso e um friozinho na espinha. meu destino era o Doutor S. lá, tira a roupa, a vergonha fica, o
nervoso da pinça torcendo meu útero, e raspa ali, olha
dali e daqui, passa um cano, uma câmera passando por
minha vagina, os dedos de Doutor S. também passando, gesticulando. o que mais suporta minha vagina? eu
segurando o braço da Dona Miriam. ai, meu Deus. nada
de Doutor S. subir em cima de mim com as mãos fortes.
eu só vejo os olhos azuis que adentravam minha vagina
por cima do tecido também azul que cobria minha doce
piriquita (assim Doutor S. chama). — minha filha, você
está ovulando. você está realmente ovulando. olha a
tela. ele agora focava seus olhos na tela, embasbacado
com minha ovulação, assim suponho. uma bola enorme,
uma bomba de chocolate piscando. quanto aos exames,
toneladas de papel e potinhos com isso e aquilo, eu já
nem escutava o que Doutor S. falava. não me importava.
porque eu estava ovulando. e para quem ovula o mundo
é outro, é diferente. carregava dentro de mim princípio
de vida e agora eu entendia o que meus quadris estavam
querendo dizer ao sair dali. eu derramava um mel afiado
que escorria dos meus óvulos que maduros cintilavam.
eu sentia meus óvulos pulsando, dando cambalhotas
na trompa. sim, eu estava ovulando. e cada passar de
mãos nos cabelos era iniciativa da minha ovulação, cada
passo minuciosamente calculado. cada gesto fazendo
minha pele arrepiar pelo vento que esbarrava, nos meus
óvulos. a minha ovulação. e sorri para as crianças, para o
senhor, para a moça, para a secretária, para o poste, para
o carro, para as placas, para a calçada, o senhor das balas,
balas açucaradas de caramelos, para a rua, quanta gente
passando, quanto suor, quanta respiração ofegante. o
mundo devia ser habitado por mulheres que ovulam
permanentemente. do celular mandei mensagens que
deixassem subentendido o que meu corpo exalava. não
me importava se é segunda-feira, muito menos se são
nove horas da manhã. eu sabia e o mundo precisava
saber. eu estou ovulando e estou no cio.
Sempre dúvida cheguei
com uma dor nublada no peito e aquela voz fora de foco que você conhece bem. Leio calada o detalhe da sua boca quieta que diz tanto. Mudamente lhe pedi socorro Mudamente me socorreu.
Catharina Wrede
Eu escrevi cartas de amor
que ficaram perdidas
em uma velha gaveta.
Agora, revendo-as
Vejo
Que elas falam e entendem de amor
Muito mais do que tenho falado ou entendido
Luciano Lanzillotti
Camila Justino
PÃES ANTEPASTOS MASSAS MOLHOS
PIZZAS SALGADOS DOCES TORTAS
Entregas na Gávea e no Leblon / sábados, domingos e feriados
www.ettore.com.br
Av. Armando Lombardi, 800 - lojas C/D. Condado de Cascais, Barra da Tijuca - RJ Tel.: 2493-5611 / 2493-8939
7
POR DENTRO DO TOM
por Santuza Cambraia Naves
O mestiço e o negro na música brasileira
O mestiço (1)
Mário de Andrade postulou, no Ensaio sobre a música brasileira, de 1928, a recriação das sonoridades
populares, sobretudo as folclóricas, no âmbito da
música de concerto. Esse procedimento em muito
contribuiria, segundo ele, para a constituição da
identidade nacional, na medida em que os traços
essenciais da brasilidade estariam contidos nas
cantigas do povo. Assim, caberia aos compositores “interessados” nesse projeto construtivo pesquisar os sons populares cujas origens remontam
às “três raças” (a ibérica, em si mesma híbrida, a
amarela, representada pelo indígena, e a negra
ou africana) e desenvolvê-los num registro erudito. Heitor Villa-Lobos, entre outros músicos do
período modernista, levou a cabo essa proposta
de Mário, ao mostrar-se atento para os sons miscigenados das mais diferentes regiões do país —
do choro carioca às toadas tradicionais de outros
estados — e trabalhá-los em formas sinfônicas
ou camerísticas.
que qualquer outra forma artística, comentasse o
período conturbado que se seguiu ao golpe militar
de 1964.
Foi a partir desse momento que o compositor
popular no Brasil agiu como crítico e intelectual.
A atuação crítica se deveu à retomada do estilo
bossa-novista de compor, que utilizava, como os
artistas vanguardistas do início do século XX, recursos metalinguísticos e intertextuais. Lembremos,
a propósito, que a formação de Tom Jobim não
passou por conservatórios tradicionais, mas por
professores particulares que valorizavam atitudes
experimentais no campo artístico, como é o caso de
Hans-Joachim Koellreuter, músico alemão que, ao
aqui se radicar, no final dos anos 30, introduziu a
música dodecafônica e fundou o movimento Música
Viva. A educação de Tom deveu-se também a figuras ligadas ao modernismo que aqui se instaurou,
tais como Tomás Terán, pianista espanhol que veio
morar no Brasil em 1930, a convite de Villa-Lobos.
Algumas décadas depois, em meados dos anos 60, E não são poucos os músicos e críticos que veem
foram os compositores populares que deram con- convergências nas sensibilidades musicais de Villatinuidade à prática de recriar os sons oriundos das Lobos e Tom Jobim. Edu Lobo, por exemplo, em
três etnias em questão. Esse fenômeno aconteceu entrevista a mim concedida, declarou que “a bossa
a partir do surgimento de uma nova categoria no nova tem a alma do Villa”.
cenário cultural do país: a Música Popular Brasileira, representada pela sigla MPB. Em comum com a Se o procedimento crítico remetia ao próprio procesproposta modernista, a MPB não apenas visava for- so de composição, a conduta intelectual, por outro
talecer a identidade nacional pela música (no caso, lado, voltava-se para o compromisso do compositor
a popular) como também procurava representar o com o seu tempo. Trata-se aqui de uma concepção
Brasil por esse triângulo racial. Assim, compositores mais ampla de intelectual, que remonta à experiênda estirpe de Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo cia de vincular a arte e o conhecimento às questões
atuaram no sentido de reunir em suas canções infor- da vida pública e teve início com o engajamento de
mações poéticas e musicais tanto locais quanto uni- artistas e escritores franceses no caso Dreyfus, na
versais, tanto referenciadas à “baixa cultura” quanto virada do século XIX. Os modernistas, de maneira
à “alta”, burilando-as, como na receita modernista, geral, atualizaram essa atitude, procurando vincular
num registro que destoava da concepção corrente a arte com a vida. Entre nós, os artistas vinculados
ao movimento assumiam compromissos públicos,
de cultura popular.
a exemplo de Mário de Andrade e Villa-Lobos, que
Os dois compositores citados criaram seus estilos desenvolviam projetos culturais, ocupavam cargos
musicais com base no processo de selecionar de- e envolviam-se em polêmicas culturais.
terminados repertórios legados pela tradição, conciliando-os, a exemplo dos músicos bossa-novistas, Os músicos da MPB incorporaram do modernismo,
com informações provenientes do jazz e outros junto com o ideal da mestiçagem, a concepção
gêneros estrangeiros. E de maneira semelhante a filosófica fundamentada na ideia de “arte interesVilla-Lobos, que transpunha músicas folclóricas ou sada”. A bandeira da mestiçagem, portanto, nesse
populares para um registro erudito, os emepebistas, contexto, significou não apenas uma receita esembora operassem no registro considerado popular, tética, mas também e principalmente um projeto
recriavam sonoridades locais — certa tradição do construtivo voltado para a conformação da idensamba carioca, no caso de Chico Buarque, e ritmos tidade brasileira.
pernambucanos, no de Edu Lobo — pelos parâme- Na próxima coluna, discutirei o tema da negritude
tros de sofisticação musical inventados pela bossa na música brasileira.
nova. Investiu-se também na ideia de MPB como o
centro de confluência de questões políticas e culturais, fazendo com que a canção popular, mais do
8
NOTAS NO
PLÁSTICO
por MAURO FERREIRA
Disco celebra a poética obra musical de Cacaso
Já está em fase conclusiva de gravação um disco que
celebra a obra musical de Antônio Carlos Ferreira de
Brito, o poeta Cacaso (1944-1987), apelido que virou
nome artístico usado pelo mineiro para assinar seus
livros e letras de música. Idealizado e bancado com
recursos próprios pelo produtor Heron Coelho, o CD
já despertou o interesse de duas gravadoras indies, Biscoito Fino e Lua Music. Intitulado Cacaso: letra e música, o disco apresenta regravações inéditas da obra
musical do letrista de sucessos como “Amor amor”,
“Dentro de mim mora um anjo” e “Face a face”. Na lista
de intérpretes, constam parceiros de Cacaso — revelado em disco de 1964, com João amor e Maria, parceria
com Maurício Tapajós — como Danilo Caymmi, Francis Hime, João Donato, Sueli Costa e Zé Renato.
Orixá da Mangueira, Xangô sai de cena aos 85
Carioca, ele foi criado no bairro do Estácio, se iniciou
no samba numa escola de Rocha Miranda e chegou
a ingressar na Portela. Mas foi ao entrar em 1939 na
Mangueira — a escola de samba que adotaria até no
sobrenome artístico — que o bamba Olivério Ferreira, mais conhecido como Xangô da Mangueira, logo
se consagrou. Inicialmente como puxador — função
que ocupou até 1951, ano em que passou o bastão
para Jamelão (1913-2008) — e, mais tarde, como hábil diretor de harmonia. Essa trajetória luminosa na
escola verde e rosa se encerrou na noite de quartafeira, 7 de janeiro de 2009, data em que Xangô da
Mangueira saiu de cena, aos 85 anos. Nascido em 19
de janeiro de 1923, Xangô foi também mestre no improviso e — não por acaso — seu primeiro (tardio) LP,
editado em 1972 pela extinta gravadora Copacabana,
foi intitulado Rei do partido alto. A discografia solo
do artista teve seu auge nos anos 70 e se encerrou
em 1982, com o álbum Xangô chão da Mangueira.
No mundo do samba, Xangô sempre foi tratado com
respeito e a devoção de um orixá. Fora desse universo, contudo, que o compositor nunca conseguiu a
popularidade obtida — por exemplo, por seu fã Cartola (1908-1980). Que o tempo corrija a injustiça!...
Para ler mais notas musicais, acesse
http://blogdomauroferreira.blogspot.com
FUTUROS ESTOUROS
por Raïssa Degoes
DoAmor
Eles já tocaram na banda Carne de Segunda; na verdade,
começaram a tirar som juntos em 1993, ainda meninos.
“Aqueles meninos tocam muito” — era o que se ouvia
por aí. Desde cedo impressionaram e marcaram a cena carioca. Pois é, agora já são uns caras e, dedicados,
não somente “tocam pra caralho”, como também são
alguns dos melhores músicos da hora. Os caras são
mesmo da hora, mora? Eles são DoAmor, e Do Amor são
Ricardo Dias Gomes, Marcelo Callado, Gustavo Benjão
e Gabriel Bubu. Certamente vocês os viram por aí, na
nova banda de Caetano Veloso (Ricardo e Marcelo),
na finada Los Hermanos (Gabriel Bubu) ou com Lucas
Santana (Gustavo Benjão), e com muitos outros artistas
que, sem querer marcar bobeira, contratam alguns ou
todos eles. Mas o bom mesmo é vê-los juntos nesse
projeto próprio. O show é incrível, o balanço é bom, as
letras, inteligentes, e as referências, múltiplas. A lista de
influências no MySpace passeia por Metallica, Ween,
Carnaval, Beatles, Devo, Pepeu Gomes, Zumbi do Mato
e Lúcio do Leblon.
porque já vinha fazendo essas gravações na casa do
Gustavo. Na época, a Nina Cavalcanti tava produzindo
e pensando em ter um selo também; aí lançamos o EP”,
completa Gabriel. “A gente chamou o Moreno (Veloso)
para participar da parada, precisou de um upgrade e o
Moreno pilhou de mixar”, diz Marcelo. “Foi um cara que
entendeu a pilha e usou suas madrugadas para fazer a
parada”, comenta Ricardo.
O tal EP já está esgotado, mas os rapazes estão gravando um disco com Chico Neves e pensam em lançar
outro EP enquanto esperam pela finalização do CD. Há
DoAmor começou de uma vontade de o grupo voltar também o registro no MySpace. O fato de a banda fazer
a se juntar e, a sério, formar uma banda para tocar suas muito show pelo país empresta cada vez mais força à
músicas e versões. Encontravam-se na casa do Gustavo, sua música e gera diferentes registros.
isso no início de 2006; gravavam os ensaios e refaziam
aquilo que ouviam. Desses encontros saiu um CD gra- Eles contam que começaram investindo muito, indo pra
vado com o microfone aberto e sem muita preocupa- todo lugar, topando vários shows até chegar ao ponto
ção. “O CD foi parar na mão do Diego, lá do sul (Medina, onde estão hoje. “Muito legal desse nosso começo foi
ex- Video Hits). Ele botou no soulseek e nosso amigo tocar em festivais pelo Brasil; em Cuiabá, Rondônia,
cdf, Pedro Montenegro, baixou e mandou de volta. Aí, Porto Velho, tem bandas dos mais diferentes estilos e o
tínhamos um CD, um registro. A banda nem tinha no- público desses festivais é muito esperto, interessado em
me”, conta Bubu. Depois disso veio a ideia de gravar um conhecer coisas novas”, diz Ricardo. “Uma galera que,
EP, que seria o cartão de visitas da banda. “A gente se antes do festival, já entrou no MySpace para conhecer
pirulitou para Vargem Grande por uma semana. Ficava a banda”, fala Gustavo. O encontro com essa galera
o dia inteiro gravando no estúdio montado pelo Chico de fora do Rio, longe dos amigos, trouxe uma maturiNeves. É um ponto de cultura, o Chico ensinou essa coi- dade para a banda. Embora todos já tivessem rodado
sa técnica de estúdio para a molecada da comunidade; pelo país, e até fora dele com outros artistas, esta foi
hoje eles administram o estúdio e gravaram a gente. Foi a primeira vez em que isso aconteceu com o projeto
“do caralho”, lembra Benjão. “A gente foi ágil no processo próprio — como explica Ricardo, “A gente dá a cara a
tapa, mesmo. Falo por mim; quando comecei a cantar,
não me sentia confortável, nunca tinha cantado. Tem
uma coisa interessante, vem da maturidade, mesmo;
fazer o seu trabalho é um desafio de outra ordem, um
eterno encontro com seus limites”. Gabriel Bubu concorda: “O acúmulo da experiência legitima toda a coisa;
quando a gente toca com outro artista, a experiência
é mais daquele artista, a gente pode enxergar aonde
está chegando com o nosso trabalho”.
“E a gente não tem controle sobre o que as pessoas
vão pensar do trabalho e isso é fundamental, senão,
seria uma neurose”, afirma Ricardo. “Aprendemos isso
tocando por aí; poderíamos nos colocar da seguinte
maneira: Brasília é mais rock; São Paulo, mais indie rock; e a gente tira uma música mais Bahia ou mais suingue, deixando o rock. Mas a gente deixou o contraste
acontecer. E acabou que isso foi um diferencial”, avalia
Bubu. “Mas isso pode ser diferente é uma coisa que a
gente tem e pode brincar do jeito que for”, diz Marcelo.
“A banda tem uma característica desencanada, chega
chutando canela mesmo”, fala Ricardo. “A gente chuta
de maneira simpática”, lembra Gustavo. Sim, de maneira
muito simpática, carismática e alto astral. Onde passam
são bem recebidos e podem conquistar todo tipo de
público. Assim, não fique de bobeira se arrastando
pelos pilotis; corra até a internet e vá ouvir este novo
estouro: DoAmor.
http://www.myspace.com/doamor
9
Os pés alheios nos próprios glúteos
3 poemas de Ramon Mello
a Hilda Machado e Angélica Freitas
Ninguém
que engula
VINIS MOFADOS
espera de Medeia
o brio feito broa
se o kit-sobrevivência
dita às vezes
vingança:
direciona a proa
do orgulho
à jusante
das consequências
a Jasão
& que claudique
Gláucia,
furunculose
na fuselagem
do meu ego
fusível,
sem eco
e sindicato.
Até eu,
Brutus,
não
saberia precisar
o que Arthur
diria estes dias
de Guinevere.
Não me importa
a balança
deste
déficit
ou se
o senhor
promotor
ousa
o sucesso
na condenação
do processo
em prol de Troia
das árvores
para o cavalo
de seu calvário.
Que traia
quem toma-se por troféu.
Não
sei quem indique
onde assino que aceito
o ponto de combustão
do meu empalhe,
o ângulo que auxilie
a gota d´água
à véspera
da queda,
se não choramingo ao fogo
que me poupe escamas
ou não me lamba o estofo:
tal qual descalço não
hei-de
sentir descaso nas bolhas
que separam, com água,
as solas da brasa,
a derme das cinzas:
que me arda
até extinguir *eu, mucosa
hidratada
a sal de Ló,
ensinaria a Bishop
a arte
da perda de loterias
como hábito e destino,
e discursaria a cummings
algo de lonetude em ser
o terceiro ornitorrinco
de contrabando
em qualquer arca
de Noé distraído.
Isto, sim, one art.
Ricardo Domeneck
 10 
resolvi organizar
a bagunça na estante:
palavras empoeiradas
fotografias letras de
música vinis mofados
e uma coleção de
romances fracassados
LADO B
desculpa
mas essa música
não quero mais
ouvir
sua voz arranhada
já não convence
vira o lado do
disco
aproveita e dorme
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DESAFIO POÉTICO
Na última edição desafiamos
nossos leitores a escreverem
um poema que dialogasse
com algum poema canônico.
Drummond e Bandeira seriam de
longe os escolhidos pelos leitores
para um bate-papo numa mesa
de bar. Para o próximo mês, o
desafio será escrever um poema
narrativo, ou seja, além de lírico,
ele deve contar uma história.
Desconstrução
Entrou no botequim como se fosse um pássaro
Pediu um “mé” que fosse bem mais aromático
Ergueu a aguardente como se fosse um lábaro
Os breves goles só lhe deixaram mais trêmulo
Bebeu a aguardente como se fosse o último
Gole de anis, licor de hortelã ou de pêssego
Olhava pra uma senhora se achando o máximo
Piscava e paquerava em gestos nada lógicos
Queria ainda que o tratassem como o único
Cliente, porque se dizia muito assíduo
Foi posto para fora e ficou estático
Lançou depoimentos altamente apócrifos
Gritou, esbravejou e tropeçou nas sílabas
Falou muita besteira sem nenhum escrúpulo
Perdeu todo seu respeito feito um decrépito
E atravessou a rua extremamente bêbado
Sentou no meio-fio e debulhou-se em lágrimas
Morreu anos depois com problemas no fígado.
Então, estão esperando o quê?
Paulo Henrique Motta
NOVA QUADRILHA
João fornecia a Teresa que mandava a
Raimundo
que repassava a Maria que entregava a
Joaquim
que vendia a Lili
que não dava a ninguém.
João trazia dos Estados Unidos,
Teresa, da Colômbia,
Raimundo morreu de overdose, Maria
injetava na veia,
Joaquim suicidou-se e Lili passou a
comprar de
J. Pinto Fernandes
que era do morro rival.
Pedro Rabello
Era uma vez...
Envie seu Desafio Poético para
[email protected]
O bicho do “Manel”
O bicho não saiu da minha cabeça
Tal como relatou Bandeira
Comia restos
Engolia poeira Devia andar de quatro
Se é que parecia um rato.
Só assim para confundir seu rastro Pensei num cão
Que chupa o osso da janta
E vive cheio de comichão
Na verdade não,
Ele era gente,
Gente indigente
Gente doente,
Um homem em decomposição.
O homem, meu Deus, era um bicho
ZEN
NO MEIO
DA PEDRA
TINHA
UM CAMINHO.
TINHA
UM MEIO
NO MEIO
DA PEDRA.
UM CAMINHO
DO MEIO
NO MEIO
DA PEDRA
Carlos Junio
Henrique Fagundes Carvalho
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 11 
ORÁCULO
por Antonio Mattoso
MAR DE POSÍDON, MAR DE IEMANJÁ ou
VAMOS BEBER CALCANHOTTO
Após uma incursão pelo heterônimo Partimpim (2005), o CD Maré (Sony-BMG, 2008)
traz de volta o ortônimo Calcanhotto e, mais uma vez, o mar como tema. Durante a
temporada portuguesa do show Maré, a cantora vivenciou um surto psicótico devido
a um coquetel de remédios, relatado em primeira pessoa em seu livro de estreia Saga
lusa (Cobogó, 2008). Phármakon, traduzido para latim por medicamentum, significa
qualquer substância pela qual se altera a natureza de um corpo — daí veneno, droga
e remédio. Segundo Jacques Derrida, “o phármakon, mesmo usado para fins terapêuticos como um remédio, não é inofensivo”. Em Saga lusa ocorrem duas viagens: uma
química, que leva à alteridade; outra “em alto-mar, a meio caminho entre a Europa e
a América”, que traz a ipseidade. Se Odisseu, após sua viagem, precisa se fazer conhecer para os seus, Calcanhotto, para si mesma. Mas sobre o livro falaremos em nossa
próxima coluna. Voltemos ao CD. Assim como a contemplação do mar nos convida
para navegar, Maré seria a carta de navegação de Calcanhotto por toda sua polissemia. Limitar-nos-emos ao mar mitológico, ao mar de Posídon, ao mar de Iemanjá e
ao imaginário marítimo. Pelo que se pode depreender da cosmogonia homérica na Ilíada, Oceano é um rio
imenso que habita um espaço informe, anterior à existência do Céu e da Terra e Tétis,
uma massa d’água que ainda não se diferencia muito de Oceano. A origem do mundo
e dos seres relaciona-se, portanto, ao elemento hídrico, cujos principais atributos são
a fluidez e o dinamismo.
Nem a grande força do Oceano de corrente profunda
De onde todos os rios e todo mar
E todas as fontes e os poços profundos fluem
(Hom., Il., XXII, 95–97)
Como os deuses em Homero se revelam em suas ações e genealogias, Oceano se uniu a Tétis e gerou todos os seres, conforme o verso “Oceano, gênese dos deuses,
e a mãe Tétis” (Il., XIV, 201 e 302). Quando o mundo se organiza sob a ordem da
cultura, no centro dos principais acontecimentos encontra-se Zeus, exercendo o
princípio de soberania e fecundação; por isso, Oceano e Tétis, o casal original, segundo Homero, passam a viver na periferia do universo e não mais dormem juntos. Por
terem perdido seu poder de geração, tornaram-se deuses ociosos. Zeus, no entanto,
divide o poder com seus dois irmãos: a Hades coube o mundo ctônio e a Posídon,
o mar. Há, na mitologia grega, muitas divindades associadas aos rios e ao mar, mas
é justamente a partilha do universo que outorga a Posídon a soberania das águas
salgadas simbolizada pelo seu tridente. Os navegadores sacrificavam touros ao deus
em prol de travessias seguras pelas vias úmidas de Posídon, e os pescadores de
atum consagravam-lhe oferendas em alto mar e ofertavam-lhe as primícias de suas
pescas. Com a nereida Anfitrite, rainha do mar, Posídon gerou Tritão, um ser híbrido,
um homem-peixe, representado por uma concha, kókhlos, que também serve de
instrumento de sopro. Existe em grego outro vocábulo para concha, kónkhe, que,
por empréstimo linguístico, corresponde ao latim concha, -ae. Os meninos, levando
essas conchas aos ouvidos, acreditam ouvir o rugir do mar e suas ondas. Em seu
simbolismo, as conchas evocam as águas e seus sons.
No segundo CD da trilogia dedicada ao mar, de seu maior poeta Dorival Caymmi, Calcanhotto escolheu “Sargaço mar”, acompanhada ao violão por Gilberto Gil. O “eu” da canção
de Caymmi está diante de uma “doida canção” que, num jogo de palavras e sonoridade
com odoiá, saudação ritual à deusa, já prefigura sua natureza divina. Concluída essa canção,
só lhe resta, então, alucinado, lançar-se no mar para viver em unicidade e uníssono com
Iemanjá. Curiosamente, o verbo alucinar, do latim (h)allucinari, é um derivado do grego
(h)alúein, estar perturbado, perplexo. Sabe-se que o poder de sedução da palavra cantada
na Antiguidade tinha como paradigma o canto das sereias. O canto de Calcanhotto segue
os três movimentos que a própria canção sugere; por isso, transcrevemos a canção como
consta no encarte do CD, acrescentado-lhe a numeração dos versos. Quando se for Esse fim de som Doida canção Que não fui eu que fiz Verde luz verde cor 5 De arrebentação Sargaço mar Sargaço ar
Deusa de amor, deusa do mar Vou me atirar, beber o mar 10 Alucinado, desesperar Querer morrer para viver Com Iemanjá
Iemanjá, Odoiá Iemanjá, Odoiá 15 Iemanjá, Odoiá Do verso um ao doze, encontramos o “eu” diante da doida canção da deusa. A inversão
do atributo doida no sintagma, contrariando-lhe a ordem natural em português, enfatiza
sua espécie e, ao mesmo tempo, a caracteriza em sua diferença com as canções e harmonias humanas, conservando-se, porém, na clave da sensação. O poeta fabrica sonoramente seu poema de modo a idear a canção e presentificá-la por meio de aliterações
das sibilantes e fricativas surdas e sonoras; de repetições dos vocábulos verde, sargaço
e deusa, conferindo-lhe ritmo; das rimas, de ecos e também da quebra da expectativa,
até o quinto verso só há vocábulos monossílabos ou dissílabos, inclusive o quarto verso,
um hexassílabo composto apenas por monossílabos, “Que/ não/ fui/ eu/ que/ fiz”, contrasta com o sexto, um pentassílabo, “De a/rre/bem/ta/ção”, com um único vocábulo
polissílabo — enfim a linguagem se fazendo música divina. O segundo movimento se
compõe apenas do décimo terceiro verso, “Com Iemanjá”, em que pela primeira vez é
dito o nome Iemanjá, presentificando seu ser numinoso. Em seu canto, Calcanhotto imprime a cada nota a mesma duração ressaltando-o. O terceiro, o refrão, “Iemanjá, Odoiá”.
Adriana Calcanhotto, como cantora e compositora, sabe que essa canção não carece
de arranjo; basta-lhe um violão para evidenciar as palavras e a melodia de Caymmi e o
seu próprio canto e emissão. Em Maritmo (Columbia, 1998), o primeiro CD da trilogia,
Calcanhotto já gravara em dueto com próprio Caymmi, “Quem vem pra beira do mar”,
em que se evidencia o irresistível e fatal chamado das águas de Janaína.
“Sargaço mar”, a última faixa do CD, dialoga tanto com a canção de Péricles“Cavalcanti Porto
Na Nigéria, Iemanjá, mãe dos peixinhos, (< yeye, mãe + omon, diminutivo de animais Alegre” (“Nos braços de Calipso”), vista em nossa última coluna numa relação de ruptura
+ edja peixe), uma grande-mãe africana, filha de Olocum, divindade dos mares, era com o relato homérico, quanto com a primeira faixa “Maré”, de Moreno Veloso e Adriana
o orixá do rio Ogum. Com o advento dos iorubás no Brasil, seu culto foi transposto Calcanhotto, em que o mar, representado como imagem e linguagem, se justapõe ao mar
para o mar, tornando-se, assim, a deusa das águas salgadas e também protetora dos evocado por meio do canto de uma de suas sereias. O título do CD contém uma ambivalência,
homens do mar e Oxum, orixá do rio homônimo, a deusa das águas doces. No entanto, isto é, pode ser lido tanto como Maré, o movimento das águas do mar salgado, quanto Mar
a saudação ritual de Iemanjá, Odoiá, mãe do rio, (< odo, rio + ya, mãe) conserva sua é, deixando ao ouvinte todas as suas possibilidades de predicação, além das apresentadas
relação original com o rio. O sincretismo religioso também foi responsável pela sua na carta de navegação de Calcanhotto, e termina com uma evocação ritual a uma de suas
associação com as sereias europeias seirenes, as que encadeiam, atraem < seirá, -âs, deusas, Odoiá Iemanjá, Odoiá. Adriana Calcanhotto apresentou o show Maré apenas em
corda, laço, armadilha, segundo Carnoy e as iaras ameríndias < yara, em tupi senhora, um final de semana de junho no Rio de Janeiro. Ficamos todos aguardando sua volta. sereias dos rios e lagos. Segundo Agenor Miranda Rocha, o professor Agenor, é de
Para o nosso editor Paulo Gravina.
Iemanjá que “vêm todas as águas da Terra”.  12 
Pensando imagens
formatos e contextos que muitos documentaristas passaram dard, Antonioni, Coppola). Como aponta Dubois, esse projeto
a recorrer ao vídeo nos anos 1980. Por ser um meio dócil e de se ancorava num sonho de fusão, numa utopia de integração
fácil manipulação, o vídeo permite estar colado às imagens e, total entre esses dois suportes, ao ponto de alguns cineastas
Parece haver consenso na constatação de que nossa época ao mesmo tempo, passear, deslizar sobre elas, propondo um terem acreditado que o cinema cessaria de existir em seu molde
se caracteriza por uma produção excessiva e, até mesmo, tipo de pensamento visual diretamente atrelado ao seu objeto. tradicional e se converteria completamente no dolce stil nuovo
hemorrágica de imagens — imagens da violência, da abjeção, O que estou sugerindo aqui é que o vídeo passou a constituir de filmagem que o vídeo incentivava. A partir dos anos 1980, os
do corpo, imagens de si, imagens posadas, documentais, sedu- uma forma alternativa de ensaio crítico. E isso não significa caminhos entre vídeo e cinema se ramificaram, de modo que
toras, cruéis, brutais, artificiosas. De fato, a lista é longa e não um retorno às formas paternalistas de narração (embora elas hoje cada qual funciona como um olho para olhar o outro, agora
para por aí. Diante desse estado proliferante, duas recepções persistam em boa parte da produção documental); quando uti- com a consciência da distância que os difere. Hoje já se tornou
antagônicas se desenham com insistência: uma delas encarna lizado em seu potencial plástico-elástico, o vídeo dribla o tom bastante comum a prática do vídeo no campo expandido do
a nova iconoclastia, que demoniza e entende como catastrófica onipotente e se deixa envolver pelas imagens sobre as quais cinema, e de maneira análoga o cinema vem sendo cada vez
a superabundância de matéria visual; já a outra faz questão de reflete, criando jogos maliciosos entre o objeto de reflexão e mais incorporado aos espaços de circulação da imagem digital.
acolher a heterogeneidade desse fluxo produtivo, tendendo a a sedução do olhar provocada por esse mesmo objeto. Nesse No campo expandido do cinema, o vídeo tende a atuar como
celebrar todo tipo de produção visual contemporânea, espe- sentido, a visada crítica brota muito mais da capacidade de um modo de pensar o olhar cinematográfico, promovendo,
cialmente aquelas que incorporam as novíssimas tecnologias. articular, montar, cortar, ampliar, descolar, repetir e transformar muitas vezes, a sobrevida de suas imagens. É o que faz, por
A fé cega na promessa das novas mídias como algo que viria o material visual do que numa voz narrativa preocupada em exemplo, o artista Douglas Gordon, ao dilatar drasticamente o
expandir ou dilatar nossa capacidade de percepção é tão conduzir passo a passo o pensamento do espectador.
tempo interno do filme — como Psicose, de Hitchcock — em
problemática quanto os ataques que recusam chegar mais
uma de suas mais conhecidas videoinstalações. perto dos fenômenos da visualidade contemporânea. Nem O vídeo como «estado» os discursos iconoclastas nem os discursos da exaltação dão Se considerarmos as máquinas de imagem como instru- Imagens do corpo em movimento conta das complexas e variadas formas de pensar, produzir mentos colocados entre o homem e o mundo em função Também no campo da dança e da performance, as novas
e consumir imagens hoje em dia. Este texto, por sua vez, não do desejo de «ver mais» ou de «ver melhor», percebermos tecnologias da imagem vêm se impondo de forma decisiva.
pretende esgotar a questão, mas apontar algumas vertentes que a imagem videográfica surgiu de impulso semelhante. Desde as experiências de Maya Deren (ainda utilizando película,
do entendimento da imagem, enfocando o papel desempe- O aparato videográfico foi criado com finalidade bélica: uma mas sustentando um olhar e uma atitude «videográficos»), que
nhado pelo vídeo e pela arte contemporânea. máquina de visão que permitisse captar e armazenar imagens acabaram engendrando verdadeiras coreografias «feitas para a
em movimento de forma rápida e eficiente (já que a imagem câmera» (isso é, incluindo essa presença como instância mobiliO artista não trabalha à revelia das questões acima apontadas digital não passa pelos delicados e demorados processos zadora do movimento), passando pelas propostas precursoras
— pelo contrário, opera a partir (mesmo que por oposição) químicos de revelação e ampliação dos quais dependem a de Merce Cunningham, que, de forma ousada, incorporou o
das consequências perceptivas e socioculturais provocadas imagem do cinema e da fotografia tradicionais). Ao extrapolar vídeo aos espetáculos de dança (Life forms, Character studio), as
pelas transformações que vêm redesenhando as formas de sua destinação inicial, o vídeo passou a seduzir cineastas tecnologias da imagem oferecem novas percepções do corpo
circulação do visível nas últimas décadas. Quando uma nova que se interessaram por sua extrema maleabilidade e pelo em movimento que modificaram, e muito, as relações entre
economia visual se impõe, inevitavelmente todo o sistema impacto que isso poderia ter sobre processos de construção o corpo e sua própria imagem. No campo da dança, uma das
de valores que regula a percepção e a recepção de imagens de um filme. O vídeo como máquina parece ser atravessado perguntas que inquietam atualmente artistas e críticos é mais
é afetado. O artista não está, nem pretende estar, acima, dis- por aquilo que Roland Barthes chamava de «energia surda da ou menos a seguinte: o que tem levado tantos dançarinos e
tante ou à parte desse terreno minado; porém, quando a arte passividade», uma energia que provém de certa capacidade coreógrafos a utilizarem o vídeo, as tecnologias de interação e
engendra visões instigantes, é porque o artista conseguiu de acolher amorosa e criticamente o objeto de reflexão. a tecnologia cibernética em suas estratégias criativas? Ou cocavar brechas, propor recuos, desvios, rotas de fuga que nos
locado de outro modo: o que leva os artistas a investirem física
permitem penetrar poeticamente e/ou interferir criticamente O teórico belga Phillipe Dubois tem desenvolvido uma interes- e corporalmente a tecnologia? Será esse apenas um sintoma
numa determinada situação visual aparentemente fechada ou sante reflexão a esse respeito. Para Dubois, não interessa pensar da substituição do corpo pelas imagens do corpo? Para alguns
caduca. É impossível determinar, de forma definitiva, os crité- o vídeo em termos de uma ontologia da imagem ou tentar artistas, o uso das tecnologias digitais fez com que o corpo da
rios sob os quais se pauta a atitude visual contemporânea, do determinar a especificidade da linguagem que produz. O que dança se convertesse num corpo prolongado em próteses, um
mesmo modo que se tornou muito difícil determinar até que lhe interessa é, ao contrário, tornar produtiva a resistência que corpo-máquina indistinto. Para o coreógrafo francês Jean-Marc
ponto a produção de arte contemporânea subverte as novas o vídeo impõe ao tipo de definição ontológica. Dubois pensa Matos, no momento em que os artistas começam, também, a
tecnologias da imagem ou se submete a elas tais. O importante o vídeo como um «estado» da imagem, uma forma que pensa. tomar consciência do perigo que representa para o corpo a exé sublinhar que hoje, diferentemente do que ocorria até os Isso porque a videografia estaria situada numa zona transicio- cessiva tecnologização, a convergência entre o corpo da dança
anos 1970, cada trabalho, cada percurso artístico estabelece nal, entre a cinefilia e a imagem sintética, funcionando como e os novos dispositivos de imagem torna-se especialmente imseu pacto — quase sempre provisório — entre o real, o ficcio- mediador das relações entre esses dois momentos da história portante, pois, além de estabelecer um horizonte de conexões
nal, o imaginário, o tecnológico e o ético, entre o estético e o da imagem. Vista por esse prisma, a imagem eletrônica seria possíveis entre cognição, fisicalidade e materialidade, coloca em
político; ou seja, cada artista se esforça por configurar uma um processo e não mais a promessa de uma nova tipologia da pauta a espinhosa questão da «desrealização» do corpo.
poética visual singular — mas não pretensamente exemplar imagem. Assim, o vídeo se desobriga da missão de fundar uma
—, seja recombinando o material visível disponível, seja criando nova linguagem audiovisual e torna-se um modo de pensar Se o progressivo incremento das máquinas de visão acabou por
seus próprios instrumentos, técnicas de produção, códigos de imagens por elas mesmas. De fato, sua grande força tem sido ampliar ainda mais o intervalo entre o Sujeito e o Real, redimenvisibilidade e legibilidade da imagem. permitir pensar os enigmas da figuração e questionar os limi- sionando drasticamente a relação entre o olho humano e os
tes da visão, interrogando a materialidade da imagem, de sua artifícios da visão, isso significa que as tecnologias da imagem
Na busca por outras dinâmicas de abordagem do visível, o duração, intensidade, ritmo, o imaginário que ela transporta agiram em sentido inverso ao qual estavam originalmente
vídeo sempre se apresentou como um modo particularmente e aquilo que faz questão de obliterar. destinadas: distanciaram ainda mais o homem do mundo e
interessante não apenas de captar imagens, mas também
das coisas que ele desejava capturar. Utilizada hoje como um
de pensá-las criticamente. Por ser um meio «desfigurado» — Se durante a primeira década de sua existência o vídeo serviu modo de pensar o visível, a imagem digital não visa suturar esisto é, por sua identidade ser extremamente precária —, o como meio de perturbar, questionar e desconstruir a lingua- se rasgo — pelo contrário, investe nesse intervalo encarando-o
vídeo permitiu, desde seus primórdios, a criação de novos gem televisiva (um exemplo claro seria a obra de Nam June não como o abismo da visualidade moderna, mas como um
elos entre diferentes tipos de imagem, conferindo-lhes novo Paik) a partir dos anos 1970, alguns importantes cineastas espaço profanador, no qual pode emergir uma visibilidade ao
uso, inserindo-as numa nova trama de significação. Foi por incorporaram o vídeo como abertura a uma nova experiência mesmo tempo questionadora e inventiva. sua capacidade de metabolizar imagens dos mais variados da imagem (entre os quais figurariam certamente Wenders, GoLaura Erber
breves notas sobre as máquinas de visão
 13 
DOBRADINHAS
por ALICE sANT’ANNA & iSMAR tIRELLI nETO
Poema Idiossincrático
mania de listas
gosto de veludo. De ter barba, bigode e p&b. Gosto de vento e de ângulos.
Sou simpático ao bocado mais branquelo do meu braço.
Gosto de felpo, de colchão de mola,
de gente que sabe tracejar a nanquim,
de estalar dinheiro novo, gosto de você e não passo sem
certas palavras reposteiras
que sobem dos livros e vêm
fazer cócegas no nariz.
franja na cara
piscar os olhos com força
andar engraçado
gargalhada sem barulho
roer as unhas dos pés
dois laços no cadarço
cortar os próprios cabelos
reconhecer alguém pelo cheiro
prender a respiração no túnel
sonhar com piscinas
Ismar Tirelli Neto
mania que é mania
a gente só percebe
quando alguém ri
Alice Sant’Anna
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podem ver a continuação de seus trabalhos,
que vão além do Plástico Bolha.
ENTREVISTA
por luiz coelho
A Sabedoria de Silviano Santiago
Silviano Santiago é um cosmopolita irremediável, seja
qual for o lugar em que circule e os assuntos que ataque.
Tende, a exemplo de um de seus escritores prediletos —
Machado de Assis —, a considerar sempre os muitos lados
da mesma questão em seus trabalhos, sem cair na tentação
da superficialidade, como no caso daqueles que desejam
tratar de muitas perspectivas. Silviano é crítico, ficcionista,
poeta, ensaísta, professor e, antes de qualquer coisa, um
leitor que não se restringe às páginas, mas se deixa provocar
por culturas, paisagens e sua própria trajetória. Você já afirmou, em um dado momento, ter sido iniciado na literatura por livros “difíceis”. O que é um
livro “difícil”?
São aqueles que criam o leitor. Você vira outro depois da
leitura. Deixa a mesmice de lado. Sua visão de mundo se
alarga, abrange outros territórios, outros seres, outras experiências, que lhe “faltavam” no dia-a-dia. A curiosidade
sentimental e intelectual se alimenta e enriquece dessas
“faltas”, se alimenta e se enriquece, tornando mente e sensibilidade mais ágeis e mais flexíveis frente aos embates da
vida. “Viver é perigoso”, alertou Rosa. Ler um bom livro de
literatura é tão perigoso quanto viver. Faz parte da Educação
sentimental, para retomar o título de Gustave Flaubert.
Um livro de literatura difícil é semelhante a um livro de
filosofia. Requer um conhecimento prévio da tradição (em
geral, ela deveria ser transmitida pela escola — mas nada
impede que alguém assuma a tradição de maneira autodidata), requer paciência com a descodificação dos recursos
retóricos, requer dedicação e abertura para experiências e
ideias alheias e/ou estrangeiras. Destas podemos discordar
no íntimo, mas eventualmente poderão nos fortalecer
em situações existenciais que, ao sabor do acaso, estarão
à nossa frente. A boa literatura e a filosofia nos trazem a
sabedoria (wisdom, em inglês). O livro de literatura difícil é
diferente, portanto, do livro de história ou do de sociologia,
que nos trazem conhecimento (knowledge, em inglês).
Na boa formação do cidadão responsável, sabedoria e
conhecimento devem se casar.
No mais, como diz Machado de Assis: “O maior defeito
deste livro és tu, leitor. ‘Tu tens pressa de envelhecer, e o
livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida,
o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são
como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e
param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu,
escorregam e caem...”.
De que modo seus textos críticos e seus textos literários se misturam ou se diferenciam?
Cada autor tem suas particularidades. Uma das minhas
originalidades é a tranquilidade na mistura. Misturei
gêneros (ficção, poesia, ensaio), misturei atividades
(professor, tradutor, jornalista bissexto), misturei línguas
(sou fluente em francês, inglês e espanhol) etc. Tranquilidade na mistura não significa necessariamente ambição
desmedida. Significa, antes, o modo como resolvi significar a mim no universo cultural a que quero pertencer.
Busco uma linguagem para cada gênero, busco um estilo
para cada atividade, seleciono a língua nacional que
possa corresponder à minha curiosidade angustiada.
Vivo, penso, ajo e escrevo sempre em formas misturadas. É
minha originalidade, e pode ser também o caminho mais
áspero para chegar ao fracasso.
Humanas e Sociais, um companheirismo universitário, que
se dissipa hoje, talvez pelo sopro do(s) Departamento(s)
de Comunicação. Simplificando, a medida era outra. Os
tempos eram outros. Não esperem lágrimas, mas não
exijam otimismo hipócrita. Você foi por muitos anos professor do departamento de Letras da PUC-Rio, tendo dado aulas a muitos
professores hoje atuantes. De que modo suas ideias
como crítico e teórico entravam em suas aulas? Qual
a influência de suas ideias nos estudos de literatura
hoje no Brasil?
Essa pergunta deveria ser feita aos que foram meus alunos.
Na falta de resposta deles, aventuro-me a dizer que nunca
minimizei — em sala de aula — as várias facetas de minha
personalidade, tal como a descrevi sumariamente acima.
No mais, tive a sorte de ter recebido bolsa do governo
francês e ter tido uma boa formação universitária francesa (meu doutorado foi defendido na Sorbonne). Aliei a
essa formação anos e anos de trabalho na universidade
norte-americana, naquela época totalmente diferente do
sistema europeu, bastante influente na constituição da
universidade brasileira (veja o caso da USP e da UFRJ). À
formação européia e à experiência de ensino nos Estados
Unidos somei constantes viagens — totalmente gratuitas
— pelo México, onde pude entrar em contato com uma
América Latina indígena, que escapava ao comum dos
mortais brasileiros. Acrescento que, nos Estados Unidos,
mantive sempre bom contato com professores de francês
e de literatura comparada, de história e de sociologia,
não tendo me restringido ao convívio com os colegas do
departamento de espanhol e português. Diria, finalmente,
que fui um pouco precoce em minhas conquistas universitárias, já que — a partir dos anos 1970, com a implantação
das agências de fomento à pesquisa, como a CAPES e o
CNPq — a formação e a experiência que tive passaram a
ser norma para todo aluno de Letras que se distinguia.
Como você pensa e vê o panorama da crítica literária no Brasil hoje?
Não se deve fazer esse tipo de pergunta a um velho professor, já aposentado. Por sorte nossa tudo muda. Nada é
o mesmo. Querer que a crítica literária apresente hoje o
rigor, o padrão e a abrangência que teve num momento
meio que ideal dos estudos literários — que se situaria
nas décadas de 1970 e 1980 — seria um contrassenso, a
ser punido com tiro de revólver. A entrada da questão da
“linguagem” (ou da “écriture”, para ficar com Jacques Derrida) nas ciências humanas e sociais trouxe um privilégio
aos estudos literários que não se repetirá. De repente, a
teoria literária poderia servir de “modelo” (uso a palavra
com todo o cuidado e evito necessariamente qualquer
tonalidade autoritária) para a psicanálise, a história, a antropologia, a filosofia e assim por diante. O Departamento
de Letras — em particular, na sua pós-graduação — não só
difundia autores, metodologias de leitura e ideias, como
também propiciava ao grande texto literário (nacional ou
estrangeiro) lugar de destaque. Naquela época era comum
encontrar psicanalistas ou historiadores que se valiam da
literatura nos seus trabalhos. Havia um congraçamento nas
Márcia Brito
Que texto ou autor você sugeriria como uma leitura fundamental para entender a literatura contemporânea?
Há livros e há literatura. Há, portanto, autores que escrevem um ou dois livros que são julgados de boa qualidade
e desaparecem ou passam a escrever bobagens. Há autores que dedicam toda uma vida à literatura. O modo de
ler um livro não corresponde ao modo como lemos uma
obra. Um livro pode ser uma experiência fascinante, que
tem a duração regulamentada pela disponibilidade do
leitor. Acompanhar uma obra é um tipo de experiência
completamente diferente. Passamos uma vida em sua
companhia. Crescemos com ela.
Para responder diretamente à sua pergunta, diria que
o bom leitor contemporâneo é aquele que opta por
acompanhar uma obra (de contemporâneo seu ou de
autor já canônico). E compete a ele, só a ele, escolher o
nome do contemporâneo ou do autor canônico. Isso não
quer dizer que ele não deva ler livros ao sabor do varejo,
já que é no varejo que ele descobrirá o autor, cuja obra
será sua constante companhia por anos e anos de vida
& leitura & reflexão.
Vista dessa perspectiva, toda literatura (a propriamente atual e a canônica) é contemporânea. Em outras
palavras, a contemporaneidade da literatura é dada
pelo leitor.
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Cartões-Postais, por CARLOS AA. DE SÁ
Corcovado
Candelária
Se o Cristo pudesse
desceria à cidade?
ade
Virou as costas à cid
não por orgulho
mas envergonhada
da brutalidade
bana.
e da insensatez ur
Pão de Açúcar
Turistas se refrescam
na gaiola balançada pelo vento.
A seus pés
a cidade sua se esfalfa
e nem ousa olhar para cima.
Maracanã
e corações
A bola explod
tes
amortece men
dessensibiliza
inuar vivendo
e permite cont
iano.
o estupro cotid
Rio antigo
Não fossem recatados
os velhos prédios
vos
humilhariam os mais no
com o risco delicado
de suas fachadas.
Favela
Encarapitados
é a palavra certa
para descrever barracos
que se agarram aos morros
com unhas e dentes?
Aterro do Flamengo
Igreja da Penha
Entre muralhas de água
e de concreto
árvores sufocadas
estendem para o céu
os braços verdes.
Esfolando joelhos pela
escadaria
os fiéis se punem
por haver tentado suborn
ar a santa
com rezas e velas.
Praça Quinze
Pedras pisadas por imperadores
fedem a mijo e peixe estragado.
Constrangida, a antiga catedral
se acinzentou.
VIU?
Carnaval
gria,
Tanto riso, ó, quanta ale
ia
tas
tanta cor e tanta fan
s
desfilam inconsequente
ia.
sér
em meio a tanta mi
Você não foi o único
ESPAÇOS A PARTIR DE R$ 75. [email protected]
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