A o ochoa no sapo

Transcrição

A o ochoa no sapo
Ângelo O Ochôa
livro de horas - opera omnia
os 916 poemas
I) os 363 poemas
*1 Poema um:
Ruir o interior dos ouvidos - tabiques - areia - cal - sons esquecidos.
Pedras sobre pedras - os dias asfixia - as palavras iguais sob o ruído.
Abismo das folhas - Março ou Abril - o Jardim Botânico.
Todo o peso do rosto nas costas das mãos.
Rombos sombra - o retrato repete a abrupteza.
Velas - borrões - gente - quatro quilómetros pela barra.
Do mundo dos meses - telhas - papoilas - grades - tenazes.
Telhas - côncavas - convexas - convexas - côncavas.
Vertigem de fontes desmemoriadas - tudo - súbito.
A raiz dos ouvidos - árvores - ontem - candeeiros - sinos.
Exaustão - urzes onde os nervos verdes.
Uma vez, um olhar - jogo água - as cordas febris - o violino.
Tijolos - estores - redes - andares de casas - espaço escuro ante a parede branca.
Aereza - torpor surdo no cérebro - um ruído de sílabas dentro de mim.
Triângulos - trapézios - Mozart. Montes - lamas - dorsos - dromedários. Azuis tons - Klee - the musician!
Estes versos torpes - malmequeres - muros - vento - mudez.
O coração bater num cubo fechado - corredores sob corredores dor.
Horas trevas - objectos limites - descenso dos sons num poço sem fundo - três vezes z cinzento.
Luzes facetando-se - um clown, que anda, incólume, num arame cortante - quase nada - infinitamente.
Os dias seguidos - agudezas - dedos - losangos - vidros.
Crueza - grãos de poeira - partículas de caspa - caracteres tipográficos.
O soalho - agulhas - sons opacos - os nomes, das pessoas conhecidas nas paredes.
Os nós dos ossos dos dedos - o peso dos ombros.
Roseiras - barro - garagens - ouvidos ar.
Os cabelos soltos - a nuca - nunca - sim - hoje.
Verde a relva, verde a relva, verde. I know your name - your name is Is - I know. You know I know.
Os ferros - os muros - eu sei - não sei - onde as horas lembradas - e deslumbradas - de ti.
De átomos, átomos - de constelações, constelações.
Obsessão dos sons - os cotovelos roendo-se nas janelas.
A manhã - a cidade - larga, a avenida. O telhado - da chaminé a cal - o beiral de lata - a lonjura branca - a gelosia.
O ângulo da mesa - o azul e... Flamingos - lagos - voos. Cortinas - dedos - unhas. Pouco a pouco o poema trabalho.
Braços - tijolos - redes - mínimas gotículas - de uma criança o sono - de uma criança a fala.
Estradas - bicicletas - letras. Tectos - estantes - portas. Carris - lápis - estrela... Escusado dizer noite.
Na areia o sol por entre os ramos d'ar.
Escadas - chuva - resto de rio que vi. Autocarros - carros - carros. As mãos - o alcatrão - um operário.
O corpo - a sombra - um cigarro. Blocos - tábuas - inexistência. Ponte - longe, perto vultos - areal.
As palavras que faltavam - as palavras que faltavam: Maria - Manuel - Deus connosco.
Rapariga - rosto - olhar - de uma vez para sempre.
Cândido Portinari, Cândido - duma cor doutra - uma cor noutra - neutra.
Ouvi meu canto - ouvi meu canto - ouvi.
Irrepetidos voos - um número indefinido de versos desiguais.
Canaviais - juncos - vento - vimes. Òòa - aòr - o terraço. Esguios choupos no ar nublado.
A instantes existo e o azul - a terra barrenta além - a pele. O poema trabalho sob estrelas.
Restolho - fragas - estevas. O vasto negrume da extensa noite. Os aéreos, suspensos lapsos.
Ausência - montes - o poema quarto. Os sapatos - os óculos - os anjos.
Um naco suado de pão. Amen! O tempo - de Deus o tempo. Esse tempo - este tempo. Kz-kv-z! Oh!
*2 Porque vivemos, os emparedados, sem árvores:
Emparedados ou localizados, aquém nós mesmos,
que, mesmo que supostos transpostos, nos detemos os passos,
deparando acaso com inúmeras, 'scuras portas no labiríntico caos.
*3 Seguindo o casario,
qual lençol o rio, à distância. The white clown Miró. Composição inintitulada,
em Março de 1966. Ferraz - vazio de luz - MA JOIE! Jazz - surdez-mudez - Bach.
Os adjectivos desnecessários, escusos, aborrecidos.
Ora a cidade raramente igual. As pessoas voltadas dos empregos.
Sob este toldo, entre cadeiras, mesas, imaginadas faces, estou.
*4 Donde me ocorre aquele R:
Os dias repetidos, abismados. Os fios dos eléctricos cintilam.
*5 Gotas de água nos vidros fixas.
Plúmbeo, a vermelho raiado, o céu. Braços de árvores - estores descidos semblantes escondidos sob chapéus de chuva abertos. Prédios ruídos - cores cinza - gabardinas.
*6 Se tudo ruiu,
ficou a existência aí, inconsequente.
É meio dia. Não é meio dia. O ponto nulo z:
Os olhos vesgos, da oculteza.
*7 Repetidamente,
da paragem do carro eléctrico a imagem mesma devassada, sonho nada.
Dum recanto da cidade sem garganta.
*8 Brancor
de intermédios de escadas. O espaço aberto para o céu. E eu.
*9 O mundo tumultuoso do sangue vibração luz - corda 'sfiada ao ar - subterrâneas criptas, entre sombra e trevas janelas por entre chapadas de sol - no longínquo casario, pétreo e nebuloso.
*10 De Madame Maar
os olhos tortos esgotando-se. Sons prolongando-se ao redor do R, ao redor do R, ao redor.
Olhos navalhas, vidros espelhos, cimento, tubos, covas, sonhos, vultos, distorções.
Um rosto maior do que um livro. Opacidade. Qualquer torneira ininterrupta.
*11 Goivos intactos de terra.
O desejo de inevitavelmente cantar.
Tudo a noite morre funda morte. Certa e indizível.
*12 Alberto Caeiro:
O espanto primitivo do existir e do dizer - do coração desalado.
*13 A contemplação aborrecida:
P'lo tempo revolvido quase docemente, no olvido de ser-se só,
sem sentido para os dias imediatos, fundos, contarei, uma por uma, p'los teus dedos, as loucuras
possíveis, os enredos. P'los teus dedos, sim, p'los teus dedos lã. Aí ficaremos os dois, os sons,
os ossos. Em arco abrir-se-nos-ão os braços até à catedral da branca areia.
*14 O vão da porta, inumerável, amor de ver-te, é terna a claridade - deves calcular, este domingo de mais a mais, as alegrias ar. Ver-te é ter a certeza da vida, esperar-te
perseguir a esperança possível. Vês? As palavras correndo para ti.
*15 Quadrados de quadrados le Printemps viendra - a a ah - le ritme des doigts, des doigts, des doigts micro-microcosmo - abrir de vidraças a a chuva - ar aberto a o ar - e stelle e stelle.
*16 Ah, teu devastado olhar
fixa um demorado mar, revolto o vento.
*17 Brancura de pétalas ternura de um corpo casto - os jogos de infinito.
Ou borboletas tontas ou janelas.
*18 Teia de aranha na parede esburacada:
Música de um canto simples de desperdícios:
Uma aldeia em Trás-os-Montes: A harmonia de Deus:
Um chão terra cimentado p'la noite fora de um dia de apanha de amêndoa: As bicicletas não andam:
A humildade é um verme familiar: À cerveja, à fadiga, rapazes companheiros inventamos viagens.
*19 Sombra intocada
num papel sem nada, a poesia - as bermas à luz falsa - as costelas partidas
- a publicação a 7 cores - a cegueira enternecida - um certo sorriso às primeiras horas
da manhã, anteontem, alarmante.
*20 Do subterrâneo das horas,
máscaras rebentam, às ruas, às mil.
Que não posso vê-las. Que não posso vê-las.
Que não posso deixar de as ver.
*21 Nem o abandono inútil,
os pés adormecidos ao peso, a desolação imensamente plana,
a apatia sem nenhuma saída, o travesseiro dos bons dias muito obrigados,
os dedos na queda dos indescontínuos 'nstantes, os tectos para o pavor, as tensões dos nervos
às alucinações disformes. Porque as crianças não têm culpa de entrementes
começarem a cabecear tontas de sono.
*22 Os palhaços aos tombos,
aos empurrões - gente con el corazón en la cabeza.
A periferia dos tubos e um peixe - os círculos fechados - a trama do cristal:
Ernst ou Kandinsky - as pétalas das chamas. Léger, ou a maquinaria humana:
E o que justamente se quer por esse só momento
entre o abrir e o fechar da porta de casa do proletário anónimo.
*23 Para a mulher povo de que não há notícia
queria uma canção com as mãos dadas - para a mulher povo de que não há notícia.
Quem me trouxe a uma esfera de planetas azedeza?
Deixassem-me ignorante, saberia uma canção. Sem nome uma canção, com braços, enxadas e arados em riste.
*24 Trouxeste uma alegria procurarei, procurarei - dize-me quando vais para cima
- tenho aulas e tenho de - amor - vê se será melhor 14 ou 21 - mas telefona antes.
*25 Legrand ou Cherburgo os chapéus de chuva ou os passeios os citroën dois cavalos ou rever-te à ternura amanhecida - dos despertares desassombrados.
*26 Outro tempo
dormia até mais não. Moía-me. A ponto de as ruas ficarem a uma distância de impossíveis.
*27 Acontece-me
ficar sentado a tarde toda, a repetir os gestos gastos desde as horas.
*28 Páscoa do morrer dormindo.
Ecoa o vazio íntimo das grandes casas: A morte em flores.
*29 Sons abrem janelas.
Soltam-se libérrimas as palavras, um tudo nada próximas do fim.
*30 Ainda aí, um grito estrito e um bocejo.
A contenção do escrito. Da guitarra gemidos e murmúrios
entrecortando o aclarar nítido. Um coração leve. De l'eau.
*31 A palavra continua,
porque há um afazer inadiável: Adormecer sem repulsa, esquecer paredes:
Ou fazer por isso. Tudo rescrevo na noite dentro do sono. Morar é bom.
-
*32 A mulher poema:
Levei toda a manhã a sonhar com a tua viagem. Tu és pura e bela. Tão bela és tu, poema.
*33 Canção ao redor da vogal O:
Dorme sereno no plano fundo do lago o sono brando do Outono o abandono.
*34 Intacta, a manhã
cansada de elegia. Um outro verso, à volta do mesmo.
*35 Brancas, ferocíssimas muralhas.
Dissipa-se em novelo o que em vão pensar.
*36 Perdeu o nome a existência,
disco rolando do incansável. De uma aguarela do Mendão:
A praia - de muita, muita areia - em ébria, plena insolação.
*37 Devagar, não dar por mim.
Enquanto amanhece cruamente.
*38 O dia perde-se
de indiferença. Serenamente, esqueço-me.
Das nuvens flocos brancos desvanecendo-se num céu escuro.
*39 Ainda a cor marinha, arenosa,
o alvorecer sem motivos, árvores isoladas inquietando.
Os dias esbarrados, em desvario. Interrogar-se desde quando a paisagem em ruínas,
dor de corpos, uns contra outros pró meio da rua atirados: Que d'espoir de rages, notre vie!
*40 Digo-te sem ver
a noite dos dias - crianças - terraços - a espaços, buzinas - de brandura envolvente.
-
*41 Tarde nua no jardim:
Folhas de árvores aéreas, amarelas de transparência, agitando-se soltas,
tenras, em leve ballet de frémitos de invisível. Dum súbito corpo a presença, espessamente.
*42 É tua a praça,
toma-a, Senhor. Lá, onde morrem os poetas, com as mãos a arder.
*43 Alegria de amar:
Os noivos, na madrugada, deitaram fora os poemas.
Tinham resolvido o amor e as janelas rasgadas. Resolveram,
pronto, decididamente resolveram. Os olhos ventoinhas denunciam a terra.
Não faz bem às pessoas certas ver da nudez da terra. Haveriam de se amar.
Porque não morderiam as bocas de todos os dias?
Encontraram-se, a primeira vez, sós num espaço.
*44 Eu, na rua B. Sequeira,
secadeira, da cidade de Braga de Fevereiro, estendidinho à solapa do meio-dia, a dormitar,
a secar e a ressecar até à medula dos ossos do esquisito cadáver. Vêm e dependuram-me,
de cabeça para baixo, do olmo mais alto. (Isto era na minha terra.) Nada a fazer, minha rica.
Vê, amor, a raiz suja, do pêlo arrancado.
*45 O ser é todo ser,
queda, imobilidade deste dia, que anoitece a cor apagada.
*46 Procura pela linguagem pura,
pelo Vietname que respiramos, pelas palavras precisas,
as palavras que amo. Estão pra lá das coisas e das palavras que amo.
*47 De estar amanhecendo um novo dia,
esbatido desde onde, sobre o rio, surpreendido vou.
-
*48 Resfriarem folhas trémulas.
Fugir o largo a conversas ciciadas. Teu lugar.
*49 Na cidade fechada,
o olhar a roer a dureza duma flor.
Darmo-nos ou não, palavra a palavra, a palavra que és, correr de ar.
*50 Anne Frank:
Falavas a sorrir a teu amigo da verdade em sonho,
límpida e desejada. De dentro do teu sorriso de amargura.
*51 À pas lourds venue,
mémoire changeant, lune, une claire poussière t'apporte à moi.
Dizes, não sei, meu nome de baptismo. As braçadas de flores que me deixas!
*52 Des yeux tendres le Dimanche,
étoile. Tanque de lavar.
Mas onde ou quando a serenidade de sossegar bem a teu lado?
*53 Restolho fragas - estevas - a noite extensa. Os etéreos intervalos.
Carreiros - zirros - junços - vides - fragaredos. Ausência - serra - giestas - Bornes. Ténue que é.
*54 Povoações em milagre surgidas,
salas habitadas de infância, velhas veredas,
amigas e patéticas paisagens, nuvens de estrelas.
Acendem-se fogueiras! Tudo dentro pesando.
*55 Verdes anos:
Nem sei bem o que era:
Ver ver e ver, sorrir, dizer:
Aí éramos nós.
Da verdadeira festa lembram sons.
*56 Desperta,
rompe-me, em flor de neve, vinho, pão, os olhos, minha terra.
*57 Manhã de um pároco:
A aldeia em pensamento: A que distância, quase infinita, das casas mais próximas da sua!
Ah, mas entrecortando angústia, a voz desperta. E é a rapariguinha,
o prado adiante, de eternidades e pedrinhas da calçada de infância a te chamar.
*58 Vou a um outro dia,
com pernas para a frescura de andar nas palavras e digerir amargura.
De vaguear por fora, tão longe do meu canto, esqueci, de há muito, a humilhação do poeta.
Diluí-me, em abraço, no povo, mais que na letra. Por isso me evado do que me nega.
Vou dizer natal, que é quase dia, esquecer-me de soletrar a poesia.
Ser da raiz da árvore, da raiz do dia.
*59 Nome é dizer mar,
é dizer ar, e nomear: Dizer estar, e estar em toda a parte e aqui,
no início, no fim, no meio e na palavra: Do que, enfim, abrirá um fruto, não já amargurado,
mas maduro, um fruto completo de verdade, forte de silêncio: Porque o trânsito aumenta de hora a hora.
*60 Agora é um tempo de anunciação,
um tempo de construção, de um ai de alegria ou paz.
É ter achado da amargura repetida o princípio: E sei teu outro novo nome: Mãe-Árvore-Luz.
*61 A cada instante dizer
palavras da palavra. Tudo o anjo encaminha com firmeza.
*62 Pedra de tropeço que és,
com fáceis razões de esquecimento na alma dentro,
tens por certo forma de Te fazeres ver, pois tens morada no íntimo mais íntimo de cada um.
Aí o homem não destrói o irmão do homem. Desfigurará quando muito a própria face.
*63 Vou estando aqui
historiando, apanhado p'lo afazer obscuro. (É o serviço de cada.)
Outro que não eu, de longe, do trabalho, devolverá da antiga força a novo povo.
*64 Cidade de teu cais,
tuas luzes, tuas ruas, teus jardins e largos, onde descansam olhos, em tua claridade nítida para o tudo
de pequenos nadas, tais como fumo, café, que, com a água, nos intervalam caminhadas, pesos, lutas
e surpresas. Para lutar, há não só tuas praças, tuas escolas, recintos ou fábricas, tuas casas plenas de memória.
Há uma vontade grande de ver teu corpo limpo, tuas crianças pisando-te despreocupadas.
Teus operários erguendo não já o que sobre eles pese. Em ti a reconstrução dos dias é possível,
para o arame do equilíbrio inteiro. É em teus olhos de ar, cidade de todas as cidades,
que voa o diáfano das roupas estendidas, outras, altas, tremulantes flâmulas que sol e vento enxugam.
*65 Meu lugar onde,
de dor, amor, espanto e paz, trabalho e refúgio, milénios de novidade.
Eis-me em ti dentro, ó Cidade!
*66 Plantas dos pés assentes sobre este pedaço de terra,
paisagem dum sonho pacífico doutra esfera, os olhos desenham-me a cor a imagem sem guerra,
que dentro de um O se envolve e encerra. Chão de carpete ou de azulejo?
Chão destes dias, fechados aos trajectos ínvios do desejo. Chão de estar inteiro e nu,
suspenso da escrita possível do anseio ou voo, do que a morte trará pra lá de mim. Aqui medito a condição
humana, da estatura: Terra forçosamente dura. Um som através desenha-me aos ouvidos o exacto, breve cenário
da ilusão da vida: Estar desperto e sonhar a música em fundo de me revelar. Despeço-me: Vou viajar ao lado de lá,
onde terei pátria verdadeira. Deixo-vos meu recado: Nação estrangeira, pacífico bocado tive, que em ti vivi.
Vou à outra margem, ao que a morte dá. Um nome de baptismo em si e a si se diz. Mas não: Aqui me deixo estar:
Que não são horas de deslumbres de devaneios. Horas são tão só de cães, gatos e automóveis.
No nocturno negrume, que de morte me cobre. Do fundo do coração minha memória sobre.
*67 Parábola:
Emérito mui digno, Monsieur Albeniz foi empurrado por um bandido, à Paris.
Vi o filme das suas mãos, pombas que voavam: Paz, irmãos! Quase que o matavam.
Falava com as mãos, pombas que voavam: Solidariedade, irmãos! E os insultos gelavam.
Era um colóquio importante para Monsieur Albeniz, que estava no pleno uso da palavra, à Paris.
Logo interrompido, e inquietado, o certo porém é que Monsieur Albeniz falou, e bem, de paz e bem, à Paris.
*68 Embarco neste cais, que aqui me tem.
Em quieto voo, lanço o olhar longe ao mais perto. Repito o lugar, ou o destino.
Exílio em casa: Aqui fico, viajo, voo, fujo. Exílio em pátria: O post mortem me liberte.
*69 Os alados anjos:
Despertos nas antemanhãs, lembram a paz, a calamidade, a dor ou a redenção?
Lêem o livro interminável. Mil e uma vezes lêem, e relêem, para lá do escrito.
Porque lhes apraz, estão de pé. Gostam das espadas, que contudo apontam o solo. Amam cada criança,
que docemente ferem da simples força que lhes vem do fundo coração. Têm quase sempre os braços abertos.
*70 Aqui retomo o recomeço
do ciclo das aves, que sou. Emigro e fico a um tempo, onde enredado 'stou.
*71 Será que, longe, os anjos
realmente pisam da alta serra o terroso campo do pão, levemente fluindo do vento, que, leve, brando sopra?
Se o pisam, é assim como se voassem, com sua espécie de corpo, todo ar e água. Constam de fogo
de asas, ligeira brisa, ideia, sonho ou âmago que estremece em sua aérea leveza? Nos velando,
incansáveis e solícitos, do nosso vão dormir, como se perpassassem vagaroso livro, os subtis enredos desenrolam.
*72 Sono lento guia teu sonho,
vivo de despertares extasiados. De aladas presenças tutelares sobre tuas pálpebras.
Com saliva e pão de te conheceres. Eis recomeça teu enlevo de estar, ciente do lugar onde estás.
Cá, não fora, ou noutro lado. Cisnes deslizam desmaios de agonias doces ou d'indefinidamente prolongadas orações.
*73 Lua, o claro pó
te traz a mim dentro da seiva, ó quase mãe.
*74 Frémito de folhas,
tremulantes em círculos de vento. Que esperas ainda? Lança-te à rua. Faz-se café. Crianças gritam, do longe.
Árvores magras renovam-se na perspectiva de quem passa. Freme a folhagem, sobre a borda, a margem
junto à ponte. Há uma circulação imensa de pneus. Flores coloram das bermas dos carreiros a amplíssima
extensão. Nos passeios dos jardins, risos e vozes. Passam uns trabalhadores, com suas calças azuis,
suas camisas garridas. E umas moças, em suas batas, enfermeiras ou colegiais. Algazarra de cores e arruído,
tingida da alegria da esperança. Outro dia. Que esperas ainda? Faz voz do teu riso, riso da tua voz.
É tempo de despertares do novo amanhecer. Não sentes vagaroso o secreto apelo? Desafogueia-te, anda.
Há jornais, livros, gravuras, pessoas, pão, palavras. Sim, mas desce à rua, à vida. Não guardes nada nos bolsos.
Deixa teus braços livres para a lonjura. Vá, estende a mão a esse teu igual que passa.
*75 Já as cegonhas se postavam em seus ninhos, por sobre os olmos.
Enquanto as águias planavam, a plena altura. Findava a Primavera.
Concluídas as aulas, comboios regurgitavam dos que regressavam a férias.
Motociclos dobravam esquinas. Uma espécie de felicidade espreitava dentre os choupos. Os galhos das nespereiras
agitavam-se raiando à aragem fria. Ainda havia muito a que meter mão. Amanheceria de vez o sol do novo dia?
E então? Acordarias? Erguer-te-ias da sombra do teu quarto? Darias os passos necessários?
Havia algo de irrepetível: O nu tempo último. Fosse o que fosse:
Ou já a voz ou paz de um grande, grande Deus, no coração da criação.
*76 O olmo da frondosa copa,
prantado lá para o fundo do jardim público, lá para as bandas do coreto,
das multidões ruidosas dos pássaros. Com fisgas de elásticas borrachas de câmaras de ar
calhaus lhes arremetíamos.
*77 Os melhores damascos do mundo
davam para nós, dos limites do quintal do João de Campos. Do muro os alcançávamos.
Tempo dos primeiros beijos furtivos das risonhas e coradas raparigas. Do primeiro vinho
da doce juventude. Da grafonola, do outro lado da rua, Amália cantava repetindo o barco negro.
No Sporting, por esse tempo, jogavam avançados os cinco violinos.
*78 Amontoam-se os livros, as caixas, os isqueiros.
Para a gaveta ficar arrumada há que fechá-la. Calcetam-se pavimentos,
plantam-se árvores de flores resplandecentes nos desertos do cimento. Ouve-se um ruído
de quem risca o ferro. Os cafés às moscas. Passam autocarros, regularmente certos. Os estores caídos, sobre
as largas janelas. Computadores desligados. Camas vazias. De perto, soltam-se canções rock. Professores e alunos,
em salas fechadas. Motos, ruídos, cães e automóveis. Agressão, estranheza ou apaziguamento?
Se saísse, tombava apavorado.
*79 As voltas que dê, regresso a casa.
Onde diluo o afinco das lides de Quixote. Cá, na trégua, as guitarras, as flautas ou os pianos
gemem murmúrios, entardecendo-me sonhos a que volto. Ou o só silêncio repercute,
pacificador. Em meu recanto. O canto de estar quieto. O canto possível de me revelar: Ao hall.
Na mesa, os incompletos poemas, perpassados da mais 'stranha realidade.
*80 Outra tarde:
Rompe-se do silêncio o manto do vão dos compartimentos.
Música longínqua, contudo íntima, estala no interior, imo, timbre, fímbria de alma.
Regressa, inanemente, ao ponto mais remoto do olvido.
*81 Retorno dum tema:
A hora nua, do jardim: Gritos d'aves assolam das ramagens as copas,
de amarelidão de transparências. Juntos, muitíssimos insectos em correria.
Desequilibra-se e cai o regente de orquestra.
*82 Quanta calma evoca em mim
o doce mel do teu olhar,
ó anjo azul da plena adolescência!
*83 Está o homem à porta.
Vem de bem longe. E está à porta. Tem cabelos brancos, à porta, o homem.
Cabelos brancos, rugas 'scavadas, testa alta. Está à porta. Traz paz o homem, o homem que está à porta.
Vem cansado do trabalho, e está à porta. Já andou demasiado o homem, demasiado.
E vem de bem longe, e está à porta. Deixem-no a seu caminho: Muito pra lá de qualquer porta!
*84 Teu corpo trazido no vento,
através do silêncio e do abandono. A explosão das palavras que nos demos,
anoitecendo em nós a vacuidade.
*85 Um sossego alheado de cansaços vãos:
Escurecendo a cidade exaustamente, sente-se um desejo instante de viver.
Nas árvores, nas ruas, nos prédios desolados, arrefecem os olhos.
Enquanto se tornam maiores as pedras.
*86 Os joelhos esmagados zur za zur - azedou-me Schubert as raízes das lâminas.
*87 Trepidar de rodas de autocarros blocos casas - amargor barro - rouco brum-brum em fundo. Rostos - rostos - rostos a secura da biblioteca. Munch: Dos turvos, baços vidros a suja cor espessura.
*88 Sei do teu rosto e nem sei.
Sei do teu corpo e nem sei. Teu corpo fremindo. Teu rosto esplendendo. Uma vez te vi
e outra vez depois. E, enfim, nem sei se te vi se me viste, se te fixei se me lembras.
*89 Caminhos, a que as botas não descobrem o afago.
O mesmo sabor de amargura nos é devassado. Entrementes, treres de baterias
treres e ques inúmeros perturbando. Aqui, ali, silentes patamares, desvãos de prédios,
lajes, pedra mármore. Voos de pairar: De eterno entranhados nos movemos: And the wind, ó Zay!
*90 Há muitas cores nos jardins.
Mas onde é Marienbad? Trans tempo espaço o ansiar-te
e isto de não ver-te aqui. Olhos terra de querer-te: Por amar por amar!
*91 Vamos às fontes da manhã,
companheira, vamos às nascentes do sol. Mordi um dos teus cabelos.
Foi vento? Foi vento. Dentro, na carruagem? Sim, porque a noite. Sim, porque a manhã.
Tarde ou cedo, éramos os dois jovens quaisquer, e os carris precisamente.
Lembrando-te depois de depois, p'los dias a prosseguirmos mais do que sós.
*92 O mar nos ouvidos,
durmo.
Se, entretanto, acordo...
*93 Brando ser,
calmo, poema pleno, a neve e água, leve, à tona d'ar, leve corre e vai. Pra lá de monte e mar.
*94 Num sonho todo feito de incerteza,
silêncio, luz branda, amenidade, senti essa presença,
essa leveza, que nos conduzem, 'inda aqui, à infinidade.
Era a alma das pombas, ou a mesma da toalha na mesa, imensidade,
céu sem nuvem nem véu nem sombra escura: A íntima e afável comunhão:
Contacto d'imo a imo, o só refúgio na incerteza: Escorrer do tempo, entretenido, vão:
O segredo dum sorriso. E assim descer de si a si, directo, até achar
a mão, que na mão ajuda a caminhar.
*95 O meu coração mora nas terras altas:
Fundos montes dormentes. A giesta dobrando-se dúctil, na ventania, qual onda marinha.
Uma fonte na neve. Imensa, a flor da urze. E castanheiros, de ouriços carregados.
Ondas de ondas de oceanos d'extensos horizontes. A vastidão habita-se-me de numinosa distância.
*96 Levántante, y mira a la montaña:
Aves e nuvens existem na imensidade. Ora ar! Ora ar!
Exalçai-vos, vistas de meu olhar!
*97 À janela fechada não assomas.
Choram, ridículos, os cómicos. Se os dedos entrecruzando-se, se a rezar.
*98 Passava através do parque,
pensando apenas vê-la. Depois, atravessava a ponte, com um rectângulo
negro ou branco, debaixo do braço. Debruçava-se para onde corriam turvas águas.
Abismava-o a enormidade do mundo.
*99 Turvo, nenhum,
torces, quebrantas, das sílabas os sons. O suor ou o riso dizer. Aqui me tens.
Eu morra se não há árvores magras no teu sonho: Ao a rua e a lua contigo tontas dormirem.
*100 Perdem-se, uns depois doutros, os dias,
descendo a morte indecifrada. Uma vaga saudade,
por vezes, fantasia coisas intangíveis, sóis ou lá o quê,
longe, muito longe dos momentos. Mas, ante a compacta escuridão, tudo parece emudecer.
A desolação da cidade! Chove que chove sobre areia: E hoje eu, ainda.
*101 Dá trabalho ter a casa em dia.
Até correr cada compartimento, e achar cada coisa em seu lugar. Há sempre um papel a jogar fora.
Vê que tua casa esteja em ordem. Como a teu corpo cuida-a. Dá-lhe uma volta.
Cada vez que precise. Longos anos a habites. Tenhas lá um recanto certo onde possas meditar.
Um cantinho teu. Livros, palavras, sons para as horas mais longas.
A rádio e a televisão, a fim de que o mundo se restabeleça, ao contacto fresco das paredes da paz.
Que a porta de entrada continue aberta ao visitante amigo. Que o chão te dê a medida da solidez da vida.
Fundaste, fundo e forte, a própria casa. Reviverá da terna eternidade.
*102 Entretecido das pequenas rotinas,
tais como barba, banho, café, retomo o fio dos dias pesados do desvario da repetição:
O afazer igual consome-me. Ocorre, de quando em vez, um entrecho de filme,
ou um excerto de teatro, pra um ritual diferente de me refazer.
Regresso à leveza das horas transparentes, do refúgio do equilíbrio firme. É água ou vento
que reencontro, num itinerário a refazer aquando do repouso excessivo ou do evidente cansaço.
*103 Não esqueças
as estradas quietas da praceta. Aí, teu poema, teu pouso, tua vida. A réstia de sombra.
Deixa-te estar. O todo do mistério desvenda-se a teus pés. Aí confluem vertentes
silentes e ignoradas. Ficas mudo e emocionado, esperando para ver no que dá de acontecer.
*104 Trouxeste sabor a mel
a meus momentos desolados. Devolveste-me ternura ao olhar magoado.
Obrigado! Se algo te dei, em breve troca de palavras,
ou em jeito de atrapalhação, guarda-o para ti como eu guardo a graça
de tudo o que me deste e nem sei dizer. Os passeios que dávamos,
p'los recantos de antes da doença de existir exausto! De repetir teu nome,
sinto de volta o tempo das frementes e gloriosas primaveras. Foi bom rever-te.
Pra sempre regressaste à cidade plana, repleta do eloquente azul do teu olhar.
Longe se nos perdeu algures o instante pleno do acre vinho, da bela juventude!
*105 Também, das horas, os nomes
surgem mensageiros, do destino de sermos, corpo a corpo, como deuses inteiros.
Também, dos nomes, se completam as falas, porque, do manancial da água,
encontro a poética explicação de mim, na fortaleza justa de abraçar-te, última em meus braços.
Também, dos sonhos, resta a inocência, porque te reencontras a ti mesma, tanta vez inteira.
Comigo estavas desde início, não te esqueci, ó enviada.
Eras parte da força estabelecida sob o ângulo da nossa casa com uvas.
Assim foste nascendo, comigo, para a ilusão do nada, portadora de lágrimas,
sorrisos e perdas redimidas, na alegria feroz das horas, companheira.
*106 A maior alegria de Isiéli,
a trapezista triste, está em saltar impossíveis, pra lá da cobertura,
de um fio de arame, até pairar alta por entre as cintilantes estrelas.
A maior alegria de Isiéli, a trapezista triste, está em ir, sequer em sonho, até pra lá da lona,
entre fios de arame e estrelas, pra voltar ao chão, e andar somente, ligeira como se voasse.
Isiéli caminha, entre seus afazeres, como em pleno voo no trapézio,
em busca da paisagem única, que lhe apresente o último limite do amplo, estrelejado céu.
É-lhe necessário bem ponderar fraquezas e forças em pleno salto.
*107 Lembrar-te ainda na varanda,
atravessando a hora da despedida, me faz quebrar a mudez envolvente,
pra falar d'inefáveis, entre montes perdido. Não, não vou para o mar,
fico entre serras de brisas, na secura fria de um canto, que sinto subir desde mim fundo.
É um canto de terra, de frescor rejuvenescido, um canto do caminho, que há a caminhar.
A esperança de rever o já esquecido.
Alguém com mãos para todas as crianças, mancheias de abundante pão,
a todos os pequenos almoços. Uma mulher com um livro, aberto, lendo lentas páginas,
de pé, aos pés da cama, o livro junto ao peito. Ou um fragor de tronco, a antemanhã, súbito,
subindo de subterrâneas raízes ou do subsolo imenso do sonho: Um fundo olhar,
um rosto, uma espada, no preciso sítio do abalo, o exacto lugar da mesa de cabeceira.
*108 A brancura versus o castanho pardo:
A jovem mulher Mãe, que a todos ama, co-redime a decaída humanidade,
mal refeita da paixão e morte do Filho, em campos de arame farpado, de concentração.
Quando ressuscitas, homem morto do chão das baionetas? Esperamos por tua derradeira vinda,
pais de filhos ausentes. Duramente ultrapassaste o ardor de inferno vivo.
Fizeste teu esse peso, ao pleno sol do agora novo dia. A jovem mulher Mãe meiga sorri,
e agasalha todos seus amados filhos, mártires conTigo, ó Novo Homem!
*109 Senhor do Bonfim:
Aí acima estás, erguido em cruz, em teu lugar de dor:
Dura dor, tua dor, que é dor de morte vida! De estares aí assim, morto e trespassado.
Mas contigo arrebataste a humanidade de cada um
dos que até aqui trouxeste, até a teu tão alto aterro.
Em dúvida a Ti venho, mudo e perturbado, na busca da Esperança,
que ficou da Tua vitória sobre o fim. Deste ao bom ladrão lugar cimeiro,
à direita imensa do Pai. Vá conTigo também meu coração!
*110 A Verdade vos libertará!
Libertará aqueles cujos nomes constam do grande livro da vida,
os que vieram da árdua tribulação: Com suas túnicas,
lavadas e branqueadas no sangue do Cordeiro, torturados, gaseados, cremados,
as cinzas da vala comum dispersas aos ventos da ignomínia, reviverão!
Credes isto? Acreditais contra todas as razões da desesperança?
Adeus, príncipe, pela primeira vez encontrei um homem.
*111 A ti, sentinela, te constituí vigilante da Israel família humana.
Não te escuses repetindo a pergunta de desculpa: Acaso sou responsável p'lo irmão?
Se não o alertares e ele se perder, pagarás por ele.
Se não fizeres soar da trombeta o vibrante toque, cairá a ruína sobre a casa.
A ti se pedirão contas. Se não proclamares teu aviso em tempo,
nas profundas cairás precipitado. Pagarás pelos teus, porque não vigiaste.
Se forte fizeres soar o som, o pequenino seixo branco, que então terás na tua mão,
te encherá de redobrada alegria, te fará transbordar de grande, grande paz!
Que o Rochedo te não destrua. Aponta-O. Ele te será o bem mais precioso,
o tesouro escondido, p'lo qual tudo deixaste. Dentro aí, letíssimo se aclarará teu coração!
Senhor, eu não sou digno que venhas partir o pão comigo, e descansar sob o meu tecto,
mas a uma palavra tua, a um leve aceno teu, eu serei outro!
-
*112 Forte e subterrânea convulsão, repentino estrondo surdo:
De sua força íntima, brusca, uma árvore se eleva do chão.
O Anjo da Espada desce os últimos confins da Terra, transportando consigo,
à geral devastação, a ira e o furor justo de Iahweh. Seu fundo, escuro olhar fixa o então dormente mortal,
que, num estremecimento de susto, se fere de estranha, benévola mágoa.
Do esplêndido corpo da paixão, do Filho do Homem, transborda, se derrama,
p'la brancura diáfana do vaso mais que cheio, o leite do mel do doce pão,
alimento das muitas crianças mortas de fome. O pão é dor do homem vivo,
dor de sangue, água, vinho, fruto da tortura até à morte de que é vítima o faminto da paz.
Logo, aí, se dá o verdadeiro despertar, em lágrimas, do peregrino do Oriente regressado aos seus.
Do grande livro, a jovem mulher mãe relê, enlevada, a escrita rigorosa e última, dos milésimos de segundo:
Enquanto firmemente em pé, olhos descidos sobre o tecido do texto,
Intangível assiste a feliz ultrapassagem da Eternidade.
*113 Alegria de umas casas
de pedra, os vãos ausentes, longe em Trás-os-Montes.
*114 De hoje em diante, José,
a ternura, o esforço, o Abril nítido, instante, repetido.
Até quando, do íntimo secreto sono, acordar a realidade enigma do que somos.
Enquanto ouvimos alguém a chamar p'lo nosso nome.
*115 Nas cortinhas, sós, as casas.
Dentro, os jogos antigos, sonolentos. Processando-se,
a arrastada labuta da cozinha. As brincadeiras, furtivas,
dos meninos pobres de minha aldeia vila: Seu nome é quase paz.
*116 Resta memória
de um estremecimento obscuro ou de uma palavra, que, de tão recôndita, resulta impronunciável.
*117 Houve um dia
em que eu li nitidamente o teu nome, em escrita clara, esbranquiçada.
Houve um dia em que as contas deram certas.
*118 Em seu delinear
de esquemas, 'squissos, linhas últimas,
teima o lápis, firme e líbero, prosseguir largos espaços.
*119 A instantes, o zelo de querer-te.
Crianças dormindo a clara noite, olho as brevíssimas luzes,
pontilhadas no negrume: Afazeres de agora.
*120 Um intenso tráfego
corrói a antemanhã do vazio enternecido de após sono.
*121 Alegria profunda eis a verdade, na pequenez de um menino esse menino puro, que de cansado se recosta defronte do portão.
*122 Sons ante a mesa,
lisa frieza de branda água. Manhã, de um jornal, povo espaço de percorrer-se,
claro até ao grito do cansaço. Em força, de dureza, de persistente trabalho.
*123 O amante de tapetes
vive no escuro de um dia noite.
O apaixonado das águas vive o contínuo rio de ontem.
*124 Aqui poderás ler
de quanto, à indiferença, mais é indestruída a fé, que é sermos rigorosamente livres.
Na certeza de ensaios, tanta vez refeitos, no afã de converter a jovens peixes
em iniciados da próxima, futura idade.
-
*125 Restar
adormecida em si, e desde sempre, a longa tarde de música em fundo, na alegre chinfrineira do bar,
dentro, onde se esconde o eu. Ténue graça de um longo tempo de Verão, pobre, de férias, desprendido.
*126 Alargam-se-me montes sobre montes
de encantamento. Dentro do sonho, no pesadelo acordado,
da pedra, do horizonte, da árvore, da vinha, da erva e da alimária, vou.
*127 O Largo de Jesus,
à chuva de Verão: Distanciando-se, a pequenina mão, da pequenina,
a acenar, a acenar, em longo adeus ao pai, que cá atrás, ficou, suspenso em pasmo.
*128 Pena é que a agenda registe,
tão somente, as voltas vãs do contínuo divertimento.
Não inclui o importante desígnio de mudar do mundo o estado de coisas:
A parte que, do íntimo de si, cabe a cada um levar a cabo.
*129 Deserto, encaro a névoa.
Na perspectiva de um dia por achar.
*130 La chanson des vieux amants:
Estranhamente, enquanto desliza o tardo sol pelo afogueado Ribatejo da CP.
Aí, de estrangeira te fazes íntima, e me acompanhas na prece ensonada do coração doente:
Vivemos lentamente o que em disfarce nos foge, tanto quanto a ânsia alcance: Há a possível aventura da viagem,
quando os bravos pinheiros deixam antever da maravilha do céu: A azul melodia nos fere,
de tal modo, que nossos gestos, de uma vez por todas, se perdem e se esquecem:
Ténues se dissipam, muito pra lá dos frustes movimentos da ilusão.
*131 Do meu quarto fechado
ou dos confins da minha rua ao lugar mais perdido do mais vasto dos desertos.
Do mais fundo dos oceanos à avenida mais movimentada da maior cidade.
Da mais barulhenta das discotecas ao mais distante cume da mais alta, nevada, das montanhas.
Do escuro teatro de guerra ao lugar de maior paz, entre animais, na noite dentro de um estábulo.
Do mais recôndito, mínimo, pontículo da mais ínfima das porções da pulverizada matéria ao mais inimaginado,
distante deslimite de galáxia, ou ampla mancha, até agora inexplorada, não surpreendida, por nenhum, dos muitos,
observatórios astronómicos de vastíssimo alcance: Por onde quer que eu esteja ou por ventura imagine,
Tu sentes respirar minha oração: Jesus, Filho de David, tende piedade de mim, que em Vós confio.
*132 Aquele sonho
de onde teu nome decifrei depois do túnel. E a nudez daquela foto, em que estás a olhar.
*133 De ouvir um solo de trompete:
Que poesia ou ilusão te insinua o cruel ver, de horror sombrio e morto,
após o sono, após a hora oculta e parva? Serão histórias de sonhos de nada.
*134 Terra,
tu ficaste comigo criança. Dias passados, desapercebidos. Com teus largos, amplos espaços
e um povo sem cinema. Com o bom Deus - ou, por Ele, Mãe Maria - a intimamente olhar, focar, fotografar.
*135 Uma, duas flores lilás
e o retrato, de infância, na carteira de trazer. A luz debaixo da água, a luz branda, a lâmpada apagada.
O poeta, de esguelha, com a cara entalada. Ânimos ferindo-se de sons de choro.
A sombra tornando sobre a mesa. O passeio talhado rigorosamente. O candeeiro, ou o aparo.
À amarga indiferença do mundo. A nuca é um ponto muito vivo. Disse, e voltou-se, o meu melhor amigo.
Os braços doem. O psiquiatra é um senhor envergonhado. Uma formiga em apuros,
na sequência mesma do desastre, cruamente. E, ainda assim, o interruptor, as finas películas, as pestanas,
a clarabóia, o óculo, a mudez pública. Logo, óssea surpresa d'ombros, alguém que irrompe brusco em pleno palco.
*136 He was a friend of mine. He never knew my name!
Ir a outros dias. Murmúrio indelével de sinos tangidos longe - chilrear,
dúbio, na madrugada - remos de iniciado remar - seguir de teimar paz.
A canções tenuíssimas, neve de florir.
*137 Disse eclipse,
cinza, resquício, clipe, caldo, acorde, garfo, sono. Chiar de alpercatas em ginásios.
Tontura sobre ravinas e ribeiras, raiva de abismo.
Sumirmo-nos esperarmo-nos, na amizade calada na estranheza.
Esquecidos da primeira leitura do escrito. A dar de escutar os muros longo tempo.
*138 Baloiçar, em corda, em u,
teu mundo de ir mundo, nu estertor.
*139 Lembrar ainda,
de inacessíveis, antigos companheiros. Lembrarmo-nos de nós também,
em amargurados beijos, desertos da Primavera. Vamo-nos ora, levamos paz embora.
Reencontrar-te inteira num cartaz, ó femme douce! Um nu, um monte, A Azul, tu!
*140 Um bocado de lua
para dar de arquitectar invenções de calor, na amizade das horas. Malgré sua verdade
amargura, longe vai, longe de montanhas onde sua ternura, suas amigas, sua tristura,
seu quê distante para mim. Quando a vida sofrida não pesar demasiado pedir-lhe-ei segredo de uma coisa.
*141 Aos solavancos,
berra desespero o amarelo, percorrendo ruas. A séculos de distância,
na biblioteca, silabando à minúcia muitíssimos erros de sintaxe,
sem saber da testa e sem réstia de literatura, o último dos poetas vai e diz:
Meu país onde morre o sol, na dura raiz do pão exangue:
Onde o meu poema, o meu exílio, a dolorida mágoa, a força da terra, o meu amor:
Onde deserto significa sequioso: Onde a fria neve se acende viva em duras mãos estafadas.
*142 Parque:
Deslizam, ao fundo, os ledos cisnes. A uma sombra de árvore, descansa alguém
do trabalho. Bambinos sumindo-se folhagem dentro. Há luz e há água, aqui e ali.
*143 Capela:
Histórias em azulejos: Nas paredes, ilustrações de episódios dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João.
Lá em cima, erguido à cruz, o homem. Vivo e morto, entregue a calma paz, dá passagem ao ladrão do lado.
*144 Cercanias do estádio:
Sobre saibro, os sapatos, dos trajectos repetidos p'lo correr dos dias,
que levam à sombra, a abrigo, a longe da torreira de um sol cru.
*145 Casa dentro:
Ouço e sento-me. Reiniciam-se os mesmos gestos gastos, espaçados, de pôr mesa.
*146 Do coração que Deus conhece,
em sonho fiz o poema de minha vida. De que ficou um verso, aqui esquecido, do rio do tempo
eco perdido. Que releio: Ou para um lado ou para outro, voo no seu amplo alinhamento lá pra lá.
*147 Era uma vez:
A tarde toda, o avô contava das suas histórias. Meio aturdidos meio ensonados,
na infância dos sonhos, devorávamos o mel do desenrolar da narrativa,
a, sempre, sempre invariavelmente se concluir: "'Inda além vai a raposa, a correr a sete pés!"
O avô apontava para um longe. Meus olhos, súbito espantados, arregalavam-se para o mais pra lá
da abrasada varanda. Ampla, térrea, habitada da densa ausência, a vastidão deixava-me de si mesma
suspenso. Eram encostas de encostas, de montes sobre montes, insolados, prenhes,
de graves dorsos, rasos, de todo rasos da maravilhada aridez!
*148 Natal:
Simplicidade grave, a dos humanos, rudes corações transidos.
*149 Afazer:
Um a um os poemas: Bem é, que a vida passa. Com a graça que move o poeta a os escrever.
Dou por esquecida a obra lida e por esquecida a obra a ler. Parto, de vez, à longe margem.
*150 Entrechos, enredos, à tona.
O húmus cheira, e é aqui. Desligo da trama do televisor. À flor do ecrã,
desenrolo o anti-enredo de quedar-me. A cadeira, na mesa, situa-me a não-aventura da escrita.
Que Deus em justo tempo me ajude e, directo, me encaminhe morte dentro.
*151 A fina aragem
aproxima-me uns brandíssimos acalantos. Tudo dorme. Num deserto imenso e de eco
ausente. O silêncio ambiente irrompe e repercute circundante, as mínimas vozes dominando. Engasgado,
tenteando resmungar um vago protesto, o gato à corrida, acossado do calor. Leve vento me visita, e emudeço.
*152 Repetem-se, dos femininos dedos,
os lestos dedilhados, sobre o larguíssimo teclado do piano.
Pára a tarde. É a felicidade ou, tão só, uma vontade de chorar?
Lá fora ou cá dentro crescendo, o sussurro do arrastamento do vento na folhagem.
*153 A noite transfigurada de enamoramento,
nós os dois, reclinados na palha da eira, ao bafo quente de Verão,
os olhos viajantes p'lo céu estrelejado, rumávamos, no vasto negrume
do insondável, aos mais distantes dos pontos luminosos do remotíssimo luzir.
*154 O peso do corpo:
Donde presumo esquecidos versos que não sei.
*155 Comunicar nada que se possa adivinhar. Quase insensivelmente, ouves-te dentro poetar.
Porque nasceste, e renasceste muitas vezes num momento.
*156 Fazemos uma grande concha,
os dedos entrecruzados, dez e dez, vinte, os dedos. Os pescadores,
que estão ali por perto, perguntam-nos montes de coisas. Cobrem-nos
com suas redes de pescar tristezas. Trazem-nos dos raros caranguejos.
*157 As escamas azuis de uns peixes.
Uns acrobatas, uns gafanhotos, uns louva-a-deus, joaninhas, juncos, uns nenúfares.
Fora o amargoso digerido de afasia. Baços de todo o transe os nus tapumes.
*158 Cá amanhece vagamente.
Ocupa-se, pacata, a emoção. O poço é triste, triste de dizer, e de datar.
*159 Povo, onde estás,
além teu lugar, que te não vê. Eu em feira de livro,
rugas sobre rugas, papeis escritos. E tu nem pensando,
como se depois de longa viagem.
*160 Cinza a cinza,
resquícios de uma dor a não se ir. A face complicada à inquietude, ante a expectante
sibila deste instante. Mas um sorriso, um aceno, e tudo, enfim, momentâneo, incerto sossegar.
*161 O aclarar da bruma,
ou a geometria esquema da paisagem.
Saímos logo de seguida, pois é bom passar entre relógios.
*162 Porquê as rosas brancas,
eternamente brancas? Surpreenderem-nos, de inesperada carícia, algum Outono.
*163 Anne, Anne,
tudo em ti termina nos teus dedos. Somente que teu olhar irradia dia. Tílias altas,
aéreas. Chove no escuro alcatrão da rua, espesso corpo imenso, prolongando-se.
*164 Descobri contigo
o milagre da prossecução dos dias e das noites.
*165 A moça me espera,
é tirar o poema. Senhor na tipografia, vou levá-la a passear. É tirar o poema, é tirar o poema.
Palavras não contam, o que conta é viver. Senhor na tipografia, não atrase o poema.
*166 Sair realmente,
a desanuviar. Sucederem-se abruptas, subitâneas esquinas.
*167 O tempo das suaves raparigas:
Os rostos queimando-se em mil vidas. De um limpo e largo olhar.
*168 Querer bem aos luminosos aranhões,
lentos no ofício de pacificar - roubassem-nos a casa,
ficava o luar - tão chato é o piolho como o pensar palavras lentas a pacificar - não nos roubam a casa - e há a paisagem lunar.
*169 Manhã serena,
Stockhausen debaixo da cama. O tecto plano, igual ao céu,
igual a uma mulher, reclinada e distensa, após o sono oculto e revolto do desejo.
*170 Tenho para ti que o cinamomo árvore de dificílima declinação - te escondes estelar talvez sim ou talvez sim - tenho para ti que - à relação infinita,
inumerável, dos concertados gestos - incolumemente habitas.
*171 Cortinados no vento janelas, espaçadas na distância dos pedregulhos.
Um certo sorriso, umas mil e uma vezes bombardeado p'la televisão.
*172 Candura instantemente relembrada.
Não, não da tarde que, findando, dilui a impressão de um jogo relva: Quem não colhe memória
dessas ou doutras que tais doces charadas, perpassadas do ritmo dos sorrisos?
*173 Hoje, ontem, amanhã cá, não lá, na certeza de estar ao rés da terra - onde a força recôndita do imaginário desperto reerguer do esquecimento - do secreto refúgio de onde ser eu próprio café, água, saibro de estranhas luas - linda de morrer, tua face me alumbra e desanuvia.
*174 Dedos gastos
e a chatice de repetir boa vontade: Antes o esquecimento, a lua, inóspita, lontana planura.
*175 A pátria toda a terra,
a terra toda paz, a paz da ampla palavra, a palavra toda pão, o quente pão do coração.
*176 Wasser, Brot und Wein, aquando a Ágape,
a refeição entre os muitos partilhada.
Crianças e virgens entoam cantos à clara luz da lucerna.
Salmos, hinos ou cânticos espirituais.
O diácono pega no copo e dá-o. Dirá aleluia. Dará também a partir o inteiro pão do amor.
Todos proclamam, enlevados, os sentidos cantares da transbordante alegria:
Alleluia, c'est-à-dire, nous louons celui qui a fondé le monde, par sa seul parole.
*177 Era o vale de Deus,
mas negociado. Fogo e luz devastando, vastíssima, a planície.
*178 A cal das paredes os pés dormidos - a imensa desolação - a apatia sem nenhuma saída - os sonhos doentes a brancura horizontal - a imobilidade lua - o brutal esmagamento dos olhos - as raízes
podridas dos pés - os ossos dos dedos, quebrados - a paralisia dos astros apagados os enredos das loucuras visíveis - os pardais, inquietos e irrequietos - os gestos, precisos, vigiados a tensão das fantasias roendo-se tremendamente disformes - o bilhete perdido não se sabe onde - as mansas,
lentas horas - o corpo arrasado da doença - o amor enamorado do horror - aquando do insistente barulho ambiente.
*179 Le clair air ao ver cair: Saber a dor, que me constrói. Isto dizer paz.
Para seres tu faltar-te ainda a experiência da mágoa de muita, muita morte.
*180 Os dias esbarrados de desvario:
Pouco a pouco, ergui calma a habitação,
a encher de tuas palavras toda, a os pais avós segredarem estarmos.
*181 Il y a
des choses, des couleurs: Des choses roses, des choses fleur.
*182 Tu a única e eu,
outro que não eu, ouço as ervas do teu riso:
Aturdidos de surpresa, damo-nos conta
dos restritivos ao que somos aquém escrito:
E disto de as embalagens de cigarros
não trazerem reimpressos os predilectos poemas: Porquê, mas porquê?
Embarcações e água, e montes: Viena ou Praga, acima dum fumo de poeira:
A confusão explícita resulta de explicar onde possa ser o só enfermo de teus braços.
*183 Percorres ruas,
vens triste de alegrias resignadas, força de moça povo, com jornais diariamente. Tudo,
sempre à conta do mesmo - o pão quotidiano. Cansa-te em ralhos, ao meio dia, ao caldo, aos feijões, às couves,
enfarruscada, palhaço, a dares-me coisas. Lês, por vezes, notícias. Queiras ou não, ouves a rádio. Dos altos cimos,
das árvores, das searas, de França, dos ermos áridos, longínquos, desolados, perdoa se te esqueço.
*184 Ardidos os poemas,
solta-se, ainda, o irredutível grito. Era com a impressão, nem sei.
No que vejo me penso. Mas estou? Exuberante, breve adolescência. Pacífica e lenta,
mansíssima Primavera, avassaladora, revoltada toda do encanto da comum solidão.
*185 Poço de luas novas:
Os enredos esquecidos sob a ausência das bocas. Nos sonos dormidos, com os pés no mar,
o pescoço torcido, estremecido, nos montes das dunas, com os olhos - os próprios? a apararem dos céus - em queda - da azulada, resplandecente luz os ultramóveis meteoritos.
*186 Relera Joyce, no terraço:
Cinzento, meu amor, cinzento e fundo, íntimo e fundo em mim, teu amor é-me.
Não evoques mais os dias encantados! Não te cansaste já dos ardentes caminhos?
*187 O ser morre de ser
sem quê nem cor, sem se sentir de si. A opacidade, o volume, o enlevo inimaginável
das cores da transcendência: O verde dos olivais, um verde escuro, sujo:
O rubro das papoilas, um rubro vivo, sanguíneo: O amarelo das anelantes searas, um amarelo torrado e quente.
*188 Tenuidade, ambiguidade,
anonimidade, anónima anonimidade: Os dedos sossegando-se nos joelhos.
Quem está a falar fere-me as costas.
*189 Das fendas das palavras
os intervalos quais janelas - coisas de nada de tanto dia que nos não vemos - a mesma
condição que amigamente lembramos - de cá dos muros que nos fizeram. Há um povo à espera.
Subterrâneo adormecer sem repulsa. Segue adiante, em teu rouco trepidar, carroça, fúria de liberdade.
*190 A democratização do ensino o analfabeto problema - o amigo analfabeto - a objecção de consciência - o rotundo não o conferencista da douta ciência - o nome cristão - a não-violência - o alfabeto amigo - o sol,
óbvio analfabeto - o vagabundo analfabeto - o astrónomo levado por azar no enterro - o alfabeto pateta, cientista,
doutor e demagogo - alfabeto e é que analfabeto - o alfabeto útil, o alfabeto inútil - alfabeto e não alfabeto.
*191 Jarra das rosas roxas da luz,
liberdade do fluir do vento na cortina diáfana, transparências de recolhimento,
maior brancura, da coberta estendida sobre a sólida, branda madeira da enorme mesa da enredada renda.
*192 Do resultado do amor,
ou do olhar, ou do estar perto, ou da chuva na vidraça, ou do pensar sem querer
e ponto por ponto do sucedido 'screver, do relevo das coisas, que morrem ou não, ou do não ou do sim,
ou do sim ou do não, ou do disjuntivo ou, o ânimo próprio, um tudo nada desmedido o intervalo interior.
*193 Talhando poemas, com blocos de pedra:
Relia o Jerónimo Fernandes: Que não se sabe morto.
Queria o livro igual a um mapa-múndi. Mas os joelhos quebrados.
*194 Un enfant m'attend pour pleurer:
Nota: Un enfant n'attend pour pleurer. Digo-te sem ver os telhados,
os terraços, os montes na amplidão, azul e igual o céu,
as rodas de arame nas varandas, o sossego dos putos. Que não esqueça.
A espaços, lá pra lá da sacada roubada à vastidão, o distante fluir dos carros, de infinda serenidade.
*195 Outro dia, outra estrada, outra hora.
Não vou dizer-te quanto te quero ainda. Sabe-lo bem,
doutro dia e doutra hora. Já não te digo quero-te bem.
Pessoas seguiam juntas e se diziam cem mil palavras. Só eu nada dizia.
Íamos por uma estrada e sem palavras. Achei então uma florzinha,
de adivinhar que não me queres, que bem me queres, tudo, muito, pouco, nada.
E nenhuma palavra pra dizer-te, ou repetir-te, quanto te amava ainda, branca pomba!
Havia sons, festa, alegria. Um outro dia, uma outra estrada, uma outra hora. E eu contigo.
*196 De l'eau.
Ombre, lumière, silence, joie. Oui, non, peut-être. Miroir luisant.
Des chasseurs, ôh! O que fizer aborrecer. Mas estar perto de ser até mais ver.
Condição de exílio, pouquíssimas cidades como Omaha.
Os sapatos rebentados, p'la noite vasta: Pai, dá a cada o pão de cada, cada dia.
*197 A prateleira, dentro:
O rio, à gaveta: A rapariguinha, o palato e também o papel:
Ou o bolso do pão e da ternura.
*198 Desenhado o teu sorriso,
na esperança de ver-te, se der por isso. Étaix: Sábado noite, um barulho inextinguido.
Saltamos c'os saltimbancos pra cima da linda tromba do elefante anedótico.
Sós, as árvores não constam. Pedis-me um abraço. Não sei, isto é cansaço.
À medida dos braços as notícias. Depois da travessia dos peões. Depois do teu sorriso perseguido.
Antes do jardim dos cisnes brancos. Antes da verdade da conversão. Antes do profundo, desopressor
descenso. Antes da imensa e única, súbita eclosão. Antes da última, pré-anunciada, efectiva paz.
*199 Joseph K.:
O pasmo, ou, certas vezes, o além dos limites dos vidros das salas, das costas das portas das janelas,
aparecendo escusos recantos sórdidos, paredes semelhando fins de espaço. Se, além, mas... Dentre sombras, vultos,
da fria ruela, apertada de altos edifícios, 'inda lâmpadas, 'inda chuva, 'inda, lá, a azul estreiteza a longe olhamos.
*200 Em criança:
Deitado na noite contra o tecto, quando estava prestes a adormecer, ao lado da criada velha,
calcava as pálpebras com toda a força. Em tons lilás, inimagináveis, muitíssimas nuvens de estrelas
o transportavam, vivíssimas sob seus olhos, ao íntimo, entranhado e secreto, céu infinito irrevelado.
*201 Os pobres trabalham cedo,
algum poeta escreveu. Se, manhã, já dia, é belo, no trabalho não entendem. O trabalho, os braços,
os braços, o futuro. Esperança, alegria, alegria, esperança. O pão dos pobres é duro,
duro pão o que trabalham. Os poetas, quando muito, dão aos pobres o cantar. Quando é que o sol se reparte
neste profundo alçapão? Os pobres trabalham cedo. Têm o sol por futuro, aqui neste ermo cego.
Mas as lágrimas lavrando... O pão, ou suor dos rostos. Mas os poetas trabalham.
-
*202 Aujourd'hui je suis loin, mais je reviendrai un jour:
Raparigas dançando nos confins do sonho - noivos
a um comboio determinado - frescura de um corpo casto todo o bar revolvido retine o ácido som metálico do entrechoque
das mínimas moedinhas, que nos dão de troco.
*203 A cidade debaixo do ascensor:
Chaplin à tela, clown desequilibrando-se, e a milagre se firmando, no incerto fio do arame.
Como se, de quando em quando, lhe adviesse a turva inquietação do desespero.
*204 Mesma quietude a dos pulmões do fim para o princípio rescrever até chegar a além - não mais, senão a esperança
num sorriso breve - um dia outro, o gemer do violão, a aldeias demasiadas para um só cantar pássaros e nuvens nos olhos fontes - alheamento mórbido - um corpo prá rua atirado - um sono dormido, inteiro,
em tuas palmas das mãos - terra irrompendo em sua carne metálica, desdobrando-se de levantes - lado de lá,
sem margens - leve tanger de sinos - chilrear dúbio a a manhã do alegre viajar - inerte vacuidade de brisas e ilimitação de si mesmo - d'aves asas, voos - um seguir de soltos versos - repouso de cansaços vãos - da solidão,
de que não morres - mundos soando, de lá do encantamento do furor - noite gelo, tranquila a medo - mar contendo-se - linguagem de arbustos frios vergando-se - ruas em seu quê de cismar paz - só a mesma mesa de café, a mesma,
do acaso sem história de uns bons dias - se a neve se suspende das árvores de florir, enquanto as paredes
descansam - algo que se interrompe - ou uma indetível vontade de falar - múltiplos enredos d'is - nem restar - aquém o só intermédio de gélidas estrelas dormidas - ou formigas - ou agras urtigas - olhar, de seguida, o modo como
as pessoas bruscas se escapam - referir remotíssimas paisagens a recortes de acaso, de restos de desperdícios
- colá-las, em registo, ó companheira, à lembrança, hábito azul e quotidiano, disto aqui em loiro mel envolto.
*205 Uma louca alegria
correr, correr as manhãs esperadas.
*206 Fui ver a tua janela,
voo, pomba, ponte ou barco à vela,
longe de perdê-la.
E não era a ti que eu via,
era o amor.
*207 Olhas para nós.
É como se ficássemos nus, perante Ti. Fazes-nos fortes, fazendo-nos sentir
próximos de Ti. São brandos, Teus olhos. Neles repouso e emudeço. Tua face, deslumbrada,
invade as distâncias mais recônditas, fremindo do eclodir de imensas claridades.
*208 O amor ressuscitado:
Mais do que sonhado era o corpo da Mulher.
*209 Quando não ao ouvido
algo que instante soa. Que se define, ó castelos de papel?
*210 Lento a prosseguir
até aos mais altos guindastes o afã esquecido das obras.
Enquanto acontece deixar atrás de si prolongando-se um alvíssimo, ruidoso rasto,
um avião sobrevoando-nos.
*211 Alguém à janela e trigais ressaltando a cor em torno. E camponesas e gadanhas.
*212 Apeteça ou não,
por chatice, fácil, fácil, no entanto certa, erva de escombro para a amarela, vermelha luz.
É rigor, dor, ficar, dar, deixar, estar. Asas ao rio: Construir os dias por igual. O relógio, sim, mas quê?
O granito ou o xisto do negror local. Mau grado inúteis, repetidas antinomias. Palpitar, simples, de rigor.
Tensão anseio, tua face matéria, presença do que és através - Emanuel - desejo, entre abismo e verdade,
puro, essencial grito. Contenção prenhe de ser a advir. Da plena eternidade prenúncio, encantamento, início.
*213 Verdura de folhagem enquanto a luz assim,
o corpo dormido, tranquila, límpida, a branda luz fulgente,
repetida e intraduzível situação limite.
*214 Do imo o palpitar
uníssono na brancura.
*215 O portão gradeado na luz
ou a luz no portão gradeado. O abscôndito eu, 'inda invisível.
*216 Dou-te uma rosa,
das que estão de caminho para ti, todos os dias. De olhos fechados não vês?
*217 Vaga sensação saudade do bosque emaranhado ao pavilhão.
*218 Puros dentre ramagens,
surtos rostos, quentes, opressos, duros, puros d'água, sorrindo, abrindo-se, amargurando-se-lhes
rugas, os amplos, claros, largos rostos, Vietname respirado. Do aceso fogo devorados.
*219 Ruir interior tabiques, areia ou cal, ecos sumidos - pedras de pedras sobre pedras, tua saudosa ausência, ao peso
dos dias asfixia - andorinhas, valados, voos - vaga névoa - da manhã carregada, a branca, branda nitidez carros, alcatrão, óleo - de repetir-se, iluminar-se, aclarar, esclarecer, a campo, o mais pra lá da rasgada janela.
*220 Raiz de ouvir:
Árvores, ontem, candeeiros, sinos: De longe, longíssimo.
*221 Toujours, toujours, pour le Printemps,
l'abîme est vert, je me lève en souriant. Toujours, toujours,
pour le Printemps, il y a des hommes qui nous vont tuer:
- Et des chansons pour chanter mourir.
-
*222 O que cada um disse
já eu disse, de mim para mim,
para o distante divino outro,
quando irascível jovem cão.
*223 Estar por dentro da luz
o obscuro quarto - dos amorosos enredos transtornados santuário de antemanhãs ou de fins de dia - ou o poema quarto - mas aparar ar.
*224 Um sonhado António Maria Lisboa,
poema, pára-quedas, mil, ventoinha, plataforma, espaço,
a a manhã acordada a ténues linhas.
*225 Os amantes sem dinheiro:
Um endereço à praça desconhecida: Nem um tostão ou o amoroso ohm!
*226 De fábricas
eléctrico um silvo de agudeza. Um borrão negro prantado sobre a boca.
*227 Mesmo ali um rapaz,
que, desde cedo, esteve labutando com pás e com areia.
Acena-lhe, pois as couves, as cebolas, as batatas, da hora de almoço,
cabem, com ele, nos duros poemas de amor das mãos de um extremo fio.
*228 Entremez brevíssimo de instantes:
- Nós os dois somos iguais a um olhar.
Disse-lhe mansamente.
Depois disparou sobre ela-ele.
*229 Meu louco amor,
teus olhos, espaços deslumbrados, irrompem dum bocado de mudez.
Não precisamos de lançar o olhar para cima ou para baixo, mas a diante, e andar p'la cidade.
Por onde, connosco, vão emoções. Delineamos, sinistro, um filme diário,
personagens de segundo plano, apagadas porque inúmeras, uma das câmaras sobre a cabeça,
outra sobre o coração, os mínimos tiques, jeitos, gestos ou palavras percorrendo-se, oh,
numa processão sem cortes. Milímetro a milímetro, instante a instante, em novo tempo, nos jogamos.
*230 Os ossos quebrados dos dedos,
os estéticos, super-esquisitos devaneios, os pardais resistentes, o sono sem horas
dormido inteiro em tua cara. Um interrompido adeus p'los meses do desastre.
*231 De cerdeiros, a rama baloiçar:
Sílabas, sílabas: Cecília, xadrez, braço, disfarce, testa, sexo, fax, faca, facto.
Sair realmente para andar, ao lusco-fusco, por devastadas áreas.
*232 Sons espaçados, ritmados.
Não querer armas, não, mas espigas gradas, rosas rubras,
a canções, brevíssimas, da mais pura neve da ternura.
*233 Vestida de branco,
era um anjo à rua. Desceram à cidade os anjos da lua? Era anjo ou lua?
Terra ou céu, ou caminho, ou rua? Toda de branco, anjo, lua, terra de céu, lua de rua.
O céu e a terra se fizeram rua. Vestia um vestido branco a mulher nua!
*234 A Espada, caída:
O furor justo. O Vaso, a transbordar: Excelente of'renda.
O Livro, nas mãos da Mulher: Esquecimento.
*235 A felicidade ao pavilhão.
Um templário em seu templo. O mel, ignota floração d'abelhas.
Do cigarro o esparso fumo de raízes. O leite do etéreo alvíssimo maná imemorial!
-
*236 A avenida subvertida
por um monótono arrulhar de pombos. Rouault.
Arrulha, pombo. Ronrona, gatonço. Interior igual a ontem.
*237 Uma cor neutra
das zonas da terra do café, dos ombros doridos, dos números da fome térrea e cruel.
*238 Não me levanto, mas estou:
Vivo. Completamente omisso ao 'scuso enredo.
*239 Aqui vai meu grito,
meu voto de paz, a um mundo devassado e em desconstrução.
É tudo quanto o cantor deseja aos corações.
*240 Lede os mistérios
no branco, lereis a claridade no escuro.
*241 Equilíbrio d'asa,
anjo, alma, moça, se refaz, e mobiliza, da azeda inteireza do acanhado poeta.
*242 Sol nulo de após nocturna chuva.
Estremunhada vigília da manhã. Alguém, que se me aproxima,
com meigos olhos secos, poços escancarados.
*243 Voo, de ficar.
Raízes nascem das plantas, contudo quietas.
Os pés assentes sobre o chão da saudosa desolação.
O ar aberto a o ar! Muitíssimos, mínimos, pontículos da infinidade.
*244 O teu sorriso leva-me sempre para junto do mar:
Ventre magnífico da noite genetriz: Lá, onde tudo acaba
e principia, onde da noite ocorre sempre o claro dia.
*245 A tristeza imensa de estar,
perpassada pelo incerto rever, em corpo inteiro, em flor de mudez,
o próprio corpo. Na ausência, algo avoluma a distância,
dá relevo admirável à montanha, dá olhos para ver claro, dá olhos para ver dentro.
Que haverá, longe ou perto, que nos destrua o exílio? Tijolos, cimento, o invólucro da solidão sonhada.
Viagens se projectam, sons se esvaem, árvores nuas, vãos e vãos, crus lençóis de camas sós, lucernas trémulas.
O prolongar ameno dos intervalos traduz notícia de um deserto habitado, que meticulosamente transcrevo.
*246 António, o poeta louco,
ditou-me devagarzinho seus últimos versos: O governador dos céus estava ali,
e um livro para ascender à pátria verdadeira. Mil árvores estavam indo p'lo ar.
Os pescadores chegam, de romagem, pra beijar a mão à Senhora das Naves, que terna embala
ao colo o doce Filho. Os pássaros nidificam onde nasce a flor:
Flores de ardor, na paz frágil da donzela. Quero que haja, num reino tão pequeno, paz.
Quando do acontecer da plena eclosão da Divina Esperança.
*247 As várias palavras dos livros,
entre si, se debatem. As propriedades dos medicamentos p'lo sangue se m'entrecruzam,
química de sonos. Vivaldi ou Mozart ecoam, dentre os destroçados intervalos a que se ouvem.
A preto e branco, precipitam-se apocalípticas imagens de um recomeço.
*248 Repousa a casa,
cousa ou asa, repousa qual lousa igual - firme de cal, lençol de paz.
Paz que faz a paz - próxima ou distante grande paz. A rosa, alta, ousa do ocaso a mansa luz.
*249 Poética própria:
Que as palavras digam as coisas, frescas, redondas, simples, tais quais são: Coisas a estudar sempre:
Coisas aí mesmo, à mente. Digam as coisas, fáceis, difíceis, certas, cheias, mesmas, elas, sensíveis,
talqualmente. As devidas palavras, digam, próprias, as coisas: As sonhadas palavras.
*250 Retorno de um tema antigo:
O instante pleno um: Mesa de um canto. Um canto claro escuro,
ou um recanto um nada obscuro. Num instante. Quási nada, num instante.
*251 Sortes:
Fui então padrinho do Zeferino, e minha irmã madrinha. Com os nossos verdes anos
sentíamo-nos investidos de funções bem altas! Hoje, meu afilhado é engenheiro da Câmara.
Minha irmã partiu, há tempos, de vez, de um tumor no cérebro. E eu espero a morte, pra me dizerem poeta.
*252 Uns sacerdotes polacos
trouxeram para Nordeste a devoção ao Jesus Misericordioso: Ao pé de Coimbra, um desses padres
missionários deu-me um dia uma boleia e, a despedir-se, uma reprodução de um ícone especial,
que guardei na carteira: Tinha uma oração do coração: De repeti-la mil vezes adormecia e mil vezes acordava:
A repetição continuava, como que submersa, incessante dentro do sono: Era como esperar um golo no último minuto.
*253 Minha mesa de café:
Quero-lhe tanto. A garrida. Toda de pedra brunida. Que linda e que fresca que é!
Lá tempero a solidão, com o café do costume. Do cigarro que acendo não mais se lh'apaga o lume.
De falhados todos temos poesia, morte, instantes. Boa é a pedra que esconde, sob ela, o poeta anónimo,
que escreve e rescreve, pró esquecimento da vida. E se a bandeja então cai? E se as mesas vão voar?
E se a patroa se despe? E se o cliente vomita? E se a coisa dá pra o torto? E se a botija rebenta?
E se as cadeiras se voltam? E se a Cimbali explodir? E se a lâmpada se funde? E se o empregado patina?
E se o cinzeiro se espalha? E s'empanca a maquineta? E se os bolos espaspalham?
*254 Amar a vida inteira,
de uma vez por todas perdida ou ganha, na torrente de amor, que leva ao mar da vida.
*255 Divertimento amargo
de viagens programadas. P'la longa estrada fora. Comigo acomodado no lugar do morto.
-
*256 Conviemos
em que o falar descaía inconsequente. Estivemos de acordo em passar p'las brasas.
Quanto ao mais que teríamos de nosso a acrescentar, já então pouco importava.
*257 O livro aberto:
Eterno, do eterno: Tudo, e sempre! O que pronunciemos de efémero será mais linguarejar do que dizer.
*258 Em Teu corpo transfigurado,
não Te custa andar. Vem, em Teu passo aéreo, como que voando, a todo o homem sofredor.
Vem, em Tua paz, vem, Senhor Jesus, e fica connosco, pois anoitece.
Não precisamos de ouvir a Tua voz ou de pôr a mão como Tomé no coração em chaga, do Teu lado.
Deixas-nos connosco Tua benção, da forte ternura do perdão.
*259 Um canto de terra,
de verdor rejuvenescido, um canto do caminho que há pra caminhar, com graves mãos
pra toda a vida. De prosseguir a etérea claridade de ir de encontro às palavras da palavra simples,
de entrever nossa fome de entranhas luas. Palhaços a ouvir, e a ver, o sino tocar: Dlim, dlão!
*260 Toada:
A rede balança: A seiva da árvore, no vento em que dança: Na verde erva, na aragem,
o corpo que dorme: No vento, em que dança a seiva da árvore, o corpo repousa: Repousa
e balança, na rede, no ar, na seiva, no sangue, no sémen, na dança: Ao livre vento descansa.
*261 Sento-me na casa
e preciso os pontículos, mínimos, dos versículos do afazer,
investido do profundo rigor paciente.
*262 Onde em torno a qualquer mesa se reúne:
João XXIII tinha os olhos bons, de quem pensa sempre antes de dizer, interiorizando e compreendendo das razões do interlocutor. Mansamente. Com experiência e peso de saborosa sabedoria.
-
*263 O sobrado - agulhas - sons opacos.
O poeta, pastor d'insólitas palavras e versos, elucubrando paisagens d'emoção p'los caminhos.
Pesando sílabas, dizendo ou redizendo, falando de Deus à face da luz, à face dos iguais.
Ângulos de mesas. O pipilar das negras andorinhas. Vertentes - valados - voos. Um parafuso caindo, seco, só,
do espesso escuro. Apodrecer revolto de amargosas entranhas. Algum encanto vegetal de folhas em leque.
*264 Brusca diafaneidade.
Uma inusitada paz - a um clarear de vago azul - que aqui entrou não pressentida.
*265 Por fim, fomos cair à entrada do curral,
aos pés do Menino. Era a Paz e a Luz, do calor do bafo, do estrume
e do esterco dos bons animais, santos, calmos, mansos, pachorrentos:
Das vacas, das ovelhas, dos asnos e das mulas.
Vimos então: A maior maravilha era Ele nascer humílimo e pequenino.
*266 Joga-se ténis.
O ploc-ploc do bater nas bolas, ecoando a ritmo espaçado. O inteiro vazio habita-se-me cá dentro.
Nenhum telefonema nas imediações. Portas fechadas, contra a rua e seu comércio. Provisões sobem, com os vizinhos,
p'los elevadores. A televisão, desligada. Um resto, campestre, de paisagem: Serra, de S. Luís, ao fundo.
Máquinas arrumadas, abandono de papeis pousados. Cartas, a ser levadas, a distantes sítios.
Vastos, ermos pousos, de exílio e migração, com paz quanto baste. Enredada música, do antigo longe de algum andar.
Sonho embora? Sei-me sentado, os pés cruzados. Em mim: A teu lado: E este chão.
*267 Atravessarei a noite
desenhado o teu sorriso, na esperança de rever-te se der por isso.
Assombro - súbito ombro. Recolhimento - a uma luz difusa, esmaecida.
*268 Elle est retrouvée. Quoi? L'Éternité:
A imagem banal do terror, a praça, as pessoas pasmadas. Porque acordei no país,
durmo com os mortos, às centenas especados aí, de pé, a meu lado.
De repente fujo dentro do fogo. Oh, o número seiscentos e sessenta e seis!
*269 É possível que os gestos
de pessoas uma a uma não contem já apenas enquanto tais, mas que, quais marionetas,
dizendo palavras duma palavra, povo emergindo, fluxo, refluxo, nos encontremos.
Necessário é consumir o violento grito. O que dissermos nos justifica. Os atentados, as fomes,
a violência, os poemas clamam. Poemas que não perderam ainda, apesar de tudo, o fecundo sentido.
Paulo VI, que trabalha dezoito horas por dia, ofereceu tabaco a Podgorni, durante uma reunião à mesma mesa.
Mas há o Vietname, a electricidade, a guerra química, as marés negras, os refugiados, os desalojados,
os desempregados, os perseguidos, os deslocados, os sem abrigo, os arrumadores, o isolamento, o napalm,
aves e peixes envenenados, genocídios, do carbono as bombas, estátuas dos dias sem sono, campos minados,
pessoas em cárceres por ideias ou intenções ou crenças. Entretanto, passar por episódica doença ansiosa
resulta na possibilidade d'entretenimento, a compensar o demasiado longo silêncio contrariado.
*270 Um a um, os poemas,
a Santa Maria de Todo o Mundo: Ce que j'ai surpassé: Non, rien
de rien: Obscuro esquisso sur carreaux: Quase nada: Obra acabada.
*271 De cansados
fomos ao jardinzinho passar o fim de tarde:
Tu estavas bonita: O sol esplendia:
Isto é - e só - narrar.
*272 Excerto de ode:
Se os sábios O calarem ou os políticos O omitirem, as pedras ou os meninos O gritarão!
Loucura para o mundo, para os doutores, sabedoria dos simples, única medida do humano.
Ser-vos-á servida forte quantidade, acubulada, repleta, a transbordar.
Ele, que vos fará sentar à Sua mesa, vos preparará uma última refeição, vos atenderá cuidadoso,
como servo vosso, a vós seus servos, se O aguardardes vigilantes dos derradeiros dias,
os rins cingidos, revestidos que sejais do rigorosíssimo traje da compunção.
O sol, largo tempo continuou esplendendo, todos, mas todos os dias de vossas vidas,
igual pra justos e injustos. Não é facto que "criastes", artistas, filósofos, cientistas, economistas,
estudiosos da praxis política, um mundo ao avesso, um mundo insólito e aberrante,
sufocado pelo "absoluto" da vossa cultura, em que sim e não se equivalem?
Por processo dialéctico - "sustentastes" - tudo se ultrapassa:
O Filho do Homem seria um só dos mais dos revolucionários da história a arquivar:
Se Lhe chamou "sofista", dentre outros inócuos nomes, um de vós...
E que é daqueles a quem tratastes de menos que sub homens? Um Brot, um Brot, um Brot!
De profundis clamavi! Do íntimo de mim clamei, Senhor, redenção.
Donde, o vosso estranhamento da morte. Um outro tempo, algo de tão natural como respirar.
Miguel, o da resplandecente espada, trará, reunidas, suas nove coortes de coros celestes,
de Anjos, Arcanjos, Principados, Virtudes, Potestades, Dominações, Tronos, Querubins e Serafins.
Pedi que essa hora vos não encontre desprevenidos, ou a caminho, em viagem.
Compreendeis isto? Então melhor entendereis: Venenos resultarão inofensivos,
venenos, espancamentos, torturas, epidemias, pestes ou mordeduras de serpentes.
Senhora, fazei de mim, servo inútil, instrumento da Vossa Paz! Que nossos olhos, rasos
Vos contemplem, ó Imaculada, Advogada Nossa, que a cada instante os teus velais!
Dos dias da prova nos abracemos a Teu Filho: Amados do Vosso térreo coração materno, humano
e dorido, sintamos o bater do Seu, que, com iguais entranhas de desmedido amor, sempre nos ama.
*273 Pedro e Celeste:
Estranheza, trânsito, vidas esquecidas. Trabalhava em lugar frequentado por argelinos e indianos.
O alojamento ficava ali perto da fábrica. O sol batia a jorros. Havia um hipermercado, pejado de gente,
próximo da estrada. A cidade, ali ao lado, com confusão, ruído, fumos, radiante néon.
Parques, onde a amenidade calma sossegava. Lá, travou amizade com um tal Dubsveck,
de origem eslava e infância amargurada. Regressou meses depois, um dia de arco-íris,
fazendo uma paragem em Marselha. Logo aí se deteve por seus museus, o cais, a Cannebière:
Na aventura de saber-se entregue a si. Do escuro a lua caía lindíssima sobre as águas!
Lajes e tabiques davam-lhe esbatido reflexo de seu melhor tempo. Branda serenidade de ondas!
Mansa ficava a extensa praia! Como Celeste lhe aparecia obsessivamente viva em sua memória!
*274 Dez anos depois:
Restavam casas, labirintos, santuários, bibliotecas, arquivos, luzeiros, lugares de fascínio e liberdade.
Outros sonhos habitariam novos entrechos em esboços de romance ou de diários, em infindáveis,
esboçadas, incansáveis tentativas: Sua inacabada obra! A vida, incansável rio, fluíria, tempo no tempo, p'las vertentes
do pastoreio. A pouco e pouco se aproximando ao inevitável desenlace, se acercando da Mão do Eterno Pai.
*275 A cara negra de óleo
um operário, dentre os ardentes motores.
*276 Rememorando o Menino
de todas as linguagens e ubiquidades, que, de brincalhão travesso se fez homenzinho bem comportado,
eternamente novo, sempre inominável, igual ao Pai e peregrino da eternidade,
que entregou à vida em flor de todos os renascimentos da contemplação mais pura, despojada, a melhor parte
do que aqui nos coube em parte, enquanto gastos arrojamos a comum miséria, calada e quotidiana. Se aniquilou
ao mínimo, piccolo ponto: Senhor do viçoso coração de Sua Mãe, onde escondido nos tem vivos motivos de saudades:
Do sol, da água, da paz, do sono, do sonho, do vinho, do pão, dos amigos, do bom ar, dos entusiasmantes caminhos.
*277 Entre poetas:
Achamo-nos, de cá dos muros, lembrando, em quase trevas.
Se falamos, sabemo-nos iguais. Dizemos: Se nos ouvimos, todos nos ouvimos.
Fogo que se ateia e se resolve, em convulsão, é onde quer que o Espírito sopra.
O corpo dormido, os dedos pendidos, os quietos joelhos. A segundos fruir tudo, tudo.
Fundas águas, incessantemente correndo, sob amplas pontes, através.
*278 Vi em grupos crianças,
as batas iguais, as largas sacas, correndo ou saltitando,
por um campo verdejante. Iam às aulas ali perto. Longe.
*279 Teu nome de éles, éles, éles candura rememorada. Ou moças dançando obscuros confins.
Antiquíssimo anoitecer por S. Martinho de Angueira. Telefonam de distantes, ignorados lugarejos.
Algumas palavras, que ecoam, desvanecendo-se e sumindo-se ininterpretáveis.
-
*280 Todo o bar se atravessam,
lado a lado, cândidos, omnipresentes sorrisos.
*281 Resquícios, cinza e uma dor
a regressar. A face esmagada de inquietude. Mas um sorriso, um leve aceno,
uma cadeira a uma mesa, um amigo, e tudo enfim incerto aquietar.
Os largos gestos, sem rasto se entretecendo, sem peso, desprendidos.
*282 Quando não,
ao ouvido, como que inútil lamúria, a amargo soa.
*283 Em quieto voo,
lanço o olhar ao mais perto. Refaço, dos dias do lugar,
cada vez mais, o meu destino.
*284 Um quase nada:
O estado de graça de me ver suspenso da tarde sonhada.
*285 Já aquele dia liberto
se tornava absoluto, inteiro de início e aventura.
Bastava-lhe esse tanto. Tudo se esquecendo. Nada escreveria.
Da casa os vãos do ar ausente, os vãos do ar de Deus.
*286 Carlo e Dora:
Embrenhado em fumos, o café. Carlo rabiscava uns desenhos. Afinal gostavam ambos
de música, cinema, flores e iogurtes. Estavam já a despedir-se. Ela levava para o seu quarto aquela só azul
reprodução de Chagall. O fim de dia moía-os. Então, até amanhã. Pá, que horas tens? Dez. Dez?
*287 Partira, manhã cedo.
Sua terra natal, entre árida e sagrada, acolhia-o a seu regresso,
estendendo-lhe como que um manto, verde branco, devastado da vastíssima solidão.
Estava a casa vazia, o quarto nu, o tijolo argamassado, a porta aberta pra o desconhecido.
Ao menos dali avistava-se o céu somente, sem nuvens a ensombrá-lo.
*288 O dinheiro contado.
A mala pesada. A muda de quarto. Paredes que se apertam, obsessivas. Um cão lá fora.
Abjecção e náusea. A hora da partida. Cri-cri constante noite dentro. Quilómetros até romper manhã.
Sou a Imaculada Conceição: Figura 'inda iluminada, em um portal ou quina de antigo solar, a uma lanterna trémula.
*289 Pode sair!
O fim de tudo aquilo. Nos lagos ao Jardim da Estrela, cisnes desmaiando estagnadas, dolentes eternidades.
Lembrava ainda laranjadas bebidas na cantina do quartel, por Campolide, enquanto, na Tv, nadavam horríveis peixes,
das profundidades. O reencontro consigo mesmo. Uma palavra: Que todos sejam um: E uma oração.
Sua tia enfermeira carregara uma imensidade de roupa da Alemanha.
*290 Celeste tomara conta da sua vida
como de uma verdade total: Seus só lhe restavam os sonhos: Aí, em margens livres,
esvoaçavam aves feridas: Deslizavam férreos comboios: Irrompiam, de altas penedias, claras
cascatas de precipitar-se: Surgiam labirintos, de cidades nunca vistas, destroçadas, em que se perdia
e se reencontrava: Cataclismos, desabamentos, conflagrações, reuniões, debates, tiradas de árias de ópera,
políticas quezílias, confusões, discussões familiares temperando mortos tédios, distantes dramas pessoais
a nova luz sondados, escritos evocados e elaborados mentalmente, surtos versos repentinos logo esquecidos,
inéditos e inéditos, rabiscos, exames, naturezas mortas, desérticos, extáticos horizontes de piscinas e plenitude:
Até ao balbuciar do dulcíssimo nome de Jesus: Tudo s'entrecortando de canções submersas,
que, do transístor, resultavam irreais, mesclando-se a bocados de redondas frases soltas da locutora.
*291 Té Santa Clara, além ar:
Dissera-lhe Manuel: A graça faz-nos ver, a graça ou seus anjos súbitos nas antemanhãs:
Obstinar-se a todos os rumos: Investir, olhos ao futuro, as possíveis direcções.
Oh, as horas de ponta na cidade! Mergulhar no fenómeno humano, o corpo leve, ascendendo em pó,
neblina e esperança, caminhando, na direcção do poente, ao lado de lá da ponte, o lado distante e claro,
a emergir dentre caóticos destroços. Forçoso arrancar do grisu de ferros e negrura bairros inteiros de tristeza.
*292 O entardecer nas árvores
da verde inquietante Primavera. Suavidade no chinfrim dos pássaros, em intérmina, angelical melodia,
antecipando saudades de algo de melhor e mais pleno. Num café, ou bar, acaso tirado
de algum romance de Pratolini, uma jovem mulher ingeria uma bebida escura.
Pedro vivia a serenidade de um outro dia. Passara tempo sobre tempo. Era altura de dizer "era uma vez":
Reclamar o passado pra o passado. As palavras realizavam o que todos sabiam desperdício do silêncio
ou submersa voz do coração. A não ser que a sua revelação se desse de tal modo solta,
que assim rebentassem, claríssimas, de incontido ímpeto:
A pastorinha veio às flores.
Encontrou um elefante, malmequeres, papoilas, pombas brancas, andorinhas, gaivotas, borboletas.
A pastorinha, de cara preta.
Lua. Mar. Sonho estar sempre contigo. Penso em teu amor por mim. Sonho estar contigo.
Desejo paz a todo o mundo: Amor, paz e concórdia a toda a terra.
*293 Hoje o grande, fundo dia,
que abre a flor da neve na noite de te ver.
*294 Gosto da noite por sobre automóveis,
noite orvalhada, em aço e fumo.
*295 É na vida
de viver que se vive a vida dura.
*296 O que te resta:
Fixares-te, ateres-te: Ateres-te, fixares-te: Ansiares perfeitamente:
Saberes, exactamente agora, quanto é claro.
*297 Homem de água és:
Mergulhas, sob chuva, na leveza da tua cama: Na plena liquidez em água te orientas para os aquáticos devaneios da noite: Te dissolves nas palavras água, que fluem em teu afã mais íntimo, por dentro do escuro sono.
*298 Anónimo, escrevo fim:
E inicio, sem querer, novo poema.
*299 Uma coisa em que cismo:
O bom Deus está em cada um, quando cada um está com o bom Deus.
*300 Scherzo:
Dêem-me a água e o negro café de após sono. Dêem-me música, que m'intervale os goles
bebidos e as baforadas de fumo, que entrementes se m'engolfam pulmões dentro.
Café, água, música, cigarros, e, claro está, a minha mesa de canto.
Por favor, com este calor, não se esqueçam de ligar a ventoinha.
Aqui respiro o meu ar, com o ar do meu cigarro, de raízes minhas, que também vivo no pó.
Ah, o egoísmo natural de ser-se a si próprio como vento ou chuva.
O natural egoísmo de fruir-se pura e simplesmente. Não me puxem para trás a cadeira
enquanto me sento. Convenhamos em que tais brincadeiras, de absoluto mau gosto,
só cabem em certas fitas. O resto está certo: Certo como a morte ou como a força da vida!
Certo como a liberdade, o amor ou a graça! As contas ficam em dia
logo que acabe a leitura do periódico e diga obrigado no acto último de pagar o exacto preço.
*301 P'lo céu aberto
dê entrada o Filho do Homem. Já a seara 'stá pronta,
para a ceifa. Senhor, lembrai-Vos do vosso povo,
pois o conduziste do desespero do deserto. Lembrai-Vos de quantos
saíram por Vossa mão da dura tribulação passada. No instante final sejamos salvos.
Que Tu, Maria, boa Mãe, nos encaminhes ao Trono da Graça:
Lá, onde nos abrace, de toda a maior bondade, a Divina Misericórdia.
*302 A última universal bandeira:
Embebida do sangue dos inumeráveis mártires, esvoaçando livre ao vento que sopra dos últimos
bombardeamentos, nas mãos das crianças sobreviventes, rubra e branca, imensamente branca,
da brancura da pomba da Paz, iluminada como Maria, alta, bem alta até ao mais alto dos cimos, pairando
na aureolar plenitude, alçam-se, nela inscritos, verde V de vitória, gloriosa Cruz, Estrela d'oiro de David,
Candelabro perdido do Templo, Arca da Aliança, Graal da demanda, mínimo Seixo e rubro Coração,
símbolo consabido da verdade libérrima do Amor.
*303 Ver à força de hoje
a clareza de um dia ascendendo até mais não.
*304 Rumor resíduo do dia inextinguido Charlie Bird Parker a brancura da tua boca o arrefecer do sangue haustos de fremir ar livre a loucura é ver.
*305 Balbúrdia e alarido de crianças
sobrepondo-se a rostos cinza. Perturbadora moínha de gritaria.
Não atingindo a crueza, um quê que cai, e em falso. Absurdamente, na tarde incerta.
*306 Senhora do grande livro,
guarda-nos contigo, em tua mão. Lê, esquece e esclarece nosso incerto sentido último,
e nosso passo a passo, dia a dia. Que à tua protecção de Mãe nos acolhemos.
*307 Pálida luna,
ao menos por ora não nos aclares o ainda desfigurado rosto até ao desmaio da cinza que a morte é.
Deixa-nos ficar a sonhar com o estreitar do verdadeiro abraço da terra, a então amante única, e fidelíssima.
*308 Pedras sobre pedras,
sobre os dias de falta de ar - árvores magríssimas, arranhões, crueza, fome,
névoa ou atravessar de frieza. Impossível cantar senão após árdua jornada de trabalho.
-
*309 À indiferença da rua,
um nome abominado duma montra. Vou gritando,
o olhar varado d'impassíveis turvas caras, uma forte palavra de liberdade.
*310 Que não esqueço mais
aqueles amigos desconhecidos: Vieram a minha casa fazer um telefonema a uma hora
a que os cafés fechavam: Tinham pressa e queriam pagar o telefonema: Entraram e saíram.
Entraram e saíram. Mas guardem vosso dinheiro! Reflexo de um mundo a aproximar entre múltiplos de mil.
Não será que o direito à respiração se nos dá? Forçoso renascer de aproximações, dentre os escombros!
*311 Sei de inúmeros sítios onde vermo-nos,
e, porque aqui, ante o mesmo portão, às mesmas canções ausência, da tua ausência inexistência,
ou ante os muros, onde crianças rabiscam a palavra pião com as letras ao contrário: OÃIP nós, Mulher-Mãe, sabemos - e há as mesmas brincadeiras da incomunicabilidade diária, um trabalho que cansa,
ainda antes de ser trabalho - sei - e, a este escurecer, digo-te que, absurdamente, não estás. A uma infinidade de tiques,
ao horizonte abismado do horror, às errantes recordações - imagem exacta de exílio - sei - de portas de janelas,
de brancuras mar - nós, Mulher-Mãe, sabemos - de aborrecedores holofotes, da exacta localização, em carta,
de pouquíssimas, equilibradas, aéreas, alucinantes construções de jovens alegres arquitectos.
*312 Fincarem-se unhas à pedra.
O papelão é belo, tanto, quase, quanto o pão.
*313 O espaço à medida dos olhos a chamar-te.
À medida dos braços para ti. A palavra à medida do teu nome, a reclamar-te, reclamar-te.
Esse teu nome à largura do jornal clama as notícias que lês, todas as notícias.
*314 Móbil de vazio,
apenas corro. Com os meus, muitos gestos se m'entrecruzam inconsequentes.
Da desconexão, instantes de instantes se m'entrecortam a mim, um igual aos que,
da submersão, acaso vêem o rigor de dar-se, nascer, conhecer.
-
*315 Fixar sem ver:
Ficar à espera. Encandeado o olhar, cambiar palavras.
Tudo de tudo, em toda a parte, tu.
*316 Além da obsessão
dos tiques controlados, uma catedral, verticalmente:
As cordas fibras da guitarra, a traduzir a opressão, a náusea, a veemente paixão:
Travessas paralelas: Da envolvência arbórea a frescura orvalhada.
*317 Dás-me a tua mão aberta,
aquele teu florido sortilégio de ontem e aquela foto emoldurada
em que estás a gritar a vida inteira.
*318 Tua face nua,
aos números cruéis.
*319 Convenhamos em que
é verdade a 'scusa prisca.
*320 Um fim de tarde,
na praia, uma mulher falou-lhe, o cântaro descansando na anca,
a exagerar sua postura, tristemente. Uma ideia às vezes atormenta.
Um compartimento a média luz, uma cama ou um divã, um estreito quarto.
- Mas deixem-me dormir!
*321 As voltas que dê lembra-me a rua,
vago correr de pedras. Gaivotas perdidas ao rio. Conheceres-te um e insectos em desvario.
Que quero eu debaixo do chão? O peso, o poço, a graça, o nome, a senha, e esquecer.
Conversas ciciadas, teu natal. Amores entretecidos, breves. Crianças rindo, terríveis aos ouvidos.
*322 Meus amigos, não me sabeis o nome,
mas alguém me conhece, que não eu.
*323 A afronta das sombras,
bloqueio e imobilidade.
*324 Revolto recomeço do ciclo migratório,
que aqui sou. Voo e fico, ao mesmo tempo, de enlevado.
*325 Tépida Primavera.
Saíra de casa. Estrada fora, o sol cantava. Trauteava um fundo enternecido de Granados. Que bom
ter tempo livre! Não ter de que pensar. Que desejaria de maior? Água só, água de pedras, terra, areal,
fundas profundas, saibro, água de vertigens de abismos. Doía, entretanto, a evidente ausência de sorrisos.
*326 Luz esbatendo-se:
Entre cerveja e música, enredos de nada. Tal qual Ruy, o poeta póstumo, sofro tanto tempo gasto!
Embora pareça absurdo, gosta-se do tempo gasto. Uma saudade. Um apelo leve para a indecisa lonjura.
Um apelo íntimo, familiar, para o além, montanha ou ar, lua ou ribeira, areal ou bruma, névoa ou raiar da claridade.
Um vontade de partir, uma vontade de ficar. Uma vontade de melhor, de mais dentro e de mais brando.
*327 Do Oriente, uma estrela:
Seguiam-na uns pastores que logo se deslumbram da maravilha:
Um recém-nascido, rescendente de terra, rodeado dos pais e de animais, pacíficos e lentos:
Fez-se então doirado silêncio.
*328 Eis-me só e nu,
neste lugar sombra a que recolho. Deixo os sonhos ao distante azul do teu olhar ou aos muros - do papel - em que do mínimo poemeto o preciso termo anoto.
*329 Alheio a idas e vindas,
a subidas ou descidas do elevador, preocupa-me a interrupção do itinerário das moscas.
Hábil, o gato as apanha e come aos pulos p'lo ar.
À deriva do aparo, que desliza segredos de estar, descrevo trajectórias de aquém eu.
Já a sólida cadeira me situa sentados meus 99 Kg.
*330 Absoluto de plenitude e solidão,
os dizeres mesmos, que mais e mais se interiorizam, à nascente fecunda donde procedem.
Plena vida, na meia tarde. Anoitecendo-nos pouco a pouco, na varanda ou lá pra lá.
*331 A poesia da relva,
onde se distendem corpos enamorados.
Só o cantor chora e canta a um tempo, anónimo fauno emocionado.
*332 Maria, Rainha da Paz,
acompanha-nos a Teu Filho. Acompanha-nos à pátria verdadeira.
Porque nós não somos deste mundo. Estamos cá, mas o certo é que de cá não somos.
Somos d'Aquele, que o mundo rejeitou, como a nós rejeita. Aquele que nos amou
e que, no oportuno tempo, Se revelou e nos deu Vida, pois à Sua mais viva Vida nos arrebatou.
Contra todas as vãs razões com que nos queiram prender, nós somos d'Ele:
Que, porque Caminho, Verdade Eterna de Amigo, fiéis seguimos.
*333 À Foz do Arelho, Joseph.
O ancestral trabalho adiante, de longíssimo.
Grave nome de luta consigo traz, que lembra, e só, enquanto há paz.
*334 Ainda aí a guitarra ferindo,
entretecendo, rasgando e redizendo o puro espanto,
ao esclarecer da agora outra amplíssima madrugada.
*335 Um voto de Natal:
Que esse menino nascido pobre seja paz,
dentro do teu coração, onde de Deus inteira a paz se faz.
-
*336 Repuxo
que teima em subir contra o tempo, que o atira alto. Constantemente o obriga a recair a si.
*337 Não digas nada.
Deixa-te estar. Que Deus é grande.
*338 Se é
plena, e terna, a claridade, a luz amena.
*339 Corre o vento, e vem até aqui.
Corre o vento, e fica dentro em mim. Bem podes correr, vento
da minha não aventura. Bem podes anunciar-me o lugar.
Pois aqui sopras, vento de minha precária estadia.
Abro-te todas as portas, ar que a vida me dá.
Nenhum obstáculo te detém. Transportas-me, nuvem, à praça do sonho.
Onde a casa perdida me visitas, brisa, aragem de meus dias.
Vento dos ligeiros sustos, pudesse eu fazer, contigo, o único último poema.
Porque 'ora corres longe, vento livre da frolida e árdua liberdade?
*340 O vale de Deus
me abrigue e silencie, e em tempo me deixe a mim entregue. Pra que, tarda,
a morte me aconteça como a qualquer um dos mais que, certos, pouco a pouco,
finalmente de enfados aliviados, entram, com suas tendas, ou almas, porta dentro.
*341 Sebastião: Ínclito Cavaleiro do português Graal,
como não reviverás, se, em cada um de nós, connosco ressuscitas?
Quando voltarão, em pó e revoada, alas e frentes de teu nóvel exército,
adolescente rei quase Messias? Do sonho da névoa em breve te reergas, uno de muitos, Portugal!
Enfim alçada em firme mão, voe alada e louca a Universal Bandeira!
*342 Cá dentro
o absoluto silêncio se adensa, em seu leve peso ténue e pacificador.
*343 Oxalá algum dia
saboreemos, pronunciemos e proclamemos o suavíssimo, por ora ignoto, nome de paz.
*344 Aqui fico,
moro, morro, vivo e revivo, rodeado da Festa: Do ardor do fogo comovido.
*345 Luna madre,
recôndita face, velada e escondida.
*346 Tarde sentada,
sossegada:
Folheiam-se velhos in-fólios.
Latente vida irrompe e grita fortemente das amareladas folhas.
*347 Há as mãos a erguer.
Há que adormecer e esquecer. Que trabalhar e ser.
*348 Que não seja senão, todo teu,
tua simplissíssima oração, Maria, Boa Mãe.
*349 Fumando,
Deus perdoe, abrevio a viagem da cantiga.
*350 1º de Maio:
De rosas de suor o canto de alguém do trabalho.
Rosas breves, de recôndito perfume.
*351 Filosofia:
O mais para lá para o outro ou ao olhar do outro. O que, envolto a mi'.
*352 Obrigado,
Senhora das noites e dos sonhos, subterrâneo desvelar de mim, númen meu, Companheira
e Vigia constante da sombra, Inominável!
*353 Sei da lonjura da estrela
a que acedi da infância. Sei da palavra que me deste a dar, polpa de fruto. Sei de quanto
essa palavra doo a outrem. De quanto sei construo o poema da firmeza confiante da alegria,
meio submerso no infindo zum-zum do tráfego, que mais e mais se adensa, e eclode, amplo e forte.
*354 Vá alguém suster os alados cavalos,
que, da madrugada longe, donde procedem,
pletóricos de força, selvagens se soltam, galopantes!
*355 A Vanicelos:
Ao eco ou sussurro do vento, brilha vibrantemente
o verde tenro das pequeninas florinhas assoleadas.
*356 Camões:
A terra, a monte, desenha-me a ilusão dum rosto, serena e plena coincidência entre noite e morte.
*357 Adenda:
Do que ficou de mim, aqui se me releva a viva impressão de um tosco rosto,
esplender da feliz coincidência entre noite, amor e morte, bondade, tempo e eternidade.
*358 Astronomia:
Olhando o ar é que nos temos a nós: Estrelas, distância d'espelhos de olhos d'alma,
em vosso fulgor desmedido nos abismamos.
*359 Do todo envolto em que estou,
da imensa claridade a evidência: Gratuita se me dá.
*360 Senhor da firmeza da invencível paz,
toma-me conTigo o corpo ao colo, enquanto parte do Teu corpo glorioso.
Deixa-me participar de Tua beleza muda a meu olhar. É suave de repouso Teu puro, meigo olhar.
Tu és, vitorioso, o Cristo de todos os povos. Tua face preenche todos os lugares:
Faz diferentes e imensíssimas as mais desvairadas paragens.
*361 Affiche:
A arte está de novo a 36 Km/h.
*362 Das aulas os redutores raciocínios
definidos e curto-circuitados ou, diversamente,
as longas navegações do vago divagar libérrimo.
*363 Em Tavira os tontos olhos
na branca brandura da esplendente cal.
Verdadeiramente excessivas as claridades do sul.
II) na morte do Senhor Trabalho
*364 Entremez, de acto único,
com as seguintes personagens:
Senhor Trabalho, morto de trabalho.
Padre Água, habitué de semelhantes ocasiões.
Dona Morte, então quase feliz.
Dom Plim, mais conhecido por Dom Dinheiro.
Dona Amorosa, viúva do Senhor Trabalho, desconsoladamente divagando, em lunares lucubrações.
Dona Saúde, sempre de boa disposição, graças a Deus.
Dona Bizarria, mais caída em graça do que engraçada.
Bambino Jardim, dilecto filho de Dona Amorosa e Senhor Trabalho, criança filósofa, super-pasmada de estranha.
Algum Público, que a tudo assiste.
Adereços cénicos:
Uma cruz: Um livro aberto: Uma espécie de mesa, ou altar:
Articulação, de madeira ou aço, onde jaz, cadáver, o Senhor Trabalho.
Do rosto gasto de Trabalho parece surtir enigmaticamente um sorriso idiota de vaga imobilidade.
Dito o "Ite Missa est",
PADRE ÁGUA, encetando breve prelecção aos presentes,
dirige-lhes palavra que pretende de conforto:
Tem agora este bom homem, de nome Trabalho, concluído o breve curso de seus dias,
idos dias esses, em que sempre achou refrigério nos braços sossegados de Dª. Amorosa.
Houve por bem Dª. Irmã Morte o visitar.
Transportá-lo-emos daqui a incerta paragem, tão incerta quanto definitiva, na certeza de que,
se sempre Senhor Trabalho contou com o amor e o desvelo de Dª. Amorosa, esse amor o assiste à presente hora.
A vida continua e o bambino Jardim aí está, prestes a suceder-lhe à frente da empresa por ele inaugurada.
Certo se desfará em zelos e zelos, sob a sombra benigna da mão de Dª. Amorosa, mãe e cúmulo de atenção.
Também a generosa ajuda de Dom Plim não faltará, como até aqui jamais faltou, ao nosso bambino,
a quem ri, a olhos vistos, um futuro promissor.
Nos declives da sua já longa vida, reiniciam-se, para Dª. Amorosa, novas primaveras,
apenas magoadas da dolorida saudade.
DONA AMOROSA, como que falando só:
Pobre Trabalho meu, conheci-te como ninguém mais deste mundo te conheceu. Sempre trabalhaste.
Até porque nunca soubeste fazer coisa nenhuma. E terminaste. Vais já avoando, nos braços de Dª. Morte,
com ela, a quem sempre desejaste mais do que a mim, por quem sempre suspiraste,
em tuas provas, canseiras e enfados.
DONA MORTE, como que murmurando entre dentes atrapalhadas rezas:
Tens-me contigo agora em meu abraço, rico Trabalho, és o que sempre foste: Um bom e pobre diabo!
Ninguém nunca te viu melhor do que eu agora.
Olhando para o ar atordoado do teu menino dou conta do reflexo, ou marca repetida,
do teu riso idiota, ingénuo e parvo.
DOM PLIM, em suspiros e ais:
Embora nunca tivéssemos sido grandes amigos, custearei de bom grado teu ofício final,
na passagem, que ora levas, desta pra melhor.
Revejo com saudosa mágoa as tardes solarengas em que te requebravas com Dª. Amorosa e seus enredos
na Vivenda Felicidade, sob latadas de vides, acompanhados das meninas dos vossos olhos, o irrequieto Jardinzinho,
ali à Rua da Ilusão, número um.
Até as viçosas ramas das acácias, lá próximas, dançavam, com os vossos suavíssimos entardeceres!
Agora tens paga tanta quanta ao teu tamanho devida, agora terás conta certa, de sete palmos medida.
Ai, amigo! Ai, Trabalho! Ai, companheiro!
Deixa lá, não te rales, pois não mais vais ter de repetir antigas adições com as aproximações do fim do mês!
Bons sonhos, caro! Que os melhores devaneios te alimentem a estada.
De novo, DONA MORTE, gemendo e suspirando, como que em desatino:
Tanto te amei, tanto te desejei em meus braços, puro aconchego.
Mas tu eras feito do meu oposto - todo vida - e sempre, sempre escapavas a meus quereres.
Eras vida, vida indetível.
Mas paraste. Ontem. E deste-me de tua noite.
Tens os aprontos todos para um lindo enterro!
Descanses pois. Linda manhã, sã Primavera!
Bambino Jardim, repete lá uma das tuas rezas, das que aprendeste na catequese, mas em voz alta e clara,
que eu quero ouvir, por alma de teu pai, o bom Trabalho! Mas uma reza que lhe dê proveito farto!
À boca de cena, para o vago, BAMBINO JARDIM:
Morte a todos igualha.
Nenhum trabalho a vence.
Nenhum dinheiro a compra.
Vida bem amada, melhor sabedoria!
Pe. Água, a vossa benção, meu padre, meu bom pai!
Soluçando, repete perdendo-se num desastre: Trabalho merece repouso, trabalho merece repouso.
DONA SAÚDE, avançando a curtos estremecimentos de passinhos ágeis:
Trabalho, Trabalho, alegre companheiro, tanta vez de mim lembrado!
Dizias tu: Bom sono, bom afazer, melhor comer e melhor amar!
Que mais querias?
Se sempre da melhor sorte tiveste!
Em tudo fizeste o que quiseste, e não morreste de nada ruim, nem sequer te cortaram
ou te retalharam ou te esfaquearam! Na morte, de quem dorme fundo, adormeceste:
Trabalha, Trabalho, que trabalhar dá saúde! Não era esse o teu dito de sempre? Não era esse teu lema,
e até teu grave ponto de honra? Nem sequer precisaste de gozar de uma reforma.
Farás nascer e crescer, revivo em Algeruz, plurais ervinhas. Que, delas, se faça farto chá!
Agaiatada, DONA BIZARRIA:
Já dançaste, até cair para o lado, a tua dança de moço? Tu, que andavas como quem dança,
nem precisavas de um grãozinho na asa para te espalhares lindo, ao comprido, p'las ruas fora, p'las largas praças,
p'los amplos salões engalanados! Bailarins inseparáveis, que nós fomos!
Mas tão sem jeito ficas, não sei por que carga d'água continuas rindo, tão cheio estás de tal não presta!
Saboreia, então, da derradeira paz!
Final: Com Mozart em fundo, em jeito de minuete:
OS ACTORES, em coro:
Adeus, adeus, penoso trabalho, adeus!
Adeus, amado trabalho!
Votos de bom trabalho!
OS ACTORES, ainda em coro, mais ALGUM PÚBLICO:
Votos de bom trabalho!
Porque trabalhar sempre educa!
Aparte de DOM PLIM:
Porfiai, porfiai, que a quem porfia Deus dará.
Pois mereceis justa paga, pois bem mereceis a justa paga. Alguém vos dará da justa paga,
alguém vos dará a justa paga. Ou eu não seja eu: Um acabado exímio, encantado da vida,
feliz e descontraído, transbordando estupidez natural, capaz de redonda cambalhota.
Cai súbito o pano, enquanto vão desvanecendo-se os acordes dos sons Mozart,
de modo que, entrementes, fenece o entremez.
III) 31 poemas do novo milénio
*365 Redonda como um ovo,
a formosa lua,
repousando plena,
no zénite do horizonte.
*366 Presa ao corrimão da escada,
a bicicleta do sonho:
Nela galgo longe
degraus e patins,
milhentos andares.
*367 A mesa
da água e do quente café:
Repouso do movimento:
Sobre ela, dos versos
acrescem motivos.
*368 Cinzeiro,
das cinzas das ervas dos fumos:
Quedo se enche fundo
dos restos do ar.
*369 Radiozinho
dos sons, das vozes,
das luas: Beijos a ouvidos,
que atentos auscultam.
*370 Esferográfica
dos riscos, que sobre o plano
deslizam: Eclosão da verdade,
que preenche a luz.
*371 Moedas esquecidas
dum troco distante:
A que jazem aí, se ao mundo devidas?
*372 Gentes,
que irrompendo, a entrada perpassam:
Que amam distantes do dia 'inda incerto?
*373 A hora entreaberta,
se tange o que falta à total plenitude.
*374 A planta
escondida, que sobe do húmus.
Tão pouco, e tão tanto, que teima em crescer.
*375 A espada
do espírito da palavra inflamada.
Recolhe-se o verso, relê-se o poema, confluem, da vida,
os 'sgarrados caminhos. Acertam-se os passos,
e, enfim, d'expectantes, damos connosco no agora.
*376 Da porta
a passagem, que dá para o nada:
O nada, que é tudo, do que hoje 'inda é vão.
*377 Entrada
por qu'irrompe
o humano sentir:
Aberta à manhã.
Anelam os olhos:
Alumbra-se o olhar:
Ora o coração.
*378 Toda plena,
ó Maria, Teu Filho nos trazes. Se nEle
só somos, Teus somos Teus sonhos.
*379 Envolvente capote
que o corpo m'abrigas, agasalha-lhe
a alma qu'í habita, 'inda fria:
Leva-me p'lo dia outro, até onde morra.
*380 Seja 'inda véspera
de maior novidade. Encete-se
caminho, de regresso, ou partida.
*381 Ramerrão
d'automóveis, por vários sentidos:
Que último horizonte, sem querer, prosseguis?
*382 Retorno do pão,
da palavra, e da paz: Harmonia
de dedos: Forte sabor a verdade.
Inteira verdade,
submersa e amável.
*383 Óculos
de ver perto: As luzentes
evidências a mim s'imprimam,
a que me mova, de novo ânimo,
ante o fluente acontecer.
*384 Olhos
de ver longe, as opacas barreiras deixai se desmoronarem,
vos envolvam distâncias, que, a longe, a si, clamam.
*385 Sonhos de ar
de meu olhar: Das aéreas
nuvens abandonado, o azul
atenue tua ténue substância d'alma alada.
*386 Botas do meu encantamento,
a corridas novas me levai! Corram,
com o vento, tuas solas gastas,
que o vento só os atacadores não desaperta.
*387 Isqueiro da breve chama,
disparada pela chispa, que, de repentina, crispa a flor da baça luz
do magoado, transeunte olhar: Nele ateia a labareda eterna
do novo sol, que vença, dentro, a teimosa noite escura.
*388 Volante cachecol
dos turbilhões do vento, aconchega-me a rouca voz e aos caminhos da vida - com teu jeito, ou breve toque de improviso,
empurra-me, anima-me, acompanha-me.
*389 Fio de meus óculos,
libertas-me prá lonjura. As lentes, um tudo nada
abaixo do nó de gravata, deixas dependuradas.
Suspende também quanto em mim pese o que ao perto está:
Deixa-me a que voe, a além mais.
*390 Relógio fixo ao pulso
do meu desalento, faz com que pronto
esqueça teu mostrador de inexoráveis marcas:
Atenua e abranda tua voz e tua cor:
Mas me alerta a que, aquando da boçal miséria,
de desperto me reerga, e mãos em flor levante.
*391 Minha cruz,
do meu contentamento, ao alargado amanhã
me transportes ledo o coração.
*392 Janela:
Estou dentro e fora.
*393 Família:
Dos mais fortes laços, os primeiros elos,
os primeiros e mais fundos alicerces, fundamentos
de amorosíssima ponte para o humano mundo.
*394 Berço, casa, pátria:
O lugar onde acordei
e insciente vivo. Onde me morro hoje.
*395 Alguns dos lugares
do ténue, quão brevíssimo, curso dos dias:
Cerejais: Coração do NE: Coroação da vida: O avô tinha seus criados, exímios cavaleiros.
Alfândega da Fé: Cais do definitivo começo, donde parti, um longe dia.
Balsemão: Um fidelíssimo Amigo aí estava.
Bensaúde: Água, de longínqua memória.
Cardanha e Estevais: Fragas d'altos tojos.
San Martino: De los raros cangarêgos.
Freixo de Espada-à-Cinta: Remoídas lembranças, d'inacessíveis romanças.
Bragança, do Fervença: Torre alteada da menagem, da antiga glória de heróis e santos.
Barcelos: Me embarque outro outra vez por esse rio fora, dos primeiros versos,
sereníssimo Cávado, rio de penas.
Braga: E à luta da praça nos convocas.
Coimbra: Porque esqueceste, largo e rua da irmanada canção?
Lisboa: Do que trouxeram caravelas, fumo e nada.
Setúbal: Prisão refúgio dos parcos dias, da gloriosa liberdade dos filhos de Deus.
Algarve: E a ver mundos abalamos.
Madeira: Flores Páscoas, p'la Navidade!
Açores: Cantai-me, cantai-me de vossos claros cantos das saudades novas!
IV) estações do peregrino
*396 Estações:
Bat Yam: E acordaram-se-nos os olhos pó.
Jaffa: Às portas da Terra da Promessa.
Cesareia: Romanos, lusos, ameríndios, indianos, etíopes, eslavos, arménios, croatas, gregos, hebreus, asiáticos,
árabes.
Haifa: Aí, à cor irreal, dormimos acordados.
Monte Carmelo: Os olhos prenhes da força do Sopro.
Stella Maris: Que era de Iahweh a voz que move.
S. João de Acre: A longe nos levavas.
Tiberíades: Da faina da pesca nos erguemos: Passavas, e seguimos-Te.
Monte das Bem Aventuranças: Nova Palavra em nós nascia, jorrava, estremecia.
Igreja da Multiplicação: Tu, impossível milagre, que estavas dentro de cada um, movendo e interpelando.
Cafarnaúm: O frémito que se soltou em Tua viva voz porque não removeu desde logo
os humanos dos surdos ecos?
Casa de S. Pedro: Mas connosco continuavas.
Mar da Galileia: Nas lides escondidas nos calámos.
Dabourieh: E, suspenso em ar, 'inda Te erguias.
Tabor: Até tangermos e fremirmos do Inominável.
Canaã: Água e vinho, teu sangue nosso, vivos convivas da Tua santa alegria.
Nazaré: Quotidiano escondido, de aí estares.
Basílica da Natividade: Porque desceste, pra ficares no meio de nós.
Jericó: Onde o estranho era Irmão.
Qumram: E registos sobre registos Se fixaram.
Jerusalém: Um palestiniano, passeando e assoando-se, à diurna luz da plena paz.
Até que acordássemos de vez 'a novo Templo.
Muro das Lamentações: Pesada era a memória e a prova da memória.
Sant'Ana: A Mulher-Mãe, Mãe de tua Mãe, Avó, legenda.
Piscina Probática: Esquecidos em nosso pecado, longo tempo esperámos nos soerguesses.
Via Sacra: Com a marca da Tua dor em Ti morremos.
Santo Sepulcro: Pra ConTigo a fundo descermos e, em Ti, revivos nos reerguermos.
Ein Karen: Até nossa mão tocar o bastão de arrimo e de jornada.
Monte das Oliveiras: ConTigo chorámos em agonia 'o desígnio do Pai.
Local da Ascensão: E regressámos a de aonde viéramos.
Pai Nosso: Éramos agora outros ao olhar do outro.
Dominus Flevit: Estávamos entregues na Tua mão, protegidos e amados.
Agonia: Da repetida prova, desentranhavas do amor maior.
Horto de Getsemani: Tudo anteviste, por isso Te entregaste e Te deixaste matar.
Monte Sião: Para o reacender das madrugadas.
Cenáculo: Juntos, com Maria, nos demos ao alento de Teu 'Sprito.
Túmulo do Rei David: E acordávamos novos entre sombra e luz.
Dormição: Toda a tua noite, Maria, alumbras da Palavra.
Belém: Era tão só crer, ao cintilar da Estrela.
Yad Vashen: Donde, do que se fez memória em nós caímos. E nos levantámos dos escombros.
Até haver Manhã.
*397 Estações revisitadas:
Tel Aviv: Afazeres da Pátria Universal... Que reza teu passaporte?
Cesareia: Quando nos sentávamos a ver no que dava,
partiam de volta com seus adereços aviados os viajados saltimbancos.
Haifa: Na aberta imensidade, a maior grandeza d'alma,
suspensa d'ânsia, mas a olhos dada.
Lançado a longe o olhar,
todo o Imenso envolve ambas as meninas d'olhos,
devolvidas ao claro do nosso íntimo sonho.
Ao Monte Carmelo: A subterrânea Eucaristia.
A S. João de Acre: 'Inda mais largo era o voo, d'entre Haifa e Líbano, por onde o alto cedro, do caminho.
Tíberíades: Onde descalços pisamos as pedras, húmidas,
do manso lago do poema,
dormente dorso de vagas e embarcações, atravessadas de memória.
Bem-Aventuranças: Ecoa ainda, nossa e Tua, a divina Palavra.
A Cafarnaúm - onde rezaste - e anteviste ruína.
Primado: Do Pedro da pedra que pisaram fundantes os pés primeiros alados da Notícia Boa.
Galileia, a Lago ou Mar, despreocupação, distensão e acalmia. Ida a tempestade, lá pairámos.
Tabor: Sonambulissimamente,
divagávamos e absortos discursávamos
deslumbrados do repleto sonho,
da Luz um dia erguida sobre a Terra,
mal acomodados em nossa tenda mortal.
Gruta d'Anunciação: Verbo caro factum est. Pr'acompanhar-nos.
Do Anjo a irradiação doirada a Ti descida,
começo dos começos bem fecundo!
Jericó: Porque ofereceste boleia ao desfigurado, o Cristo te sarará também das tuas chagas.
Monte das Tentações: Acossados, superámos o ancestral 'sespero.
Jerusalém, cidade d'acolhedoras portas sempre abertas. A Ti, por próprio pé, acedemos jubilosos.
Sant'Ana, Mãe da Mãe da Paz, ouve o Louvor de nossos cantos solto!
Cenáculo: Raiz do pão e do vinho compartidos,
da plenitude das mãos, do sopro, do fogo, da pomba e da vertigem.
Getsemani: Fundos ais choraste, sobre a arrasada cidade.
Via Sacra: Basílica da Agonia: Onde, um furco perto de Teu pé sangrando,
a soldadesca jogava seu gamão, sobre rabiscos no lajedo, com mínimas pedrinhas.
A caminho: Bem quis ajudar-Te o de Cirene, mas Tu é que lhe deste, a ele, da Tua Vida.
Sepulcro: Nos morremos conTigo pra conTigo redivivos renascer.
Ein Karen: Miriam, sempre, sempre caminhaste, pois sabias do coração o longe dos Teus passos.
Da Dormição: ConTigo, a Mãe Ternura.
Pai nosso: E, iguais, Teus filhos somos, co-herdeiros da Pátria Libertária.
Geena: Medonha,
horrenda,
dantesca, hiante,
sem fim, 'solação.
El Aqsa: Em tonto sono voavam-nos as ideias. Sob a cúpula dourada do Templo
os anéis dos versículos da benignidade de Um Deus Misericordioso.
Yad Vashen e Tumba de Lázaro: Da ignóbil tragédia,
nos reencontrámos, inteiros, pra prosseguir jornada.
Aeroporto: Na bagagem, terra declarada.
Mal refizéramos a ínfima parte do percurso de Teus pés.
Mas lá ficámos, andando,
vagando e respirando,
conTigo,
ó Cristo,
da pomba
do caminho de fogo e da vertigem,
da evangélica loucura,
da pura,
e bimilenária,
inenarrável libertação.
V) também através da poesia se constrói a paz
*398 Dos entrechos do amor a dois,
milagre quotidiano, simples quão familiar, ao reduto, por ora intacto, não bombardeado,
da plenitude térrea da casa, de uvas e neve envolvente, envolvente alvíssima neve.
Em entontecido, fremente êxtase de florir!
*399 A eterna novidade do mundo
ou a renovada face da terra! Todos os dias a nós dados, em que, nautas planetários, percorremos
todos os possíveis espaços habitados ou não. No bolso esquecido, o plano minucioso da errância
cumprida à mistura com o que resta de verdade de um verde raminho de oliveira. O pouco, de nosso,
que ficou, brônzea rosa da desaventura, colámo-lo em álbum de família, por entre as demais recordações.
*400 Do inelutável quotidiano:
Invariavelmente, p'las sete menos cinco da manhã, a sexagenária empregada da limpeza,
descia, sozinha, do autocarro, que adrede parava, mesmo ao chegar à praceta. Era uma princesa,
que, às vezes, me lançava o seu bom dia, para a janela, onde enleado poetava. E prosseguia adiante,
em seu caminho de curtos passos, carregando dois sacos fundos, um em cada mão, dois sacos cheios de paz.
*401 Todos somos judeus quanto o Cristo o foi:
Ele, que desmedidamente nos amou, de uma vez por todas. Em sangue e água,
da humana Judeia, nos lavou. Tornou nossa miséria merecedora da verdadeira paz.
Para transparecer, crescendo em nós, a abundante vida do final reencontro.
*402 Estamos no mesmo barco:
O meu mais próximo companheiro de viagem é o mais distante dos estrangeiros.
*403 Eu ainda menino:
Nasci em Alfândega da Fé, em uma casa térrea, habitação de único andar, no dia de Santo André,
a uma tarde entre muitas, de uma quinta feira, do distante 1944. Por estranho que pareça,
guardo a mais antiga das minhas recordações de uma bacia de alumínio, e o sol esbatendo-se
sobre o sobrado, isto dos meus primeiros dois ou três anos de vida ali passados.
A casa ficava numa íngreme ruazinha, que vai da escola primária, que depois frequentei, ao quintal do Gouveia,
que Deus haja. Logo de pequenino, a vida deu comigo a andanças até Lousa, aldeia num planalto,
a uns quilómetros de Torre de Moncorvo, donde anoto duas breves recordações: Uma, de uma queda,
de um cavalo. Houve, por força, de cair em terra verde, escassíssima entre pedras, e que pedras! Outra,
de me tirarem uma foto, a quase noitinha, eu em forte pijama de flanela, ali o frio aperta, em um corredor,
que dava pra uma larga varanda. Tempos idos, mudámos pra São Salvados, lá para as bandas de Mirandela,
donde fixo os luminosos pontos: Um cruzeiro, umas traseiras de casa, um largo, e um outro, uma fonte,
uma escola, umas medas, restolho ao luar branco de Verão. Também da neve! Os passos, sobre ela afastando-se,
eram do meu pai, que ia, após fim de semana, ao serviço, à Repartição de Finanças. Também, da mãe,
as sopas, ou de cebola, ou nabiças, ou alho, ou milho, que me amarguravam aos serões as ceias. De Mirandela,
um breve entrecho, pelos meus 4, 5 anos: Ruído, e ruído, bombos e gaiteiros, um dia fabuloso, os cabeçudos,
os gigantones, pertinho de uma varanda nossa, quiçá dum 2º andar. Na Sª. da Assunção, de Vilas Boas,
estrelejavam foguetes de lágrimas. P'lo ar lavado, descia lenta, na noite por dentro iluminada, da leveza, do ar,
toda insuflada, a branca Senhora dos Prantos. Por San Martino - lo rapazo de la professora anda a la 'scola,
la rapaza nô - tive meus primeiros sonhos de imortalidade. Levei pra casa as cartolinas, co'as letras todas,
que o professor guardava na sala de aula. Pra emenda, umas palmatoadas, na manhã seguinte. Os natais,
povoados dos luzeiros do fogo! O ressoar dos bom, bom, bom dos bombos! O forte bradar das gaitas-de-foles!
As piruetas, festivas, dos pultriqueiros! A cigana sempre demandava: Uma codinha, e danço! A enérgica, explosiva
festa, dos paulitos! Mirandum que se fui a la guerra. Num sei quando benerá. Se benerá pu'la Páscua,
se pur la Trenidá. Meu puro e santo povo! Os longos esterlóquios populares, em que acompanhávamos
as narrativas da Paixão, nas longas manhãs e p'las tardes fora, insolados da prolongada maravilha.
A mina, encantada, de Stº. Adrião. Que fixo ainda? Minha primeira comunhão: E o tremendo ar, aborrido,
rezingão, que posa ao eterno retrato... Na ribeira, a sombra mansa, acolhedora, dos chorões.
As cegonhas, voadoras de amplo fôlego, altas vogando, e soltas! A surpresa dos ninhos dos ovos das perdizes!
P'los tortuosos caminhos dos fontanários, de frescas bicas água borbulhante. As longas peregrinações,
vadiagem, até ao pôr-do-sol, p'las leiras dentro... Que bebedeira! Ainda os arqueológicos enlevos amorosos...
De aí a diante, perdi rasto à infância... Vozes antigas, limpas e ancestrais, cantarolai-me la sarapilhera!
E voltarei outra vez a ser menino! Belém, Alcântara, Praia das Maçãs: Varanda, das velas girando, dos moinhos,
de papel, ao vento sobre o azul da viela, subindo, a nós, sons estridentes de folguedos e estúrdia, de gentes
e gentes. É noite de Stº. António!... Fecha-se compacta negridão sobre a murada cidade. Que é dos meus alunos?
E dos poetas amigos, aluados? A já antemanhã é clara de certezas. Trindade Coelho, conterrâneo, ansiavas
p'lo Reino. Está por 'í.
*404 O espectáculo mais bonito de se ver, na Terra alcançada do Espaço, são os homens a trabalhar:
Por mim, contenta-me de completa alegria, a obra do novo prédio, aqui ao lado. De meu já antigo 4º andar,
observo-a avançar, dia após dia. É verdade que, em cerca de ano e meio de trabalho que agora leva,
ainda me não foi dado surpreender a qualquer dos seus muitos operários um mínimo movimento errado.
*405 Tiram ouro do nariz
os poetas: Atraem pra suas janelas de entressonho ar puro das remotas paisagens:
A plenos pulmões inspiram dos aéreos cimos himalaicos: Entre sono e vigília, soletram do desconhecido:
Constrangem-se da humana miséria e por, dos poemas, a não verem resolvida: Dizem sempre paz,
embora por arrebatadas e condoídas, estranhíssimas formas de expressão.
*406 Disse-to pelas nuvens, pelas árvores do mar, pela noite bebida, pela janela aberta.
Toda a carícia, toda a confiança sobrevivem: O desejo de inevitavelmente cantar, pétala a pétala,
pra ti, a inteira brancura dos sonetos que outrora decorei. Fugindo assim do geral atordoamento
ou do degelo surdo: Contigo que és a única, secretíssima flor, à peu près à une Mère.
*407 Plenitude:
À volta da mesma mesa, toda a família, ternamente conversando.
*408 O homem não existe em si, mas para Deus:
Dom António, a longe, fundo olhavas. A morte do homem,
de que falavas, alastra, salta-nos aos olhos, com forte odor a cadaveres:
Repete-se, vulgarizado, o assassínio: Há a esperar um outro tempo em outro inteiro orbe.
*409 Do despertador
o normalíssimo tic-tac: E a simples felicidade da indizível paz,
que entrou p'lo postigo dentro: Meu amor, não vês? Meu amor, não sentes?
*410 Tratem, tratem do governo,
do mundo e de monarquias,
que, enquanto ocupo os dias,
pão do forno e manteiguinha!
Que paredes separam o público do privado?
Ou, por outra, que tem o doméstico, castrado gato a ver com a política?
*411 Imensa Mesa, imensa Alegria:
Aos doridos Irmãos Timorenses:
Sabei, homens, quanto vale viver a Paz.
Sabei, homens, a insondável riqueza da Diferença, do vosso Irmão.
Sabei, homens, o intangível sagrado, que encerra a Consciência do que discorda de vós.
Sabei, homens, quantas vidas se salvam por um Acordo, selado com um simples aperto de mão.
Sabei, homens, o valor que é o Outro, e quanto bem é dardes a esse Outro o espaço vosso que lhe é devido.
Sabei também, se humanos sois, quanto a vossa Terra merece que a deixeis florescer e frutificar.
Sabei igualmente quanto o Ar respirável é a Luz da imensa Alegria das abertas madrugadas.
Se tal souberdes dareis as mãos confiantes.
Se tal souberdes, chorareis com os que choram, e alegrar-vos-eis,
com os demais convivas, do Comum Banquete da Palavra, não só de simples voz, mas de Invencível Amor.
Se tal souberdes, abraçareis reconhecidos os que de vós esperam o vosso melhor,
e cumprimentareis com à vontade todo o homem,
em língua que a ninguém será estrangeira,
e, em qualquer parte do habitado planeta, vos sentireis como em vossa própria casa.
Abrireis as janelas amplas de cada novo alvorecer.
Cada manhã será a manhã do Novo Homem.
Se tal souberdes, sabereis o que é o vosso Chão e o vosso Pão!
Sabereis o que é andar de fronte erguida, e de alma límpida, sensíveis a toda a miséria do vosso Irmão Sofredor.
Sabereis do peso, e da leveza, de uma vera e sã consciência solidária.
Sabereis da dignidade de estar vivo.
Sabereis do vosso tempo, pois todo o tempo será vosso.
Sabereis do calor da Fraternidade, da Alegria de vos dardes e de compartilhardes da Alegria dos que se vos dão.
Sabereis por sabedoria vossa, bem vivida, inaugurar um novíssimo milénio de Concórdia Amorosa e Liberdade.
Serão, então, o Ar, o Pão e a Água distribuídos com a Poesia.
Tereis abundante parte à Mesa dos Humanos, envolvidos e elevados dos cantos da Verdadeira Música.
Sereis Família Humana, e o alto, Claro Sol vosso será, e partilhado.
Um Deus será Um Comum Pai, ou Uma Comum Mãe.
Será, para vós, actual possibilidade de ser invocado p'los Seus mais distintos e desvairados nomes.
Será presença, jamais ausente, na mais pequenina das flores.
Até vós descerá, e em mão vos terá de paz movidos: Pois chegará, com toda A Sua Ternura,
ao cerne dos mais íntimos dos vossos sonhos: E iluminará os sorrisos de todos os meninos.
*412 Tens muito que fazer? Não, tenho muito que amar.
Vãos cuidados findos, vagueiem-me os olhos cheios à tona-luz
do teu olhar. O repouso das lides vãs se acresça à ternura do gosto de te ver.
Assim me perca e ache, todo o meu amor do fogo do puro amor envolto.
*413 Dêem-me pão que baste à minha fome,
dêem-me água que baste à minha sede, dêem-me palavras que comungue.
E o forte abraço, do tamanho do mundo, que meu abraço abrace: Que da pureza das mãos
resulte infinda paz: Que tal paz alargue e se reforce nesse terreno abraço, largo ao total mundo, vasto
mundo, em que quisera sempre navegar! Fotografa, mãe, teu querido filho: Que quási que por cá 'squeço.
*414 Nunca agradeceremos bastante
o dom inestimável da paz.
*415 Colombina paloma,
pomba colombina, vê que meu coração de vez co'a paz atine!
*416 Eternidade:
Movendo-se entre os infinitos aurora a céu aberto e imensidão íntima, Immanuel Kant teoriza
larga e espontaneamente, para Manoel de Oliveira, a precisão da câmara do olhar.
Isto aquando do último, intérmino filme do enigmático realizador. Entrementes, eu traduzo e passo a passo
legendo seus diálogos mudos, em silabados versos, que confundindo-se s'atropelam, porque interrompidos
p'los velozes meteoritos com que o Menino Deus se entretem jogando a alterar-lhes trajectórias pr'atrapalhar
de filósofos o encadeamento das razões, de cineastas o aprofundar planos, de poetas o dizer do coração.
*417 Des maisons à cigarettes et à musique:
Do eclodir dos risos claros, dos falares.
De todos os comuns dias que se vivem felizes,
só entretecidos dos enredos simples da paz.
-
*418 Dormiamus, frater,
até ao acordar em carne viva do vivo sonho a que vamos, como que inscientes
de que mesmo orientados p'la invisível mão, imponderável, do madrugador anjo verdadeiro.
VI) dos sonhos os poemas
*419 Descrição de um sonho:
Um rapaz, com uma maçã a custo equilibrada sobre o ombro direito, fez, sem fumar,
sem dinheiro e sem bilhete, o percurso errado o dia todo. Acabou por pagar a exorbitância de 150 euros,
o máximo que o seu cartão multibanco lhe permitia, quando, pelas dez da noite,
chegou, apesar de tudo, ao largo, ou praça, de sua terra natal.
*420 O equívoco:
Vemos Camus. Ceamos num recanto do teatro. Usamos o cartão plastificado. Seguimos, atentos,
o depoimento, filmado em vida do autor, reclamando-nos, a portugueses e espanhóis, de ascendência de carniceiros,
e etc., etc., e da importância do mais que debatido bife bovino. Mal reparamos que o actor usa bigode.
Rimo-nos muito, quando é suposto não ter graça. Realmente não percebemos patavina do que ali acontece.
Desliza o palco para a rua, e continuamos a peça. Fazemos que nos cumprimentamos, e não dizemos nada.
*421 Um dia, pra Deus, mil anos. Mil anos, pra Deus, um dia:
111333 milénios volvidos, o sobejamente conhecido poeta, um humano dentre os demais
da descendência de Abraão, sic dixit: Já passou o lapso de tempo, que demorou a extinguir-se
de todo a débil luzinha, provinda da mais longínqua das estrelas.
Tenhamos, agora, renovada e revivida consciência do nosso verdadeiro e último destino.
Entretanto, os miúdos aprendizes de letras confundiam da cartilha o nome impresso do vate,
em tudo igual aos demais comuns nomes, com o do avô lá de casa, ou com o da andorinha gémea,
ou com o do bom Deus cansado. Tal facto não constituía, para as superiores instâncias governativas,
real motivo de preocupações. Em qualquer parte dos conhecidos planetas não escasseava aos bambinos tempo
e tempo pra brincar. Certo é que hoje em dia pouco ou nada sabemos dos pormenores relevantes das vidas
esquecidas dos artistas. Quanto àquele de quem falávamos há a anotar que viveu em vida estranhos constrangimentos: Especialmente por não ter nascido mulher, por não ter-se publicado um só soneto nem ter visto
seus versos alguma vez incluídos nas selectas, por não se ter dedicado suficientemente ao teatro
ou por não ter abraçado a sério a carreira diplomática.
*422 Com ambas as mãos pegando o aberto livro,
a jovem mulher mãe lê do humano sentido a história já passada. Relê, treslê
e perpassa com o olhar do coração as linhas do eterno texto que grave deus ditou.
O livro inclui dos nomes os mais remotos nomes, dos nomes todos. Da leitura o acto demora o lapso
imensurável da terna eternidade. Aos movimentos do olhar da jovem ledora ressaltam inenarráveis
estremecimentos de terreno e sublime significado. Esse atento, vigilante descortinar esclarece sobremaneira
a natural condição, a que também redime a precariedade, que é estar vivo aqui num ápice: Ao pleno da hora.
Em tal absorto exercício de repetir-se, mil e uma vezes repetir-se, se resume sua estranha forma, ou alma,
de transcendente completude. Em espontânea, enredada e mansa, intérmina, apaziguadora respiração.
*423 Pungente entristecer de minha terra:
Subíamos até meio a rua da casa da mulher amada. De nossos passos, sob os pés,
se despegava palha enlameada. Aquela mulher não era já a mesma dos saudosos, ancestrais amores.
Casara. Tinha marido e filhos. Beijávamos a prima, que, com as tias, se encaminhava à oração da tarde.
O pai dobrava-se, ao fundo da vereda, sobre umas vides. Tudo se perdoara a quem muito amou.
Estávamos prestes a retomar o pedregoso rumo, mai'las santas mulheres. Mas dos jovens amores o rasto era vão.
Não são os que dizem: "Senhor, Senhor!", que entram no Reino. Tão somente com a medida do amor,
sereis medidos. Mais se registe, a fim, que estávamos em uma terra e acordámos noutra.
*424 Jamais acabaremos de explicitar o claro dia:
O pai divorciou-se e vivia agora em Faro. O filho seguia por toda a parte o papa João Paulo II.
Incompatibilizara-se com um tio seu, com quem se cruzava frequentemente.
Como encetariam assim qualquer forma de diálogo? E não era que lhe quisesse mal. Estava apenas magoado.
Não são as catedrais que encantam o esparzido olhar, mas mais o que em nós vive e não se diz.
*425 Quanto começou com Feuerbach:
Revolvido o livro, assinalou-se em cruz uma passagem que apontava para um duplo sentido:
Os filhos da terra arrebatavam para si a Eterna Escritura: Chegara o tempo e cada gesto era inaugural:
Submersa continuou até hoje a subterrânea oração: Houvera em campo aberto peleja desigual:
E o doce Cristo fez-se ao terrestre caminho, acompanhando, humano, o inteiro coração do homem.
*426 Mudança para Nênêne,
entre Vila Real e Chaves: Logo fomos ver o lugar de destino, que era maior do que nos quereria parecer.
A trama e a complicação de termos, pra mudar, mais coisas do que inicialmente pensámos.
Até as embalagens dos filtros nos sobrecarregam a bagagem, ou as orações de S. Francisco,
ou a brancura ordenadora do computador. Quando remexemos todas as coisas, ficamos sempre com a impressão
de que muitas se nos esqueceram, até porque delas nos não damos fé com o normal correr dos dias.
*427 Entre las flores:
P'lo horto do esposo, o apeado cavaleiro prossegue, à meiga luz, o lugar donde procede.
Saudoso e nostálgico, ama, delira, e em ténue arroubo anseia p'la pátria mãe por que, alheado em exílio,
sempre pranteou. Vão, esmorece. Frágil, desmaia. Logo o novo olor a flor, do amado corpo o realenta. Alto dia
acorda, entre las flores: Alma só, a si regressa, anelando p'la, jamais esquecida, grácil donzela do seu sonho.
*428 Projecto de sucessão:
Continuar de pé até que as pombas de meus olhos voem.
Continuar dormindo até se me regelarem os dedos.
Continuar rezando até que o tempo finde.
Continuar esperando até que o café feche.
Continuar despido até que o colchão navegue.
Continuar escrevendo até que o papel acabe.
Continuar apaixonado até que o mundo acorde.
Continuar sonhando até que, morto, durma.
Continuar delirando até me arderem as órbitas.
Continuar ladainhas até que o cérebro estale.
Continuar a acompanhar o derrube dos tiranos.
Continuar iluminado até que a maluqueira passe.
Continuar chorando um miosótis encarnado.
Continuar teimando no trevo de quatro folhas.
Continuar a rota da estrela cadente.
Continuar contando, uma a uma, as cintilações natalícias.
Continuar procurando um piolho-estrelinha na cabeça tonta de l'Enfant Jesú.
Continuar a apostar no vermelho e no branco.
Continuar sangrando até que se esgote a água.
Continuar nadando até que o sangue estanque.
Continuar a coçar uma jubilosa ferida.
Continuar a lançar-se sob o gélido chuveiro.
Continuar a adorar a mulher artimanha.
Continuar a andar sobre escombros da lua.
Continuar sentado até que os pés da cadeira se enraízem.
Continuar a dar corda a relógios que ninguém olha.
Continuar escutando uma espécie de música interminável.
Continuar a elucubrar línguagens indecifráveis.
Continuar a cantarolar o milagre da vida.
Isto - e muito mais - até que o papa evapore.
Isto - e muito mais - até que um dia a paz floresça.
*429 O super-criativo dramaturgo
de entremezes post-modernos misturou dinheiro com borboletas, entenda-se máquinas de papel moeda,
actores falhados, recém-saídos do Conservatório, e cheios de milhentas ilusões, que ele próprio filmou,
numa mistura de Benigni, Fellini, Kafka, Saramago e Dario Fo. Ilusionista e sensacionalista, fez os ditos
e outros desdentados actores comer montes de erva, regenerando-se assim de sua insídia tabagista. Até
ser reconhecido por Hollywood e sua Academia, que os chamados momos-macacos reabilitou de vez. Intérmina
peça essa, misto de sonho e de loucura acordada e delirante. Outrora fora, pelo foro médico, simplesmente
declarado esquizofrénico-paranóide de discurso ilógico e alucinatório: Ao mil vezes lhe perguntarem
se ouvia vozes, respondia sempre não, não, infelizmente não ouço! Montou, explicávamos, seu super-espectáculo
exótico. Comprou uma carrinha de articulações bizarras e foi conquistando mundo fora, pelo Leste dentro,
à exacta medida em que Sua Santidade o Papa ia fazendo avanços diplomáticos, que progressivamente iam
contribuindo para sucessivos degelos de fundamentalistas e ortodoxos para não falar já de dinossáuricos
marxistas... Pois tal autor, dizíamos, ordenou seu super-espectáculo sem palavras. Teve enormíssimo êxito entre
bárbaros e eslavos. Era uma autêntica festa de estrelas decadentes, de luzeiros de fogo soprado, sobremaneira
comovente para as instâncias do próprio bom Deus pasmado. Aliou um jeito minimalista de tratar luzes, cores,
odores e sabores, super-atletas, estruturas e actores, que se desdobravam de contorcionismos, improvisos e malabarismos. Não era propriamente circo ou ópera bailada: Era uma festa: Que tinha por força de obter universal
aplauso. Mexia com tudo o que há de mais primitivamente humano. A óbvia, pública reacção teria de ser
uma espécie de coro, ou um choro em coro, de alegria. Essa vida de saltimbanco do dito autor-actor-realizador-encenador prolongou-se por decénios da impropriamente chamada post-modernidade. Acabou por colher
os louros possíveis, das áureas estatuetas ao Pulitzer e ao Nobel. Pobre homem, que nunca esperou
senão lograr da alegria de ouvir chilrear os passarinhos p'la manhã e louvar por isso a Deus por ter nascido
mais um dia o sol.
*430 Prece louca de impossíveis:
Haja sol! Desde arrebol! Haja Deus! E haja sol!
Jogue-se, a céu aberto, infindável jogo de futebol!
Seja imenso o estádio! Imensamente iluminado!
Todos os canais televisivos o dêem em directo!
Indefinidamente prolongada seja a alta festa!
Dela se deslumbrem idosos, adultos, jovens e meninos, homens e mulheres!
A que jamais se acabem em noite as boas, breves horas!
VII) louvor da luz
*431 Quem da pompa inigualável
veste meus ociosos lírios?
*432 Contemplação sem tema:
A folha, que de amarela cai. O passarinho que chilreia, saltitando raminho a raminho.
Um parceiro seu, que voa, alto e breve. O menino, que na praça corre. O par de namorados, que atravessa a rua.
O bancário, pai de família, que abre a porta do prédio. Alunos escrevendo, rescrevendo, em teste.
Duas moças sobre uma bicicleta de sonho. A nuvem carregada, que imobiliza.
Janelas abrindo-se amplas, as persianas subidas. A longe avoou o passarinho que na árvore inquieto andava.
Um ligeiro zéfiro flui leve no ar lavado. De saudades repleto como que se sustém e se eterniza o actual entardecer.
*433 O colorido da folhagem d'árvores,
bailando ao quê da luz do sul, amanhecida. Já os jovens nautas, do clima ameno,
tudo renovam do intenso brilho renovado. Já o dia lavado, esplêndido se prenuncia, com o novo sol
se expande aos mais remotos, apelativos recantos da imensa, selvagem cidade inexplorada.
*434 Ai que lindeza tamanha:
Da neve, a clara luz, a alta montanha, ao olhar do sonho onde moro.
*435 Quarteira a amanhecer:
O branco esfuzilante das casas, da cal sob o claro sol nascente agora erguido:
Quási que nem nos chegam olhos pra tão difusa imensidade!
*436 Volare:
A alegre geometria do poema precisa e sugere a pontuação do aquém e do pra lá.
*437 Da amenidade do clima:
Delícias do poeta enamorado da tarde lenta a enoitecer.
*438 Que acaso cogitam os pardos patos,
regalando-se na lagoa, onde agregados nadam?
*439 Intermezzo:
Nostalgia de barcos atracados. Ou doçura de cordeiros pastando. Ou frémito de deslumbramento,
nas florações de cor lilás das meigas hortênsias. Ou ondas de ondas, rebentando e renovando-se incessantemente,
umas sobre outras, sobre a amarelada, plana vastidão dos miríades de grãos de areia das largas, brancas praias.
*440 De giestais a amarelidão
florescente, a veementemente esquadrinhar.
-
*441 Tirem-me do labirinto das palavras
e deixem-me toda a sã poesia da matinal brandura incólume.
*442 P'lo percurso da errância
os olhos ventoinhas haurem tontos da fresca, fremente aereza envolvente: Pr'atrás de si
os pés deixam-nos às pedras pisadas da calçada a magoada doçura da inaugural aurora jubilosa.
*443 Yo solo vivo dentro de la Primavera! Los que veis por fuera qué sabéis de su centro?
Ao fogo, lento, do quase extinto lume, tonto adormeço. A seu esplendente eclodir solar, todo me comovo e desvaneço.
Noite após dia, dia após noite, em seu sortilégio m'adentro. Longe, pra lá da vida. Lento, pra lá do tempo.
*444 El mar del corazón late despacio, en una calma que parece eterna:
Dentro do sonho, fluido se alonga o meu olhar, até perder-se na alada distância da tranquila planura do horizonte.
Sejam fundos, plenos, os parcos, árduos dias. Na aereza imersos, sejam fundos!
Inteiros me levem onde nasce do canto o encantamento:
Ténues descrevam a lendária certeza imedível d'Agosto, que reúne os comuns sonhos dos poetas.
*445 Por cada flor estrangulada há milhões de sementes a florir:
Ergue-te, outra vez, ó novo sol, amigo e companheiro dos heróis:
A que respirem luminosidade teus surpreendentes cantos.
*446 Rosa que ousa, alta.
Lá fora, o firme chão. Sob o sol. O vago medo é longe,
e foge aos pés, que avançam p'la deserta cidade verde.
Sã verdade, que surpreendemos perplexos, desvelada.
*447 As estrelas mortas apagam-se aos molhos: Vem, lume perdido, florir-nos os olhos:
Se reavivam as floridas distâncias de te ver: Se reacendem, após negrume de doença, as alegres florações
dos olhos enamorados: Se reanima o fulgor da luz d'abertos dias, puro grito, doido de te amar.
*448 Bénie sois-tu, âpre Matière, glèbe stérile, dur rocher, toi qui ne cèdes qu'à la violence,
et nous forces à travailler, si nous voulons manger.
Que estás aí só aparentemente inerte e interpelas, deslumbras, exalças e constranges
a refazer os instantes únicos da comunhão no mundo. Prenhe de verdade, arfando p'la parusia, coisa-asa
te chama, ó místico poeta, em silencioso, paciente apelo, a trazeres evidência ao corpo do poema,
intérmino labor, a profundas sondado: A que se faça clarividência da plenitude da tua presença, real voz,
de inefáveis ledices gemebundas, voz tua também, transcorrendo inteirante, através.
*449 Airiños, airiños, aires!
Longe, mas longe, me levai!
*450 Sôbolos rios que vão por Babilónia me achei,
onde em confusão chorei lembranças da de Sião diafaneidade.
*451 Quarteira a anoitecer:
O último raio de sol caído ao mar, ficou ainda a pairar o raro brilho do saudoso dia.
*452 Arranca-te da escura noite,
cálido ar d'amores do novo dia!
*453 Da claridade plenificando-se
a tarde toda, límpida e nítida abrindo-se, tudo abraçando branda, da ternura.
*454 Ici:
Ao fugacíssimo lapso do tempo reservado a meu fruir de meu recanto, ar de meu ar, ar do imenso ar,
a parte que em abrigo aqui me cabe - contente por poder respirar - como se visse o invisível digo d'o que se esconde. Imobilizado sobre pedra, assento de meu assentimento ao inimaginável ser,
de meu "dizer" esse ser, enceto a rigor a estruturação da linguagem de minha própria nudez: Em 'spanto, me quedo,
de maravilhado, p'lo suavíssimo descortinar do que ressalta a meus olhos abertos, e a alma fortemente imprime,
a ténue, mariana luz: Qual fragmento de fita magnética em que o circundante sonido se fixe, o poema final
resulta como notícia de anónimo repórter do insignificante acontecer. Nele acresce e emerge o novo, novo.
Que acaso ignoto deus, inane dorme sob verdura? A que milhentas vozes se me une minha mínima voz,
a bem dizer muda? Que inaudível orquestração comove a clara noite de te ver? Que visão maior tremeluz
da habitual paisagem pra lá dos pardos espelhos e das enevoadas vidraças? Que indetível sopro incita
aladas instâncias de vento sob a erva? Acontece sempre qualquer coisa. Tal mistério m'anima e m'enebria.
Poeta de alados olhos, de alma e sentidos alados, exulta em meu afã a vaga ideia da absoluta, englobante,
natal luminosa completude: O mais pra lá! À praceta, Ângelo O Ochôa: Nas calmas da manhã de um sábado:
Reconhecidamente atento e alheado. Post scriptum: No destino certo de ir acordando e amando entre os demais.
*455 Sol nulo, dos dias vãos,
cheios de lida e calma.
Contudo aqueces-me as mãos.
Contudo animas-me a alma.
Contudo a meus olhos, luzindo na nudez da tonalidade em que tudo envolves,
golpes desferes, a neles sempre refazer o doce vibrar do lírico sentimento.
Nu esplendes p'lo ar. E abrandas-me as mãos, agasalhas-me o olhar, quebrantas-me a alma.
*456 Lobo em seu covil,
o coiraçado poeta, das fugidias imagens, que perpassam
sua retina, os alucinantes incêndios do sangue versifica.
*457 Vazio em gris e ocre:
Ante o olhar metralhado, guindastes e poentes.
*458 Meu velho, algures nas Comores:
Talvez por lá tenhamos andado, ao sol e à agua, em solo firme, ao pleno fogo quente de Verão,
um dia destes, em plenas Ilhas Comores.
Ou talvez apenas lá tenhamos deixado o errante olhar, extasiado em tamanha plenitude,
ou um breve relance de olhos,
lançados ao grande mar, de sonhos soltos, água, calma e velas,
da curva de alguma estrada, rente ao oceano mais do que pacífico,
por onde, algo alheados de enamoramento, nos tenhamos quedado.
Ou talvez que, desfeita a morada de nosso corpo mortal, por lá continuemos ainda em deslumbramento.
*459 Hoje, à plenitude do espírito,
deixa-me que possam imprimirem-se em mim as desgarradas paisagens do inefável.
Tua calada presença exige que coloque último, definitivo ponto final à obra do eclodir dos dias.
E louve só, a íntimo e infindo glória, grato d'enlevado, quanto da maravilha do indizível
por língua ou voz de humano sentimento grita, carinhosa, a claridade.
Rainha, como Franz académico a concluir diria, em só narrar me contentei.
*460 Reciclagem:
Dos dispersos instantes, por uma força maior erguidos ao ar dos vãos de Deus,
se acumulam mínimos átomos ou miúdas porções do universal poema,
magro salário do tempo, reunidas palavras dispersas num só verso:
Que atravessam uma vida e lá pra lá da morte, dentro, através se continuam:
Que, revolvidas e lavradas, resultam no final eco acabado.
*461 Meio Divino:
Olha as árvores a florir p'lo caminho!
Aclarando-se, o olhar,
iluminado,
tenteia a decifração do imo,
presença saudosa,
gemebunda,
do inefável,
prenhe do Santo 'Spírito!
*462 Du plus pur miel de tous les amours:
Jx, Mª, Ioseph, obrigado p'lo leite e mel do oiro do dia, que me deslumbra e sacia o vago olhar!
Acresça em mim a luz e a voz da cor etérea da clareza. Clareza que alcance
me submergir a alma inteira! E 'a sempre, sempre, a si, revivo e novo me converta.
*463 Versos sobre o branco
equilíbrio da A4 na branda luz:
O Céu não está no fim do mundo.
Está no fim da minha rua.
*464 Senhor, imprime em meu poema
Teu não tempo! Pra que daí ressalte o tónus vero e nu da pura luz do Teu olhar.
*465 De hoje em diante,
se aclare, vibre em mim e comigo vá o quê do calmo alvorecer do terceiro milénio cristão:
Louvai Iahweh, pois é bom cantar ao nosso Deus: Doce e belo é o louvor.
*466 Maria, luz de etérea graça,
transparente cortina! Tu, que côas o ar da luz divina,
abre-me, por 'í, passagem para o diurno lado!
*467 Estes os meus precisos versos
da boa luz banhados, firmamento
de janelas abertas à amplidão.
*468 Licht, mehr Licht!
Após ver a morte de Empédocles, de Hölderlin: Ó terno eleito jovem, olhos cegos da Luz,
tu viste como ninguém mais! Tanto, tanto cegaste desse ver, que, dum dia pra outro te perdeste,
sem tino, em pura queda! Dentro do que, em ti, foi vivo vinho divino ou antevista Dor Maior!
*469 Descrever sem rodeios
os momentos de da viva luz me consumir.
*470 O todo envolvente eterno,
onde meus olhos se abrasam
e fogosos rejubilam:
Onde o coração estremece:
Onde minha voz desponta:
Onde meu verso se escreve:
Onde meu Deus se lê:
Onde meus ossos florescem:
Onde minha garganta ecoa.
Onde minha paz acontece:
E minh'alma íntima freme:
Onde, des oiseaux, música rebenta:
Onde, intérmino, o filme dos meus dias:
Onde minha morte, erva viva.
Onde minha viva esperança:
Onde ladainhas se rezam:
Onde mil línguas se dizem:
Onde devaneios ressurgem:
Onde meu sonho reside.
Onde minha luz se desenrola.
Onde minha eternidade é nada
e a saudade é além:
Onde o descanso do afã:
Onde m'exalço a estrelas
e m'nha mãe carrega em braços flores do dia:
Onde meu horto, meu canteiro, minha cova.
Onde brinco, 'inda menino:
Onde estou, jovem de oiro:
Onde, homem, me levanto:
Onde, já velho, me sento:
Onde passo, onde me abrigo:
Onde, a instantes me morro,
e mais e mais eu revivo.
Onde o cinza, o pó, o nada:
Onde o alento, o pneuma, o tudo.
Onde, com Deus, ressuscito.
E, com Maria, companheira,
desnudado
de completo,
m'emudeço!
*471 O gato brinca amanhecendo dentro da luz,
o pássaro voa afundando-se de luz, a flor suspende-se, alvíssima
de alegria, íntima à viva luz, a pomba, do fogo alado envolvente do Verbo
Trinitário, repousa e freme, tímida e cauta parando na fina luz. Para o poeta humano e divino,
que vive, e se demora, movido dos sons de harpa e citara, que ao limpíssimo ar pairam, sons
do eterno salmo do Louvor, que em tudo, e em cada menor coisa, ao puro espanto eclodem.
*472 Luzeiros, reflexos e cintilações:
Breve fremir de pétalas e folhagens, radiações da ténue luz aerizada, mínimo soar,
ou leve eclodir de sons e cores, líquidos, ligeiros odores suavíssimos de fogo, gosto incerto a mel.
Maria, é tua e de Teu Coração a substância da natureza frágil do fascinado declínio dos meus 'nstantes.
*473 Nevada antemanhã,
deserto branco
d'acesa luz,
que afoga a mágoa.
*474 Aurora da verdade:
Alvo alvor, pleno do puro, etéreo amor!
VIII) episódicos e circunstanciais
*475 Sinfonia:
O controlador do colossal guindaste executa seus precisos gestos,
que elevam a terra aos céus, descendo os céus à terra.
*476 Promessa:
Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, vinte, vinte e quatro velas ardidas.
Ficou, impregnando o espesso ar, em torno ao altar da Senhora das Dores, um intensíssimo cheiro a cera.
Prolongando-se, mecanicamente murmurada, a consumida oração chegou onde chegou. Ouvida onde?
*477 A colegial de olhos lavados
inventa a cada hora novos ritmos de trabalho a tempo inteiro: Ocupadíssima,
cumpre, repetidos, milhentos gestos de serviço, com infindo gozo e ferocíssimo júbilo:
Atravessam-na espantosos desvelos, e zelos, p'la perfeita realização de mínimas lidas, que, pouco a pouco,
a transformam em adorável mulher completa. Quando casar terá para construir a própria casa.
*478 O bruto avantajado cão da obra
devaneia entre os destroços da estrutura do andar recém-construída. Falho de motivos
poéticos, aceno-lhe como a querer conquistar um novo amigo. Inspeccionando-me, alça
a mim vidrados olhos. Abana, inteirado, a farta cauda. Faz que ladra. Depois dá outra volta.
*479 Afanando-me à ligeira empresa
de enrolar novo cigarro, venço algum tempo ao tempo neste obscuro afazer.
É certo que venço algum tempo ao tempo, que me é dado. Enquanto enrolo de tabaco a dita mortalha,
não fumo, por ora, o fumável cigarro. Se me fui fumando a vida toda... Por outras palavras, also Pessoa dixit.
Morro-me, a instantes lentos, do devaneio disperso do vagar, de ir devagar, mas devagar,
divagando às paisagens ausentes do invisível. Até que, de todo, pare de subir a água do poço da canção,
essa força, esse anelo, esse êlan, esse alento, essa verdade. E se fixe, de vez, na final estação,
esse comboio de corda, que se chama coração.
*480 Adão electricista
a toda a hora suporta choques de alta voltagem. Considerado cidadão saudável do milénio,
dada a sua enorme calma pachorrenta, tornou-se acabado exemplo de resistente ao stress. Notórias entidades,
da orgânica da saúde, reconhecidamente competentes, apontam-no à geral consideração do cidadão comum,
normalmente tão apressado e impertinente quanto irascível, impaciente, irritado ou sonolento.
*481 Abrindo a minha Bíblia de Jerusalém:
Presente, passado, futuro dos humanos, cifrado em tuas linhas. Quem, em qualquer
lugar de acaso, seja em que altura for, te ler, sente de Iahweh o providente amor.
Então vistes que eram muitas as brechas da cidade de David!
*482 Em extremo atenta à leitura do poema,
a jovem musa aluna corrige, em seu ácido sondar, o que, do mesmo, é excesso
de veemência incontida. Assim reduz à normalidade crua do dia a exacerbada mensagem,
que, do dito, transparece. Torna-se o eterno poema mais poema, porque já poema apenas.
Desceu de etéreo, aéreo voo a pacífico episódio do escolar quotidiano.
*483 Concentradamente distraído,
o condutor de autocarros desenvolve, com apreciável destreza, a processão dos precisos
movimentos necessários, que o tornam a ele, um santo homem, um verdadeiro profissional.
*484 Nova ode triunfal:
Tempo de comunicação: Montanhas de papeis e de disquetes, A4s, auto-estradas da palavra. Transportes,
aviação, caminhos de ferro ultra-rápidos. Velocidades supersónicas. Férias em Marte, aportando p'la Lua.
Astronaves de passeio. Linha azul de crédito fácil. Cartões plastificados, bandas magnéticas, digitalização, telemóveis.
A alma inteira do poeta, a nu para o mundo inteiro. Aldeia global. A Bíblia em CD-Rom. A mais bela face do Cristo
mais do que multiplicada, por biliões de fotocópias. Satélites de comunicação: Água canalizada, gás canalizado,
ar canalizado. Escolha a temperatura do seu fato, igual toda a hora! Viva sempre em claro dia! Não perca tempo
a comer! Revolução na psiquiatria: Até pode dormir acordado! Congresso Eucarístico Internacional: Novo recorde
de distribuição de partículas! Engrenagens, construção rápida, fabricação robotizada. Em casa como na praia!
Esteja em Lisboa como em Azeitão! Esgotaram-se todos os slogans: Veja agora se é você mesmo
que inventa um e único! A Oriente e a Ocidente as religiões e as filosofias convergem num novo humano. Goze
da plenitude: Viva onde nada lhe falte! Veja em directo do Oriente Médio o acto de assinar o último Acordo de Paz.
*485 Nota à precedente ode:
Batida a teclado p'las 7,05 h de 22 de Julho de 1999, em Setúbal, à praceta. Na Web,
p'las 9 h. Sob tudo isto, uma lágrima de pato. Sob tudo isto, uma pomba assassinada.
*486 O silêncio é tão longo que os cães enlouquecem nas ruas... E as noites ficarão imensas:
De Jorge de Lima, o superpovoado poema, transcendendo prováveis glosas.
A nua verdade, neste 'scuro, pétreo Porto de passagem, de cães, gatos, lixeiras, monturos e automóveis.
A fins de Julho das fantasmagorias que habitam minha distensão.
*487 De eléctrico até à Foz:
Reatam-se-me antigos diálogos de entre banho e praia. Quereis outro achamento - além dessas
ventanias, tão tristes tão alegrias? É como se voltasse de novo a Norte, é como se tornasse,
mais os meus, a fazer praia a este absurdo Norte, de rudes areais, tosca pedra, agreste mar.
*488 O arame do equilíbrio inteiro:
Obrigavam-no a fazer tantos exames, para despistagem de possíveis lesões devidas
à sua condição de antigo fumador, que, a conselho do taxista, que o remeteu do IPO a seu hotel,
resolveu, de uma vez por todas, largar ao empedrado da rua aquele seu último cigarro que 'inda trazia aceso.
*489 Glorioso, o tempo do desporto:
Resplandecem, de apolíneos equilíbrios, os atletas, nas tardes noites da ofuscante luminosidade.
Mil e uma inquietações por um golo invalidado, pois nem tudo navega em alegrias.
Há que deixar ajustar, profundamente, dentro do sono, a que seria a trajectória certeira da bola na grande área.
Ou rever, realiter, em todos os canais televisivos, do súbito, último, decisivo remate o desferir fatal: Le coup de grâce!
*490 Prenúncio de Outono:
O café padaria de dona Brites invadido de folhas desmaiadas. Sorte os pombos
ou as gaivotas ou as andorinhas - domésticas ou peregrinas criaturas aladas? o não acossarem, da inóspita, entristecida estação: Sinal de que se repete o Setembro ido.
De que a propósito ou a despropósito nos abriga ainda cimeiro boné?
*491 Brincadeiras proibidas:
Ou Portugal na CEE: A ponto de desposar uma psicóloga nórdica, o computador vomitou-lhe
páginas sobre páginas de disposições legislativas, aplicáveis ou não directamente ao seu caso.
*492 Frente à Tv,
ao longo do fofo braço do maple, o preguiçoso gato, amiga companhia, alerta postada.
*493 Os que vêm da dor directamente:
Trazem raso o olhar das amplas, largas vistas: Indetíveis e certos
da mais pura das certezas: Ei-los que avançam dos seguros passos.
Sagrados da verdade, loucos, apaixonados, feridos de ver, os magoados heróis.
Seu fito é mais além. Desde a mais terna das madrugadas, se levantam.
Acossados ou perseguidos nenhum estorvo os detém.
Lestos progridem p'la evidência plena dos anoitecidos caminhos.
*494 Sol batido à rua.
Um surdo som de jazz. A encher, dentro, o carro. Celeste ao volante, em seu vestido azul.
Tal qual quando a viu, a vez primeira, na antiga mansarda, da porta da saleta. - Há tanto tempo!
*495 Balões! Balões! Pró menino e prá menina!
Meiga velhinha, distribuidora de sonhos a pataco, tu que dás, p'lo fio, os balões
às pequeninas mãozinhas, dá-me também um a mim, bem colorido, pra que, o cordel firme nos dedos,
o erga ao vento do meu júbilo, p'lo limpo ar, o brevíssimo, efémero balão! Meu maior bem! Ilusória novidade!
*496 João Cabral:
O comum dos mortais 'inda dormido, aconteceu-te dares teu triste pio.
Tiveste pois de passar o letal rio. A esta hora estarás já acostado a outra margem.
Que bagagem levavas? Versos e versos: Versos de pedra, versos d'água, versos d'aço:
Como d'uma faca só lâmina: Versos vários, murmurados: Por certo 'inda mais versos por fazer.
*497 Passeando seu diminuto canídeo, na absoluta pasmaceira?
Leve-o bem, que ele a leva, a si, consigo, até a o recôndito, esconso
recanto, onde, sem raiva, possa bem mudar águas e, mansinho, obrar.
*498 Os calhaus do ruído:
Série de terramotos, sísmicos abalos sucessivos na Turquia. Porque lá e não cá?
Lá ou cá, ao tremer convulsionado o planeta, fendendo-se, imos humanos despedaça.
*499 Chalaça ou charla,
que já meu avô contava: - J'aquim, antes queres ferrar ou ser ferrado?
- Eu cá antes quero ferrar. - Então ferra-me aqui as ventas no olho do cu.
*500 Serviço só ao balcão
ou "ginástica sueca": Que violência de torção que dona Rosa me obriga a fazer!
Mas dona Rosa donzela, aproximando-se, abondava-me de atrás de mim o primeiro copo de água matinal.
*501 Alcoóis, alcoolismo e outros mais tratos das contradições da dependência:
Depois de levar um forte estremeção, Dionísio, o novo entusiasta, fã da cerveja sem álcool e do amendoim torrado,
com seu cigarro da farmácia no beiço, só erva inofensiva, arrazoava ufano, ante os mais díspares auditórios,
discursos sobre discursos reflectindo sua íntima convicção profiláctica: Só não dispensava o meio Lorenin/2,5,
quando o frio o transtornava e as brancas vigílias das noites vagabundas o obrigavam a ocupar, embrenhado em sono,
os penumbrosos, invernosos dias. Para embarcar na nau dos sonhos livres das sereias, o só ouvir uns poucos
acordes, de violas ou violetas, violoncelos ou violinos, lhe bastava. A sós dentro do sonho, consigo mesmo estava.
*502 Aos dezanove dias do mês de Dezembro,
do ano da graça de mil novecentos e noventa e nove,
o último dos dias, portugueses, da nobilíssima Cidade do Santo Nome de Deus de Macau:
Hoje aportadas a cais as últimas das caravelas, ficaste a ti entregue, aí a meu lado, povo bom na Fé,
roído da mais ancestral de todas as fomes:
Do que do sonho do absoluto nos ficou,
em graves silêncios mastigamos até aos últimos grãos o arroz trazido nos convés das derradeiras barcas:
Tonta de destino, a Saudade cá 'stá, tangida de lusa mágoa e transformando íntimos, a melhor parte
do que aqui nos resta. Agora que temos finalmente nossa a nesga amorável de céu que o olhar alcança.
-
*503 SOS:
A vizinha perdeu o gato, mas que disparate!
Eclipsou-se entre o abrir e fechar da porta.
Fugiu de casa. Talvez pra não mais voltar.
Porque te sumiste sub-reptício, malvado gato?
Dá p'lo nome de Rom-Rom.
Avisa-se o prédio, a praceta, a cidade, publica-se pormenorizado anúncio.
Alvíssaras a quem o achar.
Se alguém o vir, chame-o p'lo nome e dê-lhe kitekat.
Por onde andas a esta hora da noite, ó famigerado animal vadio?
É preto, luzidio, usa coleira vermelha anti-pulgas e só vê de um dos dois olhos, o esquerdo.
Mas é meiguinho, asseadinho, garante a vizinha, e faz mesmo imensa falta.
Não vamos contar a história dele, que dava um longo romance.
Por ora trata-se de recuperá-lo. Oxalá não esteja já a rebolar na barriga d'algum chinês!
A vizinha, d'inconsolável, obriga-me a enviar este urgentíssimo SOS para a Internet:
Encontrem, mas encontrem o Rom-Rom.
Já que a cibernética o permite, apresentam-se, em marginália, as ventas pretas de larau do mansarrão Rom-Rom.
Pra que apareças e voltes à tua dona, desgraça de animal!
*504 Amores difíceis do gato Caramelo:
Verdes redes de nylon e estruturas de andaimes separam Caramelo da amada gata,
do vizinho prédio em construção: Bem tenta ela a aproximação: Os arredores rodeia, explora, estuda,
enquanto Caramelo, dependurado de sua janela, como estátua imobiliza e freme: Mutuamente se cheiram,
mas, na aluada, inóspita noite, a distância entre ambos é praticamente intransponível, e feita só de sonhos
de impossíveis: O peso da nocturna hora passa, expirando e inspirando frias árias, suspenso da pedra
mármore do peitoril de sua janela. Regressado ao interior fofo aconchego da carpete, suspiros fundos solta,
no frio gemer de seu tristíssimo miar. Lapsos depois, à estratégica postura torna,
e já a amada gata, dos olhos negros faiscantes, desistira de rodeá-lo. Continua então movendo
e re-movendo o pescoço, estranhamente suspenso que ficou de áureas luas.
Ia eu pra me deitar, e ele, rondando-me, dose de comida reclamava.
-
*505 A incrível bailarina que é meu par,
desafia-me a poetar os nossos, tão só sonhados,
larguíssimos passos de valsa.
Perplexo, que tenho a lhe dizer?
Que em registo vídeo eles estão perenemente gravados, esses famosos e exóticos passos voadores,
subliminarmente gravados sob as aluadas pedrinhas, e flores, da nossa comum praceta.
*506 De ferry boat até Tróia:
Estuário das leves ondulações onde residem áureos sonhos de golfinhos e gaivotas, à superfície
da aquática brancura da espuma em neve flor. Entretecidos de vago e de distante, incógnitos navegamos.
E, súbito, sem nos apercebermos, atracamos.
*507 Por nocturnas horas,
um grilo na casa de banho corta, com seu gri-gri incisivo, escuros de desesperança.
*508 Escrivaninha das horas quietas:
Estou morto e não me levanto, absolutamente morto para o que não seja.
*509 P'lo São Lourenço, vai à vinha, e enche o lenço!
Tão longe, inacessíveis ficaram uvas e vides, das vertentes da infância alada!
Hoje, migrante desterrado, resta-me tomar o 4, até ao Livramento.
*510 Estória do filho do Diabo e de Ana Pandilha
conformemente contada por Velho António Bento, setubalense de nascença e creação:
O Diabo tem cornos? Mas ele nunca foi casado. O diabo usa forquilha? Mas ele nunca trabalhou
Do Diabo e de Ana Pandilha se tramara um filhote, que não tinha coração.
Nisto, Dom Diabo interpela o Bom Deus: Vais mesmo deixar o filhote, meu e de Ana Pandilha, vir a mundos
sem coração? Logo desliga o Bom do Deus sem troco dar. Nasce, e cresce, e, de si, se faz filho de algo
o cornudo cachopo descorçoado e desalmado, e pronto é já meio palmo de gente. No entretanto tomado
de um baque dos seus, o Bom Deus a o estranho petiz vai de comunicar: Rabino Moço, sabes
dentre o sideral espaço imenso, que minha bondade administra, de um minúsculo planeta,
de humanos habitado, a que chamaram Terra? Queres tu ir pra lá?
Então promete lá portares-te bem, e cuidares da vidinha.
Prometo, prometo, prontamente responde à divina prédica o enfeitado moço.
De quejando, sumário diálogo, resultou cá descer o famoso filho do Diabo. E a que veio
a sinistra, cómica, "invisível" criatura das trevas e da mentira? Oh, este mundo dividido! Todos os dias,
a todas horas, por praças, por ruas, por ecrãs, surpreendemos sequazes bastos do Mofino. Esse dito cujo gajo,
espertíssimo à insídia, montou seu singular busílis: Gerir sórdido estáminé, em bem transitada esquina.
*511 Revejo Leandro,
leiteiro dos velhos, de carrinha e vasilhas, púcaros e medidas de latão. Já reformado,
continua em forma, convivendo com seu bicho de trabalho, bem ruim de dominar, continua
envelhecendo, calmamente fazendo e refazendo iguais percursos, antes de porta a porta,
percursos idos, matinais e eternos.
*512 Quando o castanheiro do quintal floriu,
toda uma antiga angústia se desvaneceu.
*513 O carteiro Candeias,
mais conhecido por flaviense, conversador, ou vagaroso, apregoa a todos mil maravilhas
do presunto e da comida de Chaves, desde que por lá passou, uma ocasião, uns oito dias.
*514 Raúl, o soba negro,
para os bancos da pedonal rua de Vasco da Gama, da Quarteira, desterrado
toda a clara noite as acordadas Áfricas e Índias de seus desertos fuma.
Em crueza acabrunhada de loucura. Sábados e domingos, a altos brados
roucamente entoa, pra quem o quiser ouvir, o ave de Fátima!
*515 Ementa:
Sopa d'alho francês, figos pretos de capa rota, queijo fresco, água fresca do Alardo. E ala moleiro!
*516 A delicadíssima, fina película
ou a transparente casca da cebola: Entre dramas virtuais
de históricos vampiros e entrechoques das mais comuns paixões, Pedro
e Pedro enredam, com jogos de imaginação e enigmas de charadas só sonhados,
o despontar do novíssimo terceiro milénio que aí vem clareando!
*517 O professor Campos
comprou garagem no prédio ao lado,
na mira de por lá dar largas ao seu fraquinho por pesca submarina.
*518 Delicadeza:
- Dê-me uma bica, mas anormal!
- Desculpe lá, mas o que é, para o senhor, uma bica anormal?
- Uma malvadinha, das que ardem por dentro do coração.
*519 Campos da bola:
Grupo Desportivo de Bragança: Longa era a marcha até lá e o descampado.
Aquecia-nos o humano calor da dura lide.
Adelino Ribeiro Novo, do Gilinho: Fervilhava humanidade o envolvente próximo:
Tempo em que Ynjai não falhava um único canto directo.
Antigo 28 de Maio: Convivas abancados sobre pedra, torcíamos cada qual por seu Sporting.
O rescaldo era rever cada lance em pormenor, à mesa da comum palavra.
Associação Académica de Coimbra, ao Calhabé: Dentre o negro de capas, batinas e bandeiras,
exultávamos de Eusébios, Jota-Jotas, Rochas.
Ginásio de Alcobaça: Para alguns, poucos, o resultado acabava por dar certo:
De várias paragens vindos, saboreávamos reunindo-nos o destino.
S. Luís: Aparício bem buscava repor a verdade no prolongamento:
Só que as bolas que lhe davam, não caíam onde quereríamos.
José de Alvalade: Inclinados para cima da relva, comoviam-nos os golos esperados.
Bonfim, de Setúbal: Ao vitorioso disparo do Henriques, voaram confetis.
E o meigo sol brilhou mais intensamente.
-
*520 Habitadas casas:
A Lousa: Escuro e claridade sobre pedra.
A Cerejais: A graça e a luz, a sombra e o pecado: Beethoven.
A Valverde: Propaganda de velhas presidenciais, com sabor a fraude.
A Trindade: Cenouras, nabiças, horror do escuro, ledos campos e escola, paredes meias à casa,
jovens criadas, cantoneiros, tinteiros, bambas carteiras, luxúria, um crucifixo.
A São Salvados: Brinquedos destruídos, nevões, a largos campos.
A Vimioso: Nasce-nos um irmão: Lavatórios, toalhas, azáfama, água quente. E banda desenhada.
A Alfândega da Fé: Leitura das longas tardes: O bobo e O incesto. Escadarias, sobrados recém-esfregados,
caves, antigos jornais, velharias, tralha e poeira acumuladas, pátios, trastes, férreos gradeamentos.
A Coimbra: Sótão de ideias. Escritos a eito, luta, desalento, e reerguer-se:
Habemus Papam: Giovani Baptista Montini!
Ao Porto, a Cedofeita: Livros de botes, livros armazenados, que ninguém leu.
A Braga: Crime e castigo, a desoras até a fim. A montanha mágica. Num ápice, jovem e bela, a explicadora de Alemão.
A Cardanha: Aconchego de cobertores de papa: "Ângelo, apaga a luz e dorme!" Os pascoais Belo e À minha alma.
A Barcelos: Primeiros canhenhos de tímidos versos: O Turismo, a Tv: Vilaret, Nemésio, Homem de Melo, António Pedro.
A Lisboa: Clarinha nuínha no banho. Súbitos baques de infância.
A Cem Soldos: Os pintalgados impressionistas. Ecoar de horas no relógio da sala. O inicial sorriso da manhã.
A Setúbal: Todas as noites p'la meia noite o repetido acto do casal vizinho.
A Quarteira: Abertas as portas, à luz, as janelas, as paredes, a vida. Abertas não, escancaradas.
A Madrid: Proximidade de estudantes e secretos arquivos de silêncio, a esquadra próxima, as irmãs conventuais.
A Leiria, Fátima: Surdo e nocturno remoer de versos. A instantes ledices e ternuras gemebundas.
A Jerusalém: O patim contíguo ao quarto, dos desolados fumos. Também dentro, ao vão, é átrio santo.
*521 Viagens:
De trem:
Do Tua a Bragança: P'lo dentro de vinhedos, desolação, fragas, urzes, giestas, estevas, aereza, montes.
A longe, torneando curvas, um automóvel verde.
Do Porto a Barca D'Alva: Acompanhávamos o correr do rio de oiro, no entanto rumando contra a aluada corrente.
Do Entroncamento a Tomar: Avistávamos a casa, como que reconhecendo-a familiar, no fluir desconhecido.
De Coimbra a Lisboa: Entre férreas estruturas, revoltávamos o poema.
De Setúbal a Faro: Se por demais sobrecarregados, lançávamos, janelas fora, os magoados olhos.
De Copenhaga a Malmöe: Poesia de serenidade, sinica poesia, Shakespeare, Ibsen, Pöe, Selma, Karen Blixen.
De automóvel:
P'lo Vale da Vilariça: Os mesmos sítios das mesmas histórias, vezes sem conta rememoradas.
Até Madrid: Antes do Cerro da Águia, muita curva e dor, ruins aflições, pavor, consumição e morte.
Até Paris: Até ao Bois de Bologne, muito pra trás ficou do nosso vão dormir desperto.
Até ao Algarve: Noite, dia, a rádio: O terço ou Ravel e a agreste fantasia.
Quarteira/Setúbal: Pela manhã encetávamos o caminho de regresso até a de onde saíramos.
De avião:
Portela/Zurique: Enquanto nos entretem a refeição da Swissair, o eterno entretece-nos vagos gestos.
Funchal/Portela: Rectângulos sob relâmpagos, mondriânicos rectângulos, extensões de pátrios terrenos.
Caído a chão o alado pé, devolvíamos a deserto revoltos sonhos.
*522 Contava-me o velho professor Costa
que o Setúbal, de há cinquenta anos, empregava pessoal especializado em remover dejectos
das "tigelas das casas": Horrível fedor! O destino último dos mesmos era a cultura agrícola,
daí o Zeca ter cantado: Quando o pão, que comes, sabe a merda, o que faz falta: O que faz falta
é animar a malta. Hoje em dia, mau grado sofisticados sistemas de tratamento, com pompa inaugurados,
continua a ser verdade que quanto mais se remexe a dita, mais ela fede.
E ainda não menos verdade que as moscas migram, mas mesma é a mesma.
*523 - Então, muito bom dia!
E ninguém responde. Os bons dias estão mesmo p'la hora da morte!
Ainda se fossem as boas noites, estou como diz o outro. Será por ter chovido muito ultimamente?
É caso pra perguntar.
*524 Elegia aos últimos sapatos luva
que o meu pai me comprou:
Por onde andastes, por onde não andastes, fizestes verdadeiros os percursos:
E agora chegastes naturalmente ao fim.
-
*525 Reina gran confusão no estaminé:
Bufa o gato, 'spartiça-se o copo, tropeça a padeirinha:
Pois é, qualquer dia parte um pé!
*526 O comedor de sandes:
Sem hora pr'abancar a fim de dar gosto ao maxilar ei-lo imprevisto.
Não é que sempre o reencontro?
*527 Rogélio, o último dos cravas:
Ocupando a tempo inteiro os últimos milénios do pasmo em anti-diplomáticas abordagens,
a mim consegue palmar-me um por semana. O facto é que vai contando com desvelado
acompanhamento anímico de gentis e humaníssimas psicólogas: O fi-de-puta!
Por nocturnas, intempestivas horas, entra ao Caffè di Vita,
ante o primeiro cliente especa, e boçal dispara: Posso pedir-le um cigarrinho?
*528 Pesquisadores de anedota:
Mil selectas bocas ouvem até descortinarem a última das últimas: Tarde e a más horas,
ei-los que chegam a estúdio: Os porreirais artistas: Violinistas, contrabaixos ou líricos cantores:
Após pródiga distribuição de palmadinhas em costas camaradas, contra o sóbrio maestro de ar sisudo,
para o ar soltam, descontraída e alarvemente, a que eles julgam última das últimas.
*529 Padeiro Moreira, do Alto da Guerra,
tem viva memória da História de Portugal da quarta classe: Não esqueceu nenhum dos cognomes
dos antigos reis: O venturoso. O desejado. O gordo. O magnânimo. O conquistador. D. Pedro I,
o justiceiro: Pois vingou a morte da amada Inês de Castro por mão de bandido que seu pai contratara:
De nome Pêro Coelho ou Diogo Lopes Pacheco: A quem mandou arrancar o coração pelas costas.
*530 Às portas de Querença
fazemos digestão do repasto de Carnaval: Do fatal cigarro
fumamos e, do Caldeirão, dos novos ventos respiramos.
-
*531 Aquela mulher de Ciência
viveu os anos sessenta no Quénia selvagem, rodeada de tigres,
chitas, leopardos, leões e outros felinos. Um leopardo rebelde,
que ela secretamente sempre temeu, embora seu predilecto
de arriscados jogos e brincadeiras, um dia a devorou.
*532 Descalço dos pés, mas podre de rico, o descalço d'Évora
entrou certa tarde no Café Arcada. Chega o garçon,
e o põe no olho da rua. Mas o dono vai buscá-lo de volta.
Logo ele, acomodando-se, exclama: Senta-te, Meu Dinheiro!
*533 Após intensa chuva:
Encher-se o ar de vago, de puro e de distante,
florida largueza, intérminos chilreios, luz crua, maresia.
*534 Entretido releio:
E uma vida inteira por mim perpassa.
*535 E escrevo fim:
Alvorecendo.
*536 Ladra um cão,
passa um carro,
a aurora rompe.
Eu posso lá morrer, terra florida!
*537 P'lo Olé Paelhas
de Sara as dezoito primaveras expandem-se em samba,
por entre cabeças de fumo, cola e caipirinhas.
*538 Campeona Neuza:
Onze anos há que a raquete do ténis a acompanha. Ela que conta agora dezassete.
Teima agressiva a move na peleja. Aos treinos dedica das melhores horas.
Vejo-a a adejar no court um, do quarto, do meu 4º, ao CTS. Rodeou já o inteiro orbe:
Espanha, Bolívia, Escócia, Japão, Colômbia, Polónia, Chile, eu sei lá. De Santiago recorda íngremes alturas.
Às aulas a Miraflores vai, despedindo-se de mim, tal uma qualquer rapariga da qual nada há que aqui se diga.
*539 Depois de ouvir ler da "bucólica" uns versos do Avelino:
Sussurra ventanias sonho inóspito, reverdecido ao rés da farta relva,
aragem que arrepia e arrefece. Tomba o sol a meu canto a oriente.
Ecoa já, p'la noite negra, da urze que estremece a voz divina.
*540 Citar-te,
irmão Barahona:
O poeta passou-se, com armas e bagagens, para o Todo de Deus e refugiou-se na Chaga do Lado!
*541 A estupidez e a ignorância humanas dão ideia do infinito.
- Puxou o autoclismo?
- Não ouviu, por acaso?
- Aquele autoclismo deve ser mesmo silencioso.
Praza a Deus que, pacientemente, vá esquecendo, suspenso que me quede do madrugar aclarado.
*542 Árduo falar bilingue:
- Bom dia! Un petit café noir!
- Desculpe, se bem entendi, no ar não adrego tirá-lo, só na chávena.
*543 Na tarde do Domingo passado
surpreendemos o nosso Conservador Arquivista Municipal abancado com a sua senhora
na esplanada de uma conhecida geladaria da baixa, comendo a colheradas de vítrea taça
bruto e envergonhado gelado.
*544 O Silva contador
não suporta vozearia. A tarde inteira passou em demoradas leituras, prá EDP.
O som rock, a nicotina e a cafeína tolera no entanto, acomodado entre garotas.
*545 Desde carros roubados
ou de portas, ou rodas, arrancadas, a jeepes transviados e depois desagregados em peças,
tudo a noite, na praceta, foi pródiga em encobrir. Até termos connosco o guarda nocturno, que agora
passeia garbosa farda por inóspitos recantos, que perpassa a pente fino nas horas do saudável pasmo
finalmente inaugurado. Isto e muito mais - mais do que o que aqui se diz - dentre volteios de solitárias aves,
luz melhor e refluxos de benévolas ventanias.
*546 Ternura ácida
de arrumar papelada velha, bons e maus momentos revividos,
fixada história escrita de uns bons dias. Saudades gritando do duro pó.
*547 Da impertinência da Saudade:
Será que és tu, garota de Ipanema, que vens aí bamboleando-te,
dengosa e azougada, p'lo Vieux Port?
Que coisa linda, mas linda!
E eu nesta saudade de vago e de distante, acompanhando a música dos teus passos,
na mesma, igual, natal entretecida nostalgia.
Que longe, longe, a Ibéria! A Orla Dourada, o Nada, a Névoa, a Claridade! O dulcíssimo Brasil! Do povo irmão!
Quanto longe o mesmo Portugal!
*548 Eu canto da Empresa Carlos Costa
a obra há quase uma década começada, canto-a porque
a acompanhei com vida, dia após dia subindo ante a janela aberta
do sonho do meu nada. Antes de raiar clara a madrugada é já
o anónimo operário da dita, arremetendo do Ernesto o tasco,
onde o pão quotidiano, vulgo carcaças, cedo demando. Café
é o alimento comum da hora amanhecida. Sumindo-se,
esse anónimo laborante lidas mil do dia, novo e novo dia, arrasando-
-se, empeçava. Hora qualquer que fosse, que eu fumasse o pensativo
cigarro, debruçado sobre o poético alpendre, esse obreiro anónimo
de Carlos Costa a obra alevantava: Eram pás e pás de lixo removidas,
era o guindaste incansável a topo alçando torpe matéria, e descensos
e subidas exercitando: O infatigável José o dominava. Era o terraço,
a escadaria, o sótão, o azulejo, a massa de fora, o revestimento,
a carreta, a obra, andaimes postos, usados, retirados, um sem número
de afãs que eu poetando acompanhei. Hoje me disse o brasileiro
Leandro que um ano já somente de lida à obra falta. Logo o andar
modelo me propõe que visite e contemple esplendoroso. Erguida já
ao céu da alta torre a obra dos andares vai. Anos de sol me rouba,
que, em Acapulco, Carlos Costa devera me repor, pra compensar
o do professor poético exercício exílio da sombra e da demora,
a que hoje se remete, de mil versos enredado. Esta é a humílima
epopeia, pátria e local, do meu acontecido recanto, que eu canto
e canto, esconso em meu abrigo. (Inédito, evacuado poemeto, para
Leandro e seus amigos companheiros, obreiros do prédio a meu lado
erguido na praceta. A pedido deles o fiz. Só para eles é.)
IX) simples orações
*549 Graça singular achou em Ti o Altíssimo
um outro dia, em que em teu enlevo cuidavas de tua casinha, num recanto de Nazareth.
Cenário mirabilíssimo os olhos de Gabriel, Teu anjo, acordados viram, quando irrompeu
por uma porta cerrada. Parou então a acção sem fim de Tuas mãos, de cujos modos se envolvia a paz:
Essência e perfume da mais bela oração! Pudera eu também na hora divisar, através da translúcida cortina,
se o acaso de meus dedos não alcançasse arredá-la, Teus alados gestos, Miriam, dulcificando o entardecer!
Quanto absorta Te surpreendes da inesperada visita! Logo o coração Te balbuciou humílimo e sublime sim.
*550 Fátima:
Arrancada de um mundo novo, arrancada de um mundo novo...
Nova Jerusalém, Novos Céus, Nova Terra...
Noiva ricamente ataviada... Manso cordeirinho... Meiga gazela...
Dulcíssima Apaixonada... Delícias e ledices do Dilecto Esposo...
*551 Não era o vulgar brilho da beleza.
Era outra luz, era outra suavidade:
Que me não esqueça, Mãe. E a não perca. Irmã comigo vá. Não me abandone.
M'envolva inteira. Me acolha. Meiga me abrigue próxima, na fria noite.
Me acompanhe, enfim, ao resto que resta do caminho: O bem árduo e árido caminho.
*552 Que pela acção do Espírito a vossa esperança transborde:
Nos demos inteiramente: E, assim, porque, de imensamente forte, nos invades
e nos enches, de irmão a irmão, saciemos a comum fome, de algo mais
do que a só vontade do quotidiano comer. Todos nos demos, e, onde quer que essa fome nos roa
do humano destino, hauramos com fervor do transbordante vaso, que em frágeis mãos sustemos.
Assim se revigore em nós o sabor novo, de antigo, da viva sabedoria das multiplicadas palavras que és.
*553 Jezu, ufam tobie!
O Eterno é meu pastor e eu seu cordeiro. Conduziu-me às vertentes das águas cristalinas:
Louve-se, a uma voz, Ieóua, Miriam e Ioseph! Em todas as línguas das babeis da Terra,
toda a criatura louve sem cessar a família humana e divina de Nazareth! Nossa Senhora da Vida,
olhai por nós! Jesus, meu irmão, perdoai-me! Maria, minha mãe guardai-me! José, meu defensor, fortalecei-me!
Nós te louvamos e bendizemos, ó Maria Imaculada, Mãe co-Redentora e amável, porque trouxeste
a nós Teu Fruto Excelso, ó Eleita do Altíssimo, Aquele que é a experiência que vivemos, n'Ele e conTigo,
da Admirável Redenção. Nós Te bendizemos e aclamamos, Maria Imaculada, Mãe co-Redentora e amável!
Aclara-nos o caminho, sempre connosco vás, conduz-nos, seguramente, conTigo, por Tua mão.
Aia de Jesus, rogai por nós! Aia do Senhor, rogai por nós! Senhora do Carmo, defesa nossa, dos duros transes!
Santo Espríto de Benevolência, infundi dentro em nós o puro fogo do verbo do Vosso pleno amor!
Anjo Companheiro, dá-nos o discernimento de bem agir, faz-nos firmes os passos no caminho!
Bendita, sempre, a flor da Santa Eucaristia, pão que do Céu de graça se nos dá em alimento,
fruto do trabalho e da triga farinha, que Maria, Nossa Mãe, em seu casto seio, acalentou!
Maria, José, Jesus, em Vós confiamos! Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo!
Que seja exalçado, Senhor, em todo o lugar, Teu Santo Rosto. Que se nos apresente favorável!
Benção Tua, ilumine-se-nos propício, e sempre, sempre, sobre cada um de nós, inteiro resplandeça!
Eu sou todo Vosso, e quanto possuo Vos entrego, ó meu amável Jesus, por Maria, Vossa Santa Mãe!
Coração Imaculado de Maria, sede a nossa companhia! Doce Coração de Maria, sede a nossa salvação!
Porque a Natureza é o doce sorriso do Cristo, Francisco, António, Clara, repeti connosco um louvor grato
e obrigado p'lo irmão sol, a irmã lua, as estrelas irmãs, altas, preclaras, belas, e p'la amiga irmã morte natural!
Livre-nos Deus de morrermos em pecado mortal! Porque é Natal há dois mil anos, se cultive,
se cante, floresça e soe e p'lo inteiro orbe ecoe, acompanhada do coro dos alados, inumeráveis músicos,
da felicíssima meia noute de Bethlehem, dos filhos de Deus a libertadora e imorredoira alegria!
Padre Cruz, Jacinta, Francisco, Lúcia, inspirai-nos a que nos mantenhamos sempre vigilantes e em sacrifício:
Para que, em tudo, façamos por merecer, tendo parte na paixão libertadora do Cristo,
da bondade de um Deus, que é nosso Pai. Santa Teresinha, ora pro nobis! Beata Faustina, ora pro nobis!
Porque o cedro foi arrancado. Afastarei de teu seio os teus orgulhosos fanfarrões. Um povo, pobre e humilde,
procurará refúgio no nome de Iahweh: O Resto de Israel: Não nos pesem mais angústias passadas.
Nossos tens Teu Louvor e acções de graças abundantes p'los séculos dos séculos dos sucessivos milénios.
Benção e consolação Tua, Deus nosso, Único e Verdadeiro! Nosso corpo mortal nos seja leveza e cruz
de Tua santa alegria, Senhor Deus do Universo! O Louvor que Te damos seja Festa, Esplendor e Restauração
das ruínas da de Israel eleita casa. Atribulada, não vencida, humilhada, não abatida, vexada, não subjugada,
entristecida, jamais desesperada: Porque no Teu Nome só pôs sua confiança.
P'la Tua Santa Cruz, ó Cristo, Filho de Deus Vivo, todos Teus sejamos inabalavelmente, para conTigo
suportármo-La aos remotíssimos confins. Até nada mais vivermos do que o só esbatido reflexo de Tua face,
no coração da Tua imensa Luz. Em Ti, que és Luz de toda a Luz! Coração de Maria, Castelo do nosso refúgio,
guarda-nos do Malino! Tão verdade é o estares connosco, Maria, Mãe expectante! O que esperas tens
por condição. O que em Ti saudosa anseias Te foi dado antes. Pára, de alegria, Teu nóvel tempo, ó Gratia Plena!
Estrela da Manhã, Porto Seguro, Teus olhos vêem o que é melhor para os ânimos humanos titubeantes. Por isso
tanto pranteias seus descaminhos. Teus somos filhos, irmãos do Filho Teu. À tua maternal solicitude, a Teu coração,
Sapiente Protectora, quando nos acolheremos? Do peregrinar do Céu tão arredados! Vela-nos os rumos.
Repõe em nós a simplicidade amorosa de há dois milénios, quando fazias o necessário em Tua casinha de Nazareth!
Nossa perdida vida ganhe Vida: Vida que em Ti vivida é viva Vida. Teus nos toma em mão, a fim de refazermos
conTigo do vaguear os percursos - da clara luz banhados. Refúgio de pecadores, conTigo somos. Se meiga Te dás,
nada nos falte. Se sempre de nós tens Teu cuidado, nenhum receio, ou medo, nos ensombre. Teu níveo ar conTigo
respiremos, e, assim em Ti pra sempre, repousemos. Em Teu casto colo adormeçamos: Dá-nos longo sono bom,
nosso sonhar meiga nos guarda. Boa companheira, linha recta até à Trindade, a escadinha Tua nos apronta.
Tuas rosas, rescendentes, se derramem sobre o nosso leito de dor. Toda formosa és, aqui nos vês e tens, aqui
nos tens e amas. O resto é nada. Tua Dextra suporta a minha dextra. Como pastor recolherá os cordeiros a repouso:
A nós recolhe Tu só, ó Bom Pastor, distantes que somos de reconhecer Tua voz que a cada clama! Se nos conheces
como mais ninguém, de nós desconhecidos nos encaminhes aos verdejantes, pródigos prados de Tuas pastagens,
benção Tua amorosa da graça toda plenitude! Aí, nada nos faltará. Nos dês de Tua viva água de Teu bondoso lado!
De viva voz a Ti se solte humílimo louvor, em pleno não tempo, inimaginável à humana medida. Tua Luz me abençoe.
Mimados a Teu colo de Pai e Mãe, fidelíssimos nos guardes, ledos da bondade que dói em Teu coração golpeado.
Esteja connosco o Senhor Jesus Cristo. Abra-nos a porta do Seu coração Sua Mãe, Maria Santíssima!
*554 Em que espelho ficou perdida a minha face?
Tomas nosso nada e dás-nos um nome nosso, que é tudo o que connosco transportamos, um nome cristão.
Tomas nossa fraqueza e dás-nos Tua força que nos abre todas as portas. Tomas nosso silêncio e torna-lo repleto
de Tua Palavra, nuvem d'estrelas na noite do fundo coração. Um firme fio invisível liga-nos à fonte que Tu és.
Porque em Ti nascemos, somos e passamos, em Ti desaguamos. Flui, em Teu tempo, nosso tempo,
o escasso tempo que para aqui nos deste.
*555 Apanha, em mãos, a terra:
Nela, és hoje tudo o que já foste ontem e tudo o que serás amanhã e depois de amanhã.
*556 Bendita a paixão redentora do Senhor que padeceu por nosso amor, a cabeça de espinhos coroada:
Rombo ou losango. Alguém em leito de dor. Sol de após chuva. Levar adiante, a bom termo,
o árduo afã que vamos tendo em mãos: Ora et labora! Tornar mais leve e livre a bela liberdade.
*557 O pai de teu pai e a mãe de tua mãe levam-te Deus dentro:
Sem esforço se fixa de teu sorriso nítido a fotografia. Os filhos de teus filhos e os netos
de teus netos recuperarão a transcendência simples da sequência que começaste.
E al fim em Deus te terás - como Ele te vê.
-
*558 Dos 15 mistérios do rosário:
Anunciação: Fiat voluntas Tua.
Visitação: Maria, a caminho.
Natal: O Verbo, encarnado.
Apresentação: Cumpre-se o rito.
Encontro: Explosão da sabedoria do Menino.
Agonia: O Filho d'Homem, suando, sangrando, diz Seu sim aO Pai.
Flagelaçâo: O manso Cordeiro deixa-se, entregue, torturar.
Espinhos: Ecce, o humaníssimo rei.
Cruz: Toma-nos conSigo.
Morte: Todo Se dá e, dorido, nos redime.
Ressurreição: O primeiro Domingo da Eternidade.
Ascensão: O Filho de volta, abraça-se aO Pai.
Descenso: O Paráclito, Tudo, em todos.
Assunção: Salve, Aia Eleita de Iahweh.
Coroação: Ave, Maria, Rainha dos Anjos, paz da inteira Terra.
*559 Não deixeis emudecer a boca dos que Te louvam!
Infindos amens, louvores e glórias sempiternas a Teu Nome Acima de Todo o Nome:
Ante Ti se dobre todo o joelho. Voem ágeis os passos dos construtores da Paz.
Exultem os humílimos da terra. Brotem águas vivas dos duros rochedos.
Frutifiquem abundantemente os campos da secura.
Soltem-se os murmúrios de gratitude dos pequeninos, a quem as mães 'inda amamentam.
*560 Todo o homem deve nos aparecer como um irmão, um irmão como que do manto do sangue de Cristo revestido:
Osso de meu osso, alma irmã sofrida, dói-me dentro, crua, tua dor: Vinho, sanguíneo, de imos esfaqueados, crística
paixão!
*561 JHS:
Que corpo é esse, que corpo, que, solidário como e a mim assimilo? É o corpo, humano e divino,
de todo o distante ou próximo humano. É um corpo um, que me une aos mais dispersos dos filhos de Israel.
E aos mais 'sgarrados dos excluídos, só porque diferentes: Com eles eu sou um outro infinitamente livre
da infinda liberdade completa dos filhos de Deus.
*562 Se não fosse esta certeza que nem sei donde me vem...
Brandos espaços, sonho inenarrável a se apagar,
ou o retalhar do aclarar nítido da bela aurora:
Ó escondidinho, agarra-me, que te passo à porta!
O cabo dos cabos é que é lindo, mas a paciência tem limites!
Senhora Nossa, olhai por nós que somos pobres!
Judas Tadeu e Rita de Cássia, dos Impossíveis, dai-me cova onde morra!
Menino Jesus da cabeça fendida, fecha-me Tu os dissolutos olhos!
*563 Vede como se amam:
Pois se dão de coração quebrado: Por gesto e voz inteiros dão-se, em puro amor movidos:
O mandamento novo tal inspira: Em torno a eles se faz e se refaz cada instante a humanidade de um Deus a nós
descido, amigo, irmão: A esse novo amor os leva cada olhar: Desde milénios, a Terna Palavra ecoa, quebrantando
e movendo seus imos mais recônditos: Jamais estranhos, ou estrangeiros, mais que simples conhecidos ou chegados,
são em verdade família uns dos outros: Os que do alto voo se querendo, mansos s'encaminham, largo tempo fora:
Só de amor s'alegrando, fortes s'entregando: Vede como se amam! E dizei se tal amor não vale toda a vida:
Em assim ser, firmíssima s'expande, a amorável melodia da nocturna aventura do mortal:
De estrelas a estrelas se exalçando, tal íntimo desígnio do lírico sentir:
Desde sempre assim afim, a divina harmonia dos humanos corporiza-se, sente-se, palpa-se, comunga-se,
p'la sublime, mística empatia que leva amor a mais e mais amor gerar: Porque sempre, sempre, p'lo sucessivo tempo
é d'amor o modo humano do humano ao humano cativar:
Humano que, se a Ele leal, as quietas montanhas constrange, comove e arrebata!
*564 'Inda o anterior canto:
Mesmo que fale todas as línguas do universo, 'inda que por particular sabedoria do Espírito domine os fundos meandros
da alma humana, mesmo que me afogue a luz divina acaso achada em graça ou de Maria ou José, 'inda que tudo vá
dizer
em versos d'oiro fraternos da Palavra do Filho revelados, se não houver em mim Amor, mas Amor - como Paulo em
imortal
hino, vivido em banquete festivo, sempre escreveu - se não houver em mim Amor, mas Grande Amor, eu nada sou.
Sonhos, loucuras, voos, génio d'esforçados dias... Tudo passará, excepto a Cáritas. A tenuíssima Cáritas!
N'Ela, de facto, irmãos de irmãos nós somos.
*565 Diga eu agora
o nunc dimittis.
*566 Reze eu
a tão terna oração: Meu Jesus, perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno.
Levai as alminhas todas para o Céu a começar p'las mais precisadas!
*567 Espírito Divino,
acolhe-me que, mísero morro: Dia após dia, pouco a pouco, de mim a mim errante: Pó, alento e liberdade,
dói-me não dizer toda a alegria! Amiga, levo, como de sinete gravada ao coração a imagem truculenta
da réstia de cor do teu olhar, ou o teu olhar mesmo, inundando felicidade: Devolve-me, em enlevo bastante,
esse breve reflexo desse mar: Nadando nele, nele vogando, o grande mar, sumo-me em estremecimentos intérminos.
Estranho, mas solidário, entre humanos comovo-me de indecisos sorrisos: Desses frémitos, de todo anónimo,
recolho quanto falta a meu deslumbramento. Afã de amar, interminamente. Vou a além - que além é perto.
De lá vos escreverei, noticiando do eclodir silente, e alcançarei ajudar a multiplicar vossas comuns, banais palavras.
*568 Tanto me machucaram minh'alma as feridas vivas!
Tantos infernos tive que sofrer! Que agora, assumpto em mi, mal sei dizer dos atropelos a'o eu nos golpes certos
sobre mi' cometidos! Salvo, por obra ou graça de Maria, A da Fátima Senhora, incréus me olham os olhos dos que,
antes, eram os do puro desdém ao coitado ali jazido, olhos cegos de verem sem ver os milagres vivos deste tempo
apocalíptico. Mil bocas mudas jazem, sem palavras que ecoem dos vulgares assassínios, em silêncios cúmplices
de crimes contra humanidade perpetrados. Oswiecins tive em meu caminho, mas, alegre da alegria imorredoura,
repito para vós, homens deste nosso tempo crítico, que, enquanto aqui ante os novíssimos,
espero e creio e amo,
e que de Mãe Maria a graça é
de dizer-me
outro
a poesia!
*569 A Mãe Maria,
Senhora Nossa, Rainha da Lusitânia,
na solenidade da Sua Conceição Imaculada:
Ó Maria Imaculada, estrela da manhã, que dissipas as trevas da noite:
Abre-nos caminho que leve a bom lugar.
Le coeur trop plein em Ti, Te olho porque me olhas:
O nada que tenho a dizer-Te o Teu eloquente olhar em mim o cala:
Me baste só todo esse tanto, de Ti suspenso. Pára e ama!
Pára de vez, e ama de verdade, flébil alma de meu coração!
*570 Credo:
Há Um Só Deus, Pai Mãe Dos Céus Da Terra De Todas As Coisas Visíveis E Invisíveis Do Inteiro
Universo.
A Ele, A Ela, Que Em Manto Estrelejado De Vastidão Todos Acolhe, O Poder, A Honra E A Glória P'los Intérminos
Milénios!
O, A, Que De Alto A Fundo, Norte A Sul, Largo A Alto, Levante A Poente, Tudo Habita Da Plena Totalidade, A Que
Nada Falta.
O, A, Em Quem Amamos, Somo-Nos, Movemo-Nos, Como Sombras Vamos: Até A 'Í, Pra Sempre, Contritos
Regressarmos.
*571 Lausperene:
Aos olhos da Fé aí estás Tu, Inteiro em corpo inteiro.
Revejo-Te igual a quando percorrias, mais os teus,
as iluminadas margens da terrestre e celeste Galileia.
*572 Louvor ao Santíssimo:
A plenitude está em Ti. Ave, Spes Unica! Fruto do trabalho, do Espírito e das suavíssimas entranhas
de Maria, A sempre Virgem e sempre Mãe. Agnus Dei, Oferta Maior, da infinita dor redentora,
dor de todas as humanas dores, que as mais carregadas manchas branqueias.
A Ti atrai, amorosamente, todos os errantes filhos da Terra e os plenifica no júbilo da Tua Paz.
Pra torná-los verdadeiros filhos do Céu. Todos aqueles que, por humana condição, connosco são
nossos irmãos, filhos todos de Único Pai e Única Mãe.
A rodos nos dês da abundante consolação!
*573 Jesus, inspecciona-me a que ande sempre em Tua luz:
A que volte de novo a comportar-me como menino:
A que nada perca da graça que me dás:
A que respire sempre louvor a oração em que inteiro brota o falar do meu coração:
A que cada palpitação do meu sentir Te seja aprazível oblação:
A que me dê à vida de cada despontar do sol e me envolva da bondade de cada outro alvorecer:
A que toda a tarde Te acompanhe na Tua paixão, que a humanos redime:
A que toda a noite repouse na amizade do Teu ombro:
A que em mim vibre, a todo instante, a inteireza do Teu amor:
A que nesse amor prolongue, sempre, o louco curso de meus dias:
A que a Ti regresse para o sempre gozoso tempo da Tua sem fim Bem-Aventurança:
A que, em Ti, viva. A que, em Ti, morra: Amen!
*574 Amar o grande mar:
Amar-te deveras, verde mar! Amar-te, do mor amor, ó mar maior!
*575 Alba plena:
Maria, dá-me teu rosário, pra que alcance subir por ele a pulso a Escadinha das Rosas.
Sê minha boa mãe e alcança que eu cale quanto não Te louve.
Que não canse de mostrar-me grato por tudo que me dás e que me é meu tudo:
A alegria de filho Teu, com O Teu Filho, e José, e O Pai, e O Santo 'Spríto.
Por acréscimo, Maria, Mãe bondosa, desculpa tanto asnear.
Deixa o bobo mafarrico e aramista dar em minha não-vida despropositadas pultricas.
Não é ele um acabado parvo chapado? Pudesses Tu também desculpar seu desnorte!
Só com a ajuda do humano penitente, Te é dado fazer com que o tal dos embustes a longes suma.
Mas prende-me todo a Teu olhar sem sombra, ó Imaculada e benigna Mãe, vida, doçura, esperança minha caríssima!
Pois estar conTigo é viver do mesmo Deus.
*576 Porque na Fé de avós
educados e encaminhados, na Fé renascemos, até ao abraço
do Pai, a comunhão do Filho, o amor do Espírito Santo.
Por Maria, Estrela, e Guia. Amen! Aleluia!
*577 Ancestral patriarca José,
Forte dos Pobres, Farol do Novo Mundo,
abri-nos de par em par as portas dum claro dia!
*578 Meu Menino Jesus,
Salvador do Mundo, deixa-me brincar conTigo,
e ensina-me a ajudar-Te a livrar imos perdidos.
*579 Meu Sant'Antoninho das Moças,
move-lhes seus verdes devaneios cordiais,
a que me dêem da fresca água do barro de suas bilhas
e me matem de vez minha antiquíssima sede.
*580 Senhora das Sete Espadas de Dor:
Branca lâmina haveria de trespassar-Te - profetizou Simeão - pois o Menino estava ali como sinal de contradição: A-M.
Longas léguas fugiste p'lo deserto, com José e o Menino e Teu burrinho, pra o Egipto de Teu desterro, Mãe Saudade: AM.
Teu Filho ensinava na Casa do Pai e Tu buscáva-Lo, incansável, por todo o lado, Mãe da Terra: A-M.
Acompanha-Lo na via dolorosa, incapaz de suavizar, sob Sagrado Madeiro, as dores de Seu Santo Ombro: A-M.
A lança que tangeu a corda última do Seu bondoso lado, varou também Tuas entranhas de Misericórdia: A-M.
Ele tombou sobre Teu regaço e Tu, em lágrimas Te consumiste e toda Te condoías, ó Mãe Ternura: A-M.
Sobre frígida pedra tombou com peso e, em amargor, nem se T'indicia a ante-luz da Ressurreição: A-M.
*581 Repita eu também a angélica prece:
Trindade Santíssima, P, F, E S...
Em nome do Pai, Iahweh, do Filho, Jesu, do Espírito Santo, Paráclito, por Maria, Estrela e Guia! Amen!
*582 Fogoso e Santo 'Sp'rito,
Esposo de Maria Santíssima e Nosso Consolador, tomai-nos, a que nada nos falte.
*583 À vossa protecção nos acolhemos, Santa Mãe de Deus:
Reze eu à Mãe.
*584 Diga, a que desperte,
a portuguesinha oração:
Jesus, Maria, José! Alumiai-nos! Socorrei-nos! Salvai-nos!
*585 Jesus, meu bom amigo,
estais comigo.
Seja eu também conTigo!
*586 Coração de Maria,
íntimo a mim,
fazei-me a mim íntimo a Ti.
*587 Obrigado por mais um dia,
Senhor meu Deus,
Anjo meu da minha guarda,
sempre Virgem Mãe Maria!
*588 Fecha-se o Livro, solta-se o Louvor:
Plena é a Terra de Tuas maravilhas, Santo, Omnipotente e Bom Senhor! Hossana nas Alturas!
Criaturas aladas, louvai vosso Senhor!
Névoas, neblinas, regatos e ribeiras, louvai o Senhor!
Anjos e meninos, louvai e bendizei o Senhor!
Santos e Mártires do Senhor, louvai eternamente o Senhor!
Irmãos sofridos, louvai constantemente o Senhor!
Porque imensamente duradoura é a Sua Misericórdia!
Poetas, aedos, bailarinos e músicos, cantai as minuciosas belezas do Senhor!
Seja desmesuradamente longo o saltério do nosso Louvor dos Seus Prodígios!
Arquitectos, artistas, dramaturgos, cinéfilos, informáticos, jornalistas bendizei o Senhor!
Urzes e giestas e estevas e tílias e lilases, fremi da apofântica alegria da grave presença do Senhor!
Aragens, brisas, fogueiras, aclamai a plenitude do Senhor!
Ventos, raios, tempestades, gritai o Senhor!
Répteis, peixes, mamíferos, batráquios e animais domésticos, alimárias todas, bendizei o Nome do Senhor!
Luz da manhã, aclama o Teu Senhor!
Pedras e terras, explodi de santo Louvor ao Santíssimo Senhor!
Noite da solidão, cale no teu fundo coração o Louvor do Teu Senhor!
Sono e vigília abriguem sob benévolo manto os humanos ânimos dos que o Senhor ama,
pra que, com correspondente amor, louvem, bendigam e exaltem Seu Senhor!
Cansaço, fadiga, stress e exaustão nos entreguem mansos no Senhor.
Assim em nós brote Seu justo Louvor!
Flores, verduras e florestas, mares e nuvens, esplendei do Senhor. Seja eterno, em vós, Seu doce Louvor!
Das alegrias e dos sorrisos perpasse a graça imensa de quem louva e habita Seu Senhor!
Poderes, Bondade, Hostes d'Anjos, Arcanjos, Querubins, Serafins acrescei, hora a hora, a Glória do Único Senhor!
Assim aumente o Coro do Louvor d'AQUELE QUE É.
Luzeiros, astros, sóis, estrelas e claridades anunciai por todo o lado a infinitude da Bondade do Senhor!
Seja essa vossa eloquente expressão grato louvor ao Providente Senhor!
Jesua, abraça teu povo na paz! Encaminha-o, passo a passo, na senda do Pai!
Maria, Mãe Bondosa, guarda teu povo no Coração do Filho, que é também Coração do Teu Coração!
Na plenitude consoladora do Espírito de Amor, pra todo o sempre, Amen!
Joséph solidário, defende a Tua Igreja, Madre e Mestra, Amiga de Maria, e fortalece-a para as tarefas pacificadoras!
Seja o Altíssimo Senhor Notícia Nova de cada nova, alta antemanhã! Novidade absoluta do inteiro Reino de Amor!
Miriam, Esplendente Serva Eleita de Iahweh, Glória de Israel, Honra do nosso povo,
Porta da Porta do Céu, Mãe da Terra da Paz!
Abriga-nos, pois sempre tens, em nós, Teu Puro e Claro Olhar!
Segurança de tuas portas, Jerusalém! Rochedo de nossa Salvação, defende e nutre teu povo na paz,
Abscôndito Senhor.
Que em Teu só Nome depositou confiança! Tropeços, ciladas, embustes, venenos não temereis,
pois o vosso auxílio vem do Nome do Senhor, O a Quem ventos e mares dóceis obedecem!
Que fez os Céus e a Terra! Ele, em Quem nossa vida não acaba, antes se transmuda e se prolonga sem fim,
nEle, o Vivente!
Como Tu, perdoe eu infinitas vezes, Senhor, pra que Tu me perdoes também.
Como Tu, ame eu com todas minhas fibras d'alma, com todo meu entendimento e força, de inteiro coração,
pra que Tu sejas constante Amor meu e meu Refúgio!
Como Tu, desarme ódios e mentiras, com gestos de perdão,
pra que me torne, verdadeira e libérrimamente, filho de Deus.
Abrace-Te em Tua bondade! A que tornes, repleto, em Ti, meu coração, infinitamente mínima porção
de Teu Coração Aberto.
Pois, também Tu por mim morresTe em cruz, Jesus!
A exemplo de Francisco, o Irmão, onde houver peso leve a leveza incólume do Teu sorriso,
vezes sem conta violentado, ternura nata de Teus Imos golpeados!
A que do Orbe Todo se surpreenda Tua Face, Esplendor Admirável de Tua Verdade, ó Pantócrator!
Beleza iluminada que sacia todas as humanas fomes, mão firmíssima, que ampara nas humanas hesitações!
Único Porto Seguro dos atribulados.
A que de todas as provas resulte mais forte, no peregrino, o Amor por Ti, Deus e Amor!
A que eu não esqueça nunca o pobre Lázaro... Tenha abertas para ele, de par em par, as portas da choupana!
A que Tu, Senhor, tenhas igual compaixão de mim, e assim alcance
Tuas Moradas Benévolas, do Pão, do Leite e do Mel!
Jesu, Filho de Davi, reencontra Teus cordeiros desnorteados!
Traz a Teu Redil mesmo aqueles que magoam Teu Santo Rosto, e desatinam, Boníssimo Pastor!
Teu entranhado Amor se dê em pródiga benção, acolhedora até daqueles
que se esquivam da Ternura Amiga do Teu Ombro!
Jesus mansíssimo, humílimo de coração, fazei meu coração semelhante ao Vosso!
Pois ligeiro é Teu jugo, como algodão em rama Tua carga, e pacientíssima,
até aos últimos limites dos milésimos de segundo da nossa respiração, Tua bondosa expectativa em relação a nós!
Que por nada deste mundo te cambiemos, Amoroso Deus!
A Teus pés entreguemos as angústias e alegrias, as esperanças e as desesperanças deste nosso mundo dividido!
A Ti deixemos as inteiras mágoas e injustiças, as árduas tribulações dos filhos Teus!
Dá, a cada um, quanto mais lhe falte, pois sabes sempre prover a seu melhor! Recolhamo-nos a Teus Átrios Santos,
Senhor Deus do Universo, onde Teus Anjos Musicantes destilam excelsos sons e mirra e aloés!
Lá saciados da Palavra da Vida, juntos entoemos 'ternamente novos hinos de Louvor!
A que, p'los intérminos milénios, nos cubra e salve Tua Benção!
A que, Lá, transborde o Vaso do Nosso Coração, Beneficente Magnitude de Teu Amor!
A que, pra todo o sempre, sobre nós derrames Teu Favor!
Deus de Nossos Pais e de Nossos Avós, todas as gerações Te louvarão!
Jamais esqueceremos: Que, nos amaros transes, nos defendeste sempre:
Que nos acompanhaste na fuga do Egipto da vida:
Que nos saciaste na Terra da Promessa:
Que nos endireitaste os ocos ossos:
Que exalçaste, em nós, Tua Santíssima Face:
Que nunca nos deixaste confundidos ou gorados!
Um Obrigado eterno a Ti, Bondade Imperecível!
Um Obrigado eterno a Ti, Amor-Sem-Fim e Fim-dos-Fins!
*589 Amo o Coração Imaculado de Maria e espero na Sua protecção.
Que mais dizer-Te ou rezar-Te ainda a Teus pés, Companheira e Mãe? Que sob Teu Infinito Manto de Bondade
acolhas hoje e sempre teus amados filhos, agora em ódios transviados: Que eles queiram, amem e vivam
Tua dulcíssima paz: E proclamem com júbilo imenso a mesma Melhor Paz, a de Teu Filho Único, Teu Coração!
Imaculado Coração de Maria, venha a nós o Vosso Reino de Amor!
(O fruto do amor é o serviço, o fruto do serviço é a paz...)
X) cantos de intervenção
*590 Milénio novo, sujo mundo:
Duros americanos cow boys, no pragmático afã de meter "malvados" na ordem, decidem
acabar de escalavrar o que ficou do caos do último, balcânico cataclismo profusamente noticiado.
Pra quando será o eles substituírem o gatilho de acertar errado p'la ternura amiga do coração nas mãos?
A fim de reporem os caminhos interrompidos por pontes afundadas.
-
*591 A distribuição do pão:
Bem se afadigam lavradores ao sol escaldante lançando no ventre da ávida terra a pequenina semente,
que, uma vez morta, vivifica. Bem se dão, incansáveis, as ceifeiras, com suas foices, a golpes certos, à seara.
Bem trabalham na eira os malhadores, destrinçando da palha as loiras espigas e das loiras espigas o fino,
terno grão. Bem se movem o moleiro e do moinho as mós, que esmagam o que será fina farinha.
Bem se afanam a desoras atravessando e aclarando a noite padeiros, que já amassada ao lume
levam a última fornada. Bem se inquietam motoristas e seus ajudantes, que, nas carrinhas,
em largos cestos, transportam a alegre benção do começo de cada nova, alta antemanhã.
Bem cuidam comerciantes, que abrem bem cedo as portas para dar, por sujo dinheiro, o esperado pão.
Bem se ocupam eleitos governantes planificando dos orçamentos da geral distribuição comum.
Nós, cristãos, rezamos a Um Pai, único a todos, para o pão nosso quotidiano nos dar hoje.
Porém no planeta da fome distribuem-se armas, e falta a muitos o esforçado pão, que ao Pai pedimos.
Homem de boa vontade, olha, olha o pão. Quando o partires, ainda que penses que ninguém te ouve, diz obrigado!
Talvez que, enfim, do humano coração magoado, nasça prenhe grãozinho de cereal que se multiplique.
E chegue às bocas ávidas dos irmãos que desesperam, o pão comungado, o tão gostoso pão da paz,
o pão do companheirismo, o pão da ampla mesa, o pão do amor abundante da inalterável e recôndita alegria.
*592 Nova poética própria:
É do sentimento do tempo, como escrevia Giuseppe Ungaretti, que acompanhamos
a inquieta palpitação do humano coração, e daí registamos lapidarmente poética notícia.
*593 Zeca:
Em Setúbal, na tarde lenta, recostavas-te p'los bancos corridos da CGD, à Luísa Todi, esperando caísse
na tua magra conta alguma pensão, ou tença, das usualmente concedidas a famintos de paz. Tinhas o ar
simples, e acossado, de algum anónimo kosovar recém-chegado a exílio, a quem são dadas roupas lavadas,
sabonetes, pasta de dentes, toalhas e alguns desodorizantes. Mas fizeras alto soar teu grito desperto de clarim:
Um rio de sangue, do peito aberto, sai! Pague-se-te já agora a conta certa: Se ao fim caíste, faça-se-te
em teu talhão florescer as vivas flores vermelhas da madrugada, vulgo cravos... Pra que, pra sempre,
nelas vibre a canção somente nossa da mesmíssima chã certeza, que aqui viveste e hoje és.
*594 Cada vez mais perto do fim,
sem professores e sem mim.
*595 Feliz gente: Com duas realidades. E eu sem ter nenhuma:
Então, Zé, em que ficamos? Em que planeta? Certo, incerto, melhor, pior,
quejando o habitado na sequência dos dias repetidos do eléctrico. Em que chão,
se te deslocam supostamente os pés? O caso é simples: Cá estamos. Mas não somos daqui. Onde vamos?
Isso não sabemos de certeza certa. A que viemos? Talvez a entendermo-nos de francas palavras.
O que conta? Naturalmente a inteira verdade. Boutade ou angústia tua, de tua poesia concluo: Nem terra nem céu:
Nem terra, porque perdidos no grande encontramento: Nem céu, porque cegos nos vemos para a terna tenuidade.
Nosso só devera ser teu fundo grito. E contudo descremos, descremos de tudo e mesmo da mais elementar
e crua das verdades. Que mais dizer? Porque vivos somos, enquanto e não, inteligentemente cuidemos.
*596 Viver estranho e isolado num mundo que se pretendia habitado e harmonioso é viver suicidado,
viver morto vivo, num mundo de nado-mortos:
Os jornais não dizem: O Reino de Deus também na China: Nas prisões de que não
se sabe onde: Nas anónimas gentes das aldeias de desnecessário policiamento:
No cansaço dos que não querem armas: Nos que suam seu pão, parco sem palavras. No acossado nidificar
do amor. Mas a face do Cristo volta-se de imensa para todos os lados, à envolvente bancada do circo universal.
*597 Vitor Baptista:
Foste mesmo o maior, na voragem dos dias. O coveiro te olhou sublime, autêntico e camarada.
Sob a cinzenta farda, sob o decente nó de gravata, ao padre-nosso murmurado do cura, te reconheceu
talqualmente dentro, como és, seu e meu irmão. Lançou-te então a primeira pazada. Tiveste, uma vez, a tua mãe.
Quase vinda a manhã, por Sesimbra do sol, o Jaguar estacionavas ao pé do bar a fim de beberes com a malta
dos derradeiros copos. Vitória Futebol Clube, Lisboa e Benfica, Desportivo Estrelas do Faralhão, quiçá Alguidares
de Cá, concitou-se maralha à tua volta, em feliz sociedade. Logo os jornais venderam uns fartos números, à custa
do teu nome em caixa alta e da tua fotografia em primeira página, aquela em que estás atirando duro para o golo.
Tinhas achado de vez o teu adereço de orelha. Olha, olha, como louco varrido, quanto baste polido, em Amora ou
em Setúbal ou no Montijo, galgas alto sobre teu cavalo, tão inteiro deus Apolo, p'lo estádio fora e p'la eternidade além.
*598 Questão que tenho, de mim a mim, comigo mesmo, Portugal!
Ilusão madrasta que me mata, condição em que me morres meu lugar.
Aproximaste de mim a irreal cadeira, a que me acomodasse.
Diluíste, assassinaste, monotonizaste do mais variegado cambiante de meu dizer o rigor. Fiquei de pé,
e, mudo como sempre, reencetei a fuga, p'lo inelutável caminho. Era fado reencontrá-lo e tropeçar nele
o remorso de teu corpo irmão jactado ali à vala. Do deserto tóxico, da infestação e do desastre, clareava
teimosamente, dos domésticos microclimas a fina tonalidade da atlântica ou quási mediterrânica feiticeira luz.
Uma e mil e uma vezes fiquei ébrio desse quê. Uma e mil e uma vezes ficarei de novo ébrio, literalmente ébrio.
Até que, poalha cremada, que desde já vou sendo, todo na dita luz me dissolva e a algures vá.
*599 Capazes de firmeza, sem cair no ódio,
e de compreensão, sem cair na conivência com o mal:
Dom Helder, deixaste
esta selva ou mundo cão,
império dos jagunços do cifrão,
e foste gozar férias a O Alto:
Que tais achaste por aí teus mui amados pobres?
*600 A Xanana:
Verdadeiro me abraça teu coração inteiro, Avô Crocodilo, Loro sa'e, Timor.
*601 Quando chegará o dia da tua festa fraternal?
Essa aurora em que te ergas dançando, jovem negra? Quando, de teus íntimos ritmos,
celebrarás o perdão do amor com lágrimas de alegria? A humanidade te abrace, alma irmã.
Do escuro que 'inda dura, aconteça realçar-se teu sonho, tanto tempo adiado! Ao calor do novo sol
te rebrilhe, de esplendor, a escura tez! E em festa te envolvas e em pó de veraz luz à clara paz ascendas.
De vez te reencontres, e em novo amor exultes! Alma angolana, enorme coração de África,
tão portuguesa alma gémea, terra encantada e mágica, mártir pátria dos confins!
*602 Hoje é o tempo
que nós humanos quisermos.
-
*603 Fale português o Oriente da Vida:
Maravilha fatal da nossa idade, ó Sebastião:
Que irrompas da bruma cavalgando:
A flamejante espada, em mão, e, em tua armadura, pétrea e brônzea rosa do deserto,
sagrado da reviva Saudade, te reergas: E os corações, dos teus, à peleja do Espírito, arrebates!
Conquistem-se-te enfim, a tua voz rendidas, das praças as hostes do inteiro orbe, a nova hora tidas:
A teu largo ânimo se dêem, e se abriguem:
E a ti ascendam, submetidas d'alma, mais aéreas do que volantes bandeiras!
E cada cavaleiro teu firmemente se anime, movido da sobre-humana ternura dócil de teu mando!
E, a teu manso fôlego, heróico de benignidade, eclodindo da névoa, qual nova matéria,
o Império último do definitivo início espiritual do Amor se indicie:
Final Fim Sem Fim:
Pacífico, benévolo estremecer, da universal, preclaríssima plenitude!
*604 Meu país desgraçado!
E, no entanto, há sol em todo o lado!
Meu tão doce país!
Entretanto, vil tristeza
te rói a gratuita alegria,
minando-te a raiz.
Meu tão alto país!
Mas apagada tristura,
que imprecisamente nomeaste de saüdade,
te deixa nesta feira cabisbaixa,
das ilusões mesquinhas, sanguinárias,
vãs vaidades que amarguram
a graça singela,
de sem óbvias razões seres feliz!
*605 Onde o verso escondido de Deus,
amigo e poeta Miguel Teixeira?
É como se eu ou tu nos perguntássemos
se, vivos, mortos 'stamos
ou se vivos só depois de mortos...
Metafísicas subtilezas!
*606 Nun'Álvares,
move já teu destro firme braço
e em força em mão límpida e erecta a espada da vitória.
A que se realize, 'a sempre livre, o sacrossanto Portugal!
*607 Cada pedra sobre cada pedra:
Acaso ressurgiu algum Ceausescu, agora escudado em vãs razões do vil cifrão,
mais sua cinzenta, expedita camarilha de sinistros?
Clowns ou clonados, tão sem rosto são, implacáveis em seus obscuros intentos,
hábeis articuladores da lógica brutal da nota verde.
Qual dentre eles se lembrou,
ou todos à uma se lembraram,
as mãos empapadas em sujo óleo de dinheiro,
de atirar à cidade que desconhecem
a ferocíssima ideia de planear arrasar o nosso belo estádio do Bonfim?
Oh, o finíssimo papel moeda, esse dito papel, de que vos sabemos devotos devedores,
a que subjugastes todo o vosso vão juízo insano!
Mas pergunto: Quereis então demolir essa aérea varanda, esse lugar de belas e luminosas vitórias,
esse estádio, repleto do recente, próximo e distante, glorioso memorial?
Mais pergunto: O que vos pesa mais, o volume da carteira ou a consciência?
A consciência do que é ferir de morte quanto é bom, e puro, e aéreo, e livre, e sublime,
porque erguido com o amargo suor do humano trabalho!
E ainda volto a perguntar: Não serão vossos cálculos ao haver da mais pura infâmia,
ante a limpidez da manhã, a doce manhã da lide, a verde manhã da verde relva?
Acuso-vos. E convoco os media: Jornais, emissoras, Tv: Apontem um por um os desalmados,
com clara razão e pura voz, mais seus tenebrosos planos e estratégias. E desafio-os:
Esmaguem, destrocem ou mandem outros esmagar, destroçar, e destruir completamente armações,
vigas, estruturas, alicerces, andaimes, cabinas, camarotes, placards, luminárias, mastros e bancadas!
Que não se alcatifam assim, nem se aniquilam, os sorrisos limpos das crianças, dos jovens,
dos atletas, dos anónimos adeptos, dos obreiros, dos trabalhadores em geral, e dos poetas.
A frescura nimbada de sol, vivo nos olhos novos e redivivos deste povo que está em Setúbal,
esse sopro alado, que freme sobre o esplendor aclarado da verde relva e que a almas converte,
esse íntimo sorrir de quem a ar livre constrói a felicidade de viver e respirar, nenhum desígnio vosso esmagará.
'Inda de minha rua te contemplo, nobre estádio, acolhedor lugar das brandas emoções!
Queiramos nós, homens povo, e esses tais senhores, das decisões maquinadas, não passarão!
Alçado às estrelas, estradas largas do porvir, belo e acolhedor estádio do Bonfim,
obra de avós, obra que não renegamos, sustentado estás, firme em teu equilíbrio alado.
E continuarás lugar das mais saudáveis alegrias, tais as dos que, com graves mãos de paz
e amor, em outro tempo, ao alto sol, como hoje estás te levantaram, cada pedra sobre cada pedra.
*608 Covardia:
Depois de ver, na Tv, um documentário sobre o Dalai Lama e as atrocidades contra o povo tibetano,
acabou por afossar-se sob o edredão, não sem antes engolir, inteiro e ponderado, um décimo de um Nozinan/25.
XI) caleidoscópio
*609 Fazia tal resistência à propaganda
que se alguma vez surpreendesse algum famigerado produto já antes publicitado não o comprava.
*610 Melomania:
Hábil decifrador de mil mensagens, fazia no entanto questão de não ouvir ninguém.
Só a linguagem musical lhe dizia algo. Passou uma vida inteira a sonhar ao som de vaga música.
Do sonho, de que se tomou absorto, só despertou no dia em se achou rigorosamente morto.
*611 Diotima:
Porque pousaste em mim o subtil beijo da beleza, resta-me mandar vir, sem aflitiva urgência
e em português fluente, com ou sem gás, tão somente e nada mais do que uma garrafa de água natural.
*612 Elementar, meu caro Watson!
Desde que, na manhã alta, abriu os olhos, e se vestiu até que, noite cerrada, foi à cama,
decorreu para ele um dia mais, em tudo normalíssimo e igual. Umas catorze horas se afez a inúmeras,
mínimas e especiosas lides - não forçosamente pertinentes para delas aqui deixar poética resenha.
*613 Resto:
Uma tesoura de mola, na sequência mesma do desastre. Dum tombo cai, o professor, um tinteiro entornando-se-lhe sobre a boca. Os ossos doídos, a uma faca de espaços. Finos fios de frio, fundando sulcos.
Uma rapariga a andar, com rosas rubras. Um som apenas som, a repetidas canções. Pensamentos entretidos
de vacuidade. Somos seres devastados, concluiu, ansiando por um dia bom, desde manhã à noite.
Ah, a perfeição! Estou-me nas tintas! Pública, república farsa! Mas haverá alguém que jogue jogo sério?
*614 Súbito som:
Abrupta presença: Algo que do fundo subsolo irrompe: Anjos ou semelhantes seres?
Trazem espadas caídas: Abalam e violentam dormentes disposições do obscuro peregrino em terra.
Abrem, ante si, seus acesos olhos, do vivo, benévolo fogo.
*615 Brinquedo:
Em seu balanço, o cavalinho de madeira, atrás, adiante, adiante, atrás, galga mundos e mundos,
de irrealidade e de montanha. Relincha, salta, retouça, cansa-se, estrebucha e detém-se, em desmaiada inércia
de movimento, até todo imobilizar no chão do estreito compartimento da sacada maravilhada do bambino.
*616 Dispositivo:
As só palavras fazem o poema, vibram nele dentro, de serenidade construtoras. Aparentemente
neutras, como entranhadas sob solo, são como pólvora da paz que, violentas, fecundam.
Delas, se resolve do relato o sentido, que prenhes impregnam: E estão aí: Sobem à superfície, a que se dizem:
Arquitectura a erguer-se a pleno céu: Será sua final resolução a emersa, difusa clareza de haver hoje?
*617 Gershwin:
Alegria de uma vida repleta a transbordar, ingrediente privilegiado da total, iluminada globalidade:
Repercute variada a obra diversificada: Nenhum motivo falta à universal carpete, amplamente estendida,
onde o menor elemento ressalta do todo colorido envolvente - aos atentos olhos e aos vigilantes sentidos:
Receptivos haurimos, ouvimos, vemos, tangemos, alcançamos, saboreando da inteireza sábia do mundo:
Imprimerie de exaustas passadas: Terrenas ou aéreas passadas: Corpo, alma, vida, matéria, forma
do sempre inconcluso noticiário do acontecer: Fundo dormente, onde a história se desenrola,
mal se apercebendo da aproximação ao final, feliz e inexorável desenlace.
(De uns rascunhos de um sonho, que ficaram em uma nota verde.)
*618 Elogio do sono:
Porque nos retemperas das manchas do olhar, nos induzes longe,
alçada, arqueada ponte através, regularmente.
Oscilamos entre o real mais real que albergas e o melhor despertar para a vida
a que, ofuscados de pasmo, nos lançamos.
*619 Como diria o Avelino,
é tudo uma questão de ritmo: Também, pra leccionar Filosofia,
se cuide de ritmo, arrumação, persistência, teimosia:
Um tema, cada hora: Uma pergunta, cada tema:
Como de um só problema, cada poema: De cada coisa, sua questão:
Uma de cada vez: Dum assunto, cada aula, cada sumário. E, assim sucessivamente.
Findo o curso das aulas e dos dias, concluída é a antes programada matéria:
Acabada e dada: Do múnus das diurnas meditações.
*620 Refeição de fim de semana:
Estávamos outra vez reunidos. Da mesa ressaltava de farta e viva cor, fresca salada.
*621 Conversa entre macacos:
Um pra outro: Não vejas. Outro pra outro: Não ouças. Outro pra outro: Não digas.
Intervém, concluindo, o imberbe filósofo: Por mim, isso sublinho.
*622 Porque, de descuidado, não deixas parar o olhar,
admirando das brancas rosas a pura, essencial fragrância?
*623 P'las íngremes encostas batidas de sol,
das oliveiras varejadas por grossas mãos caíam e se recolhiam, do chão de extensas lonas,
os últimos, rebuscados frutos. Ao calor do lagar, as prensas esmagavam das esteiras
chorando a massa do denso, pegajoso líquido. Dos caroços desfeitos em baga da azeitona esgotada e seca
ardia novo lume na lareira: Enquanto, gélidas manhãs, pra fundas talhas, corria fino e fluido fio d'oiro e óleo.
*624 Avisos a possíveis intrusos ou do outro poema pouco original do medo:
Cuidado com a relva!
Note que não pode calcá-la!
Cautela com o cão!
Nem lhe fale nem o pise!
*625 A lucidez da mulher de meia idade:
Extremamente acutilante, reduz a pó, por arguta luz natural,
os obtusos devaneios do poeta. Prá mesa, prá cama, pra os média o sacode - a ele, que,
de disperso e esgrouviado, acaba por cair em si, a seus limites de terreno bicho.
*626 Aéreos, aquáticos veleiros
fluem e fluem, não bem ao puro sabor de ventos e marés,
pois levam brancas, amplas velas orientadas por sábio pulso pleno de destreza.
*627 O acender das luzes nas grandes cidades:
P'la janela uma réstia de espaço arborizado. Soltam-se conversas desconexas:
Tanta necessidade e que de raivas, por esse mundo fora! Foi a sortes e ficou livre!
*628 Uma existência honesta, de cristal:
Ver, condoer-se, estar perto. E erguer mãos!
Ou pairar, nuvem de calças, sobre a sobre-realidade.
Reconciliação após bica bebida, ante a crudelíssima devastação.
*629 Nada há de mais belo do que um corpo:
Equilibrado, hora a hora, ao ritmo do fundo coração,
que ante a parede nua palpita leve e térreo, tangido, aéreo, alado e livre.
*630 O sonho reinterpela-nos.
Reiteramo-lo de cada altura que o lembramos, mas ele transcende-nos, prolongamento
do invisível, até onde nem supomos nem imaginamos. Lá, o que evocamos somos.
*631 A manhã sem nome,
os intervalos exasperados, trechos de casas, vultos, finos fios suspensos ante a extensão ar. Remergulha
o fosso o elevador, dor òr, dor òr, rodas dentadas, cabos, arestas, aço, embaralhados fios, vãos e desvãos,
degraus iguais. A disformidade obsessiva dos vinte e tal dedos. O suster da largura, sombra, abisso. E o que s'espera.
*632 Rodeiam-nos sábias,
desvairadas, absolutamente pasmadas, as eleitas crianças.
*633 Se, muita vez, na sem-razão da angústia, quebramos o oco do silêncio com palavras incoerentes:
Será que do futuro se repetem dos meses os dias extasiados e das manhãs a insólita, transbordante alegria?
*634 Cedros, pinheiros, asas,
as pernas voando no vento ar.
À mediateca: Dos poemetos a 'ridez.
Demasiado óbvias, excessivas escrituras.
*635 Infindáveis ruas
a percorrer exaustamente.
A não esquecer o irmão, o pai, a mãe.
A não esquecer esse outro. Está aí.
*636 Um dia
pegarei na minha leve bagagem e viajarei a longíssimo: Certeza que
me dá, em seu frescor, o matinal canto que sinto aflorar desde mim dentro.
*637 Aranha, aranhinha,
a tecer a teia! Ai, pai, ai, mãe. Miríades de entrechos de nada. E depois? E depois?
Aos altos saltos, quais ágeis galgos, folguem pujantes os jocosos palhaços!
*638 As andorinhas, aos pares, cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
suspensos do beiral, da casa onde eu nasci:
Aprendizagem dos gestos da ternura primordiais, ao calor de teu regaço, minha mãe.
*639 A retalhos recuperado, o poema:
Carne só carne, osso só osso, resíduo, resto solto, resquício, gengivas a que sumiram quase todos, de gastos, os devastados dentes.
*640 Foram prá guerra
e deixaram cá as noivas, de luto vestidas. Cumprida a tropa, regressam às origens.
Uns anos depois, chegam, crescidos, os meninos mestiços.
Vêm reclamar, por lei e sangue, do destino a parte que lhes cabe.
*641 Sebastião, poeta moço,
enquanto breve aqui estiveste viveste um lindo sonho. Ao romper da mansa aurora, vou buscar
por lá, nas florinhas esquecidas que povoam a tua Serra-Mãe, da canção que és o redivivo eco.
*642 A uma hora destas, fumando seu cigarrinho, em plena burocracia!
Lance fora a porcaria! Descontraia-se! Respire fundo! Acorde o dia!
*643 Vivinha da costa!
Do mar prá rede, prá barca, prá canastra, prá brasa, prá mesa: A pequenina sardinha! Humilde quão requintada!
Com salada e pimentos, com batata cozida por descascar, ou tão somente embebendo rude pão:
A temperar de fino azeite: À meia dúzia, enche de verdade tosca travessa: Precioso manjar de rico e pobre:
Com o sabor do condoído sal, ei-la que chega. Dela, a saciedade farta, portuguesa.
*644 A descoberta de uma "realidade", a entrada num mundo novo,
isso interessava-o prodigiosamente, mas era algo impossível de ser dito. (Dostoievski)
Um, saleta, padre, 'tá bem, em vós confio, thum paix, toth, love, bròda, tóvaritch, shalom,
mir, rauha, paz, pax, país, pai, abba, papá, pá, pace: Tout dire, du fond du coeur.
*645 Palmela, noite dentro:
Equilibradas arcadas de fundos alicerces: Ralos, cigarras, grilos - ou pirilampos? fazendo-se ouvir: Ladrar de cães: Submerso fluir de automóveis, longínquo e imenso fluir.
*646 Auto-retrato, em forma de glosa a Bocage:
Olhos castanhos, gordo, agreste cara. Meio torto de pés, alto na altura.
Aspeito incerto de alegria ou de tristura. Nacho dobrado a meio, feio, torto.
De ânimo vário, mas mais brando agora.
Co'a idade dado a se mover do coração ferido.
Com álcool não, mas de cafés matando os dias. A nenhum deus, dos da fama, dando culto,
mas a sorrisos gentis sempre sensível, digo, a ternas musas feminis.
Quási só pra confêsso tolerando os padres. Eis Ochôa, a quem talento à borla dado
serviu certa manhã de devaneio: Não sonetando, mas, de si a si, a sós tratando.
*647 Jardins d'água e flores, onde retine colorido o chilreio
das múltiplas avezinhas: A vendedora das ditas, canoras, diminutas criaturas,
achou assim maneira de, embora 'inda aqui, emigrar de vez.
Tal fuga lhe admiro, sempre que ali acaso passo apressado da redutora sequência dos sincopados segundos.
E se com ela estabelecesse sociedade? Que um outro, melhor poeta, aceite tal sugestão.
Mas onde, aonde, essa Lua, essa Estrela, essa Chymera?
Muito simples: Dobrada a esquina, passado ao fundo um arco, ao Centro Comercial do Bonfim, loja 6.
*648 Muros, pinheiros, asas,
o vento, as narinas, as frestas dos dentes, mancha z, z um, z: A zonas, a terra:
Os largos ombros: Ah, o poema, o canto poema, enquanto feliz achado de palavras!
*649 Onde cada um pode olhar-se e pode alegrar-se e pode reconhecer-se:
Os versos à medida do teu nome ouço-os (e digo-os) pra repetir-te, repetir-te.
*650 O pelourinho azul que se ergueu na praça ampla
e fotografei dez vezes dez anos volvidos:
A sopeira do lado a cantar arrumações. O Brasil. E depois?
Velhos, as barbas, os socos, dos pés enfiados em meias de lã.
É ver o correr do azeite! Inspiram rapé profundamente.
Tantas cosas han muerto, que no hay mas que el poeta.
*651 Na fonte está Leanor,
a encher um pucarinho.
Mas que saudades dos montes!
Ela à fonte, e eu sozinho.
*652 Cai em meus braços, cabecita tonta,
que logo te dou de meu mais secreto mel.
*653 La sandalia fresquísima para mi pie desnudo:
E caminhar!
*654 A barba por fazer,
quatro cafés bebidos, quatro rascunhos ao raiar do dia.
Quatro rascunhos não, com este, cinco.
*655 Contigo,
os melhores, os mais ternos arrebatamentos, meiga pombinha.
*656 Os pobres de Cristo
estão aí, lançados nas valas das grandes cidades.
Com os pés chagados, mal conseguem andar.
Aí te esperam.
Por onde quer que vás, neles tropeçarás - forçosamente.
*657 Moveu-se o automóvel. Mas não devia mover-se, não devia.
Pois me deixou a sós co'a minha morte.
*658 Queres ver?
E segurava, entre dedos, o anel de brilhantes, que, por um mero acaso, achara em plena rua.
*659 Diálogo ouvido um dia destes:
- Mulher timorense, porque levas em ombros um fardo tão pesado?!
- Não é um fardo. É meu irmão.
*660 A paz a fazer-se,
a paz a refazer-se, e aquática música em fundo de alegria.
Um som, e outro som, ocupam, monótona, a emoção. Um disco girando, um compasso,
um copo, um livro, um isqueiro, um poster, uma aliança, um fio e um relógio de pulso.
*661 Estranheza
existencial de entre si e outrem: Estranheza do jeito de não tocar o mundo.
*662 Alguém lia a raposa, de Silone.
Havia que matar a raposa: À machadada ou a fio de arma branca. Raiz do mal, da devastação,
do orgulho, da sedição, da perfídia, da corrupção, da desumanidade, do terrorismo e da ganância.
*663 Um quotidiano puro, de evasão:
Eis-me anónimo, e envolto do mistério simples do ser.
*664 As mãos secando, não caem estrelas:
Dos velhos caminhos o antigo afago. Deste dia que anoitece a cor apagada:
A cada tombo, mínimos, lentos, breves instantes exasperados:
Não sei se as palavras dizem ou atropelam o eu ser, mas existo do poema.
*665 L'art pour quelques-uns, le livre pour quelques-uns nous est inutile. Est-ce vrai ou pas vrai?
Os poemas, das recônditas sílabas, naveguem inumeráveis águas. Todos semeados de paz, cheguem onde
ecoe, do humano coração, célere resposta. Deixem-se vogar ao mare magnum dos desconhecidos ledores.
Das gavetas se lancem, quais redes, p'lo vasto mundo fora, em letra impressa, e recolham dos peixes
os obscuros cordatos movimentos na alta maré universal. Seja réstia de firme serenidade sua ressonância
no íntimo dos íntimos. E regressem, com o escriba, à quotidiana mesa do verbo partilhado, na exactíssima,
transfigurada fidelidade àquele mais elementar e fundamental acto de estar vivo, aqui, no amaro tempo.
*666 Se escrevo é por um imperativo que me ultrapassa.
Abria o livrinho, que trazia consigo para os tempos mortos, abria-o e lia ou relia quási sem parar.
Fazia uma dobra ao canto da página porque eram horas, fechava-o, e partia.
*667 Oh, a poem!
Cobras apareciam esventradas, por veredas de cabras.
Só, alta crescendo, a longe lua.
Só e alta erguida.
*668 Vozearia de creanças da escola perto:
O trânsito, agora mesmo.
Um 'scasso resto de rio, que 'inda vi:
(Fatal imobilidade.)
*669 Falar sem ter nada a dizer:
Uma palavra pode mudar o mundo? Duvido. Até que, um dia, os gestos dêem certos
quanto os versos certos possam dar. Deu um pontapé pró ar e espartiçou-se o caco!
*670 Comer da mão de Deus:
Domingo: Radiante diafaneidade da clara, tarda tarde.
Dentro, o vulgaríssimo som monótono do metrónomo.
Perto, o estádio borbulhando do anunciado prélio: Donde um prolongado bru-ah-ah em fundo.
Desprendem-se soltas as puras, febris vozes, portadoras de alegre e sã verdade.
*671 Signo mofino:
Senhor, toma meu árido "trabalho" de preguiçoso:
Premir teclas e teclas, poetar associações de acaso:
Exaltação do mais distante remover d'íntimas lembranças.
Reacrescer novos sentidos a antigas, reapropriadas palavras.
Mas estou amarradíssimo ao que me é imediato.
- Fólinho, sopra!
*672 Fátima, 1917:
Deu-lhes o nervoso com o sol e iam tombar:
Parecia então flores d'amendoeira baloiçando p'lo chão:
O sol deu aquela volta: Tremíamos como varas verdes:
Perguntaram aos miúdos pastores: Não têm medo?
Não, responderam, Deus Nos'Senhor livra a gente.
*673 Francisco da Irmã Natureza!
Ir à tua catedral, p'la máquina do peixe, com calor humano construída, é entrar de uma vez por todas no Paraíso.
*674 Chá com torradas, menina Inês?
Ó maravilha e verdade do teu tempo parado!
*675 De Norte a Sul,
de Levante a Poente, os pés assentes sobre o crescente lunar, vestida d'aurora
Te ergas, ó Fátima Imaculada, Rainha, Mãe, Senhora, mui dilecta Eleita de Sião!
*676 Gato em telhado de zinco quente:
Se não caça ratos, que faz aí o bárbaro gato?
Mimoseia o poeta com sua lânguida, preguiçosa descontracção.
Para que inscientes o admiremos boquiaberto relaxa.
Ao lustroso pêlo repõe lento e lambido brilho.
Por soez desfaçatez de actor exibe, 'inda noite, a pura cor.
Não vá o sol matinal despertá-lo à letargia.
Bicho, bicho, seja vário e imponderável teu poema.
Só fotografia nítida do olhar feliz, ressoe tua cantata de estrelas e vazio.
*677 Quais mínimas, miúdas formiguinhas,
as minúsculas letrinhas se encaminham, verso a verso. De grossos óculos necessitaria o leitor pra distingui-las.
Encaminham-se rigorosamente certinhas, linha a linha, contornando obstáculos de vírgulas e demais sinais de
pontuação,
que adiante se lhes estão. Até irem todas, ordeira e lautamente comer, à saciedade, do último, inesgotável ponto final.
*678 Como tensos acordes de violino,
dos versos do poema os sons se associam e expandem, sibilinos. Produzem,
ao ouvir atento de dizê-los o leitor, como que celeste música de esferas.
Truque máximo de prestidigitação do compositor poeta, que com eles joga, fazendo-os bulhar
de dissonâncias, contrastes, aproximações, aliterações e assimetrias em íntimo rimar!
Em bem distribuí-los concordemente, reside a nobre arte de o doce acorde ouvir-se.
*679 O obscuro indecifrável não existe:
Da ampla respiração da amplidão nascidos, quisera meus versos largos, libérrimos,
profundos, espraiando-se d'imensidade suspensos, duros da pedra e demorados.
*680 Alentejo, ai vastidão!
Seara de onda em onda de enorme mar.
Monte e monte, longa e largamente a perder de vista.
- A que nos desafias, gleba irmã imensa?
*681 Pórtico da Fé:
Cruel mouro ou régulo islamita a seu torreão, ou castro, as noivas cristãs, por lei de uso, sempre a si reclama:
Simples fiéis os noivos, o nome de Maria docemente subindo à flor da boca, em intérmina oração,
se armam rijos pra combate: A fim de resgatar do tirano as boas apaixonadas: Refrega crudelíssima se trava:
Em cada corpo morto celestial bálsamo a marial mão terna derrama: Logo revivos, a árdua luta refazendo, chacina
obram sobre a árabe milícia: Sangue ruim de se ver! Estrepitosos gritos! A pouso tornam invictos os cavaleiros da Fé.
Albergou desde então a ignota vila gentes cristãs, que Fé alto proclama em nome alto: Alfândág, Morada Boa da Fé,
que, a gente diz, das obras da luz sempre acrescida, os homens salva. Aos seus Maria, Mãe da Esperança
e do Amor, deu de volta as moças enamoradas: De sua mão, que benze e livra, encontra refrigério pronto
o peregrino. De tal povo são os que as altas moradas da paz, por que vivos lutaram, alcançam gloriosos.
*682 O vento mia, o vento mia, que irá no Mar?
Algum temporal desabrido, que atire uma barquinha, de aflições
de ganha-pão, pra debaixo de uma maior onda desalmada.
*683 Ai do lusíada coitado, o Nobre Pobre!
Com seu cachimbo, sua fatal doença, seu só livro de poesia,
toda a sua riqueza! Mai'la janela do sonho, que é mesmo seu melhor bem!
*684 P'lo sonho é que vamos
dentro do que somos até onde já fomos.
Onde habitamos e somos - só o que livres sonhamos.
*685 A vida é feita de nadas, de grandes serras paradas à espera de movimento:
De fadigas ignoradas, de cantares, gestos de entrega, mãos s'abrindo e afagando no encantamento cúmplice
d'olhares. De fundo cismar fascinada a solidão. Do manso pastar das boas alimárias. De zelos e cuidados
desmedidos, em anónimos esforços, nas lidas infindas, esquecidas: De ver brincar um menino e reviver em nós
o distante menino que já fomos. De aligeirar o olhar a o espaço aberto, e recolher, completo, o breve tempo
a cada dado. De se ser e se correr: Água de pedra de montanhas! De abrir olhos a o todo e o integrar
por misteriosa empatia à florescida obra. De pôr fim a cansaços, ao se acolher a o sono ou a oração.
*686 Gritos de árvores
com galhos despedaçados, gritos verdes da friagem de folhas ao vento trémulas.
*687 Tragédia
do homem vão que entra no estádio, quando do rigoroso piparote original do pontapé de saída.
*688 Quem me dera
que nada omitisse em meu registo! Que nada falhasse o meu poema!
*689 Caleidoscópio:
O silêncio do imenso espaço ou a polifonia das cores-luzeiro fremindo no seio do invisível. Hoje,
na antemanhã do novo dia, chegam a mim, mísero um, perdido num mínimo recanto do universo,
os sumidos ecos do escondido ser e seu quási inapreensível pulsar, que por milagre se faz gozoso verso.
*690 Notícia-poema-registo de última hora:
Fim, imenso fim. O dia outro de hoje ante a grande mão de Deus, imenso e emerso.
Um dia mais a conhecer manhã: Um dia mais a se fazer notícia: Meu maior poema:
Em leves sinais de vivo brilho. Na divina mão s'expanda e a longe soe, a acrescida música do ver.
Se fixe, firme sobre o nada, amável invenção d'ardor de sinfonias sob os dedos. Dissipe a noite, irrompa sobre a cal.
Do fulgor do ser, maravilhado se deixe - tão só do compositor-poeta o complicado jogo dos sentidos.
Ecoe excelente o colossal espectáculo do mínimo. Desenrolada eternidade, alento, voz d'imensidade, florido alvorecer.
*691 Praticar a modalidade:
Por tais palavras, rebarbativo conotava, com risa ou graça, o repetir do acto. Mas amor
mais do que em fazer-se, está em ser-se, e em si mover-se, absorto e alheio de enleado, d'amar
apaixonadamente possuído: Mais do que o substantivo o verbo. Mais do que a palavra o acto. Onde se lê amor
leia-se amar: Onde de amar se cuide, se cuide de viver maximamente possível o impossível: Se cuide e em ledo afã
se zele, como de cada um ciência é própria, em dar aí do melhor de si, certo e em tempo certo e em grato e iluminado
recolher das breves flores da luz a mansíssima fragrância, grato d'enlevado: Amar d'amor e de bem amar
se saber melhor amado: Tempo de um a um, tempo de par, tempo de dois num: Ânimo de ânimos, corpos dum corpo,
olhos dum olhar. Amar sem fim. Ou só morrer: E, assim outros sempre movidos de renovado modo,
revivos, renascer: D'amar e amar, perdidamente.
*692 Não há tusa pra tanta musa!
Tágides dos vagos devaneares,
pra onde ao incauto arrebatam vossos cativos olhares?
*693 Tu, só tu, puro amor,
os mil cuidados do dia de hoje esconde, e vem comigo vislumbrar o mar.
*694 Co'a calma as aves
pairam suspensas da lonjura. Co'a calma breves
passam, altas sobre a planura.
Rápidas m'enlevam e se desvanecem p'lo ar lavado.
Deixam-me saudoso do seu voado voo, antes sonhado.
*695 Breve teorização da poética escrita:
Reúnam-se as múltiplas palavras e líquidas fluam em absoluta consonância de reciprocidade.
Nenhum atropelo a seu sussurro - ou a sua submersa familiaridade - possa dar-se.
E assim emergindo concordemente, em celeste aura de envolventes esferas, ondas
de ondas se digam no acabado entrecho, só musical resultado, da terrena harmonia.
*696 A palmeira,
das palmas desgrenhadas a chuva e vento.
Sob si seguem longínquos reis poetas.
*697 O lobo-do-mar
investindo forte p'la ampla marginal,
a largo, longe vai, olhos mandados ao farol.
*698 Quero por força ir de burro:
Donde, aperrado à albarda, à força de estar morto me levante.
-
*699 Qual seixo interminamente rolado,
mil e uma vezes batido de vagas, o texto aí está, polido, escorrido, lavado,
transparecendo claramente, dele, os mundos do aquém e do além.
*700 Às avezinhas do amor
nada as separa: Dos límpidos cantos vibra o aconchego de seus ninhos:
Todo o tempo esquecido e extático se lhes 'svai: Na cálida alegria de se quererem bem.
*701 Grafiti:
RO-MA-RO-MÃ-O-PA-PAI-A-PÁ-PA-PA-PÃO-PA-PAI!
*702 Eu cantarei d'amor tão docemente,
em uns termos em si tão concertados...
Que a vã memória d'idos choros apagados
não poderá já mais nos ser presente.
Olhos, ouvidos, mãos, vozes às claras madrugadas,
repetindo-se e alçando-se, nos darão
d'enredos amorosos os enlevos - de quem vive de saudoso
ausente da Pátria, que certos indiciam brandos esgares.
Só d'amor feridos, doem-se-nos, de distantes,
os Eternos Pousos do advir... Aos quais alheios,
vagabundamos presos da palidez da ideia da Luminosa Estada.
M'nha Céu, continuemos demanda.
A Lá movidos, as tendas ou mansões d'alma aladas,
ao puro fogo do puro, livre amor 'nfim refeitas,
eu contigo al fim, sem qualquer morte ou término,
imos vivos âmagos incendiamos.
*703 Pedrinhas iluminadas
da clara luz deslumbrada do teu olhar!
Se tropeço distraído o poema interrompe-se.
*704 Dar pérolas a porcos,
e não passar da cepa torta,
mas antes burro livre do que cavalo arreado.
Antes solto pássaro que rouxinol na prisão:
Que a verdade só liberta porque dói.
Ou melhor: Muda-te a ti próprio, se queres mudar o mundo.
Ou, outrossim, Aleixo, prá mentira ser segura e atingir profundidade,
há-de trazer, à mistura, qualquer coisa de verdade.
Ou daqueloutra saída também tua: Eu não tenho vistas largas nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas lições de filosofia.
Ou daquela dica que em tempo nos deixaste, ó Sena! Pilriteiro, dás pilritos,
porque não dás coisa boa, cada um dá o que tem, conforme a sua pessoa.
Ou do bem antigo, português, dizer: Deus escreve direito por linhas tortas.
Ponto final porque o demais é moléstia.
*705 A dança do sável:
Esperar, quieto, distenso, um outro tempo.
*706 Fim de acto:
De gentes palmas ecoando da satisfação do que dos corações íntimo brada.
*707 Até que, enfim,
Verão.
*708 O fazer-se mundo
à minha volta.
*709 Reminiscência:
As velhas, faces róseas d'água benta, à partida da apanha da amêndoa:
- Leva mais toucinho, ó tu!
Ventres inchados, tensos. Rostos regelados, próximos, uns noutros.
Juncal, Valeflor, Lagariça, Vila, Bouças, Sabor, Inculcas, Eiras, Ribeira,
Vale da Porca, Eixo, Pedra, Adro, Luna:
E dar de escutar muros, a infinito. Distantes vozes grito, invioladas.
*710 Pudesse eu ser Controlador Aéreo!
Pra determinar aterragens, passagens e descolagens.
Asas e voos escapam porém a meu olhar:
Isto até porque, quer queira quer não, sempre há mais ar do que ar.
*711 Estrada de Santiago ou arte de marear:
Por estrelas até onde nem suspeito, por invisível mão, a além mim, bem ledo me transporte.
*712 Anjinho mau, que se salvou,
por lhe ter dado a mão o anjinho bom: Não é que o anjinho mau assim tivesse sido
desde sempre. Foram agruras da vida que o moldaram. A horríveis infernos
desceu e seu maior defeito era a aridez do egoísmo. Mas, certa manhã,
antes do nascer do sol, enquanto 'inda dormia, o visitou um amigo alado companheiro,
de feições femininas, a que por facilidade nomeámos de anjinho bom:
A ensinar-lhe a ler sua fim e seu destino: E não é que era u'a fim feliz!
Logo acordado, à fontana a jorrar água fresquinha foi lavar as asas e ficou curado de idas maldades.
Hoje em dia, o só problema do anjinho, que fora mau e agora é bom, é não saber que fazer da sua bonomia.
Esta história contou-ma cantando um argelino, poeta peregrino e trovador, que belas, brandas palavras entoava.
Acompanhava-o o doce choro do aéreo violão.
*713 Da aereza:
Aí estão os frescos ares, ao grande fontanário das donzelas.
*714 Estavas, linda Inês, em teu sossego, de teus dias colhendo doce fruito:
Aos montes ensinando, e às ervinhas, o nome, que no peito escrito tinhas:
Pedro, Pedro, suave nome o teu, nome de único amor meu,
nome daquele que é, para mim, mais do que o claro céu.
*715 Platão, Cristo e Paulo:
Em Atenas, o antigo, socrático sábio o etéreo das ideias apontava: Séculos depois,
já da Judeia, um Outro, O Irmão, O Amigo, íntimos ânimos de humanos incendiou.
De lá vindo, o de Tarso, no Areópago solta a clara voz e Ignoto Deus livre proclama.
*716 Agostinho:
A desertos abismos desce em descaminho: Instante,
de Mónica mãe a prece o silencioso Senhor ouve e atende.
A si cai Agostinho e a doce paz converso então declara:
Inquieto, insatisfeito o coração vagueia, só, perdido, errante,
e repouso não colhe senão quando em Ti enfim descansa, Deus de Amor!
*717 O de Assis, Francisco:
De oiro um sonho de restauro da Santa Madre Igreja
move-lhe os verdes, jovens dias: Pobre se assume ao que é, de Deus vestido:
A Natureza ama, que o conforta do frio e indigência, com'a irmão:
Arrastando-se roto, nu, em vil desterro, só sonha e ama:
O discípulo António destaca para sondar e dizer da Arca do Saber:
Seu total desígnio é tudo dar, nada ter, de Deus tudo esperar:
Morte amiga o conhece, exalça, acolhe, abraça, humilde em sua graça:
Em flores d'humo assumpto, todo ele é já Um Outro Novo Cristo Vivo!
*718 Maximiliano Kolbe:
Da Imaculada os cartuchos pródigo distribui da milagrosa medalha e até remotos confins de Miriam Esplendente leva Gran Sinal:
Da ignomínia do Shoa a medida funda toda bebe:
Em cinza se dá para que um amigo seu após si viva.
*719 Henrique, Navegador:
A cruz templária em pano cru das velas das barcaças, leve, à mão desenha:
Terras, céus, ares, mares, ventos, correntes, procelas e marés a rigor analisa, vê, especula,
estuda: Os rumos assinala aos que conjecturas de monstros de pesadelo nebulosos,
ao ritmo do claro navegar, por completo vão desvanecer: Eis que, do Infante enviados,
aportam, instaurando novo padrão de fé na terna claridade dos areais da chegada!
*720 Alma até Almeida!
Encorajava-me o pai. Que acabou por Coimbra.
*721 Ó tempo, volta pra trás!
No escurentado arraial tio António suspirava.
Agora tem o tempo todo.
*722 Tenho ali um docinho para ti!
Avó Leonor chamava-me à parte à quermesse, com seus desvelos de seda.
Hoje pra lá me atrai ainda, desarmando-me com o mel da ternura.
*723 Putin:
Conheceste bem planos, intrigas, perfídias, estratégias.
Eis-te hoje, em teu mais puro à vontade, governando,
para o reacender da antiga alma, tua pátria, a excelsa, nobilíssima e santa Rússia.
*724 Mário Soares:
Se algum argumento ainda te faltasse,
pra, no pátrio jardim, seres um dono e um senhor, achá-lo-ias.
*725 João Paulo II:
Sob sombra amiga do Misericordioso,
orientas a ignoto porto de Pedro a frágil barca.
Nenhum dos que te pesam é estranho.
-
*726 Bush:
Reúnes as condições para o profícuo policiamento do planeta,
mas esqueces, entretanto, aí, na Mãe América,
o grito e as sagradas razões do último dos condenados à morte.
*727 Juan Carlos:
Toda la sangre hispânica, das quixotescas venturas, vela tua firmeza.
Sóbrio e igual, empreendes a milésima tentativa de concitar à razoabilidade
sanguinolentas mãos terroristas.
*728 A santidade, o amor, a paz, o sonho, a natureza...
(Excelentes temas pra um livro de versos.)
O certo é que o poema nasce do coração.
*729 Caça grossa a NE:
Gamos, gazelas, javalis e lebres, surpresas e encantamentos de meu irmão Jorge.
*730 Nevões de amendoeiras florescendo,
cegai-me e alumbrai-me o gasto olhar!
*731 Calma pescaria:
Barbos, pargos, bogas, sáveis e demais habitués de água doce
a anzol ou rede cativos se deixam.
*732 Golfe:
Amigo Neves algumas acerta das vãs, secas pancadas.
*733 Motonáutica:
Campeão reformado, Carolo velocípedes assiste, lá pra o fundo da Luísa Todi.
*734 Vi uma noiva entrar pra um automóvel,
em seu esguio corpo sublime,
com ela me arrancando a depressivo sonho.
*735 Uma passante:
Jovem escuteira, de mochila, pisa, leve, a terra e alegre vai: Até onde meus olhos não alcançam.
*736 Da lógica dos sonhos:
Terá Freud previsto uma não-absurda relação entre ovnis e fósseis?
*737 A uns noivos:
O venturoso sol pra vós sorria sempre, p'la vida além!
*738 No quarto,
onde diante da luz escrevinhava,
um visionário Cristo, fixo à parede, acompanhava-o nos menores movimentos.
*739 Ise,
ver (e ser) o fluido, exalçado ar,
o benfazejo ar, à fonte fria,
árduo e especioso, acolhido ar
da santíssima graça. Concreteza d'ar,
à rebentação da água libérrimo!
*740 P'la manhã:
Intérmino chilreio!
Universal Louvor!
*741 Ao entardecer:
Rescendentes tílias, etéreas brancuras de flores de tília, odorífera plenitude.
*742 Anoitecendo:
Arbóreos reflexos, desmaios de cintilações múltiplas, vivazes luzeiros.
*743 P'lo firmamento:
Estalam, espartiçando-se, as mil estrelas.
*744 Antemanhã anterior:
Sons de chuva, luz crua a raiar, quieta melancolia.
*745 Meio do dia:
Pletórico, como que ensonado sol, do acordado sonho das mansas vitórias.
*746 Meia tarde:
Ao calor, o odor a corpo, suor, corpo de suor, sob a frígida água.
*747 Artérias
adentrando-se borbulhantes ao fogoso coração!
*748 As 4 estações:
Primavera: Pura rebentação do corpo do poema.
Verão: Sazonado, recolhe-se cadente fruto.
Outono: Ténue decadência: Amarelecida face, empalidecida ideia da vida.
Inverno: Crepita íntimo lume ao chão do abrigo.
*749 Canoagem:
Contra o rebentar da água, na canoa dos versos,
contra a anomia das mornas correntes investe, remador!
*750 Montanhismo:
A pulso trepo os aéreos, íngremes espaços a que me dissolvo.
*751 Operário em construção:
Tijolo a tijolo, sobre o solo, encho do sólido sol o raro livro. Andaimes sobre
andaimes galgo, à exaustão, até que porção nenhuma falte dar de meu esforço.
*752 Arcanos do meu coração alquebram-se
ternurentos p'la cidade, ao deparar com as anónimas varredoras camarárias,
das batas verdes. Cedo em suas lidas alindam mais e mais as ruas do poeta.
Abrindo assim nupcial passagem à divina brisa de asas leves.
*753 Hipismo:
Saltar a cavalinho obstáculo após obstáculo,
capaz de chegar a repouso à branda pradaria,
a que, du coeur, o sobressalto cesse.
*754 Que graça haverá
em cegar o touro contra o vermelho cru dum pano e por fim lhe desferir férrea estocada?
*755 Alpinismo:
A claros cimos aspiro, e nada mais me é dado além do ar!
*756 Asa-delta:
Vogando por sobre montes, quase me esquece que terei de acabar por pousar o pé no chão.
*757 Esqui:
Sobre neve flui meu não poema.
*758 Natação:
Água-Mãe me circunda e me abraça. Alenta-me, aleita-me, agasalha-me.
*759 O amante de dicionários
palavrinhas uma a uma esmiuça em busca da Palavra.
-
*760 Voleibol de praia:
Tu cá tu lá com a bola, bola não bola,
bola aquém ou além rede,
tombam ao puxanço sobre a areia
os tostados corpos.
*761 Basquete:
A alto cesto voa o negro atleta, e alto, bem alto encesta, pontuando.
*762 Já a seus beirais voltaram
uma outra vez as andorinhas, mortas de saudade.
*763 Almada, milénio novo,
exalta-se S. João!
Canta e ri, alegre povo,
pois vences lutas do pão!
Almada, milénio novo,
alegra-se com S. João!
Que afã folgado, o do povo,
em festa, luz, ilusão!
Almada, milénio novo,
festeja, a cor, S. João!
Vá longe, longe, meu povo,
d'arquinho em luz, e balão!
*764 Um 10 de Junho:
Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. E Setúbal, da Praceta perdida, sempre igual.
*765 O gordo tubarão das mil aparas
peixes múltiplos em cardume abocanha num só tempo.
-
*766 Filatelia de temática ornitológica:
O nascer e o morrer da luz as aves todas cantam dos selos das cartas enviadas ao Deus dará,
cartas que, como as ternas avezinhas, vão voando das mãos de irmão Francisco, o Irmão Universal.
*767 O espeleólogo:
A fundo a si desce, por obra e graça do fundo sono.
*768 Nu,
transido de frio,
na noite densa,
envolve-me o bom Deus:
Todo me envolve e me agasalha. Em mãos me tem.
Mísero embora, entregue estou, protegido e amado.
*769 Os ares outros,
à fonte fria, os brandos ares
outros, da fonte dos castanheiros
e das moçoilas, a que descuidado desço.
*770 P'lo bar aqui mais próximo:
As electrónico-líricas jovenzinhas verdes de todos os comuns dias, do liceu e da praceta,
das pastilhas elásticas, dos cafézinhos, e dos entretidos jogos de azar da mesa da janela,
por horas de saudável pasmo, regional, nacional, internacional, oh, estas horas que céleres voam!
As jovenzinhas, dizia, conhecem-me mil vezes melhor do que os famigerados, consabidos
folhetinistas das gazetas, concelebrados corifeus literários contratados, da acomodada,
nossa praça, de eufóricas, curtíssimas, enevoadas vistas.
*771 Gaivotas bicam peixe
à flor da água, enquanto do Sado se azulam leves ondulações de solto vento.
Ante os largos espaços, abrem-se-me os espantados olhos,
que fremindo do novo esperam desmesuradamente.
*772 Ise, ver e amar os longes ares,
à fonte fria dos cafeeiros.
*773 Ai linda flor!
Ai fresca rama! Ai neve flor! As aves todas cantavam d'amor!
Ai bela água! Ai verde rio! Ai dulce air!
*774 Cantiga:
Que chorades, amiga,
à fontana fria?
Amores hei!
Alba, e vai lieiro.
Que pranteades, amiga,
à fria fontana?
D'amores vou!
Alba, e vai levaando.
Amores 'mpeçados,
sem eu sonhar sua fim,
choro 'a mim!
Alba, lieira.
Amores, que me mentem,
muito mais do que eu digo,
pranteio 'migo!
Alba verdadeira.
Ó amores, mal amados,
mal findos, em vão!
Alba, asinha.
Ó amores, desgraças,
de meu coração!
Alba, 'svoando.
*775 Branca arquitectura me visita,
de vítreas, férreas, pétreas, aéreas estruturas,
a aureolar hora efabuladas!
*776 Santo António, meu santinho,
sábio santo dos doutores,
ensina-me sã doutrina
e aceita meus louvores!
Santo António, Antoninho,
qu'acodes nas aflições,
toma o meu coraçãozinho
e ensina-lhe orações!
Vi o Menino brincar,
nos braços de Santo António.
Ó bom santo, popular,
mata em mim todo o demónio!
Santo António dos Amores,
faz-me amar minha mulher.
Dou-te guirnaldas de flores
e seja o que Deus quiser!
Santo António, sábio santo,
sábio santo milagreiro,
por amor de teu Menino,
salves tu o mundo inteiro!
Santo António de Lisboa,
bom amigo e protector,
dá-nos Esse teu Menino,
que aclara o mundo d'Amor.
*777 Ah, o Camilo!
O dos olhos negros e chorosos!
O poeta, místico e músico! O de Macau, Pessanha:
Só, incessante, um som de flauta chora.
Antiga tristura, que em lágrimas em mim mora.
Antiga tristura, que dolorida me demora.
Ao sol agora erguido, porque não morreste ora?
Só, incessante, um som de flauta chora.
E o céu? E o alvo pão? E os florões? E as flores? E os arcos? E as cascatas? E o fogo? E a mansa
aurora? E a plena lua? E a donzela, na folhagem que deriva? E, no longe, os barcos das flores?
Com suas pétalas, leves sobre minh'alma, derramadas.
Será que, então, de ébrio me morro, em vão, farto da lida?
Ou é que o pranto sara e o ardor do saudoso pavor extingue?
Quem sonha alto sobre a hora? A que estrelas s'exalça? A que silêncios mora?
Vãs perguntas, que a noite devolve, enigma de morte, assustadora.
Só, incessante, um som de flauta chora.
*778 Adeus, eu vou com as aves.
Com as aves vou,
mas onde nem sonhar consigo.
Onde estou sem estar,
onde, ausente embora, moro.
Sem de tal conta me dar.
*779 Aquela triste e leda madrugada,
enquanto houver no mundo saüdade,
quero que fique sempre demorada
em meus olhos abertos sobre o nada:
Amplos campos da clara luz banhados:
Arvoredos, automóveis, idos passantes pasmados:
Roucos sons de cães, a os dos pássaros acordados mistos...
E flores... E água... E tons... E olores... E amores de meus amores...
Porque não de alegria hei-de cantar,
se todo o dia nasce à mesma hora da flor
e a neve é véu de núpcias sobre o ar?
Ó enorme madrugada rompante dos meus dias,
em ti vibra minh'alma teu louvor.
E longínquos se afirmam sonhos de asas
p'los montes.
*780 Boxe:
Do OK ao KO, directos, defesa, ataques, golpes baixos, incompletas contagens
decrescentes: Até soar o gonzo. Acontece que um beija al fim o sangue do tapete
e de outro, 'inda em pé quedando-se, vitorioso um braço se alevanta.
*781 Pascoaes,
irmão da luz e da terra, poeta meu, luso e eterno, meigo e saudoso, que rezavas:
Sem esta terra funda e fundo rio, que ergue as asas e sobe, em claro voo;
sem estes ermos montes e arvoredos, eu não era o que sou.
*782 Le portugais est toujours gai.
O francês o disse, que lhe não veste a pele.
Mas lá terá suas razões. Alguma verdade respira cujo dito.
Alguma verdade que por vezes em volta surpreendo.
*783 Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão?
Quem te manda a ti, pobre Ochôa, encher de versos umas cem brancas A4?
Ora põe depressa tua finda no poemeto!
Fique claro o céu ante teus olhos!
Fique limpo e claro o poema no olhar da tua bem amada!
Eterno reflexo da mais secreta flor do teu jardim!
Não mais, canção, não mais...
Que irei como que pranteando, sem de tal me aperceber,
milénios e milénios de desaventura!
*784 Hora
ascensional
d'antemanhã:
Abre-se,
uma só vez, o livro.
*785 Pardalito, meu irmão, vem cair na minha mão!
Pardalito, meu irmão, aquenta-te na minha mão!
Pardalito, meu irmão, aconchega-te na covinha da minha pequenina mão!
Pardalito, meu irmão, debica da minha mão as franjas das falangetas ou as orlas das unhas,
rubras grainhas de fecunda romã.
*786 Aux Alpes:
Suspenso do ar lavado, a alto, a largo aspiro do aéreo poema sobre a terra,
pacífica extensão da eternidade a meu olhar.
Sequência amorosa e possuída do sopro e da vertigem do espírito e da asa, que estremece fundo ao coração.
Terra, terra me tens! A longe, longe me exalces e arrebates, mansa habitação da amorável paz!
Regenera-me, cura-me, projecta-me pra lá de mim, da minha sombra, do torpor e do pecado.
*787 Meus amigos, que tristeza nascer em Portugal!
Boi da paciência, que sempre reencontro, amo-te, e detesto-te até ao vómito!
Quisesse eu afagar-te os vis corninhos e ririas melífluo, como quem padece de coceguinhas.
Conheço-te demasiadamente bem, bom ruminante ágil de engenho!
Conheço e reconheço teu minucioso e porco ritual! E ainda aí estás a ti igual: Anos 0, anos 60...
Marras agora como já antes marravas, ao tempo em que te detectou sagaz e crítico o O'Neill.
Pronto regougas, desmaias, fazes que desfaleces, ou desfaleces mesmo de contente.
Como que em derriço. Como se te sorrisse um incisivo dente.
Deixa-me que te diga: Com os meus quási 57, que levo desta passagem, já não estou pra ti virado.
Mas, se esse é o teu maior gozo, acarinha-me, abraça-me e desfaze-me com blandícias,
revolvendo-me e digerindo-me em teu bandulho, ó bom boizinho!
Estou farto! A toda a hora desafias-me a que nem de relance te espreite ou fite ou fixe.
Tal o nojo da tua meiga baba! Tais as emboscadas que tramas ao poético transporte do meu tesouro.
Que meus dentes cerre firme, cego da Alta Luz, que nem Deus nem o Diabo roubam.
Que aspiras 'inda, ó mansarrão? Abre os olhos e vê! Estes não são já teus áureos dias! Continuas aí?
Ateimas mais? Ouve bem! Sei que, realmente, só sumirás, de ao pé de mim, quando eu enfim de vez me consumir!
Pertinaz aderente, espera, espera, que eu já morro!
Boi da paciência! Portuguesinho, caseiro, ronceiro, salazarento boizinho!
*788 Puseram-me a ferros... Chamaram o cão... Mas tive o Diabo na mão...
Espertíssimo e espessíssimo bicho esse, dos mais ubíquos, que atenta quando menos se espera o desprevenido
peregrino. Tão mal encarado és, que forçosamente nos lembras de ausente o Deus Esquecido ou Mãe Maria!
Malino Dianho, que nos interpelas a que, pra renegar-te, louvemos só, de gratos e enlevados, a calma luz aberta
da aurora das sandálias de ouro, tal como poetou Safo, uns 26 séculos há, sob os céus sicilianos.
*789 As Mães da Mãe,
charla filocálica, para uma duração de umas três horas:
Anne-mari-eozu-ao-pleno-ar.
*790 Podes morrer:
Que o sol continuará esplendendo, as ondas continuarão desdobrando-se sobre
a mansa praia, a doce lua continuará redonda alteando-se, mês a mês plenificando-se, dos montes os lombos
ermos de maravilhados continuarão subindo do fundo do horizonte, e as niñas flores continuarão acordando
novas manhãs de voos e ilusões. À tua praça continuarão convergindo renovos de risos e vozes,
estertores outros das tardes noites espantadas.
*791 Fruste borboleta,
na noite só, irrompeu p'la janela entreaberta da minha marquise.
Breve irrompeu. Breve sumiu.
*792 Posologia:
A + Z = Infinito!
*793 As Twin Towers do World Trade Center revisitadas:
Milhares de milhares de milhares de pontículos reemergindo dum sonho a meu olhar.
*794 Lei de talião:
Até à infernal exaustão, perpetuam-se réplicas de réplicas de ofensas:
O difícil é saber quem principiou.
Lei de amor: Um só gesto de paz e de perdão, nascido de um coração aberto,
inaugura a excelente liberdade dos Filhos de Deus.
*795 Onde o destino dos poetas
é tão só, depois de mortos e bem mortos, dar nome a alguma esconsa rua ensolarada:
Que seja Dono da Quinta o Zé dos Nabos ou o Manel da Horta, ó meu Amor antes fosses ceguinha,
surda-muda, salamurda! Pois que aqui caíste, pomba indefesa, no rectângulo das 89 mil dóceis e cínicas facadas,
sorte madrasta, sina bovina, vómito ritual, onde, milagre fatimida, o sol esplende e esplende, esplendoroso:
Enlatem-no e vendam-no, engenhosamente acondicionado em embalagens recicláveis!
Engendrem pois novo americano negócio, quejando o da azeda coca-cola.
*796 Tejo:
Limpidez alada d'olhos d'água. Tremuras da difusa luz. Gratuita poesia. Imenso voo.
*797 Depois de ver, rever, ler e reler o álbum Graça Morais, terra quente, o fim do milénio, as 4 estações:
Lá a realidade ultrapassa e resolve milénios de ficção, a chã realidade daquele chão onde 'inda me movo
em sonho e coração.
*798 Meiga borboleta,
volteando p'las tenras flores da minha sardinheira,
alimentando-se do ouro da luz inebriante!
*799 Do sabor do pão:
O pão sabe a trabalho e a suor, o pão sabe a amor.
O pão sabe ao calor da espessura densa do sol.
*800 Do vinho:
Cor e travo de eternidade sanguínea.
*801 Da uva, o bago:
Cristalizações últimas da doce ternura.
*802 Da água:
Liquidez de íntimos - terra, ar, alma - reflexo da passagem ao âmago.
*803 Do peixe:
Solidez d'imos líquidos, dura inteireza de coração de água.
*804 Do mel:
Pólens iluminados d'ardor, da tarefa teia de anónimas, voadoras abelhas, tontas de saciadas.
*805 Do leite:
Alvor d'úberes, complexa ruminação de frescas ervas.
*806 Do queijo:
Esplêndida solidez da verdade da terra e das mãos do obscuro sonho.
*807 Do iogurte:
De remoer azedezas o resultado pleno, milagre da convergência dos opostos.
*808 Do pão-de-ló:
Do ovo a gema dulcificada em doirado, suavíssimo pó.
*809 Quem canta seus males espanta.
Quanto mais e melhor cantar, mais e pra mais longe os vai espantar.
*810 De um devaneio trivial:
P'las traseiras da Praceta, passavam carregados de cismar uns homens sós.
Lembro que nossas filhas andavam longe: A arquitecta p'lo Mar Vermelho, a actriz por Barcelona.
Minha mãe partira um braço na Barra, quando arrancava flores.
Isto por alturas de um Setembro de começo de aulas, andava então o papa p'la Arménia.
Tínhamos acabado de ver o carteiro de Pablo Neruda.
Lembro-me também de que eu só escrevia, por motivos que considerava de força maior,
algum verso com que sonhava.
E falávamos. De repente, saíam-me coisas como esta:
Tratas mesmo bem dos meus instantes, companheira!
*811 Setúbal, no seio da gloriosa e pura Virgem Maria, sob a abóbada celeste:
José Varela Teles a propósito de antiga heráldica da Cidade, esquecida sobre erva no Parque do Bonfim:
O mais - laçarias, volutas e outros motivos arquitectónicos - não são senão simples enquadramento.
*812 Porque acresço aos Favoritos da Web vaticano.va:
A que em volta plenifique o sopro da pomba e da vertigem do Tudo,
o Santo 'Spríto: A que se diluam e se desvaneçam ácidas arestas
de ressentimento, torpor e amargura.
*813 Vexata quaestio:
Pra uns febre de dinheiro, pra outros desígnio celeste.
Pra uns o só terrestre, pra outros obra de fé.
Quando acabará por perspectivar-se a inteira verdade da pátria história?
E deixarão de chamar-se bastardos a heróis e santos?
*814 Sólida árvore do meu coração!
Sólida luz do teu olhar!
Sólida flor do vivo amor!
Sólida esperança em neve flor!
*815 Diversificados cursos do nosso Ensino Superior:
Nova Licenciatura Intensiva em Talibãs: Desde o sinistro passado 11 de Setembro,
que os jornais publicitam Textos de Apoio, a complementar com Informação
Documental Noticiosa ininterruptamente transmitida p'los domésticos canais televisivos.
Abre-se desde já público concurso para atribuir marca a registar a poderosíssimo detergente
de pronta lavagem ao cérebro.
*816 Variações,
se te apanhasse cá de volta, dava-te um forte abraço!
*817 Piscina de Alta Competição:
Esplêndidos atletas! Enxergo-os, sob luzeiros esfuziantes, esforçando-se
por fazer céleres piscinas, indo e vindo, indo e vindo, indo e vindo. Eu cá, pobre mortal,
se quiser vagar em águas quietas, terei de contentar-me em demandar a Baixa da Banheira.
*818 A vereadora do Pelouro da Cultura
resolve agora incrementar novíssima, lata e popularucha festa: A do Balão!
*819 Se não me lembrar de ti, Jerusalém, maior das minhas alegrias...
Leveza de meus pés, cidade de todas as cidades, ternura de meu olhar p'lo dentro de tuas portas revolto
do glorioso, luzente resplandor! Céu terra! Terra céu! Jerusalém, dilecta pátria comum!
Anelo meu, fundíssimo de eternidade!
*820 Francisco de Assis,
bom povorelo, tuas palavras, e obras, 'stão inscritas no Altíssimo dos Céus!
*821 Restauremos a Poesia, em Cristo:
Notas a esmo, depois de reler um amigo poeta:
O cuidado, Sörge, a pre-ocupação, a atenção expectante, o zelo e o desvelo.
Estremecimentos, vibrações, tremuras, da Luz de tudo, que tudo inunda. De que comungamos.
Só nos somos divinos na medida em que amorosa e cosmicamente comungamos.
Pontículos: Cada um é um único pontículo, do cruzamento,
em que, por cada um, se interceptam infinitos: Macro e microcósmicos:
Os infinitos das estrelas e os infinitos do nosso íntimo corpo crístico, um e igual mundo.
A voz, a cor, o som da Mãe Natura são como que acerada adaga que golpeia
o lado mais coração do nosso lado.
Ou grávida imobilidade em que emergimos no Cristo Ressuscitado Pascal.
Poetar é rezar! Alçar a céus e terra versos magoados.
Os sons dos versos são, eles também, animação rítmica da sideral luz! Ciência de ver a Deus!
O Deus de Deus, Motor Imoto, Acto Puro, Auto Imóvel!
Nossa Verdadeira Vida! Destino certo de quem a passo a passo se abrasa da ternura!
A música, a cor e a linguagem de toda a criação exige um intérprete:
O poeta, místico, é esse intérprete,
que surpreende a voz, a cor, o som, a linguagem que aí impregnou inapagável o Criador!
Logo, o poeta não é senão mediador. E pontífice para o não sabido!
A natureza, fecunda de imagem, cor e solidez transcendentes e diurnas: Daí que nenhum dinheiro a valha,
porque sagrada coroação da vida: Absoluto suspenso do tempo: Telúrica e divina condição do Redimido:
Que no Amor se cumpre cabalmente.
Quanto mais a natureza se esconde, mais revela em seu ser o Deus que nela habita, ausente embora a Si.
É na manhã que a noite por completo desvanece,
é em Maria, Stella Matutina, Porta da Porta do Perdão, que O Amor abraça ao humano penitente.
*822 Grafismo:
CONTINUAR,
continuar,
continuar,
continuar,
continuar,
conti-
nuar.
*823 Quando de minhas mágoas a comprida maginação dos olhos me adormece,
em sonhos meu tudo me aparece, felicidade ou sonho desta vida!
Só sonhada ventura me conforta da vivida desaventura:
Sonhe eu pois, e infindo sonho viva da ventura que a vida me negou.
Donzelas mil, ternuras só sonhadas, indícios foram meus de idílios mil,
p'los anos que aqui tive, donzelas de quem não vi senão breves enganos:
Donzela de toda'las donzelas, em ti, Maria, única de toda'las Marias,
a felicidade humana prometida 'ncerres em teu corpo d'essências perfumado,
a meu lado dormindo o imenso sono sem tino da ansiada última serenidade,
terna e inevitavelmente alongada do atribulado curso dos meus dias.
*824 Sedia-m'eu en la Ermida
de San Simion,
acercam'ondas,
qu' grandes son!
Ondas m'emparedan,
e eu san rum' ô' guia.
Ondas m'engolfan,
e eu fugind' a' dia.
Madre, qu'ondas altas,
contra mi' s'avêem!
Madre, qu'm'envoltan,
e eu san pous' ô' pé!
*825 Portalegre, Museu da Tapeçaria, 14 10 2001:
A caligrafia do poema consiste numa completa teia
tecida dia a dia com os nós da lã de todas as cores que há;
por ela perpassa diluída uma secreta gotícula de sangue multicolor
arrancada ao mais dentro do coração.
*826 O justo viverá pela fé.
(Em memória de Fernando Portanova Matias.)
Canto do homem completo: Ou da plenitude
amorável do Espírito: Ou do homem a quem Deus ama:
Porque não cantar o homem completo a quem Deus basta?
Homem de palavra e de amor, homem novo e inteiro, que os olhos rasos abre a céus e terra.
Homem de fé e de decisão, homem projectado infinitamente para as alturas do amanhã.
Acaso falta a esse homem algum quê?
Não, suponho, pois a esse homem não falta vencer nenhum obstáculo a não ser o transpor da morte o limite.
Tudo ele tem em si, pois em Deus vive, para a amorosa plenitude da comunhão solidária dos filhos de Deus.
Novos Céus e Nova Terra proclama esse homem, cada dia mais completo.
E que a meu canto não falte a vertical beleza a que ele heróico emerge.
É o homem do amanhã, o homem inteiro e completo, homem a quem rigorosamente nada de bom falta.
*827 Os maus vi sempre nadar em mar de contentamento:
Os bons vi só prantear injustiças e tormentos:
O mentiroso exaltado com festança e honraria,
para o pobre homem honrado um tropeço cada dia.
Larga autoestrada pró iníquo, íngreme ruela pró justo.
Insano, cru mundo este, pois só paga quem padece.
Se medida Cá não há, pese Deus os corações.
Na balança da Igualdade, saiba Ele quem conta mais.
*828 Dois cegos e um manco:
Um cego pró manco: Como andas? O manco pró cego: Como vês!
Nisto, o outro cego desconversando: A ver vamos.
*829 - Que tens tu no Algarve,
que estás sempre a fugir pra lá?
- Tenho uma janela.
*830 De ouvir ler "caminho da manhã", de Sophia:
Em todo o lado tropeças nas marcas e nos sinais do grande Deus invisível.
Ele que Se esconde e submerge na oculteza,
mas que, a cada esquina, ante teu atónito, humano ser Se prenuncia.
*831 Templo de Milreu, dia de Todos-os-Santos:
Sob sombra amiga restar, pra sempre em Ti, Deus pacificador!
*832 Atravessas-me
com a Tua benção,
Deus de bondade!
*833 Linguagem
do sapato novo do actor avô: Vou para casa, Manoel de Oliveira:
Longo discurso de uns três minutos o daquele hirto e inquieto sapato novo do actor avô,
maravilha de pasmar! De acompanhá-lo, movendo-se pausadamente, enternece-se-nos o morto coração!
*834 Todos os anos, por esta altura,
lembramos os nossos mortos: O pó do irmão
nos é igual. Se O respiramos e O somos.
Fazei resplandecer sobre nós a Vossa Face, Senhor!
*835 Ise, vê!
Gazelas na fontana longe!
*836 Deus vê-nos e ama-nos como nos espera:
Senhor Jesus, aceita o teu povo na Paz!
Como um menino confia, assim eu confie, em Vós, Jesus!
-
*837 Previsão do estado do tempo:
Céu em geral pouco nublado, vento soprando ligeiro de NE,
próximos dias de sol aberto, águas do mar supostamente instáveis,
breve oscilação das temperaturas máximas - e por hoje é tudo.
*838 Notícia do grave, geral e horrível crime:
As taxas de juro descem 0,5 em todos os bancos europeus.
As pensões de sobrevivência/2001 continuarão a ser pagas aos dias aprazados de cada mês.
O salário mínimo manter-se-á estável até ao próximo Natal.
Os arrumadores de automóveis continuarão a embolsar tacitamente uns repetidos 100 escudos.
A Cáritas recolhe fundos a âmbito nacional pra conta da CGD com vista a tentar obviar ao inobviável.
As caixas negras do Airbus dos cerca de duzentos passageiros mortos em Nova Iorque
não trouxeram por enquanto quaisquer revelações conclusivas.
Nós cristãos continuamos a ser diariamente lançados às feras.
Prevê-se uma Cabul de morticínios e um aumento das temperaturas de Inverno na Península Ibérica.
Começa-se nova campanha de prevenção da SIDA em todos os jardins escola do país.
É de todo incerta a ocorrência próxima na zona da Grande Lisboa
de um qualquer terramoto quejando o de 1 de Novembro de 1755.
*839 Horas mortas, a sós com o meu Deus,
eu louvo, eu amo a obra e o Criador. Se tudo, ant'Ele,
eu apresento e doo, nada me ensombra, pesa ou preocupa.
Sempre estás onde estou, e vais onde vou comigo, Alada Companheira!
*840 Maria, Fátima, Senhora,
somos teus filhos muitos, indivíduos, desgarrados.
Rosa Mística, Torre Ebúrnea, Refúgio dos pecadores, reúne-nos na fé.
XII) selecta quási literária
*841 Nomes (e vozes):
Anne Frank: Da clarabóia do teu sótão em Amesterdão
as nuvens eram a substância da tua vontade de melhores dias.
O'Neill: Viciosa e doente existência, de teus anelos de fraternidade.
Lima: Povoaste de figuras aladas, bailarins e trapezistas a cerca dos sonhos de teu Cristo amarelo.
Hölderlin: Fundura alemã e grega a do teu sopro e verbo criador.
Vian: Ligeireza de plumas entre toques de clarim. Despedaça-se o verde coração.
Pagnol: Térrea foi tua saga, moura, francesa e ociosa.
Duval: Cantavas. Havia sorrisos que atravessavam a rua.
Machado de Assis: Tabelião da escrita, ó excelente funcionário da portuguesa língua.
Brel: Golpeados os fios que sustentavam a marioneta, eis-te em fuga ante ti mesmo.
Junqueiro: Luz divina e flor de urze, em torno a ti e a teu burrico.
Teilhard: Coisas quiseste dizer porque animadas.
Eça: Burilaste a tal ponto teu poema que por fim já nem de palavras precisavas pra dizer da maravilha.
Bilac: Abraço trouxeste a teu lado atlântico, abraço em que reuniste o inseparável.
Senghor: Salmos fundos de tua África, tambores eclodindo de ritmos sanguíneos e ancestrais.
Pessoa: À leitaria a copos, à literatura a golpes d'asa.
Rilke: Soturnos anjos da noite os teus... Acaso te segredavam carícias?
Camilo: Todas as palavras esfarelaste e todas no-las deixaste em banquete.
Simone Weil: Das 3 para as 4 da manhã, és hoje, no Metro de Londres, a perdida transeunte do Cristo
que te tomou nos braços.
Bresson: A preto e branco, intimamente o mais íntimo sentimento.
Kazan: América de teus sublimes jogos de azar.
Antero: Limpidez da Ideia Nova, traída p'la insânia.
Agustina: Reerguendo painéis sobre painéis da casa pátria arruinada.
Jimenez: Moguer tuyo, de tu Platero, e New York, de tu mujer!
Vergílio: A felicidade pela agricultura: Áurea, excelente via.
Manoel: Fixaste a cor e luz Douros e Tejos.
Dante: Ante Amor és, pastor de estrelas.
Cervantes: Teu Quixote poeta e visionário arremeterá de futuras brumas, engenhoso cavaleiro.
Teresa de Ávila: Dizer-te a ti é dizer Deus.
Carlos de Oliveira: Trabalho infindo a infindo verso.
Florbela: Mulher de estremecimentos e êxtases, só mulher.
Char: Teceste enoitando, verso de insecto solto.
Bellow: Do homem que ganhou o mundo, que nada é esse, esse quê angustiante, que lhe diz que algo lhe falta?
Camões: De uma por todas as vezes disseste do melhor.
Pascoaes: Peregrino da Saüdade, que de eterno freme em teu olhar e na paisagem em que te detiveste?
Kafka: De tão real teu ver ideal! Hoje, aos solitários pés, a noite demandada!
Beckett: Absurdo grito, mansamente ecoando.
Federico: Solto sol de areia e ar.
Aragão: Não é que o Cristo-Rei de Almada se entretem em jogos malabares,
lançando e aparando no ar vis banquinhos de assento?
Dostoievski: Envergadura eterna de eslavos actores.
Böll: Chagas, cataclismos, desumanidade, irracionalidade... Daí entreteceres ironicamente carambolantes prosas.
Sophia: A perder de vista sobre areia a brancura de espuma da onda da onda da onda iluminada. Lá estás.
Serpa: O que não vias disseste em puro verso livre.
Matos e Sá: Perda de ti, puríssima perda.
Saint-Ex.: Teu principezinho brinca agora com aviões-correio.
Rosalia: Sar teu rio, Galiza tua pátria, saudade tua portuguesa dor.
Cinatti: Não chegaste a explicar uma série de coisas: Desde o teu reino em Timor
até àquele teu engate da jovem ingénua inglesinha em Sintra.
António Maria Lisboa: O dizer especioso.
Ruy: O dia a dia dos mil nadas.
Aleixandre, Vicente: Espanhol camarada, o pó volante de teu pé cantaste.
Al berto: Chagadíssimo clown, algo te dói.
Rimbaud: As vogais: Luzinhas de tua embriaguez vadia.
Green: Levaste a extremo a minuciosa descrição da sinistra gesta do acossado.
João XXIII: Foram as entranhas de misericórdia do Bom Deus que geraram tua simplicidade gorda e santa.
Brandão: Fundo humo, o do teu drama, meu bicho metafísico e religioso.
António Machado: Encostas e ermos píncaros, rios e ribeiras de tu Castilla, onde pairas.
Sena: Nome de rio tiveste, meu tu de riso amargo.
Régio: Realeza de teus cumes de dor, abismo de tua ferida. Deus se amercie de ti.
Aquilino: Beirão e lusitano íntegro te quiseste. Em tua retalhada escrita isso revelas.
Pessanha: Ópios dormentes de Oriente... De tuas infusões que jazzes soam?
Torga: Humano só tu foste, mas humano.
Cesário: Delineaste perfis de ruas de Lisboa, ruas que percorreste, de que deste televisiva notícia.
Raposo: O 13 de tua porta: Conselho te dou que de mim guardes.
Mozart: Troca as asas aos anjos e executa os imbricados prodígios de seus scherzos!
Negreiros: A voz e a cor cantaste da Lisboa dos Navegantes.
Caeiro: Respigaste da anónima pastorícia a fotográfica indiferença de quem acordado dorme,
olhos assombrados.
Avelino: Que século o nosso que carreia milénios!
Botto: Teus e meus versos leremos juntos interminamente.
Miriam: Mãe, que cale.
Husserl: O que ante ti esteve tu disseste.
Reis, Ricardo: Jesuíta tu? Vernáculo, castigado, pagão, indiferente.
Gabin: Que aventura resta?
Campos, Álvaro: Roldanas, mecanismos, estruturas, roldanas e válvulas, Mercedes, Chevrolets...
Shakespeare: Tramas múltiplas de abismos e paixões. Porque somos tanta vez tão complicados tu sabias.
Joseph: Abraça-me pai, e pede-me que fale baixinho.
Kosik: Concreteza existencial e pseudo-concreticidade.
Iosus: Pega-me na mão. Que hoje me abraça o olhar o mundo inteiro.
J. J. Rousseau: Que sente e rumura a água corrente?
G. Bernanos: Bem e mal, névoa e graça, sombra, luz, neve e sal.
Trindade Coelho: Sítios secretos de ribeiras de encantatórias histórias, ah a infância!
Espinosa: Deus sive substância.
Paredes, Carlos: Desfiar de lágrimas de mel de teu povo a sul.
Renoir: A caça: E as armadilhas e as artimanhas.
Afonso Duarte: Montanhês da planura, porque lavraste o verso?
Neruda: Teu canto universal só porque humano!
Joyce: Irlandês completo de entrechos de envolvência.
Natália: Perpassavas as mãos por sobre papel rugoso. Pousavas um poema sobre nada.
Bernardim: Doce tristura de saudosa amargura de alguém a quem um amor deixou.
Eluard: As precisas palavras, como, por exemplo, liberdade.
Stockhausen: Roem-se-nos teus sons.
Sati: Pontilham-se-nos teus ecos.
Sebastião, da Arrábida: Mudavas de camisola saltitando de um barco pra outro,
trocavas de sapatos, trocavas de flor. Alcançavas o Ar, a Água e a Montanha!
Pound: Da gesta mais longínqua itálica e universal o melhor fabro te fizeste.
Lucas: Pintaste com a cor mais pura da ternura o Rosto do Senhor.
Paulo: Eclodiu de ti, da mais funda fundura d'alma, o arroubo do Espírito.
Deste testemunho da dimensão do fogo, das bençãos, do entusiasmo.
Pablo: Teus rabiscos disseram da completude.
Chagall: Meninos fomos sempre e habitámos uma esquecida aldeola nas Rússias dos czares.
Goethe: Gota de diamante esplendidamente lapidado tua epopeia.
Cecília: Tão equilibrado verso o teu, encanto de sentir, encantamento!
Neto: Preciso de ir para casa, mas daqui perdi o caminho. Ajuda-me tu, querida filha.
*842 P'las praias do sem-fim:
Oh, aí sim!, à cor ideal dormimos acordados.
*843 Minha riqueza o diz:
Coisas há mais interessantes do que a cama.
*844 Uma estrela perdida no céu,
frágil barquinha no alto mar,
incerta borboleta no vento adejando,
assim eras tu, no vasto mundo, meu amor.
*845 Queridas graças,
tudo de bom pra vocês,
que eu amo, com um amor do tamanho do Ar.
*846 A estrela de Belém,
hoje ainda, é uma estrela na noite escura:
Dissipem-se 'ora, à luz boa dessa estrela, dos corações as trevas!
*847 Quando o Reino de Deus chegar de vez,
os padres ficarão pura e simplesmente desempregados,
o Papa entreter-se-á longas noites a fazer bolinhas de sabão,
as armas converter-se-ão em bugigangas pra crianças,
o lobo e o cordeirinho pascerão juntos
e o leãozinho e a rastejante viperina tornar-se-ão amigos e humanos.
*848 Tanta vez aqui me achei,
na praceta dos encontros e das partidas,
dos regressos e das despedidas.
*849 PIN:
(Mnemotecnia.)
Eis infinito, infinito coração!
*850 A multidão das crianças
cabe em teu coração:
Céus de tua vida!
*851 De Miriam,
Joséph, Jesu! Em Miriam, Joséph, Jesu!
*852 A noite mais longa do ano,
perpassada de delícias e de risas.
*853 O que diz e canta o novo dia:
Eis-me, ressurjo!
*854 O que diz e cala a antiga noite:
Me mergulho fundo, inteira, em surdo sono!
*855 Chafariz do Vento:
De velhas andanças por subtis aragens peregrinas,
do bento vento!
Como alcançar-vos em meu andar?
*856 O cobrador de quotas do Clube de Campismo da cidade
há uns bons vinte anos que a más horas chega sempre indesejado!
Os últimos três trimestres de prestações me crava em euros novos, à socapa.
Recolhido então estava, com tempo dado a aprazível, profundíssimo ioga espanhol.
Retirado enfim o bigodado gajo, em vão leito retomo, revoltando-me todo pra um outro lado.
Ai de mim, que a amorável urdidura dos sonhos meiga - súbito interrupta - não mais reato!
*857 A nau dos sonhos solta!
Pra que embarque a saudade!
*858 Soidão querida,
habitada da força da vida!
*859 Deslumbro-me
de Imenso!
Entre ensonado e desperto,
das alturas do ar
alto suspenso.
*860 Ise, Ise,
vê os veros, amáveis ares, dulcíssimos do longe!
*861 Consumições,
quezílias, ralações, desvelos e zelos.
Com isso que têm as estrelas?
Continuarão brilhando altas e belas.
*862 Gato que brincas na rua
como quem brinca na cama,
invejo a sorte que é tua,
porque nem sorte se chama.
Vá eu dormir descansado
num canto terra perdido
e se ache sempre a meu lado
florida ausência e sentido seja meu corpo chagado
só plenitude de olvido e a cada instante moldado
meu poema seja vivo futuro, presente, passado
num surdo existir conTigo,
revivendo de enredado
o 'terno fluir amigo.
*863 Homo oeconomicus:
Estamos mesmo efervescentes:
Ler, escrever e contar é mesmo o que está a dar.
Nem precisamos da conversora pra acertar o quantitativo em euros.
Novos génios da matemática despontam nóbeis à luz do dia.
Não há prestidigitação ou golpe de mágica que nos ludibriem.
Ou será só um vão cuidado isto em que andamos enleados?
*864 Vida e Poesia:
Porque somos
- e só -
o que livres sonhamos!
- Voa, minh'alma!
- Voa, coração!
*865 A rapariguinha do Dancing:
Entre copos solícita,
nutre choroso amor.
*866 Festa de Fim-de-Ano:
Entontecidos volteando
de valsa, serpentinas e champanhe.
*867 Resistir em Amor:
Nudez
de
ser.
*868 Alegria das tarefas do Partido:
Só quando desceu para ir à reunião
- esperavam-no reparou que vestira roupa americana.
*869 Todos os anos pelo Entrudo,
o meu barbeiro disfarça-se
de centurião romano.
*870 Dia sim, dia não,
vale mesmo a pena esperar bem cedo pelos mimosos flocos de aveia em leite.
*871 P'lo alvorecer:
Inaugurais os gestos do poeta.
*872 Decepção:
Os eternos cornos do boi cansado investem babejantes quase sujando a Ideia.
Ah, as puras e ternas e verdes piedosas intenções!
*873 Júoua bondoso,
abriga-me sempre sob Teu telhado imenso!
*874 Ai ver verá Ise os finos aires
e as fontes puras das gazelas amará
musicalmente longe.
*875 Campanhã/S. Bento:
Filha, que a tua estrelinha - única - vai continuar a brilhar!
*876 Uma boa noite,
pejadinha de estrelas, céus e luas!
*877 - Sr. Carlos, sabia que no Jardim de S. Paulo
há casas de banho para os cãezinhos vadios?
- Ora, ora, o meu Pufe faz sempre o serviço na sanita!
- Oh, mãe, isto só vídeo!
- Mas diga-me cá: Ele não usa papel higiénico?
*878 Vem a manhã.
Para que quero eu a manhã que vem?
Para enchê-la do puro canto do pleno amor sem muros e sem nome.
*879 - Depois falamos!
E despediu-se.
-
*880 Ise, vê - e ama os veros, belos ares da fonte das gazelas
dulcíssimos, p'lo longe.
*881 Pedrinhas da calçada iluminadas,
uma a uma dispostas em mosaico harmonioso,
por onde de meus pés as solas gastas dos sapatos
a seus trajectos certos tanta vez me levam.
Sob elas se abrigam meus sonhos de vago e de distante,
submergidos p'la implacável chuva, que as interpenetra
entre interstícios e que - já ida - sob fundas profundas se dissolve.
*882 Yolanda ladina, a frescas horas,
irrompe meio dormida porta dentro,
'inda apertando o cinto das calças, na Casa do Café.
Um poema seu a mim me pede. Ao que eu anuo.
Mas demoro-me a pari-lo para o papel,
bom ruminante que sou de versos múltiplos para acertar as secretas contas dos sorrisos.
Se tanto assim lhe custa a se vestir,
porque não dorme enroupada na praceta
a coberto da Primavera da noite e das mil estrelas?
Afinal em que ficamos, boa Yolanda?
Achas o poema pronto ou versos outros amanhã mais pedes que te diga?
*883 Traseiras do Liceu, 4 da manhã:
Como habitualmente, dois, três padeiros distribuindo discriminadamente pão a pão
por cestos e sacos e carrinhas. Mas eis que há novidade!
Chegou o grande dia da viagem de finalistas a Ibiza!
Uns primeiros pais esperam já, mais seu menino, pelo autopulman da Setubalense:
Ele - o menino - está nervoso e mal dormido: Desloca-se muito, de um lado para outro,
e não sabe onde há-de deixar e esquecer-se dos pés...
Mais pais, mais pais, mais pais e mais paizinhos: E mais meninos e meninas.
Já não há onde deixar tanto carrinho, tanta mochila e tanta malinha.
Basbaques uns e umas, outros e outras fumando, outras disfarçando pasmos com beijinhos.
Será que telefono ao Ilídio para vir aviar pequenos almoços?
Boa manhã para o nosso Zé guarda nocturno! Pois que está bem entregue a praceta,
pode, por hoje, ir mais cedo para a cama dormir com a mulher, que tem andado doente.
*884 Bandos de andorinhas
riscam com suas negras asas a vasta, calma claridade!
*885 Cândido Guerreiro:
Pudesse eu ser tu, virtuoso poetastro
perdido na brancura de uma aldeola florida de amendoeiras e percorrida de regatos!
*886 O sol parece um morango.
Sol nascente, hóstia pura, agora erguido.
Brando da ternura!
*887 Rua Infante Santo, vila de Quarteira:
Modorra de tempo!
O todo branco tinge por completo o ar até ao vórtice do dia.
Uma preguiçosa doçura alastra e plenifica-se ao mais dentro.
Aqui, ali, além, cá, acolá, por todo o lado!
A longes ressoam vãs branduras!
Alguém grita dentre o envolvente silêncio.
Estores caindo bruscos, estampidos e vozes, um automóvel passa, um cão que ladra.
*888 O lugar da flor:
Obra acabada,
estilhaçados os mil múltiplos vidrinhos do meu caleidoscópio,
tudo igual a nada!
Pra o reacender da ténue madrugada!
*889 Perdoa-me
por tudo o que mereceste que te desse e não te dei.
*890 Programa de vida:
Abrir um sorriso.
*891 Minha Ise,
vê com os teus olhos os frios ares!
*892 O mistério dos seios por debaixo das blusas...
Porque não se desvela ele a meu olhar plongé?
*893 Femíneas mulheres
que à sombra do companheiro no arroxeado poente
postas de borco sobre a face rugosa da terra dormis descansadinhas!
Nutris com vossos sonhos os meus sonhos já turvos!
Acompanhais-me na prolongada estada!
Dais azo à música que soa nos meus dizeres rimados!
Sois a substância carnal dos aéreos devaneios que a cada transe me têm
e a torpe matéria da fria ironia que me arrasa e me consome!
*894 De ir corrigindo uns soltos versos:
Que ignorada palavra m'espera ainda ao dobrar da linha?
Que renovo de som remexerá amanhã meu surdo ouvido?
Que sinfonia 'inda não transcrita?
Que extraordinária correnteza de novidade?
(O arrumador de tabacos da máquina automática,
minucioso discriminador de moedinhas,
relata-me idos do manguchi independentista e poeta Agostinho Neto.)
*895 De um telefonema:
- 'Stá!
- Daqui é da Empresa Altamira e Altavista Limitada:
O Senhor Manuel não chegou a levantar as suas porcelanas...
- Ando a ficar muito distraído, ultimamente.
- Mas o Senhor Manuel tem cá um cheque de quinhentos contos em seu nome...
- Sabe, já tenho dinheiro demais. E desligou.
*896 Lembras-te
de quando abriram as nossas duas túlipas vermelhas?
Chegando ao fim o dia, cautas, as suas leves pétalas se encerraram.
*897 Instante(s):
Quási delida é já a fim da tarde.
Versos muitos releio meio insone.
Abre-se-me último o sol, vermelho ao fundo da janela do horizonte.
Reacendem-se clarins do gozo que minh'alma alada sente.
Os relidos versos sumindo dos olhos o percurso vão,
que em relê-los a ausente se converte.
Morto é pois o passado e no entanto é vivo.
Morre o presente dos momentos idos.
Anseio só a paz - e um sono meu em água me comove.
*898 Pergunta-resposta:
Que fazer
?
*899 Décima:
Após ler os sonetos de Miguel de Castro:
Continuamos vendo novidades,
cabriolando a cambalhotas a Esperança,
dos males ficam as mágoas na lembrança
e do bem, se algum houve, a Saudade:
Desses lisos, polidos versos, em que encetaste
revelar num sussurro teus fantasmas íntimos,
guardo, na manhã que agasalha o corpo do poeta,
o registo nítido de que a vida é mesmo assim:
Mas, mais e mais do que, de ti, aqui eu digo,
tu terás 'inda a dizer-te, em tempo infindo.
*900 Balanço:
Ou da continuação da notícia do grave, geral e horrível crime:
O poeta do olhar abrangente resolvera parar com as suas crónicas
e, como ninguém lhe pedisse nada, mergulhou numa noite de mil sonhos:
De que acordou: Seria desta que no Brasil o Lula subiria p'lo voto a Presidente?
Seria desta que do velho Timor Leste livre se renasceria para a final concórdia?
Seria Jospin ou Chirac o arrebatador do eleitorado francês?
Continuaria indefinidamente impune a portuguesa bagunça das golpadas?
Em Espanha, os presuntos criminosos "das bombinhas" continuariam escondidos?
A que ponto insuportável de aviltamento chegaria ainda a Palestina?
Haveria - em algum lugar do nosso mundo - mais Rainhas Mães prestes a morrer?
Quando estaria resolvido o buraco económico da Argentina?
Estaria mesmo terminada a dança ou a mudança de presidentes na Venezuela?
E os migrantes? E os deslocados? E os mutilados? E os estropiados? E a fome? E a SIDA? E a Paz?
Convenhamos em que se tornava cada vez mais difícil, com tanto envolto enredo, voltar-se
para o lado certo do adormecer.
*901 Paradoxo ou geometria do absurdo:
De tão quadrado redondo, de tão redondo quadrado.
-
*902 Narciso:
À sombra das buganvílias o reflexo de minha sombra
da sombra ressurgido:
Em sombra jazo e à plena luz revivo.
*903 Ise, vê e ama
o frio, fino ar.
*904 Retorno de um antigo tema:
Com ambas as mãos pegando exausto livro
a jovem mulher mãe agasalha com os olhos
passado, presente e futuro do comum mortal!
*905 Paráfrase:
Eloquentemente elucubrando as línguas
e linguagens da Inteira Terra,
uma pequenina luz,
qual chilreio de avezinha,
brilha e brilha,
sem cessar.
*906 Escura banda
magnética, simulacro da Noite.
Luz da Manhã.
Encontro entre meu nada e a Beleza!
*907 Na noite dos planetas alinhados,
sinto-me bem a enumerar,
um a um,
mil sonhos.
-
*908 - Er sieht nur Sterne, Sterne!
Sobre o céu - e sob o chão!
*909 A pomba do Santo 'Spríto
voa-me da lapela por volta do meio-dia,
as linguagens dos melros e das demais avezinhas estuda.
E regressa ao ponto de partida,
saciada da impossível completude da luz inebriante!
*910 Ise, vê os veros ares
amáveis na fontana doce, das gazelas!
*911 O que ficou da Copa do Mundo:
Saibam os brasileiros compor à espanhola
um concerto italiano ou brandeburguês
em solo nipónico, quiçá turco, senegalês
ou vagamente chino - em lídimo idioma português!
*912 Está cá um encantamento
por aqui!
E os ponteiros dos segundos percorrendo percursos tontos!
Puxaram p'lo sol
para debaixo das nuvens,
ou é que o sol está só do outro lado?
O meu bom Jesus Cristo da parede ou da porta comunga de meus 'nstantes,
e dura até sempre este louvor subindo!
Pessoa, vil poeta, estavas mesmo louco!
Tu e o teu Super-Camões!
Mas onde acaso enxergaste esse cujo poetastro?
Vou pra fumar um cínico cigarro, uns 112 conversam horas mortas, nada acontece,
ou acontece sempre alguma coisa?, fecho a porta, ou puxo a cortina?, da janela.
"Jesus Cristo é a Paz." (Canta-se no Canal 8.)
PHN: A conversa é de chácha, mas os caras são patuscos.
E escrevo este poema pra provar que vivo.
(Outra vez tu, Pessoa?, acaso vives inda?)
Em meu sonho ficaram versos outros.
Versos outros ficaram em meus sonhos.
*913 De olhar uma foto de um bebé palestiniano vestido de "kamikaze":
- Até onde a infâmia da desumanidade?
- Como poderão do Deus bondoso as misericordiosas entranhas digerir tal vómito?
- A qual de vós, homens muitos, não se lhe quebra de horror o espinhaço dorsal?
- A qual de vós se não revolve o humano coração?
- Ant'isto nenhum poeta saberá qu'inda dizer!
- A que ponto extremo a atrocidade!
- A que inacreditável pesadelo!
- Nem mil apocalipses superarão o atroz real!
Mas pergunte-se cada um para si mesmo:
- Tenho eu, daí, limpas as mãos?
*914 Regresso a minhas hortênsias já descoloridas,
sob fumo de névoa e de cansaço.
Da luz a vibração é quási nula.
E um frio e triste Agosto se anuncia.
*915 Variante:
À meiguice regresso das hortenses,
descolorindo-se sob névoas d'aereza.
A fermentação da luz é mansa e ténue.
Brando e ledo s'avizinha novo Agosto.
*916 O sonho envolto:
Eu, a Clara Pinto Correia e o escritor mirandês revelação de nome estranho,
fazendo, e publicando, ilustrados romances e romances, amor promíscuo
e uma obscura invasão de um doméstico canal televisivo; esquecia-me de
referir a jovem e bela filha da dita e bela camarada de armas; à pergunta
porque era o Messias de Levi - de Eboli - tão diferente do seu?
o amicíssimo mirandês, esplêndido e camarada, disse ante as câmaras:
Porque o nosso povo é cruel e adora as vísceras que aqui exibo!
-
Ângelo O Ochôa
bibliografia
Publicou: poema um - 1965, poema 2 - 1966, poema - 1967: folhetos; as cidades de Israel - 1970, poesia escrita de 1959 a 1975 - 1976: livros; poema
do íntimo afã - 1983: folheto; do memorial de Pedro e uns poemas - 1990, desolação saudosa - 1992, os 363 poemas - 1999: livros; poesia dita pelo
próprio - 2001: CD audio. Livro de Horas, Opera Omnia, reúne a sua obra.
Manuel Ângelo Ochôa de Castro, Manuel Pedra, Ângelo O Ochôa
biografia
1944 - De avós agricultores, e rurais, de pai funcionário de Finanças, e de mãe professora, nasce, em Alfândega da Fé, a 30 de Novembro. 1944/55 - Vive uma
infância em liberdade, por paragens remotas de Trás-os-Montes e Alto Douro, donde os seus primeiros contactos com a riquíssima cultura popular
transmontana e mirandesa. 1955/57 - Começo do Secundário, em Bragança: Colégio S. João de Brito e Liceu. 1958/60 - Continuação de estudos, em Barcelos:
Antigos 4º e 5º anos dos liceus: No Externato D. António Barroso. Primeiros tenteios, em prosa e verso, por jornais locais. 1959/61 - Finaliza o Secundário no
Liceu Sá de Miranda, em Braga, tendo sido aluno de Feliciano Ramos e de Manuel Faria. Algumas letras para o República Juvenil. São seus companheiros
dessas lides Vitor Branco, Vitor Sá e Margarida Malvar. 1962/70 - Passagem, ainda estudante, por Coimbra e Porto: Desiste de Direito e frequenta Letras Filosofia. Filia-se, e toma parte, em organismos académicos: TEUC, CITAC, CADC. Escreve, para jornais e revistas, crítica de livros, de cinema e de teatro.
Publica em Coimbra, em Novembro de 1965, a sua primeira produção, o poema um. 1970/74 - Inicia actividade de professor, não efectivo, de Filosofia. A partir
de Setembro de 1973, reside em Setúbal. Conclui, em Letras, p'los anos 80, na Clássica de Lisboa, Licenciatura. Efectiva-se para a docência do 10º B Grupo do
Ensino Secundário. Participa no Grupo de Poetas e Escritores Setubalenses. Dispersa obra por jornais, publica alguns títulos de poesia. De Janeiro de 1998 até
à data, vem divulgando, em página Web, a recolha da sua poesia escrita, que regularmente actualiza. Daí o seu, em grande parte inédito, Livro de Horas, Opera
Omnia. Desde Abril do 2000, integra o grupo católico "Tabor" do Renovamento Carismático. Submete-se à Efusão do Espírito Santo, em Sta. Rafaela, Palmela,
a 18 de Junho. Em Agosto, peregrina à Terra Santa, com a paróquia de S. Paulo, e frui da liberdade de viver a pleno dia o Jubileu.
RELAÇÃO-ÍNDICE DA POESIA
I) os 363 poemas
Poema um:___ 1
Porque vivemos, os emparedados, sem árvores:
Seguindo o casario,
Donde me ocorre aquele R:
Gotas de água nos vidros fixas.
Se tudo ruiu,
Repetidamente,___ 2
Brancor
O mundo tumultuoso do sangue De Madame Maar
Goivos intactos de terra.
Alberto Caeiro:
A contemplação aborrecida:
O vão da porta, inumerável, amor Quadrados de quadrados Ah, teu devastado olhar
Brancura de pétalas -___ 3
Teia de aranha na parede esburacada:
Sombra intocada
Do subterrâneo das horas,
Nem o abandono inútil,
Os palhaços aos tombos,
Para a mulher povo de que não há notícia
Trouxeste uma alegria -___ 4
Legrand ou Cherburgo Outro tempo
Acontece-me
Páscoa do morrer dormindo.
Sons abrem janelas.
Ainda aí, um grito estrito e um bocejo.
A palavra continua,
A mulher poema:
Canção ao redor da vogal O:
Intacta, a manhã
Brancas, ferocíssimas muralhas.
Perdeu o nome a existência,___ 5
Devagar, não dar por mim.
O dia perde-se
Ainda a cor marinha, arenosa,
Digo-te sem ver
Tarde nua no jardim:
É tua a praça,
Alegria de amar:
Eu, na rua B. Sequeira,
O ser é todo ser,
Procura pela linguagem pura,___ 6
De estar amanhecendo um novo dia,
Resfriarem folhas trémulas.
Na cidade fechada,
Anne Frank:
À pas lourds venue,
Des yeux tendres le Dimanche,
Restolho Povoações em milagre surgidas,
Verdes anos:___ 7
Desperta,
Manhã de um pároco:
Vou a um outro dia,
Nome é dizer mar,
Agora é um tempo de anunciação,
A cada instante dizer
Pedra de tropeço que és,
Vou estando aqui
Cidade de teu cais,___ 8
Meu lugar onde,
Plantas dos pés assentes sobre este pedaço de terra,
Parábola:
Embarco neste cais, que aqui me tem.
Os alados anjos:
Aqui retomo o recomeço___ 9
Será que, longe, os anjos
Sono lento guia teu sonho,
Lua, o claro pó
Frémito de folhas,
Já as cegonhas se postavam em seus ninhos, por sobre os olmos.
O olmo da frondosa copa,___ 10
Os melhores damascos do mundo
Amontoam-se os livros, as caixas, os isqueiros.
As voltas que dê, regresso a casa.
Outra tarde:
Retorno de um tema:
Quanta calma evoca em mim
Está o homem à porta.___ 11
Teu corpo trazido no vento,
Um sossego alheado de cansaços vãos:
Os joelhos esmagados Trepidar de rodas de autocarros Sei do teu rosto e nem sei.
Caminhos, a que as botas não descobrem o afago.
Há muitas cores nos jardins.
Vamos às fontes da manhã,
O mar nos ouvidos,
Brando ser,___ 12
Num sonho todo feito de incerteza,
Meu coração mora nas terras altas:
Levántate, y mira a la montaña:
À janela fechada não assomas.
Passava através do parque,
Turvo, nenhum,
Perdem-se, uns depois doutros, os dias,
Dá trabalho ter a casa em dia.___ 13
Entretecido das pequenas rotinas,
Não esqueças
Trouxeste sabor a mel
Também, das horas, os nomes
A maior alegria de Isiéli,___ 14
Lembrar-te ainda na varanda,
A brancura versus o castanho pardo:
Senhor do Bonfim:
A Verdade vos libertará!___ 15
A ti, sentinela, te constituí vigilante da Israel família humana.
Forte e subterrânea convulsão, repentino estrondo surdo:
Alegria de umas casas
De hoje em diante, José,___ 16
Nas cortinhas, sós, as casa.
Resta memória
Houve um dia
Em seu delinear
A instantes, o zelo de querer-te.
Um intenso tráfego
Alegria profunda Sons ante a mesa,
O amante de tapetes
Aqui poderás ler___ 17
Restar
Alargam-se-me montes sobre montes
O Largo de Jesus,
Pena é que a agenda registe,
Deserto, encaro a névoa.
La chanson des vieux amants:
Do meu quarto fechado
Aquele sonho___ 18
De ouvir um solo de trompete:
Terra,
Uma, duas flores lilás
He was a friend of mine. He never knew my name!
Disse eclipse,
Baloiçar, em corda, em u,
Lembrar ainda,
Um bocado de lua___ 19
Aos solavancos,
Parque:
Capela:
Cercanias do estádio:
Casa dentro:
Do coração que Deus conhece,
Era uma vez:
Natal:___ 20
Afazer:
Entrechos, enredos, à tona.
A fina aragem
Repetem-se, dos femininos dedos,
A noite transfigurada de enamoramento,
O peso do corpo:
Comunicar Fazemos uma grande concha,
As escamas azuis de uns peixes.___ 21
Cá amanhece vagamente.
Povo, onde estás,
Cinza a cinza,
O aclarar da bruma,
Porquê as rosas brancas,
Anne, Anne,
Descobri contigo
A moça me espera,
Sair realmente,
O tempo das suaves raparigas:
Querer bem aos luminosos aranhões,___ 22
Manhã serena,
Tenho para ti que o cinamomo Cortinados no vento Candura instantemente relembrada.
Hoje, ontem, amanhã Dedos gastos
A pátria toda a terra,
Wasser, Brot und Wein, aquando a Ágape,
Era o vale de Deus,___ 23
A cal das paredes Le clair air Os dias esbarrados de desvario:
Il y a
Tu a única e eu,
Percorres ruas,
Ardidos os poemas,___ 24
Poço de luas novas:
Relera Joyce, no terraço:
O ser morre de ser
Tenuidade, ambiguidade,
Das fendas das palavras
A democratização do ensino Jarra das rosas roxas da luz,
Do resultado do amor,
Talhando poemas, com blocos de pedra:___ 25
Un enfant m'attend pour pleurer:
Outro dia, outra estrada, outra hora.
De l'eau.
A prateleira, dentro:
Desenhado o teu sorriso,
Joseph K.:___ 26
Em criança:
Os pobres trabalham cedo,
Aujourd'hui je suis loin, mais je reviendrai un jour:
A cidade debaixo do ascensor:
Mesma quietude a dos pulmões Uma louca alegria___ 27
Fui ver a tua janela,
Olhas para nós.
O amor ressuscitado:
Quando não ao ouvido
Lento a prosseguir
Alguém à janela Apeteça ou não,
Verdura de folhagem enquanto a luz assim,
Do imo o palpitar
O portão gradeado na luz___ 28
Dou-te uma rosa,
Vaga sensação saudade Puros dentre ramagens,
Ruir interior Raiz de ouvir:
Toujours, toujours, pour le Printemps,
O que cada um disse
Estar por dentro da luz
Um sonhado António Maria Lisboa,
Os amantes sem dinheiro:___ 29
De fábricas
Mesmo ali um rapaz,
Entremez brevíssimo de instantes:
Meu louco amor,
Os ossos quebrados dos dedos,
De cerdeiros, a rama baloiçar:
Sons espaçados, ritmados.
Vestida de branco,
A Espada, caída:___ 30
A felicidade ao pavilhão.
A avenida subvertida
Uma cor neutra
Não me levanto, mas estou:
Aqui vai meu grito,
Lede os mistérios
Equilíbrio d'asa,
Sol nulo de após nocturna chuva.
Voo, de ficar.
O teu sorriso leva-me sempre para junto do mar:___ 31
A tristeza imensa de estar,
António, o poeta louco,
As várias palavras dos livros,
Repousa a casa,
Poética própria:
Retorno de um tema antigo:
Sortes:
Uns sacerdotes polacos___ 32
Minha mesa de café:
Amar a vida inteira,
Divertimento amargo
Conviemos
O livro aberto:
Em Teu corpo transfigurado,
Um canto de terra,
Toada:___ 33
Sento-me na casa
Onde em torno a qualquer mesa se reúne:
O sobrado - agulhas - sons opacos:
Brusca diafaneidade.
Por fim, fomos cair à entrada do curral,
Joga-se ténis.
Atravessarei a noite
Elle est retrouvée. Quoi? L'Éternité:___ 34
É possível que os gestos
Um a um, os poemas,
De cansados
Excerto de ode:___ 35
Pedro e Celeste:
Dez anos depois:
A cara negra de óleo
Rememorando o Menino
Entre poetas:___ 36
Vi em grupos crianças,
Teu nome de éles, éles, éles Todo o bar se atravessam,
Resquícios, cinza e uma dor
Quando não,
Em quieto voo,
Um quase nada:
Já aquele dia liberto
Carlo e Dora:___ 37
Partira, manhã cedo.
O dinheiro contado.
Pode sair!
Celeste tomara conta da sua vida
Té Santa Clara, além ar:
O entardecer das árvores___ 38
Hoje o grande, fundo dia,
Gosto da noite por sobre automóveis,
É na vida
O que te resta:
Homem de água és:
Anónimo, escrevo fim:
Uma coisa em que cismo:
Scherzo:___ 39
P'lo céu aberto
A última universal bandeira:
Ver à força de hoje
Rumor resíduo do dia inextinguido Balbúrdia e alarido de crianças
Senhora do grande livro,___ 40
Pálida luna,
Pedras sobre pedras,
À indiferença da rua,
Que não esqueço mais
Sei de inúmeros sítios onde vermo-nos,
Fincarem-se unhas à pedra.
O espaço à medida dos olhos a chamar-te.
Móbil de vazio,___ 41
Fixar sem ver:
Além da obsessão
Dás-me a tua mão aberta,
Tua face nua,
Convenhamos em queMeus amigos, não me sabeis o nome,
A afronta das sombras,
Revolto recomeço do ciclo migratório,___ 42
Tépida Primavera.
Luz esbatendo-se:
Do Oriente, uma estrela:
Eis-me só e nu,
Alheio a idas e vindas,
Absoluto de plenitude e solidão,
A poesia da relva,
Maria, Rainha da Paz,___ 43
À Foz do Arelho, Joseph.
Ainda aí a guitarra ferindo,
Um voto de Natal:
Repuxo
Não digas nada.
Se é
Corre o vento, e vem até aqui.
O vale de Deus
Sebastião: Ínclito Cavaleiro do português Graal,___ 44
Cá dentro
Oxalá algum dia
Aqui fico,
Luna madre,
Tarde sentada,
Há as mãos a erguer.
Que não seja senão, todo teu,
Fumando,
1º de Maio:
Filosofia:
Obrigado,___ 45
Sei da lonjura da estrela
Vá alguém suster os alados cavalos,
A Vanicelos:
Camões:
Adenda:
Astronomia:
Do todo envolto em que estou,
Um fim de tarde,
As voltas que dê lembra-me a rua,
Senhor da firmeza da invencível paz,
Affiche:
Das aulas os redutores raciocínios___ 46
Em Tavira os tontos olhos___ 47
II) na morte do Senhor Trabalho
Entremez, de acto único,___ 47
III) 31 poemas do novo milénio
Redonda como um ovo,
Presa ao corrimão da escada,
A mesa___ 49
Cinzeiro,
Radiozinho
Esferográfica
Moedas esquecidas
Gentes,
A hora entreaberta,
A planta
A espada___ 50
Da porta
Entrada
Toda plena,
Envolvente capote
Seja 'inda véspera
Ramerrão
Retorno do pão,
Óculos___ 51
Olhos
Sonhos de ar
Botas do meu encantamento,
Isqueiro da breve chama,
Volante cachecol
Fio de meus óculos,
Relógio fixo ao pulso
Minha cruz,___ 52
Janela:
Família:
Berço, casa, pátria:
Alguns dos lugares___ 53
IV) estações do peregrino
Estações:___ 53
Estações revisitadas:___ 55
V) também através da poesia se constrói a paz
Dos entrechos do amor a dois,
A eterna novidade do mundo
Do inelutável quotidiano:___ 56
Todos somos judeus quanto Cristo o foi:
Estamos no mesmo barco:
Eu ainda menino:___ 57
O espectáculo mais bonito de se ver,
Tiram ouro do nariz
Disse-to pelas nuvens,
Plenitude:
O homem não existe em si, mas para Deus:
Do despertador
Tratem, tratem do governo,___ 58
Imensa Mesa, imensa Alegria:
Tens muito que fazer? Não, tenho muito que amar.___ 59
Dêem-me pão que baste à minha fome,
Nunca agradeceremos bastante
Colombina paloma,
Eternidade:
Des maisons à cigarettes et à musique:
Dormiamus, frater,___ 60
VI) dos sonhos os poemas
Descrição de um sonho:
O equívoco:___ 60
Um dia, pra Deus, mil anos.
Com ambas as mãos pegando o aberto livro,
Pungente entristecer de minha terra:
Jamais acabaremos de explicar o claro dia:___ 61
Quanto começou com Feuerbach:
Mudança para Nênêne,
Entre las flores:
Projecto de sucessão:___ 62
O super-criativo dramaturgo___ 63
Prece louca de impossíveis:___ 64
VII) louvor da luz
Quem da pompa inigualável
Contemplação sem tema:
O colorido da folhagem d'árvores,
Ai que lindeza tamanha:
Quarteira a amanhecer:
Volare:
Da amenidade do clima:___ 64
Que acaso cogitam os pardos patos,
Intermezzo:
De giestais a amarelidão
Tirem-me do labirinto das palavras
P'lo percurso da errância
Yo solo vivo dentro de la Primavera!
El mar del corazón late despacio,
Por cada flor estrangulada há milhões de sementes a florir:
Rosa que ousa, alta.
As estrelas mortas apagam-se aos molhos:___ 65
Bénie sois-tu, âpre Matière,
Airiños, airiños, aires!
Sôbolos rios que vão por Babilónia me achei,
Quarteira a anoitecer:
Arranca-te da escura noite,
Da claridade plenificando-se
Ici:___ 66
Sol nulo, dos dia vãos,
Lobo em seu covil,
Vazio em gris e ocre:
Meu velho, algures nas Comores:
Hoje, à plenitude do espírito,
Reciclagem:
Meio Divino:___ 67
Du plus pur miel de tous les amours:
Versos sobre o branco
Senhor, imprime em meu poema
De hoje em diante,
Maria, luz de etérea graça,
Estes meus precisos versos
Licht, mehr Licht!
Descrever sem rodeios___ 68
O todo envolvente eterno,___ 69
O gato brinca amanhecendo dentro da luz,
Luzeiros, reflexos e cintilações:
Nevada antemanhã,
Aurora da verdade:___ 70
VIII) episódicos e circunstanciais
Sinfonia:
Promessa:
A colegial de olhos lavados___ 70
O bruto avantajado cão da obra
Afanando-me à ligeira empresa
Adão electricista
Abrindo a minha Bíblia de Jerusalém:
Em extremo atenta à leitura do poema,
Concentradamente distraído,
Nova ode triunfal:___ 71
Nota à precedente ode:
O silêncio é tão longo
De eléctrico até á Foz:
O arame do equilíbrio inteiro:
Glorioso, o tempo do desporto:
Prenúncio de Outono:
Brincadeiras proibidas:___ 72
Frente à Tv,
Os que vêm da dor directamente:
Sol batido à rua.
Balões! Balões!
João Cabral:
Passeando seu diminuto canídeo,
Os calhaus do ruído:
Chalaça ou charla,___ 73
Serviço só ao balcão
Alcoóis, alcoolismo
Aos dezanove dias do mês de Dezembro,
SOS:___ 74
Amores difíceis do gato Caramelo:
A incrível bailarina que é meu par,
De ferry boat até Tróia:
Por nocturnas horas,
Escrivaninha das horas quietas:
P'lo São Lourenço, vai à vinha, e enche o lenço!
Estória do filho do Diabo e de Ana Pandilha___ 75
Revejo Leandro,
Quando o castanheiro do quintal floriu,
O carteiro Candeias,
Raúl, o soba negro,
Ementa:
A delicadíssima, fina película___ 76
O professor Campos
Delicadeza:
Campos da bola:
Habitadas casas:___ 77
Viagens:
Contava-me o velho professor Costa
- Então, muito bom dia!___ 78
Elegia aos últimos sapatos luva
Reina gran confusão no estaminé:
O comedor de sandes:
Rogélio, o último dos cravas:
Pesquisadores de anedota:
Padeiro Moreira, do Alto da Guerra,
Às portas de Querença___ 79
Aquela mulher de Ciência
Descalço dos pés, mas podre de rico,
Após intensa chuva:
Entretido releio:
E escrevo fim:
Ladra um cão,
P'lo Olé Paelhas
Campeona Neuza:
Depois de ouvir ler da "bucólica" uns versos do Avelino:___ 80
Citar-te,
A estupidez e a ignorância humanas
Árduo falar bilingue:
Na tarde do Domingo passado
O Silva contador
Desde carros roubados
Ternura ácida
Da impertinência da Saudade:___ 81
Eu canto da Empresa Carlos Costa___ 82
IX) simples orações
Graça singular achou em Ti o Altíssimo___ 82
Fátima:
Não era o vulgar brilho da beleza.
Que pela acção do Espírito a vossa esperança transborde:
Jezu, ufam tobie!___ 83
Em que espelho ficou perdida a minha face?___ 84
Apanha, em mãos, a terra:
Bendita a paixão redentora do Senhor
O pai de teu pai e a mãe de tua mãe levam-te Deus dentro:
Dos 15 mistérios do rosário:
Não deixeis emudecer a boca dos que Te louvam!___ 85
Todo o homem deve nos aparecer como um irmão,
JHS:
Se não fosse esta certeza
Vede como se amam:
'Inda o anterior canto:___ 86
Diga eu agora
Reze eu
Espírito Divino,
Tanto me machucaram minh'alma as feridas vivas!
A Mãe Maria,___ 87
Credo:
Lausperene:
Louvor ao Santíssimo:
Jesus, inspecciona-me a que ande sempre em Tua luz:
Amar o grande mar:
Alba plena:___ 88
Porque na Fé de avós
Ancestral patriarca José,
Meu Menino Jesus,
Meu Sant'Antoninho das Moças,
Senhora das Sete Espadas de Dor:
Repita eu também___ 89
Fogoso e Santo 'Sp'rito,
À vossa protecção nos acolhemos,
Diga, a que desperte,
Jesus, meu bom amigo,
Coração de Maria,
Obrigado por mais um dia,
Fecha-se o Livro, solta-se o Louvor:___ 90
Amo o Coração Imaculado de Maria___ 92
X) cantos de intervenção
Milénio novo, sujo mundo:
A distribuição do pão:
Nova poética própria:
Zeca:
Cada vez mais perto do fim,
Feliz gente: Com duas realidades. E eu sem ter nenhuma:___ 93
Viver estranho
Vitor Baptista:
Questão que tenho, de mim a mim,
Capazes de firmeza, sem cair no ódio,___ 94
A Xanana:
Quando chegará o dia da tua festa fraternal?
Hoje é o tempo
Fale português o Oriente da Vida:
Meu país desgraçado!___ 95
Onde o verso escondido de Deus,
Nun'Álvares,
Cada pedra sobre cada pedra:___ 96
Covardia:___ 97
XI) caleidoscópio
Fazia tal resistência à propaganda
Melomania:
Diotima:
Elementar, meu caro Watson!
Resto:___ 97
Súbito som:
Brinquedo:
Dispositivo:
Gershwin:
Elogio do sono:
Como diria o Avelino,___ 98
Refeição de fim de semana:
Conversa de macacos:
Porque, de descuidado, não deixas parar o olhar,
P'las íngremes encostas batidas de sol,
Avisos a possíveis intrusos
A lucidez da mulher de meia idade:
Aéreos, aquáticos veleiros
O acender das luzes nas grandes cidades:___ 99
Uma existência honesta, de cristal:
Nada há de mais belo do que um corpo:
O sonho reinterpela-nos.
A manhã sem nome,
Rodeiam-nos sábias,
Se, muita vez,
Cedros, pinheiros, asas,
Infindáveis ruas
Um dia
Aranha, aranhinha,___ 100
As andorinhas, aos pares,
A retalhos recuperado, o poema:
Foram prá guerra
Sebastião, poeta moço,
A uma hora destas,
Vivinha da costa!
A descoberta de uma "realidade",
Palmela, noite dentro:
Auto-retrato, em forma de glosa a Bocage:___ 101
Jardins d'água e flores, onde retine colorido o chilreio
Muros, pinheiros, asas,
Onde cada um pode olhar-se
O pelourinho azul
Na fonte está Leanor,
Cai em meus braços,
La sandalia fresquíssima___ 102
A barba por fazer,
Contigo,
Os pobres de Cristo
Moveu-se o automóvel.
Queres ver?
Diálogo ouvido um dia destes:
A paz a fazer-se,
Estranheza
Alguém lia a raposa, de Silone.
Um quotidiano puro, de evasão:
As mãos secando,___ 103
L'art pour quelques-uns,
Se escrevo é por um imperativo
Oh, a poem!
Vozearia de creanças da escola perto:
Falar sem ter nada a dizer:
Comer da mão de Deus:
Signo mofino:___ 104
Fátima, 1917:
Francisco da Irmã Natureza!
Chá com torradas,
De Norte a Sul,
Gato em telhado de zinco quente:
Quais mínimas, miúdas formiguinhas,
Como tensos acordes de violino,___ 105
O obscuro indecifrável
Alentejo, ai vastidão!
Pórtico da Fé:
O vento mia, o vento mia,
Ai do lusíada coitado,
P'lo sonho é que vamos
A vida é feita de nadas,___ 106
Gritos de árvores
Tragédia
Quem me dera
Caleidoscópio:
Notícia-poema-registo de última hora:
Praticar a modalidade:
Não há tusa pra tanta musa!___ 107
Tu, só tu, puro amor,
Co'a calma as aves
Breve teorização da poética escrita:
A palmeira,
O lobo-do-mar
Quero por força ir de burro:
Qual seixo interminamente rolado,
Às avezinhas do amor
Grafiti:
Eu cantarei d'amor tão docemente,___ 108
Pedrinhas iluminadas
Dar pérolas a porcos,
A dança do sável:
Fim de acto:
Até que, enfim,___ 109
O fazer-se mundo
Reminiscência:
Pudesse eu ser Controlador Aéreo!
Estrada de Santiago
Anjinho mau,
Da aereza:
Estavas, linda Inês,___ 110
Platão, Cristo e Paulo:
Agostinho:
O de Assis, Francisco:
Maximiliano Kolbe:
Henrique, Navegador:
Alma até Almeida!
Ó tempo, volta pra trás!___ 111
Tenho ali um docinho para ti!
Putin:
Mário Soares:
João Paulo II:
Bush:
Juan Carlos:
A santidade, o amor, a paz,
Caça grossa a NE:
Nevões de amendoeiras florescendo,___ 112
Calma pescaria:
Golfe:
Motonáutica:
Vi uma noiva entrar pra um automóvel,
Uma passante:
Da lógica dos sonhos:
A uns noivos:
No quarto,
Ise,
P'la manhã:
Ao entardecer:___ 113
Anoitecendo:
P'lo firmamento:
Antemanhã anterior:
Meio dia:
Meia tarde:
Artérias
As 4 estações:
Canoagem:
Montanhismo:
Operário em construção:
Arcanos do meu coração___ 114
Hipismo:
Que graça haverá
Alpinismo:
Asa-delta:
Esqui:
Natação:
O amante de dicionários
Voleibol de praia:
Basquete:
Já a seus beirais voltaram
Almada, milénio novo,___ 115
Um 10 de Junho:
O gordo tubarão
Filatelia de temática ornitológica:
O espeleólogo:
Nu,
Os ares outros,
P'lo bar aqui mais próximo:___ 116
Gaivotas bicam peixe
Ise, ver e amar os longes ares,
Ai linda flor!
Cantiga:
Branca arquitectura me visita,___ 117
Santo António, meu santinho,
Ah, o Camilo!___ 118
Adeus, eu vou com as aves.
Aquela triste e leda madrugada,
Boxe:
Pascoaes,
Le portugais est toujours gai.___ 119
Quem te manda a ti, sapateiro,
Hora
Pardalito, meu irmão,
Aux Alpes:
Meus amigos, que tristeza nascer em Portugal!___ 120
Puseram-me a ferros...
As Mães da Mãe,
Podes morrer:
Fruste borboleta,
Posologia:
As Twin Towers
Lei de talião:___ 121
Onde o destino dos poetas
Tejo:
Depois de ver,
Meiga borboleta,
Do sabor do pão:
Do vinho:
Da uva, o bago:
Da água:
Do peixe:
Do mel:___ 122
Do leite:
Do queijo:
Do iogurte:
Do pão-de-ló:
Quem canta seus males espanta.
De um devaneio trivial:
Setúbal,
Porque acresço aos favoritos da Web
Vexata questio:___ 123
Sólida árvore do meu coração!
Diversificados cursos
Variações,
Piscina de Alta Competição:
A vereadora do Pelouro da Cultura
Se não me lembrar de ti, Jerusalém,
Francisco de Assis,
Restauremos a Poesia, em Cristo:___ 124
Grafismo:
Quando de minhas mágoas a comprida maginação___ 125
Sedia-m'eu en la Ermida
Portalegre, Museu da Tapeçaria,
O justo viverá pela fé.
Os maus vi sempre nadar em mar de contentamento:___ 126
Dois cegos e um manco:
- Que tens tu no Algarve,
De ouvir ler "caminho da manhã", de Sophia:
Templo de Milreu,
Atravessas-me
Linguagem
Todos os anos, por esta altura,
Ise, vê!
Deus vê-nos e ama-nos como nos espera:___ 127
Previsão do estado do tempo:
Notícia do grave, geral e horrível crime:
Horas mortas, a sós com o meu Deus,
Maria, Fátima, Senhora,___ 128
XII) selecta quási literária
Nomes (e vozes):___ 128
P'las praias do sem-fim:
Minha riqueza o diz:
Uma estrela perdida no céu,
Queridas graças,
A estrela de Belém,
Quando o Reino de Deus chegar de vez,___ 131
Tanta vez aqui me achei,
PIN:
A multidão das crianças
De Miriam,
A noite mais longa do ano,
O que diz e canta o novo dia:
O que diz e cala a antiga noite:
Chafariz do Vento:
O cobrador de quotas___ 132
A nau dos sonhos solta!
Soidão querida,
Deslumbro-me
Ise, Ise,
Consumições,
Gato que brincas na rua
Homo oeconomicus:___ 133
Vida e Poesia:
A rapariguinha do Dancing:
Festa de Fim-de-Ano:
Resistir em Amor:
Alegria das tarefas do Partido:
Todos os anos pelo Entrudo,
Dia sim, dia não,
P'lo alvorecer:___ 134
Decepção:
Júoua bondoso,
Ai ver verá Ise os finos aires
Campanhã/S. Bento:
Uma boa noite,
- Sr. Carlos, sabia que no Jardim de S. Paulo
Vem a manhã.
- Depois falamos!
Ise, vê - e ama Pedrinhas da calçada iluminadas,___ 135
Yolanda ladina, a frescas horas,
Traseiras do Liceu, 4 da manhã:
Bandos de andorinhas
Cândido Guerreiro:
O sol parece um morango.___ 136
Rua Infante Santo,
O lugar da flor:
Perdoa-me
Programa de vida:
Minha Ise,
O mistério dos seios por debaixo das blusas...
Femíneas mulheres
De ir corrigindo uns soltos versos:___ 137
De um telefonema:
Lembras-te
Instante(s):
Pergunta-resposta:
Décima:___ 138
Balanço:
Paradoxo ou geometria do absurdo:
Narciso:
Ise, vê e ama
Retorno de um antigo tema:
Paráfrase:___ 139
Escura banda
Na noite dos planetas alinhados,
- Er sieht nur Sterne, Sterne!
A pomba do Santo 'Spríto
Ise, vê os veros ares
O que ficou da Copa do Mundo:
Está cá um encantamento___ 140
De olhar uma foto
Regresso a minhas hortênsias
Variante:
O sonho envolto:___ 141
obra.doc 318433
os 916 poemas
Próxima actualização 2002.08.13
Cd audio: http://angelooochoa.no.sapo.pt
Opera Omnia, LIvro de Horas: http://planeta.clix.pt/ochoa/index.html
E-mail: [email protected]
ECCE, RESURREXIT!
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