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Revista Textos do Brasil Br - Edição nº 14 – Capoeira A edição traz fotografias de Pierre Verger e desenhos do Carybé, que ilustram entrevistas e artigos de pesquisadores, mestres de capoeira e autoridades ligadas à cultura brasileira, na qual se destacam as significativas implicações da capoeira para a cultura e a vida social, como modalidade de jogo, dança, música e oportunidade para inserção social. A capoeira é uma arte que está fortemente relacionada com a história africana e que marcou profundamente a cultura brasileira. A obra foi apresentada pelo mestre Vila Isabel, do Núcleo de Capoeiragem Beribazau de Brasília e dois mestres brasileiros de capoeira de Angola, mestre Cobra Mansa e Mestra Janja no lançamento do livro, no Centro de Formação de Jornalistas Jornalistas (Cefojor) que faz parte da programação programaçã da semana do Brasil em Angola (Novembro de 2008). A Revista: • • • • • • • • • • • • • • • • • • • Prefácio Os desafios contemporâneos da capoeira As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira A repressão à capoeira O Capoeira A Guarda Negra: a capoeira no palco da política Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem A performance ritual da roda de capoeira angola A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos mítico Capoeira: metáforas em movimento A música na capoeira angola da Bahia A mulher na capoeira Entrevista com a Senhora Rosângela C. Araújo (Mestra Janja) As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX Benefícios educacionais, físicos e psicológicos da capoeira Capoeira e inclusão social A internacionalização da capoeira Carybé Pierre Verger Comentários: Aproveitamos o excelente material disponibilizado pelo Ministério das Relações Exteriores, para presentear os amigos e leitores do Portal Capoeira com uma compilação especial para o Natal da Revista Textos do Brasil - Edição nº 14 - Capoeira. Trata-se de uma composição reunindo todos os textos da Revista em um único arquivo organizado, disponível para download em nosso site. Fica ainda uma enorme satisfação ao ler a revista e encontrar em suas belíssimas páginas a presença de grandes amigos e parceiros que nos ajudam no dia a dia a construir o nosso Portal e contribuem para a disseminação com coerência e qualidade da nossa capoeiragem. Saudações Capoeirísticas Luciano Milani Editor Portal Capoeira Ministério das Relações Exteriores Esplanada dos Ministérios Bloco H - Palácio Itamaraty Anexo II - Sala 11 Brasília, DF - Brasil - 70170-900 Tel: (61) 3411-6713 Fax: (61) 3411-9226 A capoeira é uma das expressões mais características da cultura brasileira. É comum encontrarmos definições de que o “jogo da capoeira” consiste numa atividade esportiva, praticada em clubes, academias ou nas ruas, atividade sem regras fixas, mas que segue um protocolo característico, com música própria, no qual o instrumento musical que comanda o desenvolvimento do jogo e da roda é o berimbau. Trata-se, não obstante, de uma definição que reduz a prática da capoeira a seus aspectos puramente esportivos, preterindo todas as suas demais dimensões presentes na sociedade brasileira. O intuito desta publicação é justamente expor os elementos da capoeira que transcendem a atividade física, abordando as significativas implicações que sua prática engendra em diversas áreas da vida social, razão pela qual pode ser considerada como uma das mais complexas manifestações culturais brasileiras. Os aspectos mítico-religiosos da capoeira, por exemplo, integram uma dimensão do “sagrado”, marcante no Brasil, permeando as crenças, os modos de vida, os sonhos e as lutas de sua sociedade. Evidentemente, trata-se, como bem definiu Sérgio Buarque de Holanda, de uma religiosidade intimista e familiar, transigente a diversas contribuições espirituais e paradigmática da cordialidade que esse autor atribuiu ao brasileiro. Desse modo, o componente de magia que reveste o universo da capoeira, embora proveniente do imaginário popular, expressa o vasto campo de significados dessa manifestação afro-brasileira e de suas ligações com o sagrado, assim como muitas das manifestações e tradições da cultura popular no Brasil. Também o léxico da capoeira revela um pouco da relação idiossincrática do brasileiro com o meio ambiente. Com efeito, os nomes de movimentos e golpes da capoeira remetem, freqüentemente, a elementos da natureza, denotando a forte relação dessa prática com a observação do meio ambiente. Outro exemplo é a própria etimologia do termo “capoeira”, que, de origem indígena, significa “mata extinta”. Ademais dos aspectos sociais, pela história da capoeira revelam-se também determinados aspectos significativos da história do Brasil. As mutações ocorridas no jogo da capoeira refletem muitas das transformações ocorridas no país nos últimos séculos. Nesse sentido, a abordagem histórica não poderia deixar de fora comentários sobre a repressão da capoeira, verificada sobretudo ao longo do século XIX e início do XX. A despeito das iniciativas para re- primi-la, a capoeira superou todos os óbices que lhe foram impostos. Talvez isso tenha ocorrido justamente devido ao fato de se tratar de uma manifestação cultural ampla e profunda da índole brasileira, não sendo, por conseguinte, elemento de fácil repressão. Produto da cultura popular brasileira, a capoeira era vista com certas reservas pela elite, que a associava à badernagem, à vadiagem e à ausência dos bons costumes. Nesse sentido, é interessante notar que a capoeira é atualmente utilizada para resolver mazelas sociais das quais no passado era tida como causadora. Com efeito, a capoeira tem se mostrado excelente instrumento de inclusão social. Isso se deve, em boa medida, ao fato de que as atitudes dos capoeiristas na roda privilegiam a relação equilibrada entre os opostos, entre os diversos, num constante exercício de humildade e paciência. Em 2007, o Ministério das Relações Exteriores teve oportunidade de patrocinar a realização de mais de 50 eventos de capoeira em todos os continentes. Essa expansão da capoeira para outros países tem provocado um interessante processo de fortalecimento e de dinamização de sua prática. Existem, atualmente, diversos mestres estrangeiros que jogam capoeira tão bem quanto os brasileiros. Desse modo, talvez não seja exagero dizer que, embora a capoeira seja uma manifestação cultural originada no Brasil, e carregue, portanto, símbolos inquestionáveis de brasilidade, sua prática já é tão comum em âmbito internacional que se constitui em mais uma contribuição brasileira para o patrimônio cultural da humanidade. Prova disso são algumas das ilustrações dessa publicação – fotografias de Pierre Verger e desenhos de Carybé, ambos estrangeiros, mas que, por meio de sua arte, revelam ter apreendido adequadamente as peculiaridades da capoeira. Como anexo da presente edição da coleção Textos do Brasil, há um trecho do documentário “Mestre Bimba: a capoeira iluminada”, gentilmente cedido pela Lumen Produções. Inspirado no livro “Mestre Bimba: Corpo de Mandinga”, de Muniz Sodré, o filme apresenta depoimentos de antigos alunos e imagens, inéditas no cinema, da trajetória de vida de uma das principais referências do universo da capoeira. Desse modo, ao leitor que ainda não teve oportunidade de presenciar uma roda de capoeira, é apresentada uma amostra de seus movimentos, música e ritual. Quiçá a publicação e o documentário o incitem a tomar parte no fascinante mundo da capoeira... COORDENAÇÃO DE DIVULGAÇÃO Os Desafios Contemporâneos da Capoeira Luiz Renato Vieira e Matthias Röhrig Assunção SE RICANO F A S O RAV IROU DE ESC A IC T PÉRIO, V Á R IM P O A E . UENTE RANT SFORMO ITERALM IAL E DU N L N A , ” R O T L O . O D OC ELHA MUN PERÍOD DA POR BLICA V A O LTA DO Ú IC D P O T E V L “ A R A R A A U O FIN ER P ES N 0. A EIRA DE DESDE OU A S OPULAR S A P S D A S A P 0 E 197 A T A CAPO , 6 D N L 9 A E A 1 T M M E A U D O JE DAS DAS C , COM OS, DOC S DÉCA ADA HO CULINA A 1930 E S IC N CRIOUL T A E A D M IS R A IA A P IR DO SOC ÉCAD INCADE LASSES DO, SEN C IR DA D N T U S R A UMA BR M A S P EA ODA PELO ESPORT S E DE T NDIR-SE O A S. X P E X S E SE EM S INENTE UA SO T O O N Ç B O E M C M A CO DE 0, CO NOS CIN JOVENS DE 198 S A A O D S A S C DE PE DA DÉ HARES PARTIR IL M E D NTENAS POR CE Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Além da esfera estritamente acadêmica e do universo próprio da arte, a capoeira está cada vez mais presente em muitas outras esferas sociais, desde os palcos de teatro e salas de cinema aos anúncios de publicidade. Os Desafios Contemporâneos da Capoeira A percepção da capoeira também mudou radicalmente. De ofensa contra a ordem pública, passível de correição imediata com açoite, e de costume bárbaro de negro, obstáculo ao progresso que precisava ser erradicado, passou a ser vista como folclore exótico, digno de preservação e matriz de uma luta genuinamente brasileira. Mais recentemente, cresceu a enfâse sobre a dimensão cultural da arte, que está na iminência de ser declarada patrimônio imaterial do Brasil e da humanidade. A globalização da capoeira transformou-a numa expressão brasileira daquilo que o sociólogo Renato Ortiz, muito acertadamente, denominou cultura internacional-popular. Desde os anos 1980, a capoeira tornou-se também campo de reflexão acadêmica, em que se entrecruzam pesquisas de mestrado e doutorado realizadas, no Brasil e no exterior, em áreas como antropologia, história, sociologia, ciências da educação e educação física. Os próprios grupos de praticantes espalhados pelo Brasil e pelo mundo discutem os estudos sobre capoeira em círculos de debate ou nos eventos que organizam. Além da esfera estritamente acadêmica e do universo próprio da arte, a capoeira está cada vez mais presente em muitas outras esferas sociais, desde os palcos de teatro e salas de cinema aos anúncios de publicidade. A geração de capoeiristas que se formou a partir dos anos 1980 está, de fato, participando de uma transição fundamental na história dessa arte. Se os atuais praticantes se acostumaram a ouvir de seus mestres e professores histórias sobre perseguição, rodas interrompidas pela polícia e correrias nas praças e festas de largo, a realidade que passaram a viver é, regra geral, completamente diferente. A capoeira tem-se inserido nas instituições e no contexto político mais amplo por muitas vias, alterando dramaticamente sua prática e seu significado. Este cenário acelerado de mudança traz novos desafios tanto para os capoeiristas quanto para o Estado e os produtores culturais. A FORMAÇÃO DO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO DA CAPOEIRA. Voltemos um pouco no tempo, para explicar melhor a emergência da capoeira contemporânea. No início dos anos 1970, os capoeiristas ainda tinham algo de exótico. A própria capoeira era vista como uma manifestação cultural que buscava se afirmar como esporte, cujo lugar “natural” seriam as comunidades mais pobres e periféricas, de população predominantemente afrodescendente. Em instituições mais elitizadas, a capoeira ainda causava estranheza e, de fato, muitas delas fechavam suas portas para essa prática. Era necessário, portanto, um grande esforço de “organização”, dando continuidade à trajetória iniciada pelos capoeiras da primeira metade do século XX. Assim, as décadas de 70 e 80 se caracterizam como a época dos grandes projetos relacionados à capoeira, a maioria deles com algum grau de pioneirismo (embora houvesse muitas e importantes iniciativas isoladas anterio- 10 Foto: Alexandre Gomes res): capoeira na escola, na universidade, para portadores de necessidades especiais, nos cursos de licenciatura em educação física, em institutos de reeducação de menores infratores, como terapia, como “ginástica brasileira” e como objeto de dissertações e teses acadêmicas. Há na literatura sobre a capoeira diversos registros de trabalhos relevantes, em todas essas áreas e em algumas outras e não é nossa proposta aqui enumerá-los. O importante é destacar esse momento de mudança na história contemporânea da capoeira. Foi nas décadas de 70 e 80, também, que a capoeira conquistou seu lugar no cenário esportivo nacional, ainda sob a égide da Confederação Brasileira de Pugilismo, e obteve reconhecimento de vários órgãos governamentais ligados ao esporte e à educação. No início, as competições de capoeira assemelhavam-se às de outras modalidades de luta, não considerando toda a riqueza da arte, reduzindo-a a um simples esporte de combate. Aos poucos, foi-se chegando a formas mais elaboradas e completas de avaliação dos capoeiristas e as competições ficaram muito parecidas com as próprias rodas de capoeira. Convém lembrar o papel das competições de capoeira dos Jogos Escolares Brasileiros (JEBs) nesse processo, como laboratório para a construção de uma visão mais global da capoeira. É importante destacar que os anos 1980 foram também a década da expansão nacional dos grandes grupos de capoeira.1 Firmou-se esse modelo na organização da nossa arte, apesar dos esforços de alguns pela adoção do modelo tradicional das federações. Esse, sem dúvida, foi o passo que mais se destacou na história contemporânea da capoeira: a consolidação da lógica da organização na forma de grupos, em que o professor ou mestre que se forma e organiza sua escola procura vincular-se a uma instituição já reconhecida no mercado. Pode-se, inclusive, discutir em que medida essa forma de organização contribui para preservar a diversidade e a riqueza cultural da capoeira e para o fortalecimento coletivo da arte como forma de resistência cultural. Outra tendência importante, a partir do início dos anos 1980, foi a revalorização das tradições e dos “velhos mestres”, juntamente com o fortalecimento dos grupos de capoeira angola, que ganharam muito espaço à medida que a comunidade da capoeira começava a questionar os caminhos da desportivização.2 Iniciou-se, assim, uma trajetória de reafricanização da capoeira, principalmente nos centros de prática mais tradicionais, que se refletiu nas linguagens próprias da capoeira: na musicalidade, na instrumentação musical e até mesmo na abordagem histórica dos pesqui- (1) Cabe, aqui, um esclarecimento: no universo da capoeira, um grupo representa uma escola fundada por um ou mais mestres e reúne, sob um mesmo nome, os núcleos de ensino constituídos por seus alunos que alcançam a condição de professores ou mestres. Há grupos pequenos, reunindo dois ou três núcleos de ensino de capoeira, e grandes grupos, organizados juridicamente em moldes empresariais e disseminados em todo o mundo. Com certa freqüência, ocorre de o capoeirista já formado se desligar de um grupo e aderir a outro, já na condição de professor, por razões profissionais. Essas circunstâncias modificaram profundamente o significado da relação mestre-aluno no mundo da capoeiragem. Se, até os anos setenta, o nome do mestre era praticamente o sobrenome do capoeirista (p. ex. Mestre João Pequeno de Pastinha), atualmente o praticante se identifica pelo grupo do qual faz parte. (2) É importante observar que durante a década de 70, período marcado pela vigência do regime militar e por intenso espírito de modernização e de desenvolvimento econômico, enfatizou-se a abordagem da capoeira a partir de seus aspectos esportivos e de “arte marcial brasileira”. 11 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Esse, sem dúvida, foi o passo que mais se destacou na história contemporânea da capoeira: a consolidação da lógica da organização na forma de grupos, em que o professor ou mestre que se forma e organiza sua escola procura vincular-se a uma instituição já reconhecida no mercado. sadores, que passaram a acentuar as origens africanas e buscar lutas ancestrais e “irmãs” da capoeira, como a ladja, da ilha caribenha Martinica, e o moringue, do Oceano Índico. O nacionalismo simplista, anteriormente tão forte, passou a dar lugar a uma visão mais global da cultura e do processo de formação da capoeira, inserindo-a na história da resistência dos africanos escravizados e de seus descendentes mundo afora. Viu-se que a capoeira precisava ser tratada como um esporte, mas que a arte não poderia ser reduzida somente ao seu aspecto desportivo. Essa abordagem culturalista, então, foi muito enfatizada a partir dos anos 1980, quando as palavras “resgate” e “bagagem” passaram definitivamente a fazer parte do vocabulário comum dos capoeiristas. Sintomaticamente, os capoeiristas, que tinham passado a utilizar atabaques com tarraxas, mais funcionais e fáceis de afinar, voltaram a preferir os tambores trançados com grossas cordas de sisal. É nessa perspectiva – como cultura, e não como modalidade esportiva – que a Os Desafios Contemporâneos da Capoeira Foto: Lilia Menezes capoeira ganha o mundo nos anos 1990. Passada a fase da afirmação de sua riqueza no Brasil, a capoeira torna-se um fenômeno cultural de massa em escala mundial. Passou-se do perfil aventureiro do capoeirista que ia arriscar a vida no exterior nos anos 1970 para uma visão estratégica, de conquista de mercados. Assim, atualmente não há grupo consolidado no Brasil que não tenha os seus representantes sediados no exterior. A capoeira é facilmente vista e reconhecida como tal em qualquer grande cidade do mundo, com poucas exceções. Já é possível ver, com certa facilidade, professores autóctones, formados por brasileiros, ensinando capoeira em seus países. Esse é o desafio que se coloca para nós, estudiosos e praticantes: compreender a nova inserção da capoeira como fenômeno incorporado à cultura internacional-popular, em que em alguns momentos se destacam suas raízes brasileiras ou sua inserção no mercado de consumo e, em outros, se va- 12 Capoeira Os Desafios Contemporâneos da Capoeira loriza sua ancestralidade africana e seu potencial de crítica à cultura ocidental. É fundamental, portanto, entender essa expansão internacional no contexto da dinâmica da cultura globalizada, mas também na sua lógica interna, que reflete essas contradições. OS ESTILOS NA CAPOEIRA CONTEMPORÂNEA. A modernização e a desportivização da capoeira a partir da década de 1930 resultou na formação de dois estilos distintos. O primeiro estilo moderno, a capoeira regional, foi criado pelo Mestre Bimba (1900-1974) apoiado por um grupo de alunos. Bimba partiu de uma crítica da antiga “vadiação baiana”, que não estaria à altura das novas lutas que vinham desafiando a capoeira nos ringues de luta livre da época. Bimba selecionou as técnicas que lhe pareciam mais adequadas, eliminou outras que considerava ultrapassadas e integrou alguns golpes novos – geralmente de grande eficácia – à sua “luta regional baiana”. Mais importante ainda foi o de- vida de que representa um estilo novo, que se definiu não somente a partir da continuidade com a capoeira baiana como se praticava na década de 1930, mas também a partir da oposição sistemática ao estilo regional. Ou seja, se, por exemplo, na regional utilizavam-se balões, os angoleiros condenavam seu uso, mesmo que esses existissem na capoeira baiana “tradicional”. Além do mais, é preciso lembrar que a capoeira baiana antes da modernização não era homogênea e uniforme, mas que cada mestre ensinava um conjunto específico de movimentos, ritmos e rituais. Tanto que a capoeira de outros mestres antigos como Waldemar, Cobrinha Verde ou Canjiquinha podia ter características bastante distintas da forma ensinada por Pastinha. Dessa maneira, nunca houve tradição única e monolítica na capoeira baiana antiga, o que, por sua vez, facilitou que posteriormente cada grupo ressaltasse elementos diversos e mesmo conflitantes da “tradição”. Por outro lado, convém salientar que ambos os estilos – regional e angola Foto: Acervo Luiz Renato Foto: Acervo Luiz Renato senvolvimento de uma didática, a formalização do ensino na academia – treinos com uniforme – e a imposição de uma disciplina e uma ética desportiva. Mas, apesar de grande sucesso, principalmente a partir da década de 1960, seu estilo não logrou unanimidade entre os capoeiras baianos. Outra corrente, liderada a partir da década de 1940 por Mestre Pastinha, se propôs a manter justamente aqueles elementos da antiga capoeira que a regional decidiu descartar, como as “chamadas”, o “jogo de dentro” mais lento, a teatralidade na roda, assim como uma série de rituais (começando pelas ladainhas iniciais). Enquanto Bimba destacava a inovação, Pastinha e seu grupo enfatizavam o resgate da tradição. Por essa razão, escolheram a denominação capoeira (de) angola para designar seu estilo, ressaltando, dessa forma, a continuidade em relação às origens africanas da arte. Mas, apesar dessa postura tradicionalista – de resto, característica dos angoleiros até hoje – não resta dú- – coincidem na sua ruptura com a malandragem antiga, transferindo a prática da capoeira da rua para uma academia, com treinos regulares, uniformes e regulamentos, expandindo o ensino a grupos maiores de alunos e recrutando novos segmentos da população brasileira: crianças e jovens da classe média e mulheres. A expansão da capoeira moderna pelo Brasil a partir desses dois estilos baianos complicou ainda mais a questão. A difusão ocorreu de várias maneiras: (1) por meio de alunos já formados pelos mestres baianos que se fixaram em outros estados, sendo que a grande maioria migrou para cidades do Sudeste; (2) por iniciativa de alunos de outros estados que só receberam instrução ocasional desses mestres quando iam à Bahia. Nesse caso, o caráter autodidata da prática encorajava mudanças de estilo, como se pode ver no caso do grupo Senzala do Rio de Janeiro. Além do mais, as capoeiras baianas vão encontrar em várias ci- 13 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Em outras palavras a transformação da capoeiragem – entendida aqui como o contexto social da capoeira – também impactou o conteúdo da arte. Acreditamos, por isso, que é preciso, além da clássica oposição binária angola–regional, distinguir vários estilos de capoeira, dependendo dos aspectos enfatizados: luta, tradição, cultura, brincadeira ou dança. Os Desafios Contemporâneos da Capoeira dades tradições locais de capoeira. A importância dessas formas locais para a formação dos estilos contemporâneos é muito controversa, sobretudo no caso do Rio de Janeiro, onde professores como Sinhozinho já ensinavam um estilo de capoeira sem música antes da chegada dos baianos. Atraídos pela esperança de melhorar suas condições de vida, muitos baianos migraram para as cidades do Sudeste entre 1950-1980 (depois dessa data, parte desse fluxo destinar-se-á ao exterior). Entre os capoeiristas-migrantes havia mestres, alunos formados e praticantes amadores. Fora do Nordeste, a prática da capoeira virou parte da cultura específica dos migrantes, e como tal, incorporou referências nostálgicas à Bahia que ainda caracteriza a arte até hoje. A situação de exílio criou laços de solidariedade entre capoeiristas de estilos diferentes, a ponto de enfraquecer a oposição regional-angola. Houve muitos casos em que professores e mestres de angola e regional ensinavam e criavam grupos juntos, particularmente em São Paulo (Cordão de Ouro etc.). Mas, de maneira geral, o estilo angola, mais dependente de todo um referencial cultural afro-baiano de mais dificil assimilação pelos novos grupos de praticantes, não se logrou impor durante esses anos. Predominou um estilo de jogo mais próximo da forma ensinada por Bimba, mesmo que fosse sem a sua didática (como o treino das oito seqüências).3 A música dos grupos fora da Bahia tampouco era típica da regional. Em vez dos toques de berimbau ensinados pelo Mestre Bimba, treinava e jogava-se sobretudo ao ritmo de São Bento Grande de Angola.4 Por essa razão a geração seguinte dos mestres vivendo fora da Bahia reduziu a ênfase na oposição entre angola e regional, freqüentemente argumentando que “a capoeira é uma só”. Essa postura “ecumênica” tinha e tem várias vantagens. Primeiro, amenizava conflitos entre capoeiristas, em um momento em que ainda era necessário convencer a opinião pública de que sua arte não era “coisa de marginal”. Segundo, ia ao encontro de toda uma corrente nacionalista que tinha como objetivo fazer da capoeira não somente um esporte, mas a luta brasileira, expressão privilegiada da identidade nacional. Sob os auspícios do regime militar instalado em 1964, criou-se a Federação Paulista de Capoeira, em 1970, e o departamento de capoeira da Confederação Brasileira de Pugilismo (CBP), em 1972, que reunia as lutas que não possuíam confederações específicas. Os grupos-membros se comprometiam a implementar regras estabelecidas pela Federação, que iam da utilização obrigatória do uniforme, da saudação (3) As “seqüências da capoeira regional”, ou “seqüências de Mestre Bimba” configuram uma das mais importantes características do método de ensino criado por esse importante mestre baiano. Consistem em séries de movimentos de ataque e defesa, formando lutas simuladas e atuando como uma espécie de inventário dos principais golpes e técnicas da capoeira regional. As seqüências (alguns consideram uma seqüência com oito partes) eram utilizadas para o ensino dos iniciantes e para o treinamento diário dos capoeiristas em estágio mais adiantado. (4) Além de fornecer a base rítmica para o desempenho da “bateria” da capoeira, o berimbau tem um importante valor simbólico significativo na roda. Os toques do berimbau expressam algumas escolhas do grupo ou do mestre que conduz a roda, determinando a velocidade e outras características do jogo. Assim, além de diversos outros, existem toques “de angola” e “de regional”. 14 Capoeira Os Desafios Contemporâneos da Capoeira inicial (o “Salve!”, ainda hoje adotado por muitas escolas de capoeira) até ao regulamento minucioso de competições. Se essa evolução facilitou a integração da capoeira em atividades escolares e deportivas em âmbito nacional, e, por conseqüencia, outra onda de expansão pelo Brasil afora, gerou, por outro lado, reações contrárias por parte de capoeiristas comprometidos com o ideal de resistência. Diversos grupos, alguns dos quais grandes, não somente se recusaram a aderir à federação, mas buscaram demarcar claramente essa linha, estabelecendo, por exemplo, sistemas de graduação e seqüências de cores de cordéis de graduação alternativos. Nesse processo, o resgate das tradições afro-baianas começou a assumir papel importante, a ponto de alguns deles aproximarem-se da capoeira angola. Isso coincidiu, é claro, com a revalorização da cultura afro-brasileira pela qual lutava o movimento negro. Esse processo também favoreceu o fortalecimento da capoeira angola, que havia passado por longa fase de declínio marcado pela extinção de toda uma geração de antigos mestres baianos e que culminou com a morte de Pastinha (1981). A partir da década de 1980, esse estilo passa a formar novos mestres e a conquistar novos adeptos não só no Brasil, mas também no exterior. A partir de então, ocorrem tensões entre um estilo angola, cujos grupos invocam uma linhagem direta com um mestre baiano, e estilos que poderiamos denominar de “angolizados”, por incorporar parte das características estilísticas dos angoleiros, mas sem abandonar outras características suas, consideradas “regional” pelos primeiros. Isso ocorreu a ponto de alguns grupos passarem a reivindicar a condição de angoleiros, qualificativo que lhes é negado pelos praticantes do que poderiamos chamar o “núcleo duro” da angola. A situação torna-se ainda mais confusa quando nos referimos ao qualificativo “regional”. Para os angoleiros em geral, todos os demais estilos são classificados, indistintamente, como pertencentes à Regional, vocábulo que assume, muitas vezes, conotação negativa em suas falas. Do outro lado do espectro estilístico, alguns herdeiros diretos de Bimba, que procuram manter o estilo do mestre sem outras grandes inovações, igualmente proclamam que só eles merecem o epíteto de regional. Por isso, muitos mestres de capoeira que não pertencem a nenhum desses dois extremos ou estilos “puros” começaram a se autodefinir como fazendo capoeira “contemporânea”, ou afirmar que praticam os dois estilos (o que se afigura vantajoso do ponto de vista do mercado de ensino, cada vez mais competitivo). Também é comum o uso da expressão “angonal” como termo depreciativo pelos puristas, para desqualificar quem está “em cima do muro”, mas reivindicado abertamente por outros. Falar de capoeira “contemporânea”, no entanto, não esclarece muito de que capoeira se trata, dado que há muitas formas distintas na atualidade, a começar pela angola e regional contemporâneas. A saída da capoeira do seu contexto original e seu ingresso em academias, escolas, universidades, palcos de dança, competições de luta livre e até salas de terapia multiplicou sentidos, significados, formas, maneiras de treinar e de jogar. Em outras palavras a transformação da capoeiragem – entendida aqui como o contexto social da capoeira – também impactou o conteúdo da arte. Acreditamos, por isso, que é preciso, além da clássica oposição binária angola-regional, distinguir vários estilos de capoeira, dependendo dos aspectos enfatizados: luta, tradição, cultura, brincadeira ou dança. Foto: Embratur 15 Foto: Alexandre Gomes Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Foto: Lilia Menezes Nessa trajetória de massificação e expansão internacional – às vezes como desporto, outras vezes como manifestação predominantemente cultural – constroemse e reforçam-se diversos estereótipos. Como em qualquer outro processo relacionado à dinâmica cultural, há ganhos e perdas. Os Desafios Contemporâneos da Capoeira DESAFIOS E PERSPECTIVAS. Esse complexo cenário, que neste texto apenas esboçamos, coloca para a nova geração de praticantes e, de resto, para os dirigentes de grupos, academias e gestores públicos, uma série de questões fundamentais para o desenvolvimento da capoeira. Se as gerações anteriores precisaram lidar com um possível desaparecimento da capoeira – uma vez que isso, de fato, ocorreu com outras manifestações brasileiras de danças de combate ou lutas viris, como o batuque, a pernada carioca e a tiririca – os dilemas que se apresentam no cenário atual são de ordem completamente diferente. A capoeira está presente no dia-a-dia dos brasileiros e difundiu-se como um dos principais símbolos da cultura brasileira no exterior. Nessa trajetória de massificação e expansão internacional – às vezes como desporto, outras vezes como manifestação predominantemente cultural – constroem-se e reforçamse diversos estereótipos. Como em qualquer outro processo relacionado à dinâmica cultural, há ganhos e perdas. Por desafios contemporâneos entendemos os temas que, em nossa opinião, precisam figurar na agenda de discussões sobre a capoeira nos tempos atuais, seja no debate sobre a atuação dos capoeiristas no exterior, seja em termos do planejamento da atuação governamental envolvendo os diversos aspectos relacionados à prática, ensino e à divulgação da arte. Uma das questões que identificamos como fundamentais no debate contemporâneo diz respeito à transmissão das tradições e dos conhecimentos ancestrais da capoeira. Essa temática materializa-se na discussão sobre quais são as condições exigíveis para que um praticante da arte se torne professor ou mestre. Afinal, a noção tradicional de mestre – indivíduo reconhecido pela comunidade e portador de saberes ancestrais, transmitidos por oralidade e pela convivência cotidiana e prolongada com o discípulo – vem sendo substituída pelo capoeirista cuja condição de mestre passa a ser outorgada por determinado grupo, federação ou alguma entidade de caráter mais ou menos oficial. A comunidade 16 Capoeira Os Desafios Contemporâneos da Capoeira Foto: Alexandre Gomes destacaram.5 É importante lembrar a intensa discussão iniciada no final da década de 90 e, com menor ênfase, ainda em curso, sobre a atuação do professor de educação física no ensino da capoeira. A lei federal nº 9.696, editada em 1998, regulamentou a atuação do profissional de educação física e criou os respectivos conselho federal e conselhos regionais. Ocorre que, em virtude de um entendimento ampliado – e conforme se verificou posteriormente, equivocado – do conceito de “atividade física”, procurou o Conselho Federal disseminar a concepção de que, a partir da edição da lei, a capoeira estaria entre as atividades cujo ensino seria de exclusividade do professor de educação física. Chega-se, assim, a outro tema que, em nossa avaliação, configura um importante dilema da capoeira nos tempos atuais, concernente à preservação da diversidade cultural da arte. Ora, por mais que possamos considerar a capoeira uma linguagem corporal fundamentada em elementos universais, há diferentes formas de compor seus elementos, produzindo “sotaques” diferentes. E não estamos nos referindo aqui apenas à distinção angola-regional. Estamos remetendo a diferenças internas nessas grandes escolas da capoeira, que vão das características técnicas do jogo às concepções sobre rituais e padrões éticos que orientam o capoeirista. O desenvolvimento dos grandes grupos de capoeira, com sua organização empresarial e sua estratégia agressiva de expansão para o interior do Brasil e para outros países, chegou a causar apreensão nos estudiosos quanto à possibilidade do desaparecimento das ricas manifestações da capoeiragem nas comunidades do interior do Brasil e nas periferias das grandes cidades. Dessa forma, a ação das entidades ligadas à difusão da cultura e, principalmente, dos órgãos governamentais que atuam na área, precisa pautar-se pelo princípio de que não há uma capoeira apenas, mas capoeiras, no plural. Preservar essa diversidade e difundir uma cultura de tolerância é preservar um cenário em que cada manifestação particular da capoeira encontra seu lugar. Em muitos casos, preservar a diversidade da capoeira envolve assegurar aos capoeiristas condições para que possam viver de seu ofício. E isso se torna, no Brasil atual, particularmente complexo no caso de mestres idosos que vivem nos tradicionais centros da capoeira nacional (cidades como Salvador, Rio de Janeiro e Recife) e também em pequenas localidades do interior, onde sobrevivem manifestações tradicionais da capoeira. Consideramos esse um dos importantes desafios a serem enfrentados na imple- da capoeira está muito longe de um consenso a respeito do assunto. Embora as principais escolas ou grupos de capoeira obtenham sucesso na intenção de legitimar os mestres (temos, portanto, o mestre que se firma em virtude do peso da entidade que representa, além de suas qualidades e saberes individuais), há todo um universo de prática da capoeira que se encontra à margem desses espaços de convívio da arte, onde não há referências claras no que concerne à formação de um professor de capoeira. Esse tema se torna ainda mais complexo quando tratamos da expansão internacional da capoeira. Afinal, há uma tendência natural das entidades e indivíduos que acolhem o capoeirista brasileiro no exterior no sentido de querer conhecer suas referências no Brasil. Não há solução simples para a questão. Algumas alternativas propostas e bastante discutidas no âmbito da capoeiragem apresentam mais problemas do que soluções, como, por exemplo, autorizar determinada federação ou entidade governamental a implementar um cadastro “oficial” de mestres ou pessoas autorizadas a ensinar a arte. O tema precisa ser aprofundado, e caminhos precisam ser definidos, ainda que não seja viável definir critérios aplicáveis a todos os estilos para a obtenção do grau de professor ou mestre. Os mestres pioneiros na expansão da capoeira pelo exterior sempre manifestaram preocupação com a chegada de capoeiristas, muitas vezes desconhecidos no Brasil e sem qualquer experiência de ensino, que estabelecem trabalhos e, muitas vezes, se auto-intitulam mestres. Esse fenômeno, da utilização indevida dos títulos de professores ou mestres, já foi uma preocupação no Brasil, mas, atualmente, a difusão da capoeira e a formação de um mercado próprio, com o esclarecimento da população, coibiu significativamente a atuação de professores sem a devida qualificação. O mesmo, entretanto, ainda não ocorre no exterior. À falta de uma discussão aprofundada sobre a questão, formou-se um cenário complexo, em que alguns atores se (5) É importante observar que, pela legislação em vigor no Brasil, não há exclusividade assegurada às entidades de organização esportiva como federações ou confederações. Não se pode, portanto, considerar tais entidades “oficiais”, no sentido de terem maior respaldo do poder público do que quaisquer outras no que concerne à organização e representação dos praticantes de uma determinada modalidade. Pode haver para uma mesma modalidade esportiva – e, de fato, em muitos casos há – mais de uma federação por Estado ou mais de uma confederação de âmbito nacional. Isso sem falar nas ligas e outros tipos de associações, que, em relação ao tema aqui abordado, têm as mesmas prerrogativas na representação dos praticantes que federações. No caso da capoeira, alguns grupos constituíram suas próprias federações, confederações ou ligas. 17 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil O Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores (MRE), por meio de suas embaixadas e consulados, tem assegurado apoio aos capoeiristas que atuam fora do Brasil, mas entendemos que esse suporte pode ser mais sistemático. Os Desafios Contemporâneos da Capoeira mentação de uma política pública de valorização da capoeira como patrimônio cultural brasileiro. Nesse sentido, cumpre registrar a importância do projeto Capoeira Viva, do Ministério da Cultura (MinC), lançado 2006, no Rio de Janeiro, com o objetivo de promover a capoeira e lançar as bases de uma iniciativa governamental consistente para o setor.6 O projeto consiste basicamente no apoio, mediante regras publicadas em edital de ampla divulgação, a projetos relacionados à capoeira em diversas áreas, da organização de acervos documentais a ações relacionadas ao ensino da arte em comunidades pobres. Outras ações do governo federal foram lançadas anteriormente, e algumas remontam aos anos 1980. Entretanto, o que peculiariza o projeto Capoeira Viva, em nossa avaliação, é o esforço no sentido de assegurar a transparência na definição de critérios para a seleção de projetos a serem financiados e a ampla divulgação de seus resultados. Dessa forma, tem-se, no início do século XXI, uma primeira ação governamental, de caráter sistêmico, relacionada ao desenvolvimento da capoeira. Em relação ao importante movimento de resgate das tradições ancestrais da capoeira, gostariamos de salientar o caráter restrito da apropriação da memória histórica e de diversos outros saberes relacionados à capoeira. Infelizmente, o esforço na direção do aprofundamento das pesquisas sobre a capoeira não tem encontrado correspondência em ações de divulgação desses saberes para a comunidade de praticantes e para a sociedade em geral. Ou seja, a pesquisa, que tem nos antigos capoeiras e nas comunidades algumas de suas principais fontes, acaba promovendo um deslocamento desses saberes, fomentando a produção de uma elite de grupos e de capoeiristas com formação acadêmica elevada, mas com pouca consciência acerca da importância da existência de mecanismos de democratização desses conhecimentos. Identificamos aí mais uma frente de atuação do Estado como promotor da cultura popular e da cidadania, não somente no sentido de viabilizar a pesquisa, mas de, junto com ela, criar as condições para que se fortaleça o ambiente em que ela se produz como expressão da vida das comunidades. Finalmente, é necessário discutir as possibilidades de apoio aos mestres e professores de capoeira no exterior. O Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores (MRE), por meio de suas embaixadas e consulados, tem assegurado apoio aos capoeiristas que atuam fora do Brasil. As embaixadas poderiam, entretanto, fortalecer seu papel de pontos de referência da cultura brasileira, proporcionando, bibliotecas e videotecas para os mestres e professores e demais interessados. Gostaríamos de sugerir, ainda, a criação de conselhos informais de capoeira, apoiados pelas respectivas embaixadas, nos países onde ela já alcançou expressão significativa. Caberia a esses conselhos (6) O sítio eletrônico do projeto se encontra no endereço: www.capoeiraviva.org.br 18 Capoeira Os Desafios Contemporâneos da Capoeira opinar na hora de assegurar registro dos profissionais de ensino – sempre preservando a pluralidade dos estilos – ou contribuir para a transparência nas decisões e patrocínios que concernem à capoeira. Como já foi apontado no caso do Capoeira Viva, é necessário que o crescente fluxo de financiamentos para a capoeira através das diferentes leis de incentivos culturais sejam submetidos ao controle social, garantindo o acesso aos editais e a fiscalização dos resultados. Acreditamos que a capoeira e as políticas públicas que a apóiam podem, inclusive, servir de exemplo para a globalização de outras manifestações culturais brasileiras, o que já está ocorrendo de forma incipiente com as batucadas de samba e os maracatus. CONSIDERAÇÕES FINAIS. O processo de globalização da capoeira constitui-se em um momento privilegiado para a reflexão sobre a expansão da cultura brasileira pelo mundo. Entendemos que, em um mundo marcado pela circulação da informação pela Internet em velocidade instantânea, com recursos como os sítios de compartilhamento de vídeos (ferramenta amplamente utilizada pelos capoeiras de todo o mundo), não se pode pensar no papel do Brasil a partir de uma ótica essencialista. Ou seja, afirmar a brasilidade da nossa arte pode ser importante, mas não é mais suficiente para garantir ao Brasil papel de destaque no mundo contemporâneo da capoeira. O protagonismo do Brasil no universo atual da capoeira só pode se justificar a partir de um conjunto de ações que, de fato, valorizem a cultura da capoeira como tradição e como fazer cotidiano, incorporado às diversas instâncias da sociedade brasileira. Apenas assim, para além de ter o privilégio de sediar os mitos de origem e de ser o cenário em que ocorreram os feitos dos grandes capoeiras do passado, o Brasil seguirá sendo reconhecido, em todo o mundo, como a fonte da memória histórica e de novas experiências relacionadas ao jogo, à musicalidade e ao ensino da capoeira. Foto: Alexandre Gomes Luiz Renato Vieira. Doutor em Sociologia da Cultura. Consultor Legislativo do Senado Federal na área de assistência social e minorias. Mestre de Capoeira do Grupo Beribazu e coordenador do Projeto Capoeira Comunitária da UnB. Membro do Conselho de Mestres do Projeto Capoeira Viva (MinC). Autor do livro “O Jogo da Capoeira: Corpo e Cultura Popular no Brasil” (Rio de Janeiro: Sprint, 1998). E-mail: [email protected] Matthias Röhrig Assunção. Doutor em História. Professor do Departamento de História da Universidade de Essex (Inglaterra) e professor visitante no Mestrado em História da Universidade Federal Fluminense. Bolsista da CAPES. Autor do livro “Capoeira. The History of an Afro-Brazilian Martial Art” (London:Routledge, 2005) E-mail: [email protected] 19 As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira Guilherme Frazão Conduru OP RES ENT POE EA IRA E PR RTIGO D CAP OCU EDIC OEIR RA I A-SE A TO D DEN ASS U T E PA IFICA A UMA MEM RTID REC DEV RM D ISTIN ONS OME A, A E-SE T T N O I C NVE T S CAP ARA O PAP S DE ITUIÇÃO STIG OEIR CTE É IS N CISIV AÇÃ RIZ DA A” ENV A RE TRA OS A OLV . CONSIS AR O QU O REQ A JETÓ LIDA P U E TR A T E E RIA R E TEM R D V T N I E E E R A FI UMA MA INAM HIST E D REG N O X SER O IM S QU AÇÃ ÓRIC ATIV ENT RAS PRÓ A O A O FÍ AIS AD IDAD GINÁ PRÁ FIXA D PRIA O S A A CA ICO E PR TICA S; O CON RIO CAP , NO E DA C A B S O Q O C T E O Q E E U M ICAD DEC CIAL IRA UAL ITO EÉH ROD V I S E E A D . CO TAS , CO O IN AÉ OJE O DICO EM C MO AO J NTU STR O BE CON E CAPO L – TA U P O U D B E O RIMB HEC MEN GO N IRA, ES, “ O, A NLVE UM IDA AU. TO M ACA OU ZO A “R UM FOR C S D S O O A TE C US E, PO PRO EJA, EMIA DA D MO PEL TOC OMP SPECTO “JOG R UM ICAL Q S” O E CA DE E O O O M U U NA LO C POE NEN E CO AIS LAD LUD DA OC IRA” PER TE D ARA RUA O, A IR E M OMP A . M N C ESS , QU E DA ENV MÚS ANE DA O TER ONE E JO VEN E OLV NÇA ÍSTIC ICA NTE NTE D G CED E E O P , S O R A Q Õ E N D T , U O E N O R COM E LU ÃO E, N VOL REV EM E OPO ÇA, O EN AVÉS D TA, VIME DE A MÚS NEN ENC VIDÊ A Q T NTO UE I TE/P ICA IDO. HIST RTE ANT NCIA MAIS MPL O, E ÓRIA ASS DO MAR ARC S RICA E I N J U I C E O M CIAL CON –,P A CO IRO. S MA OR O CARÁTE GO E DE , INCOR TRA ESS NTA NIFE P A R LÚ S UTR ORA T D STA O, E NDO O CORP FUNÇÃO E SUBO ÇÕE IVERTIM XPR RDIN ORA , PO ELEM S DA ENT I ME A R SU L, O EN ENT CUL A VE DO AO OS D MAS N TRE TUR PA Z, EV ÃO A PO AMIG ESP NEC ORT IDEN PUL O S E ,AC IVOS SSA AR B CIA R APO , MU RAS EIRA ILEIR SICA IAMENT E IS, D A. CON E DA STIT NUI U MA DAS Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil A interpretação da obra dos cronistas viajantes estrangeiros – que passaram a nos visitar com maior freqüência a partir da chegada da família real portuguesa em 1808 – muito tem contribuído para a reconstituição dos costumes e da sociedade brasileira do período. Nesse sentido, parece ser de Johann Moritz Rugendas (1802-1858) a primeira descrição da capoeira (1835). As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira Deve-se reconhecer, entretanto, que a definição acima é historicamente definida. Sua aplicação indiscriminada – como, por exemplo, ao jogo de capoeira tal como praticado nos tempos da Independência ou nos tempos do Segundo Reinado – constituiria exemplo de anacronismo. A identificação das metamorfoses da capoeira e das transformações na forma de sua inserção na sociedade constitui o tema que, a seguir, se explora. 1. AS PRIMEIRAS REFERÊNCIAS (C. 1770-1830). Há quem fale na prática da capoeira desde os tempos do Quilombo dos Palmares. 1 A associação da capoeira com a história da resistência negra à escravidão é, com efeito, instigante: seria ela não só um folguedo, por meio do qual os escravos se esqueciam momentaneamente das agruras de sua condição, mas também um instrumento de luta para a conquista da liberdade. O estádio atual da pesquisa histórica, todavia, não permite identificar a prática do jogo da capoeira entre quilombolas. 2 Pode-se, no máximo, encontrar referências que remontam à segunda metade do século XVIII, e num ambiente urbano. O memorialista Luis Edmundo descreve o capoeira dos tempos do Vice-Reinado no Rio de Janeiro como uma figura soturna, aventureira e astuciosa, que, no entanto, não deixava de reverenciar as imagens sacras dos oratórios públicos, então muito presentes na paisagem urbana da capital da colônia.3 Na obra de Elísio de Araújo sobre a história da polícia na antiga capital4, encontra-se testemunho distinto – menos literário e mais convincente. Citando o ilustrado Dr. J. M. Macedo, sem, contudo, mencionar a obra, discorre: Já no tempo do Marquês de Lavradio, em 1770, existia na pessoa de um oficial de milícias, o Tenente João Moreira, por alcunha “o amotinado”, que, dotado de prodigiosa força, de ânimo inflamado, talvez fosse o mais antigo capoeira do Rio de Janeiro, porque, jogando perfeitamente a espada, a faca e o pau, dava preferência à cabeçada e aos golpes com os pés. Esta informação sugere que “o amotinado” teria sido um antecessor do célebre major Vidigal, homem de confiança do primeiro intendente de Polícia do Brasil, Conselheiro Paulo Fernandes Viana, que fora nomeado pelo Príncipe Regente Dom João. Vidigal ficou imortalizado (1) Ver, por exemplo, a entrevista do Mestre Almir das Areias ao jornal Movimento em 13.09.1976, citada por Roberto Freire em Soma, uma terapia anarquista, vol. 2/Prática da Soma e capoeira, p.160-168, Editora Guanabara-Koogan, Rio de Janeiro, 1991. Da mesma forma, no filme Quilombo (1983), do diretor Cacá Diegues, aparecem cenas que sugerem a utilização de golpes de capoeira. (2) Cf. Memorial de Palmares, de Ivan Alves Filho, Xénon Editores, Rio de Janeiro, 1988. (3) Cf. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, Athena Editora, Rio de Janeiro, s/d. (4) Cf. Estudo histórico sobre a Polícia da Capital Federal de 1808 a 1831, Primeira parte, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1898, p. 56. 22 São Salvador J. M. Rugendas, 1802 - 1858 (...) Os negros têm ainda um outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a capoeira: dois campeões se precipitam um contra o outro, procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente hábeis; mas, lançando-se um contra o outro, mais ou menos como bodes, acontece-lhes chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça, o que faz com que a brincadeira não raro degenere em briga e que as facas entrem em jogo ensangüentando-as.8 como personagem das Memórias de um Sargento de Milícias que impunha às ruas do Rio de Janeiro sua discricionária “inquisição policial”.5 A fama do major Vidigal teve origem no seu infatigável combate aos quilombos, candomblés e capoeiras. Teria sido o criador da temida sessão de tortura conhecida como “ceia dos camarões”6 reservada aos capoeiras e vagabundos que infernizavam a vida carioca. Apesar de a primeira codificação criminal brasileira – o Código Criminal do Império do Brasil, de 1830 – não especificar os capoeiras, eles estariam enquadrados na categoria de “vadios e mendigos”, da qual trata o Artigo 295 do Capítulo IV.7 De fato, o praticante da capoeira era identificado como integrante de grupos de bandidos, sem ocupação definida, verdadeiros marginais. Resta, contudo, averiguar de que forma esse estigma social de marginalidade se conciliaria com a idéia de um “inocente” folguedo de escravos e de negros. A interpretação da obra dos cronistas viajantes estrangeiros – que passaram a nos visitar com maior freqüência a partir da chegada da família real portuguesa em 1808 – muito tem contribuído para a reconstituição dos costumes e da sociedade brasileira do período. Nesse sentido, parece ser de Johann Moritz Rugendas (1802-1858) a primeira descrição da capoeira (1835): Além dessa descrição, o artista alemão deixou duas gravuras que retratam a prática da capoeira e que constituem, com razoável probabilidade, os mais antigos documentos iconográficos sobre o assunto. Na primeira delas, intitulada São Salvador, a capital soteropolitana - vista de algum pon- (5) Cf. Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida, Irmãos Pongetti Editores, Rio de Janeiro, 1963, prefácio de Marques Rebêlo, p. 28. (6) Cf. Almeida, op. cit.; Waldeloir Rego, Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfico, Editora Itapuã, Salvador, 1968, p. 295; e Raimundo Magalhães Júnior, Deodoro: a espada contra o Império, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1940, vol. 2, p. 183. (7) Cf. Rego, op. cit., p. 291 (8) Johann Moritz Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil, Livraria Martins, São Paulo, 1940, p. 197. 23 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Vale a pena frisar que em nenhuma destas gravuras aparece o berimbau – o que permite a formulação da hipótese de que esse instrumento não estava, naquele momento, associado à capoeiragem.9 Um detalhe de cunho técnico, do ponto de vista da luta, merece, ainda, ser observado: os punhos cerrados dos capoeiras na segunda gravura. As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira to próximo à Igreja de Nosso Senhor do Bonfim – ocupa o fundo enquanto no primeiro plano um pequeno grupo de três negros e quatro negras assiste à contenda de dois outros negros. Apesar da ausência de qualquer instrumento musical visível, sente-se o pulsar de um ritmo pelas posições dos contendores e da platéia. É de notar não só a presença de mulheres, como também o assédio de um dos assistentes sobre uma delas. Em outra gravura, denominada Jogo da Capoeira, vê-se um grupo de dez negros e negras, dispostos em semicírculo, que se entretêm assistindo ao embate entre dois negros. Aqui está representado o atabaque e um dos assistentes bate palmas. À exceção de uma negra, que serve algo de comer para um ancião, todos parecem hipnotizados pelo ritmo e pelos movimentos dos capoeiristas, inclusive uma que traz à cabeça um cesto de abacaxi. Esse último detalhe permite inferir que o cenário é urbano. Vale a pena frisar que em nenhuma destas gravuras aparece o berimbau – o que permite a formulação da hipótese de que esse instrumento não estava, naquele momento, associado à capoeiragem.9 Um detalhe de cunho técnico, do ponto de vista da luta, merece, ainda, ser observado: os punhos cerrados dos capoeiras na segunda gravura. A obra de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), apesar de não conter de referências explícitas à capoeira, fornece por meio de duas aquarelas, e de suas respectivas explicações, subsídios importantes para a reconstituição histórica da capoeira. Na descrição da prancha intitulada Enterro do filho de um rei negro o artista francês escreve: A procissão é aberta pelo mestre-de-cerimônias. Este sai da casa do defunto fazendo recuar a grandes bengaladas a multidão negra que obstrui a passagem; erguem-se o negro fogueteiro, soltando bombas e rojões e três ou quatro negros volteadores, dando saltos mortais ou fazendo mil cabriolas para animar a cena.10 Enterro do filho de um rei negro J. B. Debret, 1768-1848 (9) Cf. O berimbau-de-barriga e seus toques, Kay Shaffer, MEC/FUNARTE/INF, Monografias folclóricas, 1981. Detalhe Jogo de Capoeira, J.M Rugendas 24 O negro trovador J. B Debret, 1768 - 1848 É interessante constatar a presença num cortejo fúnebre desses “negros volteadores”, cujos movimentos acrobáticos serão incorporados, no século XX, ao jogo da capoeira, seja como “floreios”, para eludir o oponente, seja como intimidações, ou, ainda, como demonstrações de habilidade e destreza físicas de apelo turístico. Na aquarela O negro trovador, Debret representa um ancião cego que toca o urucungo ou berimbau. Nesse período aproximado de 1770 a 1830, pode-se conceber a capoeira sob, pelo menos, duas perspectivas. Sob uma ótica, por assim dizer, etnográfica, como um divertimento de negros (portanto, de origem africana), praticado a céu aberto, a ponto de possibilitar a sua reprodução por viajantes estrangeiros. Sob um prisma sociológico, não se pode ignorar ter sido a capoeira objeto de forte perseguição policial, uma vez que seus praticantes, em geral escravos ou negros libertos, eram identificados como assaltantes e baderneiros, que faziam uso da capoeira para perpetrar crimes e atentar contra a ordem pública. Esses trovadores africanos, cuja facúndia é fértil em histórias de amor, terminam sempre suas ingênuas estrofes com algumas palavras lascivas acompanhadas de gestos análogos, meio infalível para fazer gritar de alegria todo o auditório negro, a cujos aplausos se ajuntam assobios, gritos agudos, contorções e pulos, mas cuja explosão é felizmente momentânea, pois logo fogem para outros lados a fim de evitar a repressão dos soldados da polícia que os perseguem a pauladas.10 2. AS MALTAS: “PROFISSIONALISMO” E SERVIÇOS POLÍTICOS (C. 1830-1890). Apesar de toda perseguição que sofreu, a capoeira conseguiu sobreviver e, ao longo da Regência e do Segundo Reinado, chegou a expandir-se socialmente. De alguma maneira e em algum momento deixou de ser coisa exclusivamente de negro ou de escravo. É claro que são negros e mulatos os que compõem a maior parte da galeria de capoeiristas famosos do século passado. Não eram, contudo, os únicos conhecedores da arte. De fato, a incapacidade da repressão para acabar com a capoeira (e com outras manifestações da cultura negra, Corroborando a hipótese formulada acima, a partir das gravuras de Rugendas, pode-se concluir, de forma provisória, que capoeira e berimbau não estavam associados, pelo menos, até a terceira década do século XIX. Fato surpreendente uma vez considerada a visceral relação que prevalece entre os dois, desde, pelo menos, a década de 1930. (10) Cf. Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Itatiaia, Belo Horizonte, Edusp, São Paulo, 1989, tomo II, p. 164-165. 25 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Assim, num esquema político de eleições fraudulentas, os serviços das maltas organizadas podiam ser considerados “profissionais”: o ingresso em uma delas representava alternativa de sustento para os membros da numerosa classe de homens livres e pobres. Era, portanto, na ampla camada de desocupados, vadios e biscateiros onde se iam buscar, de uma maneira geral, os contingentes de capoeiras que integravam as maltas. As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira como o candomblé) permitiu sua difusão para outras camadas da população, ainda durante o Império. No centro desse contraditório processo de criminalização e alastramento encontra-se a formação das maltas de capoeira. Não foi por acaso que cronistas como Lima Campos e Coelho Neto se referiram ao tempo de Dom Pedro II como o da fase de apogeu da capoeira: “Durante o Segundo Império, a capoeira chegou ao auge, foi verdadeiramente, aquela época, a do seu pleno domínio e máximo desenvolvimento”.11 Por um lado, o florescimento das maltas se relaciona com o crescimento urbano do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, que foi acompanhado de um forte incremento demográfico provocado pela imigração, principalmente nas camadas mais pobres da população livre.12 Por outro lado, o que explica, em grande parte, a organização das maltas, apesar da perseguição, é o seu aproveitamento político para fins eleitorais. Sobre esse aspecto, o seguinte comentário de Melo Morais Filho é bastante eloqüente: “(...) Ao seu ombro tisnado escorou-se, até há pouco, o senado e a câmara, para onde, à luz da navalha, muitos dos que nos governam, subiram”.13 A julgar pelas informações de Lima Campos e de Melo Morais Filho, as maltas do Rio de Janeiro possuíam uma estrutura disciplinar interna que não dispensava uma rígida hierarquia e uma espécie de “progressão funcional”. Esses agrupamentos tanto podiam ser formados a partir de bairros (Glória, Lapa, Largo do Moura, Santa Luzia etc.) como a partir de ocupações (Carpinteiros de São José, Conceição da Marinha). Em um determinado momento, segundo Lima Campos, ocorre a fusão destas diferentes maltas em duas grandes “nações”: os “guaiamus” e os “nagôs”. O interesse político na preservação das maltas consistia na sua utilização para “serviços eleitorais”; daí, a constante e audaciosa presença dos capoeiras, que gozavam de relativa impunidade em razão da conivência das autoridades. Cada uma das “nações” se associara a um dos partidos da monarquia: os liberais e os conservadores. Entre os serviços possíveis incluíam-se a dissolução de comícios, o roubo ou falsificação de urnas eleitorais e a coação de eleitores, além de vinganças pessoais contra políticos do partido rival. Assim, num esquema político de eleições fraudulentas, os serviços das maltas organizadas podiam ser considerados “profissionais”: o ingresso em uma delas representava alternativa de sustento para os membros da numerosa classe de homens livres e pobres. Era, portanto, na ampla camada de desocupados, vadios e biscateiros onde se iam buscar, de uma maneira geral, os contingentes de capoeiras que integravam as maltas. (11) Lima Campos, “A Capoeira”, artigo publicado na revista Kosmos, Rio de Janeiro, 1906, apud Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, Rio de Janeiro em prosa e verso, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1965, p. 191-194. (12) Sobre a expansão urbana do Rio de Janeiro nos meados do século XIX, cf. de Maurício de Abreu, Evolução urbana do Rio de Janeiro, IPLANRIO/ Zahar, Rio de Janeiro, 1988. (13) Cf. Festas e tradições populares do Brasil, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, Edusp, São Paulo, 1979, p. 257-263, apud Rego, op.cit., p. 280. Detalhe Jogo de Capoeira, J. M. Rugendas 26 Capoeira As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira Não eram eles, contudo, os únicos praticantes de capoeira. Filhos de boa família se tornaram valentes brigões graças ao conhecimento adquirido no convívio com capoeiras. Coelho Neto, confesso admirador da capoeiragem, menciona “vultos eminentes na política, no professorado, no Exército, na Marinha” que teriam aprendido os segredos da capoeira ao se associarem, de alguma forma, às maltas.14 A conivência das autoridades com as atividades das maltas de capoeira atinge o paroxismo com a criação da Guarda Negra, que era uma espécie de associação secreta, cujo objetivo declarado era a defesa da Princesa Isa- bel. Chegou a contar com verbas da polícia do Governo de João Alfredo e atuou como força paramilitar contrária às mobilizações do ascendente movimento republicano. Aproveitando-se dos sentimentos de simpatia provocados pelo fim da escravidão, a Guarda Negra arregimentou seus membros junto aos capoeiras – cujo elevado nível de organização e mobilização devia-se à estrutura interna das maltas – e na variada camada de delinqüentes e malandros, que transitavam socialmente entre a criminalidade e a ordem. A Guarda Negra – que teve como um dos seus idealizadores José do Patrocínio – foi, assim, a responsável pela dissolução de vários comícios e reuniões dos republicanos e representava uma alternativa desesperada do governo para salvar a Monarquia. Durante os acontecimentos que culminaram com a proclamação da República, a denúncia de que o quartel do Primeiro Regimento de Cavalaria seria atacado pela Guarda Negra teria servido como pretexto para o início da insubordinação militar.15 Ao tratar da capoeira durante o Império, não se pode deixar de fazer uma referência especial a uma fotografia de Christiano Júnior, tirada entre 1864 e 1866, que reproduz em estúdio o que seria uma lição particular de capoeira.16 Um jovem negro inicia um menino negro na capoeira, ensinando-lhe o que parece ser os rudimentos da “ginga”. A foto sugere a idéia de que a transmissão da técnica da capoeira envolvia, já naquele tempo, alguma espécie de metodologia e uma relação do tipo mestre/ discípulo. A existência de uma rígida hierarquia no interior das maltas, caso confirmada, poderia contribuir para fundamentar essa hipótese. Por fim, deve-se mencionar que os capoeiras ocupavam um lugar ambíguo no imaginário social da época: ao mesmo tempo em que aterrorizavam a população com as badernas e pancadarias que promoviam, eram admirados pelas façanhas realizadas contra os representantes da ordem e do poder estabelecido. Sobre esta discussão, vale a pena reproduzir trecho de uma crônica de Machado de Assis: (...) que estou em desacordo com os meus contemporâneos, relativamente ao motivo que leva o capoeira a plantar facadas nas nossas barrigas. Diz-se que é o gosto de fazer mal, de mostrar agilidade e valor, opinião unânime e respeitada como dogma. Ninguém vê que é simplesmente absurda.17 (14) Coelho Neto cita Juca Paranhos, o futuro Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores de 1902 a 1912, e patrono da diplomacia brasileira, “que, na mocidade, foi ‘bonzão’ e disso se orgulhava nas palestras íntimas em que era tão picaresco”, apud Magalhães Júnior, op.cit., p. 185. (15) Cf. Rego, op.cit., p. 313-315; Magalhães Júnior, op.cit., vol. 1, p. 326-327, 341-342, 373-376; vol. 2, 63-64, 183, 228. (16) Cf. Escravos Brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr., Paulo Cesar de Azevedo e Maurício Lissovsky (orgs.), Editora Ex Libris, São Paulo, 1987, figura 71. (17) Machado de Assis, Crônicas (1878-1888), W. M. Jackson Inc. Editores, 1938, vol. IV, p. 227-228, apud Rego, op.cit., p.280-281. Lição particular de capoeira Christiano Júnior 27 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil A constante freqüência dos capoeiras na crônica policial das últimas décadas do Império levou a que recebessem um tratamento diferenciado por parte da legislação penal brasileira. Coelho Neto, por sua vez, idealizava o capoeira, com nostalgia e romantismo, ao atribuir-lhe elevada dignidade moral uma vez que não usava navalha (sic), não batia em homem caído e, caso defendesse causas nobres, como o abolicionismo, o fazia por idealismo e não como mercenário (sic). Exaltando a valentia dos capoeiras, Coelho Neto relata o terror que produziam na própria polícia.18 3. ANOS DE REPRESSÃO E ESQUECIMENTO (C. 1890-1930). A constante freqüência dos capoeiras na crônica policial das últimas décadas do Império levou a que recebessem um tratamento diferenciado por parte da legislação penal brasileira. Com efeito, o Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1890, estabelecia em seu Capítulo XIII: Dos Vadios e Capoeiras / Artigo 402: Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação de capoeiragem; andar em correrias com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: / Pena: de prisão celular de dois a seis meses. / Parágrafo único: é considerada circunstância agravante pertencer a algum bando ou malta. Aos chefes ou cabeças se imporá a pena em dobro (...).19 As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira Tem-se, assim, juridicamente tipificada, a criminalização da capoeira – uma capoeira intimamente ligada à marginalidade e que estava caracterizada tanto como uma técnica de luta corporal quanto pelo manuseio de armas como navalhas, facas e porretes. Ainda antes da entrada em vigor, por decreto, do Código Penal, a capoeira seria alvo de ferrenha perseguição oficial. Na atmosfera de instabilidade política que marcava os primeiros momentos da República, o Marechal Deodoro da Fonseca nomeou para a chefia de Polícia o Doutor Sampaio Ferraz, que exercera o cargo de promotor público e fora, como jornalista, violento opositor da Monarquia. Ao entregar-lhe o cargo, o Presidente conferiu-lhe amplos poderes para erradicar da capital todos os desordeiros, a começar pelos bandos de capoeiras. Assim, Sampaio Ferraz deu início a formidável campanha contra as maltas de capoeira. Para que a cidade efetivamente se livrasse daqueles bandos, a pena aplicada foi a da deportação. Segundo José Murilo de Carvalho, esta prática fora iniciada no final do Império, com a deportação de Detalhe Jogo de Capoeira, J. M. Rugendas (18) Cf. Coelho Neto, crônica “O nosso jogo”, in Bazar, Livraria Chandron, de Lello e Irmãos Ltda., Porto, 1928, apud Magalhães Júnior, op.cit., p. 136-138. (19) Código Penal Brasileiro, pelo Doutor Manuel Clementino de Oliveira Escorel, Tipografia da Cia. Ind. de São Paulo, 1893, apud Luiz Renato Vieira, Da vadiação à capoeira regional, tese de Mestrado para o Departamento de Sociologia da UnB, 1991. 28 Capoeira As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira menta que esta possibilidade de mistura social presente na capoeira ocorria tradicionalmente nas irmandades religiosas e nas organizações assistencialistas de auxílio mútuo. Eram “ocasiões de auto-reconhecimento” da população do Rio de Janeiro, que vivia a transição de um espaço urbano típico de uma cidade colonial e escravista para o de uma moderna metrópole capitalista. Como exemplos de movimentos que simbolizam a construção de espaços de confraternização, cita a popularização da festa da Penha, a participação de políticos conhecidos nos centros de candomblé, a gradual ascensão social do samba e a difusão do futebol entre as classes mais pobres. No plano político, entretanto, a ausência de cidadania engendrava a indiferença e o cinismo e, além disso, a tendência para a carnavalização do poder e das relações sociais.21 Estas considerações ajudam a problematizar o tema da tardia aceitação social da capoeira. A repressão empreendida por Sampaio Ferraz pode ser considerada um sucesso na medida em que provocou o virtual desaparecimento da capoeira. Segundo um viajante francês, que residiu na capital por alguns meses, em 1883, as estatísticas policiais capoeiras para o Mato Grosso. Sampaio Ferraz teria prendido e desterrado para Fernando de Noronha, sem processo, cerca de 600 capoeiras. O mesmo autor observa que “havia muitos brancos e até mesmo estrangeiros” entre os capoeiras: das 28 pessoas presas, em abril de 1890, sob a acusação de capoeiragem, cinco eram pretas, dez brancas, das quais sete estrangeiras. “Era comum aparecerem portugueses e italianos entre os presos por capoeiragem. E não só brancos pobres se envolviam”.20 De fato, naquele mês de abril de 1890 uma crise ministerial foi quase desencadeada a partir da prisão do famoso capoeira e baderneiro Juca Reis, rapaz de rica família portuguesa, proprietária do jornal O Paiz, que fora dirigido por Quintino Bocayuva, então Ministro das Relações Exteriores. Diante da prisão e da iminente deportação do burguês “valentão”, Quintino ameaçou demitir-se: ou libertavam o filho de seu ex-patrão, o que implicava na demissão de Sampaio Ferraz, ou ele se retiraria do Governo. Chegou-se, enfim, a uma solução de compromisso pela qual ao capoeira da elite seria facultado o embarque para o exterior tão logo chegasse a Fernando de Noronha. O episódio demonstra o grau de difusão social alcançado pela capoeira. Na capoeiragem, com efeito, era possível o convívio entre classes sociais distintas. Carvalho argu- (20) Cf. José Murilo de Carvalho, Os bestializados/ O Rio de Janeiro e a República que não foi, Cia. das Letras, São Paulo, 1987, p. 179, nota 25 e p. 155. (21) Carvalho, op.cit., p. 156-160. Jogo de Capoeira J. M. Rugendas (1802 – 1858) 29 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil A partir dos anos 1930, tem início longo processo cujo sentido será o de gradual desvinculação da capoeira da criminalidade e do mundo do crime. Trata-se da lenta ascensão e aceitação sociais da capoeira. As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira computariam aproximadamente 20.000 capoeiristas entre a população carioca. Cerca de vinte anos depois, no prefácio ao livro Educação Física Japonesa, o Capitão-Tenente Santos Porto afirmava: “Entre nós, em tempos que já vão longe, os exercícios de agilidade conhecidos por capoeiragem floresceram mesmo entre os filhos das mais distintas famílias”. O já citado Lima Campos lamentava, em 1906, a perda de um suposto espírito autêntico da capoeira ao afirmar que os capoeiristas daquela época “não fazem [do jogo] verdadeiramente uma arte, uma profissão, uma instituição. (...) são mais, a bem dizer, mazorqueiros, navalhistas, faquistas, enfim, estriladeiros avulsos, que própria, exclusiva, profissional e arregimentadamente capoeiras”.22 Carvalho menciona a versão do chefe de Polícia em 1904 sobre a prisão de vagabundos em seguida à Revolta da Vacina: das mais de 2.000 pessoas detidas por vadiagem, apenas 73 o foram por capoeiragem. À gritaria e ao alarido exaltado das maltas seguiu-se um silêncio quase total acerca da capoeira. É, no entanto, necessário aprofundar a pesquisa no sentido de comprovar a idéia segundo a qual a capoeira quase desapareceu a partir da última década do século passado. Na Bahia a perseguição alcança a década de 1920, quando ficaram famosas as incursões do delegado Pedro de Azevedo Gordilho, o Pedrito, contra os candomblés e os capoeiras. É preciso assinalar que a estratificação social em Salvador era mais radicalmente marcada pela oposição senhor/escravo (ou branco/negro) do que no Rio de Janeiro. De qualquer forma, maiores estudos deverão ser conduzidos para se determinar o nível de penetração social da capoeira ao longo do século XIX na Bahia. Até o momento não foi possível detectar a presença de maltas na Bahia do século passado. Rego fala no capoeira-capanga assalariado por potentados, provavelmente se referindo aos integrantes das maltas cariocas.23 Wetherell, Vice-cônsul britânico na Bahia de 1842 a 1857, descreve uma luta comum na Cidade Baixa na qual “(...) [os negros] são todo movimento, saltando e mexendo braços e pernas sem parar, iguais a macacos quando brigam (...)”.24 4. “ESCOLARIZAÇÃO”, ACEITAÇÃO SOCIAL E UM NOVO PROFISSIONALISMO (C. 1930–). A partir dos anos 1930, tem início longo processo cujo sentido será o de gradual desvinculação da capoeira da criminalidade e do mundo do crime. Trata-se da lenta ascensão e aceitação sociais da capoeira. No decorrer dessa terceira metamorfose, a capoeira se exibirá em recepções oficiais, será reconhecida como autêntica manifestação da cultura popular nacional, e, sobretudo, começará a ser ensinada em escolas especializadas, as “academias”. (22) Cf. Santos Porto, prefácio ao livro Educação física japonesa, Cia. Topográfica Brasileira, Rio de Janeiro, 1905; Lima Campos, apud Drummond e Bandeira, op.cit., p.193. (23) Cf. Rego, op.cit., p. 315. (24) Cf. James Wetherell, Brasil: apontamentos sobre a Bahia 1842-1857, Ed. do Banco da Bahia. O tradutor identifica a capoeira nesta descrição Detalhe Jogo de Capoeira, J. M. Rugendas 30 Capoeira As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira O desenvolvimento de uma capoeira “acadêmica” a partir da introdução de uma metodologia de ensino teve como pressuposto uma conjuntura político-ideológica na qual a questão da identificação e da construção de uma cultura nacional encontrava-se no centro do debate intelectual. De fato, nas décadas de 1920 e 1930, intelectuais seguidores de diferentes tendências estéticas e políticas preocupavam-se com a construção de uma “brasilidade” ideal, de um referencial de valores culturais “autenticamente” nacionais. No fulcro desta discussão estava a busca de conciliação entre a necessidade de modernização e, ao mesmo tempo, de preservar as tradições. Foi, portanto, no bojo das transformações sociais e políticas relacionadas com o processo de industrialização que se plasmaram as condições para o surgimento de uma capoeira renovada. Assim, a Revolução de 1930 assinala o estabelecimento de novas relações entre o Estado e as classes sociais. Com discurso e práticas populistas, a nova elite detentora do poder político procura legitimar a tutela do Estado sobre a sociedade e forja uma “ideologia estatal”, com a participação de intelectuais modernistas, engajados no projeto de construção simbólica da nacionalidade. As Forças Armadas, imbuídas da crença na sua missão de “purificadoras” da política, passam a identificar na educação instrumento de mobilização social, imprescindível para a (re)construção da nacionalidade. Intentam, desta forma, conciliar educação de massa e os princípios militares de disciplina e hierarquia. Assim, promovem, a institucionalização da Educação Física como disciplina escolar. Nesse sentido, o Estado, como agente e promotor da cultura, apropria-se de manifestações da cultura popular. É bastante significativa a inclusão da capoeira no programa curricular da Polícia Especial, criada em 1932, servindo a dois objetivos pragmáticos: como técnica de luta, considerada como necessária para a formação profissional do policial, e como valor cultural, afirmador da nacionalidade.25 Nesse contexto surge uma nova forma de capoeira, que tem como base programática a noção de eficácia, cujo marco inicial pode ser simbolizado pela criação, por Mestre Bimba, da primeira academia em 1932, denominada Centro de Cultura Física e Capoeira Regional da Bahia. É importante assinalar que até então – e a despeito das considerações suscitadas pela fotografia de Christiano Júnior – a capoeira era aprendida na rua; a roda se fazia em espaço público e o aprendizado técnico excluía a idéia de treinamento formal. Ou seja, aprendia–se jogando, e não treinando, como hoje. Ao fundar seu novo “estilo” no critério de eficácia da luta, Bimba implicitamente considerava a capoeira existente como fraca do ponto de vista marcial. Partindo desta perspectiva, elabora um método de ensino que, ao priorizar a formação do capoeirista como lutador, tende a menosprezar o componente lúdico da arte. Tem início, desta maneira, um processo de “escolarização” da capoeira, com o declínio do seu aspecto de “vadiação” e o gradual desaparecimento das rodas de rua. Além de supervalorizar a capoeira na sua dimensão marcial, privilegiando a técnica e até introduzindo movimentos originários de outras lutas, Bimba buscava desvinculá-la do estigma da marginalidade. Como observa Vieira, para ingressar na academia regional, o “aluno” (daí “escolarização”) deveria ser estudante ou trabalhador, excluindo-se os vagabundos (ou desempregados?). Ao lado desta segregação, Bimba assimilou aspectos formais próprios da cultura erudita e, portanto, alheios ao ambiente da cultura popular: exame de admissão, curso básico, cerimônia de formatura e curso de especialização. Procurava, por esta via, a legitimação da sua capoeira como atividade educativa e incorporava os princípios militares de hierarquia e disciplina. A participação de Bimba e de seus alunos no desfile oficial do Dois de Julho de 1936, a autorização legal para o funcionamento de sua academia em 1937 (na prática, descriminalizando a capoeira), a sua atuação como professor no Centro de Formação de Oficiais da Reserva do Exército, de Salvador, entre 1939 e 1942, e a exibição para Getúlio Vargas, em 1953, constituem fatos emblemáticos da aceitação e da ascensão social da capoeira. Com efeito, houve um contato do mestre com grupos de universitários interessados em aprender a capoeira, e, além disso, muitos de seus alunos eram membros da elite social de Salvador. Por conseguinte, parece não ser destituída de verdade a afirmação de que a regional teria sido orientada para as classes mais privilegiadas da sociedade..26 Uma das conseqüências do aparecimento da chamada “capoeira regional” foi a falsa distinção entre dois “estilos”: a “angola”, tida como mais antiga e tradicional, e a “regional”, considerada, pelos puristas, como uma descaracterização. Na verdade, o conceito de “capoeira angola” surge como resposta ao advento da regional de Bimba, a partir da iniciativa de Mestre Pastinha (Vicente Ferreira) de criar seu Centro Esportivo de Capoeira Angola, em 1941, na Bahia. Ocorre, com freqüência, a confusão entre o “toque” de berimbau conhecido como “toque de Angola” (isto é, um determinado ritmo que implica determinado tipo de jogo) e um suposto “estilo angola” de jogo. Deve-se esclarecer, antes de tudo, que existem diferentes toques que determinam diferentes formas de jogo, sem que essa variedade de ritmos implique, necessariamente, a cristalização de diferentes “estilos” ou “escolas” de capoeira. Um dos efeitos da disseminação das academias foi, por um lado, o definitivo rompimento do elo que associava a prática da capoeira à marginalidade. Assim, o estigma de “coisa de vagabundo” ou “de marginal” foi sendo gradualmente desfeito pela realidade daqueles que compõem o mundo da capoeira nos dias de hoje. Por outro lado, a difusão social provocada pelas academias teve sua contrapar(25) Cf. Vieira, op.cit., capítulo II. (26) Cf. Vieira, op.cit., p. 175. 31 Foto: Lilia Menezes Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil A participação de Mestre Pastinha e de seu grupo no Festival de Arte Negra realizado em Dacar, Senegal, em 1966, pode ter sido a primeira demonstração, oficial, de capoeira no exterior. Desde os anos 1970 e, principalmente, desde os anos 1980, um número cada dia maior de capoeiristas têm viajado para a Europa ou para os EUA, ministrando cursos e até se fixando e desenvolvendo trabalhos de longo prazo no exterior . As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira (27) É o caso, por exemplo, de Mestre Acordeon, baiano, discípulo de Mestre Bimba, que se estabeleceu em São Francisco, Califórnia, e de lá trouxe, em 1983, grupo significativo de alunos norte-americanos para conhecer a capoeira no Brasil. Inúmeros e cada vez mais freqüentes exemplos poderiam ser citados. tida tanto na proliferação desenfreada de “mestres” quanto na conseqüente vulgarização, muitas vezes deturpada, do sentido original desta categoria. De qualquer modo, a capoeira tornou-se um meio de vida: com as academias, a profissionalização dos mestres (ou dos professores/instrutores) tornou-se uma realidade. A utilização, repetida ao longo dos anos, de métodos de ensino teve também conseqüências ambíguas. A sistematização do treinamento, baseada na repetição de movimentos, e o contínuo intercâmbio entre os diversos grupos no Brasil e no exterior permitiram, de fato, um aprimoramento técnico e atlético inimaginável. A ênfase na repetição, no entanto, produziu certa “mecanização” ou “automatização” dos movimentos, tendente à padronização das formas de jogo e dos estilos pessoais. Outro aspecto relevante da capoeira nos dias atuais diz respeito a sua difusão pelo mundo. A participação de Mestre Pastinha e de seu grupo no Festival de Arte Negra realizado em Dacar, Senegal, em 1966, pode ter sido a primeira demonstração, oficial, de capoeira no exterior. Desde os anos 1970 e, principalmente, desde os anos 1980, um número cada dia maior de capoeiristas têm viajado para a Europa ou para os EUA, ministrando cursos e até se fixando e desenvolvendo trabalhos de longo prazo no exterior27. 32 Foto: Lilia Menezes Em suma, a capoeira conheceu diferentes formas históricas e sobreviveu a preconceitos e perseguições. No mundo globalizado do início do século XXI, poderá soar estranho que há cerca de um século, em plena belle époque, na era clássica do imperialismo, tenha corrido riscos de desaparecimento. Hoje, a capoeira prospera mundo afora. A tradição e a especificidade próprias da capoeira, contudo, devem ser respeitadas e, nesse sentido, deve-se dar especial atenção à preservação dos vários toques tradicionais de berimbau, que, em última análise, constituem o mais forte vínculo com a tradição dos tempos posteriores às maltas. Guilherme Frazão Conduru. Diplomata de carreira e capoeirista, foi aluno, no Rio de Janeiro, dos Mestres Sorriso e Garrincha, ambos do Grupo Senzala, criado em 1966, no Rio de Janeiro. 33 A repressão à capoeira Frederico José de Abreu NÃO SE SABE PR ECISAR RA. NES AO CER TE ARTIG TO QUA O , NDO CO PARA A SAMENT B MEÇOU O RDAR O E A PAR ESSA H TIR DO ASSUNT ISTÓRIA BATUQU SEU INÍC O, VAMO DE REPR ES NEG IO S , C Q OMEÇA ROS, NO UANDO ESSÃO NOU MA R À CAPO S PELO SÉ MOMEN E INTEN IS VIGIL EIC T S O EM Q U IF L IC O ANTE. A XIX, MAIS NO BRA UE A SO S P IL O CO RECICIEDAD NTROLE E ESCRA SOBRE VOCRAT OS A SOBR E ELES SE TOR - Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Fenômeno que pode ter ocorrido pela via do tráfico interprovincial e pelo processo migratório interno. Nessas cidades, a capoeira – incrustrada nos atos cotidianos – identificava-se como uso e costume dos negros, presente mais constantemente nos mundos do trabalho, da desordem social (caso de polícia) e da festa negra. A repressão à capoeira Nessa época, batuque era um termo genérico, com o qual se denominavam indistintamente manifestações negras que se expressavam, quase sempre, mediante a união da percussão com a dança. O canto também entrava nessa combinação, fossem manifestações de natureza sagrada ou profana, as quais podiam acontecer em separado, uma de cada vez, ou em conjunto. Dessa forma, samba, candomblé, capoeira e outras danças e folguedos negros, apesar de distintos entre si, podiam ser todos denominados batuque. Parte significativa das observações históricas que obtivemos sobre o Brasil oitocentista deve-se aos olhares e às impressões dos visitantes estrangeiros, os quais produziram documentos essenciais para identificar características concernentes aos usos e costumes dos negros, fossem eles escravos, livres ou libertos, africanos ou crioulos (negros nascidos no Brasil). Assemelhar o Brasil à África era uma constatação muito comum entre os estrangeiros, principalmente quando seus olhares recaíam sobre o cenário de cidades como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, pertencentes, pela ordem, às províncias da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. À época, três cidades portuárias, de vida movimentada, e incrementadas pelo tráfico de escravos, até a completa extinção deste em 1871. Nelas, predominava a população negra, indispensável para o funcionamento da dinâmica da vida urbana e principal responsável pelos movimentos das ruas. Por essas condições, essas cidades se transformaram em campos férteis para os batuques. Salvador, Recife e Rio de Janeiro – até onde as pesquisas históricas alcançaram – principais núcleos de formação e difusão da capoeira, foram responsáveis pela migração dessa manifestação para outros locais do Brasil, do século XIX até meados do XX. Fenômeno que pode ter ocorrido pela via do tráfico interprovincial e pelo processo migratório interno. Nessas cidades, a capoeira – incrustrada nos atos cotidianos – identificava-se como uso e costume dos negros, presente mais constantemente nos mundos do trabalho, da desordem social (caso de polícia) e da festa negra. Tais notícias, encontradas nos relatos dos estrangeiros, provêm também de fontes como: a oralidade, os jornais da época, a crônica policial e a documentação judicial, dentre outras. A partir desses relatos, pode-se perceber que a repressão à sua prática foi uma das maiores adversidades enfrentadas pela capoeira em sua história. Na primeira metade do século XIX, o Brasil vivenciou um contexto sociopolítico agitado e permeado por movimentos, conflitos e guerras pela independência, os quais culminaram na libertação da nação brasileira do jugo de Portugal, em 1822. Na seqüência, aconteceram revoltas populares, tais como a Sabinada (1831-1833), na província da Bahia, a Cabanagem (1835-1840), na província do Grão-Pará e a Balaiada (1838-1841), na província do Maranhão. Revoltas cronologicamente antecedidas pela Conspiração dos Alfaiates (1798), movimento rebelde deflagrado em Salvador, que incorporou anseios de liberdade de uma classe popular e socialmente subalterna (os escravos), atraída para dela participar com aspirações de ex- 36 Batuque J.M. Rugendas (1802 – 1858) sivos provocadores de sons e atos para os batuques. Uma situação limite colocava-se perante a sociedade escravocrata, dependente do escravo para sobreviver: como poderia tal sociedade proibir os escravos de praticarem manifestações para eles indispensáveis, que impulsionavam seu viver e que a essa sociedade provocava tantos incômodos e temores? Que incômodos e temores eram esses? Poderiam ser captados nas queixas da população em jornais da época: “multidões de negros de um e outro sexo, das diversas nações africanas, falavam, dançavam e cantavam canções gentílicas ao toque de muitos horrorosos atabaques”; “divertimentos estrondosos”; “sons e vozes dissonantes”; “bárbaros costumes”; “convulsão inebriante e confusão”; “brigas”; “cenas indecentes e imorais”; ou “danças horrorosas”… As queixas não se limitavam a desqualificar as manifestações culturais dos negros do ponto de vista da civilização. Acusavam, ainda, inversões da ordem social: ao ter lugar a prática dos batuques “onde e quando os escravos queriam”, esses negros exerciam – mesmo que precária e momentaneamente – autonomia sobre os espaços ao tempo em que esses batuques aconteciam. Como era de costume e quando permitido, as manifestações negras, mesmo às margens do tinção da escravatura. Para agravar esse quadro de instabilidade política, contribuíram os muitos levantes e insurreições escravas que aconteceram na primeira metade do século XIX, tanto nas zonas rurais como nas áreas urbanas do País, principalmente em Salvador, entre 1807 e 1835. A exigüidade do tempo e a contigüidade geográfica desses acontecimentos na capital baiana e adjacências sugeriam a existência, nessa província, de um vigoroso cotidiano de rebeldia escrava. A vigência de um clima de conspiração negra – evidentemente – pôs em alerta as autoridades e a população de Salvador, receosa da animosidade reinante, quase sempre definida de forma clara ou subjacente em termos raciais. Para combater as rebeliões escravas, desencadeou-se um esforço no sentido de identificar suas causas; dentre elas estavam os batuques negros. Proibir as manifestações que compunham os batuques não era uma questão de fácil resolução, como comprovava a renitente desobediência por parte dos negros em usarem atabaques e também marimbas dentro dos muros e praias da cidade. Esses instrumentos foram proibidos por posturas municipais, datadas de 1716, que, por força de lei, pretenderam disciplinar a vida do negro nas ruas da cidade. Os atabaques e marimbas eram instrumentos percus- 37 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Havia, contudo, na elite, quem defendesse os batuques. Havia quem os interpretasse como “folguedos honestos e inocentes”, a exemplo de alguns eclesiásticos que argumentavam serem os escravos também filhos de Deus e, por assim ser, também teriam direito à folga e ao gozo. A repressão à capoeira centro dos acontecimentos, faziam-se presentes nas festas de rua do calendário católico. De acordo com as queixas, nessas ocasiões “os toques e cantos dos negros predominavam não se escutando nenhum outro”. Nos meandros dessas queixas podia-se perceber a importância visceral do batuque para a vida dos escravos e a altivez que essa manifestação lhes proporcionava. Isso os viajantes estrangeiros observaram e noticiaram. Cronistas que eram, admiravam-se com a animação e a disposição com que os escravos aos batuques se entregavam, após uma pesada jornada de trabalho forçado. Não acreditavam que estivessem diante de escravos. De acordo com os seus relatos, pela disposição dos negros para os batuques, esses podiam ser interpretados como fontes de prazer, completando-se como função regeneradora do corpo, maltratado pela dureza da jornada do trabalho escravo. Diante dessa circunstância, Rugendas, um desses cronistas viajantes, admirou-se e sentenciou: “não conseguimos nos persuadir de que são escravos que temos diante dos olhos”. A partir desse ponto de vista, pode-se afirmar que o batuque (capoeira, samba, candomblé e outros folguedos negros) proporcionava ocasiões para o escravo recuperar sua humanidade brutalizada pela escravidão. Havia, contudo, na elite, quem defendesse os batuques. Havia quem os interpretasse como “folguedos honestos e inocentes”, a exemplo de alguns eclesiásticos que argumentavam serem os escravos também filhos de Deus e, por assim ser, também teriam direito à folga e ao gozo. Até mesmo alguns senhores viam nos batuques uma oportunidade para os escravos esquecerem-se, por alguns momentos, da sua triste condição: o prazer para esconder a dor. Aquela situação limite a que se fez referência esboçava-se como um dilema pertinente a toda a sociedade: grave, considerando o contexto histórico da época. Pela existência de um cotidiano de rebeldia negra, o sistema escravocrata em vigor tentava evitar todas as atividades que pudessem provocar ajuntamentos de negros e que acontecessem fora da órbita e da vigilância dos senhores e da polícia. Nesse caso, enquadravam-se os batuques, pois, para se realizarem, provocavam ajuntamentos de negros, vistos pelas autoridades como suspeitos de manobras conspiratórias e fontes alimentadoras das revoltas escravas que estavam tendo lugar na Bahia à época. Opiniões sobre o batuque emitiam as autoridades governamentais, eclesiásticas, policiais, senhores de escravos, parlamentares e pessoas do povo. Pensar, opinar e influir na decisão de reprimir ou permitir a sua prática todos podiam. Porém, a decisão de fazer isso, considerando a gravidade da situação exposta nas queixas e ao se associar os batuques ao cotidiano da rebeldia negra, cabia ao Governo. Até porque, desde a criação do Calabouço, em 1767, local público de castigos dos escravos, os senhores não eram mais estimulados a castigar os seus escravos privadamente e o controle dos negros na rua não era mais da alçada dos seus proprietários, e, sim, do poder público, do Estado e do aparelho policial a ele subordinado. 38 Capoeira A repressão à capoeira Negros lutando Augustus Earle, (1793 – 1838) tica mais branda em comparação com a do seu antecessor, recomendando à polícia maior moderação na repressão. Sua política oscilava entre o permitir e o reprimir os batuques, na medida em que tentava conciliar duas razões inversas: reprimilos, em função do conteúdo das queixas advindas dos estratos socialmente mais influentes da população; ou permiti-los, considerando as recomendações dos eclesiásticos e de alguns senhores de escravos. Os termos dessa conciliação se explicitam nas medidas tomadas pelo governador no sentido de controlar aquela prática dos negros, determinando os locais e as oportunidades para acontecerem. Não mais poderiam ser realizadas a qualquer hora e lugar, como alegavam as velhas queixas. Em compensação, também estariam assegurados os momentos de lazer e festa tão necessários aos escravos, como a qualquer ser humano, de acordo com as solicitações de religiosos e senhores. Tudo, porém, de forma controlada. Quanto ao alerta à condição do batuque como fonte alimentadora das revoltas escravas, o Conde procurava atenuar esse receio, enfatizando serem os ajuntamentos dos negros oportunidades muito mais favoráveis para a geração de desentendimentos entre eles, movidos por diferenças étnicas – remontáveis à África e às rusgas provocadas pelas dificuldades existenciais dos negros no Brasil escravocrata. Na verdade, a política do Conde dos Arcos, quanto aos efeitos, igualou-se à do Conde da Ponte: os batuques continuaram perturbando o conforto físico e a paz de espírito da socie- No plano do poder municipal, responsável pelas posturas municipais (leis que procuravam disciplinar as pessoas e as atividades exercidas nas ruas), não se conseguia interromper a ação dos batuques nem bloquear a iniciativa dos negros em realizá-los. Na verdade, com os recursos de controle vigentes, as autoridades não tinham mais domínio sobre a situação. Proibir a prática daquelas manifestações ou prender os batuqueiros (seus participantes) não era mais suficiente, não cessava a causa. Era necessário articular uma nova política de repressão, que afastasse os temores da população, norteasse as ações policiais e efetivasse posturas municipais específicas de repressão. Colocado nesses termos, o primeiro a enfrentar a situação foi o Conde da Ponte, governador da Bahia entre 1804 e 1808. Sua opção foi por uma política de combate sem tréguas aos batuques, recomendando, inclusive, ações violentas por parte da polícia. A finalidade era radical: extinguir os batuques. Essa era a única forma, segundo ele, de sanar a questão: subjugar os batuqueiros e evitar oportunidades que favorecessem ações conspiratórias dos escravos. Medidas tomadas em vão, pois os batuques prosseguiram como se fossem incontroláveis, assim como inevitáveis continuaram sendo as perplexidades e reclamações dos que se achavam por eles perturbados. As rebeliões escravas prosseguiram enquanto o Conde da Ponte governou a Bahia. Em seguida, de 1808 a 1818, a Bahia foi governada pelo Conde dos Arcos, que procurou colocar em ação uma polí- 39 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil A repressão à capoeira teve diversas fases, desde a simples proibição, passando pela aplicação dos açoites até ser tratada como uma questão de Estado pelo regime republicano, que a enquadrou como crime no Código Penal da República em 1890. A repressão à capoeira dade escravocrata baiana. Naquele tempo, como o sistema escravocrata só podia funcionar dependente da exploração de trabalho do negro, para este, por sobrevivência, os batuques continuaram indispensáveis. Prosseguiram como se fossem incontroláveis, assim como inevitáveis, as perplexidades e reclamações dos que se achavam por eles perturbados. Nem as reclamações dos jornais, nem as proibições impostas pelas posturas municipais, nem os estragos que as perseguições policiais lhes infligiram, conseguiram interromper o curso da sua história embalada pela incrível força que têm as coisas quando elas precisam acontecer, como diria o compositor e cantor brasileiro Caetano Veloso. Voltando à lista das queixas, vamos encontrar no meio delas o conceito de barbaridade atribuído aos batuques, preconceito amplamente absorvido e difundido pelas elites dominantes durante todo o século XIX e boa parte do século XX, e que, na verdade, ainda não morreu de vez. Capoeira, samba, candomblé, para as elites, comprometiam o modelo civilizador que desejavam, por não estarem concernentes aos costumes e procedimentos públicos dos países por elas considerados mais civilizados (os europeus). Vale dizer que, em nome desse preconceito, forjaram-se argumentos tanto para afastar das zonas nobres da cidade a prática dessas manifestações, como para proibi-las de acontecer. Ficavam no desejo, sustentado por uma retórica vazia e alguma mentalidade progressista, pois o modelo civilizador das elites não se concretizava satisfatoriamente, impedido por profundas causas socioeconômicas. Na verdade, pode-se afirmar que o desenvolvimento econômico, a modernização e transformação urbana que se registravam nas principais cidades do Brasil, alinhavam-se com o que se tinha de mais atrasado para a época em termos do trabalho e sua organização: a escravidão, condição humana considerada, àquela altura do tempo (século XIX), uma barbaridade para um estrangeiro, a quem se pretendia bem impressionar, oferecendo-lhe um modelo europeizado. A escravidão era suficiente para reverter essa expectativa. Nessa exposição generalizada de combate ao batuque, feita até aqui, podem-se identificar os elementos que nortearam as ações repressivas às manifestações negras. Necessário, contudo, é dizer que cada uma dessas manifestações enfrentou contextos específicos, como também particulares foram as ações de resistência vivenciadas pelos praticantes de cada uma delas. Isso fez com que cada qual, apesar do significativo número dos elementos comuns que possuíam, tivesse uma história própria à semelhança da capoeira. Sobre essa manifestação encontram-se, desde antes do século XIX, notícias da sua presença no Brasil. Desde então, tem-se também notícias sobre a repressão aos capoeiras, fator tão implícito à antigüidade da capoeira que a história desse tempo, para ser pesquisada, estudada e contada, tem entre suas principais fontes a crônica e a documentação policial. Essas fontes devem ser analisadas com cuidado para delas se eliminar o jargão policial, os preconceitos contidos na narrativa, a abordagem viciada, que podem contaminar a 40 Capoeira A repressão à capoeira visão histórica sobre os capoeiras de antigamente. Tomadas essas precauções, pode-se, por meio desses documentos, perceber dos capoeiras os anseios, os ritos, os modos de comportamento social e hábitos, as maneiras como se tratavam, as gírias, a geografia urbana por eles permeada, as armas utilizadas, dados biográficos, dados sobre a cor, a etnia, o vestuário, a ocupação, a profissão, os rituais de conflitos entre eles e entre eles e a polícia, e as táticas e os momentos oportunos para expressarem sua arte. A repressão à capoeira teve diversas fases, desde a simples proibição, passando pela aplicação dos açoites até ser tratada como uma questão de Estado pelo regime republicano, que a enquadrou como crime no Código Penal da República em 1890. Antes de chegar a esse ponto, antecederamse muitos conflitos entre os capoeiristas e a polícia. Conflitos agravados de tal ordem que poderemos definir esse período (compreendido entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século seguinte) como tumultuoso, tendo como cenário principalmente as cidades do Rio de Janeiro, Recife e Salvador, pelas razões já explicadas. As tradições da capoeira nessas cidades eram muito parecidas não só na forma de se expressarem, mas também na equivalência do comportamento social dos seus praticantes. Os capoeiras dessas cidades, geralmente, eram trabalhadores de rua (carregadores, carroceiros, vendedores ambulantes, feirantes, serviçais de limpeza) ou ligados à zona portuária (estivadores, trapicheiros e remadores). Cabe salientar que, dentre as ocupações desses capoeiras, se incluíam algumas consideradas como próprias de vadios e vagabundos, como pescadores, meninos de recado e biscateiros, dentre outras. Sabe-se também da predileção dedicada aos ambientes festivos. Contraditoriamente, até para muitos daqueles que tinham receio da presença dos capoeiras nas festas populares, seu comparecimento era considerado essencial para a animação da parte profana das festas, juntamente com o pessoal do samba, como acontecia na Bahia e no Rio de Janeiro. Mesmo quando eram acusados pelos tumultos provocados nessas festas. Comum a todas essas cidades foi o processo repressivo, muito embora tivesse variado em grau de um para outro local, tendo sido mais veemente no Rio de Janeiro. A repressão se deu por meio da proibição da prática da capoeira, por posturas municipais, por perseguições e prisões, muitas delas arbitrárias, pelo abuso dos castigos corporais e pelos trabalhos forçados e deportações. Fez parte da repressão, ainda, o recrutamento forçado para o Exército e a Marinha, práticas remontáveis aos tempos coloniais brasileiros quando ainda não havia forças armadas profissionalizadas e o recrutamento se dava na ruas e tinha como foco os considerados malandros, vadios e criminosos. Além do mais, nesse período, o Exército e a Marinha configuraram-se como casas de correção de menores, abastecidas pelo recrutamento inclusive de negros escravos fugidos que, com outros nomes, poderiam, então, ingressar nas Forças Armadas. É indispensável registrar que a campanha governamental visava à formação do contingen- te de “Voluntários da Pátria”, do qual fizeram parte capoeiras em defesa do Brasil na Guerra do Paraguai (1864-1870). É necessário dizer que a política e as ações de repressão à capoeira se sustentavam num estereótipo formulado pela polícia, que considerava os capoeiras como desordeiros, valentões, vadios e malandros. Tipificação essa na qual certamente não se enquadravam todos os capoeiras e que não era extensiva aos praticantes não negros, dentre esses aristocratas, policiais, membros da elite, estudantes etc. Nesse bloco devem-se incluir jovens que se rebelaram contra algum autoritarismo familiar e educacional. Eles escolhiam a rua como ambiente de liberdade e se entregavam à prática da capoeira como forma de divertimento e um recurso de luta que lhes serviam para se situarem e se afirmarem no espaço da rua. Deve-se dizer que no seio da elite em que se encontravam praticantes de capoeira surgiu e tomou corpo a idéia de que a capoeira era uma ginástica saudável e uma luta eficiente e que os elementos perniciosos que lhe eram imputados seriam provenientes dos seus praticantes marginalizados (negros, malandros, vagabundos, proletários etc.). No Rio de Janeiro, em Recife e em Salvador, como reação à repressão, os capoeiristas agiram colocando em ação táticas de resistência, delineadas à base de despistes e simulações para enganar a polícia. Procuravam praticar a capoeira em lugares periféricos, ou nos principais bairros da cidade, quando e onde a vigilância policial era menos assídua. Essas táticas eram bem ao uso dos capoeiras baianos de antigamente, que também incluíram entre suas iniciativas de resistência a negociação com a polícia, conseguindo licença para a vadiação (sinônimo de capoeira). No plano da resistência, certamente não faltaram conflitos entre os capoeiristas e as forças policiais, cujos combates às vezes se decidiam em favor dos primeiros, que tinham como trunfo maior conhecimento da geografia das ruas e superioridade nos combates corpo-a-corpo. A história da repressão também enriqueceu o imaginário popular com narrativas e lendas que atribuíam aos capoeiras poderes sobrenaturais, como seres humanos capazes de se transformarem em paus, plantas e animais quando perseguidos. Os tempos tumultuosos da capoeira, como revelam os dados históricos, foram mais freqüentes e intensos na cidade do Rio de Janeiro, cidade na qual os capoeiras, tiveram mais influência e participação na vida cotidiana do que em qualquer outro local no século XIX. O noticiário dos jornais da época dão conta disso ao narrarem as ações das maltas (grupos de capoeira adversários entre si) em conflito com elas próprias e a policia, para demarcarem geograficamente parte da cidade, com o fim de exercerem o domínio e o poder paralelo. As notícias desses jornais acusam a veemente participação dos capoeiras do Rio em outros aspectos da vida da cidade, como na vida política, com sérios envolvimentos em eventos como a Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889). Foi muito por conta do comportamento social dos capoeiras no Rio de Janeiro que se justificou a inclusão da capoeira como crime no Código Penal da República. 41 w Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Um nome é destacado como ícone nesse processo de virada histórica da capoeira, Mestre Bimba, o primeiro a exercê-la como um ofício. Aquele que garantiu pela via oficial o direito de ensiná-la, um precursor das lições que fariam com que a “vingança histórica” da capoeira se realizasse: ser hoje solicitada para solucionar mazelas sociais das quais no passado era tida como causadora. A repressão à capoeira Ao enquadramento da capoeira com crime no Código Penal, seguiram-se outras medidas de ordem policial concretizadas na prisão dos principais capoeiras do Rio e sua imediata deportação para a ilha de Fernando de Noronha, que funcionava como uma colônia penal. Essas ações repressivas foram determinantes para que a tradição da capoeira carioca perdesse força de continuidade e praticamente desaparecesse. Alguns membros que escaparam da repressão encontraram sobrevida no meio da malandragem boêmia – no samba e no carnaval. Em Pernambuco, por razões ainda não bem estudadas, a capoeira no mesmo período entra em decadência e, como manifestação, encontra salvaguarda, moldando os passos vigorosos do frevo, manifestação cultural pernambucana. Enquanto isso, a tradição baiana ganha maior vitalidade, mesmo tendo experimentado, ao longo do século XIX, momentos de repressão e sendo ações dos seus capoeiras interpretadas como equivalentes às do Rio de Janeiro. Mas, historicamente, os capoeiras baianos surpreenderam com outras ações diretamente dirigidas para a preservação e continuação da capoeira como uma manifestação artística, um divertimento, uma oportunidade para vadiar (folgar, brincar, divertir-se), mesmo sem eliminar suas possibilidades como defesa pessoal. Assim, eles desenvolveram relações de afetividade e procuraram afirmá-la socialmente, usando como um dos instrumentos para isso fazê-la presente no calendário das festas populares da Bahia e transformando-a num divertimento ao agrado do povo baiano. A responsabilidade por essas ações pertence a uma geração de mestres que, apesar de ter permanecido praticamente anônima, foi responsável pela formação, a partir dos anos 30, de mestres na arte de civilizar. Eles vão modificar os modos e maneiras de comportamento dos capoeiras: refinar sua forma de jogar; acentuar os aspectos socializadores da prática, historicamente inerentes a essa manifestação, mantidos mesmo quando vigoraram os momentos conturbados; atribuir-lhe valores e efeitos socioeducativos; e fazer com que a capoeira se destacasse como um símbolo de identidade nacional. Dessa forma, estavam estabelecidas as bases para transformar a criminalização da capoeira numa incongruência do Código Penal. Um nome é destacado como ícone nesse processo de virada histórica da capoeira, Mestre Bimba, o primeiro a exercê-la como um ofício. Aquele que garantiu pela via oficial o direito de ensiná-la, um precursor das lições que fariam com que a “vingança histórica” da capoeira se realizasse: ser hoje solicitada para solucionar mazelas sociais das quais no passado era tida como causadora. Frederico José de Abreu. Economista. É membro-fundador da Academia de João Pequeno de Pastinha, da Fundação Mestre Bimba e Instituto Jair Moura. É autor dos livros “Bimba é Bamba: a capoeira no ringue”; “O Barracão do Mestre Waldemar”; “Capoeiras: Bahia século XIX.” 42 w O CAPOEIRA (Oswald de Andrade, 1890-1954) – Qué apanhá sordado? – O quê? – Qué apanhá? Pernas e cabeças na calçada 43 w O CAPOEIRA (Oswald de Andrade, 1890-1954) – Qué apanhá sordado? – O quê? – Qué apanhá? Pernas e cabeças na calçada 43 A Guarda Negra: a capoeira no palco da política Carlos Eugênio Líbano Soares ÃO ABOLIÇ A D IA R M HISTÓ S – DA A IMAGE . O A D R A G D E ESTU DA N IDOS A GUAR MENOS D E A – M GRADEC A S A H O , C E D U A A T I Q O MEN VOS IX, FO GENTE D -ESCRA CULO X MAIS CO E X É E R S S E O A O L D N D E E S DO P UPO FINAL FENÔM ÁRQUIASSINA A DE GR N , SIL, AO O É IL A S R M UM DOS IO B A E D R O PISÓ ON DO B REGIM ISRAVIDÃ DESSE E IOS DO IMPÉRIO U R O E Á NFORM N S IV O R V DA ESC O C E E Ã V R IN D ID B O A V O OS CRA XO D R QUE S FIM À ES CONTRA O REFLE S M M Ô O A POPULA P C R , E A A QU BILIZ ORO ECRETO BAR A C L, SE MO E U B R A R E PELO D IS D CESA E DE ONTAD , A PRIN V O A N O S R E T A EST TANDO U P IM , CO EA. LEI ÁUR A M O MO C Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Antes que um fenômeno apertado na estreita margem entre o 13 de maio de 1888 e o 15 de novembro de 1889, a Guarda deita raízes mais profundas em outra manifestação da cultura brasileira, que, somente há poucos anos, começou a ter sua história retirada das sombras: a capoeira. A Guarda Negra: a capoeira no palco da política Esses negros estariam movidos por sentimentos de subserviência, introjetados durante séculos de escravidão, por isso não tinham capacidade de perceber que a oposição à Monarquia era bem anterior à Lei Áurea e que o republicanismo fora alimentado por longos anos também pela perpetuação do regime do cativeiro, obra da Monarquia em toda sua história. Dominados por sentimentos ultrapassados, pré-modernos, primitivos (na linguagem da época), esses negros estavam condenados pela modernidade. Seu mundo desapareceria quando o regime monárquico fosse extinto, no caso após o 15 de novembro de 1889, quando a Monarquia caiu como um castelo de cartas. Esse era o sentimento de grande parte da intelectualidade brasileira da virada do século XX. Outra visão emana dos artigos do jornal Cidade do Rio, dirigido pelo jornalista negro José do Patrocínio. Entusiasta da Abolição, via a Guarda Negra, nos seus primeiros meses, como a encarnação da vontade política da gente negra recém-arrancada do cativeiro. Após séculos de servidão, essa população podia, pela primeira vez, expressar-se politicamente em praça pública, e, logicamente, sua mensagem era de apoio à medida que a tinha tirado das senzalas, mesmo que manifesta no calor da hora do radicalismo político do contexto da Abolição, à sombra do ressentimento de centenas de fazendeiros, antigos pilares do Império, que perderam suas propriedades e não foram indenizados, e de republicanos irados pela súbita popularidade alcançada pela monarquia, na construção da imagem de “Isabel a Redentora”.3 Essas visões polarizadas foram tragadas pela avalanche política do Quinze de Novembro. A República colocou-se como uma pá de cal nesse aceso debate, que foi visto como parte de um passado já extinto, que tinha de ser jogado nos museus da memória, substituído pelas novas questões que o regime recém-implantado colocava na ordem do dia: cidadania, modernização política, emigração, federalismo... A nova historiografia brasileira, que veio à luz nos centenários da Abolição e da República, ao fim da década de 1980, trouxe novas temáticas e novas evidências que a história oficial não suspeitava. E por caminhos também inesperados. A Guarda Negra foi um dos alvos dessa revisão da história brasileira, que ainda não acabou. Antes que um fenômeno apertado na estreita margem entre o 13 de maio de 1888 e o 15 de novembro de 1889, a Guarda deita raízes mais profundas em outra manifestação da cultura brasileira, que, somente há poucos anos, começou a ter sua história retirada das sombras: a capoeira. (1) A Lei Áurea foi assinada em 13 de maio de 1888, extinguindo a escravidão no Brasil. (2) Para um retrato do sentimento anti-Guarda Negra latente na elite branca da época, ver os artigos de Rui Barbosa escritos no jornal Diário de Notícias em 1889. BARBOSA, Rui. Campanhas Jornalísticas. Império (1869-1889. Obras Seletas, v. 6, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1956 (principalmente o artigo intitulado “A arvore da desordem” publicado em 18 de agosto de 1889), pp. 189-192. (3) Para a construção da imagem da “Loura mãe dos brasileiros” ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira” in GOMES, Flávio dos Santos & CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Quase-cidadão: história e antropologias da pósemancipação no Brasil, Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007. 46 Vista por décadas como manifestação trazida da África, desenvolvida pelos escravos nas senzalas dos primórdios da colônia e transplantada para o Quilombo dos Palmares até alçar vôo como marca da cultura negra, a capoeira lentamente passa a ser relida como criação da cultura escrava no Brasil, criada por africanos e crioulos (pretos nascidos no Brasil) no ambiente urbano, e que teve seu espaço de atuação nas vilas e cidades do último século da colonização portuguesa. De forma de resistência aos senhores e ao Estado escravista, passa a ser vista como instrumento de dissuasão dos conflitos internos dentro da própria camada escrava urbana. De brincadeira gerada em oposição ao trabalho servil e degradante (vadiagem), passa a ser vista como elemento indispensável no controle por escravos e negros libertos do ambiente de rua, um verdadeiro poder paralelo, em que vendedores ambulantes e negros de ganho (escravos que vendiam mercadoria ou serviços no espaço público) controlavam o comércio informal da cidade colonial. Assim, a capoeira como tema histórico passou nos últimos anos por uma verdadeira metamorfose de significados (se bem que não consensuais dentro da comunidade de pesquisadores). E a política foi uma das dimensões novas que se abriram nos últimos tempos. Em meu trabalho4 esforço-me em mostrar o peso que a Guerra do Paraguai teve na transformação cultural operada na capoeira no final do século XIX. Maior conflito bélico do Brasil no século retrasado, com duração de cinco longos anos, essa guerra abriu caminho para transformações que acabaram levando ao colapso da ordem monárquica. No fragor do combate, ela teve um impacto no imaginário da sociedade brasileira que perduraria por décadas. Para os pretos e pardos pobres, livres e escravos da cidade do Rio de Janeiro, principais praticantes da capoeira na época, ela se corporificou nos batalhões recrutadores, que (4) SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os capoeiras na Corte Imperial 1850-1890, Rio de Janeiro: Ed. Access, 1994. 47 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil No combate corpo a corpo, os fuzis de pederneira, carregados pela boca a cada tiro, eram de pouca valia após a primeira descarga. Os golpes da capoeira, aprendidos nas ruas da distante cidade do Rio de Janeiro, eram a arma de que se valia o soldado negro ou mulato brasileiro, não apenas do Rio, mas também de Recife e Salvador. Nos campos da peleja, os capoeiras forjaram sua lenda. A Guarda Negra: a capoeira no palco da política vigiavam as ruas e invadiam as moradias coletivas em busca de “voluntários” da pátria. Presos, enjaulados, amarrados, os negros capoeiras eram levados aos magotes a envergar as fardas do exército imperial nos campos do sul. No combate corpo a corpo, os fuzis de pederneira, carregados pela boca a cada tiro, eram de pouca valia após a primeira descarga. Os golpes da capoeira, aprendidos nas ruas da distante cidade do Rio de Janeiro, eram a arma de que se valia o soldado negro ou mulato brasileiro, não apenas do Rio, mas também de Recife e Salvador. Nos campos da peleja, os capoeiras forjaram sua lenda. A volta para casa foi recebida em triunfo. Saídos como marginais, obrigados a assentar praça nas fileiras de um desacreditado exército, eles retornaram como heróis. Alguns cobertos de medalhas, muitos libertos da escravidão pelo “tributo de sangue” ao servir nas forças armadas (escravos eram alforriados antes de ingressarem no serviço militar). Desmobilizados, estavam de novo nas ruas, alguns querendo reaver os “territórios” perdidos após a remessa para o front. Mas a elite política tinha outros planos. Impressionados pela agilidade dos capoeiras no combate, os antigos oficiais comissionados, agora membros da elite política da cidade do Rio de Janeiro, pleitearam nas sombras transformar os ex-combatentes em aliados políticos, capangas à disposição das novas refregas do tempo de paz. Assim, a capoeira entra no palco da política. Não a micropolítica dos escravos, como se viu nos cinqüenta anos do século XIX, mas a política dos salões, dos partidos Liberal e Conservador, das ante-salas do Parlamento, das eleições concorridas, dos votos cabalados, do regime parlamentarista. Era a época da Flor da Gente, grupo de capoeira que bairr da Glória. Arregimentada por um impordominava o bairro tante membro do d Partido Conservador – Duque-Estrada tradi Teixeira, de tradicional família política – ela entra nos embates da alta política na eleição de 1872. A golpes de napol valha, rasteira, rabos de arraia e cabeçadas, os capoeiras ra da Flor da Gente – veteranos de combates militares no Rio Paraguai – varreram os eleitores liberais das urnas, e os var o candidatos opositores dos palanques. A vitória de d Duque-Estrada para a Câmara de Deputados lançou um novo jargão na imprensa política da época: a Flor da Gente. O apelido nasceu quando DuqueEstrada foi interpelado no Parlamento sobre de quem era a gente que recebeu ordem para atacar nas ruas candidatos e eleitores de oposição. Ele respondeu: “Da gent da flor da minha gente.” Esse apelido perminha gente, correria vinte vint anos da vida política da cidade do Rio. Esses capoeiras não agiam somente a soldo, como ca denuncia a imprensa liberal da época. Eles eram denunciava também mobilizados pela crise da escravitam dão, que era mundial. Nos Estados Unidos, uma guerra civil tinha irrompido quando o presidente eleito Lincoln deixou claro seus planos emancipacionistas. A derrota dos confederados deixou a elite brasileira sozinha no continente como mantenedora do regime do cativeiro nas Américas. A vitória no Parlamento da Lei do Ventre Livre (1871), apoiada pelo Governo e pelo Partido Conservador, teve forte impacto no imaginário da época. Essa lei decretava serem livres os filhos de escravos e, por essa razão, foi combatida por liberais e por facções conservadores temerosas do futuro da mão-de-obra escrava nas fazendas. O Imperador Pedro II, sua filha – a regente que assinou o decreto, pois o titular do trono estava enfermo – e a liderança do Partido Conservador passaram a gozar de alto prestígio junto à população negra do Rio de Janeiro. Os capoeiras sorviam esse clima político, passando a agir como monarquistas empedernidos, açulados por políticos por suborno, cumplicidade e impunidade frente aos desmandos da justiça e da polícia dos brancos. Assim, forjou-se essa estranha aliança: nos dias ordinários, os capoeiras dominavam as ruas, intimidando rivais, achacando vendedores, protegendo escravos fugitivos, fazendo pequenos furtos, desafiando a ordem policial com suas maltas (quadrilhas), gozando de proteção de seus patronos políticos, para garantir sua escapada das celas em caso de algum policial desavisado tê-los prendido. Nos dias de eleição eles se juntavam nas redondezas dos locais de voto – na época, invariavelmente igrejas – e atacavam eleitores de oposição (o voto era aberto) ou fraudavam as urnas fingindo ser eleitores ausentes (os populares fósforos), o que costumava romper em grossa pancadaria. Também compravam voto e atacavam urnas em que a vitória dos opositores era certa. Essa fama política logo se alastrou para outros campos. O eixo da economia do café, por volta de 1870, tinha claramente se deslocado para São Paulo, deixando para a província fluminense campos devastados e terra esgotada. Esses “novos ricos” estavam marginalizados do jogo político imperial, amplamente dominado pelas elites tradicionais do Sudeste e do Nordeste. As políticas emancipacionistas ameaçavam suas fazendas escravistas, alimentadas pelo tráfico de escravos do Nordeste e do Norte. Eles eram a alma do Partido Republicano. Fundado em 1870, era uma agremiação insignificante, mas que reunia membros renomados da elite intelectual. Seu jornal A República fazia constantes ataques ao governo conservador. É nesse contexto que temos que entender o primeiro conflito envolvendo capoeiras e republicanos: a tentativa de “empastelamento” do A República. Em 28 de fevereiro de 1873, logo após a vitória de DuqueEstrada e de sua Flor, e após candentes denúncias da “promiscuidade” entre políticos e capoeiras, o jornal é vítima de pedras, gritos, tentativa de arrombamento. Um “moleque” sobe na tabuleta do jornal e a pinta de preto. O Governo é acusado de cumplicidade. Por quase toda a década de 1870, o condomínio entre políticos monarquistas e negros capoeiras deu as cartas na Corte Imperial do Rio de Janeiro. Em 1878, a chegada ao poder dos liberais – depois de uma década de ostracismo – trouxe a primeira campanha policial contra os “capoeiras políticos”, como era denunciado na imprensa. Campanha que não deu em nada. Então, o clima político que propiciou a Guarda Negra estava presente 15 anos antes. Dom Pedro II e sua herdeira do trono, Isabel, eram vistos como simpatizantes de causas abolicionistas. Os políticos paulistas, que dominavam o Partido Republicano, eram conhecidos como irados senhores de escravos, que arrancavam crioulos de suas famílias no Nordeste para serem castigados nas senzalas do Vale do Paraíba. Essa visão não aparecia na época da Guarda por causa de conveniências políticas: para os defensores, era constrangedor filiar-se a movimentos tidos pela imprensa política como autoritários e criminosos, como eram vistos os capoeiras da Flor da Gente da década de 1870. Para os que atacavam, lembrar-se dessa fase recente era escapar do contexto da Lei Áurea, que podia trazer sombrias lembranças do passado escravista de alguns políticos “liberais”. Assim, ambos os formadores de opinião pública da época eram incapazes de compreender a raiz mais profunda que dera origem à Guarda Negra. O primeiro embate envolvendo-a foi o ataque ao comício de Silva Jardim, na Sociedade Francesa de Ginástica, na Rua da Travessa da Barreira, em 31 de dezembro de 1888. Silva Jardim percorria o País, financiado pelos republicanos, aproveitando-se da súbita impopularidade da monarquia frente às classes proprietárias, revoltadas com a perda de seus investimentos “semoventes”. Naquela noite, os membros da Guarda tentaram entrar à força no recinto onde Silva Jardim discursava. A seleta platéia de assistentes prontamente colocou-se para enfrentar 49 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Esse Partido Capoeira expressava interesses imediatos de grupos urbanos marginalizados e trabalhadores, o repúdio aos políticos mais aferrados ao sistema escravagista e, também, uma clara identidade racial. A Guarda Negra: a capoeira no palco da política a “corja de assassinos”. Cercados, eles sabiam que a saída seria uma autêntica pancadaria. E realmente foi. A polícia – cuja chefia ficava a alguns metros – foi totalmente omissa. Havia sérias suspeitas de que a cilada fora armada com conhecimento de altos funcionários do Governo. Mas o que poucos sabiam é que o rastilho de pólvora tinha sido aceso meses antes. Em 12 de julho de 1888, um fato raro desponta nos anais da história da polícia carioca. Uma malta inteira de capoeiras foi presa de uma única vez. E não era uma malta qualquer. Era o grupo que dominava o Campo de Santana, grande área aberta no coração da cidade. Esse grupo era conhecido como Cadeira da Senhora, remetendo à imagem de Santa Ana, avó de Cristo, que aparecia no frontispício da Igreja de Santana, antes de ser derrubada para a construção da estação central da Estrada de Ferro Dom Pedro II (atual Central do Brasil). Era raro nos informes de polícia a prisão de toda uma malta, até por conta da impunidade de que gozavam graças Co te. Eles es foram o a fià ligação com políticos importantes da Corte. vam que seriam recruchados e os informes de jornais indicavam ntecessores da década tados para o Exército – como seus antecessores de 1860. Mas, estranhamente, foram todos soltos no dia sehas de entrada da Casa guinte. Seus nomes aparecem nas fichas dio da cidade. de Detenção da Corte, o grande presídio rão, em primeiro de Esses mesmos nomes aparecerão, elizmente as fichas da janeiro de 1889, na imprensa – infelizmente Casa de Detenção dessa data foram perdidas para sempre cou a Sociedade Fran– como asseclas do bando que cercou cesa no fatídico 31 de dezembro. Fica claro que os dois eventos estão relacionados, assim como a campanha de ai tem relação com a recrutamento da Guerra do Paraguai politização da capoeira na década dee 1870. O que une os dois eventos é o que a imprensa do a: uma forma de atuperíodo chamou de Partido Capoeira: ação política – antes que um grupo específico – centravadores e capoeiras da na aliança entre políticos conservadores egressos da Guerra do Paraguai que juntaram forças por ssem a imprensa do canais subterrâneos, embora povoassem do Capoeira expresPaís por quase vinte anos. Esse Partido sava interesses imediatos de gruposs urbanos marginalizados e trabalhadores, o repúdio aos políticos mais aferrados ao sistema escravagista e, também, uma clara identidade racial. da Negra, ainda Essa é outra dimensão da Guarda dernos: ela é a não trabalhada pelos estudiosos modernos: mo negro no primeira instituição que utiliza o termo sentido positivo e político da palavra, e autonourante meado. Em outras palavras, negro durante ativa, séculos foi palavra fortemente pejorativa, capaque remetia a escravo, fraqueza, incapacidade de luta, submissão. Africanoss e crioulos ofendiam-se mutuamente no Brasil, chamando-se de negros. Essee 50 Capoeira A guarda negra: a capoeira no palco da política uso tem relação com o sentido nefasto de “nigger” nos Estados Unidos, até pouco tempo um palavrão no seio do movimento negro (sic) americano. A palavra passa a ter um sentido político, não por coincidência no momento histórico em que os crioulos se tornam maioria absoluta na comunidade escrava e de negros livres do País, fenômeno apontado desde o fim do tráfico atlântico de africanos em 1850. Esses crioulos criam novos sentidos políticos – diferentes dos sentidos étnicos imprimidos pelos africanos –, sentidos estes que se cristalizam na noção de raça negra. Assim, os crioulos da Guarda Negra jogam frente à racista sociedade brasileira da época um sentido novo para a palavra negro, que se expressa nos artigos do jornal Cidade do Rio, principalmente naqueles assinados por Clarindo de Almeida, o misterioso chefe da Guarda. Esses significados escapavam aos autores da época e devem ser dimensionados pelos estudiosos atuais como sinais diacríticos de uma nova linguagem política, racial, abrangente, que foi subitae te calada. ca ada. mente entr Guarda Negra e republicaO segundo conflito entre nos no Rio foi no dia 14 de julho de 1889, centenário da m Tomada da Bastilha, data magna do republicanismo. Ao anoitecer, um comício de republicanos desce a Rua me do caminho, um grupo da do Ouvidor. No meio Guarda Negra os espera. Como era previsível, tudo termina em grossa pancadaria. Mas, dessa acu e os registros da Casa de vez, a polícia acudiu Detenção foram preservados. Em Alfredo Emygidio Prestello, português, m 18 anos, marceneiro, morador na Rua Monte Albino Loureiro de Carvalho, do Monte; também português de Vila Real, 21 m anos, morador na Travessa do Costa Velho e Luiz Pinto Pereira, 21 anos, Velho; escr escrevente, de Minas Gerais, residind na Rua da Gamboa, todos dindo bra brancos, estavam do lado dos repu publicanos. José Carlos Vieira, 22 ano carpinteiro, de cor parda, anos, mo morador da Rua Pedro de Alcântara e José Antônio, de cor preta, 20 anos, baiano, sem ocupação, era exemplos dos que formaeram v o outro lado.5 vam O conflito ocupou todas as manchetes dos jornais da Corte. Estava ficando claro para os setores médios da sociedade carioca o clima insuportável. Militares também se inquietavam com a inação in do Governo e o fracasso da polícia em estabelecer ordem na cidade. Tudo indicava que o gabinete João Alfredo era cúmplice em parte, daquela situação, e os republicanos, de algozes do regime, se tornaram vítimas de uma conspiração urdida pelos poderosos. A Guarda Negra, de grupo simpático para alguns intelectuais, que ocupava espaço na imprensa representando essa parte normalmente excluída da sociedade (algo inédito para o Brasil naquele tempo) ganhava o estigma de grupo de baderneiros, desordeiros pagos pelo regime, “a canalha das ruas” que viviam em busca de violência e brigas. As mesmas acusações dos capoeiras da Flor da Gente em outros tempos. Esse clima reforçava os pesados estereótipos raciais que circulavam contra a “raça negra”. Despreparados para o regime de plena liberdade política, inaugurado em 13 de maio de 1888, deveriam ser dirimidos pelas forças da ordem policial ou reconduzidos ao trabalho no campo, sob vigilância do Estado. Os “13 de maio”, como eram chamados os libertos da Lei Áurea, muito pouco tempo depois da liberdade, já começavam a sentir o peso das novas limitações impostas pela sociedade “liberal” burguesa. O clima de guerra racial instaurado na época da Guarda Negra deve ter sido elemento importante no imaginário da alta oficialidade brasileira às vésperas do levante que pôs um fim ao regime monárquico. Mas o colapso da Guarda começa antes. Em julho de 1889, no mesmo mês do conflito da Rua do Ouvidor, o gabinete João Alfredo caía. Subia ao poder o Partido Liberal, na pessoa do Visconde de Ouro Preto. O que parecia um novo começo arrastou a Monarquia ainda mais para seu melancólico fim. O Visconde tinha uma péssima reputação. Em 1880, era ministro da Fazenda, e foi dele a péssima idéia de criar um novo imposto sobre as passagens de bonde. A taxação diminuiria ainda mais os parcos ganhos da população pobre urbana. O resultado foi a Revolta do Vintém, um movimento espontâneo da população, que derrubou bondes, ergueu barricadas na cidade, enfrentou tropas do Exército. Os jornalistas da oposição – republicanos e abolicionistas – entraram em êxtase com o movimento. Depois de muitos mortos e feridos, o Ministro pediu demissão e o imposto foi cancelado. A Revolta do Vintém foi o pano de fundo para as campanhas de rua abolicionista e republicana. Dias após a proclamação, o generalíssimo Deodoro convocava o advogado Sampaio Ferraz para assumir a chefia de polícia do Distrito Federal. Ele imediatamente colocou seus planos em ação. Há tempos Sampaio acompanhava como promotor público a ação dos capoeiras. Sabia que o fim do regime e a instalação de um governo provisório ditatorial era o ambiente ideal para dar um fim às maltas – e, no processo, eliminar os últimos vestígios da Guarda Negra. (5) Todas essas fichas estão no Livro de Matrículas da Casa de Detenção nº 4321, 15/07/1889, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil A Guarda Negra ainda passou cerca de um século esquecida pela historiografia. Teorias que argumentavam a “anomia social” dos negros como fiadores da sua incapacidade de enfrentarem a “nova” ordem burguesa não estimulavam estudos históricos. Em poucos meses, centenas de capoeiras, em atividade ou “aposentados” (muito velhos para entrarem em ação), foram presos da forma mais arbitrária. Encerrados na prisão de Santa Cruz, foram jogados em um vapor e mandados para Fernando de Noronha, a ilha prisão do governo federal. Em menos de um ano, Sampaio tinha dado cabo dos últimos vestígios do Partido Capoeira e, de sobra, da Guarda Negra. Em outubro, era publicado o novo código criminal da República, tornando a capoeira crime. A maioria dos capoeiras apodrecia no meio do Atlântico. O destino final desses homens é um mistério. A Guarda Negra ainda passou cerca de um século esquecida pela historiografia. Teorias que argumentavam a “anomia social” dos negros como fiadores da sua incapacidade de enfrentarem a “nova” ordem burguesa não estimulavam estudos históricos. Precisamos esperar o fim do regime militar de 1964 para revermos alguns fatos da historiografia oficial e do tema da Guarda Negra. Referências Bibliográficas BARBOSA, Rui. Campanhas Jornalísticas. Império (1869-1889), Obras Seletas. v. 6, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1956. A Guarda Negra: a capoeira no palco da política BERGSTRESSER, Rebecca Baird. The Moviment for the Abolition of Slavery in Rio de Janeiro. 1880-1889, Stanford University Press, 1973. DUQUE-ESTRADA, Osório. Abolição: esboço histórico. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1908. GOMES, Flávio dos Santos & CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Quase-cidadão: história e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007. GOMES, Flávio dos Santos. “No meio das águas turvas (racismo e cidadania no alvorecer da República; a Guarda Negra na Corte, 1888-1889)” In Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, v. 21, pp. 75-96, dezembro de 1991. MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. A vida turbulenta de José do Patrocínio. Rio de Janeiro: Sabiá, 1969. ORICO, Osvaldo. O tigre da abolição. Rio de Janeiro: s.ed. 1953. Carlos Eugênio Líbano Soares. Bacharel e licenciado em História pela UFRJ. Mestre em História pela UNICAMP. Doutor em História pela UNICAMP. Professor Adjunto de História da UFBA SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os capoeiras na Corte Imperial 1850-1890. Rio de Janeiro: Ed. Access, 1994. TROCHIM, Michael. “The Brazilian Black Guard: racial conflict in post-abolition in Brazil” In The Américas, v. XLIV, janeiro de 1988. 52 Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem Antonio Liberac Cardoso Simões Pires E ERÁ S D O P NTE UM E DE ELME S V I S A S T PO TRA ES E IRA”. RASIL E B IDAD O O P S D A A O C S DA “ LICA ÍRCUL ODAS A B C T N Ú I E E P M D D A NO ES ÇAS AM FORM LHER AL DE S PRA U M R ENTR A E U M T S T E R E E L HADA E C T S U N E C N C A T N R A P E N O C O I M M CO O AT CO AR P ESSÃ QUE, IS PR UAL A POR H AÉA A T O PASS T I EXPR B O D R U A A M D L E T A E M D IC ,A ICA QU A. A MU EPRÁT A”, ON PRAT MBAU ELEZ R I A I R CO B O . R E A OS R R E I A O R O D B E R R P A I A R A P E A O O R R T E C T D E IN EN MO DA GUE BAUS ADE D TOS EDO ODA UNDO O CO D M I I N R U Ã M L “ R I A S G E G C O L A S B FO S AD EA CU PEL OS SER S DO ADA E PER CHAM BAS. TOS D E G D N U M A I A E DEM Q L N S P , M A O O I O T O P T V M L PRO N O M TES OS SE ME DEÍRCU HAS. STRU BORE LIZAM TICAN ARA EMIC N N A A P I M S I E R A A – U R R P T D O S, PO LA A ÉIS EE US ZIDA A. SE OS E APITO SENÇ MBAT CORD R E U , D I O I R S U D E I C R P X O O O R I A S EM PR AP AX CO DA C ENÇO SICA MPRE RAS, OS, C L E Ú D R A , I S A M D S E U Á A O D R ,Q .H FIT AN POR O DA IAS – ADAS OEIRA CO, P R M O E P T Á I T R A T R C E N O A ME ED RECO S. DAM GO D INDU NOM N O J A S O JOGO M A O S O D M N C E A O I B O D O CE SE NT VAR MENT LVIME NDO RIADO I A A O T D V V S N E N V E OA SÃO E DES ADOS TAM D R N T E S I I N E R NÍV EO ENCO INAM SEUS S R N A E UE MARC RES Q T S E M DOS Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Tratar a capoeira de uma forma geral é sempre difícil, pela diversidade histórica das formas de praticá-la e por ser cultuada por pessoas oriundas de variados grupos sociais. Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem Tratar a capoeira de uma forma geral é sempre difícil, pela diversidade histórica das formas de praticá-la e por ser cultuada por pessoas oriundas de variados grupos sociais. Em princípio, ela teria sido uma prática dos escravos africanos no Brasil, fruto das conexões culturais realizadas pelos representantes das diversas etnias africanas que foram trazidas para cá, após capturas e escravização. Na documentação policial, datada dos anos 1820, relativa às prisões de escravos por praticarem capoeira na cidade do Rio de Janeiro, encontramos um grande número de etnias, como, por exemplo: Angola, Congo, Moçambique, Cassange, entre outras. No século XIX, a capoeira é praticada de forma sistemática e massiva apenas no Rio de Janeiro, mas é reprimida pelas instituições policiais. Relatos sobre os capoeiras remontam ao final do século XVIII, época do “major Vidigal”, um policial que ficou famoso por usar a capoeira em suas contendas com escravos fugidos, feiticeiros e com os próprios capoeiras. Mas foi após a fundação da polícia civil e militar, que encontramos, com maior constância, registros dos capoeiras em fontes históricas. No início do século XIX, os capoeiras já eram bastante conhecidos, na cidade do Rio de Janeiro. No período de 1810 a 1821, entre as 4853 prisões efetivadas pela polícia nessa cidade, 438 (9%) foram por acusação de prática da capoeira. Nesse período, os capoeiras formaram grupos e interferiram na relações de poder no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro, assim como nas relações entre escravos e senhores e entre os próprios escravos. Os praticantes de capoeira desse período estavam organizados por grupos, chamados de “maltas de capoeiras”, que tinham como referência os bairros da cidade. Esse modelo de organização foi relativamente hegemônico por todo o Brasil. Além da navalha eles utilizavam sovelões, marimbas e paus como armas em suas contendas de grupo. Sua práticas não se limitaram aos procedimentos da luta, eles inventaram uma tradição em torno da capoeira que incluiu nomes e gritos de guerra de cada grupo. Plácido de Abreu, um dos maiores praticantes amadores da época, explica que, na segunda metade do século XIX, os capoeiras estavam divididos em dois grandes grupos denominados nações: “nagoa” e “guaiamu”. Na verdade, cada nação era formada por diversos grupos de capoeiras que se organizavam geralmente por bairros, ou seja, uma nação significava a aliança entre um conjunto de grupos, representando certo domínio sobre áreas específicas da cidade. A historiografia ainda não chegou a uma definição categórica dos termos que denominavam essas duas grandes nações. As informações de Plácido de Abreu apontam, entretanto, para diversas características desses grupos e possuem uma importância singular, pois revelam a linguagem interna. A partir daí, temos um olhar de dentro, de um indivíduo que participou ativamente dessas organizações, tendo sido um “amador”. (1) Amador era a denominação do praticante da capoeira que não pertencia a nenhuma malta. 56 Capoeira Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem O autor deixou, sem dúvida, o relato mais fascinante sobre os capoeiras do século XIX. Escreveu, por exemplo, que os nagoas e guaiamus estavam divididos em diversos “partidos”. Ele esclarece, ainda, que guaiamu é o capoeira que pertence aos partidos de São Francisco, situado no grande centro da cidade do Rio de Janeiro, Santa Rita, Marinha, Ouro Preto, São Domingos de Gusmão, além de outros grupos menores. Os nagoas pertenciam aos partidos de Santa Luzia, São José da Lapa, Santana, Moura, Bolinha de Prata, além de outros. Esses grupos, denominados de “partidos” por Plácido de Abreu, estavam divididos por freguesias e áreas específicas no interior das freguesias da cidade. Esses partidos também estavam demarcados a partir de símbolos, principalmente os que faziam referências às cores: o vermelho dos guaiamus e o branco dos nagoas. Segundo Plácido de Abreu, eles emitiam “gritos” de guerra: “É a Lapa. É a Espada. Quando é daquela província. É a senhora de cadeira. Quando é de Sant’ana. É velho carpinteiro. Quando é de São José. E assim por diante”. As cantigas eram chamadas de toadas e fizeram parte do jogo como elemento lúdico e de desafio: Os guaiamus cantavam: Terezinha de Jesus Abre a porta apaga luz Quero ver morrer nagoa A porta do Bom Jesus Os nagoas respondiam: O castelo içou bandeira São Francisco repicou Guaiamu está reclamando Manoel preto já chegou. Concomitantemente à repressão desencadeada pelo governo provisório republicano, surgiu um movimento valorizador da capoeira que alcançou diversos grupos sociais. Alguns parlamentares se lançaram em defesa da capoeira, como o deputado Coelho Neto, que chegou a organizar um movimento de oficialização do ensino nas Forças Armadas. Isso ocorreu no mesmo momento em que centenas de capoeiras estavam sendo presos e processados pelo artigo 402. Nessa fala está o projeto de uma capoeira modelada pelas lutas marciais e a idéia de um esporte “genuinamente brasileiro”. Como afirmou Annibal Burlamaqui, conhecido por “Zuma”, um exímio capoeira da década de 20 do século XX: No Brasil já se praticam, pode-se dizer, todos os sports: temos campeonato de remo, natação, foot-ball, basket-ball, boxe, luta romana, tênis atletismo em geral, etc. Atualmente até o pólo e golfe já são disputados em nossa terra. No entanto, é de lamentar que, até hoje, nada se tenha em prol do esporte nacional. Cogita-se de uma arte nacional, brasileira, da música brasileira. Até mesmo da política brasileira. Foto: Acervo MRE Eles possuíam rituais públicos de conflito entre os grupos “Quando, por exemplo, a banda de música saía do centro da cidade, isto é, a terra dos guaiamus, e dirige-se para os lados da Lapa, ou Cidade Nova, os capoeiras que pertencem àqueles partidos acompanham o batalhão, prevenidos para o encontro com os nagoas, visto irem em terra alheia”. Havia lugares próprios para treinamentos: “Os ensaios faziam-se regularmente nos domingos de manhã e constavam de exercícios de cabeça, pé e golpe de navalha e faca. Os capoeiras de mais fama serviam de instrutores àqueles que começavam. A princípio os golpes eram ensaiados com armas de madeira e por fim serviam-se de próprios ferros , acontecendo muitas vezes ficar ensangüentado o lugar dos exercícios”. Zuma foi um importante inventor dessa nova capoeira carioca e afirmou que vários golpes foram retirados dos “batuques” e “sambas”, como no caso do “baú”. Trata-se de um golpe dado no adversário com a barriga, sendo próximo aos movimentos do “samba de umbigada”. O “baú” também era usado nos “batuques lisos”, segundo Zuma, os mais delicados. Já o “rapa” teria sido um golpe utilizado nos “batuques pesados”. Ele ainda explica que haviam os golpes de “tapeação”, que serviam apenas para enganar o adversário. Zuma também apontou para algumas regras, exercícios e treinos para o ensino da capoeiragem: “Primeiramente idealizei um campo de luta onde, com espaço suficiente, se pudesse realizar a gimnastica brasileira”. 57 ,, Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Um traço comum aos praticantes da capoeira no Brasil foi adquirir um apelido, costume que perdura até os dias de hoje. Ao mesmo tempo em que os praticantes no Rio de Janeiro projetavam uma capoeira vinculada às artes marciais, os praticantes baianos, que não obtiveram grande visibilidade histórica no século XIX, despontaram com dois projetos de capoeira distintos: a capoeira angola e a capoeira regional. Mestre Pastinha e Mestre Bimba foram os dois mais importantes praticantes desses estilos ou modelos de capoeira. Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem O campo de luta, idealizado por Zuma, era composto de um círculo, desenhado em seu interior a letra “Z”. Para as competições, haveria um juiz para controlar o tempo de jogo e os movimentos dos jogadores. O tempo de luta seria de no máximo uma hora, dividida em confrontos de 3 minutos, com descansos de 2 minutos. A cada intervalo deveria haver a apresentação dos lutadores no meio do círculo, como uma forma de controle do jogo por parte do juiz. Em caso de empate, haveria ainda mais meia hora de tempo com intervalos maiores para descanso. Caso o jogo continuasse empatado, o juiz passaria para a etapa da “morte”, quando os jogadores lutariam até cair (nocaute), sem intervalo para descanso. Os embates dar-se-iam em campos de futebol. Apesar da forte repressão sobre os capoeiras desde os inícios do século XIX até sua criminalização em 1890, a resistência foi maior e sua prática foi reinventada a partir dos anos 20 do século XX. Seus praticantes a colocaram em um patamar de símbolo nacional, construindo identidades vinculadas ao esporte, à dança, á música e às artes marciais, principalmente. A prática da capoeira na Bahia do século XIX não sofreu uma forte repressão, como no Rio de Janeiro. A polícia baiana não processou ninguém pelo artigo 402 do código penal de 1890. Entretanto, houve várias prisões de capoeiras baianos no início do século XX. Os motivos dos processos eram por agressões físicas (artigo 303 do código penal de 1890). Os capoeiras baianos também seguiram o modelo de organização das maltas cariocas, ou seja, organização tendo como referência principal os bairros da cidade soteropolitana. Os capoeiras baianos ficaram famosos e permaneceram na memória coletiva dos praticantes da atualidade com maior ênfase do que os praticantes cariocas. Aqui citamos apenas alguns dos principais nomes da época: Pedro Mineiro, Antônio Boca de Porco, Bemenol, Chico Três Pedaços, Feliciano Bigode de Sêda e Besouro Mangangá, este último o mais famoso entre eles. Um traço comum aos praticantes da capoeira no Brasil foi adquirir um apelido, costume que perdura até os dias de hoje. Ao mesmo tempo em que os praticantes no Rio de Janeiro projetavam uma capoeira vinculada às artes marciais, os praticantes baianos, que não obtiveram grande visibilidade histórica no século XIX, despontaram com dois projetos de capoeira distintos: a capoeira angola e a capoeira regional. Mestre Pastinha e Mestre Bimba foram os dois mais importantes praticantes desses estilos ou modelos de capoeira. A capoeira regional e a capoeira angola apresentam a mesma estrutura, sendo semelhantes desde o treinamento em série até a utilização de indumentárias. Suas diferenças fundamentais estão no estilo do jogo e na musicalidade. A capoeira angola aparece na Bahia nos anos 20, principalmente com o grupo de Querido de Deus, um capoeira estivador no Cais de Ouro da velha Bahia. Mas foi Mestre Pastinha quem sistematizou a capoeira ango- 58 Capoeira Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem la em suas regras rituais, toques e ritmos de várias belezas e uniformizou os praticantes, dando um caráter também esportivo à prática cultural. Para Mestre Pastinha, a capoeira angola era parte da cultura nacional brasileira. Houve uma grande diversidade de praticantes da capoeira angola, como o Mestre Valdemar da Paixão, Mestre Noronha, Mestre Tibúrcio, Mestre Canjiquinha, Mestre Caiçara, Mestre João Pequeno e Mestre João Grande, entre muitos outros. Mestre Bimba, por outro lado, ampliou os golpes e ritmos, dando ênfase aos cantos e ao regramento dos instrumentos musicais em apenas dois pandeiros e um berimbau. Invenções que se tornaram hegemônicas em todo o Brasil. A capoeira regional, por meio de seus praticantes baianos, rapidamente migrou para todo o Brasil. É raro encontrarmos um município do Brasil onde não exista praticante da capoeira, a não ser em áreas rurais extremamente distantes. Os praticantes da capoeira angola acompanharam esse mesmo movimento de expansão da capoeira regional algumas décadas depois. Mas, quando o fizeram, trouxeram novo impulso ao processo de cristalização da capoeira como cultura global. Atualmente, a capoeira é praticada em todos os continentes e, cada vez mais, torna-se importante prática cultural e símbolo de nacionalidade. Com efeito, os olhares discriminatórios da sociedade e de suas instituições policiais sobre a capoeira perdem intensidade com o passar dos tempos. Em 1937, a capoeira foi liberada, pois já se encontrava em outro degrau dos valores sociais. A cultura negra ganhava importância no processo de transformação dos símbolos étnicos em símbolos nacionais e o Brasil apresentava a capoeira ao mundo com um de seus tesouros mais raros e como fruto de um processo de sincretismo no qual os aportes das diversas etnias africanas, européias e indígenas se transformam em uma mesma coisa, ou seja, na capoeira, uma peculiaridade brasileira. Referências Bibliográficas ALGRANTI, Leila Mezan . O feitor ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. 1808-1822. Petrópolis, Vozes, 1988. HOLLOWAY, Thomas H. “O Saudável terror” Repressão policial aos capoeiras e resistência dos escravos no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro, Revista do centro de estudos afro-asiáticos, 16, 1989. SOARES, Carlos Eugênio Libano. A negregada instituição. Os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ed. Secretaria Municipal de Cultura, 1994. A capoeira escrava no Rio de Janeiro 1808-1850. Campinas, Tese de doutorado, Unicamp, 1998. Foto: Acervo MRE PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. A Capoeira no jogo das cores. Criminalidade, cultura e racismo na cidade do Rio de Janeiro (1890-1930). Campinas, Dissertação de mestrado, Unicamp. 1996. Antonio Liberac Cardoso Simões Pires. Doutor em História Social pela Unicamp. Prof. Dr. Adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Obras publicadas: “Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá, Três Personagens da Capoeira Baiana”. Tocantins/Goaiania, UFT/Grafset, 2001. “A capoeira na Bahia de Todos os Santos”. Tocantins, UFT/Grafset, 2004. (org). “Sociabilidades Negras”, Belo Horizonte, Ministério da Educação, Daliana, 2006. ALMEIDA, Manoel Antonio de. Memórias de um sargento de milícias. Rio de Janeiro, Ed. Crítica, 1978. AGPMERJ – Correspondências recebidas – 16/11/1932. ABREU, Plácido de Abreu. Os capoeiras. Rio de Janeiro, Tipografia da escola de Serafin José Alves, sd. DIAS, Luiz Sérgio. Quem tem medo da capoeira? 1890-1906. Rio de Janeiro, tese de mestrado no departamento de história da UFRJ, 1993, p. 110 Este artigo está baseado na obra do autor intitulada: Movimentos da cultura afro-brasileira, Campinas, tese de doutorado, Departamento de História, Unicamp, 2001. SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade. Petrópolis, Vozes, 1988, p.54. 59 A performance ritual da roda de capoeira angola Rosa Maria Araújo Simões , ENFIM , L A ITU AATO R , SÀC O A Ã S D Í R U E RIB E, DIV ODO URA, ES AT T T D L A O U D D ,C ALI UN UE RAPIA LO M S/QU E E E T IRA Q , P Õ , E E Ç S I D I O N P A A I A F D SI ZM DE EC RIAS ELIGIO DA VE ILO D Á R A T , V C S E , E . S T S DA A, AR ANDO ÂNEA R DO A D R E N I M A D O M Ç U P N N E M SSE ALG ONTE TA-DA A DEP SE DI SÃO C U S , L ” M A E R E T R E I E V -D EN ES AL POE JOGO DIFER U CA IRA D RPOR S E O O E N C L R A A M N ICA ALO “UMA PRÁT REGIO ITE V A M A S S R I S N E PO A. E TRA A, CA POEIR SSO, L E O C G O AN E PR OEIRA NESS P A C OTA: SE AD Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil O auge desse esforço é expresso na organização do ritual (a roda de capoeira), no qual há um conjunto de conhecimento e de linguagens específicas que caracterizam o trabalho de capoeira angola levado sério. Entremos na roda... A performance ritual da roda de capoeira angola A capoeira originou-se no Brasil nos tempos da escravidão e, de diferentes formas, ela vem acompanhando o desenvolvimento de nossa sociedade. De acordo com Lima (1991: 10-12) há, basicamente, quatro etapas que caracterizam seu desenvolvimento histórico no País. No Império, antes da abolição dos escravos, o principal objetivo da capoeira era a defesa. Na República, além de defesa, a capoeira servia de canal aberto à manifestação cultural do povo negro; aqui, ela era denominada capoeira angola.1 Já no governo nacionalista de Getúlio Vargas, em meados de 1930, a capoeira começa a ser organizada como ginástica e, em 1972, ela passa a ser considerada esporte pelo Conselho Nacional de Desporto. Na década de 30 foi criado por Manuel dos Reis Machado (Mestre Bimba) um novo estilo de se jogar capoeira, a luta regional baiana, ou simplesmente nas palavras de hoje, capoeira regional. Na atualidade, devido a algumas inovações que Mestre Camisa do “ABADÁ Capoeira”2 fez na capoeira regional, cria-se a denominação “capoeira contemporânea” para classificar o estilo de capoeira que a maioria dos capoeiristas está praticando. Levando em conta a existência de estilos diferentes de capoeira temos, conseqüentemente, diferentes tipos de roda3 e diferentes valores a serem transmitidos. Neste artigo não pretendemos abordar tais diferenças, o que demandaria outra pesquisa. O objetivo aqui é ilustrar o rigor subjacente à performance4 ritual e, para tanto, debruçaremo-nos especificamente no estilo denominado capoeira angola, fazendo uma descrição da roda a partir do Centro Esportivo de Capoeira Angola – Academia de João Pequeno de Pastinha (CECA – AJPP)5, o qual é uma referência da tradição da capoeira. Vale destacar que Mestre João Pequeno de Pastinha (nascido em 27 de dezembro de 1917), com seus 89 anos, é a própria “história viva” da capoeira; sua escola vem se disseminando pelo mundo a partir de alguns de seus discípulos, sendo o principal deles, nesse processo de disseminação, Mestre Pé de Chumbo. Nos discursos dos mestres de angola, observamos, de uma maneira geral, a preocupação com a preservação da tradição e dos fundamentos da capoeira angola (dentre os quais podemos destacar, como exemplo, o respeito, a justiça, a humildade e a paciência). O auge desse esforço é expresso na organização do ritual (a roda de capoeira), (1) Vale destacar que em 1922 foi fundado, pela nata da capoeiragem baiana o Centro de Capoeira Angola Conceição da Praia (Mestre Bola Sete, 2001: 29). (2) Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte – Capoeira. (3) A roda é a forma pela qual a capoeira se expressa, é sua performance ritual. (4) Para Turner (1982: 13), “a antropologia da performance é uma parte essencial da antropologia da experiência” e, neste sentido, “todo tipo de performance cultural, incluindo ritual, cerimônia, carnaval, teatro, é explanação e explicação da vida em si, como Dilthey freqüentemente argumentou”. E, a expressão, por sua vez, é por si só, “um processo pelo qual se compele a uma expressão que a completa”. Para melhor exemplificar tal afirmação, o autor recorre à etimologia da palavra performance que, segundo ele, “não tem nada a ver com “forma”, e sim, deriva do velho francês parfournir, “completar” ou “realizar, cumprir minuciosamente/rigorosamente/ totalmente”. A performance é, portanto, a própria finalidade de uma experiência” [traduções minhas]. Para um maior aprofundamento teórico-metodológico vide a tese “Da inversão à reinversão do olhar: ritual e performance na capoeira angola” (SIMÕES, 2006). (5) A sede é localizada no Forte da Capoeira em Salvador (BA), mas há núcleos em São Paulo (Indaiatuba, Campinas, São Carlos, Presidente Prudente, Bauru, Sorocaba, Capital); Minas Gerais e em outros países, tais como México, Suécia, Portugal, Espanha, Dinamarca, Estados Unidos etc. 62 no qual há um conjunto de conhecimento e de linguagens específicas que caracterizam o trabalho de capoeira angola levado sério. Entremos na roda... os três berimbaus que vão ser usados durante a roda e também os de reserva, pois caso o arame de aço (a corda que é presa de uma extremidade à outra da verga6 dele) estoure durante a roda, o berimbau deverá ser imediatamente substituído, sem interrupção do jogo. A performance ritual da capoeira angola consiste na roda, que representa, por sua vez, “o mundo velho de Deus” (o universo). Para descrevê-la é necessário que seja feita uma abordagem que contemple desde a questão da musicalidade, passando pela questão da corporeidade, hierarquia, valores morais, entre outras. Considerando sempre os inúmeros pares de oposição expressos, tais como, movimento de resistência versus movimento de submissão, jogo em cima e jogo embaixo, jogo de dentro e jogo de fora, alegria e dor (tristeza), luta e diversão, luta e opressão, lealdade e falsidade, mão versus pé7 etc, a roda apresenta um panorama do universo simbólico da capoeira. Mestre Bola Sete afirma que muitos mestres acreditam que a capoeira, uma criação dos africanos no Brasil, seja originária de antigos rituais africanos. Câmara Cascudo (1967: 183) também relaciona a capoeira às danças africanas ao apontar o N´Golo (Dança da CONTEXTUALIZAÇÃO DA DESCRIÇÃO DA PERFORMANCE RITUAL NA CAPOEIRA ANGOLA. (...) quase todo objeto usado, todo gesto realizado, todo canto ou prece, toda unidade de espaço e tempo representa, por convicção, alguma coisa diferente de si mesmo. É mais do que parece ser e, freqüentemente, muito mais. (Turner, 1974: 29) Uma das características da performance ritual é a polissemia/multivocalidade. Assim, tanto a decoração da academia – o que inclui espaço destinado para pendurar os berimbaus, pintura do arco-íris nas paredes (logotipo do CECA – AJPP), quadros com fotos de renomados mestres (os quais valorizam a linhagem, contando, conseqüentemente, a história e a tradição da capoeira angola) – bem como o uso do uniforme, a movimentação corporal a musicalidade constituem as diversas linguagens na capoeira angola. Para preparar o espaço ritual, os alunos chegam um pouco antes do horário previsto para o início da roda, providenciando a limpeza do chão e arrumação dos bancos, enquanto outros afinam os instrumentos musicais; armam (6) Verga é toda madeira que “dá o arco” para fazer berimbau. Exemplo de pau para fazer berimbau é a biriba, inclusive, cantada em versos: “Biriba é pau, é pau/Oi biriba é pau para fazer berimbau...” (domínio público). (7) Num corrido de domínio público o puxador (o mestre geralmente, ou outros membros de posições hierárquicas próximas a ele) canta: “É a mão pelo pé” e o coro responde “O pé pela mão”; depois o puxador canta “É o pé pela mão” e o coro responde “A mão pelo pé”. Esses versos são várias vezes repetidos continuamente. 63 Foto Rita Barreto. Poloca na roda Nzinga Capoeira Angola Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Na roda são estabelecidas comunicações entre os instrumentos musicais que compõem a bateria, o canto (expresso em forma de ladainha, quadras e corridos) e, sobretudo, entre os jogadores que, com seus corpos estabelecem uma comunicação não-verbal. Zebra) como dança guerreira que faz parte de um rito de passagem, marcando a entrada da puberdade em que os garotos dançam/lutam como exibição às garotas. Antes da década de 30, a capoeira não era praticada em recintos fechados (em academias), o que, provavelmente, indicaria a existência de ritual diferente ao que existe na atualidade, ou seja, ela existia em forma de luta pela liberdade e sobrevivência e, quando tinha um caráter recreativo, era praticada nos engenhos, na beira do cais, nas ruas, em frente aos bares, feiras, nos morros e nos largos dos bairros. Quando observamos fotos desse período, vemos diferença no número de berimbaus, na disposição da bateria, na indumentária etc. As academias de capoeira angola localizadas na cidade de Salvador (Bahia) são as que procuram manter a tradição que se tinha na década de 30, as quais seguem a linhagem de Mestre Pastinha. Os grupos de capoeira angola que se disseminaram pelo mundo afora também procuram seguir a linhagem de Mestre Pastinha, por isso o relato sobre a performance ritual é baseado no CECA – AJPP, uma vez que Mestre João Pequeno é considerado o principal discípulo de Mestre Pastinha incumbido pela transmissão dessa arte8. A performance ritual da roda de capoeira angola A RODA DE CAPOEIRA ANGOLA. (...) uma coisa é observar as pessoas executando gestos estilizados e cantando canções enigmáticas que fazem parte da prática dos rituais, e outra é tentar alcançar a adequada compreensão do que os movimentos e as palavras significam para elas. (Turner, 1974: 20) Na roda, as pessoas sentam-se, geralmente, dispostas em círculo, mas há também rodas em formato quadrangular/retangular. Cada grupo, no espaço de sua academia, costuma realizá-la, uma vez por semana, durante todo o ano. Há também um evento de capoeira angola, que congrega os diferentes grupos, a exemplo dos encontros nacionais e internacionais. No evento, que costumeiramente é patrocinado e/ou organizado por um grupo específico de capoeira angola, participam da roda diversos mestres e seus respectivos grupos/discípulos. Na roda são estabelecidas comunicações entre os instrumentos musicais que compõem a bateria, o canto (expresso em forma de ladainha, quadras e corridos) e, sobretudo, entre os jogadores que, com seus corpos estabelecem uma comunicação não-verbal. (8) Num depoimento de Mestre Pastinha, ele afirmara: Deixo dois mestres de verdade e não professores de improviso, fazendo referência a Mestre João Pequeno e a Mestre João Grande (este último mora em Nova Iorque – E. U. A). 64 Capoeira A performance ritual da roda de capoeira Angola INSTRUMENTOS MUSICAIS E A HIERARQUIA NA CAPOEIRA. Numa roda de capoeira angola o principal instrumento é o berimbau. Ele está no ápice da hierarquia. É no “pé-do-berimbau”9 que se delineia o jogo que acontecerá. Há três berimbaus: o berra-boi (alguns o chamam de gunga10), que tem o som mais grave e é considerado o mestre da roda - geralmente quem o toca é o mestre ou alguém mais próximo do mestre, levando em consideração a hierarquia (com o sentido de mais experiência e sabedoria) na capoeira; o médio que tem o som médio e o viola com o som mais agudo. Cada berimbau tem seu toque específico a ser feito. O resultado desse conjunto sonoro resultará em cenas de movimentos corporais predominantemente lentos, mas os movimentos rápidos e com maior amplitude articular acontecerão nos devidos momentos, a depender do ritmo ditado pelos berimbaus. O conjunto dos instrumentos utilizados na capoeira é denominado bateria e dela fazem parte, na seguinte ordem: os três berimbaus (gunga, médio, viola), dois pandeiros (às vezes apenas um), um agogô, um reco-reco e um atabaque. Segue exemplo de disposição dos instrumentos na bateria: Foto: Rosa Simões Mestre João Pequeno com seu companheiro de jogo no pé do berimbau. Neste momento, Mestre João Pequeno estava cantando a ladainha de sua composição “Quando eu aqui cheguei” (que será transcrita mais à frente). A situação de cantar ladainha no “pé do berimbau” geralmente se dá quando o próprio mestre será o jogador. Assim, a ladainha não foi cantada a partir da posição do mestre no gunga. Observar que estão tocando somente os três berimbaus e o pandeiro. A obediência à hierarquia na bateria é mais rigorosa, geralmente, em relação a tais instrumentos que são tocados no momento da ladainha, tanto é que no gunga está o Mestre Moraes; no médio, Mestre Ciro; no viola Mestre Pé de Chumbo e, no pandeiro, o Professor Topete, todos personalidades significativas para o universo da capoeira. (9) Quando os dois capoeiristas estão agachados (de cócoras) de frente para os três berimbaus. (10) Gunga também é sinônimo de berimbau. 65 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil A ladainha (versos 1 ao 17)14 é um tipo de cantiga na qual tanto pode se contar uma história, como fazer uma oração, uma louvação, um desabafo, uma provocação, ou dar um aviso etc. Ela é cantada solo, ou seja, puxada pelo mestre. O CANTO NA CAPOEIRA. Antes de se iniciar um primeiro jogo, o mestre ou quem estiver no gunga, ou, ainda, um dos jogadores que estiver no pé-do-berimbau, canta uma ladainha. Para ilustrar como a roda é iniciada por Mestre João Pequeno de Pastinha, segue a transcrição da ladainha “Quando eu aqui cheguei” de sua composição. Quando eu aqui cheguei A performance ritual da roda de capoeira angola Iê11 01 - Quando eu aqui cheguei 02- Quando eu aqui cheguei 03 - a todos eu vim louvá, 04 - vim louvá a Deus primero 05 - e os moradô desse lugá 06 - Agora eu tô cantando 07 - cantando canto em louvô 08 - Tô louvando a Jesus Cristo 09 - Tô louvando a Jesus Cristo 10 - porque nos abençoô 11 - Tô louvando e tô rogando 12 - ao pai que nos criou 13 - Abençoe esta cidade 14 - Abençoe esta cidade 15 - com todos seus moradores 16 - e na roda de capoeira 17 - abençoe os jogadores, camaradinho 18 - É mandinguêro (P)12 19 - Iê é mandinguêro, camará (C)13 20 - Oi io io é mandingá (P) 21 - Iê é mandingá, camará (C) 22 - Oi io io sabe joga (P) 23 - Iê sabe jogá, camará (C) 24 - Oi io io joga daqui prá lá (P) 25 - Iê jogue prá lá, camará (C) 26 - Oi io io joga aqui prá cá (P) 27 - Iê jogue prá cá, camará (C) 28 - Oi volta que mundo deu (P) 29 - Iê que o mundo deu,camará (C) 30 - Oi io io que o mundo dá (P) 31 - Iê, que o mundo dá, camará (C) (11) “Iê” é cantado tanto para dar início à roda, quanto para dar início ao jogo entre mestres e/ou para reiniciar jogos interrompidos, geralmente, devido a condutas não aprovadas durante o jogo. (12) Puxador (solista) (13) Coro. (14) Para dar suporte à análise, antecedendo cada verso, há um número correspondente a ele. E, a partir da “chula”, há no final de cada verso a letra (P) que significa puxador e a letra (C), que significa coro. (15) Mestre João Pequeno viajou e viaja pelo mundo todo ensinando capoeira angola (16) Ou “Iê dá volta ao mundo”.. 66 A ladainha (versos 1 ao 17)14 é um tipo de cantiga na qual tanto pode se contar uma história, como fazer uma oração, uma louvação, um desabafo, uma provocação, ou dar um aviso etc. Ela é cantada solo, ou seja, puxada pelo mestre. Na ladainha de Mestre João Pequeno são feitas, simultaneamente, uma oração e uma louvação que indicam Deus numa posição superior em relação aos “moradores” (sejam os da cidade onde ele mora ou das diversas cidades pelas quais ele passa)15. Assim, ele louva a Deus primeiro, como uma maneira de pedir proteção dos perigos da vida e, depois, louva os capoeiristas presentes na roda, como uma maneira de agradar o público e, conseqüentemente, criar um ambiente pacífico, controlando, assim, a impetuosidade exarcebada. Nesse momento, os dois jogadores estão agachados ao pé do berimbau, ouvindo atentamente a mensagem (não há jogo). Os instrumentos que acompanham o canto são apenas os três berimbaus e o (s) pandeiro (s). Logo em seguida à ladainha (geralmente após a palavra “camaradinha (o)” como consta no verso 17), vem a chula (versos 18 ao 31). Nela o “cantador” ou “puxador” (geralmente o mestre) canta um verso e os presentes na roda respondem em coro, repetindo o verso puxado (cantado). Os jogadores também respondem ao coro e se apontam, reciprocamente, elevando ambas as mãos, enfatizando com tal gesto a afirmação “é mandingueiro”, “sabe joga” etc. Quando é cantado Oi volta que mundo deu16, os jogadores estão autorizados para começar o jogo. Eles se benzem, fazendo o sinal da cruz e, depois, cumprimentam-se, pegando um na mão do outro. A partir daí, começam a cantar os corridos, nos quais também há resposta de coro, mas, diferentemente da chula, os versos respondidos em forma de coro são constantes e específicos a cada corrido. Nesse momento, geralmente os jogadores realizam, um de frente para o outro, uma queda de rim, ambos na direção dos berimbaus, como uma maneira de cumprimentar os berimbaus, expressando o respeito às normas do jogo que serão ditadas a partir da bateria. Exemplo de corrido: Foto: Rita Barreto sua posição na bateria) e, a partir do 4o. verso, o coro responde alternadamente a cada verso puxado (o qual pode ser repetido inúmeras vezes até o jogo “pedir” outro tipo de canto ou a bateria querer outro tipo de jogo). Outro corrido que pode ser cantado como forma de reforçar o diálogo corporal (apontando os contrários como parte deste) e/ou chamar a atenção para que haja perguntas e respostas no jogo, caso estejam ocorrendo “golpes em vão” é o: Oi sim, sim, sim, oi, não, não, não Oi sim, sim, sim (P) Oi não, não, não (P) Oi sim, sim, sim (C) Oi não, não, não (C) Oi sim, sim, sim, sim (P) Oi não, não, não, não (P) Oi sim, sim, sim (C) Oi não, não, não (C) Oi sim, sim, sim, sim, sim (P) Oi não, não, não, não, não (P) Oi sim, sim, sim (C) Oi não, não, não (C) (domínio público) Tem dendê 1 - Tem dendê, tem dendê (P) 2 - O jogo de angola tem dendê (P) 3 - Tem dendê, tem dendê (C) 4 - Jogo de baixo tem dendê (P) 5 - Tem dendê, tem dendê (C) Levando em conta que o azeite de dendê é um importante tempero da culinária baiana, esse corrido é cantado quando o jogo está “gostoso”, está bonito, bem elaborado, em um momento que os jogadores estão, elegantemente, conversando por meio de seus corpos. Para dar início ao corrido, os dois primeiros versos são puxados pelo mestre (ou outro tocador e/ou cantador que esteja assumindo a Foto: Acervo do MRE 67 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Cada atitude do capoeira, na roda propriamente dita ou na roda da vida, é sempre um ato de desafio e de luta pela justiça social uma vez que, se atentarmos para a sua performance ritual, notaremos que não se privilegia nem a direita nem a esquerda, nem o baixo nem o alto, mas, sim, a relação equilibrada entre os opostos, entre os diversos num constante exercício de humildade e paciência. A performance ritual da roda de capoeira angola CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O JOGO DE CAPOEIRA. Fazem parte da roda, portanto, os mestres, os discípulos e, até mesmo, a platéia, no caso de uma roda aberta. Quem não estiver jogando ou tocando qualquer instrumento presta atenção no jogo e responde ao coro, pois o jogo de capoeira angola é um jogo consciente no qual o (a) capoeirista ataca para se defender, procurando sempre saber o que fazer durante o jogo (o que se estende para o cotidiano da vida pós roda). É necessário observar o outro, analisar seu jeito de agir, para, finalmente, saber com quem se está jogando, ou seja, se relacionando. A atenção deve ser dirigida não só ao jogo, mas também no que está sendo cantado. É por meio do canto que o ensinamento da capoeira é dado, já que ele direciona a comunicação nãoverbal (corporal) dos jogadores. Assim, os movimentos corporais de ataque e de defesa, tais como gingas, negativas, rabos-de-arraia, chapas, rasteiras, quedas e tantos outros que fazem parte do jogo de capoeira angola são realizados de forma que possibilite um diálogo não-verbal entre os dois jogadores. A principal preocupação que se tem não é a de atacar, mas, sim, de saber se defender, portanto o respeito, a paciência, a humildade e a busca pelo equilíbrio e, conseqüentemente, pela justiça, são os principais valores buscados pelo adepto da capoeira angola. O sentido de equilíbrio, por exemplo, é tomado de uma maneira mais ampla, ou seja, extrapola-se a questão do equilíbrio para a vida em si, quando o “angoleiro” (adepto da capoeira angola) procura ser uma pessoa equilibrada, não apenas na execução dos movimentos corporais específicos da capoeira, mas também na relação com o outro no cotidiano. A partir daí, pode-se falar que, num jogo de capoeira angola, é exercitado o controle da violência, pois tudo deve ser feito com educação, diversão (“vadiagem”) e respeito. O “outro”, o adversário, é o camarada (companheiro de jogo) com o qual é possível aprender cada vez mais. Os capoeiras jogam por tempo indeterminado. A duração de cada jogo pode ser de cinco minutos, de dez minutos, meia hora, mas, quando o berimbau “chamar” com um toque específico e/ou com sua inclinação para a frente, é avisado o término do jogo; os jogadores deverão voltar para perto dos berimbaus (e aqui novamente temos uma situação em que o jogador vai para o pé do berimbau), os dois se cumprimentam, como todo bom camaradinha e, aí, entram outros dois capoeiras. Enfim, os movimentos corporais no jogo de capoeira angola são realizados com muita astúcia. Cada atitude do capoeira, na roda propriamente dita ou na roda da vida, é sempre um ato de desafio e de luta pela justiça social uma vez que, se atentarmos para a sua performance ritual, notaremos que não se privilegia nem a direita nem a esquerda, nem o baixo nem o alto, mas, sim, a relação equilibrada entre os opostos, entre os diversos num constante exercício de humildade e paciência. 68 Capoeira A performance ritual da roda de capoeira Angola Referências bibliográficas BOLA SETE, Mestre. A capoeira angola na Bahia. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. CASCUDO, L. C. Folclore do Brasil: pesquisa e notas. Portugal: Fundo de Cultura, 1967. JOÃO PEQUENO, Mestre. Quando eu aqui cheguei. In: Mestre João Pequeno, Mestre João Grande. Programa Nacional de Capoeira (SEED/MEC): Capoeira Arte & Ofício (disco) Salvador. lado B, faixa 1., 1989. LIMA, L. A. N. Capoeira Angola: uma lição de vida na civilização brasileira. São Paulo: PUC. (Dissertação de Mestrado), 1992. PEIRANO, M. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. SIMÕES, Rosa Maria Araújo. Da inversão à re-inversão do olhar: ritual e performance na capoeira angola. 2006. 193p. Tese de doutorado (Doutorado em Ciências Sociais). Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. UFSCar. TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e antiestrutura; tradução de Nancy Campi de Castro. Petrópolis, Vozes, 1974. ______ From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play. New York City: Performing Arts Journal Publications, 1982. Rosa Maria Araújo Simões. Professora das disciplinas Antropologia das Culturas Populares, Artes Corporais e Expressão Musical do curso de Licenciatura em Educação Artística do Departamento de Artes e Representação Gráfica da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (campus de Bauru). Coordenadora do projeto de extensão universitária “A capoeira angola de Mestre João Pequeno” (PROEX/UNESP); Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos com a tese “Da inversão à re-inversão do olhar: ritual e performance na capoeira angola”. 69 A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos Pedro Rodolpho Jungers Abib A CAPO EIRA, U MA DAS RA AFRO MAIS IM -BRASIL PORTAN E IR TES E S A , TANTO C A R ACTERIZ IGNIFICA PODE S A TIVAS M -SE PEL ER ENTE OU BRIN O ANIFEST N S D E ID U A ASPECT CADEIR COMO L AÇÕES O A U DA CUL . HÁ AQ PLURAL TA OU D DERÍAM TUU E A E MULTIFA LES QU NÇA, CO OS, ENT E A CON MO POD CETADO ÃO, DEF SIDERAM E SER C INI-LA ? QUE ONSIDE ARTE E, R ADA JOG OUTRO S, ESPO O RTE. CO MO PO- Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Como dizia o saudoso Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha, que viveu na Bahia e faleceu em 1980), “a capoeira é tudo que a boca come e tudo que o corpo dá!”. Essa frase dita por um dos maiores guardiões dessa manifestação demonstra o caráter múltiplo e dinâmico da capoeira, que se transmuta e se adapta, que se rebela e se acomoda, que cria e reproduz, que já serviu para se defender e até matar, e que hoje serve para educar, mas que sempre foi um grito de liberdade e de reafirmação de uma cultura e de um povo oprimido, reflexo da triste história de quatro séculos de escravidão no Brasil. A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos Foto: Acervo do Mestre Bola Sete Dentre os vários aspectos expressados pela capoeira, o componente mítico-religioso foi sempre um dos que mais suscitou curiosidades, debates, opiniões e muitas histórias contadas e recontadas por meio da tradição oral presente na cultura popular, uma das formas mais importantes de transmissão dos saberes e conhecimentos. Mestre Pastinha Dentre os vários aspectos expressados pela capoeira, o componente mítico-religioso foi sempre um dos que mais suscitou curiosidades, debates, opiniões e muitas histórias contadas e recontadas por meio da tradição oral presente na cultura popular, uma das formas mais importantes de transmissão dos saberes e conhecimentos. No imaginário da capoeiragem e dos capoeiras, não existe figura mais expressiva e representativa do que Besouro Mangangá, Manoel Henrique Pereira por batismo. Ainda hoje muitos duvidam de sua existência. Houve quem afirmasse categoricamente, como o falecido Mestre Cobrinha Verde (Rafael França), ter convivido e aprendido capoeira com Besouro. Apenas recentemente foi encontrada uma prova de sua existência: seu registro de óbito, localizado na Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro da Purificação. Na memória dos mais antigos moradores do Recôncavo Baiano, a figura de Besouro vive e protagoniza inúmeras histórias e “causos” envolvendo suas peripécias e astúcias no enfrentamento com a polícia, sua valentia ao brigar e ao bater em vários oponentes ao mesmo tempo, e, principalmente, sua fama de ter o “corpo fechado” por obra de sua iniciação nas artes da magia africana que o permitia “virar e desvirar coisa, toco ou bicho, e até mesmo de sair voando em caso de precisão”. 72 Capoeira A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos Besouro Mangangá, ou Besouro Preto, ou ainda Besouro Cordão de Ouro, como o chamavam seus companheiros de vadiagem, é o elo com a capoeira do século XIX, afirma o pesquisador Antonio Liberac Pires1, tradição dos escravos e das lutas pela liberdade, tempo de conflito entre maltas, disputas a navalha, capangas eleitorais. Passado lendário de vadiação, de façanhas memoráveis nas brigas com a polícia. Besouro é cantado, ainda hoje, nas rodas de capoeira, em prosa e verso. Sua valentia e perspicácia foram e continuam sendo referência para os capoeiras desde há muito tempo. Pela fama que alcançou, inclusive pelas qualidades adquiridas de ter o “corpo fechado”, Besouro tornou-se uma lenda ainda em vida. poeira é de Deus. Mundo e gentes muitas têm mandinga, corpo tem poesia, pássaro tem bico. Capoeira tem axé. Meu pai e meu mestre me ensinou. E isto não é pouca coisa. Mas mel não conhece flor nem reconhece abelha. O que me ensinou capoeira conhecia. Zum, zum, zum, Besouro Mangangá Batendo nos soldados da polícia militar Zum, zum, zum, Besouro Mangangá Quem num pode com mandinga não carrega patuá......2 O Mestre João Pequeno de Pastinha (João Pereira dos Santos), discípulo mais importante de Mestre Pastinha, ainda em atividade e prestes a completar noventa anos, afirma que Besouro era primo de seu pai, e que, desde menino, ouvia falar de suas proezas e, por isso, queria aprender capoeira para ser valentão como Besouro. Segundo seu pai contava, Besouro se escondia de uma pessoa em qualquer lugar, passava por ela e a pessoa não o via. João assegura que seu pai também era “preparado” de oração e tinha certas qualidades, inclusive, como Besouro, a de desaparecer: “Ele andando assim, num caminho e quando avistava uma pessoa que ele não queria que visse ele, a pessoa não via mesmo não”. Adentrando pelo campo da literatura, o personagem Besouro, que narra suas histórias no belo livro “Feijoada no Paraíso”, de Marco Carvalho3, conta como aprendeu capoeira com Tio Alípio, “...que já era velho quando conheci, mas parecia ter sido assim desde sempre. Andava leve, pisando macio no chão feito bicho gato”. Tio Alípio era um ex-escravo que, quando moço, despertou paixões na sinhá do engenho, causando a ira do patrão, que mandou matá-lo, o que só não ocorreu, “porque o moço era já feito na crença das linhagens de fé do povo iorubá”. Continua o personagem Besouro, revivido por Carvalho: O jogo da capoeira - Acervo do Instituto Jair Moura O aspecto mágico e misterioso, conhecido no universo da capoeiragem como mandinga, é elemento fundamental para compreensão mais aprofundada sobre essa manifestação. O substantivo “mandinga”, segundo o pesquisador Waldeloir Rego4, refere-se possivelmente à região Mandinga, na África ocidental, banhada pelos rios Níger, Senegal e Gâmbia, uma vez que entre os africanos trazidos para o Brasil havia a crença de que nessa região habitavam muitos feiticeiros. Assim, no tocante ao envolvimento do capoeira com a magia, constituíram-se mitos ainda fortes na memória coletiva da capoeira. Tio Alípio me ensinou de tudo um muito. Com a calma do parteiro dos anos que a eternidade é que engendra. Ele era um negro, daqueles uns que olharam bem fundo no olho da maldade e viram a única forma de sair vivo de lá. A capoeira é a arte do dono do corpo e de outros tantos. Pois se não. O que come primeiro, o ardiloso, é o que não é nem nunca foi aquele o pé redondo, o redemunho, o não falado, o tristonho, não. Ca- (1) Bimba, Pastinha e Besouro Mangangá. Antonio Liberac Pires. Tocantins: NEAB, 2002 (2) Cantiga de domínio público (3) Feijoada no paraíso: a saga de Besouro, o capoeira. Marco Carvalho. Rio de Janeiro: Record, 2002. (4) Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfico. Waldeloir Rego. Salvador: Itapuã, 1968 (5) O jogo da capoeira: cultura popular no Brasil. Luiz Renato Vieira. Rio de Janeiro: Sprint, 1998. 73 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil O Mestre Cobrinha Verde era um dos que mais valorizava as “artes da mandinga”, atribuídas aos ensinamentos que recebeu de Besouro e de outros conhecedores desses “ofícios” em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. O grande Mestre Valdemar da Liberdade, outro também que já não está mais por aqui, disse uma vez ao pesquisador Luiz Renato Vieira5 que os mestres de antigamente “... tinham muita mandinga, viravam folha, viravam bicho. Aquilo era próprio para barulho. Besouro era um grande capoeirista, mas tudo debaixo de oração”. Mestre João Pequeno dá uma das versões da morte de Besouro, segundo a qual sua mandinga foi quebrada: A mandinga existe na capoeira, também um patuá que se usava no pescoço. Dentro do patuá, tinha orações, rezas que preparava o corpo, rezas que faca não fura. Mas pessoas de corpo sujo que tem relações sexuais estão despreparados e com o corpo aberto. Foi assim que aproveitaram para matar Besouro. Ele dormiu na casa de uma mulher e no outro dia quando vinha voltando, passou por debaixo de uma cerca de arame, e o arame feriu suas costas, então ele viu que aquele dia ele tava fraco (...) Foi nesse dia que mataram Besouro, com uma faca preparada de tucum, que é uma palmeira que dá no mato. A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos João Pequeno também conta que quem lhe deu o primeiro treino de capoeira foi um negro chamado Juvêncio, que trabalhava de ferreiro, isso quando ainda morava em Mata de São João, interior da Bahia. Segundo ele, Juvêncio era amigo de Besouro, com quem conviveu muito tempo, e, por essa razão, tinha muitas histórias para contar. O Mestre Cobrinha Verde era um dos que mais valorizava as “artes da mandinga”, atribuídas aos ensinamentos que recebeu de Besouro e de outros conhecedores desses “ofícios” em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. Conta ele que esses ensinamentos o ajudaram a se livrar de inúmeras situações de perigo enfrentadas durante suas aventuras pelos vários lugares por onde passou, inclusive referentes à sua participação em bandos armados que percorriam o interior do Nordeste brasileiro: O breve que eu usava tinha oração de Santa Inês, de Santo André, de Sete Capelas, tinha Sete folhas. Depois que eu usava, botava ele em cima da mesa num prato virgem. Ele ficava pulando, porque era vivo. Mas houve algum problema, pois ele fugiu e desapareceu de mim. Foi algum erro que eu cometi e ele foi embora e me deixou. Quando entrei no bando de Horácio de Matos com dezessete anos, eu já tinha esse breve. Foi ele que me livrou de muitas coisas. Quem me deu esse breve foi um africano que até hoje, quando eu falo nele, meus olhos ficam cheios d’água. Ele se chamava tio Pascoal.6 (6) Capoeiras e Mandingas. Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991 74 Capoeira A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos Cobrinha Verde dizia-se católico, mas não deixava de recorrer também às tradições religiosas africanas para o “fechamento de seu corpo” com o intuito de se proteger dos inimigos “desse mundo e do outro”. Uma das orações que usava é aqui descrita: percorrer para desenvolver as “artes da mandinga”, processo quase religioso de iniciação, porém sempre tendo como referência os “antepassados que passaram isso pra gente”, conclui Eletricista. Valei-me meu São Silvestre E os anjos 27 pela sua camisa que veste Assim como abrandaste Os corações dos três leões Em cima do morro cravado de pé e mão Abrandai eles debaixo do meu pé esquecidos Mais mansos do que a cera branca Se olhos tragam, não me enxergarão Se boca tragam, não me falarão Se pagam pra mim, não me alcançarão Se faca tragam pra mim, É de se enrolar como Nossa Senhora enrolou o arco celeste Cacete pra mim é de ser quebrado, Assim como N.Senhora quebrou os gravetos pra ferver o leite Do seu Bendito Filho Arma de fogo para mim apontada, É de correr água pelo cano, sangue pelo gatilho, Assim como N.Senhora Chorou lágrimas pelo seu Bendito Filho. Amém.7 João Pequeno e João Grande prontos para iniciarem um jogo (1968) – Foto: Jair Moura Ao pé do berimbau, os dois capoeiras agacham-se, prontos para iniciar o jogo. Esse é um momento muito especial, pois na roda de capoeira angola, segundo a tradição do Mestre Pastinha, o jogo inicia e termina com os mesmos jogadores. Existe o tempo para que cada jogador estude seu parceiro, procure decifrar o seu jogo, prepare com cuidado o seu “bote”, que é dado no momento certo. Um capoeira considerado mandingueiro é aquele que vai “cevando” o outro, ou seja, vai aguardando, sem pressa, um descuido para, então, aplicar seu golpe certeiro. Por isso, o pé do berimbau, local de entrada e saída do jogo na capoeira angola, é um lugar sagrado onde se juntam o início e o fim, o passado e o presente, o céu e a terra, o bem e o mal, a vida e a morte. A morte é sempre uma possibilidade latente. Todo capoeira sente sua presença ao agachar-se ao pé do berimbau. O coração bate mais forte, a respiração altera-se e os olhos fixam-se nos do seu parceiro de jogo, que pode vir a se tornar seu algoz. Por isso, ao pé do berimbau, alguns capoeiras se benzem. A mandinga aí se expressa: seja pelo sinal da cruz, sejam pelos “traçados” que o capoeira faz com as mãos tocando o chão, hábito que se perde no tempo entre os velhos “angoleiros”. Seja ainda pela proteção que pede aos orixás ou aos santos, por meio de gestos próprios, com as mãos e com o corpo, ou mesmo durante o cantar de uma ladainha. O berimbau ecoa sons ancestrais e pede a proteção aos antepassados. O berimbau era usado na África para Os depoimentos dos capoeiras mais antigos evidenciam a mandinga como componente fundamental da capoeira. No contexto da capoeira, o termo mandinga designa tanto a malícia do capoeirista durante o jogo, fazendo “fintas”, fingindo golpes e iludindo o adversário, quanto uma certa dimensão sagrada, um vínculo do jogador da capoeira com o mistério das religiões afro-brasileiras. A mandinga é um dos elementos que diferenciam as características da capoeira angola e da regional, segundo a visão de alguns mestres. A capoeira regional, segundo eles, tem se distanciado cada vez mais dos elementos míticoreligiosos presentes na tradição africana, salvo algumas exceções. Isso acaba determinando uma estética de jogo e um sistema simbólico próprios, os quais privilegiam muito mais a objetividade do que a subjetividade, a técnica do que a malícia, o confronto direto do que a dissimulação, características estas que, diferentemente das primeiras, se aproximam mais da mandinga da capoeira angola. Isso não quer dizer que não existam alguns desses elementos entre os praticantes da capoeira regional, porém apresentam-se em menor escala. Mestre Eletricista (Edílson Manoel de Jesus) diz que “a mandinga não se ensina...mandinga você aprende”, referindo-se ao percurso individual que cada capoeira tem que (7) Capoeiras e Mandingas. Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991 75 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil O berimbau ecoa sons ancestrais e pede a proteção aos antepassados. O berimbau era usado na África para conversar com os mortos. Só então os dois apertam-se as mãos, e o jogo pode iniciar-se. A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos A “chamada de angola” sendo executada Foto: Acervo do Instituto Jair Moura 76 conversar com os mortos. Só então os dois apertam-se as mãos, e o jogo pode iniciar-se. Outra situação muito característica da capoeira angola que traz elementos da mandinga é a “chamada de angola”. A chamada é um momento de quebra e interrupção no andamento do jogo. É um parêntesis na sucessão de movimentos de ataque e de defesa, incluindo também a ginga, quando um jogador promove a ruptura dessa dinâmica, “chamando” o outro e assumindo uma posição estática e de observação. O parceiro, então, aproxima-se lenta e cuidadosamente, pois pode ser surpreendido com um ataque inesperado, até conseguir um contato corporal com o jogador que o “chamou”. Inicia-se, então, um “bailado” entre os dois, que se deslocam alguns passos para frente e para trás, sem que seus corpos se “descolem” um do outro. A tensão entre ambos é visível, pois, a qualquer instante, um deles pode tentar alguma “mardade” contra o outro. A chamada é interrompida no momento em que aquele que “chamou” toma a iniciativa de recomeçar o jogo, convidando seu parceiro por meio de gestos característicos. E o jogo se reinicia. Nessa simulação, representada pela chamada de angola, a mandinga mostra-se na forma como cada jogador lida com essa situação, demonstrando sua malícia, sua sagacidade e sua habilidade de expressar-se dissimuladamente, dificultando para o parceiro a interpretação de suas verdadeiras intenções, quando um certo clima de apreensão paira sobre os dois capoeiras. A chamada é um momento que sempre guarda um certo mistério durante uma roda de capoeira angola. Numa chamada tudo pode acontecer. Os dois ca- Capoeira A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos poeiras têm que estar atentos e preparados para possíveis surpresas, que não raro acontecem nessas situações. grande valor que é suas mandinga tracueira para vencer todas parada que apareiza sendo a hora suficiente si causo não for dezista para outra ocazião porque eziste outro encontro porque quem apanha nunca cisquece e quem dá não se lembra esta é a malícia do capoeirista (p.18).9 Urgente urgentíssimo ficar prevenido, estar de alerta em qualquer ocasião, na tocaia das vastas atalaias, já que toda atenção é pouca. Assim rezam os preceitos da mandinga, uma vez que macaco velho jamais mete a mão em cumbuca. (...) O segredo da artimanha está dentro de si mesmo, no íntimo do seu mistério, verdadeiro e único. Já que o martírio existe dentro das sete chagas de Cristo, então camaradinho conserve a fé no que você possui e desconfie até da sombra...com simpatia, disciplina e iluminação na alma.8 A mandinga de Besouro Mangangá - que segundo Mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado), criador da capoeira regional, “era capaiz di sartá di costa i caí de vórta dentru dus chinélu”10 -, e também de Mestre Noronha, Pastinha, Cobrinha Verde e de tantos outros capoeiras antigos, considerados “mandingueiros”, que povoam o imaginário popular de Salvador e do Recôncavo, parece exercer sobre o capoeira de hoje em dia uma influência que vai além daquela referente às “qualidades” de desordeiros e valentões. Esse componente de magia que reveste o universo da capoeira, embora proveniente desse imaginário popular, expressa o vasto campo de significados dessa manifestação afro-brasileira e de suas ligações com o “sagrado”, assim como muitas das manifestações e tradições presentes no universo da cultura popular no Brasil. A dimensão do sagrado tem para o povo simples de nosso país um sentido muito especial e profundo, que determina suas crenças, seus modos de vida, seus sonhos, suas lutas, suas vitórias e suas derrotas. Analisar a mandinga na capoeira significa mais do que identificar alguns aspectos do ritual presentes na roda, da malícia, do gestual ou do discurso dos capoeiras. Significa buscar um entendimento mais aprofundado sobre determinados comportamentos que certos “angoleiros” apresentam, os quais podem ser considerados como aprendizados que se iniciam na roda de capoeira, e, como diz o Mestre Moraes (Pedro Moraes), expandem-se, posteriormente, para o cotidiano desses sujeitos, expressando-se nas suas formas de se relacionarem com o mundo. Certos procedimentos, crenças, superstições e hábitos observados, principalmente entre os praticantes da capoeira angola, moradores de Salvador e arredores, que se estendem até o Recôncavo Baiano, são características muito peculiares de um certo tipo de sujeito social que se difere justamente por ter adquirido, a partir da vivência na capoeira angola, um comportamento baseado em outra lógica, que escapa de uma racionalidade predominante nas sociedades modernas e que se expressa pela forma como se relaciona com a realidade em que vive. Normalmente são pessoas que desenvolvem uma atenção, uma sagacidade, uma presença de espírito, um sexto sentido mesmo, características estas um tanto diferenciadas de um comportamento considerado padrão nas sociedades urbanas contemporâneas. Essa “outra lógica” relaciona-se com características mítico-religiosas oriundas da cultura afro-brasileira, que, por meio da capoeira, se expressa de várias formas, desde tempos imemoriais. O famoso Mestre Noronha (Daniel Coutinho), que viveu as primeiras décadas do século XX em meio à malandragem da capoeira baiana, deixou um legado valioso: seus manuscritos, os quais retratam muitos aspectos da capoeiragem daquela época, referência importantíssima para historiadores que buscam reconstruir esse período de valentia e desordens. Em um dos trechos, transcrito fielmente dos originais, ele diz: (8) Maior é a capoeira, pequeno sou eu. José Umberto. Revista da Bahia, nº 33 – Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1999 (9) O ABC da capoeira angola: manuscritos do mestre Noronha. Frederico Abreu. Brasília. DEFER, 1993 (foi mantida a grafia utilizada no manuscrito). (10) Mestre Bimba: corpo de mandinga. Muniz Sodré Rio de Janeiro: Manati, 2002 (p.36) Eu e meus colega da mesma arte, de capoeira, porque hoje em dia está nos meios social e no mundo enteiro porque é uma defeiza pessoal de 77 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil A dimensão do sagrado tem para o povo simples de nosso País um sentido muito especial e profundo, que determina suas crenças, seus modos de vida, seus sonhos, suas lutas, suas vitórias e suas derrotas. O capoeirista da atualidade, consciente ou inconscientemente, é herdeiro dessa carga ancestral que a capoeira traz consigo e não pode ficar imune aos sentidos e significados implicados no processo de identificação cultural pelo qual passa um iniciado da capoeira, que acaba adquirindo outras atitudes, acaba desenvolvendo outras formas de se relacionar com o mundo, com o perigo, com a adversidade, com o desconhecido, com o inesperado. A prática da capoeira, nos últimos anos, tem se transformado em mera mercadoria de consumo, servindo para atrair e deslumbrar turistas por meio de saltos mortais e de um jogo cada vez mais “espetacularizado”, afastando-se de suas características mais tradicionais, da ritualidade, da ancestralidade, da mandinga. Porém, esse processo não se dá sem resistências e oposições. Ao mesmo tempo, vão sucedendo-se importantes experiências no mundo todo que se caracterizam pela afirmação do legado histórico da capoeira, a reverência aos seus antepassados e às formas tradicionais de sua prática, valorizando e dando dignidade à essa manifestação surgida da criatividade, da crença, da alegria e do sofrimento de um povo. Pedro Rodolpho Jungers Abib. Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia Autor do livro: “Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda” (Edufba/CMU-Unicamp,2005). Capoeirista formado pelo Mestre João Pequeno de Pastinha A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos 78 79 Capoeira: metáforas em movimento Eliane Dantas dos Anjos GA MANDIN IZ F R O A U AM APOEIR HAR SE C N A M G O B A M ...PR ÃO GA DE U A EMOÇ U S FUI A GIN A N ... TEIRA ZUEIRA DEI RAS IZ F O Ã RAÇ NA) SEU CO S SANTA COM O O H IN L E CAR RUFINO N O S L E: NE NTO E O E IM V O OM D ES ES SÃO L E (VERDA CANÇÕ . A M IR E E O E P IV A CLUS DE C OVIMEN NDO IN NIMOS M E Ô C A IN E É S R A A E , AP ENT GING OSE JOGO DINHO. RATICAM S O P E G AM OS M D O A Ã P IN S S A O IG A C R ID E O IR D Z E O TOR AL SE RAST DIFUN APLICAD DO CAN , DA QU , IDOS E O Z GINGA E E C G T O E V N JO H A A N O ON ILIBR NTE O MAIS C SUCESS DESEQU A DURA Z E IZ O F L T GOLPE A E N E E U R ,Q OVIM ISTA ERDADE É UM M APOEIR C A O IR E E RE. T COMO V U S M A SOF ORAL Q JÁ A RA E P . U R A Q S O E E C F D NA E DE TAÇÃO R A PER TAQUE A A T E S D A R S R O VISA A VIMENT O, QUE N A L P O NO BAIX Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Para compreender o sistema denominativo, ou seja, a terminologia da capoeira, é importante conhecer suas origens e trajetória. Até o início do século XIX, não havia registros escritos ou iconográficos da capoeira, um jogo que teria se desenvolvido entre os negros escravos que a utilizariam para se defender e lutar pela liberdade. Capoeira: metáforas em movimento No entanto, a capoeira reserva um repertório muito mais extenso, variado e criativo. Aú, bênção, rabo-de-arraia, meia-lua, sapinho, vôo do morcego, resistência, negaça são alguns exemplos de movimentos e golpes. A quantidade de nomes é inumerável, já que cresce de acordo com as habilidades e a criatividade dos capoeiristas. Estes, ao desenvolverem novos movimentos ou variações, criam também novas denominações. É justamente nesse processo que a metáfora tem lugar de destaque. Para compreender o sistema denominativo, ou seja, a terminologia da capoeira, é importante conhecer suas origens e trajetória. Até o início do século XIX, não havia registros escritos ou iconográficos da capoeira, um jogo que teria se desenvolvido entre os negros escravos que a utilizariam para se defender e lutar pela liberdade. O desenhista francês Jean-Baptiste Debret, que veio em missão ao Brasil a pedido de D. João VI, em 1816, faz referência aos “negros volteadores dando saltos mortais ou fazendo mil outras cabriolas para animar a cena”. O pintor e desenhista alemão Johann Rugendas, que esteve no Brasil em 1821, escreveu uma das primeiras definições de capoeira, descrevendo-a como um “folguedo guerreiro” dos negros, no qual se procurava atingir o peito do adversário com a cabeça e se defender com saltos de lado e paradas. O desenhista compara os competidores a bodes, devido aos choques de cabeça que aconteciam durante o jogo. Plácido de Abreu, no livro Os Capoeiras, apresenta termos como topete a cheirar e chifrada, ambas variações de cabeçadas. Essas palavras integravam o vocabulário dos capoeiras, que eram perseguidos principalmente no final do século XIX. Após a prática ter sido considerada crime (1890), subsistiu nos quartéis, onde foram escritos os primeiros manuais de capoeira, considerada um “sport” nacional. Em 1907, foi publicado o Guia do Capoeira ou Gymnastica Brasileira, cujo autor é um militar não-identificado, e em 1928, Gymnastica Nacional (Capoeiragem) Methodizada e Regrada, de Annibal Burlamaqui, que definiu os movimentos e as regras do jogo da capoeira. A Bahia foi, no século XX, um verdadeiro celeiro de praticantes desse jogo, que se tornou conhecido no Brasil e no mundo pela determinação e espírito de liderança de dois homens: Manuel dos Reis Machado, Mestre Bimba, e Vicente Ferreira Pastinha, Mestre Pastinha. Aos 18 anos, Bimba começou a ensinar a arte da capoeiragem e formou o Clube União em Apuros, situado no Engenho Velho de Brotas, um bairro de Salvador. Nessa época, a capoeira era uma só, não havendo distinção entre regional e angola, mesmo porque Bimba foi o responsável pelo desenvolvimento da modalidade de capoeira denominada regional. Segundo depoimentos de Mestre Bimba, a regional teria sido criada em 1928, resultado da inclusão de golpes do batuque (dança masculina de origem africana), do desenvolvimento de novos golpes e do aperfeiçoamento daqueles já existentes. A influência da luta livre, por exemplo, aparece em 82 Aú golpes como a gravata e na seqüência da cintura desprezada, uma série de movimentos de projeção. Os contatos dos alunos de Mestre Bimba com autoridades baianas contribuíram para que a capoeira fosse legitimada e excluída do Código Penal, na década de 1940. Com o reconhecimento da luta regional baiana de Bimba, a capoeira tradicional, que passou a ser referida como capoeira angola, também se fortaleceu, tendo como expoente Mestre Pastinha. O sistema denominativo de golpes da capoeira foi criado, então, a partir do desenvolvimento da capoeira regional e angola, bem como dos focos de resistência da capoeira carioca. Atualmente, com a expansão da capoeira no Brasil e no exterior, foram criadas variações dos movimentos básicos e incluídos novos movimentos, o que se reflete no conjunto de termos. Essa divisão da capoeira também se repercute nos movimentos, que podem ter execuções bastante variáveis. O rabo-de-arraia da angola, por exemplo, corresponde à meia-lua de compasso da regional, um golpe giratório, com apoio das mãos no chão, em que uma das pernas visa acertar o oponente no plano horizontal; já na regional é a meia-lua de compasso executada sem o apoio das mãos no chão; na capoeira carioca é um movimento semelhante, mas executado no plano vertical. Com base em materiais escritos sobre capoeira publicados a partir de 1960, pelos mestres Bimba e Pastinha, por seus discípulos e com apoio também de livros sobre capoeira de circulação nacional ou com grande divulgação, foi organizado por Eliane Anjos, em 2003, um repertório de termos que constituiu o Glossário Terminológico Ilustrado de Movimentos e Golpes da Capoeira. Esse estudo mostrou a predominância da metáfora (transferência de nome por semelhança de sentido) e da metonímia (transferência de nome por contigüidade de sentido) entre os recursos de formação de termos desse jogo. Entre as metáforas dos termos da capoeira, destacamse algumas regularidades associativas com animais, armas (instrumentos perfuro-cortantes ou traumatizantes), formas circulares, representações gráficas e objetos do dia-a-dia. 83 As associações com animais são especialmente recorrentes, entre as quais: coice, rabo-de-arraia, sapinho, pulo do macaco e vôo-do-morcego. O termo galopante, que se refere a um soco dado com os dedos unidos na região dos ouvidos do oponente, também está relacionado a uma característica de movimento de animal, os passos do cavalo, o seu galope. A capoeira, cuja etimologia indígena remete à mata, ka’a puera, mata extinta, tem em sua origem entre os negros escravos uma relação forte com a natureza, por isso utiliza tanto a denominação de animais para nomear novos conceitos. O movimento é a essência da capoeira, como de qualquer luta ou expressão corporal, e a observação de animais é uma fonte de criação tanto de movimentos como de denominações. A relação movimento-animal torna o sistema denominativo mais vivaz e concreto, facilitando a memorização, pois ao associar-se a denominação ao conceito no mundo visível, ao ouvirmos o nome do animal ou de um movimento que a ele se relaciona, visualizamos as características que tornam o golpe ou o movimento semelhantes a ele. Em sua descrição da capoeira, Rugendas compara os capoeiristas a bodes, em virtude da grande quantidade de cabeçadas. Tanto é assim, que o termo marrada, cabeçada de bodes e carneiros, foi utilizado por Mestre Bimba em um depoimento gravado no CD Curso de Capoeira Regional. No entanto, o termo acabou sendo substituído por cabeçada. Instrumentos que podem ser utilizados como arma também são denominações muito freqüentes na capoeira. O açoite, o arpão, a chibata, a cutilada, a forquilha, o martelo e a tesoura demonstram que a capoeira pode ser entendida como uma arma corporal e que seus movimentos, à semelhança desses citados anteriormente, podem causar lesão. Movimentos como açoite e chibata remetem-nos aos instrumentos de punição e tortura, práticas aplicadas aos negros escravos. A relação movimento/arma representa, então, um campo associativo, uma grande metáfora, mostrando a capoeira como a própria arma, que um dia foi luta e que atualmente é considerada um jogo, um esporte. Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Entre as metáforas dos termos da capoeira, destacam-se algumas regularidades associativas com animais, armas (instrumentos perfuro-cortantes ou traumatizantes), formas circulares, representações gráficas e objetos do dia-a-dia. Tesoura de frente Capoeira: metáforas em movimento Outro tipo de associação é a de movimentos com letras do alfabeto como aú, cuja etimologia – mesmo controversa, já que no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1999) a expressão é considerada um africanismo – remete-nos à comparação entre traçado das letras do alfabeto e a posição corporal, com pernas voltadas para baixo, representando A, e voltadas para cima, o U. O s dobrado também é um referente que exprime, iconograficamente, o “desenho” do movimento. As curvas nele contidas, assim como na meia-lua de frente, na meia-lua de compasso, no compasso e no rolê refletem a circularidade dos movimentos que representam. S dobrado Os termos chapéu-de-couro, gravata e leque, acessórios de vestimenta, são oriundos de associações comuns do dia-a-dia, assim como balão, chapa, cruz, telefone, pois o homem tende a relacionar aquilo que cria com algo que conhece, tomando alguma característica comum, no caso a forma ou a função. 84 Capoeira Capoeira: metáforas em movimento A bênção é um termo irônico que subverte o significado de proteção religiosa e a ironiza, pois, na verdade, diferentemente do movimento realizado pelo padre ao levar as mãos ao fiel, a bênção da capoeira é um empurrão com o pé, um movimento ofensivo. Esse caráter irônico e debochado também aparece nos termos bochecho e suicídio, relacionando-se o ato de bochechar ao efeito do golpe e o ato de suicidar-se ao risco assumido pelo capoeirista quando executa o movimento. A maioria das metáforas ocorre pela semelhança de forma entre o movimento e o objeto, o animal ou a letra a ele associada. Há, ainda, semelhança por função em termos como açoite, balão, bênção, bochecho, chibatada e martelo, relacionados à ação do movimento e não a uma semelhança física. As metonímias referem-se aos efeitos dos movimentos que lhes servem de denominação como asfixiante, quebra-mão e quebra-pescoço. Nesse tipo de metonímia, a associação com o movimento é mais clara, pois se relaciona o efeito que provoca com o nome do movimento. Outro tipo de associação metonímica recorrente é a parte pelo todo. Apresenta termos como banda, que relaciona o nome ao tipo de entrada realizada no movimento (entrada lateral), cintura desprezada, para referir-se a um movimento cuja cintura é uma das partes do corpo envolvidas, boca-decalça, região onde se aplica o golpe. Os termos palma e ponteira demonstram as partes do corpo que têm participação principal no movimento e, muitas vezes, o ponto em que atinge o adversário. Termos como negativa, vingativa e resistência, que denominam o golpe por meio de uma referência abstrata, subjetiva, mostram a intenção do capoeirista, o caráter combativo do jogo, a negação, ou seja, a resistência à escravidão e a vingança da opressão que subjazem aos nomes dos movimentos. O caráter irônico, humorístico e de resistência são características do próprio estilo de vida do praticante da capoeira, notadamente, quando esse jogo era ainda uma manifestação perseguida. Outro exemplo de ironia é o termo godeme, que se tornou sinônimo de soco desferido pelos ingleses, que por repetirem com freqüência a expressão “God damn it!” (Deus amaldiçoe!), eram assim identificados pelos trabalhadores nordestinos de construção. Segundo a antropóloga Letícia Reis (1993), em sua pesquisa Negros e brancos no jogo da capoeira: reinvenção da tradição, a capoeira constrói o mundo invertido tanto com seus movimentos de baixo para cima, realizados no baixo plano, quase no chão, como pela subversão, pelo riso, pela inversão de significado da bênção, pelo caráter de resistência dessa cultura. A autora destaca que a capoeira resiste e passa uma mensagem pela gramática corporal, pelos movimentos inversos, manhosos e também por suas denominações. Quanto à possibilidade de influência de línguas africanas na terminologia da capoeira, com exceção das etimologias controversas dos termos aú e gingar, termo ao qual Nei Lo- pes atribui ao quimbundo jangala, bambolear, no Dicionário Banto do Brasil (1995), não há qualquer evidência de que as raízes africanas desse jogo possam ter deixado heranças lingüísticas. Essa tendência reforça a idéia de que a capoeira tenha se desenvolvido no Brasil e não supõe a importação de uma luta preexistente na África. Assim, o sistema denominativo da capoeira reflete suas características de luta, de resistência à opressão da escravidão e do preconceito, da circularidade do jogo, da comunhão do homem com a natureza e, acima de tudo, de uma manifestação cultural brasileira. Referências Bibliográficas ABREU, Plácido. Os capoeiras. Rio de Janeiro: J. Alves, [1886?] BURLAMAQUI, Annibal (Zuma). Gymnastica nacional (capoeiragem) methodizada e regrada. Rio de Janeiro, 1928. FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. totalmente revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. GUIA DO CAPOEIRA OU GYMNASTICA BRAZILEIRA. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Nacional, 1907. LOPES, Nei. Dicionário banto do Brasil. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura, Prefeitura do Rio de Janeiro, 1995. REIS, Letícia V. de S. Negros e brancos no jogo da capoeira: reinvenção da tradição. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993. ANJOS, Eliane D. Glossário Terminológico Ilustrado de Movimentos e Golpes da Capoeira: um estudo término-lingüístico. Dissertação (Mestrado em Letras - Filologia e Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. RUGENDAS, Johann M. (1802-1858). Viagem pitoresca através do Brasil. Tradução de. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins Editora & Editora da Universidade de São Paulo, 1972. Ilustrações: Reinaldo Uezima. Eliane Dantas dos Anjos. Mestre em Letras (Filologia e Língua Portuguesa) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 85 A música na capoeira angola da Bahia Ricardo Pamfilio de Sousa A CAPO EIRA É N ÃO APE FILOSOF NAS UM IA DE VID ESPORT A E NO QU , CUJOS F MENTO AL A MÚ UNDAM . NA CAP SICA É IN ENTOS OEIRA, O V DEIRO, DISPEN ERSAM JOGADO AGOGÔ SÁVEL, M S O B R R T E A , LUTA PO MBÉM É ATABAQ AS TAM NÃO, SA M U BÉM UM R E, RECO ÚSICO, P LIBERDA MBA-DE A O R D E IS E C E C O R AUTOCO ANTA E ODA, CO . MELOD DESIGN T N O IA R HECIRIDO, L CA BERIM AÇÕES S VERSA ADAINH PARA A DAS EM BAU, CA CORO, C A S , M X P C IXI, PAN ROSA, C ÚSICAS HULA, O ONJUNT QUE AC ANTOS RAÇÕES O DOS P C O , ÍC M B LICOS O ENDIÇÕ PANHAM ARTICIP ES SÃO ANTES N U O NEGA ALGUM AS ROD C 1 E A R AS DAS AS DE C DE COR APOEIR POS TA A. MBÉM P ELO (1) Negacear é o resultado do diálogo de corpos no jogo da capoeira, quando um entra, o outro sai, um ataca e o outro defende contra-atacando. “Capoeira é defesa, ataque, é ginga no corpo, é malandragem” . Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil A música é executada especificamente para a realização da roda de capoeira. Com a função de ensinar e conduzir os jogadores, obedece a uma ordem criada entre os capoeiristas. Além das variações rítmicas e melódicas, temos, ainda, os textos das canções. A música na capoeira angola da Bahia Os diversos timbres da bateria (é assim chamado o grupo instrumental) apresentam-se em colorido diversificado, juntando instrumentos com variadas características: cordofônico –berimbau; membranofônicos – pandeiro e atabaque; idiofônicos – agogô, reco-reco e caxixi. Em algumas academias ou associações, é utilizado o apito, que é um aerofônico. A música é executada especificamente para a realização da roda de capoeira. Com a função de ensinar e conduzir os jogadores, obedece a uma ordem criada entre os capoeiristas. Além das variações rítmicas e melódicas, temos, ainda, os textos das canções. A ladainha, que é o canto inicial, pode ser épico ou não. Nunca se joga durante a ladainha. Os angoleiros, acocorados ao pé do berimbau, aguardam a chula, ou canto de entrada, quando o coro entra em diálogo com o solista, com perguntas e respostas. Os jogadores se cumprimentam quando se inicia um corrido ou uma quadra. Toca-se uma música que alterna parte A e parte B, coro e solista. Durante as cantigas de capoeira, os angoleiros dançam, dialogam, geralmente em duplas. Existe uma prática pré-estabelecida, um treinamento, mas sempre há lugar para improvisação nos movimentos. A música também deixa lugar para criações inspiradas no jogo. Na letra das músicas, muitas vezes expressam-se os fundamentos da arte da capoeira. O berimbau geralmente assume a posição de “mestre”. O tocador chama o jogador para o pé do berimbau, onde são passadas instruções, fundamentos dessa arte. Existem muitas músicas criadas ou recriadas recentemente, mas sempre se cantam as tradicionais também, apresentadas por mestres como Pastinha, Noronha, Bimba. É o berimbau o instrumento que mais se destaca na bateria da capoeira. Geralmente são três: gunga, médio e viola, também conhecidos como berra boi, contra-gunga e viola, entre outras denominações. O fascinante é como esses instrumentos se harmonizam rítmica e melodicamente, alternando e diversificando os sons, assim como os golpes no jogo. Durante o jogo, podem ser cantados vários corridos, de acordo com a habilidade do puxador ou cantador. Diversos corridos têm um significado específico para a realização do jogo. Por exemplo, alguns têm a finalidade de intensificar o andamento do jogo, como Ai ai ai ai, São Bento me chama.2 Outros são usados para aumentar o números de golpes como: Oi ’tá cum medo Toma coragê, ou O a o aí eu vô batê quero vê caí. As músicas podem provocar a diminuição do andamento do movimento dos jogadores, como: Devagâ, devagâ, devagâ devagarinho, ou pedir para jogar em baixo, O Bujão, o Bujão, o Bujão Capoeira de Angola é rolada no chão o Bujão, para jogar bonito, Ai ai aidê, joga bonito que eu quero vê, entre outros usos. Lembramos que os corridos são as únicas cantigas (2) As partes sublinhadas nas letras das cantigas referem-se à parte do coro que responde ao solista. 88 Foto: Acervo Luiz Renato usadas durante os movimentos dos jogadores de capoeira angola, pois não se joga durante uma ladainha, muito menos na parte da chula. A dança/luta desenrola-se entre ataques e contra-ataques: o jogador esquiva-se de um golpe, lançando outro. Existe também a chamada de um jogador para outro, que demonstra conhecimento, fundamento, ou para se livrar de uma jogada com resolução muito difícil, ou, ainda, para um instante de descanso. O angoleiro que foi chamado deve ir ao local onde se inicia o jogo (pé do berimbau) e, então, realizar movimentos em direção a quem o chamou. Nessa chamada, os angoleiros “dançam” à maneira de uma caminhada, quase um movimento de tango, às vezes meio saltitado, meio encostado. Quem chamou finaliza a chamada com algum gesto que convide o companheiro a voltar ao combate. Cada um tem sua performance individual e os limites são estabelecidos durante o jogo. Há também a “volta ao mundo”3 para demonstrar malícia, conhecimento, algum fundamento ou também para um pequeno relaxamento, descanso. O angoleiro usa malícia, sagacidade e traição para golpear o camarada distraído. Durante uma roda, a música tocada pelos berimbaus chega quase ao máximo de andamento acelerado, é a parte mais rápida; reduz um pouco e torna a aumentar ainda mais para acabar. No final do jogo, o conteúdo das letras nas cantigas prepara o fim da roda ou indicam que alguém vai sair. O próprio tocador de berimbau, por exemplo, pode assim comunicar sua retirada. Ouve-se também, do mestre ou de um aluno avançado, o grito Iêh, no início de uma ladainha e várias vezes durante a chula, algumas vezes nos corridos e também para interromper ou finalizar o jogo. Adeus Corina dam dam Dam daram daram Dam dam Vou-me embora vou-me embora vou-me embora para Angola É meia hora só É meia hora Eu já vou beleza Eu já vou embora Eu já vou beleza Que chegou a hora Iaiá vamo dá Uma volta só Adeus adeus Boa viagem (3) Na capoeira angola, dar volta ao mundo é quando o jogador caminha em círculo dentro da roda, aparentemente estão dando um simples passeio pela roda, os jogadores podem se dar as mãos, o que pode ser arriscado, pois, com a proximidade dos corpos fica mais fácil de se acertar qualquer golpe, além do risco de um puxão pela mão. 89 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Os praticantes de capoeira, até hoje, são, em sua maioria, meninos e homens, embora não haja restrições, por parte dos angoleiros, às mulheres que, ao contrário, são até muito citadas nos texto das cantigas: Capoeira é pra homem menino e mulher Eh ê ê Salomé Olha homem também apanha de mulé É, é, é pra homem e mulher Adão, Adão, Cadê Salomé Adão Cadê Salomé Adão Foi pra ilha passear Nhêco, nhêco Salomé Todo mundo te acompanha que seu nome é Salomé Salomé, Salomé Dona Maria do Cambuotá Chega na venda ela manda botá Dona Maria do Cambuotá Entra na roda e começa a joga A música na capoeira angola da Bahia Vai você vai você Dona Maria como vai você Como é que passou como vai vosmecê A duração de uma roda de capoeira geralmente varia entre uma a duas horas. Na maioria das vezes, existe uma seqüência de acontecimentos nas realizações da roda que pode ser resumida da seguinte forma: 1º - Os berimbaus são armados e afinados, todos os instrumentos musicais são colocados no local onde ficarão os músicos e a bateria. 2º - A roda começa a ser formada, os que vão jogar primeiro ficam nas extremidades da bateria, os últimos ficam do lado oposto da bateria, frente a frente. 3º - Neste momento (geralmente quando não se trata de uma apresentação pública), dá-se a transmissão de alguns dos fundamentos da capoeira. 4º - Teste para conferir afinação e harmonia entre os músicos.4 5º - Início da música. Geralmente, o gunga começa tocando Angola, seguido pelo médio com São Bento Grande e o viola com Angola ou São Bento Grande (esses são alguns nomes dos toques tradicionais no jogo de capoeira angola). 6º - Entram os pandeiros. 7º - Dois angoleiros, com mandinga, caminham para o pé do berimbau.5 8º - Inicia-se o canto da ladainha. 9º - Passa-se para a chula, com resposta do coro, entram o atabaque, o agogô e o reco-reco. (4) O 4º às vezes pode vir em 3º, ou mesmo nem existir. (5) A mandinga nesse caso é expressa pelos gestos do angoleiro, como tocar no berimbau, fazer o sinal da cruz, a estrela de Salomão, entre outros. 90 Foto: Antonio Carlos Canhada 10º - Inicia-se o canto de entrada e, depois, o primeiro corrido. É o sinal para o início do jogo propriamente dito. O viola passa a dobrar (fazer variações), repicando mais do que mantendo o toque. Quem mantém o toque é geralmente o gunga; o médio normalmente inverte uma parte do toque do gunga ou reproduz o mesmo toque. Ambos podem dobrar os toques durante o jogo. 11º - Os dois jogadores, ao pé do berimbau, dão-se as mãos, cada qual no seu canto, e fazem o primeiro movimento do jogo, “queda de rim”. Partem, então, para o combate corpo-a-corpo, sem se tocarem, usando geralmente “negativas” e “rabode-arraia,” ou outros movimentos. 12º - Desde o início da roda, os alunos estarão sob os olhos do mestre. A correção de qualquer problema de conduta é feita por meio do conteúdo da letra de uma música ou pela chamada do berimbau, destinada a aproximar o jogador para ser orientado pelo tocador de berimbau. 13º - Os jogadores alternam-se quando o mestre usa a chamada ou quando um deles resolva parar o jogo. Dão-se as mãos ao pé do berimbau e retornam para a roda, voltando a fazer parte do coro de vozes ou participando da bateria. 14º - Durante a roda, há sempre outras ladainhas, geralmente duas, no mínimo, e seis, no máximo. 15º - Para terminar cantam: Adeus, adeus, boa viagem. Os músicos levantam-se, continuam a cantar, viram-se para a direita e caminham dando uma volta até o lugar onde estavam (a volta ao mundo), em sentido anti-horário. 16º - Depois de, no mínimo, dois minutos cantando a cantiga Adeus, adeus, boa viagem, a qualquer momento pode-se ouvir o grito Iêh da boca do mestre ou de um dos tocadores de berimbau, encerrando a roda da capoeira angola. Geralmente, o jogo é “comprado”, ou seja, quando algum capoeirista da roda entra entre os dois jogadores e inicia um novo jogo com um deles. 91 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil No final do jogo, o conteúdo das letras nas cantigas prepara o fim da roda ou indicam que alguém vai sair. O próprio tocador de berimbau, por exemplo, pode assim comunicar sua retirada. A música na capoeira angola da Bahia 92 O artista plástico Carybé, também capoeirista ativo, descreve a música da capoeira da Bahia, em 1951, da seguinte forma: A Bahia muito contribuiu, na parte musical, introduzindo o pandeiro, o caxixi e o reco-reco, em substituição das palmas; e o berimbau de barriga com corda de aço, com voz mais sonora e muito mais recursos que o de bôca. Inventou cantigas e deu regras ao jogo que começa com as chulas de fundamento tiradas pelo mestre: Sinhazinha que vende aí?/ Vendo arroz do Maranhão./ Meu Sinhô mandô vendê./ Na terra de Salomão./ O coro responde: ê, ê Aruandê Camarado/ Galo cantô/ ê, ê galo cantô Camarado/ Cocôrocô/ ê, ê cocôrocô Camarado/ Goma de engomá/ ê, ê goma de engomá Camarado/ Ferro de matá/ ê, ê ferro de matá Camarado/ É faca de ponta/ ê, ê faca de ponta Camarado/ Vamos embora/ ê, ê vamos embora Camarado/ Pro mundo afóra/ ê, ê pro mundo afora Camarado/ Dá volta ao mundo/ ê, ê dá volta ao mundo Camarado. Os que vão lutar, escutam as cantigas de cócoras, defronte dos berimbaus, talvez rezando suas “rezas fortes” para livrar de bala, de emboscada ou faca; chegam ao centro da roda virando o corpo sobre as mãos e começam o gingado que é ao mesmo tempo uma guarda e um passo da dança. Capoeira A música na capoeira Angola da Bahia O que Carybé designa no texto como “chula de fundamento”, na capoeira angola denomina-se, predominantemente, “ladainha”. Na capoeira regional, assim como para alguns angoleiros, o mesmo texto é considerado “quadra”. O trecho que segue uma chula propriamente dita é caracterizado pela resposta do coro, ou seja, o canto de entrada. No texto de Carybé, não é apresentada a pergunta do solista, o coro entra direto com a resposta. A palavra “camarado”, grafada na citação, refere-se, provavelmente, mais ao sentido do que à maneira como se falava: “câmara”. Porém, esse texto não menciona os corridos. Existem outras fontes que citam os repertórios com as suas respectivas definições e acepções. A capoeira regional, técnica criada pelo Mestre Bimba, tem, principalmente nesta época, muito mais proximidade do que distanciamento com a capoeira angola, como pode ser observado na seguinte reportagem da década de 40, realizada por Ramagem Badaró (1980: 47-50): Qual é o toque? - São Bento Grande Repicado, Santa Maria, Ave Maria, Banguela, Cavalaria, Calambolô, Tira-de-lá-bota-cá, Idalina ou Conceição da Praia? - Bimba pensou rapidamente e disse: - Toque Amazonas e depois Banguela. Os berimbaus começaram a tocar. O crioulo aproximou-se e Mestre Bimba apertou-lhe a mão. E o povo começou a acompanhar o tin-tin-tin dos berimbaus, batendo palmas. Bimba balanceou o corpo e cantou: “No dia que eu amanheço, Dentro de Itabaianinha, Homem não monta cavalo, Nem mulher deita galinha, As freiras que estão rezando, Se esquecem da ladainha”. Mas o crioulo não ficou atrás e cantou, negaceando o corpo no compasso dos berimbaus. “A iúna é mandingueira, Quando está no bebedor, Foi sabida e é ligeira, Mas capoeira matou”. Palmas festejaram o repente do crioulo. Porém, Bimba não deu tréguas à vitória do outro. E respondeu: “Oração de braço forte, Oração de São Mateus, P’ro Cemitério vão os ossos, Os seus ossos não os meus”. Novamente o Povo aplaudiu e cantou o estribilho da capoeira: “Zum, zum, zum, zum, Capoeira mata um, Zum, zum, zum, zum, No terreiro fica um”. O crioulo, entretanto, não deixou cair a quadra de Mestre Bimba e replicou: “E eu nasci no sábado, No domingo me criei, E na segunda-feira, A capoeira joguei”. A multidão deu vivas e bateu palmas para os dois lutadores no centro do círculo. Uma preta comentou: - Bom menino! Se é bom na briga como é no canto, boa parada para Bimba. […] Tinha vencido a luta. O povo invadiu o terreiro aplaudindo o rei da capoeira. Bimba abraçou o adversário. E o crioulo mostrou que era homem mesmo. Cantou: “Santo Antônio pequenino, Amansador de burro brabo, Amansai-me em capoeira, Com setenta mil diabos”. Bimba gostou do elogio e retribuiu, cantando: “Eu conheci um camarada, Que quando nós andarmos juntos, Não vai haver cemitérios, Pra caber tantos defuntos”. Esses “duelos musicais”, como expressão de uma “etiqueta ou até ética capoeirista”, com “adversários cantantes”, embora cada dia mais raros na capoeira, aproximam essa arte de outras manifestações da cultura popular brasileira, como contendas musicais, desafios de cantadores e cururus. Os grupos de capoeira angola, por via de regra, dizem obedecer aos ensinamentos da escola de Mestre Pastinha, chamando o conjunto de instrumentos da capoeira de bateria. Como já se disse, os três berimbaus começam a tocar, um de cada vez, seguidos pelo pandeiro e juntando-se os demais instrumentos, reco-reco, agogô e atabaque, no final da ladainha. Foto: Delfim Martins/Pulsar Imagens 93 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil No berimbau, combinam-se os três sons básicos do instrumento às variações do volume e do timbre, os quais são regulados pelo controle da posição e do distanciamento da abertura da cabaça em relação à região abdominal do instrumentista e da intensidade da percussão da vareta. A música na capoeira angola da Bahia A capoeira, geralmente, é jogada com o acompanhamento do berimbau. Os padrões rítmico-melódicos produzidos por esse instrumento são chamados pelos capoeiristas de toques. Esses toques consistem basicamente em combinações rítmicas e variações de timbre nos três sons distintos do instrumento: 1 - o mais agudo, executado pela percussão da vareta na corda do berimbau tencionada pelo dobrão; 2 - menos agudo, no qual o dobrão fica sobre a corda, sem tencioná-la; 3 - o mais grave, executado com a percussão da vareta na corda solta do berimbau. No berimbau, combinam-se os três sons básicos do instrumento às variações do volume e do timbre, os quais são regulados pelo controle da posição e do distanciamento da abertura da cabaça em relação à região abdominal do instrumentista e da intensidade da percussão da vareta. Todos os ensinamentos da capoeira angola são transmitidos oralmente e captados pela observação, ensaio e erro, correções e repetidas demonstrações dos mestres para os aprendizes. Todo aluno é respeitado no seu desenvolvimento individual, mas é muito comum o mestre insistir com todos os aprendizes, expressando-se principalmente pelas cantigas ao “improvisar,” durante as partes do solista, frases como: O atabaque atravessou (saiu do tempo, por acelerar ou retardar). Quero ouvir o reco-reco (ou outro nome de instrumento que esteja sendo tocado com pouca atenção, ou pouco intenso, volume baixo). Quero ouvir vocês cantar (direcionado para todos os membros do coro da capoeira). Durante a roda, geralmente é o mestre quem delibera quais as pessoas que sentarão nos bancos da bateria e que instrumentos elas tocarão. Podem ocorrer substituições voluntárias, com a ausência do mestre ou a convite deste, conforme o desempenho do instrumentista, que pode passar ou não de um instrumento para outro, considerado mais fácil ou mais difícil. Geralmente, começa-se o aprendizado dos instrumentos tocando-se reco-reco, depois agogô, pandeiro ou atabaque e, por fim, o berimbau. Existem aprendizes que só tocam reco-reco e agogô. Outros tocam até berimbau, mas não atabaque. Há quem toque o atabaque e os demais instrumentos da bateria, mas raramente o berimbau. Quando o angoleiro já conhece todos os instrumentos, ele mesmo é quem escolhe qual tocará e não lhe será exigido que toque mais de um. Aparentemente, isso ocorre tanto na capoeira angola quanto na regional. Muitos capoeiristas só tocam berimbau. Carybé, por exemplo, só tocava pandeiro. O que mais ajuda no processo de aprendizagem do angoleiro é a observação. Devo ressaltar que, na capoeira, todos aprendem a jogar, a tocar todos os instrumentos e a cantar, mesmo que depois sejam desenvolvidas capacidades específicas na escolha preferencial dos instrumentos, além do reconhecimento daqueles que têm dom para a criação e apresentação das ladainhas no começo da rodas. 94 Capoeira A música na capoeira Angola da Bahia O repertório musical da capoeira transita entre o samba-de-roda e alguns cantos que se aproximam de cantos de trabalho. Existem também o uso do repertório tradicional do candomblé de caboclo e, alguns casos, até música de candomblé de orixás. Atualmente, a capoeira, principalmente sua música, ajuda a difusão da língua portuguesa, especificamente a falada na Bahia. Além disso, essa expressão cultural catalisadora e estimulante dos movimentos corporais dos jogadores é holística na sua visão de integração, mas é brasileira, mostrando, na música, sua principal força criativa. KOSTER, Henry. Travels in Brasil. 2 ed. 2 v. London: Longman, Hurst, rees, orne, and Brown, Paternoster-Row, 1817. –––––––– Viagem ao Nordeste do Brasil. Tradução e notas de Luiz da Câmara Cascudo. Biblioteca Pedagógica Brasileira, série 5, v. 221. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. RUGENDAS, Johann Moritz. Malerisch Reise in Brasilien. Engelmann & Cie. In Paris, Cité Berger nº 1 in Mülhausen, Ober-Rheinisches Dept, 1835. –––––––– Viagem Pitoresca e Histórica no Brasil. Biblioteca Histórica Brasileira, direção de Rubens Borba de Moraes. 4 ed. tomo 1. v. 1 e 2. Trad. e notas de Sergio Milliet. São Paulo: Martins, 1949. Referências bibliográficas: BADARÓ, Ramagem. “Os negros lutam suas lutas misteriosas: Bimba é o grande rei negro do misterioso rito africano”. 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São Paulo: Melhoramentos. S.v. “Capoeira” 193-4. S.v. “Berimbau-de-Barriga” 120-1, 1981. Ricardo Pamfilio de Sousa. Mestre em Etnomusicologia pela UFBA, 1997 “A música na capoeira angola.” Membro da Fundação Pierre Verger, responsável pela cultura digital no projeto Ponto de Cultura Pierre Verger no Centro da Cultura Afro-brasileira. DEBRET, Jean-Batiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivament. Edição Comemorativa do IV Centenário da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, 1965. Rio de Janeiro: Distribuidora Record; New York: Continental News. Fac-simile da edição original de Firmin Didot Frères, Paris: 1834. –––––––– Viagem Pitoresca e Histórica no Brasil. Biblioteca Histórica Brasileira, direção de Rubens Borba de Moraes. 2 ed. tomo 1. 2 v. Trad. e notas de Sergio Milliet. São Paulo: Martins, 1949. –––––––– “L’Aveugle chanteur.” In Mercedes Reis Pequeno (org.). Três Séculos de Iconografia da Música no Brasil 80. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1974 95 A mulher na capoeira Lilia Benvenuti de Menezes Algumas das grandes referências femininas de força, garra, coragem e segurança retratadas na história remetem-nos à década de 1940, quando se destacaram as famosas “Maria 12 Homens”, “Calça Rala”, “Satanás”, “Nega Didi” e “Maria Pára o Bonde”, mulheres que se fizeram passar por homens para poderem conviver no meio da malandragem das rodas da capoeira. Personagens lendárias como Rosa Palmeirão, a capoeirista que serviu de inspiração para Jorge Amado no romance Mar Morto, é também um desses exemplos. Respeitada e temida como a mulher mais “arretada” que sacudiu o cenário dominado pelas figuras masculinas, era Maria 12 Homens, uma capoeirista, assídua freqüentadora das rodas do Cais Dourado e da rampa do Mercado Modelo. O sobrenome de Maria, não está registrado na memória de Salvador, mas o apelido, segundo a lenda, foi pelo fato de ter conseguido levar 12 marmanjos a nocaute. Acima de tudo, essas mulheres fizeram o nome na história e buscaram seu espaço com muita astúcia e malícia. Em busca de liberdade, conseguiram sair vitoriosas, deixando seu registro para a posteridade. Há vários mitos em torno de mulheres que fizeram de sua honra uma batalha de vida, tornando-se modelos de coragem e de determinação. Conta-se, por exemplo, que Aqualtune, filha do rei do Congo, comandou um grande exército de dez mil homens quando os Jagas invadiram seu território. Após tentar defender o reinado, acabou cabou sendo derrotada e levada para um navio negreiro como escrava va reprodutora. Foi obrigada a ter relações sexuais com um escravo, vo, desembarcando em Recife grávida. No fim de sua gravidez, organizou uma fuga com outros escravos para Palmares. Atualmente, as mulheres, símbolo de vitória tória e orgulho, vêm alcançando, cada vez mais, posições es de destaque na política e no mercado, com melhores es funções e diversos cargos importantes. Também no esporte, sporte, a mulher tem conquistado muitas medalhas, troféus oféus e títulos. Na capoeira, como não poderia deixar de ser, er, a participação feminina tem sido cada vez mais freqüente, e, ajudando a fortalecer a modalidade. Ela toca, canta, joga, ministra nistra aulas e participa de debates com muitos dos renomados mestres estres da arte. Maria 12 Homens, Calça Rala, Satanás, Nega Didi, Maria ria Pára o Bonde e Rosa Palmeirão, onde quer que estejam, têm muitos tos motivos para se ufanarem. cação Física, Lilia Benvenuti de Menezes. Professora de Educação professora do Grupo Muzenza e bicampeã mundial pela Super Liga Brasileira de Capoeira. Autora do livro “Benefícioss Psicofisiológicos da Capoeira”. Fotos: Marc Ferrez Entrevista Senhora Rosângela C. Araújo (Mestra Janja) TB: A capoeira é apontada por muitos especialistas como uma das mais autênticas manifestações culturais brasileiras. Em sua opinião, quais características da capoeira são reveladoras da idiossincrasia brasileira? Rosângela Costa Araújo, a Mestra Janja, é uma das personagens mais conhecidas no mundo da capoeiragem. Formada em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), dedicou mais de vinte anos de sua vida à capoeira, seja em sua vertente acadêmica, seja na prática do quotidiano. Nesta entrevista concedida à revista “Textos do Brasil”, Mestra Janja emite suas opiniões a respeito da inserção da mulher no mundo da capoeira, das transformações ocorridas nessa área nos últimos anos e dos desafios e perspectivas que a capoeira terá pela frente. Janja: Gostaria, inicialmente, de tratar a capoeira como uma manifestação cultural afro-brasileira. Isso é muito importante para mim, uma vez que considero fundamental não prosseguirmos pensando o Brasil sem as suas “africanidades”. A partir daqui, entendo que a capoeira é uma arte reveladora do jeito de ser do brasileiro, desenvolvendo formas criativas de ser relacionar com realidades muitas vezes violentas. É assim que o “gingar”, mais que um movimento específico da capoeira, se converteu numa habilidade de vivenciar e enfrentar as adversidades, mimetizando luta e dança, e transformando estereótipos negativos em alegrias comunitárias. TB: A senhora possui uma trajetória de mais de vinte anos dedicados ao mundo da capoeira. Nesse período, quais foram as principais transformações que a senhora notou em relação à capoeira? Janja: Sim, estou na capoeiragem há cerca de vinte e cinco anos e, felizmente, em condições de conhecer alguns dos seus desdobramentos em vários estados brasileiros e também em vários países. O que mais me impressiona é a mudança que caracteriza as novas formas de convivências entre os grupos e, principalmente, entre os mestres. A possibilidade de realizarem atividades conjuntas, dialogando com diferentes públicos ou mesmo com os poderes públicos, ainda que não elimine antigas desconfianças, estabelece diferentes modelos de convivência. A crescente presença da mulher é também um importante fenômeno a ser apresentado e discutido. TB: Em diversos setores da vida civil, as mulheres conseguiram conquistar significativo espaço que lhes era cerceado até meados do século XX. Quais são os progressos que a senhora destacaria no que se refere à participação da mulher nas rodas de capoeira? Janja: Começo afirmando que, antes de chegar às rodas de capoeira, a mulher enfrenta caminhos diferenciados para se tornar e se fazer reconhecer capoeirista. Não é novidade para ninguém que a capoeira deixou de ser algo específico de homens, se é quem algum dia o foi. Hoje há organizações de capoeira fundadas e lideradas por mulheres, ou mesmo grupos, sobretudo no exterior, em que as mulheres constituem a maioria dos praticantes. Entretanto, ainda lidamos com um grande desequilíbrio de representatividade quando pensamos no reduzido número de mulheres que são promovidas pelo sistema de graduação. Temos visto grupos, com base em certas “tradições” por eles criadas, dizerem que as mulheres não podem tocar o gunga ou “puxar” uma ladainha, mesmo que esse conhecimento lhes seja exigido no dia-a-dia dos treinamentos e demais aprendizados da capoeira. Mestre Janja Sendo a roda de capoeira o espaço de apresentação da identidade, força e competência dos grupos, ao contrário do exercício da autonomia, as mulheres vivenciam situações diversas de opressão e violência, concreta e simbólica, levando-as à formação de vários coletivos, em diferentes países, que atuam estimulando debates e constituindo redes de aprendizado e de solidariedades distintas. Nesse sentido, temos que entender a capoeira em permanente diálogo com a sociedade a seu redor, como sendo a “pequena roda” inserida na “grande roda”, e que as lutas das mulheres na sociedade como um todo também são refeitas na capoeiragem. TB: Quais são os obstáculos que ainda devem ser vencidos pelas mulheres na capoeira? Janja: Talvez seja este um bom momento para invertermos o prisma desta questão, perguntando: quais são os obstáculos que precisam ser vencidos pela capoeira para integrar de maneira respeitosa e qualificada a presença da mulher? Assim, podemos levar em consideração dois temas relevantes: a diversidade e a construção do direito à eqüidade. Esse é um desafio que a capoeira deve assumir, levando em conta que a presença feminina vai desde o de- senvolvimento dos conhecimentos que definem as exigências específicas, como movimentos, toques, cantos, história e filosofia da capoeira, etc., até a sua inquestionável capacidade de organizar e conduzir grupos, considerados sob o aspecto de organizações culturais, educacionais e políticas, tanto no interior da capoeiragem quanto nos debates com os movimentos sociais mais amplos. Entretanto, para avançarmos, é necessário entender que a capoeira precisa incorporar novos olhares sobre sua diversidade estética. Da mesma forma que entre os grupos tradicionalmente conduzidos por homens existe uma diversidade estética muito acentuada, para definir e indicar a identidade de cada grupo, de cada mestre, também é assim que as mulheres buscam ser valorizadas, compondo um novo cenário, e não necessariamente reproduzir conceitos (inclusive corporais) que não representam códigos femininos. TB: É comum escutar que a formação do aluno de capoeira deve ser global, isto é, abranger não apenas seus elementos técnicos e físicos, mas também sua formação moral e ética. Quais são os valores que a capoeira pode desenvolver em seus praticantes? Janja: Primeiro a capoeira deve ser apresentada à pessoa que busca ser iniciada na sua prática. Isso porque sendo a capoeira uma prática comunitária (estou falando da capoeira angola), seus aspectos históricos e filosóficos são necessários na formação da identidade do grupo. Os seja, um bom começo é situar tanto o grupo como a pessoa na sua rede de pertencimento. A partir daí, valores como hierarquia, ancestralidade, cooperação, respeito às diferenças, etc. passam a ser encarados como valores que situa a pessoa na própria comunidade. Aqui, é importante reafirmar o caráter formador da capoeira, fazendo do ser capoeirista algo que reúne, além de habilidades corporais, musicais, uma conduta que atesta os conhecimentos orientados em seu grupo. TB: A capoeira tem sido utilizada exitosamente como meio de inclusão e coesão social. Quais são as características da capoeira que lhe permitem essa utilização? Quais as principais iniciativas nesse sentido que a senhora destacaria como mais significativas? Janja: Sim, a capoeira tem cumprido um importante papel na formação de comunidades culturais, sobretudo entre crianças e jovens residentes nas periferias dos centros urbanos. Além de produzir variados níveis de atração e envolvimento, trata-se de uma atividade que tem contado com a dedicação e iniciativa de pessoas envolvidas com a sua preservação e difusão. Felizmente, vivemos hoje uma realidade em que o poder público, a partir de iniciativas do governo federal, tem reconhecido a importância social da capoeira por meio de programas, editais e registros, fazendo com que grupos e associações situados em lugares mais distantes dos eixos de dominância cultural tenham os seus trabalhos divulgados entre a comunidade de capoeiristas mais ampla. Entre essas iniciativas podemos destacar o registro, em curso, de reconhecimento da capoeira como patrimônio imaterial, orientado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; os programas Cultura Viva, Pontos de Cultura, Capoeira Viva, entre outros sediados no Ministério da Cultura – MinC; e a construção de políticas públicas em algumas prefeituras brasileiras. No exterior, podemos citar, além da proposta do Programa Mundial de Capoeira do MinC, ações de mestres e grupos que, em diversos países, vão estreitando vínculos com os sistemas de ensino e vários espaços culturais. TB: Do seu ponto de vista, quais são as virtudes que um bom capoeirista deve possuir? Janja: Ginga, capacidade de ser flexível também na “grande roda”. Abertura para se manter em formação. Responsabilidade na escolha dos ensi- namentos, visando à sua formação integral como capoeirista. Exercício permanente da tolerância e acolhimento. Respeito às diferenças. TB: A senhora defendeu, em 2004, sua tese de doutoramento a respeito da capoeira. Não obstante, até pouco tempo, muitos capoeiristas viam com desconfiança as pesquisas do meio acadêmico, pois acreditavam que valores distintos regiam o universo da capoeira e o da academia. Como está essa relação atualmente? Janja: Não creio que esta desconfiança seja uma especificidade dos capoeiristas. Também aqueles que são iniciados em outras tradições de matrizes africanas, como o candomblé, só se abrem para aceitar muitos dos estudos acadêmicos após fazerem parte desse meio. Assim, é possível encontrarmos, hoje, em muitos grupos de capoeira, no Brasil e no exterior, a presença de pesquisadores, acadêmicos ou não, realizando pesquisas e publicações importantíssimas para a capoeira. Aqui, gostaria de destacar, também, a existência de grupos formados por pesquisadores da capoeira que mesclam esse perfil: o Grupo de Estudos da Capoeira – GECA, de abrangência nacional, que reúne uma grande maioria de capoeiristas, sendo alguns inseridos em programas de pósgraduação e outros que são docentes de instituições universitárias; e o Grupo de Estudos Mestre Noronha, projeto do Instituto Jair Moura, em Salvador. TB: Existem diversas vertentes no universo da capoeira. A senhora acredita que essa diversidade pode ser considerada como um fator revelador da complexidade cultural da capoeira e, logo, da cultura brasileira? Janja: Sim, sem dúvida, e talvez seja esta também a sua maior riqueza na atualidade. É necessária a composição de distintos quadros de referências para se dar conta das muitas possibilidades de abordagens que a capoeira atua. Entretanto, devemo-nos manter preocupados com certos hibridismos que descaracterizam a capoeira. Em lugar de preocuparmo-nos em ficar inventando nomes para novas marcas e seus subseqüentes patenteamentos, deveríamos empenhar-nos em revelar, nas complexidades da própria capoeira, as suas inúmeras possibilidades de atuação e de colaboração com áreas afins (artes, saúde, educação, direito, etc.). TB: A capoeira tem se tornado uma atividade muito popular em todos os continentes. Em sua opinião, a que se deve esse sucesso? Como a senhora avalia essa internacionalização da capoeira? Janja: Acho que a capoeira mantém atualizada a alma pela juventude. Ela produz campos individuais e coletivos de expressão que são muito atraentes por sua plasticidade, musicalidade e demais aspectos de formação grupal. Isso tem sido evidenciado na medida em que crianças, jovens e adultos de diferentes origens, culturas, classes sociais se entregam aos seus ensinamentos, buscando reconhecer suas redes de pertencimento, cujas matrizes se encontram no Brasil, e criando um fantástico mosaico humano capaz de reunir pessoas que muitas vezes estariam separadas pelas desigualdades e conflitos com que várias dessas diferenças são tratadas no contexto político mundial. Por outro lado, é importante que esses novos capoeiristas reflitam e reconheçam o sentido histórico e político da capoeira para que ela não ganhe novos contornos de folclorização ou seja entendida por processos de simplificação esportiva. Afinal, não é a maioria dos capoeiristas que querem ver a capoeira convertida num esporte olímpico. Da mesma forma, a capoeira devese manter atrelada ao seu passado como forma de garantir a sua permanência no quadro das lutas dos povos negros no Brasil, pela conquista da liberdade. TB: Quais os estereótipos que a capoeira e os capoeiristas ainda enfrentam atualmente? Janja: Acho que tem estereótipos que devem ser encarados tanto pela sociedade quanto pelos poderes públicos. A sociedade brasileira precisa reconhecer e nomear suas africanidades como sendo um aspecto central na construção da sua identidade nacional, e os poderes públicos devem assegurar procedimentos necessários a esse reconhecimento, seja por meio de revisões nos conteúdos de livros didáticos e demais produções literárias, seja incentivando, inclusive, iniciativas que desenvolvam trabalhos qualificados para essas novas formações. TB: Quais os desafios que a prática da capoeira enfrenta no mundo contemporâneo? Janja: Desarmar-se de nacionalismos, culturalismos e demais formas de intolerância que alimentam racismos, sexismos e xenofobias. Impedir que sejam transferidas para dentro da capoeiragem as violências políticas que buscamos eliminar na “grande roda”. Manter-se promovendo a construção da liberdade e da eqüidade e, à despeito da sua inserção mundial, refletir seus processos de massificação. As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX Paula Cristina da Costa Silva S, READEIRA C IN R B AS R GADAS, APONTA JO E S R A A A V SERV BSER ÇÃO LICO OB CUREI O B O Ú R P P NIFESTA A O O M E T X D A E N T TE A, O AR ENTRE 1 DADAS GO, NES CAPOEIR DO OLH JO E IR D O T O A A R D D S A O MUN ENTE X, A P AL NA R ES INER TAS DO CULO X L É Õ S O S TAL QU V N O E S D T E S NA ORRER TAÇÕES 2 , NO DEC ENDIDO E R P A A PRESEN TOS FÍSIC ELEMEN CAÇÃO U S D N E U A G L A AE CAPOEIR L A ISTA. R U T APOEIR CUL C / A R O UISAD DE PESQ (1) Volta do mundo é parte de um verso cantado na ladainha, de abertura de um jogo de capoeira. Esse termo pode ser traduzido como uma senha para o início da movimentação corporal do jogo e significa também, no mundo capoeirístico, as diversas possibilidades de jogadas a serem desenroladas durante a roda de capoeira. Alguns autores, como Letícia V. S. Reis (1997), traçam um paralelo da roda de capoeira aos acontecimentos da vida cotidiana, daí a expressão voltas do mundo também significar tudo o que é produzido pelos seres humanos no decorrer de suas histórias. (2) Neste texto utilizarei o termo Educação Física com as iniciais maiúsculas para designar a área de conhecimento e educação física com as iniciais minúsculas para tratar da disciplina pedagógica responsável pela pedagogização dos temas da cultura corporal. Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil As inter-relações entre a capoeira e a Educação Física iniciaram-se no começo do século XX, quando não só autores da Educação Física, mas também da Educação e das Forças Armadas buscaram mecanismos para incorporar a capoeira ao esporte, em plena ascensão no período, e adaptá-la aos métodos ginásticos. As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX Esta análise foi construída a partir do meu trabalho de mestrado, no campo da Educação Física, orientada pelo Prof. Dr. Lino Castellani Filho, no qual me propus compreender como os estudiosos dessa área de conhecimento se apropriaram da prática social capoeira e dos estudos derivados desse tema. A partir deste ponto principal, surgiram outros três questionamentos que complementaram a análise, foram eles: qual a história da prática social capoeira; se seu percurso histórico corre paralelamente ao da Educação Física, se se intercruzam em algum lugar e em qual momento; e qual é o entendimento que o segmento vinculado ao espaço de configuração da regulamentação da profissão de Educação Física possui, tanto da própria Educação Física quanto da capoeira, para justificar a subordinação da ação profissional no âmbito da capoeira aos Conselhos Federal e Regionais de Educação Física. Na busca de respostas a essas indagações, foi realizado um estudo bibliográfico referente à capoeira nas áreas de Educação Física, História, Antropologia e Sociologia, e também daquelas pertencentes ao mundo capoeirístico3. Procurou-se complementar o material analisado com dados de fontes bibliográficas originárias de revistas publicadas nos últimos 20 anos que tratam desse tema. Pude apreender que a história da prática social capoeira permeou todos os debates desenvolvidos, uma vez que ela serviu de pano de fundo para a compreensão do desenvolvimento dessa manifestação cultural na sociedade brasileira. E foi a partir da retomada de seu percurso histórico que pude traçar os paralelos existentes entre a capoeira e a Educação Física. Primeiramente, é importante mencionar que a capoeira tem sua origem ligada aos negros escravos que foram trazidos ao Brasil e que forjaram, a partir do século XVI, várias manifestações em solo brasileiro: o candomblé, o samba, a congada, o maracatu, entre outras. A capoeira destacase das demais devido à sua grande expansão nos últimos anos, alcançando países nos cinco continentes do mundo. Essa manifestação pode ser considerada como um misto de luta, dança, brincadeira, teatralização, jogo, esporte. Conforme pude constatar, as inter-relações entre a capoeira e a Educação Física iniciaram-se no começo do século XX, quando não só autores da Educação Física, mas também da Educação e das Forças Armadas buscaram mecanismos para incorporar a capoeira ao esporte, em plena ascensão no período, e adaptá-la aos métodos ginásticos4 A idéia principal desenvolvida por esses autores, inclusive (3) Compreendo como mundo capoeirístico tudo o que é produzido pelos mestres, professores e praticantes da capoeira fora do âmbito acadêmico. (4) A implantação da educação física no Brasil é diretamente ligada aos métodos ginásticos europeus que ganharam força no País a partir do início do século XX. A finalidade desses, assim como em seus países de origem, era disciplinar os corpos, objetivando o fortalecimento da população para a produção nas fábricas e desenvolver um plano higienista, sem a preocupação com o desenvolvimento de políticas sociais de saneamento básico e atendimento médico. Para se obter mais informações sobre os métodos ginásticos no Brasil consultem as obras Educação Física: raízes européias e Brasil, de Carmem Lúcia Soares, 1994 e Educação Física no Brasil: a história que não se conta, de Lino Castellani Filho, 2000. 104 Foto: Ricardo Azoury/Pulsar Imagens sendo alguns deles praticantes da capoeira, era a de tornála uma modalidade esportiva ou uma luta de defesa pessoal que representasse a nação brasileira, daí a exaltação de sua brasilidade. Dessa forma, pautados em um discurso nacionalista e aderindo à política higienista, em voga no início do século XX, propuseram sua prática destituída dos valores herdados de suas origens negra e popular5. No entanto, nota-se uma oportunidade de aproximação de duas camadas díspares da sociedade, a classe abastada, representada pelos autores citados, e a classe pobre, representada pelos exescravos e trabalhadores. Isso porque o discurso de “disciplinarização” da capoeira passa a servir, em certa medida, para a sua revalorização pela camada dominada, uma vez que sua prática em locais públicos havia sido proibida pelo Código Penal de 1890. Nesse sentido surgem ações, requerendo para ambas as partes a legitimidade da capoeira como uma prática nacional, porém divergindo completamente na forma como propunham sua manifestação. De um lado, tínhamos a ordenação da capoeira com o Método Zuma, que sugeria sua prática baseada no esporte – principalmente, nos moldes do boxe – e que era apoiada pela classe abastada. E, do outro lado, a manutenção de sua prática no interior da camada subalterna por meio das manifestações oriundas da população negra, como as festas de fundo de quintal e de largo. Mas, até esse momento, a inter-relação entre a educação física e a capoeira não se manifestava de forma clara e contundente. Foi em 1945, com o professor Inezil Penna Marinho, que se concretizaram, de forma mais evidente, os primeiros passos em direção à apropriação e a busca de um novo significado para a capoeira por meio da educação física, visando desenvolver uma metodologia para o treinamento da capoeiragem baseada no Método Zuma. É interessante apontar que esse processo ocorreu paralelamente ao da legalização dessa manifestação cultural no período do Estado Novo, década de 1930, demonstrando, novamente, a luta dos representantes de classes sociais divergentes pela apropriação da capoeira. No entanto, o resultado dessa luta foi favorável à proposta advinda dos mestres e praticantes da capoeira, pautados em sua origem negra e popular, notadamente os representantes da classe subalterna de Salvador (Bahia), em detrimento daquela do professor Inezil. Mas, apesar disso, é inegável a influência da educação física e esporte na configuração da capoeira adotada, hegemoni(5) O termo negro e popular refere-se ao modo pelo qual a capoeira é pensada e praticada a partir de sua concepção como uma manifestação ambígua originária das tradições africanas no Brasil. Já o termo branco e erudito é usado para designá-la a partir de uma concepção ligada ao seu enquadramento como método ginástico brasileiro, luta de defesa nacional ou esporte legitimamente brasileiro. Estes termos foram forjados e discutidos com maior profundidade por Letícia V. S. Reis, em seu livro O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil, de 1997. 105 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Portanto, considera-se que a primeira inter-relação concreta entre a Capoeira e a Educação Física se deu no sentido dos praticantes de capoeira apropriarem-se do prestígio da Educação Física da época para firmarem suas idéias referentes a essa manifestação cultural. As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX camente, a partir das idéias dos mestres baianos. De acordo com as análises das obras de Frederico José de Abreu7 e de Antônio Liberac C. S. Pires8, pode-se constatar que foi a partir da estrutura esportiva que os mestres e praticantes da capoeira primeiro demonstraram a possibilidade dessa manifestação integrar o rol de modalidades esportivas – participação da capoeira nas lutas de ringue – e, depois, passaram a organizar os treinamentos e aulas, servindo-se do prestígio da educação física, na década de 1930, para posteriormente apontar a capoeira como a Educação Física do Brasil. Portanto, considera-se que a primeira inter-relação concreta entre a Capoeira e a Educação Física se deu no sentido dos praticantes de capoeira apropriarem-se do prestígio da Educação Física da época para firmarem suas idéias referentes a essa manifestação cultural. É interessante mencionar que os mestres soteropolitanos realizaram interpretações próprias sobre a Educação Física e o esporte, relacionando-os com a prática da capoeira, como podemos notar nas palavras de mestre Pastinha9: “[...] com franqueza, já é tempo de zelar pelo esporte. O propósito meu não era fazer-me melhor que os camaradas, sim valorizar o esporte”10. Ou nas explicações de mestre Bimba, para legitimar seu método de ensino: “Tenho na parede uma autorização da Secretaria de Educação. Sou professor de cultura física. Ninguém pode mexer comigo”11. Assim, jogando com os interesses governamentais e defendendo a prática da capoeira de forma democrática12, vemos vingar, a partir da década de 1930, a pedagogia popular13 para o ensino dessa manifestação cultural. Ao mesmo tempo em que os mestres se utilizaram da cultura erudita – representada, nesse caso, pelo esporte e pela educação física –, eles a remodelaram de acordo com seus interesses. Dessa maneira, eles reinventaram sua tradição e consolidaram o discurso da capoeira como legítima contribuição da Bahia e do negro baiano na cultura nacional. Percebemos que, com a supremacia desse discurso, ocorreu a valorização da capoeira como uma manifestação cultural ampla, sem a negação de sua origem africana e sem sua restrição a uma modalidade esportiva ou luta de defesa pessoal. Notamos que os mestres baianos potencializaram o caráter ambíguo da capoeira e, conseqüentemente, de sua prática, pois não recu(7) ABREU, Frederico José de. Bimba é bamba: a capoeira no ringue. Salvador: Instituto Jair Moura, 1999. (8) PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões. Movimentos da cultura afro-brasileira: a formação histórica da capoeira contemporânea (1890 – 1950). 2001. Tese (Doutorado em História) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCH), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. (9) Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, e Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, foram ícones da capoeira baiana e obtiveram êxito na luta para a retirada da capoeira do rol de atividades incluídas como contravenção penal, em 1890, conseguindo seu reconhecimento pela sociedade brasileira, a partir da década de 1930. (10) FILHO, 1997 apud PIRES, 2001, op. cit., p. 282 (11) ABREU, 1999, op. cit., p. 30. (12) Conforme cantava Mestre Pastinha e outros mestres contemporâneos a ele: “Capoeira é pra homem, menino e muié. Só não joga quem não qué”. (13) Termo sugerido por Letícia Vidor de Souza Reis (1997) para designar as diferenças entre uma pedagogia gerada pelos mestres de capoeira denominada popular e outra denominada erudita emanada da área de Educação Física e influenciada pelo sistema social hegemônico da época. 106 Capoeira As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX Foto: Paula Cristina saram sua configuração esportiva e reforçaram, em seu discurso, sua ambigüidade, definindo-a como luta, dança, música, defesa pessoal, filosofia de vida, etc. Entretanto, apesar de termos como vencedora a pedagogia popular para o ensino da capoeira nesse primeiro jogo entre a capoeira e a Educação Física, não tardou muito para que novas propostas emergissem, pleiteando sua inserção no rol de modalidades esportivas ou de lutas de defesa pessoal. Uma dessas propostas surgiu da parceria entre a educação física e as Forças Armadas – parceria por sinal muito recorrente ao longo do século XX. Na década de 1960, o Primeiro-Tenente Lamartine Pereira da Costa foi a segunda pessoa ligada à Educação Física a propor a incorporação da capoeira como um método de defesa pessoal, tendo sido Fernando de Azevedo, em sua obra Da Educação Física: o que ela é, o que tem sido e o que deveria ser (seguido de Antinoüs), o primeiro estudioso a fazer isso. Em sua proposta, Lamartine Pereira da Costa sugeria a incorporação da capoeira no treinamento dos soldados da Marinha, como uma forma de preparação para possíveis lutas. Dessa sua iniciativa nasceu o livro Capoeira sem mestre, de sua autoria, no qual se nota claramente o desejo de colocar em xeque a competência dos velhos mestres de capoeira. Entretanto, essas idéias não se concretizaram, sendo que, mais uma vez, não passou de uma tentativa frustrada da educação física de se apropriar da capoeira. No entanto, ocorreram mudanças na sociedade brasileira, nas décadas de 1960 e 1970, com a chegada dos militares ao poder, com o golpe de Estado de 1964. Dentre os vários acontecimentos desencadeados naquela época, houve a utilização da educação física como válvula de escape para possíveis “transgressões” no âmbito político por meio, principalmente, da valorização dos movimentos esportivos, processo discutido por Lino Castellani Filho, na obra Educação Física no Brasil: a história que não se conta. Nesse caso, foi constatada nova inter-relação entre a educação física e a capoeira a partir do fortalecimento do fenômeno da esportivização no interior da capoeira, acompanhando as mudanças que ocorriam na educação física. Foi a partir da década de 1970 que houve a ocorrência mais nítida do movimento de esportivização da capoeira, com a sua incorporação como modalidade esportiva na Confederação Brasileira de Pugilismo e da organização dos capoeiristas em grupos. O mestre de capoeira ainda permanecia como a figura central na hierarquia organizacional dos grupos, mas, nesse momento, há a entrada no jogo de novas regras para a capoeira, muito próximas a de outras modalidades esportivas. Pode-se dizer, portanto, que, naquele momento histórico, prevaleceu a influência esportiva na capoeira e, conseqüentemente, as influências da educação física, que se encontrava estreitamente ligada ao fenômeno esportivo. Mas essa primeira vitória da educação física no jogo não se mostrou de forma definitiva e plena. Ao contrário, os vários grupos organizados de capoeira não acolheram homogeneamente a idéia de torná-la uma modalidade esportiva vinculada à Confederação Brasileira de Pugilismo. Os capoeiristas divergiram em vários âmbitos com relação à transformação da capoeira em manifestação única, configurada por meio de uma modalidade esportiva. Assim, considera-se esse fato como um momento chave para se compreender os desdobramentos ocorridos nessa manifestação cultural, pois das divergências existentes entre os diferentes grupos é que foi possível o surgimento de propostas inovadoras que influenciaram, anos depois, vários estudiosos de diferentes áreas para o repensar da capoeira em nossa sociedade. Um exemplo disso foi o movimento de contestação da Capoeira Esporte, que fez ressurgir com força as idéias de mestre Pastinha e a sua proposta da capoeira angola14. Assim, o movimento desencadeado pelos grupos de capoeira, organizados de diferentes formas, transgredindo abertamente as regras estabelecidas pela Confederação Brasileira de Pugilismo, trouxe ao cenário do jogo a possibilidade de se estabelecer uma inter-relação diferenciada entre a educação física e a capoeira. Mas não se pode esquecer que, apesar disso, as relações apresentavam-se, no decorrer dos anos, muito mais complexas, porque ao mesmo tempo em que havia essa nova perspectiva, tam(9) Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, e Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, foram ícones da capoeira baiana e obtiveram êxito na luta para a retirada da capoeira do rol de atividades incluídas como contravenção penal, em 1890, conseguindo seu reconhecimento pela sociedade brasileira, a partir da década de 1930. (10) FILHO, 1997 apud PIRES, 2001, op. cit., p. 282 (11) ABREU, 1999, op. cit., p. 30. (12) Conforme cantava Mestre Pastinha e outros mestres contemporâneos a ele: “Capoeira é pra homem, menino e muié. Só não joga quem não qué” (13) Termo sugerido por Letícia Vidor de Souza Reis (1997) para designar as diferenças entre uma pedagogia gerada pelos mestres de capoeira denominada popular e outra denominada erudita emanada da área de Educação Física e influenciada pelo sistema social hegemônico da época. (14) Apesar de Mestre Pastinha e Mestre Bimba terem lutado para tirarem a capoeira do rol de atividades incluídas como contravenção penal, cada qual formulou uma proposta diferenciada para sua prática. A proposta de Mestre Bimba consistia numa proposta regional baseada na adaptação de diferentes manifestações culturais como o batuque, e a capoeira até então praticada, com a mistura de modalidades esportivas e de lutas. A proposta de Mestre Pastinha, a capoeira angola, tinha como parâmetro a etnicidade baseada na prática da capoeira até aquele momento histórico, com poucas alterações. 107 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Cabe apontar que a capoeira, como manifestação cultural brasileira, também passou a ser valorizada na Educação Física. Isso devido ao desenvolvimento, a partir de 1980, de novos paradigmas relacionados à área de Educação Física. As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX bém existiam grupos de capoeira que apoiavam as idéias referentes à normalização dessa prática como modalidade esportiva. Além disso, para acrescentar mais divergências, na década de 1980 retomaram-se as antigas idéias ligadas à incorporação da capoeira pela educação física, pautadas nas propostas dos métodos ginásticos. Nesse contexto, percebe-se variadas situações, uma delas advinda do já conhecido professor Inezil Penna Marinho (1982), que propunha a retomada do plano da capoeira como a ginástica brasileira. Uma outra que, emanada dos favoráveis pela permanência da capoeira nos moldes esportivos, defendia a capoeira-esporte. Ainda nesse período, houve uma movimentação ligada à Educação Física e encabeçada por alguns de seus intelectuais, que visavam repensar o papel social dessa área. Se não bastasse todo esse panorama, repleto de caminhos díspares, ainda houve alguns grupos de capoeira que defendiam esta prática no rol das manifestações culturais desvinculadas das normatizações das instituições legais. Esse quadro complexo teve seu desenlace em alguns sentidos, permanecendo inalterado em outros aspectos. No que concerne à incorporação da capoeira no rol de manifestações culturais, sem vínculos com os órgãos governamentais, ainda existem setores ligados às organizações de capoeiristas que apóiam esta idéia, mas são minoria. Isso porque não há clareza nos discursos dos seus defensores, por ser, inclusive, óbvia a dificuldade em manter viva essa manifestação, sem apoio institucional, seja representada por órgãos esportivos, setores ligados à arte, escola, etc. Além disso, as manifestações culturais que fazem parte da formação do povo brasileiro têm a proteção legal adquirida com a atual Constituição Brasileira. Dessa forma, a capoeira já possui um amparo institucional, se encarada como manifestação cultural. Cabe apontar que a capoeira, como manifestação cultural brasileira, também passou a ser valorizada na Educação Física. Isso devido ao desenvolvimento, a partir de 1980, de novos paradigmas relacionados à área de Educação Física. Nesse movimento, é possível apreender novas perspectivas, entre elas aquela que sugere à educação física escolar a abordagem da “Cultura Corporal Brasileira”, de acordo com a obra Metodologia do ensino da educação física, de 1993. Essa proposta parece ser a mais coerente entre as existentes na Educação Física porque compreende a capoeira dentro de seus aspectos históricos e sociais, valorizando sua prática e seu estudo. Diante desse novo enfoque da capoeira no âmbito da educação física, é possível denominar de progressista os professores de educação física partidários da ampliação de seu trato na área. Em algumas obras da década de 199015, percebe-se o fortalecimento das inter-relações pautadas (15) Posso citar as obras de FALCÃO, José Luiz. A escolarização da capoeira. Brasília: ASEFE Royal Court, 1996; REIS, André Luiz Teixeira. Brincando de Capoeira: recreação e lazer na escola. Brasília: Valcy, 1997 e de ROCHA, Maria Angélica. Capoeira uma proposta para a educação física escolar. 1990. Monografia (Especialização em Educação Física Escolar) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas. 108 Capoeira As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX no convívio mútuo de situações em que, de um lado ocorre a valorização do mestre de capoeira como detentor do conhecimento dessa manifestação, e, de outro, o respeito pelo professor de educação física que deseja trabalhar a capoeira como conteúdo de suas aulas. No entanto, essa forma de ação não é recorrente entre ambas as partes, restringindo-se a poucos profissionais que procuram seguir por esse caminho. Apesar disso, essa pode ser uma das formas mais ricas e compensadoras para se trabalhar a capoeira nas aulas de educação física. Por fim, é importante apontar que a inter-relação mais rica em termos de produção cultural tanto para a capoeira como para a área de Educação Física é o ensino de uma prática consciente, tendo sido construída a partir da história de um povo que foi trazido escravo para o Brasil e teve a dignidade de, por meio de sua resistência cultural, deixarnos como legado a arte de lutar sorrindo, dançar lutando, cantar narrando seu passado e relembrar seus antepassados em um jogo corporal chamado capoeira. Referências bibliográficas ABREU, Frederico José de. Bimba é bamba: a capoeira no ringue. Salvador: Instituto Jair Moura, 1999. AZEVEDO, Fernando de. Da Educação Física: o que ela é, o que tem sido e o que deveria ser (seguido de Antinoüs). São Paulo: Melhoramentos, 1960. obras completas. contemporânea (1890 – 1950). 2001. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCH), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. REIS, André Luiz Teixeira. Brincando de Capoeira: recreação e lazer na escola. Brasília: Valcy, 1997. REIS, Letícia Vidor de Sousa. O mundo de pernas para o ar: a Capoeira no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 1997. ROCHA, Maria Angélica. Capoeira uma proposta para a educação física escolar. 1990. Monografia (Especialização em Educação Física Escolar) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas. SILVA, Paula Cristina da Costa. A Educação Física na roda de capoeira – entre a tradição e a globalização. Dissertação (Mestrado em Educação Física), Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, 2002. ______ O mestre de capoeira face a regulamentação da profissão de Educação Física. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 12. 2001, Caxambu. Anais..., Caxambu: CBCE, 2001a. ______ Capoeira e Educação Física - uma história que dá jogo... primeiros apontamentos sobre suas inter-relações. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 23, n. 1, pp. 131-145, set./2001b. SOARES, Carmem Lúcia. Educação Física: raízes européias e Brasil. Campinas: Autores Associados, 1994. BRACHT, Valter. Educação Física: a busca da autonomia pedagógica. Revista da Fundação de Esporte e Turismo, v. 1 (2), pp.12-19, 1989. SOARES ET ALLI. Metodologia do ensino da educação física. São Paulo: Cortez, 1992. CASTELLANI FILHO, L. Pelos meandros da educação física. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v.14, n. 3, maio/1993. ____ Educação Física no Brasil: a história que não se conta. 5ª ed., Campinas: Papirus, 2000. Paula Cristina da Costa Silva. Doutoranda da Faculdade de Educação, da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp/SP, capoeirista da Escola de Capoeira “Saci Pererê” e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Física Escolar (GEPEFE) e do Grupo de Estudos de Capoeira (GECA). COSTA, Lamartine Pereira da. Capoeira sem mestre. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1962. FALCÃO, José Luiz. A escolarização da capoeira. Brasília: ASEFE Royal Court, 1996. MARINHO, Inezil Penna. A ginástica brasileira (Resumo do projeto geral), Brasília, 1982. ______ Subsídios para o estudo da metodologia do treinamento da capoeiragem. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945. PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões. Movimentos da cultura afro-brasileira: a formação histórica da capoeira 109 Benefícios da Capoeira Benefícios Educacionais Ricardo Pamfílio de Souza Filosófico: o despertar dos membros do grupo para os fundamentos da capoeira. Social: conscientização do grupo como tal, com responsabilidade, deveres e direitos dos associados. Físico: aprendizagem dos movimentos corporais da capoeira dentro de limites físicos e mentais, compatíveis com a experiência e idade. Artístico: aspectos estéticos referentes à música da capoeira, às cantigas e aos toques de berimbau, atabaque, pandeiro e agogô, além da dança e da encenação do jogo. Não existe um modelo educacional da capoeira, mas sim diversos modelos que são individualizados pelos mestres, sendo autônomos nas suas academias ou nos seus grupos, embora vinculados à tradição recebida pelos seus respectivos mestres. Todo o trabalho realizado, envolvendo processos cognitivos e afetivos na aprendizagem da capoeira, caracteriza a sistemática de uma prática de ensino na qual todos aprendem. Um dos exemplos dessa aprendizagem evidencia-se durante as rodas, quando novos movimentos corporais são criados pelos aprendizes ou novas cantigas são improvisadas em cima de um fundo comum compatível com o inconsciente coletivo da capoeira. Trata-se de um ensino não ligado a uma instituição educacional formal, mas a uma cultura, a cultura da capoeira angola. Ricardo Pamfílio de Souza. Mestre em Etnomusicologia pela UFBA, 1997. Benefícios Físicos e Psicológicos Lilia Benvenuti de Menezes A capoeira é uma atividade física que se utiliza de exercícios dinâmicos, pois há deslocamentos do corpo, envolvendo vários grupos de músculos de maneira contínua e rítmica. No que diz respeito ao tipo de contração muscular, os exercícios são isotônicos e isométricos, além disso necessitam de esforço intenso. Como qualquer atividade física, a capoeira apresenta efeitos fisiológicos – cardiovasculares, pulmonares e musculares. Há que se levar em conta que, além da idade e do sexo, muitos outros fatores influenciam as respostas aos exercícios, tais como a postura, a massa total de músculos envolvidos no esforço, o ambiente, o estado de hidratação e o treino físico do indivíduo. As qualidades físicas desenvolvidas pela capoeira são a flexibilidade, a força, a resistência, a velocidade, o equilíbrio, a agilidade e a coordenação. Considera-se a prática da capoeira um ótimo meio para adquirir flexibilidade, pelo fato de que os esforços extras dos músculos e das articulações exigidos para se ter um desempenho eficaz, ou seja, executar movimentos com amplitudes máximas, acabam por oferecer ao capoeirista a elegância do movimento. A capoeira é também um método satisfatório para se atingir força muscular, tendo em vista que em muitos momentos usa o peso corpóreo como resistência, como nas posições de equilíbrio sobre pescoço e membros. Além disso, por ser uma luta, utiliza-se de golpes de ataque e contraataque, saltos e esquivas, nesse caso empregando-se a resistência contra o adversário. Pode-se obter força, também, ao se praticar saltos, saltitos, paradas de mão e pela movimentação constante entre o jogo de chão e o jogo alto. Há duas formas de se desenvolver a resistência na capoeira: uma na roda e outra nos treinamentos. Nos treinos, utiliza-se a chamada resistência específica, ou seja, a capacidade de executar as habilidades técnicas, com movimentos intensos durante a prática esportiva. Na roda, exige-se do praticante também a resistência geral, a qual considera o nível de condicionamento físico e de coordenação. A resistência é uma qualidade essencial para o capoeirista, pois é por meio dela que poderá demonstrar suas habilidades na roda, devido à sua constante movimentação. Na capoeira exige-se, em muitos momentos, certa velocidade dos movimentos, seja para se deslocar, para mover braços ou pernas rapidamente (golpes, ataques), ou para reagir a estímulos externos (contra-ataques, defesa, esquiva), aprimorando-se os reflexos com agilidade e malícia. Esses movimentos são acíclicos e caracterizados por não serem uniformes e manterem acelerações diferenciadas. Outra qualidade física adquirida com a prática dessa modalidade é o equilíbrio. Durante o jogo de capoeira, muitas vezes o praticante precisa equilibrar-se em um dos pés, em ambos ou até em uma das mãos, com os pés suspensos ou não, durante certo espaço de tempo. O equilíbrio é intensamente desenvolvido em movimentos, como o aú1 e a bananeira2, para ficar em dois exemplos; ou em golpes como o martelo3, a benção4 e a ponteira5. (1) Floreio em que o capoeirista, apoiando as duas mãos no chão, forma uma figura semelhante à letra “A” e, posteriormente, erguendo as pernas, forma uma figura semelhante à letra “U” para, em seguida, retornar ao chão, num movimento semelhante ao da estrela. (2) Floreio em que o capoeirista apóia as mãos no chão e fica parado, verticalmente, de cabeça para baixo. (3) Golpe traumático em que o capoeirista, com o dorso do pé, atinge seu adversário no rosto ou no tronco. (4) Golpe traumatizante e desequilibrante em que o capoeirista levanta uma perna e a impulsiona à frente com violência, a fim de atingir o adversário no tronco com a sola do pé. (5) Golpe traumatizante aplicado com o extremo da planta do pé. Foto: Lília Menezes Foto: Lília Menezes Uma qualidade física estreitamente ligada à capoeira é a agilidade. Como na luta o praticante tem de levar em conta a imprevisibilidade dos golpes, é necessário ser ágil para se defender, atacar, esquivar, fintar e gingar, com destreza e velocidade. A destreza, nesse caso, facilita a aplicação dos golpes nos momentos oportunos e auxilia o praticante a escapar em tempo hábil dos golpes dos adversários. Com relação à velocidade, o jogo rápido, determinado pelo toque do berimbau, exige dos capoeiristas movimentos combinados e sucessivos, executados em várias direções e em alta velocidade, evidenciando alto grau de coordenação e desenvolvendo, ao mesmo tempo, agilidade, destreza e velocidade. Por último, mas nem por isso com menor mérito, o desenvolvimento da coordenação é também muito importante para o praticante da capoeira. Caracterizada pelo estilo, leveza, soltura, naturalidade e performance, a coordenação pode ser melhorada e desenvolvida no jogo, tendo em vista que os praticantes utilizam a destreza e a criatividade sem uma seqüência predeterminada, o que exige o aprimoramento dos reflexos e a coordenação dos movimentos. A capoeira e o desenvolvimento psicológico. São de conhecimento geral os benefícios psicológicos e emocionais da atividade física, pois produz relaxamento e estimulação psíquicos, colabora para a melhoria do humor e Lilia Benvenuti de Menezes. Professora de Educação Física, professora do Grupo Muzenza e bicampeã mundial pela Super Liga Brasileira de Capoeira. Autora do livro “Benefícios Psicofisiológicos da Capoeira”. da auto-estima, ajuda a aliviar a ansiedade e a tensão, reduzindo também os riscos de aparecimento de depressões e do estresse. Não tão conhecida pelos leigos, por outro lado, é a psicofisiologia da capoeira. Em termos gerais, a psicologia pode ser entendida como a ciência que estuda os comportamentos e emoções, e a fisiologia como a ciência que se dedica a estudar como o músculo executa cada movimento. A psicofisiologia, portanto, estuda o efeito emocional e comportamental que o indivíduo experimenta ao executar uma atividade. O foco dessa ciência está na interação entre a atividade motora e as emoções. Esses conceitos podem ser levados para o universo da capoeira, usando como exemplo a ginga. Nesse movimento em que se alternam as pernas cadencialmente, o praticante sente-se mais solto e flexível, sensações positivas que o levarão a aperfeiçoar seu comportamento em situações do seu dia-a-dia: no relacionamento com os amigos, em tomadas de decisões no trabalho, no estudo, etc. A atividade faz com que a pessoa lide com as limitações de seu corpo, passando a conhecer melhor não só essa “vestimenta” física, mas também a si mesmo, tornando-se, conseqüentemente, mais capaz de realizações. Nesse sentido, pode-se compreender porque não só a capoeira, mas a prática de qualquer atividade física, pode ser a causa da melhoria de qualidade de vida ou a cura para determinadas doenças como pressão alta, diabete tipo 2, fibromialgia, estresse e outros, pois a energia empregada ao executar o movimento faz com que o cérebro libere no organismo neutrotransmissores (substâncias químicas), tais como a endorfina, adrenalina e noradrenalina que dão a sensação de bem-estar ao praticante. A capoeira, como outras lutas, além de fortalecer a musculatura do praticante, faz com que a pessoa se sinta mais forte, não só emocionalmente, mas também psiquicamente. Um dos fatos que diferencia a capoeira das demais lutas é possuir movimentos que se assemelham à dança, incluindo o ritmo e a música, o que leva o indivíduo a se sentir mais seguro e livre, já que não executa movimentos rígidos e sim movimentos amplos, alguns inclusive com característica lúdica, contribuindo para que a pessoa trabalhe aspectos pessoais negativos que a incomodam e, ao mesmo tempo, reforce os positivos, percebendo que pode se aperfeiçoar cada dia mais. Capoeira e Inclusão Social Gladson de Oliveira Silva Vinicius Heine A CAPO EIRA NA SCEU D INCLUS A LUTA ÃO EST DE UM Á N POVO O A ESSÊNC EXCLUÍD PRIMIDO IA DA C OS. AO EM BUS APOEIR LONGO CA DE L À MARG A , D JÁ E Q SUA HIS IBERDAD UE ELA EM DA T S E. A QU FOI CON ÓRIA, S OCIEDA DIREITO ESTÃO E D C M E, MAS E P B R ID S E VAL E A POR DA ESTEVE QUE SE O G R R A E UPOS S SSOCIA S CULT MPRE L E AGRE D O U U A ÀQUE GAR PE CIAIS RAIS. PO TARAM SSOAS. LES QU PELA AF R ISSO, ORIGEN N E IR A A V M C IV RODA D AÇÃO D APOEIR ERAM S, IDAD E CAPO A TEM G E SUA ID ES, CRE EIRA, PA SOM DO R DOS RE E A NTIDAD NDE VO RTICIPA BERIMB LIGIOSO E, CAÇÃO M HOM AU, TOD S, COND P A JUSTIÇA R E A N O S IÇ IN S E MULH ÕES EC CLUIR SÃO CID SOCIAL ONÔMIC ERES D ADÃOS . E TODA AS E GR DO MUN S AS AUS DE DO, EM INSTRU BUSCA ÇÃO. AO DE QUA LIDADE DE VIDA E DE Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Um grande mestre não educa apenas para a roda de capoeira. A capoeira desempenha um papel fundamental para promover inclusão, igualdade e cidadania. As diferenças e contradições sociais estão em todas as partes: nas condições de vida, nas oportunidades de estudo e de trabalho, no acesso aos serviços fundamentais de habitação, saúde, segurança, transporte, esporte, lazer e cultura. Tudo isso vem reafirmando historicamente as desigualdades. A capoeira, como produto da cultura popular, pode e deve contribuir para reverter esse quadro e favorecer a aproximação das pessoas, valorizando-as pelo que são, em essência, e não pelas suas condições materiais. Contribui, também, para a construção de espaços democráticos, onde todos tenham direitos e oportunidades iguais; para a compreensão das relações entre passado, presente e futuro; e, sobretudo, para despertar a consciência política e a capacidade de afirmação da cidadania e dos direitos humanos fundamentais. Capoeira e Inclusão Social Clínica de Capoeira CEPEUSP: integração entre grupos O PAPEL DO MESTRE. Professores e mestres são os principais agentes da capoeira. São eles que promovem e transmitem os fundamentos às gerações mais novas, que determinam os princípios, as normas, os valores e a filosofia que nortearão o seu trabalho e que influenciarão o comportamento e a formação dos seus alunos. Os alunos refletem, em grande medida, o exemplo e o modelo apresentado pelo mestre. Por isso, a responsabilidade desses agentes sociais, que trabalham diretamente na formação integral dos seus alunos. O modelo de educação da capoeira é diferenciado do modelo de educação tradicional de uma escola, já que a relação entre mestre e discípulo transcende a sala de aula e integra diferentes aspectos da vida do educando. Um grande mestre não educa apenas para a roda de capoeira. Educa para a vida em suas diferentes dimensões. É preciso conhecer e cuidar de cada aluno o mais profundamente possível, assim como conhecer sua realidade fa- 116 Capoeira Capoeira e Inclusão Social miliar, escolar e comunitária. Saber ouvir é fundamental, do mesmo modo que compartilhar, trocar e estabelecer parceria com os alunos e incentivá-los, apoiá-los, oferecer-lhes suporte emocional e intelectual, sabendo, é claro, que nem sempre é possível resolver todos os problemas do aluno. E essa não deve ser efetivamente a intenção. Trata-se de oferecer uma orientação que o ajude a encontrar o melhor caminho. Ser mestre é, em muitos momentos, ser pai, ser amigo, ser irmão. praticantes. Em todo o Brasil, têm proliferado os trabalhos do terceiro setor em diversos projetos junto às comunidades. A capoeira vem ocupando espaço de destaque nesse contexto e oferecendo contribuições significativas para a inclusão social. Projeto Porta Aberta: Capoeira e Cidadania Evento Projete Liberdade Capoeira: Confraternização FILOSOFIA INCLUSIVA. Inclusão social é uma filosofia de trabalho e, para que ela exista, é preciso ter comprometimento com a causa das minorias, dos menos favorecidos e dos que se sentem excluídos. Nesse sentido, a inclusão social deve ser entendida como um processo, uma construção coletiva, que busca a superação da discriminação, do preconceito, da intolerância, das desigualdades e dos conceitos estereotipados. Cada um de nós carrega em si uma dificuldade, um limite que se manifesta no encontro com o outro. Nesse processo de negociação, é preciso enxergar os pontos de vista pessoais, alheios e coletivos, encontrando respostas equilibradas, que promovam unidade, cooperação e camaradagem. Cada situação do dia a dia oferece-nos oportunidades de trabalhar em prol da inclusão. Na família, na escola, no bairro, no trabalho... é preciso gingar sempre no jogo da inclusão social. PEDAGOGIA DA INCLUSÃO. A capoeira que se propõe ser inclusiva deve ser cuidadosa em seus métodos e em suas bases pedagógicas. Deve promover a reflexão e o exercício diário dos valores. Deve ter como base a afetividade e o estabelecimento de vínculos saudáveis e construtivos que contribuam para a formação da identidade dos seus A fim de que a capoeira se consolide como espaço de inclusão, é necessário que prevaleça a construção do conhecimento, o diálogo e o intercâmbio. É preciso estimular a comunicação, a interação e a participação dos alunos nas ações que envolvem a capoeira como elemento vivo da sua comunidade. É preciso entendê-la a partir dos referenciais históricos, sociais e culturais sobre os quais foi construída. Desde seus primórdios até os dias atuais, a capoeira construiu sua identidade por meio da luta e da resistência social contra as desigualdades e injustiças. É essencial respeitar o aluno e tudo o que ele traz consigo na sua bagagem de vida. Considerar as particularidades de cada aluno é dialogar com a sua identidade, sua história de vida e sua visão de mundo. Aceitação, tolerância e respeito às diferenças são pilares essenciais para a construção de uma cultura de paz para o nosso planeta. É preciso estimular a integração, incentivar potenciais e capacidades. Para ser capoeira é preciso ter vontade de aprender, assimilar as regras e a dinâmica do jogo e acreditar em si mesmo. A capoeira aceita todos. Cada um com sua contribuição, cada um com o seu toque, cada um com a sua ginga e sua presença. Na capoeira é necessário que prevaleça o princípio da cooperação acima do da competição. Cooperar significa apoiar, sustentar, compartilhar, somar. Significa que há sempre espaço e recursos para todos. Pode-se trabalhar, construir e ganhar em conjunto. Acima de tudo, é preciso que prevaleça o “jogar com” e não o “jogar contra” para que 117 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Gradativamente, a capoeira vem promovendo inclusão de pessoas que, até bem pouco tempo, estavam distantes e separadas da sua prática. a capoeira realmente cumpra seu papel de incluir pessoas com diferentes condições sociais. Um trabalho com essas características tem como um dos seus objetivos principais a construção e o desenvolvimento de cidadãos conscientes, verdadeiros líderes comunitários, capazes de promover transformação do seu entorno imediato e do seu país como um todo. Cidadãos com capacidade de tomar decisões que promovam o bem estar e a justiça para a sociedade em que vivem. “Capoeira é para homem, menino e mulher” Capoeira e Inclusão Social Evento CEPEUSP: Dinâmica com os pais Gradativamente, a capoeira vem promovendo inclusão de pessoas que, até bem pouco tempo, estavam distantes e separadas da sua prática. A presença das mulheres, por exemplo, era um acontecimento raro. Havia muito poucas. As que se arriscavam a entrar na roda ganhavam notoriedade. Aos olhos do preconceito, capoeira sempre foi coisa para homens, “como é possível uma mulher pensar em misturar-se neste ambiente?”. Nos últimos anos, essa realidade vem sendo modificada radicalmente e, em alguns grupos, as mulheres chegam a ser maioria nas aulas e nas rodas. São realizados encontros femininos de capoeira, nos quais são discutidos temas relacionados com a afirmação e a valorização da mulher na e por meio da capoeira. Na capoeira não existe distinção entre roda feminina e masculina. São iguais as possibilidades para mulheres e homens, que jogam, cantam e tocam de igual para igual. Existem respeito e integração de gênero. CAPOEIRA DOS OITO AOS OITENTA. Crianças a partir de dois anos de idade tem iniciado sua prática em escolas no Brasil e no mundo. Em muitos centros educacionais, 118 Capoeira Capoeira e Inclusão Social tem sido reconhecido todo o potencial da capoeira como instrumento de desenvolvimento integral do ser humano. Mais recentemente, importantes trabalhos foram realizados com pessoas idosas, que têm demonstrado ser a modalidade uma excelente aliada na promoção da sua qualidade de vida. Cada um joga dentro de suas capacidades, dos seus limites e muitas vezes esses limites são mais amplos do que se imagina. E mesmo quem acreditava não ser capaz, pode se surpreender com as possibilidades que a capoeira oferece em termos de movimentos e de convivência social. Além do jogo em si, com seus movimentos de ataque, defesa e acrobacias, o que mais atrai os idosos à prática da capoeira é o seu lado lúdico, artístico e sociável. O movimento espontâneo, alegre e prazeroso é essencial. Pertencer a um grupo, estar entre amigos, relacionar-se e interagir com o outro são aspectos fundamentais para a saúde integral do ser humano em todas as idades e, especialmente, na terceira idade. CAPOEIRA ESPECIAL. Quando falamos em inclusão não podemos deixar de falar dos portadores de necessidades especiais, entre essas o que é mais importante: a capacidade de acreditar na vida e de superar limites, dar a volta por cima, desenvolver o seu potencial e alcançar seus objetivos. Também para essas pessoas, a capoeira tem representado um grande instrumento de desenvolvimento biológico, psíquico e social. Os portadores de necessidades especiais conseguem aderir à prática da capoeira, seja realizando movimentos, tocando ou cantando. Muitas novas metodologias têm sido desenvolvidas para o ensino da capoeira para essa população. Cada vez mais, vemos a capacidade de inclusão da capoeira ser ampliada. Há grupos de trabalhos constituídos exclusivamente por portadores de necessidades especiais e há grupos heterogêneos compartilhando o mesmo espaço, o que tem trazido resultados surpreendentes. Pessoas são especiais por diversos motivos, mas principalmente por terem um nível de sensibilidade diferenciado. O que em um primeiro momento pode gerar uma limitação, na verdade passa a ser um desafio, que, quando superado, traz felicidade e realização pessoal. CAPACITAÇÃO PROFISSIONAL. Outro elemento essencial dentro do processo de inclusão por meio da capoeira é a necessidade de capacitar os seus agentes (mestres, contramestres, professores e monitores) e de oferecer conhecimentos e metodologias que aumentem a capacidade de trabalho desses profissionais. Entre os capoeiristas, existem pessoas muito criativas, inventivas e com grande força de vontade e capacidade realizadora, que, apesar dos poucos recursos materiais, desenvolvem trabalhos extraordinários, dignos de aplausos, reconhecimento e, principalmente, maior incentivo. No Brasil, o Governo vem reconhecendo cada vez mais o potencial da capoeira em promover cidadania e vem oferecendo recursos para programas que envolvem a modalidade. No entanto, dada a dimensão e o potencial da capoeira, as ações ainda têm muito a crescer. É preciso atuar de forma mais consistente, produzindo conhecimento e promovendo ações sistemáticas, planejadas e continuadas de capacitação e educação dos seus educadores. O que se vê são iniciativas isoladas, dentro de alguns grupos. Existe pouca articulação e troca de informações. Muito do que se faz é produto da criatividade e da iniciativa individual de alguns mestres e professores de capoeira. Ações integradas entre Governo, universidades e a comunidade da capoeira devem ser priorizadas. CAPOEIRA EM FAMÍLIA. No processo de educação e inclusão por meio da capoeira, a presença e a participação da família são de grande importância. Pais, irmãos, tios, avós, primos e filhos são o núcleo de referência mais próximo ao aluno. É na família que o aluno tem suas primeiras experiências de vida. Em grande parte, o que ele vive no seio da família influenciará muito o seu caráter, os seus sentimentos, comportamentos e atitudes. Evento CEPEUSP: a Ludicidade na Capoeira Infelizmente, sabemos que a realidade de muitas famílias, hoje em dia, é de desestruturação e conflito. Em especial, os conflitos entre os pais afetam fortemente as crianças, que podem desenvolver comportamentos inadequados e inabilidades sociais em função desses eventos. Agressividade, dificuldade de concentração, déficit cognitivo, revolta, dificuldade de integrar-se em grupos, de aceitar regras, baixa auto-estima, hostilidade com pessoas mais ve- 119 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil A luta da capoeira vem inspirando milhares de brasileiros a lutarem pela vida, por si mesmos e por suas comunidades. O objetivo principal do projeto é a transformação por meio da prática de manifestações culturais. É a formação de cidadãos honestos, sensíveis e participativos. Capoeira e Inclusão Social lhas podem ser reações observáveis em crianças que crescem em lares com carência de afetividade e harmonia. No entanto, o fato de terem enfrentado dificuldades dentro de casa não deve significar problemas para as crianças. Ao encontrar e conviver com outro ambiente, onde exista amor, respeito, diálogo, disciplina e compreensão, a criança desperta em si mesma o amor próprio e a autoestima, desenvolvendo comportamentos pessoais e sociais adequados. Passa a agir com ética e com equilíbrio tanto nas suas relações em família quanto na comunidade. É exatamente neste ponto que a capoeira pode cumprir um papel decisivo na vida de crianças e jovens, contribuindo para a sua inclusão social ao representar esse espaço de reestruturação em suas vidas. Para tanto, é preciso que haja diálogo e confiança do mestre para com os alunos, dos alunos para com o mestre e dos alunos para com os seus pares. INCLUSÃO MUNDIAL. A capoeira tem alcançado dimensões internacionais. Nos quatro cantos do mundo, em centenas de países, o som do berimbau se faz presente. Rússia, Japão, Alemanha, África do Sul, Peru e EUA há muito tempo entram na roda para jogar. Também no Brasil a capoeira demonstra uma ampla capacidade de incluir. Os intercâmbios entre capoeiristas de diferentes nacionalidades são uma constante. A cada ano, pessoas no mundo inteiro viajam para outros países com o propósito de trocar experiências a respeito da capoeira. Especialmente o Brasil recebe um grande contingente de adeptos, em busca de novos conhecimentos e de muita sabedoria. UM BEM-SUCEDIDO EXEMPLO: PROJETO “PORTA ABERTA”. Em janeiro de 2001, teve inicio no distrito do Capão Redondo, periferia da zona sul de São Paulo o projeto “Porta Aberta”, que tem como atividade principal a capoeira. O projeto surgiu de uma parceria entre a Secretaria de Saúde do Município de São Paulo, a Associação Palas Athena do Brasil e a Projete Liberdade Capoeira, com objetivo de elevar a auto-estima de crianças e jovens e reduzir os índices de violência na comunidade do Capão. O “Porta Aberta” é um exemplo dos muitos projetos sociais que se proliferam atualmente no Brasil, demonstrando a vocação da nossa sociedade para oferecer soluções para os seus problemas sociais. A luta da capoeira vem inspirando milhares de brasileiros a lutarem pela vida, por si mesmos e por suas comunidades. O objetivo principal do projeto é a transformação por meio da prática de manifestações culturais. É a formação de cidadãos honestos, sensíveis e participativos. O distrito do Capão Redondo é um grande exemplo do poder da mobilização da sociedade civil. Ao longo dos últimos anos, os índices de violência e criminalidade vêm caindo constantemente, dando lugar à vida, ao respeito e 120 Capoeira Capoeira e Inclusão Social Projeto Porta Aberta: Capoeira e Inclusão Social Referências Bibliográficas SILVA, Gladson de Oliveira. Capoeira: do Engenho à Universidade. 3ª ed. São Paulo, 2003. _______________________. Revista de Capoeira. Editora Três. São Paulo, 1983. SILVA, Gladson de Oliveira & Heine Vinicius. Capoeira um Instrumento Psicomotor para a Cidadania. São Paulo, 2007 (no prelo). LAMA, Dalai. O Caminho da Tranqüilidade. São Paulo: Sextant, 2000. Todas as fotos são de propriedade dos autores e estão na página www.projeteliberdadecapoeira.com.br a paz. O “Porta Aberta” é uma gota no oceano que, com certeza, faz muita diferença, pois, se ao menos um dos jovens que participam do projeto tiverem seus corações tocados e suas consciências sensibilizadas em prol do bem e da dignidade, a missão terá sido realizada. Ao longo dos seus sete anos de existência, o projeto passou por diversos momentos e algumas reestruturações. Muitos exemplos de transformação pessoal positiva têm sido observados na vida dos alunos. A sociedade civil desempenha um papel fundamental na transformação da realidade do Brasil. Os grupos de capoeira são instituições civis organizadas e têm um grande poder de atuação frente às pessoas que deles participam. Mestres de capoeira são líderes e formadores de opinião e podem contribuir positivamente para despertar uma sociedade mais consciente, tolerante e fraterna. O processo de transformação já começou e deve continuar, promovendo cada vez mais inclusão, justiça e fraternidade entre os homens e entre as nações. Iê volta do mundo camará! Gladson de Oliveira Silva. Professor de Educação Física e mestre de capoeira do Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo (CEPEUSP) e do Conjunto Desportivo Baby Barioni da Secretaria de Esporte Lazer e Turismo do Estado de São Paulo. Professor Coordenador do Projeto Porta Aberta – que trabalha com crianças e adolescentes carentes e portadores de necessidades especiais no distrito do Capão Redondo, em São Paulo. Diretor da Projete Liberdade Capoeira – Escola de Capoeira com núcleos de trabalho em São Paulo, Rio Grande do Sul, Argentina, Peru e Espanha. Ministrou cursos em diversos estados do Brasil e em outros países, em universidades e centros educacionais. Vinicius Heine. Professor de Educação Física e de Capoeira do Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo (CEPEUSP). Professor coordenador do Projeto Porta Aberta. Ministrou diversos cursos e palestras sobre a capoeira em diversos estados do Brasil e em outros países. Coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas da Capoeira (CEPECAP). A internacionalização da capoeira José Luiz Cirqueira Falcão ROS RE G E N E AD É A PRÁTIC M U XXI, ELA O O M L O U C C É A RAV DO S A ONFIGU E TRINT PERTAR C S O E E T S D N E A O DE C E, N POEIR M MAIS ALMENT E XX A CA U T IS O A L IA , U C IL C SÉ S SO BRAS ÍCIO DO CLASSE ÃO NO E IN ID S O V IA N A N R E T S SE ESC ERENTE TOS DA IF R D E E IB L D S CÉM SSOA POR PE A D A IC PRAT O. O MUND D S E ÍS PA Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Nos últimos anos, muitos capoeiras1 saíram do Brasil em busca de melhores condições de vida e de reconhecimento. Nesse movimento, além de contribuírem, efetivamente, com o processo de expansão de sua arte pelo mundo, colaboram com a divulgação da cultura brasileira no exterior por meio de discursos que realçam a capoeira à condição de prática “exótica”, “tropical”, “brasileiríssima”. A internacionalização da capoeira Nos últimos anos, muitos capoeiras1 saíram do Brasil em busca de melhores condições de vida e de reconhecimento. Nesse movimento, além de contribuírem, efetivamente, com o processo de expansão de sua arte pelo mundo, colaboram com a divulgação da cultura brasileira no exterior por meio de discursos que realçam a capoeira à condição de prática “exótica”, “tropical”, “brasileiríssima”. Se à época da escravidão no Brasil o sangue jorrava da caneta do feitor2 em sistemáticas investidas contra a capoeira3, nos últimos anos, ela passou a receber do poder público um tratamento bem diferente, materializado por algumas iniciativas de reconhecimento e valorização desse importante símbolo da cultura brasileira. Em comparação com os dias atuais, os capoeiras de outrora tinham uma relação bem diferente com sua prática. Porém, assim como hoje, não constituíam um bloco único e não a cultivavam com a mesma finalidade. Se no Rio de Janeiro ela teve uma vinculação forte com as maltas, as brigas de rua e a política do Segundo Reinado, em Salvador, ela tinha uma relação amistosa com os botecos, com as quitandas, que, por sua vez, se beneficiavam de suas artísticas manobras para atrair fregueses. Antigamente, os trapicheiros, carroceiros, estivadores, carregadores, vendedores ambulantes e também desempregados reuniam-se próximo aos botecos, praças e largos para tagarelar, beber e jogar, utilizando a capoeira como atividade de lazer ou de disputa de espaço. Hoje, é comum ver profissionais de diferentes áreas utilizando a capoeira como atividade de lazer. Muitos utilizam-na como trabalho, como uma opção profissional, como um modo de sobreviver. Somado a esse contingente, encontra-se expressivo segmento de jovens que vislumbra, na capoeira, um campo de emprego nem sempre possível nas instituições e empresas convencionais. Mesmo de forma precária, mas com grandes pitadas de criatividade, esses profissionais utilizam-se dessa manifestação cultural como meio de obterem recursos. Buscam as mais inusitadas possibilidades para escapar da sina daqueles que, considerados pela maioria como os grandes mestres da capoeira, morreram em situação de miséria absoluta. Mestres como Pastinha, Bimba, Valdemar da Li- (1) Para designar os (as) agentes da capoeira (praticantes, mestres (as), professores (as), militantes etc.), utilizaremos o termo capoeira em vez de capoeirista, por entendermos que o primeiro tem, na cultura, o seu campo privilegiado de ação, enquanto que capoeirista nos sugere uma intervenção mais específica, mais especializada. (2) Em alusão a uma cantiga do Mestre Toni Vargas. (3) De acordo com Rego (1968), a capoeira foi tratada durante muito tempo como caso de polícia, “que dormia e acordava no calcanhar dos capoeiras” (p. 43). Alguns dos mais consistentes estudos sobre a história da capoeira foram realizados a partir da documentação existente nos arquivos da polícia brasileira. Ver Pires (1996) e Soares (1994 e 2001). (4) Mestre Pastinha (1889-1981) - principal guardião da Capoeira Angola, fundou em 1941 o Centro Cultural e Esportivo de Capoeira Angola, em Salvador. Faleceu cego e esquecido. Mestre Bimba (1899 – 1974) fundou a primeira academia de capoeira do Brasil e foi o criador da Capoeira Regional, um estilo de capoeira mundialmente conhecido. Faleceu pobre, lutando por melhores condições de vida, em Goiânia-GO. Mestre Waldemar da Liberdade conduziu nas décadas de 40 e 50, aos domingos, a roda de capoeira que se tornou o mais importante ponto de encontro dos capoeiras de Salvador, onde o escritor Jorge Amado e o fotógrafo Pierre Verger “se alimentavam culturalmente” (ABREU, 2003, p. 43). Morreu, em 1990, na pobreza, como tantos outros capoeiras célebres. 124 berdade e outros,4 que “experimentaram a encruzilhada da fome com a fama” (ABREU, 2003, p. 14), apesar de se tornarem os grandes referenciais da capoeiragem no século XX, são, para as novas gerações de capoeiras, produtos de uma condição de exploração da qual estas tentam se esquivar. A internacionalização da capoeira: de símbolo de brasilidade a patrimônio cultural da humanidade. Quando muitos capoeiras brasileiros começaram a sair do País, a partir do início da década de 1970, para “ganhar o mundo” e trabalhar em grupos folclóricos no exterior, em busca de apoio e reconhecimento, não tinham idéia da magnitude que esse fenômeno viria a ter três décadas mais tarde. No início, tudo era muito difícil e a rua era, freqüentemente, o único espaço que eles encontravam para expressar sua arte ou para manter contatos com outros artistas do cotidiano, como palhaços e malabaristas das mais diversas origens. Nas grandes cidades dos Estados Unidos e da Europa, eles começaram a dar visibilidade a essa “arte tropical”, influenciando outros movimentos da cultura de rua, como o break, por exemplo, que surgiu nos Estados Unidos, na década de 1980 e, logo depois, espalhou-se pelo mundo. Certamente, nessa dança de passos interrompidos e acrobacias desconcertantes existem muitos movimentos herdados da capoeira, como o giro de ponta-cabeça (o pião de cabeça). Em Nova York, os capoeiras brasileiros costumam reunir-se em praças e avenidas e, freqüentemente, são vistos em documentários de televisão e espetáculos culturais. Em 1989, o Jornal do Brasil, em matéria intitulada “Capoeira para americano jogar”, já revelava os primeiros sintomas desse processo. Transplantada para os EUA pelos brasileiros, a capoeira está crescendo em popularidade e pode ser vista em casas noturnas, exibições, competições, escolas, e até em filmes (...) A capoeira é como o jazz americano em seu início (...) é um beat, um swing, uma pulsação, um movimento. E a maneira como as pessoas se movimentam, pensam e se comportam na capoeira é a maneira como se movimentam, pensam e se comportam em suas vidas (WEELOCK, 1989, p. 8). Uma questão importante se coloca neste aspecto. Quais as principais características e contribuições desse movimento de internacionalização para o desenvolvimento e valorização da capoeira? O principal motivo da saída de uma avalanche de mestres, professores e iniciados em capoeira para o exterior é determinado por fatores econômicos e está relacionado com a busca de reconhecimento e prestígio. Se no Brasil a mensalidade para se fazer aulas de capoeira é relativamente baixo, nas principais cidades americanas e européias esse valor é significativamente mais alto. Foto: Laura Campos Esse movimento de expansão traz conseqüências inusitadas para a capoeira e é visto por muitos como algo sedutor, embora venha causando inquietações por parte de alguns preocupados com a “manutenção” das suas tradições. Se, por um lado, muitos alegam que a expansão leva a certo distanciamento dos princípios e valores que delegaram à capoeira um emblema de “luta de resistência” contra a exploração, por outro, muitos consideram que esse processo está contribuindo para a valorização das referências culturais africanas e para despertar um interesse maior pelo Brasil e pela cultura brasileira. Muitos autores afirmam que, nos EUA, a capoeira ajuda, também, a revitalizar o elo entre os negros americanos e a África, cuja relação foi abalada pelo violento processo de segregação desencadeado em séculos passados. Nesse sentido, muitos americanos vêm para o Brasil com o objetivo de “beber na fonte” e procuram conhecer os mestres mais representativos dessa arte-luta. Muitos espaços da cidade de Salvador, considerada a “Meca da Capoeira”, transformaram-se em verdadeiros templos de peregrinação dos capoeiras de todo o mundo, como a Academia de João Pequeno5, no Forte Santo Antônio, ou a Fundação Mestre Bimba, no Pelourinho. Influenciadas por outras perspectivas, expressivas levas de capoeiras estrangeiros desembarcam nos aeroportos 125 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil Influenciadas por outras perspectivas, expressivas levas de capoeiras estrangeiros desembarcam nos aeroportos brasileiros para competir nos diversos campeonatos organizados por grupos com sede no Brasil e que possuem filiais em outros países6. A despeito das freqüentes críticas a essa forma de tratamento, esses campeonatos têm contribuído bastante para a divulgação da capoeira no exterior. A internacionalização da capoeira brasileiros para competir nos diversos campeonatos organizados por grupos com sede no Brasil e que possuem filiais em outros países6. A despeito das freqüentes críticas a essa forma de tratamento, esses campeonatos têm contribuído bastante para a divulgação da capoeira no exterior. Convém destacar que o grande interesse dos estrangeiros pela capoeira se desdobra imediatamente em dois desejos: conhecer o Brasil e falar o português. Muitos mestres e professores que ministram aulas no exterior, em busca de um apelo ao mais “tradicional”, fazem questão de se expressarem no idioma português. Na luta por uma identidade baseada na tradição afro-brasileira, muitos professores chegam a proibir nos seus trabalhos que se façam traduções de nomes de golpes, de movimentos, de cantigas e de instrumentos de capoeira. Falar português nas aulas de capoeira é um requisito que opera como uma espécie de “selo de qualidade” e vem contribuindo para abrir campos de trabalhos antes impensáveis. O Hunter College, uma das mais tradicionais faculdades de Nova York, já oferece cursos regulares de português, em decorrência da demanda provocada pela capoeira (NUNES, 2001, p. 3). Entretanto, ao mesmo tempo em que o ex-frentista de posto de gasolina, o brasileiro Mestre João Grande, radicado em Nova York há mais de dez anos e ganhador do título de Doutor Honoris Causa do Upsala College, de Nova Jersey, em 1996, ministra aulas em sua Academia no West Village, num autêntico português da Bahia, por outro lado, muitos workshops são traduzidos para outras línguas (inglês principalmente), aqui mesmo no Brasil, como é o caso do “Capoeirando”, evento organizado por renomados mestres e realizado durante o verão em pontos turísticos estratégicos do território brasileiro, para onde se dirige expressiva massa de estrangeiros em busca da “autêntica” capoeira. Nesse complexo movimento de internacionalização, a capoeira vem conquistando espaço nos mais diversos rincões do planeta. Além da internet, os filmes também têm contribuído para esse processo, sendo o primeiro deles, o brasileiro “O Pagador de Promessas”, que ganhou prêmios internacionais. Entretanto, foram as produções norte-americanas, Only the Strong Survive (no Brasil recebeu o título agressivo de “Esporte Sangrento”) e Roof Tops, que conseguiram emplacar maior difusão da arte-luta. O movimento de difusão da capoeira no contexto mundial é mais visível e intenso em direção aos Estados Unidos e à Europa. Com raras exceções comprometidas em desenvolver trabalhos de “retorno” dessa arte-luta à (5) O Mestre João Pequeno é o professor de capoeira mais antigo do Brasil em atividade, atualmente (2007), está com 89 anos. No dia 18 de dezembro de 2003, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Uberlândia-MG. (6) Grandes grupos de capoeira realizam, atualmente, encontros internacionais, com a presença de mestres e discípulos de vários países, como é o caso da Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte Capoeira (Abada-Capoeira), que é uma entidade que congrega mais de 30 mil capoeiras em 26 países. 126 Capoeira A internacionalização da capoeira África, a maioria das iniciativas destina-se aos chamados países desenvolvidos. O fato é que a capoeira ganhou o mundo e se transformou num dos veículos mais significativos de inserção da cultura brasileira no exterior, uma exuberante propaganda do Brasil. Em 2003, já existiam escolas de capoeira em todos os 50 estados norte-americanos. Somente em Nova York eram 15 escolas. O surpreendente é que a demanda por aulas de capoeira naquele país está concentrada, principalmente, nas escolas públicas. Essa prática tem sido bem cotada como atividade capaz de atuar na recuperação da auto-estima e da confiança de jovens com problemas de aprendizado e de relacionamento, constituindo-se, assim, numa “porta de salvação” para jovens vítimas de violência ou envolvidos com drogas ou álcool (NUNES, 2001). O filme Only the Strong Survive explora essa problemática. Entretanto, não é somente por meio das escolas públicas que a capoeira vem conquistando os norte-americanos. Ela vem sendo usada também para “treinar” atores e atrizes de filmes de ação, como é o caso de Halle Berry, atriz principal do filme Catwoman. Para o diretor do filme, a capoeira contém movimentos vigorosos, mas com suingue. “Para os americanos, a capoeira tem um atrativo forte, além do fato de funcionar como [...] defesa pessoal e fazer bem à saúde. Ela é exótica, o que confere um certo charme a quem a pratica” (BERGAMO, 2004, p. 58). Outros filmes produzidos em Hollywood também divulgam a capoeira a partir de algumas cenas como, por exemplo, Meet the Fockers (2004), Ocean’s Twelve (2004), The Rundown, The Quest, Harry Potter and the Goblet of Fire e Batman. Videogames como Tekken 3, 4 e 5, Eternal Champions, Dark Resurrection, Street Fighter III, Fatal Fury, Rage of the Dragons, World of Warcraft, Bust a Groove, Pokémon Hitmontop, The Matrix, WWE Smack Down! e Here Comes the Pain também contribuem para a disseminação da capoeira nos quatro cantos do mundo. Como conseqüência desse processo, algumas “bandeiras” cultivadas e defendidas por seus precursores, como a oralidade, o improviso, a “mandinga”, a resistência cultural, são preteridas, para darem lugar a outras categorias mais “sintonizadas” com o momento atual, tais como: “mercadoria étnica”, “folia de espírito”, “malhação” e “espetacularização” etc. (VASSALLO, 2003b). Exemplos de experiências significativas com capoeira no exterior. Importantes instituições de ensino e pesquisa, em especial faculdades de Educação Física, contemplam a capoeira como atividade extracurricular. Em algumas delas, existem trabalhos sistematizados de capoeira que funcionam como projetos de extensão em que professores brasileiros são contratados por tempo determinado para ministrarem atividades aos que se interessarem, como é o caso dos projetos do Estádio Universitário da Universi- Oficina de capoeira em Oslo na Noruega – 16/08/03 (J. L. C. Falcão) dade de Lisboa, da Universidade de Varsóvia, da Universidade de Oslo, da Universidade de Bristol e da Universidade Técnica de Lisboa. Importantes eventos de capoeira de âmbito internacional acontecem em várias partes do mundo. Esses eventos permitem um intercâmbio significativo entre as diversas propostas de trato com essa manifestação. Embora alguns capoeiras brasileiros tenham realizado apresentações pela Europa desde 1951, o primeiro trabalho de ensino sistematizado de capoeira no Velho Continente foi empreendido pelo reconhecido Mestre Nestor Capoeira7, em 1971, na London School of Contemporary Dance, Londres, Inglaterra. Ao longo dos últimos trinta anos, o movimento da capoeira na Europa intensificou-se significativamente, fazendo com que ela adquirisse expressiva densidade, mas, no começo, tudo era difícil pela falta de informação sobre o que realmente significava esse misto de dança-luta-jogo. Mestre Umoi, o qual há treze anos reside em Portugal, destacou que, no início, teve de dar aula na rua para convencer as crianças a fazerem capoeira. Dizia que iria ensiná-las a “dar pernadas”. Segundo ele, precisou utilizar essa artimanha para levar os “miúdos” a se interessarem pelas “pernadas do Brasil”. Quando eu cheguei aqui, em agosto de 1990, pelo menos na região da Grande Lisboa, onde eu me instalei, não tinha capoeira. Ninguém tinha conhecimento do que era capoeira e, claro, eu vim pra cá na tentativa mesmo de ensinar a capoeira. Comecei a procurar as academias aqui e a primeira reação dos donos das (7) Nestor Capoeira foi iniciado por Mestre Leopoldina e graduou-se corda vermelha pelo Grupo Senzala em 1969. É autor de vários livros e artigos de capoeira. É mestre e doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi ator principal do filme “Cordão de Ouro”, produzido pela Embrafilme (hoje disponível em vídeo pela Globovídeo), sob a direção de A. C. Fontoura, em 1978. 127 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil É verdade que a capoeira, com esse “carimbo” de Brasil embutido em suas cantigas e comportamentos, ramificou-se e expandiu-se significativamente e tem servido, atualmente, como veículo de agregação de povos de vários cantos do mundo, adquirindo, assim, uma identidade supranacional. A internacionalização da capoeira academias geralmente era que não queriam nada com galinheiros aqui em Portugal, porque capoeira aqui em Portugal significa galinheiro. Então isso dificultou muito o início do trabalho aqui (Mestre Umoi, comunicação pessoal, 27 de junho de 2003)8. A dedicação de muitos mestres e professores deu continuidade à iniciativa implementada por Nestor Capoeira e contribuiu para que essa manifestação adquirisse densidade, diversidade, visibilidade e prestígio social. Na Europa, essa densidade expressa-se pelo rico acervo cultural embutido nos seus gestos, cantos e história, os quais extrapolam as referências de sua baianidade e edificam uma brasilidade, embora idealizada, à medida que não leva em consideração as evidentes diferenças culturais (e econômicas) presentes no Brasil. O fato é que essa mobilidade, expressada pela saída de capoeiras de diferentes cidades brasileiras em direção ao Velho Mundo e à América do Norte, contribui para ampliar as referências culturais dessa manifestação e ornamentar esse carimbo de brasilidade. Um professor norueguês afirma que: “hoje em dia, as pessoas já conhecem bem o que é a capoeira e querem a capoeira (...). Quem procura a capoeira já tem uma idéia que é uma coisa brasileira e querem isso!” (Professor Torcha, comunicação pessoal, Oslo, Noruega, 18 de agosto de 2003). É verdade que a capoeira, com esse “carimbo” de Brasil embutido em suas cantigas e comportamentos, ramificouse e expandiu-se significativamente e tem servido, atualmente, como veículo de agregação de povos de vários cantos do mundo, adquirindo, assim, uma identidade supranacional. O Mestre Umoi, já citado, afirma: A capoeira está quebrando a barreira do oceano que divide o Brasil, a África, a Europa, a América do Norte. A capoeira é do capoeirista. E a gente já tem muitos bons capoeiristas aqui na Europa. Você vê muito angoleiro alemão jogando uma Angola tão boa e até melhor do que muito capoeirista que nunca saiu de Salvador, que nunca saiu do Brasil. Aí você fala. Ah! é porque é alemão? Não, é porque é capoeirista (Mestre Umoi, comunicação pessoal, Amsterdã, 18 de agosto de 2003). A experiência de professores de capoeira brasileiros na Europa. A maioria dos mestres e professores de capoeira que atua na Europa é proveniente do Nordeste Brasileiro, em especial das cidades de Recife e Salvador, mas existem professores de praticamente todos os (8) Esse e outros depoimentos presentes nesse artigo foram tomados por ocasião de Estágio de Doutoramento realizado pelo autor entre abril e agosto de 2003, na Europa, e serviram como fonte para a elaboração do quarto capítulo da tese de Doutorado intitulada: O Jogo da Capoeira em Jogo e a Construção da Práxis Capoeirana (FALCÃO, 2004). 128 Capoeira A internacionalização da capoeira estados brasileiros trabalhando com esta manifestação no Velho Continente. Desde o início da década de 1970, Paris vem recebendo muitos capoeiras de diversos grupos brasileiros. A professora Úrsula, radicada na França há mais de doze anos, argumenta que quando lá chegou poucas pessoas conheciam a capoeira. Atualmente, apesar de alguns despreparados que se dizem mestres, sem nunca terem passado por uma academia, a capoeira já é bastante difundida e, freqüentemente, “as mulheres são maioria nas aulas” (CARVALHO, 2002, p. 17). Essa condição laboral, por vezes clandestina, em que se inserem os brasileiros responsáveis pela disseminação da capoeira no exterior, diferencia-se, frontalmente, das carreiras previsíveis, de rotinas estáveis que, até pouco tempo, caracterizavam os postos convencionais de trabalho. No entanto, são essas as possibilidades concretas que se apresentam e elas são agarradas com “unhas e dentes”, na forma de verdadeiras aventuras pelos jovens “profissionais da capoeira”. Por mais precárias que possam se apresentar, essas opções concretizam-se efetivamente e terminam por garantir a manutenção da vida da maioria desses “profissionais” que vivem distantes de sua terra natal, contribuindo, direta ou indiretamente, para substancializar a capoeira com fortes doses de aleatoriedade e de improvisação. A luta pela sobrevivência e o desejo de reconhecimento a partir de novas experiências são os principais motivos que levam tantos professores de capoeira a deixar o Brasil e a se “jogar” em promessas incertas de “vida boa” no exterior. Entretanto, o que eles freqüentemente encontram são opções de trabalhos dispersos, desregularizados e fluídos. Geralmente atuam como free lancers, como alternativa para “ganhar a vida”. A chegada dos professores de capoeira na Europa geralmente é controvertida. O depoimento do Mestre Matias, mineiro, que se mudou para a Suíça em 1989 e, atualmente, desenvolve trabalhos em várias cidades daquele país, faz coro com muitas outras experiências de mestres e professores que buscaram melhores horizontes. Foi muito dura a chegada na Suíça, ralei muito, toquei berimbau na neve, nas estações de trem, entendeu, porque os capoeiristas que tinham lá não faziam roda de rua. Eu ia para a rua sozinho, às vezes tocava o meu berimbau, tentava saltar, às vezes fazia coisas malucas e também era um modo de me libertar. O berimbau era o meu companheiro. Era o modo de eu me livrar daquela angústia, daquela saudade, daquela vontade de estar no Brasil, no meio dos alunos, dos colegas. Aquele país frio, você chega e toma aquele choque, não conhece ninguém, porque a língua é outra. Então foi uma barra enorme Roda de capoeira numa praça de Oslo – Noruega 17/08/03 (J. L. C. Falcão) que eu enfrentei, mas, graças a Deus, eu superei tudo isso e hoje eu não vou dizer que falo perfeito o alemão, mas falo bem (Mestre Matias, comunicação pessoal, Madrid – Espanha, 29 de junho de 2003). O fato é que, a despeito de freqüentes desesperos e até deportações, muitos professores de capoeira vislumbram a possibilidade de conquistar no exterior o status e o reconhecimento que dificilmente conseguiriam no Brasil. “Eu sou um pássaro”, “ninguém me segura”, “já me sinto lá”, eram frases prontas, freqüentemente proferidas por um dinâmico professor recifense em terras lusitanas, que vem levando a vida como uma grande aventura mesclada de flutuações e incertezas nebulosas, mas com muita arte e alegria contagiante. As dificuldades para encontrar emprego com estabilidade garantida por benefícios assistenciais fazem com que os professores de capoeira na Europa, rotulados pela, nem sempre confortável, condição de imigrante, se “desenrasquem” recorrendo a expedientes e trabalhos precários e terminem por arranjar dinheiro nos limites do legal, do legítimo, do formal e, com isso, vão construindo trajetórias não-lineares e imprevisíveis em busca de ascensão e prestígio social. Misturando sonhos e desejos com inquietações e temores, esses professores vêm tecendo novos horizontes para o campo conhecido como educação não-formal, que está ganhando espaço na sociedade em geral, principalmente em relação às camadas sociais com menor poder aquisitivo. A experiência do Mestre Umoi ratifica essa afirmação. 129 A idéia do trabalho social é uma idéia que me apaixona. Meu trabalho sempre foi vinculado com a periferia de Sobradinho, em Brasília, e aqui não foi diferente. (...) eu entrei como estagi- Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil ário nesse reformatório em Caxias, na Linha de Cascais, que é um centro de correção. É como se fosse um presídio de menores. Tinha lá uma grande problemática, com muito aluno africano, com muito aluno português, mas tinha até rivalidades raciais mesmo. Eu apresentei lá o projeto como estagiário. Felizmente a diretora já tinha passado vinte anos no Brasil. Conseqüentemente, conhecia capoeira e quando leu meu projeto, não associou a galinheiro, a galinha, nem nada, e isso foi uma coisa muito boa. Ela me aceitou como estagiário. De estagiário me contratou e no final do meu curso eu já fui contratado pelo Ministério da Justiça, onde estou até hoje lá (Mestre Umoi, comunicação pessoal, Lisboa – Portugal, 27 de junho de 2003). “Você vê muito angoleiro alemão jogando uma Angola tão boa e até melhor do que muito capoeirista que nunca saiu de Salvador, que nunca saiu do Brasil. Aí você fala. Ah! é porque é alemão? Não, é porque é capoeirista.” (Mestre Umoi, comunicação pessoal, Amsterdã, 18 de agosto de 2003). A internacionalização da capoeira É importante destacar que os professores de capoeira que saíram do Brasil para trabalhar na Europa se encontram numa condição menos desconfortável em relação aos demais imigrantes, uma vez que não disputam com os “nativos” um posto de trabalho. Terminam gozando de reconhecido prestígio, à medida que são possuidores de uma habilidade, de uma especialidade made in Brazil que funciona como um selo de qualidade muito requisitado pelos jovens europeus, em geral. São portadores, portanto, de saberes “exóticos” e “culturais” que, de certa forma, desafiam os modos tradicionais de entrada no campo produtivo e terminam redefinindo o sentido do trabalho, atualmente caracterizado por turbulência e instabilidade. Na luta pela sobrevivência, inventam formas atípicas de ganhar dinheiro e terminam demonstrando uma notável capacidade de improvisação. Muitos articulam-se em intrincadas redes de solidariedade, por meio de densa convivência que se materializa em eventos, W, festas, ou simples visitas aos “trabalhos” dos seus conterrâneos irmanados pela dupla condição de capoeira-imigrante. Muitos grupos considera- Comércio de indumentárias e instrumentos de capoeira – Evento em Madri – Espanha. Junho 2003 (J. L. C. Falcão) 130 Capoeira A internacionalização da capoeira dos rivais no Brasil, ao se instalarem na Europa, terminam por minimizar e relativizar essa rivalidade para enfrentar os dissabores que a condição de imigrante freqüentemente impõe a todos os portadores do passaporte verde, indistintamente. Essas múltiplas alternativas de trabalho com capoeira materializam-se na forma de shows em casas de espetáculos, de oficinas em instituições educacionais, de orientação de jovens em situação de risco social. Freqüentemente, o trabalho do profissional de capoeira na Europa apresentase de forma eventual e temporária. O comércio de apetrechos e adereços de capoeira serve para incrementar o orçamento desses aventureiros abnegados, isso quando não constitui atividade principal de muitos. Ainda assim, a grande maioria dos professores brasileiros sente-se valorizada em trabalhar com capoeira em terras estrangeiras. Afinal, esses aventureiros destemidos consideram-se portadores legítimos de uma cultura “exótica”, pela qual o estrangeiro sempre se mostrou fascinado. Muitos professores conquistam certa segurança, a partir de contratos com instituições públicas e privadas sólidas. Um mestre que trabalha em Portugal relatou, durante um evento na Noruega, que se sente muito valorizado como “professor de capoeira” de uma instituição pública. Outro aspecto a destacar, a partir das experiências dos capoeiras brasileiros na Europa, diz respeito ao fato dessa manifestação cultural aglutinar, por intermédio dos concorridos eventos, pessoas oriundas de diferentes camadas sociais em um mesmo espaço de convívio. Em geral, um mestre ou professor alterna trabalhos em espaços nobres com os chamados “trabalhos sociais”. Em regra, nos finais de semana, ou nos eventos, os integrantes desses diferentes “espaços” encontram-se e confraternizam-se em movimentadas rodas. O Mestre Barão transita, com suas aulas de capoeira, em universos aparentemente inconciliáveis da Cidade do Porto, no norte de Portugal. Eu dou aula no bairro Lagarteiro, um bairro bem complicado. É um bairro social que o pessoal chama aquilo lá de inferno. Dou aula também para ciganos num outro bairro também complicado do Porto. Eu estou lá fazendo um trabalho social com eles. Saio desse bairro social e vou para um ginásio que treina só ricos, que é só empresários (Mestre Barão, Comunicação pessoal, 8 de junho de 2003). Essa arte de viver e, em muitos casos, de sobreviver com e para a capoeira na condição de imigrante nem sempre é bem sucedida, entretanto, chama a atenção para experiências pedagógicas produtivas no campo da educação não-formal, que se intersecionam e, muitas vezes, complementam o processo de educação formal. Nesse movimento de internacionalização, a capoeira, com todas as implicações que uma manifestação cultu- Oficina de Capoeira na Universidade de Varsóvia – Polônia, maio 2003 (J. L. C. Falcão) ral engendra, afirma-se como manifestação de expressiva densidade à medida que mestres e professores “ensinam” os seus “fundamentos” para pessoas provenientes das mais diferentes origens e culturas e, com isso, vêm contribuindo para a quebra de tabus e estereótipos construídos no interior do seu próprio movimento histórico. Se a capoeira “é brasileira”, se “está no nosso sangue”, como ela pode ser ensinada a pessoas que não têm o sangue brasileiro nas veias? Travassos (1999, p. 266) questiona: “Como se poderia ensinar algo que está inscrito no sangue, nos corpos e nas mentes de uns e não de outros?” Muitos praticantes europeus de capoeira, além de se dedicarem exaustivamente a essa prática, interessam-se por outras manifestações que fazem parte do “acervo cultural” brasileiro, como é o caso do frevo, do samba, do maculelê e do maracatu. Com isso, terminam se apaixonando pelo Brasil. Isso pode ser ratificado pelo depoimento de um professor que ministra aulas em Lisboa, quando diz: “muitos europeus vivem a capoeira mais que muitos brasileiros e têm, realmente, o Brasil no coração” (Professor Marco Antônio, comunicação pessoal, Lisboa – Portugal, 13 de agosto de 2003). Com a formação de inúmeros professores de nacionalidade não-brasileira, a capoeira certamente passa a lidar e incorporar novos elementos nos seus “fundamentos”. Nesse movimento, esses fundamentos são reelaborados a partir de embates permanentes, cujos aspectos de natureza econômica, cultural e subjetiva se intersecionam. Em entrevista concedida pelo Mestre Borracha, que está na Europa desde 1985, fomos informados sobre a existência do primeiro mestre de capoeira europeu. Tratase do Mestre Coruja, italiano, com mais de vinte anos de dedicação a essa arte, formado pelo Mestre Canela, do Grupo Mangagá, do Rio de Janeiro. Esse dado aponta para a necessidade de investigações sobre essa nova realidade que, certamente, trará enormes contribuições para pensarmos o fenômeno capoeira a partir de uma visão mais ampliada e complexa. 131 Ministério das Relações Exteriores Revista Textos do Brasil A capoeira pode até ser “coisa do Brasil”, mas também é de todo o mundo, à medida que para ser ensinada, praticada, transmitida, construída, ela precisa ser compartilhada, dividida, multiplicada. Roda de Rua – Carmingnando de Brenta, Itália, julho de 2003 (J. L. C. Falcão) É certo que existe uma cobrança prévia por parte dos mestres e professores brasileiros e até mesmo dos discípulos em relação aos professores não-brasileiros que, de uma forma ou de outra, se sentem com mais responsabilidade em dominar os fundamentos da capoeira. O depoimento de um professor, que ministra aulas na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, ilustra esses dilemas: Eu acho que, pelo fato de não ser brasileiro, eu tenho sempre algo mais a provar. Antes de veremme jogar ou de me verem cantar, pensam que eu vou cantar ora pois, pois...Que eu vou jogar uma capoeira sem qualidade. Eu já andei em alguns sítios que nem sequer me dignaram apresentar como professor, apenas como Arroz Doce, de Portugal. Mas penso que o que diz respeito a mim em relação às outras pessoas, mal começa a roda, esquecem tudo isso. São brasileiros, são europeus. Capoeira é capoeira. Uma roda é uma roda. Eu vibro isso, se calhar, mais que muitos brasileiros. Isso tem uma importância muito grande na minha vida (Professor Arroz Doce, comunicação pessoal, Florianópolis-SC, 26 de novembro de 2003). A internacionalização da capoeira Da análise desse intrincado e rico movimento de internacionalização da capoeira, é possível formular três considerações fundamentais: a) a capoeira adquiriu, nos últimos dez anos, grande densidade, visibilidade e poder simbólico, e transformou-se em um dos principais cartões postais do Brasil no exterior; b) o significado que os sujeitos apreendem de suas práticas, emocionalmente compartilhadas, está vinculado com a intensidade das interações e com a plenitude da experiência. Nessas práticas intersecionam as dimensões ético-políticas, históricas, culturais e econômicas da vida em sociedade, e c) a capoeira está sujeita a estratificação social própria de uma sociedade dividida em classes, expressando-se em possibilidades diversificadas de acordo com as classes sociais onde está inclusa. 132 Capoeira A internacionalização da capoeira Considerações finais. A realidade de algumas experiências sistemáticas de capoeira no exterior serve como fonte de inspiração para refletirmos sobre as possibilidades desse símbolo de brasilidade que vem encantando um número cada vez mais expressivo de estrangeiros. Desta análise, é possível depreender que a capoeira consolidou-se como manifestação interétnica e o seu processo de internacionalização, verificado a partir da década de 1970, não aniquilou a participação de sujeitos políticos no campo cultural, mas, sim, criou para eles novos desafios. Algumas experiências com a capoeira colocadas em prática no exterior vêm confirmando e ampliando os traços de transnacionalidade que contribuíram para o seu desenvolvimento, desafiando a fragilidade dos discursos que, ingenuamente, a tratam como uma prática apropriada a determinadas camadas da população e vinculada a grupos étnicos específicos. A complexidade e a dinamicidade da capoeira evidenciam-se na intensificação do seu processo de internacionalização, cuja mobilidade se expressa horizontalmente, pelos trânsitos e fluxos dos capoeiras em todo o mundo, e verticalmente, pela possibilidade concreta de ascensão na estratificada sociedade. Apesar de constatarmos uma sistemática reafirmação de que ela é “coisa nossa”, o que, em tese, conferiria a todos os brasileiros o direito de exclusividade sobre a sua “mandinga”, as experiências analisadas demonstraram que esse discurso se constrói sob a égide do conflito e da ambigüidade. A capoeira pode até ser “coisa do Brasil”, mas também é de todo o mundo, à medida que para ser ensinada, praticada, transmitida, construída, ela precisa ser compartilhada, dividida, multiplicada. A capoeira pode ser interpretada de acordo com valores e regras sociais. Como construção social e como manifestação cultural que permanentemente se constrói, a capoeira é influenciada pelo tempo histórico em que se situa, mas também edificada a partir dos interesses e das ações dos sujeitos que, por meio dela, atuam e disputam poder na sociedade. Embora parcela significativa de capoeiras a trate como símbolo étnico (capoeira é brasileira! é africana! é afro-brasileira!), seu movimento de internacionalização leva-nos a pensá-la como uma manifestação com status de patrimônio cultural da humanidade. Nessa perspectiva ela não teria pátria, embora carregaria símbolos de sua inquestionável brasilidade. FALCAO, J. L. C. O jogo da capoeira em jogo e a construção da práxis capoeirana. Tese (Doutorado em Educação). Salvador-BA. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, 2004. NUNES, V. Capoeira made in NYC. Correio Braziliense. Brasília-DF, Caderno Coisas da Vida, p. 1 e 3, 13 mar. 2001. PIRES, A. L. C. S. 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A transnacionalização da capoeira: etnicidade, tradição e poder para brasileiros e franceses em Paris. In: Anais da Quinta Reunião de Antropologia do Mercosul. Florianópolis-SC, 30 de novembro a 03 de dezembro de 2003. WEELOCK, Julie. Capoeira para americano jogar. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 Jan. 1989, p. 8, Caderno B. José Luiz Cirqueira Falcão. Professor do Centro de Desportos da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Referências bibliográficas ABREU, F. J. O barracão do Mestre Waldemar. Salvador: Organização Zarabatana, 2003. BERGAMO, G. Roda de gringo. Veja. 1.839 ed., ano 37, n. 5, p. 58, 4 fev. 2004. CARVALHO, L. C. Na roda com a mulher. Revista Praticando Capoeira. São Paulo, ano II, n. 17, 2002. 133 Carybé Hector Julio Páride Bernabó, ou Carybé, nasceu em Lanús (Argentina) em 07 de fevereiro de 1911 e faleceu em Salvador, em 02 de outubro de 1997. Destacou-se pela arte figurativa brasileira, sobretudo a baiana, com motivos de mulatas lavadeiras, pescadores, e capoeiristas, por meio de estilo que se aproxima da abstração. Apesar de ter nascido na Argentina e vivido sua infância na Itália, foi no Brasil que teve sua formação artística e morada definitiva. Mudou-se para o Brasil em 1919, e freqüentou a Escola Nacional de Belas Artes entre 1927 e 1929. Seu primeiro contato com a Bahia foi em 1938, quando foi enviado pelo jornal Prégon para fazer uma reportagem sobre o célebre personagem Lampião. Com a falência do periódico, estendeu sua jornada pelo litoral norte do Brasil, que lhe inspirou desenhos para sua primeira exposição coletiva, em Buenos Aires, em 1939. Sua relação com o Brasil se aprofunda na década de 1940, quando verteu Macunaíma, de Mário de Andrade, para o espanhol. Na década de 1950, a convite do Secretário da Educação Anísio Teixeira, Carybé muda-se definitivamente para Bahia, onde auxilia a promover a renovação das artes plásticas. Em 1955 foi eleito o melhor desenhista da III Bienal de São Paulo, e em 1961 recebeu o mérito de expor em sala exclusiva. Em 1957 naturalizou-se brasileiro, fato que legitimou sua condição de ícone da Bahia. Com efeito, suas obras visam, sobretudo, a retratar a riqueza da cultura popular baiana. Carybé realizou mais de cinco mil trabalhos, entre pinturas, desenhos, esculturas e esboços, incluindo ilustrações para obras de autores consagrados como Jorge Amado, Rubem Braga, Mário de Andrade e Gabriel Garcia Marquez. Possui murais nas cidades de Salvador, Londres e Nova York, em que se nota influência de Picasso e Rivera. Entre suas obras impressas, destacam-se a Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia, resultado de 30 anos de pesquisa, As Sete Portas da Bahia, coletânea de desenhos sobre a cultura baiana, e Olha o Boi e Bahia, Boa Terra Bahia, ambos em parceria com Jorge Amado. O escritor baiano, seu grande amigo, em um de seus versos integrantes da Cantiga de capoeira para Carybé, traça bela descrição da relação de Carybé com a cultura baiana: “[...] A paisagem, a poesia e o mistério da Bahia, ê, ê camarado, e de quem é? É de Carybé, camarado, Ê camarado, ê. [...]” Pierre Verger Pierre Verger nasceu em Paris, no dia quatro de novembro de 1902. Desfrutando de boa situação financeira, ele levou uma vida convencional para as pessoas de sua classe social até a idade de 30 anos, ainda que discordasse dos valores que vigoravam nesse ambiente. O ano de 1932 foi decisivo em sua vida: aprendeu um ofício - a fotografia - e descobriu uma paixão - as viagens. De dezembro de 1932 até agosto de 1946, foram quase 14 anos consecutivos de viagens ao redor do mundo, sobrevivendo exclusivamente da fotografia. Verger negociava suas fotos com jornais, agências e centros de pesquisa. Fotografou para empresas e até trocou seus serviços por transporte. Paris tornou-se uma base, um lugar onde revia amigos - os surrealistas ligados a Prévert e os antropólogos do Museu do Trocadero - e fazia contatos para novas viagens. Trabalhou para as melhores publicações da época, mas como nunca almejou a fama, estava sempre de partida: “A sensação de que existia um vasto mundo não me saía da cabeça e o desejo de ir vê-lo me levava em direção a outros horizontes”. As coisas começaram a mudar no dia em que Verger desembarcou na Bahia. Em 1946, enquanto a Europa vivia o pós-guerra, em Salvador, tudo era tranqüilidade. Foi logo seduzido pela hospitalidade e riqueza cultural que encontrou na cidade e acabou ficando. Como fazia em todos os lugares onde esteve, preferia a companhia do povo, os lugares mais simples. Os negros monopolizavam a cidade e também a sua atenção. Além de personagens das suas fotos, tornaram-se seus amigos, cujas vidas Verger foi buscando conhecer com detalhe. Quando descobriu o candomblé, acreditou ter encontrado a fonte da vitalidade do povo baiano e se tornou um estudioso do culto aos orixás. Esse interesse pela religiosidade de origem africana lhe rendeu uma bolsa para estudar rituais na África, para onde partiu em 1948. Além da iniciação religiosa, Verger começou nessa mesma época um novo ofício, o de pesquisador. A história, costumes e principalmente a religião praticada pelos povos iorubás e seus descendentes, na África Ocidental e na Bahia, passaram a ser os temas centrais de suas pesquisas e sua obra.. Como colaborador e pesquisador visitante de várias universidades, conseguiu ir transformando suas pesquisas em artigos, comunicações, livros. Em 1960, comprou a casa da Vila América. No final dos anos 70, ele parou de fotografar e fez suas últimas viagens de pesquisa à África. Em seus últimos anos de vida, a grande preocupação de Verger passou a ser disponibilizar as suas pesquisas a um número maior de pessoas e garantir a sobrevivência do seu acervo. Na década de 80, a Editora Corrupio cuidou das primeiras publicações no Brasil. Em 1988, Verger criou a Fundação Pierre Verger (FPV), da qual era doador, mantenedor e presidente, assumindo assim a transformação da sua própria casa num centro de pesquisa. Em fevereiro de 1996, Verger faleceu, deixando à FPV a tarefa de prosseguir com o seu trabalho. “A criação da Fundação Pierre Verger foi a conseqüência de dois de meus amores: o que sinto pela Bahia e aquele que tenho pela região da África, situada no Golfo de Benin. Ela se propõe, através de seus objetivos e suas atividades, a realçar esta herança comum, oferecendo à Bahia o que ela conhece sobre o Benin e a Nigéria e informar esses países sobre suas influências culturais na Bahia”, afirmou Verger no primeiro boletim informativo da FPV. Ele doou à Fundação todo o seu acervo pessoal, reunido em décadas de viagens e pesquisas. São dezenas de artigos, livros, 62 mil negativos fotográficos, gravações sonoras, filmes em película e vídeo, além de uma coleção preciosa de documentos, fichas, correspondências, manuscritos e objetos. Criada legalmente em 1988, a Fundação é uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, com autonomia administrativa e financeira, que funciona até hoje na mesma casa em que Pierre Verger viveu durante anos, na Ladeira da Vila América, em Salvador. Gerida por um grupo de amigos, colaboradores e admiradores de Verger, a Fundação cuida da preservação e divulgação de sua obra. En- tre funcionários, diretores e curadores estão algumas das pessoas que conviveram com Verger mais de perto nos últimos anos de sua vida. Principais objetivos da Fundação: • preservar, divulgar e pesquisar a obra do instituidor Pierre Edouard Leopold Verger; • estudar e preparar publicações relacionadas com as influências recíprocas entre o Brasil e a África em geral e, principalmente, entre a Bahia e o Golfo do Benin; • proporcionar oportunidades de cooperação interdisciplinar em áreas como artes, antropologia, botânica, música e história; • servir como centro de informações e pesquisa; • estabelecer e manter relações com organizações culturais internacionais interessadas na cultura africana e nos problemas da diáspora dos africanos no Novo Mundo. Serviços: • liberação de direitos autorais e venda das fotografias de Pierre Verger; e • disponibilização do acervo a pesquisadores. Fonte: Fundação Pierre Verger http://www.pierreverger.org/br/index.htm Pierre Verger Pierre Verger nasceu em Paris, no dia quatro de novembro de 1902. Desfrutando de boa situação financeira, ele levou uma vida convencional para as pessoas de sua classe social até a idade de 30 anos, ainda que discordasse dos valores que vigoravam nesse ambiente. O ano de 1932 foi decisivo em sua vida: aprendeu um ofício - a fotografia - e descobriu uma paixão - as viagens. De dezembro de 1932 até agosto de 1946, foram quase 14 anos consecutivos de viagens ao redor do mundo, sobrevivendo exclusivamente da fotografia. Verger negociava suas fotos com jornais, agências e centros de pesquisa. Fotografou para empresas e até trocou seus serviços por transporte. Paris tornou-se uma base, um lugar onde revia amigos - os surrealistas ligados a Prévert e os antropólogos do Museu do Trocadero - e fazia contatos para novas viagens. Trabalhou para as melhores publicações da época, mas como nunca almejou a fama, estava sempre de partida: “A sensação de que existia um vasto mundo não me saía da cabeça e o desejo de ir vê-lo me levava em direção a outros horizontes”. As coisas começaram a mudar no dia em que Verger desembarcou na Bahia. Em 1946, enquanto a Europa vivia o pós-guerra, em Salvador, tudo era tranqüilidade. Foi logo seduzido pela hospitalidade e riqueza cultural que encontrou na cidade e acabou ficando. Como fazia em todos os lugares onde esteve, preferia a companhia do povo, os lugares mais simples. Os negros monopolizavam a cidade e também a sua atenção. Além de personagens das suas fotos, tornaram-se seus amigos, cujas vidas Verger foi buscando conhecer com detalhe. Quando descobriu o candomblé, acreditou ter encontrado a fonte da vitalidade do povo baiano e se tornou um estudioso do culto aos orixás. Esse interesse pela religiosidade de origem africana lhe rendeu uma bolsa para estudar rituais na África, para onde partiu em 1948. Além da iniciação religiosa, Verger começou nessa mesma época um novo ofício, o de pesquisador. A história, costumes e principalmente a religião praticada pelos povos iorubás e seus descendentes, na África Ocidental e na Bahia, passaram a ser os temas centrais de suas pesquisas e sua obra.. Como colaborador e pesquisador visitante de várias universidades, conseguiu ir transformando suas pesquisas em artigos, comunicações, livros. Em 1960, comprou a casa da Vila América. No final dos anos 70, ele parou de fotografar e fez suas últimas viagens de pesquisa à África. Em seus últimos anos de vida, a grande preocupação de Verger passou a ser disponibilizar as suas pesquisas a um número maior de pessoas e garantir a sobrevivência do seu acervo. Na década de 80, a Editora Corrupio cuidou das primeiras publicações no Brasil. Em 1988, Verger criou a Fundação Pierre Verger (FPV), da qual era doador, mantenedor e presidente, assumindo assim a transformação da sua própria casa num centro de pesquisa. Em fevereiro de 1996, Verger faleceu, deixando à FPV a tarefa de prosseguir com o seu trabalho. “A criação da Fundação Pierre Verger foi a conseqüência de dois de meus amores: o que sinto pela Bahia e aquele que tenho pela região da África, situada no Golfo de Benin. Ela se propõe, através de seus objetivos e suas atividades, a realçar esta herança comum, oferecendo à Bahia o que ela conhece sobre o Benin e a Nigéria e informar esses países sobre suas influências culturais na Bahia”, afirmou Verger no primeiro boletim informativo da FPV. Ele doou à Fundação todo o seu acervo pessoal, reunido em décadas de viagens e pesquisas. São dezenas de artigos, livros, 62 mil negativos fotográficos, gravações sonoras, filmes em película e vídeo, além de uma coleção preciosa de documentos, fichas, correspondências, manuscritos e objetos. Criada legalmente em 1988, a Fundação é uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, com autonomia administrativa e financeira, que funciona até hoje na mesma casa em que Pierre Verger viveu durante anos, na Ladeira da Vila América, em Salvador. Gerida por um grupo de amigos, colaboradores e admiradores de Verger, a Fundação cuida da preservação e divulgação de sua obra. En- tre funcionários, diretores e curadores estão algumas das pessoas que conviveram com Verger mais de perto nos últimos anos de sua vida. Principais objetivos da Fundação: • preservar, divulgar e pesquisar a obra do instituidor Pierre Edouard Leopold Verger; • estudar e preparar publicações relacionadas com as influências recíprocas entre o Brasil e a África em geral e, principalmente, entre a Bahia e o Golfo do Benin; • proporcionar oportunidades de cooperação interdisciplinar em áreas como artes, antropologia, botânica, música e história; • servir como centro de informações e pesquisa; • estabelecer e manter relações com organizações culturais internacionais interessadas na cultura africana e nos problemas da diáspora dos africanos no Novo Mundo. Serviços: • liberação de direitos autorais e venda das fotografias de Pierre Verger; e • disponibilização do acervo a pesquisadores. Fonte: Fundação Pierre Verger http://www.pierreverger.org/br/index.htm