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Revista Liberdades Edição Especial - Dezembro de 2011 ISSN 2175-5280 EXPEDIENTE Instituto Brasileiro de Ciências Criminais DIRETORIA DA GESTÃO 2011/2012 Presidente: Marta Saad 1º Vice-Presidente: Carlos Vico Mañas 2ª Vice-Presidente: Ivan Martins Motta 1ª Secretária: Mariângela Gama de Magalhães Gomes 2º Secretário: Helena Regina Lobo da Costa 1º Tesoureiro: Cristiano Avila Maronna 2º Tesoureiro: Paulo Sérgio de Oliveira CONSELHO CONSULTIVO: Alberto Silva Franco, Marco Antonio Rodrigues Nahum, Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Sérgio Mazina Martins e Sérgio Salomão Shecaira Publicação do Departamento de Internet do IBCCRIM DEPARTAMENTO DE INTERNET Coordenador-chefe: João Paulo Orsini Martinelli Coordenadores-adjuntos: Camila Garcia da Silva Luiz Gustavo Fernandes Yasmin Oliveira Mercadante Pestana Conselho Editorial da Revista Liberdades Alaor Leite Cleunice A. Valentim Bastos Pitombo Daniel Pacheco Pontes Giovani Saavedra João Paulo Orsini Martinelli José Danilo Tavares Lobato Luciano Anderson de Souza Revista Liberdades - nº 8 - setembro-dezembro de 2011 2 RESENHA DO FILME Tiros em Columbine (Bowling for Columbine) Vencedor do Oscar de Melhor Documentário de 2003 – Direção de Michael Moore Janaina Soares Gallo1 Vanessa Faullame Andrade2 Sumário: 1. Resenha – 2. A falta de educação: 2.1. Direito à educação como direito fundamental – 3. A covarde indústria do medo: Mídia – 4. O Direito Penal simbólico – 5. A questão das armas de fogo – 6. Referências bibliográficas 1. Resenha “(...) Como é fácil adquirir armas nos Estados Unidos! Basta tornar-se um cliente preferencial, com a abertura de uma conta bancária que se adquire um rifle de brinde. Afinal, a qualquer momento um terrorista árabe ou um negro de cara ameaçadora pode invadir sua casa (...).”3 O documentário Tiros em Columbine (2003), do cineasta Michael Moore, retrata como foco central o incidente ocorrido na Escola de Columbine, na cidade de Littleton, no Estado do Colorado, EUA, onde dois jovens estudantes entraram na citada escola com algumas armas e muita munição e saíram disparando contra todos, matando 12 alunos e uma professora. Tiros em Columbine traz a lume assuntos variados, dentre eles, o fácil acesso às armas de fogo,4 os homicídios realizados por jovens nos Estados Unidos em 1 Advogada especialista em Direito Público. 2 Advogada especialista em Direito Penal Económico e Europeu pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM. 3 Fala de Michael Moore no início do documentário. 4 No documentário, fica bem esclarecido que os norte-americanos primam pelo “direito ao exercício de defesa Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 134 uma instituição de ensino médio, a intolerância da sociedade norte-americana, e, ainda, o desrespeito, a reação vingativa das pessoas, com intuito de chamar a atenção. Moore indaga, por diversas vezes, ao expectador sobre os motivos que ocasionam a agressividade entre os jovens. Chega, inclusive, a levantar a questão frente aos jogos de videogame e às músicas de rock. Mas qual seria o real motivo? O historiador Jorge Nóvoa, em artigo publicado na Revista Eletrônica de Cinema e Audiovisual,5 faz a seguinte colocação: “as respostas são múltiplas e na verdade cada ato individual é a síntese de múltiplos fatores histórico-sociais e psicológicos. Alguns atiradores se suicidam após a sessão de crimes em série. Matam crianças e jovens. Muitas vezes são eles mesmos jovens. Jovens sem futuro ou com um futuro traçado pelas guerras a vir. Educados em escolas, mas também pelos vídeo-games [sic] de guerras. Mas matar crianças e jovens é matar a esperança da vida, é matar a mais longa vida que se pode esperar! Curiosamente, como mostra o filme, os responsabilizados não são os produtores de armas ou o Estado ou os governantes. No filme a mídia comum associa aos crimes em série, tantos personagens como um cantor de uma banda de rock chamado Marilyn Manson. Este é entrevistado por Moore e diz que parece ser mais fácil acreditar que ele seja capaz de produzir mortes em série do que o Presidente Bush, quando ele tem muito menos poder que o Presidente.” Moore, sem justificar os motivos de tamanha agressividade dos jovens, traça um paralelo entre a indústria de armas estadunidense e a possibilidade de compra de uma metralhadora semiautomática por um cidadão comum, ao conduzir a história de uma das maiores fábricas de armamento de destruição em massa do mundo, a Lockheed Martin. Em certo ponto do documentário, são mostradas algumas “intervenções” norte-americanas em países pobres no decorrer de décadas (ao som de What a Wonderful World, de Louis Armstrong). São algumas destas “intervenções”: a) o fornecimento de armas e de treinamentos da CIA para os chamados “contras” da Nicarágua, que derrubaram o governo de Augusto Sandino; b) o fornecimento de armas e treinamento dos “mujaheedins”, no Afeganistão, para combater a brutal presença soviética no país durante os anos da Guerra Fria; c) a invasão do Panamá para prender Noriega, outrora um grande cliente dos EUA na questão das drogas e das armas; entre outros diversos exemplos de “intervenções”. Com as demonstrações destas e de outras “intervenções” é reforçada, pelo documentário, a questão das armas com o contexto histórico mundial. Moore faz uma abordagem sobre o ocorrido em 11 de setembro de 2001, trazendo uma animação, com um conteúdo que consideramos como “original” e, patrimonial e pessoal”, o que justificaria a necessidade do emprego das armas nas relações interpessoais. Nóvoa, Jorge. Tiros em Columbine ou a decadência do império americano. Disponível em <http:// www.kinodigital.ufba.br/edicao1/pdf/tirosemcolumbine.pdf> Acesso em: 23 ago. 2011. 5 Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 135 digamos, didático, de titulação “uma introdução à história dos Estados Unidos”, quando é contada a origem do uso das armas de fogo no país, bem como a trajetória do preconceito dos brancos com relação aos negros, trazendo a “normalidade” de se possuir uma arma para defender a família e a si mesmo de um possível inimigo externo, características de um Direito Penal do Inimigo.6 O uso da arma de fogo é trazido como uma forma de autodefesa, como algo inerente à cultura americana, sendo que, em certo ponto da história, citou-se o ocorrido com um aluno da elementary school, que foi advertido e suspenso da escola porque teria “ameaçado” um professor com um nugget de frango, como uma espécie de arma. Outro ponto explorado em Tiros em Columbine que merece grande relevo, garantindo um destaque no documentário, é a busca do sensacionalismo e do espetacular, do furo jornalístico, definidor dos altos índices de audiência. Ou seja, a importância da participação da mídia em uma sociedade violenta como a americana. Em uma conversa com um jornalista que fazia uma reportagem – e que ainda não sabia os reais fatos ocorridos –, Moore indaga sobre qual seria sua escolha de cobertura de reportagem entre matérias que envolvessem o uso de arma de fogo ou outra que tratasse de um afogamento ou da poluição que atinge as cidades, prejudicando vidas.7 A resposta foi clara e objetiva: daria “preferência” à cobertura da notícia com o envolvimento de arma de fogo.8 Michael Moore, autor do livro “Stupid White Men”,9 aborda, de forma exímia, em seu documentário a explicitação da tal “cultura do medo” que toma conta dos EUA. Explosões temperamentais, agressividade exagerada, baixo grau de tolerância a frustrações são algumas das conclusões que se apreende do documentário para tentar “explicar” o fato ocorrido na Escola de Columbine. O “gerenciamento da raiva”, segundo depoimentos no documentário, talvez seja um bom começo para a contenção dos sentimentos dos jovens. Um diretor provocativo que deu ao gênero documentário uma dimensão 6 O Direito Penal do Inimigo tem como base políticas públicas voltadas ao combate da criminalidade por meio da criação de leis mais repressivas e severas, além da relativização ou supressão de certas garantias processuais na busca do “controle social”. Michael Moore exemplifica que uma notícia que traz dados sobre armas é muito mais “importante” 7 jornalisticamente do que a informação do grau de poluição que atinge as cidades, prejudicando vidas. Diante da fala do repórter, podemos concluir que o mais importante para a mídia americana é a audiência trazida por uma reportagem que gera a expectativa do medo, do pavor. 8 9 Tradução do título do livro: Estúpidos Homens Brancos (2005). Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 136 extraordinária na terra de Hollywood.10 Moore trouxe a tona assuntos escassamente tratados, talvez por falta de interesse, mas, de uma maneira geral, colocando-nos de frente com discussões de como a sociedade está sendo conduzida, como o individualismo consumista11 se sobrepõe a ideias humanistas de solidariedade,12 como a paranoia permanente com a existência de um potencial inimigo, pode formar indivíduos egoístas, intolerantes, amedrontados e paradoxalmente de prontidão para defender-se de perigo eminente, pretendeu denunciar a obsessão por ganhar dinheiro com a venda de armas – e, portanto, com a morte de seres humanos, e a relação que existe entre a produção permanente do medo e a necessidade de autoproteção por meio das armas. Assim, Tiros em Columbine desperta um senso crítico frente aos problemas que a sociedade, nos EUA e, em certos aspectos, também em outros países, inclusive no Brasil, atualmente vive. Esta sociedade trata os assuntos abordados no filme dentro da “normalidade”, como algo mais ou menos corriqueiro e que acontece quase todo ano em alguma parte do mundo. Pode parecer difícil compreender como um documentário politicamente agressivo e tão “anormal” para os padrões da indústria cinematográfica americana foi ganhador do Oscar em 2003. A falta de senso crítico,13 leva a absorção de tudo que é passado - sobre quem são os inimigos, o que é bom ou ruim, o que se sente – tudo é dado da maneira a se enquadrar num padrão comum, sem que haja qualquer respeito à 10 Nóvoa, Jorge. Op. cit. Outra consequência dessa nova faceta do processo de acumulação do capital é o enfraquecimento do poder do Estado como regulador social. Assiste-se, cada vez mais, a um crescente processo de desresponsabilização do Estado para com o provimento das condições estruturais de garantia dos direitos sociais do homem, mediante processos de desregulamentação e de flexibilização. Tais efeitos têm relegado a maioria da população à condição de um contingente dos sem-direitos, comprometendo, desta forma, a justiça social e a paz (Dias, Adelaide Alves. Da educação como direito humano aos direitos humanos como princípio educativo. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/fundamentos/26_cap_3_ artigo_04.pdf. Acesso em 27 jul. 2011). 11 Lei 10.826/2003. 12 Vide Maria Victoria Benevides. Entrevista: Maria Victoria Benevides. Teoria e Debate nº 39, out.dez. 1998, publicada em 09.05.2006. Disponível em: www.fpa.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/ edicoes-anteriores/entrevista-maria-victoria-benevides. Acesso em 27 jul 2011. 13 “(...) A população americana é, em termos proporcionais, ao mesmo tempo, a mais desinformada e a mais manipulada, das sociedades industrialmente avançadas, em total contradição com o elevado grau de desenvolvimento tecnológico e científico alcançado pelo país. Em Tiros em Colombine Michael Moore procura despertar o povo americano para algo que se encontra inevitavelmente cada vez mais no centro da propulsão do capitalismo mundial: a indústria de armamentos. É verdade que Moore não vai até as últimas conseqüências na sua explicação-demonstração. Para isto ele teria de ser capaz de mostrar de que modo a indústria de armamentos está ancorada na estrutura mesma do capitalismo contemporâneo. Mas o ponto de partida de seu filme não é menos significativo quando retrata com documentos imagéticos diversos uma espécie de patologia que vem se desenvolvendo em centros urbanos diversos e que envolve, não apenas pessoas jovens e desempregadas, mas homens e mulheres de idades, raças e classes sociais distintas. Atirar em crianças e adolescentes nas escolas e colégios dos Estados Unidos virou uma espécie de síndrome. Mas a questão inicial é simplesmente a seguinte: por quê? (...)” (Nóvoa, Jorge. Op. cit.). Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 137 individualidade de cada um. Acreditamos que, na medida em que nos é negado o direito à educação14 e formação, nos é subtraído o direito de pensar, de termos a liberdade de escolha, a liberdade15 na maneira mais ampla que se pode entender. 2. A falta de educação Casos, como o da escola de Columbine e o recente “massacre” do Realengo, no Rio de Janeiro, revelam possíveis falhas no sistema educacional formal e o modo como a sociedade moderna pensa e trata os jovens. Neste ano, em uma oportunidade única, durante um Seminário,16 muitos puderam ouvir a professora Olgária Matos. Mencionando a intolerância que se anunciava nos jornais da semana, a respeito do nobre Deputado Jair Bolsanaro,17 a professora, de uma maneira simples e um tanto educada, disse que, diante daqueles fatos, a única coisa que se tinha a dizer sobre aquele nobre cidadão é que ele era uma pessoa “mal-educada”. A fórmula para a solução do problema da falta de educação parece simples, mas, a cada dia que passa, o que se percebe é que este problema só aumenta.18 Atualmente, vivemos em uma sociedade cheia de incompreensão, “(...) O tema da educação como direito social e humano ganha visibilidade no século XX. Machado Oliveira (2001) reconhecem esse século como sendo o que assistiu à ampliação do reconhecimento dos direitos que devem ser garantidos a cada ser humano e, apoiados em Marshall (1967) defendem a educação enquanto ‘um direito social proeminente, como um pressuposto para o exercício adequado dos demais direitos sociais, políticos e civis’” (Machado e Oliveira, 2001, p. 56, apud Dias, Adelaide Alves. Op. cit.). 14 e 15 “A liberdade, como valor, que permite ao homem, que permite ao homem os meios para efetivamente alcançar aquela liberdade que lhe propicie viver sem qualquer intervenção do Estado, deve visar à igualdade de oportunidades o que só será possível com a educação básica para todos, valendo esta como instrumento da liberdade, integrante do núcleo essencial de direitos que conduzem a cidadania” (Lima, Maria Cristina de Brito. A educação como direito fundamental. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 4, n. 13, p. 231, 2001). 16 Revoluções e direitos humanos: educação, revoluções e seus direitos. Palestra: Direitos e Desejos, Sesc Pinheiros, São Paulo, ocorrida em 06.04.2011. O Deputado Jair Bolsonaro chama muita atenção por seu discurso abertamente contrário às iniciativas como a união civil homossexual, inclusão, no currículo escolar de ensino, de aulas que digam sobre o respeito à diversidade sexual e outras questões de direitos civis. Além de manifestar-se favorável à Ditadura Militar no Brasil. Em entrevista ao programa CQC, em 28 de março de 2011, o deputado ofendeu a cantora Preta Gil, que ingressou com uma ação de reparação por danos morais. Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/03/29/preta-gil-vai-processar-jair-bolsonaro-por-declaracoes-emprograma-de-tv-924115474.asp. Acesso em 26 ago. 2011. 17 “Parece claro que a efetividade do direito à educação é um dos instrumentos necessários à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional; à erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais; e à promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Viali Filho, Fernando Alves. A eficácia dos direitos fundamentais à educação como prevenção dos 18 Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 138 violência desordenada e uma completa “falta de educação”, no sentido literal da expressão.19 As palavras da professora podem soar um tanto ingênuas, num primeiro momento, mas cremos que essa seja a melhor descrição que se possa dar ao que estamos vivendo: as pessoas estão cada vez mais mal educadas, na medida em que se vê a intolerância e o desrespeito nas mais diversas relações. A valorização da educação conduz o indivíduo social à sua dignidade e consequente cidadania, servindo-lhe de possível instrumento de prevenção dos conflitos sociais. O ataque que ocorreu em uma escola do bairro de Realengo, no Rio de Janeiro, em abril desse ano, fez com que muitos o associassem à tragédia da Escola de Columbine.20 Ambos os episódios guardam semelhança com o fato dos atiradores serem jovens com perturbações mentais (desenvolvidas) e que cresceram em uma sociedade que, de certa forma, provoca a separação étnica e social entre pessoas de diferentes culturas, credos, religiões e classes econômicas. Estes fatores levam à intolerância, ao desrespeito, à reação vingativa das pessoas, resultando em ódio e conflitos sociais, pois os jovens são frutos da cultura e da sociedade em que vivem. Em “tempos de violência”, aparentemente causada pela intolerância e pelo desrespeito ao próximo, vem à tona uma preocupação excessiva com o fenômeno conhecido como bullying. As tragédias citadas trouxeram indícios de que os agressores teriam sido vítimas de bullying. Teria o fenômeno do bullying favorecido reações vingativas? Sim, pode ter favorecido, mas não como fator determinante. Em Criminologia, como em outras ciências, tem-se tentado eliminar o conceito de “causa”, substituindo-o pela ideia de “fator”. Isso implica no reconhecimento de não apenas uma causa, mas, sobretudo, de fatores que possam desencadear o efeito criminoso (fatores psíquicos, sociais...). Indivíduos com comportamentos tidos como antissociais são capazes de fazer uso de armas para causar danos físicos aos seus oponentes, e seus atos conflitos sociais. Cidadania e Justiça, ano 07, n. 14, jul./dez. 2004, Universidade do Estado de Minas Gerais, Fundação Educacional de Ituiutaba, p. 101). 19 Não se trata apenas de falta de conhecimentos de história, matemática ou português, de acordo com o Dicionário Aurélio, o termo educação origina-se do latim educatione: “(...) 2. Processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral da criança e do ser humano em geral, visando à sua melhor integração individual e social. (...) 7. Conhecimento e prática dos usos de sociedade; civilidade, delicadeza, polidez, cortesia” (Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004. p. 714). 20 Uma representação da versão dos adolescentes foi representada pelo filme “The Elephant” (EUA, 2003, HBO Filmes). A narrativa parte da perspectiva de alguns alunos, envolvidos, de alguma forma, na tragédia ocorrida na Columbine High School. Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 139 caracterizam-se por violações21dos direitos básicos dos outros e das normas ou regras sociais. Habitualmente, perturbam, provocam, ameaçam, intimidam e incomodam os outros, são violentos, agressivos e priorizam o prazer pessoal. A depressão, a frustração, a baixa autoestima e um interesse mórbido pela atual cultura da violência podem ser o resultado de uma família disfuncional, que pode propiciar o aparecimento desses comportamentos, bem como a prevalência de relacionamentos turbulentos entre pais e filhos, sem esquecer uma complacência toda especial com a manifestação de comportamentos bizarros e agressivos e permissividade em relação a armas de fogo.22 Sem compreender esses fatores, muitos pais e educadores entram em desespero e acreditam que tudo é bullying, confundindo-o mesmo com as situações de conflitos interpessoais, fundamentais para o desenvolvimento psicológico da criança e do adolescente. A doutora em psicologia escolar e desenvolvimento humano, Vanessa Fagionatto Vicentin,23 afirma que é importante atentar-se a real situação do caso, pois, muitas vezes, o que chamamos de bullying se trata de conflitos necessários à formação das pessoas: “(...) Conflitos interpessoais são situações naturais de desacordo entre as pessoas e necessários ao desenvolvimento de crianças e adolescentes. É por meio dos conflitos que eles têm a chance de aprender a se colocar no lugar do outro e a falar o que pensam e sentem de forma respeitosa. Na visão construtivista, as crianças não nascem sabendo dialogar e trocar pontos de vista de forma harmônica. É natural que agridam ou permitam ser agredidas até que cheguem à conclusão de que existem formas mais evoluídas de resolver desentendimentos interpessoais. (...)” E, ainda, salienta: “(...) A preocupação deve ser maior: como formar pessoas que respeitam e se fazem respeitar, seja em situações de bullying, de conflitos ou de indisciplina e incivilidades. A preocupação, portanto, é necessária, mas não restrita ao bullying, e sim à formação moral dos alunos. (...)” Assim, o respeito, o culto à paz, a consciência política e social, o respeito ao próximo, a cidadania, devem ser pilares erguidos na sociedade pela escola, pela educação na formação de um ser social, e colocam-se como deveres do Estado e da família. “O ingresso no mundo adulto requer a apropriação de conhecimentos socialmente produzidos. Sua interiorização se processa, primeiro pela socialização primária, que corresponde ao processo de interiorização dos conteúdos e experiências vividas no interior da família e do grupo em que este indivíduo se insere, e, depois, pela socialização secundária, aquela que se processa em 21 Alprim, Alex; Schroeder, Gilberto. Transtorno de conduta. Revista Psicanálise, nº 04, jul. 2011, Editora Mythos, São Paulo, p. 45. Dantas, George Felipe de Lima; Silva Junior, Álvaro Pereira da. Virginia Tech: uma fúria secreta que não 22 se pode controlar. Disponível em: www.ibccrim.org.br. Publicado em 17.04.2007. Acesso em 28 ago.2011. 23 Vicentin, Vanessa Fagionatto. O carimbo do bullying. Disponível em: www.cartacapital.com.br/carta- na-escola/o-carimbo-do-bullying. Acesso em 16 ago.2011. Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 140 instituições como a escola.” 24 Nos dizeres de Maria Victoria Benevides,25 é preciso desenvolver a cidadania ativa, sendo necessário mais do que a orientação intelectual. É preciso educar os indivíduos, permitindo o desenvolvimento dos seres humanos, como pessoas tolerantes e conscientes. Ao falar do tema, a professora conduz a ideia de solidariedade ativa, e que por meio dela se pode chegar a uma consciência política, o que resultaria num processo de respeito e tolerância, na medida em que se consegue entender o papel de cada um na sociedade em que se vive. É preciso formar pessoas que respeitem e que se façam respeitar. Esse é o grande foco da questão. Hoje, o sistema educacional falha em ensinar as crianças e os adolescentes princípios básicos desta cidadania ativa, como o respeito e a tolerância à diversidade. A escola é uma extensão afetiva do ambiente familiar e, tal qual ele próprio, quando não ensina os valores da tolerância, torna-se alvo de eventuais reações agressivas e impulsivas de seus frequentadores, os alunos.26 2.1. Direito à educação como direito fundamental O art. 6.º da Constituição Federal é expresso ao afirmar que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, dentre outros. Classificados como direitos fundamentais de segunda geração, fortalecem o princípio da igualdade, consagrando a igualdade material, por meio dos direitos culturais, coletivos e sociais. Como direito fundamental, o direito à educação, assim como os demais tidos como sociais, têm sua aplicação imediata. “A fundamentalidade recebida do texto constitucional e de inúmeras convenções internacionais se associa ao fato de o direito à educação estar diretamente relacionado aos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, em especial com o da dignidade da pessoa humana”.27 24 Baruffi, Helder. A educação como direito fundamental: um princípio a ser realizado. In: Fachin, Zulmar (coord.). Direitos fundamentais e cidadania. São Paulo: Método, 2008. p. 83-96, apud Berger, Peter L.; Luckman, Thomas. A construção social da realidade. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. 25 Entrevista: Maria Victoria Benevides. Teoria e Debate nº 39, out.-dez. 1998, publicado em 09.05.2006. Disponível em: www.fpa.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/ entrevista-maria-victoria-benevides. Acesso em 27 jul. 2011. 26 Dantas, George Felipe de Lima; Silva Junior, Álvaro Pereira da. Op. cit. 27 Viali Filho, Fernando Alves. Op. cit. Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 141 Os direitos fundamentais expressos nos diferentes diplomas registram a garantia da liberdade, da consciência, da participação e da autonomia. Entretanto, participar e fruir destes direitos requer a consciência dos mesmos. Dessa maneira, ainda, ressalta Fernando Alves Viali Filho, (...) Como se poderia falar na liberdade de um ser acéfalo e incapaz de direcionar seus próprios movimentos em uma sociedade de massas, cujas relações intersubjetivas, a cada dia mais complexas, exigem um constante e interrupto aperfeiçoamento.” Isto significa que a educação não apenas se caracteriza como um direito da pessoa, mas, fundamentalmente, como seu elemento constitutivo. A educação, como direito de todos e dever do Estado e da família, deve ser promovida e incentivada com a colaboração de toda a sociedade, constitui um direito inalienável de todos os seres humanos, devendo ser ofertado e garantido a todos, cabendo ao Estado prover os meios necessários à sua concretização e pela adoção da concepção de uma educação cujo princípio de igualdade contemple o necessário respeito e tolerância à diversidade. A efetividade do direito à educação é imprescindível à garantia do direito à livre determinação. Com a efetivação do direito fundamental à educação, entendida como mais que uma formação meramente formal, mas sim como um processo de conscientização, por meio da eficácia dos direitos sociais garantidos pelo Estado, poderá chegar-se a uma sociedade com indivíduos dignos, conscientes e, o mais importante, educados, prevenindo-se, dessa maneira, a grande maioria dos conflitos sociais. 3. A covarde indústria do medo: mídia O medo é um potencial inimigo da liberdade28 e um eficiente instrumento de manipulação. Se você está diante de uma ameaça à sua vida – mesmo que não seja real – sua liberdade de escolher, opinar, expressar e pensar fica bastante reduzida. É essa “cultura do medo”, que a mídia tanto propaga na televisão, nas rádios e no cinema, que leva o cidadão a querer comprar armas de fogo para defender a vida e o “sagrado direito à propriedade”. A mídia tem utilizado mecanismos – “atrativos” – para fomentar o medo. Ou melhor, explora os fatos ocorridos no cotidiano em prol do aterrorizamento da 28 Principalmente quando tratamos da liberdade individual. Podemos atualmente exemplificar com grande amparo no medo causado pela violência, mas principalmente pela mídia, nas reportagens que nos últimos dias tratam do temor dos moradores do bairro do Morumbi, São Paulo. Notícia a respeito disponível em <http://g1.globo.com/ sao-paulo/noticia/2011/08/medo-da-violencia-afasta-moradores-do-morumbi.html> Acesso em: 19 ago.2011. Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 142 sociedade com comentários, muitas das vezes inescrupulosos, com o objetivo de “manipular a informação” com vistas a fomentar a aplicação do Direito Penal do Medo. Tiros em Columbine explicita como a mídia dos Estados Unidos é responsável pela criação de uma “cultura do medo”,29 que distancia a realidade fática do resultado das notícias. O medo é o principal resultado do uso de estereótipos relacionados à criminalidade tradicional, o que tem gerado o recrudescimento punitivo em relação a ela, transformando o Direito Penal em um “instrumento de controle e disciplina social” das classes populares. “A ênfase dada aos riscos/perigos da criminalidade na contemporaneidade gera um alarmismo não justificado em matéria de segurança, que redunda no reclamo popular por uma maior presença e eficácia das instâncias de controle social (...). Nesse contexto, o Direito Penal é eleito como instrumento privilegiado para responder eficazmente aos anseios por segurança.”30 O documentário Tiros em Columbine deixou claro que a busca do sensacional e do espetacular, do furo jornalístico, é o início da seleção daquilo que pode e que se deseja ser mostrado, o que será definido pelos altos índices de audiência. Como afirma André Luis Callegari,31 o papel do medo no Direito Penal contemporâneo, por meio da sua instrumentalização, chega à elaboração de normas penais de caráter meramente simbólico, as quais são justificadas por meio de um discurso eficientista que transforma o Direito Penal em uma importante arma a serviço de fins político-eleitorais de curto prazo. A sociedade de risco, em que atualmente vivemos, tem propiciado uma sensação de insegurança e imprevisibilidade nas relações sociais. Imprevisibilidade não apenas dos fatos naturais, mas dos fatos causados pelo homem, decorrentes da raiva, da vitimização, ocasionada, até mesmo, pelo bullying. “Medos” são criados para amedrontar a sociedade, espalhando alarmes sociais em torno de problemas fantasiados que vão desde o relato do perigo de encontrar gilete dentro de maçãs distribuídas no Halloween até o risco no uso de escadas rolantes.32 A busca incessante pela segurança das pessoas, dos povos, dos Estados, por meio do uso de armas – de fogo ou nucleares – tem causado uma maior “credibilidade” no revide do que na reestruturação e no desarmamento das sociedades modernas, em contraposto à tecnologia de ponta conseguida por alguns países. 29 30 Callegari, André Luis; Wermuth, Maiquel Ângelo Dezordi. O papel do medo no e do Direito Penal. Revista dos Tribunais, v. 888, p. 440, out. 2009. 31 Idem, ibidem. Esta prática midiática é a maneira como pretendem que a massa popular reflita sobre a criação 32 destes “problemas sociais”, que nada mais são do que frutos de uma lógica mercadológica que busca, a todo Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 143 Ainda, de acordo com André L. Callegari,33 é assim que o medo é inserido no Direito Penal, ou seja, no sentido de dar a uma população cada vez mais atemorizada, diante do medo generalizado da violência e das inseguranças da sociedade líquida pós-moderna, uma sensação de tranquilidade, restabelecendo a confiança no papel das instituições e na capacidade do Estado em combater tais perigos por meio do Direito Penal, ainda que permeado por um caráter meramente simbólico. Não se buscam, portanto, medidas eficientes no controle da violência ou da criminalidade, mas, tão somente, medidas que pareçam eficientes e que, por isso, tranquilizam a sociedade como um todo. Assim, os meios de comunicação de massa “vendem” o crime como um produto de grande rentabilidade, causando o aumento dos medos e, conseqüentemente, o nascimento do clamor popular pelo recrudescimento da intervenção punitiva. 4. O Direito Penal simbólico Atualmente, dá-se muita ênfase aos perigos ou riscos gerados pelo alarme sobre a criminalidade. É neste contexto que o Direito Penal ganha maior relevo, para a sociedade, como o instrumento capaz de se revelar eficaz na busca pela dita “segurança”. O fundamento da pena configura-se como um conjunto escalonado de decisões político-criminais, e que pretendem ser legitimadas por motivos utilitários. O objetivo imediato é evitar danos, riscos ou perigos graves aos bens jurídicos fundamentais para a convivência, e legitima-se pela necessidade de manter a ordem social básica.34 Segundo José Luiz Díez Ripollés,35 o Direito Penal simbólico constitui um uso patológico dos efeitos expressivo-integradores da sanção penal. Resulta, portanto, insustentável a desqualificação estendida ou a desconsideração dos componentes expressivos e integradores da pena na atual reflexão políticocriminal. Em primeiro lugar, porque uma boa parte deles se ajusta estritamente ao objetivo de proteção de bens jurídicos através da prevenção de comportamentos, assim como para o resto de decisões político-criminais que fundamentam o uso custo, a audiência. 33 Callegari, André Luis; Wermuth, Maiquel Ângelo Dezordi. Op. cit. Díez Ripollés, José Luis. O direito penal simbólico e os efeitos da pena. Ciências Penais, v. 0, p. 24, jan. 2004. 34 35 Idem, ibidem. Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 144 da pena. Em segundo lugar, porque renunciar a todos aqueles que vão além da intimidação do delinquente real ou potencial significa privar-se de alguns dos meios mais eficazes, na atual sociedade de massas, para alcançar, de uma maneira legítima, o objetivo de manter a ordem social primária. Na atual sociedade comunicativa, com a proliferação de mecanismos de transmissão das mensagens normativas e sua influência sobre os comportamentos, parece pouco realista sustentar que o controle social penal deve limitar-se ao uso daqueles efeitos que chamamos materiais, somente reforçados por um efeito expressivointegrador – o intimidatório. Neste contexto, surge a utilização do Direito Penal simbólico quando o legislador é visto pela sociedade com “bons olhos”, quando toma decisões de política criminal irracional para atender a demanda social: a dita “segurança”. É assim que o medo é inserido no Direito Penal. Proporcionar que a população se torne cada vez mais atemorizada diante do medo generalizado pela violência, causando uma sensação de intranquilidade. Para restabelecer-se a confiança no papel das diversas instituições e na capacidade do Estado em combater o medo por meio do Direito Penal, traz-se o caráter meramente simbólico deste. Não se buscam controle da violência ou da criminalidade por meio deste Direito Penal, mas, tão somente, realizam medidas que “pareçam” eficientes e que, por isso, tranquilizariam a sociedade como um todo; ou seja, a aplicação de meios repressivos mais severos seriam considerados meios eficazes de combate aos problemas sociais pelo Direito Penal. Muitos clamam pela efetivação de políticas públicas que enfrentem a realidade social. Não será por meio da “incrementação” do Direito Penal – com o uso do Direito Penal do Medo – que se obterá a tão almejada segurança. Se assim aceitássemos, denunciaríamos o perigo de um direito totalitário que considera a violência como a única forma de combater a própria violência. Deixemos apenas mais uma lembrança: nada justifica, na busca pela segurança, o barateamento dos direitos, das instituições, em um Estado Democrático de Direito.36 No decorrer desta resenha, não trouxemos apenas o relato do documentário feito por Michael Moore. Explanamos, rapidamente, sobre a influência do Direito Penal simbólico e do medo causado pela mídia. E como bem disse o, então Ministro, Márcio Thomaz Bastos, em discurso de “Em nome do combate à criminalidade (...), pedem-se leis penais mais duras. (...) todavia, esquecese de querer a relativização da legalidade é o primeiro passo de um processo que converte vingança em fator de intolerância” (A escalada da violência. Editorial. Boletim IBCCRIM, ano 14, n. 166, set. 2006, p. 01). 36 Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 145 abertura do 10º Seminário Internacional do IBCCRIM: “(...) é fundamental que possamos voltar boa parte de nossas energias para pensarmos em reformas institucionais e não apenas em alterações na legislação penal, visando a construção de um Brasil seguro, baseado em princípios republicanos e respeito aos Direitos Humanos. (...)” 5. A questão das armas de fogo Vale lembrar, aqui, que a posse de armas de fogo pelo cidadão comum não é garantia de mais segurança.37 A crença em uma ideia pura de autodefesa armada é ingenuidade. A autodefesa pregada pelo discurso das armas não é real nem eficaz. Tiros em Columbine38 mostra como, para a cultura americana, o “ter” (possuir, dispor) de uma arma de fogo é um direito inerente ao cidadão americano, visando a sua proteção e a proteção de seus familiares. Para a advogada e coordenadora de Justiça e Segurança do Instituto Sou da Paz, Maria Eduarda Hasselmann de Lyrio,39 a circulação e o emprego de fato de armas de fogo carregam, anualmente, o peso de 40.000 mortos no País. Afirma, inclusive, que, nos grandes conglomerados brasileiros, o cruzamento entre o acesso às armas e a predisposição a usá-las, corriqueiramente na vida urbana, é refletido nos altos índices de violência. Diferente do que ocorre nos EUA, no Brasil, o uso, o porte e a comercialização de armas e munições são permitidas, mas com restrições orientadas pelo Estatuto do Desarmamento. Em contrapartida, no Brasil, para muitos, o desarmamento da população é positivo, e, para outros parece ineficaz, diante da grande produção e da 37 Apesar de a população dos EUA acreditar que o uso de armas de fogo é sinônimo de segurança, principalmente com base no direito à “legítima defesa” do considerado “cidadão de bem” (ou não criminoso). Informação extraída do documentário Tiros em Columbine. “No documentário, Charlton Heston, o Presidente da NRA (algo como Associação Nacional de Rifles), aparece várias vezes fazendo discursos e campanha contra a proibição do uso de armas, tendo inclusive Moore ido à sua casa para entrevistá-lo. E este faz isto com muita habilidade desmoralizando o velho canastrão racista e de extrema direita que diz em alto e bom som que ‘é um direito dos americanos armarem-se para defender os valores que herdaram dos pioneiros brancos que criaram a grandeza da América’. São 11 mil mortes anuais por armas de fogo nos Estados Unidos. A maioria das vítimas é de negras e negros pobres. Mas ao lado, no Canadá, o índice de mortes por armas de fogo é baixíssimo. Moore vai ao Canadá e através de entrevistas a personagens de diversos setores sociais chega à conclusão que a explicação só pode estar na mentalidade [do povo]. (...)” (Nóvoa, Jorge. Op. cit.). 38 39 Lyrio, Maria Eduarda Hasselmann de. O desarmamento em questão. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 11, n.132, p. 12-14, nov. 2003. Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 146 comercialização das armas.40 O legislador, ao introduzir o Estatuto do Desarmamento em nosso ordenamento, restringiu e dificultou o porte de armas. Contudo, em razão da não proibição de comercialização de armas de fogo e munição em todo o País,41 a indústria bélica brasileira teve aumento em suas exportações. O tipo de tragédia, mostrada no documentário, ocasionada talvez pelo relativamente fácil acesso às armas, provoca indignação e demonstrações de revolta. Mas, a questão dos motivos que possam ser as razões destes ataques, que é secundária, e que foi tema central dos debates em torno do referendo do Estatuto do Desarmamento, é a antiga e permanente discussão sobre a livre comercialização de armas de fogo e munição. Volta e meia, nos debates sobre segurança pública, o assunto desarmamento acaba por tornar-se o assunto central, no entanto, nunca se chega a uma conclusão, ou melhor, chegou-se à conclusão de que a posse e o porte de armas de fogo devem ser restringidos, mas fato é que a comercialização é livre em todo território.42 De acordo com os dados disponíveis no site do Instituto Sou da Paz, a primeira edição da Campanha Nacional de Entrega voluntária de armas, criada para incentivar a devolução de armas no Brasil, foi lançada no dia 15 de julho de 2004.43 Programada inicialmente para durar seis meses, foi prorrogada por mais duas vezes até outubro de 2005. Atualmente, a Campanha encontra-se em sua terceira edição.44 Seria o Estatuto do Desarmamento uma “arma” como meio da prestação do serviço político eleitoral? Seria uma norma simbólica utilizada para reforçar o estereótipo do porte ou da posse de arma de fogo e munição, relacionado à criminalidade tradicional, proporcionando um recrudescimento punitivo galopante? Estas são questões cujas respostas não devem mais ser procrastinadas. Assim, concluímos que a violência é um ato incrivelmente complexo e para Justificado em nome das liberdades individuais, da capacidade de discernimento de cada homem e da possibilidade de maximização de suas “escolhas racionais”, o livre porte de armas tornou-se matéria de “direitos” nos Estados Unidos. No Brasil, a proposta de controle rigoroso de fabricação e comércio de armas foi derrotada no referendo do Estatuto do Desarmamento. 40 41 Resultado do Referendo ocorrido em outubro de 2005. 42 Estatuto do Desarmamento: Lei 10.826/2003, arts. 6.º, 12, 14 e 35. Disponível em <http://www.soudapaz.org/Home/tabid/546/EntryID/164/language/pt-BR/ Default.aspx> Acesso em: 23 ago. 2011. 43 Disponível em: http://blog.planalto.gov.br/campanha-nacional-do-desarmamento-2011-tire-umaarma-do-futuro-do-brasil/> Acesso em: 23.ago.2011. 44 Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 147 combatê-la são necessárias diversas ações, que cuidem, também, do comércio, do porte e da posse das armas de fogo e munições. Dentre estas ações, acreditamos que sejam pertinentes olhares mais atentos à desigualdade social, à eficiência e à credibilidade dos sistemas de justiça e segurança pública, à geração de renda e sua melhor distribuição, sem nos olvidarmos da efetiva educação dos povos. Acreditamos que as mudanças legislativas já ocorridas no Brasil, sob a forma de tipificação criminal do porte ou da posse de arma de fogo ou de munição, e o aumento do rigor das sanções penais foram condições necessárias para a “solução” parcial do problema, apesar de, aparentemente, ter sido o início para desarmar apenas os civis – por meio da restrição do acesso às armas ditas legais. Mas as medidas tomadas foram parciais, pois ainda podem ser encontradas armas do Exército brasileiro ou, até mesmo, armas do “mercado ilegal” nas mãos da sociedade atemorizada, investida pelo sentimento de intolerância.45 6. Referências Bibliográficas Alprim, Alex; Schroeder, Gilberto. Transtorno de conduta. Revista Psicanálise, nº 04, jul. 2011, Editora Mythos, São Paulo. Baruffi, Helder. A educação como direito fundamental: um princípio a ser realizado. In: Fachin, Zulmar (coord.). Direitos fundamentais e cidadania. São Paulo: Método, 2008. p. 83-96. Benevides, Maria Victoria. 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Disponível em: http://www.vnews. com.br/noticia.php?id=97795; http://www.sidneyrezende.com/noticia/132643+sp+bandidos+levam+20 0+armas+de+dentro+do+forum+de+mogi+das+cruzes; http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/exclusivo-cm/ roubadas-dez-armas-de-guerra-nos-comandos-213726213. Acessos em 28 ago.2011. 45 Revista Liberdades - Edição Especial - dezembro de 2011 148 Díez Ripollés, José Luis. O direito penal simbólico e os efeitos da pena. Ciências Penais, v. 0, p. 24, jan. 2004. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004. p. 714. IBCCRIM. A escalada da violência. Editorial. Boletim IBCCRIM, ano 14, n. 166, set. 2006, p. 01. Lima, Maria Cristina de Brito. A educação como direito fundamental. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 4, n. 13, p. 213, 2001. Luckman, Thomas; Berger, Peter L. A construção social da realidade. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. Lyrio, Maria Eduarda Hasselmann de. O desarmamento em questão. 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