Escravos servos da gleba e assalariados pobres do século XXI
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Escravos servos da gleba e assalariados pobres do século XXI
Escravos, servos da gleba e assalariados pobres do século XXI: A propósito da ética do capitalismo Ramiro Marques A história do século XX é uma tragédia carregada de genocídios. Calcula-se que morreram, no século XX, por efeito directo das guerras e das perseguições políticas, mais de 100 milhões de pessoas (1). O início do século XXI segue o mesmo padrão. Morreram mais pessoas, no século passado, por efeito directo das guerras e das perseguições políticas do que nos vinte séculos anteriores. O século XX foi o século da mentira, da hipocrisia e dos genocídios, mas também foi o século das declarações e das leis sobre os direitos humanos. A retórica vazia dos direitos humanos é a herdeira directa da ética deontológica kantina, igualmente vazia e sem capacidade de aplicação às situações particulares. Há várias razões que explicam este fenómeno e esta contradição: o decréscimo das práticas religiosas nas comunidades dos países europeus, o definhamento da ética comunitária, a adesão aos messianismos marxista e nazifascista, a destruição das comunidades de proximidade, a generalização da ilusão igualitária e, claro está, o formidável progresso tecnológico na construção de novas armas de elevado poder mortífero. Todas as culturas e civilizações tiveram os seus pecados e os seus genocídios e não compete às gerações posteriores a responsabilidade dos actos ou a reparação dos males. Cada geração representa um novo começo. O melhor que cada geração pode fazer é a crítica das práticas que a geração anterior lhe deixou, aprender com os erros e comprometer-se com a realização de práticas excelentes. A Igreja Católica não tem de pedir perdão pelo 1 colonialismo. Bartolomeu de las Casas e o padre António Vieira são apenas dois exemplos de grandes figuras da Igreja que se bateram, ao lado das populações indígenas, pela defesa dos seus direitos, liberdades, e modo de vida. Antes de os europeus chegarem a África, já os árabes escravizavam as populações negras da África Central e antes dos árabes, já as populações negras escravizavam os vizinhos mais fracos. A escravatura em Atenas era mais civilizada que a exploração do proletariado, na Europa do século XVIII. Estou em crer que os escravos domésticos de Atenas (século IV a C) tinham uma melhor vida e mais dignidade do que muitos dos pobres que vivem em cidades europeias actualmente. Os milhares de sem abrigo que vegetam nas capitais europeias, as centenas de milhar de pessoas sem acesso a cuidados de saúde, na União Europeia e nos EUA, os milhões de desempregados da União Europeia e um terço da população portuguesa que vive abaixo do limiar da pobreza são tristes realidades do século XXI que nos obrigam a ser humildes e a recusar a arrogância cultural. Os senhores atenienses cuidavam dos escravos e, regra geral, tratavam-nos bem e com consideração. Convém não confundir a escravatura em Atenas com a escravatura romana. Na Idade Média, os servos da gleba, gozavam da protecção e da segurança oferecida pelos senhores. A sua inserção numa comunidade unida por fortes crenças religiosas garantia-lhes a esperança. Um jovem licenciado que trabalhe 40 horas por semana num call center, em Portugal, é capaz de ter mais stress, menos esperança e mais tristeza do que os escravos de Atenas. Os jovens licenciados, que trabalham nos bancos 40 horas por semana por um salário de 600 euros e com contratos de 6 meses, não gozam da segurança nem da protecção que era devida aos servos da gleba. Quem ganha 430 euros por 40 horas de trabalho e tem de pagar 600 euros pelo aluguer de um apartamento, tem, 2 naturalmente, pior vida do que os escravos de Atenas do século IV a C, que habitavam na "vila" do senhor e partilhavam com os senhores alimento, práticas e costumes. O colonialismo foi terrível, provocou imensas mortes e deslocações forçadas, mas os 100 milhões de mortos provocados pelas guerras no século XX causaram muito mais sofrimento. Na China, na década de 50 e 60 morreram à fome mais de 30 milhões de pessoas. Na Rússia de Staline foram assassinadas mais de 20 milhões de pessoas por motivos políticos. No Cambodja, na década de 80, em 3 anos, foram mortas 2 milhões de pessoas. Tudo isto em nome do messianismo marxista. Em Angola, em 1977, Agostinho Neto, o poeta e o médico “humanista”, mandou fuzilar ou permitiu que fuzilassem milhares de dissidentes do MPLA. As revoluções devoraram os seus filhos. A guerra civil angolana matou mais de quinhentas mil pessoas. A escravatura na Atenas de Aristóteles era menos cruel e menos stressante do que a vida dos pobres no século XXI. Os camponeses da época do feudalismo tinham mais protecção e mais segurança do que uma boa parte dos assalariados pobres portugueses do século XXI. A propósito da arrogância cultural e da cegueira, que tornam os homens e as mulheres do século XXI incapazes de compreenderem a realidade em que vivem e a natureza das forças que os oprimem, convido os leitores a lerem um texto do filósofo brasileiro, Olavo de Carvalho, onde dá conta dos efeitos alucinogénios da ilusão igualitária: “Nossos contemporâneos, imbuídos de ilusão igualitária, crêem que o mundo caminha para o nivelamento dos direitos, sem se perguntarem se esse objetivo pode ser realizado por outros meios senão a concentração de poder. Essa ilusão torna-os cegos para as realidades mais patentes, entre as quais a da elitização, sem precedentes, dos meios de poder. O imaginário moderno concebe, por exemplo, o senhor feudal como a epítome do poder pessoal 3 discricionário, e não se dá conta de que o senhor feudal estava limitado por toda sorte de laços e compromissos de lealdade mútua com seus servos, e que ademais não tinha outros meios de violência senão uns quantos cavaleiros armados de espada, lança, arco e flecha; homem entre homens, era visto por todos no campo e na aldeia, caminhava ou cavalgava ao lado de seu servo, às vezes trazendo-o na garupa, de volta da taberna onde ambos se haviam embriagado, e podia portanto, em caso de grave ofensa, ser atingido, inerme, nas campinas imensas onde o grito se perde na distância, por uma lâmina vingadora. Pela foice do camponês. Por uma faca de cozinha. Em comparação com ele, o homem poderoso de hoje está colocado a uma tal distância dos dominados, que sua posição mais se assemelha à de um deus ante os mortais. Em primeiro lugar, os poderosos estão isolados de nós geograficamente: moram em condomínios fechados, cercados de portões eletrônicos, alarmes, guardas armados, matilhas de cães ferozes. Não entramos lá. Em segundo lugar, seu tempo vale dinheiro, mais dinheiro do que nós temos; falar com um deles é uma aventura que demanda a travessia de barreiras burocráticas sem fim, meses de espera e a possibilidade de sermos recebidos por um assessor dotado de desculpas infalíveis. Em terceiro, os ocupantes nominais dos altos cargos nem sempre são os verdadeiros detentores do poder: há fortunas ocultas, potestades ocultas, causas ocultas, e nossos pedidos, nossas imprecações e mesmo nossos tiros arriscam acertar uma fachada inócua, deixando a salvo o verdadeiro destinatário que desconhecemos. Perdemo-nos na trama demasiado complicada das hierarquias sociais modernas, e temos razões para invejar o servo-da-gleba, que ao menos tinha o direito de saber quem mandava nele. Após dois séculos de democracia, igualitarismo, direitos humanos, Estado assistencial, socialismo e progressismo, eis a parte que nos cabe deste latifúndio: os poderosos pairam acima de nós na nuvem áurea de uma inatingibilidade divina. O servo-da-gleba também tinha o direito de ir 4 e vir, sem passaportes ou vistos e sem ser revistado na alfândega (o primeiro senhor de terras que resolveu taxar a travessia de suas propriedades desencadeou uma rebelião camponesa e pereceu num banho de sangue; o episódio deu tema a uma novela de Heinrich von Kleist: Michel Kolhaas). Tinha ainda o direito de mudar de território, caso lhe desagradasse o seu senhor, e instalar-se nas terras do senhor vizinho, que era obrigado a recebê-lo em troca de uma promessa de lealdade. E, por fim, se caísse na mais negra miséria, tinha as terras da Igreja, onde todos eram livres para plantar e colher, por um direito milenar; a Revolução encampou essas terras e as rateou a preço vil, enriquecendo formidavelmente os burgueses que podiam comprá-las em grande quantidade, e criando a horda dos sem-terra que foram para as cidades formar o proletariado moderno e trabalhar dezesseis horas por dia, sem outra esperança senão a de uma futura revolução socialista (que os reverteria a uma condição similar à de escravos romanos). E, se através de lutas e esforços sobre-humanos o movimento sindicalista obtém finalmente para essa horda a jornada de trabalho de oito horas e a semana de cinco dias, ela ainda está abaixo da condição do camponês medieval, que não trabalhava, em média, senão uns seis meses por ano. Eis como o progresso dos direitos nominais não se acompanha necessariamente de um aumento das possibilidades reais”.(2) A ética do capitalismo foi ocupando o espaço deixado vago pelo definhamento das éticas comunitárias. Francis Bacon (1561-1626) abriu o caminho, que iria ser desbravado e percorrido por Kant, traçando os contornos de uma ética individualista, que substituiu Deus legislador por uma pretensa Razão Universal. Estava aberto o caminho para o culto da Ciência e da Tecnologia como substitutos da fé e da esperança, as duas virtudes teologais que tinham alimentado o espírito dos homens da Idade Média. Com o advento do capitalismo, a esperança e a fé são substituídas pela crença no 5 progresso ilimitado e pelo culto da ciência, da tecnologia e do dinheiro. Os homens passam a ser avaliados por aquilo que têm, por aquilo que conquistam e não por aquilo que são ou por aquilo que fazem. A partir de Francis Bacon (3), a redenção, “a restauração do paraíso perdido, já não se espera da fé, mas da ligação recémdescoberta entre ciência e prática. Com isto, não é que se negue simplesmente a fé; mas, esta acaba deslocada para outro nível – o das coisas somente privadas e ultraterrestres – e, simultaneamente, torna-se de algum modo irrelevante para o mundo. Esta visão programática determinou o caminho dos tempos modernos, e influencia inclusive a actual crise da fé que, concretamente, é sobretudo uma crise da esperança cristã. Assim também a esperança, segundo Bacon, ganha uma nova forma. Agora chama-se fé no progresso. Com efeito, para Bacon, resulta claro que os descobrimentos e as recentes invenções são apenas um começo e que, graças à sinergia entre ciência e prática, seguir-se-ão descobertas completamente novas, surgirá um mundo totalmente novo, o reino do ser humano” (4) E o papa Bento XVI, na Encíclica sobre a Esperança e a Salvação, acrescenta: “Temos de lançar brevemente um olhar sobre duas etapas essenciais da concretização política desta esperança, porque são de grande importância para o caminho da esperança cristã, para a sua compreensão e persistência. Há, antes de mais nada, a Revolução francesa como tentativa de instaurar o domínio da razão e da liberdade agora também de modo politicamente real. Inicialmente, a Europa do Iluminismo contemplou fascinada estes acontecimentos, mas depois, à vista da sua evolução, teve de reflectir de modo novo sobre razão e liberdade. Significativos destas duas fases de recepção do que acontecera em França são dois escritos de Emanuel Kant, nos quais ele reflecte sobre os acontecimentos. Em 1792, escreve a obra 6 Der Sieg des guten Prinzips über das böse und die Gründung eines Reichs Gottes auf Erden (A vitória do princípio bom sobre o princípio mau e a constituição de um reino de Deus sobre a terra). Nela afirma: “A passagem gradual da fé eclesiástica ao domínio exclusivo da pura fé religiosa constitui a aproximação do reino de Deus”. Diz também que as revoluções podem apressar os tempos desta passagem da fé eclesiástica à fé racional. O “reino de Deus”, de que falara Jesus, recebeu aqui uma nova definição e assumiu também uma nova presença; existe, por assim dizer, uma nova “expectativa imediata”: o “reino de Deus” chega onde a “fé eclesiástica” é superada e substituída pela “fé religiosa”, ou seja, pela mera fé racional” (5). Um olhar ainda que breve sobre as “conquistas” do capitalismo ajuda a perceber o que se ganhou e o que se perdeu. Registou-se, sem dúvida, um avanço científico e tecnológico sem precedentes com consequências positivas ao nível da farmacologia e da medicina, aumentando a esperança média de vida e permitindo a cura de muitas doenças. Mas o que se perdeu foi enorme: milhões de pessoas arrancadas das suas comunidades e deslocadas à força para trabalhos forçados nas plantações da América e nas manufacturas e fábricas, nos séculos XVII, XVIII e XIX; cem milhões de mortos por efeito directo das guerras do século XX; cinquenta milhões de mortos por efeito das perseguições políticas do século XX; democratização e generalização do abuso de drogas com milhões de mortos por overdose, sida e tuberculose; devastação do continente africano por efeito da rapina colonial e da imposição de ideologias materialistas e individualistas; destruição do meio ambiente e dos recursos naturais à escala planetária; alastramento da pobreza e da miséria a largas camadas da população por efeito da globalização capitalista e de políticas destruidoras dos laços comunitários. Em termos estéticos, a perda foi devastadora. Basta lembrar que os homens da Idade Média 7 nasciam, cresciam e viviam em espaços naturais de rara beleza, que os homens do século XXI só podem aspirar a usufruir quando visitam os parques nacionais e as reservas naturais. Quando entramos numa igreja românica ou numa catedral gótica, compreendemos bem o esplendor estético da tradição medieval cristã. Quando percorremos as nossas cidades desordenadas, pejadas de automóveis, repletas de prédios sem beleza nem harmonia, é fácil de concluir o que os homens e as mulheres do século XXI perderam. Aos assalariados pobres do século XXI sobra apenas a existência cinzenta e triste dos bairros suburbanos, das gaiolas urbanas em que se transformaram os apartamentos para pobres, os espaços públicos ocupados por automóveis, o ruído, o medo gerado pela insegurança urbana, a alienação das televisões e dos centros comerciais e a dependência dos bancos (6) por efeito da escravização dos créditos para toda a vida. Notas 1) Barbara Hoff, num livro publicado em 2003, com o título No Lessons learned from the Holocaust, fez um cálculo sobre as mortes provocadas directamente pelos Governos (genocídios e democídios) e chegou a estes números: Sudan 10/56–3/72 400,000–600,000; South Vietnam 1/65–4/75 400,000–500,000; China 3/59–12/59 65,000; Iraq 6/63–3/75 30,000–60,000; Algeria 7/62–12/62 9,000–30,000; Rwanda 12/63– 6/64 12,000–20,000; Congo-K 2/64–1/65 1,000–10,000; Burundi 10/65–12/73 140,000; Indonesia 11/65–7/66 500,000–1,000,000; China 5/66–3/75 400,000–850,000; Guatemala 7/78–12/96 60,000– 200,000; Pakistan 3/71–12/71 1,000,000–3,000,000; Uganda 2/72– 4/79 50,000–400,000; Philippines 9/72–6/76 60,000; Pakistan 2/73– 7/77 5,000–10,000; Chile 9/73–12/76 5,000–10,000; Angola 11/75– 2001 500,000; Cambodia 4/75–1/79 1,900,000–3,500,000; 8 Indonesia 12/75–7/92 100,000–200,000; Argentina 3/76–12/80 9,000–20,000; Ethiopia 7/76–12/79 10,000; Congo-K 3/77–12/79 3,000–4,000; Afghanistan 4/78–4/92 1,800,000; Burma 1/78–12/78 5,000; El Salvador 1/80–12/89 40,000–60,000; Uganda 12/80–1/86 200,000–500,000; Syria 4/81–2/82 5,000–30,000; Iran 6/81–12/92 10,000–20,000; Sudan 9/83–2003 2,000,000; Iraq 3/88–6/91 180,000; Somalia 5/88–1/91 15,000–50,000; Burundi 1988 5,000– 20,000; Sri Lanka 9/89–1/90 13,000–30,000; Bosnia 5/92–11/95 225,000; Burundi 10/93–5/94 50,000; Rwanda 4/94–7/94 500,000– 1,000,000; Serbia 12/98–7/99 10,000. Robert Conquest, no livro The Great Terror: Stalins Purgue of the Thirties (Macmillan, 1968) contabilizou as seguintes mortes provocadas directamente pelo regime de Stalin: 1936-89 1,000,000; 1936-50 12,000,000; 1930-36 3,500,000; 1932-34 (Ucrânia) 5,000,000. R, J, Rummel, no livro Death by Government (Transaction Publishers, 1994) contabilizou 62 milhões de mortes, ocorridas entre 1917 e 1987, causadas directamente pelos regimes comunistas da URSS e dos países da Europa do Leste. 2) Olavo de Carvalho (2000). O Jardim das Aflições. S. Paulo: Isto é Realizões, p. 267-269 (www.olavodecarvalho.org) 3) http://plato.stanford.edu/entries/francis-bacon/ 4) Papa Bento XVI (2007). Encíclica Spe Salvi sobre a Esperança e a Salvação 5) Idem 6) Uma dependência bem mais cruel e impessoal do que a dependência dos servos da gleba face aos senhores. Na Idade Média, os senhores tinham obrigações de segurança e protecção para com os servos da gleba. Os bancos relacionam-se com os credores como se fossem coisas e não pessoas, a que se atribui um número, sem atender às suas qualidades, mas apenas aos seus rendimentos materiais. 9 10