Livro Direitos Humanos de Crianças e
Transcrição
Livro Direitos Humanos de Crianças e
1 DIREITOS DE CRIANÇAS A ADOLESCENTES NA AMAZÔNIA: Referências para a formação de Conselheiros Tutelares e de Direitos e outros atores do Sistema de Garantia. 2 Organizadores Salomão Hage, Lúcia Isabel Silva e Nazaré Araújo DIREITOS DE CRIANÇAS A ADOLESCENTES NA AMAZÔNIA: Referências para a formação de Conselheiros Tutelares e de Direitos e outros atores do Sistema de Garantia. 1º Edição Editora Gráfica UFPA Belém – 2015 3 2015 by, Editora Gráfica UFPA Título: Direitos de Crianças a Adolescentes na Amazônia: Referências para a formação de Conselheiros Tutelares e de Direitos e outros atores do Sistema de Garantia, 2015. Organizadores: Salomão Hage, Lúcia Isabel Silva e Nazaré Araújo Comitê Científico: Carlos Alberto Batista Maciel, Edval Bernardino Campos, Flávia Cristina Silveira Lemos, Lília Iêda Chaves Cavalcante, Lúcia Cortes da Costa, Paula Regina Arruda de Azevedo, Reinaldo Nobre Pontes e Sandra Helena Ribeiro Cruz. Revisão: Joana Sena Projeto Gráfico e capa: Cláudio Lima Assunção Diagramação: Joana Sena Impressão e Acabamento: Gráfica da Universidade Federal do Pará – UFPA. Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Organizadores: Salomão Hage, Lúcia Isabel Silva e Nazaré Araújo. Direitos de Crianças a Adolescentes na Amazônia: Referências para a formação de Conselheiros Tutelares e de Direitos e outros atores do Sistema de Garantia/ 1ª ed.,-Belém-Pará-2015. – 540p. Indexado em EscoladeConselhos – http://www.escoladeconselhospara.com.br ISBN 2446-8924 1. Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Educação, Escola de Conselhos. ISSN 2446-8924 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem autorização. 1ª Edição: Novembro de 2015. Instituto de Ciências da Educação / ICED – UFPA Rua Augusto Corrêa, nº 01. Campus Universitário do Guamá – Setor Profissional CEP: 66075-110, Belém – Pará [email protected] http://www.escoladeconselhospara.com.br/ https://pt-br.facebook.com/escoladeconselhospara/ 4 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO........................................................................................................08 Lúcia Isabel Silva, Salomão Hage e Nazaré Araújo PREFÁCIO....................................................................................................................11 Renato Roseno POR UMA CIDADE EM ESTADO DE POESIA......................................................15 Padre Bruno Sechi O PROGRAMA DISQUE 100 E A REDE DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA REGIÃO NORTE: Configuração, dificuldades e indicadores de dinamização....................................................................................................................19 Salomão Hage, Lúcia Isabel Silva e Nazaré Araújo. APÊNDICE 01: O PROGRAMA DISQUE 100 E A REDE DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA REGIÃO NORTE: CONFIGURAÇÃO, DIFICULDADES E INDICADORES DE DINAMIZAÇÃO....................................40 O RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA NA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE......................................................................49 Luanna Tomaz de Souza O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A EXPERIÊNCIA DA ESCOLA DE CONSELHOS NA AMAZÔNIA PARAENSE...................................63 Nazaré Araújo INDICADORES SOCIAIS DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NA AMAZÔNIA...................................................................................................................73 Alberto Damasceno, Carlos Maciel e Émina Santos 5 APÊNDICE 02: INDICADORES SOCIAIS DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NA AMAZÔNIA............................................................................................................83 POR UMA AGENDA PARA AS CRIANÇAS DA AMAZÔNIA.............................85 Fábio Atanásio de Morais CRIANÇA E DIREITOS HUMANOS: EDUCAÇÃO E CIDADANIA NA INFÂNCIA.....................................................................................................................97 Ana Maria Orlandina Tancredi Carvalho O FÓRUM DE DEFESA DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES: Polêmicas e questões.................................................................114 Carlos Alberto Batista Maciel FUNDO DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA: INSTRUMENTO PARA CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS........................................................................122 Patrícia de Fátima de Carvalho Araújo OS DESAFIOS PROCESSUAIS DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL NOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES.......................................................................................................143 Suzany Brasil MÍDIA E REPRESSÃO PENAL: A MÍDIA COMO FATOR POLÍTICO CRIMINAL. A “ESCOLHA” MIDIÁTICA DOS DELINQUENTES: OS ADOLESCENTES ESTÃO NA “MIRA”.................................................................160 Ana Celina Bentes Hamoy APRESENTANDO O MOVIMENTO PELA VALORIZAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA AMAZÔNIA.....................................160 Izabela Jatene de Souza e Valdemir Monteiro Corrêa. 6 O CONSELHO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E ADOLESCENTE E O CONSELHO TUTELAR E SUA RELAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA INTERSETORIALIDADE NA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES....................................................................................................................169 André Franzini DESAFIOS PARA INCLUSÃO DOS INDÍGENAS NOS DIREITOS DAS CRIANÇAS..................................................................................................................222 Assis da Costa Oliveira SOBRE OS AUTORES...............................................................................................224 7 APRESENTAÇÃO Salomão Hage Lúcia Isabel Silva Nazaré Araújo As temáticas da infância e adolescência e juventude impuseram-se na agenda de debates das políticas públicas no Brasil, sobretudo nas últimas três décadas como resultado de um amplo movimento social, em defesa dos direitos destes segmentos populacionais. Este debate fez emergir uma nova concepção social de infância e adolescência na qual estes sujeitos são vistos como sujeitos em um período especial do desenvolvimento, exigindo, portanto, cuidados e proteção especiais por parte da sociedade. A aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069 de 13.07.1990 – ECA) constituiu-se no grande marco desta concepção no Brasil, juntandose com outras normativas internacionais que avançam significativamente na compreensão sobre as crianças e adolescentes, como sujeitos de direitos. Esta prerrogativa coloca assim, estes segmentos como prioritários na garantia na garantia das necessidades de desenvolvimento em suas mais diversas dimensões – orgânicas, afetivas, cognitivas, emocionais e sociais e desencadeando uma série de ações, programas e políticas para todas as crianças e adolescentes e com um olhar especial para os sujeitos considerados como vivendo em situação de risco. Estas referências passam a pautar grande parte das ações governamentais e não governamentais desde então. Vale ressaltar que a efervescência do debate em torno da doutrina de proteção integral defendida pelo ECA e do protagonismo dos movimentos sociais e acadêmicos e iniciativas governamentais tem sido responsável por grandes avanços neste campo. Por outro lado, este movimento também revela que o caminho da conquista da cidadania plena para todas as crianças e adolescentes brasileiros ainda é longo. 8 Várias questões e desafios se interpõem nesse caminho, em especial, a necessidade de mudanças nas formas de pensar criança e adolescentes e seus diversos processos de desenvolvimento e papeis sociais e o distanciamento entre as prerrogativas legais e as condições concretas de existência desses sujeitos. Sabe-se que infância e adolescência, como todas as etapas da vida, são resultantes dos processos de interação entre um sujeito, com suas características individuais e os diferentes contextos dos quais estes participam aí incluídas as oportunidades, estímulos e recursos que estes contextos podem oferecer e das condições e fatores pessoais que cada sujeito é capaz de construir nestas relações – daí porque nenhuma análise dos processos de desenvolvimento pode ser feita sem considerar estas variáveis. Pensar nestas etapas como construções históricas e relacionais impõe então indagar quais direitos básicos se acham garantidos nestas trajetórias? As condições materiais de vida, o acesso à educação, saúde, alimentação, lazer e as possibilidades de vivências, sociabilidade, formação de vínculos seguros estão asseguradas de forma ampla a todos as crianças e adolescentes? O que significa perguntar, portanto, o que tem significado ser criança ou adolescente no Brasil e na Amazônia? Os artigos que se encontram neste livro, de diferentes formas e perspectivas, dialogam, com estas questões, cobrindo as seguintes temáticas: a atuação da rede de proteção de direitos na Amazônia; o olhar sobre a evolução histórica dos direitos de crianças e adolescentes; a experiência da Escola de Conselhos na formação de agentes de defesa de direitos; alguns indicadores sociais sobre infância e adolescência; educação e cidadania, os movimentos em defesa dos direitos, pela valorização do ECA e a atuação dos Fóruns, Conselhos de Direitos e Tutelares na garantia dos Direitos Humanos de crianças e adolescentes; a importância do Fundo da Infância e Adolescência como instrumento na concretização de direitos; os desafios para a responsabilização penal de crimes cometidos contra crianças e adolescentes; os desafios para a inclusão dos direitos de crianças indígenas na agenda de debates. 9 Todos os artigos foram elaborados por pesquisadores, estudiosos e, sobretudo, militantes e defensores dos direitos das crianças e adolescentes na Amazônia com atuação nos diferentes setores que compõem esta rede de proteção. A Escola de Conselhos como um projeto que tem efetivado a formação permanente de conselheiros de direitos das crianças e adolescentes e de conselheiros tutelares, de forma a fortalecer o Sistema de Garantia de Direitos das Crianças e Adolescentes, se orgulha de participar desta trajetória e de apresentar esta coletânea à sociedade. Esperamos que a leitura seja prazerosa e que possa contribuir cada vez mais para o fortalecimento das ações individuais e coletivas em defesa dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes na Amazônia. Os organizadores. 10 PREFÁCIO Maria de Nazaré Sá de Oliveira O Estatuto da Criança e Adolescente é uma lei que foi elaborada e assegurada dentro de um processo de organização, mobilização e vontade política para mudar um cenário histórico de violação de direitos de crianças e adolescentes em nosso país. No processo de implementação desta lei, vários atores tem tido papel significativo. Identificamos a implantação e implementação da Escola de Conselhos como uma das possibilidades concretas de assegurar aos operadores do Estatuto da Criança e Adolescente, condições objetivas de analisar, compreender e aplicar no cotidiano, uma lei que garante os direitos humanos de crianças e adolescentes. A estruturação e a consolidação da Escola de Conselhos se constituem em um projeto que prioriza crianças e adolescentes através de ações formativas que pretendem capacitar os profissionais da rede de garantia de direitos para que se tornem propulsores de uma nova cultura de direitos humanos, conforme o “Art: 227 da Constituição Federal do Brasil”. “Buscamos com a implantação da Escola de Conselho uma formação entendida, como “o esforço permanente de qualificação teórico prática dos conselheiros tutelares e de direitos, visando seu envolvimento nos processos de elaboração, intervenção, acompanhamento e controle das políticas públicas de atendimento a crianças e adolescentes”, objetivando-se alcançar o propósito de incorporar a dimensão política ao papel desses conselheiros, como agentes de transformação da realidade” (PPP Escola de Conselhos. Pág. 09). 11 Toda a experiência da Escola de Conselhos do Pará tem sido desenvolvida em um processo de troca de saberes teóricos e práticos, que tem como princípio partir das experiências concretas de cada participante, que se enriquecem com informações e análises teóricas e práticas, gerando novos subsídios na realização das atividades formativas. O percurso formativo une experiências práticas com referenciais teóricos, abarcando diversos vários conteúdos, entre eles: aspectos históricos e concepções sobre a criança e adolescência, Políticas públicas no Brasil, Orçamento Público, Doutrina protetiva que norteia a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Nesta experiência da Escola de Conselhos consideramos que as ações de capacitação se concretizam em Vivências Formativas onde todos os participantes têm contribuições a partir de suas experiências cotidianas as quais se juntam a referenciais legais, políticos, psicológicos e filosóficos. Reconhecendo que as crianças e adolescentes são constitucionalmente sujeitos de direitos humanos e que devem ter seus direitos assegurados com prioridade absoluta, fomos partilhando, construindo e reissignificando saberes que nos permitiram o fortalecimento de pessoas encorajadas e seguras em suas atribuições na rede de garantia de direitos. Em todos os momentos é fundamental o interesse de Conselheiros Tutelares, Conselheiros de Direitos, Gestores e Técnicos da maioria dos municípios que superaram adversidades como a escassez de recursos, distâncias e porque não citar, a falta de prioridade absoluta para garantir recursos para ações formativas na área de crianças e adolescentes. Tendo clareza que o cumprimento do ECA se baseia no conhecimento, interpretação e garantia de instrumentos técnicos e jurídicos que fomentam a cultura de respeito aos direitos humanos, buscamos chegar em todos os municípios, superando as distâncias regionais de nosso estado, através articulação de polos regionais e em alguns momentos de forma presencial nos municípios. 12 Com a união de forças o processo avançou. A experiência ratificou o pressuposto de que processos de capacitação demandam articulações amplas. Assumimos o desafio de buscar permanentemente interlocução com outros órgãos e instituições, tais como o Ministério Público, Defensoria Pública, Tribunal de Justiça, Secretarias Estaduais e Municipais, Organizações não Governamentais, Universidades, Conselho e Fórum Estadual dos Direitos da Criança e Adolescente, Associação de Conselheiros Tutelares. Avançamos também através de reuniões do Núcleo Gestor da Escola de Conselhos, que apesar de entraves para encontros sistemáticos, temos conseguido a mobilização e o acompanhamento das atividades formativas. A constituição da equipe de formadores deu-se em um processo singular, no qual conseguimos reunir estudiosos da área da infância e adolescência e profissionais com vivências práticas na garantia de direitos humanos. Ultrapassando os muros da Universidade, onde ainda se verifica que a pauta de direitos humanos de crianças e adolescentes não se constitui objeto central de estudos e pesquisas, podemos dizer que avançamos, envolvendo profissionais que estavam fora do espaço docente da academia e trouxeram experiências do processo de luta e conquista de instrumentos e espaços na área da infância e adolescência, buscando efetivar a lei 8069 – Estatuto da Criança e Adolescente. Hoje temos um grupo de profissionais que ao longo desses anos de atuação na Escola de Conselhos, vem se debruçando e consolidando uma proposta metodológica que se alimenta da prática, sistematiza referenciais teóricos e incorpora novos paradigmas de ação que dão sustentação permanente a luta por justiça e dignidade humana. Hoje temos certeza que contribuímos e continuaremos juntando saberes e fazeres teóricos e práticos na perspectiva de dias melhores para nossas crianças, adolescentes e nossa sociedade e este livro que agora chega às suas mãos é fruto e testemunho desta caminhada. Que ele possa seguir contribuindo nos processos formativos de todos os agentes da rede de garantia de direitos. 13 Todos (as) que tiveram a oportunidade de participar das Vivências formativas e de outras ações realizadas pela Escola de Conselhos têm o compromisso de partilhar a certeza daquilo que Geraldo Vandré nos fala na música Caminhando e Cantando “Vem vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Façamos a hora. Vamos unir os esforços, os conhecimentos e continuar firmes para fazer o Estatuto da Criança e Adolescente valer para todas as crianças e adolescentes brasileiras. 14 POR UMA CIDADE EM ESTADO DE POESIA Pe. Bruno Sechi Belém, fevereiro de 2015 Vivo como todos nós vivemos, numa cidade linda de um povo que amamos. Por amor e paixão desejo-a, com suas crianças, uma “cidade em estado de poesia”. “A criança é o homem em estado de poesia”, e todas as crianças “hão de nos reensinar a vida”, escreve o nosso poeta Paes Loureiro. Que elas sejam o centro de gravitação de um povo. Por amor e paixão por este povo e seu mundo infanto-juvenil venho aqui com algumas reflexões. Precisamos olhar de frente os desafios que hoje se põem e exigem políticas públicas firmes e corajosas que efetivamente privilegiem o resgate das condições de vida digna para todos. Há 25 anos foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): lei fruto do amor pelas crianças e jovens, mais do que de outros interesses! Fruto de um claro compromisso de torná-los, de direito e de fato, sujeitos de direito. Uma lei bonita que esbarrou, na sua implementação, com outros interesses, desta feita, econômicos e políticos: eles vêm impedindo até hoje a adoção de medidas que efetivamente garantam o direito à vida digna para todas as crianças. Família! A criança não pode ser dissociada de sua família, quando se consideram políticas globais de atendimento. A situação da criança é, geralmente, a expressão mais contundente vivida por sua família. É claro que, na atual situação, uma parte dos esforços que venham a ser dirigidos em favor da criança deve contemplar a correção de distorções já estabelecidas, como é o caso de abandonados, viciados, infratores, ou vítimas das muitas variações da violência. Mas o principal eixo de qualquer política séria deverá ser sempre o 15 cumprimento do direito constitucionalmente assegurado à criança que é de seu crescimento em ambiente familiar estável. O trabalho é condição objetiva de sobrevivência: só há possibilidade de assegurar plenamente os direitos da criança em ambiente familiar estável, quando as políticas públicas priorizarem decididamente moradia, ocupação e renda satisfatória. Muitas áreas que já foram consideradas periféricas vêm sendo palco de uma intensa transformação: grandes investimentos que beneficiam os já aquinhoados, expulsam os pobres para moradias cada vez mais distantes da cidade. De um lado, o “progresso”, do outro, famílias que vivem em espaços mínimos, sem condições de moradia, saneamento, cultura, profissionalização e opção de lazer, sem praças, parques ou qualquer espaço de sadia convivência. Quando a família, como primeiro e sagrado espaço de educação e formação, perde o estado de poesia por viver em condições subumanas, sem trabalho digno, em moradia precária, em ambiente insalubre, sem creche, sem atendimento digno à saúde... Vai ser difícil transmitir aconchego e harmonia dentro de casa. Verdadeiros heróis são aqueles pais que, mesmo nessas condições, dão afeto, carinho e educação sadia a seus filhos. Educação! “Aí se planta o grão da liberdade. Aí se planta o sonho e a esperança!” É responsabilidade de todos: da família, do Estado e da sociedade; não é restrita à escola obrigatória e sim extensiva à educação infantil, programas sociais, de lazer, esporte, cultura... A escola viverá seu estado de poesia quando se tornar centro de irradiação de conhecimento, valores e cidadania em perfeita e estreita sintonia com a família e os outros agentes sociais que dividem a missão de educar, como igrejas, centros sociais, organizações de inclusão social – espaços de exercício da cidadania, celeiros de participação, organização e protagonismo juvenil. A alegria, a satisfação e o bem-estar de mestres e educadores irradiam-se nas crianças e jovens. Entretanto, quando o educador é mal remunerado, luta pela subsistência em condições precárias de vida, em periferias sem infraestrutura e 16 esquecidas, torna-se difícil transmitir essa alegria e satisfação. Aqueles que, mesmo nessas condições, fazem da educação sua vital doação e missão, também são heróis. A despeito de todo histórico de luta da comunidade e das conquistas alcançadas para a melhoria de vida, ainda existem dificuldades graves: alto índice de violência, insegurança, precariedade nos serviços de saúde, desemprego, subempregos, falta de creches e escolas e ensino de péssima qualidade, reduzindo as possibilidades de inclusão de crianças, adolescentes e jovens na vida social. O trabalho infantil, o envolvimento com as drogas e o tráfico, entre outras formas de violência e exclusão, dão o quadro do desafio a ser enfrentado para que crianças e jovens vivam com dignidade sua infância e juventude. A redução da maioridade penal, tão propalada como solução para a violência, tornará ainda mais excludente e vingativa a sociedade: por aí nunca teremos a poesia do resgate do amor perdido. Os nossos jovens estão morrendo, estão sendo mortos! Jovens que nasceram e cresceram sem o aconchego e o carinho de uma sociedade-mãe, deixados desde cedo nas calçadas da vida, nas ruas da amargura, para se tornarem alvo de uma insana gana de extermínio. O que fazer, nesse panorama, para que esta minha linda cidade viva em estado de poesia? Que os conselhos tutelares, de conselheiros amantes das crianças e acima de conveniências pessoais ou políticas, sejam incansáveis na sua missão. Que os conselhos de direitos, de conselheiros conscientes de sua responsabilidade política, sejam espaços de autêntica busca de superação de toda forma de exclusão. Que em todos os bairros haja creches e centros de juventude: espaços de acolhida e convivência sadia; verdadeiros celeiros de cidadania. Que as pessoas possam sentar e “papear” nas soleiras das casas, reparando suas crianças a brincar alegres em ruas e praças limpas e bonitas. 17 Que os alunos, organizados em suas agremiações, participem com seus mestres e pais na construção de escolas para a vida. Que nos hospitais e nos centros de saúde as pessoas se sintam acolhidas e atendidas em sua dor com cuidado e sem as famigeradas senhas e filas. Que as instituições e os programas de “ressocialização” demonstrem aos jovens efetivas chances de novos horizontes. Que a polícia seja cidadã ao lado dos cidadãos. E que os governantes e os homens públicos... Criem vergonha e sintam o orgulho de oferecer, a todos, os recursos públicos transformados em dignidade. Sonho ou utopia? Infelizmente a economia de mercado está nos tolhendo à capacidade de sonhar e caminhar na realização de nossas utopias. Não quero ser escravo disso: quero continuar com meus sonhos e lutando pelas minhas utopias que, graças a Deus, são os mesmos sonhos e utopias de uma miríade de homens e mulheres: um dia, nós ou nossos filhos, iremos conseguir viver numa cidade em estado de poesia. O papa Francisco (como eu gosto deste papa!), no seu discurso aos participantes do Encontro Mundial de Movimentos Populares, aponta o caminho da construção: solidariedade como modo de fazer história e garantia dos direitos sagrados da terra, teto e trabalho para todos. Quero terminar com um apelo à minha cidade: Belém vai completar 400 anos de fundação. Que seja de fato o que seu nome significa: “Casa do Pão”. Pão partilhado da comida, do teto e do trabalho; pão da dignidade para todos. Que seja a pátria da ternura humana para suas crianças. 18 O PROGRAMA DISQUE 100 E A REDE DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA REGIÃO NORTE: CONFIGURAÇÃO, DIFICULDADES E INDICADORES DE DINAMIZAÇÃO Salomão Hage Lúcia Isabel Silva Nazaré Araújo INTRODUÇÃO O Programa Disque Denúncia (Disque 100) foi originalmente criado por um conjunto de organizações atuantes na área de promoção e defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes no final da década de 1990, como um canal de denúncia de violações dos Direitos Humanos das crianças e adolescentes. Em 2003, este programa passou a ser responsabilidade do governo federal, sob a coordenação da recém-criada Secretaria de Direitos Humanos, da Presidência da República (BRASIL, 2014). A transferência de responsabilidade ampliou as ações do programa, que, além de receber as denúncias, passou a articular uma rede de equipamentos e serviços de atendimento e proteção em todo o Brasil, a partir dos casos concretos denunciados, além de ampliar seu leque de abrangência, passando a receber demandas relativas a violações de direitos humanos dos diversos grupos mais vulneráveis, como: crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas com deficiência, população LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), pessoas em situação de rua, quilombolas, ciganos, índios, pessoas em privação de liberdade. O programa se propõe a receber as denúncias e agir para interromper a situação de violência, atuando então no encaminhamento para a rede de proteção ou de responsabilização e monitorando a atuação dessa rede no encaminhamento dos casos. As ações do programa incluem ainda a divulgação de conhecimentos e de informações sobre direitos humanos e sobre os serviços e instrumentos de atendimento, proteção, defesa e responsabilização disponíveis no âmbito dos três entes federados. 19 Desde a sua criação, o número de denúncias vem apresentando aumento gradativo, um indicativo da crescente violação aos direitos humanos, bem como da conscientização da população em não tolerar tais violações. Em termos da abrangência territorial, o programa apresentou progressão de 459,87%, passando de 892 municípios em 2003 para 4.994 em 2011, o que significa que 90% dos municípios brasileiros são atendidos pelo programa. O aumento das denúncias revela ainda a importância do programa Disque 100 como canal de denúncia e enfrentamento às violações no Brasil. Os dados da Secretaria de Direitos Humanos registravam até 2011 um total de 2.937.394 atendimentos e 195.932 encaminhamentos de denúncias de todo o país, considerando apenas o módulo criança e adolescente (BRASIL, 2012). Apenas entre 2011 e 2012 o crescimento foi de 77%, sendo que em 2012 foram registrados 234.839 atendimentos. Os dados também indicam crianças e adolescentes como as principais vítimas das violações de direitos humanos no país, sendo vítimas de 77% das denúncias; os idosos, as pessoas com deficiência e a população LGBTT também aparecem como alvos significativos1. Entre este último grupo, os dados mostram crescimento de 166%, em 2012, registrando 3.084 denúncias (BRASIL, 2012). Além da ação direta no encaminhamento das denúncias, o programa também gera um material de fundamental relevância para a compreensão do cenário da violação de direitos humanos no Brasil, permitindo identificar e mapear áreas críticas, subsidiar a proposição de políticas públicas e visibilizar as necessidades da rede de organizações de atendimento que precisam acompanhar a mesma abrangência e funcionar eficientemente. Esta questão aponta, assim, para uma reflexão sobre o sistema de garantia de direitos em sua necessária estruturação e articulação em rede, integrando, portanto, as ações de defesa, promoção, controle e disseminação. 1 Disponível em: http://dp-mt.jusbrasil.com.br/noticias/100238024/numero-de-denuncias-de-violacoes-de-direitos-humanos 20 O pressuposto de um sistema de garantia de direitos é a percepção de que esta garantia é de responsabilidade de diferentes instituições que atuam cada uma dentro de suas competências, mas necessariamente de forma articulada. Conforme apontado por Baptista (2012, p. 187): as instituições legislativas nos diferentes níveis governamentais; as instituições ligadas ao sistema de justiça – a promotoria, o Judiciário, a defensoria pública, o conselho tutelar – aquelas responsáveis pelas políticas e pelo conjunto de serviços e programas de atendimento direto (organizações governamentais e não governamentais) nas áreas de educação, saúde, trabalho, esportes, lazer, cultura, assistência social; aquelas que, representando a sociedade, são responsáveis pela formulação de políticas e pelo controle das ações do poder público; e, ainda, aquelas que têm a possibilidade de disseminar direitos fazendo chegar a diferentes espaços da sociedade o conhecimento e a discussão sobre os mesmos: a mídia (escrita, falada e televisiva), o cinema e os diversificados espaços de apreensão e de discussão de saberes, como as unidades de ensino (infantil, fundamental, médio, superior, pós‑graduado) e de conhecimento e crítica (seminários, congressos, encontros, grupos de trabalho). Na prática, entretanto, o pressuposto da articulação e integração da rede, tem sido insistentemente tanto perseguido, quanto criticado pelos diversos profissionais que atuam nas instituições e por pesquisadores, que reconhecem esta necessidade para a eficácia da garantia dos direitos. De acordo com Baptista (2012, p. 188): A organização e as conexões desse sistema complexo supõem, portanto, articulações intersetoriais, interinstâncias estatais, interinstitucionais e interregionais. Supõem também ausência de acumulação de funções – o que exige uma definição clara dos papéis dos diversos atores sociais, situando-os em eixos estratégicos e interrelacionados; integralidade da ação, conjugando transversal e intersetorialmente as normativas legais, as políticas e as práticas, sem conformar políticas ou práticas setoriais independentes. 21 Os diversos atores reconhecem a complexidade e a amplitude dos desafios a serem enfrentados que passam desde uma lógica de planejamento integrado nos diferentes níveis de ação governamental e dos setores institucionais, passando pela garantia de condições estruturais adequadas para funcionamento pela presença qualificada de um conjunto de profissionais, até o desafio da legitimidade e da garantia da participação democrática dos diversos segmentos da sociedade. Claro está, portanto, que o funcionamento da rede de garantias de direitos impõe condições concretas para que esta opere eficientemente, sendo que algumas destas condições precisam estar “dadas” a priori, enquanto outras se tecem cotidianamente, na dinâmica das relações entre os diferentes atores, que precisam assumir sua interdependência e complementaridade. Diante destes pressupostos e exigências para o funcionamento da rede, a questão que se coloca é a necessidade de compreender e manter diagnósticos atualizados e abrangentes sobre a composição e atuação concretas destas, em diferentes regiões do país, como instrumentos para proposição de políticas e alternativas de fortalecimento e aperfeiçoamento das estruturas presentes, aumentando assim, a eficiência de sua atuação. É justamente nesta perspectiva que este trabalho se insere, apresentando parte dos resultados da pesquisa DISK DIREITOS HUMANOS – apresentando indicadores para dinamização do sistema de denúncia na Amazônia, estudo coordenado pela Escola de Conselhos (Instituto de Ciências da Educação/Universidade Federal do Pará), dentro do PROJETO DIÁLOGOS EM REDE – Construindo Políticas Públicas de Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O estudo se propôs a identificar e mapear órgãos, instituições e equipamentos que compõem na região Norte, a rede de promoção e defesa que atua nas violações de direitos humanos, identificando os níveis de articulação e mobilização da referida rede, as dificuldades nessa articulação e as potencialidades para sua dinamização, identificando, por exemplo, pontos de referência ou cidades polo para a estruturação da política. 22 Foram ouvidos os seguintes órgãos, equipamentos e instituições: delegacias especializadas, promotorias, Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Conselhos de Comunidade (LEP), defensorias públicas, varas de execução penal, centros de referência do idoso, unidades de privação de liberdade, centros de referência para a população LGBT e Centros de referência de direitos humanos. Os equipamentos responderam a um questionário de 72 itens, entre questões fechadas e abertas, sobre funcionamento, demandas e estrutura. Este artigo apresenta dados coletados na região Norte, nos estados do Acre, Amapá, Pará, Roraima, Rondônia, Tocantins e Amazonas. O estudo foi coordenado pela equipe da Escola de Conselhos (ICED/Universidade Federal do Pará), em parceria com uma rede de pesquisadores e universidades do Norte do Brasil. Utilizou-se a metodologia de coleta de dados em rede, articulada por pesquisadores vinculados a uma universidade pública de cada um dos estados da região Norte envolvidos: Acre, Amapá, Pará, Roraima, Rondônia, Tocantins e Amazonas. Os resultados alimentaram um banco de dados que passou a compor um banco nacional (Ver Apêndices A e B sobre a rede de pesquisa e abrangência). UM POUCO DO CONTEXTO NO QUAL SE INSERE A REDE DE PROTEÇÃO DE DIREITOS HUMANOS NA REGIÃO NORTE Considera-se que para falar sobre as instituições e os equipamentos que compõem a Rede de Proteção de Direitos Humanos na Região Norte, seus níveis de articulação e mobilização, as dificuldades e potencialidades para a sua dinamização, exige uma compreensão mais abrangente do contexto sócio-político-cultural e territorial no qual esta rede se insere. Inicialmente, vale ressaltar que falamos de uma região que ocupa 60% do território brasileiro, atingindo 5,1 milhões de km² e que, embora ainda pouco povoada, vem experimentando grande crescimento populacional nos últimos anos, tendo 23 aumentado em 23% entre os anos de 2000 e 2010, enquanto no restante do país esse aumento ficou em torno de12% (IBGE, 2010). Para compreender melhor essa realidade é necessário considerar que a região Norte é marcada fundamentalmente pela heterogeneidade, que se expressa em vários aspectos, dentre os quais destacamos: ambientais, produtivos, socioculturais, e isso de forma direta, implica um conjunto de questões que precisam ser levados em conta quando temos intenção de garantir direitos humanos a grupos e seguimentos sociais como crianças e adolescentes, idosos, mulheres, pessoas em extrema pobreza, usuários de drogas, negros e pardos, pessoas em situação de rua, quilombolas, indígenas e ribeirinhos, população LGBT e, consequentemente, enfrentar as situações violadoras desses mesmos direitos, associadas às especificidades próprias da região. No tocante à heterogeneidade ambiental, a região Norte é constituída por um conjunto variado de ecossistemas, que tecem complexas e ricas teias de biodiversidade, possuindo a maior área preservada de floresta tropical do planeta e de diversidade biológica, com 250 milhões de hectares de floresta e cerca de 30 milhões de espécies vegetais e animais; possui também o maior reservatório de água doce existente no planeta, com uma extensão de 4,8 milhões de km², que representa cerca de 17% de toda a água líquida e 70% da água doce do planeta. Esse potencial hídrico é visto pelos setores produtivos de larga escala na região como um enorme recurso energético para alimentar a exploração e a extração de minérios e os projetos das grandes barragens são colocados na ordem do dia, causando grandes impactos ambientais, econômicos e socioculturais, poluindo rios e desestruturando os modos de vida de populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas, comprometendo a existência e sustentabilidade dessas populações. As situações de violação de direitos humanos são muito frequentes, submetendo populações e grupos sociais locais a várias atividades produtivas ilegais como: o trabalho escravo, trabalho infantil, tráfico humano e com a exploração sexual de jovens e adultos, de crianças e adolescentes, que ocorre em troca de alimento, sabão, querosene ou outros produtos necessários à sobrevivência, por ocasião da passagem de navios e embarcações nas proximidades de suas comunidades. Há ainda o envolvimento 24 de crianças e adolescentes na extração da madeira, do palmito e do fruto do açaí na floresta, no trabalho nas carvoarias ou por meio de práticas de mendicância em que as crianças esmolam em seus pequenos barcos e terminam sendo retiradas da escola, prejudicando sua aprendizagem e ameaçando seu presente e futuro. Todas essas situações são decorrentes da pobreza em que vive um número significativo de famílias na Amazônia, que pela falta de terem atendidos os direitos humanos e sociais fundamentais para sua sustentabilidade, são submetidas a situações de exploração material e humana e não visualizam possibilidades de futuro e de viverem com dignidade. No que concerne à sua heterogeneidade produtiva, o Norte apresenta uma estrutura bastante complexa e muito diferente de outras regiões do país, uma vez que existem, em um mesmo espaço, de forma contraditória e conflituosa, atividades econômicas de base familiar, cooperadas e solidárias, que envolvem tecnologias simples; e processos de produção caracterizados como médios e grandes empreendimentos que usam sofisticadas e complexas tecnologias, desenhando, assim, uma matriz geográfica conflituosa de uso e de significado do território e dos recursos naturais, que se expressam em lógicas e práticas produtivas diferentes e opostas. Essa complexidade se materializa na perspectiva específica do grande capital, Grandes Projetos de exploração e exportação realizados por grandes empresas nacionais e multinacionais, assentadas numa plataforma científico-tecnológica, em larga escala, que amplia seu potencial de produção, de mercado, sobretudo externo, e de astronômico volume de lucros, explorando o potencial mineral, madeireiro, energético, hídrico, ambiental e cultural da região, sem considerar e respeitar, muitas vezes, as características de vida pujante da região. No seio dessa matriz e lógica produtiva, encontram-se três eixos produtivos concêntricos: a extração e exploração madeireira, a pecuária extensiva, e, mais recentemente, a existência do agronegócio, com a produção de grãos, especialmente a soja, que expande a fronteira agropecuarista no Norte. Em comum, esses grandes empreendimentos têm produzido riqueza para fora e para poucos, num processo que ao fortalecer o padrão de desenvolvimento competitivo e consumista, amplia as desigualdades sociais e os impactos ambientais em 25 larga escala, levando à desestruturação de modos de vida e de trabalho das populações tradicionais da região e submetendo as populações locais a condições indignas de vida, como o trabalho escravo e a produção nas carvoarias, anteriormente mencionados. Numa perspectiva contraditória e de resistência, a agricultura de base familiar também se faz efetivamente presente na região Norte, representada no período mais recente por um contingente de cerca de 750 mil pequenos agricultores, que no cultivo da roça envolvem todos os componentes da família na garantia da subsistência. Esse segmento representa 85,4% do total de estabelecimentos rurais da região, os quais ocupam 37,5% do total da área regional, produzindo 58,3% do valor bruto da produção agropecuária na região (MDA, 2002). É interessante notar, no caso das crianças e dos adolescentes, que o envolvimento nessas atividades produtivas de base familiar, pode ser interpretado, por um lado, como uma questão cultural, que afirma e reproduz os modos de vida próprios das populações tradicionais, compartilhando as tarefas relacionadas à sobrevivência de todos os membros da família; por outro, essas atividades produtivas de base familiar, que envolvem o trabalho na roça, nas casas de farinha e em muitas outras atividades agrícolas, já mencionados anteriormente, mantêm as crianças e adolescentes ocupados, trabalhando, ao invés de estarem frequentando a escola. Dados recentes, divulgados pelo Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil, indicaram a existência de 412.753 crianças ocupadas na região Norte, e o estado do Pará como líder nesse processo, ao possuir 192.302. Esses mesmos dados indicam que 80,7% têm entre cinco e nove anos e que a maioria delas trabalha em atividades agrícolas2. No que concerne à heterogeneidade sociocultural, a Amazônia é marcada por uma ampla diversidade sociocultural, composta por populações que vivem no espaço urbano e rural, habitando um elevado número de povoados, pequenas e médias cidades e algumas metrópoles. Contudo, a maioria possui poucas condições para atender às necessidades dessas populações, por apresentar infraestrutura precária e não dispor de serviços essenciais para assegurar direitos básicos, como habitação, saúde, saneamento, lazer e educação. 2 O LIBERAL, 12.06.2011 26 No caso das populações que vivem no meio rural encontram-se indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas, assentados, pescadores, agricultores familiares, colonos, migrantes, oriundos especialmente das regiões Nordeste e do Centro-Sul do país, entre outras. São grupos que apresentam seus modos de vida próprios e suas tradições socioculturais, que precisam ser considerados e afirmados nos parâmetros legais estabelecidos e na definição de políticas públicas, quando intencionamos universalizar direitos humanos a todos os segmentos e populações que vivem na região. Segundo o último Censo (IBGE, 2010) a população da região Norte soma 15.864.454 habitantes, o que representa 8,3% da população do país. Pará, Amazonas e Tocantins são os estados mais populosos. O modelo desenvolvimentista tem provocado ocupação socioespacial desordenada, exclusão social e aumento das desigualdades sociais. Em que pese os estados da região figurarem dentre aqueles classificados como de médio Índice de Desenvolvimento Humano (variando entre 0,663 e 0,708), a maioria dos municípios da região está classificada como de baixo ou muito baixo desenvolvimento, sendo que na lista dos 50 piores IDH municipais no Brasil, estão 13 municípios de Pará, 09 do Amazonas, 03 de Roraima, 02 do Acre e 01 do Tocantins3. ALGUNS RESULTADOS OBTIDOS COM A REALIZAÇÃO DA PESQUISA O material coletado resultou em um banco de dados com informações sobre a Rede de Proteção de Direitos Humanos de 55 municípios e 245 instituições e equipamentos da região Norte. O planejamento inicial da pesquisa previa a inserção de 74 municípios dos 07 estados do Norte, para compor a coleta de informações. A pesquisa atingiu, portanto, 74,3% dos municípios da amostra inicial. Considera-se que, do ponto de vista da capacidade e possibilidades de acessar as instituições, a pesquisa conseguiu capilaridade na região, reunindo um material relevante para referências sobre a Rede de Proteção de Direitos Humanos, 3 PNUD, 2013 27 permitindo identificar sua extensão, potencialidades e limites na região Norte, embora a ausência de dados de 19 municípios deva ser considerada nas análises aqui realizadas. Do total de instituições e equipamentos mapeados e acessados durante a pesquisa na região Norte, 64,64% responderam ao questionário enviado, denotando, de forma geral boa adesão à pesquisa, mesmo considerando as dificuldades relacionadas à extensão e as dificuldades de acessibilidade e comunicação na região. O índice de adesão variou entre os estados, percebendo-se, por exemplo, que nos estados do Acre, Roraima e Tocantins todos os equipamentos acessados responderam ao instrumento. O estado de Rondônia apresenta 80% de retorno das instituições e equipamentos, o estado do Pará, com 72%, seguidos do estado do Amazonas e Amapá com 24% e 12% de retorno. Essa variação ocorreu em face das distintas configurações que a rede de pesquisa assumiu nos contatos com os diversos estados da região, aí influindo as características de inserção e proximidade com a rede por parte da equipe de investigação. SOBRE A CONFIGURAÇÃO DA REDE DE PROTEÇÃO DE DIREITOS HUMANOS A amostra inicial constou de 74 municípios, sendo: 06 municípios no Acre, 14 no Amazonas, 05 no Amapá, 27 no Pará, 08 em Rondônia, 05 em Roraima e 09 no Tocantins. A Tabela 1 apresenta os 17 tipos de equipamentos que compõem a rede de proteção na região, identificando quantos municípios em cada UF, contam com cada tipo de equipamento. Do ponto de vista de sua configuração, pode-se dizer que a Rede de Proteção de Direitos Humanos é diversificada na região Norte, contando com 17 tipos de equipamentos e instituições de proteção, conforme demonstrado na Tabela 1. 28 Os dados demonstram, entretanto, que essa diversidade não se evidencia da mesma maneira em todos os estados e municípios, sendo que alguns apresentam uma rede maior e mais diversa, enquanto em outros a rede é mais limitada. Considerando o número de municípios investigados em relação à existência de cada um dos 17 tipos de instituições, a Tabela 1 permite estimar que há um déficit em torno de 50% em termos do quantitativo e da diversidade de tipos de instituições e equipamentos que deveriam compor a rede de proteção na região. Esse déficit é mais acentuado nos estados maiores, como o Pará e o Amazonas, enquanto que nos estados de Roraima e Tocantins percebe-se a existência de todos os 17 tipos de equipamentos em todos os municípios acessados, ressaltando-se que não foi possível contato com alguns destes. A diversidade também varia entre um estado e outro, de modo que se observa, por exemplo, a ausência da Delegacia LGBT na composição da Rede de Proteção dos estados do Amazonas e Rondônia; dos Pontos de Atendimento regional, na rede dos estados do Amazonas, Pará e Rondônia; dos Conselhos de Comunidade, na composição da rede do estado do Amazonas e, por fim, os centros de referência LGBT não foram identificados na composição da rede no Amazonas, no Pará e em Rondônia (Tabela 1) 4. Ainda do ponto de vista da composição da amostra, vale ressalvar a maior presença dos CRAS, CREAS, seguidos das defensorias públicas, promotorias, CAPS e delegacias especializadas da mulher; por outro lado, destaca-se a menor presença nessa mesma Rede, do Centro de Referência para a população LGBT, da Delegacia Especializada LGBT e do Conselho de Comunidade – LEP. Considera-se que a amostra é indicativa da própria composição da Rede de Proteção de Direitos Humanos dos Estados da Região Norte (ver Tabela 2)5. Diante disso e se considerarmos que as instituições e os equipamentos investigados possuem especificidades em termos do atendimento às demandas dos 4 Vide tabela 01 em apêndice, página 44. 5 Vide tabela 02 em apêndice, página 46. 29 diferentes sujeitos por eles atendidos, pode-se inferir que há uma diversidade de demandas não cobertas pelas instituições e pelos equipamentos investigados. Além da ausência de equipamentos, identifica-se uma situação específica quanto à distribuição geográfica destes, onde as capitais e regiões metropolitanas apresentam uma rede mais diversa e com maior número de instituições e equipamentos, enquanto a presença dos mesmos vai rareando nas redes dos demais municípios, indicando então menor abrangência e diversidade. Convém ressaltar, entretanto, que essa informação não permite perceber a distribuição desigual das instituições e equipamentos nos distintos territórios existentes nas capitais e municípios, como por exemplo, a distinção nessa distribuição entre o centro e a periferia, entre o urbano e o rural. O estado do Pará é ilustrativo, onde se percebe a maior presença dos equipamentos em Belém e Ananindeua, que fazem parte da Região Metropolitana de Belém (RMB) e menor presença nos municípios mais distantes. Neste estado chama atenção a pouca presença de instituições e equipamentos em municípios considerados polos, como: Vigia, Cametá, Santarém, Castanhal, Marabá, Parauapebas, Altamira e Paragominas. Os dados também demonstram diferenças na composição das redes entre os estados da região, onde alguns estados apresentam-se com maior número e diversidade de instituições e equipamentos (Acre, Pará e Rondônia) e outros com uma menor diversidade (Amazonas e Amapá). Constata-se ainda que em um terço dos municípios acessados (25 municípios) em todos os estados da região, a rede identificada é composta de apenas um ou dois equipamentos, sendo o caso dos seguintes municípios: Tarauacá e Sena Madureira no Acre; Lábria, Maraã, Presidente Figueiredo e Tefé, no Amazonas; no Amapá, Calçoene e Macapá; no Pará, Bragança, Brasil Novo, Barcarena, Itaituba, Jacareacanga, Portel, Porto de Moz e Parauapebas, Santana do Araguaia, Santarém e Vigia; Ji-Paraná e Vilhena, em Rondônia; Pacaraima e Rorainópolis em Roraima; e Goiatins, Paraíso do Tocantins e Porto Nacional, no Tocantins. 30 Os dados mostram ainda que os equipamentos da assistência social (CREAS, CRAS) e os da justiça (promotorias e defensorias) são os mais presentes no maior número de municípios. Dentre os equipamentos mais ausentes, aparecem as delegacias especializadas, em especial as Delegacias Especializadas de Criança e Adolescentes e a Delegacia de Proteção de Criança e Adolescente, que estão presentes em apenas 03 e 04 municípios respectivamente; as delegacias de atendimento à população LGBT e de atendimento ao idoso, assim como o Conselho de Comunidade aparecem em apenas 01 município cada uma, revelando que estas ainda não têm sido priorizadas. Há que se destacar ainda a não existência nos estados da Região do Ponto de Atendimento Regional. SOBRE OS GRUPOS MAIS ATENDIDOS POR TIPO DE EQUIPAMENTO A Tabela 36 demonstra quantos equipamentos atendem cada um dos públicos específicos, permitindo identificar os grupos com maior e menor acesso a atendimentos, em cada uma das instituições e equipamentos investigados e na rede de proteção como um todo. 6 A Crianças e adolescentes G Negros e pardos B Idosos H Quilombolas, indígenas e ribeirinhos C Pessoas com transtorno mental I Usuários de drogas D Pessoas com deficiência. J Ciganos E Pessoas em situação de rua L Sem terra F LGBT M Mulheres Vide tabela 03 em apêndice, página 47. 31 Observando os dados da Tabela 37 identifica-se que crianças e adolescentes se constituem no grupo com mais acesso às instituições e aos equipamentos, já que são atendidos por 85% dos mesmos. As crianças e os adolescentes são também o público prioritário dos CRAS, CREAS, defensorias, promotorias e delegacias especializadas, inclusive da delegacia da mulher. Na sequência identifica-se o público idoso, as mulheres, os usuários de drogas, as pessoas com deficiência e os negros e pardos, com grande número de atendimento. Vale ressaltar que estes públicos são atendidos pelos diversos equipamentos, havendo, contudo, carência de equipamentos específicos, em especial os equipamentos de atendimento aos idosos e às delegacias especializadas de crianças e adolescentes e de proteção às crianças e adolescentes. Os quilombolas, os ribeirinhos e os indígenas aparecem como grupos bem atendidos pelos equipamentos, com atendimento em 48% dos CRAS, 62% dos CREAS, 28% dos CAPS e 59% das defensorias públicas. A população LGBT também tem bom acesso aos equipamentos, sendo atendida em 33% dos CAPS, 43% dos CRAS, 37% dos CREAS, 54% das defensorias públicas e 35% das delegacias especializadas de atendimento às mulheres. Isso mostra que esta população, apesar da reduzida existência dos equipamentos específicos (centros de referência e delegacias LGBT), também é atendida pelos diferentes equipamentos. As pessoas com transtornos mentais e usuários de drogas constituem-se no maior público dos CAPS, com 86% e 81% dos atendimentos respectivamente. As defensorias públicas aparecem com alto percentual de atendimentos dos diversos públicos, atendendo 95% de crianças e adolescentes, 95% de Idosos e 91% das pessoas com deficiências. A população em situação de rua também aparece como um público com relativo acesso aos equipamentos, sendo atendida por 47% dos CAPS, 32% dos CRAS, 54% das defensorias públicas e 33% das promotorias. 7 Vide tabela 03 em apêndice, página 47. 32 Na Tabela 3 visualiza-se ainda que os grupos com menos acesso aos equipamentos são os ciganos (atendidos apenas em 4% dos CRAS, 7% dos CREAS e 9% dos CAPS) e os sem terra, que constituem-se no público atendido por 9% dos CAPS, 17% dos CRAS, 11% dos CREAS, 23% das promotorias e 45% das defensorias públicas. SOBRE OS REGIMES DE FUNCIONAMENTO DOS EQUIPAMENTOS O regime de funcionamento dos equipamentos é também uma referência importante da possibilidade de cobertura e atendimento às demandas dos diversos públicos que buscam o serviço, indicando além de quais os equipamentos disponíveis, quando a população pode, de fato, contar com eles, já que a violação não tem hora para acontecer. Desse modo, a Tabela 48 permite visualizar o funcionamento em regime de plantão das instituições: Complementando os dados, a Tabela 059 permite, por conseguinte, a visualização dos grupos que mais se beneficiam do funcionamento em regime de plantão das instituições. Os dados permitem perceber que 33,9% das instituições e equipamentos atendem em regime de plantão, dentre os quais os que mais atendem são as defensorias (81%) e as promotorias (80,9%), seguida das DPCA (50%) e das DCA (37,5%) e DEM (35%). Verifica-se um baixo percentual de atendimento em regime de plantão nos CRAS, CREAS e CAPS, com percentuais de 9%, 25% e 19%, respectivamente. Tal panorama chama a atenção, uma vez que estes são os equipamentos mais frequentes na amostra e com maior número de atendimentos. Igualmente, chama a atenção o fato de apenas 50% das unidades de privação de liberdade referenciarem o regime de atendimento em plantão. 8 Vide tabela 04 em apêndice, página 49. 9 Vide tabela 05 em apêndice, página 51. 33 Apesar da pouca representatividade na amostra, vale ainda ressaltar que 3 das 4 delegacias do idoso e 4 das 5 varas de execução pesquisadas atendem em regime plantão, além do centro de referência para a população LGBT com um único equipamento representado na amostra e que também atende em regime de plantão, enquanto que a única delegacia especializada LGBT representada na amostra, não atende neste regime. Do percentual das instituições e equipamentos que atendem em regime de plantão, apenas 20% superam às 40 horas semanais de atendimento. Assim sendo, os grupos que mais se beneficiam com esse maior horário são: crianças e adolescentes, mulheres, usuários de drogas lícitas e ilícitas e deficientes físicos. Um dos desafios na proteção e defesa dos direitos humanos é tornar esta proteção efetiva e mais ampla possível, sendo a disponibilidade dos equipamentos e serviços essencial nessa concretização. Conforme afirmado anteriormente, os casos de violação não têm dia ou horário para acontecer e demandam encaminhamentos rápidos. Considerando essa necessidade, pode-se afirmar que os dados sobre o regime de funcionamento podem se configurar como indicadores de dificuldades na atuação da Rede de Proteção, que necessitaria funcionar 24 horas de forma a disponibilizar atendimento ininterrupto às demandas urgentes dos grupos. DEMANDAS MAIS FREQUENTES POR GRUPOS E TIPO DE INSTITUIÇÃO E EQUIPAMENTO O Gráfico 1 apresenta, de forma objetiva, as principais demandas de atendimento apresentadas para as instituições e equipamentos investigados. 34 Gráfico 1: Principais demandas de atendimento Fonte: Dados da pesquisa De acordo com os questionários respondidos por instituições e equipamentos investigados, violência simbólica, vulnerabilidade econômica e negligência e abandono constituem-se nas mais frequentes demandas apresentadas pelos grupos sociais atendidos. Por outro lado, a vulnerabilidade jurídica apresenta-se como a demanda menos expressiva apresentada às instituições e equipamentos investigados. Percebe-se ainda a existência de um grupo de demandas mais frequentes, com percentuais bem próximos, o que pode denotar que as violências a que estão submetidos os principais grupos vulneráveis identificados nesta pesquisa se manifestam de diferentes formas ou que, no limite, esses principais grupos são alvo de violências diversas, sendo atingidos em várias dimensões de sua vida. A pesquisa também buscou identificar as percepções dos respondentes referentes aos pontos positivos das instituições e equipamentos. Esses pontos positivos referem-se aos seguintes aspectos: pessoal motivado; equipamento; alta percentagem de 35 acesso no atendimento; local de fácil acesso; boa estrutura física; e boa rede de atendimento. Os resultados estão demonstrados na Tabela 610. Os dados indicam que “Pessoal motivado” constitui o item mais bem avaliado nos aspectos positivos encontrados na avaliação das instituições e equipamentos, variando 45,5% nas delegacias de proteção a crianças e adolescentes até 19,3%, na defensoria pública. O Item “Estrutura física” foi o aspecto que recebeu menor percentual de indicações enquanto avaliação positiva das Instituições e Equipamentos investigados, variando de 23,5% nos Centros de Referência em Direitos Humanos até 7,7% na Delegacia da Criança e Adolescente e na Unidade de Privação de Liberdade. Em relação ao aspecto “Equipamento”, o Centro de Referência do Idoso obteve o maior percentual de 27,3% de avaliação positiva e a Delegacia da Mulher, o menor percentual, 5,6% de avaliação positiva. Em relação ao aspecto “Alto percentual de sucesso no atendimento”, a Delegacia LGBT obteve o maior percentual de 33,3% de avaliação positiva e CAPS, 5,0% de avaliação positiva. Em relação ao aspecto “Local de fácil acesso”, o CAPS obteve o maior percentual de 35% de avaliação positiva e o Centro de Referência em Direitos Humanos, 11,7% de avaliação positiva. Em relação ao aspecto “Boa rede de atendimento”, o CREAS obteve o maior percentual de 23,7% de avaliação positiva e Delegacia de Criança e Adolescente e Unidade de Privação de Liberdade, ambos obtiveram 7,7% de avaliação positiva. DISCUTINDO ESTES RESULTADOS E APONTANDO CONTRIBUIÇÕES PARA DINAMIZAÇÃO DA REDE Conforme afirmado no início deste texto, a percepção de que a garantia dos direitos sociais é de responsabilidade do poder público, por meio de diferentes instituições que atuam cada uma dentro de suas competências, aparece como pressuposto da Rede de Proteção dos Direitos Humanos. Dessa forma, a análise da 10 Vide tabela 06 em apêndice, página 52. 36 dinâmica de atuação dessa rede requer um olhar de totalidade, capaz de perceber o conjunto de elementos garantidores das condições concretas para esta atuação. A intervenção em rede nas políticas sociais remete, portanto, a uma interação contínua entre pessoas, instituições e demais atores sociais envolvidos com a proposição, execução e controle destas, de forma a enfrentar e garantir as demandas da população. Assim, uma primeira necessidade para esta ação é a garantia de um arranjo institucional, expresso, dentre outras formas, em um conjunto de equipamentos fisicamente presentes e com condições estruturais e políticas de funcionamento. Sem o objetivo de aprofundar a discussão sobre a diversidade de elementos e princípios necessários à atuação da Rede de Proteção dos Direitos Humanos na Região Norte (o que faremos oportunamente analisando outros resultados deste estudo), podese dizer que os dados aqui apresentados apontam uma primeira fragilidade na estruturação da Rede, que se apresenta concentrada nas regiões metropolitanas, com apenas uma parte dos equipamentos e instituições em vários outros e ausência completa destes na maioria dos municípios. Pode-se falar então, que os dados apresentam uma rede incompleta em quantidade, diversidade e abrangência o que pode significar sobrecarga, não atendimento ou atendimento precário a alguns grupos específicos e impedimentos concretos à articulação, ao planejamento coletivo e à troca de saberes. Na prática, significa um distanciamento entre o reconhecimento do pressuposto da articulação e intersetorialidade e as condições concretas de atingi-las. Os dados demonstram que a maioria dos municípios não contam com a atuação sistemática dos atores da rede e que em alguns casos as denúncias são feitas em locais que não estão diretamente ligados ao atendimento, o que provoca a demora da confirmação das denúncias. Impõe-se, assim, como passo inicial para dinamização da rede a ampliação e a diversificação dos equipamentos, nos municípios, dotando-os de uma rede de 37 atendimento, de fato. Além disso, há a necessidade da ampliação do regime de plantão para um maior número de equipamentos. Junto à questão do aumento dos equipamentos da rede, sugere-se levar em consideração, em especial para a região Norte o foco tanto nos municípios, quanto nos diversos territórios destes, considerando a relação centro e periferia e espaço rural e urbano. Este aspecto assume dimensão importante na Amazônia, região na qual as distâncias geográficas são grandemente ampliadas pela precariedade da infraestrutura de transporte e de comunicação, que dificulta e impede o deslocamento dos sujeitos para outras cidades, mesmo quando se pensa que geograficamente, estas estão próximas. Fica por fim, como uma das principais questões identificadas, a necessidade de aperfeiçoar essa estrutura de rede de atendimento. Em primeiro lugar, pensa-se que a prioridade deva ser pelo investimento em dotar cada cidade de uma rede o mais completa possível, dadas as dificuldades de deslocamento entre municípios na região. Em casos onde não seja possível de imediato, sugere-se a opção de mapear as cidadespolo em cada estado utilizando a referência da divisão administrativa adotada. Estas são necessidades emergenciais para que passos na direção do fortalecimento da cultura de rede e da intersetorialidade possam ser efetivados. 38 REFERÊNCIAS BAPTISTA, Myrian Veras. Algumas reflexões sobre o sistema de garantia de direitos. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, 2012. ISSN 0101-6628. BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Disque 100. Informações. Brasília, 2014. Disponível em: http://www1.direitoshumanos.gov.br/spdca/exploracao__sexual/Acoes_PPCAM/disque _denuncia Acesso em: 28 abr. 2014. ______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012. Brasília, 2012. ______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente. Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes. Relatório Disque Direitos Humanos: Módulo Criança e Adolescente. Brasília, 2011. IBGE. Censo Populacional. Rio de Janeiro, 2010. PNUD. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. Brasília, 2013. 39 APÊNDICE: O PROGRAMA DISQUE 100 E A REDE DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA REGIÃO NORTE: CONFIGURAÇÃO, DIFICULDADES E INDICADORES DE DINAMIZAÇÃO Tabela 1: Municípios acessados por UF e municípios onde existem equipamentos Nº de municípios acessados por UF / nº onde existem equipamentos Equipamentos AC AM RO RR TO (06) (14) (08) (05) (09) CREAS 06 26 06 05 09 CRAS 05 22 05 05 09 11 05 19 04 05 09 06 14 05 14 05 05 09 02 04 05 07 01 05 09 Delegacia LGBT 06 00 05 01 00 05 09 Delegacia da 06 04 05 04 02 05 09 06 13 05 03 03 05 09 06 03 05 27 05 05 09 existentes AP (05) PA (27) 12 05 06 13 CAPS 06 Delegacia da Mulher Delegacia do Idoso Criança e Adolescente Delegacia Proteção à Criança e Adolescente Defensoria Pública 40 Pontos de 01 00 05 00 00 05 09 Promotoria 06 14 05 21 04 05 09 Conselho de 02 00 05 27 01 05 09 06 01 05 02 00 05 09 01 00 05 00 00 05 09 06 01 05 02 01 05 09 02 02 05 05 01 05 09 06 13 05 12 01 05 09 Atendimento Regional Comunidade Unidade Privação de Liberdade Centro Referência LGBT Centro Referência D. Humanos Centro Referência Idoso Vara de Execução Fonte: Dados da pesquisa 41 Tabela 2: Número de instituições e equipamentos acessados Tipo de equipamento Quantidade atingida % CAPS 21 8,6 Centro de Referência de Direitos Humanos 5 2 Centro de Referência do Idoso 4 1,6 Centro de Referência para a população LGBT 1 0,4 Conselho de Comunidade – LEP 2 0,8 CRAS 74 30,2 CREAS 43 17,6 Defensoria Pública 22 9 Delegacia da Criança e Adolescente (DCA) 8 3,3 Delegacia de Proteção da Criança e Adolescente 6 (DPCA) 2,5 Delegacia Especializada da Mulher 20 8,2 Delegacia Especializada do Idoso 6 2,4 Delegacia Especializada LGBT 1 0,4 Promotoria 21 8,6 Unidade de Privação de Liberdade 6 2,4 Vara de Execução Penal 5 2 Total Geral 245 100% Fonte: Dados da pesquisa 42 Tabela 3: Público atendido por tipo de instituição e equipamento na região Norte, em número e percentual Tipos Público A B C D E F G H I J L M C. R. Direitos Humanos 3 2 1 1 2 2 2 - 3 1 1 4 C. R. Idoso 1 3 - 1 1 1 - - 1 - - 1 C. R. LGBT - - - 1 - 1 - - - - - - Cons. de Comunidad e – LEP 1 - - - - - - - - - - 1 CAPS 11 12 18 6 10 7 9 6 17 2 2 13 CRAS 70 69 37 61 24 32 55 36 46 3 13 65 CREAS 43 41 24 37 26 16 26 27 35 3 5 41 Defensoria Pública 21 21 18 20 12 12 19 13 21 6 10 20 DCA 8 5 4 5 5 3 5 3 7 2 2 7 DPCA 6 3 3 3 2 3 4 4 4 2 2 4 D. E. Mulher 17 14 12 14 4 7 16 13 17 4 3 20 D. E. Idoso 3 6 3 3 3 2 3 2 2 1 1 2 D. E. LGBT - - - 1 - 1 1 - 1 - - - 43 Promotoria 19 18 15 15 7 9 10 5 15 2 5 12 U. Privação de Liberdade 4 3 3 1 2 2 3 - 2 - - 3 Vara de Execução Penal 1 2 1 - - - - - 2 - - 2 TOTAL 208 199 139 168 98 98 153 109 174 26 44 195 % 85 81,2 57 69 40 40 62,4 44,5 71 11 18 79,6 Fonte: Dados da pesquisa 44 Tabela 4: Tipo de equipamento/instituição por atendimento em regime de plantão Regime de plantão Tipos Não Sim N % N % CAPS 17 81,00 4 19,00 Centro de Referência de Direitos Humanos 4 80 1 20 Centro de Referência do Idoso 4 100 0 0 Centro de Referência para a população LGBT 0 0 1 100 Conselho de Comunidade – LEP 1 50 1 50 CRAS 67 90,5 7 9,4 CREAS 32 74,4 11 25,6 Defensoria Pública 4 18,2 18 81,8 DCA 5 62,5 3 37,5 DPCA 3 50 3 50 Delegacia Especializada da Mulher 13 65 7 35 Delegacia Especializada do Idoso 3 50 3 50 Delegacia Especializada LGBT 1 100 0 0 Promotoria 4 19 17 81 Unidade de Privação de Liberdade 3 50 3 50 Vara de Execução Penal 1 20 4 80 TOTAL % TOTAL Fonte: Dados da pesquisa 45 162 83 66,1% 33,9% Tabela 5: Grupos atingidos que se beneficiam com os regimes de plantão que superam 40 horas semanais Plantão com mais de 40h (15 instituições) Grupo atingido N. de instituições % Crianças e Adolescentes 14 93,3 Idosos 9 60 PTM 11 73,3 Situação de rua 9 60 Deficientes físicos 10 66,7 LGBT 7 46,7 Negros / pardos 10 66,7 Quilombolas / indígenas / ribeirinhos 7 46,7 Usuários de drogas lícitas e ilícitas 10 66,7 Ciganos 6 40 Sem terra 7 46,7 Mulheres 10 66,7 Pessoas em conflito com a lei 0 0 Estrangeiros 0 0 Extrema pobreza 0 0 Fonte: Dados da pesquisa 46 Tabela 6: Pontos positivos encontrados na avaliação das instituições e equipamentos Pontos positivos Tipos 1 (N) % 2 (N) % 3 (N) 4 % (N) % 5 (N) % 6 (N) Total % % (N) CAPS 11 27,5 3 7,5 2 5 14 35 5 12,5 5 12,5 40 100 CRDH 2 11,7 3 17,7 3 17,7 2 11,7 4 23,5 3 17,7 17 100 CRI 2 18,2 3 27,3 1 9 2 18,2 2 18,2 1 9 11 100 CR LBGT 1 25 1 25 0 0 1 25 1 25 0 0 4 100 CC LEP - - - - - - - - - - - - 0 100 CRAS 53 33,7 9 5,7 24 15,3 42 26,7 0 0 29 18,5 157 100 CREAS 27 23,7 8 7 13 11,4 22 19,3 17 15 27 23,7 114 100 DP 12 19,3 9 14,5 15 24,2 12 19,4 7 11,3 7 11,3 62 100 DCA 4 30,7 2 15,4 3 23 2 15,4 1 7,7 1 7,7 13 100 DPCA 5 45,5 2 18,2 1 9,1 2 18,2 0 0 1 9,1 11 100 DEM 11 30,5 2 5,6 2 5,6 12 33,3 5 13,8 4 11,1 36 100 DEI 4 33,3 0 0 3 25 3 25 1 8,3 1 8,3 12 100 47 DE LBGT 1 33,3 0 0 1 33,3 1 33,3 0 0 0 0 3 100 Promotorias 15 25,9 6 10,3 8 13,8 11 19 13 22,4 5 8,6 58 100 Un. 4 30,8 2 15,4 2 15,4 3 23 1 7,7 1 7,7 13 100 2 25 2 25 1 12,5 2 25 1 12,5 0 0 8 100 Priv. Liberdade VARA EXC PENAL Fonte: Dados da pesquisa 1. Pessoal motivado; 2. Equipamento; 3. Alto percentual de sucesso no atendimento; 4. Local de fácil acesso; 5. Boa estrutura física; 6 Boa rede de atendimento 48 O RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA NA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Luanna Tomaz de Souza11 A EVOLUÇÃO INTERNACIONAL DO DIREITO DA CRIANÇA Em seu desenvolvimento histórico, os direitos humanos estiveram muito mais centrados a um ser humano genérico e universal, ignorando-se as especificidades de uma série de outros sujeitos (como indígenas, mulheres e crianças) que apenas nas últimas décadas têm sido objeto de importantes documentos, como a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (2007) e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (2007). Em realidade, a compreensão da infância como uma fase diferenciada no desenvolvimento do ser humano é recente e não pode ser entendida dentro de uma mera abstração, mas como reflexo de um conjunto de compreensões sobre família, maternidade, direitos, juventude, aspectos socioculturais e também jurídicos. Desde o século XII, a sociedade desenvolve modelos para infância, alijando, contudo, determinadas crianças de vivê-los, principalmente as mais pobres (ARIÉS, 1978). Somente muito recentemente a noção de criança surge no cenário jurídico internacional. Em 26 de setembro de 1924, uma primeira Declaração dos Direitos da Criança foi adotada reconhecendo que a responsabilidade pela criança é coletiva e internacional. Em 20 de novembro de 1959, surge uma segunda declaração perfilhando a necessidade de proteção e cuidados específicos à infância. 11 Professora da Universidade Federal do Pará. Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PA. Doutoranda em Direito (Universidade de Coimbra). E-mail: [email protected] 49 Ambas as declarações, contudo, continham problemas, pois não possuíam grande força coativa. A 1a Declaração não teve grande impacto sobre os Estados, pois se afirmava como uma declaração de obrigações dos homens e mulheres sem força coercitiva. A 2a Declaração, mesmo sem força coercitiva, criou forte impacto internacional sendo convocadas a partir dela diversas reuniões internacionais. Em 1989, há a Convenção Internacional Relativa aos Direitos da Criança12, que reafirma a necessidade de proteção da infância, mas ao mesmo tempo, erige a criança como um sujeito de diversos direitos, retomando alguns princípios já estabelecidos em instrumentos internacionais anteriores. Em seu art. 1o, define criança como todo ser humano com idade inferior a 18 anos, exceto quando, pela lei do país, a maioridade seja estabelecida antes e erige princípios como o do “superior interesse da criança” e o da prioridade que já estavam consagrados na 2a declaração13. Diferente das demais, esta cria mecanismos coercitivos e mais de 50 artigos que contemplam diversos direitos. Existem também vários documentos voltados à questão da relação entre jovens e criminalidade, que são influenciados também pelo reconhecimento das garantias penais aos adultos tais como: as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores, de 198514, as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil, de 1990 - "Diretrizes de Riad" 15 , e as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade – Regras de Havana, 12 16 e as Regras Mínimas das Nações Unidas para Medidas Não Resolução 44/25 da Assembleia Geral, de 20 de novembro de 1989. 13 Ambos estão consagrados no art. 227 da Constituição. O primeiro estabelece que todas as ações relativas às crianças devem considerar, especialmente, o “interesse maior da criança” e o segundo estabelece que as ações voltadas à proteção da infância têm prioridade sobre toda e qualquer ação. 14 Conhecidas como “Regras de Beijing”. Elas estendem aos menores de idade garantias processuais tradicionalmente asseguradas aos maiores de idade. Este texto internacional prega também o desenvolvimento da especialização e da profissionalização da “justiça de menores”, assim como o recurso preferencial a procedimentos extrajudiciais e a medidas educativas diversas da privação de liberdade. 15 Diretrizes para a prevenção da delinquência juvenil, documento que passou a nortear a formulação e a execução de programas e políticas nessa seara, com ênfase nas atividades de assistência e de estímulo à participação da comunidade. 16 Definem a privação de liberdade de forma ampla, estendendo a proteção a toda forma de internação em estabelecimento público ou privado do qual o jovem não possa sair por sua livre e espontânea vontade. 50 Privativas de Liberdade – “Regras de Tóquio” 17 , também de 1990. Estes documentos são importantes por traçar limites ao que, em regra, ficava sob tutela somente dos Estados. No sistema interamericano também temos textos gerais de proteção dos direitos humanos aplicáveis à infância, como o “Consenso de Kingston”, de 13 de outubro de 2000 – textos que reúne as deliberações e recomendações adotadas na V Reunião Ministerial relativa à Infância e à Política Social nas Américas 18 - e a Declaração do Panamá - resultado da X Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo “Unidos pela Infância e Adolescência, Base da Justiça e da Equidade no Novo Milênio” 19. Os textos descritos permitem esboçar um modelo de intervenção preconizado na esfera internacional, onde as crianças são vistas como titulares de direitos universalmente reconhecidos, direitos estes que devem ser garantidos tanto pelo Estado, como pela família ou ainda pela sociedade como um todo (MACIEL, 2010). A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA NO BRASIL A construção social da infância no Brasil envolveu processos de agenciamento das crianças em espaços institucionais com funções de controle, prevenção, repressão e educação, orientadas por filosofias políticas ligadas às concepções da infância e às formas de gerenciamento da mesma. Em geral, o reconhecimento jurídico das crianças no ordenamento brasileiro é dividido em três fases: Doutrina do Direito Penal do Menor; Doutrina da Situação Irregular e Doutrina da Proteção Integral (ISHIDA, 2011). São momentos que 17 Disciplina sobre o ato infracional juvenil em todos os estágios do processo, estabelecendo a privação da liberdade como medida excepcional. 18 Dentre os compromissos deste texto, temos o de garantir a toda criança ou adolescente em conflito com a lei um tratamento respeitoso das garantias processuais, dos princípios consagrados pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança e de outros instrumentos legais nacionais ou internacionais de proteção da infância. 19 Estes países reconhecem que a pobreza e a miséria, as desigualdades e a exclusão sociais, e a violência familiar são as principais causas da delinquência juvenil, comprometendo-se a reduzir estas desigualdades, punir as violações de direitos e modernizar suas instituições com a participação da sociedade civil. 51 representam, acima de tudo, regimes discursivos e processos históricos relacionados a posições sobre o papel do Estado, contextos políticos e valores socioculturais mais vastos que os expressos nos códigos legais (OLIVEIRA, 2012). Temos um primeiro momento, que vai desde as primeiras leis penais até início do século XX, momento em que as crianças eram tratadas praticamente iguais aos adultos, no que concerne à responsabilidade penal. Nesse momento, a atuação do Estado para a infância era voltada a programas de assistência médica, numa perspectiva higienista20, cabendo à Igreja a responsabilidade sobre as crianças que não recebiam proteção da família ou que precisavam ser catequizadas, como as indígenas. A partir do início do século XX até o seu final em meados da década de 1980, temos o período da chamada Doutrina da Situação Irregular, que se caracteriza por uma intensa aliança entre a Justiça e a Assistência. A inspiração nesse período vem dos Estados Unidos da América (EUA), primeiro país a criar uma Justiça Especializada. A política criminal juvenil dos EUA baseava-se na predominância do poder dos juízes sob a intervenção familiar. No reflexo destas discussões, surge no Brasil, em 1923, o Juízo de Menores, tendo sido José Cândido de Albuquerque Mello Mattos o 1o Juiz de Menores da América Latina. Em 1927, advém o Decreto 17.943-A, o 1o Código de Menores do Brasil, ou Código Mello Matos. Este ultrapassa em muito as fronteiras da ação jurídica sob a infância (MACIEL, 2010). Surge nesse momento a categoria do “menor”, que simbolizava a "infância pobre e potencialmente perigosa, diferente do resto da infância". Para Rita de Cássia Oenning da Silva (2013, p.11), “o conceito menor é notoriamente uma desqualificação destas crianças e adolescentes colocando-as numa condição de menor valor (menos pessoa) que outras crianças”. O Código claramente alertava que não atuaria sobre todas as crianças numa conceituação extremamente preconceituosa e segregadora, reveladora de uma 20 O movimento higienista surge a partir do liberalismo, na primeira metade do século XIX quando os governantes começam a dar maior atenção à saúde dos habitantes das cidades. Para estes, principalmente médicos, a doença era um fenômeno social que abarcava todos os aspectos da vida humana e havia a necessidade do Estado intervir para garantir a “melhoria” da população. 52 compreensão de infância patologizante típica da aliança entre o saber jurídico e o saber médico do movimento higienista. Este define o “delinquente” não mais como vítima, mas sim como alguém que possui algum grau de desajuste em relação ao padrão aceitável de conduta infantil em torno dos padrões psiquiátricos (RIZZINI, 1997). Art. 1o - O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 anos de idade, será submetido pela autoridade competente ás medidas de assistência e proteção contidas neste Código. Art. 14. - São considerados expostos os infantes até sete anos de idade, encontrados em estado de abandono, onde quer que seja. Art. 26. - Consideram-se abandonados os menores de 18 anos: [...] IV, que vivam em companhia de pai, mãe, tutor ou pessoa que se entregue á pratica de actos contrários á moral e aos bons costumes; V, que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem; VI, que frequentem lugares de jogo ou de moralidade duvidosa, ou andem na companhia de gente viciosa ou de má vida. VII, que, devido á crueldade, abuso de autoridade, negligencia ou exploração dos pais, tutor ou encarregado de sua guarda, sejam: [...] c) empregados em ocupações proibidas ou manifestamente contrarias á moral e aos bons costumes, ou que lhes ponham em risco a vida ou a saúde; d) excitados habitualmente para a gatunice, mendicidade ou libertinagem. Para o “menor”, a resposta adequada era a cultura da institucionalização, tanto aqueles que houvessem cometido um delito ou qualquer um que fosse declarado numa situação irregular pelo magistrado. Apesar de colaborar para a distinção entre a vida adulta e a infância, este código não consegue impedir o binômio carência/delinquência, com uma clara criminalização da pobreza. Em 1979, temos um “novo” Código de Menores, consagrando a teoria menorista da situação irregular e inspirado pelo regime totalitário e militarista vigente 53 no país. Este firmou o “menor” como objeto de tutela do Estado, legitimando a intervenção estatal sobre as crianças e os adolescentes que estivessem em uma circunstância que a lei estabelecia como situação irregular, operando uma clara divisão entre a infância protegida e os “menores” (QUEIROZ, 2013). Art 1o - Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores: I - até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular; II - entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei. Parágrafo único - As medidas de caráter preventivo aplicam-se a todo menor de dezoito anos, independentemente de sua situação. Art 2o - Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; II - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal. Surgem nesse período diversas políticas. Em 1941, é criado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), demonstrando o reconhecimento pelo Estado do “problema do menor” com um problema nacional. Seu objetivo era o de propiciar atendimento dentro dos estados aos “menores” pela criação de escolas de reeducação. 54 O SAM recebe severas críticas de corrupção, maus-tratos e ineficiência, sendo criada em 1964 a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM), por meio da Lei nº 4.513. Tinha como objetivo formular e implantar a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM), por meio do estudo do problema do “menor” planejando soluções. Nesse contexto, é criada também a Fundação Estadual do BemEstar do Menor (FEBEM) como uma nova forma de atendimento as crianças e adolescentes pobres uma escala mais reduzida. Substituía o enfoque correcionalrepressivo do extinto SAM, pelo enfoque assistencialista em que pese não tenha obtido muito êxito (RIZZINI, 1997). Na ditadura militar os “menores” tornam-se problema de segurança nacional e as FEBEMs passam a virar “depósitos” de crianças, sob as mais diferentes justificativas. Todo esse processo resulta em inúmeras violações denunciadas por diversos segmentos como os Movimentos dos Meninos e Meninas de Rua e o Fórum Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (FNDCA). A partir de 1980, com a redemocratização do país, inicia-se um clima legislativo extremamente propício a mudanças que começam com a Reforma Penal de 1984, trazendo ao invés de menores “irresponsáveis”, a expressão “inimputáveis”, já que a responsabilização aconteceria, mesmo que de maneira diferenciada. A Constituição Federal de 198821 também sofre os impactos das pressões dos movimentos sociais, de intelectuais e o avançar internacional, estabelecendo reconhecendo expressamente a tutela jurídica de direitos fundamentais e a reconfiguração da família e de novos sujeitos, como a criança e o adolescente. É nesse espírito de pressões e mudanças, em âmbito nacional e internacional, que surge a Lei 8.069/90 – O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) rompendo com a doutrina da situação irregular em nome da doutrina da proteção integral. Segundo Lamenza (2008), esta representa todas as iniciativas que garantam à criança e ao adolescente um ambiente propício ao seu regular e peculiar desenvolvimento. O ECA erige assim, juntamente com a Constituição, um sistema de 21 Em especial os artigos 296 a 298. 55 garantias e um tripé formado pela família, pela sociedade e pelo Estado na proteção das crianças e dos adolescentes. A partir desse novo tratamento, a criança passou a ser considerada em sua dignidade de pessoa humana e sujeito pleno de direito: à vida, à educação, à saúde, ao lazer, à convivência familiar, à integridade física e psicológica também. Repudia-se o uso da palavra “menor”, trazendo o novo Estatuto às expressões “criança”, definida como o jovem até os 12 anos incompletos, e “adolescente”, o jovem entre 12 anos completos e os 18 anos incompletos, reconhecendo as diferenças existentes em cada um destes. A criança passou de simples objeto de tutela a verdadeiro sujeito de direitos e deveres, recebendo ampla proteção do Estado. A infância e a adolescência são reconhecidas como fases específicas e especiais da vida humana, com seres em desenvolvimento, de nenhuma forma aptos a se auto determinarem, sendo dignos de uma proteção especial e de prioridade absoluta22 nas políticas públicas, na família e na sociedade. O ECA reconhece uma gama de direitos que devem ser assegurados de forma integral e prioritária, com atuação de todos os entes federativos, da sociedade e da família. O art. 3o do estatuto começa a enumerar os direitos assegurados, sustentados a partir de três princípios, conforme comentário de Paolo Vercelone (2013, p.1): Os princípios afirmados no artigo são três: a) crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais assegurados a toda pessoa humana; b) eles têm direito, além disso, à proteção integral que é a eles atribuída por este Estatuto; c) a eles são garantidos também todos os instrumentos necessários para assegurar seu desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual, em condições de liberdade e dignidade. 22 Art. 4o - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. 56 Garantem-se assim o direito à vida e à saúde; o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade; o direito ao esporte e ao lazer; o direito à profissionalização e à proteção ao trabalho; e à convivência familiar e comunitária. Há de se reconhecer os avanços trazidos pelo Estatuto que reconhece direitos deste o ventre materno, como o direito de alimentação à gestante, o nascimento digno e saudável, até o direito de brincar, tantas vezes violado por crianças que precocemente adentram o mundo do trabalho. Embora se possa visualizar nisto a consolidação das crianças e dos adolescentes como titulares de direitos, não se pode afirmar, ainda, que seja pacífico o reconhecimento de certas dimensões de direitos, como é o caso daqueles que dizem respeito à sexualidade. 3. OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA AMAZÔNIA A Doutrina da Proteção Integral, presente no Estatuto da Criança e do Adolescente, representa grande avanço, na medida em que evita a produção de dicotomias entre “crianças normais” e “menores”, defendendo que as mesmas devam ser pensadas na integralidade da condição. Todavia, o advento do ECA não rompeu com a influência de práticas anteriores, clientelistas, assistencialistas, patrimonialistas e de segregação, pautadas em racismos variados. Segundo Galindo et al (2014, p. 63), o eugenismo23 e o higienismo da atualidade têm deslocamentos, mas muitos de seus ideários foram disseminados no campo de saberes, de poderes e de subjetivações, bem como nas práticas de segurança e nas políticas públicas de modo geral: “Se a FEBEM concretamente foi abolida do Sistema de Atenção Psicossocial, a lógica FEBEM, concebida como uma disposição de saberes, práticas e jogos de forças, persiste”. 23 O movimento eugenista estimulava a esterilização de grupos discriminados bem como penas capitais, internações e prisões perpétuas. 57 Segundo Oliveira (2012), a qualificação de sujeitos de direitos às crianças e aos adolescentes possibilitou a estruturação de uma concepção (proteção integral), de uma forma de gestão (participativa e descentralizada) e de um método (não assistencialista e, quanto aos atos infracionais, de caráter socioeducativo) com a objetivação das relações24. Para o autor, entretanto, é necessário adequar práticas e pensamentos, principalmente em contextos socioculturais e em relações de poder nas quais se mesclam, conflitam e negociam mais de uma forma de pensar o agenciamento jurídicoestatal e a cidadania da criança, o que não ocorre com a formalização normativa de outros mecanismos institucionais e recursos discursivos. Nesse contexto, não pode haver uma forma homogenizadora, impositiva e naturalizada de se instrumentalizar a construção social da infância. O artigo 30 da Convenção dos Direitos da Criança estabelece que: [n] os Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas ou pessoas de origem indígena, nenhuma criança indígena ou que pertença a uma dessas minorias poderá ser privada do direito de, conjuntamente com membros do seu grupo, ter a sua própria vida cultural, professar e praticar a sua própria religião ou utilizar a sua própria língua. Ocorre que o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda preserva uma imagem idealizada de infância, estabelecendo quem é criança (de 0 a 12 anos incompletos) e adolescente (de 12 a 18 anos incompletos)25, quando esta pode trabalhar (acima dos 16 anos)26 que muitas vezes não se coaduna com determinados contextos específicos da Amazônia, como o indígena, o quilombola ou o ribeirinho. O único 24 Simmel (1983) aponta a tendência moderna de desconexão entre as dimensões objetivas e subjetivas, sendo cada vez mais os objetos autônomos perante os sujeitos e as relações pautadas por uma predominância do meio sobre o fim. 25 26 Art. 2° do ECA. art. 7º, XXXIII da Constituição Federal. 58 momento em que o Estatuto da Criança e do Adolescente menciona as crianças indígenas e quilombolas é no art. 28, §6o quando afirma que na adoção devem ser consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural. O Projeto de Lei no 295/2009 buscava acrescentar dispositivos ao Estatuto da Criança e do Adolescente, para dispor sobre os direitos da criança e do adolescente indígenas, mas foi arquivado. Este projeto de lei, contudo, levanta uma importante discussão sobre a possibilidade de relacionar integralidade e pluralidade, com compromisso ético de relativização das supostas normalidades conceituais ocidentais, substituída pela valorização da perspectiva sociocultural dos “outros” e de incremento das políticas de inclusão social27. Em realidade, vivemos em um país que resiste ao reconhecimento das diferenças, sejam de gênero, étnicas e/ou raciais, o que alimenta desigualdades. Na Amazônia, convivemos com diferentes contextos culturais e grupos étnico-raciais e precisamos que as políticas públicas alcancem a população em toda a sua diversidade, reordenando-se os discursos, as práticas e as instituições. Todavia, muitas das leis e políticas públicas ainda partem de uma visão idealizada e universal de infância e sofrem pressões sociais que impedem discussões que ampliem essa perspectiva, como foi o caso recente da alteração do Plano Nacional de Educação (PNE) sendo suprimido o item: “São diretrizes do PNE a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”28. 27 OLIVEIRA, 2012 28 Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2014-04/comissao-da-camara-aprova-texto-base-do-pne-eretira-questao-de-genero. Acesso em: jan. 2012. 59 Tais alterações impedem que se amplie o olhar acerca da complexidade das identidades desses sujeitos e das desigualdades sociais que vivenciam por intermédio de um enfoque integrado, alcançando a criança a partir de seu contexto sócio-político. A cidadania pressupõe, não apenas, o reconhecimento dos direitos, mas garantias sociais, jurídico-institucionais para que estes direitos possam ser usufruídos sem quaisquer tipos de discriminação. Para que as crianças sejam cidadãs, este conceito precisa ser redimensionado na justa medida da constatação das antinomias de seu cotidiano através da reconstrução de sua identidade político-social; da articulação entre a esfera pública e a privada; e das distorções entre lei e realidade. 60 REFERÊNCIAS ARIÈS, P. História social da infância e da família. Rio de Janeiro: LCT, 1978 GALINDO, Dolores; LEMOS, Flávia Cristina Silveira; SOUZA, Leonardo Lemos de; RODRIGUES, Renata Vilela. Como se forja o menor: tramas da atenção psicossocial e da proteção social. Barbarói, Santa Cruz do Sul, n.41, p., jul./dez. 2014 ISHIDA, Váter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente – doutrina e jurisprudência. 13. ed. São Paulo: Altlas, 2011. LAMENZA, Francismar. O direito da criança e do adolescente ao tratamento contra a drogadição. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XI, n. 58, out 2008. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3145lame. Acesso em jan 2015. MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 4. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010. OLIVEIRA, Assis da Costa. Direitos humanos dos indígenas crianças: perspectivas para a construção da Doutrina da Proteção Plural. 2012. 240f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Instituto de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Pará, Belém, 2012. QUEIROZ, Bruno Caldeira Marinho de. Evolução Histórico-normativa da Proteção e Responsabilização Penal Juvenil no Brasil. 2008. Disponível em: http://www.webartigos.com/artigos/evolucao-historico-normativa-da-protecao-eresponsabilizacao-penal-juvenil-no-brasil/8610/. Acesso em: 22 fev. 2013. RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. Rio de Janeiro: USU Ed. Universitária: Amais, 1997. SIMMEL, G. O estrangeiro. In MORAES FILHO, Evaristo (org.). Simmel, São. Paulo, Ática, 1983. 61 SILVA, Rita de Cácia Oenning da. O sujeito na infância: quando a visibilidade produz exclusão. s.d. Disponível em: www.antropologia.com.br/tribo/infancia. Acesso em: 04 mar. 2013. VERCELONE, Paolo. Comentando o ECA. 2010. Disponível em: http://www.promenino.org.br/noticias/arquivo/eca-comentado-artigo-3-livro-1---temacrianca-e-adolescente. Acesso em: 09 fev. 2013. 62 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A EXPERIÊNCIA DA ESCOLA DE CONSELHOS NA AMAZÔNIA PARAENSE Nazaré Araújo O princípio da dignidade humana é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro, conforme estabelecido no art. 1º. Da Constituição da República, de 1988. Para garantir a efetividade deste fundamento o texto Constitucional lista vários direitos fundamentais, dentre eles os direitos sociais expressos no art. 6º, quais sejam: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, além de assistência aos desamparados. No âmbito dos direitos fundamentais de proteção à criança e ao adolescente, a legislação brasileira constitucional, assim como os documentos internacionais de proteção infanto-juvenil, regulou a matéria em seu artigo 227, determinando que a família, a sociedade e o Estado devem assegurar para as pessoas em formação, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além do dever de garantir que fiquem a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O princípio da prioridade absoluta da criança como norma a ser cumprida, estabelece que a proteção não é mais obrigação exclusiva da família e do Estado: é um dever social. Entende-se “Prioridade Absoluta” como a qualificação dada aos direitos assegurados à população infanto-juvenil, a fim de que sejam inseridos na ordem do dia com primazia sobre quaisquer outros. Em decorrência das novas normas constitucionais estabelecidas a partir de 1988, que preconizavam um novo paradigma em relação à infância, tornou-se imperativa a elaboração de um instrumento legal para regulamentar a efetivação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Nascia, assim, o Estatuto da Criança e 63 do Adolescente, Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990, reforçando no artigo 1º a doutrina da proteção integral à infância. O Estatuto da Criança e do Adolescente é, portanto, um conjunto de normas que trata especificamente do tratamento social e legal a ser oferecido às crianças e adolescentes, sendo lei complementar que decorre do processo de redemocratização do país e tem sua expressão maior na Constituição Federal promulgada em 1988. O ECA parte do princípio de que são sujeitos de direitos pessoas em situação peculiar de desenvolvimento e prioridade absoluta (COSTA, 1992) e estabelece proteção integral à criança e ao adolescente. O Estatuto da Criança e do Adolescente inaugura uma nova concepção de direitos e deveres pautados na proteção integral, diferentemente dos Códigos de Menores de 1927 e 1979. Baseia-se em orientações da Organização das Nações Unidas (ONU) e atende às diretrizes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Declaração dos Direitos da Criança (1959) e da Convenção dos Direitos das Crianças (1989/1990). Segundo Fonseca (2004), as pressões internacionais, justamente com pressões internas no Brasil, tornaram o ECA resultado de um movimento mundial que provocou, durante os anos 80, em muitos países, a reedição de sua legislação sobre o bem-estar da criança. A Lei 8.069/90 estabelece que é criança quem tem até doze anos incompletos e adolescente quem tem entre doze e dezoito anos de idade, e ambos devem usufruir de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral. Estabelece, ainda, que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. A absoluta prioridade de que trata a Lei 8.069/90 compreende a prioridade em receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, a preferência na formulação 64 e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Ressalta o dispositivo legal que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Também disciplina que a criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Quanto à saúde pública, além de estabelecer a necessidade de tratamento prioritário, destaca que o adolescente portador de deficiência receberá atendimento especializado, definido na obrigação do poder público de fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem os medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação. Da mesma forma, determina que os estabelecimentos destinados ao atendimento à saúde proporcionarão condições para a permanência em tempo integral de um dos pais ou responsável, nos casos de internação de criança ou adolescente. Os casos de maus-tratos contra criança ou adolescente, objeto de suspeita ou confirmação, serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. Adicionalmente, é dever de todos cuidar da dignidade da criança e do adolescente, mantendo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. O ECA enfatiza que toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. Esclarece que aos pais compete o sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse dos mesmos, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. 65 A lei estabelece que a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio poder. Define família natural como a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes e informa que a colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente e que, sempre que possível, a criança ou adolescente deverá ser previamente ouvida e a sua opinião devidamente considerada. Prevê o ECA que crianças e adolescentes têm direito à educação, visando ao seu pleno desenvolvimento, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. Ao Estado incumbe assegurar-lhes o ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria, bem como a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência; atendimento em creche e préescola às crianças de zero a seis anos de idade, dentre outros na esfera educacional, inclusive com eventuais programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. Prevê a lei, que os pais ou responsáveis deverão matricular seus filhos na rede regular de ensino e que os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de maus-tratos envolvendo seus alunos, reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, bem como os elevados níveis de repetência, após esgotados os recursos escolares. O instrumento legal proíbe qualquer trabalho aos menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz e considerando a aprendizagem a formação técnico-profissional, ministrada segundo as diretrizes e bases da legislação de educação em vigor. Estabelece que todas as crianças e adolescentes têm direito ao acesso às diversões e espetáculos públicos classificados como adequados à sua faixa etária, sendo que as crianças menores de dez anos somente poderão ingressar e permanecer nos locais de apresentação ou exibição quando acompanhadas dos pais ou responsável; determina que as emissoras de rádio e televisão somente exibam, no horário recomendado para o 66 público infanto-juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. Finalmente, proíbe a apresentação ou anúncio de espetáculo sem aviso prévio de sua classificação etária. Fica proibida, a partir do ECA, a venda, para crianças e adolescentes, de produtos prejudiciais a sua formação e sua educação, tais como armas, munições e explosivos, bebidas alcoólicas ou produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida, sendo prevista advertência com pedido de mudança de atitude para o responsável e para o adolescente nos atos infracionais, definindo sanções como internação em estabelecimento apropriado para casos mais graves, equivalentes ao crime ou contravenção quando cometido por adultos. Neste aspecto as entidades que desenvolvem programas de internação devem observar os direitos e garantias de que são titulares os adolescentes; não restringir nenhum direito que não tenha sido objeto de restrição na decisão de internação, preservar a identidade e oferecer ambiente de respeito e dignidade ao adolescente, diligenciar no sentido do restabelecimento e da preservação dos vínculos familiares, oferecer instalações físicas em condições adequadas, e toda infraestrutura e cuidados médicos e educacionais, inclusive na área de lazer e atividades culturais e desportivas. Também tem a obrigação de reavaliar periodicamente cada caso, com intervalo máximo de seis meses, dando ciência dos resultados à autoridade competente. Prevê o instrumento legal que a medida de internação só poderá ser aplicada quando tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, por reiteração no cometimento de outras infrações graves e que em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada. Estabelece que a internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecendo à rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração. Verificada a prática de ato infracional a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: advertência; obrigação de reparar o dano; 67 prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade, internação em estabelecimento educacional. Em se tratando de ato infracional com reflexos patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima. A prestação de serviços comunitários consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em programas comunitários ou governamentais. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos, observando que atingido este limite o adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de semiliberdade ou de liberdade assistida. A liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade. Os pais são ou responsáveis são, primordialmente, titulares da guarda e da tutela dos menores sob sua responsabilidade, e exatamente por isso devem sofrer sanções ou medidas corretivas no caso incapacidade ou deficiência no atendimento ao menor. Exemplos de medidas corretivas podem ser o encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família, inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos, encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico, obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado, podendo sofre eventual advertência, perda da guarda, destituição da tutela e até a suspensão ou destituição do pátrio poder. De forma integrada, também devem funcionar as entidades que desenvolvem programas de abrigo, que devem nortear suas atividades dentro dos princípios da preservação dos vínculos familiares, integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem, atendimento personalizado e em pequenos grupos, desenvolvimento de atividades em regime de 68 coeducação, não desmembramento de grupos de irmãos, evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados, participação na vida da comunidade local, preparação gradativa para o desligamento, participação de pessoas da comunidade no processo educativo. Nos municípios, deverá haver, no mínimo, um Conselho Tutelar composto de cinco membros, escolhidos pela comunidade local, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. São atribuições do Conselho Tutelar, atender as crianças e adolescentes, nas hipóteses em que seus direitos estejam sendo desrespeitados, inclusive com relação a seus pais e responsáveis, bem como em outras questões vinculadas aos direitos e deveres previstos na legislação do ECA e na Constituição. Conforme se verifica o conjunto normativo do ECA é acessível, sendo um diploma legal que objetiva colaborar na melhor formação das crianças e dos adolescentes, sem perder o foco da reeducação dos pais e dos responsáveis, no que se inclui o próprio Estado Brasileiro. O ECA é uma Lei que para ser cumprida precisa ser conhecida pelos que trabalham diariamente com as crianças e adolescentes. Entretanto existem ainda 3,1 milhões de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos fora da escola no Brasil, além de outras 4,2 milhões dentro do contexto do trabalho infantil de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Hoje em nosso país, a cada mil nascidos vivos, 19,3 morrem antes de completar um ano e o grande desafio é fazer com que o ECA seja, de fato, aplicado no dia a dia dessas crianças e adolescentes, com os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário trabalhando em rede. Sem essa articulação é impossível termos uma política em defesa das crianças e adolescentes. É preciso que o ECA chegue a todos os espaços, com abrangência a outros grupos populacionais, como ribeirinhos, quilombolas e indígenas, historicamente excluídos desse processo. A terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3, em 2009, deu continuidade ao processo histórico de consolidação das orientações para 69 concretizar a promoção e defesa dos Direitos Humanos no Brasil. Avançou incorporando a transversalidade nas diretrizes e nos objetivos estratégicos propostos, na perspectiva da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos Direitos Humanos. Em sua Diretriz 8, Objetivo Estratégico II, estabelece a criação das escolas de conselhos em todos estados da União e no Distrito Federal, “com vista a apoiar a estruturação e qualificação da ação dos conselheiros tutelares e de direitos” (PNDH III, Brasília: 2009, p. 79). Foram então sendo criadas as Escolas de Conselhos em todo o Brasil, com o objetivo primordial de instruir, formar e aperfeiçoar operadores do Sistema de Garantia dos Direitos, sobretudo em políticas públicas voltadas para a criança e o adolescente e aprimorar a atuação de conselheiros de direitos e tutelares, tornando-os capazes de um saber autônomo e de uma ação transformadora, no que concerne à proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes. No Pará, a Escola de Conselhos Pará - Núcleo de Formação Continuada de Conselheiros de Direitos e Conselheiros Tutelares da Amazônia Paraense é um projeto apoiado pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e pelo Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA-PA), por meio da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e da Secretaria de Estado de Assistência Social do Pará. Desde sua instalação, em janeiro de 2011, está sob a coordenação do Professor Salomão Antônio Mufarrej Hage, do Instituto de Ciências da Educação - Universidade Federal do Pará. A Escola de Conselhos no Pará tem como desafio atingir os 144 municípios do Estado, realizando a formação continuada dos conselheiros Tutelares e dos Direitos de crianças e adolescentes, em 20 municípios polos, a saber: Altamira, Belém, Bragança, Breves, Cametá, Capanema, Castanhal, Conceição do Araguaia, Gurupá, 70 Itaituba, Marabá, Marajó, Moju/Abaetetuba, Paragominas, Parauapebas, Redenção, Santarém, Tucuruí, Vigia e Xinguara. Conta com um Núcleo Gestor composto pela Universidade Federal do Pará, o Ministério Público Estadual, a Universidade do Estado Pará, o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Pará, o Fórum Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, a Associação Estadual de Conselheiros e Ex-conselheiros Tutelares e a Secretaria de Estado de Assistência e Desenvolvimento Social. São parceiros da Escola também as seguintes organizações da sociedade civil, referenciadas pela ampla atuação e experiência na área da criança e do adolescente: Movimento República de Emaús, Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais, Instituto Universidade Popular, Associação Paraense de Apoio às Comunidades Carentes – APACC, Movimento de Valorização do Estatuto da Criança e do Adolescente - MOVER, Defensoria Pública do Estado do Pará, CNBB – Comissão de Justiça e Paz, o Canal Futura, a Radio Margarida, entre outros. Partindo do reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, enquanto prioridade absoluta de políticas públicas (Art. 207 da Constituição Federal de 1988), a Escola de Conselhos – Pará, de forma mais específica se propõe a formar os conselheiros dos direitos da criança e do adolescente e conselhos tutelares por meio de vivências formativas realizadas com os Conselheiros de Direitos e Tutelares, reunidos nos municípios polo anteriormente mencionados. A Escola busca, sobretudo, o reconhecimento das especificidades regionais, com destaque para as desigualdades de classe social e diferenças de gênero, orientação sexual, étnico-racial, cultural, religiosa e territorial na Amazônia. Até os dias atuais as atividades desenvolvidas pela Escola de Conselhos – Pará dependem de projetos submetidos à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – SDH e ao Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – CEDCA, todos com prazo determinado de, em média, 12 ou 18 meses, e na dependência de que novos editais sejam publicados para garantir a continuidade de suas ações. Há, porém, estudos em andamento para tornar política pública a atuação da Escola. 71 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FONSECA, C. Os direitos da criança dialogando com o ECA. In: FONSECA, C.; TERTO JUNIOR, V.; ALVES, C.F. (Org.). Antropologia, Diversidade e Direitos Humanos: diálogos interdisciplinares. Porto Alegre: Editora da URFGS, 2004, cap. 1 , parte II, p. 103 a 115. COSTA. A. C. G da. Do menor ao cidadão: notas para uma história do novo direito da infância e da juventude no Brasil. Brasilia: Ministério da Ação Social: Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência, 1992. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. ______________. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras providências [ECA]. Diário Oficial da União. Brasília, DF. 16 jul. 1990. MOURA, Marcelo de Souza; http://jus.com.br/revista/texto/9011/o-principio-daabsoluta-prioridade-dos-direitos-de-criancas-e-adolescentes-e-a-dignidade-humana-dosmaiores-de-18-anos#ixzz2U1WON6nC; Acesso em: 22 mai. 2013. ABC.MED.BR, 2009. Crescimento Infantil. Disponível em: http://www.abc.med.br/p/saude-da-crianca/30783/crescimento+infantil.htm; Acesso em: 22 mai. 2013. 72 INDICADORES SOCIAIS DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NA AMAZÔNIA Alberto Damasceno Carlos Maciel Emina Santos A preocupação com o cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, acompanhada da observação atenta à situação deste segmento da população não é recente. Em uma obra datada de 1998 José Ricardo Cunha já nos dizia que “para compreender a situação de risco que ameaça grupos determinados de crianças e adolescentes, é necessário um esforço interdisciplinar de análise, complementado com a socialização da experiência concreta daqueles que lidam no cotidiano” (DINIZ e LOBO: 1998, 9). A maioria dos estudiosos e militantes nesta área acredita que essa luta vai muito além da revolta contra o preconceito e a injustiça. Ela deve compreender também o acompanhamento cotidiano da realidade deste segmento social, por meio dos indicadores que dizem respeito direta ou indiretamente às suas condições de existência. Por essa razão, deve ser considerada ação estratégica a criação e o desenvolvimento de projetos cujos objetivos compreendam a realização de diagnósticos em diferentes âmbitos e o registro sistemático de dados sobre essa população; subsidiando estudos a partir de indicadores de educação, saúde e situação de risco social, revelando aspectos da situação da criança e do adolescente principalmente nas esferas municipal, estadual e regional, tendo em vista a implementação de políticas públicas efetivas e adequadas. O documento “A Amazônia e os objetivos de desenvolvimento do milênio” da Articulação Regional Amazônica (CELENTANO e VEDOVETO, 2011, 5) reforça essa importância ao constatar que 73 há uma profunda falta de informação sobre a realidade das diferentes amazônias, situação que impede a promoção de políticas e iniciativas regionais para a conservação e desenvolvimento sustentável. Ainda somos uma região em transe, marcada a ferro pela mácula da pobreza, pela negligência de governos e pela ganância de salteadores com sotaques e gravatas. Por essa razão os movimentos sociais devem ter papel preponderante, auxiliados por informações organizadas que lhes proporcionem recursos para a realização de uma missão que parece ser interminável, contra o inimigo (aparentemente invencível) da injustiça. Devem ser ativos mais que nunca, intransigentes e proativos como devem ser, pois as perspectivas de futuro não existem sem a ação coordenada de pessoas de bem para um bem coletivo e urgentemente necessário. Como prova disso um recente estudo do IMAZON (2010) demonstra que Os objetivos do Milênio têm obtido algumas melhoras na Amazônia, mas a região continua aquém da média nacional para a maioria dos indicadores avaliados. Ao comparar a evolução histórica dos indicadores avaliados neste estudo, a maioria melhorou entre 1990 e 2009 (ou data mais recente) nos Estados da Amazônia. Entretanto, como mostramos no decorrer do estudo, essa melhoria ainda é insatisfatória na maioria dos casos. Das 15 metas avaliadas, apenas uma foi alcançada na região e outras duas poderão ser atingidas até o prazo de 2015. (CELENTANO e VERÍSSIMO, 2010, 73). O território da Amazônia legal inclui os estados do Acre, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá, Tocantins e Pará, e parcialmente os estados do Maranhão e Mato Grosso. Nesta análise os dados dos estados de Mato Grosso e do Maranhão serão incorporados integralmente ao texto apresentado. 74 Preliminarmente, deve-se ressaltar que muitos dos discursos comuns sobre a Região Amazônica constituíram-se em construções ideológicas distantes da realidade regional, especialmente porque não conseguiram dar conta da diversidade e complexidade deste espaço, uma vez que eram “... elaborações que não passaram pelo valor das realizações coletivas que conferem o sentido de autenticidade à ação social dos grupos humanos” (COELHO, 1994, p. 84). Por isso mesmo, a Amazônia não pode ser vista sob uma ótica natural, mas como um produto histórico resultante das ações objetivas do homem sobre ela nos diversos momentos de sua construção. Pensá-la de forma natural é idealizar um território como um lócus sagrado, tanto para o bem quanto para o mal, obliterando assim as condições de conhecê-la em suas potencialidades e limitações. A rigor essas formas ideológicas de explicações sobre a Região impedem tanto que ela seja conhecida em suas características histórico-sociais quanto obstaculiza que sejam feitas ações planejadas que tenham em sua fundamentação e da legitimidade social daqueles que participam e constroem a Amazônia. No que diz respeito à realidade contemporânea das crianças e adolescentes que vivem na Amazônia Legal, é relevante ressaltar suas complexidades e particularidades. O diálogo sobre os indicadores das condições sociais em que vive esse segmento social pode contribuir para o reconhecimento dos impactos sócio históricos no viver da população infanto-juvenil que reside nesta Região. Os registros do desenvolvimento implementado na Amazônica estão impressos em sua trajetória sócio histórica, e repercutem nos componentes políticos, econômicos, sociais e culturais que desenham este território e imprimem paisagens imprecisas, que pouco revelam do seu processo constituidor, mas que ressaltam os efeitos de um movimento desigual e injusto para a maioria de sua população, em particular para o seu segmento mais fragilizado: as crianças e adolescentes. 75 Os indicadores sociais sobre a realidade de crianças e adolescentes amazônidas comumente indicam uma situação complexa e desafiante. Compreender estes indicadores pode potencializar decisões programáticas dos governos estaduais e municipais no enfrentamento dos desafios postos para a sobrevivência dessas crianças e adolescentes. Sob o ponto de vista ético, o conhecimento, a análise e a publicação destes dados têm o potencial de estimular o repensar sobre o passado sócio histórico deste espaço e sobre as condições de vida de seus habitantes, para contribuir na constituição de ações que construam um futuro melhor para cada uma das crianças e adolescentes que aqui vivem. A propósito, sobre a população que habita a Amazônia Legal é relevante destacar a proporcionalidade do segmento infanto-juvenil em relação à totalidade de seus habitantes, conforme pode ser identificado na tabela 129. A concentração de crianças e adolescentes em relação à totalidade de habitantes na Amazônica é de 36,4%, significativamente superior à média nacional de 29,6%. A análise dos dados no intervalo de 1991 a 2009 demonstra uma redução da população infanto-juvenil na ordem de 11,4% no plano nacional e de 13,0% nesta Região, o que evidencia uma tendência geral de diminuição deste segmento no Brasil. Os dados desagregados por estados da Amazônia legal revelam que a concentração da população de crianças e adolescentes assume um amplo leque de variação desde 31,1% em Mato Grosso a 39,3% em Roraima. Certamente, estes gradientes devem implicar em particularidades próprias em relação às demandas sobre as políticas públicas geradas pelas diferentes concentrações do segmento de crianças e adolescentes em cada estado desta Região, que devem requisitar uma atenção diferencial das políticas de estado destinadas ao atendimento dos direitos das crianças e adolescentes, seja do ponto de vista orçamentário, seja em seu aspecto técnico e político. 29 Vide tabela 01 em apêndice, página 92. 76 No que diz respeito à proporção de crianças e adolescentes em relação ao total de habitantes nas diversas Regiões brasileiras (dados de 2009), particularmente a Região Norte tem a maior concentração deste segmento com o índice de 37,1% enquanto as demais Regiões apresentam os seguintes índices: CO 30,5%; SU 27,3%; SE 26,4%; NE 33,2%, conforme pode ser visualizado no gráfico 1. Gráfico 1: Proporção de Crianças e Adolescentes por Região - 2009 37,1 40 29,6 30,5 33,2 27,3 26,4 30 BR NO CO 20 SU 10 SE 0 NE 2009 Esta maior incidência da população de crianças e adolescentes na Região Norte, mesmo com a tendência de diminuição nas últimas décadas, deve requisitar um cuidado específico tanto no planejamento, quanto na gestão de programas, serviço e projetos de políticas públicas destinadas a este segmento social. Esta requisição assume relevância, especialmente quando se analisam os demais indicadores sociais que traduzem a realidade da reprodução social das crianças e adolescentes na Amazônia legal. Particularmente a análise da taxa média anual de crescimento populacional da Amazônia legal expõe que a concentração de crianças e adolescentes nesta Região permanecerá a maior por um largo período de tempo haja, vista que todos os estados que a compõem têm um índice de crescimento populacional superior ao índice nacional, conforme pode ser identificado na tabela 230. 30 Vide tabela 02 em apêndice, página 93. 77 Como pode ser visualizada, a taxa de crescimento anual da população residente no território brasileiro apresenta uma tendência de redução nas duas últimas décadas, indo de 1,64% em 1991 para 1,17% em 2010. Embora na Região Norte ocorra também esta tendência de redução, passando de 2,86% em 1991 para 2,09% em 2010, esta Região tem a maior taxa de crescimento populacional em relação às demais regiões brasileiras. Em relação à taxa nacional, o dado regional é superior em aproximadamente 79%. Esta realidade resulta da combinação de dois fatores: o crescimento vegetativo da população residente e o fator migratório que tem promovido o deslocamento de indivíduos de outras partes do Brasil para os estados da Amazônia Legal em busca de novas oportunidades. Este último fator fica mais evidente quando se consideram os dados desagregados por estado na Região Norte, sendo os estados de Roraima e do Amapá que apresentam as maiores taxa nacionais de crescimento populacional com 3,34% e 3,45%, respectivamente. É crível afirmar que este crescimento populacional deve incidir sobre as condições de vida desta população, uma vez que o aumento demográfico acelerado, sem o correspondente investimento em políticas públicas que promovam a ampliação de ofertas de serviços públicos, impacta em problemas sociais de diversas ordens em curto, médio e longo prazo. Não é difícil compreender a questão da infância na Amazônia como uma engrenagem complexa e gigantesca, mas emperrada, que se move senão aos trancos, afetada pela ferrugem do descaso e pela eterna e distante expectativa de melhora, vítima que é, da distribuição desigual e iníqua das riquezas auferidas no país. Prova disso é a própria Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2012, de cujo montante total de recursos, menos de 10% está destinada à região Norte. Dito de outro modo, dentre os dez estados que receberam menos recursos da União, seis são da Amazônia, com exceção de Maranhão, Pará e Amazonas. É passada a hora de regurgitar lamentos. A Amazônia não pode mais ser alvo de “escutas fortes”. Já sabemos o que queremos, os brasileiros amazônidas, e o mundo já tem conhecimento do potencial e da capacidade de contribuição ativa dessa 78 região para o desenvolvimento planetário. Ao lado da disseminação de uma cultura de responsabilidade histórica em relação a esse “inferno” cada vez menos verde, impõemse a obrigação de priorizá-la como eixo de reconciliação entre o desenvolvimento sustentável e a justiça social. Por tudo isso, nossas crianças são muito mais que esperança silenciosa de futuro, são um presente que grita. 79 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílio 2009. Rio de Janeiro: IBGE, 2009. __________. Constituição (1988). Lei Nº. 8.742, de 7 de dez. de 1993. Lei Orgânica de Assistência Social: LOAS. Brasília, 08 de dez. 1993. __________. Estatuto da criança e do adolescente. Senado Federal. Brasília: 2005. __________. Sinopse do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. __________. Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. CARA, Daniel. O custo da qualidade. In: Carta Capital. 13/04/2011. http://www.cartacapital.com.br/carta-fundamental/o-custo-da-qualidade/?autor=371. Acesso em 20/04/2011. CELENTANO, Danielle e VERÍSSIMO, Adalberto. O estado da Amazônia: Indicadores: A Amazônia e os objetivos do milênio. Belém: Imazon, 2007. CELENTANO, Danielle; SANTOS, Daniel e VERÍSSIMO, Adalberto. O estado da Amazônia: Indicadores: A Amazônia e os objetivos do milênio. Belém: Imazon, 2010. CELENTANO, Danielle e VEDOVETO, Mariana. A Amazônia e os objetivos do milênio. Quito: ARA Regional, 2011. CASTRO, José Carlos. Cidade e Cidadania, In: A Amazônia e a Crise da Modernização. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 1994. COELHO, Geraldo Mártires. História e Identidade Cultural da Amazônia, In: A Amazônia e a Crise da Modernização. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1994. Constituição Federal da República Federativa do Brasil, de 19 de outubro de 1998. Senado Federal, Brasília, 2002. 80 COTTA JÚNIOR, Humberto. Leituras sobre família e modos de vida, no tempo e no espaço. In: Sociabilidade: Espaço e Sociedade. Maria Ângela D’INCAO (Org.) São Paulo: Grupo Editores, 1999. DINIZ, Andréa e LOBO, Ana Paula. (orgs.) A criança e o adolescente em situação de risco em debate. Rio de Janeiro: Litteris, 1998. ESTEVES, Janine Raymundi. Trajetórias de vida: repercussões da maternidade adolescente na biografia de mulheres que vivem tal experiência. 2003.197f. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Espírito Santo, UFES, Vitória, 2003. FERRANO, Alceu R. A trajetória das taxas de alfabetização no Brasil nas décadas de 1990 e 2000. Educação e Sociedade. Campinas, v.32, n.117, p. 989-1013, outdez.2011. FONSECA, A. C. Crimes contra crianças e adolescentes. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. G1 12/09/2011. Enem 2010 tem somente 13 escolas públicas entre as cem melhores. In: http://g1.globo.com/vestibular-e-educacao/noticia/2011/09/enem-2010-tem-somente13-escolas-publicas-entre-cem-melhores.html. Acesso em 2/12/2011. GUERRA, Maria Amélia, Viviane Nogueira de Azevedo (org.). Crianças Vitimizadas: a síndrome do pequeno poder: violência física e sexual contra criança e adolescentes. São Paulo: Iglu, 1986, p. 49- 95. KASSOUF, A. Aspectos socioeconômicos do trabalho infantil no Brasil. Brasília: Ministério da Justiça, 2002. KEHL, M. Rita. A Juventude Como Sintoma da Cultura. In. NOVAES, Regina & VANNUCHI, Paulo (Orgs.). Juventude e sociedade: Trabalho, Educação, Cultura e Participação. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. MACIEL, Carlos Alberto Batista. A Família na Amazônia: desafios para a Assistência Social. In. Revista Serviço Social & Sociedade. Ano XX III, n 71, São Paulo: Cortez, 2002. 81 NICOLAU, Jairo. Analfabetismo e voto no Brasil. Jornal Valor Econômico, 01/02/2012. OLIVEIRA, Francisco de. A Reconquista da Amazônia, In A Amazônia e a Crise da Modernização. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 1994. PARANDEKAR, Subas. Identificação de boas práticas nas redes municipais de ensino que influenciam o desempenho dos alunos na prova Brasil. GATTI, Bernardete (Org.). Construindo caminhos para o sucesso escolar. – Brasília: UNESCO, Inep/MEC, Consed, Undime, 2008. PINTO, Lúcio Flávio. A Amazônia Entre Estruturas Desfavoráveis, In: A Amazônia e a Crise da Modernização. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 1994. SALLES, Vicente. O negro no Pará, sob o regime da escravidão. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, Serv. De publicações [e] Universidade Federal do Pará, 1971. SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A. Queiroz,1980. SILVA, Sandra Mônica. Violência Social e Relações de Poder: crianças e adolescentes nos entreatos da violência doméstica. Tese de Doutorado da Universidade Federal do Pará. Belém 2005. SOARES, Sergei. Os fatores que determinam o sucesso educacional. In: Pesquisa e planejamento econômico, v.32, n.3, dez 2002. http://ppe.ipea.gov.br/index.php/ppe/article/viewFile/136/71. Acesso em: 2/12/2011. VITALLE, Maria Amália Faller. Socialização e Família: uma análise Intergeracional. In. A Família Contemporânea em Debate. 3 edição. São Paulo. 82 APÊNDICE: INDICADORES SOCIAIS DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NA AMAZÔNIA Tabela 1: População Geral e de Crianças e Adolescentes na Região Amazônica População total (milhares) População de crianças e adolescentes (milhares) Área 1991 Brasil 2008 2009 1991 2008 2009 146.816 189.953 191.796 60.254 57.244 56.810 Percentual da população de crianças e adolescentes 1991 2008 2009 41,0 30,1 29,6 Reg. Amazônica 16.983 24.737 25.082 8.399 9.235 9.123 49,4 37,3 36,4 Rondônia 1.133 1.519 1.531 537 523 512 47,4 34,4 33,4 417 692 705 214 275 274 51,4 39,8 38,9 2.103 3.399 3.455 1.070 1.353 1.303 50,9 39,8 37,7 218 421 430 100 163 169 45,8 38,8 39,3 4.949 7.367 7.479 2.460 2.784 2.814 49,7 37,8 37,6 Amapá 289 626 640 152 237 244 52,7 37,8 38,1 Tocantins 918 1.303 1.316 449 462 457 48,9 35,4 34,7 Maranhão 4.930 6.400 6.469 2.515 2.478 2.398 51,0 38,7 37,1 Mato Grosso 2.026 3.010 3.057 902 960 952 44,5 31,9 31,1 Acre Amazonas Roraima Para Fonte: IBGE/PNAD 83 Tabela 2: Taxa Média de Crescimento Anual da População Residente Taxa média geométrica de crescimento anual da população residente (%) Área 1991/2000 2000/2010 Brasil 1,64 1,17 Região Norte 2,86 2,09 Rondônia 2,24 1,25 Acre 3,29 2,78 Amazonas 3,31 2,16 Roraima 4,58 3,34 Para 2,54 2,04 Amapá 5,76 3,45 Tocantins 2,61 1,80 Maranhão 1,54 1,52 Mato Grosso 2,40 1,94 Fonte: IBGE 84 POR UMA AGENDA PARA AS CRIANÇAS DA AMAZÔNIA Fabio Atanásio de Morais31 A Amazônia Legal também se revela por meio de uma quantidade expressiva de desafios que precisam e devem ser superados, especialmente aqueles que se referem aos direitos de crianças e adolescentes. A complexidade das questões sociais desta região exige um esforço coletivo para garantir a todas as crianças e adolescentes seu pleno desenvolvimento. A região equivale a cerca de 60% do território nacional, correspondendo a 762 municípios nos estados do Acre, do Amazonas, de Roraima, de Rondônia, do Amapá, de Tocantins e do Pará e de Mato Grosso, e parte do Maranhão. São cerca de 22 milhões de pessoas que aqui vivem, com a população mais jovem do país, da qual 40% têm menos de 18 anos. É a segunda região do país em registros de remanescentes de quilombos32, bem como é onde se concentra a maior parte da população indígena, representando 49% do total. É também onde se encontra o maior percentual de projetos de assentamentos da reforma agrária. Tal diversidade social e cultural apenas acrescenta, ao caldeirão que é a Amazônia, mais elementos para serem trabalhados. Estas comunidades que se encontram atualmente entre as mais vulneráveis, vivem de forma dispersa e exigem um olhar específico a cada realidade, suas diferenças e demandas em respeito aos seus diferentes aspectos sociais, culturais e econômicos. Um trabalho desenvolvido pelos professores Carlos Maciel e Maria Luiza Lamarão, “Indicadores sobre crianças e adolescentes na Região Amazônica”, mostra 31 Coordenador do Escritório do UNICEF em Belém. 32 Dados retirados da publicação “Território das comunidades remanescentes de antigos quilombos no Brasil". 85 “nas últimas décadas uma ocupação e exploração descontroladas, que influenciaram no intenso processo de migração, em particular em alguns polos e cidades, como no caso das capitais dos estados, nas regiões chamadas de "províncias minerais" e nas cidades de implantação dos grandes projetos, como Porto Velho, Itaituba, Carajás, Tucuruí, Serra Pelada e outros. No entanto, este alto fluxo migratório não foi acompanhado pelo desenvolvimento econômico, político, social e administrativo dessas localidades”. “Estes fatores fizeram com que algumas cidades crescessem vertiginosamente em alguns anos, de tal forma que multiplicaram várias vezes sua população primária. Assim, como consequência direta do inchaço populacional, estas cidades não se encontravam preparadas para enfrentar os reflexos sociais desse fenômeno, principalmente no que tange ao aumento das demandas aos serviços públicos”. E neste sentido, a realidade de crianças e adolescentes da região, na verdade, acaba por compor um quebra-cabeça difícil de ser montado. Ainda de acordo com Carlos Maciel e Maria Luiza Lamarão, “os indicadores sociais das crianças e adolescentes que vivem na Região Norte apontam uma realidade complexa e desafiante. Conhecê-los remete a uma necessidade técnica, política e ética. Técnica e política porque estes dados podem potencializar decisões políticas e técnicas que contribuirão para o enfrentamento dos desafios postos para sobrevivência das crianças e adolescentes nortistas”. Ética, pois estes dados, inevitavelmente, podem conduzir a um repensar sobre o passado sócio histórico desta região e sobre as condições de vida de seus habitantes, para contribuir em um reposicionamento das ações no presente, com vistas a um futuro que agregue a cada uma das crianças e adolescentes que aqui vivem. 86 Portanto, conhecer profundamente esta realidade é fundamental para que possamos compreender e atuar sobre ela naquilo que há de mais importante: como melhorar a vida das crianças e dos adolescentes da região. E este é um componente importante, na medida em que a Amazônia convive com indicadores que ainda são duvidosos, pois é grande a subnotificação dos dados. Para aqueles que compõem o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes, especialmente os (as) conselheiros (as), o desafio se impõe com maior ênfase na medida em que entre as questões que afetam a oferta de serviços públicos de qualidade é, exatamente, o baixo controle social sobre as políticas. E este é um papel fundamental não só de conselheiros (as) de direitos, mas conselheiros (as) de saúde, educação, entre outros. Aliás, como diz uma frase dos povos africanos: é preciso uma tribo inteira para cuidar de uma criança. Pois que sejamos todos e todas cuidadores e cuidadoras de nossas crianças. INICIATIVAS PARA REDUZIR DESIGUALDADES E PROMOVER OS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES Em junho de 2008, nove governadores da Amazônia Legal assinaram a Agenda Criança Amazônia, em ato promovido durante a primeira reunião do Fórum de Governadores da Amazônia Legal, realizada em Belém (PA). Por meio de uma ação simbólica, os governadores da região firmaram o acordo, assumindo o compromisso para a construção de um plano de ação para integração, articulação e cooperação voltadas para a garantia dos direitos de cada criança e de cada adolescente da região. Ao assinar a agenda, os governadores comprometeram-se a efetivar políticas públicas que beneficiassem os mais de 9 milhões de meninos e meninas da Amazônia Legal. Os ministros das áreas de Direitos Humanos, Saúde, Educação, Meio Ambiente, as organizações da sociedade civil e do setor privado também apoiaram a iniciativa. O então ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, representando o governo 87 federal, afirmou que só é possível garantir os direitos da infância e da adolescência com o desenvolvimento sustentado. "Sem isso, as crianças não têm boa educação, nem uma boa alimentação, e a mortalidade é maior. O desenvolvimento sustentado é a garantia de que as crianças, as mulheres e a população em geral vão ter acesso aos serviços públicos, sem a destruição da floresta". Em 2009 durante o IV Fórum de Governadores da Amazônia Legal, em Boa Vista (RR), houve a aprovação do documento de compromisso da Agenda Criança Amazônia pelos governadores do Amapá, do Amazonas, do Mato Grosso, de Rondônia, de Roraima e do Tocantins, com a participação do então ministro de Ações Estratégicas, Mangabeira Unger; e o então subchefe de Assuntos Federativos da Presidência da República, Alexandre Padilha. Entre as boas práticas resultantes da iniciativa destacam-se: redução do subregistro de nascimento, ampliação das ações de enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes, ampliação da cobertura dos programas de saúde e educação indígena contextualizada. O SELO UNICEF MUNICÍPIO APROVADO A fim de monitorar e certificar os impactos reais das políticas públicas no âmbito municipal, o UNICEF lançou em 2005, para todo o Semiárido, o Selo UNICEF Município Aprovado. A iniciativa de conceder um selo para os municípios que mais avançassem na promoção dos direitos de crianças e adolescentes, surgiu em 1999 no escritório do UNICEF para o Ceará e o Rio Grande do Norte. Por meio de uma metodologia que combina capacitação de gestores municipais, melhoria dos mecanismos de gestão local e ampla mobilização social, o UNICEF convocou os municípios do Semiárido e a partir de 2009 também da Amazônia para participar de 88 uma série de atividades voltadas à melhoria da qualidade de vida de crianças, adolescentes e suas famílias. O Selo UNICEF Município Aprovado é um reconhecimento internacional que o município pode conquistar. A partir de um diagnóstico e de dados levantados pelo UNICEF, os municípios que se inscrevem passam a conhecer melhor sua realidade e as políticas voltadas para infância e adolescência. Com dados concretos e participação popular, o município tem condições de rever suas políticas e repensar estratégias de forma a alcançar os objetivos buscados, que estão relacionados aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Para participar da iniciativa, o prefeito deve assinar um termo de adesão; garantir o funcionamento do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), designar uma pessoa de sua equipe para organizar os processos de capacitação e liderar sua cidade para assegurar a prioridade aos direitos da infância. Os municípios são agrupados, de acordo com sua realidade socioeconômica, e são avaliados a partir de três eixos: impacto social; gestão de políticas públicas e participação social. No eixo de “impacto social”, são avaliados 13 indicadores (mortalidade infantil, matrícula escolar, acesso à água, entre outros). Em relação à “gestão de políticas públicas”, os municípios devem trabalhar para avançar em um conjunto de objetivos e 19 indicadores, que são analisados no início e no final da edição do selo. O eixo de “participação social” envolve a realização de fóruns comunitários e o desenvolvimento de atividades e projetos em três temas: educação para a convivência com o semiárido; cultura e identidade: comunicação para igualdade étnico-racial; e esporte e cidadania. Em 2007, nos 1.130 municípios inscritos no selo, 4,2% das crianças menores de 2 anos de idade estavam desnutridas. Em 2004, esse percentual era de 8,1%. Isso significa que 291 mil crianças ficaram livres da desnutrição. A queda da mortalidade infantil foi três vezes maior do que nos demais municípios brasileiros. De 2004 a 2006, a queda desse indicador foi de 10,7%. Isso significa que quase 1 mil e quinhentas crianças deixaram de morrer no primeiro ano de vida. No mesmo 89 período, a taxa nos demais municípios do país caiu 3,1%. Nos municípios certificados, a queda foi ainda maior: 15,2%. O acesso ao pré-natal melhorou 21,2%. De 2004 a 2006, o percentual de mulheres que realizaram ao menos sete consultas de pré-natal passou de 32% para 38,8%. Enquanto o aumento na cobertura desse serviço nos demais municípios brasileiros foi de 7%. A distorção idade-série melhorou em 63%. A qualidade do ensino foi medida pela adequação entre a idade do aluno e a série na qual está matriculado. Esse indicador passou de 47,1% para 17,4%, demonstrando que a distorção idade-série caiu 63% nos municípios participantes do selo. Observou-se também aumento no acesso ao ensino fundamental. De 2004 para 2007, a taxa líquida de matrícula subiu 15,3% nesses municípios. Para o período de 2009 a 2012, o UNICEF convocou novamente os municípios do Semiárido e da Amazônia Legal para participarem do Selo UNICEF Município Aprovado. Síntese dos resultados 1ª edição na Amazônia Legal 534 municípios aderem à iniciativa 119 municípios conquistam o selo AGENDA CRIANÇA AMAZÔNIA Na Região Amazônica, o Selo UNICEF está articulado com a Agenda Criança Amazônia (ACA), firmada em 2008 por todos os governadores da Amazônia 90 Legal, além de organismos internacionais, organizações da sociedade civil e setor privado. Em novembro de 2012, a Agenda Criança Amazônia é renovada destacando o investimento na infância e na adolescência como fatores centrais para o desenvolvimento da região. Por meio da ACA, o UNICEF convoca e mobiliza as três esferas de governo, a sociedade civil organizada e as empresas para iniciar, coordenar, articular e implementar e monitorar ações e recursos voltados para a garantia dos direitos de todas e cada uma das crianças e adolescentes da Amazônia Legal. Essas atividades envolvem a implementação de marcos normativos, programas e ações nas áreas de saúde, educação, proteção e assistência social e meio ambiente, promovendo o intercâmbio de boas práticas e o desenvolvimento das capacidades técnicas e institucionais, todas voltadas para a diminuição das desigualdades. MUDANÇAS NA VIDA DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES O Selo UNICEF Município Aprovado é um instrumento de mobilização que motiva os municípios em torno de objetivos e metas que devem ser alcançados, num determinado período de tempo, para melhorar a qualidade de vida das crianças e dos adolescentes. Este processo se dá por meio de um conjunto de indicadores quantitativos e qualitativos referentes à garantia dos direitos da criança e do adolescente de até 17 anos. O Selo UNICEF contribui com mudanças concretas na vida das crianças, dos adolescentes e de suas famílias. Comparados aos munícipios da região que não participam da iniciativa, os municípios inscritos no Selo UNICEF e, de maneira destacada os municípios certificados, exibem avanços significativos na garantia do direito de sobreviver, se desenvolver, aprender e crescer sem violência. PRINCIPAIS AVANÇOS OBSERVADOS NOS MUNICÍPIOS DA AMAZÔNIA LEGAL PARTICIPANTES DO SELO 91 Nesta edição, o percentual de crianças beneficiadas pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC) que estão na escola foi o indicador que apresentou os maiores avanços. Em 2011, nos 534 municípios inscritos no selo, 59,7% das crianças nessa faixa etária estavam na escola. Em 2008, esse percentual era de apenas 21,9%. Isso significa que aproximadamente 25,9 mil crianças portadores de deficiência retornaram à escola. AVANÇOS EM RELAÇÃO AO DIREITO DE SOBREVIVER De 2007 a 2010 o percentual de nascidos vivos de mulheres com sete ou mais consultas de pré-natal passou de 30,6% para 35,6%. Enquanto o aumento na cobertura desse serviço nos demais municípios brasileiros foi de 10,1%. De 2007 a 2010, a queda da taxa mortalidade infantil para os municípios participantes foi de 6,8%. Isso significa que quase 511 crianças deixaram de morrer no primeiro ano de vida. Nos municípios certificados, a queda foi ainda maior: 12,7%. AVANÇOS EM RELAÇÃO AO DIREITO DE APRENDER De 2007 a 2011 a taxa de abandono no ensino fundamental dos municípios inscritos passou de 6,5% para 3,4%. Enquanto a queda da taxa de abandono nos demais municípios brasileiros foi de 41,1%. A qualidade do ensino medida pela adequação entre a idade do aluno e a série na qual está matriculado pode ser percebida pela distorção idade-série. Esse indicador passou de 47,0%, em 2007, para 37,9%, em 2011, demonstrando que a distorção idade-série caiu de 19,4% nos municípios participantes do Selo. No mesmo período, a taxa nos demais municípios do país caiu 12,6 %. AVANÇOS EM RELAÇÃO AO DIREITO DE CRESCER SEM VIOLÊNCIA 92 Entre 2007 a 2010 houve uma queda do percentual de óbitos por causas mal definidas de 57,1%. Nos municípios certificados, a queda foi ainda maior: 67,4%. Outro avanço foi a melhoria no funcionamento dos conselhos tutelares (CT) e dos conselhos de direitos de crianças e adolescentes (CMDCA), no decorrer das capacitações do selo e da visita do (a) mediador (a) do Selo UNICEF a 172 municípios da Amazônia Legal. GESTÃO MUNICIPAL FORTALECIDA É no município que a criança nasce, brinca e aprende. É também no município que o adolescente se desenvolve, se relaciona, participa. Portanto, para avançar na garantia dos direitos dos meninos e meninas, o Selo UNICEF contribui com o aprimoramento das políticas públicas locais, fortalecendo a gestão municipal, a atuação dos conselhos de direitos, dos conselhos tutelares, das organizações da sociedade civil, além dos grupos de adolescentes. 534 municípios da Amazônia Legal aderem ao Selo UNICEF comprometendo-se a melhorar de forma concreta a vida das crianças e dos adolescentes. Mais de 500 municípios da Amazônia Legal organizam comissões municipais pró-selo, avançando na integração das diferentes secretarias da gestão municipal além de ampliar a articulação com os conselhos, sociedade civil e lideranças adolescentes. PARTICIPAÇÃO SOCIAL AMPLIADA A participação cidadã dos próprios meninos e meninas revela-se essencial para o avanço na garantia de seus direitos. Portanto, além de buscar o compromisso e o desenvolvimento da capacidade técnica dos gestores municipais, o Selo UNICEF incentiva e fortalece a participação das crianças, adolescentes e da comunidade no aprimoramento das políticas públicas. 93 Abaixo, os dados da participação social traduzidos em números: Mais de 14.800 pessoas nos municípios envolvidas na avaliação das ações e resultados das políticas públicas da infância e adolescência durante o 2º Fórum Comunitário do Selo. 160 municípios desenvolveram atividades e discussões sobre esporte e cidadania. 157 municípios desenvolveram atividades e discussões sobre a cultura, identidade e igualdade étnico-racial. 591 municípios pontuaram no eixo de Impacto e 285 no eixo de gestão apresentando avanços nos indicadores de saúde, educação e proteção. A capacidade técnica dos municípios foi fortalecida no uso de indicadores sociais; produção de diagnósticos sobre a situação da infância e adolescência; realização de fóruns comunitários; elaboração de planos municipais de ação para fortalecimento das políticas públicas na área da infância; e promoção da cidadania dos adolescentes. Com essas temáticas, o UNICEF e seus parceiros promoveram 27 encontros de capacitação nos 09 estados da Amazônia Legal, em junho/julho, envolvendo ao todo 741 participantes incluindo gestores e técnicos da área da saúde, educação, assistência social, planejamento, além de conselheiros de direitos (representantes do governo e da sociedade civil), de 445 municípios. Novo ciclo de capacitação foi iniciado em dezembro de 2010, com novos 14 encontros programados. O UNICEF também produziu e distribuiu exemplares de Guias de orientação para os municípios da Amazônia. A participação social, especialmente dos adolescentes, foi estimulada e fortalecida na discussão e proposição de políticas públicas para garantia de direitos da criança e do adolescente. Entre julho e setembro de 2010, o UNICEF em parceria com os CMDCA e as prefeituras, promoveu a realização de 298 fóruns comunitários em 298 municípios dos 09 estados da Amazônia Legal, envolvendo cerca de 30 mil participantes, incluindo lideranças adolescentes, lideranças comunitárias, lideranças religiosas, sociais, sindicais, comerciantes, comunicadores, além de gestores públicos, vereadores, promotores de justiça. 94 A nova cultura de gestão municipal foi incentivada, com base em planejamento, monitoramento e atuação intersetorial (entre as áreas de saúde, educação, assistência social, cultura, esporte, lazer) em relação às políticas públicas locais voltadas à infância e adolescência. No decorrer de 2010, foram formados pelo menos 200 comitês municipais pró-selo e produzidos cerca de 250 diagnósticos e planos de ação intersetoriais. O sistema de garantia de direitos foi fortalecido no âmbito local, com incentivo à criação e pleno funcionamento dos conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente e do conselho tutelar. A presença e sustentabilidade institucional do UNICEF foi fortalecida na Região Amazônica, ampliando em grande escala sua atuação junto a localidades e populações até então não alcançadas pela instituição, levando a marca UNICEF a 534 municípios, conquistando a parceria financeira de 03 empresas locais (CELTINS, CELPA e CEMAT). 95 REFERÊNCIAS MACIEL, Carlos; LAMARÃO, Maria Luiza. Indicadores sobre crianças e adolescentes na Região Amazônica. Não publicado. ANJOS, Rafael Sanzio. Território das comunidades remanescentes de antigos quilombos no Brasil. Editora. Mapas e Consultoria Ltda. 2005. 96 CRIANÇA E DIREITOS HUMANOS: EDUCAÇÃO E CIDADANIA NA INFÂNCIA Ana Maria Orlandina Tancredi Carvalho33 RESUMO Este artigo versa sobre a história das ações do Fórum de Educação Infantil do Estado do Pará (FEIPA) e objetiva, pela mediação desta história, propor a importância da continuidade da luta pela garantia dos direitos da infância à educação e à cidadania, condições para uma infância digna. Apresenta-se a trajetória do Fórum desde a sua criação e destacam-se as principais lutas encetadas, suas propostas e conquistas ao longo dos últimos dezesseis anos. O artigo apresenta-se como resultado de uma pesquisa documental, cujos fundamentos encontram-se também corroborados pela experiência da própria autora, haja vista o entrecruzar de sua história de vida e a do início das reuniões que, posteriormente, deram origem ao FEIPA. Palavras Chave: Direitos Humanos; Participação; Cidadania; Infância. INTRODUÇÃO Este artigo apresenta o percurso de dezesseis anos do Fórum de Educação Infantil do Estado do Pará (FEIPA). Para a reconstituição desta trajetória baseamo-nos na pesquisa dos documentos produzidos pelo FEIPA e nas análises da autora que, por integrar o Fórum desde a sua criação, por meio de uma participação contínua, tem participado da elaboração dos mesmos. Destacamos, aqui, os seguintes tópicos: 33 Doutora em Educação, Professora da Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected] 97 Acerca da natureza do Fórum de Educação Infantil do Pará; História e Trajetória do FEIPA; Algumas das Propostas do FEIPA; Parte das conquistas do FEIPA e nossas Considerações Finais. ACERCA DA NATUREZA DO FÓRUM DE EDUCAÇÃO INFANTIL DO PARÁ O Fórum de Educação Infantil do Estado do Pará é [...] um espaço democrático, aberto, suprapartidário, plural, de permanente discussão, mobilização, divulgação, articulação e de lutas objetivando instigar o poder público a garantir políticas para Educação Infantil que assegurem o atendimento com qualidade socialmente referenciada, em espaços adequados, confortáveis, seguros e bonitos, com profissionais qualificados e comprometidos com o cuidar e o educar e com materiais e atividades que propiciem o desenvolvimento integral da criança. (TANCREDI CARVALHO, 2002, p. 2) Além do seu caráter informativo e de sua natureza deliberativa, o Fórum possui uma dimensão eminentemente política e atua de forma autônoma, democrática e coletiva, utilizando-se do debate de ideias e de pesquisas visando qualificar sua atuação. O Fórum é integrado por instituições governamentais e não governamentais, por entidades científicas e sindicais, de abrangência estadual, pela representação dos fóruns regionais e municipais e por quaisquer membros da sociedade civil interessados na educação infantil. Para tornar-se membro do FEIPA é preciso assinar sua Carta de Princípios, sendo sua direção exercida por um Grupo Gestor constituído pelos participantes do Fórum. 98 HISTÓRIA E TRAJETÓRIA DO FEIPA 2000 COMISSÃO ESTADUAL INTERINSTITUCIO NAL DE EDUCAÇÃO INFANTIL DENOMINAÇÃO 2002 FÓRUM DE EDUCAÇÃO INFANTIL DO ESTADO DO PARÁ 1998 COMISSÃO INTERINSTITUCION AL DE EDUCAÇÃO 1995 INFANTIL COMISSÃO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO INFANTIL 1994 GRUPO DE TRABALHO SOCIEDADE CIVIL MILITANTES UNDI ME DELEGACIA DO MEC 1. História do FEIPA: denominações e Órgãos Coordenadores no período compreendido entre 1994 a 2002; Fonte: Ana Maria Orlandina Tancredi Carvalho. O Fórum de Educação Infantil do Estado do Pará inicia sua trajetória em agosto de 1994, quando um conjunto de membros da sociedade civil – representantes de entidades34 que lidavam com a Educação Infantil, as responsáveis pela formação de profissionais, bem como as mantenedoras de creches e pré-escolas públicas e privadas, órgãos ligados à Educação, à Assistência Social, à Saúde – foi convidado pela Delegacia Regional do MEC para elaborar um [...] relatório acerca das medidas adotadas pelo Governo Brasileiro para dar cumprimento às normas estabelecidas na Convenção sobre os Direitos da Criança da qual o Brasil é um dos signatários, motivada pela publicação 34 Participam do Fórum as seguintes entidades: Secretaria de Estado de Educação/Divisão de Educação Pré-Escolar (SEDUC); Secretaria Estadual de Trabalho e Promoção Social/Coordenadoria de Atendimento à Criança/Diretoria de Assistência Básica (SETEPS/DAB); Secretaria de Saúde do Pará/Divisão Materno-Infantil (SESPA); Fundação Papa João XXXIII/Setor de Assistência à Criança (FUNPAPA/SAG); Fundação Legião Brasileira de Assistência (LBA); Conselho Estadual de Educação (CEE); Secretaria Municipal de Educação de Belém (SEMEC); Delegacia Regional do MEC no Pará (DEMEC/PA); Fundação Brasileira de Infância e Adolescência (CBIA); Fundação de Assistência ao Estudante (FAE). Posteriormente, aaLBA foi substituída pela Secretaria de Ação Social; a CBIA e a FAE solicitaram retirar-se do Fórum e ocorreu a inclusão do Ministério Público, do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Conselho Tutelar Nº 1 e 2, do Fundo das Nações Unidas para a Criança (UNICEF), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB/Pastoral da Criança), da Universidade Federal do Pará/Centro de Educação, do Instituto de Educação de Belém (ISEBE) e da Universidade da Amazônia (UNAMA). 99 do Decreto Presidencial de 26 de abril de 1994. (TANCREDI CARVALHO, 2002, p. 1) Nessa reunião decidiu-se constituir um Grupo de Trabalho, sob a coordenação da extinta Delegacia Regional do MEC, cujo objetivo era o de “[...] estimular a grupalização interinstitucional no sentido de discutir, socializar e programar ações integradas para a Educação Infantil no âmbito do Estado” (RELATÓRIO DA COMISSÃO INTERINSTITUCIONAL DE EDUCAÇÃO INFANTIL DO PARÁ, 1998). Com a continuação das atividades do Fórum, o Grupo de Trabalho do Pará transforma-se em Comissão Estadual de Educação Infantil35 e, em 1995, esta Comissão participa dos encaminhamentos relativos ao XI Congresso Brasileiro de Educação Infantil, realizado no período compreendido entre 17 e 21 de junho do mesmo ano “[...] criando instrumentos viabilizadores das metas prioritárias a nível Estadual”. (RELATÓRIO DA COMISSÃO INTERINSTITUCIONAL DE EDUCAÇÃO INFANTIL DO PARÁ, 1998). Em 1996, o MEC mobiliza os Estados brasileiros para participar do II Simpósio Nacional de Educação Infantil e do IV Simpósio Latino-Americano de Atenção à Criança na Faixa etária de 0 a 6 anos, a partir do qual surge a iniciativa de organizar-se o I Encontro Estadual de Educação Infantil. O Encontro foi realizado no período de 14 a 16 de agosto desse ano, sob a temática Educação Infantil: educar para a cidadania. Ressalta-se que, em 1996, foram realizados intensos debates sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/96), a valorização do magistério, o currículo e os temas transversais para a Educação Infantil. O primeiro tema então trabalhado foi a inserção preventiva do uso indevido de drogas no currículo de Educação Infantil. 35 Às entidades já existentes na Comissão, acrescentam-se: União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), Fundação de Assistência à Criança e ao Adolescente do Pará (FUNCAP), Serviço Social da Indústria (SESI), Creche Jardim das Oliveiras e a Organização Mundial de Educação Pré-Escolar (OMEP/Pará). 100 Em 1997, dando seguimento às atividades, a Comissão realiza uma série de seminários acerca da LDBEN/96 recém-aprovada. Em abril de 1998, a Delegada do MEC no Estado do Pará, por meio da portaria n.º 032/98/SRH/DEMEC/PA institui a Comissão Interinstitucional de Educação Infantil com a finalidade de “[...] discutir, socializar e programar ações integradas para educação infantil no âmbito do Estado do Pará”. (DEMEC/PA, Portaria 1998, Belém-PA). Em abril de 1998, realiza-se, em Belém/Pará, no auditório da UNAMA, o II Encontro Estadual de Educação Infantil, com o tema “O atendimento às crianças de zero a seis anos: dos direitos às políticas públicas”, com a participação de alguns municípios do Estado. A extinção da Delegacia do MEC, a Comissão Interinstitucional de Educação Infantil deu lugar, em 1999, à coordenação da União Nacional dos Dirigentes Municipais da Educação (UNDIME), que realiza um seminário interno para discutir a continuidade da comissão, sua identidade e missão. Neste seminário foi decidido que a Comissão Interinstitucional de Educação Infantil é uma instância interinstitucional e interprofissional que estuda, discute, articula, propõe e busca garantir políticas públicas para educação infantil, sob a perspectiva da cidadania, no âmbito do Estado do Pará. A referida comissão tem como missão “Mobilizar os vários segmentos da sociedade, a fim de garantir políticas públicas para a Educação Infantil, numa perspectiva de cidadania” (RELATÓRIO DO SEMINÁRIO COMISSÃO INTERINSTITUCIONAL DE EDUCAÇÃO INFANTIL: PERSPECTIVAS, 1999), podendo participar desta Comissão “[...] instituições governamentais e não governamentais, relacionadas, direta ou indiretamente, à Educação infantil” (RELATÓRIO DO SEMINÁRIO COMISSÃO EDUCAÇÃO INFANTIL: PERSPECTIVAS, 1999). 101 INTERINSTITUCIONAL DE Em 2000, no período de 02 a 04 de maio, realiza-se o III Encontro Estadual de Educação Infantil, em Belém, com 804 participantes com o objetivo de discutir o resultado do estudo intitulado “A Educação Infantil no Pará: Um Retrato 3x4 da Realidade”. Desse evento saíram propostas referentes à formação do profissional de Educação Infantil, ao Projeto Político-Pedagógico, à Gestão da Educação Infantil e ao Plano de Cargos e Salários. Além das questões indicadas, o Encontro aprovou uma moção pela revogação do Decreto Presidencial nº 3276, de 06 de dezembro de 1999, que dispõe sobre a formação em nível superior de professores para a Educação Básica, haja vista o mesmo preterir as discussões que estavam ocorrendo Brasil afora, pois jamais tal regulamentação foi feita por decreto, além de atentar contra a autonomia das universidades brasileiras. A partir desse Encontro, a Comissão passou a ser coordenada pela Universidade Federal do Pará, Universidade da Amazônia, Secretaria de Estado de Educação, Secretaria Municipal de Educação de Belém e Ministério Público, ficando sua coordenação geral sob a responsabilidade da UFPA e sua Secretaria sob a da SEDUC. Também nesse momento, a Comissão passa a ser denominada Comissão Estadual Interinstitucional de Educação Infantil – Pará (CEIEI/PA). Nesse período – 2000/2002 – o FEIPA organiza uma série de Seminários, a saber: (a) Os Dez Anos do ECA: uma análise crítica, ocorrido aos 11 de outubro de 2000, no Auditório Setorial Básico, da UFPA; (b) O Compromisso do Pará com a Infância; (c) A Educação Infantil e a Legislação Vigente, realizado aos 02 de fevereiro de 2001, no auditório do Ministério Público, em Belém (PA). No mesmo período, passa a integrar o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB) e começa o processo de organização de Fóruns Municipais de Educação Infantil, cuja instalação ocorreu em nove municípios: Acará, Altamira, Anapú, Breves, Medicilândia, Salvaterra, Soure, Uruará e Vitória do Xingu. Em agosto de 2002, o Pará sedia a Reunião Nacional do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil. 102 O IV Encontro Estadual de Educação Infantil representa um marco na trajetória das lutas empreendidas em favor de creches e pré-escolas para as crianças visto que, pela primeira vez, contou com uma Comissão Científica que selecionou vinte trabalhos, entre comunicações e pôsteres, os quais foram apresentados no referido Encontro. Por fim, deliberou-se, ainda, neste evento estadual, pela constituição de um Fórum, o qual deu lugar à Comissão Estadual Interinstitucional de Educação Infantil (CEIEI). Nesta condição passou a denominar-se Fórum de Educação Infantil do Estado do Pará (FEIPA). No biênio 2002-2004, o FEIPA faz novas conquistas. Ocorre a organização dos Fóruns de Educação Infantil nos municípios de Cametá, Benevides e Almeirim e o FEIPA passa a ser um dos membros do Grupo Gestor do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB). Em 2004, o Fórum completa 10 anos de existência. Para comemorar essa data realiza-se o V Encontro Estadual de Educação Infantil, no período de 29 a 30 de novembro, com o tema Educação Infantil: o papel do poder público e dos movimentos sociais na luta pela garantia de direitos, evento esse que contou com 450 (quatrocentos e cinquenta) participantes. Em 2005 e 2006, integra a luta nacional em favor da inclusão das creches no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, tendo o FEIPA enviado 6 (seis) mil assinaturas para integrar a listagem do MIEIB com o objetivo de pressionar o Parlamento Brasileiro pela urgência de financiamento de toda a Educação Infantil, sendo um dos Fóruns que mais assinaturas coletou. Nos anos de 2007 e 2008, o FEIPA participa ativamente das discussões e seminários promovidos pela Secretaria de Estado de Educação para o estabelecimento de uma política para a Educação Infantil do Pará e integra duas comissões: a que vai elaborar o documento base dos seminários regionais e, posteriormente, a de sistematização do documento final denominado Política de Educação Infantil do Estado do Pará: uma construção em defesa da criança paraense, publicado em 2009. Em 2009, o FEIPA dedica-se à preparação do II e III Seminários do MIEIB, na Região Norte. 103 O II Seminário do MIEIB, na Região Norte, realizou-se em Macapá/AP e nesse evento participou de conferências, palestras, mesas redondas e da elaboração da Carta da Amazônia. Outra atividade a ser destacada é a da criação do Fórum de Educação Infantil do Município de Santarém, ocorrida em maio de 2009. Ainda em de agosto desse mesmo ano, o FEIPA, juntamente com o MIEIB, a UNDIME e a Secretaria de Estado de Educação organizam e realizam o III Seminário do MIEIB, em Santarém (PA). Essa organização iniciou com a elaboração do projeto, com a participação em conferências e palestras e, sobretudo, por meio de oficinas ministradas para os/as professores/as da rede de ensino de Educação Infantil. Tais oficinas versaram sobre as seguintes temáticas: “Violação dos direitos das crianças e adolescente no Estado do Pará”, “Múltiplas Linguagens na Educação Infantil” “A Mediação de Leitura com crianças de 0 a 6 anos”, “O Plano de Cargos e Salários”, “Normas para a institucionalização da Educação Infantil”, “As Brincadeiras Infantis”. Participamos, por fim, da elaboração da Carta de Santarém. Destaca-se que o FEIPA é sempre convidado a participar de todas e quaisquer discussões cujo tema seja a Educação Infantil. Em 2010, o FEIPA participa da instalação do Fórum de Educação Infantil no município de Augusto Corrêa e Jacundá e, igualmente, de debates sobre a criança no contexto da educação infantil no meio urbano e do campo, especificamente, nos municípios de Viseu e Salinópolis. Participa, atualmente, dos debates sobre a construção de uma Proposta de Política para a Educação Infantil do Campo, discutindo, de forma especial, a Educação Infantil presente em classes multisseriadas, em particular, no município de Paragominas. Participou, ainda, do “Dia D” no contexto da Semana da Criança no Município de Salinópolis e dos debates realizados sobre a Conferência Estadual de Educação nos Municípios da Região do Nordeste Paraense e da Região Metropolitana e da Conferência Nacional de Educação e da Reunião Técnica Orientações Curriculares para Educação Infantil do Campo, no Encontro de Educação Infantil e Educação do Campo no município de Sinop (MT), na Região Centro-Oeste. Integra a Comissão Nacional sobre os Indicadores de Qualidade para a Educação 104 Infantil e, pela segunda vez, integra o Comitê Diretivo do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB). ALGUMAS DAS PROPOSTAS DO FEIPA O Fórum de Educação Infantil do Estado do Pará tem, sistematicamente, organizado propostas nos âmbitos da política para a educação infantil; da formação de professores e gestão desse nível de educação, bem como em relação ao plano de cargos e salários dos/as trabalhadores/as da educação na educação infantil. Indicamos, a seguir, algumas dessas proposições. POLÍTICA PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL Construção coletiva de uma política educacional para a Educação Infantil, com a participação dos educadores, de órgãos governamentais e dos movimentos sociais envolvidos com a Educação Infantil: Fórum de Educação Infantil do Pará, Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Pará (SINTEPP), Conselho Tutelar, Associação de Pais, etc.; Política Educacional para a infância articulada às políticas da Assistência Social, Saúde, Justiça, Cultura, Direitos Humanos, Mulher e Diversidades; Política Educacional Estadual de apoio aos sistemas de ensino municipais de modo a poderem assumir suas responsabilidades para com a educação infantil na diversidade sociocultural paraense;. Política de Educação Infantil articulada ao Ensino Fundamental, visando a integração e a educação das crianças sem ruptura da infância nos diferentes níveis de educação e ensino; Política Educacional para a Infância articulada à Educação Especial na perspectiva de uma educação inclusiva, garantindo a inclusão e a permanência, com qualidade, de todas as crianças e suas diversidades, em particular, às crianças com deficiência(s); 105 Política de formação inicial e continuada que assegure aos professores/as sua inclusão nos planos de cargos e salários, carreira do magistério e piso salarial que garanta vida pessoal e profissional dignas. FORMAÇÃO DO/A PROFESSOR/A DE EDUCAÇÃO INFANTIL Que a formação do/a professor/a se dê em cursos de graduação, em nível de licenciatura plena nas Universidades com possibilidades de se desenvolver o ensino, a pesquisa e extensão e com uma base comum em todos os cursos; Que os municípios busquem a formação de seus profissionais de Educação Infantil celebrando convênios com as Universidades de modo a garantir a gratuidade aos participantes; Que, no processo de formação do/a professor/a infantil, estude-se o Estatuto da Criança e do Adolescente; Que seja assegurada carga horária, na jornada de trabalho, para a formação, para o planejamento, para a avaliação e reflexão sobre a prática dos/as professores/as e para visitas às famílias; Que seja assegurada a formação continuada, bem como o livre acesso a livros, publicações, em geral, e recursos tecnológicos para o/a professor/a da Educação Infantil; Que os professores e professoras se ocupem de registrar as experiências que são desenvolvidas nas Unidades de Educação Infantil para que seja possível a socialização das mesmas; Que haja articulação sistemática entre as Unidades de Educação Infantil e os movimentos sociais organizados. PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO Os municípios paraenses têm a necessidade de construir um projeto político- pedagógico haja vista (a) acreditarem na sua importância e (b) o mesmo possibilitar um 106 compromisso coletivo visando a superação das dificuldades enfrentadas na unidade de Educação Infantil em que trabalham; Que se realizem, nos municípios, seminários, palestras e oficinas sobre a construção do projeto político-pedagógico, incluindo, nesses eventos, ações integradas com o Conselho Municipal de Direitos das Crianças e do Adolescente, Conselhos Tutelares e Conselhos Escolares. GESTÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL Discutir o regime de colaboração técnico-financeira entre as instâncias municipais e estaduais;. Que haja eleição para os coordenadores das unidades de Educação Infantil. Que haja, nos Conselhos Escolares e Municipais de Educação, a representação de pais e professores/as de Educação Infantil; Que seja criada, em cada município, uma Comissão de Educação Infantil para estudar, discutir e formular propostas de modo a garantir políticas públicas para a Educação Infantil e, ainda, supervisionar as ações desenvolvidas no Município, nesse nível educacional; em outras palavras, o que se propôs funda-se na compreensão de uma Educação que, ao encargo das verbas públicas – tendo por base o regime de colaboração entre a união, os estados e municípios –, proveja uma educação de qualidade para todos, com ênfase àquela destinada às camadas populares (pois que, historicamente, excluídas dos bancos escolares), provisão que, incluindo desde a construção/manutenção das escolas, aos salários de todas as categorias dos trabalhadores da educação (funcionários, técnicos e docentes), seja subraída da tutela do Estado36 no concernente à elaboração das políticas públicas educacionais. Tal concepção implica a proposição de políticas públicas elaboradas, executadas e avaliadas desde o interior das escolas, em conjunto com as instituições organizadas da sociedade civil efetivamente comprometidas com a valorização da Educação, bem como com a dos que nela trabalham e estudam (a este respeito conferir MARX, 2010). 36 “Isso de ‘educação popular a cargo do Estado’ é completamente inadmissível. Uma coisa é determinar, por meio de uma lei geral, os recursos para as escolas públicas, as condições de capacitação do pessoal docente, as matérias de ensino, etc., [...] e outra coisa completamente diferente é designar o Estado como educador do povo!” (MARX, 2010). 107 Construção de creches e pré-escolas que atendam aos padrões de infra-estrutura estabelecidos pelo MEC; Ação mais articulada e integrada entre a Política de Educação Infantil e a Política de Assistência Social. PLANO DE CARGOS, CARREIRA E SALÁRIOS Que o Estado assuma a progressão automática do profissional, quando da conclusão do nível médio, superior e pós-graduação; Que haja um Plano de Cargos, Carreira e Salários de forma a estabelecer um piso salarial profissional inicial para o exercício do Magistério em Educação Infantil e, a partir daí, haja percentuais de 80% para o nível superior, 20% para o nível de especialização, 30% para o nível de mestrado e 40% para o nível de doutorado, como parte integrante da composição salarial desses profissionais. Que seja garantido um espaço para a discussão democrática acerca da construção do Plano de Cargos, Carreira e Salários. Que a jornada de trabalho na creche seja de 30 horas semanais e da pré-escola, seja de 30 horas. Que o/a professor/a que trabalha na zona rural receba um valor a mais – 25% do seu salário – como ajuda de custo. PARTE DAS CONQUISTAS DO FEIPA Eis algumas conquistas dessa trajetória histórica do Fórum de Educação Infantil do Estado do Pará. Da heteronomia à autonomia De uma reunião, ocorrida por iniciativa da Delegacia Regional do MEC, para elaborar um 108 [...] relatório acerca das medidas adotadas pelo Governo Brasileiro para dar cumprimento às normas estabelecidas na Convenção sobre os Direitos da Criança da qual o Brasil é um dos países signatários, motivada pela publicação do Decreto Presidencial de 26 de abril de 1994. Surge um movimento que, paulatinamente, ganha independência e identidade para se autodeterminar e, passo a passo, vai abrindo caminhos para tornar-se referência na luta em favor de uma Educação Infantil de qualidade. Inicialmente, os participantes eram só representantes de entidades, hoje, além destes, integram o FEIPA militâncias valorosas, na condição de estudantes, professoras, profissionais de diferentes áreas, mas sempre pessoas com elevada sensibilidade e espírito de cidadania se inscrevem e, inclusive, compõem o Grupo Gestor. Se, anteriormente, chamavam-nos para reuniões enquanto instituições que, direta ou indiretamente, relacionavam-se à criança e sua educação, hoje, mobilizamos pessoas e instituições para, conosco, lutarmos para que a criança possa viver sua infância de maneira plena, destacando sempre a obrigação do poder público no sentido de garantir vagas em creche e pré-escola de qualidade a quem demandar. Se, no início, nossa pauta era composta por temas preponderantemente nacionais, gradativamente, também as peculiaridades regionais e nossas particularidades foram incluídas nas discussões. Se, iniciamos sendo convidados para participar de eventos nacionais, progressivamente, passamos a organizar, juntamente com o MIEIB, os eventos nacionais em favor da Educação Infantil. TRABALHO COLETIVO Em 1994, em uma das primeiras reuniões anteriores à constituição do FEIPA, um grupo de profissionais – os quais, por dever de ofício, não mantinham 109 vínculo direto com a Educação Infantil – decidiu-se pela criação de um Grupo de Trabalho para “[...] estimular a grupalização interinstitucional no sentido de discutir, socializar e programar ações integradas para a Educação Infantil no âmbito do Estado”. (Relatório da Comissão Interinstitucional de Educação Infantil do Pará, 1998). A vitalidade contínua do Fórum deve-se ao fato de organizar-se tendo como base o trabalho coletivo. Não é, portanto, tratado como propriedade de alguém. É da sociedade. É de todos. É res publica. Cada um é e sente-se responsável por sua continuidade uma vez que seus objetivos são notáveis e nobres são suas causas. Sozinhos, nada somos. Juntos, entretanto, somos e fomos capazes de, por exemplo, registrar na história a luta pela inclusão das creches no FUNDEB, de tal modo que podemos, hoje, afirmar termos financiamento para a Educação Infantil. Registramos, também, a participação do FEIPA na formulação da política para a Educação Infantil do Estado do Pará e de todos os Fóruns da Região Norte nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, tal como aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação em 2009. DAS PEQUENAS REUNIÕES ÀS GRANDES MANIFESTAÇÕES As reuniões aconteciam em salas, com temáticas de interesses institucionais e, paulatinamente, transformaram-se em grandes eventos, seminários, encontros, passeatas, em audiências na Assembleia Legislativa, em coleta de assinaturas na Praça da República. É o Fórum em movimento. É a criança ganhando visibilidade. É a creche e a 110 pré-escola ganhando as ruas, espaço público, para serem afirmadas como direito da criança brasileira. AS POLÍTICAS PÚBLICAS NA AGENDA Desde a sua criação, as políticas públicas foram objeto de discussão e pauta de reivindicação. Incluem-se nesta agenda alguns dos temas presentes em seminários, encontros e debates, tais como: a Convenção do Direito da Criança, a LDBEN; a valorização do magistério; o currículo; os temas transversais para a Educação Infantil; A Educação Infantil no Pará: um retrato 3x4 da realidade; Educação Infantil: o papel do poder público e dos movimentos sociais na luta pela garantia de direitos; os dez anos do Estatuto da Criança e do Adolescente; A Educação Infantil e a legislação vigente; O Compromisso do Pará com a Infância. Acrescente-se, ainda, a questão regional que deverá estar presente no currículo, nos livros infantis adquiridos, na alimentação regionalizada. DE BELÉM PARA OS MUNICÍPIOS De Belém, o Fórum seguiu as estradas ou as margens dos rios. Assim, engajou mais pessoas, lutando por creches e escolas públicas, em ambientes especificamente preparados, com materiais que desafiem a criança a se superar e provoquem-na para estabelecer relações com outras crianças, com adultos fora do ambiente doméstico, enriquecendo sua aprendizagem, construindo-se e produzindo conhecimentos. De Belém, o Fórum seguiu em direção ao Marajó, ao Oeste, Sul e Sudeste do Pará, para a Região do Salgado, para a região das Ilhas, para o Rio Tocantins, para a zona Bragantina. Enfim, espraiou-se pelo Pará. É a Educação Infantil se firmando, rompendo barreiras, trilhando caminhos, se autoafirmando. 111 CONSIDERAÇÕES FINAIS Chegamos até aqui. E agora? Há muito que fazer. As creches e pré-escolas não atendem à demanda, nem em quantidade, nem em qualidade. Aproxima-se o ano de 2016 quando todas as crianças, a partir dos quatro anos de idade, morando no campo ou na cidade devem estar matriculadas em uma pré-escola. Como estão se preparando os sistemas educacionais para esse grande desafio? O Plano Nacional de Educação, em breve, será elaborado. Como vamos atuar para que nossas propostas sejam contempladas? Uma série de documentos sobre a Educação Infantil está sendo formulada por solicitação do Ministério da Educação, atendendo recomendações de encontros nacionais: como faremos para que as nossas vozes estejam presentes, contemplando as diferentes especificidades regionais? Tanto o poder público como a sociedade devem se organizar em torno da garantia do direito à educação infantil de qualidade, abrangendo o campo e a cidade, os povos da floresta, os quilombolas, as comunidades indígenas. Como fazer isto acontecer? Como estamos nos apropriando de resultados de pesquisas sobre a Educação Infantil para o planejamento de nossas ações? Todos os municípios já têm seu Fórum de Educação Infantil? Grande é a tarefa. Todos estamos desafiados a exercer nossa cidadania em favor das crianças, pois, é nosso engajamento, nosso compromisso, a consistência e justeza da nossa luta que não nos deterá, fazendo com que possamos exercer o controle sociopolítico e cultural em relação às ações sobre e para a Educação Infantil. As crianças ganharão com atitudes lúcidas e corajosas de todos nós e, seguramente, serão mais felizes. 112 REFERÊNCIAS BRASIL. MEC. DEMEC/PA. Portaria Nº 032/98/SRH/DEMEC/PA. Belém/PA, Abril de 1998. COMISSÃO INTERISTITUCIONAL DE EDUCAÇÃO INFANTIL DO PARÁ. Relatório. Dezembro de 1998 (impresso). ______. Relatório do Seminário Comissão Interinstitucional de Educação Infantil: perspectivas. Belém/PA, 1999. (impresso). ______. Prestação de Contas. Belém/Pará, 2002 (impresso). MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. Disponível em <http://www.scribd.com/doc/6768681/Karl-Marx-Gotha>. Acesso em Dezembro de 2010. TANCREDI CARVALHO, Ana Maria Orlandina. Proposta de Transformação da Comissão Estadual Interinstitucional de Educação Infantil do Pará Em Fórum Estadual de Educação Infantil, 2002. (impresso). TANCREDI CARVALHO, Ana Maria Orlandina et al. Propostas do Fórum de Educação Infantil do Pará, 2007 (impresso). 113 O FÓRUM DE DEFESA DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES: POLÊMICAS E QUESTÕES Carlos Alberto Batista Maciel37 O processo de democratização que antecedeu a promulgação da Constituição Federal de 1988 implicou na realização de diversas experiências de participação da sociedade civil organizada. Esta participação expressou-se por meio de uma mobilização que se estendeu a diversos setores da sociedade. De fato a pluralidade de experiências participativas da sociedade civil enriqueceu o debate que adensou a constituinte da segunda metade da década de 1980. Desse enriquecimento resultou a construção de uma Constituição Federal que referendou reivindicações importantes em diversas áreas sociais. Dito de outra forma, as experiências de mobilização e participação social conseguiram impor-se aos constituintes, apesar da presença de representantes de setores conservadores da sociedade. Por isso, foram possíveis avanços importantes da norma constitucional nas áreas da infância e adolescência (artigo 227), da seguridade social (artigo 194), da saúde (artigo 196), da assistência social (artigo 203), entre outras (BRASIL, 1988). É exemplo relevante destas conquistas incluídas no texto constitucional a diretriz da descentralização, da participação e do controle social na gestão administrativa, político e financeira das políticas sociais. A institucionalização da participação da sociedade civil organizada se tornou uma diretriz essencial no estabelecimento de novas relações entre povo e governo para contribuir com o fortalecimento do controle social nas diversas esferas de poder (JOVCHELOVITCH, 1993). 37 Bacharel em Serviço Social, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Pará, doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista, docente da Universidade Federal do Pará desde 1991. E-mail: [email protected] 114 Desta forma, a mobilização e a organização da sociedade civil passaram a ser um fator estruturante no processo de descentralização democrática. Notadamente, isto impôs uma nova dinâmica às relações tradicionais entre governantes e governados, em que se espera dos últimos uma conduta conformada diante dos dirigentes governamentais, numa espera eterna e silenciosa (RIBEIRO, 1995) da boa vontade destes. Dentre essa nova dinâmica das relações sociais do cotidiano da população, destacaremos nos limites deste texto a institucionalização de um espaço relevante na consolidação da mobilização e da organização popular: o Fórum de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes - o Fórum DCA. Desta forma, abordaremos certas reflexões sobre o Fórum DCA como espaço de participação popular e consequentemente como um espaço que se propõe democrático à participação da sociedade. Ressaltamos que os apontamentos expostos neste texto têm a finalidade de trazer à tona a discussão sobre o tema. Portanto, não pretendemos apresentar nenhum modelo instrumental sobre o mesmo, mas iniciar um debate que se pretende construtor de um conhecimento coletivo sobre o assunto. FÓRUM DCA: NATUREZA, OBJETIVOS E ORGANIZAÇÃO O Fórum DCA é um espaço de organização da sociedade por iniciativa desta, que pode ser construído nas diversas unidades da federação, ou seja, nas esferas da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Por ser um espaço de organização da sociedade, não se constitui, portanto, numa instituição com personalidade jurídica, mas, em um espaço político da sociedade para discutir, debater, denunciar e construir propostas para uma determinada esfera de política social. Assim, como um espaço político, o Fórum DCA assume um formato de assembleia permanente, em que estarão presentes as formas organizativas e representativas da sociedade a fim de realizar os debates e a construção de propostas para contribuir e aprimorar a política de direitos das crianças e dos adolescentes. 115 A despeito de não possuir personalidade jurídica, o Fórum DCA em sua organização, no momento de instalação, deve registrar a sua intencionalidade, ou seja, explicitar os seus objetivos, as suas finalidades, enfim, deixar evidenciado publicização a razão de sua existência, em outras palavras, definir “para o que foi criado”. Esta explicitação se materializa por meio de uma carta de intenções que deve ser construída e aprovada por seus membros no momento da constituição e instalação deste. Assim, a carta de intenções torna-se uma expressão concreta do projeto político que o fórum defenderá e buscará alcançar a partir de sua criação. A elaboração de uma carta de intenções do Fórum DCA é essencial para marcar publicamente o papel político e ético do próprio fórum. Do ponto de vista político, deve definir as fronteiras de sua ação na influência vigilante sobre a política de direitos da infância e a adolescência. Do ponto de vista ético, deve explicitar os princípios inarredáveis que serão orientadores das ações programáticas deste, assim como os eixos de referência que devem motivar e mobilizar sua movimentação na sociedade brasileira. Após a constituição e a instalação do Fórum DCA e a consequente exposição das suas finalidades e objetivos por meio de sua carta de intenções, este deve voltar-se, entre outras ações, substancialmente para o processo de publicização de sua existência para além das organizações que o formam. Isto se coloca como extremamente importante, pois é necessário que a sociedade tome conhecimento de sua natureza e objetivos, a fim de que sua legitimação seja garantida e consolidada. Desta forma, o Fórum DCA se exporá publicamente para a sociedade a fim de que seja reconhecido como instância de organização social sobre a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. A rigor, o Fórum DCA deve se tornar um espaço público de referência para a sociedade. Espaço este, em que a sociedade tenha a confiabilidade necessária para realizar ações de denúncia frente às situações de violações dos direitos sociais das crianças e dos adolescentes preconizados na Constituição Federal de 1988, como também um locus em que se realizarão processos de discussão política que 116 desencadearão momentos para a informação e a formação dos atores envolvidos no próprio fórum. Para que este processo de publicização ocorra e o Fórum DCA consiga encaminhar a operacionalização de suas finalidades e objetivos, é necessário organizar uma comissão provisória para coordená-lo. Esta coordenação provisória deve, por sua vez, encaminhar as providências necessárias para o funcionamento administrativo deste por meio das articulações iniciais para garantir a funcionalidade do mesmo. Dentre as ações iniciais desta comissão provisória, podemos citar: Articular com instituições e entidades: esta ação torna-se imprescindível, haja vista a necessidade do Fórum DCA tornar-se conhecido e legitimado como um interlocutor no processo de construção da política descentralizada e democrática dos direitos das crianças e dos adolescentes. Encaminhar o processo de organização do regimento interno do Fórum DCA: para que sejam definidos os papéis dos membros, das coordenações, enfim do processo interno deste que garantirão a sua organização e funcionalidade. Realizar o processo de escolha da coordenação efetiva e outros encaminhamentos iniciais do Fórum DCA. É relevante ressaltar que o Fórum DCA, ao assumir uma proposição democrática, deve ter uma acuidade especial para não reproduzir formas organizativas hegemônicas em que imperam relações antidemocráticas. Deve assim, a partir de sua formação inicial, assumir uma formatação organizacional que construa uma referência contrária e diferencial ao hegemonicamente estabelecido. O modelo de organização institucional hegemônico em nossa realidade nacional é o presidencialista. Neste existe uma hierarquia definida entre os membros de uma organização com uma consequente distribuição desigual de poderes entre estes. De fato, este modelo se torna um paradigma que tende a ser reproduzido tanto em organizações governamentais quanto em organizações não governamentais, e como tal, todos os vícios decorrentes da centralização do poder estão presentes neste. 117 Nesse sentido, acreditamos que a experiência da gestão colegiada tende a se constituir em uma perspectiva interessante para que a gestão democrática possa ser experimentada e realizada. Entretanto, a experiência colegiada tende a ser bastante difícil de ser construída devido às cristalizações de valores e comportamentos presentes no Estado e na sociedade civil (MATTA, 1991). Valores e comportamentos que reproduzem o modelo que domina e subordina a maioria, retirando destes uma capacidade de alteridade (SPOSATI, 1989) dos cidadãos. Enquanto paradigma de organização institucional o formato presidencialista pode concorrer para diminuir, ou refrear, o processo de participação e do controle social, uma vez que os espaços sociais das instituições que reproduzem este modelo podem se constituir em um ambiente rarefeito de participação, já que “o presidente manda”. POLÊMICAS E QUESTÕES SOBRE A ORGANIZAÇÃO DO FÓRUM DCA A discussão sobre a organização do Fórum DCA, enquanto espaço político da sociedade, tem assumido duas direções em relação à natureza de sua formação. Neste debate, evidencia-se a polêmica deste ser misto e, portanto, congregar a presença de instituições governamentais e entidades não governamentais, ou ainda, do fórum não ser misto e, assim, garantir somente a presença da sociedade civil organizada. Esta polêmica tende a deslocar a discussão de uma questão central do Fórum DCA. Deixa-se de polemizar se o Fórum DCA, como espaço político da sociedade, deve ser um espaço democrático ou não, pois parte-se de uma visão romântica em que o simples fato do fórum se constituir como um espaço da sociedade já o coloca na condição de um “ente democrático”. Assim, o Fórum DCA, ao se assumir como um espaço de natureza democrática, deve então primar para que as práticas antidemocráticas sejam coibidas desde a sua formação e instalação. Nesse sentido, arrolaremos duas justificativas que 118 são postas nesta discussão e que argumentam em favor de um fórum que deve congregar somente a presença da sociedade civil organizada. Estas giram em torno de duas direções básicas. A primeira justificativa argumenta que a presença do governo atrapalha as discussões do Fórum DCA. Neste raciocínio, as representações governamentais são vistas como uma anátema, no sentido de que estas somente estariam a favor do governo, numa perspectiva explícita de uma visão monolítica do Estado. Esta linha de argumentação desconsidera o fato de que a existência de representantes do governo tende a construir a formação de um espaço de intenso debate político sobre a temática problematizada. Esse debate político pode adensar um processo de qualificação dos atores da sociedade civil, pois implica numa discussão política que exige profundidade. Isto impõe a necessidade de um maior preparo para os representantes da sociedade civil. Preparo este que exigirá um investimento na capacitação dos atores sociais presentes no Fórum DCA, garantindo assim, um poder de barganha mais significativo destes, especialmente nos momentos políticos de correlação de forças em que o fórum terá de se posicionar frente ao governo e à sociedade. Outra justificativa comum é a de que a ausência do governo impediria que o mesmo soubesse dos encaminhamentos do Fórum. Este raciocínio também parte de uma visão monolítica de Estado, mas apresenta também uma argumentação ingênua ao acreditar que os representantes da sociedade civil são puros e homogêneos. Sendo a sociedade contraditória, diversos interesses estarão presentes no processo de participação das diferentes organizações do Fórum DCA. Interesses estes que podem assumir uma proposta coletiva, corporativa ou individualista. Desta forma, acreditamos que a participação no Fórum DCA deva ser aberta a todo cidadão, para que o mesmo se consolide como um espaço democrático objetivo e efetivo. Entretanto, a presença de cidadãos, ao ser estimulada, não deve substituir e nem eliminar uma prerrogativa fundamental do fórum, pois este se constitui num espaço de organização da sociedade, portanto coletivo. 119 Assim sendo, as deliberações efetivadas no Fórum DCA devem ser realizadas pelas representações das organizações da sociedade (devido ao caráter coletivo que estas devem estar investidas). Isto, para impedir que sobressaiam perspectivas individualistas ou corporativas que somente reforçam a vaidade pessoal, em vez de contribuírem para a consolidação de uma sociedade mais democrática. Portanto, a escolha das representações se coloca como um assunto de extrema importância, pois esta deve ser realizada com uma profunda discussão, pois estas não podem ser vistas como puras e/ou monolíticas. A sociedade civil por meio de suas organizações tende a reproduzir o modelo de organização estatal existente no Brasil, gerando representações destituídas de uma legitimidade substantiva. Desta forma, é necessário ter uma acuidade especial com o processo de escolha da representação em que a delegação ocorre de forma não democrática, o que a torna a escolha desta representação não legítima (MACIEL; CAMPOS, 1995) Ao representar uma entidade no Fórum DCA, este representante não deverá mais representar a si mesmo, mas estar investido de uma condição coletiva em que prevaleçam os interesses e as ideias da entidade que está representando. Deve-se então, procurar combater a representação ilegítima, com o objetivo de fortalecer um Fórum democrático que qualifique os seus atores sociais. O desafio de construir um modelo de gestão democrática das políticas que garantam os direitos das crianças e adolescentes, a consecução da descentralização e da participação da comunidade se coloca inadiável para toda a sociedade, sob a pena de padecermos mais algumas dezenas de anos no rio do clientelismo, do paternalismo e do assistencialismo ainda presentes nas políticas públicas. 120 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social - Lei 8.742, de 07 de dezembro de 1993. Brasília, 1993. ______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. JOVCHELOVITCH, Marlova. Municipalização e saúde: possibilidades e limites. Porto Alegre: UFRGS, 1993. MACIEL, Carlos Alberto Batista; CAMPOS, Edval Bernardino. Conselhos paritários: o enigma da participação. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS, 8. Salvador, 1995. Anais... Salvador, 1995. MATTA, Roberto da. A casa & a rua. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1991. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SPOSATI, Aldaíza et al. Os direitos (dos desassistidos) sociais. São Paulo: Cortez, 1989. SPOSATI, Aldaíza; FALCÃO, M. do Carmo. A assistência social brasileira: descentralização e municipalização. São Paulo: EDUC, 1990. TEIXEIRA, Sônia Maria Fleury. Cidadania, direitos sociais e Estado. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8. Brasília, 1986. Anais... Brasília: Ministério da Saúde, 1986. 121 FUNDO DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA: Instrumento para concretização de direitos Patrícia de Fátima de Carvalho Araújo38 RESUMO O objetivo deste artigo é realizar uma análise formal, ainda que breve provida de conteúdo crítico, lastreada em pesquisa legislativa, documental e doutrinária, sobre o Fundo da Infância e Adolescência (FIA), procurando dissecar, sem esgotar o tema, este importante instrumento para a concretização dos direitos humanos de crianças e adolescentes, sob a perspectiva do Princípio da Prioridade Absoluta. Palavras-chaves: Fundo para Infância e Adolescência. FIA. Orçamento Público. Prioridade Absoluta. Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente. INTRODUÇÃO Discorrer sobre o Fundo da Infância e Adolescência significa adentrar na seara de um dos instrumentos de gestão, colocado à disposição do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, em nível Federal, Estadual e Municipal, para a concretização dos direitos humanos desse segmento populacional. Fundo Especial para captação de recursos, exclusivamente destinados para a área da infância e adolescência, suas receitas se destinam ao financiamento de ações, programas, projetos e serviços de promoção, proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes, residindo aí, sua importância. 38 Promotora de Justiça do Estado do Pará e Vice-Presidente do Grupo de Trabalho MOVER, no âmbito do Ministério Público Estadual. Pós-graduada, lato sensu, em Direito Eleitoral pela Universidade Federal do Pará e Escola Judiciária do Pará. Pósgraduada,lato sensu, em Ciências Penais pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Pós-graduanda,lato sensu, em Direito da Criança e do Adolescente pela Universidade Federal do Pará 122 O objetivo do presente não foi esgotar o tema, longe disso, a pretensão é mais modesta: apenas trazer ao debate esta importante ferramenta, fornecendo subsídios para compreensão da temática, através de uma análise técnica e de conteúdo crítico, esperando contribuir com todos aqueles que trabalham, cotidianamente, como atores do Sistema de Garantia de Direitos, especialmente Conselheiros de Direitos e Tutelares. Inicialmente, foi traçado um panorama que permitisse compreender tal instrumento e, para tanto, após contextualizar o tema, abordou-se o conceito, a disciplina legal, a natureza jurídica e a finalidade do Fundo. A seguir, o enfoque recaiu na criação, gestão e competências dos Conselhos de Direitos em relação ao Fundo, debatendo a elaboração dos Planos de Ação e Aplicação para a escolha dos projetos e programas a serem contemplados com os recursos do Fundo. Por fim, perquiriu-se sobre as fontes dos recursos captados pelo Fundo e a destinação permitida e vedada dos mesmos, sem descurar da questão da obrigatória alocação de recursos para a área da infância e adolescência nos Orçamentos Públicos de cada um dos entes, nos diversos níveis de governo, o que deve ser feito em observância ao Princípio da Prioridade Absoluta. Sem perder de vista que, em se tratando de recursos públicos, as receitas do Fundo, estão sujeitas a controle e fiscalização, políticofinalístico e técnico-contábil, o que foi abordado, em tópico derradeiro, fechando o conjunto de informações reputadas úteis à compreensão deste importante instrumento para a concretização dos direitos das crianças e adolescentes brasileiros. CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA; CONCEITO; DISCIPLINA LEGAL; NATUREZA JURÍDICA E FINALIDADE DO FUNDO. Estatuto da Criança e do Adolescente, derivação regulamentadora das notáveis conquistas da Constituição Cidadã, ao preconizar a Proteção Integral a todas as crianças e adolescentes brasileiros, instituiu o Sistema de Garantia de Direitos realizado por meio de uma política de atendimento articulada nas três esferas de governo (federal, 123 estadual e municipal), assentado em três grandes eixos: Promoção, Controle Social e Defesa de Direitos. Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, no que tange à promoção de direitos, são responsáveis pela deliberação e formulação das políticas públicas voltadas para a infância e adolescência. São instâncias formais de participação democrática, estabelecidas em lei, encarregados também, juntamente com qualquer cidadão e a sociedade civil organizada, de exercer o controle social, na medida em que devem controlar e fiscalizar a correta e adequada execução dessas mesmas políticas. Foram idealizados com base no artigo 204 da Constituição Federal, sob o auspício da Democracia Participativa, quando o cidadão percebeu que não bastava apenas votar e ser votado como forma de participação efetiva na vida social, mas também precisava debater com o governo os problemas existentes para juntos encontrar soluções efetivas. Daí a essência paritária de sua composição, com membros representantes do Governo, indicados pelo Chefe do Executivo (governamentais) e membros representantes de entidades da sociedade civil (não governamentais), escolhidos e indicados conforme a Lei que cria o Conselho, buscando o equilíbrio no sistema de cogestão da política infanto-juvenil. Entre suas funções essenciais está à deliberação e formulação das políticas públicas que devem ser implementadas pelo Poder Público em prol da infância e adolescência; a fiscalização da correta execução dessas políticas; o monitoramento dos procedimentos de atendimento; o registro das entidades governamentais e não governamentais e seus programas; presidir o processo de escolha dos Conselheiros Tutelares; a articulação da rede de proteção e a gestão do Fundo da Infância e da Adolescência. O Fundo da Infância e da Adolescência (FIA) é mecanismo para captação de recursos destinados ao atendimento de ações, projetos e programas em prol desse segmento social. Constitui-se em espécie de fundo especial, o qual é definido pelo artigo 71 da Lei nº 4.320/196439, como sendo o “produto de receitas especificadas que, 39 Lei Federal que dispõe sobre normas gerais dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e Distrito Federal. 124 por lei, se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação”. Encontra previsão legal no artigo 88, IV do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), configurando, sua criação e manutenção, uma das diretrizes da política de atendimento para a área da infância e adolescência. Vinculado ao Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, deve ser implantado na esfera federal, estadual e municipal. A Lei nº 8.242, de 12 de outubro de 1991, criou em nível federal o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), bem como o respectivo Fundo Nacional. Impende ressaltar que, o CONANDA editou Resolução nº 137, de 21 de janeiro de 2010, dispondo sobre os parâmetros para criação e o funcionamento dos Fundos Nacional, Estaduais e Municipais. No Pará, a criação do Conselho e Fundo Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente se deu através da Lei nº 5.819, de 11 de fevereiro de 1994. Em âmbito municipal, cada unidade deve criar o Conselho e respectivo Fundo, acima aludido, por mesma lei específica, ressalvados os casos em que criado o Conselho, ainda, não tenha sido instituído o Fundo40. Apenas anote-se que, na União, nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios deve haver um único e respectivo Fundo da Infância e Adolescência41. Cumpre assinalar ademais, que o FIA possui a natureza jurídica de fundo público, desprovido de personalidade jurídica própria, devendo ser inscrito no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), utilizando o mesmo número base de inscrição do Órgão ou Secretaria à qual estiver vinculado por lei. E, para garantir a diferenciação 40 Vide artigo 5º, § 1º da Resolução nº 137/2010/CONANDA. 41 Vide artigo 88, IV, da Lei nº 8.069/90 e artigo 3º da Resolução nº 137/2010/CONANDA. 125 (orçamentária, administrativa e contábil), deve possuir um número de controle próprio42. Em suma, o Fundo da Infância e da Adolescência tem por objetivo/finalidade viabilizar, por meio da captação e aplicação de recursos, a promoção, proteção, defesa e o atendimento à criança e ao adolescente, em situação de risco pessoal e social, através de programas e projetos desenvolvidos para tal fim e, com vistas à redução de desigualdades sociais e suporte às famílias e ao combate à violência, trabalho infantil e outras formas de atentado a seus direitos fundamentais. CRIAÇÃO, GESTÃO E COMPETÊNCIAS DO CONSELHO DE DIREITOS EM RELAÇÃO AO FUNDO. Conforme ilustrado acima, onde se fez menção à normativa criadora dos Fundos Nacional e Estadual, os Fundos da Infância e Adolescência devem ser criados, sempre, por lei em sentido formal43, emanada do Poder Legislativo, após todo o trâmite regular. O que implica na impossibilidade de criação dos fundos por meio de decreto, portaria ou provimento baixados pelo Chefe do Executivo, nos diversos níveis de governo. Assim, o fundo nacional foi criado por lei federal (Lei nº 8.242/91), o fundo no âmbito do Estado do Pará, por lei estadual (Lei nº 5.819/94) e os fundos municipais são criados por leis municipais, exaradas das competentes Câmaras de Vereadores, após votação de projeto de lei, de iniciativa do Prefeito Municipal. Os Fundos da Infância e da Adolescência estão vinculados aos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, e como estes integram a estrutura do Poder Executivo, a criação dos Conselhos e respectivos Fundos é matéria de iniciativa exclusiva da Chefia Executiva, conforme disposto nos artigos 61, § 1º, II “e” c/c artigo 84, III da Constituição Federal. 42 Vide artigo 7º e § 1º da Resolução nº 137/2010/CONANDA. 43 O artigo 74 da Lei nº 4.320/64 estabelece que “a lei que instituir o Fundo Especial poderá determinar normas peculiares de controle, prestação e tomadas de contas, sem, de qualquer modo, elidir a competência do Tribunal de Contas ou órgão equivalente”. Na elaboração da Lei instituidora do Fundo ou em sua regulamentação deverão ser atendidos os preceitos de ordem geral insculpidos no artigo 71 a 74 da Lei nº 4.320/64. 126 A Lei que instituir o Fundo deverá estabelecer quais seus objetivos e finalidades; a vinculação da gestão pelo Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente; suas fontes de receitas e formas de despesa, isto é, o destino dos recursos captados, sendo estes, sempre, aplicados na seara infanto-juvenil. Maiores detalhes deverão estar previstos em Decreto regulamentador, que deverá ser editado pelo Poder Executivo, no prazo por ela estipulado44. Por força da vinculação do Fundo ao respectivo Conselho de Direitos, também ocorrerá à vinculação, administrativamente, ao mesmo Órgão ou Secretaria que aquele esteja vinculado, nas diferentes esferas de governo. Aclarando, com o exemplo: No Município de Ananindeua/Pa., o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente está vinculado à Secretaria Municipal de Assistência Social, da mesma forma o Fundo Municipal. A vinculação do Fundo ao Conselho de Direitos implica na prerrogativa exclusiva do Conselho para decidir sobre a destinação, execução ou aplicação dos recursos que integrem o Fundo, por meio da elaboração do Plano de Aplicação, isto é, o exercício da gestão política do Fundo. Enquanto que, a vinculação do Fundo a um Órgão ou a uma Secretaria diz respeito à gestão administrativa (contábil e escriturária), ou seja, à operacionalização do Fundo. Para tanto o Chefe do Executivo nomeia um gestor, após a regulamentação do Fundo. Dessa feita, estão entre as principais atribuições do Conselho de Direitos com relação ao Fundo: elaborar os Planos de Ação e de Aplicação; monitorar e avaliar a destinação dos recursos, bem como a execução das ações, planos, projetos e programas por ele financiados. A Resolução nº 137/2010 do CONANDA, em seu artigo 9º, elenca as competências do Conselho de Direitos, em relação ao Fundo: Art. 9º Cabe ao Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, em relação aos. Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente, sem prejuízo das demais atribuições: I - elaborar e deliberar sobre a política de promoção, proteção, defesa e atendimento dos direitos da criança e do adolescente no seu âmbito de ação; 44 Vide artigos 5º e 6º da Resolução nº 137/2010/CONANDA. 127 II - promover a realização periódica de diagnósticos relativos à situação da infância e da adolescência bem como do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente no âmbito de sua competência; III - elaborar planos de ação anuais ou plurianuais, contendo os programas a serem implementados no âmbito da política de promoção, proteção, defesa e atendimento dos direitos da criança e do adolescente, e as respectivas metas, considerando os resultados dos diagnósticos realizados e observando os prazos legais do ciclo orçamentário; IV - elaborar anualmente o plano de aplicação dos recursos do Fundo, considerando as metas estabelecidas para o período, em conformidade com o plano de ação; V - elaborar editais fixando os procedimentos e critérios para a aprovação de projetos a serem financiados com recursos do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, em consonância com o estabelecido no plano de aplicação e obediência aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade; VI - publicizar os projetos selecionados com base nos editais a serem financiados pelo Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente; VII - monitorar e avaliar a aplicação dos recursos do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, por intermédio de balancetes trimestrais, relatório financeiro e o balanço anual do fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, sem prejuízo de outras formas, garantindo a devida publicização dessas informações, em sintonia com o disposto em legislação específica; VIII - monitorar e fiscalizar os programas, projetos e ações financiadas com os recursos do Fundo, segundo critérios e meios definidos pelos próprios Conselhos, bem como solicitar aos responsáveis, a qualquer tempo, as informações necessárias ao acompanhamento e à avaliação das atividades apoiadas pelo Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente; IX - desenvolver atividades relacionadas à ampliação da captação de recursos para o Fundo; X - mobilizar a sociedade para participar no processo de elaboração e implementação da política de promoção, proteção, defesa e atendimento dos direitos da criança e do adolescente, bem como na fiscalização da aplicação dos recursos do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente. Parágrafo único Para o desempenho de suas atribuições, o Poder Executivo deverá garantir ao Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente o suficiente e necessário suporte organizacional, estrutura física, recursos humanos e financeiros. O gestor administrativo45 deverá, por sua vez, abrir uma conta bancária em nome do Fundo, cientificando os conselheiros, notadamente, sobre o recurso 45 Vide artigo 8º da Resolução nº 137/2010-CONANDA. 128 disponibilizado pelo Executivo; sobre quem será o ordenador de despesas e sobre a prestação de contas, que será, posteriormente, submetida à aprovação pelo Conselho. O artigo 2146 da Resolução nº 137/2010 do CONANDA, traz, ainda, outras responsabilidades a cargo do Gestor Administrativo, nomeado pelo Poder Executivo. Na mesma esteira, o artigo 260-G47 do Estatuto da Criança e do Adolescente. PLANO DE AÇÃO E PLANO DE APLICAÇÃO Na qualidade de gestor do FIA, compete ao Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, nas três esferas de governo, esboçar, elaborar, discutir e aprovar, a cada exercício, o Plano de Aplicação dos recursos captados pelo Fundo, o qual deve guardar íntima relação com seu Plano de Ação, no tocante às políticas, programas, projetos e ações a serem desenvolvidos no município48. O Plano de Ação é, com relação ao Fundo, por conseguinte, o documento que define as metas deliberadas pelo Conselho de Direitos, estabelecendo as prioridades que serão observadas no que diz respeito à criação e/ou manutenção de programas, 46 Art. 21. O Gestor do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, nomeado pelo Poder Executivo conforme dispõe o artigo 6º, caput, desta Resolução, deve ser responsável pelos seguintes procedimentos, dentre outros inerentes ao cargo: I - coordenar a execução do Plano Anual de Aplicação dos recursos do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, elaborado e aprovado pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente; II - executar e acompanhar o ingresso de receitas e o pagamento das despesas do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente; III - emitir empenhos, cheques e ordens de pagamento das despesas do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente; IV - fornecer o comprovante de doação/destinação ao contribuinte, contendo a identificação do órgão do Poder Executivo, endereço e número de inscrição no CNPJ, no cabeçalho e, no corpo, o n° de ordem, nome completo do doador/destinador, CPF/CNPJ, endereço, identidade, valor efetivamente recebido, local e data, devidamente firmado em conjunto com o Presidente do Conselho, para dar a quitação da operação; V- encaminhar à Secretaria da Receita Federal a Declaração de Benefícios Fiscais(DBF), por intermédio da Internet, até o último dia útil do mês de março, em relação ao ano calendário anterior; VI - comunicar obrigatoriamente aos contribuintes, até o último dia útil do mês de março a efetiva apresentação da Declaração de Benefícios Fiscais (DBF), da qual conste, obrigatoriamente o nome ou razão social, CPF do contribuinte ou CNPJ, data e valor destinado; VII - apresentar, trimestralmente ou quando solicitada pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, a análise e avaliação da situação econômico-financeira do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, através de balancetes e relatórios de gestão; VIII - manter arquivados, pelo prazo previsto em lei, os documentos comprobatórios da movimentação das receitas e despesas do Fundo, para fins de acompanhamento e fiscalização; e IX - observar, quando do desempenho de suas atribuições, o princípio da prioridade absoluta à criança e ao adolescente, conforme disposto no art. 4º, caput e parágrafo único, alínea b, da Lei n° 8.069 de 1990 e art. 227, caput, da Constituição Federal. Parágrafo único. Deverá ser emitido um comprovante para cada doador, mediante a apresentação de documento que comprove o depósito bancário em favor do Fundo, ou de documentação de propriedade, hábil e idônea, em se tratando de doação de bens. 47 Art. 260-G. Os órgãos responsáveis pela administração das contas dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente nacional, estaduais, distrital e municipais devem: manter conta bancária específica destinada exclusivamente a gerir os recursos do Fundo; manter controle das doações recebidas; e III - informar anualmente à Secretaria da Receita Federal do Brasil as doações recebidas mês a mês, identificando os seguintes dados por doador: a) nome, CNPJ ou CPF; b) valor doado, especificando se a doação foi em espécie ou em bens. 48 DIGIÁCOMO, Murilo José. O Fundo Especial para a Infância e Adolescência FIA e o orçamento público. Disponível em www.crianca.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?. Acesso em 31.05.2013, às 15:00 h. E vide artigo 9º, III e IV da Resolução nº 137/2010-CONANDA. 129 projetos e ações em prol das crianças e adolescentes, sobretudo, em situação de risco pessoal e/ou social, a serem implantados com a utilização dos recursos do FIA. Nesse diapasão, deve conter: descrição das AÇÕES a serem desenvolvidas nas áreas de capacitação e planejamento, proteção especial, rede de atendimento, entre outras, bem como a forma de AVALIAÇÃO destas ações, a fim de verificar se os objetivos estão sendo alcançados. Logo, descreve a ação a ser desenvolvida, diz o objetivo que se almeja com sua realização, estabelece quem assume a responsabilidade por sua execução e por fim estipula o prazo para o cumprimento. Sugere-se, como referencial, seguir um Roteiro, a quando de sua concepção, que abranja, pelo menos, as seguintes etapas: a).Verificação Preliminar: A Comissão de Fundo, caso tenha sido instituída, ou o Colegiado, devem, em primeiro lugar, para elaboração do Plano de Ação, conhecer os recursos existentes na comunidade (materiais e humanos); identificar pessoas chaves nos órgãos municipais para prestar informações sobre a política que está em desenvolvimento; mapear as entidades cadastradas, os locais de atendimento em funcionamento, bem como organizações comunitárias existentes (associações/igrejas) e outros órgãos que possam se integrar ao processo; b). Definição da Metodologia ou estratégia de trabalho, equipe e cronograma; c). Elaboração de Diagnóstico da realidade local, preferencialmente por escrito. Sugestiona-se, para o êxito da tarefa, realizar reuniões abertas, audiências públicas e assembleias, envolvendo os vários setores e atores, periodicamente. Além de imprescindível saber que serviços estão implantados, há que se saber também como estão funcionando, a qualidade do atendimento prestado, as dificuldades que possam estar comprometendo a eficiência do atendimento, bem como saber de quais ações, serviços, programas e projetos a sociedade local está precisando para o cumprimento do Princípio da Proteção Integral; d). Materialização do Plano de Ação, através da elaboração de documento final escrito. Os conselheiros, neste tocante, precisarão agir com sabedoria e assertividade, pois múltiplas demandas irão emergir, não raro, em escala muito maior que os recursos disponíveis, implicando em saber eleger prioridades no momento de deliberar e escolher em quais ações os valores do Fundo serão aplicados; 130 e). Criação de Mecanismos para assegurar a implementação do Plano, tais como: articular junto ao Poder Legislativo Local, durante a feitura das leis orçamentárias, para que constem recursos suficientes à execução do Plano; promover articulação com outros atores da rede do Sistema de Garantia de Direitos; promover ampla divulgação social dos trabalhos, objetivos e metas que se pretende alcançar; f). Realização de monitoramento/acompanhamento e avaliação da execução do Plano de Ação; De outra banda, o Plano de Aplicação é o documento que contém a distribuição dos recursos do Fundo para a realização dos planos, projetos e programas traçados no Plano de Ação, segundo as prioridades e objetivos que se pretende alcançar em prol das crianças e adolescentes. Contém a descrição da receita e despesas, com os respectivos valores que serão utilizados para a execução das ações escolhidas pelo Conselho de Direitos. Destarte, imprescindível que ambos os Planos – de Ação e de Aplicação sejam concebidos, da maneira mais transparente e participativa possível. A colaboração do Conselho Tutelar, em parceria, se afigura preciosa, vez que são porta de entrada das situações de risco, realizando atendimento diário à população e, pois, conhecedores das deficiências da rede de serviços, sabendo apontar metas prioritárias. Relevante destacar que, os dois planos devem ser encaminhados pelo Conselho de Direitos ao Poder Executivo e por este último incluído no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), a ser remetido para a Câmara Municipal para análise, discussão e aprovação, uma vez que o orçamento público é único. Uma vez aprovados, os planos vinculam o uso das verbas do FIA, não podendo ser oposta objeção pela Administração Pública quanto ao cumprimento. Neste viés, convém não deixar esquecer que o Poder Executivo deve destinar recursos para a área da infância e juventude, de forma prioritária, em conformidade com as deliberações do Conselho de Direitos, expressas em seus planos, visto ser o órgão encarregado de formular a política pública, nessa seara. FONTES E DESTINAÇÃO DOS RECURSOS. ORÇAMENTO PÚBLICO E PRINCÍPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA. 131 Os recursos que compõe o Fundo da Infância e Adolescência tem origem diversificada. Alguns estão previstos na Lei nº 8.069/90, tais como: o valor das multas aplicadas judicialmente em razão das infrações administrativas (artigo 245 a 258) ou crimes (artigo 228 a 244-B), conforme artigos 154 c/c 214; multas impostas em sede de ação civil pública que tenham seus preceitos cominatórios descumpridos pelo demandado, consoante artigo 213 a 214 e doações de pessoas físicas ou jurídicas, nos termos dos artigos 260 e seguintes, dedutíveis do imposto de renda. Contudo, apesar das previsões estatutárias genéricas, as receitas devem, em regra, ser indicadas na lei de criação do Fundo, que também deve contemplá-las especificamente. Cumpre lembrar que, além das receitas ao norte citadas, o orçamento do ente público também é outra valiosa fonte de recursos do Fundo. Esta dotação orçamentária do executivo local vem incluída nas leis orçamentárias anuais. Pode também o Executivo, ao destinar o recurso, fazê-lo especificadamente para enfrentar determinada questão, na área da infância e adolescência. Transferências intragovernamentais, feitas de um nível de governo para o outro (da União para os Estados, dos Estados para os Municípios), consubstanciam-se em outra forma de receita e fundam-se na descentralização político-administrativa, pela qual o Fundo Nacional deve fortalecer os Fundos Estaduais e Municipais, para que desenvolvam projetos fora da esfera de atribuições da União. De outra sorte, também podem constituir receitas, os valores decorrentes da aplicação dos valores do Fundo no mercado financeiro e que devem constar do Plano de Aplicação. O artigo10 da Resolução nº 137/2010 do CONANDA, resume o elenco: Art. 10. Os Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente devem ter como receitas: I - recursos públicos que lhes forem destinados, consignados no Orçamento da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive mediante transferências do tipo "fundo a fundo" entre essas esferas de governo, desde que previsto na legislação específica; 132 II - doações de pessoas físicas e jurídicas sejam elas de bens materiais, imóveis ou recursos financeiros; III - destinações de receitas dedutíveis do Imposto de Renda, com incentivos fiscais, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente e demais legislações pertinentes. IV - contribuições de governos estrangeiros e de organismos internacionais multilaterais; V - o resultado de aplicações no mercado financeiro, observada a legislação pertinente; VI - recursos provenientes de multas, concursos de prognósticos, dentre outros que lhe forem destinados. Dentre as receitas enumeradas, abra-se um parêntese para reforçar que, no tocante às doações de pessoas físicas e jurídicas, dedutíveis do imposto de renda, deve ser dada maior publicidade, através de campanha realizada pelos Conselhos de Direitos, para fins de aumento da captação de recursos do Fundo, visto que tais doações trazem ao contribuinte a certeza de que o valor doado será aplicado nos programas e projetos desenvolvidos em sua própria comunidade. No que concerne à destinação dos recursos captados pelo Fundo, esta também deve estar prevista, em linhas gerais, pela Lei que o instituiu, respeitadas as diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente. É que o Estatuto, imperativamente, determina que sejam destinados recursos nos Planos de Aplicação para o incentivo ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança e de adolescente órfão ou abandonado, na forma disposta em seu artigo 260, § 2º e no artigo 227, § 3º, VI, da Constituição Federal, observadas as diretrizes do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Conforme previsão constitucional, a União não pode executar programas de assistência. Por este viés, destina seus recursos aos Estados e Municípios para que estes o façam. Contudo, é importante destacar, tais verbas federais não poderão ser recebidas pelos Estados e Municípios que se omitirem na criação dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e seu respectivo Fundo. Como já visto alhures, compete ao Conselho de Direitos deliberar sobre a aplicação dos recursos do Fundo da Infância e Adolescência. E, sendo os recursos do 133 Fundo de natureza pública, tal aplicação deve ser feita de foram transparente e criteriosa, não sendo possível sua utilização para manutenção das entidades que os executam ou para o pagamento de seus dirigentes, conforme artigo 90, caput, do ECA. Há de ser séria a seleção dos projetos e programas que serão financiados com os recursos do Fundo, com obediência aos Princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência, e através de critérios objetivos e pré-estabelecidos, a fim de evitar qualquer direcionamento que venha a beneficiar qualquer entidade, sobretudo, àquelas cujos representantes possuam assento no Conselho de Direitos. Em síntese, as receitas do Fundo destinam-se ao financiamento de ações, projetos, programas e serviços complementares de promoção, proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes, auxiliando a inclusão social e para a qualificação da rede de atendimento, além de destinarem-se a programas e projetos pesquisa, de estudo, elaboração de diagnóstico, planejamento, monitoramento e avaliação das políticas públicas. Os recursos do FIA são complementares aos recursos orçamentários do ente público, constituindo-se em um plus e, sua inexistência não desobriga o ente (União, Estado ou Município) do cumprimento de seus deveres para com o público infantojuvenil. Entre estes deveres está a estruturação da política e da rede de atendimento, preconizados no Estatuto da Criança e do Adolescente, consoante os rumos prioritários traçados pelas deliberações do Conselho de Direitos. Oportuno lembrar que, também, existem vedações ao emprego dos recursos do Fundo. Segue rol exemplificativo das vedações para utilização dos recursos do Fundo da Infância e Adolescência, estabelecido no artigo 16 da Resolução nº 137/2010 do CONANDA: Art. 16. Deve ser vedada a utilização dos recursos do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente para despesas que não se identifiquem diretamente com a realização de seus objetivos ou serviços determinados pela lei que o instituiu, exceto em situações emergenciais ou de calamidade pública previstas em lei. Esses casos excepcionais devem ser aprovados pelo plenário do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente. 134 Parágrafo Único. Além das condições estabelecidas no caput, deve ser vedada ainda a utilização dos recursos do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente para: I - a transferência sem a deliberação do respectivo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente; II - pagamento, manutenção e funcionamento do Conselho Tutelar; III - manutenção e funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente; IV - o financiamento das políticas públicas sociais básicas, em caráter continuado, e que disponham de fundo específico, nos termos definidos pela legislação pertinente; V - investimentos em aquisição, construção, reforma, manutenção e/ou aluguel de imóveis públicos e/ou privados, ainda que de uso exclusivo da política da infância e da adolescência. (grifos postos) Em sendo assim, os recursos destinados pelos entes públicos para instalação ou manutenção de órgãos, programas e ações na seara da infância e juventude não precisam passar pelo Fundo, mas sim devem estar previstos no orçamento próprio do ente público, responsável por sua execução, com PRIORIDADE ABSOLUTA. Nunca é demais destacar que, a garantia de Prioridade compreende a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude49. O custeio das políticas básicas, traduzidas por meio dos serviços permanentes dentro da rede de atendimento à criança e ao adolescente, devem ter previsões orçamentárias e fazer parte de uma agenda política, financeira e social, igualmente, perene. Daí o porquê da vedação quanto ao uso do recurso do Fundo para implantação ou manutenção de uma entidade de acolhimento institucional ou de um programa de tratamento para desdrogadição, visto que devem ser de caráter permanente, havendo necessidade de previsão nos orçamentos públicos da área da Assistência Social ou da Saúde, pois o dinheiro do Fundo se destina a custear projetos, programas e serviços de caráter temporário, executados por período determinado. 49 Vide artigo 4º, parágrafo único, alíneas “c”e “d”, do ECA. 135 Ao Conselho de Direitos, cabe, portanto, atuar para efetivação do “Orçamento Criança”, que contempla todos os recursos destinados à garantia da Proteção Integral aos direitos das crianças e adolescentes. Urge que tais conselheiros recebam capacitação e formação continuada para entendimento de seu relevante papel, inclusive como gestor do Fundo e para que adquiram conhecimentos básicos, ao menos, sobre o Orçamento Público e as principais leis orçamentárias, a fim de que possam participar das discussões a quando de sua feitura, dos debates nas audiências públicas convocadas pelo Legislativo, dominando a realidade financeira e orçamentária da esfera de governo à qual pertença (federal, estadual ou municipal). Assim poderão argumentar em posição de igualdade com o Poder Executivo, sobretudo, para não deixar que as deliberações soberanas do Conselho quanto à política pública sejam desrespeitadas, notadamente, pelo inadmissível argumento da “falta de recursos”, pois saberão repeli-lo, diante do Princípio Constitucional da Prioridade Absoluta. CONTROLE E FISCALIZAÇÃO DO FUNDO. Uma vez que os recursos captados pelo FIA são públicos, como tal, estão sujeitos ao mesmo controle e fiscalização dos recursos públicos em geral. Norma geral, contida no artigo 74 da Lei nº 4.320/64, estabelece que o controle do fundo especial deva ser feito pelo Tribunal de Contas ou órgão equivalente, e que a lei instituidora do Fundo pode determinar, ainda, outras formas de controle e fiscalização50. À luz do Estatuto da Criança e do Adolescente, os recursos do Fundo da Infância e Adolescência devem ser fiscalizados e controlados pelo próprio Conselho de Direitos e pelo Ministério Público51. O Artigo 22 da Resolução nº 137/2010 do CONANDA, preceitua que os recursos do Fundo estão sujeitos à prestação de contas aos órgãos de controle interno do 50 LIBERATI, Wilson Donizeti. CYRINO, Públio Caio Bessa. Conselhos e Fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente – São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 192. 51 Ibid, p. 192. 136 Poder Executivo e aos Conselhos de Direitos e, ainda, a controle externo pelo Poder Legislativo, Tribunal de Contas e Ministério Público. Segundo Liberati & Cyrino (1997, p. 192), “o controle do Fundo, se submete a dois distintos níveis: um primeiro chamado controle político-finalístico; um segundo chamado controle técnico-contábil”. O primeiro é realizado pelo próprio gestor do Fundo, o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente. O segundo é feito pelo Poder Legislativo, com auxílio do Tribunal de Contas, observando as normas insculpidas na Lei nº 4.320/64, constituindo forma de controle externo, visto que a prestação de contas do Fundo integra a prestação de contas do Poder Executivo. O Ministério Público52, por sua vez, poderá exercer qualquer das formas de controle, consoante disposições dos artigos 201, VIII e 260-J do ECA, adotando as medidas judiciais e extrajudiciais pertinentes, em defesa dos direitos das crianças e adolescentes. CONCLUSÃO Após toda a panorâmica traçada sobre o Fundo da Infância e Adolescência, dissecando sobre sua conceituação, sua finalidade e objetivo, forma de instituição, operacionalização de sua gestão, a origem e destinação dos recursos captados, bem como da fiscalização na aplicação dos mesmos, restou claro que existem complexidades para sua implementação, nos moldes preconizados pela legislação pátria, com vistas à Proteção Integral às crianças e adolescentes, mas que se trata de um desafio a ser enfrentado por todos os atores do Sistema de Garantia de Direitos (SGD). A prática demonstra que, ainda, estamos distantes da concretização teórica. As dificuldades de operacionalização do Fundo da Infância e Adolescência saltam aos olhos, decerto, até dos mais desatentos. 52 Os gestores do Fundo, tanto em nível político, como em nível administrativo, estão sujeitos a ação judicial, por proposição do Ministério Público, em caso de descumprimento das obrigações constantes dos artigos 260-G e 260-I, do ECA. 137 Os desafios começam pela própria conscientização dos atores, sobretudo dos Conselheiros de Direitos, sobre seu papel dentro do SGD. Há corresponsabilidade pelo funcionamento da engrenagem. Contudo, o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, gestor do Fundo, grande protagonista desta temática, merece que sobre sua atuação sejam tecidas algumas considerações. Inicialmente, seus conselheiros necessitam urgentemente atuar realmente como protagonistas, agentes com papel principal, dentro do cenário da formulação e deliberação das políticas públicas para a área da infância e adolescência. Seus poderes foram conferidos pela Lei Maior do país, a Constituição de 1988, que instituiu a Democracia Participativa. Possuem esta responsabilidade. São os donos do poder de determinar o que será feito em prol desse contingente populacional. Precisam realizar diagnósticos que servirão de base para a confecção de seus Planos de Ação e Aplicação, conhecer a rede de atendimento local, verificar o que está implementado e como está funcionando; identificar as omissões na implantação dos serviços e programas e, sobretudo realizar a oitiva do Conselho Tutelar, porta de entrada das situações de risco e parceiro próximo da comunidade, bem como proceder à escuta direta da sociedade sobre os assuntos infanto-juvenis, posto que seus legítimos representantes. Como consequência deste processo de empoderamento não mais permitam que suas deliberações sobre a política social pública infanto-juvenil seja ignorada e tratada como meras sugestões, quando, na verdade são “decisões de governo” (sim, pois o Conselho integra a estrutura do governo e possui em sua composição paritária, metade dos membros representantes do próprio governo) e vinculam o administrador público que não pode deixar de cumpri-las. Façam uso da mobilização social como sua aliada, bem como busquem a articulação com os demais atores do sistema para que seus objetivos sejam, de fato, alcançados. As dificuldades para a operacionalização eficaz do Fundo são hercúleas, mas vencíveis. A capacitação e formação continuada contribuem para a superação dos desafios. 138 Os conhecimentos sobre o Orçamento e as leis orçamentárias e seus trâmites são fundamentais para fornecer aos atores sociais, especialmente aos conselheiros de direitos, o poder da argumentação, do acompanhamento, da participação ativa nas discussões tanto no âmbito do Executivo, quanto nas audiências públicas promovidas pelo Poder Legislativo para tal fim, pois o aporte de recursos no orçamento é vital para a execução da política pública e, também, se constitui numa das receitas que integram o Fundo. Jamais perder de vista que, os recursos do Fundo constituem um plus para a realização das tarefas de materializar direitos infanto-juvenis e nunca podem substituir os recursos do próprio orçamento do ente (União, Estados, Municípios) são aprendizados essenciais. Os recursos do orçamento executivo é que são os responsáveis pela implantação e manutenção dos serviços de atendimento permanentes, enquanto que os recursos do Fundo constituem complemento para financiar ações que venham somar na promoção, proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes. Nessa ótica, ao ser identificado local onde o Fundo para a Infância e Adolescência não esteja instituído, imediatamente adotar providências que transformem esta situação, para tanto articular com o Poder Executivo local para que encaminhe Projeto de Lei à Câmara Municipal criando o Fundo. De igual modo articular, mobilizar e buscar parcerias dentro do SGD e com a sociedade civil para o alcance deste propósito, acionando o Ministério Público nesta jornada, pois a omissão pode acarretar ausência no recebimento de recursos frutos das transferências intragovernamentais. Portanto, a escolha das ações, projetos, programas, serviços que serão financiados como os recursos do Fundo, precisa ser criteriosa e impessoal, lastreada em critérios, previamente e objetivamente, definidos, a fim de que a escolha não seja pautada em lastros de amizade e compadrio, ao revés, escolhidas as ações que tragam contribuição efetiva para os problemas enfrentados. As alterações introduzidas no artigo 260 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente precisam ser amplamente divulgadas, pois favorecem as doações pelas pessoas físicas e jurídicas ao Fundo e podem constituir um grande incremento de receita que, permitirá desenvolver ações com retorno social na seara infanto-juvenil. 139 Por outro lado, não basta apenas incrementar a receita. É preciso, sobremaneira, que haja um controle eficaz da destinação dos recursos do Fundo. Fiscalizar e monitorar, continuamente, para que as ações deliberadas no Plano de Ação, consoante a distribuição materializada no Plano de Aplicação sejam, de fato, cumpridas. Por fim, apesar de demonstrar os desafios a serem enfrentados, há o reconhecimento de que, as soluções não são fáceis, não possuem fórmula mágica e pronta. Contudo, com uma gestão e operacionalização do Fundo da Infância e Adolescência eficaz, ganha a sociedade e o público infanto-juvenil, com este importante instrumento para a concretização de seus direitos. 140 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERCLAZ, Márcio Soares. MOURA, Millen Castro Medeiros de. O FIA e as so(m)bras do orçamento público. Disponível em http://www.criança.caop.mp.pr.gov.br. Acesso em 31.05.2013, às 15h: 28min. CONSELHO Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente. MINISTÉRIO Público do Estado do Pará. Ampliando a Defesa dos Direitos Infanto-Juvenis: Compromisso do Pará. Guia de Orientações para Conselheiros, Gestores e Técnicos/Coordenado por Arlena Sarmento de Freitas e Zoraide Leitão de Oliveira.- 2ªed.-Belém: Gráfica Fonseca, 2004. CONSELHO Nacional dos Direitos da Criança. Resolução nº 137, de 21 de janeiro de 2010. Brasília : Secretaria Especial dos Direitos Humanos. CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 16 ed., atual e ampliada. São Paulo: Saraiva, 1997 (Coleção Saraiva de Legislação). DIGIÁCOMO, Murilo José. Apenas o Conselho Tutelar não basta. Disponível em http://www.mp.rs.gov.br/infancia/doutrina/id120.htm. Acesso em 15.03.2008, às 12h: 28min. ___. Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente: transparência de seu funcionamento como condição indispensável à legitimidade e legalidade de suas deliberações. Disponível http://www.redeamigadacrianca.org.br/artigo_transpareciacmdca.htm. em Acesso em 15.03.2008, às 16h07min h. ___. Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente: transparência de seu funcionamento como condição indispensável à legitimidade e legalidade de suas deliberações. Disponível http://www.redeamigadacrianca.org.br/artigo_transpareciacmdca.htm. 15.03.2008, às 16h07min. 141 em Acesso em ___. O Fundo Especial para a Infância e Adolescência FIA e o orçamento público. Disponível em www.crianca.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?. Acesso em 31.05.2013, às 15 h. ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Brasília: Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Departamento da Criança e do Adolescente, 2002. LIBERATI, Wilson Donizeti. CYRINO, Públio Caio Bessa. Conselhos e Fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente – São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 192. MINISTÉRIO Público do Estado de Goiás. Goiânia-GO. Brasil. Manual Informativo do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Goiânia, 2009. MINISTÉRIO Público do Estado do Paraná. Curitiba-PR. Brasil. Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Criança e do Adolescente. Município que respeita a criança. Curitiba, 2009. PONTES JÚNIOR, Felício. Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros Editores, 1993. 142 MÍDIA E REPRESSÃO PENAL: A MÍDIA COMO FATOR POLÍTICO CRIMINAL. A “ESCOLHA” MIDIÁTICA DOS DELINQUENTES: OS ADOLESCENTES ESTÃO NA “MIRA” Ana Celina Bentes Hamoy53 RESUMO O direito à informação, em uma sociedade democrática, faz parte de seus fundamentos. Nesse sentido, não se pode conceber qualquer forma de censura prévia, pois isso macularia a democracia. Mas como conceber uma mídia que monopoliza o direito de informar, usa deste para definir quem são os merecedores da boa sociedade e quem são aqueles cujo melhor destino é o cárcere? Estes são os temas centrais do presente escrito que buscará fazer reflexões sobre como a mídia pode usar de seu discurso hegemônico e impor uma ordem punitiva a determinadas categorias sociais, “podendo”, inclusive, ferir o princípio da dignidade humana. INTRODUÇÃO É inegável que em uma sociedade democrática os direitos de expressão, de dar informação, de receber informação, estão no contexto dos direitos fundamentais e são de vital importância para a afirmação da democracia. O Brasil, com toda a sua histórica vivência de ter passado por uma ditadura, ao reerguer sua democracia faz firme opção pelo Estado Democrático, com amplas garantias de liberdade. Assim, a suprema corte Brasileira rechaçou a dita lei de imprensa54, promulgada na época do regime de exceção, fazendo, com isso, firme 53 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFPA, especialista em Instituições Jurídicas e Sociais da Amazônia, advogada do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Estado do Pará, coordenadora do grupo de trabalho sobre intervenções exemplares na Defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes da ANCED. Pesquisadora do CESIPCentro de Estuados sobre intervenção Penal-UFPA-PPGD. E-mail: [email protected] 54 Lei 5.250/75 143 declaração de não recepção pelo atual ordenamento jurídico brasileiro55, por conter a referida norma, restrições ao livre exercício do direito de informação e mais, fazendo a sociedade brasileira, afirmar seu propósito de garantia das liberdades fundamentais e de respeito ao direito cidadão de informar e ser informado, impondo, assim, o devido controle ao exercício despótico do poder. Todas essas questões, entretanto, são hoje debatidas com relação ao papel da mídia e o respeito à dignidade humana. Pode a mídia, no uso de seu direito de informar, realizar um discurso massificador da exclusão de determinados grupos na sociedade? Mas, se existirem limites, como coadunar com o livre exercício do direito de informação e com a devida intolerância com qualquer tipo de censura prévia, já que aquele é um dever fundamental que está na base da democracia? As questões acima têm fomentado amplo debate nos meios acadêmicos, sociais e até mesmo nos meios de comunicação. Dessa forma, no presente texto se procurará tecer reflexões para levantar elementos que possam estimular a compreensão da importância do direito à informação dentro de um Estado democrático, frente ao devido respeito à dignidade humana, onde as pessoas sejam assim compreendidas e não como categorias dicotômicas do bem contra o mal. A IMPRENSA E O ESTADO DEMOCRÁTICO Sabe-se que em uma democracia princípios como liberdade, igualdade, dignidade humana etc. são a fortaleza para que uma democracia possa funcionar com as limitações necessárias a qualquer forma de tendência a um uso arbitrário do poder. Nesse sentido, é inadmissível qualquer possibilidade de existência de um Estado Democrático sem que essas liberdades sejam respeitadas, pois isso contribuiria para o lado inverso da democracia, ou seja, o crescimento de um Estado absolutista, com uso arbitrário do poder. 55 Conferir julgamento do Supremo Tribunal Federal da ADPF 130 em: www.stf.jus.br 144 A Constituição Brasileira de 1998 consagrou a ampla liberdade de expressão e informação em seu artigo 5º incisos IV, V, IX e XVI56 e, ainda, artigo 22057, fornece toda a proteção para que o exercício do livre direito de expressão e informação não sofra o indevido controle do Estado. Toda essa segurança constitucional serve não só para o fortalecimento do Estado na construção do processo democrático, mas também visa fomentar uma sociedade crítica em percepções, conceitos e diversidade de ideias, fazendo com que esta possa exercer o devido controle das ações do poder estatal não permitindo que o pensar “despótico” majoritário impeça que essa diversidade seja proliferada e acabe por permitir com que o consenso social seja criado a partir de imposições majoritárias. Entretanto, não bastam formalizações normativas para que esse ideal democrático de imprensa livre para propagação de ideias libertas sirva a seus reais 56 Conferir Constituição Federal de 1998: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; 57 Conferir constituição Federal: Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. § 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. § 3º - Compete à lei federal: I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada; II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. § 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso. § 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio. § 6º - A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade. 145 propósitos. Não se pode negar que hoje a realidade vigente nos segmentos da comunicação tem assumido um caráter de controle hegemônico do poder, servindo a um discurso que exclui, criminaliza, mercantiliza e consegue ser o grande “julgador” dos que podem ser considerados cidadãos e daqueles que devem ser considerados a “escoria” supérflua da sociedade, ou como bem afirma Gomes (2012, p. 1): É induvidoso que os meios de comunicação transitam hoje por todas as esferas do poder político. Interferem nas ações do executivo e do legislativo, bem como, nas decisões judiciais. E o não fazem involuntariamente ou por acidente. A capacidade de formar opiniões pela informação transformou o fiscal em guia. Quem deveria limitar, seguindo balizas legais e orientações éticas, passou, em muitos casos, a verdadeiramente conduzir o exercício do poder. Ora, as afirmações acima servem para ilustrar a urgente necessidade de reflexões sobre o papel democrático, propagado por essa mídia que é “ditadora” da ideia maniqueísta entre o “bem e o mal”, o “certo e o errado” e de quem “pode viver e quem pode ser morto”, está de acordo com os propósitos democráticos? É óbvio que não se quer aqui estabelecer, com essas afirmações, qualquer defesa de algum tipo de censura prévia, até mesmo, porque esta só pode conviver com governos despóticos, totalitários, mas sim, argumentar no sentido de que a quem interessa essa imprensa que estabelece e “promulga” uma sociedade meritocrática e que vive a construir o discurso do medo, do encarceramento em massa, ou mesmo, de que lei deve vigorar, de como o Judiciário deve julgar e até mesmo quem o povo deve escolher para seu governo? Com certeza não é com posturas de disseminação do discurso do poder de permissão da segregação que se terá um país mais livre e democrático, muito menos, uma sociedade em melhores condições de afirmar sua capacidade crítica de garantia das liberdades individuais e coletivas. É bem verdade que todo esse monopólio do poder que distorce ideias e pode levar à alienação de uma maioria da sociedade, surge com a combinação de uma 146 sociedade dirigida por um ideal neoliberal e o crescimento da imposição de um mundo globalizante que impõe regras econômicas, estabelece novas orientações na forma de agir do Estado e funda ideias de que com esse mínimo em ações sociais e econômicas, a sociedade obterá melhores oportunidades de crescimento, ou melhor como afirmou Foucault em uma de suas aulas no curso dado no Collége de France (2004, p. 39): Essa nova arte de governar se caracteriza essencialmente, creio eu, pela instauração de um mecanismo a um só tempo internos, números e complexos, mas que têm a função- é com isso, digamos assim, que se assinala a diferença em relação à razão de Estado- não tanto assegurar o crescimento do Estado em força, riqueza e poder, (o) crescimento indefinido do Estado, mas sim limitar do interior o exercício do poder de governar. As lições de Foucault não podem, de forma alguma, fugir do contexto das reflexões aqui introduzidas, pois ajudam a entender que a forma de agir da mídia de massa não pode ser considerada como uma grande “aliada” no bem informar da sociedade, mas sim, como um propósito de fortalecer essa “nova forma de governar”, que impõe uma economia “espetacularmente” livre, um Estado exageradamente não intervencionista, com um mercado cuja linha mestra é o lucro desmedido, usufruindo do uso do poder centralizado e, aqueles que são considerados como descartáveis58, são justamente os alvos preferidos dessa mídia criminalizadora, pois em nada contribuem para os anseios da economia neoliberal que sustenta os monopólios midiáticos que por sua vez legitima e dá suporte a “essa nova forma de governar”. A MÍDIA QUE ESCOLHE OS DESTINATÁRIOS DO CÁRCERE A constatação maior que a globalização tem proporcionado à sociedade mundial é perceber que, hoje, vige quase que uma unanimidade na pauta midiática 58 Conferir sobre este tema em Carvalho (2008, p. 94-96). 147 mundial: o direito penal é o fim para a solução dos problemas de violência urbana no mundo. Entretanto, toda essa construção, que ganha verdadeira proporção de generalização no mundo, contou, é obvio, com a massiva contribuição americana de encarceramento total dos pobres59, com a então política do “Tolerância Zero”, que cravou o fascínio naqueles que são os verdadeiros apaixonados pela “limpeza social” que o direito penal é capaz de realizar, quando estimulado a limitar as garantias individuais e a ser o realizador da “politica pública”, para retirar do meio da sociedade de “bem” e meritocrática, os ditos indesejáveis. Nas últimas duas décadas no Brasil nada mais é debatido, como de importância crucial, do que a deliberação de leis que promovem o rigor penal, favorecem a flexibilização das garantias individuais e permitem que a prisão cautelar assuma o caráter de regra, transformando o espaço do processo penal como um meio mais favorável à aplicação de penas rigorosas e pouco espaço para a construção de um estado menos penal e mais garantidor de oportunidades que favoreçam a diminuição das desigualdades. Em todo esse contexto, um fato ganhou proporções que só vêm estimulando o aumento dessa proposta de encarceramento como regra, é o lugar assumido pela mídia de massa (televisão, jornais escritos, rádio e internet), que usufruindo desse locus privilegiado de poder de convencimento na sociedade, fez a firme escolha sobre de que forma as pessoas poderão ser vistas dentro do contexto social: uns como os que devem ser protegidos e outros como os que devem ser destinados às penitenciárias. Não se pode negar que todo o discurso criminológico midiático, utilizado com o intuito de proteger o patrimônio, onde o roubo, o furto são tidos como os graves problemas que a sociedade deve enfrentar no contexto da violência urbana, muitas vezes, tem repercussão extraordinariamente massificada, inclusive ganhando proporções desmedidas, com a mídia, em casos de roubos, onde a polícia chega enquanto o fato está 59 Loic Wacquant, em “As prisões da miséria”, faz extenso relato de como a política de fortalecimento do Estado Penal Americano é difundida no mundo inteiro e assume contexto global como forma de fomentar a diminuição das políticas sociais e atribuir aos pobres a responsabilidade pela exclusão social a qual são submetidos, fazendo com que estes passem a ser os verdadeiros destinatários da política penitenciária. 148 ocorrendo, gerar transmissões ao vivo, por horas, quase que pela unanimidade dos meios, não permitindo, sequer, que a população tenha opção na escolha do que gostaria de ver no dito momento. Ora, este fato não é por acaso, claro que busca fazer com que a indução do debate mostrado ao vivo, já possa imperar uma responsabilização inquisitorial. Assim, o dito criminoso passa a ser o que existe de pior na sociedade e que portanto os gritos, muitas vezes, histéricos, dos locutores bradando por uma pena de morte, instiga na sociedade não só um sentimento de vingança, mas também, um amplo rancor e sentimento de medo que dificilmente poderá ser capaz de não ser reproduzido como o discurso válido e capaz de “salvar” a sociedade dos “miseráveis” que ousam ferir as regras da sociedade, para estes nada mais sobra senão uma pena máxima, um cárcere indigno e uma vida sem direitos. Zaffaroni (2012) ajuda com suas reflexões sobre o papel criminológico da mídia fazendo que se possa compreender de que lugar e quem tem sido o verdadeiro destinatário desse poder tão expressivo no contexto mundial. A criminologia midiática cria a realidade de um mundo de pessoas descentes frente a uma massa de criminosos, identificada através de estereótipos que configuram um eles separado do resto da sociedade, por ser um conjunto de diferentes e maus. Os eles da criminologia midiática incomodam, impedem de dormir com as portas e janelas abertas, perturbam as férias, ameaçam as crianças, sujam por todos os lados e por isso devem ser separados da sociedade, para deixarmos viver tranquilos, sem medos, para resolver todos nossos problemas. Para tanto, é necessário que a polícia nos proteja de suas ciladas perversas, sem qualquer obstáculo nem limites, porque nós somos limpos, puros imaculados (p. 307). Os argumentos de Zaffaroni fazem lembrar que esse discurso midiático, onde os “eles” são os que não prestam, vem colocando em forte segregação um grande contingente de jovens da sociedade, pois os “eles”, no debate midiático atual, são justamente os adolescentes e os jovens das ditas comunidades periféricas das 149 metrópoles. É óbvio se “eles” são os “maus”, a sociedade tem que procurar um lugar para colocá-los e esse lugar já está escolhido pelo debate na mídia, “cadeia neles”. Não interessa qual a infração cometida, ou mesmo, que “ainda” não cometida, o que “precisa” é reprimir e prevenir, dessa forma, valeria qualquer maneira de abordagem a esses “perigosos” porque assim sustenta a “operação planetária de marketing ideológico” (WACQUANT, 2001, p. 19), ou como afirma Zaffaroni (2012, p. 307): A mensagem é de que o adolescente de um bairro precário que fuma maconha ou toma cerveja em uma esquina, amanhã fará o mesmo que o parecido que atacou a velhinha na saída do banco e, portanto, é preciso isolar a sociedade de todos eles. Toda essa força produzida pela mídia de massa com os “eles” da sociedade, atualmente no Brasil, assume mais um forte contexto que é a “luta” pelo rebaixamento da idade penal, pois esta sim, de acordo com o discurso hegemônico, resolverá cada problema de violência urbana no Brasil, e mais, colocará os “eles” em seu devido lugar. A forma como esse discurso ocorre toma proporções realmente fascistas, pois o que se tem assistido é um discurso higienista, que propaga a todos os “cantos” do planeta de que adolescentes negros de comunidades populares são iguais a criminoso, perigoso, intolerável. Resultado: prisão neles, não pode ser pouco, tem que ser pena grande o bastante para que a “vingança” social se realize. Ora, todos os indicadores que monitoram os índices de mortes no Brasil apontam os adolescentes como as principais vítimas60. Dessa forma, pode-se dizer que são não só os destinatários do cárcere, mas também são os “alvos” preferidos dos homicídios. Como entender então que “eles” sejam os reais responsáveis pela violência urbana, se “eles” são os que mais morrem? Talvez a direção dada pela mídia tenha outro contexto, o de afastar das vistas da sociedade aqueles que mais mostram como um governo neoliberal é capaz de impor uma segregação tão forte, que promove a matança 60 Conferir o mapa da violência 2012, (www.mapadaviolencia.org.br) e o IHA (índice de homicídios na Adolescência (www.unicef.org.br). 150 de seus “pequenos cidadãos”. É óbvio que o debate sobre o rebaixamento da idade penal tira do foco o real problema, ou seja, a ausência de políticas sociais capazes de promover oportunidades aos jovens, condições dignas de vida, de não serem pressionados por uma economia de consumo que lhes dita regras firmes que, se não seguidas, lhe impõem uma identidade rejeitada pela sociedade dos bem vistos e dos mal vistos. Sabe-se que hoje não é fácil para um jovem dos bairros ditos como sensíveis (WACQUANT, 2001), conseguir qualquer tipo de oportunidade diante das poucas que lhes são disponibilizadas na sociedade, pois o processo de “discriminação” que lhe é imposto, não lhe permite ousar e enfrentar os “capazes”, pois muitos são os desafios impostos: primeiro provar que não é criminoso, segundo provar que não se tornará um criminoso, terceiro, convencer de que tem qualidade e por fim, afirmar com toda certeza que sua “comunidade de maus” não influenciará em suas atitudes futuras. Ora, essa perspectiva segregadora, tão fortemente disseminada pela mídia, é muito bem observada na política americana do “Tolerância Zero”. Parece estar incubada na realidade brasileira, esperando só o momento certo para se tornar oficialmente assumida, pois assim, estará livrando a sociedade de um mundo de indesejáveis, que só estão a atrapalhar o bom conviver de um Estado “tão” democrático que protege ao máximo as pessoas que são parte de sua sociedade e, para tanto, “eles”, que não são parte da sociedade, devem seguir o rumo disseminado pela mídia: a “sociedade das penas”. O Brasil vive um grande debate “imposto” pela mídia de que se algo não for feito, ninguém sobreviverá ao “caos” da violência praticada pelos jovens. O discurso é tão forte que a cada episódio que envolve a morte de uma pessoa, não importa de quem é a “culpa”, ou se teve “dolo”, e se tem um adolescente no meio, a culpa é dele. A inquisição é tão forte, que chega a exaurir o debate dos ditos penalistas especializados, sobre como se pode apressar um emenda constitucional que logo permita uma autorização legal para que uma avalanche de “condenados” juvenis possam adentrar as portas do cárcere. A pressão sobre a sociedade é muito grande e as “pesquisas” midiáticas, sobre a opinião da sociedade, são colocadas diariamente nos meios de comunicação, claro, sempre orientadas pela prática de delitos, onde jovens são 151 acusados. O resultado dessas “pesquisas de intenção” nunca ficam abaixo de 90%, querendo mostrar o auto pânico em que “todos” vivem. Zaffaroni (2012, p. 327) chama esta “euforia” criminológica penal” de pânico moral: O Pânico Moral se produz quando os meios ordinários, comuns, que fornecem a informação supostamente séria dedicam muitos mais minutos de televisão, com técnica que assinalamos ontem, ao homicídios do dia; quando os jornais da mesma natureza dedicam muitos mais metros quadrados a isso colocando a notícia sangrenta em destaque; quando os minutos da rádio telefonia objetiva e seus comentários aumentam consideravelmente; quando mais especialistas são entrevistados e mais gestos de resignada impotência ou pedido de reforma à lei são transmitidos, pelos comunicadores, com voz cavernosa. Nesse sentido, é totalmente correto afirmar que se vive no Brasil um “pânico moral”, sem que a sociedade tenha condições de ter outra reflexão capaz de perceber que em nada mudará o seu “pânico moral”, se mais adolescentes e jovens forem para a cadeia, pois, segundo levantamentos61 oficiais, o número de adolescentes que cometem atos infracionais graves não chega a 18.000 e os atos infracionais contra o patrimônio e de tráfico de drogas são os que lideram as pesquisas. Entretanto, não são esses dados que interessam para a mídia criminológica, mas sim, aquele homicídio que aconteceu naquele dia e que foi praticado por um adolescente, pois este sim é que causa o “pânico moral” que interessa ao sistema, que busca desviar as formas de negação de acesso a direitos, que promove o debate do “necessário encarceramento”, pois este serve para que a sociedade seja convencida de que investimentos em políticas sociais só fazem a população do bem ser prejudicada. Então mais interessante é sair de um “Estado providencia e instalar um Estado Penitência62. 61 Conferir as informações disponíveis http://portal.mj.gov.br/sedh/documentos/Levantamento_Nacional_SINASE_2009_SDH_SNPDCA.pdf http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/panorama_nacional_doj_web.pdf 62 Conferir Wacquant (2001). 152 em: e A DIGNIDADE HUMANA E A MÍDIA. SERÁ QUE TUDO PODE? Não tem sido fácil o debate sobre a dignidade humana e a liberdade de expressão, pois é incabível qualquer possibilidade de imposição de uma censura prévia à imprensa, pois esta atingiria frontalmente o ideal democrático ao qual está submetido o Brasil. Dessa forma, então, a dignidade humana poderia ser atingida em nome da liberdade de imprensa? Poderia, em nome da liberdade de expressão e de imprensa expor os adolescentes e jovens com um debate moralmente inaceitável, porém legalmente permitido? Ora, é óbvio que não se irá proceder a uma reflexão que conduza a qualquer aspecto de restrição à liberdade, até mesmo porque isto faz parte dos debates autoritários, mas é importante que se possa tecer comentários sobre a importância de que a dignidade humana, como princípio fundamental, não pode ser rechaçada, mesmo quando se está falando dos ditos “criminosos”. É óbvio que fazer um discurso capaz de impor um padrão de desmerecimento, de retaliação, de diminuição, de colocação em categorias consideradas não pessoas, de animais irracionais, fere a dignidade humana, se assim não se achar se irá entrar na categorização de que algumas pessoas são detentoras de dignidade e outras não. O Supremo Tribunal Federal, na ADPF 130, o então relator, ministro Ayres Brito, foi enfático em ressaltar a importância da liberdade de imprensa, que deve ser plena, para que possa se coadunar com a democracia. Entretanto, sabe-se que algumas restrições já foram regulamentadas pelo legislador como, por exemplo, a exposição da imagem de adolescentes envolvidos em práticas de ato infracional63, mas é muito comum em jornais de grande circulação, essas imagens serem divulgadas, muitas vezes apenas com uma tarja preta nos olhos do adolescente, como se este é quem não deveria ver a degradação de sua imagem. Ora, todos reconhecem de quem se trata, até mesmo, porque a divulgação é sempre seguida de entrevistas do local onde mora o adolescente e, conjunto a isto, os adjetivos ditos, nada compatíveis com quem respeita a dignidade de qualquer pessoa. Será que estes fatos ajudam a informação da sociedade? 63 Conferir artigo 247, da lei 8069/90 153 Sarlet (2012, p. 73) define dignidade humana como uma qualidade intrínseca ao ser humano. Vejamos: temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover a sua participação ativa e coresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. As lições do jurista não deixam dúvida quanto à importância da dignidade humana dentro do elenco dos direitos fundamentais, mas não parece que na mídia essa importância ganha a relevância que a ética dos direitos fundamentais impõe a todos que convivem em uma democracia, pois basta poucos minutos assistindo o jornalismo diário de TV para perceber que a dignidade tem “proprietários”, ou seja, as pessoas de “bem” da sociedade. Nesse sentido, emerge do seio da sociedade o grupo dos que não merecem ser “dignos”, pois assim já foram escolhidos pela mídia criminológica, fazendo com que esses “menos” cidadãos não mereçam qualquer tipo de respeito, pois este está destinado ao grupo que pode exigir o cumprimento dos seus direitos. Não poucos são os eventos de jovens assassinados sem que se identifiquem os responsáveis, muitas vezes, a força estatal, parte logo para a resposta como se está já estivesse gravada em suas memórias “trata-se de confrontos entre grupos rivais do tráfico de drogas”. Ora, pergunta-se, mas se o poder estatal sabe o motivo, sabe quem são os agressores, porque então não procede as investigações como deveria ocorrer em qualquer outro fato? Outra situação muito comum, é quando a vítima deixa de assim ser, para se tornar o foco da investigação, ou seja, se quem morre é um adolescente de comunidade popular, primeiro a investigação vai verificar a sua “ficha policial”, para 154 então, fazer a sua preleção dos fatos. Caso a vítima tenha alguma antecedente, pronto, o crime está esclarecido, trata-se de alguma “vingança privada”. Estes exemplos são apenas para que se possa compreender o valor que alguns “cidadãos” possuem no seio do ordenamento estatal, ou seja, quase nada. Como então se pode atribuir dignidade a eles? Ramonet (2010, p. 136) cola a essas questões o fato de que para a maioria da sociedade as informações trazidas de forma trágica, desmedidas, que condenam uns e protegem outros, são consideradas informações sérias, diz ele, ser isso um erro total, pois esse tipo de informação é para distrair, não para informar. Diante de tal conjuntura é óbvio que não dá para aceitar que a sociedade brasileira está dividida entre os que merecem possuir dignidade e os que não merecem. O Brasil como um país que vem tentando construir uma democracia apoiada em valores que garantam os direitos fundamentais, não aceitando os preconceitos, não permitindo a discriminação, não pode permitir que esse avanço na separação entre “espécies” de pessoas possa ser legitimado como um processo apoiado em seu ordenamento constitucional. A liberdade de expressão, como princípio, deve garantir que ninguém seja tratado como “sujeito descartável”, isto não pode ser aceito. A liberdade de informação deve ser compreendida, como bem ensina Bucci (2013, p. 4), não como um direito de impunidade, mas ao contrário, deve impor um grande sentimento de responsabilidade ao jornalista, que deve responder pelos excessos cometidos, pois a “liberdade não é um conforto, mas um dever do jornalista”. CONSIDERAÇÕES FINAIS É inegável que existe um movimento midiático globalizado que procura conduzir uma mensagem de que o direito penal dará as respostas para todas as “mazelas” da sociedade, mas o que de mais grave se vê em todo esse movimento é de como o poder da mídia está hoje conectado com o poder do Estado, aquele serve a este e este serve a aquele. Infelizes daqueles que são escolhidos como os “bodes expiatórios” 155 da campanha penalizadora, pois a estes resta pouca coisa a não ser tentar se desviar para não cair na armadilha plantada. Que a mídia vem utilizando um debate que conduz a um estado autoritário, que promove a segregação de determinados grupos e que influencia até decisões judicias, isso já está mais do que evidenciado. Contudo, o que mais deve ser tido como mais grave ainda, é a forma como o Estado Democrático Brasileiro vem contribuindo para que todo esse aparato de “espetacular” tragédia seja tido como legítimo e como verdadeiro, levando a sociedade a uma total alienação de informação, produzindo um caminho de sentimento de vingança contra determinados segmentos sociais, que só estão corroborando para uma não prática de cidadania. Claro que não existe um caminho possível que não seja o do reconhecimento de que emerge um refazer da mídia, onde a liberdade de expressão ganhe proporções de respeito a todos, que sirva para criar consciência crítica na sociedade, de vigilância do poder estatal, de controle das possíveis arbitrariedades e, não, de impulsionar um debate que separa a comunidade em categorias de desejáveis e indesejáveis, de extermináveis e de protegidos. Os jovens precisam ser incluídos na sociedade para que possam obter os bons frutos da cidadania e não apenas o mero objeto de intervenção policial, que lhe caça a possiblidade de vida digna e lhe impede de construir um futuro com perspectivas que não sejam o mero encarceramento. A sociedade de mérito precisa perceber que a exclusão tem contribuído tão somente para um grande império de revoltas que não trarão um futuro de conquistas. Zaffaroni ainda chama atenção para o fascínio que os criminosos que desafiam o poder podem causar. Cita ele o exemplo de criminosos que, quando presos, passam a receber grande quantidade de cartas de amor, por terem se tornado “fascinantes” frentes a determinadas pessoas. Diz ele (2012, p. 323). Todo adolescente é narcisista e sonha em ser adorado dessa forma. Socialmente não é nada saudável fomentar essa fascinação, mas a 156 criminologia midiática o faz e, até o ultimo momento, mostra-os durões, másculos, impávidos ante a morte, parecidos com os heróis das séries de TV. Se a intenção é prevenir o delito este não parece ser o melhor método. Essas reflexões de Zaffaroni fazem lembrar as posturas, não raras vezes assistidas na mídia, do adolescente que confessa de pronto, que logo detalha o seu ato, que faz com que possa parecer que ele tem o “poder”. Claro que é perceptível, que isso é uma estratégia de defesa para quando chegar ao cárcere ser visto como poderoso, forte. Além disso, essa confissão, muitas vezes diante da câmera de TV, é usada na mídia para aumentar a desqualificação daquele ser como “imprestável”, como frio, calculista, que não serve para mais nada apenas para ser jogado em uma cadeia. Em síntese, dificilmente se poderá romper com todo esse estigma de salvador da pátria que o direito penal assume nas sociedades contemporâneas, porque ele conta com o que há de mais poderoso, uma informação massiva de apoio e de qualificação da pena de prisão como a única possível solução para os conflitos violentos que possam se instalar na sociedade. Entretanto, há de se propagar movimentos de afirmação do respeito à dignidade da pessoa humana, que façam um debate contra hegemônico, capaz de ir pouco a pouco construindo uma possibilidade de alternativa que não venha limitar a informação, mas que não aceite os abusos cometidos. 157 REFERÊNCIAS BUCCI. Eugênio. Direito à informação: o dever de liberdade. Disponível em: <www.observatóriodaimprensa.com.br>. Acesso em: 5 jun. 2013. CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2008. COCCO, Giuseppe. Comunicação e direito humanos: o trabalho dos direitos. Revista Direitos Humanos. Brasília: SDH, n. 4, p. 25-29 dez. 2004. FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004. GOMES, Marcus Alan de Mello. Mídia, poder e delinquência. Boletim do IBCCRIM n. 238, p . 4-5, set. 2012. PINHEIRO, Angela. Crianças e adolescentes no Brasil: porque o abismo entre a lei e a realidade. Fortaleza: UFC, 2006. RAMONET, Ignácio. A tirania da comunicação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2012. ROBERT, Philippe. Sociologia do crime. Trad.: Luís Alberto Salton Peretti. 2. ed. Petropolis-RJ: Vozes, 2010. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2001. WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. A Influência dos meios de comunicação de massa no processo de expansão do direito penal. In: ______. Medo e direito penal. Reflexões da expansão punitiva na realidade brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p.44-51 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Décima Sexta Conferência. A criminologia Midiática (I). In: Saberes críticos. A palavra dos mortos Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012a. p.111-130 158 ______. Décima Sétima Conferência. A criminologia Midiática (II). In: Saberes críticos. A palavra dos mortos Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012b. p. 131-149 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro I. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. WAISELFISZ, Julio Jacobo; MAPA DA VIOLÊNCIA 2015: Homicídio de mulheres no brasil; http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf; 23 de Agoto de 2015 MELO, Doriam Luis Borges de, CANO, Ignácio; Homicidios na adolescência no Brasil; www.unicef.org.br; 23 de Agosto de 2015. JUSTIÇA FEDERAL; http://portal.mj.gov.br/sedh/documentos/Levantamento_Nacional_SINASE_2009_SDH _SNPDCA.pdf; 23 de Agosto de 2015 CONCELHO NACIONAL DE JUSTIÇA; http://www.cnj.jus.br/images/pesquisasjudiciarias/Publicacoes/panorama_nacional_doj_ web.pdf; 23de Agosto de 2015. 159 APRESENTANDO O MOVIMENTO PELA VALORIZAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA AMAZÔNIA Izabela Jatene de Souza64 Valdemir Corrêa Monteiro65 VALORIZAR DIREITOS NA AMAZÔNIA: O desafio da integração Falar de valorização de direitos na Amazônia pressupõe antes de qualquer coisa, pontuar brevemente, o desenho histórico-social de nossa região. Uma região em que por muitos anos o próprio Estado foi grande violador dos direitos humanos, deixando um hiato inquantificável na garantia de direitos, onde as crianças e os adolescentes sequer eram percebidos como sujeitos e sofriam com todas as mazelas de uma região, cantada em verso e prosa, como "celeiro do mundo", "inferno verde" e tantos outros mitos, que não traduziam a realidade de nossa gente. Segundo Boaventura de Sousa Santos (1997), em seu artigo "Por uma concepção multicultural de direitos humanos", os direitos humanos devem ser colocados a serviço de uma política progressista e emancipatória. Como construir um processo emancipatório na Amazônia? Como criar mecanismos de atuação em redes, onde se respeitem os direitos numa lógica multicultural? Como fortalecer o sistema de garantia de direitos, onde faltam atores indispensáveis na engrenagem fundamental para construção de uma sociedade mais justa? O Estado, na tentativa de desenvolver ações que supram as necessidades imediatas da população, acaba por desenvolver políticas públicas de forma desarticulada e desintegrada. A compreensão que defesa social, proteção social e promoção social precisam estar permanentemente convergindo para uma lógica de desenvolvimento mais ampla, é fundamental para a valorização dos direitos na Amazônia. 64 Mestre em Antropologia, docente da Universidade Federal do Pará e doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]. 65 Assistente social, pós-graduado em Serviço Social e Política Social pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected]. 160 Para Olga Câmara (2006), a defesa social é o conjunto de mecanismos coletivos, públicos e privados, para a preservação da paz social. A defesa é do Estado e das garantias constitucionais, simultaneamente, e ocorre em três vertentes: a garantia dos direitos individuais e coletivos, a segurança pública e o enfrentamento de calamidades. A proteção social é entendida como um conjunto de políticas que ajudem a proteger as pessoas em situação de vulnerabilidade66, com vistas a capacitá-las a conduzir suas próprias vidas de acordo com suas escolhas. A vulnerabilidade pode surgir devido à perda de renda, idade, deficiência, doença ou a infância. As políticas de proteção social são baseadas em uma gama de instrumentos públicos e comunitários, que tanto podem ser contributivos ou não. Finalmente, a promoção social é a garantia de inclusão de todos os cidadãos que se encontram em situação de vulnerabilidade e/ou em situação de risco, inserindo-os na rede de educação, trabalho, cultura, esporte e lazer. Na Amazônia precisamos ainda encontrar eixos de desenvolvimento para a garantia de direitos básicos, que promovam o surgimento de agentes livres e sustentáveis, onde a integração das políticas públicas seja o instrumento necessário para a grande transformação na qualidade de vida da população. Como existem carências de toda ordem na Amazônia, as políticas públicas são engolfadas por uma insuficiência tamanha, que perdem o foco da importância do fomento ao protagonismo social, e acabam por se restringirem em reproduzir padrões que não correspondem às reais necessidades coletivas. DADOS DA AMAZÔNIA A região Norte, com população de 14.870.666 habitantes, corresponde a 42,27% do território brasileiro, sendo a maior região em superfície. O Pará é o segundo maior estado do país, com extensão de 1.247.689,515 km², e conta com uma população de 7.762.758 habitantes, 548.416 dessa população são crianças, 196.445 são 66 Situação em que o conjunto de características, recursos e habilidades inerentes a um dado grupo social se revelam insuficientes, inadequados ou difíceis para lidar com o sistema de oportunidades oferecido pela sociedade, de forma a ascender a maiores níveis de bem-estar ou diminuir probabilidades de deteriorização das condições de vida de determinados atores sociais (VIGNOLI, 2001). 161 adolescentes e 423.330 são jovens. É o mais rico e o mais populoso da Amazônia, possuindo uma grande diversidade sociocultural e ambiental. O Pará é o segundo estado que mais contribui com a balança comercial superavitária do Brasil, onde a exportação do minério e a exploração dos recursos naturais por grandes empresas são atividades que não vêm contribuindo para que as desigualdades no Estado sejam minimizadas, haja vista a distribuição nada justa dos dividendos gerados por nós. Diante de um cenário tão rico e cheio de maravilhas, temos contraditoriamente uma estrutura social pautada na pobreza e na desigualdade, onde a renda per capita estadual/ano é de R$7.859,00, refletindo de forma direta no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que está em 0,67, abaixo da média da região Norte 0,76, e se comparado ao maior IDH do Brasil, do Distrito Federal 0,87, está bem abaixo no ranking nacional. Indubitavelmente, esse cenário reflete uma construção histórica, onde o processo de integração da Amazônia ao cenário nacional, vivido de 1960 ao final dos anos 1970, deixou um saldo migratório bem denso e desafiador para a construção de políticas públicas capazes de suprir as necessidades estruturais da sociedade amazônica. Segundo Santos: a natureza é um processo de humanização cada vez maior, ganhando a cada passo elementos que são resultado da cultura. Torna-se cada dia mais culturalizada, mais artificializada, mais humanizada. O processo de culturalização da natureza torna-se, cada vez mais, o processo de sua tecnificação. As técnicas, mais e mais, vão incorporando-se à natureza e esta fica cada vez mais socializada, pois é, a cada dia mais, o resultado do trabalho de um maior número de pessoas. Partindo de trabalhos individualizados de grupos, hoje todos os indivíduos trabalham conjuntamente, ainda que disso não se apercebam. No processo de desenvolvimento humano, não há uma separação do homem e da natureza. A natureza se socializa e o homem se naturaliza (SANTOS, 1988, p. 89). 162 As raízes da formação amazônica, decorrentes da colonização europeia, guardam, essencialmente, as mesmas características analisadas pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, presentes, principalmente, nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil. Na Amazônia, além do caráter aventureiro dos colonizadores europeus que se estabeleceram na região e do patrimonialismo no trato com a coisa pública, que explicam em boa medida o comportamento da elite regional, ganham realce no período colonial o extrativismo e a servidão, com a utilização da mão-de-obra indígena aliciada pela Igreja Católica com propósitos de evangelização temporal (HOLANDA, 1979). As populações tradicionais foram despojadas e expropriadas de seu hábitat natural. Os camponeses e os garimpeiros que migraram para a região entraram em conflito com os fazendeiros, os madeireiros, as empresas mineradoras e os povos indígenas, fazendo crescer substancialmente a população das cidades amazônicas, onde passou a prevalecer um quadro de exclusão social com limitada oferta de empregos e serviços públicos em quantidade e qualidade, que permitissem a construção de um cenário favorável à formação de relações de confiança mútua, associativismo e solidariedade social. A instalação dos chamados Grandes Projetos na Região fez com que o estado do Pará se desenvolvesse de modo desigual e pouco equânime, onde os poderes públicos não acompanharam a velocidade das transformações econômicas, e não avançaram na modernização da gestão. Isso gerou uma enorme quantidade de ações púbicas isoladas e sem sinergia, sobretudo nas áreas de defesa, proteção e promoção social. O crescimento urbano desregrado afetou seriamente as relações sociais, provocando o desestímulo das mobilizações locais no sentido de uma sociedade mais democrática e igualitária. As atuais condições sociais e ambientais da Amazônia são resultantes de decisões, ações e omissões do poder público nacional e regional. A população que mais sofre são os filhos e netos dessa desbravadora geração que veio em busca do eldorado na Amazônia, e escolheu a região para viver e constituir família e hoje se vê enraizado culturalmente neste espaço, que socialmente e economicamente não supriu seus anseios de outrora. 163 MOVER - MOVIMENTO DE VALORIZAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Diante de um cenário tão desafiador, e da necessidade de implementar, de forma articulada e perene, a doutrina de proteção integral à criança e ao adolescente, estabelecida na Lei 8.069/90 e de promover a atualização e formação continuada dos agentes e servidores públicos que atuam na área da infância e adolescência, em 2004, um grupo de instituições governamentais e não governamentais comprometidas e interessadas no fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos e na Valorização do Estatuto da Criança e do Adolescente, iniciaram um grande movimento que culminou com o lançamento do Programa de Atualização sobre o Sistema de Garantia de Direitos e com a assinatura do protocolo de intenções em 14 de outubro de 2004. Assinavam o protocolo - Governo do Estado do Pará, por meio do Pro Paz (Programa de articulação de políticas públicas para infância e adolescência), Tribunal de Justiça do Estado do Pará, Conselho Estadual da Criança e Adolescente, Tribunal de Contas dos Municípios, Ministério Público do Estado do Pará, Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef), Centro de Defesa da Criança e Adolescente (CedecaEMAUS). No referido protocolo, cabia ao Governo do Estado por meio da área de segurança pública: a) promover e planejar a qualificação contínua e permanente dos policiais civis e militares que atuam na área da infância e adolescência; b) investir na companhia especializada da Polícia Militar, com atuação na infância e juventude. Na área de proteção social cabia: a) oferecer a estrutura física e material necessária ao funcionamento efetivo do Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente; b) articular todas as políticas públicas estaduais desenvolvidas na área da infância e juventude, e; c) implantar medidas socioeducativas em parceria com os municípios. 164 À Defensoria Pública do Estado do Pará: a) promover as medidas necessárias à estruturação da Defensoria Pública; b) promover a formação continuada dos defensores públicos com atuação na referida área. O protocolo tem como objetivo o fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos no Estado do Pará, a partir de um amplo processo de reestruturação e articulação institucional, em âmbito governamental e não governamental, com vistas à promoção de medidas destinadas à proteção integral à criança e ao adolescente no âmbito estadual. Sua assinatura e o compromisso das instituições com o programa apontavam uma enorme possibilidade para o desenvolvimento de capacitações, atualizações, formações sobre o direito das crianças e adolescentes de forma integrada, onde os operadores dos sistema de garantia (juízes, promotores, defensores, policiais civis e militares, conselheiros tutelares, educadores e outros servidores, como da assistência e da saúde) tinham o compromisso de suas instituições e de seus gestores no cumprimento de uma agenda densa e articulada projetada para ocorrer em duas fases. Na primeira fase ocorreram 13 encontros em municípios polo do Estado, com a mobilização dos municípios das regiões e a participação direta de 1.420 operadores do Sistema de Garantia de Direitos. A chegada da equipe do MOVER ao município fazia com que a gestão municipal parasse para discutir como priorizar a infância e a adolescência, quando além da formação, ocorreram também reuniões com gestores e com o poder legislativo local. Durante os quatro dias eram discutidos os seguintes temas: Sistema de Garantia de Direitos e a realidade local (fundamentos, conceitos básicos, eixos norteadores e funcionamento), legislação internacional (Convenções da Criança, Regras Mínimas das Nações Unidas, Diretrizes Riad, Convenção 138 e 182 da OIT, Convenção de Palermo). A equipe do MOVER orienta tecnicamente a reunião, nivelando conceitos e levando contribuições para o aprimoramento das linhas de ação, que devem retornar aos municípios para diálogo com a sociedade local, para receber contribuições e reforçar sua legitimidade. Ao Pro Paz cabe fomentar junto aos atores locais a implantação destas linhas de ação, bem como, acompanhar o seu desenvolvimento. 165 No decorrer dos encontros do MOVER, são realizadas reuniões técnicas que têm como objetivo trabalhar o nivelamento conceitual acerca do tema mobilização social, além de partilhar com os representantes dos municípios, contribuições para o aprimoramento das linhas de ação. Vale destacar que as ações do MOVER não se restringem aos períodos em que os encontros acontecem nos municípios. Os encontros sempre são precedidos de reuniões de preparação, para escolha dos melhores temas a serem abordados e o acerto da equipe de facilitadores que desenvolvem as atividades nos municípios. Além do que, existe um processo de mobilização do público local para participação nos encontros, por meio de contatos telefônicos, pela internet ou de ofícios, o que exige um permanente contato dos servidores dos órgãos e programas do Governo do Estado, com os atores locais envolvidos na garantia de direitos de crianças e adolescentes. Na segunda fase, no ano de 2006, foram envolvidos mais de 350 educadores, 86 conselheiros tutelares, 120 conselheiros de direitos e outros 480 operadores do Sistema de Garantia de Direitos. Foram elaborados 46 planos para implementação das medidas socioeducativas nos municípios e, realizadas 39 reuniões com gestores para inclusão no orçamento de rubricas para o fortalecimento dos conselhos, o que resultou que, em 2007, em todos os municípios por onde a experiência passou foram incluídos nos orçamentos municipais rubricas de fortalecimento dos conselhos. De 2007 a 2010, o MOVER teve suas atividades suspensas, deixando uma lacuna no processo que precisou ser retomado integralmente, inclusive com a assinatura de um novo protocolo, nesse momento com um número maior de signatários. Vale ressaltar a importância de politícas públicas não sofrerem interrupções devido a transições de governos, e que o Brasil ainda precisa avançar muito na construção sólida de políticas de Estado. Segundo Meirelles, a administração pública, em sentido formal, é o conjunto de órgãos instituídos para consecuções dos objetivos do governo. Em sentido material, é o conjunto das funções necessárias aos serviços públicos em geral. Em 166 acepção operacional, é o desempenho perene e sistemático, legal e técnico, dos serviços públicos próprios do Estado ou por ele assumidos em benefício da coletividade. No discurso presente no cotidiano de ministérios, fundações, secretarias, autarquias e empresas públicas, e por vezes reforçado pela imprensa, quando há troca de governo, a descontinuidade administrativa é dada como fato. Como consequência, temse o desperdício de recursos públicos, a perda de memória e do saber institucional, o desânimo das equipes envolvidas e um aumento da tensão e da animosidade entre técnicos estáveis e gestores que vêm e vão ao sabor das eleições. Isso se traduziria na interrupção de iniciativas, projetos, programas e obras, mudanças radicais de prioridades e engavetamento de planos futuros, sempre em função de um viés político, desprezando-se considerações sobre possíveis qualidades ou méritos que tenham as ações descontinuadas. Ao fazer essa análise, o programa Pro Paz retoma suas atividades envolvendo não só órgãos do poder Executivo, mas sobretudo os dos poderes Judiciário e Legislativo, assim como também a Universidade Federal do Pará na execução e acompanhamento de seus projetos e ações. Ao retomar suas atividades no ano de 2011, o MOVER realizou até o momento encontros nas regiões do Carajás, Baixo Amazonas, Xingu e Marajó, envolvendo 49 municípios com a participação de 652 operadores do Sistema de Garantia de Direitos, sendo que o mesmo teve participação direta na realização do Encontro Internacional de Justiça Restaurativa, do Plano de Ações Integradas sobre Drogas e da Campanha de Portas Fechadas da Associação Brasileira da Indústria Hoteleira. Para o ano de 2012, estavam previstos os encontros estaduais do MOVER, que ocorreriam no primeiro semestre na cidade de Belém, envolvendo todos os atores do Sistema de Garantia de Direitos que estão diretamente ligados à execução do programa; cinco encontros de atualização nas regiões do Carajás, Araguaia, Rio Capim, Tapajós e Metropolitana de Belém; e seis reuniões técnicas nas regiões anteriormente citadas e a do Xingu. 167 REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Saúde. Estatuto da Criança e do Adolescente. 3. ed. Brasília, 2008. CÂMARA, Olga. Defesa social e prevenção. In: PEDROSA, Ana Alice Barros; ANDRADE FILHO, Anízio Lopes de; FRANCA, Janeide Gomes (org.). Curso de formação de agentes sociais para a prevenção da violência, promoção e garantia dos direitos humanos. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Diretoria de Formação e Desenvolvimento Profissional; Secretaria de Planejamento - Agência Condepe/Fidem, 2006. 72p. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 13. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979. IBGE. Dados do Censo 2010. Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/dados_divulgados/index.php?uf=15. Acesso em: 20 ago. 2012. MEIRELLES, Hely. Direito Administrativo Brasileiro. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 48, p. 11-32, jun. 1997. VIGNOLI, J.R. Vulnerabilidad y grupos vulnerables: un marco de referencia conceptual mirando a los jóvenes. Santiago de Chile: CEPAL, 2001. (Serie Población y Desarrollo, n.17). 168 O CONSELHO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E ADOLESCENTE E O CONSELHO TUTELAR E SUA RELAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA INTERSETORIALIDADE NA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES André Franzini67 Todas as crianças pequenas devem ser cuidadas e educadas em ambientes seguros de sorte que cresçam saudáveis, vivazes, com amplas possibilidades de aprender. A última década forneceu mais evidências de que a boa qualidade dos programas de cuidados e educação na primeira infância, na família e em programas mais estruturados tem impacto positivo sobre a sobrevivência, o crescimento, o desenvolvimento e o potencial de aprendizagem da criança. Esses programas devem ser abrangentes e enfocar todas as necessidades da criança, inclusive saúde, nutrição e higiene, assim como seu desenvolvimento cognitivo e psicossocial. Parcerias entre governos, ONGs, comunidades e famílias podem ajudar a garantir o provimento de programas de cuidados e educação de boa qualidade às crianças, principalmente àquelas em situações mais desfavoráveis, por meio de atividades centradas na criança, focadas na família, baseadas na comunidade e apoiadas por políticas nacionais, multissetoriais e com recursos adequados. UNESCO, Plano de Ação - Dakar, 2000 A garantia dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes (DHCA) vem se constituindo, ao longo da afirmação da cidadania no Brasil, como um dos componentes mais debatidos e complexos. Os marcos legais internacionais criados foram alinhando as normas nacionais rumo ao fortalecimento das políticas públicas e a todo o Sistema de Garantia dos Direitos de Crianças e Adolescentes (SGD). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) introduziu no cenário brasileiro dois atores especialmente significativos que se constituíram a partir da luta pela democracia no processo de formulação e controle das políticas públicas (conselhos de controle social) e 67 André Franzini. Assistente Social, Mestrando em Administração, Formador da Escola de Conselho da UFPA . Coordenador Nacional da Pastoral do Menor organismo da CNBB. 169 da necessidade da criação de um órgão específico para atender as violações dos direitos humanos de crianças e adolescentes (Conselho Tutelar). Todo o debate histórico acerca dos DHCA surge no bojo da construção do princípio de Direitos Humanos (DH) que foi definitivamente pautado com o fim da Segunda Guerra Mundial, quando as Nações Unidas aprovaram, em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, afirmando a igualdade de todos os indivíduos da humanidade. No entanto, apesar dos grandes debates que proporcionaram o avanço do ideário da sociedade sobre os DH, esse conceito é sempre fértil de diferenciação do ponto de vista teórico e prático. Segundo Benevides (1996, p. 3): São aqueles direitos fundamentais da pessoa humana – considerada tanto em seu aspecto individual como comunitário – que correspondem a esta em razão de sua própria natureza (de essência ao mesmo tempo corpórea, espiritual e social) e que devem ser reconhecidos e respeitados por todo poder e autoridade, inclusive as normas jurídicas positivas, cedendo, não obstante, em seu exercício, ante as exigências do bem comum. Do ponto de vista de Moraes (2002, p. 39), com olhar mais constitucionalista e legalista, os DH são: O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana. Outra importante definição é a de Farias (2004, p. 55), que conceitua DH pelas dimensões históricas, axiológicas e normativas, propondo que sejam entendidos, como segue: Os direitos humanos podem ser aproximadamente entendidos como constituídos pelas posições subjetivas e pelas instituições jurídicas que, em 170 cada momento histórico, procuram garantir os valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade e da fraternidade ou da solidariedade. O olhar à vida humana na sua totalidade, integralidade e complexidade foi delineando campos específicos de luta em favor de segmentos historicamente excluídos e, entre esse, os DHCA. Em 1959 foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos da Criança e em 1989 a Convenção Internacional dos Direitos da Criança que estabelece: Art. 2. 1 – Os Estados Partes respeitarão os direitos enunciados na presente Convenção e assegurarão sua aplicação a cada criança sujeita à sua jurisdição, sem distinção alguma, independentemente de sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra natureza, origem nacional, étnica ou social, posição econômica, deficiências físicas, nascimento ou qualquer outra condição da criança, de seus pais ou de seus representantes legais. Art. 3. 1 – Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança. 2 – Os Estados Partes comprometem-se a assegurar à criança a proteção e o cuidado que sejam necessários ao seu bemestar [...] 3 – Os Estados Partes certificar-se-ão de que as instituições, os serviços e os estabelecimentos encarregados do cuidado ou da proteção das crianças cumpram os padrões estabelecidos pelas autoridades competentes, especialmente no que diz respeito à segurança e à saúde das crianças, ao número e à competência de seu pessoal e à existência de supervisão adequada. No contexto brasileiro, a partir dessa construção histórica, a Constituição Federal afirmou em seu artigo 227 que as crianças e os adolescentes são Prioridade Absoluta e desencadeou um novo processo político-metodológico da garantia dos direitos de crianças e adolescentes. O ECA no processo de regulação normativa da Constituição estabelece em seu artigo 88: Art. 88 - São diretrizes da política de atendimento: I - municipalização do atendimento; II - criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações 171 em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais; IV - manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente; V - integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional; O artigo 88 cria um novo ente responsável de deliberar e controlar as ações de garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Ao afirmar que o Conselho dos Direitos da Criança e Adolescente (CDCA) é responsável em todos os níveis, o ECA indica as responsabilidades dos conselhos nos diferentes níveis da federação, bem como a dimensão horizontal da ação do conselho, pois ele precisa necessariamente dialogar com todas as políticas e conselhos existentes no seu nível de competência federativo. Nessa linha de atuação política são indispensáveis articulações que proporcionem agendas permanentes junto a conselhos setoriais, secretarias de gestão e órgãos de proteção. Por ser o único de natureza intersetorial, o CDCA necessita obrigatoriamente dialogar com as políticas específicas num processo permanente de mútuo fortalecimento e interface. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) estabelece por meio da Resolução 105, artigo 2o: Art. 2o Na União, nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios haverá um único Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, composto paritariamente de representantes do governo e da sociedade civil organizada, garantindo-se a participação popular no processo de discussão, deliberação e controle da política de atendimento integral dos direitos da criança e do adolescente, que compreende as políticas sociais básicas e demais políticas necessárias à execução das medidas protetivas e socioeducativas previstas nos arts. 87, 101 e 112, da Lei nº 8.069/90. § 2o As decisões do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, no âmbito de suas atribuições e competências, vinculam as ações governamentais e da sociedade civil organizada, em respeito aos princípios constitucionais da participação popular e da prioridade absoluta à criança e ao adolescente. 172 A natureza do CDCA é, portanto política, controladora e vincula mutuamente a rede de atendimento que por sua vez deverá se alinhar às deliberações desse conselho e dos outros conselhos setoriais. Em cada município o CDCA é encarregado de criar o Conselho Tutelar (CT) por eleição pública e garantir ao mesmo todo o suporte político para que a gestão municipal garanta sua plena implantação estrutural e funcional. A função do CT é regulamentada pelos artigos 131 e 136 do ECA: Art. 131 - O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei. Art. 136 - São atribuições do Conselho Tutelar: III - promover a execução de suas decisões, podendo para tanto: a) requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança; IV - encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente; V - encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência; IX - assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente; O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), por meio da Resolução 139, regulamenta as atribuições e estrutura físico-funcional do CT justificando, sem eu preâmbulo, segundo os seguintes fatores: Considerando que o Conselho Tutelar constitui-se num órgão essencial do Sistema de Garantia dos Direitos (Resolução nº 113 do CONANDA), tendo sido 173 concebido pela Lei nº 8.069, de 13 de julho 1990, para desjudicializar e agilizar o atendimento prestado à população infanto-juvenil; Considerando que o Conselho Tutelar e os Conselhos Municipal e Distrital dos Direitos da Criança e do Adolescente são fruto de intensa mobilização da sociedade brasileira no contexto de luta pelas liberdades democráticas, que buscam efetivar a consolidação do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente e a implementação das políticas públicas no plano municipal; Considerando que o Conselho Tutelar é órgão essencial para o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente na estrutura dos Municípios e das regiões administrativas do Distrito Federal; Considerando a necessidade de fortalecimento dos princípios constitucionais da descentralização político-administrativa da política de proteção, promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente e a importância do Conselho Tutelar na consolidação da proteção integral infanto-juvenil em âmbito municipal e distrital; O CT é órgão indispensável no processo de garantia dos DHCA, pois é o espaço privilegiado onde crianças, adolescentes, famílias, profissionais em geral e a própria comunidade podem realizar denúncias de violação dos direitos. O CT se constitui, portanto, como ator de atendimento dos direitos, bem como avaliador das políticas de atendimento que recebem seus encaminhamentos. Nesse sentido o CT tem, em seus relatórios de atendimento quantitativos e qualitativos, o instrumento institucional que possibilita avaliar as políticas públicas, analisar e discutir as mesmas e elaborar propostas de fortalecimento da rede de atendimento. Por esse motivo o CT e o CDCA são órgãos naturalmente interligados na discussão da melhoria das políticas públicas observando as violações de forma abrangente e buscando compreender qual o contexto da violação e qual insuficiência de políticas pode ter provocado a situação, bem como quais políticas são necessárias para o atendimento pós-violação. Nesse esforço de análise é que ambos os conselhos necessitam praticar seus atendimentos, encaminhamentos, pautas, planejamento e planos de trabalho a partir do princípio da intersetorialidade das políticas públicas como componente de melhoria dos fluxos de atendimento e de redução das violações. 174 A Política Nacional dos DHCA (2013) estabelece a intersetorialidade com princípio estruturante: 3.1.8 Intersetorialidade e trabalho em rede. A organização das políticas públicas por setores ou segmentos impõe a adoção da ótica intersetorial e de trabalho em rede para compreensão e atuação sobre os problemas, o que está previsto no ECA ao estabelecer que a política será implementada por meio de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais no âmbito da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios. A partir dos princípios da Política Nacional dos DHCA é necessário conceituar a intersetorialidade para que os atores do SDG e em especial os CDCA e os CT possam aprimorar sua compreensão acerca da importância da mesma no processo de garantia dos direitos de crianças e adolescentes por meio de ações integradas e não fragmentadas. ASPECTOS CONCEITUAIS E POLÍTICO-NORMATIVOS DA INTERSETORIALIDADE A intersetorialidade é um princípio fundante para o processo de garantia dos direitos sociais, no Brasil, por meio de um necessário e renovado processo de integração das políticas que compõem o conjunto de ações básicas pressuposto para uma sociedade baseada na equidade e justiça social. A intersetorialidade é característica de uma forma de gestão em que vários serviços específicos constroem juntos, a partir do saber de cada um, políticas de intervenção para determinadas situações ou grupos. Mediante estratégias intersetoriais o gestor público, os conselhos de controle social e os outros atores do SGD admitem que uma mesma questão tem muitas faces e que uma única área não será capaz de abranger aquela situação social e da criança e adolescente de forma totalizante. Junqueira (1997, p. 37) entende a intersetorialidade como “a articulação de saberes e experiências no planejamento, na realização e na avaliação de ações, com o objetivo de alcançar resultados integrados em situações complexas, visando a um efeito 175 sinérgico no desenvolvimento social”. Nesse sentido, a intersetorialidade é pensada como uma das diretrizes fundamentais da gestão e do planejamento integrado, que se distingue do modelo tradicional, no qual todo o processo de trabalho é planejado e executado por equipes especializadas em áreas específicas das políticas públicas. Já a estrutura da elaboração, execução e gestão das políticas públicas, sob a lógica intersetorial, supõe a articulação permanente de planos, programas e projetos, o compartilhamento de informações, da elaboração do plano, passando pela execução das ações até a avaliação, apresentando-se mais acessível à participação da sociedade e dos cidadãos atendidos. De acordo com estudiosos do tema, fica latente que uma das características da intersetorialidade é seu teor político e de opção política dos gestores e dos atores de controle social. Dessa forma a intersetorialidade precisa estar contemplada como fator a ser fortalecido nas diversas fases do planejamento de políticas públicas, da elaboração dos planos de ações, passando pela fase de execução até o monitoramento das mesmas. Segundo Santos (2011, p. 32): A intersetorialidade é, porém, resultado de um processo ainda pouco claro e descoordenado de modelo de gestão de políticas públicas, cuja problematização impõe o desenvolvimento de modelos integrativos de gestão governamental. Pouco clara, pois a normatização associada aos programas somente recentemente forneceu orientações aos municípios sobre quais as ações e estratégias configuram uma ação intersetorial. Descoordenada, no sentido que os setores envolvidos interagem pouco para produzir os resultados previstos pelo programa, ou seja, o elo entre os setores ainda é fraco, com baixa troca de informações, experiências e trabalho em equipe. A partir dessa análise a visão da gestão de programas e políticas ainda está pouco amadurecida, no que diz respeito ao princípio da intersetorialidade, provocando tendências fragmentadoras que, consequentemente, enfraquecem direitos humanos de crianças e adolescentes especificamente. Pode ocorre que os direitos de crianças e adolescentes sejam atendidos de forma fragmentada, com serviços executados solitariamente ou paralelamente, provocando obstáculos para um efetivo processo de garantia dos direitos. 176 Por esse motivo a intersetorialidade, pensada como uma das diretrizes que fundamentam as políticas públicas no Brasil, no contexto atual, pressupõe a articulação das ações que são executadas no âmbito das políticas sociais básicas (exemplos: educação, saúde e assistência social), ou seja, ações integradas necessitam processo de descentralização da gestão para participação dos conselhos de controle social e, no caso de crianças e adolescentes, do CT. O resultado de ações intersetoriais, além de um maior processo de integração das políticas, é o fortalecimento das redes sociais de controle sociais, que estimulam a horizontalização dos debates sobre as políticas locais. Para Junqueira: A articulação da descentralização com a intersetorialidade permite o estabelecimento de redes regionais de ação social orientadas por planos específicos e integrados para cada grupo populacional, numa dada região, visando atender às suas peculiaridades. Essas redes não só podem integrar os diversos equipamentos públicos existentes em um dado espaço geográfico, como incluir outros parceiros autônomos da sociedade civil, organizações não governamentais, conselhos e espaços de interlocução, de modo a potencializar os resultados para um dado grupo (1997, p. 25-26). Nota-se que intersetorialidade e descentralização caminham juntas. A descentralização é aqui entendida como a transferência do poder de decisão para as instâncias mais próximas dos cidadãos e a intersetorialidade se refere ao atendimento das necessidades e expectativas desses mesmos cidadãos de forma horizontal, transversal e integrada. Todavia nem sempre a descentralização é sinônimo de democratização, mas um meio de viabilizá-la e a intersetorialidade é impulsionadora de sua viabilização como ação permanente do Estado e do conjunto dos atores do SGD. Nesse processo, o município, configurado territorialmente e socialmente, é o espaço de integração e de ação intersetorial na busca dos direitos de cidadania, da promoção de ações integradas e monitoradas pelos gestores e, sobretudo, pelos conselhos de controle social. É no município que o CDCA e o CT vivem a luta cotidiana de garantia dos DHCA. 177 A promoção e a efetivação dos DHCA dependem fortemente de programas e projetos setoriais elaborados, planejados, aprovados, executados e monitorados de forma intersetorial. A doutrina da Proteção Integral de crianças e adolescentes, introduzida pela Constituição Federal, de 1988, bem como pela Lei Federal 8.069 de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), estabelece uma necessária correlação entre todas as políticas afirmativas dos direitos humanos da população infanto-juvenil colocando, dessa forma, a intersetorialidade como elemento intrínseco do processo da execução do conjunto de políticas destinadas para meninos e meninas. É nesse contexto que CDCA e CT necessitam agir para a garantia da totalidade dos direitos de meninos e meninas. A intersetorialidade está fortemente presente em todos os planos que regulamentam as ações de atendimento de crianças e a nas diretrizes das políticas públicas. A Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004, p. 43) prevê a intersetorialidade: A política de assistência social tem sua expressão em cada nível da Federação, na condição de comando único, na efetiva implantação e funcionamento de um Conselho de composição paritária entre sociedade civil e governo... do Plano de Assistência Social que expressa a política e suas inter-relações com as demais políticas setoriais e ainda com a rede sócioassistencial. A Lei Orgânica de Assistência Social coloca, ainda, que as ações das três esferas de governo na área da assistência social realizam-se de forma articulada, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e execução dos programas, em suas respectivas esferas, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios. Da mesma maneira a Política Nacional de Saúde (BRASIL, 2006, p. 7) estabelece que: 178 O desafio colocado para o gestor federal do SUS consiste em propor uma política transversal, integrada e intersetorial, que faça dialogar as diversas áreas do setor sanitário, os outros setores do Governo, os setores privados e não governamentais e a sociedade, compondo redes de compromisso e coresponsabilidade quanto à qualidade de vida da população em que todos sejam partícipes no cuidado com a saúde. O processo de construção de ações intersetoriais implica na troca e na construção coletiva de saberes, linguagens e práticas entre os diversos setores envolvidos na tentativa de equacionar determinada questão sanitária, de modo que nele torna-se possível produzir soluções inovadoras quanto à melhoria da qualidade de vida. Tal processo propicia a cada setor a ampliação de sua capacidade de analisar e de transformar seu modo de operar a partir do convívio com a perspectiva dos outros setores, abrindo caminho para que os esforços de todos sejam mais efetivos e eficazes. O compromisso do setor Saúde na articulação intersetorial é tornar cada vez mais visível que o processo saúdeadoecimento é efeito de múltiplos aspectos, sendo pertinente a todos os setores da sociedade e devendo compor suas agendas. Na mesma linha das políticas já citadas a Política Nacional de Educação, baseada na Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB, 2006), também incorpora o princípio da intersetorialidade, visto que seu pressuposto é que a educação deva ser pensada no contexto do conjunto de outras políticas, como segue: A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais (LDB, 2006, Artigo 1). A Resolução n. 01/2012 do Conselho Nacional de Educação, órgão deliberador das diretrizes da PNE, estabelece as Diretrizes Nacionais de Educação em Direitos Humanos: Educação voltada para a promoção dos direitos humanos caracteriza-se como um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do indivíduo nos níveis cognitivo, social, cultural e político, articulando a apreensão de conhecimentos; a afirmação de atitudes, valores e práticas sociais; a formação de uma consciência cidadã; o desenvolvimento de processos metodológicos participativos; o fortalecimento de práticas individuais e sociais que promovam, protejam e defendam os direitos humanos. 179 Resultado desse cenário é a existência hoje de inúmeras comissões intersetoriais onde CDCA e CT estão envolvidos, como por exemplo, as comissões intersetoriais de combate à violência sexual e trabalho infantil, as comissões do Sistema de Atendimento Socioeducativo (SINASE), do direito a Convivência Familiar e Comunitária de Crianças e Adolescentes. Além das comissões, existem inúmeros comitê e fóruns em todos os níveis da federação onde CDCA e CT são protagonistas nas discussões. Todos esses atores intersetoriais se constituem em espaços concretos de ruptura com a tradição fragmentadora de direitos. Os planos que hoje tratam os diferentes direitos de crianças e adolescentes também têm a intersetorialidade como elemento estruturante. A Figura 1 apresenta o resumo da relação institucional integrada entre as diferentes políticas a serem executadas para a garantia dos direitos dos adolescentes que respondem às medidas socioeducativas segundo os princípios do SINASE: Figura 1 – Fluxograma das ações que integram o Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente Fonte: SINASE (2006) O SINASE (2006, p. 24) estabelece: 180 Os órgãos deliberativos e gestores do SINASE são articuladores da atuação das diferentes áreas da política social. Neste papel de articulador, a incompletude institucional é um princípio fundamental norteador de todo o direito da adolescência que deve permear a prática dos programas socioeducativos e da rede de serviços. Demanda a efetiva participação dos sistemas e políticas de educação, saúde, trabalho, previdência social, assistência social, cultura, esporte, lazer, segurança pública, entre outras, para a efetivação da proteção integral de que são destinatários todos adolescentes. É de fundamental importância que as políticas setoriais realizem atividades de qualificação dos técnicos, de planejamento integrado e de estabelecimento de fluxos de atendimento intersetoriais de forma a compor um conjunto integrado e linear de atendimento do adolescente. É necessário que CDCA e CT participem das comissões intersetoriais do SINASE onde existirem e articulem pela criação das mesmas onde ainda não foram organizadas. O Plano Nacional pela Primeira Infância (2010, p. 27) estabelece em seus princípios e diretrizes: Quando as ações dirigidas às crianças podem ser articuladas no espaço e no tempo, alcançam maior eficiência e eficácia: gasta-se menos e se alcançam resultados mais consistentes. Não se trata de transformar a creche num centro de saúde ou de atribuir a um ambulatório hospitalar as funções de um estabelecimento de educação infantil, mas de encontrar as complementaridades de serviços e as possibilidades de expansão das ações em cada um dos lugares em que as crianças são atendidas – em casa, na creche ou na pré-escola, no centro de saúde, no hospital, no consultório médico, nos espaços institucionalizados do brincar. E ainda em suas duas primeiras diretrizes técnicas (2010, p. 28) “Integralidade do Plano, abrangendo todos os direitos da criança no contexto familiar, comunitário e institucional” e “Multissetorialidade das ações, com o cuidado para que, na base de sua aplicação, junto às crianças, sejam realizadas de forma integrada”. 181 O Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (Comitê Nacional De Enfrentamento da Violência Sexual de Crianças e Adolescentes, 2013, p. 23, 24) em seu Eixo Atenção indica: Reconhece-se, portanto, que a garantia do atendimento integral com base no respeito aos direitos humanos pressupõe o desenvolvimento de ações articuladas. Esse eixo precisa de indicadores que deem conta do contexto multidimensional em que está configurada a violência sexual, com aspectos relacionados à cultura, à economia e às características psicoemocionais dos indivíduos envolvidos, e que não poderão/deverão ser respondidas por uma única instituição ou política pública. A qualificação da intervenção da rede em casos de violência sexual é o que possibilita avaliar a evolução da compreensão e a forma de intervenção da rede, a partir das fragilidades verificadas, dados de casos concretos atendidos e de matrizes de capacitação da rede de atendimento, bem como, o processo de assessoria técnica a serem desenvolvidos. Também é importante mensurar a padronização e formalização de procedimentos, a eficiência, a efetividade e da eficácia dos fluxos de procedimentos construídos e pactuados. Na mesma linha de olhar intersetorial o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária de Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2011, p. 58) estabelece que: A defesa deste direito dependerá do desenvolvimento de ações intersetoriais, amplas e coordenadas que envolvam todos os níveis de proteção social e busquem promover uma mudança não apenas nas condições de vida, mas também nas relações familiares e na cultura brasileira para o reconhecimento das crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento e sujeitos de direitos. Objetivos Gerais (2011, p. 65) 1. Ampliar, articular e integrar as diversas políticas, programas, projetos, serviços e ações de apoio sociofamiliar para a promoção, proteção e defesa do direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária. A análise atenta e minuciosa permite compreender que, a partir dos marcos conceitual e normativo construídos para a garantia dos DHCA e pelas atribuições do CDCA e CT, é institucionalmente inevitável que esses colegiados atuem de forma a 182 perceber e analisar o cenário dos direitos violados e a rede de políticas, programas, planos e projetos de forma intersetorial e integrada. CONSELHO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E ADOLESCENTE, CONSELHO TUTELAR E PRINCÍPIO DA INTERSETORIALIDADE As atribuições conferidas ao CDCA e ao CT pelas leis brasileiras põem ambos os órgãos numa posição naturalmente entrelaçada. Como poderia o CDA discutir a realidade dos DHCA sem ter uma relação formal e de planejamento conjunto com o CT? Como poderia o CT discutir melhoria das políticas públicas sem ter uma discussão profunda com o CDCA. Ambos são atores políticos e controladores dos DHCA. Ao cuidar desses direitos é necessário que seja sempre colocada, como esteio ideológico, a dimensão prevista no art. 3o do ECA: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros, meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Para a efetivação do preconizado no artigo 3o do ECA e necessário lembrar também o artigo 86: Art. 86 - A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e nãogovernamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Alguns desafios foram surgindo ao longo da atuação dos CT e dos CDCA. De forma geral, podemos analisar que a gestão das políticas no seu sentido mais amplo (discussão, planejamento, execução e monitoramento) ainda vê uma forte interferência 183 política por parte dos gestores que, se de um lado fazem discursos democráticos, do outro tendem a centralizar o processo democrático e intersetorial das políticas. Ainda existe uma cultura política de cunho quase coronelista, em particular nas regiões Norte e Nordeste, onde os gestores ainda são os donos absolutos da vida dos municípios. Isso provoca preocupantes processos de fragmentação das ações dos diferentes órgãos da gestão que, por motivos de “fatias políticas”, mantêm segmentação na execução de programas e projetos, seja da área da infância como de outras áreas. Essas fatias políticas advindas de pactos e coalizões políticas partidárias podem provocar poucos avanços de planejamentos integrados e intersetoriais. Esse cenário, acrescido de consistente dificuldade de pautar a infância e adolescência como componente central da gestão em conformidade ao princípio da Prioridade Absoluta, inviabiliza fortemente a ação dos CDCA e dos CT. Ambos vivem os dramas da estrutura físico-funcional, trabalhando com estruturas ainda não adequadas, com funcionários pouco qualificados e com sérias dificuldades de quebrar a visão historicamente construída de serem órgãos que “protegem bandidos e trombadinhas”. O conjunto dessas dificuldades provoca, sobretudo para o CT, a sobrecarga de trabalho, dificuldade de realizar discussões qualificadas enquanto colegiados, a criação de um imaginário social da existência de “super conselheiros” que salvam as crianças e os adolescentes, bem como a realização de atividades que não condizem com suas atribuições, como, por exemplo, participar de “batidas” junto aos órgãos da segurança pública. Esses simples exemplos são sinais de fracos processos de discussão intersetorial que possibilitem criar fluxos e protocolo institucionais que permitam a cada órgão desenvolver ações em conformidade com suas atribuições legais. O CDCA também enfrenta profundos desafios em sua atuação. A rotatividade dos conselheiros, as pautas poucos incisivas, uma formação não aprofundada dos conselheiros, a pouca representatividade real dos conselheiros governamentais, a ausência dos representantes da sociedade civil, o insuficiente revezamento das representações da sociedade civil, as estruturas de participação que, muitas vezes, não permitem uma representação real dos diferentes segmentos da área da infância e adolescência nos municípios, estados e União, são desafios a serem 184 considerados como limitadores da ação do CDCA e como componentes enfraquecedores de ações integradas com outros conselhos, com os gestores e com o CT. Observando o princípio da intersetorialidade diante dessas dificuldades, podem ser traçadas algumas estratégias para, por meio desse princípio, CDCA e CT executem ações de garantia dos direitos de crianças e adolescentes. O CT pode pensar em algumas estratégias intersetoriais por meio de algumas ações como: Categorização das violações de direitos a partir das mesmas categorias utilizadas pelos programas e projeto de atendimento de forma a identificar a violação com mais facilidade por parte da rede. Para isso será necessário que o CT possa agendar com representantes dos diferentes órgãos de atendimento reuniões de alinhamento conceitual acerca das violações; Realização periódica de reuniões com a rede de atendimento para poder discutir fluxos de atendimento objetivando qualificar os encaminhamentos bem como criar protocolo intersetoriais que podem evitar inúteis revitimizações e agilizar procedimentos de atendimento entre as diferentes políticas; Discussão sobre a elaboração de instrumentais de atendimento dos diferentes órgãos e entidades de atendimento que possibilitem a inclusão de itens inerentes aos direitos de crianças e adolescentes; Elaboração de plano de formação para os conselheiros buscando incluir não somente procedimentos, sim conteúdos referentes a todas as políticas de atendimento envolvendo técnicos de diferentes áreas para desenvolvimento de processo formativo mais integral e com perspectiva intersetorial; Solicitação anual de reuniões com os técnicos das prefeituras e das câmaras legislativas para análise das diferentes peças do orçamento público buscando compreender se as propostas orçamentárias contemplam as necessidades de garantia dos DHCA; Criação do hábito de realizar reuniões intersetoriais para discussão de encaminhamentos; Aos CDCA sugerem-se outras estratégias como, por exemplo: 185 Melhoria das leis municipais que contemplem cada vez mais representantes de políticas e de entidades que representem quanto mais diversidades possíveis; Elaboração de cronograma permanente de reuniões, planejamentos, atividades e monitoramento interconselhos e intergestores estimulando um permanente diálogo entre as diferentes políticas de atendimento; Propor aos gestores locais a elaboração de normas regulatórias das atividades intersetoriais tais como portarias, decretos legislativos locais etc.; Propor, junto ao CT e ao SDG, a criação de protocolos de atendimento interinstitucionais para qualificação de fluxos e atendimento; A criação de um banco de dados das diferentes políticas em relação ao atendimento de crianças e adolescentes, criando uma análise periódica dos dados que possibilite analisar o atendimento de cada política, bem com os fluxos de atendimento intersetoriais constituído; Convidar periodicamente os gestores e entidades para apresentarem os resultados e impactos provocados na garantia dos DCA a partir de cada política. É interessante pensar na realização de seminários intersetoriais de análise do DCA. Construir planejamentos integrados com os outros conselhos setoriais; Elaborar um plano de formação que contemple o conhecimento das políticas setoriais e suas interfaces com os DHCA; Realizar contatos periódicos com o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente para acompanhar as discussões de nível estadual e nacional; Realizar campanhas sobre os DCA junto aos órgãos de atendimento. Cada uma dessas ações requer um olhar intersetorial, pois abrange obrigatoriamente o conjunto dos atores do SGD de forma horizontal e integrada. O tão falado trabalho em rede depende fortemente da compreensão por parte do CDCA e do CT de suas atribuições de articuladores das políticas que garantam a totalidade dos direitos. Nesse cenário existe com urgência a necessidade de uma reaproximação histórica dos dois órgãos que acabe de uma vez com sentimentos de divisão que ocorreu em muitos locais, sobretudo em virtude do acirramento das disputas nas eleições para 186 CT e nos casos de denúncias contra os CT que têm o CDCA como fiscalizador. Diante disso se torna necessário discutir as políticas públicas de forma preventiva, intersetorial e multidisciplinar pondo sempre o princípio do Interesse Superior da Criança (Convenção Internacional dos Direitos da Criança) como base ético-política das discussões acerca dos direitos humanos de crianças e adolescentes. 187 REFERÊNCIAS BENEVIDES, Maria Victoria. Educação para a democracia. Versão resumida de conferência proferida no âmbito do concurso para Professor Titular em Sociologia da Educação na FEUSP, 1996. BORGES, Alci Marcus R. Direitos humanos: conceitos e preconceitos. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9225/direitos-humanos#ixzz2f3vvHXfL>. Acesso em: maio 2013. http://www.assistenciasocial.al.gov.br/legislacao/.../LOAS.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2013. ______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Estatuto da Criança e do Adolescente. 4. ed. Fórum Nacional DCA. Brasília: FNDA; CONANDA; SDH, 2011. ______. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. ______. Ministério da Educação. Plano Nacional de Educação (PNE). Disponível em: <http://www.portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/pne.pdf>. ______. Ministério da Justiça. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/spdca/sinase/Sinase.pdf>. Acesso em: 20 set. 2013. ______. Ministério da Justiça. Política e plano nacional decenal dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/conanda/Politica%20e%20Plano%20Decenal%20consulta %20publica%2013%20de%20outubro.pdf>. Acesso em: 20 abr.2013. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política nacional de promoção da saúde / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. – Brasília: Ministério da Saúde, 2006. 188 ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Violência intrafamiliar: orientações para prática em serviço. Brasília, 2001. ______. Ministério da Desenvolvimento Social e Combate a Fome. Política Nacional de Assistência Social. Disponível em: http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/arquivo/Politica%20Nacional%20de%20Assist encia%20Social%202013%20PNAS%202004%20e%202013%20NOBSUAS sem%20marca.pdf. Acesso em: 10 jan. 2015. ______. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resolução 139, de 17 de março de 2010. Diário Oficial da União. Dispõe sobre os parâmetros para a criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares no Brasil, e dá outras providências. Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/cmdca/index.php?cms=resolucoes+do+conanda Acesso em: maio 2013. ______. ______. Resolução n. 105, de 15 de junho de 2005. Diário Oficial da União, Brasília, Seção 1, de 23 de junho de 2005, p. 7-9. Dispõe sobre os Parâmetros para Criação e Funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://mpdft.gov.br/portal/pdf/unidades/promotorias/pdij/Conselhos/Res105.pdf Acesso em: janeiro 2015 ______. ______. Plano Decenal dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://www.direitosdacrianca.org.br/midiateca/publicacoes/plano- decenal-dos-direitos-humanos-de-criancas-e-adolescentes> Acesso em: 20 março 2013. ______. ______. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. 4. ed. Brasília: FNDCA; CONANDA; SDH, 2011. BRONZO, Carla. Intersetorialidade, autonomia e território em programas municipais de enfrentamento da pobreza: experiências de Belo Horizonte e São 189 Paulo. Disponível em: <http://www.repositorio.fjp.mg.gov.br/handle/123456789/206>. Acesso em: abr. de 2013. COMITÊ NACIONAL DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES. Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual de Crianças e Adolescentes. Brasília, 2013. Disponível em http://www.comitenacional.org.br/. Acesso em: 21 jan. 2015. DIAS, Adelaide A. Da educação como direito humano aos direitos humanos como princípio educativo. In: SILVEIRA, Rosa M. Godoy, et al. Educação e direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007. FARIAS, Edílson. Liberdade de expressão e comunicação: teoria e proteção constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. FREITAS, A. B. Traços brasileiros para a análise organizacional. In: MOTTA, F. C. P.; CALDAS, M. P. (org.). Cultura organizacional e cultura brasileira. São Paulo: Atlas, 1997. p. 38-54. JUNQUEIRA, L. A. P. Novas formas de gestão na saúde: descentralização e intersetorialidade. Revista Saúde Social, v. 6, n. 2, p. 31-46, 1997. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. MORONI, J. A.; CICONELLO, E. A intersetorialidade nas políticas públicas. In: CNAS VI Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, MDS/CNAS, 2007, p. 79-87. NOGUEIRA, V. M. R. Direitos à saúde na sociedade contemporânea. Ser Social – Revista do Programa de Pós-graduação em Política Social, n. 10, Brasília, 2002. PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. 190 REDE NACIONAL PELA PRIMEIRA INFÃNCIA. Plano Nacional pela Primeira Infância. Brasília. 2010. SANTOS, Natalia Navarro dos. A intersetorialidade como modelo de gestão das políticas de combate à pobreza no Brasil: o caso do programa Bolsa Família no município de Guarulhos. 2011. 166f. Dissertação (Mestrado em Administração Pública e Governo) - Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV, São Paulo, 2011. TUMELERO, Silvana M. Intersetorialidade nas políticas públicas. Disponível em: <http://www.litoral.ufpr.br/sites/default/files/TUMELERO_SILVANA%20Intersetoriali dade_Cong_Chile.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2013. UNICEF. Convenção internacional dos direitos da criança. Disponível em <http://www.unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/convencao_direitos_crianca2004.pdf>. Acesso em: 13 set. 2013. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Declaração de Dakar. Educação para Todos – 2000. Biblioteca virtual de direitos humanos. Disponível em http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/UNESCO-Organização-das-NaçõesUnidas-para-a-Educação-Ciência-e-Cultura/declaracao-de-dakar-educacao-para-todos2000.html 191 DESAFIOS PARA INCLUSÃO DOS INDÍGENAS NOS DIREITOS DAS CRIANÇAS68 Assis da Costa Oliveira69 INTRODUÇÃO No Brasil, o cenário demográfico dos povos indígenas é de expansão, com grande parcela da população atual constituída por crianças. De acordo com o Censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos 735 mil indígenas localizados no hoje território brasileiro, nada menos que 321 mil são crianças, o que corresponderia a 43% do total (CINEP, 2010). Tal proporção sinaliza a necessidade de compreensão da proteção e da promoção dos direitos específicos deste grupo geracional como ações estratégicas para a continuidade do crescimento populacional e também para a melhoria da qualidade de vida de quase metade do contingente populacional. Segundo Souza Lima (2013), existem, hoje, no Brasil, cerca de 274 povos indígenas, falantes de 180 línguas distintas, portanto, correspondendo a uma imensa diversidade cultural. No estado do Pará, Beltrão (2012) indica a existência de 50 povos indígenas, filiados a sete troncos linguísticos, além dos povos cujas línguas e/ou identidades jamais foram identificadas ou estudadas, “como é o caso dos índios ‘isolados’ ou ‘resistentes’ ao contato com o não indígena” (BELTRÃO, 2012, p. 50). Apesar do último Censo do IBGE, de 2010, ainda não trazer análise geracional dos dados demográficos sobre povos indígenas, demonstra, por outro lado, que houve um “espalhamento” dos indivíduos indígenas pelo território brasileiro – agora quantificados em 817 mil pessoas. Este “espalhamento” significa a ampliação da 68 Artigo anteriormente publicado em Oliveira e Pinho (2014). A presente versão foi ajustada e ampliada para trabalhar melhor a articulação do Sistema de Garantia de Direitos, em especial do Conselho Tutelar, com a temática dos indígenas crianças. 69 Professor de Direitos Humanos do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento da Faculdade de Etnodiversidade, Campus Universitário de Altamira da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre pelo Programa de PósGraduação em Direito da UFPA. Secretário nacional do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Advogado. Email: [email protected] 192 presença indígena nos municípios, passando, no Censo de 1991, da quantificação de que em 34,5% dos municípios brasileiros residia pelo menos um indígena autodeclarado; no Censo de 2000, esse número cresceu para 63,5%; e, segundo os dados mais recentes, do Censo de 2010, atingiu 80,5% dos municípios brasileiros, sendo que no Nordeste já chega a 90,2% dos municípios e na região Centro-Oeste em 89,1% (IBGE, 2012). Tal constatação permite a compreensão de que a diversidade cultural e os direitos indígenas reclamam um esgarçamento de abrangência territorial e responsabilização pública bem mais ampla do que se identificava até pouco tempo atrás, sendo que a possível continuidade da predominância de crianças nesta população recoloca e intensifica a problemática da garantia de direitos humanos aos indígenas crianças70, o que não significa proceder apenas a uma análise de implementação destes direitos, mas, e de maneira prévia, a problematização de seu conteúdo e de que forma este precisa ser estruturado para melhor trabalhar a garantia de direitos em sociedades multiculturais. Os indígenas crianças se situam no duplo contexto jurídico e as tensões/relações existentes entre os direitos indígenas e os direitos das crianças, cujas possibilidades de relação é o foco da análise do presente artigo, tendo em vista construção teórica que pretende: (1) identificar a construção histórica da categoria infância como marcador moderno de criança e as consequências para a realidade dos povos indígenas; (2) analisar a legislação internacional e nacional para verificar o grau de inclusão da diversidade cultural do “ser criança”; (3) propor ressignificação hermenêutico-normativa dos direitos das crianças observando a diversidade cultural da construção social da pessoa, do corpo e da infância, assim como a transversalização dos direitos indígenas nos direitos das crianças. O PASSADO QUE É PRESENTE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A “INVENÇÃO DA INFÂNCIA” 70 A inversão axiológica de criança indígena para indígena criança possui fundamento na leitura antropológica da forma de construção sociocosmológica da pessoa, do corpo e consequentemente da infância entre povos indígenas, e será mais bem fundamentada ao longo do presente artigo. 193 A ideia de infância é valor historicamente construído, ou seja, estimativa manifestadora de determinada condição de existência que sofreu, ao longo do tempo, alterações de sentido para sustentar finalidades epistemológicas e políticas. Na cultura latina o termo infans era empregado aos que não podiam participar da República, ou melhor, da coisa (res) ou espaços públicos, especialmente do testemunho nos tribunais. Abrangia todos os segmentos da população – dentre os quais: deficientes, estrangeiros, loucos, ignorantes, além das crianças – excluídos da ordem social por possuírem “uma falta que não pode faltar, uma ausência julgada inadmissível, a partir da qual uma linguagem, um direito e uma política dominante consagram uma exclusão” (KOHAN, 2008, p. 41). No contexto da modernidade ocidental a construção social da infância foi direcionada para determinado grupo etário: as crianças. A historiografia clássica de Áries (1981) revelou que a ideia de infância é construção social e histórica da cultura ocidental, modo particular de pensar o “ser criança”. A ascensão da infância como categoria geracional específica da vida ocorreu pelo fenômeno do “sentimento da infância”, que o autor identifica como a consciência da particularidade infantil que distingue essencialmente a criança do adulto. De acordo com o autor, a partir do século XVII a cisão entre as duas experiências sociais se desenvolveu de modo a não considerar mais a criança (ou infância) como estágio de transição para a fase adulta, com consequente reconhecimento das especificidades físicas, psíquicas e sociais, ou seja, com autonomia epistemológica. Para Sarmento (2007), o reconhecimento das especificidades da criança na modernidade ocorreu com a produção de princípios redutores da complexidade cultural e abstratizantes das realidades e interpretações para fins de difusão da infância ideal, plasmada em imagens socialmente difundidas: (1) criança má, concebida como expressão de forças indomadas e com potencialidade permanente para o mal, identificada, contemporaneamente, nas crianças das classes populares e, via de regra, nos denominados “delinquentes infanto-juvenis”; (2) criança inocente, mito romântico da infância como idade da inocência, pureza ou bondade plena, cristalizada, na atualidade, na ideia da criança como “futuro do mundo”, pois associada à concepção salvífica que se sustenta numa crença romântica da bondade infantil; (3) criança 194 imanente, nomeadamente conhecida pela expressão “tabula rasa”, cuja possibilidade de aquisição da razão e experiência é algo sempre em potencial, um “ainda não” permanentemente revitalizado na ideia de que cabe a sociedade promover o crescimento da criança com vistas à adequação à ordem social e moral; (4) criança inconsciente, representação empreendida pela Psicanálise freudiana e cujo eixo central imputa ao inconsciente o desenvolvimento do comportamento humano, com incidência no conflito relacional da idade infantil que passa a repercutir, de maneira “deterministas”, na fase adulta; (5) criança naturalmente desenvolvida, centrada nas formulações teóricas da Psicologia do Desenvolvimento, na qual a criança sofre processo de maturação que se desenvolve por estágios pré-definidos de conformações biopsicossociais possíveis de acontecer. As representações caracterizadas acima retroalimentam a concepção negativista de infância que, paradoxalmente, intentavam superar. A criança continua a ser considerada o não adulto, o que ocasiona a inscrição na lógica da incompletude de ser humano e de redução das potencialidades próprias, com consequente exclusão de participação em determinados espaços sociais e do exercício dos direitos políticos. Se a cidadania representa a universalização do direito a ter direitos com base nos princípios da liberdade, igualdade e racionalidade – para os quais as crianças estão afastadas da participação ativa, devido serem vistas como “ainda não” racionais, portanto, “ainda não” livres e iguais aos adultos – a condição de transição ou passagem da infância para a fase adulta não é somente a maturação biopsicossocial defendida pela Psicologia do Desenvolvimento, e sim o estabelecimento de aparelhos sociais com função de disciplinar, ou melhor, de socialização das crianças à racionalidade e “civilidade” dos costumes modernos e adultos, cuja escola e a família foram (e são) os principais condutores. No entanto, há de se reconhecer que os postulados da Psicologia do Desenvolvimento71 permitiram a consolidação (e difusão mundial) da infância enquanto 71 O estudo das mudanças comportamentais ocorridas em função do tempo, favorecendo escalas etárias dentro das quais se ordenam comportamentos e se assinalam mudanças em função de processos intraorganísmicos e ambientais (BAGGIO, 1985; SCHRAML, 1977; TRINDADE, 2007), possibilitou a Psicologia do Desenvolvimento a definição do desenvolvimento humano como medida temporal de vida informada pela reunião de rol pré-definido de características físicas, emocionais, intelectuais e sociais, com dimensão de abrangência universal. 195 representação cultural e situação social delimitada a determinados grupos sociais e períodos da vida, articulados com características identitárias universais que permeiam todos os contextos específicos e que reivindicam a presença diferenciada das crianças em relação aos adultos. Além disso, também possibilitou a universalização intrageracional da condição de vulnerabilidade social, no sentido de enquadrar a criança como sujeito susceptível a eventos externos que podem produzir lesões biopsicossociais graves relacionadas à própria trajetória de desenvolvimento humano e assunção da “dependência natural”, como elemento intrínseco do percurso inicial da vida, indicando a inserção do grupo geracional num grau privilegiado de vulnerabilidade, o que exigiu e, ao mesmo tempo, legitimou a institucionalização a partir da criação e/ou modificação de aparelhos sociais, além de garantir atenção jurídica privilegiada para a proteção contra as múltiplas formas de violência e promoção de condições sociais que propiciem a melhoria da qualidade de vida. A Psicologia do Desenvolvimento é a fundamentação científica para a estruturação dos direitos modernos das crianças. Está presente desde a estipulação das faixas etárias que passam a corresponder ao período identitário do ser criança e do ser adolescente como sujeitos de direitos, e se mescla nos demais conceitos jurídicos para estabelecer os modelos universais e “naturalizados” de compreensão do modo ideal de produção da infância, sem o qual, na atualidade, seria impossível sustentar a Doutrina da Proteção Integral que representa o arcabouço jurídico de apresentação e representação, pela linguagem dos direitos humanos, do “ser criança”. No entanto, as ênfases identitária e sociojurídica permitiram a criação e a circulação ideológica de modelos ideais de criança. Estes modelos, referenciados em padrões valorativos eurocêntricos, justificavam a homogeneização representacional da infância. Ao mesmo tempo, houve desconsideração ou subjugação de valores diferenciados, tidos como desvios, supostamente encontrados em camadas populares e entre povos culturalmente diferenciados, possibilitando a entrada no campo jurídico, social e político ocidental de marcadores morais hierarquicamente dispostos como superiores, que justificavam (e ainda justificam) tanto a exclusão social quanto a tentativa de padronização forçada (ou aparentemente consensual) da infância. 196 No Brasil, e em outros territórios nacionalizados ao redor do mundo que sofreram (e ainda sofrem) com o colonialismo interno, a construção simbólica da infância civilizada e sua difusão por determinados aparelhos sociais72 objetivava, quanto aos indígenas crianças, a integração dos mesmos, e de seus respectivos povos, à sociedade nacional por meio da assimilação cultural e a medição classificatória das concepções diferenciadas de infância a partir de parâmetro ideal ocidental assumido como estatuto universal, cuja função era (e é) a de produzir condições de invisibilidade, exclusão e/ou desigualdade na diversidade – em suma, de padrões etnocêntricos de “normalidade” e “desvio”. INDÍGENAS CRIANÇAS NO CENÁRIO DOS DIREITOS HUMANOS Os direitos constitucionais e internacionais dos povos indígenas trazem, atualmente, perspectiva de garantia da autodeterminação, capacidade civil plena e participação social, os elementos essenciais da cidadania diferenciada que lhes possibilita o “usufruto dos direitos universais do cidadão brasileiro ou planetário, [e] também o usufruto de direitos específicos relativos à sua cultura, às tradições, aos valores, aos conhecimentos e aos ritos” (LUCIANO, 2006, p. 89). A normativa fundacional da cidadania diferenciada dos povos indígenas – para superação formal da cidadania assimilacionista73 - é o artigo 231 da Constituição Federal da República Brasileira (CFRB) de 1988, que dispõe o reconhecimento – portanto, a existência pré-estatal – como coletividades culturalmente distintas as quais o direito à diferença deve salvaguardar a garantia da permanência cultural, se assim 72 A introdução da educação escolar nos territórios indígenas contribuiu para a aculturação dos indígenas/crianças. A alfabetização, além de representar forma de consolidar a sedentarização dos povos indígenas, também produzia processo pedagógico de aprendizagem dos cultos cívicos, de trabalhos manuais e novos cuidados com o corpo (PACHECO DE OLIVEIRA; FREIRE, 2006) não totalmente capazes de reordenar as práticas culturais, pois a resistência dos povos indígenas não deixou de ocorrer no campo da significação e educação dos indígenas/crianças. 73 A cidadania assimilacionista, representada juridicamente pelo Estatuto do Índio (Lei nº. 6.001/1973), que tinha por intuito incorporar os povos indígenas junto à sociedade nacional de modo a fazê-los assimilar os valores socioculturais ocidentais e, de maneira progressiva, perder suas identidades culturais para que pudessem se tornar cidadãos brasileiros. Em uma frase, era a equação de que para se tornar plenamente brasileiro o indígena deveria superar seus valores culturais atrasados e, com isso, deixar de ser indígena para tornar-se igual aos demais membros da nação. Dessa forma, a equação tratava a diversidade como desigualdade de tratamento e, sobretudo, como algo em transição ou de superação progressiva. Sobre o assunto, consultar: Araújo (2006), Luciano (2006), Marés (2009) e Yrigoyen Fajardo (2009). 197 desejarem, devendo o Estado brasileiro assegurar-lhes as condições para que isso ocorra (ARAÚJO, 2006). No entanto, no âmbito dos direitos das crianças existentes no ordenamento jurídico nacional, o paradigma da cidadania diferenciada dos povos indígenas acabou não logrando influência na interpenetração de seus preceitos para estruturação normativa dos direitos das crianças, ficando este último sustentado por uma perspectiva de universalização de direitos justificada pelo período histórico que buscava superar a Doutrina da Situação Irregular, orientada pelo Código de Menores de 1979 (Lei no 6.697/1979)74, mas que retroalimentou perspectiva homogeneizadora da infância e cidadania. Basta observar os primeiros artigos da Convenção dos Direitos das Crianças (CDC) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei no 8.069/90), que estipulam o período temporal do “ser criança” (e adolescente), compreendido até os 18 anos incompletos, para perceber que a definição de desenvolvimento infantil é estruturada, hegemonicamente, pela lógica da Psicologia do Desenvolvimento, desconsiderando outras lógicas culturais de passagem para a vida adulta, como a dos povos indígenas, e a singularidade ontológica de cada criança no percurso da trajetória de vida. A correspondência entre infância/adolescência e faixas etárias juridicamente universalizadas acaba por escamotear os processos de manipulação histórico-científica e de imposição cultural que naturalizaram as conexões sem problematizar os impactos produzidos nos povos indígenas, representando a porta de entrada para toda forma de inadequação entre modelos analíticos ocidentais e as formações nativas locais, quase sempre desfigurando ou desconsiderando as últimas. O caráter problemático da correlação entre a categoria social e o marcador cronológico tem seu núcleo no modo como se (con)funde o produto da constituição (a criança) com o processo de constituição (o tornar-se criança) fazendo com que diversos 74 O Código de Menores adota expressamente a filosofia política da situação irregular segundo a qual os menores se tornam sujeitos dos direitos disciplinados quando, e somente quando, se encontrassem em situações definidas como irregulares por terem caráter de desvio em relação à referência normativa implícita: a infância universal, padrão ideal não projetado explicitamente no referido Código por não ser objetivo da tutela jurídica, mas que aparece como o contraste não dito que representa as trajetórias das crianças em situação irregular como trajetórias desviantes. 198 componentes discursivos – como lazer, educação, família, trabalho, saúde, entre outros – sejam consolidados juridicamente numa perspectiva que, ao mesmo tempo, faz emergir modelos ideais de infância e escamotear as moralidades e as disputas por classificação presentes no “direito de dizer os direitos” da criança. Entre as centenas de povos indígenas há narrativas específicas para fundamentar as múltiplas invenções nativas das infâncias e das possibilidades de convivência social das crianças, as quais, quando transplantadas para os direitos humanos, precisam ser reconhecidas, num primeiro momento, pelo aspecto da similaridade ao Ocidente naquilo em que todos procuram definir formas específicas ou técnicas, para lembrar (MAUSS, 1974), de intervir sobre corpos e fabricar a pessoa, de modo a constatar o caráter processual tornado invisível ou ocultado nas normas jurídicas, as quais fundamentam hoje desde as campanhas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) contra a erradicação do trabalho infantil até os esforços do governo brasileiro para a universalização do acesso à educação escolar – aqui, indígenas e não indígenas são semelhantes porque inventam processualmente as condições de possibilidades de emergência da infância e realizam trocas interculturais e relações de poder assimétricas que modificam constantemente estas mesmas condições e as ideias que as operam. É só num segundo momento que as diferenças culturais devem efetivamente ser caracterizadas. Não no sentido de isolamento ou relativismo absoluto, mas para marcar o local desde o qual os direitos humanos das crianças precisam ser significados numa disputa de classificações que, na maioria das vezes, está menos preocupada em compreender as diferenças culturais do que em impor as moralidades jurídicas assentadas nas concepções hegemônicas sobre a infância, e que aqui identificamos a partir do marcador cronológico moderno, que nada mais é do que forma particular de historicidade humana. O trabalho de registro e compreensão das diferenças culturais é a tentativa de apreender, mesmo que não se possa compreender, a multiplicidade da teia de significados que se liga ao “tornar-se criança”, propondo não apenas a desconstrução dos modelos jurídicos de produção da infância ao penetrar no universo de discriminações e ocultações que impregna as relações e condições de produções, mas, 199 fundamentalmente, de empoderamento dos sujeitos destes povos indígenas como autoridades do direito de dizer os direitos dos indígenas crianças. Retornando ao plano jurídico, cabe referendar o artigo 30 da CDC como aporte paradigmático da afirmação internacional dos direitos humanos dos indígenas crianças.75 O artigo estabelece que: [n]os Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas ou pessoas de origem indígena, nenhuma criança indígena ou que pertença a uma dessas minorias poderá ser privada do direito de, conjuntamente com membros do seu grupo, ter a sua própria vida cultural, professar e prática a sua própria religião ou utilizar a sua própria vida (ONU, 1989). O dispositivo internacional é cópia contextualizada do artigo 27 do Pacto Internacional dos Direitos Políticos e Civis (PIDPC) de 1966,76 no qual a garantia dos direitos culturais foi enfatizada no plano individual, pois os direitos não pertenciam às minorias enquanto grupos, antes sim aos membros individuais e com status negativo, é dizer, para proibição ao Estado de supressão das suas culturas e línguas, mas não exigia deste nenhum tipo de obrigação positiva de promoção da cultura, das religiões ou das línguas das minorias (GHAI, 2003). Porém, como ressalta Anaya (2005), parece evidente que a aplicação prática do dispositivo internacional deve levar em consideração a proteção da integralidade cultural tanto dos indivíduos quanto dos grupos, com a inclusão implícita da coletividade no reconhecimento dos direitos das pessoas terem sua própria vida cultural “conjuntamente com os membros do seu grupo”.77 75 Também é preciso fazer menção aos artigos 5º, 8º, 17 letra “d”, 20 inciso 3 e 29 letra “e” da CDC, que trazem aportes normativos de reconhecimento da diversidade cultural. 76 “Art. 27. Nos Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, não será negado o direito que assiste às pessoas que pertençam a essas minorias, em conjunto com os restantes membros do seu grupo, ter sua própria vida cultural, professar e praticar a sua própria religião e utilizar a sua própria língua” (ONU, 1966). 77 Além disso, o desenvolvimento da jurisprudência do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas (que fiscaliza a aplicação do Pacto) e, atualmente, da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, tem possibilitado o alcance de interpretação mais ampla do dispositivo para salvaguardar os direitos culturais das minorias às coletividades e a prestação positiva dos Estados (GHAI, 2003). 200 É possível realizar ampliação interpretativa similar do artigo contido na CDC para problematizar ao menos quatro questões. Primeiro, a inserção dos indígenas crianças dentro de contexto sociocultural coletivo marcado por formas diferenciadas de construção social da infância e estrutura organizacional, reforçando o direito à autodeterminação dos povos indígenas em relação à maneira como imaginam o “ser criança” e os efeitos jurídicos e sociais decorrentes na interação com a sociedade nacional. Segundo, a autonomia diferenciada dos indígenas crianças enquanto grupo intrageracional com recorte étnico-cultural que não necessariamente participa da significação da infância e da relação com a cultura adulta como as crianças não indígenas, mas que deve ter reconhecida a condição igualitária de inteligibilidade e ativismo social. Terceiro, refere-se à atribuição de obrigações negativas e positivas aos Estados nacionais para preservação dos direitos coletivos e individuais, da cultura e dos modos de vida tradicionais de grupos minoritários, como os povos indígenas. E quarto, o texto normativo da CDC alarga a diversidade cultural do “ser criança” para além dos povos indígenas, delineando – a minorias étnicas, religiosas ou linguísticas – a possibilidade de recepção diferenciada da infância de outros grupos socioculturais, como os pertencentes aos povos e comunidades tradicionais78. O ECA, promulgado em 1990, não apresentava o mesmo vigor de reconhecimento normativo à diversidade cultural. Sobretudo, não acompanhou a sistemática da CDC de estabelecer norma jurídica específica ou a sistemática da CFRB que possui capítulo que regulamenta os direitos constitucionais dos povos indígenas. A única referência direta que pode ser utilizada para recepcionar os direitos diferenciados dos indígenas crianças encontrava-se no artigo 58 do diploma legal, que define o 78 No Brasil, povos e comunidades tradicionais é termo utilizado de maneira equivalente aos “povos tribais” contido na Convenção no 169 da OIT, de 1989, no artigo 1º, alínea “a”, e que foi institucionalmente reconhecido com a publicação do Decreto nº. 6.040/2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. Os povos e comunidades tradicionais compreendem grupos humanos que num esforço coletivo ocupam, usam, controlam e identificam determinado espaço geográfico convertendo-o em território com marcas identitárias, cuja defesa ocorre em função de contingências históricas, marcadas pelo colonialismo externo e interno. Na Amazônia, os grupos aqui referidos são denominados: quilombolas, indígenas, caboclos, extrativistas, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos, agricultores familiares, camponeses e assentados. Sobre o assunto, conferir: Carneiro da Cunha e Almeida (2001), Little (2002), Oliveira (2013) e Shiraishi Neto (2007). 201 respeito, nos processos educacionais, aos “... valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto cultural da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade de criação e o acesso às fontes de cultura” (BRASIL, 1988). Percebe-se que o texto normativo não chega a contemplar o caráter bilíngue e intercultural da educação voltada para este segmento populacional, conforme delimitado no artigo 210, §2o da CFRB e artigos 78 e 79 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei no 9.394/96). O relativo esquecimento dos “novos direitos” nacionais em relação aos indígenas/crianças não deixou de chamar a atenção, mesmo que tardia, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que editou em 2003 a Resolução no 91 na qual firmou entendimento de que o ECA se aplica “à família, à comunidade, à sociedade, e especialmente à criança e ao adolescente indígenas [...] observadas as peculiaridades socioculturais das comunidades indígenas.” Diante de marcos constitucionais e internacionais que sinalizam o reconhecimento da diversidade cultural e cidadania diferenciada, não resta dúvida de que não é somente o ECA que se aplica aos povos indígenas, mas também a pluralidade das lógicas culturais de concepção do “ser criança” que implica a relativização do ECA, no sentido afirmado por Cohn (2005) de que só podemos entendê-lo e aplicá-lo se previamente compreendermos (os limites da) concepção de infância que o embasa e as possibilidades de diálogo intercultural para recepção das identidades étnicas como parâmetros de legitimação e (re)significação dos “novos direitos”. Ao exposto veio responder a Nova Lei de Adoção (Lei n o 12.010/2009) que reconhece a configuração das famílias extensas79 e incorpora a exigência de respeito às identidades culturais indígenas (e quilombolas) quando do procedimento de colocação de criança em família substituta80. Entretanto ignora a necessidade de consulta direta 79 “Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade” (BRASIL, 1990). 80 “Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei. (...) § 6o Em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, é ainda obrigatório: I - que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta Lei e pela Constituição Federal; II - que a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros da mesma etnia; III - a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal 202 aos povos indígenas, preferido remetê-la ao órgão indigenista (FUNAI) e aos especialistas antropólogos, o que revela a condição entreaberta de, ao mesmo tempo, valorizar as práticas culturais e desconsiderar o protagonismo político dos povos indígenas no processo de decisão sobre assuntos que lhes interessam, ferindo frontalmente a Convenção 169 da OIT. Ainda assim, é importante compreender a inovação normativa contida nos artigos 25, parágrafo único, e 28, parágrafo 6o81, do ECA como a continuidade de uma abertura lenta – e, de certo modo, atrasada – dos direitos das crianças para com os direitos indígenas, ainda permeada de limitações que refletem a condição agridoce da situação atual dos direitos dos indígenas crianças: por mais que seja uma melhoria jurídica de tratamento à diversidade cultural dos indígenas crianças (sabor doce), é feito dentro de uma estrutura normativa – o ECA e os outros direitos das crianças – e socioinstitucional dominada pelo viés do universalismo homogeneizador e redutivo do potencial participativo dos povos indígenas (sabor amargo), carente de uma compreensão crítica sobre como a cultura é capaz de construir diferentes concepções de infância e de direitos, com base nas intervenções sobre o corpo e a pessoa. CORPO, PESSOA E DIGNIDADE NA PERSPECTIVA INTERCULTURAL No campo de interseção interdisciplinar com a Antropologia, especificamente a Etnologia Indígena, o tema da dignidade da pessoa humana deslocase da problematização do valor dignidade, para o valor pessoa82, enquanto ser forjado socialmente. Pessoa pensada em conjunto com a noção de corpo, de modo a indicar que dependendo da forma como cada povo indígena constrói e intervém sociocosmologicamente “na pessoa e no corpo”, há diferentes concepções de infância, responsável pela política indigenista, no caso de crianças e adolescentes indígenas, e de antropólogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso” (BRASIL, 1990). 81 Em relação aos três incisos do parágrafo 6o do artigo 28, do ECA, sua abrangência de aplicabilidade não deveria se restringir apenas aos casos de colocação em família substituta, pois, em regra, tratam-se de diretrizes que têm validade para outras questões envolvendo indígenas crianças, especialmente os incisos I e III, no tocante, por exemplo, ao ato infracional, ao abuso sexual e ao trabalho infantil. 82 Para considerações a respeito da construção histórica do “valor da pessoa humana” nas sociedades ocidentais, e de como este veio a cristalizar a forma como compreendemos o “valor da dignidade” no campo dos direitos humanos, consultar: Comparato (1999), Kirste (2009), Le Breton (2011), Mauss (1974), Rabenhorst (2001), Sarlet (2002). 203 de dignidade e, portanto, de direitos, o que torna possível a antecipação da pessoa como valor-pressuposto da dignidade, logo, de inversão axiológica: a pessoa precede à dignidade, em termos de definição cultural – quando instrumentalizada para o caso das crianças em contextos de povos indígenas, permite a construção do termo político indígenas/crianças, para enfatizar a primazia do critério étnico-cultural na definição do marcador geracional da infância. Para os povos indígenas, o corpo está imbricado no entendimento de pessoa, e corpo/pessoa são pensados de forma múltipla, porque constituído em/na relação com os demais seres. Logo, a pintura corporal, as brincadeiras, o modo como, quando e onde se produzem ou se usam os ornamentos, as vestimentas, as restrições e as prescrições alimentares e sexuais, e os ritos de passagem da fase de criança para a de adulto, enfim, todas as ações devem ser entendidas sob a ótica da intervenção e transformação de corpos e pessoas. Ao se constituir o corpo, faz-se, produz-se, concomitantemente, a pessoa indígena, a partir de informações e significados oriundos da sociabilidade experimentada nas relações de alteridade com humanos, animais, plantas, seres espirituais, dentre outros, para aprendizagem e ins/constituição de conhecimentos, habilidades, técnicas e concepções de mundo apreendidas enquanto parte da constituição identitária. De acordo com Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (1987), a noção de pessoa entre povos indígenas remete à consideração da corporalidade enquanto idioma simbólico que se torna pré-requisito à adequada compreensão da organização social, da cosmologia e da natureza do ser humano. Logo, analisar as maneiras de fabricação do corpo remete, obrigatoriamente, à percepção das formas de construção da pessoa, esta última tomada como categoria de relação intersubjetiva com a realidade sociocosmológica. O corpo é o lugar que insere e forma a pessoa na sociocosmologia em que se espelha, tendo em vista a concepção de pessoa não vinculada à noção de indivíduo, como nas culturas ocidentais, “pois a pessoa, nas sociedades indígenas, se define como uma pluralidade de níveis, estruturados internamente” (SEEGER; DAMATTA; VIVEIROS DE CASTRO, 1987, p. 13). 204 Com base em etnografia desenvolvida entre os Kayapó, do Brasil Central, Turner (1980) dispõe que a construção social da pessoa kayapó envolve a fusão de tipos básicos de conceitos e categorias, entre as quais o tempo e o espaço, os modos de atividade (por exemplo, se individuais ou coletivas, se seculares ou sagradas), os tipos de status social (com gradações referentes ao sexo, idade, papéis familiares e posições políticas, entre outros aspectos) as qualidades pessoais (grau de socialização, passividade ou ativismo da interação, enquanto agente social, entre outros) e os valores sociais que fundamentam a sociocosmologia local, como, a exemplo dos Kayapó, os valores da beleza e da dominância. O autor complementa informando que, em cada sociedade, os conceitos e as categorias são combinadas e representadas de forma culturalmente diversa para instituir a pele social (a roupa ou a segunda pele) que, cada individuo precisa vestir para ser reconhecido como pessoa e, portanto, como membro de determinado grupo. De acordo com Rosa (2008), que realizou estudo etnográfico entre os Kaingang, as práticas cotidianas relativas ao “fazer-se pessoa Kaingang” compreendem a lógica da relação dos sujeitos com os ambientes de vida. Assim, o corpo é entendido não somente como suporte identitário ou de afirmação de papéis sociais, mas também enquanto instrumento e atividade que articula significações sociocosmológicas, local da justaposição entre pessoa, corpo e sujeito indígena. Segundo a autora, a individualidade do corpo depende do processo de socialização desde o qual o sujeito constitui suas relações [...] Como meio de incorporação dos valores e símbolos culturais, o corpo é socialmente produzido pelo tratamento corporal que lhe apropria os códigos relativos às mensagens específicas sobre modos, estados e estágios de desenvolvimento do ator social (ROSA, 2008, p. 111). Da mesma forma, entre os Charrua – localizados no hoje estado do Rio Grande do Sul – há vigoroso sistema xamânico-cosmológico, ancorado em lógica anímica/perspectivista de concepção do cosmo (SILVA, 2008) ligada, entre outras 205 coisas, à concepção nativa do Ki – entendida como essência/interioridade de todos os seres, sejam humanos ou não humanos – e a ação e contra-reação que uns promovem em relação aos outros, demonstrando a existência de um cosmo interrelacionado e imbricado a partir de domínios diversos – que operam como categorias ontológicas no aperfeiçoamento de corpos e pessoas, [t]odos os seres oriundos dos vários domínios deste cosmo, portanto, possuem atributos e agência (interioridades compartilhadas), diferindo nos seus corpos/roupagens (múltiplas exterioridades ou multinaturalismo). Dito em outras palavras, corpos e pessoas são construídos através de técnicas corporais, que são técnicas sociais, e que ao utilizarem elementos provenientes, por exemplo, do domínio da natureza, como animais, plantas, minerais, na confecção de adornos ou pinturas, trazem para estes corpos propriedades imateriais e agências destes seres extra-humanos (SILVA, 2008, p. 30). Desse modo, a manipulação xamânica do Ki das árvores e da terra pode ser direcionada para fortalecimento do Ki das pessoas. Para os Charrua, o cosmo é formado por domínios intercambiáveis de contínua circulação e comunicação de alteridades, pois todos os seres do cosmo (humanos e não humanos) são percebidos enquanto dotados de pontos de vista, de atributos humanos e de agência, numa constante lógica de ação e contra-reação uns em relação aos outros (SILVA, 2008). Os exemplos de estudos etnológicos com grupos pertencentes às etnias Kayapó, Kaingang e Charrua revelam a inevitável inversão axiológica necessária para o início de qualquer diálogo que se pretenda intercultural no âmbito dos direitos humanos e de seu princípio moral supremo: a dignidade da pessoa humana. A centralidade da questão pode ser colocada da seguinte forma: ao contrário da definição textual que antecipa o valor dignidade por entendê-la adjetivando-a a partir do “localismo globalizado” (SANTOS, 2006) de determinada concepção de pessoa humana, ao invés de negociar valores, no espaço do diálogo intercultural deve-se 206 preceder o questionamento acerca dos referenciais socioculturais que embasam a construção da categoria pessoa, para, a partir daí, apreender (ainda que não se possa compreender) a pluralidade representacional do valor moral da dignidade, presente nas sociedades humanas, instrumentalizada nas definições dos direitos (ou sistemas jurídicos) e fundamento último do referencial jurídico intercultural da infância. DIREITOS INDÍGENAS TRANSVERSALIZADOS NOS DIREITOS DAS CRIANÇAS O diálogo intercultural definido a partir da inversão axiológica dos indígenas crianças possibilita a recuperação da dinâmica político-organizacional e identitária dos povos indígenas como fundamentos do processo de construção social da pessoa e da infância, condição que repercute na valorização do referencial local – ou seja, dos agentes sociais em determinados contextos e culturas – enquanto suportes estruturais para a consolidação hermenêutico-normativa dos direitos e, ao mesmo tempo, elemento de abertura dos espaços de negociação/decisão para a participação ativa dos povos indígenas na disputa pelo direito de dizer os direitos dos indígenas crianças. Assim, propõe-se a instrumentalização da inversão axiológica para relativização de conceitos normativos – tais como: trabalho infantil, lazer, brincadeira, ato infracional, adoção, faixas etárias, violência, família, vida, infância, adolescência, entre outros – tendo em vista o fortalecimento de aportes locais de “significação do” e “participação no” permitido, com abertura de espaço para disposição de normas e procedimentos, cuja aplicabilidade torna-se dependente do modo como os conceitos gerais enunciados se materializam no plano concreto da relação sociocultural e identitária local, além da necessária transversalização hermenêutica com os direitos indígenas estabelecidos na Convenção 169 da OIT, de 1989, na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DNUDPI), de 2007, na CRFB, de 1988, na jurisprudência estabelecida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), 207 vinculada ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH)83 e do Conselho de Direitos Humanos (CDH), vinculado ao sistema da Organização das Nações Unidas (ONU). A transversalização dos direitos das crianças com os direitos indígenas coloca à disposição preceitos jurídicos definidos como essenciais para a necessária adequação do tratamento sócio-institucional dos indígenas crianças e do suporte normativo para reordenação hermenêutica dos direitos das crianças. O preceito jurídico fundamental para operacionalização da transversalização normativa é o direito à autodeterminação dos povos indígenas, definido normativamente desde o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ambos de 1966, no artigo 1o, especificado no artigo 4o, inciso III da CRFB e nos artigos 3o e 4o da DNUDPI, que implica no reconhecimento do autogoverno comunitário no âmbito do Estado nacional e o respeito aos modos de desenvolvimento, nos territórios étnicos, das culturas, línguas, tradições e usos dos recursos naturais. Segundo Anaya (2005) e Luciano (2006) o direito à autodeterminação dos povos indígenas apresenta duas dimensões que se referem aos valores da liberdade e da igualdade que, ao serem instrumentalizados pelo caráter coletivo das reivindicações dos povos indígenas, passaram a serem significados pelo aspecto do fortalecimento dos povos indígenas como entidades socioculturais autônomas (enfoque à autonomia) e da participação política dos povos indígenas nos espaços de negociação e decisão do Estado e da sociedade nacional sempre que haja questões que afetem suas vidas (enfoque à participação). No tocante à primeira dimensão do direito à autodeterminação a possibilidade de transversalização com os direitos das crianças está apresente desde a edição da Resolução no 91/2003 do CONANDA, e sinaliza para a necessidade de compreensão pelos agentes não indígenas dos modos locais de representação e 83 De acordo com Melo (2006), o interesse pela matéria dos direitos indígenas no SIDH existe desde quase o nascimento do mesmo, pois em 1983 a Comissão realizou investigação sobre a situação do povo Miskito na Nicarágua e em 1985 emitiu a Resolução n. 12/85 sobre a situação do povo Yanomami no Brasil. Ainda assim, é somente a partir de 2001, mais precisamente depois da sentença do Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua, que a CIDH passou a apreciar e julgar vários casos de violação de direitos cuja titularidade corresponde a coletividades culturalmente diferenciadas. 208 socialização da criança – na mescla com as formas de fabricação do corpo, da pessoa e da dignidade – de maneira a apreender a complexidade e a dinamicidade do contexto sociocultural em que os indígenas crianças se inserem, sem deixar de atentar, também, para os efeitos do colonialismo interno que impuseram aos povos indígenas condições históricas de pobreza e marginalização social. Assim, se por um lado a diversidade cultural do “ser criança” entre povos indígenas deve ser a fonte de orientação para a significação das noções plurais de infância, lazer, trabalho, sexualidade, violência, entre outros, procurando analisá-las tendo em vista o contexto sociocultural, por outro a necessidade de compensação das injustiças históricas sofridas demanda a oferta de serviços e bens públicos que garantam melhores condições de vida aos indígenas crianças, sobretudo no âmbito da educação escolar, da saúde e da titulação e seguridade das terras indígenas. O direito à autodeterminação também implica, no aspecto da autonomia, no reconhecimento de que há decisões internas sobre a vida dos indígenas crianças que não podem sofrer interferência de agentes externos, sob pena de violar o próprio direito à autodeterminação. Os modos de tratamento e socialização dos indígenas crianças no âmbito de suas etnias de pertença foi etnograficamente apresentada como possuindo elementos importantes de distinção para com as formas de produção da infância em outros contextos. De acordo com Tassinari (2007), existem características comuns nas descrições etnográficas sobre as infâncias indígenas que remetem ao: (1) reconhecimento da autonomia das crianças e de suas capacidades de decisão: os indígenas crianças têm liberdade de escolhas que afetam diretamente pais, familiares e comunidades, sendo a criança respeitada como sujeito de sua própria educação; (2) reconhecimento das diferentes habilidades frente aos adultos: a liberdade dada aos indígenas crianças está vinculada ao reconhecimento das habilidades próprias de aprendizagem o que, no entanto, não retira dos adultos a responsabilidade por educá-los e dá-los condições de aprendizagem, como a de realizarem trabalhos familiares/comunitários e participarem de cerimônias rituais; (3) papel das crianças como mediadoras de diversas entidades cósmicas: os indígenas crianças, em particular as menores, são importantes mediadoras de várias esferas cosmológicas, por não 209 estarem totalmente assimiladas à categoria humana; (4) papel das crianças como mediadoras de grupos sociais: o cuidado com os indígenas crianças é realizado no espaço familiar (consanguíneos), mas este ambiente só pode existir combinado a relações com “outros” (afins), o que permite a estruturação do parentesco enquanto balanço entre “nós” e os “outros”, sendo que as formas ameríndias de transformar o “outro” em “nós” dizem respeito também aos cuidados com crianças, pois todo indígena criança traz a marca da alteridade, associado que é aos deuses, animais ou com outros segmentos sociais, assim, as relações com os afins são mediadas pelas crianças; (5) educação como produção de corpos saudáveis: constata-se que a educação entre povos indígenas é dedicada especialmente à produção de corpos saudáveis os quais são associados ao ensinamento de valores morais e éticos, mediante a ingestão de alimentos adequados e a prática de técnicas corporais que relacionam a educação à garantia da saúde e do bem-estar. Tais elementos culturais são apreendidos e apresentados enquanto classificações etnográficas de caráter sistematizador, ainda que exemplificativo, para o entendimento material da aplicação do preceito da autonomia dos povos indígenas no âmbito do tratamento de suas crianças. É, evidentemente, uma construção teórica que permite o dimensionamento de alguns conceitos-valores (educação, trabalho, relações de parentesco, entre outros) a partir do referencial nativo e, portanto, do reconhecimento da pluralidade cultural da construção da pessoa, do corpo e da infância. Todavia, aspectos internos dos povos indígenas que sinalizem a presença de discriminação e/ou violência contra as crianças não podem ser justificados enquanto práticas arraigadas nos costumes, sendo necessário o entendimento por parte dos agentes não indígenas de que a eliminação destas situações não consiste em suprimir as diferenças culturais, mas os aspectos sociais que têm o propósito de reduzir ou violar os direitos e liberdades dos indígenas crianças. Em todo caso, a possibilidade de participação e opinião dos indígenas crianças, dos seus familiares e membros comunitários é elemento decisivo para o estabelecimento da natureza do problema e da relação deste com a integralidade sociocultural do grupo, tal como preceitua o artigo 5o da Convenção 169, na busca por soluções que respeitem a livre disposição dos povos indígenas de possuírem regras, procedimentos e autoridades para resolução dos 210 conflitos internos organizadas no âmbito de seus sistemas jurídicos nativos, as quais precisam ser priorizadas quando no diálogo intercultural (artigos 8o e 9o da Convenção 169). Nesse caso, a realização de laudo antropológico pode ajudar na tradução dos modos de significação nativos para a lógica ocidental de compreender os fatos e os valores, sendo importante dizer que a repercussão positiva do laudo antropológico está na possibilidade de garantir a fala dos agentes locais a respeito do que acham da questão em disputa e de como esta se insere no contexto mais amplo da realidade sociocultural dos sujeitos. Os direitos à consulta e à participação em sentido estrito são subsidiários do direito à autodeterminação no segundo aspecto elencado acima (enfoque à participação). Na Convenção 169 a consulta e a participação em sentido estrito foram definidas no artigo 6o como dois graus de participação distintos e que trazem repercussão na forma como pode haver a transversalização com os direitos das crianças. A consulta é, basicamente, momento de participação pontual em que o povo indígena é chamado pelo agente estatal a se posicionar frente a respeito de ação externa que lhe afetará diretamente. Recomendada para ações de caráter emergencial ou feitas por entidades que não tenham representação indígena, precisa seguir diretrizes presentes na Convenção 169 (artigo 6o, alínea “a”), na DNUDPI (artigo 18), na CRFB (artigo 231, §3o) e também na jurisprudência da CIDH que dizem respeito à garantia de procedimento apropriado – isto é, espaço e metodologia de acordo com interesses e costumes do povo/comunidade consultado –, da presença de instituições representativas nativas (preferencialmente a comunidade), ocorrer antes da ação de intervenção pretendida pelo agente externo e ser de boa-fé (sem tentativa de manipulação e com os agentes estatais sem pré-definir antes da consulta sua posição final), oportunizar ao povo indígena consultado o máximo de informações a respeito do assunto, respeitar a posição final do povo indígena e possibilitar, no caso de afetação, a justa indenização por meios acordados coletivamente. O direito à consulta incide nos direitos das crianças para tornar necessária a realização de consulta aos povos indígenas sempre que entidades do Sistema de 211 Garantia de Direitos (SGD) – em especial o Poder Judiciário, a Polícia e o Conselho Tutelar – forem tratar de assuntos ligados aos direitos das crianças e que interesse/afete diretamente o grupo étnico, tais como casos de violência sexual contra indígenas crianças, matrícula em escola ou atendimento no âmbito da saúde. Desse modo, garante-se a participação pontual dos povos indígenas no processo de construção das formas de resolução de problemas sociais que estejam atingindo os indígenas crianças, seja na aldeia ou na cidade. O importante é que os agentes externos, no caso específico as entidades do SGD e, mais particularmente, o Conselho Tutelar, tenham obrigatoriamente que possibilitar o entendimento e o posicionamento das instâncias político-organizacionais dos povos indígenas (a comunidade, sempre preferencialmente, mas também associações e organizações, lideranças políticas e/ou tradicionais, entre outros), e não apenas da família indígena diretamente afetada, para daí compreender de forma mais ampla a situação que pretende intervir e estabelecer de maneira participativa as formas de intervenção e de resolução, ou simplesmente de não intervenção se assim chegarem a um consenso ou acordo com os sujeitos consultados84. Um exemplo do acionamento da consulta para encaminhamento de situação envolvendo denúncia de violação de direitos de indígena criança pode ser obtido no depoimento, abaixo, de Lalan Pripá, do povo Xokleng e conselheira tutelar do município de José Boiteux (SC), entre 2008 e 2010, numa entrevista realizada em setembro de 2014: Lalan Pripra - [...] Um dia chegou o meu tio, ele mora na aldeia Bujiu. Ele veio trazer denuncia que sua filha de 16 anos saiu de casa pra morar com um rapaz de 22 anos. E falou um... bastante horrores do rapaz, disse que não 84 Importante lembrar que o procedimento normativo da consulta adota a possibilidade de três níveis de negociação a serem tomados durante a consulta. O primeiro nível de negociação é o que logra o consentimento livre e informado do povo indígena mediante a definição de proposta que o beneficie ou esteja em consonância com suas prioridades de reivindicação política e de entendimento cultural do assunto. O segundo nível de negociação é quando o povo indígena não aceita a medida proposta e, segundo Yrigoyen Fajardo, “cabría entrar en un proceso de negociación orientado a llegar a un acuerdo, donde ambas partes puedan revisar sus planteamientos iniciales. Si se llega a un acuerdo, el Estado queda vinculado” (2009, p. 384). Porém, caso não ocorra o consentimento e tampouco acordo entre o povo indígena consultado e os agentes estatais, “el Estado tiene la atribución de tomar uma decisión. Sin embargo, no se trata de un acto arbitrário, sino que, como todo acto estatal, el Estado está obligado a motivarlo” (YRIGOYEN FAJARDO, 2009, p. 384) e deve fazê-lo de modo a assegurar o máximo respeito possível as prioridades apontadas pelo povo indígena consultado. 212 aceitava e queria que o Conselho Tutelar fosse buscar sua filha, porque não sei o quê? Porque ela ia passar fome, porque ele não queria que a moça fosse. Eu disse: “[a]gora eu vou fala tio, pra ti, mais, eu não podia”, disse pra ele: [...] “vamos pensar: a sua filha fugiu ou ela foi embora porque quis?” “Não, fugiu”. Será? Tem certeza? “Fugiu, ele roubou ela”. Eu disse “tá bom, eu vou conversar com o rapaz”. Assis Oliveira- O rapaz era também indígena? Lalan Priprá- Indígena. Aí eu fui na aldeia Bujiu e perguntei pro cacique o que tinha acontecido. Assis Oliveira- Perguntou para o Cacique? Lalan Priprá - Perguntei pro cacique: “meu tio foi lá disse assim, assim o que tu me diz?”. Ah não é que ele não gosta do rapaz. Ele falou bem assim pra mim: “ele veio dar queixa aqui pra mim, só que daí eu disse que não, que ela já é moça, que ela já tem idade para casar e que ela podia casar. Aí ele disse que não, eu não aceito porque eu não gosto do rapaz, por causa disso, disso...”. Lalan Priprá – [...] daí eu, chamei um outro cacique, daí disse, perguntei pra ele: “o que tu acha?” Aí ele disse assim: “não, deixe quieto”. Falou bem assim: “deixe quieto! Ela casou, tá casada, é um bom rapaz, deixa ela”. Aí então eu fui atrás da menina, disse pra ela, fui atrás dela, conversei. Ela disse: ‘não eu vim porque eu quis, eu não fugi, é que o pai não gosta dele. E quero casar com ele, quero vivê com ele, quero ter família’. Assis Oliveira – Você sempre tinha aquela atenção de ir com os caciques para poder saber o que aconteceu? Lalan Priprá – Sim. Porque a autoridade maior das terras indígenas é o cacique, se eu faço uma averiguação, constando que preciso mandar pro Fórum [de Justiça] pra formalizar o processo, eu tenho que ter apoio do Cacique, se o Conselho Tutelar né, caso eu, mesmo conselheira indígena eu tenha que ter o apoio do cacique [...] (Grifos nossos). Logo, percebe-se o quanto é relevante contar com o apoio de lideranças indígenas e de outros membros das comunidades indígenas, pois assim consegue-se 213 obter informações mais aprofundadas sobre os sujeitos e as questões envolvidas em cada caso e, mais do que isso, busca-se um amparo interno que tanto pode ajudar na elucidação do problema, como apresentar indicativos de possíveis respostas e/ou encaminhamentos a serem tomados, além de dar credibilidade/legitimidade às decisões a serem tomadas pelo SGD. O direito à participação em sentido estrito foi definido na Convenção 169 (artigo 6o, alínea “b”) para a promoção de meios de participação em todos os níveis de tomada de decisões em instituições eletivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis por políticas e programas que lhes digam respeito, em igualdade de condições com os demais segmentos da população. De acordo com Yrigoyen Fajardo (2009), tal assertiva consiste na garantia de intervenção dos povos indígenas em todas as fases do ciclo de elaboração, aplicação e avaliação de políticas, programas e projetos que lhes possam afetar. O objetivo é fazer com que tal participação assegure que as prioridades de desenvolvimento dos povos indígenas possam estar plasmadas nas propostas de intervenção planejadas pelo Estado, e que estas priorizem o melhoramento das condições de vida destes povos e que não afetem sua integridade física e sociocultural. Na DNUDPI (artigo 23) o direito à participação no sentido aqui expresso ganha sua tradução mais condizente: a participação significa o direito de administrar os espaços em que são planejadas, executadas e avaliadas as políticas públicas voltadas para saúde, habitação, educação e, no caso específico, aquelas voltadas para a criança e o adolescente, entre outras possíveis. Portanto, o segundo sentido do direito à participação representa processo de administração continuada dos espaços de tomada de decisões sobre assuntos que digam respeito aos povos indígenas. Assim, o direito à participação em sentido estrito tem implementação com a ocupação de entidades eletivas por indígenas, tal como cargos políticos no Poder Legislativo ou Executivo, ou vagas específicas em órgãos de controle social para serem ocupadas por representantes indígenas. 214 O direito à participação em sentido estrito quando transversalizado nos direitos das crianças fortalece a necessidade de inserção de representantes indígenas nos espaços de tomada de decisão sobre os direitos das crianças em que a participação da sociedade civil é garantida, a exemplo do Conselho Tutelar e dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, este último nos âmbitos municipal, estadual e nacional, assim como nos Conselhos Escolares, da Merenda Escolar, da Saúde, entre outros. Ao mesmo tempo, coloca o desafio de inserção de representantes políticos dos povos indígenas em áreas do Poder Executivo e em instâncias do Poder Legislativo que sejam estratégicas para a definição de políticas públicas e leis que melhorem as condições de vida dos indígenas crianças e estejam sintonizadas com os interesses e realidades dos povos indígenas. Especificamente quanto aos conselhos que atuam mais diretamente na área da criança, a participação nestes espaços possibilitaria aos povos indígenas a administração direta das instâncias de execução – no caso do Conselho Tutelar – e planejamento/fiscalização – no caso dos outros conselhos – das ações estatais e privadas voltadas para a concretização (ou violação) dos direitos das crianças. Significa dizer que estes espaços poderiam desenvolver formas mais adequadas de intervenção e de tratamento aos indígenas crianças se houvesse representantes indígenas que, de maneira continuada, pudessem controlar o colonialismo interno das entidades e promover intercâmbio de ideias junto aos outros representantes para que todos estivessem mais bem preparados para agir em contexto de diversidade cultural. O Quadro 1 procura sintetizar, de maneira didática, as proposições definidas ao longo do presente capítulo. 215 Quadro 1 - Direitos indígenas nos direitos das crianças Princípio jurídico Direitos indígenas Autonomia Autodeterminação (Arts. 1o, PIDCP, 7o da Convenção 169, 3o e 4o da DNUDPI) Participação Repercussão nos direitos das crianças Fundamentação normativa Livre exercício da forma de produção da infância indígena e de conformação dos valores a ela associados (educação, trabalho, saúde, entre outros). Arts. 231, caput, CRFB, 2o da Convenção 169, 2o e 8o da DNUDPI. Em caso de violência cometida contra indígenas crianças, definição de procedimento de solução que trabalhe com a natureza do problema, interlocução com a integralidade cultural e prioridade para as formas de solução nativas. Arts. 5o, 8o e 9o da Convenção 169, 34 e 35 da DNUDPI. Participação em instituições representativas dentro do Estado, de forma a adequar políticas, programas e projetos aos interesses e realidades dos povos indígenas. Arts. 6o , b, da Convenção 169, e 23 DNUDPI. Povos indígenas serem consultados em todas as ações administrativas e legislativas que afetem os indígenas crianças. Arts. 231, §3o da CRFB, 6, 1, “a” e 2, da Convenção 169, 19 e 32, 2, da DNUDPI. 216 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os caminhos para desenvolver os direitos dos indígenas crianças estão condicionados à possibilidade de incidência das realidades e dos direitos dos povos indígenas no âmbito do campo jurídico e dos direitos das crianças. Quando se analisa a situação dos indígenas crianças no seu conjunto, olhase para o passado e percebe-se que a superação das ausências teóricas e normativas em relação à inclusão diferenciada nos “novos direitos” representa o primeiro passo de uma luta empreendida contra todas as formas de homogeneização e vulnerabilidade em prol da (re)condução para caminhos que relativizem certezas e universalidades sociojurídicas pela valorização da diversidade cultural. As ideias que presidem a abertura hermenêutico-normativa reordenam a soberania política e o monismo jurídico a partir dos pressupostos teóricos, éticos e legais da autodeterminação, pluralismo jurídico e cidadania diferenciada dos povos indígenas e, com isso, da sociabilidade, desenvolvimento humano e ação social distinta dos indígenas crianças. Trata-se de reconhecer as limitações dos modelos jurídicos vigentes que versam no cenário brasileiro sobre o tratamento dos indígenas crianças, e propor a leitura entrecruzada destas normativas com base no apoio aos direitos indígenas na busca pela construção de uma racionalidade transversal mediante o aprendizado mútuo e o intercâmbio criativo. A interpenetração entre os mundos jurídicos da criança e dos povos indígenas representa o esforço de desconstrução das amarras coloniais dos direitos destinados às crianças que foram politicamente “naturalizadas” ou “universalizadas” de modo a obliterar ou subjugar as especificidades culturalmente diferenciadas. Questionar tal monocultura da produção dos direitos da criança é, ao mesmo tempo, propor a rearticulação entre os valores da igualdade e da diferença com o suporte do protagonismo dos povos indígenas, de forma a reconstruir os conceitos e normativas jurídicas para que neles os indígenas crianças se reconheçam, garantindo, assim, que a igualdade se explicite nas diferenças, tendo por horizonte a promoção de transformações 217 sociais que corrijam discriminações, superem desigualdades e torne o Estado brasileiro efetivamente pluricultural. 218 REFERÊNCIAS ARAUJO, A. V. (org.). Povos indígenas e a lei dos “brancos”: o direito a diferença. Brasília: MEC/SECAD; LACED/Museu Nacional, 2006. ÁRIES, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ANAYA, S. J. Los pueblos indígenas en el derecho internacional. Madrid: Editorial Trotta, 2005. BRASIL. Lei no 8.069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ L8069.htm>. Acesso em: 20 nov. 2011. BAGGIO. A. Psicologia do desenvolvimento. Petrópolis-RJ: Vozes, 1985. BELTRÃO, J. Povos indígenas na Amazônia. Belém: Estudos Amazônicos, 2012. CARNEIRO DA CUNHA, M.; ALMEIDA, M. W. B. Populações Tradicionais e Conservação Ambiental. In: CAPOBIANCO, J. P. R. et al. (orgs.). Biodiversidade amazônica. Avaliação e ações prioritárias para a conservação, uso sustentável e repartição de benefícios. São Paulo: Estação Liberdade; Instituto Socioambiental, 2001. p. 184-193. CINEP. Informativo Povos Indígenas no Brasil. Brasília, 2010. COHN, C. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. COMPARATO, F. K. Afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. GHAI, Y. Globalização, multiculturalismo e direito. In: SANTOS, B. S. (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 555-614. IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico de 2010: primeiras considerações com base no quesito cor e raça. Rio de Janeiro, 2012. 219 KIRSTE, S. A dignidade humana e o conceito de pessoa no direito. In SARLET, I. W. (org.). Dimensões da dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 175-198. KOHAN, W. O. Infância e filosofia. In: SARMENTO, M.; GOUVEA, M. C. S. (orgs.). Estudos da infância: educação e práticas sociais. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008. p. 40-61. LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis-RJ: Vozes, 2011. LITTLE, P. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma Antropologia da Territorialidade. Brasília: UNB, 2002. 32p. (Série Antropológica, n. 322) LUCIANO, G. S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/SECAD; LACED/Museu Nacional, 2006. Disponível em: <http://www.laced.mn.ufrj.br/trilhas/>. Acesso em: 17 jul. 2007. MARÉS, C. F. O renascer dos povos indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá, 2009. MAUSS, M. As técnicas do corpo. In: ______. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EdUSP, 1974. v. 2, p. 209-233. MELO, M. Últimos avanços na justiciabilidade dos direitos indígenas no sistema interamericano de direitos humanos. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 3, n. 4, p. 31-47, 2006. OLIVEIRA, A. C. Direitos e/ou povos e comunidades tradicionais: noções de classificação em disputa. Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba: UFPR, v. 27, p. 71-85, jan-jun. 2013. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/made/article/view/28306/20672>. Acesso em: 12 nov. 2013. ______. Desafios para inclusão dos indígenas crianças nos direitos humanos das crianças. In: OLIVEIRA, A. C; PINHO, V. A. Direitos das crianças e dos adolescentes: violência sexual, medidas socioeducativas, diversidade etnicorraciais e movimentos populares. Belém: Editora Supercores, 2014. p. 227-255. 220 ONU. Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças de 1989. Disponível em: <http://www.unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/convencao_direitos_crianca2004.pdf>. Acesso em: 12 out. 2011. ______. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966. Disponível em: <http://www.operacoesespeciais.com.br/userfiles/PIDCP.pdf>. Acesso em: 12 out. 2011. PACHECO DE OLIVEIRA, J.; FREIRE, C. A. R. A presença indígena na formação do Brasil. Brasília: MEC/SECAD; LACED/MUSEU Nacional, 2006. Disponível também em: <http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/ColET13_Vias02WEB.pdf> Acesso em: 18 out. 2008. RABENHORST, E. R. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001. ROSA, P. C. ‘Eu também sou do mato’: a produção do corpo e da pessoa Kaingang. In: NÚCLEO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS POVOS INDÍGENAS (org.). Povos indígenas na Bacia Hidrografia do Lago Guaíba. Porto Alegre: Prefeitura municipal de Porto Alegre, 2008. p. 109-121. SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006. SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. SARMENTO, M. Visibilidade social e estudo da infância. In: VASCONCELLOS, V. M. R.; SARMENTO, M. (orgs.). Infância (in)visível. Araraquara-SP: Junqueira&Marin, 2007. p. 25-49 SCHRAML, W. Introdução à moderna psicologia do desenvolvimento para educadores. São Paulo: EPU, 1977. 221 SEEGER, A.; DAMATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E. B. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. In: PACHECO DE OLIVEIRA, J. (org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ; Marco Zero, 1987. p. 2-19. SHIRAISHI NETO, J. A Particularização do Universal: povos e comunidades tradicionais face às Declarações e Convenções Internacionais. In: SHIRAISHI NETO, J. (org.). Direitos dos povos e das comunidades tradicionais no Brasil: declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma política nacional. Manaus: UEA, 2007, p. 5-52. Disponível em: <http://www.novacartografiasocial.com/downloads/Livros/livro_docbolso_01.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2013. SILVA, S. B Categorias sócio-cosmológico-identitárias recentes e processos de consolidação de novos sujeitos coletivos de direito: os Charrua e os Xokleng no Rio Grande do Sul. In: NÚCLEO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS POVOS INDÍGENAS. Povos indígenas na Bacia Hidrografia do Lago Guaíba. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2008. SOUZA LIMA, A. C. Cenários da educação superior de indígenas no Brasil, 20042008: as bases e diálogos do Projeto Trilhas do Conhecimento. In: SOUZA LIMA, A. C.; BARROSO, M. M. (orgs.). Povos indígenas e unidade no Brasil: contextos e perspectivas, 2004-2008. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 15-44. TASSINARI, A. Concepções indígenas de infância no Brasil. Revista Tellus, v. 7, n. 13, p. 11-25, 2007. Disponível em: <www.neppi.org/projetos/gera_anexo.php?id=1282>. Acesso em: 18 ago. 2011. TURNER, T. The social skin. In: Not work alone. Londres: Temple Smith, 1980. p. 112-140. TRINDADE, J. Manual de Psicologia Jurídica: para operadores do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 222 YRIGOYEN FAJARDO, R. De la tutela a los derechos de libre determinación del desarrollo, participación, consulta y consentimiento: fundamentos, balances y retos para su implementación. Amazônica: Revista de Antropologia, Belém, v. 1, n. 2, p. 368405, 2009. Disponível <http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/amazonica/article/viewFile/294/459>. Acesso em: 14 nov. 2012. 223 em: SOBRE OS AUTORES Alberto Damasceno Graduado em Arquitetura pela Universidade Federal do Pará (1983), mestre em Educação Escolar Brasileira pela Universidade Federal de Goiás (1991) e doutor em Educação (Currículo) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998), atualmente é professor associado IV da Universidade Federal do Pará, desenvolvendo estudos na área da Educação com ênfase em História da Educação e Planejamento Educacional. Além disso, coordena o Laboratório de Planejamento da Educação Municipal (LAPEM) vinculado ao Instituto de Ciências da Educação da UFPA. Ana Celina Bentes Hamoy Mestra em Direitos Humanos pela UFPA. Especialista em Instituições Jurídicas e sociais da Amazônia pela UFPA, Advogada do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente de Emaús. Membro do Grupo de Pesquisas sobre intervenção Penal e Segurança Pública do programa de pós-graduação do ICED-UFPA, Membro do comitê Nacional de Combate a Tortura, como representante da associação Nacional dos Centros de Defesa. Ana Maria Orlandina Tancredi Carvalho Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Pará (1969), Mestrado em Scienze Dell Educazione Psicopedagogia – Universitá Italiana Degli Studi Di Torino (1976) e Doutorado pela Universidade Estadual de Campinas / São Paulo (2006). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Infantil, atuando principalmente nos seguintes temas: Educação Infantil, creche, políticas públicas para a educação. 224 André Franzini Nascido em Cremona Itália, Educador Social, Assistente Social, Mestrando de Administração, Conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (Conanda), mandatos 2009 a 2014 representando a CNBB/Pastoral do Menor. Coordenador Geral IX Conferência Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (2013), membro da Comissão Intersetorial Federal de Monitoramento do Sinase (2010-2013), Premio Direitos Humanos Cidade Cremona Itália (1997), Prêmio Direitos Humanos OAB/PA 2007. Coordenador Nacional da Pastoral do Menor/CNBB mandato 2015/2017. Educador da Escola de Conselho da UFPA. Assis da Costa Oliveira Professor de Direitos Humanos e coordenador do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento da Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus de Altamira. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA. Secretário de articulação do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Advogado. E-mail: assisdco@gmail. Bruno Sechi Padre Bruno, nasceu na Sardenha – Itália em 1939 e veio bem jovem para o Brasil. É um dos idealizadores do Movimento República de Emaús e também do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua; dedicou grande parte de sua vida à causa da Defesa dos Direitos Humanos e em particular, dos direitos humanos de crianças e adolescentes na Amazônia e no Brasil. Ganhador do Prêmio USP de Direitos Humanos (2004). 225 Carlos Alberto Batista Maciel Assistente social, mestre em Antropologia, doutor em sociologia. Pesquisador da área da família, infância e adolescência. Foi membro da direção do Conselho Federal de Serviço Social no período 1996-1999. Foi presidente do Conselho Estadual de Assistência Social do Estado do Pará no ano de 2007. É Professor da Universidade Federal do Pará desde 1991. Émina Santos Pedagoga e Advogada; Mestre em Educação pela PUC/São Paulo; Doutora em Ciências Sociais e Ambientais pelo NAEA/UFPA; Professora da Universidade Federal do Pará; Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação em Direitos Humanos/GEEDH do Instituto de Ciências da Educação da UFPA; possui como objeto de pesquisa: Direitos Humanos, Educação em Direitos Humanos e Política e Legislação da Educação: coordena projetos de pesquisa e extensão em Educação em Direitos Humanos. Fábio Atanásio de Morais Coordenador do Escritório do UNICEF de Belém. Izabela Jatene de Souza É Professora efetiva da UFPA, da Faculdade de Ciências Sociais desde 1996. Doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-RJ. Mestre em Antropologia pela UFPA e Especialista em Gestão de Projetos Sociais pela FGV. Graduada em Ciências Sociais pela UFPA. Foi idealizadora e coordenadora do Programa ProPaz, e atualmente está Secretária Extraordinária de Estado de Integração de Políticas Sociais do Governo do Estado do Pará. É Membro do Comitê Permanente da América Latina para a Prevenção do Crime do ILANUD - Instituto Latino Americano das Nações Unidas. 226 Luanna Tomaz de Souza Professora de Direitos da Criança e do Adolescente da Universidade Federal do Pará. Doutoranda pela Universidade de Coimbra. Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Pa. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Violência na Amazônia ambos da UFPa. Lúcia Isabel Silva Professora da Faculdade de Educação e do Programa de pós-graduação em Educação da UFPA. Doutora em Teoria e Pesquisa do Comportamento pela Universidade Federal do Pará. Coordena o grupo de Estudos e Pesquisas em Adolescência e Juventude e fatores de vulnerabilidade e proteção. Militante da área dos direitos da Infância, Adolescência e juventude, direitos humanos e políticas públicas. Colaboradora do Instituto Universidade Popular – UNIPOP e membro da Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais Amazônia – SODIREITOS. Nazaré Araújo. Advogada, com especialização em Administração Financeira pela Fundação Getúlio Vargas – RJ (1998), Docência do Ensino Fundamental e Médio – Universidade Cândido Mendes – RJ (2003), Curso de Prevenção ao uso de Drogas – UFSC (2013), Coordenação Administrativo-financeira de diversos Projetos do Programa de Educação Cidadã da Universidade Federal do Pará, na Transamazônica, BR 163 e região Sudeste do Pará (2005 a 2009), Diretora Executiva do Projovem Urbano (2009), Coordenadora 227 Pedagógica do Movimento República de Emaús (2010 a 2012), Coordenadora Geral do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte – PPCAAM, executado pelo Movimento República de Emaús, por meio de convenio firmado com a Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos - SEJUDH e Secretária Executiva da Escola de Conselhos – projeto executado pela Universidade Federal do Pará, em convenio com a Secretaria de Direitos Humanos, que tem por objetivo dar formação continuada aos Conselheiros Tutelares e de Direitos da Amazônia Paraense. Patrícia de Fátima de Carvalho Araújo Promotora de Justiça no Ministério Público do Estado do Para, lotação Ministério Publico de Ananindeua; Pós-graduada Latu sensu em direito da criança e do Adolescente pela Universidade Federal do Para; Pós-graduada Latu sensu em Ciências Penais pela Universidade do Sul de Santa Catarina; Pós-graduada Latu Sensu em Direito Eleitoral pela Universidade Federal do Para. Palestrante no Curso de Atualização sobre o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (Programa MOVER), certificado pela Escola do Governo do Estado do Para e comitê Gestor do PRO PAZ, desde o ano de 2011 a 2014. Salomão Hage Possui graduação em Agronomia (1982) e em Pedagogia (1987); Mestrado em Educação: supervisão e Currículo (1995); Doutorado Sanduiche pela Universidade de Wisconsin-Madison (1999) e doutorado em Educação: currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É professor do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará e docente do Programa de Pós-graduação em Educação e do Programa de Linguagens e Saberes da Amazônia. É bolsista produtividade de CNPq. Coordena o Grupode de Estudo e Pesquisa em Educação do Campo na Amazônia; integra a coordenação do Fórum Paraense de Educação do Campo e coordena a Escola de Conselhos – Pará: núcleo de formação continuada de conselheiros tutelares e de direitos da Amazônia paraense. 228 Suzany Brasil Licenciada Plena em Letras pela Universidade Federal do Pará. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera Uniderp. Possui interesse em leituras, pesquisas, estudos e práticas voltadas para a efetivação dos direitos humanos de crianças e adolescentes, assim como literatura e artes. Valdemir Monteiro Corrêa Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Pará e pós-graduação pela Universidade de Brasília em Serviço Social e Política Social e pela Escola de Governo do Estado do Pará em Gestão em Planejamento em Defesa Social. Possui experiência na área de Serviço Social, com ênfase em Serviço Social Aplicado, atuando nos seguintes temas: trabalhos em grupo e individual, captação de recursos e gestão de projetos. Além de planejamento, orçamento e gestão governamental e na área de segurança pública e defesa social. 229 230 231 232