נחום מנדל
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נחום מנדל
Nahum Mandel Testemunho de um sonho (Brasil, 1935-1948) 2009 239 Testemenho de um Sonho (Brasil – 1935-1948) Copyright © Nahum Mandel (2009) ISBN 978-965-90889-5-6 Todos os direitos reservados Permitido copiar até 5 linhas, citando da origem. Reprodução de textos maiores e de fotos exigem autorização do Autor. Kiburz Gaash, ISRAEL 2009 2 Dedico este livro a meus companheiros de sonho. Uns o realizaram, outros não. Entretanto, todos vivem em minha memória e no meu coração. N.M 3 Agradecimentos Graças às caprichosas revisões de meu primo Arnaldo Mandel e de meus amigos Etel Sara Wengier e Norberto Freund, o português deste livro é legível. Merecido beijo à minha esposa e companheira Shoshana, pela esmerada revisão ortográfica final. N.M. 4 Prefácio Historia é o que os historiadores escrevem. O que não está escrito na História – naõ aconteceu! (Nahum Mandel, "Autobiosophia"[1]) Martin Lutero King disse "eu tenho um sonho". Também eu fui um sonhador, e creio que ainda sou. Grande parte de meus sonhos, realizei: o relato deste livro, além de meu tesemunho pessoal, reflete a minha geração, que presenciou os dois eventos mais dramáticos da Histótia dos judeus na época moderna – o Holocausto e a declaração do Estado de Israel. Estatisticamente são raros os que se dão ao trabalho de documentar e escrever memórias do que presenciaram ao longo de suas vidas. Me incluo nesta minoria. Desde meus catorze anos, coleciono todos papeizinhos que dizem respeito a meus passos e desta maneira escrevi 6 livros, dos quais publiquei 4[2]. Este será o quinto. Este livro não é uma monografia, nem pretende ser um documento histórico-acadêmico. Que importância isto tem? Em minha opinião nenhum historiador é imparcial, uma vez que para redigir a História que ele relata, seleciona dentre os documentos que dispõe os que obedecem aos seus critérios. Cada um puxa a brasa para sua sardinha... Na Antiguidade, faraós e monarcas mantinham escrivãos a fim de perpetuarem seus feitos e biografias. Raros líderes, como Júlio César, escreveram por si suas memórias. Na época moderna Lénin, Winston Churchill, Charles De Gaulle, David Ben Gurion. Moshe Sharet, Henry Kíssinger, Bill Clinton e outros estadistas 5 anotaram suas atuações e os acontecimentos em diários, publicados posteriormente. Atualmente, não somente estadistas escrevem memórias – também o Zé povinho. Se todo historiador escreve a "sua" História, também eu quero escrever a minha. Quem sou eu para escrever "historia"? Um escrevinhador grafo-maníaco, alguém que sem ser escritor, gosta de escrever... Não anotei o decorrer do que presenciei e aqui descrevo, de forma que neste livro relato apenas o que me lembro, testemunhei ou tenho informação fidedigna. Dou minha palavra de honra que envidarei esforços em ser honesto e me referirei somente ao que me recordo perfeitamente, fatos documentados no meu arquivo pessoal ou que escrevi há 30 anos em meu livro "Mischak Ieladim?". Costumo comparar a narração de acontecimentos aos relatos do acidente de um carro – dependem de onde se encontrava quem o relata. Neste meu livro, fui o motorista na maior parte das narrativas; noutros, apenas estive dentro do carro: em outros, presenciei o acidente de fora do carro, e finalmente: certos relatos (figuram geralmente com letras menores) resultam de pesquisas que efetuei, as vezes anos depois de terem acontecido. No entanto, mesmo tendo uma recordação lúcida do passado, lapsos de memória podem ocorrer: encontrei no meu arquivo particular cartas datadas de 1945 do Hashomer Hatzair de São Paulo, onde está impresso o endereço de sua sede – Rua Paula Sousa 193 – e por mais que me esforce, nem sequer faço a mínima idéia de onde fica tal rua... (Já a localizei pela Google. NM) * 6 Estou consciente que me expresso com certa verve satírica (jamais sarcástica!). Me dou o direito de gozar um pouco de minhas vivências do passado – afinal das contas, no que me aguarda o futuro não vejo nada engraçado... Se alguém aproveitar o conteúdo deste relato, me sentirei compensado pelo trabalho que nele investi. N.M. Kibutz Gaash, 30/7/2009 [1] 1) "Autobiosophy" , livro em inglês de Nahum Mandel, sumário em 18 capítulos de meus pensamentos de judeu agnóstico, publicado em Londres pela editora Minerva-Press (2001). Segunda edição - Tel-Aviv (2007). [2] Os demais livros, todos em hebraico, foram publicados em Tel-Aviv: 2) "Mischak Ieladim?" (Brinquedo de crianças? – 2003), biografia ate 1951. 3) "Em seu kibutz não foi profeta" (2007), continuação do livro anterior. Edição ultra-restrita, não à venda. 4) "Construa sua casa" (2008), conselhos práticos para quem pretende construir casa, desprovido de experiência anterior. Durante sessenta anos minha profissão foi o planejamento e construção de casas. 7 Índice Capítulo 1 – Cronologia, 9 Capítulo 2 – O cenário: o bairro Bom Retiro, 13 Capítulo 3 – Meu tio Urtzi, 20 Capítulo 4 – Os "Shomer"es de São Paulo, 31 Capítulo 5 – O Departamento Juvenil, 51 Capítulo 6 – O Hashomer Hatzair, 82 Capítulo 7 – Hashomer Hatzair no Brasil, 116 Capítulo 8 – Avalanche de shlichim (emissários), 130 Capítulo 9 – Ressurgimento do Hashomer no Rio, 145 Capítulo 10 – Depois da moshavá, 458 Capítulo 11 – 1948 – grandes acontecimentos, 179 Capítulo 12 – Final holywoodiano, 202 Apêndice Atualização de nomes e sobrenomes, 234 Glossário dos termos hebraicos. 255 8 Capítulo 1 – Cronologia 27-4-1927. Nasci em Luck, província Wohlyn da Polônia, cidade atualmente pertencente à Ucrâiína, que mudou seu nome para Lutzk. 1929. Nasce minha irmã Rosa e algumas semanas depois nosso pai Mojsze Lejb Mandel (ele sempre assinou desta maneira, em polonês) emigrou ao Brasil com o irmão Shaique (aportuguesou para Isaías), a fim de melhorarem a condição de vida. 1930. Minha mãe Mirl (Maria no Brasil, Miriam em Israel) recebe de papai carta de chamada (com passagem de navio, naturalmente) e ruma com seus dois rebentos em direção ao Brasil. 1933. Urtzi (Uron) Mandel recebe chamada e passagem de seus irmãos no Brasil, e se junta a eles. 1935. Os três irmãos chamam seus pais, meus avós, Malka e Avrum (Abraão) Mandel, que partem ao Brasil com as filhas – Dintze (Dina), Guita e Branca. 9 Os irmãos continuam a mandar cartas de chamadas e passagens para parentes, mas somente Niúma Berger, sobrinho de vovó Malka, aproveitou esta oportunidade. Os demais parentes (os que não fugiram para a União Soviética) terminaram seus dias em uma vala-comum nas redondezas da cidade, fuzilados pelos nazistas. 1935. Urtzi vem morar com os pais em São Paulo. Pertencia na Polônia ao movimento juvenil judaico Hashomer Hatzair, e junto com amigos sionistas como ele próprio fundam o "Shomer", que funncionou por cerca de três anos, até que o DOPS o fechou. 1937. Meus pais se mudam para São Paulo, para viverem próximos a seus pais, meus avós, após terem residido em Matão (1930), Gália (1931-2), Taquaritinga (1933-6) e no ano de 1937 nas cidades de Araraquara, São Carlos, Sorocaba, Campinas e finalmente atingimos a meta – São Paulo. Minhas tribulações de "judeu errante" terminaram em Israel ao chegar em 1951 no kibutz Gaash, onde me fixei e ao que tudo indica, algum dia nele descansarei eternamente em berço esplêndido, perto dos túmulos de meus pais... 10 1939. Participo das atividades que aconteciam aos domingos de tarde na Escola Renascença (Hatechiá, em hebraico). Não sei como começaram, nem por que terminaram. 1940. Minha Bar-Mitzvá, data comemorada no quintal da casa de meus avós, com um almoço festivo de 200 convidados. 1943. Começo a freqüentar reuniões semanais de jovens judeus que se reuniam no Centro Hebreu Brasileiro, que em 1944 passou a ser o seu Departamento Juvenil, do qual fui eleito por aclamação Presidente-fundador (era este o título que recebi...). 1944. Realiza-se uma moshavá, acampamento de férias, em uma fazenda em Desvio Ribas (Paraná). A diretoria do Centro financiou a minha participação e mais de dois chaverim (companheiros) do Departamento. 1945. Abandono o Departamento para fundar com mais dois amigos (Amnon Yampolski e Moisés Stroich) e meu tio Urtzi o Hashomer Hatzair em São Paulo, 11 onde recebi o cargo de mazkir (secretário-técnico) da Moatzá (a direção central). 25 de Dezembro de 1945, às 10 horas da manhã, no teatro da sede social do Clube Macabi. é fundado oficialmente o Hashomer Hatzair do Brasil. 18.7.1948. Meu casamento com a "Suzana da Bahia", Suzana (Shoshana em Israel) Spilberg. Em menos de uma semana partimos, como voluntários ao Exército de Defesa de Israel na Guerra de Libertação, para a nossa lua-de-mel em Israel. * Este é o sumário do que relato neste livro. Como exposto no Prefácio, esta narrativa, sem ser tradução de meu livro em hebraico "Mischak Ieladim??" (Brinquedo de Crianças?), é nele baseada. Friso de novo, insistentemente, que sendo minhas memórias, abordo nele somente o que se refere às atividades sionistas no Brasil nas quais participei, ou delas tive notícias fidedignas. Evitarei me referir a fatos que não se enquadram nestes parâmetros. * Não posso evitar o uso do palavreado portuguêshebraizado que usávamos em nossa vida sionista quotidiana. Para facilitar aos leitores a compreensão das palavras hebraicas que desconhecem, acrescento um glossário no final do livro. 12 Capítulo 2 – O cenário: o bairro Bom Retiro A nossa casa Quando nos radicamos em São Paulo, onde fomos morar? Logicamente no Bom Retiro, o bairro dos judeus! Nossa casa ficava no final da Rua José Paulino, no meio do trecho entre a Rua Júlio Conceição e as ruas Tenente Pena e Areal. Lógico por dois motivos: para estar próximos de meus avós, que residiam na Rua da Graça 450, e porque, como se dizia à boca pequena, o Bom Retiro gozava da preferência dos imigrantes – judeus, italianos e portugueses – devido a proximidade da Estação da Luz, pela qual eles, os imigrantes, chegavam à "Cidade da garoa". A nossa casa era estreita e comprida, com um corredor externo cimentado, ao longo do prédio. Na frente, um salão ocupava metade da casa, e depois vinha o quarto de meus pais, o quarto que eu partilhava com minha irmã (até meu casamento dormimos sempre no mesmo quarto), sala de jantar, cozinha e no final um quintalzinho com um quartinho dividido em duas partes; uma servia de depósito e dispensa, e a outra, para a instalação sanitária. Para chegar ao "banheiro" desde o salão na entrada, onde papai montou a loja e a oficina de pulôveres, era necessário atravessar todos os quartos, de um a outro, ou percorrer o corredor externo sem telhado. Depois das moradias anteriores, para mim a casa era um palácio. * Lembro-me da Farmácia D´Amato em frente de nossa 13 casa, e ao seu lado a confeitaria-padaria de uma família italiana, cuja filha Artemisa era a melhor amiga de infância de minha irmã. Ocupando a esquina com a Rua Júlio Conceição, ficava o grande Empório Pimentel português. No sobrado vizinho morava a família Goberstein. A filha mais velha Marta foi amiga íntima de minha irmã. Sua vinda a Israel não interrompeu o contato entre elas, que se corresponderam por cartas até o falecimento de Marta. Por falar em minha irmã Rosinha, como era chamada, não posso deixar de comentar: eu era um menino caseiro, não tinha amigos, não ia à casa de ninguém e nenhum menino vinha à minha. Nem me lembro de ter algum dia entrado na casa de algum aluno de minha classe da escola. Estava sempre ocupado com meus pensamentos e invenções. Em sumo, um sonhador! Rosinha, ao contrário de mim, passava o dia inteiro na rua, brincando com a molecada. Era a melhor jogadora de futebol "bola de pano" do quarteirão. Pequena e danadinha, ninguém podia com ela, a única menina no time e quem marcava a maioria dos gols. Capitã do quadro, sem ela não havia jogo na nossa vizinhança. Em resumo, tivemos uma infância maravilhosa. Cada um à sua maneira. A casa de meus avós A casa de meus avós, na Rua da Graça 450, tinha uma sala bem espaçosa na entrada, vários quartos pequenos, 14 cozinha e um quintal enorme (aos meus olhos), que vovô transformou em um pomar maravilhoso. No centro, vovô plantou um abacateiro que se desenvolveu em uma árvore frondosa, carregada de frutos. Na parte de trás, um pequeno vinhedo, que lhe fornecia as uvas necessárias para o preparo do vinho que consumia ou precisava, especialmente para o Seder Pesach. Uma delicia! Foi nesse quintal que festejaram minha bar-mitzva. Por ser o neto primogênito, a festança foi a maior que aconteceu até então em nossa família; nem os casamentos de minhas tias foram tão pomposas. Foi servido um almoço para mais de 200 convidados: guifilte-fish, sopa de galinha com macarrão, kreplech de batatas. A sobremesa: compota de ameixas e shtrudel de maçã. Menú idish classico, tudo preparado por Mamãe e Vovó. * A casa de meus avós representou um papel importante em minha vida. Gostava muita de freqüentá-la, para brincar no quintal, trepar no abacateiro e assistir as sessões do "parlamento". Como consta no capítulo "Cronologia", meu tio Urtzi morava na casa de meus avós, o último a morar com eles, pois as filhas à medida que se casavam, voavam para seus próprios ninhos. Havia um inquilino, Natan Bar, jovem imigrante da Polônia, que ocupava um 15 quartinho sem janelas, que alugou. Meus avós o hospedaram mais por consideração (não tinha parentes no Brasil) do que pelo aluguel. Era tratado como membro da família e como tal ele se comportava. Em meados da década de 1960, Natan e sua esposa me apareceram no kibutz Gaash. Vieram viver perto de uma filha em Natânia. Natan não se adaptou ao país e regressou ao Brasil. Urtzi e o trio de amigos com quem conviveu dezenas de anos - Noach Feiguelman, Itzik (Isaac) Ostrowski e Emilio Blay – se encontravam quase que diariamente à noitinha na casa de meus avós, para analisar e solucionar os problemas do mundo, com a participação ativa de meu avô... Devo salientar que os debates eram em idish, a língua-franca em nossa família. Meus avós e minha mãe jamais aprenderam o português e meu pai falava um português de gringo. Fato admirável: jamais ouvi os "parlamentares" se referirem à Eretz-Israel, apesar de todos serem sionistas fervorosos ligados ao Hashomer Hatzair. Estranho! De comentários sobre judeus na Europa me lembro somente após a conquista da Polônia por Hitler, em 1939. Lembro-me perfeitamente como acompanhavam o desenrolar da Guerra Civil Espanhola. Eu não sabia nomes de jogadores de futebol (imaginem só!), nem de artistas de cinema, mas estava familiarizado com os nomes de Franco, La Passionária, Leon Blum e outros personagens da política internacional da época. Meu avô Avrum era uma pessoa muito interessante (para mim, pelo menos). Muito religioso, ia diariamente a todas as rezas no shil (sinagoga), que ficava no sobrado 16 da casa na esquina das ruas da Graça e Correa dos Santos (hoje Rua Lubavich). Vovô não era fanático. Muito pelo contrário, era simpático e calmo – verdadeiro humanista. Passava horas lendo jornais em idish. Baixinho, com barba negra curta bem aparada. Quando jovem sofreu um acidente e ficou aleijado. Mancava, apoiado em uma bengala. Meu avô constituia um manancial inesgotável de historietas, lendas e fábulas judaicas. Jamais esqueço seus contos sobre Hershele Ostropoler (figura proeminente do humor judaico, equivalente a Nassera´Din, Til Eulenspigel e Barão de Munchausen), de Baal Shem Tov e da Hagadá (a parte não legalista do Talmud, contendo entre outros assuntos inúmeras lendas). A casa em frente Um belo dia, aos meus onze anos, meu tio Utzi me levou a uma casa bem em frente da casa de meus avós. Casa bem simples, de fachada como as de todas da vizinhança. Nada de especial. Na entrada, uma saleta e vários quartos ao longo de um corredor – não sei quantos, porque nunca fui além do primeiro cômodo, com umas dez cadeiras dispostas em círculo. Não me recordo da presença de outros móveis. Meu tio me indicou uma cadeira desocupada e me sentei ao lado de outras crianças, de idades aproximadas à minha. Um adulto, que chamavam de menahel (dirigente, em hebraico), dirigia a sessão – sichá (conversação em hebraico). Este adulto, Noach Feiguelman, era um dos frequentadores assíduos do 17 "parlamento" do vovô, o que me fez com que me sentisse mais a vontade. A atividade do grupo, inteiramente em idish, era realizada como um ritual: no começo se cantava – "Az der Rebe Elimelech is guevoren zeir freilich...", "Reisele", "Tumba-la-laika...", "Bin ich mir a chuletzl" e outras canções em idish. A canção "Zei vi di shterendlech zei blishtshen, zei blinken... (Veja como as estrelinhas brilham, piscam...)" eu não conhecia anteriormente e gostei muito dela. Penso que das canções que cantávamos era a única revolucionária, inspirada em ideais socialistas. Depois de cinco ou seis canções vinham as brincadeiras de salão: palavra complicada que se sussurava no ouvido do vizinho e o ultimo da fila revelava o que ouviu, em geral palavra diferente da inicial. Era muito gozado. Os "jogos de Kim" entusiasmavam o pessoal. Por exemplo, o menahel colocava vários objetos no chão e após observados durante um minuto, eram cobertos com jornal e cada um escrevia em papelzinho a lista dos objetos que lembrava. Outro exemplo: alguém dizia o nome de um país. O vizinho o repetia e acrescentava outro, e assim por diante, até que ninguém mais fosse capaz de continuar. A variedade de jogos era grande. Por fim vinha o conto: Noach lia uma história de um livro em idish, geralmente de Yehuda Leib Peretz – como a famosa "Três Prendas" – e orientava o debate sobre o assunto. De vez em quando saíamos aos Domingos a um piquenique (que chamavam haflagá - excursão) a Tremembé, Horto Florestal ou Interlagos. Eu apreciava a 18 viagem no trenzinho da Cantareira. Sair ao campo era para mim uma vivência emocionante. Cada um trazia sua merenda, mas todas eram misturadas para a refeição coletiva. Eu achava esse procedimento natural e justo. Eu aguardava com ansiedade estes encontros, os únicos com amigos de minha idade. Certa tarde, fui para a sichá e deparei a porta da casa entreaberta e todos os quartos completamente vazios, sem cadeiras e sem nada. Meninos da vizinhança me informaram que vieram uns homens com um caminhão e carregaram tudo que havia na casa. Muitos anos se passaram até que eu soubesse que foi o DOPS que "fechou o negócio" e confiscou tudo, inclusive os menahelim. Depois de intenso interrogatório foram libertados, após serem advertidos da proibição de mais de três pessoas se reunirem sem a autorização prévia da Polícia. Assim terminou o primeiro "Shomer" em São Paulo. Houve tentativas de ressuscitá-lo, o que aconteceu finalmente no ano de 1945, com a democratização do Brasil, no final da Segunda Guerra Mundial. 19 1936 – Chegamos a São Paulo. Î Capítulo 3 – Meu tio Urtzi Decidi dedicar este capítulo ao meu tio Urtzi z"l (z"l acrônimo hebraico de "seja abençoada sua memória ", usado pelo judeus após nomes de falecidos). Ele merece! Ele merece pela influência que exerceu em minha trajetória ao Hashomer Hatzair, à Eretz-Israel e ao kibutz. Não sei se devo agradecer-lhe ou lamentar por isso – por sua causa desisti de meus estudos de engenharia na Escola Politécnica e renunciei a uma carreira de sucesso profissional e econômico, a exemplo dos colegas judeus de minha classe no ginásio... O fato está consumado e em nenhum momento me arrependo do meu caminho! Urtzi (Uron Mandel) nasceu em 1914 na minha cidade natal Luck. Não sei a que grau de instrução alcançou, além do "cheider" (escola primária tradicional de judeus na Europa Oriental). Imagino que não tinha frequentado o ginásio, pois seus pais, meus avós, não possuíam recursos para tal. Contou-me que aos 12 anos ingressou no Hashomer Hatzair, movimento juvenil sionistasocialista que brotou na Europa nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, influenciado pelo escotismo de BadenPowell, o socialismo dos movimentos revolucionários Naródnaya Vólia (Rússia) e Wandervogel (Alemanha) e optou pelo Sionismo como solução política para o problema judeu. A identificação de Urtzi com os ideais shômricos foi absoluta e não se separou deles até o último momento de sua vida. Em 1933 se juntou à hachshará (campo de preparação agrícola para o kibutz em Eretz-Israel) El-Al e como não 20 tinha chance de conseguir em tempo razoável "certificat" para "fazer aliá" (ascender – emigrar para Palestina) e como seus pais e irmãs se preparavam para vir ao Brasil, recebeu do movimento licença oficial por escrito de viajar temporariamente ao Brasil – documento com o selo do Keren Hashomer e o carimbo do símbolo do Hashomer Hatzair, assinada por Aaron Fucs. Urtzi guardava cuidadosamente esse papelzinho, sua maior relíquia, junto com sua carteira de identidade. Aaron Fucs, menahel de Urtzi, foi um dos fundadores do Hashomer Hatzair em Luck, Mais tarde tornouse Aaron Efrat, um dos principais dirigentes do movimento e do Partido Mapam em Israel, membro da Knesset e líder da Histadrut ha´Ovdim. Eu o conheci quando cheguei a Israel e ele era mazkir (secretário) de seu kibutz Ein Hashofet. Trinta anos depois, submeti à sua opinião um copidesque de "Mischak Ieladim?", como fiz com a maioria das pessoa as quais me referi no livro, e ele por própria iniciativa escreveu o prefácio que publiquei. Outra preciosidade para Urtzi era o distintivo de boguer (veterano. a categoria adulta do Hashomer Hatzair), que recebeu no dia 10-011933,. em Varsóvia, com o número 3579. Emblema em formato de flor-de-lis ladeada de louros, com o lema "Chazak v´Ematz" ("Força e coragem", saudação bíblica com 21 que Moisés elege a Josué. filho de Nun), tudo sobre um fundo veludo vermelho. Urtzi ostentava o distintivo na lapela em todas as ocasiões festivas que participava. do movimento e da coletividade judaica. Ao chegar ao Brasil morava em Bariri. Urtzi prendeu seu emblema orgulhosamente na lapela da camisa, mas teve que retirálo, pois os goim (não judeus) o julgaram agente da Polícia Secreta... * Qual era a qualidade predominante em Urtzi? Sem titubear nem pestanejar, eu responderia imediatamente "fidelidade incondicional aos amigos". Um exemplo, que testemunhei de perto, foram as relações entre Urtzi e Isaac Takser, amigos desde o movimento na Polônia. Quando em 1945 reorganizamos o movimento em São Paulo, Urtzi me aconselhou a convencer a Takser a colaborar conosco, apesar de que naquela época ele estava completamente desligado do grupo dos antigos shomrim. Takser acabou participando na Moatzá (conselho, em hebraico – como inicialmente denominamos a direção do movimento) e rapidamente se tornou sua autoridade ideológica. Nas reuniões da Moatzá Takser não perdia nenhuma oportunidade de "cutucar" tudo que Urtzi dizia e em inúmeras de nossas conversas em particular (como secretário - com "s" minúsculo - da direção, eu me consultava com ele frequentemente), Takser sempre se referia a Urtzi como "o seu tio", com certo sarcasmo. Por outro lado, nunca ouvi de Urtzi uma única palavra de desprezo à respeito 22 de Takser. Takser foi ativo no Partido Mapam de São Paulo, mas devido a seu temperamento caprichoso acabou brigando com todo o mundo. Quando faleceu, Urtzi foi o único membro do Mapam a comparecer a seu enterro. Urtzi não sabia o que era rancor ou vingança. Ingenuidade? Talvez. Bondade vem sempre entrelaçada com ingenuidade. Certa vez, meu pai bronqueou com Urtzi, seu irmão mais jovem, "porque não pensa em se casar e se preocupar com o futuro, ao invés de perder tempo com amigos e kule-gesheften (em idish negócios da kehilá, coletividade)". Urtzi se ofendeu e durante anos não falou com Papai. Entretanto, jamais percebi em nossas inúmeras conversas a menor hostilidade ou zanga a meu pai. Urtzi tinha seus orgulhos e vaidades, mas nada contra ninguém. * Quando organizamos em São Paulo o primeiro garin aliá (grupo que emigra para Israel). Urtzi foi o único dos antigos shomrim ligados ao movimento que levou a sério a hagshamá atzmit (auto-realização, emigração para Israel – mandamento-máximo no Hashomer Hatzair). Aderiu ao grupo e encaminhou-se ao Kibutz Ruchama, onde viviam seus chaverim (companheiros) de Luck. Eu e minha Shoshana vivemos em Ruchama de 1948 a 1951 (relato o evento em minhas memórias em hebraico). Urtzi foi muito bem recebido pelos seus antigos chaverim e se tornou o pivô em todos os encontros sociais deles. Ele vinha "armado" do seu inseparável bandolim e animava as festinhas, arrastando com seu entusiasmo contagiante todos a cantar. 23 Urtzi trabalhou em Ruchama com Aaron Charnash (pessoa fascinante, por duas vezes shaliach em São Paulo) na plantação, irrigação e transporte de forragem e alfafa para os estábulos das vacas. Tarefa fatigante e de muita responsabilidade, que Urtzi cumpria com orgulho. Em uma de minhas conversas costumeiras com Yossef, o secretário de Ruchama, falei das qualidades excepcionais de Urtzi como empreendedor e organizador, e lhe aconselhei que o nomeassem representante da fábrica de escovas do kibutz, ou pelo menos como o encarregado das compras do kibutz. Em minha opinião, uma pessoa como Urtzi estava sendo desperdiçada mo kibutz. Tudo indica que não o convenci, e Ruchama não sabe o que perdeu. Yossef Shamir, secretário de Ruchama, foi companheiro de Mordechai Anielevich (o comandante da Revolta do Gueto de Varsóvia em 1943) na última Hanagá Rashit (Direção Central) do Hashomer Hatzair na Polônia. Intelectual e filósofo, a autoridade máxima em marxismo da tnuá (movimento), autor do livro "Materialismodialético" e conferencista sobre marxismo no seminário ideológico de Guivat Haviva. Pessoa interessante, com quem tive grande amizade, apesar da diferença de idades. Em troca Urtzi foi designado para ser motorista do 24 caminhão do kibutz, função que desempenhou com dedicação e eficiência. Tenho a impressão que o Urtzi era querido e respeitado no kibutz, entretanto não souberam avaliar suas qualidades. Uma noite, em que Urtzi foi shomer-laila (guardanoturno), ele ouviu uns ruídos estranhos, correu até o chadar haóchel (refeitório) e bateu insistentemente com o martelo no tubo de ferro pendurado na entrada. Num piscar de olhos se reuniram a seu redor quase todos os membros do kibutz – a maioria dos homens, armados de espingardas. Urtzi disse que ouviu ruídos suspeitos. O responsável pela segurança elogiou sua vigilância e o aconselhou a não acionar o alarme por causa de ruídos. Pela manhã, encontraram no depósito do estábulo restos de pita (pão árabe) e outros vestígios de estranhos que ali comeram, e descobriram um rombo na cerca de arame farpado que rodeava o kibutz. Armas e outros utensílios foram roubados de armários localizados nas varandas das casas do kibutz. Na época, feddayim, terroristas árabes, invadiam habitações com o intuito de assassinar judeus. Ninguém caçoou mais do Urtzi. * Quando veio à Israel, Urtzi deixou uma namorada em São Paulo, Freida (Frida) Roitman, que não concordou em separar-se da família. Em 1952 Urtzi voltou ao Brasil para se casar com ela. Frida foi uma esposa e mãe dedicada. A caçula deles é a Mônica, mulher simpática, mãe de dois filhos, e o primogênito, Arnaldo Mandel, professor de matemática na USP, herdou as boas qualidades do pai e com seus estudos completou o que a 25 ele faltava: a instrução! Urtzi não teve possibilidades de estudar e não aprendeu português em faculdade, e nem sequer em ginásio, o que não o impedia do uso frequente de palavras "difíceis", cujo significado exato suspeito que não conhecia. Parafraseando o ditado "Deus escreve reto com linhas tortas", eu diria que Urtzi falava certo com português errado... Dai em diante não testemunhei pessoalmente as sua atividades, porém seus feitos estão registrados nos anais da coletividade judaica de São Paulo. * Não seria eu a pessoa mais indicada para avaliar meu tio Urtzi, pois jamais seria objetivo, devido à minha empatia por ele. Urtzi foi meu tio dileto e antes de mais nada, um amigo. Antes de escrever este capítulo folheei em meu arquivo pessoal a documentação na pasta dos recortes de jornais e cópias das cartas que me mandava. Ao invés de caracterizar sua personalidade, transcrevo a seguir trechos de artigos, publicados por ocasião de seu sexagésimo e octogésimo aniversários, ou proferidos na homenagem póstuma que a coletividade judaica de São Paulo lhe promoveu. Ao contrário do que geralmente acontece nestas oportunidades, não são exageros! Trechos escolhidos "Com o incrível e sempre sorridente Uron, jovem em seus ativos 86 anos até o último momento, vai embora um pedaço e um personagem riquíssimo da História do Judaísmo brasileiro e em geral, da cultura idish, da qual Urtzi era umbilicalmente ligado, e do sionismo progressista brasileiro e israelense", Sylvio Band 26 "Ao fazer 80 anos, dirigentes comunitários, autoridades, e principalmente amigos, comemoraram mais um aniversário de Uron. Várias homenagens foram prestadas a ele, e músicos de projeção da comunidade fizeram o show. Mas quem é este senhor baixinho, de fala rápida e energética, que conquistou e ainda conquista um lugar de tanto destaque na comunidade?", trecho de longo artigo "Os 80 anos do jovem Uron" de Cindy Wilk, revista A Hebraica nº 341, Set. 1984. "É dentro dele mesmo que Uron encontra esta energia", Rodolfo Konder. Secretário municipal de cultura. (Na mesma revista) "Uron Mandel na comunidade é mais conhecido do que 27 Pelé", Leon Feffer, consul-honorário de Israel no Brasil. (Na mesma revista) "Esta é a quarta vez que Uron completa 20 anos", Salomão Schwartzman, diretor da Manchete. (Na mesma revista) "... diretor de um dos mais importantes departamentos da Associação Brasileira A Hebraica, e também como idealizador da única universidade popular dedicada ao cultivo da língua idish", Felícia Najman, Rezenha Judaica , 60-9-1971. "... quando entrei no Salão Adolpho Bloch para participar da festa da comunidade em homenagem ao grande líder e amigo Uron Mandel, foi como se entrasse num livro de História da comunidade judaica paulista.", Nissim Hamaoui, Semana Judaica, Dezembro 2000. Currículo de vida A transcrição do currículo dos 86 anos da vida de Uron Mandel, preencheria muitas páginas. Contentar-me-ei com o registro de alguns marcos significativos: 1926. Ingressa no Hashomer Hatzair em Luck. 1930. Nomeado madrich (monitor) de 60 jovens entre 9 a 12 anos. Parte deles incorporaram o kibutz Messilot. 28 1932. Ingressa na hachshará (campo de preparação para o kibutz em Eretz-Israel) "El-Al". Um ano mais tarde se junta ao Brasil aos irmãos, com licença do movimento. 1935 – Um dos fundadores e principais ativistas do primeiro Hashomer Hatzai em São Paulo. 29 1944. Participou da organização da segunda moshavá no Brasil, realizada na fazenda do sr. Vaingart. 1945. Presidente do "Wohliner Farein". Diretor do grêmio Renascença no Clube Macabi. Um dos fundadores em São Paulo do Hashomer Hatzair do Brasil. 1948. Único adulto do Hashomer Hatzair de São Paulo no garin-aliá (grupo para imigrar a Israel). Ele se dirigiu ao kibutz Ruchama, de companheiros seus de Luck. 1952. Volta ao Brasil para se casar com Freida (Frida) Roitman e retorna ao ativismo no Keren Hayessod, Keren Kayemet le´Israel e Mapam de São Paulo. 1965. Diretor-superintendente do jornal Al-Hamishmar do Brasil, responsável pelo seu financiamento. 1968. Fundador e "Reitor" (como era denominado pelos amigos) da Universidade Popular da Língua Idish, na Associação Brasileira "A Hebraica" de São Paulo. Para as aulas dominicais que semanalmente ocorriam no clube, chegou a trazer conferencistas especiais dos Estados Unidos. Um dos conferencistas que mobilizou foi o renomado idishista Meir Kucinski. 1972. Nomeado Secretário do Mapam em São Paulo, e mais tarde de todo o Brasil, foi por duas vezes enviado como representante do partido a Congressos Sionistas em Jerusalém. 30 16-3-1990. Urtzi enviuvou de Frida, sua esposa e companheira da vida. 10-10-2001. Urtzi (Uron Mandel) falece repentinamente, justo quando se preparava para outra visita à Israel. Deixou dois filhos, Arnaldo e Mônica, e dois netos, Marcos e André Veitman. Creio que é suficiente para ter imagem de sua atuação. * A Urtzi se aplicaria a famosa frase de Yehuda Halevy (1075–1141), o poeta da "Era de Ouro" dos judeus da Espanha, "estou no Ocidente e meu coração, no Oriente." 31 Capítulo 4 – Fases do "Shomer" de São Paulo O "Shomer" de 1935 No item "A casa em frente" do capítulo 2 relato as recordações, até hoje gravadas fortemente em minha memória, das minhas vivências na organização juvenil judaica para a qual meu tio Urtzi me trouxe em 1937. Somente após muitos anos fiquei sabendo que se tratava da sede do movimento sionista "Hashomer Hatzair de São Paulo". Eu gostava muito de frequentar as reuniões monitoradas em idish por Noach Foiguelman, cantar as canções, participar dos jogos, ouvir historietas e acompanhar os debates por elas provocadas e finalmente, as haflagot (excursões) ao campo. Era para mim evidente que se tratava de atividade judaica, mas não fazia a menor idéia de seus objetivos ideológicos. Não me recordo de ter ouvido nas reuniões as palavras "socialismo", "sionismo", "Eretz Israel" ou "Hashomer Hatzair". Conjeturo hoje que minha kvutzá era jovem demais e que os grupos mais idosos sim abordavam temas ideológicos e políticos. Frequentei as reuniões durante uns dois meses, até que – como já relatei – veio o DOPS e acabou com tudo. De minhas investigações posteriores fiquei sabendo que o "Shomer", como chamávamos a organização (recordome que usávava a expressão "vou ao Shomer"), começou a funcionar em 1935, exatamente com a vinda de meu tio Urtzi à São Paulo da cidade de Bariri, onde morava com o irmão Shaique, que tinha ali uma lojinha de armarinhos, na única rua comercial da cidadezinha. 32 Não sei dizer se a iniciativa foi do Urtzi, mas ele foi sem dúvida um dos fundadores e principais ativistas. Não tenho conhecimento do que sucedeu, além do que Urtzi me contou e o que se pode deduzir das poucas fotografias que me deu. Relatarei dois episódios. O primeiro, que Urtzi me contou dramaticamente: em 1936(?) aconteceu em São Paulo, no que viria a se tornar o Parque de Ibirapuera, Jamboree Internacional de Escoteiros, com acampamentos de delegações de quase todo o mundo. Até da longinqua Austrália compareceu uma tropa de escoteiros. Ao anoitecer, as delegações apresentaram danças e canções folclóricas de seus países. Em seu turno, o Hashomer Hatzair acendeu uma fogueira no centro do terreiro e dançaram em volta uma hora (dança de roda folclórica judaica – cada um com as mãos pousadas nos ombros dos dois vizinhos), "Arum der faier zingen mir líder...", canção em idish que constituía então uma espécie de hino do movimento. O entusiasmo e a alegria 33 da dança frenética foi de um sucesso contagiante – escoteiros de outros países acabaram aderindo... Verdadeira apoteose! O segundo episódio, que conheço por experiência própria, estava ligado a uma personalidade brasileira especial: o Chefe Theodomiro. Suponho que os bogrim o conheceram no Jamboree. Em uma fotografia de 1936 do meu arquivo ele aparece com shomrim em um acampamento escoteiro no Horto Florestal. 1.Chefe Theodomiro (prof. Theodomiro Monteiro de Amaral)– 2. Doli Sobol - 3. Isaac Takser – 4. Sara (Takser) – 6. Emilio Blay – 7. Isaac Ostrovski – 8. Noé Feiguelman – 10. Uron Mandel – 12. José Sendacz O Chefe de Escoteiros Theodomiro, prof. Theodomiro Monteiro do Amaral, desenvolveu sólida amizade com os dirigentes do Hashomer e como veremos oportunamente, foi de valioso préstimo. 34 Como dissemos, o Hashomer Hatzair de 1935 teve suas atividades bruscamente encerradas e seus monitores, depois de presos, foram admoestados a evitar encontros de mais de três pessoas, o que não os impediu de tentar em diversas ocasiões ressuscitar o "Shomer" sob formatos que não transgrediam as restrições policiais. 35 *** Publiquei todas as fotos que tenho do Shomer de 1935, devido ao valor histórico delas. Em 1937 o Presidente Getúlio Vargas implantou no Brasil o "Estado Novo", cópia do regime ditatorial de Salazar em Portugal. Todas as instituições judaicas, e estrangeiras em geral, viram-se forçadas a camuflar suas atividades, então proibidas pela lei. O Keren Hayessod, o Keren Kayemet e a Agência Judaica se ocultaram baixo o rótulo de "Centro Hebreu Brasileiro". O "Shomer" de 1939 Em 1939, não sei por iniciativa de quem e como, surgiram aos domingos de manhã atividades sociais de jovens na escola judaica-brasileira "Renascença" (em 36 hebraico "Hatechiá"). Quando comecei a cursar o quarto ano do Grupo Escolar Marechal Deodoro, fui convidado por um amigo "para ir ao Shomer" e assim comecei a frequentar essas reuniões. Minha recordação do que ali acontecia é nebulosa, nem sequer me recordo quem eram os monitores. Porém me lembro perfeitamente que foi organizada uma bandinha de tambores e instrumentos de sopro (pertencentes à escola) e fui designado para tocar um tamborim, com duas varetinhas de madeira. Minha função era marcar o compasso para à bandinha, repicando intermitentemente "tam! tam-tararam-tamtararam-tam-tararam tam tam!". * Está na hora de esclarecer porque frequntei o grupo escolar com idade tão avançada – quase 12 anos. Quando vivíamos em Matão, no noroeste do Estado, meu pai me inscreveu aos seis anos no grupo escolar. Logo em meu primeiro dia de aula, devido a circunstâncias um pouco desagradáveis (comichões impertinentes na barriga, sem que eu soubesse o que fazer para evitar "fazer nas calças"), pulei no intervalo a cerca do pátio do recreio e fugi para casa, para meu piniquinho (não havia rede de esgotos na cidadezinha). A trauma deste acontecimento foi tão forte, que me recusei durante dois anos a ir à escola. Somente quando passamos a residir em Taquaritinga, e eu um analfabetão de 9 anos, fui sozinho, por minha própria iniciativa, livre e espontânea vontade, inscrever-me no Grupo Escolar da cidade. Como o ano letivo estava para terminar, frequentei a 37 classe do primeiro ano apenas dois meses, o suficiente para aprender o abecê e começar a ler. No fim do ano iniciamos uma longa trajetória em direção a São Paulo, passando a morar curtos períodos em Araraquara, São Carlos, Sorocaba e Campinas. Porque meus pais resolveram mudar-se para a capital? Meu pai queria muito morar na vizinhança de seus pais, meus avós, mas minha irmã Rosinha que forneceu o motivo decisivo da resolução.. * Um dia apareceu um padre em nossa casa a fim de pedir a mamãe que nossa Rosinha de seis anos participasse como anjinho – vestida toda de branco, uma coroínha por cima da cabeça e duas asinhas nas costas – na procissão não-me-lembro-de-que-santo. Mamãe respondeu em seu português quebrado que ela lamentava, mas não poderia permitir, por sermos de outra religião. Rosinha botou a boca no mundo, num berreiro que atingia os céus e mamãe a tranquilizou à custo, explicando-lhe com ternura, em idish, sermos judeus e judeu não vai para "igreja" (palavra que disse em português) de goim. "Então me leve para a igreja dos yiden!", exigiu minha irmã com veemência incomum para uma criança de sua idade. Depois deste incidente, meus pais resolveram mudar para São Paulo, a fim de proporcionar educação judaica aos filhos. Em Taquaritinga havia somente mais uma única família judia, inteiramente assimilada – somente cheguei a ouvir o pai falar idish. Os dois filhos e a mãe não sabiam. Vai ver que ela era goiá (não judia). 38 Em São Paulo me inscreveram na escola judaica "Talmud Torá", na Rua dos Tocantins (hoje Rua Talmud-Torá). Descobri então que os judeus tinham além do idish outra língua – o hebraico. Eu sentava em uma carteira, no mesmo banquinho com Bernardo Goldsvaig, amigo meu desde então, sobre quem ainda contarei. Em hebraico já estavam na letra "samech" da cartilha que estudávamos – sis (pássaro), sus (cavalo). Não me lembro como aprendi as letras anteriores, mas cheguei até a última letra do alfabeto hebraico "tav", na lição "Tamar ve´atamarim" (Tamar e as tâmaras). Em uma das aulas cochilei debruçado sobre a carteira. O "moire" (professor, versão idish de "moré" em hebraico), um moço de capa preta, chapéu Charlie Chaplin e barbichinha pontuda, me despertou com uma chapada estridente no cangote (a verdade seja dita: não doeu nada). Estupefato e chocado, me levantei do banco, e sem dizer uma palavra fugi para casa, para não mais voltar... A segunda e última vez que fugi da escola. Mais um ano se passou e lá vou eu novamente, sozinho, me inscrever na escola próxima à nossa casa – Grupo Escolar Marechal Deodoro, casarão de dois andares, ocupando quase um quarteirão na Rua dos Italianos. Uma das primeiras escolas primárias municipais em São Paulo, construída no inicio do século XX, no estilo clássico dos prédios municipais da época. Os alunos entravam na escola pelo portão na Rua Anháia, que conduzia ao pátio de recreio, um terreiro enorme. Ao ouvir a campainha, os alunos se ordenavam de acordo com suas classes em lugares previamente 39 marcados, em colunas paralelas de dois, como em uma parada militar, voltados para um mastro, no qual se hasteava o pendão nacional, na presença dos professores e o Diretor da escola. Cantávamos o Hino Nacional ou o Hino à Bandeira, ou ambos, e em seguida desfilávamos dois a dois alunos, uma classe atrás da outra, até entrarmos nas correspondentes salas de aulas. Quem era o Diretor? O nosso já conhecido prof. Theodomiro Monteiro do Amaral. Eu não o conhecia anteriormente, e somente bem mais tarde vim a saber de suas ligações com o escotismo e o Hashomer Hatzair. Quando o Shomer de 1939 funcionava no Renascença, ele o registrou como se fosse uma tropa de escoteiros em formação que ele estava organizando e de vez em quando até comparecia às peulot (atividades) para observar, sem jamais ter-se intrometido ou proferido sequer uma observação. Tenho a impressão de que tinha conhecimento das finalidades do Hashomer Hauzair e simpatizava com elas. Não sei quando chegou ao cargo de Diretor do Grupo Escolar Marechal Deodoro. Sei apenas que introduziu na escola uma verdadeira reforma educacional, determinando com seu exemplo pessoal o modelo do bom relacionamento com os alunos; comportamento este que os professores imitaram. Pessoa austera e carismática, que falava com calma e voz aveludada, mas de uma autoridade indiscutível. Eficiente, elegante, delicado, se dirigia aos alunos, que eram crianças, como "o senhor", "a senhora". Professores e alunos o admiravam e respeitavam. Nas vésperas do Dia do Descobrimento do Brasil (21 de 40 Abril), o prof. Theodomiro convidou todas as escolas do Bom Retiro a participar na comemoração da data a se realizar no terreiro da escola. Também a Escola Renascença foi convidada e eu, o tocador do tamborim na banda, me encontrei num dilema difícil. Em um dos horários de recreio vi o prof. Theodomiro passeando pelo terreiro, como de costume, para observar os alunos brincando. Não sei de onde eu – menino pequeno, magricela e encabulado até as vísceras – peguei a coragem de me dirigir a ele. "Professor Theodomiro, o senhor me dá licença de fazerlhe uma pergunta?". Minha voz soou fininha como a de uma menininha e por dentro eu tremia feito uma vara verde. "Com prazer: pergunte", respondeu. com um sorriso fascinante que desfez meu temor e me fez sentir à vontade, cheio de confiança em mim mesmo. Recuperei minha voz natural e lhe expliquei meu conflito: sinto obrigação de comparecer à comemoração em companhia de meus companheiros de classe, porém eu frequento um clubinho que se reúne aos domingos na Escola Renascença e lá toco tamborim na banda. Na classe ninguém perceberá minha ausência, mas na banda sou imprescindível, pois a mim cabe dar o ritmo da banda e o passo do desfile. O Diretor, com um sorriso compreensível e amistoso, deu o seu consentimento e me desejou sucesso no tamborinar. * No dia da comemoração os alunos da Escola Renascença, todos de camisa branca e saia ou calça 41 azuis, saíram em desfile bem organizado, da escola na Rua dos Bandeirantes, atravessaram a Rua Ribeiro de Lima e percorreram toda a rua principal do bairro, a famosa José Paulino, até entrarem pelo portão da Rua Anhaia no terreiro do grupo escolar. Durante todo o trajeto caminhei atrás da baliza, menina ágil que abria a marcha saltitando em passinhos coreografados na frente da banda e agitando energicamente um bastão. Em seguida desfilava a banda e o restante da escola. Apesar de ser a manhã de dia feriado, o barulheira da banda atraiu à rua judeus e demais moradores do bairro, que aplaudiam ritmicamente o nosso desfile, que julgo ter sido a primeira e última demonstração cívica escolar judaica nas ruas de São Paulo. Eu, empanturrado de orgulhoso, marchei como soldadinho de chumbo, repicando fortemente "tam! tamtararam-tam-tararam-tam-tararam tam tam!". * Estudamos no quarto ano primário com o professor Luiz Braga. Se não me engano, o único professor do sexo masculino na escola. Mulato baixinho de cabelos grisalhos encarapinhados, tipo patriarcal, querido pelos alunos. Ele costumava registrar em fichas pessoais para cada aluno as notas obtidas nas aulas e nas provas. No fim do mes distribuía as fichas aos alunos, para que as examinassem. Em Abril, o professor Braga anunciou solenemente o nome do aluno que havia se distinguido no mês: António. Verifiquei minha ficha e percebi que havia um erro na soma da coluna do mes. Ergui a mão para chamar a 42 atenção do professor, levantei-me, me encaminhei ate ele e estendendo-lhe a ficha disse que achava ter ocorrido erro na soma. O professor pegou a ficha para conferir os dados. "O sr. Nochum tem razão", falou dirigindo-se à classe, "Houve um engano no cálculo e pelo jeito ele é o aluno de distinção do mês. Meus parabéns!", proferiu em voz alta e me devolveu sorridente a ficha corrigida. De volta à minha carteira, que ficava na última fila, ao passar ao lado de Antônio, com quem mantinha muita amizade, dei-lhe uma piscadela de peralta, sem nenhuma intenção especial. Para quê, meu Deus? O professor deve ter reparado nisso, pois imediatamente se pôs em pé e me repreendeu violentamente. Entre outras pérolas de sua catalinária me acusou de ser "um estrangeiro ingrato, que prefere desfilar com seus patrícios e não com seus colegas de classe, brasileiros legítimos", etcétera etccétera etccétera... Não mencionou nenhuma vez sequer a palavra "judeu" ou semelhante, mas foi o discurso mais anti-semita que ouvi no Brasil. Profundamente ofendido, levantei-me com a ficha na mão, me aproximei da mesa do professor e a joguei com desprezo sobre ela, declarando com a voz mais resoluta de que era capaz "renuncio às suas distinções!". Voltei para me sentar na minha carteira, de braços cruzados, cerrando meus lábios com zanga. * O professor não teve tempo de reagir, devido ao toque do sinal redentor anunciando o intervalo. Os alunos se levantaram e correram ao recreio no terreiro. O professor 43 saiu da classe. No pátio, o servente da classe me procurou. Pessoa magra, calada, muito humilde e servil, que ficava sentada no canto na sala de aula para manter o silencio e a disciplina na aula. "O Dr. Diretor pediu para o senhor comparecer ao seu escritório". Não sabia o que pensar, mas fui atrás do servente, que me conduziu ao segundo andar, onde jamais estive nem anterior nem posteriormente, até o escritório do prof. Theodomiro. A porta estava semi-aberta e eu fiquei parado no umbral. Ao ver-me, o Diretor se levantou, aproximou-se de mim e me encaminhou à cadeira em frente à sua poltrona, pousando a mão gentilmente em meu ombro. Perante tal gesto de gentileza, perdi meus receios e me senti à vontade. "Senhor Nochum (no ginásio mudei meu nome para Nahum), porque o senhor se recusou a receber a distinção do mês da classe?" Relatei o ocorrido com minha ficha, o discurso do professor e conclui que não necessitava de honrarias de um anti-semita. Finalizei observando "espero que o senhor se recorda da licença que me concedeu para desfilar com a minha banda...". O prof. Theodomiro me ouviu atenciosamente sem proferir uma palavra. "Senhor Nochum, de mim o senhor aceita uma presentinho?", e antes que eu pudesse responder ofereceu-me um livrinho de capa dura – cartinha de historietas para crianças. 44 "Eu aconselho ao senhor ler o conto que sinalei com um papelzinho", disse e se levantou para me acompanhar até a porta, pousando novamente a mão em meu ombro e me aproximando a ele. Me senti no sétimo céu. * Na primeira página, com letras miudinhas arredondadas bem legíveis, estava escrito "A Nochum Mandel, o aluno de distinção em sua classe no mês de Abril", assinado: "prof. Theodomiro Monteiro do Amaral, Diretor do Grupo Escolar Marechal Deodoro, São Paulo" e a data. Este livrinho é o livro mas valioso que possuo. * Em casa li o conto marcado com o papelzinho: O pobre e o rico Pobre em um vilarejo na Europa, encontrando-se em situação financeira precária, lembrou-se de um amigo de escola que era muito rico e resolveu pedir sua ajuda, um empréstimo. Ele se dirigiu à casa do amigo, verdadeiro palácio, e bateu na porta. A porta se abriu e apareceu o amigo, que sem o convidar a entrar lhe perguntou com rispidez o que queria. O pobre, coitado, não pôde nem responder, porque o ricaço o mandou embora, e quando ele se afastou, lhe atirou uma pedra a fim de afugentá-lo. Sem recursos para se sustentar, o pobre homem imigrou para a América, e ali seu destino mudou. Teve sucesso e se tornou riquíssimo. Os anos foram passando e o novo magnata, afetado por nostalgia de seu vilarejo natal, decidiu visitá-lo. Os habitantes lhe prepararam uma recepção pomposa, na esperança que o "filho pródigo" tão abastado contribuísse de sua fortuna ao local. Todo o mundo compareceu à estação, a começar pelo 45 Prefeito, o padre da paróquia e a Banda do Corpo de Bombeiros. O visitante percorreu a multidão com os olhos e não deparando com seu antigo amigo ricaço, indagou por ele. "Está na prisão", e lhe contaram que se complicou nos negócios, perdeu a fortuna, e tentou desfalcar o banco. Acabou na calabouço. "Posso vê-lo?". "Pois não!" e o Prefeito em pessoa o levou até a prisão, que não ficava longe. O nosso visitante-magnata encontrou o antigo colega rico de escola no canto de uma cela em penumbra, com barba por fazer, em vestes miseráveis, deitado de bruços em um catre, todo acabrunhado. O visitante tirou uma pedra de um saquinho que portava pendurado ao pescoço e a colocou no chão. "Toda a vida guardei esta pedra para lhe jogar de volta e agora que poderia fazê-lo, tenho pena de você". * Em minha primeira visita ao Brasil, depois de viver em Israel 27 anos, não podia deixar de visitar o Grupo Escolar em que estudei. Encontrei tudo como deixei – o mesmo casarão e enorme terreiro. Como era intervalo de recreio, estava repleto de crianças brincando com bolas, pulando corda e jogando pedrinhas – exatamente como no meu tempo. Até as professoras tagarelando nos corredores me pareciam as mesmas. Apenas não encontrei o prof. Theodomiro. Perguntei por ele à Diretora, que me recebeu atenciosamente, e fui por ela informado que ele estava internado em um asilo de velhos, com amnésia, sem reconhecer a ninguém. Ela estava disposta a me dar o endereço. Recusei. Preferi recorda-me dele como o conheci em minha juventude – educador probo, personalidade imponente, mitológica, 46 que hoje chamaria de "Janós Korczak brasileiro". O professor Theodomiro Monteiro do Amaral (19001981) era muito conhecido, não só por suas atividades normais no magistério oficial, mas, principalmente pela sua atuação em favor do escotismo nas escolas. Diplomado em 1920 pela antiga Escola Normal da Praça da República, alem de diretor do Marechal Deodoro foi diretor de outros grupos escolares. Foi promovido a inspetor escolar e eleito vereador à Câmara Municipal de São Paulo. Diplomado pelo curso de chefes da antiga Associação Brasileira de Escoteiros, veio a ocupar posições de alto destaque na direção do escotismo bandeirante" (Informações recolhidas da Google. NM). Outros acontecimentos em 1939 Creio que o acontecimento mais marcante que presenciei em 1939 foi o quando voltava certo dia para casa do grupo escolar: a rua José Paulino estava um reboliço de mulheres nuas, e soldados e civis abraçando-as e rindo. Um Carnaval surrealista! As lojas estavam cerradas e tive que entrar em casa pelo corredor do quintal. Havia necessidade de erradicar o bas-fond (a Rua dos Tibiriçás) na vizinhança do Viaduto do Chá e do Teatro Municipal, a fim de construir a Avenida Anhangabaú. O Interventor do Estado Adhemar de Barros e o Prefeito da cidade Prestes Maia decidiram que o local mais apropriado para abrigar as mulheres-da-vida que habitavam aquele antro de perdição (policiais e soldados ali entravam somente como clientes) era o Bom Retiro, o bairro dos judeus. As ruas Itaboca (hoje Prof. Cesare Lombroso) e Aimorés, paralelas a José Paulino, foram as escolhidas para essa 47 finalidade, e em uma madrugada, sem aviso prévio aos residentes e muito menos às prostitutas, elas foram levadas em camburões, muitas delas nuas, e atiradas ali. A cena dantesca que presenciei visava obrigar os moradores destas ruas a evacuar suas residências. * No início os judeus tinham receio da invasão diária todas as tardes de milhares de homens e soldados para frequentar "a zona do confinamento", mas aos poucos acabaram se acostumando. Em se tratando de adaptação, não há como os judeus... Encontrei minha mãe apavorada. Ela correu ao meu encontro, me abraçou e me introduziu em casa. "O que está acontecendo?", perguntei. "Prostitutkes...", nunca ouvi antes tal palavra e perguntei a mamãe o que ela queria dizer. A nossa conversa continuou na sala de jantar, sentados ao lado da mesa. Mamãe me explicou sem muitos rodeios o que era uma "prostitutke", palavra que pronunciava como se fosse segredo. Entre nós, desde pequenino eu conhecia a palavra "puta", da expressão muito usada entre a molecada "vai para a puta que o pariu", o que não quer dizer que entendia o significado das duas palavra que começam com "p". Depois da explicação elucidativa de Mamãe compreendi melhor como a "cegonha" nos trouxe ao mundo. Vai ver que eu era mesmo um menino caseiro e ingênuo. Mamãe fez uma dissertação sobre doenças venéreas e me preveniu contra elas. Falou de moral e pureza sexual. Não senti em sua voz o mínimo pudor ou constrangimento. Foi a primeira, última e única lição de educação sexual que recebi em casa, porque sexo e 48 pornografia eram tabu nas conversações da família. Foi esta também a primeira vez que minha mãe falou sobre as pobres jovens judias que eram convencidas a vir "trabalhar na América", sem que elas tivessem a menor ideia de qual era o "trabalho" – a prostituição. Nunca vi minha mãe tão comovida como quando falou deste assunto e me contou que havia uma organização judia, a "Migdal", que importava estas infelizes da Europa para o continente americano, para vendê-las aos bordéis. Pela Google fiquei sabendo das "polacas", como eram chamadas as prostitutas judias, e da organização "Zvi Migdal", sindicato de cafetões judeus com sedes em Nova Iorque, Buenos Aires e Varsóvia, que se ocupava desde os fins do século 19 com o tráfico de jovens judias. Esta máfia foi dissolvida apenas em 1939. Li sobre o tema reportagens de pesquisadores modernos, também brasileiros. A primeira leva de sessenta e sete "meretrizes estrangeiras" desembarcou no porto do Rio de Janeiro em 1867, e outras 37 seguiram para Argentina, (Dados baseados em artigo de Beatriz Kushnir, historiadora judia, diretora do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro e autora de Baile de Máscaras). Como eram afastadas da coletividade judaica, fundaram Associações Israelitas de Beneficência (as primeiras organizações judaicas de auxílio mútuo no Brasil), suas próprias sinagogas e seus próprios cemitérios: o Cemitério Israelita de Inhaúma no Rio (em 1906) e o Cemitério Israelita de Santana, em São Paulo (nos meados da década de 1920). O episódio das "polacas" é uma das páginas mais deprimentes e vergonhosas da história judia (Que fizeram as coletividades judaicas por essas jovens, além de excomungá-las?). Somente nos últimos anos a 49 investigação séria do assunto despertou a atenção da coletividade. * Minha Shoshana ("Suzana Spilberg, a "Suzana da Bahia") me contou que de mocinha foi com amigas "fazer campanha" (arrecadar contribuições) para o Keren Kayemet em casas de familias judias. Elas bateram na porta de uma senhora judia bem abastada, a julgar pelo palacete em que morava, que as recebeu com muita simpatia, as ouviu com atenção e contribuiu com uma soma considerável. Quando Suzana relatou ao seus pais o seu sucesso econômico, eles ficaram horrorizados e a preveniram para que nunca mais entrasse na casa desta cafetina... O "Shomer" de 1942 Entre os documentos que Urtzi me mandou encontrei referências à tentativa de reativar reuniões do Hashomer Hatzair na Escola Renascença, apesar da proibição vigente de atividades "estrangeiras" deste tipo. Urtzi descreve em um de seus relatórios que o professor Vainer, diretor da escola, lhe disse "se vocês têm coragem, eu lhes dou permissão". Pessoalmente não sei nada deste acontecimento, além do que li no relatório. Não sei se o Hashomer Hatzair chegou a atuar na escola, como e por quanto tempo. Lembro-me apenas de que se organizou então um seminário para formar professores de hebraico. A maioria dos alunos era constituída de diplomados pela Escola "Luiz Fleitlich", que falavam correntemente o hebraico. 50 A Escola Israelita-Brasileira Luiz Fleitlich, fundada em 1937 no bairro de Brás, bairro com muitos residentes judeus, era concorrente da Renascença, e tirou dela vários professores, entre eles o muito reputado professor Shoichet. O prédio foi demolido nos meados da década de 1970, a fim de dar lugar a uma estação do metrô. O único contato que tive pessoalmente com o seminário (eu não falava o hebraico) de que me recordo claramente foi participar como convidado (não me lembro como, por quem e porque) a uma aula de gramática da língua idish que Elias Lipiner deu (até me lembro do tema: "a concordância de gêneros no idish"). Dissertação muito interessante e bem exposta que me abismou, pois não imaginava que esta língua tivesse gramática. O Elias Lipiner, rapaz ruivo, muito instruído, era emigrante da Bessarábia e.lecionava no seminário. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi Diretor de "AONDE VAMOS?", revista judia em português. Formou-se em Direito e veio viver em Israel, onde abriu um escritório de advocacia nos moldes do que tinha em São Paulo, que se especializou no trato de causas jurídicas de brasileiros residentes em Israel. Pelo Google tomei conhecimento de uma série de livros que escreveu sobre os judeus no Brasil e assuntos relacionados. 51 Capítulo 5 – O Departamento Juvenil O grupo de Noé Em meados de 1943 Noach Feiguelman me convidou a participar nas reuniões matinais de jovens aproximadamente de minha idade, 16 anos, que acontecia semanalmente na sede do Centro Hebreu Brasileiro, em um sobrado nas proximidades do Cinema Lux, no começo da Rua José Paulino, a principal rua comercial do bairro Bom Retiro. Na primeira vez que compareci fiquei conhecendo Benjamim Raicher, Pola Szwartztuch, Samuel Oksman, Chana Iloz e mais um jovem, de quem não me recordo, talvez por não ter continuado a frequentar as reuniões. Ao contrário de mim, que morava no Bom Retiro e a única língua que conhecia além do português era o idish, eles vinham do bairro de Brás, eram alunos da Escola Luiz Fleitlich, falavam o hebraico correntemente e tinham vasto conhecimento de assuntos judaicos. Durante os meses subsequentes éramos um grupo de seis jovens orientados por um adulto, Noach Feiguelman. Antes de prosseguir minha narrativa, permitem-me apresentar seus figurantes. • Noach Feiguelman, loirinho magro, de estatura mediana e aparência atlética, sempre me impressionou muito: um sorrisinho discreto jamais abandonava sua face e era dono de uma fala afável - jamais o ouvi levantar a voz ou fazer algum movimento brusco. Era a calma personificada, com carisma inato. Apesar de ter sido educado na Polônia no movimento juvenil sionista Gordônia, no Brasil se tornou desde 1935 ativista no Hashomer Hatzair. Sua caraterística mais 52 notável era a pontualidade, não somente em ralação ao tempo (jamais atrasava), e sim na mais ampla extensão da palavra. Para mim era um ídolo, o modelo mais representativo de escoteiro e shomer. Homem de honra e de palavra. Se Urtzi foi quem me encaminhou ao Hashomer Hatzair, a Eretz-Israel e ao kibutz, Noach foi para mim, depois de minha mãe, quem me imbuíu as concepções humanistas e morais que me acompanham até hoje. Quanto à minha indoutrinação ideológica, socialista e sionista, a devo a Isaac Takser, a quem me referirei. * Em 1950 Noach fez alyiá à Israel Foi ao kibutz Ruchama, com sua mulher Chana (Chantse) e duas filhinhas. Ttrabalhou na carpintaria, profissão que aprendeu na hachshará na Polônia, e parecia ser o homem mais feliz do mundo, que realizou todos seus sonhos. Mas (sempre tem um "mas" desmanchaprazeres!), Chana não se adaptou à vida kibutziana e obrigou a família a voltar ao Brasil. * Quando depois de 27 anos em Israel, visitei com minha Shoshana pela primeira vez o Brasil, encontrei o Noach em sua lojinha de armarinhos na Santa Ifigênia. Ele nos recebeu efusivamente, mais de repente entristeceu e sentou-se em banquinho, todo deprimido. Acomodei-me a seu lado e conversamos. Ele me falou de sua nostalgia à Israel e da saudade que tinha de Ruchama, "onde viveu o ano mais feliz de sua vida". Ele me confessou que sua única aspiração na vida era voltar a Israel, ao kibutz e à 53 carpintaria. Não voltou... • Benjamin Raicher, todo rechonchudo, dono de um charme todo especial, que o salientava no grupo. Foi um dos fundadores do movimento juvenil sionista "Dror" em São Paulo. Veio a Israel, ao kibutz Bror Chail, onde preencheu as funções mais centrais do kibutz, mas o abandonou (se não me engano, devido a problemas de saúde). Trabalhou em Tel-Aviv na Olivetti, da qual foi representante no Brasil durante muitos anos. Era casado com Chana, filha do Rabino Tzikinovski, do Rio de Janeiro. • Pola Szwartztuch, sobrinha de Noach, loira alta e esbelta, culta e simpática – a beldade dentre as jovens que conheci – se afiliou ao Hashomer Harzair e foi enviada a participar no primeiro Curso de Madrichim (instrutores) que o Departamento da Juventude da Agencia Judaica organizou em Jerusalém. Foi uma das primeiras madrichot de tzofot e ativista saliente no ken. A única mulher na primeira Moatza (direção). Não se incorporou em nosso primeiro garin aliá como era de esperar, por motivos familiares. • Samuel Oksman, já o conhecia mais ou menos de antes, por ser filho de amigos de meus pais. Gordinho bonachão, com quem eu me dava muito bem. Quando terminou o Seminário de Professores de Hebraico na Escola Renascença, partiu para lecionar o hebraico em Recife. Desde então eu não soube mais dele. • Chana Iloz, de belas feições espanholas, bem 54 acentuadas, era de origem sefaradita. A primeira que conheci desta etnia, da qual jamais havia ouvido antes. Muito instruída e introspectiva, veio morar em Petach Tikva, mas não consegui localizá-la, apesar do contato que minha irmã tinha com ela. Devo esclarecer que conhecia judeus poloneses, russos, "litvikes" (da Lituânia), rumenos e "bessaraber" (da Bessarábia, sem fazer ideia onde ficava). Havia também "galitsianer", provindos de Galícia, Encontrei no meu atlas a Galícia na Espanha, mas aprendi nas aulas de português que quem nasce lá é galego. Só em Israel descobri a Galícia dos galitzianer, ao sudeste da fronteira da Polónia.. Dos "hungaricher" (da Hungria) fiquei sabendo quando minha tia Guita se casou com um judeu nascido em Budapest, minha tia Dintze se casou com "rumenisher" (da Rumania) e quando minha tia Branca se casou com um judeu da Alemanha fiquei sabendo que existem judeus "iekes", que mantêm em São Paulo uma congregação muito bem estabelecida, a CIP (Congregação Israelita-Paulista). Assim que graças aos casamentos de minhas tias aprendi etnologia judaica. A palavra "judeu" tem em português uma conexão pejorativa (judiar), e muitos judeus preferiam defenir-se como "israelitas", ou "hebreus", termo mais conceituado. Eu sempre me defini (com orgulho!) como "judeu". Mamãe me contava que em Luck havia uma sinagoga especial de uma colônia de judeus – caraítas – que não eram propriamente judeus. Nunca encontrei um caraíta no Brasil. Sefaradim (Sefaraditas), judeus oriúndos da Espanha, teimanim do Yemen, Bnei-Brit da India, falashim da Etiópia, parsim do Irã, marroquinos e dai por diante, tive amplo conhecimento deles somente em Israel. E tem mais: em minha opinião, o povo judeu é o povo mais miscigenado do mundo, o que explica sua evolução genética. 55 • Finalmente, eu mesmo, Nahum Mandel, que ficarão conhecendo melhor ao decorrer deste livro. * As reuniões de nosso grupo transcorriam mais ou menos nos mesmos moldes das sichot (conversações) no "shomer" que participei na casa em frente da moradia de meus avós na Rua da Graça, com a diferença que desta vez as dissertações e os debates tomavam a maior parte do tempo. Os temas estavam sempre relacionados a Eretz-Israel. Tratava-se de um grupo sionista por excelência. * Nesta época comecei a colecionar selos usados, e economizava cada tostão que obtinha para comprá-los em uma lojinha filatélica de um sírio-libanês na Rua Mauá, além da Estação da Sorocabana. Qual não foi minha surpresa quando um dia me deparei com dois selos da Palestina(E"I): um com a Torre de David e o outro, a Tumba de Rachel. Desta forma fiquei sabendo que Eretz-Israel não ficava no céu, como o Gan-Eden (Jardim de Eden). Meus pais eram judeus tradicionais, com forte lastro, entretanto não me parece que eram sionistas. Em casa somente se referiam à Eretz-Israel bíblica e antes dos meados de 1946 nunca se falou de Palestina. As reuniões do grupo de Noé (nome de Noach em português) me revelaram um mundo desconhecido, o judaísmo. Sendo o único participante do grupo que não sabia hebraico e desconhecendo a maioria dos temas que abordavam, eu ficava calado, absorvendo cada palavra que se falava. 56 Entre os presentes que ganhei na comemoração do meu bar-mitzvá, destacou-se o livro Flavius Josefus de Lion Feuchtwanger. Nunca li um livro com tanto interesse, curiosidade e avidez. Até então eu sabia a respeito dos judeus apenas os contos bíblicos e as narrativas que meu avô me contava. Conhecia a versão dos cristãos católicos de Jesus Cristo: como Judas Iscariotes o denunciou e os judeus convenceram Pilatos a crucificá-lo. Aqui terminava minha História dos Judeus, para recomeçar com os pogroms na Rússia Czarista. Meu pai falava frequentemente do Processo Beilis, que ocorreu na Rússia de 1911 em Kiev (hoje Ucrâina). Menachem Mendel Beilis foi acusado de matar um menino de 12 anos para usar seu sangue na fabricação de matzot (pão ázimo de Pessach). Ele foi defendido pelo famoso advogado alemão, dr. Gruzemberg, que obteve sua absolvição depois de três anos de prisão e graças a isso o seu nome ficou registrado em uma rua em Tel-Aviv. Papai tinha 13 anos quando começou o julgamento, e ele acompanhou empolgado o noticiário. Papai nunca esqueceu nenhum detalhe e até quando velho, se referia ao processo. Método de estudo Eu estava agoniado com a deficiência de meu conhecimento do judaísmo, em comparação aos outros chaverim (companheiros) do grupo. Senti-me impelido a preencher a lacuna e foi daí que desenvolvi um método autodidático de aprendizagem, constituído de um sistema de pesquisa que se adiantava por mais de meio 57 século os links empregados na Internet pela Google e a Wikipédia. Se eu tivesse então patenteado minha invenção e garantido o registro do copyright, hoje estaria rico como Bill Gates. Era trabalho fatigante, mas muito simples. Em uma caderneta de bolso anotei lista de palavras que conhecia correlacionadas ao judaísmo: Bíblia, Jerusalém, pogrom, Paraíso, Deus, Sábado, rabino, sinagoga e assim por diante. Comecei a frequentar quase que diariamente a Biblioteca Municipal de São Paulo, a fim de obter informações sobre estas palavras. Enciclopédias não havia necessidade de encomendar, como de praxe aos outros livros em geral, pois estavam disponíveis na sala de leitura. Eu procurava pela mesa mais próxima da estante que abrigava os vinte ou mais volumes da Grande Enciclopédia Larousse em português. Cada vez pegava um volume para consultar a palavra que me interessava, e marcava na minha caderneta toda palavra nova (para mim) que encontrava no item, que poderia me servir de link para nova pesquisa. Assim cheguei às cruzadas, Inquisição, Maimônides (Rambam), Yehuda Halevy, Ibn Gabirol, Rashi, Avicena, Cabalá, Nabucodonossor, Saadia a'Gaon e mais, e mais... Eu costumava frequentar a casa de meu grande amigo José Waldemar Kochen a fim de ler o "Tesouro da Juventude", também com uns 20 volumes, arrumadinhos em uma pequena estante destinada somente a eles, ao lado da cabeceira da cama. Creio que acabei lendo todos os volumes, e me tornei uma enciclopédia ambulante, com vastos conhecimentos, que diria universais. Eu lia então em velocidade vertiginosa. Tenho a 58 impressão que dos 11 aos 21 anos consegui ler uns 90% de tudo que li em toda minha vida, sendo os restantes 10% geralmente livros técnicos. Romances e livros de ficção li relativamente poucos. Tornei-me de ignorante de temas judaicos em conhecedor abalizado. No ambiente que frequentava era considerado um dos mais autorizados e conceituados. Kvutzá A.D.Gordon Como disse, no início éramos seis e assim continuamos a atuar durante uns meses. Aos poucos se foram incorporando novos frequentadores. O crescimento dramático do grupo ocorreu quando convenci os amigos de minha irmã na gafieira do Salomão a aderir ao grupo. Eu tinha amigos somente no Ginásio do Estado e todos eram judeus. Fiz amizades com alguns alunos goim da minha classe, que não se estenderam além do ginásio. Minha irmã, ao contrário de mim, era super-sociável. Tinha amizades em todo Bom Retiro, tanto judeus como goim. Uns dos círculos de suas amizades era a gafieira do Salomão, na Rua Silva Pinto, perto da Rua Três Rios. Salomão Charach e sua irmã Beti transformaram um porão sem iluminação elétrica em gafieira. Arranjaram um gramofone (toca-discos manual) bem primitivo, discos, e a turma vinha dançar danças de salão: sambas, rumbas, congas, maxixes, valsas, marchinhas, foxtrotes. Minha irmã Rosinha conseguiu me levar para lá, e de vez em quando continuei a frequentar o local. Foi lá que conheci a Maria Hudler, menina ruiva, dinâmica, 59 inteligente, sensual. Sempre a considerei a moça mais intelectual que conheci no Brasil e uma grande amizade se despertou entre nós. Foi ela quem me ensinou a dançar e geralmente era minha parceira em bailes. Não me recordo de ter dançado com outras, mas não diria que foi minha namorada; naquela época eu não tinha cabeça para essas coisas, Por curiosidade, a primeira música que aprendi a dançar com a Maria: "Amor, amor, amor / nasció de ti / nasció de mì/ de la esperanza"... Para registro protocolar, eis os nomes dos que frequentavam a gafieira do Salomão, alem dele e sua irmã Beti. Isaac Murachovski, Max Kianovski, Baruch Goldsvaig, Poty (Adolfo Blecher), Boris Berezin, Jayme Volich, e as vezes o Américo Plut e eu (nos últimos tempos). De moças me recordo: minha irmã Rosinha, a Beti Charach, Clara Murashovski, Dora Griner, Sônia Dreizenstok, Riva Shepshelevich, e de outras três, cujos nomes não me recordo. A Maria Hudler começou a aparecer na mesma época que eu. Com a adesão do pessoal da gafieira, o nosso grupo de Noé (Noach em português) dobrou. Era uma turma danada da fuzarca e Noach com sua paciência de santo conseguiu domá-los a se comportar durante os debates de nossas reuniões. Ao atingirmos o número de 30 participantes, Noach achou chegada a hora de dar um nome ao nosso grupo. Concordamos com ele. Noach propôs "Kvutzat A.D.Gordon" e ninguém se opôs. Não era para menos, pois o Noach apesar de jamais se impor, não tinha 60 necessidade de fazê-lo, pois suas posturas eram sempre acatadas. O nome que escolheu não nos deve surpreender, pois como já disse, ele se educou no movimento Gordônia. Noach comprou um livro de capa dura e páginas brancas sem linhas, destinado a dedicatórias. Ele propôs que o livro ficasse à disposição dos membros do grupo que quisessem escrever seus pensamentos ou observações relacionadas com a atuação do grupo. Noach, sabendo de minha inclinação ao desenho, me pediu ilustrar a capa e a primeira página e formulou em uma folha de papel os textos, em hebraico. Eu levei muito a sério o seu pedido e caprichei na tarefa. Na capa desenhei "Kvutzá A.D.Gordon". Digo desenhei porque não sabia escrever em hebraico, e copiei as letras do machzor (livro de rezas), presente de meu avô no meu bar-mitzva. Na primeira página copiei o título, desenhei um chalutz arando um campo, e ao lado, em três linhas desenhei "Am echad, safá achat, moledet achat" (um povo, uma língua, uma pátria). Este lema me impressionou. Atualmente ele não me agrada – me cheira "Deus, Pátria e Família" do fascismo de Mussolini. O Departamento O Centro Hebreu Brasileiro onde nos reuníamos mudouse para um prédio de vários andares (me parece que 4) na Rua Prates, perto da esquina com a Rua José Paulino, bem em frente do Jardim da Luz. A Direção do Centro concordou que continuássemos a nos reunir em sua nova 61 sede e até colocou à nossa disposição um andar inteiro – salão enorme e dois quartos – com a condição de elegermos uma diretoria e que em suas reuniões participasse como assistente, sem direito de voto, um membro da direção do Centro, o professor de hebraico Citman. Achamos razoáveis estas exigências e as aceitamos. Na reunião eleitoral, com a participação de todos os membros, todo mundo falou e deu propostas. Não houve votação. Eu fui aclamado como Presidente-fundador (este foi o título que me foi conferido...) e para a Diretoria foram designados além de Noach, Abraão Zajdens e Henrique Rosset, membros novos no grupo. Não me recordo de quem mais. Acredito que a Pola. Quase que imediatamente após as eleições Noach se casou e deixou de vir ao Departamento. Também o Benjamin Raicher, dos participntes mais salientes do grupo, ausentou-se sem dar nenhuma satisfação. Soube mais tarde que foi um dos fundadores do Dror em São Paulo. Por um lado o grupo cresceu vertiginosamente. Em menos de meio ano chegou a contar 120 membros, de idades entre 17 a 20 anos. Por outro lado esquecemos o nome de "Kvutzat A.D.Gordon" e passamos a nos chamar "Departamento Juvenil do Centro Hebreu Brasileiro", ou simplesmente "O Departamento". Não se tratava apenas de mudança de nomes – houve afastamento dos conceitos do sionismo. Continuamos a ser um agrupamento judaico, com simpatia moderada pelo sionismo, mas deixamos de ser um clube sionista. 62 1944 - Departamentp Juvenil Centro Hebreu-Brasileiro de São Paulo, em Horto Florestal. 1. José Waldemar Kochen – 2.Nahum Mandel – 3.Tobias Gross – 4.Sonia Dreizenstok – 5.Michel Lando – 6.Adolfo (Potí) Blecher – 7.Salomao Charach – 8.Boris Berezin – 9.Henrique Bobrow – 10.Abrão Hudler – 11.Bernardo Goldsvaug – 12.David Kandler – 13.David Kopernik 14. Moisés Milner – 15. Rosa Mandel – 16.Luiz Schechtman – 17. Clara Morashovski – 18. ????? – 19. ????? – 20. Dora Griner – 21. Betty Charach – 22. ????? – 23.Pola Szvartztuch – 24.David Szvartztuch – 25.Max Kianoski – 26. Abraão Zaidens – 27, 1944 - Departamentp Juvenil Centro Hebreu-Brasileiro de São Paulo, em Horto Florestal. 1.Isaac Morashovski - 2.Waldemar Sister - 3.Miriam (Nicha) Vilenski 4.Naftali Czeresnia - 5.Pola Schvarztuch - 6.Max Kianovski - 9.Michel Lando - 10.Nahum Mandel - 11.Henrique Bobrow 15.Oswaldo Kowes - 16.Boris Berezin - 17.Clara Morashovski - 18.Rut - 19.Dora Griner 20.Salomao Charach - 21.Israel Wasserman - 23.Sonia Dreizenstok - 24.Bernardo Goldsvaig 25.Rosa Mandel - 26.Adolfo Blecher (Puti) - 27. Betty - 31.Riva Shepshelevich - 32. Clara Ossenholz 63 Para fins de registro histórico, eis alguns nomes de membros do Departamento (não se assustem, não me lembro de todos os 120...), além dos já citados, inclusive a turma da gafieira do Salomão: Abraão Zajdens. Henrique Bobrow, David Kandel, Luiz Schechtman, Boris Berezin, as irmãs Averbuch, David Szwartztuch (irmão da Pola), Maria Huler e seu primos e Malvina Hudler. Miriam (Nicha) Vilenski e seu irmão José, Osvaldo Kowes, Michel Lando, os irmãos Marcos e Levy Raisman, os irmãos Snicovski, Efraim Fucs, e bem mais tarde seu irmão mais velho Itzchak Fucs, e muitos outros... Alem da simples vontade dos jovens de se encontrar, creio que houve dois fatores que contribuíram ao sucesso do Departamento. O primeiro foi indubitavelmente a Biblioteca e o segundo. o time de futebol no Clube Macabi de São Paulo. 64 A Biblioteca A minha primeira iniciativa no Departamento foi organizar uma biblioteca, doando 70 livros meus. O meu amigo Oswaldo Kowes fez o mesmo. Antes de narrar como consegui meus livros, pois eu jamais comprei um livro no Brasil, a não ser um ou outro, geralmente usados, que necessitava aos estudos no ginásio, gostaria de escrever algumas palavras sobre Oswaldo. Eu o conheci no cursinho preparatório para o ginásio, do dr. Rodolfo Schraiber. Desde que entramos no Ginásio do Estado (Pedro II), estudamos durante 7 anos sempre na mesma classe, tanto no ginasial e como no científico. Oswaldo frequentava a minha casa e mamãe o apreciava muito, pois era muito atencioso com ela. Bastava ele chegar e ela se apressava à cozinha, a fim de preparar algo para servi-lo, seja um café com bolos, ou uma refeição. Quando meus pais moravam em Ness-Siona, em Israel. e Oswaldo (Asher Covesh em Israel) vinha visitar um parente seu nesta cidade, dava as vezes um pulinho até a casa deles, e em diversas ocasiões os convidou a passar férias em seu kibutz Kfar Szold, no extremo norte do país, depois de Kiriat Shmoná. Meus pais aceitaram o convite várias vezes e foram acolhidos com carinho. Bem! Em São Paulo a Rádio Eldorado (irradiadora das famosas "horas de saudade", música do folclore brasileiro, em geral valsas e chorinhos dos bons tempos) havia de segunda a sexta-feira às tardes um programa semanal apresentado por Cid Franco; telenovela policial em capítulos diários e no final se perguntava "quem foi o 65 assassino?". Os ouvintes que concorriam deviam mandar resposta acompanhada de um saquinho vazio de café Jardim. Como este café era muito popular, eu e Oswaldo não tínhamos nenhuma dificuldade de juntar entre vizinhos e parentes, cada um de nós, uns 10 saquinhos por semana, e mandávamos com cada um o nome de outro personagem da novela, mesmo não suspeitando qual era a solução. Desta forma não havia semana em que não ganhássemos prêmios, livros da "Série Amarela" (de Agatha Christie, Edgar Allan Poe e outros livros policiais) ou da série "Terramarear" (livros de aventuras de Tarzan, de Emilio Salgari, Karl May, Jules Verne, Kipling, Stevenson, Mark Twain e outros). Cid Franco (1904-1971), advogado, poeta e político, foi deputado em três legislaturas pelo Partido Socialista Brasileiro, tendo sido cassado em 1964. Publicou diversos livros de poesia e um dicionário em 3 volumes de expressões populares brasileiras. Após seu falecimento deram seu nome a uma escola municipal. Oswaldo e eu o ficamos conhecendo quando vínhamos receber os livros que ganhávamos em seu programa policial e éramos recebidos como velhos clientes. Certa vez Cid Franco me convidou a participar em outro programa radiofônico de que era o locutor – competição de perguntas – e fui premiado com um corte de casimira azul-marinho. Meus pais mandaram confeccionar dele o terno de gala, que usei em minha formatura, no meu casamento e outras ocasiões festivas, durante uns cinquenta anos... Colecionei tantos livros que papai teve que comprar uma estante para livros e como não havia lugar no quarto que eu compartilhava com minha irmã (tínhamos o mesmo quarto até que me casei) ela foi colocada na sala de 66 jantar, pois não havia em casa sala de visitas. O exemplo que Oswaldo e eu demos induziu outros membros do Departamento a doar livros (não em quantidade como a nossa) e a biblioteca foi se avolumando, tornando-se concorrida e conceituada – quase todos os membros emprestavam livros dela para ler em casa. Como não pagávamos aluguel e praticamente não tínhamos despesas, as mensalidades – "maschotche" (solecismo de "mas-chodshi", taxa mensal) – que os membros pagavam eram encaminhadas quase que integralmente para a compra de livros novos, mais sérios, geralmente romances em voga. O time de futebol O segundo fator de atração ao Departamento, como dito, era o time de futebol. No Departamento havia rapazes que se distinguiam como jogadores de futebol e não me recordo como o Departamento chegou a um acordo com o Clube Macabi: o Departamento forneceria jogadores de futebol para Juvenil Macabi e o clube, de sua vez, permitiria entrada grátis aos membros do Departamento ao campo desportivo do Macabi, na margem do Rio Tietê. O Clube Macabi designou dois treinadores para o nosso time, o Juvenil Macabi, e um deles, Roth, atleta judeu de origem húngara, pessoa e desportista excelente, contribuiu para elevar o nível do time. O Departamento aproveitava o campo do Macabi para outras atividades, alem do futebol 67 Também eu jogava futebol, como suplente, que tinha oportunidade de jogar geralmente nos treinos, pois então havia necessidade de formar dois times. Eu corria atrás da bola feito louco, mas não me lembro ter alguma vez marcado um único gol sequer... Se alguma vez invejei minha irmã Rosinha, foi como jogador de futebol. Gols nunca marquei e em compensação voltava para casa marcado de "gols" – pernas inchadas de manchas roxas, que eu entregava aos cuidados dedicados de minha mãe, especialista em aplicar compressas e autoridade máxima em medicamentos caseiros. 68 As noitadas de Sábado Diariamente, das 20:00 ás 22:30, vinham chaverim ao Departamento, para pegar livros emprestados ou simplesmente para se encontrar e conversar. Aos sábados o salão ficava repleto, geralmente para conferências. Costumávamos convidar intelectuais judeus para dissertar em português ou em idish sobre assuntos de suas especialidades: Idel Becker (professor de espanhol), o professor de hebraico Karolinski, o idishista Meir Kucisnki, o dr. Marcos Kaufman, e outros. Sempre que passava por São Paulo uma personalidade judia do exterior, procurávamos convidá-lo para proferir uma palestra. Assim tivemos oportunidade de ouvir o famoso jornalista judeu-americano B.Z. Goldberg, genro de Shalom Aleichem, e o editor do jornal idishamericano "Forward", que nos dissertaram sobre os judeus nos Estados Unidos. Os shlichim de instituições judaicas não deixavam de conferenciar no Departamento: Yuris /(Mapai, shaliach da Histadrut), Rabino Mordechai Nurok (líder mundial do partido "Mizrachi"), Jacob Helman (líder veterano do "Poalei Sion"), Mibashan (argentino, delegado dos Fundos sionistas), Margulis ("Sionim Klaliim"), dr. TorSinai (do "World Jewish Congress"), Chaim Finkelstein (Diretor da Escola "Shalom Aleichem" de Buenos Aires e depois personalidade acadêmica em Jerusalém) e outras personalidades. Não posso deixar de referir-me a Yuris. Não o conheci pessoalmente e nem havia ouvido falar dele, até que presenciei uma conferência sua que proferiu no Círculo Israelita de São Paulo. Um homenzinho franzinho que 69 com sua fala impecável de idish, tornou o palco pequeno... Durante 2 horas dissertou sobre "Shabetai Tzvi e o Messianismo", a oratória mais impressionante que ouvi sobre o tema, alem do espectáculo solo de Moris (Maurice) Schwartz, um dos maiores artistas dramáticos do teatro judaico. A.S.Yuris nasceu na Galícia (então Áustria). Escritor e jornalista, poliglota que falava correntemente alemão, polonês, ukraniano, inglês e outras línguas (inclusive o português), sabia grego e latim clássicos, e naturalmente dominava o idish com perfeição. No Arquivo Trabalhista "Pinchas Lavon" em Tel-Aviv examinei o seu acervo literário e fiquei abismado com a quantidade de material que encontrei. Inacreditável o que o homem realizou.. Um dos primeiros shlichim (emissarios) profissionais do movimento sionista e o primeiro pensionário dela. Atuou na Polônia, Alemanha, Bélgica, Estados Unidos, Cânadá,.. Em 1923 chegou à Argentina, depois de servir em quase todos os paises sul-americanos (México, Cuba, Uruguai, Colômbia e Chile). Ao Brasil chegou em 1927 e foi em 1931 o candidato da Lista dos Partidos Trabalhistas Sionistas do Brasil ao 17º Congresso Sionista (não sei se foi eleito). Episódio interessante: encontrei entre seus papéis no arquivo jornal em português com ampla reportagem e fotos, de um comício sionista pró-Keren Kayemet que ocorreu em 13/12/1927 em Porto Alegre, com a presença de representantes do governo brasileiro e os cônsules da Inglaterra, Uruguai e Argentina, Depois que tocaram os Hino Nacional do Brasil e os hinos da Inglaterra, Argentina, Uruguai e a Hatikva (o "Hino dos Judeus"), Yuris proferiu um discurso em prol da campanha para a compra de terras na Palestina para colonização de judeus. * Para encerrar o episódio de Yuris, não há como uma 70 anedota: Em um circo, um brutamontes espremeu um limão e colocou o bagaço em um prato. O mestre-de-cerimônias anunciou que quem extrair mais uma gota, receberá um prêmio. Muitos espectadores tentaram, mas "niente"... Um homenzinho pede licença para tentar, segura o limão expremido com o polegar e o indicador, aperta, e "pic"... cai uma gota. Aplausos e gritaria. Quem era o herói? Um emissário do Keren Kayemet - o nosso Yuris! (Para quem não pescou a piada: Yuris conseguia sempre espremer mais uma "gota" dos contribuintes para o Keren Kayemet). Júri Simulado Mamãe gostava de me contar o episódio do júri simulado de seu irmão Yoel Perel, o único dos 10 irmãos que terminou universidade e que pertenceu na juventude à "tropa marítima" do Hashomer Hatzair de Luck ("navegavam" de canoa no Rio Stier...). Ele organizou no salão de cinema da cidade um júri simulado sobre "A mulher", que se prolongou durante três noitadas. Todos os bilhetes foram vendidos e o salão ficou mais do que repleto. O veredicto: "di froi is umshildik" (a mulher é inocente, em idish). Quando havia visitas em casa e mamãe usava com gravidade esta expressão; nós, seus filhos, os únicos a entender a que se referia, ríamos à beça. Inspirado nesta narrativa, organizei no Departamento um júri simulado sobre "A Assimilação", com juiz, jurados, promotores. advogados e testemunhas. Foi uma das iniciativas do Departamento que mais repercussão teve. Prolongou-se até as 2 horas da madrugada, com o salão 71 repleto como nunca. Como ninguém concordou em defender a assimilação, eu me encarreguei de ser seu advogado. Levei meu papel a sério e me preparei condignamente. Entre o mais li na Biblioteca Municipal "Os Protocolos dos Sábios de Sion" em português e artigos anti-semitas de jornais integralistas. Como testemunhas a promotoria e eu, a advocacia, interrogamos o professor Idel Becker e o dr. Marcos Kaufman. No final os jurados concluíram que a "assimilação" é culpada, e a condenaram, De todas as atuações em minha vida, creio que esta derrota foi o único fracasso que recebi com satisfação. A primeira Moshavá Sionista Não tenho dúvidas que o acontecimento mais importante em que participei na juventude foi a Primeira Moshavá Sionista do Brasil, que se realizou no Paraná na fazendo de Salomão Guelman, em Desvio Ribas (estacionamento de trem para o abastecimento de água), entre Ponta Grossa e Curitiba,. Não sei de quem foi a iniciativa. Entre os documentos de meu tio Urtzi encontrei que a Diretoria do Centro Hebreu Brasileiro, da qual ele era membro, colaborou no empreendimento. Ela se propôs a financiar 3 participantes de nosso Departamento. Luiz Shechtman, Michel Lando e eu nos prontificamos. A moshavá foi monitorizada pelos professores de hebraico Henrique Yussim e Jacob Hocherman. • Henrique Yussim, professor de hebraico, pessoa 72 simpática, muito culta e letrada – filósofo e humanista – o mais ilustrado entre os professores de hebraico que conheci. Lecionou no Seminário de Professores de Hebraico da Escola Renascença e depois Diretor do Colégio Hebreu Brasileiro no Rio de Janeiro. Abandonou o ensino para se dedicar à editoria de livros, porém conhecimento de livros e negociação de livros nem sempre combinam – os seus negócios editoriais foram água a baixo... Já casado, Yussim fez alyiá à Israel (onde se tornou Zvi Yatom) e veio parar no kibutz Mefalsim, no Neguev. Ele tentou novamente a editoria de livros. Sem abandonar o kibutz, abriu uma livraria em Holon e fez algumas viagens ao Brasil. Parece que não foi tão bem sucedido nos negócios, e se voluntarizou a lecionar em BeerSheva, onde dissertou para grupos de adultos. • Jacob Hocherman, também professor de hebraico, na Escola Luiz Fleitlich. Ele substituiu por certo tempo o Noach como instrutor do Departamento e foi outro que se mudou ao Rio de Janeiro, onde se casou. Acabaram vivendo em Haifa, Israel, onde chegou a ser diretor de ginásio. Na única vez que o visitei, em São Paulo, morava em um quarto alugado, com livros espalhados por todos os cantos. Para conversarmos, tive que enveredar entre eles para finalmente me sentar na cama, pois as cadeiras 73 estavam abarrotadas de livros. Eu o achava um tipo um pouco extravagante, contudo o admirava por seus conhecimentos de judaísmo. A fazenda ficava a cerca de 6 quilômetros do estacionamento. De São Paulo vieram Manuel Szterling, aluno da Politécnica, e Ary Blaustein, filho do líder sionista Maurício Blaustein, ambos pelo menos 5 anos mais idosos do que nós três do Departamento (tínhamos cerca de 17 anos). Do Rio, além dos madrichim (monitores) Yussim e Hocherman, vieram Miriam Halfim, Tita Cohen e Saul (de nossa idade), e as moças mais idosas Penina e Rosinha Cohen, Suzana Schmeltzinguer Rosa Faingold, Ana Malogolovkin, Lea Davidovich e Sima. De Curitiba veio o Benjamim Schechtman. Na última semana uma turma de moças de São Paulo e de Curitiba aderiu ao grupo. Na fazenda havia somente uma casa de madeira, e a sala maior serviu de refeitório e sala de aulas. A cozinha com 74 fogão a lenha ficava em uma varanda fora da casa; água tínhamos de bombear manualmente de um poço para um barril, elevado sobre um andaime de madeira. Não me lembro se havia instalações sanitárias (não tínhamos problemas – o Brasil é grande!). Pela manhã nos dividíamos em três grupos: designados ao trato da casa e ao preparo das refeições; outro grupo ia até o sítio dos empregados da fazenda para ajudar o capataz "seu" Juca na fabricação de queijos (deliciosos!), e finalmente, os demais iam trabalhar num bosque, na procura de mudas de eucaliptos a fim de replantá-las em um campo previamente arado e preparado. Depois do almoço e de breve descanso, assistíamos as 75 aulas de Palestinografia (geografia e história de Eretz Israel) de Yussim e Hocherman, e à noitinha, canções idish e hebraicas e Yussim nos lia em idish, em continuação, o livro de Shalom Ash "A canção do Emek", sobre a criação de um kibutz. Sábados e domingos éramos livres, o os aproveitávamos para nos banhar no Rio Tibaji da vizinhança. Realizamos dois passeios a formações geológicas únicas no Brasil.: ao Lago Dourado, a pé, e à Vila Velha levamos conosco o "seu" Juca com a carroça. Eu e Titã no Lago Dourado 76 A água do Lago Dourado provém de um lençol aquático subterrâneo, resultante das chuvas caidas em uma planície enorme, que escoam em um poço natural de grandes proporções, distante uns quilómetros do lago. Não pude avaliar a profundidade do poço, devido às paredes cobertas por espessas vegetações e arbustos, estranhos à vizinhança. Além de difícil, era perigoso aproximar-se da borda 77 1944, Vila Velha. Passeio na Primeira Moshavá Sionista do Brasil no Paraná. A Vila Velha é uma elevação rochosa de 18 quilômetros quadrados, que a erosão de chuvas e ventos de milhares ou milhões de anos conferiu o aspeto de uma aldeia de trogloditas, com ruas, cavernas e rochedos que lembram 78 animais e figuras mitologicas.. Impressionante! Não ousamos enveredar pelo interior, por receio de cobras.. * Atualmente o governo criou ali o Parque Estadual deVila Velha, atracão turística obrigatória para os passeantes de ônibus para as quedas de Iguaçú. Em minha opinião os caminhos e os estacionamentos asfaltados estragaram o esplendor da natureza virgem. Apenas 3 semanas durou a moshavá, uma das vivências mais significativas que vivi e que influiu no meu futuro. Foi nela que me tornei sionista de verdade – nela começou meu sonho por Eretz Israel. A Segunda Moshavá Sionista O ímpeto da moshavá no Departamento foi extraordinário. Os nossos entusiásticos relatórios emocionaram o pessoal e a Diretoria do Centro Hebreu Brasileiro nomeou uma comissão para procurar nas vizinhanças da cidade uma fazenda que fosse adequada para a segunda moshavá, que deveria ocorrer nas próximas férias escolares. 79 Foi escolhida a Fazenda do Sol, pertencente ao sr. Vaingort, com quem a comissão assinou um contrato. Eis o teor do contrato, de acordo com a cópia no meu arquivo: "São Paulo, 15 de Novembro de 1944. 4º Reunião da Comissão Organizadora da Moshavá Declaração Os abaixo assinados, que se reuniram na sede do Centro Hebreu Brasileiro de S. Paulo, a pedido do sr. Vaingort, a fim de discutir o assunto referente à moshavá em organização, chegaram ao acordo abaixo reproduzido: FICA estipulado que ........ (algumas palavras ilegíveis. NM) obrigam a trabalhar 4 horas por dia (exceto aos sábados e domingos) de acordo com as indicações a serem dados pelas pessoas competentes da fazenda. O sr. Vaingort pagará à razão de Cr$1.50 (um cruzeiro e cinquenta centavos) de remuneração por hora de trabalho, e além do pagamento compromete-se a fornecer verduras em abundância, peixes na medida do possível e 8 a 10 litros de leite diários, bem como frutos da fazenda à vontade. Subentende-se que seja cumprida rigorosamente a condição básica de caráter chalutziano da moshavá de acordo aos regulamentos da COMISSÃO ORGANIZADORA DA MOSHAVÁ. Os fundos necessários para a aquisição do gêneros alimentícios serão solicitados em empréstimo do CENTRO HEBREUBASILEIRO DE SÃO PAULO. Havendo déficit na manutenção da moshavá, o sr. Maurício Blaustein assume a responsabilidade por ele." Até aqui o texto exato do original, Em seguida, a assinatura de sr. Vaingort (apenas o sobrenome é legivel), e depois mais oito, dos quais consegui decifrar: Samuel Charchavski, ??ski, Manuel Szterling, Paulo 80 Feldman, Abraão Zajdens, Naum Mandel e Uron Mandel. Zajdens e eu (que então escrevia meu nome Naum, sem "h") éramos representantes do Departamento Juvenil e os demais, do Centro Hebreu Brasileiro. * Por parte dos participantes do Rio, meus parceiros na direção da moshavá foram Giogio Segré e Jacob Hershenhut. Havia na fazenda um depósito vazio enorme, com chão de terra socada e aberturas espaçosas (sem janelas) nas paredes, que abrigava com facilidade as atividades que ali se realizavam com aproximadamente 100 participantes, metade de São Paulo e a outra do Rio. Recordo-me perfeitamente do programa do encerramento. Entre as demais apresentações que houve, encenei três pequenas peças humorísticas. Eu gostava de encenar pecinhas teatrais, mas jamais consegui representar em palco – me atrapalho, gaguejo ou esqueço o texto. Este o motivo pelo qual evito de 81 pronunciar discursos. Também nesse ponto minha irmã Rosinha era diferente: ela representava com naturalidade e participou em vários atos desta noitada. Rosinha foi a mais jovem das participantes na moshavá. Interessante: tenho em geral recordação bem lúcida dos eventos que presenciei no passado, mas desta moshavá, de que fui um dos organizadores e dirigentes, em muitos pormenores estou em black-out... Não consigo recordar-me quem foram os monitores, conferencistas, onde comíamos nossas refeições, onde dormíamos e que trabalhos executávamos... Nada! Apenas sei que a moshavá foi um sucesso absoluto. 1. 82 Capítulo 6 – Do Departamento ao Hashomer Hatzair Primeiros passos Como Presidente, eu me dedicava de corpo e alma ao Departamento e quase diariamente ali estava de plantão das 20:00 às 22:00 horas, pois sempre tinha tarefas a cumprir, como varrer o salão e arrumar as cadeiras. Duas vezes por semana eu me ausentava, a fim de frequentar as aulas do Curso de Gráfica Prática no "Liceu de Artes e Ofícios Prudente de Morais", na Avenida Tiradentes. Na realidade as aulas do curso de três anos eram de três vezes por semana, mas eu comparecia somente duas, após convencer o servente da classe a marcar-me presente em todas as aulas, pois quem tinha mais de 25% de ausências não era permitido a prestar exames. Mesmo assim, como contei na "Cronologia", terminei o curso com distinção e ganhei uma medalha. Como Presidente, me cumpria programar as noitadas de sábado e convocar a reunião da diretoria do Departamento. A diretoria se reunia semanalmente para tratar de tudo e de todos, sempre com a presença imprescindível do professor Citman, calado e retraído. Jamais participava nos debates. Creio que cumpria fielmente seu cargo de prestar contas de nossas reuniões à Diretoria do Centro. Entre os novos participantes no Departamento se destacaram os irmãos Marcos e Levy Raizman. Fiz logo 83 amizade com o mais idoso, Marcos, que era de minha idade, e foi ele que me aconselhou a editar um boletim e se prontificou a convencer seu pai, Isaac Raizman, dono de uma pequena tipografia ao lado de nossa sede, a imprimi-lo. Entusiasmados pela idéia, redigimos um boletim de informações das atividades do Departamento, uma única página, e fomos conversar com o sr. Raizman, que concordou em imprimir gratuitamente 100 exemplares. O sr. Raizman era o dono da tipografia, que ocupava um pequeno quarto repleto de caixas com letras de chumbo, de varios tamanhos e estilos. Ele compunha manualmente as matrizes para imprimir na impressora manual que ali havia. Isaac Raizman era professor na escola judia em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, a Escola "Ber Borochov", da qual foi um dos fundadores e diretor-pedagógico. Desavenças ideológicas o levaram a mudar-se ao Rio de Janeiro. Trabalhou como professor, "klinteltchik" (vendedor à prestação, ocupação tradicional dos imigrantes judeus no Brasil), jornalista idish e condutor de bonde. Em 1929 Raizman abriu em São Paulo a sua já mencionada tipografia. foi um precursor na pesquisa do passado dos judeus no Brasil e publicou História dos Israelitas no Brasil em 1935 em idish, e a versão em português em 1937. Em 1946 foi morar nos Estados Unidos e em 1967 veio residir em Safed, Israel. Em uma de minhas visitas em Safed, entrei na rua das galeria de arte no "Museu da Imprensa em Israel", e quem lá encontro? O sr. Isaac Raizman em pessoa – diretor do museu. O primeiro exemplar do boletim, distribuído aos membros e pessoas relacionadas ao Departamento, foi 84 um sucesso. O jornalzinho, com as colaborações que recebeu, foi-se avolumando. O sr. Raizman, que geralmente imprimia convites de casamento, programas de cinema e cartões de visita, explicou-nos que sem linotipo não tinha graça imprimir boletins... A solução foi continuar a publicação do boletim no mimeógrafo do Centro. Compramos um pacote de estênceis e alguns estiletes, e eu aprendi como gravar. Máquinas de escrever não faltavam no escritório do Centro. Começamos a publicar boletins de 4 a 6 páginas, que eu editava, digitava, ilustrava, imprimia e divulgava. Edição e publicação foram ocupações que sempre me proporcionaram enorme satisfação. * O Departamento e meu cargo de Presidente eram minhas maiores preocupações e certamente contribuíram ao abaixamento do nível das notas no ginásio. Eu não era dos piores alunos da classe – me distinguia em Português, Matemática, História e Desenho, mas nas matérias restantes passava "raspando". Foi quando o Centro recebeu da Argentina um caixote de livros em espanhol sobre judaísmo: "Keren Kayemet L´Israel" de Nissim Elnecavé, "História do Povo de Israel" de Cecil B. Roth, "Autoemancipação" de Leon Pinsker, "Roma e Jerusalém" de Moshe Hess, "Paradoxos" de Max Nordau e muitos outros de que não me recordo. Um tesouro incomensurável! . No Brasil não havia livros em português desse tipo. Convencemos a Diretoria do Centro a adquirir os livros e cedê-los à biblioteca do Departamento. Com eles, a biblioteca subiu de degrau, inaugurando a divisão de "Judaica". 85 Com toda minha modéstia, alego que li (melhor dito, "devorei" de um trago) todos eles. O livro de Cecil Roth abalou a minha imaginação, pois preencheu minha lacuna de quase dois mil anos da história do povo judeu. Só em Israel, quando li em hebraico os cinco volumes da Historia do Povo Judeu de Simon Dubnov comecei a adquirir visão global da história dos judeus. À medida que o Departamento foi saindo dos trilhos do sionismo, eu ia me sentindo descontente dele. Minha cultura sionista e formação ideológica almejavam algo mais concreto. Meu conhecimentos sobre sionismo, as narrativas de meu tio Urtzi sobre o Hashomer Hatzair e a nostalgia das peulot (atividades) das reuniões sionistas intensificaram o meu interesse e a motivação pelo chalutzianismo e intensificaram a nostalgia de EretzIsrael.. Natálio Berman No meu cargo de "jornalista" do boletim do Departamento soube que se encontrava de passagem em São Paulo o chileno Natálio Berman, o primeiro senador judeu na América do Sul. Resolvi entrevistá-lo para o boletim e convidá-lo que viesse conferenciar no Departamento. Conversei com Urtzi, que conseguiu marcar um encontro com Berman e assim fomos nós dois uma manhã ao seu apartamento no Hotel Ypiranga, no Parque de Anhangabaú. O Senador Natálio Berman era um homem pequeno e magro. Começamos a conversa em espanhol, mas rapidamente deslizamos ao idish, que ele 86 falava com uma perfeição de fazer inveja. Conversa vai, conversa vem, e Urtzi mencionou algo sobre o Hashomer Hatzair, o que não é de se estranhar, em se tratando de Urtzi. Berman observou que apesar de não ser sionista, mantinha relações muito estreitas com "Kedma", o Hashomer Hatzair no Chile, e não poupou elogios. Estimulado por esta demonstração de simpatia, perguntei-lhe se poderia comunicar-me com o Hashomer Hatzair no estrangeiro, pois eu estava muito interessado em obter material explicativo sobre o movimento. "Com muito prazer!" e anotou meu endereço. Recebi do dr. Mordechai Kaufman, médico chileno do kibutz Ramot Menashé e psicólogo do Seminário dos Kibutzim em Tel-Aviv, um bilhete com as seguintes informações: "Natálio Berman veio ao Chile muito jovem e jamais foi do Hashomer Hatzair. Era socialista, militante em sindicatos profissionais judeus. Berman foi eleito o primeiro senador judeu na América da Sul pela lista do Partido Comunista Chileno, mas guardou zelosamente a sua independência ideológica. Apesar de longe do sionismo, era muito perto de "Kedma", o movimento do Hashomer Hatzair no Chile." * Natalio Berman (1908-1957) nasceu en Odessa, Russia, e em 1914 viajou com os pais a Chile, onde recebeu a cidadania chilena. Formou-se médico-cirurgião na Faculdade de Medicina de Chile, e exerceu sua profissão como professor em vários institutos e fundou a Policlínica Pública Israelita. Militou no Partido Socialista do Chile, do qual foi um 87 dos fundadores, Retirou-se dele para fundar o Partido Socialista de Trabalhadores. Em 1940 se tornou comunista, o primeiro judeu sul-americano eleito Senador. Acabou sendo expulso do partido. Como membro da Comissão Permanente de Assistência Médico-Social e outras conissões do Senado foi autor de vários projetos legislativos. Muito ativo no setor judaico, viajou por todos os países da América do sul como represntante do Congresso Judeu Mundial. Representeu as comunidades judias sulamericanas no famoso Congresso de Atlanta (USA), onde foi nomeado um dos presidentes. Diretor honorário das principais instituições judias do Chile. Escreveu novelas e ensaios. Currículo de vida impressionanta para uma vida tão curta. (dados recolhidos pelo Google) Não passou nem um mês e recebi um pacote enviado por Dorothy Nacht, a secretária do Hashomer Hatzair dos Estados Unidos, com o livro Deep Furrows (Sulcos Profundos) de Avraham Ben-Shalom, revistas Hashomer Hatzair Niv ha´Boguer, e volumosos programas educacionais para as diversas shichavot do movimento. Mais um mês, veio pacote semelhante de "Kedma" do Chile e em seguida, do Hashomer Hatzair da Argentina. Tenho a impressão que decorei tudo. Com este material, acabei me identificando com a metas do movimento e resolví que se deveria fundar no Brasil o Hashomer Hatzair. Tentei propagar minhas ideias entre meus amigos mais próximos no Departamento, e encontrei parceiros em Amnon Yampolski e Moshe Strauch. Os rumores de que eu estava inclinando-me ao Hashomer Hatzair chegou aos ouvidos da Diretoria do Centro, na maioria ativistas 88 do Mapai e Sionistas-Gerais, e o representante deles na diretoria no Departamento, o professor Citman, falou pela primeira vez em uma reunião: "Já que completou um ano que o Nahum é Presidente-fundador, chegou o tempo de se eleger democraticamente uma Diretoria normal". Ninguém se opôs. Duas listas concorreram às eleições, uma encabeçada por Abraão Zajdens e Henrique Rosset, a segunda por mim e Marcos Raizman. A primeira venceu por pequena diferença, porém venceu. Na verdade o resultado foi justo, pois refletia a tendência não-sionista da grande maioria do Departamento, enquanto eu era um convicto do sionismo militante. Zajdens, muito amigo, me convidou a participar na nova diretoria, "devido à minha experiência". Não recusei. Em conversa com Zajdens, propus que transformássemos o Departamento em espécie de organização-teto dos movimentos juvenis que se estavam organizando em São Paulo: o Dror, o Betar, o Bnei-Akiva e o Hashomer Hatzair que eu pretendia organizar. Quem não tinha linha política definida pertenceria socialmente ao Departamento, sem se ligar a nenhum grupo. Fui convidado a comparecer perante a diretoria do Centro para expor meu programa, e vim com Zajdens. Minha proposta foi refutada sem nenhum debate e me acusaram de querer transformar o Departamento em Hashomer Hatzair. Recebi de Henrique Rosset carta me comunicando que "devido a sua atividade subversiva" a diretoria do Departamento resolveu expulsar-me e "revogar seus 89 privilégios de Presidente-fundador". Não respondi à carta e nunca mais meus pés pisaram no Departamento. Ao me encontrar com o Rosset e o Zajdens, continuamos a nos tratar como se nada tivesse acontecido, e não falávamos nada sobre o Departamento. Não sei o seu paradeiro. * Uma vez que me senti inteiramente livre de minhas obrigações com o Departamento, convidei o Amnon Yampolski e Moshe Strauch a virem à minha casa e passamos horas e noites estudando o material do Hashomer Hatzair que estava em minhas mãos. Pedi o auxilio de meu tio Urtzi, que ficou entusiasmado com a idéia de reviver o movimento que amava. Como estávamos cônscios que nos depararíamos com uma oposição fortíssima dos mapainikim e tzionimhaklaliim (membros de dois partidos políticos sionistas, Mapai e Sionistas Gerais). resolvemos agir na surdina, até acumular certa significância. Amnon se prontificou a organizar grupos de jovens na Escola Luiz Fleitlich, o Moshe Strauch na Escola Renascença e Urtzi se encarregou de reunir um grupo de jovens que conhecia em sua vizinhança. Eu me encarreguei da administração técnica, correspondência com os movimentos externos (USA, Argentina e Chile, e cidades no Brasil, à medida que nelas surgissem o movimento) e principalmente da tradução ao português do material educacional que estava a nosso dispor. O Amnon juntou uma kvutzá (grupo) de tzofim (categoria de escoteiros, 14-15 anos) no bairro de Brás, todos falando correntemente o hebraico. Amnon e eu 90 nos encontrávamos quase que diariamente; creio que nos entendíamos perfeitamente e cooperamos sinceramente. Moshé Strauch reuniu uns 40 alunos de 9 a 11 anos do Renascença, que se encontravam aos domingos para cantar (marchando em círculo no terreiro) e jogar jogos sociais. Urtzi juntou para peulot (atividades) em idish, uns 7 ou 8 tzofim (14-15 anos), que não sabiam hebraico. Ele deu a sua kvutzá o nome de Bar-núfia, cujo significado nunca decifrei, e nem ouvi explicação razoável do Urtzi. Mais tarde, quando Urtzi teve notícia que um de seus madrichim em Luck morreu como partisan, resolveu homenageá-lo, e mudou o nome da kvutzá para "Zvi Atlas". Ao chegar a Israel em 1948, Urtzi descobriu que Zvi Atlas estava vivinho da silva, morava em Haifa, onde era um dos dirigentes do partido Mapam... O falecido Zvi Atlas partisan era seu primo homônimo. Quando Urtzi começou a ter dificuldades em dirigir a kvutzá, devido ao idish, eu me tornei o seu menahel. Levei o cargo muito a sério e me preparava cuidadosamente às sichot, anotando num caderneta de bolso, pinkas-menahel (agenda de instrutor) ainda em minha posse, o seder aiom (ordem do dia) do que devia fazer na reunião, e acrescentando depois quem compareceu e o que nela aconteceu. Continuei por pouco tempo, uns 3 meses, pois quando Samuel Kleiman aderiu ao movimento, eu lhe passei a kvutzá. Os jovens desta e de outras kvutzot contemporâneas, eram ótimos madrichim (monitores) e shomrim convictos, que 91 foram educados no movimente desde crianças. Foram à hachshará, "fizeram aliá", e incorporaram os kibutzim Negba e Gat. Não tenho explicação porque quase todos acabaram abandonando estes kibuzim, seja para passar a outros, ir estabelecer-se em cidades de Israel ou (a maioria) regressar ao Brasil. O Kibutz Artzi (a federação dos kibutzim do Hashomer Hatzair) jamais realizou (e penso que não o fará no futuro) uma pesquisa séria para desvendar os motivos do fracasso de vários kibutzim na absorção de centenas dos melhores potenciais ideológicos chalutzianos sul-americanos. Se tenho algum ressentimento contra a direção do Kibutz Artzi, é este! No começo também eu me ocupei em monitorizar grupos que tentamos organizar-se, em Vila Mariana, Cambuci e Casa Verde, mas com o crescimento do ken tive que largar estas ocupações para dedicar-me inteiramente às minha funções na mazkirut (secretariado): correspondência, tradução do material ideológico e educacional que recebíamos, elaboração de programas educacionais e a publicação de manuais educacionais, revistas e livros, que descreverei em outro capítulo. Pola, Amnon e Takser me auxiliavam nas traduções do e ao hebraico. O Urtzi convocou seus amigos clássicos, Noach Feiguelman, Isasc Ostroswki, Emilio Blay e Paulo Feldman a cooperar no movimento, não em atividade educacional com chanichim (aprendizes, os jovens), mas na organização geral e financeira. Uron me aconselhou a convidar duas pessoas que foram ativos no antigo Hashomer de 1935: José Sendacz e Issac Takser. 92 José Sendacz morava bem perto de minha casa e eu o conhecia de vista. Ele me recebeu cordialmente e me convidou ao seu escritório. Depois que lhe expliquei a finalidade de minha visita, ele disse "os anos que estive no Hashomer Hatzair foram as vivências mais belas de minha vida, e sinto muita saudade daqueles tempos". Esta introdução me deixou com a pulga atrás da orelha, desconfiado. O "mas" desmancha-prazeres veio em seguida, "lamento, mas tudo isso pertence ao passado, Não tenho mais nada a ver com o sionismo, sou atualmente militante progressista ("progressista", judeu que sem pertencer ao Partido Comunista, se identificava com ele e o apoiava sem restrições). Despedimo-nos, cordialmente e não me ocorreu outra oportunidade de conversar com ele. Seguro em minhas mãos o livro "Um Homem do Mundo" que a família publicou em memória de Sendacz e folhei suas páginas, que contém parte do seu grande acervo literário: versos em idish acompanhados de tradução ao 93 português, e também de artigos que publicou e discursos que pronunciou. Não escondo a emoção que senti ao lêlos. José Aron Sendacz (1918-1984) nasceu em Varsóvia, Polônia e chegou ao Brasil (com eu) em 1930. E ainda como eu, veio morar no Bom Retiro e cursou o primário no Grupo Escolar Marechal Deodoro. Em 1935 foi um dos fundadores e secretário do Hashomer Hatzair em São Paulo, que foi fechado dois anos mais tarde pela DOPS. Noaequivo de Guivat Havica encontrei sópias das atas que redigiym en hebraico! Tornou-se um dos líderes do movimento "progressista" (judeus idishistas e prócomunistas). Idishista de corpo e alma, poeta, escritor e orador, Sendacz foi ativista em instituições progressista, colaborou no jornal que publicavam e atuou como diretor pedagógico da língua idish na escola Shalom Aleichem. Como o livro o denomina: um homem do mundo. * Na última conferencia que proferiu, Sendacz fez as contas com a União Soviética, pela destruição da cultura idish no pais com o fuzilamento em 12 de Agosto de 1952 de seus principais expoentes – escritores, poetas e cientistas. Um a um trouxe à tona os nomes e feitos de plêiade de personalidades judias que o mundo perdeu. É impressionante o seu conhecimento da cultura idish e a forma dramática como a apresenta no discurso, que encerra citando o poema Herdeiros de Stalin de Yevgeny Yevtochenko "...enquanto na Terra houver herdeiros de Stalin / Terei a impressão / Stalin ainda está no Mausoléu...". Sendacz desiludi-se dos partidos comunistas e da União Soviética, mas jamais renegou suas convicções socialistas e humanistas, e as reiterou até seu último momento. Eu diria que ele, mesmo tendo abandonado o Hashomer Hatzair, é um exemplo de fidelidade aos 94 valores morais e humanos que nele absorveu – "shomer uma vez, shomer para sempre!". * Isaac Takser tinha duas lojas de móveis, localizadas mais além da Estação Sorocabana, Eu não o conhecia de antes e me foi difícil localizá-lo. Urtzi o definia como "uma potência ideológica" e jamais me revelou o motivo pelo qual ele se isolou completamente dos demais ex-shomrim (assim apelidamos os adultos que pertenceram no passado ao Hashomer). Fato é que Urtzi não concordou de nenhuma forma em ir convidá-lo e confiou a mim esta tarefa. Apresentei-me ao Takser em uma de suas lojas e lhe expliquei o meu objetivo. Ele retrucou "gentilmente" "você está desperdiçando nosso tempo, não tenho nenhum interesse!". Como não havia clientes na loja e ele não me mandou embora, apenas ficou calado recostado atrás da escrivaninha, eu, sentado na cadeira em sua frente, comecei a contar-lhe o que já conseguimos realizar e como nossas kvutzot estavam funcionando. Takser ouviu em silêncio, e continuei minha argumentação de que ele com sua experiência e conselhos, seria um ajuda importante. Evitando ampliar a fala sobre os exshomrim, contei-lhe que o Urtzi foi quem me recomendou a comunicar-me com ele. No final, ele se abrandou e me disse que devido obrigações familiares não poderia vir ao ken 95 (movimento, séde), mas se eu vier me aconselhar com ele, procurará ajudar. Esta foi a primeira das inúmeras conversações que mantivemos e devo confessar que não me recordo de uma única vez dele atender um cliente enquanto eu estava presente. Mandava o empregado, e ele ficava inteiramente à minha disposição. Takser era uma pessoa muito difícil, caprichosa e autoritária, que não aceitava opinião alheia. Não admitia que duvidassem dele. No entanto, na minha opinião, no que diz respeito ao sionismo, ao socialismo e ao judaísmo em geral, era mais ilustrado do que os demais ex-shomrim. Falava e lia o hebraico correntemente. Era capaz de citar os principais dirigentes do Hashomer Hatzair – Meir Yáari, Jacob Chazan, Eliezer Peri, Mordechai Oren, e outros – de 20 anos atrás – como se fossem seus amigos íntimos. Comparecia às reuniões com sua "Bíblia de Sinai", o livro "Sefer ha´Shomrim" (Livro dos shomrm), compilação de artigos de líderes do Hashomer Hatzair, publicado em hebraico em Varsóvia, no ano 1934. Certamente não estava atualizado com o que acontecia no movimento e no Kibutz Artzi (a confederação dos kibutzim do Hashomer Hatzair), pois não tínhamos então meios de contato com eles. Era como se o tempo tivesse parado na primeira metade da década de 1930. Contudo, para mim Takser constituía uma fonte importante de informações. Aprendi como lidar com ele e jamais discutimos, Eu admirava a sua habilidade analítica de ver as coisas e ele me tratava com amizade e respeito – espécie de simbiose que funcionava... 96 No final de vários encontros Takser assentiu em aderir à direção do movimento, mas unicamente a uma Moatzá (Conselho), pois não aceitava uma Hanagá (a direção clássica do movimento), por dois motivos: primeiro, em sua opinião nós os jovens ainda não estamos suficientemente maduros para tal entidade e segundo, ex-shomrim como ele, casado e negociante, não deveriam pertencer à Hanagá. Não julgamos conveniente discutir por nomenclatura e aceitamos as condições de Takser – criamos uma Moatzá para dirigir o movimento em São Paulo. Outra condição, as reuniões da Moatzá se realizariam em sua casa, porque ele por motivos familiares (casado, com dois filhos pequenos) não podia se ausentar de casa depois do trabalho. Concordamos novamente, pois assim ele estaria sempre presente nas reuniões... A Moatzá A Moatzá era formada por Isaac Takser, Uron (Urtzi) Mandel, Paulo (o chamávamos de Pipe) Feldman, Amnon Yampolski. Pola Szwartztuch era a única mulher na Moatzá . Eu era o secretário-técnico, que preparava o seder haiom (ordem do dia), dirigia as reuniões e mantinha o livro de atas e a correspondência. A Moatzá não tinha Presidente ou coisa semelhante. Cada um tinha sua função. Takser era a autoridade ideológica, Urtzi, o tesoureiro, que se encarregava de fornecer todas as necessidades financeiras do movimento – tinha uma habilidade virtuosa de obter o dinheiro que o movimento necessitava. Quando Samuel Kleiman aderiu ao movimento, ele foi 97 incluído na Moatzá. Era o responsável pelas kvutzot do Bom Retiro, enquanto que Amnon era do Brás. Como Pola viajou para Palestina a fim de participar no Curso de Madrichim (instrutores) que o Departamento da Juventude da Sochnut Haihudit (Agencia Judaica) organizou em Jerusalém, Blima Plonka, madrichá do movimento em São Paulo, ficou a única mulher da Moatzá . Hoje concluo que éramos uma direção machista. Noach se recusou a participar na Moatzá , mas acabou vindo esporádicamente a suas reuniões,. Não me lembro porque Moshe não participou, pois sendo um dos primeiros shomrim e principais madrichim, deveria. Somente bem mais tarde, quando Pipe abandonou, Moshe o substituiu. As reuniões se realizavam em ordem inalterável. Primeiro eu lia em voz alta o que eu tinha registrado da reunião anterior no "Livro das Atas": data, lugar da reunião, lista dos presentes, ordem do dia, resumo brevíssimo do que cada um disse, encerrando com as resoluções. Em respeito à leitura da ata anterior, Takser não sabia de compromissos – sem a leitura e a unânime confirmação da ata anterior, não se iniciava nova sessão! Devo observar que antes do primeiro encontro com Amnon e Moshé em minha casa, comprei um livro de atas de tamanho fólio, muito volumoso, que chamávamos de "Livro Azul" devido à sua capa dura de cor azul marinho. Eu descrevia nele todos os acontecimentos no movimento e ele se tornou o livro de atas da Moatzá e o registro mais detalhado e fidedigno do que se passou desde o começo no Hashomer Hatzair em São Paulo. Quando parti para Israel em 1948, passei o Livro Azul às 98 mãos de Bernardo Goldsvaig, que me substituiu no cargo, porque o livro ainda tinha uma quantidade enorme de páginas não usadas. Ele procedeu da mesma forma ao terminar o cargo de responsável pelo Ken São Paulo. Ao escrever as minhas memórias no livro "Mischak Ieladim?", procurei em vão o Livro Azul. Ninguém podia me informar o seu paradeiro. Na nossa primeira visita ao Brasil, em 1975, procurei Israel Bogushwal, que foi o rosh haken (Chefe do movimento) em São Paulo na década de 1960, Ele me contou que quando os generais implantaram a ditadura militar em 1964, o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) empreendia buscas repentinas nas organizações estrangeiras, e temendo que documentação comprometedora do Hashomer Hatzair caísse em suas mãos, Maurício queimou toda a papelada que havia na secretaria, inclusive o Livro Azul. No Rio de Janeiro o enredo foi diferente. No prédio onde se encontrava o ken trabalhavam o zelador Cláudio e sua mulher, encarregada da limpeza. Cláudio, como era chamado Laudino Barbazan Pontes, um anarquista na Guerra Civil Espanhola que se refugiou no Brasil quando Franco tomou o poder, era muito ligado ao pessoal do Hashomer Hatzair, a ponto de aprender e usar todas as expressões hebraicas que estavam em voga no palavreado dos shomrim. Quando percebeu que a DOPS estava investigando as instituições judias nas imediações, cavou no quintal uma vala e enterrou um armário metálico com todos os documentos do Hashomer Hatzair. Hoje eles estão depositados no Arquivo de Guivat Haviva. Quando Cláudio se aposentou, a Organização Sionista o presenteou com um passeio a Israel, em apreço à sua dedicação. Antigos shomrim cariocas que vivem em kibutzim o hospedaram e passearam com ele pelo país. Eu o conheci quando de visita em Gaash. 99 A segunda fase do "ritual" invariável: eu apresentava a lista dos itens a serem tratados na reunião e os presentes propunham itens a acrescentar, ou mudança da ordem. Importante salientar que todas as resoluções deviam ser aceitas unanimemente. Não me recordo de resoluções tomadas por maioria. A gente discutia até "sair fumaça da chaminé", quer dizer: que todos concordassem. O "consenso", palavra muito em voga nas reuniões, constituia um pricípio sagrado. Admiro-me hoje como apesar das divergências e das discussões, chegávamos bem rápido ao consenso almejado. Em geral, Urtzi e Takser tinham opinião opostas, e ai entrava em cena o papel que desempenhava Noach, o mediador e pacificador, que com seu sorriso e calma encontrava um ponto de concordância entre os extremos. Desta forma, o barco navegava... A terceira fase: eu lia o item de turno de acordo com a ordem pré-estabelecida e dava a palavra a quem queria se expressar, e ia marcando num papelzinho os que me sinalavam para pedir a palavra. A ordem dos itens e dos inscritos era sagrada, e meu cargo era cuidar para que fosse seguida ao pé da letra. Devo salientar que as gritarias eram raríssimas, e que geralmente nos comportávamos como se estivéssemos na Câmara dos Lordes em Londres. Cada item terminava com a definição exata e unânime da resolução. A reunião que começava às 20:00, geralmente terminava à meia-noite e os jovens viajávamos frequentemente desde a casa de Takser, depois da Estação Sorocabana, até ao Brás, comer pizza no restaurante "Gigeto". Para a 100 reunião eu ia a pé, mas voltava no carro de Samuel. Blima Plonka, que se casou com o Samuel, e atualmente é minha vizinha, me revelou que o automóvel pertencia ao pai dela e o Samuel vinha as tardes pegar as chaves do carro. As famílias deles eram vizinhas e muito amigas. Sara, mulher do Takser, pequena e de óculos, era uma "shomeret" fervorosa, e sem ser membro oficial participava as vezes nas reuniões. Nós a acatávamos porque era muito positiva e moderada, a única capaz de colocar o marido no lugar. * Não me recordo em que circunstâncias entramos em contato com a direção do movimento na Polônia, que se organizou em Lodz depois da Segunda Guerra Mundial. Recebemos dela alguns exemplares de revistas em hebraico e do jornal "Mosty" em polonês. O redator era Mark Gefen, que mais tarde foi em Tel-Aviv o redatorchefe do diário Al-Hamishmar, o órgão do Kibutz Artzi e do Partido Mapam. Ao tomar conhecimento de que eles tinham carência de roupas, organizamos uma campanha em nosso ken a fim de juntar um caixão de roupas para jovens e crianças (roupas em bom estado, como se fossem novas) e o despachamos à Polônia por navio. Depois de dois meses recebemos confirmação de que receberam o caixão. O Seminário O movimento cresceu rapidamente e kvutzot novas foram se organizando, geralmente de tzofim-tzeirim (de 13 a 15 anos) e os madrichim deles eram os tzofim de Amnon, Samuel e Blima. Pequeno número de bogrim mantinha, a muito custo, o movimento. Devíamos 101 prementemente ampliar o grupo de bogrim, e assim surgiu a ideia do seminário de "hitrachavut" (expansão). Estávamos em época de férias e resolvemos convidar amigos para um seminário ideológico do Hashomer Hatzair. Urtzi, muito relacionado com a diretoria do Clube Macabi, obteve licença de usar a sede social do clube para as reuniões. Durante uma semana nos reuníamos diariamente depois do almoço, e compareciam além de todos os bogrim, convidados como Benjamim Raicher, Samuel Oksman, Chaim Bulka, Bernardo Goldsvaig, Riva Shepshelevich, Hinda Naiberg, Bernardo Cimering e outros, de quem não me recordo. Eu preparava a introdução do tema e em seguida vinham os debates, muito animados. Lá pelas 16:00 aparecia o Takser e ele tomava a batuta e concluía o tema, da forma abalizada e autoritária. De que falamos? De tudo que se pode imaginar relacionado com a ideologia do Hashomer Hatzair: sionismo, chalutzianismo, socialismo, marxismo, materialismo-dialético, o kibutz, a fraternidade e a igualdade, os Dez Mandamentos do Hashomer Hatzair. Do ponto de vista intelectual e ideológico o seminário foi um sucesso. Admiro retrospectivamente o nível e seriedade dos debates, que contribuíram para a consolidação da ideologia de nossos bogrim (a começar de mim mesmo), porém os resultados práticos foram minguados. Somente Riva, Bulka, Hinda e mais um ou outro jovem se incorporaram ao movimento. Bernardo Goldsvaig, amigo meu desde o tempo do Talmud-Torá, informou-me que se identificava com o 102 Hashomer Hatzair, mas não podia aderir efetivamente ao movimento, pois estava muito ocupado com sua preparação para ingressar na Faculdade de Odontologia. Eu o admirava como desportista – dedicava-se à atlética. Samuel Oksman, como já relatei, foi a Recife lecionar o hebraico. Benjamin Raicher, a quem também já me referi, pessoa carismática que eu respeitava muito pelos seus conhecimentos de hebraico e judaísmo, compareceu a todas as reuniões. Depois do seminário, ele me revelou que veio por curiosidade de conhecer o Hashomer Hatzair, porém já tinha um caminho decidido: ele já era um dos dirigentes do Dror-Mapai em São Paulo (foi quando fiquei sabendo disso). Bernardo Cimering surgiu de Santos, e não me recordo como o conheci. Rapaz sério e resoluto, dizia-se borochovista e costumava citar pensamentos de Ber Borochov. Foi muito ativo no seminário e veio até em casa a fim de me comunicar suas conclusões. Tivemos uma conversa amigável bem longa e concluiu que a ideologia do Hashomer Hatzair era muito interessante, mas não lhe convinha. Ele almejava ser um dos líderes do sionismo, como David Ben Gurion, e o Hashomer Hatzair não era trampolim para suas aspirações. Ingressou no Dror-Mapai. Justo quando estava saindo do meu quarto, Bernardo deparou com meu pai. Eu os apresentei e Bernardo disse ao meu pai "o seu filho é um rapaz bom e admirável, mas não nasceu para líder". Eu me senti ofendido, mas hoje concordo plenamente com ele... 103 Bernardo Cimering, hoje Dov Tzamir, líder do Dror no Brasil e membro do kibutz Bror-Chail desde 1960, realizou quase todos seus sonhos. Desempenhou os cargos mais centrais de seu kibutz (mazkir por três vezes), chefiou a direção mundial do Dror-Mapai, foi Secretário do Ichud Hakibutzim (a antiga federação dos kibutzim do Mapai). Graduado em Ciências Políticas e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém, e Doutorato em Estudos Estratégicos pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Foi assessor do Presidente Itzchak Rabin e chegou a ser candidato a deputado na Knesset (Parlamento de Israel). Currículo de vida de se prezar. A lishká No começo os bogrim se reuniam em minha casa. No meu quarto havia duas camas (uma de minha irmã, a outra minha) e no meio do quarto uma escrivaninha bem larga com três gavetas: uma de minha irmã, uma minha, e a terceira era a secretaria do Hashomer Hatzair. Na Rua da Graça não havia nenhum prédio de mais de dois andares e as casas, na maioria térreas, de moradia. Em 1945 construíram um prédio de 4 andares, com salões para alugar. Urtzi mobilizou a sua turma de exshomrim e eles alugaram o 4º andar para o Hashomer Hatzair. O contrato por um ano foi assinado também por Samuel Kleiman, o único boger com tal direito. A nossa lishká, no último andar, era o menor salão do prédio, com uns 6 metros de largura, mas bem fundo, com dois quartos ao lado da escadaria. Um deles servia para peula de kvutzá , uma de cada vez, e nela só haviam cadeiras. A outra estava reservada para a mazkirut 104 (secretariado), tinha uma escrivaninha bem grande, várias cadeiras e um armário, para os documentos, livros. brochuras educacionais, bandeiras e outros apetrechos. Tínhamos uma máquina Remington de escrever. A lishká estava aberta o dia todo, pois os chanichim vinham passar ali o tempo livre deles, O salão era suficiente grande para festas e mifkadim (ordem unida) de todo o Ken, ordenado em sentido, cada kvutzá com o seu madrich, que anunciava o nome da kvutzá e o número dos chanichim presentes. O rosh hamifkad (o chefe da ceremônia) anotava os números e depois de calcular quantos presentes haviam, proclamava o resultado em voz alta e aí vinha a vez dos hinos: Hatikva (hino do movimento sionista e atualmente o hino nacional de Israel), Techezakna (da Histadrut), Anu Olim vesharim (do Hashomer Hatzair) e, às vezes, o 105 Hino dos Partisans Judeus "Al-nah tomar hinê darki hacharona" (Não diga: este é o meu último caminho). Depois de toda essa cantoria começava a peulá propriamente dita: danças de hora, "iuhlalá" e outras. Em seguida, algum programa coletivo ou cada kvutzá se reunia com seu madrich em seu cantinho, Eventos de todo o ken aconteciam em ocasiões de festas ou comemorações, ou para recepção de visita importante. Quando alugamos a nossa lishká não sabíamos que o Betar alugara o segundo andar do mesmo prédio. Aconteceu um acordo não escrito, armistício nãodeclarado entre o Hashomer Hatzair e o Betar – nada de encrencas e discussões no prédio e nas vizinhanças. Para chegar à lishká, devíamos passar pela entrada do Betar (a escadaria até aí era comum aos betarim e shomrim), mas nunca soube que houve um atrito ou choque entre eles. Eu tinha muitos conhecidos do Betar e quando nos encontramos, não discutíamos politica. Só uma única vez me lembro de um choque e briga entre nós, que descreverei no episódio do Capitão Kolitz. Como já contei anteriormente, um dos meus melhores amigos no ginásio, senão o melhor, era Oswaldo Kowes. Antes de eu começar a me interessar pelo Hashomer Hatzair e ainda pertencia ao Departamento, ele me apareceu em casa com um livro volumoso em espanhol de Zeev Zabotinski, a fim de convencer-me a aderir ao Betar. Bastou uma folheada no livro para devolvê-lo, dizendo que não me interessava. Justo li um trecho atacando ferozmente a Histadrut, e isto me bastou. 106 Durante os 7 anos que estudei no ginásio frequentamos sempre na mesma classe, e como os alunos se sentavam por ordem alfabética, sempre estávamos próximos. Apesar de jamais termos discutido, desde que ele ingressou no Betar e eu no Hashomer, paramos de conversar. Nos comportávamos no ginásio, como nas proximidades do prédio da lishká, como se não nos conhecêssemos. Este comportamento não impediu que certo dia Oswaldo viesse me contar que um grupo do Betar entrou em acordo com o comandante de um navio cargueiro de que os levaria até a Itália e em troca eles lavariam o convés e prestariam outros pequenos serviços. Na Itália a Agência Judaica se encarregaria de transport9a-los a Eretz-Israel. Oswaldo perguntou-me se eu estava interessado em vir com eles, sem nenhum compromisso com o Betar. Ele me afirmou que o grupo concordava em me levar. Respondi que pensaria no assunto, mas antes de me resolver, soube que um dos pais descobriu a trama e a denunciou à Polícia. O comandante do navio foi advertido a não embarcar clandestinos e assim terminou a tentativa de ir a Eretz-Israel. Em 1948, soube que Oswaldo e seus companheiros do Betar viajaram, como nosso grupo, para a Itália, e foram se apresentar aos representantes da Haganá em Milão como voluntários de Tzahal. Quando o nosso grupo veio ao acampamento-depósito da Sochnut em Kurdani, perto de Haifa, procurar nossas malas, que estavam jogadas no terreiro entre centenas de malas de imigrantes como nós, qual não foi minha surpresa em deparar com Oswaldo e seus companheiros 107 procurando as malas deles. Um único momento de hesitação e nos abraçamos efusivamente, Toda as desavenças do passado esvaeceram como se jamais tivessem acontecido. A nossa amizade retornou-se intensa até hoje, com a diferença que nos últimos anos nos encontramos pelo telefone. A idade..., a idade... Como já disse, Oswaldo é atualmente Asher Covesh, chaver do kibutz Kfar Szold. Olim da Agentina De todas as correspondências que eu mantinha, a mais intensa era com o Hashomer Hatzair da Argentina. Tinha contato com Chaim Kopelov, hoje meu vizinho em Gaash. Certa vez me mandou três livros em espanhol, que me recomendou ler: A tragédia biológica da mulher de Nemilow, a novela Facundo de Sarmientos e o ensaio O Homem Medíocre de José Ingenieros. Em Novembro de 1945 recebemos um telegrama da Argentina comunicando que 3 olim (os que ascendem a Eretz-Israel), os primeiros do Hashomer Hatzair da Argentina – Chaim Kopelov, Arié Slotzki e Mordechai Wainerman – viajavam no navio "Cabo de Hornos", que deveria aportar no Rio de Janeiro durante um dia. A Moatzá resolveu mandar Urtzi, Amnon e eu ao Rio para nos encontrarmos com eles. Além dos olim do Hashomer havia olim do Dror e do Hanoar Hatzioni, e todos foram recebidos por jovens sionistas cariocas. 108 Nós estávamos no porto quando chegaram e com Abrão Levandovsky como cicerone fomos passear pela cidade. À noite todos os olim se encontraram na Biblioteca Bialik com jovens sionistas do Rio. Nós passamos a noite hospedados em casas de famílias 109 judias. Meyer Camenietzki me levou para dormir em sua casa, mas passamos a noite inteira conversando. Ele pertencia a um grupo de jovens simpatizantes do Hashomer Hatzair, rapaz muito inteligente e com vastos conhecimentos do socialismo e do marxismo. A conversa animada continuou noite a dentro. De manhã, Meyer me acompanhou ao aeroporto, de onde voamos de volta para São Paulo. Tornamo-nos amigos e continuamos a trocar idéias por correspondência e pelo telefone, até quando ele saiu do movimento, o que relatarei oportunamente. O Hashomer Hatzair do Rio O contato com os três olim da Argentina foi a mola propulsora para fundação do Hashomer Hatzair no Rio de Janeiro. Entre os primeiros se encontrava Pinchas (Pini) Derechinsky, que pertenceu ao movimento na Polônia. Eu o conheci no porto, e me deu a impressão de shomer convicto, cheio de nostalgia ao movimento, mas não me parecia capaz de líderar. Além de Meyer e Levandovsky, não conheci os fundadores do Ken, mas soubemos que se tratava de uma turma de mais de 20, muitos deles alunos de universidade e em geral mais idosos do que os bogrim de São Paulo. Com a nossa vinda ao Rio se estabeleceram os laços entre as duas organizações, o Ken de São Paulo e do Rio. Nós lhes remetíamos cópias do material educacional que possuíamos e dos programas que preparávamos para nossos madrichim (instrutores). Mantínhamos constante contato por correspondência, mas não estávamos a par do que acontecia no ken deles. 110 Neste interim veio ao Brasil o shaliach (emissário) Natan Bistritzky, designado ao Rio, mas passou umas duas semanas em São Paulo. Natan Bistritzky Natan Bistritzky, famoso poeta e escritor hebraico, era shaliach (emissário) do Keren Kayemet que passou por vários paises sul-americanos. Não sei definir exatamente qual era sua função, mas teve um sucesso extraordinário em suas conferências, que atraiam enorme público. Em São Paulo, o Teatro Municipal estava superlotado quando se apresentou ali. Era um orador muito teatral, diria espetacular (de "espetáculo"). Até a democratização do Brasil no ano de 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, era necessário licença da policia política para qualquer atividade pública. Mesmo em espectáculos inocentes de cinema e jogos de futebol um "olho" espreitava... Na época da ditadura de Getúlio os shlichim trabalhavam na penumbra em contato apenas com os dirigentes da coletividade e a custo davam conferências em "palcos" reservados, como o nosso Departamento Juvenil e clubes judaicos. Natan Bistritzky foi o primeiro shaliach a atrair multidões. Takser ficou muito emocionado com a vinda de Bistricky e nos contou que ele foi nas vésperas da Primeira Guerra Mundial um dos fundadores do Hashomer Hatzair na Polônia, e em 1922 editou a compilação "Kehilateinu". Em 1920, 26 chalutzim do Hashomer Hatzair da Galícia e de Vilna, chegados a Palestia, foram trabalhar em 111 Betânia Elit, fazenda experimental da ICA nas proximidades do lago Kineret, onde sonhavam realizar os ideais radicais de "cultura juvenil" r de "consertar o mundo, o homem e a sociedade". O já famoso escritor Bistritzky foi convidado, para escrever um livro sobre o que pensavam e discutiam, e para esse fim conviveu com eles por certo tempo. "Kehilatenu" (Nossa Coletividade) relata as discussões de como transformar sonho utópico em realidade. O livro transformou Betânia Elit em mito nacional comparável a Tel-Chai e serviu de inspiração a Yoshua Sobel em sua peça teatral "A vigésima noite", que obteve sucesso extraordinário. Outras obras de Bistritzky: versão hebraica de Don Quixote de Cervantes, Iamim uleiltot (Dias e noites) em 4 volumes. Noite de Jerusalém, Jesus Nazareno. * Depois da primeira conferência pública de Bistritzky, Takser, Urtzi, Amnon e eu fomos ao hotel em que estava hospedado convidá-lo a se encontrar com os bogrim do Hashomer Hatzair. Ele aceitou o convite com prazer, mas frisou que sendo funcionário do Keren Kayemet podia dedicar-se ao Hashomer Hatzair somente depois do trabalho, e acrescentou que ainda aquela noite gostaria de se encontrar conosco fora da cidade, pois sentia saudades das noitadas shômricas no campo, dos seus bons tempos no movimento. Mobilizamos todos os veículos dos ex-shomrim, mais o de Samuel Kleiman, e viajamos como sardinhas todo o cortejo de shomrim para o campo do Macabi, nas margens do Rio Tietê. 112 Acendemos uma fogueira e nos sentamos em volta. Noite de estrelas, muito romântica... Bistritzky, dotado de uma voz muito potente. cantou conosco com muita devoção "Arum der faier zinguem mir líder" (Ao redor do fogo cantamos canções). Nos o acompanhamos e esgotamos nosso repertório, em idish e hebraico. Terminada a cantoria, nos calamos. Aguardamos impacientes a palavra de Bistritzky, que cerrou os olhos e se calou sem se mover. como se estivesse meditando. Não sabíamos se estava dormindo ou não, e continuamos aguardando, em silêncio,... De repente Bistritzky começou a cantar em espanhol, em surdina; "Amor, amor, amor / nasció de ti / nasció de mí/ de la esperanza..." e foi de "crescendo" até "altíssimo". Prosseguiu com "La última noche que pasé contigo / quisiera olvidarla pero no he podido". Ao terminar, se levantou e declarou "Agora posso voltar ao hotel". Abismados e desapontados, nos levantamos... No caminho de volta, Bistristzki, que viajava no carro de Takser, comprometeu-se a realizar um seminário de três noitadas sobre o Hashomer Hatzair. * Em nossa séde de então, a minha casa, não havia espaço para todos os participantes do seminário, todos os exshomrim e bogrim. Obtivemos permissão de realizá-lo na Escola Renascença e lá nos reuníamos às 22:00, a espera de Bistritzky, que Takser trazia do hotel em que estava hospedado. No começo tínhamos que cantar, pois como era possível 113 uma reunião de shomrim sem o "Anu olim" e etcétera... Desta vez Bistritzky não adormeceu e nos dissertou, nas três reuniões sobre a História do Hashomer Hatzair, desde o comecinho em 1913 até a fundação do Kibutz Artzi no kibutz Merchávia, em 1927. Confesso que presenciamos um espetáculo dramático e empolgante. Bistritzky era um orador de estirpe! Falava com ênfases e realces, como se estivesse perante um auditório de mil assistentes. Naquela epoca eu não tinha gravador, e portanto anotei suas dissertações palavra por palavra. Lamento profundamente não encontrar estes apontamentos, documentação preciosa em minha opinião. Eu já sabia mais ou menos tudo que contou, porém não encontro superlativo para definir a forma virtuosa com que expôs e analisou os acontecimentos. * Para dar uma ideia dos "espetáculos" de Bistritzky, tentarei descrever uma delas: O Teatro Municipal, estava ultra-super-lotado. Com a entrada de Bistritzky ao palco o público o recebia cantando entusiasticamente "Leben zol Bistritzky mit zain hora" ("Viva o Bistritzky com sua hora", dança israelense) e ele acompanhava com sua voz potente, dando compasso com palmas. Em seguida parava no centro do palco, esperando que houvesse silencio absoluto. "Um copo de leite", pedia com delicadeza e lhe serviam um copo de leite preparado de antemão. Ele o bebia lentamente, e o público, em silencio... "Shomrim, chazak!", proclamava em voz alta e todos os bogrim presentes no teatro gritavam "Chazak Veematz!". Proclamação e resposta, três vezes, como de praxe no movimento. Em seguida cantava "Anu olim ve sharim, al 114 charavot ufgarim" ("ascendemos e cantamos, sobre escombros e cadáveres"), hino do Hashomer Hatzair, que lembra as palavras da Internacional "destruiremos o mundo velho e construiremos sobre os escombros um mundo novo", tradução livre). Os shomrim presentes se levantavam em posição de sentido, e o público acabou participando nestas cerimônias. Aí Bistritzky iniciava sua dissertação, de até duas horas, que hipnotizava os ouvintes, e a terminava com a "Hatikva", que o publico cantava com entusiasmo. * Além do seminário, a maior contribuição de Bistritzky ao Hashomer Hatzair em São Paulo foi a nossa legitimação na coletividade judaica da cidade. Ele forçou as instituições sionistas a reconhecer o Hashomer como fato consumado e a Organização Sionista, o Keren Kayemet e o Keren Haiessod tiveram que aceitar nossos representantes em suas diretorias. O Urtzi, que antes figurava nelas em caráter pessoal, tornou-se o nosso representante oficial nestas instituições. Convém salientar que mesmo antes deste reconhecimento, o Hashomer Hatzair obtinha mais de 50% das contribuições arrecadadas para o Keren Kayemet pelos movimentos juvenis da cidade. Bistritzky pavimentou o caminho para a fundação oficial do Hashomer Hatzair no Brasil. 1945 – Com meus paiis no pomar de Vovô 115 Capítulo 7 - Hashomer Hatzair no Brasil A fundação oficial Nossa posição na coletividade sionista em São Paulo estava consolidada. O Hashomer Hatzair estava representado por Urtzi nas principais instituições sionistas da cidade, os nossos kenim no Bom Retiro e Brás estavam se ampliando e funcionando como relógio suiço. Chegara a hora de sair do anonimato e fincar pé, fundar oficialmente o Hashomer Hatzair em um ato representativo. Urtzi não teve dificuldade de obter o salão de teatro do Clube Macabi, e às 10 horas da manhã do dia 25 de Dezembro de 1945 ele ficou repleto de ex-bogrim e bogrim, simpatizantes do movimento, pais de nossos chanichim e convidados da coletividade sionista da cidade. Eu, como desenhista-gráfico e decorador-amador, me encarreguei de enfeitar o palco bem grande. As moças prepararam a bandeira do ken: bordaram em um pano vermelho o emblema do Hashomer (flor-de-liz com os louros ao lado e o lema "Chazak Veematz") e em cima, o título "Hashomer Hatzair do Brasil", tudo em hebraico. Desenhei o emblema em uma cartolina branca e em baixo, em português, em duas linhas, "Hashomer Hatzair" e "BRASIL", e o coloquei no meio da parte superior do cenário; como era pequeno demais, coloquei um mapa de Eretz-Israel que emprestei do Keren Kayemet. Também peguei emprestado pôsters de Bialik, Ushiskin e Sokolov, que não sei o que tinham a ver com nosso movimento, mas eram os únicos que lá havia. Consegui do Macabi uma bandeira enorme do Brasil, 116 que penduramos do lado esquerdo, e a bandeira azul e branca sionista (com um Escudo de David pequeno no canto). Cobrimos a mesa comprida ao longo de quase todo o palco com lençóis e pendurei nele lemas em hebraico que desenhei em folhas de cartolina, como "shomer paam, shomer lanetzach", (uma vez shomer, shomer para sempre). Todo este cenário e as pessoas figurantes foram imortalizados por Viotti, o fotógrafo mais conceituado do Bom Retiro e na coletividade. No centro da mesa estavam Paulo Feldman e Uron Mandel e ao lado deles eu – Nahum Mandel – e Amnon Yampolsky, representando o ken de São Paulo e do outro lado Moshe Glat, do Rio, que veio com mais dois bogrim do Rio. Além de nós, estavam presentes representantes das mais importantes instituições Sionistas: Vitório Camerini, Corinaldi, Jacob Lerner, Maurício Blausteim, Marcos Frankental. Como 117 representante do Centro Hebreu Brasileiro ali estava o nosso já conhecido professor Citman. Atrás de todos estava em nome de si mesmo Niúma Berger, primo de Urtzi. Urtzi dirigiu a sessão. Como era de praxe, cantamos a Hatikva e Anu Olim, e Paulo Feldman dirigiu ao público algumas palavras em idish e proclamou festivamente a fundação do "Movimento Juvenil Sionista-Socialista Hashomer Hatzair do Brasil". Aclamou "Chazak!" e os shomrim bradaram "Chazak Veematz!", três vezes. Amnon, nosso orador, congratulou o acontecimento, primeiro em algumas frases em português, para passar como era de seu costume a um hebraico com as consoantes guturais bem acentuadas, como falam os judeus orientais em Israel (sua mãe nasceu em EretzIsrael, descendendo de várias gerações de origem oriental). Não sei precisar quantos pessoas entenderam o que disse, mais foi fortemente aplaudido. Alguns dos representantes também proferiram congratulações, em português e idish. Finalmente Isaac Takser, que poucos dos presentes conheciam, subiu ao palco para dissertar em idish seu discurso programático – sua estréia como líder do Hashomer Hatzair. Expôs uma resenha da história e da ideologia da Hashomer Hatzair, falou sobre a "mered haben" (revolta do filho, concepção sionista que os filhos não devem seguir o caminho de Diáspora dos pais), não se esqueceu do socialismo e do marxismo, de um mundo melhor e mais justo que almejávamos. Em suma, em uma hora em ponto abordou todos os aspectos da ideologia shômrica, 118 utilizando de lembrete um papelzinho pequenino com a lista dos itens a abordar. Novamente, não sou capaz de calcular quantos ouvintes convenceu com sua argumentação analítica e detalhada. Pode-se concluir que a cerimônia foi um ato histórico – perante os pincipais líderes sionistas da cidade, o Hashomer Hatzair do Brasil estava oficialmente fundado. * À noite a Moatzá se reuniu na casa de Takser, com a presença dos três delegados do Rio de Janeiro. Moisés Glat relatou sobre o Hashomer Hatzair no Rio de Janeiro. Gabou-se da shichvá (camada) de bogrim (faixa de maiores de 18 anos), mais numerosa e mais intelectual do que a de São Paulo, e descreveu minuciosamente as suas atividades. Contou que eram dotados de alta preparação política e de como, conscientes da luta contra o capitalismo e o imperialismo, participavam ativamente na campanha eleitoral do Partido Comunista. Aqui despertou uma discussão acerada sobre o posicionamento político dos membros do Hashomer. Takser principalmente foi o porta-voz da posição de que o Hashomer Hatzair devia ocupar-se unicamente da hagshamá-atzmit (auto-realização) das metas do movimento. O debate foi prolongado e "quente", mas não convenceu o Glat. * 119 Discussão com os Comunistas O processo de democratização no Brasil depois da Segunda Guerra Mundial provocou uma metamorfose no cenário político do país. Foi permitida a organização de partidos políticos, o Brasil estabeleceu relações diplomáticas com a União Soviética e o Partido Comunista foi reconhecido como legal. Luiz Carlos Prestes, o legendário líder comunista, foi solto da prisão e tornou-se o superstar da política brasileira. Multidões afluiam aos comícios e "sabatinas" dos dirigentes comunistas, que ocorriam em praças públicas. Células comunistas brotaram por todos os cantos como cogumelos depois da chuva, e a campanha de alfabetização que patrocinaram, atraíram homens e mulheres de todas as idades, que vinham a aprender a ler e escrever com os estudantes de universidades que se prontificaram a ensinar. As bancas de jornais vendiam por uma ninharia revistas e livros (geralmente impressos em papel jornal) da literatura comunista clássica: o "Manifesto Comunista" e livros de Marx, Engels, Lenin, Stalin, Plekhanov, Lassale e muitos outros. Também Trotzki e Bakunin. Tenho impressão que li de tudo. Nada como uma boa piada para se fazer idéia do que se passava. Um jornalista, entrevistando a um camponês que se tornou um comunista fervoroso, perguntou: "O senhor é ateu?". A resposta imediata: "Sou, graças a Deus!". Em tal ambiente não é de estranhar que muitos de nossos jovens judeus estavam ofuscados pela "aurora do novo mundo". 120 * Minha principal controvérsia com amigos judeus do ginásio inclinados ao Partido Comunista, sem pertencer a ele (eu os apelidava de "comunistas de salão"), dizia respeito ao sionismo e à doutrina de Theodor Herzl, que em resumo defendia a tese que somente a criação de um Estado Judeu solucionaria o problema do povo judeu. Os meus contendores pró-comunistas alegavam que o sionismo é um desperdício de tempo e de energia, pois com a implantação do comunismo no mundo, a libertação de todos os povos do jugo do capitalismo e do imperialismo, automaticamente resolveria o problema do povo judeu, Em vista do que aconteceu na União Soviética, penso atualmente que talvez eles tinham razão: se Stalin continuasse a viver mais alguns anos, ele "resolveria" o problema do povo judeu com mais eficácia do que Hitler em sua "solução final". Não faltou muito para que a assimilação vermelha tivesse melhor resultados do que os crematórios. Outra alegação comum, com palavreado do marxismohistórico-materialísta-dialéctico: somente ação da classe proletária poderia redimir o mundo da exploração econômica e da discriminação étnica e social. Fator como o vínculo sentimental do povo judeu com Eretz-Israel não tinha para eles o mínimo significado. De acordo com eles, na História da Humanidade somente as classes eram relevantes – ações de indivíduos não influíam. Eu alegava o contrário, que também classes e massas agem sob influência de líderes, de indivíduos. Como exemplo citei Moisés. Jesús Cristo, 121 Buda, Maomé, que criaram religiões que mudaram o curso da História, e acrescentei os nomes do grandes conquistadores, Alexandre Magno, Gengis Khan, e mesmo Hitler. Que rumo tomaria a História se Júlio Cesar tivesse resolvido não atravessar o Rubicon e se o general Junot com suas tropas tivesse chegado a tempo a Waterloo e Napoleão tivesse vencido a batalha (a biografia que Stefan Zweig escreveu de Junot foi então lançada no Brasil, com grande divulgação). Para usar as armas deles, comecei a citar trechos de Plekhanov sobre a influência de personalidades. Lembro-me de que contei a fábula de como por causa de um prego que caiu da ferradura de um cavalo, o cavaleiro não chegou a tempo de entregar a mensagem e devido a isso o general perdeu a batalha que mudou o destino da humanidade. Para mim a Historia não era apenas uma luta de classes. Era algo bem mais sofisticado. Meus contendores marxistas retrucaram que independentemente das personagens individuais, a História teria o mesmo rumo, e eu então os chamei de "devotos do determinismo divino". * A convicção que conduta pessoal, como a dos chalutzim que estabeleceram kibutzim em Eretz-Israel, influía no destino do povo judeu, foi que me levou a largar os estudos nas vésperas de ingressar na universidade, abandonar a família e me alistar como voluntário ao Exército de Defesa do novo país em plena Guerra de Libertação de Israel (1948) – a guerra mais difícil e 122 decisiva dos judeus nos tempos modernos. Não obstante os desapontamentos e frustrações que defrontei, essa convicção, que até para mim me parece bombástica, me manteve no kibutz e em Israel até hoje. A questão do papel do indivíduo na História sempre me empolgou. Quando editei a brochura "Nos bosques e nos guetos" (me referirei a ela oportunamente) citei o que escreveu Moshé Furmanski, um dos fundadores do kibutz Ein Hashofet, morto em defesa de seu kibutz: "Há quem lamenta sermos numericamente poucos. Realmente, temos que crescer e avolumar, pois não vemos nenhuma vantagem em nossa limitação. Entretanto, como movimento chalutziano revolucionário, devemos nos relacionar diferentemente aos números: dos quinhentos Biluim (movimento sionista no século 19) que vieram a Eretz-Israel, apenas 16 ficaram – eles que fizeram a História. Milhões de judeus foram trucidados na Europa e como foi ínfimo em relação a eles os que combateram, como no Gueto de Varsóvia, mas eles fizeram História". (tradução livre do inglês) * O mais acalorado dos amigos com quem eu costumava discutir era Victor Nussenbaum, fervoroso anticapitalista que depois de se formar em medicina, foi aplicar assistência médica nos Estados Unidos, e não na União Soviética, como era de se esperar. Os comunistas não obtiveram nas eleições os resultados que esperavam. Conseguiram eleger senadores e deputados, porém em número bem longe de suas expectativas, e nem sequer desconfiavam da reação iminente que estava na moita para dar o bote: acabar com o festival e caçar os comunistas como se fossem bichos. Isto aconteceu com o golpe dos generais que se apossaram do poder nos meados da década de 1960, 123 quando eu já vivia em Israel. * O famoso discurso de Nikita Khrushchev no Vigésimo Congresso do Partido Comunista na União Soviética denunciando os horrores da ditadura stalinista abalou os alicerces ideológicos dos "progressistas" judeus no Brasil e eu soube que quando explodiu a Guerra de Yom Kipur (1973) e a existência de Israel estava em perigo (as primeiras notícias irradiadas pelas estações de rádio comunicaram que Tel-Aviv foi arrasada pela aviação egípcia), os nossos "progressistas" correram para as sinagogas para jejuar e rezar pelo destino de Israel... Fechamento do Hashomer no Rio Dirigentes sionistas paulistas que retornaram do Rio de Janeiro se queixaram conosco que o Hashomer Hatzair no Rio de Janeiro não passava de uma célula camuflada do Partido Comunista e que seus membros se ocupavam em distribuir panfletos do Partido pelas ruas e. de madrugada, pintar paredes com lemas comunistas. Os rumores eram insistentes e não sabíamos como reagir. De uma carta que recebemos em 8/3/46 de Alberto Adoni, o secretário do Hashomer Hatzair no Rio de Janeiro, soubemos das ótimas relações que o pessoal carioca mantinha com Bistritzky, e resolvemos apelar à sua ajuda para elucidar o assunto. Ele propôs realizar um kinus (conferência) de bogrim das duas cidades e se prontificou a dirigi-lo, com a condição de ser aceito como a única autoridade e que suas decisões seriam acatadas sem discussão. Afinal de contas ele era (assim se apresentava...) na América do Sul o representante pessoal de Meir Yáari, o líder indiscutível do Hashomer 124 Hatzair. Nós concordamos. Adoni, com quem conversei pelo telefone, também. E no dia marcado fomos ao Rio de Janeiro, Isaac Takser, Paulo Feldman, Uron Mandel, Amnon Yampolski, eu e outros bogrim (não me recordo exatamente de todos) . Nos encontramos com os bogrim cariocas (não consigo recordar-me do local). Calculo que eram uns 30 jovens, dos quais eu conhecia somente Meyer Camenietzki, Pinchas Derechinski e Moisés Glat. Chegamos antes do meio-dia, mas não fomos almoçar, pois prepararam um bufê com uma chaleira de café e uma quantidade enorme de sanduíches. Bistritzky apareceu logo no começo da reunião e imediatamente tomou em suas mãos as rédeas, ou melhor dito, o leme, e dirigiu a "carruagem", ou "navio", como um piloto experimentado em enfrentrar tempestades. Começou declarando que se encontrava na reunião como representante pessoal de Meir Yáari, o líder máximo do Hashomer Hatzair, e como tal seria o único árbitro das desavenças que surgissem nos debates. Em seguida fez uma resenha magistral em uma hora do que nos dissertou no seminário ideológico em São Paulo durante três noitadas. Não descrevo, o que já deve ser evidente, a cantoria – postulado sine-qua-non de toda atividade shômrica: Hatikva, Anu Olim, e mais algumas canções – para "esquentar o cano" (tradução literal de uma espressão israelense, que não conheço equivalente em português), e voltamos diretamente à vaca fria que nos trouxe ao Rio 125 – os rumores que o Hashomer Hatzair do Rio estava envolvido em atividades comunistas. Como não anotei o desenvolvimento do debate, não posso citar com responsabilidade o que cada um disse, além de informar que muitos presentes tomaram a palavra a fim expor os seus posicionamentos. A maioria dos participantes do Rio repetiram na discussão, com leves nuances, o que Moisés Glat alegou na reunião na casa de Takser, que sendo um movimento socialista, não podíamos esquivar-nos do que se passava no mundo. Não bastava sonhar com um mundo melhor, precisávamos agir neste sentido, e como brasileiros e marxistas tínhamos a obrigação de contribuir na luta do Partido Comunista Brasileiro contra a opressão do imperialismo capitalista americano. Não podíamos ficar alheios ao destino do país em que vivemos. Do nosso lado, a delegação de São Paulo defendeu a tese de que o Hashomer Hatzair era antes de mais nada um movimento sionista, que visava criar kibutzim em EretzIsrael (então Palestina sob mandato inglês). Era este o nosso caminho para realizar a ideologia socialista. Contávamos em nossas fileiras muitos jovens e crianças e não podíamos nos arriscar a nos complicar na política brasileira. O Brasil estava realmente em uma situação de euforia democrática pós-guerra mundial, mas quem nos garantia que não acontecesse uma reviravolta e que as forças reacionárias em hibernação assumissem o poder no país e voltassem a perseguir os comunistas e seus simpatizantes. Afirmamos que devíamos ser fiéis ao nossos ideais e neles concentrar as nossas atividades. O Hashomer 126 Hatzair era constituído de kenim (plural de ken – ninho, em hebraico - como era denominado a nossa unidade organizacional, paralela à "tribo" dos escoteiros") e não de células comunistas. O debate foi se esquentando e à meia-noite Bistritzky o interrompeu, propôs continuá-lo de manhã às 8:00 horas, levantou-se e se retirou. A maior parte dos presentes não abandonaram o salão – passaram a noite dormindo sentados nas cadeiras. Bem às 8 horas da manhã, Bistritzky retornou e os debates recomeçaram. Ele os dirigiu, sem intervir. Deixou todo o mundo falar, e se manteve calado. * Quando começou a anoitecer, Bistritzky deu paradeiro às discussões e proferiu seu veredicto: membros do Hashomer Hatzair que quiserem influir na política interna do pais poderiam fazê-lo votando nas eleições, se tiverem direito a votar. O Hashomer Hatzair tinha suas finalidades e quem quisesse pertencer ao movimento comprometia-se a dedicar-se única e inteiramente a elas. Ele falou novamente da importância da hagshamá-atzmit (auto-realização) dos objetivos shômricos. Para encerrar, deu uma espécie de ultimato: cada um dos bogrim cariocas deveria resolver por si o que quer – pertencer ao Hashomer Harzair ou não. "Não se dança em dois casamentos ao mesmo tempo" (tradução de um ditado idish). Ele pediu que não respondessem na hora – que fossem para casa, meditassem bem no assunto e depois decidissem. Somente Pinchas Derechinski declarou 127 imediatamente que ele é antes de mais nada shomer e sionista. Os demais preferiram se calar. Nesta mesma noite, de madrugada, a delegação de São Paulo voôu (voltou de avião!) para casa, * Soubemos por telefonemas que o ken do Rio de Janeiro deixara de funcionar. Os principais membros do ken não estavam dispostos a receber nenhum ultimato e deixaram de comparecer. Pinchas, o declarado shomer convicto, não era apto de dirigir o ken. Soubemos que vários bogrim optaram pelo Partido Comunista, e que na realidade já eram anteriormente membros militantes dele. Entre eles, o Meyer Camenietzki. Lamentei muitíssimo a sua perda. Meyer Caminietzki era militante no Partido Comunista do Brasil e chegou à posição elevada de Presidente do Comitê Universitário do partido. Quando aconteceu a reviravolta no cenário político brasileiro, o fechamento do Partido, a cassação dos deputados e senadores comunistas, muitos comunistas foram presos ou simplesmente friamente assassinados. Meyer se refugiou, como outros companheiros, no interior do Brasil. Em Minas Gerais Meyer conheceu e se casou com a filha de um dirigente do Comité Central do Partido Comunista, Armando Ziller, deputado estadual constituinte em 1945, que foi cassado e caçado e se exilou na Tchecoslováquia. Por ocasião da revelação dos horrores da ditadura stalinista por Khrushchev, Meyer rasgou sua carteira de membro do Partido Comunista. Terminou o curso de medicina, formando-se em cardiologia. Em 1957 nasceu seu filho primogênito, Eduardo, músico brasileiro e judeu 128 convicto, que na sua visita em minha casa em Gaash em 2008, me forneceu dados que eu desconhecia sobre seu pai. Desavenças famíliares terminaram em divórcio e Meyer se casou pela segunda vez. Uma doença degenerativa causou sua morte prematura. * Pola Szwartztuch viajou ao Rio a fim de participar em um acontecimento famíliar e na reunião da Moatzá a encarregamos de investigar o que ali estava acontecendo com nossos shomrim. Ao voltar, Pola trouxe consigo uma caixa de cartão que recebeu do exsecretário do ex-ken, Alberto Adoni, contendo cartas e outros documentos do Hashomer Hatzair do Rio. Adoni foi muito correto e entregou à Pola todo o material pertencente ao Hashomer que estava em suas mãos, inclusive o livro de atas da hanhalá (direção), um envelope com dinheiro e o livro de contas. Alberto Adoni (se não me engano, de origem sefaradita) o conheci na reunião com Bistritzky no Rio, a única vez que nos encontramos. Impressionei-me bem dele, pela postura e modo de falar, muito maduros para sua idade (devia ter uns 21 anos). Devia ser muito instruído. Alberto contou a Pola que se sentia identificado com o Hashomer Hatzair, especialmente pela sua posição em relação aos árabes (almejava a criação na Palestina de um país binacional, judeu-árabe) e a luta do movimento 129 sionista contra o mandato inglês na Palestina, luta que gozava de muita popularidade e simpatia nos meios comunistas, que viam nela uma ação anti-imperialista. Entretanto, concordando ser impossível pertencer simultaneamente ao Hashomer e ao Partido Comunista, ele optou por este útimo. Adoni revelou a Pola que dirigia um comitê comunista em Niterói. 1940 – O ultimo dia no Grup o Escolar Marechal Deodoro 1947 – O útimo dia no Ginásio do Estado 130 Capítulo 8 – Avalanche de shlichim (emissários) Bistritzky não foi na época o único shaliach (enviado) de instituções judaicas, sionistas e não-sionistas, que atuou no Brasil. Mesmo no tempo da ditadura getuliana e da Segunda Guerra Mundial vinham shlichim, seja da Argentina ou dos Estados Unidos. Quando escrevi sobre o "Departamento", citei diversos deles. Nem todos tive a honra de conhecer (como Natan Gross-Zimerman, que foi o fundador do Dror em várias cidades do Brasil) e peço desculpas àqueles de que nem cheguei a ouvir falar. A respeito de Yuris, que serviu mais de 20 anos no Rio de Janeiro e de quem presenciei uma única conferência, dei-me o trabalho de investigar no Arquivo Trabalhista "Pinchas Lavon" em Tel Aviv e anotar resumo dos meus achados. Com a democratização depois de 1945, o Brasil tornouse um verdadeiro paraíso que atraiu uma avalanche de shlichim de todos os lados e partidos, que afluiram para empreender campanhas para seus empregadores. Em seguida recordações de shlichim que conheci e cuja atuação e influência na coletividade tiveram de certa forma repercussão em minha vida. Volto a sublinhar que apenas me referirei às minhas experiências pessoais, e de antemão apresento minhas desculpas aos que se sentirem esquecidos. Emissários e mais emissários... Que eu saiba, no período da ditadura getuliana vinham 131 frequentemente da Argentina, e às vezes dos Estados Unidos, shlichim (emissários sionistas) para organizar campanhas monetárias. Eles mantinham contato com os dirigentes da coletividade e raramente compareciam perante o público, devido às restrições políticas vigentes. Ben Tzion Margolit (United Jewish Relief Appeal), Abraham Mibashan (do partido Poalei Zion – Mapai), S. Margushis (Joint Distribution Committee), Jacob Helman (líder do Poalei Zion-Mapai), dr. Arie Tartákover (World Jewish Congress) e dr. Naftali Tortchiner (Tor-Sinai, da Universidade de Jerusalém), Chaim Finkelshtein (diretor da Escola Shalom Aleichem em Buenos Aires), os conheci quando proferiram conferências no Departamento Juvenil. Léo Hálperin e Natan Gross-Zímermen, que atuaram longos períodos pelas paragens brasileiras, não cheguei a conhecer. Rachel Sefaradi-Yarden Naqueles dias passou pelo Brasil, como um cometa, uma shlichá, a única do sexo feminino que conheci, a sra. Rachel Sefaradi-Yarden. A Sra. Yarden, secretária para os países sul-americanos do "World Commitee for Palestine" da Agência Judáica, tipo misto de matrona romana e mãe judia-polonesa, elegante, calma e bem-cuidada, foi uma inovação no cenário da coletividade judaica: não a ouvi proferir conferências, nem a vi em comícios de propaganda sionista para arrecadar dinheiro, como era de praxe entre os demais shlichim. Como já relatei, no tempo das restrições ditatoriais o shaliach mantinha contato somente com os dirigentes 132 locais. De 1945 em diante Bistritzky, e outros shlichim sobre quem escreverei oportunamente, atraíram multidões, mas geralmente sempre o mesmo público de judeus. A Sra. Yarden foi a primeira, e a única de meu tempo, que transmitiu a mensagem do sionismo além deste círculo. Não sei como conseguiu enveredar nas principais cidades do Brasil pelos meios intelectuais brasileiros e interessar professores, estadistas, artistas e outras personalidades importantes e famosas não-judias pelas metas do sionismo, a ponto de organizá-los em Comitês Pró-Instituto Weizman. Basta citar um deles, Osvaldo Euclides de Sousa Aranha (1894-1960), político e diplomata brasileiro que desempenhou cargos importantes em governos brasileiros, entre eles Ministro de Relações Exteriores. Nomeado embaixador nos Estados Unidos tornou-se amigo do Presidente Roosevelt e admirador da democracia americana, e como tal pressionou Getúlio Vargas a tomar posição a favor dos Aliados na guerra contra o nazismo. Em Janeiro do 1942, Osvaldo Aranha presidiu a Conferência do Rio, em que o Brasil e todos os países americanos decidiram romper relações com os países do Eixo, menos a Argentina e o Chile, que o fariam posteriormente. Em 1947, sendo chefe da delegação brasileira na recémcriada Organização das Nações Unidas (ONU), presidiu 133 a II Assembléia Geral da ONU e desempenhou papel importante na votação pela partilha da Palestina e sua atuação lhe rendeu eterna gratidão dos judeus e sionistas. Uma rua em Tel-Aviv porta o seu nome. * Não posso deixar de me referir a um episódio que me impressionou muito. Apesar de que quando menino não entendia nada de comunismo, a figura legendária de Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, e a marcha da Coluna Prestes incendiaram minha imaginação. A história de Olga Benário Prestes, sua companheira, me comoveu – ela foi deportada à Alemanha (apesar de estar grávida no sétimo mês e a lei brasileira não permitir a entrega de um nacional a um poder estrangeiro), onde por ser judia e comunista, sofreu durante 6 anos em vários campos de concentração antes de ser morta em uma câmara de gás em 1942. Estranhei muito ao ler na biografia "Olga" de Fernando Moraes o texto da carta da mãe de Oswaldo Aranha pedindo-lhe não aprovar, por motivo humanitários, a deportação de Olga, o que não o impediu de assinar o ato de deportaçao. Esta conduta contradiz a descrição usual de Oswaldo Aranha como combatente contra as ideologias integralistas e fascistas. * Sempre fui, e ainda sou, admirador e amante do povo brasileiro e de sua língua portuguesa. Devo minhas convicções humanistas aos 20 anos em que vivi e me eduquei no Brasil. Não consigo conciliar meu conceito arraigado do povo brasileiro com a brutalidade que descobri quando pesquisei a História do Brasil. Não me refiro somente às torturas no périodo da ditadura dos generais, mas às atrococidades no decorrer de todas as guerras e repressões a rebeldias – às orelhas que os soldados traziam para receber recompensas monetárias; 134 às decapitações e às mutilações de cadáveres... Para mim a exposição em museu das cabeças de Lampião, Maria Bonita, e outros cangaceiros, é uma barbaridade desumana. Talvez esse comportamento seja herança da Inquisição. Não garanto que é verdade, mas ouvi contar que a Gestapo mandou ao Brasil uma delegação de especialistas em torturas e eles regressaram alegando que não tinham o que ensinar aos brasileiros, e sim aprender deles... O Brasil que conheci e venero não é esse! * A Dna. Leocádia, mãe de Prestes, viajou para a Alemanha e conseguiu receber em suas mãos o bebê que a Olga teve, menina que recebeu o nome de Anita, levoua ao México, onde a educou. Li um manifesto de intelectuais brasileiros apoiando os "heróicos combatentes palestinos" que explodem bombas em concentrações civis em Israel, como bares e restaurantes, e repreendendo os "assassinos israelenses" que matam crianças que se encontravam em casa de moradia de onde palestinos atiraram mísseis a cidades israelenses. Fiquei chocado quando vi entre os assinantes do manifesto o nome da Dra. de História Anita Prestes, filha de uma judia trucidada no Holocausto e descendente pelo lado materno do povo judeu – de acordo com o judaísmo ela é judia, professora de História que repudia, ou ignora, a história de metade de seus antecedentes. Eu não deveria estranhar, conhecendo os rumores de que Torquemada, Hitler e outros algozes tinham bisavós judias... * A Sra. Yarden agiu no Brasil também em prol da "EretzIsrael Trabalhista". Ela realizou muito no Brasil, mas eu 135 a saliento por um motivo especial: como relatei em capítulo anterior, em nossos primeiros passos deparamos com antagonismo e hostilidade por parte dos dirigentes sionistas. Na verdade a posição deles em relação a nós era ambivalente: de um lado faziam tudo para impedir nosso funcionamento, mas de outro não escondiam sua admiração pela nossa atividade educacional em prol do judaísmo e do sionismo. Muitos pais estavam felizes que seus filhos em vez de perambular pelas ruas curtiam um ambiente judeu, com danças e músicas judaicas, e de normas morais elevadas. Mas quando os filhos começaram a se interessar demais por Eretz-Israel e pelo kibutz (colônia judia coletiva na Palestina), a panela virou... A Sra. Yarden, mesmo sendo partidária do "Poalei Sion", Mapai, expressou em muitas ocasiões sua simpatia ao Hashomer Hatzair, fato que nos ajudou a entrosar na sociedade judaica. * Rabino Mordechai Nurok O Rabino Nurok se encontra neste capítulo devido a uma anedota, que relato em seguida Rabino Dr. Mordechai Nurok (1879-1962) – líder do movimento e partido religioso sionista Mizrachi, oriundo da Letônia, onde foi deputado desde o Primeiro até o Quarto "Saiem" (parlamento) como representante da coletividade judaíca, organizador do "World Jewish Congress" nos Estados Unidos; membro da Knesset (o 136 parlamento em Israel) de 1949 a 1962; Ministro do Serviço Postal em Israel (1952). Como contei em um capítulo anterior, meu avô costumava frequentar todas as rezas no pequeno shil (sinagoga, em idish) no segundo andar de uma casa de moradia na esquina da Rua da Graça com a Rua Corrêa dos Santos (hoje Rua Lubavich). Sempre que o Rabino Nurok vinha a São Paulo ele costumava comparecer às preces neste shil de vovô. Certa vez, nas vésperas das eleições do primeiro Congresso Sionista depois da Segunda Guerra Mundial, ele explicou aos presentes a importância de os religiosos votarem pelo Mizrachi. Alguns dos presente, apontaram ao meu avô e denunciaram em voz alta "ele vota para o Hashomer Hatzair". "Shá-shá-shá, idn (exclamação idish para acalmar). Não caçoem dele: no local mais sagrado do Templo em Jerusalém, em que somente rosh ha´cohanim (sacerdotemor do Templo) entrava apenas uma vez por ano, os trabalhadores que cuidavam de sua manutenção podiam entrar diariamente. Os chaverim (membros) do Hashomer Hatzair, podem ser leigos e não-crentes, mas eles estabelecem kibutzim (colônias coletivas) que cuidam das fronteiras de Eretz-Israel". Capitão Zvi Kolitz O aparecimento do Capitão Zvi Kolitz, shaliach do Keren Tel-'Chai dos revisionistas (dissidentes direitistas da Organização Sionista), fez um furor em São Paulo, especialmente entre as mulheres. Homem bonitão e excelente orador, entusiasmava seus ouvintes com sua oratória inflamada sobre a luta de Etzel e Lechi 137 (organizações terroristas que não aceitavam as diretrizes da Organização Sionista) contra o Mandato Inglês na Palestina Em uma de suas dissertações alguém lhe perguntou o que pensava do Hashomer Hatzair. A sua resposta, muito diplomática, "eles estabeleceram kibutzim nas fronteiras de Eretz-Israel e são muito dedicados ao sionismo. Para fazer ideia das adversidades que enfrentavam: um de seus kibutzim, Shaar Hagolan, na fronteira nas proximidades do Rio Jordão, estava cercado de bandos de árabes e a situação era tão crítica que tiveram que fabricar sapatos para suas crianças usando pergaminho de um Sefer-Torá (Livro da Bíblia, escrito à mão em rolo de pergaminho). Os senhores devem entender, eles se encontravam em situação realmente crítica". Kolitz continuou a dissertação com a maior naturalidade, como se nada houvesse acontecido, mas aconteceu. A notícia de que um kibutz do Hashomer Hatzair tinha fabricado sapatos com pergaminhos de Sefer-Torá explodiu na coletividade como fogo no paiol e a revoltou contra nós. Jamais nos defrontamos com tal animosidade. Convocamos reunião urgente da Moatzá para decidir que atitude tomar. Resolvemos mandar um telegrama ao Rabinato em Jerusalém pedindo informação sobre o caso. Em menos de uma semana recebemos telegrama assinado pelo Rabino-Mor Hertzog (pai de Chaim Hertzog, mais tarde Presidente de Israel) e Rabino 138 Maimon (fundador do movimento Mizrachi, então membro da Diretoria da Agência Judaica), as duas maiores autoridades religiosas judaicas da época, refutando todos estes rumores a respeito de Shaar Hagolan, a partir do simples fato de que em nenhum kibutz do Hashomer Hatzair havia Sefer-Torá. Munidos deste documento, um número de bogrim e exshomrim fomos a uma conferência de Kolitz no Círculo Israelita. O salão estava repleto e o orador repetiu os seus temas de sempre com o mesmo ímpeto de sempre. Quando terminou, Urtzi perguntou em voz alta o que aconteceu em Shaar Hagolan. Kolitz "comeu a isca" e repetiu sua versão anterior, explicando que devíamos entender a situação extrema em que o kibutz se encontrava. Foi o que bastou. Empunhando o telegrama em mão erguida, Urtzi subiu ao estrado onde Kolitz estava, sacou o microfone de sua mão e leu em hebraico com tradução simultânea ao idish o texto do telegrama, dirigiu-se a Kolitz e gritou em sua cara "charlatão, mentiroso, caluniador". Difícil descrever a continuação. Uma bagunça. Cadeiras por todos os lados. Kolitz desapareceu. O público se dissolveu em disparada. O salão vazio ficou como que depois de um terremoto. A Diretoria do Círculo Israelita exigiu que o Hashomer Hatzair a indenizasse pelos prejuízos, mas ficou por isso mesmo. A maioria da Diretoria nos deu razão. Imediatamente mandamos uma circular a todas as instituições sionistas no Brasil relatando a calúnia, com cópia do telegrama. 139 Kolitz não conseguiu mais se apresentar em nenhum lugar, pois imediatamente lhe perguntavam o que tinha acontecido com os sapatos de Shaar Hagolan. Assim terminou sua carreira de shaliach no Brasil. Antes de relatar este episódio em meu livro "Mischak Ieladim?", fui informar-me sobre Kolitz no arquivo de Beit Jabotinski, a "fortaleza" do movimento revisionista na Rua King George, em Tel-Aviv. Para minha surpresa, fui muito bem atendido, apesar de ter-me identificado como membro de um kibutz do Hashomer Hatzair. Colocaram à minha disposição tudo que pedi, inclusive a correspondência brasileira com a Netzivut HaRashit (Comando Central do Betar) da época. Encontrei relatórios referentes a Kolitz em São Paulo, mas nenhuma palavra ao que aconteceu no Círculo Israelita e à história dos sapatos. Os arquivistas foram muito gentis comigo e me deram permissão de copiar no copiador deles tudo que me interessasse. * Eis alguns dados que consegui obter sobre Kolitz: Zvi Kolitz (1912-2002) nasceu na Lituânia. Em 1936 viajou para a Itália e estudou na Universidade de Florença e na Escola Marítima de Civita Vecchia (daí sua patente de Capitão). Imigrou a Eretz-Israel, onde foi ativo no movimento revisionista e publicou um livro em louvor de Mussolini e a ideologia fascista, foi membro da Etzel, serviu como voluntário no Exército Ingles e foi shaliach do Congresso Judaico na América do Sul. Em Buenos Aires publicou trecho de um testamento que foi encontrado em uma garrafa entre os destroços do gueto de Varsóvia – "Yossef Rakover conversa com 140 Deus" – que obteve grande repercussão no mundo literário judeu, porém ficou revelado que foi ele quem o escreveu. Ele mesmo reivindicou mais tarde esse direito e teve dificuldades de provar... (já foi provado!.NM) Casou-se com uma mexicana e foi morar no México. Passou a residir nos Estados Unidos. Em 1956 fundou uma companhia cinematográfica que produziu o primeiro filme israelense de longa metragem que teve sucesso internacional, "A colina 24 não responde". Produziu peças teatrais na Broadway e foi professor na Yeshiva University. Além do arquivo do Beit Jabotinski, tentei obter documentação sobre calúnias ao movimento kibutziano e viajei para esse fim a Jerusalém, para ver o que poderia encontrar no arquivo do Rabinato Central, localizado no Heichal Shlomó (Palácio de Salomão). Fui muito bem atendido pelo secretário do Rabinato. Ele se interessou pelo assunto e me informou que tinha ouvido rumores de calúnias que houve contra kibutzim, mas não sabia detalhes, pois aconteceram quando era muito jovem, muito antes de quando começara sua atual função. Ele não acreditava que no relativamente novo arquivo do Rabinato encontraria alguma referência. Quanto à documentação do Rabino Hertzog, não constava no arquivo, pois se encontrava nas mãos da família. Ele me aconselhou a procurar o Rabino Jacob Goldman, que foi o secretário do Rabino Hertzog, e me forneceu o seu endereço. Bati na porta de sua moradia em um prédio de 141 apartamentos e uma vizinha me informou que após o falecimento de sua esposa, o rabino Goldman passou a morar em um asilo de velhos, Beit Sara, no caminho para Hebron. Obtive o endereço de Beit Sara, um instituto muito conhecido, localizado em um edifício enorme e de grande luxo, todo revestido de mármore branco. Não me foi fácil entrar no bem guardado prédio. Somente depois que o guardião conseguiu comunicar-se pelo telefone com o rabino e ele concordou a me receber, um guarda me conduziu ao seu apartamento. Este procedimento levou mais de uma hora... Fui gentilmente recebido. O Rabino Goldman, bem velho, mas muito lúcido e de porte elegante, falava com pronúncia acentuadamente americana. Ele me contou que foi secretário do Rabino Hertzog durante muitos anos, mas que na Segunda Guerra Mundial se alistou como voluntário à Brigada Judaica do Exército Inglês, onde serviu em função paralela a capelão. Ele soube dos rumores sobre as calúnias, mas não estava então em Eretz-Israel – contudo prometeu-me investigar o caso e me relatar por carta o que conseguisse obter. Realmente recebi em Setembro de 1984 a seguinte carta, datada de 18 Elul Tashmad (calendário hebraico): "Quanto ao telegrama – não sei nada a respeito. No ano de 1943, com meu alistamento ao exército inglês, demiti-me de meu cargo de secretário pessoal do Rabino-mor z"l (acrônimo hebraico de "abençoada seja sua memória"). Eu me recordo que nessa época acusaram membros de kibutzim do Hashomer Htzair de ter matado lebres sobre 142 pergaminhos de Sefer Torá (Bíblia) e os mancharam de sangue. O rabino Shazuri z"l – então o secretário geral do Rabinato Central – foi encarregado de investigar o caso e ele chegou à conclusão de que não passava de uma calúnia. O Rabino Shazuri me revelou que duas personalidades tentaram convencê-lo a confirmar a calúnia por "gdolá aveirá l´shmá" (não sei como traduzir esta importante regra talmúdica, que significa, mais ou menos, que é permitido mentir para finalidades justas, como salvar a vida de alguém), mas ele se recusou a aceitar a proposta deles". Telefonei ao Rabino Goldman para agradecer-lhe sua atenção e ao lhe perguntar quem foram estas "duas personalidades", ele retrucou que a única informação que podia me fornecer é que eles não pertenciam à ala direita. Yossef Tchornitzky Yosef Tchornitzky, shaliach do Keren HaYessod, a réplica do Mapai a Kolitz, era uma pessoa elegante e atlética impressionante (parecia na minha opinão com o Tarzan de Johnny Weissmuller), com cabelos loiros compridos puxados para trás. Tinha voz possante de barítono e continuou a tradição de Bistritzky de cantar antes de dissertar e o público o acompanhava. Trouxe ao Brasil duas canções israelenses que se tornaram famosíssimas: "Zemer Zemer Lach" e a internacionalmente conhecida "Hava Naguila". Tchornitzky, ªthe right man in the right place, in the 143 right time" teve um sucesso fora do comum; atraía multidões. Sua atitude em relação a nosso movimento era ambivalente. Ele nos admirava e não estava disposto a renunciar à presença de nossos chaverim em suas conferências. Nós éramos uma espécie de claque que cantava e dançava com entusiasmo e animávamos os seus "espetáculos". Além disso, éramos entre a juventude sionista os maiores arrecadadores de contribuições para sua campanha. Por outro lado tentou impedir o nosso desenvolvimento. Não direta e frontalmente, mas com sua propaganda contra a "politização" da juventude sionista e sua atividade obsessiva de juntar toda a juventude sionista em uma única organização unificada, que naturalmente seria orientada pelo Mapai. A pressão dele e de outros dirigentes sionistas da coletividade de nos dissolver dentro da Unificada não tiveram resultados. Estávamos decididos em seguir nosso camimho. * Queixamo-nos perante a Hanagá Elioná (a suprema direção do Hashomer em Eretz-Israel) contra esta pressão de Tchornitzky e na resposta Adam Rand cita carta que recebeu de Leib Yafe, o diretor do Keren Hayessod: "Fiquei surpreso com sua carta, pois sabemos que o sr. Tchornitzky, como todos nossos shlichim, não se intromete em questões de partidos. Esperamos a vinda do sr. Tchornitzky a Eretz-Israel na próxima semana, conversaremos com ele sobre o assunto e voltarei a lhe escrever". * 144 Não sei dizer se Leib Yafe cumpriu sua promessa, mas Tchornitzky veio mais duas vezes ao Brasil a fim de dirigir campanhas para o Keren Hayessod, sem alcançar o mesmo sucesso do que na primeira vez, porém foi muito correto com o Hashomer Hatzair. Por falar na Unificada devo salientar que em 1945 o shaliach do Keren Kayemet que residia em Buenos Aires, Léo Hálperin, vinha frequentemente ao Rio de Janeiro. Não o conheci pessoalmente, mas no arquivo do Departamento da Juventude da Agência Judaica em Jerusalém encontrei cartas suas denunciando que elementos "esquerdistas" estavam organizando grupos sionistas (insinuação clara ao Hashomer Hatzair) e propondo a ideia de organização de uma "Unificada", que somente ela seria reconhecida pela Organização Sionista. Hálperin reprovava o "separatismo" do Hashomer Hatzair e sua "politização" e afirma que somente o ingresso dos membros do Hashomer Hatzair na Unificada garantiria a ligação deles ao sionismo. Em carta datada de 9/1/1946 ele prometia fazer tudo que estivesse ao seu alcance para afastar os membros do Hashomer de seu caminho errado. A reposta do dr. Ben-Shalom, o poderoso diretor do Departamento da Juventude da Agência Judaica" (22/3/1946).: "... tenho a impressão que a forma que está sendo organizada a aliança da juventude (quer dizer, a Unificada. NM) afasta-se do princípio de participação pessoal e talvez seja este o perigo da desintegração e da divisão que o senhor descreve em sua carta". Creio que as cartas de Hálperin se referem às atividades pró-comunistas a que me referi em capítulo anterior. 145 Capítulo 9 – Ressurgimento do Hashomer no Rio Nos esforçamos em manter contato telefônico com os chaverim do Rio, especialmente com Pinchas, que nos informou sobre a Juvenil Unificada, sob o patrocínio da Organização Sionista: dos oito membros de sua nova diretoria seis pertenciam ao Hashomer que se desmantelou, entre eles o Diretor, Samuel Schultz. Fizemos o possível para ressuscitar o ken – em vão. Estabelecemos contato, por correspondência, com Zvi Gandelsman, que não conhecíamos pessoalmente e a quem era enviado o material que publicávamos. Ele me escreveu reconhecendo que os rumos do ken carioca no passado tinham sido um erro e que em conjunto com outros chaverim estavam tentando reorganizar o Hashomer Hatzair, desta vez não no sistema de "células" como antes, mas nos moldes de kvutzot (grupos) de várias faixas de etárias, a exemplo de São Paulo. Eles estavam formando 7 kvutzot no Ginásio Hebreu Brasileiro, e conseguiram reunir uma shichvá ("camada") de 20 bogrim (faixa acima de 18 anos). Como vários chaverim (companheiro) desta faixa etária ainda estavam indecisos, resolveram, inspirados pelos movimentos chileno e uruguaio, organizar-se como "Kedma", espécie de formação pré-shômrica. Takser recebeu carta (2/1/1946) de um amigo do Rio de Janeiro, Mendele Turnovski, professor de hebraico no Ginásio Hebreu Brasileiro, pedindo que lhe enviasse material sobre o Hashomer Hatzair, especialmente os "Dez Mandamentos do shomer", para um grupo que estava organizando no ginásio. 146 Takser lhe mandou um pacote de publicações e quis saber quem eram estes jovens. Era exatamente o mesmo grupo com que tínhamos contato. Quando souberam que Turnovski pertenceu ao Hashomer Hatzair na Polônia, pediram o seu auxílio, e ele, sem saber das relações do grupo conosco, se comunicou por iniciativa própria com Takser... Moshavot no Brasil Aproveitamos o nosso contato com a turma do Rio para convidá-los a participar da primeira moshavá do Hashomer Hatzair em São Paulo que estávamos organizando. * Participei da primeira moshavá sionista no Paraná em 1944 e da primeira moshavá que o Centro realizou nas férias de verão de 1946 (a qual descrevi no capítulo 4). O Centro organizou no ano seguinte a segunda moshavá no mesmo local da anterior, na fazenda do sr.Vaingort. Também ela com mais de 100 participantes entre São Paulo e Rio de Janeiro. Soube que foi um grande sucesso. O comum entre essas três moshavot foi a idade dos participantes, que variava entre os 17 e 22 anos, e que nem todos eram simpatizantes sionistas. Apenas judeus. * As moshavot do Hashomer Hatzair se diferenciavam em vários aspectos. Em primeiro lugar a faixa etária dos participantes ia de 9 a 20 anos. Em segundo lugar, a moshavá era organizada de acordo com as kvutzot, cada 147 kvutzá com seu madrich ou madrichá, monitores. As kvutzot em idade de ginásio vinham por todo período da moshavá (planejado para um mês) e os alunos de grupo escolar apenas por uma semana. Finalmente, a nossa moshavá tinha caráter distintamente sionista e basea-se t ambém em tzofiut (escotismo). Conseguimos arranjar uma fazenda nas imediações da estrada de ferro da Cantareira. Do Rio de Janeiro vieram Jorge (Zvi) Gandelsman, sua sobrinha Zina Fishman e Jacob Steinberg, que foi o enfermeiro da moshavá... Uma semana depois veio Abraão Levandovski. De São Paulo participou quase todo o ken, mais de 50 shomrim e shomrot. Na fazenda havia somente uma única casa pequena, com um quarto e varanda. O quarto, com um fogão de lenha construído de tijolos, servia de dispensa e cozinha, e a varanda, de refeitório, mas a maioria dos participantes comiam sentados na relva, Ao lado da casa, em um terreno que foi capinado, montamos dispostas em circunferência nossas barracas, que podiam abrigar 3 a 4 catres de lona. Entre as barracas, no terreiro circular, havia espaço suficiente para o mifkad que realizávamos diariamente, em frente a dois mastros, um da bandeira azul-e-branco sionista e o outro da bandeira vermelha do Hashomer Hatzair. O nosso único trabalho consistia na preparação das refeições e na manutenção do acampamento. Os que não 148 eram designados para tais serviços se ocupavam na maior parte do tempo em atividades de escotismo, excursões pelas vizinhanças ou reuniões das kvutzot para sichot (conversações, sobre temas sionistas e shômricos). Ao anoitecer acendíamos uma fogueira no centro do terreiro e nos sentávamos ao seu redor, para cantar e dançar hora. As canções mais requisitadas eram "Arum dem faier zinguem mir líder" (em volta do fogo cantamos canções), em idish, e "Ma tov u´má naim shevet achim gam ichad" (Quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união), em hebraico (Salmos, 1133:1). * Certa vez quando ainda estávamos ocupados na organização da moshavá e dedicávamos muito de nossa atenção em prever e ordenar os detalhes, Moshé Strauch apareceu em minha casa e me disse "como é possível uma moshavá sem uma canção, sem um hino?". Concordei com ele: "que tal tentarmos compor uma canção?". Moshé gostava muito de cantar, e sua canção predileta era "Meal pisgat Har a´Tzofim...". Ao chegar a "Yerushaláim", sua voz muito potente ascendia aos céus e nos causava um frêmito. Fomos até o piano de minha irmã e nos sentamos no banquinho. Eu não estudava piano, mas aprendi um pouco por mim mesmo, com notas e tudo; aprendi solfejo nas aulas de música do ginásio. Moshé, que falava o hebraico correntemente (ele nasceu em Eretz-Israel), compôs a letra e eu dedilhei os teclados a procura de uma melodia. Eu 149 costumava desde criança improvisar assobios, mas no dia seguinte não me lembrava mais de minhas "obras musicais" (a única que jamais esqueci é o "fufu-fi-fuuu" que desde que nos casamos eu assobio para chamar minha Shoshana). Fomos modificando palavras da letra e notas da música até que chegamos a algo que nos satisfez. Desta forma, em meia hora, compomos o "Hino da Moshavá". Desta vez anotei as notas: Tradução livre: "Vamos à Shomria / Lá é nosso lugar / Cantemos e nos regozijemos / e tudo esqueceremos". Trinta anos mais tarde, em um encontro (Kenes) de brasileiros do Hashomer Hatzair no Kibutz Guivat-Oz, o coral do kibutz cantou canções nostálgicas do movimento brasileiro, e interpretaram com entusiasmo o "Hino da Moshavá". Somente Moshé e eu sabíamos como ele foi criado. * 150 Como disse, preparávamos as refeições em um fogão a lenha no único cômodo da casinha. Não diria que a comida era de um hotel de 5 estrelas, mas o pessoal lambia os beiços com os pratos que nossas bogrot preparavam. Frutas e legumes havia a beça. Não faltavam mantimentos e como não havia eletricidade na fazenda comprávamos diariamente no vilarejo próxima os produtos para cozinhar. No quarto que servia de cozinha havia somente uma janela bem pequena e não sei por que motivo um dia o 151 quarto se encheu de uma fumaça negra e espessa. Não havia incêndio, mas a fumaça era sufocante e intolerável. Todos fugiram do quarto com olhos lacrimejantes, não podendo ninguém se aproximar. Não sei que loucura me deu, nem donde peguei um enxadão e a escada em que subi. Com golpes na parte superior da parede quebrei tijolos até romper uma abertura enorme que extraiu a fumaça do quarto como se fosse uma chaminé. O cozinha ficou "habitável" e as moças voltaram para preparar a comida, mas as paredes, antes levemente amareladas, ficaram negras como piche. Foi exatamente neste momento emocionante que nos apareceu o dono da fazenda para ver como "vão as coisas". Prefiro deixar a continuação do relato para outra ocasião. * Tudo estava indo às mil maravilhas. Cooperação, ordem e obediência absolutas, e uma disciplina fora do comum para jovens destas idades. Mas depois da bonança vem a tempestade (perdoem-me os puristas por inverter o ditado): um por um o pessoal começou a queixar-se de dores de barriga e surgiram outros motivos de preocupação: manchinhas no corpo, barriga inchada, febre e outros sintomas de alguma doença que se abateu sobre todos, inclusive o enfermeiro. Procuramos um médico e em toda a redondeza havia somente um único, o doutor Sontag. Ficamos sabendo que era um judeu refugiado da Alemanha nazista, que veio morar naquele fim-do-mundo perto de São Paulo porque não conseguira revalidar o seu diploma de 152 médico, e ali exercia livremente sua profissão, com tal eficiência a ponto de se tornar persona grata em toda a vizinhança. 153 Ele nos tratou com carinho e dedicação, e se recusou a receber qualquer honorário. Diagnosticou que contraímos uma intoxicação intestinal devido à água que bebíamos do único poço da fazenda. Jogamos cal dentro do poço e fomos terminantemente proibidos de usar sua água. Para beber, cozinhar e nos lavar, tivemos que trazer água em um barril, de poços de vizinhos,. O médico nos garantiu que não corríamos nenhum risco e receitou alguns purgativos e outros medicamentos, que nos forneceu gratuitamente. Realmente, fomos aos poucos nos recuperando e a vida retornou aos trilhos. No domingo os pais vieram visitar seus filhos e, mesmo com nossa melhora evidente, ficaram horrorizados e os levaram para casa, e assim terminou a moshavá, sem nenhuma cerimônia festiva de encerramento, como estávamos planejando. Conclusão: a primeira moshavá do Hashomer Hatzair de 154 São Paulo foi do ponto de vista médico um fracasso, pela inexistência de saneamento básico, porém um estupendo sucesso em todos os outros sentidos, mesmo tendo terminado uns dias antes da agenda préestabelecida. Quem participou nesta moshavá jamais a esquecerá. O escotismo do Hashomer O Hashomer Hatzair se baseia sobre três pilares: o Sionismo, o Socialismo e o Escotismo (tzofiut), que foi por onde começou na Galícia na década de 1910. As faixa de 11 a 17 anos de idade, tzofim (escoteiros), se subdivide em tzofim-tzeirim (escoteiros jovens), ate os 14 anos, e os mais idosos, tzofim-bogrim (escoteiros veteranos). A faixa dos menores de 11 anos chamávamos de kovshim (conquistadores), ligados ao tema da conquista da Terra de Canaã pelos judeus comandados por Josué da Bíblia, Yeshua ben Nun. Quando ficamos sabendo da luta dos partisans contra os nazistas, mudamos a denominação desta faixa para "bnei ha´yaar", filhos do bosque. Tzofiut (escotismo) era a principal atividade dos tzofimtzeirim e à medida que iam tornando-se mais velhos era gradualmente substituída por educação sionista, sendo o socialismo a ultima fase. A aprendizagem de nossos monitores em escotismo se baseava inicialmente no Guia de Escoteiros de Baden Pawell. Inspirados em nossas relações com o Chefe Theodomiro resolvemos inscrever bogrim em um curso de Chefes de Escoteiros da Associação Brasileira de Escoteiros em São Paulo, visando várias vantagens: 155 Chefe de Escoteiro diplomado pelo curso tinha o direito de formar uma tropa de escoteiros, e vimos nesta possibilidade um meio de legalizar oficialmente o Hashomer Hatzair em São Paulo, Além disso, os participantes do curso tinham a oportunidade de treinar nas ótimas instalações escáuticas do curso. O principal: aprenderiam bem o escotismo, afim de o ensinar no movimento. Moshé Strauch e Samuel Kleiman se inscreveram no curso, que completaram com distinção e receberam assim diploma de Chefe de Escoteiros, que lhs confiria autorização de formar e dirigir tropas de escoteiros. Shlomo Takser, Chaim Bulka e vários tzofim-bogrim aproveitaram a participação de Samuel e Moshé no curso para vir treinar frequentemente atividades escáuticas sob a orientação deles nas instalações da escola. * Munidos dos diplomas, Moshé e Samuel foram à sede da 156 Associação de Escoteiros do Brasil em São Paulo encontrar-se com o comandante da organização. Eu os acompanhei. Fomos recebidos com muita atenção. O comandante era um coronel aposentado do Exército, de cabelos grisalhos, feições de indígena, de fala muito calma e delicada, enfim uma pessoa simpática. Ele cumprimentou a Samuel e Moshé pelas altas distinções que alcançaram no curso. "Sentimos orgulho de escoteiros como vocês". Animados com tal demonstração de simpatia, contamos ao comandante que pretendíamos organizar tropas de escoteiros nas escolas Renascença e Luiz Fleittlich e que esperávamos contar com sua cooperação. O comandante nos ouviu pacientemente e sem retrucar uma palavra tirou da gaveta uns manuais do Hashomer Hatzair em espanhol e os colocou na mesa em nossa frente. Ficamos estupefatos, sem saber como reagir. "Sei bem o que vocês são e pretendem fazer. Lamento muito, mas não posso permitir tropas de escoteiros que pregam ideologia comunista e a criação de colônias comunistas na Palestina. Não pretendo denunciá-los à Polícia porque sou um grande admirador do povo judeu e apoiador entusiasta de causa judaica, mas vocês não podem usar a nossa cobertura". Explicamos ao comandante que não tínhamos nada a ver com o Partido Comunista nem com sua ideologia, que as colônias a que ele se referia eram aldeias coletivas, pregavam a igualdade dos seres humanos, a ajuda mútua, mas não tinham nenhuma ligação com nenhum partido comunista. Ele disse que nos entendia, mas tropa 157 de escoteiros brasileira não pode ter nenhuma conexão organizacional com entidades estrangeiros. Terminou a audiência. O comandante nos acompanhou até a porta e nos despedimos gentilmente; recebemos abraços amistosos. Avanhandava Voltamos atordoados. Não sabíamos o que pensar, e tentamos analisar os acontecimentos. Como na fábula "a raposa e as uvas" (o que não está ao alcance, está podre) chegamos à conclusão que foi até melhor não nos termos registrado como tropa de escoteiros: para que comprometer-nos? Foi então que nos lembramos que havíamos dado os manuais que o comandante nos mostrou à direção da tropa Avanhandava de escoteiros judeus da CIP. AAssociação Escoteira Avanhandava, a tropa de escoteiros da CIP (Congregação Israelita Paulista), foi fundada em 1938, o quarto grupo escoteiro do Estado de São Paulo. Judeus alemães que fugiram da Alemanha nazista e se estabeleceram no Brasil, encontraram um país com um governo de cunho ditatorial. A proibição de encontros em grandes grupos era uma situação bastante difícil para estrangeiros com uma cultura, história e religião comum. Especialmente para os jovens. O escotismo funcionou então como uma camuflagem, a única maneira pela qual seus encontros seriam desvinculados do estado de estrangeiros ou judeus. Com a total proibição de utilização de nomes estrangeiros, surge do tupi-guarani a Avanhandava, que significa "homens de todas as raças". * Como relatei em capítulo anterior, um de nossos 158 problemas no ken de São Paulo era a enorme desproporção entre o número de bogrim (faixa de 17 e 22 anos) e o número dos demais membros, que chegou em dois anos a 500... Já me referi ao seminário ideológico. Outro passo que demos foi procurar relacionar-nos com o Avanhandava. Não posso precisar exatamente o que queríamos conseguir. Contamos a eles que chaverim nossos estavam participando curso de Chefes de Escoteiros e lhes propusemos cooperação no terreno que tínhamos em comum – o escotismo. Parece–me que também tentamos aproximá-los ao sionismo. Falhamos. Eles não estavam interessados – não houve outros encontros. Entretanto eles ficaram com os manuais educacionais que lhes mostramos. 159 Capítulo 10 - Depois da moshavá As consequências mais marcantes da moshavá: em São Paulo, a lishká se tornou uma verdadeira colméia de jovens, e não tínhamos monitores suficientes para organizá-los. No Rio de Janeiro, Jorge Gandelsman e seus companheiros da moshavá realizaram uma verdadeira revolução educacional e organizacional, adaptando o ken aos moldes clássicos do movimento. Pelos relatórios que recebemos soubemos do sucesso que o ken teve em juntar novamente uma shichvá grande de bogrim, entre eles o arquiteto David Reznik, o professor de hebraico Jacob Felberg, Akiba Shechtman (secretário do ken), Moisés Glat (único que já conhecia). Diria que havia começado um período de progresso, harmonia e cooperação entre os movimentos de São Paulo e Rio de Janeiro. * Hans, filho do dr. Sontag, que aparecia de vez em quando na moshavá, o vi em nossa lishká. Wolf Kucinski, filho do notável professor e escritor idish Meir Kucinski, que morava em Tucuruvi, um município bem atrasadinho nas proximidades da nossa moshavá, vinha a ela de cavalo e carroça e se ligou à kvutzá de Samuel Kleiman. Atualmente meu vizinho, contou-me as tragédias que aconteceram a Hans, A mãe de Hans morreu atropelada por carro guiado pelo pai. Hans ligou-se por um tempo ao Hashomer Hatzair, mas não foi aceito à hachshará e passou ao Dror. Foi membro do Kibutz Bror Chail, onde se casou. O matrimônio não deu certo, se divorciou, foi morar em Ashdod e trabalhou como estivador no porto. Morreu em um acidente no cais. 160 * Depois da moshavá entramos em um período de intenso florescimento. Não conseguimos dar conta do fluxo de jovens que nos procuravam. O nosso problema era que não conseguimos ampliar a faixa acima de 17 anos, e a falta de monitores para as kvutzot. Já me referi que surgiram grupos em Vila Mariana, Cambuci e Casa Verde, que se esvaneceram por falta de monitores. Estabelecemos também contatos intensos com jovens judeus em Recife, Belo Horizonte, Salvador da Bahia e Curitiba. Recife O meu primeiro contato com jovens de Recife ocorreu quando ainda era presidente do Departamento Juvenil. Conheci então José Machman, que veio de visita a São Paulo. Fizemos amizade e mantivemos correspondência regular enquanto estávamos no Brasil. Foi uma amizade bem estranha, pois tínhamos posicionamentos antípodas, quer dizer, diametralmente opostos. Ele era ultradireitista, de ideias extremistas, e me escrevia cartas inflamadas contra a "apatia" das instituições sionistas na luta contra o Mandato Inglês na Palestina. Ele se dirigia a mim como se eu fosse o responsável pelo movimento sionista. Eu continuei a responder as suas cartas, não por pirraça, mas porque realmente simpatizei com ele. Sei que veio a Israel e foi residir nos territórios ocupados, como era de se esperar. Não consegui localizá-lo quando escrevi meu primeiro livro na década de 1970, pois deve ter hebraizado seu sobrenome, já que não encontrei "Yossef Machman" no lista telefônica. Uma sobrinha sua, com que ultimamente por acaso fiz 161 contato pela Internet, me informou que ele faleceu. Lembro dele neste livro não somente devido à nossa exótica correspondência, mas porque ele intermediou nosso relacionamento com o grupo de jovens que fundaram o Hashomer Hatzair em Recife. Outros recifenses que conheci na ocasião foram Rachel Burstein e Ary Rushanski. Rachel Burstein, moça elegante e bonita, que conheci nas casa de meus vizinhos Raizman, interessou-se pelo Hashomer Hatzair, e ao voltar a Recife ligou-se ao grupo que fundou o ken. Casou-se na hachshará com David Reznik, do Rio de Janeiro, que eu conhecia de nome, mas no Brasil não cheguei a conhecê-lo. Anteciparam a vinda a Israel e ingressaram ao Kibutz Ein Hashofet. Hoje vivem em Jerusalém. David Reznik, foi membro da segunda Hanagá Rashit, e como arquiteto trabalhou com Óscar Niemayer e fez uma carreira brilhante. Entre outros projetos planejou em Brasília a embaixada israelense e em Israel várias faculdades da Universidade Hebraica de Jerusalém em Har Hatzofim (Monte Scopus), o monumento Yad Kenedy e a Universidade dos Mórmons. Reznik foi laureado com muitas honrarias, como o título de Yakir Yerushaláim (persona dileta de Jerusalém) e o Prêmio de Israel. Ary Rushanski veio para a 2º moshavá do Departamento Juvenil, de que eu fui um dos organizadores, mas não cheguei a participar nela porque abandonei o Departamento e estava ocupado em organizar o Hashomer Hatzair. Ary esteve em minha casa e após um breve concerto em nosso piano ficamos conversando. Ele se interessou muito pelo Hashomer 162 Hatzair e ao voltar a Recife foi um de seus fundadores. Ao passar pela Bahia conheceu a Shoshana Spilberg e a estimulou a organizar o Hashomer Hatzair na cidade. Ary esteve na hachshará e veio com o grupo ao kibutz Maabarot, com a intenção de se juntarem depois ao kibutz Gaash, mas voltou ao Brasil e formou-se em odontologia. Acabou regressando com a família a Israel, para viver e praticar sua profissão na cidade. * Quando o ken de Recife se estabeleceu, nomearam Mordechai Raichel para rosh a´ken (chefe do ken), e passei a me corresponder com ele. Mordechai Raichel se encontrava em Recife por conta dos estudos. Quando estávamos organizando em 1948 o primeiro garin aliá (grupo de imigração) a Israel, ele era sério candidato ao grupo, mas devido ao falecimento repentino de seu pai teve que ir a Belém dirigir os 163 negócios da família. Casou-se com Laura Abitibol; tiveram uma filha, Genia; teve sucesso nos negócios, e posteriormente veio com a mulher e a filha para Gaash, onde desempenhou vários cargos. Grande amigo meu, conversa vai, conversa vem, descobrimos que nos conhecíamos de meninos na Escola Renascença, quando eu tocava tamborim na banda. Faleceu prematuramente. Belo Horizonte Também Batia Patlajan, ativista na juventude judaica de Belo Horizonte, conheci nos meus tempos de Departamento Juvenil. No final de 1947, Batia deu o meu endereço a Samuel (Shaya) Cernizon, que fez um giro pelo sul do continente, e ao passar por São Paulo hospedou-se em minha casa por três dias. Ele se interessou muito pela ideologia do Hashomer Hatzair e eu lhe dei endereços de meus correspondentes em Curitiba, Montevidéu, Buenos Aires e Santiago do Chile. De volta para sua casa mandou-me relatório minucioso de sua viagem contando que os meus endereços lhe foram úteis, pois todos o acolheram amistosamente e o hospedaram. Ele visitou as hachsharot na Argentina e Uruguai e resolveu fundar um ken do Hashomer Hatzair em Belo Horizonte. 164 Bahia Como já contei, Ary Rushanski de volta da mochavá do Departamento passou pela Bahia, onde permaneceu tres dias em casa de uma tia. Ele conheceu Suzana Spilberg e lhe contou sobre o Hashomer Hatzair. A Shoshana, que tinha organizado em sua volta garotos de 12-13 anos e estava madura para a ideologia do Hashomer, se entusiamou pela ideia e recebeu de Ary o meu endereço. Suzana me escreveu pedindo material. Eu lhe mandei vários pacotes e mantive com ela correspondência assídua. Abraão Levandovski ao ser desembarcado na Bahia do navio em que viajava clandestino em direção a Eretz Israel (Palestina), conheceu a Suzana e lhe relatou sobre a moshavá em que participou em São Paulo. Suzana veio participar na segunda moshavá do Hashomer Hatairem São Paulo, com Clarinha Cherker e 165 os irmãos Efraim e Edith Schraiber. Ao voltarem a Bahia, fundaram o ken do Hashomer Hatzair na cidade. A comunidade judaica da Bahia apoiou as atividades do ken e até ajudou financeiramente. Curitiba O Hashomer Hatzair de Curitiba constituía-se de uma única pessoa: Jacob Schüssel. Não me recordo como ele se ligou a nós. Ele se definia como sendo o Hashomer Hatzair de Curitiba. Schüssel, da idade de Takser, pertenceu ao movimento na Polônia. Ele conseguia assinantes para o "Al Hamishmar", jornal mensal em idish publicado pelo Mapam em Tel-Aviv, vendia livros e revistas que publicávamos, interessava-se pelas nossas atividades e contribuía ao Keren Hashomer. Participou em encontros de bogrim de todo o país, que se realizaram em São Paulo e no Rio de Janeiro. 166 Soube por um sobrinho (outra descoberta pela Internet) que em 1967 emigrou a Israel, residiu em Haifa, onde faleceu em 1979. Quando escrevi minhas memórias em hebraico o procurei, mas não consegui encontrá-lo. Bem mais tarde soube que já tinha falecido. Shlichim do Hashomer Depois que conseguimos nos introduzir nas instituições sionistas de São Paulo, que aceitaram representantes nossos em suas diretorias, mandamos em hebraico ao Dr. Ben-Shalom, diretor do Departamento da Juventude na Agência Judaica em Jerusalém, uma carta (1/4/1946) longa e com detalhadas explicações sobre nossa situação: apesar de sermos o maior movimento da juventude sionista no Brasil e que no primeiro seminário de professores de hebraico em São Paulo, 14 dos 17 participantes pertenciam ao Hashomer Hatzair, éramos os únicos que não receberam shlichim para nos orientar. A resposta que recebemos, datada de 7/7/1946: "Quanto aos shlichim, desejamos informá-los que eles são designados não por suas ligações partidárias, e sim por sua formação geral, seu ajuste pessoal ao cargo: a organização e a educação hebraica e chalutziana da juventude sionista, de todos as tendências e ramificações. Quanto ao Brasil, selecionamos um candidato e pedimos às instituições no Rio de Janeiro que lhe providenciassem o visto e como não recebemos resposta, ele foi enviado a uma missão urgente na Europa". Shlomo e Ilana Perla Nossa correspondência com a Hanhaga Eliona (a direção central do movimento internacional), localizada 167 no kibutz Merchávia, em Israel, era demorada, porém contínua. Amnon e Takser traduziam as cartas que vinham em hebraico e Amnon vertia para o hebraico o que eu redigia em português. Pedimos à Hanhagá Eliona que enviassem um shaliach. Expomos as excelentes probabilidades que tínhamos para ampliar o movimento no Brasil, se recebermos o apoio adequado e relatamos as nossas dificuldades em manter sozinhos o movimento. Eles nos aconselharam a entrar em contato com Shlomo e Ilana Perla, os shlichim centrais do movimento para a América do Sul, que estavam em vias de terminar sua missão na Argentina, depois de uma longa permanência nesse país, antecedida por uma temporada no Chile. Shlomo e Ilana eram para nós figuras lendárias, pois estávamos informados do que realizaram no Chile e na Argentina, entre o mais, a fundação de hachsharot (fazendas de preparação para a vida no kibutz em EretzIsrael). Escrevemos a eles pedindo que em seu caminho de volta a Israel e ao kibutz Kfar Menachem levassem em consideração a possibilidade de passarem algumas semanas conosco, a fim de nos aconselhar e orientar, especialmente na organização de uma hachshará no Brasil. * Shlomo se revelou um psiquiatra que sabe ouvir calado. Não nos aconselhou nada. Pessoa quieta, diferente do que imaginávamos. A única coisa que estava disposto a fazer por nós foi prometer interferir nas instâncias do movimento em Israel para apressar urgentemente um 168 shaliach . Não concordou sequer em encontrar-se com a nossa Moatzá ou comparecer a um mifkad em nossa lishká. Estava exhausto. Ilana concordou em ministrar uma conferência pública sobre a educação coletiva no kibutz, que se realizou no Círculo Israelita. Ela descreveu com uma voz delicada e meiga a vida das crianças naquele ambiente social, respondeu a inúmeras perguntas e conquistou a simpatia do numeroso público presente. Ficaram apenas dois dias em São Paulo, e quase não saíram do hotel. Ficamos desiludidos, mas os entendemos e não nos queixamos. Nos Bosques e nos Guetos Nos princípios de 1946 recebi uma considerável quantidade de material informativo sobre os levantes contra os nazistas nos guetos e nos bosques da Polônia e me ocorreu publicar uma revista sobre o assunto, que era praticamente desconhecido no Brasil. Todos se entusiasmaram com a ideia e eu me encarreguei de sua edição. Urtzi se prontificou a tratar da parte financeira. Coletou entre seus amigos o dinheiro necessário para a publicação e obteve de Klabin, judeu proeminente da indústria brasileira de papel, a matéria prima necessária à impressão. Chamamos a revista de "Nos Bosque e nos Guetos" e publicamos 2000 exemplares, que enviamos para o Rio, Recife, Belo 169 Horizonte, Bahia e Curitiba. Vendemos mais da metade da edição no ato público "Contra o Livro Branco de Bevin-Atlee" no Estádio de Pacaembú, na maior concentração de judeus que até então houvera em São Paulo – calcula-se em mais de 10.000. Vendemos as revistas em dois tempos e lamentamos não termos impresso mais alguns milhares. Esta publicação relatava pela primeira vez detalhes dos Levantes nos Guetos de Varsóvia, Vilna e Bialistock. Pela primeira vez no Brasil a revista citava os nomes de Mordechai Anilevitz, Arié Kaplan, Aba Kovner, Chaika Grosman e muitos outros partizans e combatentes contra os nazistas. Até então tínhamos ouvido somente sobre os campos de concentração e crematórios. O Holocausto somente tomou verdadeiras proporções na consciência dos judeus no decorrer do julgamento de Eichmann em Jerusalém (1961). * Outro furo jornalístico da revista foi a publicação do "Hino dos Partizans" em idish e hebraico (com tradução livre minha ao português), acompanhado de notas. Esta canção se espalhou por todas as coletividades judaicas no Brasil, hino que se cantava de pé, como o Hatikva (hino sionista que se tornou o Hino Nacional de Israel). Com o dinheiro que a revista rendeu, compramos o mimeógrafo Edison no qual imprimimos os manuais e 170 boletins que publicamos e antecipamos um ano de aluguel de nossa lishká na Rua da Graça. O nosso endereço continuou a ser a caixa postal que pertencia a Takser, A chave ficava comigo e eu ia diariamente ao correio. Editora Shomria O extraordinário sucesso, jornalístico e financeiro, da nossa primeira publicação inflamou nossa imaginação, e a Moatzá resolveu fundar uma editora, que a denominamos "Editorial Shomria" e seu logótipo comercial era o emblema do Hashomer Hatzair. Urtzi se encarregou novamente da parte financeira e eu da parte editorial. Comecei a procurar manuscritos de livros que pudéssemos publicar, pois não tínhamos recursos para pagar copyright. Por esses dias ondas de terrorismo da Lechi e da Etzel, milícias secretas dissidentes da Organização Sionista, entusiasmaram as populações judaicas. A política do governo inglês de Atlee e Bevin contra a imigração de judeus à Palestina revoltava todos os judeus, que estavam atormentados com o Holocausto. Era difícil enfrentar a onda chauvinista dos judeus. Até os "progressistas" apoiavam os atos de terror contra o "imperialismo britânico". Foi quando caiu em minhas mãos o manuscrito datilografado em espanhol "Contra o Terror na Palestina" de David Ben-Zacai, que analisa as origens do terrorismo e das organizações secretas judias, explicando porque as instituições sionistas oficiais combatiam tais organizações, e condenando a prática do terrorismo. 171 Resolvemos que deveríamos publicar este livro em português. Quem cala, consente, diz o ditado. Não podíamos nos calar. Urtzi novamente conseguiu gratuitamente de Klabin o papel necessário. Eu entreguei o manuscrito ao dr. Idel Becker, que era meu professor de espanhol no ginásio, para o traduzir ao português. Não me recordo se lhe pagamos pela tradução. Talvez uma importância irrelevante. Desenhei a capa e pedi a um amigo de classe no ginásio, Jorge Cury (filho de sírio-libaneses), que era desenhista, para dar um retoque profissional ao desenho. Publicamos 3.000 exemplares! Justamente no lançamento do livro os terroristas explodiram o hotel "King David", sede do quartel-general do Mandato Britânico em Jerusalém, que deixou os judeus de São Paulo eufóricos: "Demos" um golpe nos ingleses, e de nada adiantou explicar que a maior parte dos 70 mortos que ali trabalhavam eram funcionários judeus pertencentes à Haganá (a organização de defesa sionista que, com a declaração do Estado de Israel, se transformou no Exército de Defesa de Israel). Conseguimos vender cerca de 300 exemplares – nem metade das famílias dos nossos shomrim no Brasil compraram o livro... As livrarias se recusaram a vender os livros "para não ser taxadas de anti-semitas". Do ponto de vista financeiro o livro não foi um fracasso, pois o papel e a tradução nada nos custou, mas não sei como conseguiram livrar-se das centenas de pacotes de livros que ficaram encalhados na lishká. 172 Rumo ao Neguev Eu não desisti de minhas aspirações editoriais. Ainda estava ocupado e preocupado com a divulgação e venda de nosso livro contra o terror, e ideias não cessavam de me ocorrer à mente. As instituições sionistas resolveram que a campanha pró-Keren Kayemet do ano 1947 se realizaria sob o lema "Nachalat Brasil b´Israel" (Terreno do Brasil em Israel), implicando que o fruto da campanha seria empregado para comprar terras na Palestina que levariam o nome do Brasil. Para tal finalidade o Keren Kayemet mandou um shaliach especial para organizar a campanha – Yossef Krelemboim. Yossef Krelemboim (1912-1991), que hebraizou o sobrenome para Almogui, nasceu na Polónia. Chegou a Eretz-Israel em 1930. Em 1937 tornou-se o braço direito de Aba Khushi, o legendário Prefeito de Haifa. Em 1941 servindo no exercito inglês, caiu prisioneiro dos nazistas, tornando-se o porta-voz de mais 1500 soldados israelitas no campo de prisioneiros na Silésia. Sua carreira política: secretário do comitê operário de Haifa, secretário-geral do partido Mapai, prefeito de Haifa, presidente da Histadrut (Sindicato dos Operários de Israel) e da Agência Judaica, ministro no governo. Krelemboim impôs às actividades da Organização Sionista ritmo e eficiência desconhecidos no Brasil. O primeiro a chegar ao escritório e o último a sair, administrava a campanha como se a mesma fosse uma ação militar. * Recebi naquela ocasião diversas publicações, em 173 hebraico, espanhol, inglês e francês (?!), sobre as 11 colônias que foram "levantadas" simultaneamente em uma única noite no Neguev. Segundo a legislação inglesa, baseada na lei otomana em vigor, casas com telhados não podiam ser demolidas, e daí durante a noite foram montadas casas, torres e paliçadas pré-fabricados. Quando a polícia inglesa chegou tudo estava construído e habitado. Com tais publicações nas mãos me apresentei à diretoria do Keren Kayemet, acompanhado de Urtzi, que ali era nosso representante, e propus editar uma revista dedicada à campanha divulgando reportagens ilustradas da façanha das 11 colônias. A revista, de sociedade entre o Hashomer Hatzair e o Keren Kayemet, seria dedicada à campanha do Nachalat Brasil, com uma única página informativa sobre o Hashomer Hatzair. A Diretoria aceitou a sugestão, com a condição de que os artigos a serem publicados, fossem sujeitos à aprovação prévia de dois membros por ela designados. * Intitulei a revista "Rumo ao Neguev" e me dediquei à tradução dos artigos que selecionei. A tradução do hebraico me foi ditada por Pola. Aproveitei minha amizade com um amigo do ginásio, filho de um dos diretores do "Diário Oficial", órgão governamental do Estado de São Paulo, imprensa das mais modernas da cidade, para que imprimisse a 174 revista. O preço saiu uma bagatela e a impressão de alto nível. Yossef Krelemboim, o shaliach especial para a campanha, veio a São Paulo por alguns dias, e eu o entrevistei para a revista. Eu lhe traduzi oralmente o que escrevi, recebi seu OK e retrato seu; para ilustrar o artigo, que foi entregue à impressão na última hora. Quando já vivia em Israel, tive que ir certa ocasião para o porto de Haifa, e bem em frente ao portão de entrada deparei com Krelemboim, então o plenipotenciário Yossef Almogui manda-chuva da cidade. Ele me reconheceu, chamou-me pelo sobrenome, Mandel, e me abraçou. Fiquei abismado! Tantos anos haviam passado e ele se lembrou de mim... – apenas nos encontramos duas vezes, quando o entrevistei e quando lhe trouxe um exemplar da revista. Que memória extraordinária! Depois de todas as revisões que fiz e de ter assinado a prova autorizando sua publicação, me pediram o nome do editor, sem o qual não poderiam publicar a revista. Esta exigência inesperada me colocou em uma "sinuca". Como me saio desta? De acordo com a lei, toda publicação deveria levar o nome do Editor, maior de idade (de 21 anos!) e brasileiro nato. Eu tinha apenas 20, estrangeiro ainda não naturalizado. Nem sequer tinha carteira de identidade. No Hashomer Hatzair somente Emilio Blay era brasileiro nato maior de idade, mas não consentiu que usássemos seu nome, e quando apelei ao Keren Kayemet, retrucaram "Esse é seu problema". Por falta de alternativa, dei o meu nome e, para minha 175 surpreza, não me pediram nenhum documento! Meu pai sempre criticou essa minha "modestia": "você se dedica dia e noite, e o que tem disso? Nada! Niguem sequer sabe que é trabalho seu". Desde esta revista assino meu nome completo em todo trabalho de minha autoria. Deixei de ser um anônimo. * Levei exemplares da revista para a diretoria do Keren Kayemet e pedi o dinheiro para retirá-las, quando me dei contas de outra "sinuca": a página informativa passou raspando (os censores confirmaram o acordo), mas na contra-capa havia uma letra "shin", símbolo do Mapam para as eleições do Congresso Sionista, e a revista foi vetada. Exigiram que a capa fosse substituída. Devo uma explicação: usei para a capa um poster em hebraico do Mapam para as tais eleições, da qual eliminei as referências ao partido. Os lemas clamando pela colonização agrícola de Eretz-Israel e a ilustração eram coerentes às metas da campanha. Não dei importância à letra "shin" isolada no canto e justamente foi ela, como se diz em hebraico, "a palha que quebrou as costas do camelo". Quem salvou a situação foi Urtzi, que propôs que o Hashomer Hatzair arcasse com todos os custos – a revista seria nossa contribuição à campanha. Foi um gesto acertado – Urtzi não teve dificuldade em pagar a dívida (o preço era muito camarada e o papel grátis) – vendemos facilmente 3000 exemplares e como todo o ingresso arrecadado ficou inteiramente para nós, foi um ótimo negócio. Contudo não sinto orgulho pela falha. 176 Pessoalmente, a revista teve para mim uma importância toda especial: pela primeira e única vez no Brasil meu nome apareceu publicamente como Editor de uma publicação. Em todas as outras publicações que editei, assinava "Nahum" com letrinhas miudinhas em um canto da capa. Além de mim, duvido que mais alguém reparava nisso. História da Haganá Urtzi depositou o dinheiro no banco e novamente a situação financeira do Hashomer melhorou. Muito! Estimulado pelo sucesso, empenhei-me na procura de material para nova revista ou novo livro. Foi quando recebi do Departamento Sul-americano da Hanagá Elioná em Israel dois manuscritos em espanhol datilografados em papel de carta aérea: "A Nossa Plataforma" de Ber Borochov (seu manifesto programático do sionismo socialista), e a famosa proposta de Mordechai Bentov, "Estado Bi-Nacional como solução do conflito árabe-judeu na Palestina". Ao mesmo tempo chegou às minhas mãos um manuscrito em francês, "A História da Haganá" de Eliahu Golomb, um dos líderes da Haganá. Na Moatzá, após longo debate, prós e contras, resolvemos publicar a história da Haganá, pois achávamos que depois do fracasso do "contra" o terrorismo, o certo seria imprimir simpatia "a favor" da Haganá. Encomendei a tradução do francês ao português a um conhecido meu, Moisés Rovner, um jovem poliglota, professor de línguas clássicas (latim e grego) na 177 Faculdade de Filosofia. Não posso precisar quantos exemplares vendemos. A edição nos foi entregue uma semana antes de nossa partida a Israel e desconheço o que se passou no movimento desta data em diante. Yechiel Harari A Hanagá Elioná nos comunicou que Yechiel Harari, do kibutz Ein-Shemer, tinha sido designado para shaliach central para a América Latina e era com ele que deveríamos nos comunicar. Harari se encontrava nos Estados Unidos à espera de visto para a Argentina. Takser já ouvira falar dele, em seu sobrenome anterior Grimberg, como shaliach "profissional" que serviu em muitos paises. Trocamos cartas e até lhe conseguimos um visto para visitar o Brasil, mas ele se recusou a vir – apenas Buenos Aires o interessava. Os meses foram passando e exatamente quando recebemos a notícia que Israel Ziman, do kibutz Maanit, estava para chegar ao Brasil como nosso shaliach, recebemos carta de Harari informando sua vinda ao Brasil com a mulher e uma filha, em caminho a Montevidéu, para onde conseguiu visto de turista e sua intenção era continuar de lá para a Buenos Aires. Harari e Ziman chegaram juntos. Eram tipos completamente distintos. Ziman nos deu a impressão de 178 um intelectual, comedido, pessoa de poucas palavras e eu diria encabulado. Harari, ao contrario, tinha uma personalidade forte, carismática e autoritária. Falava com voz alta, como se estivesse dando ordens a um batalhão. Harari esteve uma semana no Rio e outra em São Paulo. Mal pisou nas terras paulistanas, a primeira frase que ouvimos dele é que devíamos reorganizar o movimento no Brasil nos moldes clássicos do movimento mundial. Em outras palavras, eleger uma Hanagá Rachit (direção central) para dirigir o movimento no Brasil. Nossa opinião era de que por enquanto não deveríamos processar modificações estruturais drásticas no movimento, devido às desproporções e relacionamento delicado entre São Paulo e Rio de Janeiro. Em Recife, Belo Horizonte e Bahia estávamos dando os primeiros passos. Achávamos que quando Ziman se entrosasse em seu cargo, ele empreenderia o necessário para "normalizar" a situação. Nós dissemos o que dissemos e Harari fez o que fez: convocou uma convenção de bogrim em São Paulo para eleger a Hanagá Rashit. Veio uma pequena delegação do Rio de Janeiro, dentre eles Zvi Gandelsman e Samuel Schultz. De São Paulo estiveram presentes todos os bogrim. De Curitiba veio Jacob Schüssel, e assim o conheci pessoalmente. Harari abriu a reunião indo diretamente ao assunto: pediu nomes dos candidatos para a Hanagá Rashit. Como era de esperar, o consenso era que a sede deveria ser em São Paulo, pelos mais variados motivos apresentados, inclusive pelos cariocas. 179 Urtzi e Takser se recusaram a participar, mas não tiveram remédio. Harari os obrigou. Urtzi era o tesoureiro-financista do movimento e não havia candidato para substitui-lo, e Takser o ideólogo imprescindível. Eu fui escolhido para secretário-técnico da Hanagá e Ziman como o Diretor. Samuel Kleiman e Blima Plonka, que deveriam ser candidatos certos, não foram eleitos por motivo que explicarei em seguida. Amnon, Moshé e os outros bogrim estavam ocupados demais com seus cargos e não foram eleitos. Do Rio deveriam ser eleitos dois chaverim, mas eles apresentaram 3 candidatos, Zvi Gandelsman, Samuel Schultz e Jacob Felberg (que eu não conhecia), e ficou resolvido que os três ingressariam. Com a formação da Hanagá Rashit, Harari considerou terminada sua missão no Brasil. * O que aconteceu com a Samuel e a Blima? Muito simples: eles moravam em casas vizinhas desde crianças e suas famílias, se davam bem. Uns meses antes da vinda de Harari eles comunicaram à Moatzá que resolveram se casar. Takser, nosso ideólogo, fez um escândalo – não se casam no movimento. Somente se forem para a hachshará, no Uruguai ou Argentina. Resultado – Blima e Samuel abandonaram o movimento. Eu fique com a Kvutzá de Samuel, e não me lembro quem cuidou da Kvutzá da Blima. A kvutzá, apesar de eu a ter monitorado antes de a entregar a Samuel, não me recebeu de braços abertos. Estavam muito apegados a ele, e em uma ocasião que 180 nos encontramos, Samuel me revelou que a kvutza costumava vir à sua casa. Eu lhe disse que não via nenhum mal nisso, e que por mim poderiam continuar a se encontrar com ele. A Moatzá concordou comigo. Quando Harari e Ziman vieram, Samuel e Blima voltaram ao movimento, graças ao trabalho de convencimento de Ziman. 181 Capítulo 11 – 1948 – grandes acontecimentos Meus estudos Desde a mais tenra idade, quis ser arquiteto "quando ficar grande". Nem tanto de residências, mas de pontes e de cidades, em suma de urbanismo, mesmo não conhecendo esta palavra. Em 1948 me inscrevi no primeiro curso de urbanismo que foi estabelecido em São Paulo e que estava para ser inaugurado (se não me engano se trata da FAU, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo). Contrataram professores da Itália, mas o curso não chegou a funcionar. Somente quando já estava em Israel recebi de meu pai carta com o comunicado de que o ensino iria começar e devido ao atraso de meio ano os 6 candidatos que se inscreveram tinham sido aceitos sem exames. Se eu tivesse recebido esse aviso antes de me casar e de vir a Israel, não sei hoje como teria me decidido então, caso tivesse que escolher entre o Hashomer Hatzair e o Urbanismo... Nunca me arrependi do caminho que escolhi, mas não ter estudado arquitetura foi para mim uma perda irreparável! Tenho a impressão de que o imperativo do movimento de que seus membros renunciassem à formação universitária foi um grande erro. Hoje, a agricultura e os trabalhos manuais "b'rosh ilerishoná – hayadaim" ("Antes de tudo – as mãos", o lema de Meir Yàari) cederam em Israel a primazia às ciências e à alta-tecnologia, e os kibutzim que não souberam em tempo acertar o passo com este desenvolvimento se encontram em má situação. Terminei todos os exames no ginásio e de madureza (hoje supletivo) com notas suficientes para me diplomar 182 honradamente. As atividades no Hashomer Hatzair e no trabalho (consegui um emprego parcial – 4 horas diárias – como desenhista em um escritório de arquitetos) não me deixavam folga suficiente para os estudos, pois além do ginásio, como já relatei, estudava gráfica em curso noturno. Em uma das matérias deveria prestar exames exatamente no dia de Yom Kipur. Eu nunca fui religioso, mas em nosso Ginásio do Estado não haviam aulas nos feriados católicos, e eu fui um dos dirigentes da comissão de alunos judeus que foi pedir ao diretor do ginásio para que não fossem realizadas provas no dia sagrado aos judeus. Ele recusou, mas concordou que os judeus que não comparecessem neste dia às provas, os fariam na segunda época, sem perder o direito a uma "segunda época" especial, caso fossem reprovados. A maior parte dos judeus preferiu não adiar o exame a fim de não perder a data de inscrição na universidade, no caso de terem que prestar exame de segunda época. Eu, homem de princípios, não compareci à prova. Para mim o exame que me aguardava na segunda época era decisivo, pois se falhasse nele não poderia me inscrever na universidade, e a alternativa, conseguir o certificado para ir a Eretz-Israel parecia-me um objetivo inatingível (estávamos em fins de 1947). Exatamente quando estávamos em meio dos preparativos para a segunda moshavá do Hashomer Hatzair, me apareceram Harari e Ziman e me botaram na Hanagá Rashit. E como desgraças sempre vêm acompanhadas, o arquiteto para quem trabalhava me comunicou que estavam satisfeitos com meu trabalho, 183 mas que não poderiam disponibilizar uma prancha de desenho para um desenhista em tempo parcial, de forma que se eu não concordasse em trabalhar 8 horas diárias, estava despedido. O salário que recebia não dava para me sustentar sem que eu dependesse de meus pais, mas era uma ajuda muito importante para um rapaz de 20 anos. Tive uma conversa pessoal séria com Harari a fim de explicar-lhe minha situação. Caso eu não continuasse os estudos, deveria abandonar a casa de meus pais e não teria como me sustentar. A solução seria ir para a hachshrá do Uruguai ou da Argentina. Harari não concordou de nenhuma forma, pois em sua opinião eu deveria dedicar-me à Hanagá Rashit. Ele não se opunha que eu continuasse os estudos, com a condição de que eles não afetassem os meus cargos no movimento. "Neste caso, preciso preparar-me para minha segunda época, e se fico em São Paulo não consigo fazê-lo com a moshavá na mente". Concluímos que eu pegaria uma semana de férias fora da cidade. A segunda moshavá Como Harari ainda não tinha conseguido visto para a Argentina, propusemos que ele ficasse um ou dois meses em São Paulo para ajudar-nos a por em funcionamento a nova Hanagá Rashit. Ele achou preferível viajar a Montevidéu, acreditando que de lá lhe seria mais fácil chegar a Buenos Aires. Na primeira reunião da Hanagá Rashit, Harari exigiu que doássemos para o Keren Hashomer o dinheiro que tínhamos no banco. Recusamos, alegando que ele estava destinado ao financiamento da moshavá. 184 Harari viajou com a mulher e a filha para Montevidéu e ficamos sabendo que ele levou todo nosso dinheiro... Deu um escândalo na nova Hanagá Rashit. Takser quase devorou o nosso tesoureiro – o pobre Urtzi se defendeu alegando que Harari lhe deu em nome da Hanagá Elioná uma pekudá (ordem) de entregar a ele o dinheiro, para o Keren Hashomer, e que ele, Urtzi, não podia recusar. Harari passou vários anos em Buenos Aires como o shaliach central para a América do Sul. De volta ao kibutz Ein Shemer foi fundador e o diretor pedagógico do Seminário de Guivat Haviva. Retomamos nosso contato quando o Departamento de Construção do Kibutz Artzi, onde trabalhei durante doze anos, me designou cono o responsável pelas suas construções em Guivat Haviva. Harari se dedicava a colecionar documentação sobre o Hashomer Hatzair nos países sul-americanos, afim de publicar monografias históricas. Não sei o quanto conseguiu realizar de seu plano, pois já sofria da doença que o levou ao túmulo. Ele me pediu para escrever um depoimento sobre o Hashomer Hatzair de São Paulo, e me mostrou as páginas que recebeu de Jacob Felberg sobre o Rio. Respondi-lhe que não tinha interesse em escrever artigos informativos, mas lhe confessei que há muito tempo alimentava a ideia de escrever minhas memórias, e nelas o Hashomer Hatzair do Brasil teria o espaço que teve em minha vida. Harari disse que era uma boa ideia, conquanto que eu o fizesse rapidamente, porque "eu não tenho muito tempo". Toda vez que nos encontrávamos me perguntava, "nu (indagação em idish)? Já está escrevendo?". Quando comecei a escrever, foi como um furúnculo maduro que explode: terminei o meu livro de memórias "Mischak Ieladim??" em uma semana, quando fui shomer-laila (guarda-noturno) na casa-das-crianças. Me 185 levou mais 10 anos para redigi-lo até ficar, em minha opinião, pronto para ser impresso. Mostrei o manuscrito a Harari, que chegou a le-lo inteiramente, manifestou sua satisfação e prometeu ajudar-me em sua publicação, o que não pôde cumprir – sua doença foi mais rápida. Ele se queicou que o que escrevi dele era injusto e que ele se explicaria por escrito. Realmente recebi uma carta detalhada, datada de 15/12/1983, justificando o seu procedimento em São Paulo, tanto à Hanagá Harashit quanto ao dinheiro que levou para o Keren Hashomer. Devido ao meu respeito à sua perdonalidade, citarei um trecho: "Não recebi salário do movimento (central). Era costume naqueles tempos que o shaliach fosse sustentado pelos movimentos locais em que atuava. Leve em consideração que em todos os anos de atividades nos diversos países em que servi não recebi um tostão sequer de Israel ou de outra origem. O shaliach devia se sustentar às custas do movimento local, e daí o sistema da Polônia – o Keren Hashomer – que financiava as atividades do movimento e os shlichim. De Eretz-Israel recebi apenas as passagens das viagens e em todo país que chegava, organizava campanha para o Keren Hashomer, e visto que as possibilidades limitadas, em nenhuma de minhas missões (e este é meu orgulho!) pude passear pelo país, gozar de teatros, fazer compras, etcétera. Em São Paulo, por exemplo, não conheci a cidade, não estive em nenhum cinema ou museu. Em poucas palavras: não saí do gueto..." * Ficamos sem nenhum dinheiro. E como disse anteriormente, desgraças não vêm sozinhas. O nosso shaliach, Ziman, sofreu um derrame cerebral e no hospital nos informaram que seu estado era muito grave. Sabíamos que ele era sobrinho do Rabino Aba Hilel 186 Silver, dirigente máximo do sionismo americano. Urtzi comunicou-se com ele por telefone, e o tio tratou para que Ziman fosse transportado aos Estados Unidos e ali hospitalizado. Israel Ziman ficou hospitalizado meio ano e voltou ao seu kibutz, Maanit. Tentei anos mais tarde investigar o que aconteceu com sua volta, mas não consegui resposta satisfatória. Fato é que abandonou o kibutz e foi residir em Jerusalém, onde se casou e trabalhou no Departamente de Procura de Parentes, da Agência Judaica. A partida repentina de Ziman foi um golpe para nós, pois entre outras tarefas ele estava encarregado de preparar com Amnon o programa de atividades da moshavá, enquanto que Samuel Kleiman era o responsável pela administração e Shlomo Takser pela parte financeira. Amnon encontrou-se comigo e resolvemos preparar a programação para os primeiros dias. Comunicamo-nos com o pessoal do Rio a fim de pedir que os dirigentes cariocas da moshavá viessem imediatamente a São Paulo, para coordenarmos sua organização. Vieram Moisés Glat e Samuel Schultz, que se encontraram com Takser em sua loja e combinaram de reunir a noite em sua casa todos os responsáveis pela moshavá. * Às 20:00 lá estávamos os membros da Hanagá Rashit (Urtzi, Takser, Noach e eu). Convidamos todos os bogrim encarregados de organizar a moshavá, mas somente Amnon e Moshé Strauch apareceram. Telefonamos para o Samuel, que nos informou que estavam em sua casa ocupados com preparativos 187 técnicos e que viríam mais tarde. Takser era de opinião que se a comissão preparatória não precisava da ajuda da Hanagá, deveríamos confiar nela. Urzi ficou ofendido e avisou que como não sabia de nada do que estava acontecendo, não assumiria nenhuma responsabilidade financeira por déficits eventuais. Chegaram às 23:00. Foi uma reunião muito difícil. Samuel e Shlomo, os responsáveis pela organização da moshavá declararam que uma vez que eles eram os responsáveis, a Hanagá Rashit não precisaria "fiscalizálos". Essa atitude me pareceu estranha, pois não me parecia que alguém tivesse tal intenção, e achava que éramos responsáveis por tudo que acontecia no movimento. Takser achou que enquanto tudo funcionasse corretamente, não teríamos motivos para intervir. Outra complicação: a delegação carioca devia trazer consigo sua parte na verba do financiamento da moshavá e eles nos informaram que ainda não tinham terminado a campanha que estavam realizando para arrecadar o dinheiro. Shlomo Takser efetuou, com suas economias pessoais, as compras de mantimentos e alugou tendas e catres para dormir. Glat afirmou que quando viessem os chanichim trariam consigo a quota que devem contribuir. Também comunicou que na última semana da moshavá viria um grupo de 20 a 30 chanichim entre 10 a 12 anos. Nós fomos contrários a isso alegando que na moshavá não haveria condições para alojá-los, pois não havia suficiente verba para mais tendas, catres e alimentos. Como eles não concordaram em abrir mão desta 188 exigência, o assunto ficou para ser resolvido mais tarde, de acordo com as circunstâncias. Apesar das discussões, a reunião terminou de madrugada em uma atmosfera muito otimista e amistosa. * Schultz permaneceu em São Paulo por mais um dia para auxiliar na compra dos mantimentos. Glat voltou ao Rio pela manhã. Eu o acompanhei ao aeroporto e tivemos bastante tempo para esclarecer detalhes. Voltei para casa otimista e bem animado com a conversa amigável que mantivemos. Enganei-me redondamente! * Alugamos por um mês uma fazenda próxima a Campo Limpo, estação isolada antes de Jundiai. Na fazenda havia uma única habitação de tijolos, e um terreno capinado, destinado à montagem da tendas. Dois dias antes do início marcado para a moshavá, Shlomo Takser e Moshe Strauch viajaram num caminhão carregado com as tendas, os catres e os mantimentos, e Samuel Kleiman, com um grupo de tzofim-bogrimm, partiram para a fazenda a fim de montar as tendas e preparar a recepção dos participantes. Uma vez descarregado, o caminhão viria à estação para transportar suas bagagens. Tudo bem planificado, mas como diz o ditado "o homem põe e Deus dispõe..." * Fomos com todos os veículos que conseguimos mobilizar à estação Central de São Paulo esperar os participantes que deveriam chegar do Rio de Janeiro. 189 Com exceção da Companhia Inglesa dos trens de Santos a Campinas, que funcionava pontualmente como os relógios da torre da Estação da Luz, todas as demais companhias funcionavam que era um "Deus nos acuda". Sabia-se (mais ou menos) quando o trem partia, mas quando chegava era outra história... O nosso trem do Rio chegou a noite com um atraso de apenas 8 horas e sob uma chuva torrencial. O transporte do pessoal, mais mortos do que vivos por conta da viagem, foi um empreendimento digno da evacuação de Dunquerque. A lishká, repeta de chanichim que esperavam por aqueles que deveriam hospedar em suas casas, parecia mercado persa. Muitos dos recém chegados se sentaram nas escadarias, esperando serem levados para jantar e dormir. Uma mocinha sentada na escada chamou minha atenção. Me disseram que era a Suzana da Bahia, com quem eu mantinha correspondência, sem a conhecer pessoalmente. Chamei a Regina Goldstein e lhe pedi que a levasse para sua casa, pois ela me parecia muito cansada. Foi o único caso que tratei pessoalmente – todos os demais tiveram que esperar seus turnos. Como verão oportunamente, se tratava de um "dedo de Deus"... * Na manhã seguinte o dia melhorou. Em São Paulo, em dias de sol homem prevenido anda de guarda-chuva. Ocupamos um vagão inteiro do trem e a viagem foi um carnaval shômrico – canções e risadas; esgotamos todo o nosso repertório de canções em hebraico e idish. A nossa estação era ao todo uma plataforma de concreto 190 sob telhado de telhas. Todo mundo se sentou no chão para aguardar o caminhão que deveria estar à nossa espera, e depois de umas duas horas, como tardava a vir, dois tzofim correram até a fazenda para verificar o que acontecia. Voltaram para informar que o caminhão com as tendas e os mantimentos ainda não tinha chegado. Como começou a escurecer, resolvemos camihar à fazenda carregando as malas na mão. Fomos andando como uma caravana de camelos, cada um com sua mala, que não tinham rodinhas com as de hoje. Coitadinhos dos que trouxeram enxoval! No início foi engraçado. Todos muito animados, cantando em voz alta. Uma caravana cantante. E aí aconteceu o que deveria acontecer: um pingo de água, outro pingo, e mais outro... e os deuses abriram os céus sobre nós. Não digo que caiu uma tempestade, mas deu para nos molhar como pintinhos. Amontoamos as malas debaixo de uma árvore, como se isso adiantasse para alguma coisa, e saímos em disparada. Salve-se-quempuder! Não posso explicar como no único quarto da casa entraram uns 80 jovens, molhados dos pés à cabeça, e se sentaram no chão, um ao lado do outro. Não havia espaço para se deitar. A direção da moshavá se reuniu em volta da mesa na cozinha, na qual estava acesa uma lãmpada de querosene (naquela fazenda ainda não tinham inventado a eletricidade!). Debatemos todos os aspetos possíveis da situação: o que fazer com chuva e sem chuva, com caminhão e sem caminhão, e dai por diante. A única possibilidade que 191 ninguém suscitou foi o cancelamento da moshavá e voltar para casa. O pai de Benjamin Casoy, um de nossos tzofim, homem idoso e um dos patronos de nosso movimento. se ofereceu a acompanhar o primeiro dia da moshavá. Ele não participou da reunião; ferveu água em um aquecedor de querozene, preparou café e o serviu aos jovens que estavam sentados arrepiados. Por questão de justiça, registro aqui outro pai, de Meir Meller, que foi um patrono muito dedicado ao ken e se tornou membro importante no Mapam da cidade. Terminada a reunião, seus participantes se arrumaram na cozinha, cada um como podia – uns deitados na mesa, outros no chão. Encontrei ali dois catres que os que chegaram antes trouxeram. Montei um deles e chamei o sr. Casoy, para que fosse dormir nela. Quando o abri o segundo reparei que um dos pés estava quebrado. Com uma vassoura e um banquinho consegui esticar a lona e já ia me repousar quando resolvi dar uma volta para verificar se estava tudo em ordem.. Tomei a lâmpada de querosene e fui dar uma volta. Todo mundo estava dormindo, sentados no chão, as costas de um apoiados nas de outro. O cansaço venceu a roupa molhada. De uns dos cantos do quarto ouvi um ruido estranho, um tênuo ranger de dentes bem baixinho; me aproximei com cuidado de não pisar em alguém, para verificar o que estava acontecendo. Uma mocinha toda encaracolada tremendo de frio. Reconheci a Suzana da Bahia. Dei-lhe a mão e lhe disse "venha comigo". Ela aceitou: levei-a ate o catre que 192 preparei para mim. Ela se deitou e a cobri com uma cobertor fino que encontrei. Comecei a procurar um lugar para mim e acabei deitando-me ao seu lado. Ela se moveu para me ceder lugar. Foi quando reparei que seus sapatos estavam enlamados e encharcados de água. Levantei-me, tirei-lhe os sapatos, embrulhei seus pés descalços com um jornal que encontrei e voltei a me deitar a seu lado. Adormecemos – sono de justos... * Amanheceu um dia maravilhoso! O sol... pena que não tenho vocação para poeta e não sei compor frases bonitas que descrevam o atmosfera que nos envolveu. Parecia um formigueiro de jovens correndo para lá e para cá, e em um piscar de olhos o acampamento das tendas estava montado, com mastros para as bandeiras e tudo o mais, pronto para o mifkad matinal. Estava me esquecendo – o caminhão com as tendas e os mantimentos chegou de madrugada. Bufando e rugindo, mas chegou... Tudo que poderia acontecer a um calhambeque, aconteceu. Teve que ser rebocado a uma garagem e durante dois dias todos seus mecânicos suaram para o colocar em andamento. Aí estava ele, já descarregado, orgulhoso de si mesmo, e viajou com um grupo de rapazes para trazer as malas que deixamos no caminho. Não há necessidade de descrever em que estado chegaram, mas chegaram todas. A refeição matinal consistia de café com leite e biscoitos, que tomamos sentados na relva. Reunião da direção da moshavá, desta vez curta e direta, e tudo começou a funcionar como uma máquina bem 193 lubrificada. Nunca vi tanto entusiasmo e jovialidade. Desta vez depois da tempestade veio mesmo a bonança, exatamente como escrito no figurino. Procurei com os olhos a Suzana, mas reparei que estava se esquivando de me encontrar e respeitei sua atitude. Creio que ficou encabulada com os acontecimentos da véspera. * Depois do almoço (a comida estava supimpa, ou o apetite às alturas!) o sr. Casoy e eu nos caminhamos em direção à estação para voltar para casa, muito satisfeitos e otimistas. Ao nos aproximarmos do portão, Suzana veio correndo com uma carta para seus pais, me pediu para despachá-la e me recomendou que cuidasse de lhe mandar as cartas a ela endereçadas. Disse-lhe que não precisava se preocupar e aproveitei para combinarmos um encontro depois da moshavá. Nada de malícias – era para conversarmos sobre o ken da Bahia. O fato de acabarmos nos casando não tem nada a ver com esse 194 encontro. * Viajei para a cidade de Marília, na região de Araraquara, onde viviam tios meus, que eram abastados e me receberam como a um rei. Durante uma semana vivi uma vidinha pacata e sossegada, mimado, cercado de carinho, empenhado nos meus livros de estudo, que largava somente para ir todas as noites assistir filmes antigos no cinema da cidade. Meus tios tinham um balcão reservado para a família. * De volta para casa e nos últimos preparativos para a minha segunda época de exame, me aparece o Amnon pálido e abatido. Ele, o nosso orador oficial cujas palavras jorravam de sua boca como de uma fonte inesgotável, me contou gaguejando que coisas terríveis estavam acorrendo na moshavá. Moisés Glat fumava como uma pipa e distribuía cigarros aos jovens, induzindo-os a fumar – "a proibição de fumar é um mandamento anacrônico do antigo movimento na Polônia". Além disso os incitava contra a direção "caduca" de São Paulo. Amnon contou que quando estava dissertando a seus chanichim (discípulos) sobre "materialismo-histórico", Glat apareceu e não o deixou continuar, chamando-o de impostor e mentiroso. Amnon estava abalado e me deu para ler as apontamentos que preparou do que pretendia dissertar. Li e não encontrei nada de errado. Telefonamos para o Takser e mal dissemos "alô", ele nos torpedeou com histórias do que se passava na moshavá, que seu irmão Shlomo, que se encontrava na loja, lhe 195 contou. Ficamos de nos reunir à noite em sua casa. * Estávamos Takser, Urtzi, Noach, Amnon, Shlomo e eu. Shlomo queixou-se que o pessoal do Rio não havia trazido o dinheiro prometido e que todas as suas economias haviam se acabado. A situação financeira da moshavá estava crítica. Urtzi disse que não tínhamos dinheiro no banco e que de qualquer maneira não estava disposto a ajudar, depois que o afastaram dizendo que não precisavam dele. Resolvemos viajar no dia seguinte para a moshavá para tratar dos problemas in loco. * Chegamos à moshavá com o carro de Takser. Urtzi e Noach não vieram. Imediatamente nos encontramos com toda a direção da moshavá. Glat veio com um cigarro na boca. Takser lhe pediu que o apagasse, pois não se fuma no Hashomer Hatzair. Glat retrucou que fumava deste os 14 anos e não via motivo para mudar seus hábitos. O volume da discussão foi subindo e Takser a interrompeu, pois não ficava bem discutir na presença dos participantes jovens da moshavá. Voltamos para São Paulo. * À noite nos reunimos novamente na casa de Takser, inclusive Schultz que voltou conosco. Sendo membro da Hanagá Rashit, Takser exigiu dele que viesse para a reunião. Schultz comunicou que Zvi Gandelsman estava para vir com o grupo de tzofim-tzerim (de 10 a 12 anos) e Takser 196 telefonou imediatamente para ele, afim de que não viessem, pois a moshavá não tinha meios de recebê-los. Resolvemos mandar, por intermédio de Schultz uma carta para a direção da moshavá exigindo a expulsão imediata de Glat, caso contrário nós romperíamos nosso contato. A resposta que recebemos após dois dias: eles não aceitam ultimatos. A moshavá, por falta de mantimentos, terminou uma semana antes da data prevista, Zvi Gandelsman veio com o grupo de jovens sem se comunicar conosco, e eles passaram lá um dia somente... Com a segunda moshavá aconteceu o mesmo do que com a primeira: terminou antes da data estipulada, mas do ponto de vista emocional foi uma vivência extraordinária e inesquecível. 197 Depois da moshavá O ken do Rio de Janeiro com a volta dos participantes da moshavá teve um desenvolvimento fantástico. Em São Paulo nossa lishká, exatamente na época em que suas atividades deveriam estar no apogeu, ficou deserta, desolada. Eu estava inteiramente fora de mim, sem saber o que fazer. Meu consolo foi Suzana cumprir seu compromisso de nos encontrarmos. Ela me telefonou da casa de Regina e fui buscá-la para almoçar em minha casa. Minha mãe preparou uma refeição toda especial, pois afinal das contas era a primeira vez que eu convidava uma moça para almoçar em nossa casa. Depois da refeição saímos para passear pelo centro da cidade e ao mesmo tempo conversar sobre as atividades passadas e futuras do ken da Bahia. Na praça da República havia uma novidade: japoneses abriram uma venda de sorvetes que eram preparados na hora, num aparelho manual onde colocavam dois biscoitinhos e entre eles, as camadas dos sorvetes escolhidos. Uma pressão no aparelho e saía uma cassata, que embrulhavam em papel brilhante. Comprei uma para Suzana e descobri então o seu fraco – sorvete. "Você não compra sorvete para si?" "Não. Não gosto de sorvetes". A verdade era que a minha situação financeira não me permitia tal luxo... Continuamos a passear e conversar sobre nossos assuntos ideológicos, sem sequer suspeitar que seis meses mais tarde nos casaríamos. * 198 Eu estava inteiramente desorientado, sem trabalhar, sem estudar, sem saber o que fazer. Prestei o exame que me faltava e consegui passar (com nota 6!). Inscrevi-me na nova faculdade de urbanismo, mas ela não começou a funcionar. Minha vida se transformou em um enorme vazio. Rosa Levinson, a namorada de Amnon, voltou de uma viagem ao Uruguai, entusiasmada com a visita que fez à hachshará. Mandamos uma carta a Harari relatando o que estava acontecendo em São Paulo e pedimos que viesse imediatamente por algumas semanas para estabilizar a situação. Também escrevemos que Amnon, Rosa e eu estávamos planejando a ingressar na hachshará uruguaia. Como resposta recebemos uma carta em espanhol de Uri Triyer, "secretário de Harari", comunicando-nos que estavam prontos a receber na hachshará todo boguer do Brasil, menos Amnon Yampolski e Nahum Mandel, pois devido a instruções específicas de Harari eles deveriam atuar no movimento brasileiro pelo menos mais um ano e que cópias destas instruções tinham sido mandadas aos movimento na Argentina e no Chile. Harari não veio, mas recebemos em seu nome outra carta de Triyer, propondo dividir o movimento brasileiro em dois galilim (setores); o do norte (Recife, Salvador, Belo Horizonte e Rio de Janeiro) sob orientação do Rio e o do sul (São Paulo e Curitiba), sob orientação de São Paulo. Havia, no entanto, uma única condição: a direção do Rio deveria comprometer-se a mandar-lhe mensalmente a devida contribuição ao Keren Hashomer. A resposta que mandei foi talvez a carta mais agressiva e 199 rancorosa que escrevi: não havia nenhuma necessidade de cisão do movimento. De nossa parte não nos opúnhamos que a Hanagá Rashit passasse inteiramente ao Rio, pois não víamos como continuar nela. Expressei grande desgosto por sua manipulação monetária. Reativação do Ken de São Paulo Um belo dia, um mês depois do encerramento da moshavá, Amnon apareceu em minha casa acompanhado de três tzofim-bogrim: seu irmão Daniel e os irmãos Wili e Mois Bessak. Eles vieram desculpar-se de seu comportamento na moshavá com Takser, Urtzi, Amnon e eu e me pediram retornar ao meu cargo. Para mostrar o quanto estavam arrependidos me entregaram um maço das cartas que receberam de Glat durante vários meses. Bastou-me uma olhada para ver que os incitava contra os ex-shomrim caducos, que não tinham o que fazer no movimento, e acusando Amnon e Nahum de serem "impostores, charlatões e mentirosos". Num gesto cavalheiresco, do qual me arrependo, me recusei a pegar as cartas. Não podia recusar o chamado, e com a nossa volta, de Amnon e minha, à lishka, como pelo toque de uma varinha de condão, ficou novamente repleta. Também Takser e Urtzi se apaziguaram e até organizaram uma campanha entre os companheiros ex-shomrim para ajudar ao Shlomo a recuperar-se do desfalque financeiro pelo qual passou. Akiba Shechtman, o secretário do ken do Rio continuou a se comunicar comigo e me mandar cópias das atas das reuniões da Hanagá Mekomit (direção local), donde 200 ficamos sabendo que Gandelsman e Schultz, que depois da moshavá ficaram em São Paulo dois dias para ajudar a ativar o ken, e Iura Bergman, que ficou uma semana mais, ao voltar ao Rio informaram à Hanagá local que o ken de São Paulo havia sucumbido. A circular nº 2 Por mais que pensasse, não podia atinar com o que havia acontecido na moshavá. O Glat representou o ken do Rio na fundação do movimento e tínhamos a impressão de que era um dos principais dirigentes do mesmo no Rio, de forma que seu comportamento nos era estranho. Na moshavá também participaram Schultz, Reznik, Felberg, Iura Bergman e outros bogrim do Rio, o que ainda nos deixou mais confusos. Quando a nova Hanagá Rashit começou a atuar resolvi editar uma circular mensal sobre as atividades do movimente a ser distribuída às hanagot locais, a Yechiel Harari, à Argentina, Uruguai e Chile, e ao Departamento Latino-Americano Hanagá Elioná. Foi o que fiz com o circular nº1. Apesar do meu afastamento do ken, continuei mantendo contato com Akiba Shechtman, tanto por cartas como por telefone e em um relatório que recebemos informava sobre a resolução deles de solicitar ao professor Turnovski que viesse a São Paulo para se encontrar com seu amigo Isaac Takser a fim verificar o que poderia ser feito para reavivar o Ken de São Paulo. Aconselhavam também "afastar" da direção o Amnon e o Nahum. Nunca soube em que pecamos. Redigi então a circular nº 2, na qual relato em pormenores a crise que houve na moshavá, porém em 201 segunda leitura resolvi mandar somente a cópia para o Akiba, para verificar a reação. As cópias restantes ainda estão comigo, em meu arquivo. Turnovski realmente veio hospedar-se na casa de Takser e organizamos em sua honra um mifkad de todos os shomrim, inclusive o grupo de ex-shomrim. A lishka mal conseguia abrigar todos os presentes e o mifkad foi impressionante: todos se camisas brancas, saias e calças azuis, lenços nos pescoços (azuis, verdes e vermelhos, de acordo com a shichvá). Turnovski não pôde conter sua emoção e cumprimentou o mifkad dizendo que sua impressão era de estar no ken de Varsóvia dos bons tempos. A noite, na casa de Takser, nos encontramos com ele todos os bogrim e ex-shomrim. Ele explicou que sua visita a Takser era em caráter particular. A conversa transcorreu amistosamente e ninguém comentou o que sabíamos das atas que tínhamos recebido (que ele veio em missão...). A única frase "estranha" que ouvimos dele foi que se sentia como Balaão. Na Biblia (Num 22:5) Balak, rei de Moab, contratou o feticeiro Balaão para amaldiçoar os hebreus que estavam acampados em seu território. Graças à interferência de anjos de Deus, Balaão, ao em vez de amaldiçoar os hebreus, os abençoou. * Recebemos de Akiba cópia das atas da reunião seguinte. Entre outros itens constava a leitura da minha circular nº2 e o relato de Turnovski informando que em seu parecer o ken de São Paulo estava funcionando na melhor das ordens. 202 Outro item: Jacob Felberg, que participou da moshavá, exigiu a expulsão de Glat, devido ao seu comportamento. Como resolveram dar outra oportunidade ao Glat, Felberg (membro da Hanagá Rashit), se demitiu em protesto de todos seus cargos. Jacob Felberg viveu em Gaash, mas eu jamais conversei com ele sobre os acontecimentos na moshavá. Sempre admirei os seus dotes intelectuais (era profundo conhecedor do Tanach e de literatura em geral, e foi professor no kibutz), mas eu evitava me encontrar com ele porque, devido a motivos que desconheço, não perdia ocasião de me ofender. Em certa ocasião, alguns meses antes de seu falecimento, novamente se dirigiu a mim grosseiramente. Não reagi. Mais tarde encontrei na minha caixa postal carta sua, na qual me escreve que julga que desta vez passou dos limites, que não pode explicar porque sempre me tratou da forma como fazia e se arrependia. Pediu-me que o perdoasse. Depois desta reconciliação nosso relacionamento mudou para melhor, mas fiquei "confiando desconfiando". Devo salientar que publicou no boletim do kibutz críticas muito interessantes e favoráveis a dois de meus livros. Quanto a Glat. Veio ao kibutz Maabarot com o primeiro grupo da hachshará, mas voltou logo ao Brasil, onde fez carreira de assessoria financeira. Nos encontramos várias vezes, tanto em Israel como no Brasil (em minha visita de 1974 – ele veio falar comigo e eu o ignorei, me recusei a responder). Ele se queixou com Urtzi que eu lhe guardo rancor devido a "brincadeiras de crianças" (daí o título de meu primeiro livro de memórias em hebraico). No ano passado (2007) Glat, de visita em Gaash, me encontrou casualmente e me extendeu a mão. Desta vez aceitei e assim nos reconcialiamos. Depois de sessenta anos, não esqueço nem perdôo, mas não posso alimentar ressentimentos – o meu passado não foi para mim nenhuma brincadeira, mas passou... 203 Akiba e eu continuamos a nos corresponder e em várias ocasiões conversamos por telefone. Jamais nos refermos ao que se passou na moshavá. 1948 – Mifkas na lishká do Hashmer Hatzair. Em São Paulo 1948 – Desfile do Hashomer Hatzair no campo do Macabi 204 Capítulo 12 – Final holywoodiano Declaração do Estado de Israel O ken voltou aos eixos e a declaração do Estado de Israel influiu na intensidade das atividades do movimento. A coletividade estava em euforia, os judeus ergueram as cabeças e organizaram um gigantesco comício no Estádio do Pacaembu. O nosso ken compareceu como guarda-de-honra em frente ao palco, de "uniforme completo" (camisas brancas, calças e saias azuis, lenços coloridos no pescoço, e empunhando bandeiras nacionais, a do Brasil e de Israel). 1948 – Pacaembú. Em frente ao palco no comício comemorando a declaração do Estado de Israel. * Todas as kvutzot estavam muito ativas, e recebemos novamente pedidos de jovens judeus de Vila Mariana para que fossamos organizá-los como ken do movimento. Encontrei-me com eles algumas vezes, mas 205 fracassamos, por falta de madrichim. Os nossos bogrim começaram a ponderar sobre a possibilidade de organizar uma hachshará no Brasil, Samuel, Blima, Amnon, Moshe e eu tínhamos mais de 20 anos de idade. Cada um de nós, por razões pessoais, nos encontrávamos num beco sem saída e vimos na hachshará a única solução. Mobilização de voluntários Abraão Levandovski havia tentado no ano anterior viajar como clandestino para Eretz-Israel, mas foi descoberto e desembarcado em Salvador. Levandovski não desistiu e tentou novamente, sem sucesso, mas finalmente alcançou seu intento, e aderiu aos shomrim sul-americanos que se encontravam em Negba, que fundaram mais tarde o kibutz Gaash. Levandovski não foi o único do Rio de Janeiro a ir à Eretz-Israel. Achim Waldman, sem ter sido anteriormente membro do Hashomer Hatzair, aderiu a Negba. Achim Waldman hebraizou o nome para Chaim Yáari. Quando cheguei a Negba em 1948 o encontrei de prontidão como observador no topo da torre dágua e eu soube que mesmo durante os bombardeios mais acerados e pesados contra o kibutz, que arrasaram todas as casas e deixaram a torre de concreto esburacada de projetis, Chaim não abandonou seu posto Chaim, muito sério e correto, foi contabilista de Gaash e faleceu prematuramemte. * 206 Com a Declaração do Estado de Israel em 14 de Maio de 1948, 6 países árabes o invadiram e deflagraram a Guerra da Independência, a mais violenta e grave das guerras que o país enfrentou. Em proporção à sua população, o país sofreu nela o maior número de perdas de todas as guerras em que combateu. Eu estava ocupado com minhas publicações, com o livro História da Haganá de Eliahu Golomb, quando fomos informados de que a representação da Haganá em São Paulo, comitê que se organizou com a Guerra de Independência de Israel, estava mobilizando voluntários para o novo exército de Israel. Em reunião dos bogrim comentamos que o alistamento na Machal (acrônimo hebraico de "voluntários do exterior") nos permetiria realizar o sonho de ir a Israel. * Blima, Samuel, Amnon, Rosa Levinson, Shlomo Takser, Hinda Naiberg, eu e minha irmã Rosinha (não participou no debate), saímos a uma haflagá (excurção) noturna em Interlagos. Montamos tendas, nos banhamos no lago, e ao anoitecer acendemos uma fogueira e nos sentamos ao seu redor. Como de costume começamos a reunião cantando algumas canções, mas a nossa conversa passou de imediato para o alistamento na Machal – sim ou não. Estávamos de acordo que agiríamos coletivamente. O debate foi muito sério e demorado. Prós e contras se alternavam, analisados com seriedade. Estávamos cônscios de que nosso alistamento deixaria o ken de São Paulo desprovido de bogrim, mas seguros de que os tzofim-bogrim, ótimos madrichim, estavam maduros o 207 suficiente para nos substituir. A decisão unânime: nos alistaremos! * Resolvemos nos organizar como garin-aliá (grupo de emigração) coletivo, juntando os recursos financeirus em caixa comum. Escrevi a Harari comunicando-lhe nossas decisões. Os acontecimentos começaram a rolar como uma bola de neve: a reconciliação com o ken do Rio, uma onda de casamentos, viagens para a expansão do movimento, eleição de nova Hanagá Rashit e partida a Israel. Reconciliação No Rio de Janeiro, sem nenhum contanto conosco Samuel Schultz e Zvi Gandelsman também se alistaram na Machal. Neste ínterim, chegou ao Rio de Janeiro um 208 novo shaliach para a campanha do Keren Kayemet, Shmuel Drori, e soubemos que era membro do kibutz Shaar Haamakim, do Hashomer Hatzair. Pedimos a Harari que nos informasse a seu respeito, pois pretendíamos pedir-lhe que interferisse no sentido de reatar o relacionamento entre os kenim de Rio de Janeiro e São Paulo – ou talvez ele, Harari, viesse com esse intuito. Antes de Harari nos responder de que se tratava de um pessoa de toda a confiança, Akiva nos escreveu entusiasmado a seu respeito e pediu que fossemos nos encontrar com ele em seu hotel e se encarregou de que a direção do Rio comparecesse a essa reunião. * De São Paulo fomos Isaac Takser, Urtzi e eu, e do Rio Gandelsman, Schultz, Felberg (os três da Hanagá Rashit) e Akiba Shechtman, secretário do ken. Shmuel Drori, de olhos meigos e face arredondada irradiando bondade e calma, e ao mesmo tempo carisma e decisão, revelou-se uma pessoa que sabia como lidar com conflitos. Em sua presença não se levantava a voz e sob sua orientação a conversação transcorreu amistosamente. Ficou resolvido convocar um Kinus (convenção) no Rio de Janeiro para eleger uma nova Hanagá Rashit, pois quase todos seus atuais membros se alistaram para a Machal. Drori pediu que todos os alistados adiassem por duas semanas a partida, afim de participarem no Kinus. Prometemos tentar o adiamento. 209 Voltamos a São Paulo e conseguimos da companhia de navegação adiar as passagens por duas semanas. Soubemos que Schultz e Gandelsman não adiaram e partiram antes do Kinus. Gandelsman viajou com uma sobrinha Sônia, que não pertencia ao movimento, e era irmã de Zina Fishman, participante de nossa primeira moshavá e muito ativa no movimento. Kinus no Rio de Janeiro Comunicamo-nos com os kenim de Recife, Salvador, Belo Horizonte e Curitiba a fim de que mandassem delegações para o Kinus. Takser propôs que todas as delegações apresentassem relatórios por escrito de suas atividades. Ainda por sugestão do Takser me incumbi de redigir sob sua orientação o relatório da Hanagá Rashit, que deveria ser impresso no mimeógrafo, a fim de ser enviado aos kenim antes do Kinus. Encontramo-nos para 210 programar os itens a serem abordados e eu comecei a escrevê-los, mas por motivos que relatarei não pude terminar e o esboço ficou inacabado em meu arquivo. * Não pude participar do Kinus, mas soube que transcorreu com sucesso. Vieram delegações de todos os kenim. De Curitiba veio todo o ken em peso – Jacob Schüssel. Encontrei no Arquivo de Guivat Haviva cópias dos relatórios de Recife e Belo Horizonte e cópia das atas com as resoluções do Kinus, assinadas por Mordechai Blanche como dirigente do Kinus, Uron Mandel (em nome da Hanagá Rashit demitente) e os delegados dos kenim. A revelação da convenção foi seu dirigente, Mordechai Blanche, que conheci quando estive no Rio, mas com quem não tive oportunidade de conversar. Mordechai Blanche era um rapaz competente e carismático. Líder e orador nato. Estudante de medicina que abandonou os estudos para se dedicar ao Hashomer Hatzair. Devia vir a Gaash com o primeiro grupo da hachshará, mas devido a um defeito físico congênito teve que adiar a viagem até que no kibutz houvessem condições (residência) para ele. Em 1954 veio a Gaash, casado com Edith, de Porto Alegre, e conseguiu se impor como um dos principais dirigentes do kibutz, do qual foi duas vezes secretário. Foi shaliach no Brasil e depois nomeado chefe da Hanagá Rashit do Hashomer Hatzair em Israel. Foi ativo no partido Mapam e eleito para sua comissão política. Em 1972 o nomearam membro da presidência do Congresso Sionista Mundial. 211 Aos trinta anos recebeu uma bolsa de estudos e terminou cursos de sociologia e filosofia na Universidade de TelAviv e em 1977 completou com distinção doutorado na Universidade de Lund, na Suécia. Foi professor no Departamento de Filosofia Universidade de Tel-Aviv e na Faculdade de Estudos Interdisciplináres da Universidade de Haifa em Oranim (instituto educacional do movimento kibutziano). Publicou 3 livros. Currículo de vida impressionante para uma pessoa que morreu prematuramente aos 48 anos. Bernardo Goldsvaig foi nomeado rosh a´ken de São Paulo e ele me substituiu em todos os meus cargos. Bernardo Goldsvaig, estudante de odontologia, que eu interessei pelo movimento, era meu amigo desde os 9 anos de idade, dos tempos da escola Talmud-Torá. Depois de assumir a direção do ken de São Paulo teve que abandonar os estudos exatamente ao passar para o terceiro ano (o útimo a fim de se graduar). Participou na hachshará, e veio casado com Sônia Dreizenstok para Gaash. Obteve bolsa de estudos afim de terminar os estudos no Brasil e se formar médico odontólogo. De volta a Gaash, divorciou-se, abandonou o kibutz e casou-se novamente, com Rachel, que conheceu no kibutz Beit Gobrin, onde trabalhava. Enquanto sua esposa vivia, residiam em Beer Sheva, onde praticou sua profissão. Quando ela faleceu, aposentou-se e veio morar em Hadera. Continuamos amigos próximos (mais de 70 anos!). 212 213 Onda de casamentos Com a declaração de nosso garin-aliá, ocorreram dois acontecimentos: onda de casamentos de participantes do garin e pedidos de pessoas que não pertenciam ao movimento para viajar conosco. Primeiramente casaram-se os casais Samuel Kleiman e Blima Plonka, Amnon e Rosa Levinson. Moshe Strauch estava ligado a Olga Cassef desde a nossa primeira moshavá. Ela ainda não pertencia à shichva de bogrim, mas resolveram casar-se. Outro casal que se formou de última hora foi Riva Shepshelevitch e Jaime Bulka, que também se casaram. E a surpresa foi o casamento de Hinda Naiberg com Ela. 1948 – Novos casais: (da esq.) Jaime e Riva Bulka, Samuel e Blima Kleiman, Amono e Roso Yampolski Ela Melman, rapaz pelos trinta anos de idade, sobrevivente do Holocausto, aparecia de vez em quando em nossa lishká dizendo-se boguer do Hashomer Hatzair polonês. Não teve tempo de se ligar ao nosso movimento, mas fez amizade com a Hinda, casaram-se e aderiu ao garin. Além de mim e Shlomo Takser, que pertencíamos ao 214 garin desde o começo, aderiram a ele Rosa Trainin, do ken do Brás e Aminadav Berenstein de Recife, que estudava agronomia em Campinas. Das diversas solicitações de pessoas pedindo para viajar conosco concordamos em aceitar Victor Wayn, capitão judeu das forças blindadas do exército brasileiro, seu irmão Moisés, de nossa idade, e Casimir (Caju) Angeltzik, tanquista do Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial e sua esposa Maria. Como já informei, de todos os ex-bogrim somente Uron Mandel se juntou ao garin. Também quero me casar... A onda de casamentos despertou pela primeira vez em mim o a ideia de me casar, pois sempre estive ocupado demais para cogitar nisto. Sempre fui do tipo caseiro, muito ligado à família e confesso que fiquei um pouco receoso de ter de repente que enfrentar sozinho a vida. Ponderei a possibilidade de me casar – a questão era apenas com quem? Eu conhecia moças com quem simpatizava e tinha amizade, mas jamais as considerei candidatas sequer para namoro. Conversei sobre o assunto com minha irmã, pois éramos confidentes, e elaboramos uma listazinha de prováveis candidatas... A primeira era certamente Maria Hudler, que eu considerava minha melhor amiga, mas cheguei à conclusão de que não tínhamos possibilidades de nos casar e o fator mais decisivo: ela era filha única e tratava de sua mãe muito doente. Não me parecia que ela estaria disposta a viajar comigo. A eliminação das demais candidatas da lista foi até mais fácil. Não poderia imaginar como minha esposa 215 nenhuma das moças que conhecia em São Paulo. Foi quando me recordei da Suzana da Bahia e pensei com meus botões – ela me agradava. Eu estava pensando em como agir quando me apareceu em casa o Aminadav Berenstein, a quem conheci em Campinas em uma conferência que ali proferi no Dia do Holocausto. Como já contei, a retórica nunca figurou entre minhas qualidades – eu estava acostumado a dissertar para uma kvutzá de 6 a 7 shomrim, mas falar perante um público eram outros quatrocentos... Não sei donde tomei a coragem em aceitar o convite que um conhecido de Campinas me fez e lá me fui eu com o coração nas mãos... O salão da coletividade judaica onde proferi a confêrencia estava repleto. Assunto do que falar não me faltava, pois tinha terminado de editar "Nos bosque e nos guetos" e simplesmente fiz uma resenha do que publiquei no livro. O que contei era completa novidade para os ouvintes, especialmente a revolta do gueto de Varsóvia. Foi a primeira vez que me dirigia a um público, que me ouviu em silêncio absoluto, emocionado. Também eu fiquei envolvido pela atmosfera pesada. Ao me apresentar contei que pertencia ao Hashomer Hatzair, o mesmo movimento de Mordechai Anilevitch, que foi o comandante da revolta dos judeus no gueto de Varsóvia, e que eu pertencia a um grupo que estava para viajar para Israel como voluntários da Machal. Depois da conferência, Aminadav (Ami) Berenstein – veio perguntar-me se poderia se juntar ao nosso grupo. Eu o convidei a vir a minha casa para conversarmos sobre o assunto. Desde então, Ami se hospedou várias vezes em minha casa. Depois que travamos melhor conhecimento, Ami aderiu 216 ao nosso grupo, e a sua atual visita a minha casa era de passagem a Recife, para onde viajava a fim de se despedir da família. Não sei como aconteceu que lhe revelei que pensava pedir a Suzana da Bahia em casamento e nem sabia se ela estava livre, se tinha um namorado ou noivo. Ami me disse que poderia verificar o assunto com sua irmã adotiva, Calé, que conhecia e se correspondia com a Suzana e certamente saberia destes detalhes. No dia seguinte recebi telegrama de Recife com apenas três palavras "Tudo azul Ami". No mesmo instante mandei uma carta aérea para a Suzana contando sobre o garin-aliá que organizamos, que eu gostei dela, e perguntando sem rodeios se estava disposta a se casar e viajar comigo a um kibutz em Israel. Pedi resposta imediata. * Neste meio tempo, entre os casamentos e o Kinus no Rio, ficou resolvido aproveitar o impacto que a nossa aliá a Israel causou, para promover o Hashomer Hatzair em diversas cidades onde tínhamos contato com jovens sionistas. Bogrim nossos visitaram Santos, Curitiba e Porto Alegre. Amnon e eu viajamos para Belo Horizonte. Batia Patlajan nos hospedou em sua casa e nos levou a uma reunião de jovens judeus que convocou em um clube. Estiveram presentes uns 30 jovens de 18 a 22 anos de idade. Falamos de sionismo e do Hashomer Hatzair e o debate que despertamos foi animado. Saímos com a impressão de que a maioria deles estavam fortemente influenciados pelo Partido Comunista e 217 negavam o sionismo. No dia seguinte Batia e Samuel Cernizon nos levaram para passear pela cidade e à Pampulha. À noitinha reuniuram-se na casa de Batia uns 10 jovens do dia anterior, que estavam inclinados ao Hashomer Hatzair. A conversação foi muito intensa, com a participação ativa de todos os presentes e nem reparamos que já eram altas horas da madrugada. Batia trouxe cobertores, os estendeu pelo chão, quase todos nos deitamos neles e adormecemos. Pela manhã Amnon e eu voltamos para casa. * Em casa me esperava uma carta: a resposta concisa de Suzana. Ela levou muito a sério o que lhe escrevi. Ela simpatizava comigo, mas não poderia dizer que estava apaixonada ou coisa semelhante, pois mal me conhecia pessoalmente. Suzana sonhava vir a um kibutz em Israel, mas nem podia considerar minha proposta, pois seria impossível casar-se em uma semana. Resolvi provar-lhe que era possível, mas como fazê-lo se eu não tinha nem um tostão furado no bolso? Eu não queria pedir dinheiro a meus pais, que estavam muito magoados comigo. Contei meu impasse a Amnon (afinal de contas era amigo meu próximo) e, sem que lhe pedisse, me trouxe passagens ida-e-volta de avião para a Bahia. Sem pensar como iria devolver-lhe o empréstimo, arrumei a maleta com algumas roupas e viajei à Bahia, dizendo a meus pais que em missão do Hashomer Hatzair. Somente minha irmã estava a par da verdade. 218 Peripécias de meu casamento Sábado, 4 horas da tarde, casa da Suzana na Rua do Bângala. Dei umas pancadinhas na porta e passados uns minutos ela se abriu, e um homem simpático, magrinho e careca perguntou o que eu desejava. "Sou de São Paulo, amigo de Suzana, e vim falar com ela". O homem empalideceu, mas convidou-me a entrar. Subimos as escadas e no salão chamou por Suzana. Ela veio de seu quarto e se surpreendeu quando me viu, mas se controlou e me deu a mão. Soube depois que teve uma discussão com os pais – ela queria viajar para o Kinus no Rio e eles recusaram, pois na opinião deles devia preparar-se para os exames do ginásio. Ficamos sabendo mais tarde, que a mãe de Suzana, sem que ela soubesse, leu a carta que lhe mandei e seus pais resolveram impedir que fosse ao Kinus para evitar que se encontrasse comigo. Moral da história: se a mãe da Suzana não tivesse lido a carta dirigida à Suzana, ela teria viajado ao Kinus do Rio de Janeiro e eu não a encontraria em casa. A mãe de Suzana leu a carta, Suzana ficou em casa, eu a encontrei e a continuação, em seguida... * Informei aos pais da Suzana que tinha vindo por alguns dias em missão do Hashomer Hatzair, orientar na organização do ken. Eles disseram à Suzana que cuidasse de me alojar na casa de um de seus amigos – recusei terminantemente: "posso dormir na sofá deste salão". * 219 Saí com Suzana para dar uma voltinha e ela convocou os jovens ligados ao Hashomer Hatzair ao local das reuniões. Eu me encontrei com eles, contei sobre o grupo que viajaria a Israel e continuamos com perguntas e respostas. E foi o primeiro dia... * Domingo. Suzana me guiou pela cidade; a Baixa do Sapateiro, a Praça do Pelourinho, a Casa de Jorge Amado, o Elevador Lacerda, o Mercado Modelo. Conversamos o tempo todo, sem chegar a nenhuma conclusão. Depois do jantar, viajamos de ônibus para passear na Praia da Barra. Nas proximidades do Forte da Barra, a Suzana me contou que exatamente naquele lugar o seu pai pediu a mão de sua mãe. Eu, instintivamente, peguei a mão dela, fitei firmemente em seu olhos e lhe perguntei (creio que devo ter sido muito teatral) "se foi assim, também lhe pergunto neste lugar: você concorda em se casar e vir comigo a Israel?". Um momento de silêncio. "Sim!". Dei-lhe um beijo. Daí em diante a nossa conversa tomou outro rumo – como deveríamos proceder para obter o consentimento dos pais de Suzana. Propus que no dia seguinte falássemos com eles. Suzana me advertiu de que sua mãe era muito supersticiosa e que em uma segunda-feira jamais tomaria um passo tão importante – concordar com o casamento de sua filha. Retruquei que podíamos deixar a resolução para terça-feira, que é na semana o dia da sorte dos judeus, mas deveríamos começar no dia seguinte as negociações, pois não tínhamos muito tempo disponível. Concordamos. 220 * Segunda-feira. Durante o dia passeamos novamente pela cidade e conversamos sobre o que deveríamos proceder. No jantar, estavam presentes. além de Suzana, seus pais e eu, as suas duas irmãs, Sara e Miriam. A atmosfera estava muito carregada. Comemos em silêncio. Tenho a impressão que Suzana avisou aos pais o que estava prestes a acontecer, o que era de todo desnecessário, pois eles já sabiam. Terminamos a refeição e Miriam, a irmã mais nova, de 9 anos, colocou os cotovelos na mesa e as mãos no queixo e me fitou intensamente por longo tempo. Suzana lhe observou "não fica bem olhar assim para uma pessoa". "Mas ele tem olhos tão bonitos...". Sorri, e me confortei com o pensamento de que com um pouco de boa vontade é possível de encontrar algo de bonito mesmo em um magricela dentuço como eu era (no kibutz passei por uma intervenção cirúrgica na mandíbula, para me endireitar o maxilar). Os pais ordenaram as meninas que se retirassem para seus quartos e ficamos sentados ao redor da mesa os quatro protagonistas do drama que ia se desenrolar. Lá pelas 20:30 iniciei a negociação "revelando" que Suzana e eu pretendíamos nos casar e viajar para Israel. Eles retrucaram que mal me conheciam e além disso a Suzana deveria terminar o vestibular e me propuseram que eu fosse morar em Salvador por um ano e depois resolveriamos. É claro que recusamos e continuamos a debater o assunto – eles no deles e nós no nosso – sem chegarmos a nenhum acordo. 221 Justo à meia-noite o relógio-cuco do salão começou a badalar. Quebrei o silêncio que se estabeleceu dirigindome aos pais "eu lhes peço a mão de Suzana". O pai de Suzana se levantou e perguntou a Suzana "Como é de nossa tradição, 'chamemos a donzela e perguntemos-lhe (frase bíblica, Gen 24:57)'. Suzana, você quer casar-se com Nahum?". "Sim!". "Então Mazal Tov e B´Shaá Tová! (Que seja com boa sorte e em boa hora, bênçãos tradicionais em hebraico)". * Os pais de Suzana passaram a me tratar como a um filho. Daí em diante a mãe tomou as rédeas em sua mãos e dirigiu tudo. Como a Suzana precisaria ir comigo a São Paulo a fim de preparar os papéis para a viagem (ela não tinha passaporte e nem sequer carteira de identidade), a mãe resolveu que deveríamos nos casar primeiramente no civil, e para isso convinha esperar por Aarão, o seu irmão, pois ele arrumaria tudo. Ela se encarregou de preparar o casamento e o enxoval da Suzana. Ficou resolvido que para o vestido de noiva a costureira tomaria medidas com a Sara, irmã 5 anos mais jovem que a Suzana, mas com as mesmas medidas (aproximadamente), Suzana foi comigo comunicar o nosso noivado para amigos e parentes. Não sei que ventos espalharam a notícia sensacional que Suzana ia se casar; no caminho apareceram de todos os lados conhecidos de Suzana que a abraçavam e beijavam. desejando-nos Mazal Tov! Fiquei admirado com sua popularidade; tive a impressão de que toda a cidade a conhecia. * 222 O tio da Suzana, Aarão Helfgot, caixeiro-viajante, apareceu à noitinha. Ele se revelou um verdadeiro "macher" ("fazedor" em idish, que sabe mexer os pauzinhos), conhecia a todos e todos eram seus amigos. Ele me levou à casa de um Juiz de Paz, um palacete grande e luxuoso. Pelas luzes e pela gente que ali havia, parecia alguma festança, mas quando o juiz soube pelo empregado que o "seu" Aarão queria lhe falar, veio pessoalmente abrir-nos o portão, nos convidou ao seu escritório e nos acompanhou cordialmente. O tio Aarão explicou ao juiz que eu havia recebido uma bolsa de estudos para a Itália e desejava que minha noiva, a sua sobrinha, viesse comigo, mas os pais dela só concordavam se nos casássemos, e que faltavam apenas duas semanas até a viagem. Mostrei-lhe a minhas passagens do navio. O juiz disse o que se faria necessário para a realização do casamento: publicação no Diário Oficial anunciando nosso casamento, atestado emitido por cartório que os pais de Suzana concordavam com o casamento (aos 18 anos era menor de idade. Maior de idade devia ter 21 anos) e testemunhas de que os contraentes eram solteiros. Saímos correndo para a redação do Diário Oficial, e o tio mexeu novamente com os pauzinhos (conhecia alguém da redação) e o aviso foi inserido na edição da manhã. * Quarta-feira, 10 horas da manhã. Suzana e eu, com o nosso cortejo – os pais, tios, amigos íntimos e as testemunhas (nenhuma delas me conhecia) – nos apresentamos no fórum perante o Juiz de Paz, sentado 223 em assento elevado. Ao seu lado, o escrivão e o oficial do Registro Civil, e atrás deles, ao lado do pendão nacional, o Presidente da República General Eurico Gaspar Dutra em pessoa, de pé, em tamanho natural, em um quadro a óleo. Terminada a cerimônia oficial, recebemos um atestado provisório do casamento, pois a edição do certificado no Registro Civil demoraria mais dois dias. Do tribunal viajamos todo o cortejo ao aeroporto, para o avião que nos levaria a São Paulo. As passagens, o nosso tio "arranja-tudo" providenciou de antemão. . * Quinta-feira. Por intermédio do tio Urtzi contratamos os serviços de Antônio, o "macher" do Bom Retiro, corretor especializado em papéis oficiais. Entregamos a ele o atestado de nascimento, fotografias de Suzana e o nosso atestado de casamento, para ele tirar a carteira de identidade e o passaporte de Suzana com o sobrenome Mandel. Obtivemos da Comissão da Haganá a soma para comprar a passagem de navio para a Itália. Meus pais viajaram para a Bahia afim de conhecer os pais de Suzana. Minha irmã ficou em casa, pois meu pai não estava em condições de lhe comprar as passagens. * Sexta-feira. Compramos finalmente a passagem para o navio e viajamos de trem para o Rio de Janeiro, onde chegamos às 6 horas da tarde. Como devíamos viajar à Bahia às 4 horas da madrugada, fomos procurar um hotel na vizinhança do aeroporto. Na portaria do hotel surgiu um problema: além da passagem para o avião, não tínhamos nenhum documento da Suzana e o nosso 224 atestado de casamento estava na delegacia em São Paulo. O funcionário ficou desconfiado que Suzana estivesse fugindo de casa comigo e estava para telefonar para a polícia. Não sei como nos livramos desta. Resolvemos não procurar parentes ou conhecidos, pois não queríamos nos afastar do aeroporto. Tomamos um ônibus circular e ficamos dando voltas pela cidade, até que à meia-noite o ônibus parou na estação e tivemos que descer. Fomos até a praia e nos sentamos num banco, mas logo apareceu um guarda e nos mandou rodar. Proibido passar a noite no banco. Explicamos que deveríamos esperar ate as 4 da madrugada pelo avião à Bahia. Perguntou se éramos baianos, A Suzana respondeu que era. "Em que rua você mora?". "Rua da Bângala". Um enorme sorriso se expalhou por seu rosto e faltou somente ele nos beijar. Tornou-se nosso grande amigo. Também ele era baiano e sua família morava na Rua da Bângala. Minha boa estrelinha estava funcionando. "Venham comigo" e fomos até o aeroporto, que estava perto. Ele entrou no escritório da VASP, a companhia em que viajaríamos, e convenceu o encarregado a permitir que descansássemos no seu carro. De cansaço, adormecemos no carro, e se não tivessem vindo nos acordar, perderíamos o vôo. * Sábado. Chegamos para o almoço. A mãe de Suzana nos informou que estava tudo pronto para o casamento e a levou para a costureira, que arrematou os últimos retoques no seu vestido de noiva. Este vestido serviu em Israel para sua irmã Sara quando se casou e outras 225 noivas da família. O tio Aarão me levou a um barbeiro para aparar os cabelos. Meus pais já se encontravam na Bahia e trouxeram com eles o meu "terno oficial", o que me costuraram com o corte de casimira azul-marinho que ganhei no concurso de rádio e que usei também na formatura e outros eventos, por mais de cinquenta anos. Domingo, 18 de Julho de 1948. A noite fomos ao salão. Creio que toda a coletividade judaica de Salvador estava presente, pois também quem não foi convidado veio por conta própria. A mãe de Suzana dirigiu com maestria o espetáculo, "como deve ser", O jantar, com cardápio tradicional idish de acordo com de suas instruções, foi servido sob a sua rigorosa orientação. Todos os shomrim vieram de camisa brancas, saias e calças compridas azul-marinho e se comportaram como guarda de honra. 226 Depois do casamento a família e os amigos íntimos vieram à casa dos pais de Suzana e lotaram o salão. Todos nos felicitaram. Os Helfgots, irmãos da mãe de Suzana, são todos oradores natos: não falam – 227 discursam. O tio José, idishista e "progressista" antisionista (terminou emigrando a Israel) pronunciou em idish um discurso inflamado. Também Bóris Tabacof, primo de segundo grau de Suzana, então comunista militante (mais tarde Secretário de Fazenda da Bahia, financista e superintendente de bancos, figura de proa na sociedade judaica de São Paulo) nos desejou sucesso em nosso caminho, apesar de não concordar com ele. Pediram-me para dizer umas palavras. Disse que como não era orador, contaria uma lenda: um rei tinha três filhos e mandou-os procurar pelo mundo o que é de mais importante na vida. O primeiro voltou milionário – o dinheiro é o mais importante, pois com ele se pode comprar tudo. O segundo voltou laureado de títulos e mais títulos acadêmicos – a sabedoria é a mais importante, pois com ela se alcança o que o dinheiro não consegue. Por fim apareceu o terceiro filho: "vim apenas 228 de visita, porque ainda não encontrei o importante para mim. Amanhã voltarei a procurar". Concluí que Suzana e eu não sabíamos o que nos aguardava em nosso caminho, mas jamais desistiríamos de procurar... realizar nossos ideais". De regresso a São Paulo Domingo. Logo de manhã fomos ao aeroporto, acompanhados pela família. Não sei a razão, mas não havia nenhum avião de passageiros disponível para o sul do país. O único avião para o Rio de Janeiro transportava nordestinos ao trabalho nas fazendas de café. Não podíamos adiar a viagem e o tio Aharão "deu um jeitinho" para que fôssemos naquele avião. Me parece que era um avião de carga da Segunda Guerra Mundial, sem portas nem assentos; com aberturas duas enormes, uma de cada lado. Os nordestinos, famílias com crianças, estavam sentados no chão, sobre colchões. Eles nos fizeram um lugar ao lado de uma das aberturas, eu me deitei bem na beirada, com a Suzana ao meu lado. Ela me abraçou durante todo o voo, para que eu não caísse. O noso abraço mais demorado... A maior parte da viagem foi para nós um verdadeiro prazer – curtimos a paisagem que se descortinava ao nosso lado. Na região de Cabo Frio o avião começou a se jogar como se atacado de convulsões epilépticas. Houve um verdadeiro pânico entre os passageiros, que se agarraram uns aos outros para não deslisarem para fora do avião. Questão de alguns minutos, mas o suficiente para nos virar as tripas. O importante que aterrisamos sãos e salvos, vivos! Para São Paulo 229 prosseguimos de trem – mais lento, mas mais seguro. * Segunda-feira. Fomos com o Antônio à delegacia receber a carteira de identidade e o passaporte da Suzana. O delegado, muito gentil, entregou à Suzana a carteira e o passaporte, depois dela assinar alguns papéis. Antônio entregou um envelope ao delegado, que o colocou sem abrir na gaveta, observando "não é para mim – é para cobrir as despesas". Tirar carteira de identidade e passaporte levaria normalmente pelo menos um mês, mas com um pouco de "graxa", o aparelho administrativo brasileiro funciona melhor. * À tarde fomos carimbar o visto no passaporte no Consulado Italiano. Chegamos depois do horário do expediente, mas o Amnon conhecia uma das secretárias e ela nos atendeu na sala de espera. Contamos a história da bolsa de estudos, lhe demos o passaporte e ela o devolveu em menos de meia hora com o visto assinado e carimbado. Na saída Amnon se despediu dela, em hebraico, e ela nos disse em português "espero que defendam bem a pátria de minhas filhas". Somente então Amnon nos revelou que ela serviu muitos anos no consulado italiano em Jerusalém e que sabia de nossos planos. * Terça-feira. Nada especial aconteceu, além dos inúmeros parentes e amigos que vieram se despedir. * Quarta-feira, Em frente de nossa lishká estava 230 estacionado um onibus e colocamos nossas malas no bagageiro. Suzana pegou lugar bem na frente, como costuma fazer até hoje em dia quando saímos a excursões de ônibus. A rua estava abarrotada de amigos e parentes que vieram para se despedir de nós. Muitos deles nos acompanharam até o porto de Santos e alguns até o Rio de Janeiro. Eu estava ao lado de Suzana, sentado todo pensativo e ensimesmado, quando Maria Hudler entra correndo no ônibus, me abraça e beija, chorando. Fiquei perplexo, surpreso, encabulado, sem jeito. Não trocamos uma palavra, apenas nos abraçamos. Achava estranho que durante os três dias que estivemos em São Paulo, e minha casa estava sempre com amigos que vieram despedir-se de mim. Maria nem havia dado sinal de vida. Perguntei a minha irmã, sua amiga íntima, o que havia com ela, e não soube me dizer. Em 1974, quando visitei São Paulo com Shoshana, pela primeira vez desde que partimos, a Maria nos convidou a jantar em sua casa. Estava casada com o médico anestesista Dr, Salvador Cromberg, com quatro filhos (conhecí dois, muito simpáticos). Depois da refeição toca a campaínha e apareceu uma senhora bem avolumada, que não reconheci. "É a Pola", me sussurou Maria. Soube que recebia tratamento de cortisona. Ainda era loura e bela. Novamente toca compainha e entra outro amigo meu do passado, e outro, e outro, e em poucos minutos o salão se repletou de uns trinta ou mais amigos que pertenceram ao Departamento Juvenil nos tempos de 1945. Tratava-se de uma surpresa que a Maria me preparou. Ela era psicóloga do Ministério de Educação e como tinha em seu poder o fichário dos membros do Departamento do nosso tempo, mobilizou suas secretárias para localizá-los pela lista 231 telefônica e convidá-los a virem ao encontro. O interessante é que muitos deles não se viam há mais de 20 anos, apesar de morarem na mesma cidade. Vivência emocionante, até altas horas da magrugada. * No cais do porto de Santos, uma multidão enorme de amigos e parentes vieram nos acompanhar até a partida do navio. Os estivadores pensavam que algum bispo estava para viajar. Parentes e amigos subiram ao navio; Suzana e eu estávamos todo o tempo rodeados de parentes. O meu tio Zalmen Zaterka veio desde Marília e quando me abraçou senti que me enfiou algo no bolso. Desde que eu era criança, ele, o meu tio rico, costumava meter umas moedas em meu bolso quando me abraçava – o único de meus tios que sempre me presenteava com dinheiro. Entendi que ele, como de costume, me deixou uma 232 "lembrancinha". Desta vez se tratava de uma soma bem séria, o suficiente para que eu pudesse devolver o empréstimo que Amnon me havia feito e ainda contribuir com uma soma considerável para nossa caixa coletiva. Eu esteva tão ocupado que somente quando os alto falantes pediram para os acompanhantes descerem do navio reparei que não vi meu pai. Desci correndo para as docas, afim de procurá-lo. Encontrei-o escondido atrás de um monte de sacos, chorando – a primeira e única vez em minha vida que vi meu pai chorar. Tentei acalmá-lo, mas ele se recusou a me responder. Estava amargurado com minha partida, eu o abracei e lhe disse que acreditava que bem em breve nos reveríamos, em Israel. Ele se acalmou e nos despedimos, e desta vez fui eu quem chorei. Fui o último passageiro que subi ao convés. Partimos. A longa viagem a Israel A viagem até Gênova durou um mês, em dois camarotes para imigrantes – um para os homens, outro para as mulheres. Não era de esperar que voluntários da Machal fossem alojados em cabinas da primeira classe. Pequeno detalhe, um pouco impróprio para 233 recém-casados. Entretanto, o vinho italiano no almoço – excelente... Em Gênova nos hospedaram na Via de Gasperi 27, mansão da Agência Judaica, famoso campo de passagem de sobreviventes do Holocausto em direção a Israel. Nos hospedaram em salões enormes, com dezenas de camas dispostas em dois andares. Calculo que havia mais de 100 em cada salão. Recolheram os nossos passaportes e nos proibiram de sair da mansão. Mas brasileiros sempre se dão um jeitinho e escapamos duas vezes: uma, para visitar o famoso cemitério Campo Santo Staglieno da cidade, exposição impressionante de estátuas mortuárias de mármore branco. Na segunda vez, saímos para experimentar a pizza 234 italiana em um restaurante no Liddo, uma colina donde a cidade se esparrama em panorama maravilhoso. A vista noturna era empolgante, mas a pizza intragável. Passadas duas semanas, veio uma caravana de ônibus que transportou todos os estacionados na mansão a outro campo de passagem da Agência Judaica, em Nápoles. Ao anoitecer novamente fomos levados para o sul da Itália, a um local na vizinhança de Bari, espécie de cais – Grota Ferrata – onde "Aviônia" nos aguardava. "Aviônia" era um navio pesqueiro que a Agência Judaica comprou e foi adaptado para o transporte clandestino de judeus a Israel. Antes da declaração do Estado de Israel o Mandato Inglês, de acordo com o Livro Branco de Atlee-Bevin, impedia a entrada dos sobreviventes do Holocausto em Eretz-Israel (a história do navio "Exodus" é bem conhecida, e houve outros, como o navio "Patria", que afundou – afundado?! – com os passageiros). Durante a Guerra de Independência, forças das Nações Unidas não permitiam a entrada ao país de homens em idade militar, de forma que o uso de navios clandestinos continuou. O que queria dizer adaptar navio pesqueiro para o transporte de emigrantes? Divisão do bojo do navio em sete andares com estrados de madeira sem colchões, sobre os quais dormíamos, situação que deveria ter despertado lembranças terríveis aos maapilim ("imigrantes" ilegais a Israel) da Europa. Nas bordas do convés construíram rampas de madeira, salientes sobre o mar, com repartições de 1x1.50 metros – armaduras de madeira revestidas de juta. Os que estavam dentro, não viam o que se passava fora, mas os de fora vislumbravam as silhuetas fazendo suas 235 necessidades no buraco do chão, diretamente ao mar. Sete dias vagamos mil e duzentas pessoas pelo mar em calmaria, num calor sufocante, em uma casca de noz (desculpe – um campo de concentração flutuante!). Além de nosso grupo, havia mais outros 50 chalutzim no navio, e fomos incumbidos da distribuição de água e da comida, e encarregados de manter a ordem no navio, tarefa nada fácil, e em se tratando de homens, mulheres e crianças sobreviventes de campos de exterminio. Não havia no convés lugar para todos os passageiros – a água e a comida eram os únicos meios de obrigar parte dos passageiros permanecer no bojo do navio. A distribuição era feita na proa para uma fila interminável; cada um, depois de receber a sua ração, devia descer ao bojo do barco e caminhar até a popa para poder regressar ao convés. Vários giros por dia eram necessários para saciar a sede e receber algo para comer. Ninguém parava, todo mundo dando voltas. Moto perpétuo. No primeiro dia ainda recebemos alguma comida, mas 236 nos demais seis dias de navegação tivemos que nos contentar com uma sopa que não sei como era preparada e biscoitos secos à vontade. Até hoje tenho repulso a esse tipo de bolachas secas. A tripulação do navio consistia de 8 italianos e 4 israelenses. O nosso comandante, Dan Ben-Amotz, se tornou famoso como poeta, escritor e ator de televisão e cinema. Lonas estendidas entre os mastros sombreavam parte do convés e o pobre do comandante explodia seus pulmões no megafone, implorando em idish aos passageiros não se concentrarem no mesmo lado do navio (onde havia sombra), para o barco não emborcar. Como posso explicar aos netos, que com facilidade estão prontos a trocar Israel pela Alemanha, Austrália e outros países, o que tivemos que enfrentar a fim de virmos a Israel? * 31.8.1948. "Haifa, Haifa". Todo o mundo corre para ver o contorno dos montes Carmel que começava a surgir no horizonte. Ainda em alto-mar apareceram balsas enormes rebocadas por lanchas e desembarcaram os homens em idade militar no rio Kishon, a fim de evitar que as forças da ONU os exilassem nas prisões de Atlit. 237 Chegamos à Terra Prometida! Fim 238 Epílogo Aqui termina a minha fase sionista referente ao Brasil, e começa a fase em Israel – mais de 60 anos passaram e ela ainda não terminou. * "Tornar-se um povo como todos os povos" tem seus aspetos deprimentes, mas Israel ultrapassa atualmente a tudo que sonhei ou poderia ter imaginado,. Honra ao Mérito Camera Baby-Brown 6x9cmm, que recebi de presente em 1940 na minha bar-mitzva, fotografou a maioria das fotos neste livro. Viotti, do bairro Bom Retiro em São Paulo, o fotografo "oficial" da comunidade judia da cidade, fotografou as celebrações. As fotos do "Shomer de São Paulo" de 1935 me foram cedidas pelo meu tio Uron Mandel z"l. 239 In Memoriam (nesta foto, o único ainda vivo sou eu) 240 Apêndice: Antes e Depois .. Lista parcial das pessoas neste livro que mudaram o nome ou o sobrenome em Israel, ou devido a casamento. Não aparecem na lista mudamnças de que não tenho conhecimento. (NM) Amnon Yampolski – Amnon Yam Batia Patlajan – Batia Cernizon Bela Rezeznik – Bela Kohane Blima Plonka – Blima Kleiman Branca Mandel – Branca Arenstein Daniel Yampolski – Daniel Yam Dina Mandel – Dina Ostroski Dora Griner – Dora Bobrow Ester Guinzuk – Ester Kleinhendler Eva Schweidson – Eva Melamed Guita Mandel – Guita Belz Hinda Najberg – Hinda Melman Lea Davidovich – Lea Lerner Maria Hudler – Maria Hudler Cromberg Miriam (Nicha) Vilenski – Miriam Fucs Miriam Halfin – Miriam Ostfeld Olga Cassef – Zahava Stroich Oswaldo (Usher) Kowes – Asher Kovesh Pérola Achterman – Pérola Kohane Raquel Burstein – Rachel Reznik Riva Shepshelevich – Riva Bulka Rosa Levinson – Shoshana Rosemberg Rosa Mandel – Varda Aran Sônia Dreizenstok – Sônia Balaban Sônia Fishman – Sônia Kalina Sulamita Debarendiner – SulamitaTabacof Suzana Schmeltinger – Shoshana Maimon Suzana Spilberg – Shoshana Mandel Tita Cohen – Tikvá Sobol Zilda Wengier – Zilda Zysman Ziina Fishman – Zina Viner 241 Glossário A significação dos termos hebraicos (em letras inclinadas, itálicas) neste glossário se refere ao sentido empregado neste livro, como eram usados nas conversções quotidianas em português da juventude sionista. Nomes Próprios Agência Judaica. Organização junta todas as contribuições voluntária do povo judeu para a construção de EretzIsrael. pró-Eretz Israel e Estado de Israel. Keren Kayemet le´Israel, Betar, a juventude sionista Fundo Nacional de Israel adepta a Jabotinski. destinado a angariar dinheiro para comprar terras Dror (liberdade), movimento na Palestina para a juvenil ligado ao Partido colonização judica Trabalhista em Israel (Mapai). knesset, o parlamento de Israel Eretz-Israel (Terra de Israel), Machal, acrônimo em hebraico termo histórico que designa o de "voluntários do exterior" território do antigo Reino dos ao exército de Israel na judeus, onde foi estabelecido Guerra de Libertação de o Estado de Israel 1948. Haganá (defesa), organização Mapai, Partido Trabalhsta em militar da Organização Eretz- Israel e Israel, atual Sionista para defender as Partido Avodá povoações judias de Eretz- Mapam, o Partido fundado Israel; com a proclamação pelo Hashomer Hatzair, do Estado de Israel se atual Partido Meretz. transformou no seu exército. Poalei Sion (Trabalhadores de Hashomer-Hatzair, vide pg. 20. Sião), Partido sionista que Histadrut ha´Ovdim, a se tornou o Partido Mapai. Federação Geral dos Sionismo, movimento com o trabalhadores de Israel propósito de fundar na Keren Hashomer, Fundo para Palestina um Estado para os angariar dinheiro para o judeus. Hashomer Hatzair Keren Hayessod, Fundo que 242 Os itens abaixo são em geral substantivos masculinos singulares, que são desprovidos de sufixos. Com poucas exceções os sufixos são: s.f. -á, -eret: pl.m -im; pl.f. –ot. Para a compreensão dos textos, confio na presença de espírito e na intuição do leitor. Nomes Comuns haflagá, excursão, piquenique do Hashomer Hatzair em cada cidade. alyiá (=ascenção); fazer alyiá, imigrar para Israel. hanagá rashit (Direção Central) do Hashomer bar-mitzva, cerimônia religiosa Hatzair no país. de jovens judeus ao completar 13 anos. hanhalá (direção) chalutz, pioneiro sionista idish, a lingua iídiche, oriunda do alemão antigo com hagshamá, realização dos palavras hebraicas, falada ditames do Hashomer pelos judeus da Europa Hatzair Central e Oriental. kinus boguer (adulto), faixa etária (convenção) acima de 17 anos no ken (ninho), termo paralelo a Hashomer Hatzair "tribo" dos escoteiros; rosh chalutz, pioneiro haken (chefe do ken) chaver, companheiro, membro kibutz, colonia coletiva em Chazak v´Ematz" ("Força e Israel coragem", saudação bíblica), Lema e saudação do kvutzá (grupo), unidade de 6 a 10 membros do Hashomer Hashomer Hatzair. Htzair, com monitor. gói, não judeu lishká, a sede do ken. hachshará (campo de preparação para o kibutz em machzor. livro em hebraico de rezas judaicas Eretz-Israel hanagá elioná (Direção madrich, instrutor, monitor Superior) do Hashomer mazkir, secretário; mazkirut, secretariado Hatzair mundial. hanagá mekomit (Direção local) menael, dirigente, monitor 239 mifkd, ordem unida moetzá, conselho diretor moshavá, acampamento de férias olé, imigrante a Eretz-Israel e ao Estado de Israel peulá, atividade rosh (=cabeça), chefe seder Pesach, a ceia da Páscoa judaica shaliach, emissário, enviado shil (sinagoga, em idish) shomer (guardião), membro do Hashomer Hatzair, sichá (conversação) shichvá (camada), faixa etária no Hashomer Hatzair tnuá, movimento z"l - acrônimo hebraico de "seja abençoada sua memória" 240
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