O declínio J v. 2 n. 2.p65

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O declínio J v. 2 n. 2.p65
O declínio do Estado hegeliano
e o esperado fim das guerras
Rosemiro Pereira Leal1, [email protected]
1. Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte;
professor do mestrado e doutorado da UFMG; da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais (PUC-Minas), Belo Horizonte; da Fundação Mineira de Educação
e Cultura (Fumec), Belo Horizonte, MG; advogado militante.
RESUMO: A concepção de Estado em Hegel segue
sua teoria dialética, em que uma síntese integrativa
segue sempre o conflito entre partes opostas, de
forma que a paz dentro dos Estados, possível somente com o fim de todas as guerras, implica necessariamente a integração de todos em uma ordem justa. Aparentemente os atuais conflitos bélicos parecem afastar a utopia de um mundo sem
guerras, afastando também a teoria hegeliana. Mas,
talvez, tais conflitos representem outra faceta da
dialética aplicada ao Estado, garantindo de certa forma que o fim desses mesmos conflitos ainda virá.
Palavras-chave: Estado, Hegel, teoria, dialética.
RESUMEN: El declino del Estado hegeliano y el
esperado fin de las guerras. La concepción de
estado en Hegel sigue su teoría dialéctica, en que
una síntesis interactiva sigue siempre el conflicto
entre partes opostas, de forma que la paz dentro de
los estados, posible solamente con el fin de todas
las guerras, implica necesariamente la integración
de todos en una orden justa. Aparentemente los
conflictos bélicos parecen ahuyentar la utopía de
un mundo sin guerras, ahuyentando también la teoría
Hegeliana. Mas, tal vez, tales conflictos representen
otra cara de la dialéctica aplicada al Estado
garantiendo de cierta forma que el fin de esos
mismos conflictos todavía vendrá.
Palabras llaves: Estado, Hegel, teoría, dialéctica.
ABSTRACT: The decline of the State of Hegel and
the hoped end of wars. The conception of State in
Hegel follows his dialectics theory, in which an
integrative synthesis always follows the conflict
between opposite parts, in a way that the peace in
the States, possible only with the end of all the wars,
implies necessarily the integration of everybody in a
fair order. Apparently the present warlike conflicts
seem to move away the Utopia of a world without
wars, moving away also the theory of Hegel. But,
perhaps, such conflicts represent another facetious
of the dialectics applied to the State, guaranteeing
in a certain way that the end of these same conflicts
will still come.
Keywords: State, Hegel, theory, dialectics.
I–
O Estado e o bando soberano
A concepção de Estado como lugar do bando (AGMBEN, 2002) soberano
significa em Hegel uma consciência desencarnada de uma razão universal (Espírito) que, habitando in-obsconditum a morada final da história dos povos, produziria, no percurso da dialética dos conflitos humanos, a inexorável (escatológica)
síntese ética integrativa de todos numa ordem justa. Daí a admiração aos messias e líderes carismáticos, supostos condutores da história em direção ao Estado, que, conforme lembra Salgado (1996, p. 395-397), levou Hegel a exclamar
ante a entrada de Napoleão em Iena: “eu vi calvagar o espírito do universo! “.
Portanto, o Estado em Hegel é um ente especular do Espírito Universal
(uno) que se cria a si mesmo e em si mesmo (in sich) e que seria descoberto
pela sociedade civil à medida que esta superasse suas contingências e necessidades no embate da história, dispondo-se a participar da idéia da ordem absoluta e eterna que é o Estado. Em Kant, poder-se-ia dizer que o homem é
fundador do Estado por uma inata auto-indução (razão a priori), mas em Hegel
o Estado já é, antes do homem (desde sempre), o lugar soberano, como nível
ético conceitual supremo e unidade sintetizadora das contradições dinâmicas
(processo histórico) à racionalização da ordem de um nós ideal para as sociedades políticas. Essa idéia de Estado em Hegel é que, juridicamente acolhida em
paradigmas de Estado Liberal ou do Estado Social de Direito, se transformou em
instrumento dos políticos (líderes sociais de várias procedências ideológicas)
para, não mais como lugar somente de espera espiritual sublimadora do drama
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humano, intervir nas sociedades políticas e resgatá-las, de modo dirigista ou
estatutário, de seu fatal sofrimento com a promessa constitucionalmente escrita de busca empolgante dos fins do Estado que seriam a paz perpétua de Kant
ou a ordem celestial de Hegel.
Exatamente por esse atavismo ideológico de que padecem ainda o ensino jurídico e as chamadas ciências sociais e humanas com reforço tópico-retórico
das constituições vigorantes em vários países do mundo, especialmente a do
Brasil, é que impede a compreensão do que seja Estado Democrático de Direito (LEAL, 2002) para concretizar a constitucionalidade comprometida efetivamente com a implantação imediata dos direitos fundamentais (GEBRAN NETO,
2002). Tem-se uma constituição que adota expressamente, como a brasileira
de 1988, a teoria (paradigma) da democracia, mas é ela entendida e
operacionalizada conforme Hegel, transformando-a num livro de orações que o
soberano (chefe de Estado) pode ou não acatar a fim de, a seu alvitre e possibilidades, ajudar a sociedade política em sua angustiosa viagem contingencial na
história para alcançar o Estado Espiritual da unidade absoluta. Esse lugar do
soberano é, conforme Agamben (2002), uma esfera de liberdade plena e impermeável à fiscalidade e de onde o chefe de Estado dirige a nação ou a sociedade civil contida ainda numa realidade temporalizada (historizável) à espera de
políticas estatais assistencialistas, protetoras e curativas, porque incapaz por si
mesma de colocar em dúvida as ordens (metas) ou decisões desse altíssimo
saber supremo.
II – O rompimento com Hegel
Entretanto, por denúncias de Marx (1971) a Hobsbawm (1995), passando pelo discurso de Popper (1974) e Habermas (1990), embora as constituições
chamadas democráticas contemporâneas ainda persistam inconstitucionalmente
em preservar a eternidade normatizante, sábia e insondável dos princípios e
fins do Estado hegeliano, o que se vê hoje, com o advento das guerras genocidas
decretadas pelos soberanos em nome do Estado mítico da purificação libertária
e espiritual da humanidade (Vietnã, Coréia, Guerra do Golfo, Iraque e as ditaduras de Lênin a Pinochet), é o rompimento com Hegel nas ruas dos países de
todo o mundo não só pelos movimentos populares em oposição às ordens e
decisões dos soberanos que dizem imprescindível matar os dissidentes para
acelerar a jornada do encontro catártico com o momento superior da soberanidade
do Estado-Universal, como também pelas manifestações de desconfiança ante
os chefes de Estado que, fingindo favoráveis à paz, praticariam a guerra ou a
ditadura em nome de uma ética pressuposta e universal (demasiada humana)
asseguradora de seus tronos na estatalidade.
A desobediência da sociedade civil às decisões do soberano vem marcando um tempo que se espera pós-metafísico no sentido de rejeição pelo
povo da moeda emblemática cunhada pelo Estado (moeda de curso legal) como
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fetiche de colonização absolutizante da sociedade econômico-política. O sistema financeiro mundial (LEAL, 2003) calcado numa cesta de moedas hegemônicas
pelos países de maior poderio bélico é o lastro do mundo soberano que já está
encontrando resistência de todo o povo lúcido da comunidade mundial expressa em ONG’s e fóruns sociais mundiais em suas variadas modalidades. O que
não está claro é a forma de organização sócio-jurídico-política que o povo do
mundo construirá a serviço desse novo modelo de comunidade política que se
desponta. Nota-se que o Estado hegeliano está morto ou desenganadamente
agônico e que até o vocábulo (Estado) já se abre à mímesis (DUARTE, 1993)
investigativa do espetáculo encantado e ideológico do velamento (segredos de
Estado) de uma trama dos governos contra os governados.
No entanto, não é tão fácil assim sepultar o Estado hegeliano, porque a
sociedade atual, em nome de uma cultura opaca, ainda presta culto a uma
arquitetura (palácios, castelos, edifícios governamentais opulentos e majestosos), uma escultura (bustos, estátuas) e uma numismática (moedas e estampas)
que perenizam a forma desse Estado tradicional (onisciente e onipresente) mesmo
que os seus conteúdos ideológicos estejam extintos ou desmascarados na
modernidade. Essa é a ditadura da forma e da imagem sem conteúdo que
registra um vazio a suplicar das novas gerações urgente significância. Sabe-se
que poder executivo, legislativo e judiciário não são mais poderes, mas a opulência dos lugares (edifícios, aparatos) onde funcionam impõe uma vigência
presencial e urbanamente ostensiva que, mesmo sem significado (ausência de
conteúdos discursivamente institucionalizantes), oprime e intimida as mentalidades supersticiosas e crentes num Estado soberano a se anunciar a qualquer
momento por um espírito cavalgador da paz universal. Por isso é que se percebe na obra de Dante e Cervantes uma crítica pré-natal a Hegel e seus incontáveis
discípulos e seguidores, uma vez que, a partir do séc. XIV, acreditar no Estado já
era, antes mesmo de Maquiavel, grotesco ou divinamente hilariante.
III – O cuidado com o despotismo do discurso
O início do fim das guerras é o esperado fim de Hegel que conjecturou
a existência de um Estado prometido (terra santa) após a marcha histórica da
conflitualidade humana como pressuposto necessário da formação da consciência na sociedade civil. Isso explica na atualidade a teleologia arcaica da lei jurídica que só se justifica ante o conflito de interesses em que haja vencedores e
vencidos nas pugnas judiciais, a tipificação microfascista dos delitos do oprimido, direitos a serem coercitivamente assegurados para que não se percam e em
que os juízes carismaticamente se distinguem por um talento salomônico na
resolução dos duelos da casuística avassaladora do cotidiano. A
reinstitucionalização da realidade por um Direito não natural, não hegelianokantiano, não moralista-realista, não estatalista, é o grande desafio deste terceiro milênio, com a advertência de Kaufmann (2003, 94-106) de que é possível
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um despotismo até mesmo na razão discursiva quando esta é hostil a uma
contradição performativa de um dissidente obstinado.
A dificuldade está em saber como formar consciências que não sejam
autolegisladoras por uma iluminada razão historicamente prescritiva e axiomática.
Parece que novas proposições (teorias) terão de se colocar como médium
lingüístico dessa precária comunicação substancialista (intuitiva) que se sustenta
pelo linguajar patético (ALBUQUERQUE, 2000, p. 151-162) das multidões condenadas a uma violenta redução de significados glorificante de uma solidariedade social mecânica e pela busca desatinada de empregos (LEAL, 2000, p. 149154) como forma valorizada de integração orgânica por tarefas técnicas irrefletidas e alienantes (ADORNO; HORKHEIMER, 1994). A destruição do Estado
burguês em Marx foi tentada pela oferta de um Estado laboral afônico (solidariedade orgânica última e integradora, logo pragmático-transcedental) que só tem
voz clara pelo soberano (chefe de um Estado proletário) que, ao renunciar o
Estado hegeliano, traz consigo a taumaturgia contagiosa da razão absoluta
(totalizante) a ser transferida ao organismo da coletividade por uma metempsicose
não discursivamente ilustrada (pré-weberiana).
Porém, outra dificuldade se põe às nossas cogitações, quando se pensa
que o discurso popular em face das ordens e saber do soberano seria bastante
para equacionar (reinstitucionalizar) automaticamente a vida na Comunidade
Política. É por isso e por um pensar exausto que Derrida concluiu de modo
inflexível que qualquer decisão pelo novo, pelo renovador ou pelo velho, é
sempre um ato insustentável ou impossível (LARUELLE, 2001). Nesses termos
de cansaço e niilismo, Popper (1975) já dissera inatingível a construção de uma
nova lógica do entendimento humano, porque os niilistas, ainda filiados a Hume,
ora se orientam pela aceitação de uma fé irracional no acaso do existir, ora na
afirmação dita científica da impossibilidade de justificação do ser individual ou
social. Esse repouso no nada que não se propõe sequer ao vazio como lugar de
problematização da linguagem ancestral e enigmática é que tem aumentado a
procissão dos apáticos e desistentes precoces que nem Derrida conhecem ou o
reconhecem como ponto de um recomeço.
IV – Considerações finais
Com efeito, a mobilização de uma consciência popular já fatalmente
impregnada de uma vocação histórica intuitiva para a inclusão total na ordem
última e absoluta da paz perpétua (solidariedade orgânica de integração perfeita
no vir-a-ser) é um barulhento retorno a Hegel que, como se descreveu, não
admite em sua epistemologia espiritual uma dúvida sequer na idéia de certeza
a ser atingida pela relação homem-objeto, desde que a “sociedade civil” cumpra um catálogo de suplícios no leito da história como expiação necessária ao
prêmio do acolhimento no reino do pai-estatal. Ao se pretender criar um fato
social por um movimento socialmente volitivo, há de se ter o cuidado para,
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mesmo saindo da escatologia estatalizante de Hegel, não cair no alçapão de
Shopenhauer que derreteu a férrea razão kantiana com uma vontade advinda
de um pulsão orgânica irrefreável e insuscetível de esclarecimento. Esse vedar
o esclarecimento teórico do conhecer ou do conhecido é o grande óbice pessimista impeditivo da compreensão da teoria do discurso como designadora da
construção jurídica das democracias esperadas. Multidões de escritores ainda
não trocam o processo histórico (a caminhada de Hegel) pela teoria do processo procedimental (LEAL, 2003) para enfrentamento da violência decisória milenar
que, em bases axiologizantes ou de um saber inato individual ou coletivo, vem,
por hermenêuticas filosofantes ou por uma jurisprudência de conceitos ou de
valores, colonizando a humanidade ainda entregue ao comando de cavaleiros
da paz ou da ordem (segurança) estatal absoluta.
Logo, a construção do direito na tridimensionalidade progressiva e cronológica de fato-valor-norma, como quer Reale (1982), reafirma Hegel por uma
norma última pressuposta (esfera do Estado Instrumental) que, ao esperar a
dinâmica dos fatos na “sociedade civil”, historicamente os valora (qualifica-os)
para integrá-los ou não na proteção do seu peculiar ordenamento universalmente estável e correto transmitido a uma privilegiada assembléia de legisladores-soberanos infiscalizáveis em sua marcha histórica da redenção das sociedades pela oferta de uma liberdade absoluta extraída dos fins salvíficos da
estatalidade. Portanto, a afirmação do direito a partir das mobilizações sociais
pretende arcaicamente na atualidade erguer razões jurídicas do existir pelas
categorias do espírito hegeliano que, habitando o organismo social, engendraria
um processo histórico que, num horizonte de total esquecimento de Marx e
Nietszche, seria autoconstrutivo de fins nobres por uma linguagem essencialista
que a todos unificaria. O que se tem obtido com essa ideologia de um saber
intrínseco e providencial conferido ao indivíduo e às massas (corrente antropológica da sabedoria popular) é a continuidade perversa do comando dos povos,
grupos ou multidões não escolarizadas, por soberanos que, cavaleiros do Além
hegeliano, praticam jogos de linguagem (CARVALHO, 2002) dentro de um
vitalismo pré-vitorioso e irrenunciável, lançando às guerras (disputas e conflitos)
os povos como meio de salvação imprescindível à recepção dos fins do(s) Estado(s)
hegemônico(s).
Difícil mesmo livrar-se dessa emboscada sem auxílio de Popper, Habermas,
Kauffmann, para que, eliminando esse observador-interventor privilegiado da
história (o Estado Universal), se possa teorizar a própria observação para, ao
problematizá-la a partir da linguagem discursiva, identificar suas características
tirânicas advindas de uma intuição fenomenológica (Husserl) e sensibilidade
não dadas à crítica e que querem dizer, de pronto e instantaneamente por uma
razão natural e pressuposta ou por métodos engenhosos (Alexy, Günther,
Dworkin, Rawls, Müller, Ferrajoli), o que é justo, bom ou ruim no mundo da
realidade e da mente ou, desterrando os métodos (Gadamer, Heidegger), esperar o emergir do ser da verdade ou da solução justa por um canal de um
pensar sem origem esclarecida.
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Depreende-se que, mesmo solidificadas ainda as idéias de Hegel na
escrita constitucional das democracias equívocas, resta a proclamação de Marx
que aí, sim, se desgarra de seu próprio processo histórico, ao advertir que “tudo
que é sólido se desmancha no ar” (WHEEN, 2001). E que seja este desmonte,
como se aguarda, por um processo-jurídico-discursivo.
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