UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ DEPARTAMENTO DE

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ DEPARTAMENTO DE
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DOMÉSTICA e
NÚCLEO CEARENSE DE ESTUDOS E PESQUISAS SOBREA CRIANÇA
(NUCEPEC/UFC)
Infâncias e Ser Criança: Significações no Universo das Canções de Chico Buarque
Relatório Final de Pesquisa
Ana Maria Monte Coelho Frota – [email protected]
Ângela de Alencar Araripe Pinheiro – [email protected]
Laisa Forte Cavalcante – [email protected]
Mateus Frota Freire – [email protected]
Rita Cláudia Aguiar Barbosa – [email protected]
Fortaleza (CE), 2015
2
Sumário:
Resumo .............................................................................................................. p. 3
Primeira Estrofe ............................................................................................
p. 4
O Artista Renomado, Admirado, Versátil, Objeto de
Estudo – Chico do Brasil ....................................................................................
p. 8
Segunda Estrofe: Nosso Percurso e como Trabalhamos
Nossos Instrumentos ....................................................................................... p. 12
Terceira Estrofe - Uma Obra que Vem Atravessando o Tempo, Um Artista que
Vem Vivendo o seu Tempo .................................................................................
p.
14
Categoria Momentos da Vida: Criança, Adolescente, Adulto e Velho .............. p. 15
Categoria Cuidados e Descuidos ......................................................................... p. 24
Categoria Brincadeira: Como Brincam os Pequenos Chicos?...........................
p.
43
Categoria Características da Infância ..............................................................
p. 52
Categoria Infâncias ............................................................................................. p. 60
Considerações Finais .......................................................................................... p. 75
Referências ......................................................................................................... p. 79
Lista de Músicas do Chico Buarque Relacionadas à Infância ..........................
87
p.
3
Resumo
As expressões artísticas constituem e são constituídas pelos contextos sociais e
históricos. A consideração de seus conteúdos contribui para uma compreensão mais
ampliada das realidades. Ademais, consideramos que infância é uma categoria social e
historicamente construída. Em determinado contexto, é possível que circulem diferentes
significações de infância, que podem se articular, se embater, se contrapor. Com esses
pontos de partida, esta investigação foi orientada pela seguinte pergunta:
Quaissignificações de infância e de ser criança podem ser encontradas nas canções de
Chico Buarque de Holanda? Para abordar este questionamento, este estudo efetivou:
pesquisa bibliográfica sobre arte e realidade social; infância e ser criança; escuta e reescuta do conjunto de canções de Chico Buarque, de autoria única ou em parceria, desde
os anos 1960 aos anos 2000, de modo a identificar todas aquelas que, a nosso ver,
contêm referências a significações de infância e ser criança. Submetemos os dados
construídos à análise de conteúdo temática, emergindo as seguintes categorias:
brincadeira; características da infância; cuidados e descuidos; infâncias; e momentos da
vida. Na discussão das categorias, encontramos que Ser criança faz-se esperança. Ser
adulto e velho, não. Ao adulto, cabe trabalho e cuidado com o outro; ao velho,
desesperança, tristeza e cansaço. Em Cuidados e Descuidos, vemos como Chico busca
reminiscências infantis e valorização das pessoas do povo. Na sua obra, aparecem
figuras marcantes e desvalidas como o negro, o torto, o errante, os detentos. Para CB, é
grande a preocupação com o cuidado voltado à criança, assim como uma denúncia ao
descuido que atravessa a infância. E o sonho de uma infância cuidada, de crianças
amadas, se revela, mais uma vez, nas palavras poéticas do Chico, no olhar vigilante,
capaz de gestos extremos para protegê-las: Tutu-Marambá não venha mais cá/ Que a
mãe da criança te manda matar– A Noiva da Cidade1. Nas músicas do Chico, emergem
várias brincadeiras, brinquedos e jogos, que nos falam de uma cultura e de uma prática
cultural. Em João e Maria, por exemplo, o jogo de faz-de-conta é um convite às
brincadeiras de heróis, cowboys, guerra e princesa. Aparecem brinquedos como pião e
1 Em anexo colocaremos a lista das letras pesquisadas, parcerias - quando existirem, e data de
criação.
4
bodoques. Em Maninha, o poeta nos fala de um tempo idílico, fantasioso e restrito um
“quintal” que consegue se manter imune aos perigos da vida e à escuridão da noite.
Chico Buarque não nos fala de uma infância única. Mostra-nos várias infâncias, vividas
de modo tão diverso e singular quanto as sociedades e as histórias podem ser. As
Características da infância são marcadas por movimentos, brincadeira, energia,
transgressão, alegria. A escola, quando aparece, assume uma perspectiva negativa.
Chico apresenta a criança sempre de uma forma positiva, como a inauguração de
possibilidades já esgotadas para os velhos. Finalmente, em Infâncias, fica muito
marcada a presença de marcação de classes, como em Construção e Pedro Pedreiro.
Também gênero e sexualidade, assim como inserção social, são dimensões da categoria
que denominamos Infâncias. Sem dúvidas, Chico Buarque consegue, com sua poética,
fazer um retrato da sociedade brasileira. A investigação revela que, embora não sejam
incluídos como temas recorrentes nas canções de Chico Buarque, infância e ser criança
se fazem presentes em inúmeras composições do artista, com diversificadas
significações.
Palavras-Chave: Infância; Criança; Arte; Chico Buarque.
Primeira Estrofe: A arte e a constituição do tecido social
São incontáveis os fios que constituem o tecido social, fios que se entrelaçam, se
embatem, se fortalecem, se esgarçam, em processo constante, não linear, ao longo da
história e em diferentes contextos. Fios que advêm de fontes normativas as mais
diversas, tais como: legislação, religião, tradições e costumes2, ciência e filosofia,
mercado de consumo, cultura e arte. Diferentes concepções3, significações, visões de
2Incluímos tradições e costumes como manifestações da cultura, e por a reconhecermos, com
Giddens (2010), como modos de vida partilhados por membros de uma sociedade, ou de grupos
a ela pertencentes. O que abrange gama extensa de modos de estar no mundo, quanto a
costumes, tradições, produções materiais e imateriais, valores, crenças, ideias. Como tal,
costumes e tradições são regras, normas que se fazem fonte de regulação da vida social.
3 Deixamos claro que reconhecemos a simultaneidade de concepções sobre infância e ser
criança, em um mesmo tempo e contexto histórico, e não uma sucessão de concepções
(FROTA, 2007; PINHEIRO, 2006).
5
mundo e de infância, por exemplo, circulam no tecido social, através de expressões
advindas dessas fontes e contribuem, sobremaneira, para a concretização de práticas e
tratos sociais que são dispensados a crianças, a partir de regras, normas que grupos e
instituições estabelecem, adotam. Normas e regras que se configuram e se reconfiguram
ao largo da história e ao considerarmos diferentes contextos sociais (PINHEIRO, 2007;
2009).
Temos como um de nossos pontos de partida que a arte é constituída e constitui
a realidade em que nos inserimos, qual seja, expressões artísticas e contextos sociais e
históricos mantêm mútuas influências (CÂNDIDO, 2000).
Antônio Cândido (2000, p. 20-21), com diversas reflexões sobre a relação entre
arte e vida social, afirma que:
a arte é social em dois sentidos: depende da ação de fatores do meio,
que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz
sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e
concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento de valores
sociais.
Cândido aponta para as influências concretas exercidas pelos fatores
socioculturais nas expressões artísticas, que “marcam os quatro momentos de sua
produção, pois: a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o
segundo os padrões de sua época; b) escolhe certos temas; c) usa certas formas; e d) a
síntese resultante age sobre o meio” (p. 21).
Temos a arte como sistema simbólico próprio, que assume diversificadas
expressões, ao considerarmos a sua diversidade: manifestam-se em produções nos
campos da literatura4 e poesia; artes cênicas; artes plásticas; música; dança; cinema e
fotografia.
Dois pensamentos de Miranda (2010) contribuem para clarear nossa
compreensão de arte e de suas implicações no cotidiano e na construção de nós, como
seres humanos:
Todos nós nascemos, biológica e espiritualmente, incompletos. A
humanidade de cada um de nós se constrói na história. E as artes, de
6
forma manifesta e clara ou latente e tortuosa, parecem nos conduzir a
este grande termo: superar as incompletudes e insuficiências de nossa
humanidade, nos tornando cada mais humanos (p. 07) [...] Partimos do
princípio de que a arte é uma linguagem e, como tal, ela não se reduz
a um mero meio de comunicação entre os homens, mas é
principalmente um poderoso instrumento de estruturação de sentidos
do mundo. Daí a importância de se vincular a diversidade dessas
linguagens a uma perspectiva comum de busca de expressão e
compreensão da vida (p. 15).
Prosseguindo na abordagem da relação entre arte e vida social, trazemos para o
diálogo afirmação de Farias (2002), que nos permite refletir sobre a potência da arte
como expressão e como instrumento de leitura da realidade: “arte é expressão em toda a
sua potência – além da forma e significado da expressão que se emprega
cotidianamente, além da realidade que nos é ofertada a cada dia, cujos limites se fecham
antes de até onde pode ir a imaginação (p. 9).”
As reflexões acima construídas, em diálogo com Cândido, Farias e Miranda,
permitem-nos considerar as produções artísticas como interpretações das realidades
sociais, ao mesmo tempo em que possibilitam novas interpretações, em movimentos,
tensionamentos e articulações entre elas.
Constituímos um grupo de investigação, que a nós interessa compreender as
concepções de infância e de ser criança, que circulam em diferentes segmentos do
tecido social. Em estudos anteriores, abordamos, por exemplo, concepções de infância e
de ser criança que circulavam em assentamento rural de município do semiárido
cearense (FROTA et al, 2013; 2014); entre crianças que participavam de atividade de
pintura em instituição de entretenimento e lazer (PINHEIRO et al, 2009); concepções
4 Cândido (1995: 174) apresenta a seguinte compreensão de literatura: Chamarei de literatura,
da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em
todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore,
lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis de produção escrita das grandes
civilizações. E prossegue, deixando claro o que impulsiona as produções literárias e, ao mesmo
tempo, como ela se faz presente entre nós: ... a criação ficcional ou poética, que é a mola da
literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto
ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular,
moda de viola, samba carnavalesco (p. 174-5).
7
de infância e de ser criança em obras literárias brasileiras e estrangeiras (PINHEIRO,
2012).
Desta feita, no incomensurável conjunto de expressões artísticas – constituídas e
constitutivas do tecido social, buscamos identificar e compreender significações de
infância e do ser criança que circulam através de letras de música popular brasileira. É
importante destacar que a música (melodia e letra) é expressão artística de larga difusão
em nosso País. Em outras palavras, buscamos adentrar no universo das letras de canções
da Música Popular Brasileira (MPB), que possam veicular significações sociais do ser
criança e de infância.
Para viabilizar esta investigação, estabelecemos como recorte o universo das
letras das canções de Chico Buarque de Holanda (CB), de sua única autoria ou em
parceria, bem como versões para o idioma português, efetivadas pelo compositor. O
universo de suas canções foram elencadas a partir do sítio eletrônico do autor 5,
incluindo tanto aquelas que compõem a discografia, como as que se encontram fora
dela.
A articulação feita entre a concepção de arte e as produções de Chico Buarque,
construída pelo historiador Chico Alencar (2004, p. 68-69)6, contribui para as reflexões,
que ora fazemos:
Toda arte talvez seja isso: fragmento de um improvável futuro de
‘tanto amar’, do qual há ‘léguas a nos separar’. Humana certeza de um
incerto desejo: ‘além das cortinas/são palcos azuis’. Sem a arte, como
suportar a cruz aspereza da existência? (grifos no original).
E, dando continuidade ao seu pensamento, afirma Alencar: “A arte de Chico
(Buarque) é, seguramente, essa promessa, essa crônica utopia, esse canto lírico e
5www.chicobuarque.com.br Nossos incontáveis acessos vêm se dando desde o início de 2014,
quando demos início ao processo de análise do conteúdo das letras de canções de Chico
Buarque, como será detalhado mais adiante.
6 Como é possível perceber, Chico Alencar construiu seu texto fazendo uso de fragmentos de
canções de Chico Buarque, tornando-o peculiar e instigante à leitura.
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político, realista e romântico, sofisticado e popular, brasileiro e universal, ‘do que não
tem governo, nem nunca terá’. Aspiração, inspiração. ‘Mais, quero mais!’”
As canções de Chico Buarque de Holanda e as infâncias e as vivências do ser
criança. Como o artista trata dessas dimensões da vida de todos e todas nós? Que temas
se fazem mais recorrentes? Por que nossa escolha recaiu sobre essas expressões
artísticas de Chico Buarque, em nossas buscas investigativas sobre significações de
infância e de ser criança, nos tempos atuais no Brasil?
Antes de prosseguir, parece-nos oportuno um comentário primeiro e sucinto
sobre a nossa percepção das canções de Chico Buarque, sob o respaldo do que nos diz
Cândido (1995, p. 179), ao considerar a produção literária, no conjunto indissociável
entre conteúdo e forma, resulta em certa modalidade de conhecimento, que “enriquece a
nossa percepção e a nossa visão do mundo”.
O Artista Renomado, Admirado, Versátil, Objeto de Estudo – Chico do Brasil.
Nossa escolha pelas canções de Chico Buarque se fundamenta em alguns
critérios: respeitabilidade de que goza o artista; a importância reconhecida de sua obra;
a amplitude do trabalho do artista, iniciado nos primeiros anos da década de 1960 até os
dias de hoje.
A propósito da arte como constitutiva e constituída da realidade, já em seu
primeiro songbook, intitulado A Banda (BUARQUE DE HOLANDA, 1966), Chico,
então aos 22 anos, em texto introdutório, revela a sua intenção (ou determinação) de
“exprimir uma visão objetiva, quase cinematográfica do mundo que me cerca” (s/n).
Quanto à presença de infâncias e ser criança nas canções de CB, apontamos que o autor
termina o referido texto, assim dedicando o livro:
E este livro é bem o meu samba (não samba – ritmo – mas samba no
seu sentido mais largo) [grifo no original]. O samba que uma criança
andou cantarolando, e que um pedreiro pendurado num andaime,
mesmo assim achou de assobiar. Ora, quando é que a criança e o
pedreiro vão saber deste livro? Não sei, o livro é deles. [grifos nossos]
(s/n).
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O conjunto de criações artísticas de Chico Buarque tem sido recorrentemente
apontado como de elevada relevância no cenário artístico nacional e internacional. São
inúmeras as referências que sobre ele encontramos, formuladas por jornalistas,
biógrafos, artistas, críticos de arte, literatos. São adjetivações fartas e reveladoras do
respeito que goza Chico Buarque entre tantos formadores de opinião, tanto no Brasil
como em alguns outros países. Em seguida, trazemos algumas dessas referências,
sabendo que longe estamos de esgotá-las.
O sociólogo Antônio Cândido (2004, p. 19) destaca a integridade de CB, bem
assim a variedade de suas aptidões. Aponta, ainda, que CB, como poucos, é capaz de
“fundir harmoniosamente a maestria artística e a consciência social, completando um
perfil de cidadão serenamente destemido e participante, sempre na linha da melhor
orientação política”.
Já o dramaturgo Augusto Boal (2004, p. 45), contextualizando lembranças de
seu exílio em Lisboa, por conta da ditadura militar no Brasil, relembra a chegada, por
intermédio de sua mãe, de uma carta de CB: trata-se de Meu Caro Amigo (letra dele e
melodia de Francis Hime - 1976), letra que o dramaturgo considera a mais pura poesia
épica. Para Boal, a música os fez (exilados – ele, Paulo Freire, Darcy Ribeiro e outros)
ouvir um canto de esperança, e destaca a resistência de CB no Brasil, escrevendo, por
exemplo, Apesar de Você e Vai Passar.
As palavras de Frei Betto (2004, p. 53),jornalista e escritor, destacam três
dimensões de CB como artista: compositor e intérprete, escritor e animal político. É
impossível resistir a citar mais algumas de suas alusões ao artista:
Sua antimensagem é um convite ao mais profundo do nosso ser, lá
onde o discurso se cala e a intuição passeia de mãos dadas com sua
irmã gêmea – a inteligência. (...) Abraça causas movido pela bemaventurança da fome de justiça. Fica ao lado dos oprimidos, ainda que
aparentemente eles não tenham razão. (...) Chico é todo ele palavra.
Esse é o seu reino, a sua mátria, a razão do seu viver. Por isso a
preserva tanto. Conhece o seu valor e cuida de não desperdiçá-la. Nele
também o verbo se faz carne, e música, e texto e protesto.
O teólogo e escritor Leonardo Boff (2004) destaca na obra de CB “uma clara
visão humanista não sem influência da cultura cristã” (p. 83), e reconhece no artista “o
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poeta cantador engajado com as causas maiores, que têm a ver com o humanismo e o
cristianismo secular”(p. 88), bem como “uma das referências fundamentais da
resistência à Ditadura Militar, através de seu engajamento discreto, mas persistente”
(idem). E, na obra do compositor, Boff destaca
valores recorrentes ligados à tradição da solidariedade, da igualdade e
da fraternidade. Apoia, sempre que solicitado, os destituídos e os
pobres, os sem terra. Jamais negocia com a liberdade e, mesmo diante
da escuridão, convoca a alegria de viver e preserva a utopia contra
todo o cinismo e pragmatismo (p. 88).
Sobre as declarações de Boff sobre CB, queremos ainda destacar uma
observação deveras perspicaz: comentando sobre o conteúdo de Gente Humilde, o
teólogo o desvela como
a reação de quem não é povo mas é sensível, humano e solidário
com essa ‘condition humaine’ no caso de Chico, Vinícius de
Morais e Garoto, co-autores da letra e da música. O compositor
pensa ‘em minha gente’, quer dizer, para Chico, ela existe e está
aí, quando para tantos ela não só é invisível como não existe (p.
89) (grifos no original).
Regina Zappa (2004, p. 107), jornalista e biógrafa de CB, traz observações
sagazes sobre a alma brasileira, presente nas músicas de CB. E vice-versa.Zappa baseia
sua afirmativa no conteúdo de músicas de CB. A biógrafa descreve CB como “um
homem inteligente, de humor refinado e alma sensível e um atento observador na
natureza humana”. Assim como Zappa, consideramos que esses atributos de CB são
fundamentais para tornar peculiar a sua obra, no sentido de captar e retratar, em suas
canções, a alma brasileira, em suas tão diversificadas facetas, fincadas também em tão
variados contextos, país afora. Para Zappa,
a invenção é uma característica marcante na sua obra [de CB]. Ele
inventa a Januária na janela, o Pedro Pedreiro esperando o trem, a
Iracema voando para a América, o Nicanor com mãos de marinheiro,
a mãe que deixa a blusa com seu cheiro na cama do filho, a mulher
que reclama baixinho no tapete atrás da porta, o operário que cai da
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construção atrapalhando o trânsito. Quem não conhece essas pessoas?
(p. 109).
Gostamos especialmente dessa última afirmativa de Zappa, posto que nos remete
à familiaridade das “invenções” de Chico, tanto com relação às pessoas, como às
situações nas quais o compositor as insere, as contextualiza. Essa familiaridade reitera
um de nossos pontos de partida: a arte constitui realidades e é por elas constituída, fonte
e destino que se entrelaçam, e como! Como partes de nossos cotidianos, nós os
reconhecemos nas “invenções” de CB, e nelas também nos reconhecemos!
Podemos, ainda, apontar outros atributos reconhecidos em CB: o músico Aquiles
Reis (2004, p. 47) reconhece-o como “fantasista de truz”; o cantor e compositor Chico
César (2004, p. 49) fala da sua “bondade e retidão”, e seu “rigor estético e sua verve
generosa”. O diretor de teatro Gerard Thomas (2004, p.55) qualifica CB como “um dos
grandes, senão maiores poetas de todos os tempos, como um dos grandes gênios
universais”. O compositor cubano Silvio Rodriguez (2004, p.59) faz afirmativa similar à
de Thomas, ao afirmar que CB: “es um grand artista brasileño, latino-americano y del
mundo”. Na mesma linha de declarações, Zappa (2004, p. 107) o aponta como “um dos
artistas brasileiros mais importantes do nosso tempo”.
O compositor Marcelo Brum-Lemos (2004, p. 57) é pródigo em adjetivações
sobre CB: “carioca, futebolista, erudito, pícaro, brasileiro, romancista, romântico,
político, socialista, burguês, melancólico, cronista, mundano”.
De fato, salta aos nossos olhos como são diversos os atributos reconhecidos em
CB, que se referem à sua forma de ser no mundo, envolvendo características pessoais,
sua inserção na política e no meio artístico, sua sensibilidade com demandas as mais
prementes do mundo social e histórico, como poeta do cotidiano, inteligente, com
capacidade criativa da mais elevada qualidade.
Chico Buarque e suas produções artísticas também vêm sendo objeto de
inúmeros trabalhos no âmbito acadêmico, entre artigos, dissertações de mestrado e teses
de doutorado. Muitos desses trabalhos, em forma de artigos ou capítulos, compõem
duas coletâneas sobre o artista e sua obra, organizadas pelo escritor e Professor Doutor
da UFPB, Rinaldo de Fernandes (2004; 2013). Os Professores Doutores Adélia Bezerra
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de Meneses e Anazildo Vasconcelos da Silva são exemplos, também, de autores de
trabalhos acadêmicos sobre o artista Chico Buarque e sua obra.
Há temas apontados como mais recorrentes no conteúdo das obras de Chico
Buarque. Neste sentido, é por demais sugestivo o título de coletânea, organizada por
Rinaldo de Fernandes (2013): “Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e
dos perseguidos – Ensaios sobre a mulher, o pobre e a repressão militar nas canções de
Chico”. Maternidade, o marginal, o protesto, o amor também são incluídos entre as
temáticas mais recorrentes em suas produções artísticas.
Dos estudos por nós acessados, que fazem referência a temas abordados nas
produções artísticas de CB, encontramos tão somente duas alusões a crianças e
infâncias: Chico Alencar (2004, p. 67), numa construção textual utilizando trechos de
canções de CB que abordam o cotidiano, inclui “as desventuras dos meninos do Brejo
da Cruz, que zanzam daqui pr’acolá, dos pivetes dos sinais fechados”; e quando Zappa
(2004, p. 109) inclui, entre os personagens que CB inventa, “a mãe que deixa a blusa
com seu cheiro na cama do filho”. Achamos conveniente relembrar a alusão à criança e
ao pedreiro (Pedro Pedreiro), que fez CB, em seu primeiro songbook, em 1966, quando
ele se interroga sobre quando os dois saberão de seu livro. “Não sei, o livro é deles”, é a
resposta que Chico se deu.
E ficamos a nos inquietar, desassossegados, com a possibilidade de que CB traz
o vigor das infâncias amadas, “bem vividas”, e também do rigor das infâncias
maltratadas, violadas, desvalidas.
Segunda Estrofe: Nosso percurso e como trabalhamos nossos instrumentos
A Pesquisa vem sendo construída por uma equipe interdisciplinar, composta por
um músico, duas Professoras, vinculadas ao Departamento de Economia Doméstica da
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UFC7 (DED) e ao Núcleo de Estudos sobre Geração Idade e Família (NEGIF); e duas
integrantes da Psicologia- UFC, vinculadas ao Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas
sobre a Criança (NUCEPEC).
Como já afirmamos anteriormente (CAVALCANTE et al, 2014), trata-se de um
estudo qualitativo, exploratório e documental.Trabalhamos com a análise do acervo
musical de Chico Buarque. Toda a sua produção de letras de música foi analisada, entre
os anos 1960 e anos 2000, através da consulta e pesquisa em seu site oficial. As letras
foram estudadas, escutadas e reescutadas, sendo selecionadas aquelas que fazem alusões
diretas e ou indiretas à criança e à infância. A partir daí, trabalhamos em diálogo com
autores que estudam a obra de Chico, bem como com aqueles que abordam as
categorias que emergiram do conteúdo das músicas analisadas.
Os dados construídos foram submetidos a processo de análise de conteúdo
temático, durante o qual emergiram as seguintes categorias: Brincadeira; Infâncias;
Cuidados e Descuidos; Características da Infância; e Momentos da Vida. Cada uma
delas será devidamente explorada ao longo do texto.
No decorrer da pesquisa, dialogamos com teóricos da sociologia da infância,
psicologia do desenvolvimento, filosofia da infância, estudiosos da arte, considerando
concepções de infância e criança, como as identificadas nas letras das músicas de CB.
Buscamos orientação na diversa quantidade de trabalhos acadêmicos e ensaios já
concretizados que analisam a obra de Chico Buarque, como as publicações “Chico
Buarque do Brasil” e “Chico Buarque, o Poeta das Mulheres, dos Desvalidos e dos
Perseguidos”, ambas sob a organização de Rinaldo Fernandes; textos acadêmicos de
Luciano Cavalcanti (2009), Cynthia Ciarallo (2009), Adélia Bezerra de Meneses (2013)
Igor Fagundes (2013); biografias do autor, de autoria de Regina Zappa (2004) e
Fernando de Barros e Silva (2004).
7 O NEGIF é um núcleo vinculado ao Departamento de Economia Doméstica da UFC, que tem
como objetivos desenvolver projetos de pesquisa e extensão relativos à Família, idade e gênero
em atendimento a demandas da comunidade; além de promover debates e discussões
acadêmicas nesse âmbito. Sítio Eletrônico <http://www.economiadomestica.ufc.br/negif.html>
acesso em 17 de junho de 2015. O NUCEPEC é um programa de extensão da UFC e é pioneiro
na Região Nordeste e entre as Universidades Públicas na Defesa dos Direitos de Crianças e
Adolescentes no Brasil. Sítio Eletrônico <http://nucepec.webnode.com/sobre-nos/> acesso em
17 de junho de 2015.
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Pudemos adentrar também em estudos sobre arte, estética, cultura e música
popular brasileira; além de contribuições de ciências sobre novos olhares voltados para
a infância. Estabelecemos diálogo com vários autores, de forma destacada com Jorge
Coli, Marc Jimenez, Antônio Cândido, Octávio Paz, Michel de Certeau, Dilmar
Miranda, Clarice Cohn, Walter Kohan, Manuel Sarmento.
Em análise de conteúdo que permita o tratamento de dados advindos de canções,
consideramos estudos e ideias de Bardin (2009), Minayo(2001), Pinheiro (2006),
Pinheiro et al (2009); Frota et al (2013). Durante todo o desenvolvimento da nossa
investigação, acompanha-nos um questionamento central: Quais significações sociais
explícitas e implícitas, relacionadas ao ser criança e à infância, são refletidas na obra
musical de Chico Buarque de Holanda?
Concomitante a esses estudos e análises, fizemos entrevistas e conversamos com
estudiosos e Professores da UFC. Dilmar Miranda8, estudioso de arte e música popular
brasileira, com o qual discutimos sobre arte e música popular brasileira; Nelson Costa,
estudioso da obra musical de Chico Buarque; e Consiglia Latorre, que nos compartilhou
vivências musicais com Chico Buarque.
Terceira Estrofe - Uma Obra que Vem Atravessando o Tempo, Um Artista que
Vem Vivendo o seu Tempo.
É na década de 1960 que CB inicia a produção artística. Já são, assim, mais de
40 anos de profícua criação, no âmbito de melodias e letras de música, peças teatrais e
romances.
Em nosso estudo, como dito anteriormente, escutamos as suas canções desde a
década de 1960 até os anos 2000. Embora houvesse poucos indícios de que Chico
abordasse a temática da infância em sua obra, para nossa surpresa encontramos uma
8Dilmar Miranda é professor associado do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal
do Ceará, responsável pela área de Estética Filosófica e Estética Musical, atuando
principalmente nos seguintes temas: música, cultura, arte e modernidade. Nelson Costa é
Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do
Ceará. Consiglia Latorre é Coordenadora do Curso de Licenciatura em Música do Instituto de
Cultura e Arte - ICA, da Universidade Federal do Ceará- UFC.
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diversidade enorme de canções que tratam sobre a criança e a infância em diversas
representações.
Fizemos uma primeira pré-seleção das canções de Chico, consultando as letras
em seu sítio oficial e escutando-as por intermédio do sítio de audiovisuais conhecido
como youtube, assim como em discos, em interpretações que contassem com a
participação do compositor. Posteriormente, reescutamos as músicas já pré-selecionadas
para uma reverificação das nossas escolhas. Dessa forma pudemos ter um segundo olhar
sobre as músicas. Encontramos na década de 1960, 15 canções contendo algum tipo de
representação da infância. A década de 1970 se apresenta como tendo o maior acervo de
letras de músicas que tratem, implícita ou explicitamente, sobre o tema de nossa
investigação, contendo 26 canções. Na década de 1980, identificamos 12 canções nas
quais aparece alguma alusão à criança e infância. Já a década de 1990 revelou um
número pequeno de letras de músicas com alusão ao tema pesquisado: selecionamos
somente 02 letras de canções. Finalmente, nos anos 2000, aparecem 03 canções que
abordam o ser criança e a infância.
Indagamo-nos de que modo o contexto efervescente dos anos 1960 a 1980,
marcados por grande convulsão social e política, possa ter contribuído para o
delineamento desta realidade. Parece existir uma relação direta e clara entre a realidade
social e as letras das musicas. Pivete, que se configura numa clara denúncia social, data
de 1978. O Meu Guri, que também retrata e exclusão e uma dura realidade de crianças
em conflito com a lei, foi criada em 1981. Finalmente, à guisa de exemplificação, Brejo
da Cruz, de 1984, também é emblemática como denúncia de descuido e privação
existentes na infância.
A seguir, passamos a apresentar a análise das letras das músicas já em
categorias, como falado anteriormente.
Categoria Momentos da vida: criança, adolescente, adulto e velho.
Uma discussão muito presente na contemporaneidade refere-se ao conceito de
infância, que se desdobra na sua compreensão como um vir a ser e um devir. Enquanto
para a tradição, a infância é uma fase da vida que se caracteriza pela incompletude e
falta, que descreve a criança como um projeto de um vir-a-ser; para a filosofia da
16
diferença, a infância é compreendida como um devir, um acontecimento aberto ao
inesperado (KOHAN, 2014).
Para a Psicologia do Desenvolvimento, por muito tempo, as idades da vida eram
marcadas pelo tempo cronológico ou transformações fisiológicas. No entanto, uma
crítica é feita a esse pensamento: “a linearidade do tempo cronológico autoriza uma
compreensão da infância que lhe atribui uma qualidade de menoridade e,
consequentemente, sua relativa desqualificação como estado transitório, inacabado e
imperfeito” (JOBIM e SOUZA, 1997, p. 44). Para Jardim (2002), a idéia da criança
como um vir a ser, elimina a possibilidade de multiplicidade, pois pressupõe um modelo
a ser seguido e completado, diferentemente do devir. Assim, o-vir-a-ser já é
determinado antes de ser e encontra-se inscrito aprioristicamente. Neste rumo é que a
Psicologia do Desenvolvimento tem, predominantemente, caminhado, pelo menos até os
anos 1980. Já o devir sugere um percurso atravessado por encontros e desencontros, por
acasos.
Teorias da Psicologia têm questionado o dogma da infância caracterizada
somente a partir de uma compreensão biologicista e universal, negando essa
determinação. Pino (2005), por exemplo, considera que “na medida em que as ações da
criança vão recebendo as significações que lhe dão o Outro [...] ela vai incorporando a
cultura que a constitui como um ser cultural, ou seja, um ser humano” (p. 66). Assim,
estudiosos da Psicologia do Desenvolvimento têm buscado pensar o homem como um
ser no qual as dimensões cultural, histórica e biológica são mescladas e, como tal,
impossíveis de serem negadas. Isso é um passo importante, mas ainda há muito a ser
feito, em direção a uma psicologia que consiga olhar a criança como uma pessoa
completa, diferente, mas não desigual do adulto.
Como afirma Arenhart (2003), não cabe olhar as crianças a partir da “(...)
ausência de características em relação aos adultos, mas pela presença de outras
características diferentes das de adultos” (p. 25).
Hoje existe uma clareza muito grande, um movimento assumido amplamente, no
sentido de considerar a criança um devir, um ser aberto às possibilidades. Percebemos
que a criança vem ocupando, além de um lugar definido anteriormente, iluminado pelo
ideário modernista, uma compreensão mais aberta e prenhe de possibilidades, trazida
pelo movimento da pós-modernidade. Como afirma Larrosa (2013): “Trata-se aqui de
17
devolver à infância, a sua presença enigmática e de encontrar a medida da nossa
responsabilidade pela resposta, ante a exigência que esse enigma leva consigo” (p. 186).
Dornelles (2010) considera a infância como acontecimento, imprevisibilidade, e
movimento. Acredita na provisoriedade das verdades modernas. Deste modo, tende a
ver a criança como independente, como um ser que é cuidado para cuidar de si
mesmo,podendo escolher e assumir responsabilidades por sua escolha. Para tanto, o
devir se faz presente: “re-interpretar as infâncias, fazendo-as transbordar de
significados, na tentativa de mostrá-las como uma possibilidade de viver e viver outra
forma de ser criança” (p.4). Assim como a pesquisadora, percebemos que as letras do
poeta Chico Buarque retratam diferentes infâncias e crianças com diversas inserções
sociais, como vimos mostrando no decorrer deste texto.
Analisando a obra musical de Chico, Dornelles (2010) enxerga diferentes formas
de compreensão da infância: a criança da guerra, que está à margem da sociedade que,
na nossa compreensão, pode ser representada por O Meu Guri, Pivete e Brejo da Cruz; a
criança percebida como uma divindade, um anjo ou um deus, representação presente nas
letras Malandro quando Morre, Minha História e Angélica, como exemplo; a criança
das brincadeiras, evidenciada em João e Maria e Pivete, e a criança da modernidade,
fruto de uma sociedade que assusta os adultos avessos à tecnologia, como na letra de
Nina.
Compreendendo que existem diferentes cartografias da infância, Dornelles
assegura que Chico Buarque enxerga a multiplicidade de Infâncias possíveis e concretas
no nosso País. Assegura que toda criança inaugura um devir criança, pois que é, sendo
em movimento e indiscernibilidade. Além disso, chama atenção para o devir criança
como uma política de afirmação da vida, como possibilidade de viver o criançar, de
viver o ser criança como pratica de potencialização da alegria da vida.
Neste momento, a Filosofia da infância traz uma contribuição muito importante
aos estudos que têm sido feitos nesta seara: A criança precisa dizer-se! Para Kohan
(2004):
A infância pronuncia uma palavra que não se entende. A infância
pensa um pensamento que não se pensa. Dar espaço a essa língua,
aprender essa palavra, atender esse pensamento pode ser uma
oportunidade não apenas de dar um espaço digno, primordial e
18
apaixonado a essa palavra infantil, mas também de educar a nós
mesmos (p. 131).
A compreensão da infância como um tempo de possibilidade da experiência, da
alteridade radical, de ruptura, é ressaltada por Kohan (2010, 2012) e Agambem (2005).
A infância resgata a experiência, expropriada que foi pela época da técnica. Daí a
grande necessidade de proteger e cuidar da criança e da infância. Falamos aqui de uma
possibilidade existencial para além da cronologia. Uma possibilidade com capacidade
transgressora e disruptiva.
Deste modo, consideramos que Chico Buarque enxerga uma multiplicidade de
infâncias, caracterizando-as diferentemente, como podemos perceber na categoria
características da infância. Existe, porém, uma linha comum ao falar da criança: a
potência de vida, claramente percebida em algumas letras de músicas, como A Banda (a
criançada toda se assanhou/ pra ver a banda passar/ cantando coisas de amor);Olê,
Olá(Seu padre toca o sino que/ é pra todo mundo saber/ Que a noite é criança, que o
samba é menino/ Que a dor é tão velha/ que pode morrer);Sonho de um Carnaval(Que
gente longe viva na lembrança/ Que gente triste possa entrar na dança/ Que gente
grande saiba ser criança);Roda Viva (Tem dias que a gente se sente/ Como quem
partiu ou morreu/ A gente estancou de repente/ Ou foi o mundo então que cresceu/ A
gente quer ter voz ativa/ No nosso destino mandar/ Mas eis que chega a roda-viva/ E
carrega o destino pra lá), A Cidade Ideal
(O sonho é meu e eu sonho que
Deve ter alamedas verdes
A cidade dos meus amores
E, quem dera, os moradores
E o prefeito e os varredores
Fossem somente crianças
Deve ter alamedas verdes
A cidade dos meus amores
E, quem dera, os moradores
E o prefeito e os varredores
E os pintores e os vendedores
As senhoras e os senhores
E os guardas e os inspetores
Fossem somente crianças).
Por outro lado, é importante deixar claro que adolescências e adolescentes não
foram objeto de nosso olhar. Sugerimos, assim, o aprofundamento desse objeto de
19
estudo em outro momento. Deste modo, nossas reflexões com relação à adolescência
são incompletas e ainda introdutórias.
Aparece a figura do púbere/adolescente, por exemplo, em Carioca, encarnada na
menina de peitinhos de pitomba, que vende bugigangas na noite, para sobreviver.
Também aparece em Uma Canção Desnaturada, ao descrever o sofrimento dos pais
diante do crescimento de uma filha bem amada: Por que cresceste curuminha/ assim
depressa, estabanada. Ou ainda em Ai, Se Eles me Pegam Agora (Ai, se mamãe pega
agora/de anágua e de combinação/ Será que ela me manda embora, ou não). As três
letras/poesias se referem a uma pessoa não mais criança, mas ainda não adulta, pois que
depende dos pais. É perceptível, então, a existência de uma diferença, no conteúdo
dessas canções de Chico Buarque, entre ser criança e ser adolescente. No entanto, será
possível afirmar que a adolescência se deixa ver como uma categoria social? Esta é uma
indagação que não é possível de ser respondida, pelo menos por este estudo.
Chico não utiliza o termo adolescência. Será que, para ele, crianças e
adolescentes podem ocupar os dois lugares ao mesmo tempo? Talvez não, pois ele fala
de pessoas crescendo, rompendo com a tradição familiar, tentando ser por si mesmas.
Algo como descreve Paz (2014), na sua poesia:
Para nós, em algum momento, nossa existência se revela como alguma
coisa de particular, intransferível e preciosa. Quase sempre esta
revelação se situa na adolescência. A descoberta de nós mesmos se
manifesta como um saber que estamos sós; entre o mundo e nós surge
uma impalpável, transparente muralha: a da nossa consciência (O
labirinto da Solidão – Otávio Paz).
Talvez sim. Talvez fale de um momento da vida que está para além da
cronologia ou fisiologia. Assim, único e, ao mesmo tempo, universal (FROTA, 2001).
Em contraposição à criança, Chico fala do adulto, como aquele que
cuida\descuida do filho. O adulto é aquele que mantém a casa, cuida da comida e da
vida. Educa e ensina a moral vigente. Vejamos a letra de Ai, Se Eles me Pegam Agora,
na qual isso fica muito evidente:
Ai, se mamãe me pega agora de anágua e de combinação
Será que ela me leva embora ou não
Será que vai ficar sentida, será que vai me dar razão
Chorar sua vida vivida em vão
Será que faz mil caras feias, será que vai passar carão
Será que calça as minhas meias e sai deslizando pelo salão
Eu quero que mamãe me veja pintando a boca em coração
Será que vai morrer de inveja ou não
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Ai, se papai me pega agora abrindo o último botão
Será que ele me leva embora ou não
Será que fica enfurecido será que vai me dar razão
Chorar o seu tempo vivido em vão
Será que ele me trata à tapa e me sapeca um pescoção
Ou abre um cabaré na lapa e aí me contrata como atração
Será que me põe de castigo será que ele me estende a mão
Será que o pai dança comigo ou não?
Também em Madalena foi Pro Mar (Madalena foi pro mar/ e eu fiquei a ver
navios (...) que é preciso voltar já/ pra cuidar dos nossos filhos); Pedro Pedreiro
(Esperando um filho pra esperar também); Morena de Angola (Será que quando fica
choca põe de quarentena o seu chocalho/ Será que depois ela bota a canela no nicho
do pirralho); Uma Canção Desnaturada(Porque cresceste,curuminha/Assim depressa,
e estabanada/ Saíste maquiada/Dentro do meu vestido...);dentre outras letras, aparece a
figura do adulto como o responsável por cuidar da criança.
No entanto, em O Meu Guri, essa ideia de cuidado unidirecional adulto-criança é
substituída por cuidado mútuo, entre mãe e filho: (Eu consolo ele/ Ele me consola/ Boto
ele no colo/ Pra ele me ninar/ De repente acordo, olho pro lado/ E o danado já foi
trabalhar). Chama-nos a atenção Chico Buarque significar o Guri como capaz de cuidar
de sua mãe, ao mesmo tempo em que é por ela cuidado, utilizando termos como colocar
no colo, consolar e ninar. O consolar, o ninar, em mútua direção, quebra, portanto, esse
unidirecionamento do cuidado adulto-criança, adulto-adolescente, tão amplamente
difundido em nossa cultura.
Se ao adulto cabe o trabalho como característica marcante, também ele aparece
fortemente presente na criança, em canções tais como Pivete, O Meu Guri, Carioca.
Então, não parece ser o trabalho um traço determinante da adultície, para CB. Pelo
menos não tão forte quanto a indissociabilidade com o cuidar, manter financeira e
emocionalmente, ensinar a ética social. É preciso levar em conta que, nas três canções
acima citadas, há uma forte marcação de classes, tudo apontando para a subalternidade
dos personagens (ressaltamos palavras como morro, carregamento, vender bugigangas
na noite, capricha na flanela e vende chicletes no sinal, por exemplo) Ou seja, a
admissão de trabalho para crianças e adolescentes não é para qualquer um deles, e sim
para aqueles pertencentes a classes trabalhadoras. Nessa situação, infância e adultície
não parecem se distinguir através do trabalho também nas canções referidas de CB.
21
Identificamos a velhice retratada, nas composições musicais do poeta CB, como
um momento da vida caracterizado por tristeza, desilusão, cansaço, desgaste, morte e
doença. Em nenhuma de suas letras,percebemos a velhice como um tempo de sabedoria,
amadurecimento e plenitude, como sugerem atuais estudos sobre o envelhecimento
(DEBERT, 2004; COSTA & FAVERO, 2009), o que nos chama atenção.
Em A Banda, por exemplo, enquanto a meninada toda se assanhou, O velho
fraco se esqueceu do cansaço e pensou/ Que ainda era moço para sair do terraço e
dançou. Em Olê Olá, é dito que a noite é criança/ Que o samba é menino/ Que a dor é
tão velha/ Que pode morrer...”. Ao velho, mesmo que de modo indireto, através de uma
alusão também indireta, cabe a ameaça da morte, do fim, não como parte de um
processo de vida, mas como uma decrepitude e perda.
Velho Francisco mostra claramente a ideia do velho representado como um jávivido, um que-já-não-é:
Já gozei de boa vida
Tinha até meu bangalô
Cobertor, comida
Roupa lavada
Vida veio e me levou
Fui eu mesmo alforriado
Pela mão do Imperador
Tive terra, arado
Cavalo e brida
Vida veio e me levou
Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Ela vem toda de brinco
Vem todo domingo
Tem cheiro de flor
Quem me vê, vê nem bagaço
Do que viu quem me enfrentou
Campeão do mundo
Em queda de braço
Vida veio e me levou
Li jornal, bula e prefácio
Que aprendi sem professor
Frequentei palácio
Sem fazer feio
Vida veio e me levou
Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Ela vem toda de brinco
22
Vem todo domingo
Tem cheiro de flor
Eu gerei dezoito filhas
Me tornei navegador
Vice-rei das ilhas
Da Caraíba
Vida veio e me levou
Fechei negócio da China
Desbravei o interior
Possuí mina
De prata, jazida
Vida veio e me levou
Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Hoje não deram almoço, né
Acho que o moço até
Nem me lavou
Acho que fui deputado
Acho que tudo acabou
Quase que
Já não me lembro de nada
Vida veio e me levou
Nesta letra, Chico Buarque parece descrever uma vida vivida, através de
momentos existenciais, cheios de acontecimentos por vezes plenos de energia e
glamour. Ao velho, tristeza, memória falha e inércia!
Já em Essa Pequena, letra escrita em 2011, Chico fala também da maturidade,
em contraposição à juventude, embora que de forma mais lírica e menos pungente:
Meu tempo é curto
O tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza
O dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito
A nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela
Meu dia voa
E ela não acorda
Vou até a esquina
Ela quer ir pra Flórida
Acho que nem sei direito
O que que ela fala, mas
Não canso de contemplá-la
Feito avarento conto meus minutos
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas
23
Ao vento, ai
As vezes ela pinta a boca e sai
Fique a vontade, eu digo
Take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena
Nessa poesia, Chico parece dar-se conta da passagem do tempo e da necessidade
de aproveitar cada segundo da vida. O amor por uma jovem mulher lhe trouxe esta
perspectiva?
Nadine Stair (s\d)9, em um escrito Instantes10, já havia acenado para esta
urgência de viver a vida, muitas vezes não consciente para a maioria de nós.
Se eu pudesse novamente viver a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito,
relaxaria mais, seria mais tolo do que tenho sido.
Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.
Seria menos higiênico. Correria mais riscos,
viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui,
tomaria mais sorvetes e menos lentilha,
teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata
e profundamente cada minuto de sua vida;
claro que tive momentos de alegria.
Mas se eu pudesse voltar a viver trataria somente
de ter bons momentos.
Porque se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos;
não percam o agora.
Eu era um daqueles que nunca ia
a parte alguma sem um termômetro,
uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas e,
se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no começo da primavera
e continuaria assim até o fim do outono.
9 Ver o site: http\\www.falandoemliteratura.com\2014\06\14\o-poema-instantes-não-e-deborges.
10 Autoria de Instante é contestada, sendo atribuída, erradamente a Jorge Luis Borges.
24
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças,
se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos e estou morrendo.
Por fim, vejamos a canção Sonho de um Carnaval. CB parece contrapor
desengano e esperança, a partir de um tempo de folia. E saber ser criança – por parte do
adulto – é posto entre fontes de esperança: utilizar-se de lembrança para aproximar as
pessoas que estão longe, e valer-se da dança para espantar a tristeza de gente. Tudo isso,
CB parece colocar como um Sonho de Carnaval:
Carnaval, desengano
Deixei a dor em casa, esperando
E brinquei, e gritei e fui vestido de rei.
Quarta feira, sempre desce o pano
Carnaval, desengano
Essa morena me deixou sonhando
Mão na mão
Pé no chão
E hoje, nem lembra não (...)
Ser criança faz-se esperança. Ser adulto, não? O conteúdo dessa canção de CB
parece nos apontar para tal.
Essas contraposições entre momentos da vida, que identificamos em canções de
CB, fazem-nos lembrar de colocações de Sarmento (2013, p. 19-20), quanto a
representações sociais mútuas, do tipo intergeracionais. Entendemos tais representações
como expectativas que são atribuídas por uma geração em relação a outra. Como diz
Sarmento:
‘brincar é coisa de criança’, ‘o trabalho está reservado para os adultos’
etc, tem implicações na construção de programas institucionais
diferenciados (por exemplo, a construção de creches e escolas infantis
e de centros de acolhimento de idosos para a terceira idade) e
exprime-se numa normatividade específica, ou seja, um conjunto de
regras e de prescrições, algumas formais – ou seja, formuladas como
25
normas jurídicas – outras expressas através de orientações morais e
comportamentais assumidas pelo senso comum e que incidem, umas e
outras, no que é permitido às crianças, no que é suposto que elas
façam e no que lhes é interdito.
Nessa linha de pensamento, podemos apontar, por exemplo, para as recorrentes
alusões que são feitas, na sociedade contemporânea ocidental, que consideram a
infância como momento de vida marcado por falta, por incapacidade, por
incompetências, expressas por adultos. Crianças, postas, portanto, em situações
inferiorizadas em relação a adultos, e com interditos por vezes excessivos, como a
proibição de participarem de instâncias de decisão de assuntos coletivos.
Categoria Cuidados e descuidos
Cuidados: sentidos possíveis
Para Boff (2005), em latim, donde se deriva o português, cuidado significa Cura. Cura é um
dos sinônimos eruditos de cuidado. Em seu sentido mais antigo, cura se escrevia em latim coera
e se usava em um contexto de relações humanas de amor e de amizade. Cura queria expressar a
atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pelo objeto ou pela pessoa
amada. O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim.
Passamos, então, a nos dedicar a ele; dispomo-nos a participar de seu destino, de suas buscas, de
seus sofrimentos e de suas conquistas, enfim, de sua vida.Cuidado significa, então, desvelo,
solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. Trata-se, como se depreende, de uma atitude
fundamental do ser humano.
O cuidado fala da relação do homem com o outro. Diz desta relação, tão bem delimitada
como sendo um modo ontológico de caracterizar o ser humano. O homem é um ser-de-cuidado,
afirma categoricamente Heidegger, em Ser e Tempo (1927/2010).
Na sua obra musical, Chico nos fala do modo de cuidado com as crianças. E, aqui, nos
voltaremos a isso. Debruçaremo-nos sobre as formas de cuidados e de descuidos de que nos fala
o compositor, da relação do ser humano em geral com a infância/criança.
Boff (2004) acredita que
A produção artística e literária de Francisco Buarque de Hollanda
revela, em seu transfundo, uma clara visão humanista não sem
26
influência da cultura cristã. Não que se apresente como um homem
religioso, mas alguém que se inscreve dentro da tradição humanista,
sabidamente fecundada pelo ideário cristão (p. 83).
Em seu texto, Boff (2004) discorre sobre esse humanismo aberto, como ele o
chama, e ao qual associa a bondade, a solidariedade, a cooperação e a compaixão. E,
mais ainda, o amor, a benquerença, a reconciliação, a paz. E continua afirmando:
Esse humanismo aberto possui valor intrínseco, mesmo quando se
esquecem as razões últimas de sua sustentação. Ele se tornou hoje
patrimônio transcultural da humanidade. Constitui a atmosfera ética e
espiritual que respiramos coletivamente. (p. 84-5).
A compreensão do filósofo, acerca da obra de Chico Buarque, é deque ela vem
sendo construída dentro de um caldo cultural com as características acima descritas por
Boff. Logicamente, jamais tivemos a expectativa de que CB formularia um discurso nos
moldes
teóricos
e acadêmicos.
Na verdade,
não
teorizando,
Chico
canta
“existencialmente o cotidiano em sua profundidade, em seus limites e em sua glória
escondida” (Boff, 2004, p. 85). Para o autor, o sentido da produção de Chico Buarque
vai além daquele que ele mesmo quis dar a sua obra. Ele não tem o monopólio do
sentido da realidade por ele cantada e descrita. Há múltiplas facetas de sentido que
podem ser captadas pelos ouvintes e leitores, que então se fazem co-autores da obra.
Essas são as interpretações múltiplas que as produções artísticas permitem!
E Boff (2004) faz referência de que os
valores recorrentes em sua [de Chico Buarque] vasta obra são aqueles
ligados à tradição da solidariedade, da igualdade e da fraternidade.
Apoia, sempre que solicitado, os destituídos e pobres, os sem-terra.
Jamais negocia com a liberdade e, mesmo diante da escuridão,
convoca a alegria de viver e preserva a utopia contra todo o cinismo e
pragmatismo. (p. 3).
Em Acalanto para Helena, Chico nos revela seu cuidado e pre-ocupação com a
filha: Dorme minha pequena/ Não vale a pena despertar/ Eu vou sair/ Por aí afora/
Atrás da aurora/ Mais serena. Seus olhos parecem enxergar a dureza da vida e os riscos
que os chicos e as chicas correm. Fala-nos da necessidade de cuidar dos pequenos?
27
Cavalcanti (2009) assegura que, em sua obra, Chico Buarque nos mostra uma
ampla galeria de desvalidos: pobres, assalariados, camelôs, ambulantes, prostitutas,
malandros, pessoas humildes e mulheres. Também as crianças atravessam sua obra,
embora que pouco vistas e reconhecidas. Chico busca reminiscências infantis e
valorização das pessoas do povo. Aparecem figuras marcantes e desvalidas como o
negro, o torto, o errante, os detentos. As crianças também podem ser identificadas como
desvalidas se não são cuidadas? Parece-nos claramente que sim.
No que chamou de galeria de desqualificados, Cavalcanti (2009) se refere a “gente que
vive porque é teimosa” (p.20). Chico reconhece o outro, resgata sua experiência de dor e de
alegria, pertencentes a todos os seres humanos, afirma o autor. E segue dizendo: “Compreende
que o indivíduo está inserido no mundo, sujeito a todas prováveis situações que possam ocorrer.
Com o sentimento de solidariedade confraternizam-se numa igualdade universal” (p. 25). Em
Angélica, por exemplo, o poeta nos conduz ao umbral da dor humana de não mais poder cuidar
do filho, pois que morto:
Quem é essa mulher,
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho.
Que mora na escuridão do mar.
Quem é essa mulher,
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento,
Que fez o meu filho suspirar.
Quem é essa mulher,
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo.
E deixar seu corpo descansar.
Quem é essa mulher,
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino,
Que ele já não pode mais cantar.
28
Quem é essa mulher.
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho.
Que mora na escuridão do mar (Angélica) (1977, Chico e Miltinho).
O contexto dessa música refere-se aos denominados anos de chumbo da
Ditadura Militar, e diz respeito à história real de uma mãe, Zuleika Angel Jones, a Zuzu
Angel.Ela lutou desesperadamente- até morrer em um estranho acidente de carro- para
desvendar o mistério que cercava o desaparecimento e morte de seu filho Stuart Angel,
militante político, que foi preso e torturado por desobedecer ao sistema ditatorial
vigente à época. Quais as ações que a canção registra? Embalar, agasalhar, deixar
descansar- verbos que indiciam os gestos da maternidade, de proteção, cuidado e
preservação do que é frágil: seu filho, seu anjo, seu menino. Para Fernandes
(2013),“cabe à mulher, a serviço da vida, de um lado ativar o que não pode ser
esquecido, resgatar continuamente a memória; de outro lado, denunciar a situação de
opressão.” (p.22).
Ao mesmo tempo, Chico Buarque nos fala de cuidado e da proteção maior para com os
pequenos, como em Opereta de Casamento (1982, Chico e Edu Lobo): Oh meu pai, oh meu pai,
por favor/ Condenai o nosso amor/ De langor e luxúria! Mas poupai, oh meu pai/Nosso filho
Da fúria do Senhor! Parece existir, na sua obra, uma compreensão de cuidado/descuido com as
crianças e a infância. Boff (2004, 2005) foi extremamente sagaz ao falar que Chico trata de um
ethos humano, pela forma de estar no mundo, através do cuidado. É o que o filósofo afirma:
não vemos a natureza e tudo que nela existe como objetos. A relação
não é sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito. Experimentamos os seres
como sujeitos, como valores, como símbolos que remetem a uma
realidade frontal.
A relação não é de domínio, mas de convivência.
(...) Não é pura intervenção, mas principalmente interação e
comunhão. É de cuidado das coisas.Cuidar das coisas implica ter
intimidade com elas, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhe
sossego e repouso. Cuidar é entrar em sintonia com as coisas.
Auscultar-lhe o ritmo e afinar-se com ele. Cuidar é estabelecer
comunhão. Não é a razão analítica-instrumental que é chamada a
funcionar. Mas a razão cordial, o esprit de finesse (o espírito de
delicadeza), o sentimento profundo. Mais que o logos (razão), é o
pathos(sentimento), que ocupa aqui a centralidade (2005, p. 5).
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Há outra canção de Chico, que envolve a tragédia ligada à maternidade: O Meu
Guri, composta em 1981. Essa canção, atesta Fernandes (2013), refere-se ao eu lírico de
uma mãe de um garoto desvalido e marginal, e que desconhece a real condição do
trabalho de seu filho.
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice, ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí! Olha aí!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega
Chega suado e veloz do batente
Traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar
Olha aí!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!
Chega no morro com carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos está um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar
Olha aí!
30
Olha aí!
Ai o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo eu não disse, seu moço!
Ele disse que chegava lá
Olha aí! Olha aí!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí
Olha aí!
É o meu guri!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí
Olha aí!
É o meu guri!
Existe uma profunda ironia da situação trágica ao longo desta composição. Ele
disse que chegava lá, em que o orgulho materno mascara a trágica realidade Olha aí, ai
o meu guri, olha ai. Fernandes (2013) analisa o contato tênue entre Angélica e O Meu
Guri,ao assim refletir:
A mãe retratada em Angélica e a favelada do morro: o confronto
dessas duas mulheres que perderam seus filhos recorta um quadro
doloroso que coloca em questão a maternidade ferida. Duas mães, dois
filhos mortos, o “anjo” e o marginal- ambos assassinados: um pelas
forças mortíferas da repressão política; outro, eliminado pela força
policialesca,
num
quadro
de
marginalidade
e
opressão
socioeconômica. Uma tem consciência, sabe que perdeu o filho e, a
partir dessa consciência, pode estruturar o seu luto e emprestar um
sentido para a sua vida: cantar por seu menino, que ele não pode mais
cantar. E a outra, analfabeta, nem pode ler a legenda das fotos do
jornal e decodifica invertidos os signos da morte. O que torna quase
que mais dolorosa a situação da mãe do Guri marginal é que a
alienação atinge fundo, a desumanização vai longe: ela perde, mas não
31
sabe que perdeu, enquanto em Angélica a dor é flagrada no seu
movimento. (p.29)
Fica-nos claro que uma das formas de referência, nas canções de Chico Buarque,
se dá através de suas abordagens sobre a maternidade. Ou seja, o foco do teor de
Angélica e O Meu Guri está na maternidade, a saber, na relação entre a mãe e o filho, e
não na infância, no ser criança.
Cuidados com a Criança e com a Infância
Cândido (1995) classifica as produções literárias, categorizadas como Literatura
Social, como aquela que “visa a descrever e eventualmente a tomar posição em face das
iniquidades sociais, as mesmas que alimentam o combate pelos direitos humanos”. (p.
181). Aponta o romance humanitário e social (começo do Séc. XIX) como exemplo da
Literatura Social, através do qual o pobre ocupa um tratamento com dignidade na
literatura, e não mais como pitoresco ou cômico. Traz o exemplo de Os Miseráveis, no
qual Vitor Hugo, entre outros personagens, inclui a criança brutalizada pela família, o
orfanato, a fábrica, o explorador. Assim como Vitor Hugo, o poeta Chico Buarque
também nos mostra as iniquidades humanas. Descreve situações críticas permeadas por
um lirismo imenso (SILVA, 2010). Em Brejo da Cruz, por exemplo, o compositor
denuncia uma situação que vem se perpetuando, e quase sempre se invizibilizando na
cotidianidade: o descuido com a criança, particularmente pelo Poder Público. São
crianças se alimentando de luz, já que comida não existe. Mais uma vez, a poesia e o
lirismo, com a linguagem peculiar de CB, nos conduzem, forçosamente, a enxergar
aqueles desvalidos:
A novidade
Que tem no Brejo da Cruz
É a criançada
Se alimentar de luz
Alucinados
Meninos ficando azuis
E desencarnando
Lá no Brejo da Cruz
Eletrizados
Cruzam os céus do Brasil
Na rodoviária
Assumem formas mil
Uns vendem fumo
Tem uns que viram Jesus
Muito sanfoneiro
Cego tocando blues
32
Uns têm saudade
E dançam maracatus
Uns atiram pedra
Outros passeiam nus
Mas há milhões desses seres
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde essa gente vem
São jardineiros
Guardas-noturnos, casais
São passageiros
Bombeiros e babás
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam luz
São faxineiros
Balançam nas construções
São bilheteiras
Baleiros e garçons
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam luz.
Silva (2010) compreende que a dimensão social da poesia do Chico Buarque tem sido
construída referencialmente, a partir da interpretação do contexto histórico, e não poeticamente,
a partir da elaboração interna do contexto lírico. Deste modo, seu coro lírico é construído pelas
vozes mimetizadas que fazem a representação social, caracterizando-se como vozes concretas
de pessoas diferentes, que se fundem para clamar algo. Fala por uma voz que evidencia a
tessitura da realidade social e histórica, comprometida e solidaria com a dimensão humana. É o
que podemos ver na sua composição Uma Menina, de 1987, na qual faz uma representação da
infância desamparada, sem discriminar vitimas ou algozes. Sem condenar ou absolver. Chico
parece não querer fomentar culpa ou revolta. Simplesmente convida o leitor a compartilhar do
sentimento:
Uma menina igual a mil
Que não está nem aí
Tivesse a vida pra escolher
E era talvez ser distraída
O que ela mais queria ser
Ah, se eu pudesse não cantar
Esta absurda melodia
Pra uma menina distraída
Uma menina igual a mil
Do Morro do Tuiuti
33
Uma menina igual a mil
Que não está nem aí
Tivesse a vida pra escolher
E era talvez ser distraída
O que ela mais queria ser
Ah, se eu pudesse não cantar
Esta absurda melodia
Pra uma criança assim caída
Uma menina do Brasil
Que não está nem aí
Uma menina igual a mil
Do Morro do Tuiuti11
Ciarallo(2009) já nos alertava para a arte de Chico Buarque, afirmando:
Forte elemento de compreensão de um povo é a arte. Ela nasce
significando de múltiplas formasa vida, o cotidiano desse povo. Chico
Buarque é um desses artistas, que busca na música e na poesia ser
mediador expressivo de um povo, de um grupo, de um gueto, de um
papel, de uma pessoalidade (p. 17).
Assim, as relações de cuidado e descuido com a infância-criança se deixam enxergar na
sua obra. A maternidade aparece fortemente, como nas canções Angélica, O Meu Guri,
Madalena foi pro Mar, Minha História, Ai se eles me pegam agora, A Violeira, As Minhas
Meninas. A abordagem da maternidade se faz diversificadamente, claramente atrelada ao papel
da mulher que cuida. Apenas em duas composições de Chico Buarque, observamos a ausência
desse cuidado materno: em Madalena foi pro Mar (Madalena foi pro mar/ E eu fiquei a ver
navios/ Quem com ela se encontrar/ Diga lá no alto mar/ Que é preciso voltar já/ Pra cuidar
dos nossos filhos); e em Você não ouviu (No fim do mês, quando o dinheiro aperta/ Você corre
esperta/ E vem pedir ajuda/ Eu lhe procuro, mas você se esconde/ Não me diz aondeNem quer
ver seu filho. No fim do mês é que você responde/E no primeiro bonde/ Vem pedir auxílio). Em
seus conteúdos,a mulher/mãe não cuida do filho, entregando este cuidado ao homem/pai.
Na canção Violeira, por exemplo, apesar de todo sofrimento, meio épico, vivido pela
personagem, os filhos se mostram como parte integrante da sua existência. A Violeira não fala
por ela, mas pela família, por nós. Não é assim que se pode ler na letra do poeta? Ver Ipanema/
11Trata-se de um bairro da cidade do Rio de Janeiro, com habitantes, em geral, de baixa renda
econômica.
34
Foi que nem beber jurema/ Que cenário de cinema/ Que poema à beira-mar/ E não tem tira/
Nem
doutor,
nem
ziguizira/
Quero ver quem é que tira/ Nós aqui desse lugar.
O cuidado também atravessa a paternidade, muito marcada, no olhar de CB, pela
sustentação financeira da prole, como fica evidenciado em Vai Trabalhar, Vagabundo, um
provedor que também deixará a criançada chorando:
(...) Parte tranquilo, ó irmão
Descansa na paz de Deus
Deixaste casa e pensão
Só para os teus
A criançada chorando
Tua mulher vai suar
Pra botar outro malandro
No teu lugar
Vai te entregar
Vai te estragar
Vai te enforcar
Vai caducar
Vai trabalhar
Vai trabalhar
Vai trabalhar
O cuidado também se mostra em Minhas Meninas:
Olha as minhas meninas
As minhas meninas
Pra onde é que elas vão
Se já saem sozinhas (...)
As meninas são minhas
Só minhas na minha ilusão
Na canção cristalina
Da mina da imaginação (...)
E a solidão
Maltratar as meninas
As minhas não
As meninas são minhas
Só minhas
As minhas meninas
Do meu coração.
Nesta poesia, fica evidente o desejo de cuidar das meninas que, já crescidas, escapam
das mãos vigilantes do pai e da mãe. As meninas são do coração. Mas, do coração partem para o
35
mundo. Também Uma Canção Desnaturada nos fala da dor paterna ao perceber que a filha
cresceu e foi para o mundo. A dor de não conter o futuro da filha grita pela reversão do tempo:
Por que cresceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para viver a tempo
De poder
Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído
“Vossos filhos não são vossos filhos, são filhos e filhas da própria ânsia de
vida”, já nos assegurava, antologicamente, Khalil Gibran. Porém, não é sem sofrimento
que alguns pais do Chico vêem o crescimento de seus filhos e a perda da possibilidade
de contê-los, em seus cuidados.
36
Não identificamos, no conjunto das canções de Chico Buarque, a presença da família
extensa como partícipe das relações de cuidado com as crianças e a infância. Somente a figura
do avô, por uma vez, surge, em Opereta de Casamento, como atestamos no trecho que se segue:
Quando a mãe caiu na sarjeta
Foi seguindo a opereta
Na garupa do avô
Quando o avô caiu do cavalo
Foi chorar no intervalo
E mais um ato começou.
Para nós, fica patente que o cuidado materno é fortemente presente na poética de
Chico Buarque. A propósito, Fagundes (2013), ao analisar O Meu Guri, considera
notável a intimidade da mãe com seu filho:
Tamanho esforço e competência do guri na corrida [para chegar lá!]
comovem o sujeito expressivo: a mãe teria motivos de sobra para se
orgulhar dos feitos do rebento, que compartilha seus frutos, trazendo-os
para casa, presenteando-os àquela que o deu à luz (ou à sombra?) e lhe
possibilitando que também conquiste seu lugar ao sol: “E traz sempre
um presente ... terço e patuá”. (p. 157).
Chamou nossa atenção o fato de não encontrarmos nenhuma letra na obra de CB
que faça algum tipo de referência ao cuidado do Poder Público, como necessário e
legítimo para a criança e a infância. Isso nos remete à ausência de cuidado na seara
pública. Ou ainda: descuido!
Descuidos
Frei Betto (2004) tece interessantes comentários sobre a obra de Chico Buarque.
Para ele, o poeta se diferencia, evidenciando um comprometimento ético muito peculiar:
“Político, Chico evita partidos e palanques. Abraça causas, movido pela bemaventurança da fome de justiça. Fica ao lado dos oprimidos, ainda que aparentemente
eles não tenham razão. Exilado em sua clandestinidade permanente, Chico emerge nos
momentos cruciais” (p. 53).
Para Pinheiro (2015; 2006; 2007), o campo político da infância e da
adolescência é amplo, revela tensões próprias a ele, bem como da questão social
brasileira. São enormes as desigualdades sociais, decorrentes de problemas estruturais e
conjunturais; são políticas e recursos públicos até hoje aquém das demandas do universo
37
de crianças e adolescentes. Assim, é necessário estarmos sempre atentos às
peculiaridades desse campo, no que diz respeito a práticas e representações referentes a
crianças e adolescentes, que se articulam com seus direitos, quando são violados, e
também quando ameaçados de violação.
Devemos estar atentos, sem a intenção de se responder definitivamente, ao
seguinte questionamento: Como têm sido percebidos, significados, no tecido social
brasileiro, crianças e adolescentes com seus direitos violados (ou em ameaça de
violação)?
No Brasil, há a dimensão normativa de garantia de direitos, que inclui promoção,
proteção e defesa. Requer, além de Leis, instituições a quem recorrer, quando de
ameaça ou violação: assim, a partir de 1988, contamos com dispositivos fundamentais
para a garantia de direitos de crianças e adolescentes, dos quais são exemplos:
Constituição Federal (1988); Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança (1989); Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA; Lei Federal no. 8069, de
13 de julho de 1990); Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de
Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (2006).
A tensão social existente no campo dos direitos humanos e, especificamente dos
direitos das crianças, é grande. Se tomarmos como exemplo o direito à convivência
familiar e comunitária, umbilicalmente relacionado à dimensão de cuidado, podemos
verificar como há vinculações a outras dimensões de Direitos Humanos de Crianças e
Adolescentes, e suas violações, entre os quais, neste texto, é preciso atentar para as
formas de violência (familiar, política, institucional, sexual). Para clarearmos, mais
ainda, a compreensão que temos de infância e do ser criança, no que se refere à
construção de significações e práticas referentes a cuidados e descuidos, são nossas
ideias:
- no mundo social: nada é natural, tudo é construído; nele circulamos de acordo
com sistemas classificatórios;
- em nosso tecido social, há uma constante tensão entre igualdade e diferença;
entre a significação de crianças e adolescentes como objetos e como sujeitos de direitos;
entre políticas universais e específicas – de um lado, e políticas focalistas e
assistencialistas, de outro;
38
Apesar da existência de políticas públicas, os direitos da criança estão longe de serem
atendidos, posto que em nenhuma delas a abrangência, até hoje, dá conta do universo de
demandas. E conteúdos de canções de Chico Buarque evidenciam tais situações, em diferentes
tempos contextos sociais e históricos, ao longo de mais de cinquenta anos em que o autor vem
construindo suas composições:
- (1) crianças trabalhando (Peitinhos de pitomba/Vendendo por Copacabana/ As suas
bugigangas/ Suas bugigangas – Carioca); (2) passando fome (A novidade/Que tem no Brejo
da Cruz/ É a criançada/ Se alimentar de luz/ Alucinados/ Meninos ficando azuis/E
desencarnando/ Lá no Brejo da Cruz– Brejo da Cruz); e, também em: Quando, seu moço,
nasceu meu rebento/ Não era o momento dele rebentar/ Já foi nascendo com cara de fome/ E
eu não tinha nem nome pra lhe dar – (O Meu Guri); (3) sem o devido cuidado social (Uma
menina igual a mil/ Que não está nem aí/ Tivesse a vida pra escolher/E era talvez ser distraída/
O que ela mais queria ser/ Ah, se eu pudesse não cantar/ Esta absurda melodia/ Pra uma
menina distraída/ Uma menina igual a mil/ Do Morro do Tuiuti – Uma Menina).
São, assim, falas sobre condição de descuido para com as crianças e com a infância,
muitas das vezes nos levando a constatar a omissão do Poder Público, cujas instituições
deveriam ensejar práticas que combatessem ou eliminassem o trabalho infantil; a fome e a
desnutrição; que promovessem atividades voltadas para a construção de projetos de vida para
crianças e jovens, para uma menina igual a mil. E Chico aborda temas tão indignantes, de modo
contundente, sutil e cheio de lirismo.
A propósito, Ciarallo (2009) considera que a “lente da poesia de Chico Buarque (...) ao
relatar um caso aparentemente trivial, descreve criativamente aspectos significativos que
compreendem o universo desse guri que tanto tem estado na mídia, nas conversas do cotidiano,
nos debates político-sociais” (p. 28). Deste modo, O meu guri é nosso guri. Quando dele nos
aproximamos, é possível que passemos a ter um compromisso com ele – ignorá-lo, a partir
dessa aproximação, é abrir mão da nossa cidadania! Escutemos:
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice, ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí! Olha aí!
Olha aí!
39
Ai, o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega
Chega suado e veloz do batente
Traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar
Olha aí!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!
Chega no morro com carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos está um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar
Olha aí!
Olha aí!
Ai o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O Meu Guri se tornou um ícone quando se fala ou se reflete sobre o descuido
social com a criança. Ao cantar nosso guri brasileiro, desafiando datas inscritas no
passado, Chico Buarque cumpre com o destino de toda grande obra. Depois de vir pela
primeira a público, em 1981, a canção O Meu Guri permanece atual, como podemos
constatar nas considerações de Fagundes (2013), sobre a composição:
40
os temas da invisibilidade social, da má distribuição de renda,
da evasão de menores de idade para a criminalidade e da
invasão da violência no espaço urbano brasileiro passam pela
sensibilidade e inteligência de Chico Buarque, pelas quais a
letra faz arte mesmo quando à parte da música. (p. 149)
O autor faz algumas considerações sobre os três personagens da letra: o guri,
apresentado como meu guri, porque quem fala é a sua mãe, que se dirige ao seu moço –
é a ele que a mãe se dirige o tempo todo! O poema nos fala da trajetória de um menino
nascido em ocasião não conveniente (Não era o momento dele rebentar), pobre (Já foi
nascendo com cara de fome), morador de morro (chega no morro; até ele chegar no
alto) e vinculado à criminalidade (com carregamento). No relato, não necessariamente
ciente e/ou consciente da mãe, o mundo do crime aparece na condição de meio de
“chegar lá”, ou seja, de sair da fome e da falta de um nome para se tornar alguém na
vida (na sua meninice ele um dia disse/Que chegava lá). (p. 155). Para Fagundes, mãe e
guri são vítimas, mãe e guri são os vitimadores: ”Se pelo ângulo policial, reclamamonos vítimas, pelo social, o guri e sua mãe são vitimizados”. (FAGUNDES, 2013, p.
160).
E o verbo se fez carne! É deste modo que Frei Beto (2004) se refere ao poeta do
Brasil:
Chico é todo ele palavra. Esse o seu reino, a sua mátria, a razão de
seus viver. Por isso a preserva tanto. Conhece o seu valor e cuida de
não desperdiçá-la. Nele também o verbo se faz carne, e música, e
texto e protesto. Por isso, preza tanto o espaço que o abriga: o silêncio,
onde aprendeu com os monges a lapidar significantes e significados.
(p. 53).
E o sonho de uma infância cuidada, de crianças amadas, se revela, mais uma
vez, nas palavras poéticas do Chico do Brasil, no olhar vigilante, capaz de gestos
extremos para protegê-las: “Tutu-Marambá não venha mais cá/Que a mãe da criança
te
manda
matar”.
Categoria Brincadeira: como brincam os pequenos Chicos?
Brincadeira: o que é mesmo a brincadeira?
41
A brincadeira é uma atividade considerada presente em todas as sociedades e, ao
longo de toda a história humana, desde os tempos pré-históricos, já existem indícios de
brincadeira e de brinquedos. É compreendida como algo impulsionador de inúmeros
desenvolvimentos, sendo indispensável a qualquer ser humano. Como alardeia Chicoi,
em Sonho de um Carnaval (1965), No Carnaval, esperança/ Que gente longe viva na
lembrança/ Que gente triste possa entrar na dança/ Que gente grande saiba ser
criança. O autor parece saber que a brincadeira é muito próxima da infância. Para ele, a
dança é antídoto para a tristeza. Ao mesmo tempo, deseja que as pessoas grandes
saibam entrar na dança da vida, brincar na vida! Mesmo gente grande pode brincar,
acredita Chico, mesmo que seja na lembrança: Lembra amor (...) E depois, brincando
de brincar/ Nos brinquedos parados/ Nós dois (Roda Gigante, 1965). Brincando de
brincar... quantas possibilidades encontramos aí. A infância, como tempo de brincadeira
e de possibilidades é evidenciada por Larrosa (1999)
O motivo pelo qual as pessoas de maior idade são de maioridade é
porque esqueceram que foram crianças, porque sepultaram em algum
lugar remoto, de sua consciência, a violência que as fez maior de
idade. E porque se esqueceram, inclusive, do próprio esquecimento,
deste gesto que lhes fez enterrar o que são. Para serem maior de idade
confortavelmente, as pessoas na maioridade têm de pensar que as
aparências são a realidade, que o deserto é o paraíso, que a mentira é a
verdade. No entanto, às vezes acontece algo que te fez cair em teu
próprio eu, no eu de verdade, no eu que estava oculto e esquecido
(p.45)
A brincadeira parece ser um elemento trans-histórico. Atravessa o decorrer da
humanidade, sendo transformada pelos tempos, culturas, histórias e sociedades. No
dizer de Carneiro (s\d), “as crianças em diferentes momentos históricos e em diversos
povos, deixaram-nos um legado importante, seus brinquedos e brincadeiras, dando
pistas aos estudiosos da maneira como viviam” (p.2). Desse modo, as brincadeiras
infantis estão presentes em todo o mundo e são “quase sempre jogos muito simples e
divertidos. Não demandam objetos, desenvolvem muitas habilidades e, historicamente,
se originam de práticas culturais e religiosas realizadas pelos adultos ao longo do
tempo” (p.2). Chico parece dar-se conta disso: “Tapete mágico, aviãozinho, trem
fantasma” – Roda Viva povoam sua imaginação.
42
A brincadeira se reveste de coisas simples. E ganha uma importância grande na
musicografia de Chico. Na sua música João e Maria (Sivuca – Chico Buarque - 1977),
por exemplo, o autor relata uma brincadeira de faz-de-conta, utilizando-se de um tempo
verbal que não existe na gramática portuguesa, mas que é recorrente na linguagem
infantil. A esta linguagem Chico chama de “passado onírico”12. Agora eu era o herói e
meu cavala só falava inglês (...) Agora eu era o rei, era o bedel e era também juiz..(...).
Esta música revela um poder de nos levar à infância e suas brincadeiras, por vezes já
esquecida. Com uma singeleza ímpar, o poeta nos faz entrar num tempo idílico e
onírico: Não, não fuja não/ Finja que agora eu era o seu brinquedo/ Eu era o seu pião/
O seu bicho preferido/ Sim, me dê a mão/A gente agora já não tinha medo/ No tempo
da maldade/ Acho que a gente nem tinha nascido/ Agora era fatal/ Que o faz-de-conta
terminasse assim/ Pra lá deste quintal/ Era uma noite que não tem mais fim (...). A
brincadeira e o quintal parecem nos resguardar de uma noite que não tem mais fim. O
quintal fala de um tempo onírico, de um mundo habitado pela fantasia, imaginação e
possibilidades.
Manuel de Barros (2010), poeta criança, também enxerga no quintal uma
metáfora da infância:
Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A
gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o
tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com
as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas
do nosso quintal são sempre maiores que as outras pedras do mundo.
Justo pelo motivo da intimidade (A Infância – Memórias Inventadas)
A brincadeira é a principal ferramenta de interação da criança com o meio em
que ela está inserida. É através dela que a criança desenvolve sua percepção dos
elementos que estão ao seu redor. É mesmo uma atividade espontânea, que proporciona
à criança condições saudável para o seu desenvolvimento biopsicossocial. Muitos são os
autores que compartilham da perspectiva da importância da brincadeira para as crianças
(BROUGÈRE, 2010; CARNEIRO, s\d; PEREIRA, 2009; JARDIM, 2002; FROTA et
al, 2014).
12 Chico usa esta expressão no DVD Chico Buarque – uma palavra, de 2006.
43
Nossa compreensão da brincadeira se dá a partir da visão de dois autores ícones
da Psicologia do Desenvolvimento: Vygotsky (1991) e Piaget (1967). No primeiro
autor, tem-se o desenvolvimento humano advindo da interação social, constituindo o
sujeito nesse processo. No segundo, a compreensão do desenvolvimento como um
movimento de equilibração de um estágio menos organizado, para um superior mais
organizado.
Segundo Piaget (1967), as brincadeiras são impulsionadoras para mudanças de
estágio de desenvolvimento. Nos primeiros meses de vida, até aproximadamente dois
anos, está voltada para a descoberta de seu próprio corpo e daquilo que ele lhe
possibilita, caracterizando o estágio sensório-motor.Entre dois a sete anos, surgem as
brincadeiras de faz-de-conta, jogos simbólicos e imaginários, nos quais a criança narra o
que faz e cria histórias, fortalecendo a desenvoltura da linguagem, tipificando o estágio
pré-operatório: Agora eu era o herói, e o meu cavalo só falava inglês13.
Ainda de acordo com Piaget, os sete aos doze anos são marcados pelas
brincadeiras coletivas e com regras, favorecendo a saída da criança da perspectiva
egocêntrica, conduzindo a um processo de socialização e assimilação das regras
coletivas. É aqui que aparecem brincadeiras com bola, pega-pega, esconde-esconde. É
este o estágio do operatório concreto. Chico traz conteúdos que parecem descrever um
pouco este estágio, na música Doze anos: Ai que saudade que eu tenho/ Dos meus doze
anos que saudade ingrata/ Dar banda por aí/ Fazendo grandes planos/ E chutando
lata/ Trocando figurinha/ Matando passarinho/ Colecionando minhoca/Jogando muito
botão/ Rodopiando pião/ Fazendo troca-troca14.
A partir da adolescência, e ao longo da vida adulta, há uma prevalência de jogos
coletivos e com regras, o que caracterizaria o último estágio, operatório formal.Mais
uma vez, nosso poeta se revela: (...) E, disputando troféu/ Guerra de pipa no céu/
Concurso de pipoca.
Na teoria psicológica criada por Vygotsky, há o conceito de Zona de
Desenvolvimento Proximal (ZDP), que está relacionado ao processo de aprendizagem
13João e Maria (Sivuca – Chico Buarque, 1977)
14 Doze Anos (Chico Buarque - 1977-78)
44
de um sujeito, através de mediadores. Assim, seu salto evolutivo se dá de um nível de
desenvolvimento real para um nível de desenvolvimento potencial, com auxílio de um
instrumento que facilite essa transposição. É esse processo na ZDP que possibilita o
desenvolvimento do sujeito, levando o indivíduo a alcançar níveis cada vez mais
evoluídos (VYGOTSKY, 1991).
A brincadeira ocupa um lugar de mediação, promovendo esse processo de ZDP,
proporcionando à criança desenvolvimento.
Assim, o brinquedo cria uma zona de desenvolvimento proximal da
criança. No brinquedo, a criança sempre se comporta além do
comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento
diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade.
Como no foco de uma lente de aumento, o brinquedo contém todas as
tendências do desenvolvimento sob forma condensada, sendo, ele
mesmo, uma grande fonte de desenvolvimento (VYGOTSKY, 1991,
p.69).
Léo15 nos permite enxergar a mediação feita pela brincadeira entre a vida
cotidiana e a vida futura. Trata do desenvolvimento de uma pessoa, uma criança, que,
atravessando toda sua vida, se vê repetido pelo filho: um pé na soleira e um pé na
calçada (...) um nome na lama e um silêncio profundo (...) um pé na soleira e um pé na
calçada. A música parece tratar de um desenvolvimento de uma criança, que vive,
cresce, tem um filho, trabalha, morre tragicamente e, da lama e do silêncio profundo,
ressurgem: (...)um pião, um filho no mundo e uma atiradeira/ Um pedaço de pau/ Um
pé na soleira e um pé na calçada”.
Segundo Vygotsky (1991), existem cinco funções primordiais da
brincadeira.
Uma das grandes vantagens da brincadeira, em relação às propostas de
exercícios pedagógicos, está no fato de a brincadeira manter por maior tempo seu
caráter atrativo e prazeroso, o que faz com que a criança repita várias vezes uma mesma
ação, e de modo espontâneo.
Uma segunda função importante é o desenvolvimento da linguagem e do
pensamento. A brincadeira leva a criança a interagir, seja com um objeto, quando brinca
15 Léo (Mílton Nascimento-Chico Buarque, 1978).
45
sozinha, ou com um colega, quando está em grupo. Quando está sozinha, a criança
pequena descreve para si mesma cada ação por ela executada à medida que brinca. Esse
processo não somente favorece a fluência de sua linguagem, mas o próprio processo de
pensamento. A simbolização é o que possibilita a construção de um pensamento
abstrato, ou seja, o surgimento das funções psicológicas superiores próprias à condição
humana. Na música Acalanto16, Chico fala de uma criança que se dirige ao irmão já
falecido, do seu desejo de que ele estivesse ali. A dor da perda mostra-se com uma
pungencia maior do que o egocentrismo infantil: É tão cedo, meu irmão/ Abre os olhos,
dorme não/ Espalha os meus soldados/ Estraga os meus brinquedos/ Pode me odiar/
Nunca mais olhar para mim/ Mas não faz/ Não faz mais/ Assim (...).
A terceira função da brincadeira, conforme discute Vygotsky (1991), é
promover a inserção social. A interação durante a brincadeira auxilia a saída da criança
de seu estado egocêntrico, passando a enxergar o ponto de vista do outro. É o que
vemos a seguir: Se lembra da jaqueira/ A fruta no capim/ O sonho que você contou pra
mim/ Os passos no porão/ Lembra da assombração/ E das almas com perfume de
jasmim/Se lembra do jardim, ò maninha/ Coberta de flor/ Pois hoje só dá erva daninha
no chão que ela pisou17. Ou ainda neste trecho que se segue de João e Maria: Não, não
fuja não/ Finja que agora eu era o seu brinquedo/ Eu era o seu pião/O seu bicho
preferido/ Sim, me dê a mão/ A gente agora já não tinha medo/ No tempo da
maldade/Acho que a gente nem tinha nascido18. Assim, a brincadeira é fundamental para
a compreensão dos papéis sociais presentes em determinado contexto. E Chico parece
perceber a importância da brincadeira para a socialização humana.
Para Giddens (2010), a socialização é o processo pelo qual as crianças, ou
outros membros novos de uma sociedade, aprendem o seu modo de vida. É um processo
no qual o principal canal de transmissão da cultura, para as crianças, através do tempo e
das gerações, e a brincadeira. Assim, as brincadeiras e jogos são transmissores e
16 Acalanto (Edu Lobo/Chico Buarque, 1985).
17 Maninha, 1977
18 João e Maria, 1977
46
produtores de cultura.
Como quarta função, apresentamos a interiorização de regras e valores.
Vygotsky (1991) falava que toda brincadeira, sem exceção, possui regras e uma situação
imaginária na qual está inserida. Dependendo da brincadeira, esses dois aspectos
configuram-se de maneira mais ou menos explícita. Prosseguindo a discussão teórica,
temos que Vygotsky (1991) apresenta as regras como inerentes ao humano. Elas não são
simplesmente imposições externas que contrariam as vontades individuais, e sim regras
de funcionamento social, traduzindo e constituindo uma cultura. Giddens (2010)
considera que a cultura se refere aos modos de vida dos membros de uma sociedade ou
de grupos pertencentes a essa sociedade. Inclui o vestuário, organização social, padrões
de trabalho, cerimônias religiosas, lazer e brincadeira. Em Imagina19, Chico fala de
crenças sociais, passadas através de brincadeiras infantis: Sabe que o menino que
passar debaixo do arco-íris vira moça, vira/ A menina que cruzar de volta ao arco-iris
rapidinho volta a ser rapaz.
Finalmente, como quinta função da brincadeira, de acordo com Vygotsky,
vem a elaboração de desejos e conflitos irrealizáveis. O brincar, para a criança, torna-se
uma via de satisfação de alguma necessidade ou desejo frustrado pela realidade. A
criança, em uma brincadeira, tem a possibilidade de simbolizar seus sentimentos, por
vezes incomunicáveis e que a mobiliza: medo, agressividade, gratidão e amor. Veja
como Chico fala disso: Se lembra do futuro que a gente combinou/ Eu era tão criança e
ainda sou20.
Acreditamos, deste modo, que as brincadeiras ocupam um patamar
importante no cotidiano infantil. É brincando que a criança constrói seu saber, sua
imaginação e auto realização. Jardim (2002) credita à brincadeira “(...) a possibilidade
de uma ordem específica e absoluta que introduz na imperfeição do mundo e na
confusão da vida uma perfeição temporária” (p.34). Continuando com Chico, em
Maninha: Querendo acreditar/ Que o dia vai raiar/ Só porque uma cantiga anunciou/
Mas não me deixe assim, tão sozinho/ A me torturar/ Que um dia ele vai embora,
19 Imagina, 1983
20 Maninha, 1977
47
Maninha/ Pra nunca mais voltar. Para Jardim, “o jogo (nesse contexto, essa palavra é
sinônimo de brincar) é uma ordem e cria uma ordem” (p. 34). Chico parece concordar
com isso.
A brincadeira tem o poder de realizar uma conexão entre o mundo real e o
imaginário.No mundo do faz de conta, tudo se transforma e se reinventa, as regras se
tornam flexíveis e necessárias para o desenvolvimento da brincadeira. Logo, se torna
interessante compreender o significado do brincar.
Brincadeira e cultura:
Sabemos que a brincadeira é uma atividade universal, na qual a criança usa os
recursos disponíveis no espaço em que vive para experimentar, executar ações e lidar
com situações no âmbito do faz de conta (FROTA et al, 2014). Admitimos que quem
brinca se serve de elementos culturais para construir a própria história, ou seja, a
experiência lúdica aparece como um processo histórico-cultural. Como percebemos na
letra da música João e Maria: Eu enfrentava os batalhões/ Os alemães e seus canhões/
Guardava o meu bodoque/ E ensaiava o rock para as matinês.
Todo brinquedo carrega em si não apenas aquilo que o adulto intui ser o espírito
infantil, mas toda a cultura em que se insere a sua produção: uma época, um modo de ver o
mundo e de relacionar-se com as crianças, uma forma de educar e apresentar a tradição, um
projeto de sociedade, afirma Pereira (2009).Na letra da música Doze Anos,Chico nos transporta
para um espaço e tempo que revelam uma cultura e uma forma de viver: Ai, que saudades que
eu tenho/ Duma travessura/ Um futebol de rua/ Sair pulando muro/ Olhando fechadura/ E
vendo mulher nua/ Comendo fruta no pé/ Chupando picolé/ Pé-de-moleque, paçoca/ E
disputando troféu/ Guerra de pipa no céu/Concurso de pipoca”. É possível e fácil se aperceber
desse vínculo do brinquedo com a sociedade: crianças brincam diferentemente em espaços
geográficos, históricos e sociais distintos. É como mostram Brougère (2010), Carneiro (s\d),
Frota et al (2014).
Associar brinquedo e cultura não é, ainda, uma atitude frequente entre os poucos
pesquisadores que se interessam pelo brinquedo, afirma Brougère (2010). O brinquedo e
a brincadeira, muitas vezes, se revestem de pouco valor. Além disso, pode perder seu
valor lúdico para se tornar um instrumento pedagógico. No entanto, para o estudioso, o
brinquedo e a brincadeira são dotados de um forte valor cultural, se “definirmos a
cultura como o conjunto de significações produzidas pelo homem. Percebemos como
48
ele é rico de significados que permitem compreender determinada sociedade e cultura”
(p. 8).
Assim, apesar da dificuldade em conhecer as diferentes infâncias e como viviam
as crianças nos distintos povos, é possível conhecer um pouco da história e da cultura
através dos objetos utilizados nas brincadeiras infantis, como percebemos claramente
com o que fazem os Pequenos Chicos, nas músicas Doze Anos e Léo. Vejamos um
trecho de Léo: Um pé na soleira e um pé na calçada/ Um pião (...).
Brougère (2010) mostra como o brinquedo e as brincadeiras refletem uma
realidade social, toda a cultura que lhes permeia. É feliz na sua argumentação, quando
afirma, por exemplo:
Ao olhar a Barbie e a Susy, duas bonecas-manequins e, também, as
bonecas-bebê e seu ambiente infantil, reconhecemos certos aspectos
de nossa realidade cotidiana. Do mesmo modo, sociedades diferentes,
sociedades passadas, podem ser conhecidas através das bonecas, de
suas roupas, suas casinhas (p. 34).
Assim, brinquedos e brincadeiras são constituídos e constituintes de uma
cultura, de uma sociedade. Nas músicas do Chico, emergem várias brincadeiras,
brinquedos e jogos, que nos falam de uma cultura e de uma prática cultural.
Em João e Maria, o jogo de faz-de-conta é um convite às brincadeiras de heróis,
cowboys, guerra e princesa. Aparecem brinquedos como pião e bodoques. O poeta nos
fala de um tempo idílico, fantasioso e restrito, um “quintal” que consegue se manter
imune aos perigos da vida e à escuridão da noite. Já em Doze anos aparecem
brincadeiras como chutar latas, matar passarinho, trocar figurinhas, colecionar
minhocas, rodopiar pião, jogar botão, jogar futebol de rua, escalar muros, olhar mulher
pelada pelo buraco da fechadura, trepar em árvores e comer furtas no pé, chupar picolé,
comer pé de moleque e paçoca, disputar troféu, fazer guerra de pipa no céu e, o tão
conhecido quanto assegredado, concurso de “piroca”. Fala de um tempo que as crianças
de cidades grandes não parecem conhecer, pois vivem sitiadas em prédios, temerosas da
violência das cidades. Tem o poder de nos transportar para esse tempo idílico e poético.
Léo nos fala de um tempo marcado por ações e objetos. A infância parece ser
representada pela soleira da rua e o pé na calçada. Aqui, mais uma vez, o pião surge
caracterizando um brinquedo infantil, que logo é trocado por um rabo de saia. E volta
ao fazer referência ao filho, de novo na soleira e um pé na calçada.
49
Roda Gigante traz um parque de diversões, com sua montanha russa, roda
gigante, carrossel, túnel do amor, tapete mágico, aviãozinho, trem fantasma. Com o
parque e suas fantasias, também o sentimento de um amor imorredouro, que nem
sempre consegue permanecer real, tanto quanto a fantasia o faz. Roda Viva (1967,
Chico Buarque) parece falar da vida e das ilusões que a atravessa e a constitui. Vejamos
esse trecho: Roda mundo, roda-gigante/ Rodamoinho, roda pião/ O tempo rodou num
instante/ Nas voltas do meu coração. Na vida, que não é de faz-de-conta, a roda viva
carrega amores, brisas, saudades.Assim como os brinquedos rodam em torno de si
mesmos, também a vida parece girar.
Em Acalanto, na pungência da dor da perda do irmão, um pequeno chico oferece
seus brinquedos, soldadinhos, ao irmão ausente.Oferece também a si mesmo, seu corpo
e cabelos, como brinquedo, e para fazer renascer o irmão morto. Finalmente, Maninha
fala de balões, de fogueiras, de assombração. Mais uma vez, CB trata de uma infância
idílica, habitada por feriados nacionais, que trazem crianças correndo no campo,
embaixo de jaqueiras.
Deste modo, a cultura lúdica da criança é influenciada tanto pelo brinquedo
quanto pelos conteúdos simbólicos e culturais. A brincadeira está ligada aos objetos
lúdicos dos quais a criança dispõe, e das tradições diversas que fazem parte de sua
existência. A brincadeira é um meio de viver a cultura, tal como ela verdadeiramente é
pelos olhos da criança, e não como ela deveria ser, qual seja, pelas lentes dos adultos:
A criança está inserida, desde o seu nascimento, num contexto social
e seus comportamentos estão impregnados por essa imersão
inevitável. Não existe na criança uma brincadeira natural. A
brincadeira é um processo de relações interindividuais, portanto, de
cultura (BROUGÈRE, 2010, p.104).
Voltando à realidade das letras das músicas do Chico, interessa-nos investigar a
brincadeira e brinquedos que surgem revelados. O que, a partir deles se mostra ao nosso
olhar de pesquisadores? De qual cultura Chico nos fala? Qual sociedade se deixa
perceber na sua poesia?
Categoria Características da Infância
50
Parece muito fácil descrever a infância ou, ainda, a criança. De um modo geral, existe a
compreensão de que ser criança resume-se em ser feliz, alegre, despreocupado, ter condições de
vida propícias ao seu desenvolvimento, ou seja, a infância é considerada o "melhor tempo da
vida", pelo menos para muitas pessoas desavisadas ou com conclusões aligeiradas. Contudo,
alerta Frota (2007), nem sempre é desse modo que a infância é vivida por muitas crianças:
“basta olharmos ao redor, para vermos meninos e meninas na rua, esmolando, se prostituindo,
sendo explorados no trabalho, sem tempo para brincar, sofrendo violências de todos os tipos”
(p. 148).
A criança desvalida aparece em algumas das canções do Chico: Pivete (No sinal
fechado/ Ele vende chiclete/ Capricha na flanela/ E se chama Pelé/ Pinta na janela/ Batalha
algum trocado/ Aponta um canivete e até),O Meu Guri (Quando seu moço nasceu meu rebento/
Não era o momento dele rebentar/ Já veio nascendo com cara de fome/ Eu não tinha nem nome
para lhe dar), Uma Menina (Uma menina igual a mil/ Que não está nem aí/ Tivesse a vida pra
escolher/ E era talvez ser distraída/ O que ela mais queria ser/ Ah se eu pudesse não cantar/
Esta absurda melodia/ Pra uma criança assim caída/ Uma menina do Brasil/ Que não está nem
aí/ Uma menina igual a mil/ Do Morro do Tuiuti), Carioca (De noite/ Meninas/ Peitinhos de
pitomba/ Vendendo por Copacabana/ As suas bugigangas/ Suas bugigangas). Ele não nos fala
de uma única infância idílica, momento existencial desejado por todos. Fala-nos de infâncias!
Scliar (1995) discute a multiplicidade de infâncias na contemporaneidade,
deixando clara a construção histórica de tal categoria. Para ele, aquela ideia tão
difundida da infância como um tempo de felicidade, não tem sido garantida para todos.
O mesmo parecem fazer Dahlberg, Moss e Pence (2003), ao atestarem que as novas
concepções de infância e de criança apontam para a aceitação de uma multiplicidade e
um devir, que não se fecha em si mesmo, enfatizam que não existe somente uma forma
de compreender a criança e a infância.
Sob uma perspectiva pós-moderna, afirma Frota (2007), não existe
conhecimento absoluto, realidade cristalizada, esperando para ser
conhecida e domada; um entendimento universal, que se faça fora da
história ou da sociedade. No lugar disso, o projeto pós-modernista
propõe que o mundo e o conhecimento dele sejam vistos como
socialmente construídos. Isso significa pensar que todos nós estamos
engajados na construção de significados, em vez de engajados na
descoberta de verdades. Assim, não existe somente uma realidade,
mas várias. O conhecimento não é único, e sim múltiplo, variável,
51
fragmentado e mutável, inscrito nas relações de poder, que lhes
determinam o que é considerado como verdade ou falsidade. A
verdade é compreendida somente como uma correspondência da
verdade, uma representação da verdade, e como tal deve ser tomada.
(p. 149).
Partindo da perspectiva paradigmática da pós-modernidade, a criança é
descentralizada, ou seja, retirada do centro, uma vez que se considera que ela exista
através das suas relações com os outros, sempre em um contexto particular e próprio.
Assim, torna-se possível e necessário afirmar que a infância, como produção cultural na
pós-modernidade, não pode ser pensada como cristalizada ou acabada. Constitui-se
mesmo num devir, que incorpora a noção de transformação e dinamismo. Coloca-se,
então, a necessária compreensão dos diversos sentidos e significados de infância.
Elaborar conclusões sobre a concepção de infância na contemporaneidade,
evidencia-se uma tarefa impossível de ser levada a cabo. A compreensão da
impossibilidade de se tomarem as grandes narrativas como verdades cristalizadas, a
certeza da multiplicidade de vivências e de seus significados, que se ancoram nas
também múltiplas historicidades, a aceitação da parcialidade das verdades, são
elementos que não podem ser deixados de lado. Desse modo, os saberes são construídos
de modo tímido, sabendo-se incompletos, precários e parciais. Contudo, ao mesmo
tempo, mais verdadeiros. Assim, torna-se necessário alertar para a precariedade das
distintas concepções que habitam nossos saberes. Tais concepções, importantes de
serem compreendidas e pensadas, não são verdades absolutas e sim “pontas do iceberg”,
devendo ser tomadas como tal.
As diferentes crianças
Chico Buarque não nos fala de uma infância única. Mostra-nos várias infâncias,
vividas de modo tão diverso e único quanto as sociedades e as histórias podem ser.
Cavalcanti (2012)acredita que os poetas retiram da vida simples e humilde, poesia, tal
como faz CB. Assim, “para estes poetas, a poesia está no chão, no mais humilde
cotidiano” (p. 12). Na obra de CB, se fazem presentes a valorização da vida cotidiana,
na rotina dos subúrbios, assim como a contraposição entre vida simples e agitada.
Cidades pequenas e grandes centros urbanos aparecem na sua obra.
Ciarallo (2009) acredita que Chico Buarque se apercebe das diferentes infâncias
e mostra isso na sua obra. Também afirma que as crianças ricas aparecem em desfiles
52
de modas e propagandas, enquanto as pobres são denominadas menores, e estão nas
páginas policiais: “Como se as crianças pobres fossem futuros marginais, um delírio
social determinista, constituído a partir das imagens e dos discursos construídos
historicamente, sustentados nas relações cotidianas, dilatados e uniformizados, em
especial, pela mídia” (p. 20-21). A autora observa ainda que “quando nomeamos
crianças e adolescentes, estamos falando de pessoas que têm nome e sobrenome. O
sobrenome daquele que nomeamos menor é sua classe” (p. 20). E é muito nitidamente
que Chico fala de classe social em O Meu Guri: (...) Já foi nascendo com cara de fome/
Eu não tinha nem nome para lhe dar (...).
Já em A Banda, por exemplo, ambientes nostálgicos e interioranos se deixam
ver, mostrando outra realidade: “justamente pelo fato desta canção trazer, para um
mundo completamente conturbado, um tempo feliz e harmônico” (SILVA, 2004, p. 16).
A música se tornou um ícone da produção do poeta. Silva (2004) acredita que A Banda,
cantada primeiramente por Nara Leão e pelo autor, se tornou um acontecimento
nacional. Aqui, a criança aparece como símbolo da alegria, movimento, assanhamento:
A moça triste que vivia calada sorriu/ A rosa triste que vivia fechada se abriu/E a
meninada toda se assanhou/ Pra ver a banda passar/ Cantando coisas de amor.
Incrível a capacidade lírica do poeta de tratar de realidades tão distintas quanto
possíveis:infância desvalida e infância alegre, por exemplo. É de Silva (2004) a seguinte
afirmação:
A Banda cantada por Chico representa um momento de alegria
efêmera, que por onde passa leva sentido à vida de pessoas perdidas
em si mesmas e as reúne numa espécie de comunhão, capaz de
reencantar a própria natureza: o homem sério para de contar dinheiro,
a moça triste e calada sorri, o velho fraco se esquece do cansaço, a
rosa triste se abre, a lua cheia aparece – tudo se transfigura ao ver a
banda passar cantando coisas de amor. E tudo volta à sua rotina
cinzenta e sem sentido – “cada qual no seu canto/ em cada canto uma
dor” – tão logo a banda se vai e o encanto se desfaz (p. 41).
Dentro deste panorama, a criança mostra-se inquieta, em movimento, de modo
lúdico. Destacamos o movimento, presente em A Banda, na forma de “assanhamento”,
como uma característica frequentemente associada à infância. A brincadeira parece
mesmo ser uma das características mais presentes na representação da infância, dentro
53
da obra de Chico. Em João e Maria, a brincadeira de faz-de-conta nos introduz em um
mundo onírico. Sigamos com ela:
Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava o rock para as matinês
A criança brinca de jogos-de-faz-de-conta, acredita nas histórias de assombração, vibra
com um feriado nacional, que abre a possibilidade de correr com os amigos pelas ruas, entre as
roupas recém-lavadas. “Naquele tempo” se enxergam as flores no campo e as jaqueiras cheias
de frutos.
A brincadeira faz-se presente nas musicas do poeta: Marcha para um dia de Sol
(Eu quero ver um dia/ Nascer sorrindo/ E toda a gente/ Sorrir com o dia/ Com alegria/
Do sol do mar/ Criança brincando/ Mulher a cantar.); Meu refrão (Já chorei sentido
de desilusão/ Hoje estou crescido/ Já não choro não/ Já brinquei de bola/ Já soltei
balão/
Mas tive que fugir da escola/ Pra aprender a lição); Roda Gigante (Tapete mágico,
aviãozinho, trem fantasma/ E a noite então/ Lembra você, mas qual você/ Não lembra
não); Doze Anos:
Ai, que saudades que eu tenho
Dos meus doze anos
Que saudade ingrata
Dar bandas por aí
Fazendo grandes planos
E chutando lata
Trocando figurinha
Matando passarinho
Colecionando minhoca
Jogando muito botão
Rodopiando pião
Fazendo troca-troca.
Chico nos mostra uma cultura lúdica, apresentando brincadeiras, jogos e
brinquedos, nos apontando para a riqueza dessa atividade. Ao mesmo tempo, não se
detém a uma única característica da infância. Será que ele, assim como afirma Dorneles
(2010), tenta “re-interpretar as infâncias, fazendo-as transbordar de significados, na
54
tentativa de mostrá-las como uma possibilidade de viver e viver outra forma de ser
criança”? (p.4).
Dornelles (2010) nos fala da provisoriedade das verdades modernas. Uma destas
verdades é da criança como independente, um indivíduo cuidado, para cuidar de si
mesmo. Acredita que na modernidade se construiu uma infância que prometia uma
criança feliz, respeitada e independente. No entanto, Chico rompe com este paradigma,
denunciando infâncias desvalidas, crianças violentadas nos seus direitos.
A criança é apresentada como movimento, animação, energia, alegria. Mesmo
em Pivete, que nos conduz a uma infância desprotegida, ela também anda, brinca, corre,
se alegra. Podemos ver isso em O que Será (à flor da terra) - E todos os meninos vão
desembestar; O Que Será (Abertura) – Será que essa criança quer me agoniar/ Será
que não se cansa de desafiar/ O que não tem descanso, nem nunca terá; A Cidade Ideal
– Atenção porque nesta cidade/ Corre-se a toda velocidade. Doze anos é, toda ela,
marcada pelo movimento. Tanto que quase conseguimos ver um bando de meninos
inventando “peraltagens”. E, em Outros Sonhos, o que parece impossível para o poeta é
ver “Guris inertes no chão”.
Em algumas letras de música, a criança é representada como alguém que vive uma
dependência afetiva grande, em especial dos pais. Madalena Foi para o Maré um bom exemplo
disso. Além disso, inocência, imaturidade, e incompletude também são apontadas como
características da criança: Vem que eu te quero fraco/ Vem que eu te quero tolo/ Vem que eu te
quero todo meu.(Trecho de Sem Fantasia). Valsa Rancho também mostra este olhar sobre a
criança: Me deixa/ Que criança/ Que esperança/ Que prazer/Que saudade.
Já em Você, Você, música feita em homenagem ao neto do poeta Chico, a grande
dependência materna fica muito evidente:
Que roupa você veste, que anéis?
Por quem você se troca?
Que bicho feroz são seus cabelos
Que à noite você solta?
De que é que você brinca?
Que horas você volta?
Seu beijo nos meus olhos, seus pés
Que o chão sequer não tocam
A seda a roçar no quarto escuro
E a réstia sob a porta
Onde é que você some?
55
Que horas você volta?
Quem é essa voz?
Que assombração
Seu corpo carrega?
Terá um capuz?
Será o ladrão?
Que horas você chega?
Me sopre novamente as canções
Com que você me engana
Que blusa você, com o seu cheiro
Deixou na minha cama?
Você, quando não dorme
Quem é que você chama?
Pra quem você tem olhos azuis
E com as manhãs remoça
E à noite, pra quem
Você é uma luz
Debaixo da porta?
No sonho de quem
Você vai e vem
Com os cabelos
Que você solta?
Que horas, me diga que horas, me diga
Que horas você volta?
Ao mesmo tempo, Chico apresenta a criança sempre de uma forma positiva, como a
inauguração de possibilidades já esgotadas para os velhos. Vejamos alguns trechos de letras:
Em Maninha: Se lembra do futuro/ Que a gente combinou/ Eu era tão criança e ainda sou/
Querendo acreditar que o dia vai raiar/ Só porque uma cantiga anunciou. Também em Sonho
de Um Carnaval, deparamo-nos com uma perspectiva positiva: No carnaval, esperança/ Que
gente longe viva na lembrança/ Que gente triste possa entrar na dança/ Que gente grande
saiba ser criança. A Cidade Ideal traz nova perspectiva, também bastante positiva: O sonho é
meu e eu sonho que/ Deve ter alamedas verdes/ A cidade dos meus amores/ E, quem dera, os
moradores/ E o prefeito e os varredores/ Fossem somente crianças”.
Chico nos aponta, desta forma, uma característica infantil que, além de positiva, traz
consigo uma esperança de transformação social.
Identificamos outras características de infâncias nas letras de música: submissão,
obediência, permissão para chorar, fragilidade. Em Meu Refrão, o poeta mostra a criança como
alguém que ainda pode chorar: Já chorei sentido de desilusão/ Hoje estou crescido/ Já não
choro não/ Já brinquei de bola, já soltei balão/ Mas tive que fugir da escola/ Pra aprender a
lição. Em Com Açúcar e com Afeto, também aparece a figura da criança que chora: Quando a
noite enfim lhe cansa/ Você vem feito criança/ Pra chorar o meu perdão/ Qual o quê!. Em Ano
56
Novo, novamente isso se faz presente: E eu que sou menino/ Muito obediente/ Estava
indiferente/ Logo me comovo/ Pra ficar contente/ Porque é Ano Novo. Assim, às crianças
parece ser permitido chorar, se comover, ficar contente e brincar.
Até o Fim, juntamente com Meu Refrão, sãos as duas letras de música que tratam da
escola. Isso chama atenção pelo fato, na contemporaneidade, ser a escola uma das instituições
que mais se confunde com a infância. No entanto, só detectamos sua presença nessas duas letras
da música do poeta Chico. Além disso, seu olhar sobre a escola é crítica, como podemos
perceber: Inda garoto deixei de ir à escola/ Caçaram meu boletim – Até o fim. Mas tive que
fugir da escola/ Pra aprender a lição, trecho de Meu Refrão.
Em nosso modo de ver, Chico pensa na criança como um ser em devir. Isso
significa que ele pensa a criança como possibilidade de viver, como possibilidade de
viver o ser criança como prática de potencialização da alegria da vida, como uma
política de afirmação da vida.
Categoria Infâncias
O Brasil é um país marcado por profundas desigualdades sociais. No que diz
respeito à renda, o país é um dos que apresenta os piores quadros de concentração de
renda do mundo. Ao longo de sua história constituiu-se de uma maneira persistente a
concentração de renda e riqueza no país. Se fizermos uma analise de seu processo de
colonização até o período recente pode-se constatar que independente do grau de
crescimento econômico o país não consegue de uma maneira justa fazer a repartição do
seu produto social.
É interessante ressaltar que a renda per capita, renda dividida pela população, é
um dos principais indicadores utilizados na mensuração do padrão desenvolvimento de
uma nação. Porém, ela não pode ser vista como um elemento isolado dos demais
indicadores econômicos e com certeza, os sociais.
Ao discutir a exclusão social, pobreza no Brasil, Lemos (2012) aponta a
importância
de
distinguirmos
os
conceitos
de
crescimento
econômico
e
desenvolvimento econômico. Para o autor, o crescimento é “aferido apenas através de
57
indicadores de quantum ou de quantidades, como, por exemplo, o produto agregado nas
suas diferentes formas de aferição (PIB agregado, renda agregada) ou de um destes
agregados expressos em termos médios” (p. 37).
Já o desenvolvimento econômico é um conceito bem mais abrangente do que o
mero crescimento do produto agregado de um país, de uma região ou de um estado ou
município. Os indicadores de quantum, isoladamente, não são capazes de aferir os
níveis de bem-estar e de qualidade de vida e, portanto, de desenvolvimento, haja vista
que alguns, ou todos eles, podem estar associados a desigualdades sociais significativas.
A sociedade pode ter uma produção elevada e apenas uma ínfima e restrita parcela da
população tem acesso a esse resultado. Através do conceito de desenvolvimento
econômico, deveria haver um envolvimento equitativo da sociedade na repartição deste
bolo. Adicionalmente, essa maior participação deveria vir acompanhada de melhores
padrões de qualidade de vida (LEMOS, 2012).
A desigualdade social também se apresenta entre as regiões, gênero, raça e etnia.
Tais dimensões também contribuem para acentuar tais desigualdades, posto que o
diferente é tomado, no Brasil, muitas vezes, como o inferior. Na economia brasileira
prepondera uma das distribuições de renda, terra e pessoal, ocupado na agricultura, das
mais desiguais do mundo ocidental. Mesmo com o intenso ritmo de crescimento
econômico, transformações estruturais e modernização experimentada pela economia
brasileira nas últimas cinco décadas, a questão dos desequilíbrios entre pessoas e
regiões permaneceu praticamente inalterada. São vários os fatores que levam alguns a
terem renda maior do que outros: escolaridade, gênero, região de nascimento e de
moradia .
Segundo Lemos (2012) a mais marcante das características da sociedade
brasileira, é, sem sombra de dúvidas, o contraste no que se refere aos indicadores sociais
e econômicos que se distribuem de forma bastante assimétrica entre as regiões, estados,
bem como dentro das regiões e dos Estados. A partir dessas reflexões, é possível para
nós pensarmos em diversos “Brasis”, bem como diversificados estados, em um mesmo
estado brasileiro.
Singer (2000) aponta que desigualdade, pobreza e exclusão social, estão
altamente inter-relacionadas, mas que devem ser distinguidas. Desigualdade refere-se
principalmente à renda, consumo ou acesso a serviços e oportunidades. Isto é
58
inteiramente relativo: o grau de desigualdade pode ser determinado apenas ao se
examinar a situação do grupo ou sociedade como um todo, dimensionando a posição de
seus componentes e determinando a extensão das diferenças entre eles.
A desigualdade pode se revelar muito difícil de ser medida. Porém, o senso
comum identifica com facilidade as sociedades nas quais os cidadãos compartilham (em
distintos patamares) de um padrão de vida, e sociedades nas quais não existe
comensurabilidade entre o modo de vida do rico e as estratégias de sobrevivência do
pobre.
Já a pobreza é vista também como uma situação relativa, que deve, contudo, ser
relacionada com a medida absoluta de um mínimo. Apesar de este mínimo de consumo,
de condições de vida, diferir entre os diversos países e mudar continuamente, há uma
espécie de referência comum na noção das necessidades básicas, cuja satisfação deve
ser assegurada a todos. Pobres são os desprovidos da satisfação daquilo que se
consideram as necessidades básicas. Tal definição de pobreza praticamente exclui a
hipótese de que poderia haver “pobre voluntário” ou “pobre por escolha própria”, visto
que pobreza, neste sentido, implica padecimento por privação do mínimo necessário
para manter a pessoa viva e saudável (SINGER, 2000, p. 61).
Com relação à exclusão social, essa pode ser vista como uma soma de várias
exclusões, habitualmente muito inter-relacionadas. Aqueles que foram expulsos do
mercado de trabalho formal, ou do mercado da residência formal, em contraste com o
informal, formado por cortiços e favelas, ou da escola, ficam em desvantagem na
competição por novas oportunidades, tornando-se candidatos prováveis a novas
exclusões. Contrariamente à desigualdade e pobreza, que são situações, a exclusão
social é um processo, embora captado estatisticamente pelo número de excluídos.
O início da produção artística de CB, década de 1960, se dá no ingresso do
Brasil como um país mais urbano, mais industrializado e com uma maior diversidade de
ocupações profissionais, caracterizando-se, assim, como uma nação que ingressa no
padrão capitalista ocidental. Paralelo a isso, o país enfrenta altas taxas de inflação,
elevada dívida externa e déficit do balanço de pagamento. Tem-se, logo no inicio da
década, o agravamento de uma das mais sérias crises econômicas e financeiras no país.
A partir de abril de 1964, o país passa a vivenciar a intervenção militar, que perdurou
59
até o ano de 1985. Durante esse período conturbado da história de nosso país, vários
artistas se manifestaram através de sua arte.
A década dos anos 60, no Brasil, é apontada pelos cientistas sociais
como um período muito rico
cultural e politicamente. O
desenvolvimento progressista anunciado por Juscelino Kubitschek,
posteriormente colocado em xeque pela repressão pós-golpe de 1964,
e permeado pelos atos inconstitucionais, resultaram numa ampla
contestação ideológica na época, produzida pela intelectualidade
brasileira. Somados à entrada da era eletrônica e a conquista do
homem à Lua formam o período mais efervescente e contraditório da
história cultural brasileira contemporânea. (FISCHER, FABRICIO,
CARVALHO, 2003, p. 136).
Chico discorre sobre esse momento quando compõe, em 1965, a música Pedro
Pedreiro. No título da canção, Chico demarca uma profissão socialmente considerada
inferior. Cria um personagem comum na realidade das grandes cidades brasileiras, que
se insere em um contexto de subalternidade e inferioridade econômica, social e de
status. Sua profissão, pedreiro, vira seu sobrenome e remete a um ramo da construção
civil, onde é absorvida a mão-de-obra de baixa escolaridade e baixa renda. Pedro
esperao aumento/ Desde o ano passado/ Para o mês que vem e a sorte pela federal todo
mês. Espera tanto por uma mudança em sua condição, que acaba por desistir de sua
esperança. Quer ser pedreiro, pobre e nada mais/ Sem ficar esperando, esperando,
esperando... Antes, era Pedro Pedreiro Penseiro, agora é só Pedro Pedreiro Pedreiro.
Enquanto isso, e a mulher de Pedro/ Está esperando um filho/ Para esperar também,
um filho que será um novo Pedro e que encontrará a mesma dificuldade de mobilidade
social.
Podemos facilmente observar a presença de marcação de classes igualmente em
outra canção de Chico Buarque, intitulada Construção. Nela, assim como em Pedro
Pedreiro, o protagonista é uma representação de um trabalhador urbano de baixa renda.
Ambos são (ou serão) pais que, pelo conteúdo das duas canções, não poderão
proporcionar condições ideais de criação para seus filhos. O caráter pessimista (ou seria
realista?) das letras nos transmite a sensação de perpetuação da realidade
socioeconômica de milhares de brasileiros.
60
É interessante observar o caráter humanista retratado nessas obras. A propósito,
Boff (2004) discorre sobre esse humanismo aberto, como ele o chama, e ao qual associa
a bondade, a solidariedade, a cooperação e a compaixão. E, mais ainda, o amor, a
benquerença, a reconciliação, a paz. Esse humanismo aberto possui, de acordo com o
teólogo, valor intrínseco, mesmo quando se esquece as razões últimas de sua
sustentação. Ele se tornou hoje patrimônio transcultural da humanidade. Constitui a
atmosfera ética e espiritual que respiramos coletivamente (p. 84-5).
Em O Meu Guri podemos observar que, mesmo tendo sido composta em 1981, a
música permanece atual para a realidade infanto-juvenil Brasileira. Isso é relatado por
Fagundes (2013):
depois de vir pela primeira a público, em 1981, a canção “O meu guri”
permanece atual. Os temas da invisibilidade social, da má distribuição
de renda, da evasão de menores de idade para a criminalidade e da
invasão da violência no espaço urbano brasileiro passam pela
sensibilidade e inteligência de Chico Buarque, pelas quais a letra faz
arte mesmo quando à parte da música. (p. 149).
Citamos o trecho de O Meu Guri: Já foi nascendo com cara de fome/E eu não
tinha nem nome pra lhe dar/Como fui levando, não sei lhe explicar/Fui assim levando
ele a me levar/E na sua meninice ele um dia me disse/Que chegava lá. A fome é visível
em O Meu Guri, assim como em Brejo da Cruz:
A novidade
Que tem no Brejo da Cruz
É a criançada
Se alimentar de luz
Alucinados
Meninos ficando azuis
E desencarnando
Lá no Brejo da Cruz.
Ainda sobre diferenciação de vivências de infância, CB nos aponta para
inserções outras, para além da marcação de classe. São exemplos: a meninada que se
61
assanha ao passar da banda, em conjunção a outras pessoas do cotidiano; a alusão às
crianças – junto à “Cecília e a família”, feita pelo compositor em Meu Caro Amigo, em
carta que envia ao exilado Augusto Boal. Escutemos: A Marieta manda um beijo para
os seus/Um beijo na família, na Cecília e nas crianças/O Francis aproveita pra também
mandar lembranças/A todo o pessoal, Adeus.
Há, ainda, em A Violeira, a jovem que (Desde menina/ Caprichosa e
nordestina/ Que eu sabia, a minha sina/ Era no Rio vir morar/ Em Araripe/ Topei com
o chofer dum jipe/ Que descia pra Sergipe/ Pro Serviço Militar) sonhava em migrar
para outras regiões. Ou seja, é deslocando-se de uma região a outra, que a Violeira
busca outras formas de inserção social. Podemos incluir, ainda, como exemplos de
alusões a inserção social, nas canções de: A Cidade Ideal – provavelmente a única
alusão de CB à participação de crianças em decisões coletivas, na administração da
cidade, e o faz como algo que seria benéfico para a realidade – a presença efetiva da
criança, no desempenho dos mais variados papeis sociais:
A cidade ideal
Cachorro: A cidade ideal dum
cachorro
Tem um poste por metro quadrado
Não tem carro, não corro, não morro
E também nunca fico apertado
Galinha: A cidade ideal da galinha
Tem as ruas cheias de minhoca
A barriga fica tão quentinha
Que transforma o milho em pipoca
Crianças: Atenção porque nesta cidade
Corre-se a toda velocidade
E atenção que o negócio está preto
Restaurante assando galeto
Todos:
Mas não, mas não
O sonho é meu e eu sonho que
Deve ter alamedas verdes
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A cidade dos meus amores
E, quem dera, os moradores
E o prefeito e os varredores
Fossem somente crianças
Deve ter alamedas verdes
A cidade dos meus amores
E, quem dera, os moradores
E o prefeito e os varredores
E os pintores e os vendedores
Fossem somente crianças
Gata: A cidade ideal de uma gata
É um prato de tripa fresquinha
Tem sardinha num bonde de lata
Tem alcatra no final da linha
Jumento: Jumento é velho, velho e sabido
E por isso já está prevenido
A cidade é uma estranha senhora
Que hoje sorri e amanhã te devora
Crianças: Atenção que o jumento é sabido
É melhor ficar bem prevenido
E olha, gata, que a tua pelica
Vai virar uma bela cuíca
Todos: Mas não, mas não
O sonho é meu e eu sonho que
Deve ter alamedas verdes
A cidade dos meus amores
E, quem dera, os moradores
E o prefeito e os varredores
Fossem somente crianças
63
Deve ter alamedas verdes
A cidade dos meus amores
E, quem dera, os moradores
E o prefeito e os varredores
E os pintores e os vendedores
As senhoras e os senhores
E os guardas e os inspetores
Fossem somente crianças
O trabalho infantil também se revela, para nós, como caminho de distinção entre
infâncias, no conteúdo de canções de CB: em Carioca, há a púbere, com seus peitinhos
de pitomba, que batalha por sua sobrevivência,
De noite
Meninas
Peitinhos de pitomba
Vendendo por Copacabana
As suas bugigangas
Suas bugigangas.
No Brasil as crianças de famílias pobres sempre trabalharam. No espaço privado,
ou no público, muitas começam nos mais tenros anos a luta pela sobrevivência. No
Brasil, o trabalho infantil pode ser considerado como consequência de uma série de
fatores. Dentre eles podemos citar a necessidade de contribuir com a renda familiar,
dado que, no país, é relevante o numero de famílias com rendimentos financeiros
insuficientes para suprir, pelo menos, suas necessidades primárias.
Aos filhos de “rico”, a escola! Aos filhos de “pobre”, o “ trabalho”!. É essa a
ideologia difundida no início do Brasil republicano, e que perdura até hoje. Segundo
Rizzini (2013), a extinção da escravatura foi um divisor de águas no que diz respeito ao
trabalho infantil. O debate sobre a teoria que o trabalho seria a solução para o ‘problema
do menor abandonado ou delinquente começava a ganhar visibilidade’. A experiência
da escravidão havia demonstrado que a criança e o jovem trabalhador constituíam-se em
mão de obra mais dócil, mais barata, e com mais facilidade de adaptar-se ao trabalho.
64
As canções de CB também, como em Pivete e O meu guri, fazem referencia a
“envolvimento com atos infracionais”. Pinta na janela/ Batalha algum trocado/ Aponta
um canivete/ E até... Arromba uma porta/ Faz ligação direta/ Engata uma primeira/ E
até/...Se manda pra Tijuca/ Na contramão(...). Descola uma bereta; Em O Meu
Guri...Chega suado e veloz do batente/ E traz sempre um presente pra me encabular/
Tanta corrente de ouro, seu moço/ Que haja pescoço pra enfiar/ Me trouxe uma bolsa
já com tudo dentro/Chave, caderneta, terço e patuá/ Um lenço e uma penca de
documentos/ Pra finalmente eu me identificar/Chega no morro com o carregamento/
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador/...Chega estampado, manchete, retrato/
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais.
A referência de crianças em atos infracionais já é percebida no final do século
XIX na cidade de São Paulo. Com o fim do regime escravocrata, migração europeia e
acelerado êxodo rural, era comum a prática de “vadiagem” e “gatunagem” de
“menores” que aterrorizavam os cidadãos paulistanos( SANTOS, 2013).
Em uma revista desse período, séc. XIX, foi publicada uma poesia de Amélia
Rodrigues21, O Vagabundo, na qual retrata um ‘menor’ de 12 anos, que perambulava
pelas ruas ameaçando a ordem pública. Escutemos:
O vagabundo
O dia inteiro pelas ruas anda
Enxovalhado, roto indiferente:
Mãos aos bolsos olhar impertinente,
Um machucado chapeuzinho a banda.
Cigarro à boca, modos de quem manda,
21Amélia Augusta do Sacramento Rodrigues nasceu na Fazenda Campos, freguesia de Oliveira
dos Campinhos, a 26 de maio de 1861. Faleceu aos 65 anos de idade, no dia 22 de agosto de
1926, deixando a marca de um trabalho inigualável, tanto na Educação, como na Literatura e
Assistência Social. Disponível em: http://www.jacuipenoticias.com. Acesso em 25 de agosto de
2015.
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Um dandy de misérias alegremente,
A procurar ocasião somente
Em que as tendências bélicas expanda
E tem doze anos só! Uma corola
De flor mal desabrochada! Ao desditoso
Quem faz a grande, e peregrina esmola
De arranca-lo a esse trilho perigoso,
De atira-lo p’ra os bancos de uma escola?!
Do vagabundo faz-se o criminoso!...
Podemos relacionar a poesia com O pivete de CB ( canção) que em ambas um garoto
vive o seu cotidiano perambulando pelas ruas da cidade e se envolve com algum ato
infracional. A moral vigente quando da publicação de O Vagabundo, e os interesses por
mão de obra que o capital requeria, faziam desse ato, perambular, um crime.
O momento que São Paulo vinha vivendo era uma sociedade urbana, que
inaugurava um novo de vida. Era o inicio de uma nova sociabilidade, dado que a
urbanização e a industrialização imprimiam novas formas de vida na cidade. Existia,
porém, uma dicotomia entre uma cidade que vivencia os novos ventos da
industrialização e uma população que vivia em condições de vida miserável. Segundo
Santos (2013), grande parte da população não participava desse progresso, vivendo em
habitações compostas de cortiços, em condições mínimas de salubridade e saneamento,
sujeitas a pestes e epidemias. Ainda segundo o autor, a criminalidade, porém, se
registrava diferentemente do que se tem hoje.
No Brasil atual, a criminalidade, expressa muitas vezes em homicídios,
tráfico de drogas, seqüestros, exige uma reflexão sobre os sujeitos envolvidos.
Nas últimas décadas, presenciamos um novo padrão de mortes de jovens.
Segundo Mello Jorge (1998, apud Waiselfisz, 2011), estudos históricos realizados em
São Paulo e no Rio de Janeiro mostram que as epidemias e doenças infecciosas – as
principais causas de morte entre os jovens há cinco ou seis décadas –, foram
progressivamente substituídas pelas denominadas “causas externas” de mortalidade,
principalmente homicídios
66
Já em 1983, Pires alertava que as grandes cidades foram transformadas num
autêntico campo de batalha, onde mais de mil pessoas por ano são mortas, em número
superior as perdas anuais reconhecidas por países mergulhados em longo conflito
armado.
Ainda segundo a autora, pesquisas revelavam também que o povo tinha muito
medo de ser assaltado. Mas temiam tanto ladrões como a policia. E o crescimento
assustador do fenômeno dos linchamentos de assaltantes e criminosos por parte da
sociedade – a violência pela as próprias mãos da população- dá a exata medida do
descrédito das instituições e do sentimento de insegurança diante da impunidade do
ladrão.
Em O Meu Guri, de maneira terna, a mãe faz referência ao filho que lhe
presenteia com mimos, mesmo desconhecendo a origem. Segundo Fagundes (2013),
o poema nos fala da trajetória de um menino nascido em ocasião não
conveniente (“Não era o momento dele rebentar”), pobre (“Já foi
nascendo com cara de fome”), morador de morro (“chega no morro”;
“até ele chegar no alto”) e vinculado à criminalidade (“com
carregamento”). No relato, não necessariamente ciente e/ou consciente
da mãe, o mundo do crime aparece na condição de meio de “chegar lá”,
ou seja, de sair da fome e da falta de um nome para se tornar alguém na
vida (“na sua meninice ele um dia disse/Que chegava lá”). (p. 155)
Com relação ao chegar lá, Fagundes ainda acrescenta: Tamanho esforço e
competência do guri comovem o sujeito expressivo: a mãe teria motivos de sobra para
se orgulhar dos feitos do rebento, que compartilha seus frutos, trazendo-os para casa,
presenteando-os: “E traz sempre um presente, terço e patuá”. (p. 157). A canção
também retrata a ideia da falta de uma ‘família estruturada’, nos moldes legais, na qual
sobreviver não é tarefa fácil. Além disso, deixa claro que a dureza da vida
corrobora,muitas vezes, para a gestão de atos considerados criminosos.
Passeti (2013), ao se referir as famílias pobres do inicio do século XX no Brasil,
retrata que as mesmas moravam em condições precárias como em casas alugadas no
subúrbio, quartos de cortiços, barracos em favelas ou construções clandestinas.
Trocavam regularmente de parceiros, constituindo famílias muito grandes, com filhos
desnutridos e sem escolaridade, que cresciam convivendo com a ausência regular do pai
67
ou da mãe. Viviam dificuldades de acesso a bens culturais, carências psíquicas, sociais e
econômicas que se avolumavam e que as impeliam para a criminalidade tornando-se em
pouco tempo delinquente. Chico parece perceber isso e mostra em suas poesias: em O
Meu Guri: Quando, seu moço, nasceu meu rebento/Não era o momento dele rebentar/
Já foi nascendo com cara de fome/ E eu não tinha nem nome pra lhe dar/ Como fui
levando, não sei lhe explicar. Minha história, Quando enfim eu nasci minha mãe
embrulhou-me num manto/ Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo/
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher/ Me ninava cantando cantigas de
cabaré.
1. Gênero e sexualidade
Quando pensamos em gênero, podemos pensar em suas diversas formas de uso,
como por exemplo, na gramática, em que gênero é compreendido como um meio de
classificar fenômenos, um sistema de distinções socialmente acordado, mais do que uma
descrição objetiva de traços inerentes. Já no dicionário da Língua Portuguesa, gênero
indica a categoria por meio de desinências, uma divisão dos nomes baseada em
critérios, tais como sexo e associações psicológicas. Há gêneros masculino, feminino e
neutro. (Dicionário Aurélio Buarque de Holanda, 1989).
Trazendo para o seu uso mais contemporâneo, o termo “gênero” parece ter
aparecido primeiro entre as feministas americanas que queriam insistir no caráter
fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra indicava uma
rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou
“diferença sexual”.
Segundo Scott (1989), com o avanço dos estudos do sexo e da sexualidade, o
gênero se tornou uma palavra útil, pois oferece um meio de distinguir a prática sexual
dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens. Apesar do fato dos pesquisadores
reconhecerem as relações entre o sexo e o que os sociólogos da família chamaram de
“os papéis sexuais”, estes não colocam entre os dois uma relação simples. O uso do
“gênero” coloca a ênfase sobre todo um sistema de relações que pode incluir o sexo,
mas que não é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a
sexualidade.
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Apesar disso, os conceitos de gênero e sexualidade são tidos muitas vezes como
inseparáveis. Porém é interessante notar que, enquanto a discussão de gênero é muito
recorrente quando tratamos de infância, não podemos dizer o mesmo a respeito de
sexualidade. Para melhor exemplificar, basta lembrar das diferenças de criação entre
meninos e meninas, em seus mais variados aspectos. Na preparação para o nascimento
de uma criança; nas diferenças em suas roupas; em seus brinquedos, jogos e
brincadeiras, etc. O conceito de gênero perpassa as condições biológicas do nascimento,
é uma construção social.
Já o conceito de sexualidade infantil apenas foi atribuído de maneira mais
aprofundada por Freud, sendo muito pouco explorado antes dele. Para Freud, a noção de
sexualidade surge na criança desde seu nascimento. Tal definição ia contra o
pensamento clássico de sexualidade, que se caracterizava por ser instintivo e apenas
surgir na puberdade. (COSTA e OLIVEIRA, 2011)
Trazendo para um âmbito da educação, Louro (1997) considera a escola
desempenhando um papel de separar os sujeitos — tornando aqueles que nela entram
distintos dos outros que não têm acesso à instituição. Ela dividiu também, internamente,
os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento,
hierarquização. A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental moderna começou
por separar adultos de crianças, católicos de protestantes, dentre outras separações. Ela
também se fez diferente para os ricos e para os pobres e ela, imediatamente, separou os
meninos das meninas.
Percebe-se assim que essas concepções foram e são aprendidas e assim,
interiorizadas; tornando-se quase "naturais". E a escola é parte importante desse
processo. Para Louro (1997) tal "naturalidade", tão fortemente construída, talvez nos
impeça de notar que, no interior das atuais escolas, onde convivem meninos e meninas,
rapazes e moças, eles e elas se movimentam, circulam e se agrupam de formas distintas.
Observa-se, nesses movimentos e interações, que eles parecem "precisar" de mais
espaço do que elas parecem preferir "naturalmente" as atividades ao ar livre. Registra-se
a tendência nos meninos de "invadir" os espaços das meninas, de interromper suas
brincadeiras. E, usualmente, consideramos tudo isso de algum modo inscrito na "ordem
das coisas". A sexualidade e o gênero estão, sem dúvida, implicadas nessas construções
69
e é somente na história dessas divisões que podemos encontrar uma explicação para a
lógica que as rege.
Neste segmento do trabalho, nos embasaremos nas ideias de Joan Scott (1989) e
Louro (1997) para tentar identificar significações sociais a respeito de gênero e
sexualidade na infância a partir das canções de Chico Buarque.
Em Geni e o Zepelim (1977-1978), por exemplo, podemos perceber claramente
aspectos da sexualidade na puberdade vinculada a uma exploração sexual:
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato.
CB denuncia uma sexualidade antecipada, praticada por uma travesti, Geni, que
desde muito cedo se vende por alguns trocados; ou, senão, por algum prazer! Isso nos
faz pensar no grande contingente de meninos e meninas que são explorados
sexualmente no nosso país, fazendo parte de uma realidade que não deveria ocorrer.
Aproveita também para falar da contradição e ‘a-moralidade’ social quando, em função
de alguma necessidade própria, pode homenagear ou repudiar um comportamento
social.
Já em Doze Anos (1977-1978), o poeta nos fala de meninos na puberdade que se
iniciam, através da ludicidade, num jogo sexual. Nesta letra de música é possível
antevermos meninos agrupados, numa grande algazarra, meio infantil, meio
adolescente, brincando com pequenos prazeres. Neste tipo de brincadeira e prazer, as
meninas não são incluídas, deixando ver claramente uma diferença na constituição de
gênero. Escutemos:
Ai, que saudades que eu tenho
Duma travessura
O futebol de rua
Sair pulando muro
Olhando fechadura
E vendo mulher nua
Comendo fruta no pé (...).
Em Minha história (1970), Chico retrata o amor de uma prostituta com um
marinheiro. Do relacionamento entre os dois nasce um filho que é criado em um
prostíbulo. É contraditório o cuidado que a mãe tem pelo filho e a criação que ele recebe
70
pois, ao mesmo tempo em que ele é ninado, por exemplo, são as músicas de cabaré, que
ele escuta. Assim, a sexualidade vem transvesti da de cuidado.
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré(...)
A personagem da canção Minha história é uma prostituta que foi abandonada
grávida. Fica esperando por seu amante parada, pregada na pedra do porto,
com seu único velho vestido, cada dia mais curto. Dá a luz a seu filho em um
prostíbulo. Retrata uma condição socioeconômica desfavorecida.
Outra canção em que se pode ver aspectos relacionados ao gênero e sexualidade
é em Carioca (1998), mais especificamente nesse trecho da canção:
De noite
Meninas
Peitinhos de pitomba
Vendendo por Copacabana
As suas bugigangas
Suas bugigangas.
São os peitinhos de pitomba que marcam a saída da infância e entrada na
puberdade. Com ela, o início de uma sexualidade que, nesta poesia não é mais visível do
que o fato da menina estar trabalhando, vendendo suas bugigangas para sobreviver?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A primeira consideração que fazemos é a de termos nos surpreendido, neste
estudo, com a quantidade de canções de Chico Buarque (CB) que abordam a infância e
o ser criança (para além de algumas poucas que são mais comumente citadas, neste
sentido – O Meu Guri; Pivete; Acalanto para Helena).
As canções por nós selecionadas se distribuem da seguinte forma:
- década de 1960 – 15 composições;
- década de 1970 – 26 composições;
71
- década de 1980 – 12 composições;
- década de 1990 – 02 composições;
- ano 2000 em diante – 03 composições.
São, portanto, 58 canções. Deixamos claro que a seleção seguiu o arbítrio das
nossas formações, de nossas inserções em espaços acadêmicos e não acadêmicos, tais
como fóruns e redes no campo político dos direitos de crianças e adolescentes. A maior
incidência das canções se dá entre os anos 1960 e 1980, período em que houve imensa
visibilidade de questões relacionadas à infância e ao ser criança no Brasil e no Exterior.
Vivíamos a ditadura militar e a consideração do “problema do menor” como de
Segurança Nacional. Sua criminalização era de tal monta que a elaboração da PNBEM
(Política Nacional do Bem-Estar do Menor) se deu na ESG (Escola Superior de Guerra),
espaço no qual o regime totalitário concebia as leis de exceção. Ao mesmo tempo, foi
nas décadas de 1970 e 1980 que o País viveu processos extraordinários de mobilização
social, que se voltavam, basicamente, para quatro objetivos: volta ao pluripartidarismo;
retorno de eleições diretas em todos os níveis; anistia política geral e irrestrita e a
elaboração de nova Constituição Federal, desta feita por uma Assembléia Nacional
Constituinte, que substituísse a Carta Magna então vigente, que fora outorgada pelo
regime militar.
E, pela primeira vez na história da legislação brasileira, a Constituição Federal
1988 traz capítulo específico sobre crianças e adolescentes, garantindo todos os direitos
para todos eles. Acresçamos, ainda, que, no mesmo período, as precárias condições de
vida no Brasil, particularmente de expressiva parcela de crianças e adolescentes,
despertava a indignação de pessoas, grupos e instituições no País, e repercutia no
Exterior. Vivíamos, também, em nível mundial, mobilizações intensas, de instituições
internacionais, entre as quais a ONU e suas agências, o que resultou na elaboração e
aprovação da Convenção das Nações Unidas sobre a Infância, em 1989, tratado
assinado pelo maior número de Estados-Parte, à exceção, apenas, dos Estados Unidos e
da Somália (PINHEIRO, 2001; 2006, DOIMO, 1995). Circulavam, pois, em embate ou
articulação, diversificadas significações de criança e adolescente no País, nas décadas
de 1960 a 1980.
72
Chico Buarque, artista engajado, exímio observador, reflete, em suas canções,
sobre o cotidiano brasileiro e contribui para reflexões sobre esse cotidiano, suas
contradições, tais quais as que podemos observar entre as significações de crianças e
adolescentes no País. A peculiar acuidade de Chico, para revelar profundezas do
cotidiano, através de suas canções, reitera, em nós, um de nossos pressupostos, de que
expressões artísticas refletem as realidades e contribuem para o seu conhecimento e para
reflexões sobre elas.
De tal forma é a capacidade desse poeta do cotidiano que identificamos imensa
diversidade de significações de infância e de ser criança nas letras de suas canções. CB
parece atentar para tantas nuances das múltiplas realidades em que vivem crianças e
adolescente no País, e o faz em diferentes tons. Trata com lirismo, como no Acalanto
para Helena; com a expressão de dores pungentes, sentidas, por exemplo, por uma mãe,
em Pedaço de Mim – Chico Buarque, 1977-78: Oh, pedaço de mim/ Oh, metade
arrancada
de
mim/
Leva o vulto teu/ Que a saudade é o revés de um parto/ A saudade é arrumar o quarto/
Do filho que já morreu; e pelo que sente um irmão, em Acalanto, diante da morte de seu
irmão:
É tão cedo, meu irmão Abre os olhos, dorme não
Espalha os meus soldados
Estraga os meus brinquedos
Pode me odiar
Nunca mais olhar pra mim
Mas não faz
Não faz mais
Assim
Tão cedo, meu irmão
Põe a mão na minha mão
Pode fechar meus olhos
Alisa os meus cabelos
E a quem perguntar
Deus, que foi que aconteceu
Vou jurar que o teu sangue
É meu
Eu vou rasgar
Meu coração
Pra costurar o teu
Vou te soprar
73
Esta canção:
O meu irmão Morreu;
- como denúncia, quando aborda questões graves e delicadas, no âmbito das infâncias
brasileiras como: fome e miséria, que levam à morte no campo (Brejo da Cruz);
trabalho infantil (Carioca); exploração sexual, em Geni e o Zepelim, (que dá-se assim
desde menina); envolvimento com atos infracionais (O Meu Guri; Pivete); crianças em
situação de rua (Carioca; Pivete); desigualdades de classes (Pedro Pedreiro;
Construção); de gênero (Geni e o Zepelim).
Tudo isso nos revela a extrema sensibilidade do compositor, que podemos
perceber na diversidade também de emoções em suas composições; e nos encanta, por
sua capacidade imensurável de despertar as emoções as mais diversas em nós.
No universo das canções de Chico Buarque, convivemos, no correr de nossos
estudos, com personagens que ultrapassam a si mesmos, no sentido de que podemos
identificá-los em muitos outros de nossos cotidianos. Assim, sentimos ampliar o
conhecimento sobre realidades similares às em que se inserem os personagens referidos.
Por exemplo, o Pivete pode estar vendendo chiclete em um sinal fechado de incontáveis
cidades brasileiras; a personagem de Carioca pode vender suas bugigangas, não só em
Copacabana, mas em bairros outros do Rio de Janeiro e em muitas outras cidades; as
crianças que desencarnam de fome em Brejo da Cruz (PB) também o fazem em tantos e
tantos outros municípios do País.
Bem sentimos que o universo das canções sobre e para crianças em muito
ultrapassa os limites desta pesquisa. Assim é que fica a nossa sugestão para outras
investigações, que possam abordar, por exemplo, criações artísticas, dentro da temática,
de Gonzaguinha, Vinicius e Toquinho, Adriana Calcanhoto, que reputamos de imensa
riqueza para a compreensão mais ampliada de significações de infância e de ser criança,
que circulam através de canções da música popular brasileira.
A investigação sobre significações da infância e de ser criança, expressas no
universo das canções de Chico Buarque, permitiu-nos uma preciosa ruptura, com
relação às vezes pesadas tarefas acadêmicas. Isso porque foram o prazer e a alegria que
predominaram no processo de elaboração: ouvimos e reouvimos cada canção, e muitas
vezes cantarolamos e cantamos juntos muitas delas; descobrimos algumas que, até o
início do estudo, desconhecíamos, entre as quais encontramos conteúdos referentes a
74
crianças e infâncias; trocamos experiências e vimos emergir inúmeras lembranças de
nossas infâncias, e revivemos, com intensidade, antigas ou renovadas emoções: tristeza,
alegria, indignação, saudade, medo estão entre elas.
A satisfação também está em nós, ao nos darmos conta de que as nossas
construções podem contribuir para ampliar as reflexões sobre crianças e infâncias no
Brasil, em espaços sociais os mais diversos, considerando a potência que a música porta
em nosso País, para mobilizar instigações e emoções, particularmente um compositor da
estirpe de Chico Buarque.
Algumas percepções nos são muito presentes agora, tal que a de que este
trabalho contém interpretações nossas sobre as significações de ser criança e infâncias,
nas canções de Chico Buarque; de que seus conteúdos não esgotam a imensidão de
dimensões da infância e do ser criança em circulação, articulação ou embate no tecido
social brasileiro; que igualmente não esgotamos as possibilidades de interpretações das
composições musicais de Chico Buarque.
Tantas implicações em nós, com o processo de construção deste estudo, nos
fazem mais encantados com a potência das expressões artísticas em nos constituir e
constituirmos a Vida, que somos certos, agora, de estarmos mais humanizados, mais
próximos das complexas realidades de crianças e adolescentes no Brasil, mais poetas,
pelo direito e pelo avesso.
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Lista de Músicas do Chico Buarque Relacionadas a Infância e Ao Ser
Criança.22
Anos 1960
(15 músicas)
1. Marcha para um dia de sol
Chico Buarque/1964
2. Madalena foi pro mar
Chico Buarque/1965
3. Malandro quando morre
Chico Buarque/1965
4. Meu refrão
Chico Buarque/1965
5. Olê, olá
Chico Buarque/1965
6. Pedro Pedreiro
Chico Buarque/1965
7. Sonho de um carnaval
Chico Buarque/1965
8. Roda gigante
Chico Buarque /1965
9. A banda
Chico Buarque/1966
22 Fonte: www.chicobuarque.com.br
83
10. Com açúcar, com afeto
Chico Buarque/1966
11. Você não ouviu
Chico Buarque/1966
12. Noite dos mascarados
Chico Buarque/1966
Para o musical Meu refrão
13. Ano novo
Chico Buarque/1967
14. Sem fantasia
Chico Buarque/1967
Para a peça Roda Viva de Chico Buarque
15. Mulher, vou dizer quanto te amo
Chico Buarque/1968
Anos 1970
26 músicas
16. Minha história (Gesúbambino)
Dalla/Palotino - versão de Chico Buarque/1970
17. Acalanto para Helena
Chico Buarque/1971
18. Bolsa de amores
Chico Buarque/1971
19. Construção
Chico Buarque/1971
20. Mambembe
Chico Buarque/1972
Para o filme Quando o carnaval chegar, de Cacá Diegues
21. Valsa rancho
Chico Buarque/Francis Hime - 1973
22. A noiva da cidade
Chico Buarque/Francis Hime - 1976
Para o filme A noiva da cidade, de Alex Vianny
84
23. Meu caro amigo
Chico Buarque/ Francis Hime - 1976
24. Mulheres de Atenas
Chico Buarque /1976
Para a peça Mulheres de Atenas, de Augusto Boal e Chico Buarque
25. O que será (À flor da terra)
Chico Buarque/1976
Para o filme Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto
26. O que será (Abertura)
Chico Buarque/1976
Para o filme Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto
27. Vai trabalhar, vagabundo
Chico Buarque/1976
Para o filme Vai trabalhar, vagabundo, de Hugo Carvana
28. A cidade ideal
Enriquez/ Bardotti /Chico Buarque -1977
Para o musical infantil Os Saltimbancos, de Bardotti e Enriquez, adaptação de
Chico Buarque
29. Angélica
Miltinho /Chico Buarque - 1977
30. Carta do Tom (Paródia)
Toquinho/ Tom Jobim/Chico Buarque – 1977
31. João e Maria
Sivuca /Chico Buarque - 1977
32. Maninha
Chico Buarque/1977
33. Ai, se eles me pegam agora
Chico Buarque/1977-1978
Para a peça Ópera do malandro, de Chico Buarque
34. Até o fim
Chico Buarque/1978
35. Doze anos
Chico Buarque/1977-1978
Para a peça Ópera do malandro, de Chico Buarque
36. Léo
Chico Buarque -1978
85
37. Pedaço de mim
Chico Buarque/1977-1978
Para a peça Ópera do malandro, de Chico Buarque
38. Pivete
Chico Buarque/1978
39. Alumbramento
Chico Buarque/ Djavan - 1979
40. Uma canção desnaturada
Chico Buarque/1979
Para a peça Ópera do malandro, de Chico Buarque
41. Qualquer amor
Chico Buarque/ Francis Hime - 1979
Para a peça O Rei de Ramos, de Dias Gomes
Anos 1980
12 músicas
42. Morena de Angola
Chico Buarque/1980
43. Almanaque
Chico Buarque/1981
44. O meu guri
Chico Buarque/1981
45. Imagina
Chico Buarque/ Tom Jobim - 1983
Para o filme Para viver um grande amor, de Miguel Faria Jr.
46. Sinhazinha (Despedida)
Chico Buarque/1983
Para o filme Para viver um grande amor, de Miguel Faria Jr
47. Brejo da Cruz
Chico Buarque/1984
48. Mano a mano
Chico Buarque/ João Bosco - 1984
86
49. Acalanto
Chico Buarque/Edu Lobo -1985
Para a peça O corsário do rei, de Augusto Boal
50. Bancarrota blues
Edu Lobo/Chico Buarque - 1985
Para a peça O corsário do rei, de Augusto Boal
51. Sentimental
Chico Buarque/1985
Para o filme Ópera do malandro, de Ruy Guerra
52. As minhas meninas
Chico Buarque/1986
Para a peça As quatro meninas
53. Uma menina
Chico Buarque/1987
Anos 1990
02 músicas
54. Você, você
Chico Buarque/ Guinga - 1997
55. Carioca
Chico Buarque/1998
Anos 2000
03 músicas
56. As atrizes
Chico Buarque/2006
57. Outros Sonhos
Chico Buarque/2006
58. Nina
Chico Buarque/2010
87
i